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Volume 16, Ano 2008

Date post: 07-Jan-2017
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400
REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS 2008 ISSN 1415 - 0778 Book 1.indb 1 29/10/2009 11:00:22
Transcript
Page 1: Volume 16, Ano 2008

REVISTA dA FAculdAdE dE dIREITo

MIlTon cAMpoS2008

ISSn 1415 - 0778

Book 1.indb 1 29/10/2009 11:00:22

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Lucia Massaradiretora

Carlos Alberto RohrmannRodolpho Barreto Sampaio Júnior

Editores

Belo Horizonte – 2008

REVISTA dA FAculdAdE dE dIREITo

MIlTon cAMpoS

VoluME 16

ISSn 1415 - 0778

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS n. 16 p. 1-400 2008

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Revista da Faculdade de Direito Milton Campos Diretora Lucia Massara; Editores Carlos Alberto Rohrmann e Rodolpho Barreto Sampaio Júnior. – v. 16 (1º Sem. 2008) – Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

Semestral

Revista da Faculdade de Direito Milton Campos

Descrição baseada em: ano 1, n. 1, 1994.

ISSN 1415-0778

1. Direito – periódicos I. Faculdade de Direito Milton Campos II. Massara, Lucia. III. Rohrmann, Carlos Alberto. IV. Sampaio Júnior, Rodolpho Barreto.

CDU: 34 (05) 34:378 (815.1)

Ficha elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB-6 – 1206.

R454

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 1-400 2008

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Apresentação

É com satisfação que participamos à comunidade Acadêmica que, com o intuito de assegurarmos a qualidade da Revista Jurídica da Faculdade Milton campos, demos início, neste primeiro volume de 2008, à adequação aos critérios que a cApES tem entendido devem nortear os periódicos jurídicos. A primeira medida adotada foi a indi-cação dos profs. drs. carlos Alberto Rohrmann e Rodolpho Barreto Sampaio Júnior para atuarem como editores da Revista Jurídica. A re-formulação da Comissão Editorial e do Conselho Científico Externo também teve espaço, com a inclusão de novos componentes. Ressalta-se que essa alteração é necessária para permitir que, a partir do primeiro volume de 2009, estejamos aptos a selecionar os inúmeros trabalhos que são submetidos à Revista pelo sistema double-blind peer review. Estabeleceu-se, ainda, o mínimo de 18 artigos por volume, bem como a periodicidade mínima semestral. A endogenia também foi limitada a 25% dos artigos publicados, e o restante desses deve estar vinculado a pelo menos cinco outras instituições. Essas alterações, inclusive, já fo-ram implementadas neste número, que conta com artigos enviados por professores vinculados a cinco outras instituições de ensino superior nacionais e três instituições estrangeiras. Temos a certeza que a imple-mentação dessas alterações, somada às que se seguirão nos próximos números, permitirão à Revista da Faculdade de direito Milton campos figurar entre os mais importantes periódicos jurídicos nacionais.

Lucia MassaraDiretora da Revista da FDMC.

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ReviStA dA FACuLdAde de diReito MiLton CAMpoS

FundAdA EM Junho dE 1993Rua Milton campos, 202 – cEp 34000-000

nova limaMinas Gerais

Brasil

diReção dA ReviStAprofessora lucia Massara

Diretora

professor Marcos Afonso de SouzaSecretário

editoReScarlos Alberto Rohrmann

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior

CoMiSSão editoRiAL carlos Alberto Rohrmann

lucia MassaraMiriam de Abreu Machado camposRodolpho Barreto Sampaio Júnior

Sálvio de Figueiredo TeixeiraSacha calmon navarro coelho

Sidney Safe F. SilveiraSonia diniz Viana

ConSeLHo CientÍFiCo eXteRnohumberto Theodoro Júnior

(Brasil – uFMG) Ji lian Yap

(university of hK)Joaquim carlos Salgado

(Brasil – uFMG)

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Jorge Miranda (portugal)

Marcelo Andrade cattoni de oliveira (Brasil – puc/MG)

Marcelo campos Galuppo (Brasil – puc/MG)

Mario losano (Itália)

Misabel de Abreu Machado derzi (Brasil – uFMG)

osmar Brina corrêa-lima (Brasil – uFMG)

Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza (Brasil/portugal)

Silma Mendes Berti (Brasil – uFMG)

Sylvia Mercado Kierkegaard (dinamarca)

A indicação do Editor, comissão Editorial e conselho cientí-fico Externo é feita pelo período de (três) anos, encerrando-se no 2º semestre de 2009.

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CentRo eduCACionAL de FoRMAção SupeRioREntidade Mantenedora

prof. Sidney F. Safe SilveiraPresidente

prof. José Barcelos de SouzaVice-Presidente

prof. osmar Brina corrêa limaDiretor Financeiro

prof. haroldo da costa AndradeSecretário do CEFOS

Faculdade de direito Milton camposprof.ª lucia Massara

Diretora

prof. Marcos Afonso de SouzaVice-Diretor e Coordenador Didático-Pedagógico

Mestrado em direito Empresarialprof. carlos Alberto Rohrmann

Coordenador-Geral da Pós-graduação

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ReviStA dA FACuLdAde de diReito MiLton CAMpoSFundAdA EM Junho dE 1993

Rua Milton campos, 202 – cEp 34000-000nova lima

noRMAS editoRiAiS

1. A Revista da Faculdade de direito Milton campos divulga trabalhos na área do direito.

2. Serão publicadas colaborações inéditas. 3. os originais recebidos não serão devolvidos. 4. o recebimento do artigo enviado à Revista não implica a obrigatoriedade de

sua publicação. 5. o Editor da Revista poderá reapresentar os originais ao autor para que os adap-

te às normas editoriais ou esclareça dúvidas porventura existentes.6. o original deverá ser digitado no programa editor Microsoft Word, com espaço

simples, fonte Time news Roman, tamanho 12, e enviado por e-mail como ane-xo, endereçado para <[email protected]>.

7. os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e podem não representar as idéias desta Instituição.

8. os artigos da revista podem ser reproduzidos, desde que citada a fonte.os artigos da revista podem ser reproduzidos, desde que citada a fonte.9. o artigo deverá conter título, autor, resumo, abstract, com no máximo 250

palavras, palavras-chave e keywords, sumário, texto dividido em tópicos, con-clusão, referências bibliográficas.

10. A bibliografia citada deverá obedecer às normas da ABNT, observando-se, para as entradas, o critério (autor, ano, p.).

11. os artigos são selecionados por pareceristas anônimos, pelo sistema double-blind peer review.

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Escreveram neste número

AlInE MARIA polloM FRAnco nAVESBacharela em direito pela puc Minas ................................................. 331

BÁRBARA AlEncAR FERREIRA lESSAAluna do curso de Graduação em direito da uFop. Bolsista deIniciação Científica do CNPq ................................................................ 309

BART cuSTERSpesquisador academic. Tilburg Institute for law, Technology and Society. Tilburg University, 5000 LE Tilburg, Países Baixos. consultor senior. capgemini consulting Services, 3500 GnUtrecht, Países Baixos. B.H.M. [email protected] Researcher. Tilburg ...........................................................219

BRuno ToRQuATo dE olIVEIRA nAVESdoutor e Mestre em direito privado pela puc Minas. coor-denador do curso de Especialização em direito civil da puc Minas. professor dos cursos de Graduação e Especializaçãoem direito na puc Minas .............................................................. 331

cARloS AlBERTo RohRMAnn professor de direito Virtual e de direito Empresarial da Fa-culdade de direito Milton campos. coordenador didático do Mestrado em direito Empresarial da Faculdade de direito Milton campos. doutor em direito pela universidade da cali-fórnia em Berkeley. Mestre em direito pela uclA. Mestre em direito comercial para uFMG. Bacharel em direito (FdMc)

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e em ciência da computação (uFMG). Membro da Academia Mineira de letras Jurídicas, titular da cadeira Acadêmica nú-mero dezesseis, patrono Raul Soares de Moura. procurador do Estado de Minas Gerais. Advogado ............................................ 19

cIMon hEndRIGo BuRMAnn dE SouZAMestre em direito privado pela puc Minas. doutorando em direito privado pela puc Minas. professor de direito civil na puc Minas e na Faculdade novos horizontes. AdvogadoMilitante ......................................................................................... 117

dÉlBER AndRAdE lAGEcoordenador do centro de direito Internacional – cEdIn. coordenador e professor de direito Internacional da pós-Graduação Lato Sensu em Estudos diplomáticos do cEdIn e das Faculdades Milton campos, e do centro universitáriounA. Graduação Faculdades Milton campos e do centrouniversitário – unA ................................................................... 197

FÁBIo MuRIlo nAZARprofessor da Faculdade de direito Arnaldo Janssen. Mestrando em direito de Empresa pela FdMc. procurador do Estado deMinas Gerais. Advogado ....................................................................353

FERnAndo JoSÉ ARMAndo RIBEIRodoutor e Mestre em direito. professor da Faculdade Mineira de direito da puc Minas (Graduação e Mestrado) e da Faculdade de direito Milton campos. diretor departamental do IAMG.Advogado ....................................................................................... 175

JI lIAn YApprofessora no programa de Teaching Fellow Faculdade de direito, universidade da cidade de hong Kong. [email protected] /[email protected] ................................... 251

JÚlIo AGuIAR dE olIVEIRABacharel em Direito pela UFMG. Mestre em Filosofia do Direito pela UFMG. Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Pro-fessor dos cursos de Graduação em direito da uFop e da puc Minas. professor do programa de pós-Graduação em direito da puc Minas. ............................................................................................ 309

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lEonARdo nEMER cAldEIRA BRAnTpresidente do centro de direito Internacional – cEdIn. coor-denador do programa de pós-Graduação Lato Sensu do cE-dIn e das Faculdades Milton campos. professor de direito Internacional da UFMG e da PUC Minas. Ex-Assessor Jurídi-co da corte Internacional de Justiça. diretor da Faculdade deciências humanas do centro universitário – unA ......................197

lucAS dE AlVAREnGA GonTIJo Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela UFMG. Pro-fessor da graduação e da pós-graduação da puc Minas e da Faculdade de direito Milton campos. Fale com o autor peloendereço eletrônico: [email protected] ........................ 75

MIchAEl cÉSAR SIlVAMestre em direito privado pela puc Minas. Especialista em di-reito de Empresa pelo Instituto de Educação continuada (IEc) da puc Minas. professor da Faculdade de direito promove. Advogado............................................................................................373

nAncI dE MElo E SIlVAprofessora dos cursos de Graduação e de Mestrado em direito Empresarial da Faculdade de direito Milton campos. doutoraem direito pela uFMG. Juíza do Trabalho, aposentada ...................... 69

RIcARdo AdRIAno MASSARA BRASIlEIRoEspecialista, Mestre e doutor em direito pela uFMG. profes-sor dos cursos de Graduação e Mestrado na Faculdade de di-reito Milton campos. procurador do Estado de Minas Gerais. Advogado ......................................................................................... 99

STEFAnIA nunZIATA VAlEnZA pAIVA professora de direito Internacional privado e direito civil da Escola de Estudos Superiores de Viçosa – ESuV. Mestre em Direito Civil – Faculdade de Direito – UFMG. Ex-bolsista do Istituto di diritto Agrário Internazionale e comparato – Firenze – Itália. Advogada ...............................................................................145

Yu WuUniversity of Aberdeen, Aberdeen, UK. [email protected] ...........275

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SuMÁRIo

cARloS AlBERTo RohRMAnn A informatização do processo judicial segundo a lei n. 11.419, de 19 de dezembro de 2006 ............................................................. 19

nAncI dE MElo E SIlVA o dano moral e a justiça do trabalho ................................................. 69

lucAS dE AlVAREnGA GonTIJodireito, teoria dos sistemas e pragmatismo: ensaio sobre os usos da teoria dos sistemas a partir do confronto entre niklasLuhmann e a filosofia pragmática .................................................... 75

RIcARdo AdRIAno MASSARA BRASIlEIRo Breve abordagem do discurso do método e do seu lugar na história do pensamento jurídico .................................................... 99

cIMon hEndRIGo BuRMAnn dE SouZA A autonomia privada na perspectiva do Estado democrático de direito ............................................................................................ 117

STEFAnIA nunZIATA VAlEnZA pAIVA novos modelos contratuais para uma nova matriz energética: aspectos jurídico-econômicos para produção de biocombustíveis no Brasil ................................................................................................. 145

FERnAndo JoSÉ ARMAndo RIBEIRo o conceito de constituição na modernidade: um estudoa partir da Revolução Francesa ...................................................... 175

dÉlBER AndRAdE lAGE A crescente influência das organizações não-Governamentais: chances e riscos ..................................................................................197

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lEonARdo nEMER cAldEIRA BRAnT A crescente influência das organizações não-Governamentais:chances e riscos .............................................................................. 197

BART cuSTERS Tapping and data retention in ultrafast communication networks ...........219

JI lIAn YAp Appraising the market overt exception .......................................... 251

Yu Wu Truth finding: do subsidies continue after privatization? ..................275

BÁRBARA AlEncAR FERREIRA lESSA A teoria de direito natural de Santo Tomás de Aquino: umareflexão a partir das críticas de Hans Kelsen ao jusnaturalismo......... 309

JÚlIo AGuIAR dE olIVEIRA A teoria de direito natural de Santo Tomás de Aquino: uma reflexão a partir das críticas de Hans Kelsen ao jusnaturalismo ..............309

AlInE MARIA polloM FRAnco nAVES Introdução aos aspectos jurídicos dos dados genéticos humanos; dados genéticos como direitos de personalidade e sua proteçãojurídica ................................................................................................331

BRuno ToRQuATo dE olIVEIRA nAVES Introdução aos aspectos jurídicos dos dados genéticos huma-nos; dados genéticos como direitos de personalidade e suaproteção jurídica ............................................................................. 331

FÁBIo MuRIlo nAZAR A revisão de erro material no momento do pagamento doprecatório judicial ........................................................................... 353

MIchAEl cÉSAR SIlVA A principiologia contratual contemporânea e o direito do consumidor ...........................................................................................373

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A InFoRMATIZAÇÃo do pRocESSo JudIcIAl SEGundo A lEI n. 11.419, dE 19 dE dEZEMBRo dE 2006

cARloS AlBERTo RohRMAnn

Sumário1. Introdução. 2. o uso do meio eletrônico para a prática de atos jurídicos. 3. A informatização do pro-cesso judicial. 4. conclusão. 5. Referências biblio-gráficas.

Resumo A lei n. 11.419 de 19 de dezembro de 2006 regulamentou o uso

do meio eletrônico para a prática de atos processuais e criou o proces-so eletrônico no Brasil. Embora a efetiva e ampla aplicação da lei n. 11.419 de 2006 ainda dependa de a tecnologia ser mais disponibiliza-da, várias experiências no país já se fazem sentir, com destaque para a Justiça do Trabalho. Este texto comenta todos os dispositivos da Lei n. 11.419/2006 do processo eletrônico do Brasil.pAlAVRAS-chAVE: processo Eletrônico. lei n. 11.419/2006. In-formatização do processo no Brasil.

AbstractThe Brazilian Federal Statute n. 11.419 of december 19th, 2006,

regulates the use of cyberspace for the practice of procedural acts and created the electronic law suit in Brazil. Although the actual and wide application of the Statute n. 11.419 of 2006 still depends upon the technology, there are already many successful experiences in the

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 19-68 2008

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cARloS AlBERTo RohRMAnn

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country, especially in the Labor Courts. This text comments all the articles of the Statute that regulates electronic law suits in Brazil.KEYWoRdS: Electronic law suits. Statute n. 11.419 of 2006. Brazilian digital law Suits.

1 intRodução

o uso do mundo virtual para a prática de atos jurídicos já vem de longa data. defendemos a tese de que o surgimento das telecomu-nicações modernas, em 1835, deu início ao espaço virtual que, por óbvio, muita complexidade ganhou ao longo das duas últimas déca-das. A utilização do mundo virtual para a prática de atos processuais será analisada neste artigo e, para tal, no capítulo dois, fazemos uma breve apresentação do tema sob uma ótica comparativa. o capítulo três, verdadeiro núcleo deste texto, é dedicado a comentar, artigo por artigo, todos os dispositivos da lei n. 11.419 de 2006. A nossa conclu-são é favorável ao advento da lei do processo Eletrônico, com uma observação acerca do risco de fraude que é inerente à utilização do mundo virtual.

2 o uSo do Meio eLetRÔniCo pARA A pRÁtiCA de AtoS JuRÍdiCoS

A Lei n. 11.419 cujo texto se comenta abaixo, deu andamento ao ciclo de normas voltadas para a institucionalização do processo judicial eletrônico, informatizado ou virtual no Brasil:

lEI n. 11.419, dE 19 dE dEZEMBRo dE 2006.

dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – código de processo civil; e dá outras providências. o pRESIdEnTE dA REpÚBlIcA: Faço saber que o congresso nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:

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A informatização do processo judicial é um fenômeno que já vem sendo desenvolvido há mais de duas décadas. As primeiras utili-zações foram limitadas à prestação de informações através dos com-putadores dos órgãos do poder Judiciário. o advento da Internet e a facilidade de acesso à rede internacional de computadores tornaram tal prestação de informações maior e mais accessível aos advogados.

A aplicação da informática como fonte do suporte eletrônico para o estabelecimento de certas relações jurídicas traz consigo van-tagens associadas à eficiência, à rapidez e à facilidade da prática de certos atos, independentemente da presença física. Assim, torna-se possível a “projeção” da pessoa que, sem estar presente em um deter-minado local pode praticar um ato jurídico pelo ambiente eletrônico ou virtual.

o fenômeno da “projeção” causou muita discussão ainda no iní-cio da década de noventa, com a popularização da Internet. As ques-tões relacionadas à “falta de fronteiras” no mundo virtual levaram a indagações sobre qual seria a lei aplicável a determinado ato pratica-do, por projeção, no meio eletrônico. Um exemplo é a regulamenta-ção do tele trabalho quando o prestador do serviço se situa em um país e o tomador em outro.

o caráter eminentemente territorial do direito doméstico de cada país levou os doutrinadores até mesmo à crença de que o am-biente virtual não seria passível de regulamentação pelo direito.

hoje muitas das questões teóricas referentes à possibilidade, ou não, da aplicação do direito ao mundo eletrônico já se encontram su-peradas. A tendência pela regulamentação local, com a aplicação do direito doméstico vem demonstrando a viabilidade da regulamenta-ção jurídica dos atos jurídicos praticados no ambiente eletrônico.

Apesar da tendência da regulamentação dos atos informatizados pelo direito tradicional, não se pode negar que algumas características do espaço virtual tornam a aplicação das normas um pouco mais difí-ceis. Dentre tais características, podemos citar, a título exemplificativo: a dificuldade de se fazer prova em juízo; a presença de pessoas tecnica-mente muito qualificadas e que têm a capacidade de fazer duplicações e alterações em documentos eletrônicos; a ausência da presença física e a possibilidade de automatização das tarefas. Esses exemplos apontam

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cARloS AlBERTo RohRMAnn

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para aquela que deve ser a maior preocupação quando da prática de atos jurídicos em ambientes eletrônicos: a fraude.

A ocorrência de fraudes em transações eletrônicas é um fator de preocupação jurídica que leva a uma primeira constatação: em face de a duplicação e a alteração de documentos digitais serem relativamente fáceis para um técnico da computação, o documento eletrônico deve ser analisado com mais rigor do que o documento tradicional impres-so em papel.

É claro que a vida moderna requer a utilização do meio virtual e as pessoas têm praticado atos jurídicos que têm como suporte exclu-sivamente a mídia eletrônica. há um equilíbrio entre a segurança e a eficiência, como no caso da utilização dos bancos eletrônicos; entre o risco de fraude e a rapidez, presente no caso do envio de declarações do imposto de renda pela Internet; ou entre a exigência da presença física da parte contratante e a facilidade de se celebrar um ato jurídico sem sair de casa, como no caso dos contratos de aquisição de passagens aé-reas ou pacotes celebrados em web sites das empresas de aviação.

nota-se interessante tendência das pessoas em terem uma sincera crença na tecnologia digital. Pode-se citar como exemplo a urna eletrô-nica que dispensa completamente o voto em cédulas de papel. uma vez que não há o voto em papel para conferência, toda a confiabilidade do sistema de eleição fica baseada na tecnologia da urna eletrônica.

A prática de atos jurídicos em ambiente eletrônico, informatiza-do, já é uma constante entre nós e, como vimos, vai desde a celebra-ção de contratos eletrônicos e transações bancárias até as eleições.

As mesmas facilidades listadas anteriormente parecem aplicáveis no caso do advogado que quer praticar atos processuais. A comodidade de se enviar uma petição escrita por meio de correio eletrônico, sem a assinatura manuscrita, ao invés de se dirigir até o protocolo físico do fórum, é evidente. por outro lado, os riscos também devem ser um fator de preocupação. o caso de uma petição poder ser juntada digitalmente a um processo, sem que tenha sido efetivamente enviada pelo advoga-do, por ter sido objeto de fraude, é uma preocupação evidente.

Antes de se passar à análise específica da Lei n. 11.419/2006, que busca regulamentar a informatização do processo judicial, traz-se interessante decisão interlocutória proferida nos Estados unidos, em

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julho de 2003, que demonstra curiosa situação processual advinda da informatização do processo naquele país, já há algum tempo.1

Em um processo, havia a possibilidade de a petição ser enviada eletronicamente para o protocolo do judiciário até a meia-noite do úl-timo dia do prazo. Especificamente neste caso, uma das partes proto-colizou eletronicamente a petição aos quatro minutos e vinte e sete se-gundos do dia seguinte ao último dia do prazo. Após tal petição, alguns documentos eletrônicos que acompanharam a petição ainda tiveram o tempo registrado como uma hora, onze minutos e quinze segundos.2

o primeiro comentário do juiz foi que ele “não sabe disto pesso-almente porque estava em casa dormindo, porém isto é o que o regis-tro do sistema de protocolo do computador da corte diz” e o magistra-do norte-americano, concluindo, afirmou que aceitava como verdade o que o computador registrara.3

Essa observação do magistrado aponta para a presunção de ve-racidade dos atos eletrônicos e do próprio funcionamento perfeito do sistema computacional. nesse caso concreto, tudo indica que o advo-gado da parte realmente protocolizou a petição nos quatro minutos do dia seguinte ao término do prazo, porém, caso tivesse havido falha do sistema, certamente uma longa discussão judicial poderia ter-se iniciado.

A outra parte prontamente requereu não fosse conhecido o pedi-do da petição em decorrência da intempestividade.4

1 In ThE unITEd STATES dISTRIcT couRT FoR ThE WESTERn dISTRIcT oFIn ThE unITEd STATES dISTRIcT couRT FoR ThE WESTERn dISTRIcT oF WISconSIn oRdER 02-c-647-c

hYpERphRASE TEchnoloGIES, llc and hYpERphRASE Inc., plaintiffs, v. MIcRoSoFT coRpoRATIon, defendant.

2 Id.Id. “Pursuant to the modified scheduling order, the parties in this case had until June 25,

2003 to file summary judgment motions. Any electronic document may be e-filed until midnight on the due date. In a scandalous affront to this court’s deadlines, Microsoft did not file its summary judgment motion until 12:04:27 a.m. on June 26, 2003, with some supporting documents trickling in as late as 1:11:15 a.m.”

3 Id.Id. “I don’t know this personally because I was home sleeping, but that’s what the court’s

computer docketing system says, so I’ll accept it as true.”4 Id.Id. “Microsoft’s insouciance so flustered Hyperphrase that nine of its attorneys, name-attorneys, name-

ly […] promptly filed a motion to strike the summary judgment motion as untimely.

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cARloS AlBERTo RohRMAnn

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Talvez para evitar tal discussão acerca da responsabilidade pelo registro posterior ao término do prazo por pouco mais do que quatro minutos, o magistrado, após tecer considerações sobre a falta de pontualidade que é de vital importância para a corte, deci-de não só por conhecer da petição serôdia assim como por anteci-par que, caso a outra parte precise, poderá, no futuro, protocolizar uma petição eletrônica com até quatro minutos e meio de atraso e ainda enviar os documentos eletrônicos em mais setenta e dois minutos.5

o termo “informatização do processo” refere-se ao uso da in-formática quando da prática dos atos processuais que tradicional-mente se davam por petição escrita ou oralmente e eram posterior-mente reduzidos a termo. Como se terá oportunidade de verificar no texto da lei, existe a possibilidade do uso da Internet para o envio de petições. Entende-se o meio criado pelas telecomunicações mo-dernas como o “espaço virtual” ou o “mundo virtual”, ou o “mundo online”. O fato de o meio ser virtual não significa que ele não seja real. o virtual se opõe ao atual, e não ao real. Assim, caso o proces-so seja totalmente informatizado e gravado em um meio ótico, por exemplo, e não em papel, ele é real; todavia, ele se atualiza a cada vez que for acessado.

counsel used bolded italics to make their point, a clear sign of grievous iniquity by one’s foe. True, this court did enter an order on June 20, 2003 ordering the parties not to flyspeck each other, but how could such an order apply to a motion filed almost five minutes late?”

5 Id. Id. “Microsoft’s temerity was nothing short of a frontal assault on the precept of punctuality

so cherished by and vital to this court. Wounded though this court may be by Microsoft’s four minute and twenty-seven second dereliction of duty, it will transcend the affront and forgive the tardiness. Indeed, to demonstrate the even-handedness of its magnanimity, the court will allow Hyperphrase on some future occasion in this case to e-file a motion four minutes and thirty seconds late, with supporting documents to follow up seventy-two minutes later.

having spent more than that amount of time on hyperphrase’s motion, it is now time to move on to the other Gordian problems confronting this court.

plaintiff’s motion to strike is denied. Entered this 1st day of July, 2003. BY ThE couRT: STEphEn l. cRocKER Magistrate Judge”

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3 A inFoRMAtiZAção do pRoCeSSo JudiCiAL

cApÍTulo I

dA InFoRMATIZAÇÃo do pRocESSo JudIcIAlArt. 1º O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judi-ciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta lei.

o caput do art. 1º da Lei n. 11.419/2006 explicitamente admite a transmissão de peças processuais por meio eletrônico e a própria tramitação do processo judicial eletrônico. portanto, não há mais que se falar em nulidade somente com base no fato de o ato processual ter sido praticado tendo o meio eletrônico (que terá definição legal no parágrafo segundo) como o seu suporte.

A Lei n. 9.800/99 que regulamenta o uso de fax não é revogada pela lei nova. Destarte, quando se tratar de envio de fax, continua a viger a exigência de protocolo da petição no prazo de cinco dias. Por outro lado, quando se enviar a petição eletrônica nos termos da lei nova, não há mais que se falar nas formalidades da lei n. 9.800/99.

§ 1º Aplica-se o disposto nesta Lei, indistintamente, aos processos civil, penal e trabalhista, bem como aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição.

Trata-se de uma lei de direito processual e que tem aplicabili-dade bastante genérica uma vez que abrange o processo civil, penal e trabalhista em todos os graus de jurisdição. uma indagação é quanto à aplicabilidade da lei em análise ao processo administrativo que se apresenta como uma tendência natural. Todavia, a lei em análise é aplicável especificamente ao processo judicial.

§ 2º Para o disposto nesta Lei, considera-se:

I – meio eletrônico qualquer forma de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais;

A lei define de forma abrangente o meio eletrônico de forma a incorporar tanto o armazenamento estático dos arquivos digitais como

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o seu tráfego. Assim, estão englobados os dispositivos de memória primária, como as memórias RAM e os dispositivos de memória se-cundária, como os meios magnéticos (os discos rígidos e os discos flexíveis), os meios óticos (os CDs e os DVDs) e outras formas de memória que venham a ser inventadas e incorporadas ao sistema computacional de armazenamento de arquivos digitais.

A definição legal de meio eletrônico compreende também o tráfego de documentos. Estão, pois, compreendidos na definição de meio eletrônico todos os arquivos digitais em deslocamento.

A abrangência da lei ao acomodar o tráfego de arquivos dentro do conceito de meio eletrônico vai ao encontro da própria conceitua-ção doutrinária de espaço virtual que, como já se teve oportunidade de expor, compreende não apenas a Internet, porém toda a mídia criada pelas formas modernas de telecomunicações. portanto, o meio ele-trônico, conforme definido em lei, não é apenas o elétron ou o meio magnético (como as fitas, os discos rígidos e flexíveis), mas também o meio ótico (feixes de luz).

II – transmissão eletrônica toda forma de comunicação a distância com a utilização de redes de comunicação, preferencialmente a rede mundial de computadores;

neste inciso a lei privilegia a utilização da rede mundial de computadores, a Internet, como rede a ser preferencialmente usada na transmissão eletrônica. A Internet pode ser entendida como uma rede de computadores e de outras redes de computadores que utilizam o Tcp-Ip como o seu protocolo de comunicação.

Esse dispositivo da lei, ao incentivar a utilização da rede mun-dial de computadores, não veda a transmissão de arquivos por outras formas, tais como por aparelhos celulares de transmissão de dados. caso o órgão do poder Judiciário ofereça a tecnologia para receber transmissões eletrônicas que não tenham origem na rede mundial de computadores, não há que se falar em nulidade. por outro lado, não pode a parte exigir que o Judiciário se adapte às suas necessidades e conveniências a ponto de disponibilizar todas as formas de transmis-são e de comunicação de dados a distância. Trata-se, pois, de uma questão relacionada à própria discricionariedade do órgão judicial,

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que, após dar preferência à rede mundial de computadores, poderá, sem dúvida, disponibilizar outras tecnologias de transmissão e recep-ção de dados.

cumpre uma última observação quanto às hipóteses de comu-nicações que se originam em dispositivos não-padronizados da rede mundial de computadores. Em tais casos, havendo a interligação com o órgão do poder Judiciário, por meio da rede mundial de computado-res, caso, em decorrência da origem em dispositivos não-padroniza-dos, ocorra algum mau funcionamento, ou uma recepção ruim, o risco corre por quem enviou a transmissão sem atender à preferência legal pela rede mundial de computadores. cabe, pois, a quem for utilizar outro equipamento, o dever de diligência junto ao órgão do poder Ju-diciário, no sentido de avaliar, com antecedência, a compatibilidade de seu equipamento (seja um novo aparelho de comunicação de dados via comunicação celular, por exemplo) com o sistema oficial ligado à rede mundial de computadores.

III – assinatura eletrônica as seguintes formas de identificação ine-quívoca do signatário:

A doutrina conceitua assinatura eletrônica de forma bastante ampla como sendo “qualquer forma de identificação inequívoca uti-lizada no ambiente virtual ou eletrônico”, normalmente a forma mais usada de assinatura eletrônica são as senhas. Senhas, identificadores, códigos ou outras formas digitais convencionadas pelas partes para identificar as pessoas em ambiente eletrônico são entendidos como assinaturas eletrônicas.

A lei em tela foi bastante específica ao trazer interpretação do que seria assinatura eletrônica e, como se depreende das letras “a” e “b” a seguir, a lei compreende apenas a assinatura digital e a assinatu-ra eletrônica decorrente do cadastro de usuário no poder Judiciário.

a) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autori-dade Certificadora credenciada, na forma de lei específica;

há uma diferença entre o conceito de “assinatura digital” e o conceito de “assinatura eletrônica”. A assinatura digital é uma espécie

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do gênero das assinaturas eletrônicas. A assinatura digital envolve, sempre, técnicas de criptografia assimétrica e a presença de certifica-do digital emitido por uma terceira parte conhecida como “Autorida-de Certificadora”.

A assinatura digital é um substituto eletrônico que busca ter os mesmos efeitos da assinatura civil. Todavia, ela não é a imagem digi-talizada da assinatura manuscrita.

A assinatura digital é um conjunto grande de caracteres alfa-numéricos inseridos em uma mensagem digital e que é criptografica-mente gerada a partir da própria mensagem e de uma “chave privada” de criptografia:

A criptografia é um recurso da técnica da computação que permite, a partir de um arquivo digital, gerar um arquivo protegido, como se fosse ‘embaralhado’ pelo programa de computador de cripto-grafia, que pode ser simétrica, ou assimétrica, senão vejamos:

Existem dois tipos básicos de criptografia – a “simétrica” e a “assi-métrica”. Na primeira, o programa que codifica o “texto” em carac-teres indecifráveis, vale-se da mesma “chave”, tanto para criptogra-far quanto para “descriptografar”, ou “decriptar”. Já na criptografia assimétrica, a “chave” utilizada para criptografar a mensagem é uma (denominada chave privada), ao passo que a chave necessária para descriptografar é outra (denominada chave pública). A criptografia simétrica não é a mais adequada para o comércio eletrônico, uma vez que há necessidade do compartilhamento da chave privada de certa pessoa com as demais partes envolvidas nas transações, o que levaria a uma grande sensação de inseguran-ça na confiabilidade do método. Já com a criptografia assimétrica, a chave privada é de conheci-mento apenas do seu dono e não circula pela rede de computado-res. nota-se, pois, que há uma garantia de sigilo, e, conseqüente-mente, de segurança muito maior do que com a mera utilização de uma senha que circularia pelo meio eletrônico, a qual pode-ria ser interceptada (RohRMAnn, carlos Alberto. Curso de Direito Virtual. Belo horizonte: del Rey, 2005, p. 70).

A assinatura digital é gerada, para cada documento digital, a partir dos seus dados, com a utilização da chave privada de criptografia à qual é associado um certificado digital. Quando se utiliza a assinatura digi-

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tal, em cada documento enviado pelo ambiente eletrônico, o programa de computador usa os dados do documento mais a chave privada de criptografia do seu titular para gerar uma assinatura digital específica. o documento é enviado ao destino que se vale da chave pública corres-pondente à chave privada do assinante para checar se o documento foi enviado com a criptografia do titular dessa chave privada.

O funcionamento da criptografia é todo eletrônico e, na prática, o destinatário recebe um documento eletrônico com um certificado digital de que a chave privada utilizada para gerar a assinatura digital é realmente a do titular que enviou a mensagem. Esse certificado di-gital é emitido por uma terceira parte desinteressada; conhecida como Autoridade Certificadora – AC. A AC é responsável por manter a cha-ve pública correpondente à chave privada de cada titular e expede o certificado digital que comprova a titularidade da chave privada de quem enviou o documento digitalmente assinado.

A legislação brasileira (M.p. n. 2.220-2/2001) criou uma Autori-dade Certificadora Raiz, em Brasília, que credencia outras ACs:

Para que uma autoridade certificadora utilize o processo de certifi-cação da Icp-Brasil, ela precisa ser credenciada perante a primeira autoridade da cadeia de certificação brasileira, a AC Raiz (M.P. n.M.p. n. 2.200-2, art. 5º.).).

Uma vez credenciada perante a AC Raiz, às autoridades certifi-cadoras competirá “emitir, expedir, distribuir, revogar e geren-ciar os certificados, bem como colocar à disposição dos usuários listas de certificados revogados e outras informações pertinentes e manter registro de suas operações” (M. P. n. 2.200-2, art. 6º,M. P. n. 2.200-2, art. 6º, caput.).).A AC Raiz, a primeira autoridade certificadora da ICP-Brasil, não emite certificados para usuários finais (M. P. n. 2.200-2, art. 6º, pa-rágrafo único), apenas para as diversas autoridades certificadoras que vierem a ser credenciadas perante ela. A Ac Raiz é uma autar-quia federal, vinculada ao Ministério da ciência e Tecnologia, ao Instituto nacional de Tecnologia da Informação - ITI, com sede e foro no distrito Federal (M. p. n. 2.200-2, arts. 12 e 13).As demais Acs credenciadas perante a Ac Raiz podem emitir cer-tificados digitais, sendo que a geração do par de chaves criptográ-

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ficas será sempre feita pelo seu titular, conforme o disposto no art. 6º da M.P. n. 2.200-2.

As Acs credenciadas perante a Ac Raiz são consideradas como aquelas que fazem o processo de certificação disponibilizado pela In-fra-Estrutura de chaves públicas Brasileiras – Icp-Brasil.

A geração do par de chaves de criptografia é sempre feita pelo próprio titular (o que requer a identificação presencial do titular pe-rante uma Ac ou perante uma Autoridade de Registro – AR.). As Au-toridades de Registro são entidades operacionalmente vinculadas a determinada AC e a elas compete identificar e cadastrar usuários na presença destes, encaminhar solicitações de certificados às AC e man-ter os registros de suas operações (art. 7º da M.P. n. 2.200-2/2001).

os efeitos legais de uma declaração digitalmente assinada e conseqüentemente com o certificado digital disponibilizado pela ICP – Brasil são os mesmos da assinatura civil, conforme dispõe o art. 10 da M.p. n. 2.200-2/2001:

Art. 10. [...]

§ 1º As declarações constantes dos documentos em forma ele-trônica, produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela Icp – Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916 – código civil.

o referido artigo 131 do código civil então em vigor corres-

ponde ao art. 219 do atual código civil:

Art. 219. As declarações constantes de documentos assinados pre-sumem-se verdadeiras em relação aos signatários.parágrafo único. não tendo relação direta, porém, com as dispo-sições principais ou com a legitimidade das partes, as declarações enunciativas não eximem os interessados em sua veracidade do ônus de prová-las.

Assim, as declarações com assinaturas digitais produzidas den-tro da Icp-Brasil presumem-se verdadeiras em relação aos signatá-

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rios. por outro lado, a legislação brasileira não veda a utilização de outra forma de assinatura eletrônica, eis que o artigo 10 da referida M.p. n. 2.200-2/2001, em seu parágrafo segundo, permite inclusive a emissão de certificados fora da ICP-Brasil:

§ 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documen-tos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela Icp-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.

conclui-se, pois, que esta letra “a” cuida da utilização da assi-natura digital nos termos da M.p. n. 2.200-2/2001 (ou da lei que vier a substituí-la).

uma observação pertinente é que o titular, após gerar o seu par de chaves, recebe a sua chave de criptografia gravada em um cartão com chip ou em um token. Essa chave privada de criptografia deve ser de seu uso e conhecimento exclusivos. O acesso à chave privada ain-da é, normalmente, protegido por uma senha (para evitar que, caso o titular venha a perder a chave, um terceiro não tenha acesso imediato a ela). Caso o advogado titular do certificado digital deixe o seu cartão ou o seu token que contém a sua chave privada com um terceiro com a senha, os atos praticados por terceiros serão registrados à conta do ad-vogado titular. É claro que, em caso de perda da chave privada, o seu titular deve informar imediatamente à Ac correspondente para que se proceda ao cancelamento do certificado digital respectivo, pois o ônus da prova de que o ato não foi eventualmente praticado pelo titular da chave privada de criptografia cabe a ele (e não é uma prova fácil de se fazer, pois requer, necessariamente, perícia complexa).

b) mediante cadastro de usuário no poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.

o cadastro do usuário diretamente no poder Judiciário é uma for-ma de se evitar para o usuário a utilização da assinatura digital. nesta hipótese o que acontece é algo muito semelhante à atribuição de senhas por bancos aos seus clientes. uma vez realizado o cadastramento de

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uma pessoa perante o órgão do poder Judiciário, tal órgão entrega uma senha de acesso ao sistema e pode, assim, conferir uma assinatura ele-trônica ao usuário que tem o dever de guardá-la e passa a valer-se dela para a comunicação com o referido órgão. A senha será usada para fazer o “log-in” no sistema do respectivo órgão do poder Judiciário.

A vantagem do cadastro pode estar associada ao baixo custo em relação à aquisição do certificado digital no caso das assinaturas digi-tais. Por outro lado, a utilização da assinatura digital com o certificado digital traz consigo o benefício de ser realizada uma única vez e poder ser utilizada com mais de um órgão do poder Judiciário. Ademais, a princípio, a assinatura digital confere maior segurança, não só pelas razões já expostas, como também pelo fato de ela associar uma senha a um dispositivo de hardware, como um cartão com chip ou até mes-mo uma leitora de biometria.

Por fim, ressalta-se que, em face da tecnologia digital, os ar-quivos digitais que contêm textos, imagens ou sons são sempre re-presentados por conjuntos de zeros e uns. Assim, a reprodução de um arquivo digital nada mais é do que a reprodução de um conjunto de zeros e uns. conseqüentemente, uma senha é apenas um conjunto de zeros e uns para o computador. o risco da utilização de senhas que são transmitidas por meio da rede mundial de computadores é associado à possibilidade, ainda que remota, em decorrência da utilização de pro-gramas de criptografia, da interceptação da senha e da sua utilização por um terceiro não-autorizado.

Vale uma sugestão para que a legislação criminal também acom-panhe a legislação processual no sentido de se tornar crime o conjunto de acessos não-autorizados, duplicação de senhas e outros atos que amea-çam a própria segurança do sistema de informatização do processo.

Art. 2º O envio de petições, de recursos e a prática de atos proces-suais em geral por meio eletrônico serão admitidos mediante uso de assinatura eletrônica, na forma do art. 1º desta Lei, sendo obri-gatório o credenciamento prévio no poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.

A admissão do uso da assinatura eletrônica, na forma do art. 1º, simplifica o processo informatizado porque adota o princípio da

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neutralidade tecnológica. Tal princípio é obedecido, pois a lei admite tanto a assinatura digital que requer o uso da tecnologia computacio-nal da criptografia assimétrica, quanto alguma outra forma de iden-tificação inequívoca mediante o cadastro prévio no Poder Judiciário (assinatura eletrônica).

A exigência legal de cadastro prévio no Poder Judiciário faz com que o envio de petição por meio eletrônico, ainda que digitalmente as-sinado e com certificado emitido por Autoridade Certificadora que se encontra dentro da Icp-Brasil, não seja aceito. Assim, o credenciamen-to prévio no poder Judiciário é obrigatório, sob pena de nulidade da prática do ato processual por meio eletrônico uma vez que o requisito legal e formal da assinatura válida não terá sido atendido.6

É importante que aquele que se cadastrar perante o poder Ju-diciário, nos termos deste artigo, terá o ônus de observar o disposto no artigo 5º da presente lei: recebimento de intimação feita por meio eletrônico, em portal próprio com a conseqüente dispensa da publi-cação no órgão oficial (tanto em papel quanto no diário da justiça eletrônico).

Enquanto não tiver implementado o cadastro único (v. § 3º deste artigo), a dispensa de publicação, inclusive no diário Eletrônico, (e o ônus a ela associado para o cadastrado) somente será aplicável às publicações referentes ao órgão perante o qual foi efetuado o cadastro sob pena de flagrante nulidade na intimação.

§ 1º O credenciamento no Poder Judiciário será realizado median-te procedimento no qual esteja assegurada a adequada identifica-ção presencial do interessado.

Este parágrafo justifica o entendimento da nulidade da petição eletrônica que não atende a exigência legal de assinatura válida (ainda que assinatura eletrônica) dada à necessidade de se observar o princípio da segurança. lembra-se, novamente, que o uso do meio eletrônico vir-tual, por um lado, facilita e agiliza o processo judicial. Todavia, a não-utilização da assinatura digital em muito aumenta o risco de fraude.

6 neste sentido, STF, AI n. 564.765-6, RJ, j. 14/02/2006, Relator Ministro Sepúlveda pertence e, STF, RMS n. 24257 AgR/dF, Relatora Ministra Ellen Gracie, dJ 11/10/2002, p. 0032).

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A exigência legal do credenciamento no Poder Judiciário, que poderia até mesmo ser considerada dispensada no caso da uti-lização, pelo advogado, da assinatura digital (uma vez que esta já requer a identificação pessoal do interessado perante a Autoridade de Registro, nos termos do art. 7º da M.P. n. 2.200-2/2001), é uma formalidade que busca conferir ainda mais segurança ao processo informatizado.

um argumento da “ausência de nulidade quando não há prejuízo”, a favor da desnecessidade da identificação presencial não sobrevive ao risco de outro usuário utilizar a assinatura eletrônica de determinada pessoa e o poder Judiciário não ter tido a oportunidade de reconhecer, por meio de conferência presencial, o verdadeiro advogado que utiliza o seu sistema.

§ 2º Ao credenciado será atribuído registro e meio de acesso ao sistema, de modo a preservar o sigilo, a identificação e a autentici-dade de suas comunicações.

A proteção do sigilo das comunicações reflete, na verdade, um mandamento constitucional:

Art. 5º, inciso XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefôni-cas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

A violação do sigilo das comunicações de telemática, inclusive as de que a lei em questão trata, é crime, conforme o art. 10 da lei n. 9.296/96.

O registro é a própria identificação do usuário do sistema ele-trônico. o acesso ao sistema pode ser interpretado de duas formas: primeira, a certeza de que o sistema funcionará ininterruptamente (ou que, quando não esteja funcionando, isso não acarrete prejuízo para as partes, o que é assegurado pelo parágrafo segundo do art. 10 da própria lei n. 11.419/2006) e, segunda, a busca da universalização do acesso aos recursos computacionais, o que vai ao encontro dos

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ditames da lei n. 9.998/2000 (a lei do Fundo de universalização dos Serviços de Telecomunicações) e que também é assegurada pelo terceiro parágrafo do referido art. 10 da lei n. 11.419/2006.

A identificação e a autenticidade são duas propriedades da maior importância para a confiabilidade no processo eletrônico. A assinatura digital certamente garante a identificação e a autenticida-de dos documentos eletrônicos, em razão da utilização dos dados do documento digital como um dos parâmetros para a geração do selo digital (da assinatura digital) a ser gerada em cada um dos casos. neste caso é inegável a responsabilidade da Ac emissora do certi-ficado digital.

caso seja utilizada uma forma de assinatura eletrônica distinta da assinatura digital, toda a responsabilidade se desloca para o poder Judiciário.

§ 3º Os órgãos do Poder Judiciário poderão criar um cadastro úni-co para o credenciamento previsto neste artigo.

Trata-se de dispositivo de lei que pode ser de difícil implemen-tação em face da federação brasileira. por outro lado, a utilização de assinaturas digitais emitidas pela oAB pode facilitar em muito a ado-ção de um cadastro nacional único que seria um objetivo louvável até mesmo para se evitar a duplicidade de dados e de senhas para o acesso do advogado.

Art. 3º Consideram-se realizados os atos processuais por meio ele-trônico no dia e hora do seu envio ao sistema do poder Judiciário, do que deverá ser fornecido protocolo eletrônico.

o protocolo eletrônico é, obviamente, o substituto digital do protocolo escrito ou impresso, porém, com um certo risco de fraude. deve haver um registro nos computadores do poder Judiciário (e con-seqüentemente no processo informatizado) que demonstra o protoco-lo eletrônico de forma que as partes possam ter a certeza da confiabi-lidade dos dados e do próprio sistema. o protocolo eletrônico que o advogado tem faz prova do cumprimento do prazo. Todavia, caso haja divergência entre o dele e o do processo eletrônico, a presunção de

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veracidade é do protocolo do processo; cabendo a quem dele divergir fazer a prova contrária (prova que exigiria perícia técnica).

cabe, portanto, a quem utiliza o sistema eletrônico, um dever de diligência no sentido de fazer uma pronta conferência do seu pro-tocolo eletrônico.

logo, a lei brasileira adotou a Teoria da Recepção do documen-to Eletrônico, e não a Teoria da Expedição do Documento Eletrônico. Não basta expedir e enviar o documento eletrônico ao Poder Judiciário; faz-se absolutamente necessário receber o protocolo eletrônico corres-pondente para se assegurar o cumprimento do prazo.

parágrafo único. Quando a petição eletrônica for enviada para atender prazo processual, serão consideradas tempestivas as trans-mitidas até as 24 (vinte e quatro) horas do seu último dia.

portanto, é tempestiva a petição que tiver o protocolo eletrônico do último dia até as vinte e três horas, cinqüenta e nove minutos e cin-qüenta e nove segundos (23:59:59). A hora será sempre a hora oficial constante do sistema de computador do poder Judiciário.

cApÍTulo II

dA coMunIcAÇÃo ElETRÔnIcA doS AToS pRocESSuAISArt. 4º Os tribunais poderão criar diário da justiça eletrônico, dis-ponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para pu-blicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral.

Trata este dispositivo de uma faculdade do poder Judiciário, de

criar o diário da justiça eletrônico, aliada a uma obrigação de dispo-nibilizá-lo em sítio da Internet. A assinatura desse diário da justiça eletrônico não obrigatoriamente deve ser gratuita porque, a exemplo do que ocorre com o diário da justiça em papel, há custos associa-dos à sua elaboração, manutenção e disponibilização para o acesso contínuo a vários computadores. Todavia, o órgão do Judiciário há de manter, obrigatoriamente, terminais públicos gratuitos de consulta ao diário da justiça eletrônico, em locais de fácil acesso ao público (como nos prédios dos fóruns e dos tribunais) sob pena de inviabilizar

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a própria publicidade dos atos em face daqueles que não podem arcar com os custos de ter um computador e de pagar a assinatura do diário da justiça eletrônico.

A tendência da mudança do paradigma do papel para o para-digma digital (a mudança dos átomos para os bits) é aqui estendida também para a publicação dos atos judiciais.

uma vantagem indiscutível da criação do diário da justiça ele-trônico é a economia de tempo e de papel, inclusive com impactos positivos no aspecto ambiental.

É claro que o ônus da necessidade do computador vem atrelado a esta inovação na medida em que a rede mundial de computadores passa a ser depositária da comunicação oficial dos atos judiciais e administrativos.

§ 1º O sítio e o conteúdo das publicações de que trata este arti-go deverão ser assinados digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada na forma da lei específica.

É louvável a exigência de assinatura digital para as publicações oficiais porque garante a segurança e a integridade dos seus respec-tivos conteúdos. como já vimos, o programa que gera a assinatura digital, ao usar o próprio documento digital que vai ser assinado como parâmetro de entrada para a criptografia assimétrica que cria a assi-natura digital, protege o conteúdo porque uma mínima alteração do documento digitalmente assinado invalida o certificado digital garan-tidor da assinatura digital.

Enquanto viger a M. P. n. 2.200-2/2001, a lei específica que regula o credenciamento da Autoridade Certificadora é a própria Me-dida provisória de 2001.

§ 2º A publicação eletrônica na forma deste artigo substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à ex-ceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal.

uma vez implementado o diário de justiça eletrônico, uma pu-blicação eletrônica nele disponibilizada torna dispensável a publica-

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ção em jornal impresso em papel. portanto, uma vez feita a publica-ção eletrônica, salvo nos casos de intimação ou vista pessoal, o prazo começa a fluir nos termos da lei (v. parágrafo terceiro deste artigo, a seguir), independentemente de publicação no papel. hipótese remota pois a publicação em papel acaba com o diário eletrônico seria o caso de ocorrer uma publicação eletrônica, seguida de uma publicação em papel, quando o prazo começaria a contar nos termos legais aplicáveis à publicação eletrônica (a segunda publicação em papel não teria efei-to de anular a primeira, salvo determinação expressa).

§ 3º Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil se-guinte ao da disponibilização da informação no diário da justiça eletrônico.

Aqui há uma inovação e uma mudança à qual há de se ficar muito atento.

uma vez que o diário de justiça eletrônico irá disponibilizar as intimações na Internet, e que pode haver divergência de horário na disponibilização dele decorrente de atrasos, ou até mesmo de diferen-ças de fuso horário ou de adoção de horário de verão, a lei determina que o dia considerado como data da publicação será o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação na Internet.

Assim, caso a disponibilização da informação na Internet ocor-ra na sexta-feira, considera-se a data da publicação na segunda-feira. Porém, há de se ficar atento, porque caso a disponibilização da infor-mação na Internet se dê no sábado, ou em um dia feriado, a data da publicação considerada também será a segunda-feira.

§ 4º Os prazos processuais terão início no primeiro dia útil que seguir ao considerado como data da publicação.

nenhuma mudança em relação à forma de contagem de prazo estabelecida na lei processual.

Apenas a título exemplificativo, havendo a disponibilização da informação na Internet na sexta-feira (ou no sábado) considera-se a data da publicação a segunda-feira (admitindo-se, por óbvio, que seja a segunda-feira dia útil) e o primeiro dia do prazo será terça-feira.

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Caso se trate de um prazo de cinco dias, por exemplo, o último dia do prazo será a segunda-feira seguinte.

§ 5º A criação do diário da justiça eletrônico deverá ser acompa-nhada de ampla divulgação, e o ato administrativo correspondente será publicado durante 30 (trinta) dias no diário oficial em uso.

Mais uma iniciativa legal louvável para conferir maior publici-dade à inovação do diário da justiça eletrônico e que, se não for obe-decida, implicará nulidade das publicações eletrônicas e a necessidade de se cumprir, na totalidade, a ampla divulgação do ato administrativo de criação do diário da justiça eletrônico durante novos trinta dias.

Art. 5º As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2º desta Lei, dis-pensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico.

Todos aqueles que fizerem a opção pelo cadastro perante o Po-der Judiciário, mediante o cadastro prévio e presencial, ficarão obri-gados a receber suas intimações por meio eletrônico.

o órgão do poder Judiciário deverá manter um portal próprio com as intimações eletrônicas que substituirão a publicação no diário da Justiça em papel e no diário da justiça eletrônico.

o eventual não-funcionamento do portal próprio do órgão do Poder Judiciário por motivo técnico, por exemplo, poderá levar à ne-cessidade de suspensão da disponibilização das intimações no portal e o retorno à intimação por publicação em diário da justiça eletrônico ou impresso em papel. Exemplos de situações que podem acarretar tal suspensão do funcionamento do portal são: defeitos nos computado-res, falta de energia, queda de comunicação por problemas nos cabos de fibra ótica, dentre outras.

deve-se observar que se dois advogados atuam no mesmo pro-cesso e apenas um é cadastrado, obrigatoriamente deverá haver a in-timação também fora do portal (em diário da justiça eletrônico ou impresso em papel) sob pena de nulidade da intimação daquele que não é cadastrado.

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§ 1º Considerar-se-á realizada a intimação no dia em que o inti-mando efetivar a consulta eletrônica ao teor da intimação, certifi-cando-se nos autos a sua realização.

As intimações por meio eletrônico, no portal próprio do poder Judiciário, só são consideradas realizadas no momento em que o in-timando efetivar a consulta (quando o intimando “abrir” o arquivo digital que contém os termos da intimação).

os computadores do poder Judiciário serão programados para detectar o momento da efetivação da consulta eletrônica, e, pronta-mente, eles certificarão tal consulta na pasta correspondente nos autos do processo eletrônico (que será objeto de estudo no capítulo III da lei em análise).

notamos, assim, que a consulta é ato do intimando que tiver sido cadastrado previamente perante o órgão do poder Judiciário, ca-bendo-lhe o ônus de acessar o portal a cada dez dias, nos termos do § 3º deste artigo, para realizar as suas consultas referentes às intima-ções eletrônicas.

§ 2º Na hipótese do § 1º deste artigo, nos casos em que a consulta se dê em dia não útil, a intimação será considerada como realizada no primeiro dia útil seguinte.

É mantida, aqui, a mesma regra da intimação da lei processual: a intimação realizada em dia não útil será considerada como feita no primeiro dia útil seguinte, o que deverá ficar certificado nos autos do processo eletrônico.

§ 3º A consulta referida nos §§ 1º e 2º deste artigo deverá ser feita em até 10 (dez) dias corridos contados da data do envio da inti-mação, sob pena de considerar-se a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo.

Surge aqui uma obrigação legal para os intimandos que tiverem sido cadastrados perante o órgão do poder Judiciário, de consultarem o respectivo portal a cada dez dias, sob pena de uma intimação ter sido considerada como automaticamente realizada.

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Assim, caso haja o envio de uma intimação ao portal na sexta-feira, contam-se dez dias corridos (sábado, domingo, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, quinta-feira, sexta-feira, sábado, domingo e segunda-feira) e considera-se a intimação automaticamente realizada na segunda-feira e o primeiro dia do prazo será a terça-feira. caso a segunda-feira seja dia feriado, a intimação será considerada como realizada no primeiro dia útil seguinte, terça-feira, e o primeiro dia do prazo será a quarta-feira.

o propósito da lei, neste artigo, é evitar que se perpetue a não-realização da intimação em decorrência da falta de diligência do inti-mando em efetuar a consulta.

§ 4º Em caráter informativo, poderá ser efetivada remessa de cor-respondência eletrônica, comunicando o envio da intimação e a abertura automática do prazo processual nos termos do § 3º deste artigo, aos que manifestarem interesse por esse serviço.

há a faculdade de o poder Judiciário enviar mensagens eletrô-nicas (como e-mails ou mensagens SMS para celulares, dentre outras) para o intimando com a notícia do envio da intimação eletrônica para o portal e o prazo limite para a consulta, sob pena de, ao término dos dez dias corridos, a intimação ser automaticamente realizada.

nota-se que, por se tratar de caráter informativo, não há aqui imposição legal ao órgão do poder Judiciário e o não-envio da cor-respondência eletrônica de que trata este parágrafo não acarreta nuli-dade da intimação: essa correspondência informativa não desobriga o intimando de seu ônus de efetuar a consulta eletrônica nos termos do presente artigo.

§ 5º Nos casos urgentes em que a intimação feita na forma deste artigo possa causar prejuízo a quaisquer das partes ou nos casos em que for evidenciada qualquer tentativa de burla ao sistema, o ato processual deverá ser realizado por outro meio que atinja a sua finalidade, conforme determinado pelo juiz.

uma vez que a lei em análise confere o prazo considerado lon-go (dez dias corridos) para a efetivação da consulta da publicação

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eletrônica, em caso de urgência ou prejuízo, a lei permite a realização do ato por outro meio desde que assim, fundamentadamente, o juiz a determine.

§ 6º As intimações feitas na forma deste artigo, inclusive da Fa-zenda pública, serão consideradas pessoais para todos os efeitos legais.

A lei cria, aqui, uma presunção de que as intimações eletrôni-cas no portal na Internet do órgão do Judiciário, inclusive as intima-ções da Fazenda pública, são intimações pessoais.

Art. 6º Observadas as formas e as cautelas do art. 5º desta Lei, as citações, inclusive da Fazenda Pública, excetuadas as dos Direitos processuais criminal e Infracional, poderão ser feitas por meio ele-trônico, desde que a íntegra dos autos seja acessível ao citando.

uma grande inovação legal é a possibilidade de a citação ser feita por meio eletrônico (à exceção dos Direitos Processuais Crimi-nal e Infracional). A citação, portanto, chega ao mundo virtual e, com isso, as questões de segurança surgem de forma muito relevante. Este artigo regulamenta a nova redação do inciso IV do art. 221 do código de processo civil dada pela própria lei n. 11.419/2006.

o requisito claro da lei é o acesso do citando à íntegra dos autos. pressupõe, portanto, o processo eletrônico (v. capítulo III da lei em análise) completamente disponível em meio eletrônico para o acesso do citando. A citação eletrônica, portanto, somente faz sentido se o processo for eletrônico. Ademais, uma interpretação desse artigo, em conjunto com o art. 9º da presente Lei n. 11.419/2006, demonstra que a citação eletrônica é obrigatoriamente adotada no processo eletrôni-co (v. comentários ao referido artigo 9º, infra).

nota-se que o dispositivo em tela não revoga a citação por cor-reio, por oficial de justiça e por edital; ele apenas cria um novo meio de citação. Em hipótese alguma a citação eletrônica poderá, por ób-vio, suprimir a ampla defesa e o contraditório. desta forma, somente poderá ser citado por via eletrônica aquele que tiver acesso pleno aos recursos eletrônicos que lhe permitam o acesso à íntegra dos autos.

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Qualquer tentativa de citação eletrônica de quem não tenha condições de acesso pleno ao processo eletrônico será nula de pleno direito.

A possibilidade de a Fazenda pública ser citada por meio eletrô-nico vai ao encontro das facilidades trazidas pela telemática e, é claro, após o devido cadastro no órgão do poder Judiciário, será de grande valia no sentido de abrir uma possibilidade de agilizar o processo civil para os advogados públicos.

A citação por meio eletrônico é, a exemplo da citação por cor-reio, uma citação real.

Art. 7º As cartas precatórias, rogatórias, de ordem e, de um modo geral, todas as comunicações oficiais que transitem entre órgãos do poder Judiciário, bem como entre os deste e os dos demais po-deres, serão feitas preferentemente por meio eletrônico.

A legalização da comunicação eletrônica entre os órgãos do pró-prio poder Judiciário, ou entre os órgãos do poder Judiciário e órgãos do Executivo do Legislativo e do Ministério Público requer a utiliza-ção de um meio que garanta a segurança dos dados e a certeza de que quem os enviou foi realmente o remetente declarado. uma vez que a legislação brasileira, por meio da M.p. n. 2.200-2/2001 estabelece a assinatura digital como a forma de identificação no meio eletrônico, esta deve ser utilizada.

O § 3º do art. 202 do CPC (nova redação dada pelo art. 20 da lei em análise) faz referência ao uso da assinatura eletrônica nas comu-nicações oficiais. Ocorre que, como já visto, a assinatura eletrônica é gênero que envolve tanto a assinatura digital como qualquer outra forma de identificação no meio eletrônico. A própria nova redação do § 3º do art. 202 do CPC faz referência expressa ao uso da assinatura eletrônica “na forma da lei”. Entendemos, pois, de maior prudência, que a forma da Lei adequada é aquela do § 1º do art. 10 da M.P. n. 2.200-2/2001 que requer a assinatura digital.

A não-utilização da assinatura digital em comunicações ele-trônicas oficiais, como cartas precatórias e cartas rogatórias, abriria um campo muito grande para fraudes, como alterações dos docu-mentos eletrônicos, que grande prejuízo podem trazer para o pro-cesso judicial.

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Tomemos por exemplo uma comunicação de acesso aos dados fiscais sigilosos de uma parte em processo civil. Tais dados são sensí-veis e devem ter o sigilo preservado pelo Estado. É inadimissível que se corra o risco da insegurança da comunicação com a não-adoção da assinatura digital dentro dos termos do § 1º do art. 10 da M.P. n. 2.200-2/2001.

outro ponto relevante é a obrigação, por parte do poder Judiciá-rio, de garantir o sigilo das comunicações toda vez que documentos sigilosos (como aqueles relacionados com os processos que correm sob sigilo de justiça) forem enviados por meio eletrônico. A forma de o poder público se desincumbir de tal ônus da manutenção do sigilo e da proteção da comunicação dos dados é a utilização de comunicação protegida por criptografia forte.

cApÍTulo III

do pRocESSo ElETRÔnIcoArt. 8º Os órgãos do Poder Judiciário poderão desenvolver siste-mas eletrônicos de processamento de ações judiciais por meio de autos total ou parcialmente digitais, utilizando, preferencialmente, a rede mundial de computadores e acesso por meio de redes inter-nas e externas.

o título do capítulo faz referência ao chamado “processo ele-trônico”. como vimos, os termos “processo informatizado” ou “pro-cesso eletrônico” aparecem na lei em questão e ambos se referem à utilização do meio eletrônico (ou meio virtual, ou mundo online), o qual, repita-se, nem sempre é exclusivamente eletrônico, porque pode valer-se do meio ótico.

A utilização preferencial da rede mundial de computadores (In-ternet) não exclui, é claro, que se permita o acesso por meio de outros recursos de telemática.

Por fim, cumpre lembrar que a lei cria uma faculdade e não uma obrigação para o poder Judiciário. Todavia, uma vez implementado o processo eletrônico, não poderá o órgão do poder Judiciário aban-doná-lo sem um motivo justificável, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da eficiência por falta de motivação do ato administra-tivo correspondente.

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o processo eletrônico pode ser totalmente eletrônico, nos ca-sos em que seja possível prescindir por completo do documento em papel (o que inclui os processos que são instruídos com cópias digi-tais dos documentos originalmente em papel, a chamada “digitaliza-ção do documento físico”). por outro lado, haverá o processo com autos parcialmente digitais, em situações nas quais não seja possível o processo totalmente digital, por problemas, por exemplo, de uma instância não ter os equipamentos computacionais necessários.

Por fim, interessante a classificação da lei em processo ele-trônico com autos totalmente digitais e processo eletrônico com autos parcialmente digitais, o que demonstra que os nomes “pro-cesso eletrônico” e “processo digital” referem-se ao mesmo tipo de processo.

parágrafo único. Todos os atos processuais do processo eletrônico serão assinados eletronicamente na forma estabelecida nesta lei.

A lei faz exigência da assinatura eletrônica para os atos proces-suais. como a assinatura eletrônica é gênero do qual a assinatura di-gital é uma das espécies, fica claro que a lei permite tanto a utilização da assinatura digital como de outra forma de identificação (assinatura eletrônica que não utiliza a criptografia assimétrica).

Quando a lei em análise fizer referência expressa à assinatura di-gital, obrigatoriamente a espécie assinatura digital deverá ser utilizada, sob pena de nulidade do ato praticado com a assinatura eletrônica.

Art. 9º No processo eletrônico, todas as citações, intimações e notificações, inclusive da Fazenda Pública, serão feitas por meio eletrônico, na forma desta lei.

Como foi visto no art. 6º, supra, a lei em análise criou a citação eletrônica, e que se torna obrigatória no processo eletrônico, por força de lei processual de natureza cogente. A obrigatoriedade é também aplicável às intimações e às notificações do processo eletrônico. A lei em comento assim dispõe sobre a forma da citação e as exceções nos casos especificados por ela:

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§ 1º As citações, intimações, notificações e remessas que viabili-zem o acesso à íntegra do processo correspondente serão conside-radas vista pessoal do interessado para todos os efeitos legais.

Mais uma vez a lei em análise cria uma presunção legal absolu-ta para as citações, intimações, notificações e remessas que viabilizam o acesso à íntegra do processo como vista pessoal do interessado.

A vista somente poderá ser considerada vista pessoal para todos os efeitos legais se se tratar de processo eletrônico com autos total-mente digitais.

§ 2º Quando, por motivo técnico, for inviável o uso do meio ele-trônico para a realização de citação, intimação ou notificação, esses atos processuais poderão ser praticados segundo as regras ordinárias, digitalizando-se o documento físico, que deverá ser posteriormente destruído.

para atos da própria Justiça, a regra geral no processo eletrôni-co é a prática dos atos por meio eletrônico. Todavia, a inviabilidade técnica autoriza a prática da citação, da intimação ou da notificação por regra ordinária com a obrigação da posterior digitalização do do-cumento físico e a sua conseqüente destruição.

o motivo da posterior destruição do documento físico é a ne-cessidade de se manter o processo eletrônico o mais digital possível. Apenas em casos nos quais não seja possível digitalizar o documento (quando se tratar de documento muito grande ou de documento cuja versão digital seja ilegível) é que se mantém o documento físico.

A prática dos atos em análise por meio eletrônico é a regra da norma imperativa, não cabendo ao juiz derrogá-la por discricionarie-dade própria.

Assim, não há como o juiz deferir a prática da citação, da inti-mação ou da notificação por via ordinária, em processo eletrônico, a não ser que ele fundamente o motivo de tal prática do ato com base na inviabilidade técnica, por exemplo.

Art. 10. A distribuição da petição inicial e a juntada da contestação, dos recursos e das petições em geral, todos em formato digital, nos

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autos de processo eletrônico, podem ser feitas diretamente pelos ad-vogados públicos e privados, sem necessidade da intervenção do car-tório ou secretaria judicial, situação em que a autuação deverá se dar de forma automática, fornecendo-se recibo eletrônico de protocolo.

o processo eletrônico apresenta a grande vantagem de poder tramitar em meio digital, com grande economia de papel e de tem-po. A superação de todo o andamento administrativo do processo em papel é um avanço na rapidez que, por outro lado, cria alguns ônus para os advogados públicos e privados, dentre eles, a prática direta de determinados atos, como a distribuição da petição inicial e a juntada das demais petições nos autos do processo eletrônico.

uma vez que o processo eletrônico é armazenado em pastas de arquivos de computador, o próprio programa de computador que implementa o processo eletrônico permite aos advogados a autuação automática, sem a intervenção da secretaria do juízo.

cabe ao advogado gravar o seu recibo eletrônico do protocolo para poder comprovar o cumprimento do prazo (que ficará também certificado nos autos do processo eletrônico) ou a juntada de determi-nada peça processual.

§ 1º Quando o ato processual tiver que ser praticado em determinado prazo, por meio de petição eletrônica, serão considerados tempesti-vos os efetivados até as 24 (vinte e quatro) horas do último dia.

o recibo do protocolo eletrônico deverá registrar até as 23 ho-ras, 59 minutos e 59 segundos do último dia do prazo para que o ato processual seja tempestivo, ressalvado o caso de indisponibilidade do sistema como se verá a seguir.

§ 2º No caso do § 1º deste artigo, se o Sistema do Poder Judiciário se tornar indisponível por motivo técnico, o prazo fica automati-camente prorrogado para o primeiro dia útil seguinte à resolução do problema.

o sistema de computação do poder Judiciário deve obedecer ao Princípio da Eficiência e ser mantido em funcionamento ininterrup-

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to. Todavia, há várias situações justificáveis nas quais o Sistema do Poder Judiciário pode ficar indisponível, como, por exemplo, falta de energia elétrica, necessidade de manutenção do sistema, e, até mes-mo, em casos de ataques de crackers, “piratas” da rede que visam a “derrubar” o sistema.

Cabe ao Poder Judiciário identificar as situações de indisponi-bilidade do sistema e procurar, na medida do possível, manter uma página reserva na rede mundial de computadores para informar a in-disponibilidade do seu sistema de processo eletrônico. As situações de indisponibilidade do sistema deverão ser registradas e mantidas tais informações ao alcance dos advogados para que, assegurada a transparência, possam até provar aquelas situações caso disso venham a precisar, no futuro.

os advogados poderão, por cautela, obter cópia da página que prove que o Sistema do poder Judiciário estava indisponível, sem a necessidade de irem até o Fórum para pedir certidão em papel. Ade-mais, aplica-se aqui o princípio da Boa-Fé objetiva: cabe ao poder Judiciário documentar e tornar público todos os momentos nos quais o seu sistema de processo eletrônico esteve indisponível.

§ 3º Os órgãos do Poder Judiciário deverão manter equipamentos de digitalização e de acesso à rede mundial de computadores à dis-posição dos interessados para distribuição de peças processuais.

o processo eletrônico não pode ser, em hipótese alguma, obs-táculo à plena prestação jurisdicional e ao acesso à Justiça. uma vez que o poder Judiciário promove a migração do processo em papel para o processo eletrônico, em meio digital, cabe a ele permitir e pro-mover o pleno acesso do advogado ao meio digital (ou eletrônico).

os órgãos do poder Judiciário que implementam o processo ele-trônico devem também manter, para os interessados, computadores com acesso à Internet e equipamentos de digitalização de peças pro-cessuais e de documentos.

o não-oferecimento ou o não-funcionamento dos referidos equipamentos nos órgãos do poder Judiciário pode implicar a impos-sibilidade da prática de determinado ato processual, o que equivale à hipótese do § 2º deste mesmo artigo 10: sistema indisponível. Conse-

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qüentemente, caso os equipamentos de que trata este § 3º não estejam efetivamente em funcionamento no dia do prazo, caberá ao advogado pedir certidão da situação para provar que o Sistema do poder Judici-ário para o processo eletrônico não estava disponível.

Art. 11. os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida nesta lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais.

A regulamentação legal do documento eletrônico pela lei em análise afasta a noção de original e cópia para o documento digital. o conceito de documento original que é bastante evidente para o docu-mento físico, perde sentido no caso dos documentos eletrônicos por-que eles não têm diferenças internas.

Enquanto os documentos físicos são compostos de átomos e, conseqüentemente, os átomos que compõem o documento original não são idênticos aos que compõem uma de suas cópias, os documen-tos digitais ou eletrônicos são representados por bits que são obriga-toriamente idênticos. Assim, não há como fazer distinção entre um documento digital “original” e uma “cópia”.

os documentos eletrônicos são arquivos que têm no meio ele-trônico seu suporte físico e que representam um fato. os documentos digitais são exemplos de documentos eletrônicos.

A lei faz a exigência da garantia da origem e de seu signatário, o que somente se dá, seja por meio da assinatura digital, seja da assinatura eletrônica com o credenciamento prévio perante o poder Judiciário, nos termos da lei. ocorre que a força probante dos documentos eletrônicos deve ser analisada de forma distinta quando se tratar de documento di-gitalmente assinado em relação ao não digitalmente assinado, devido ao fato de a assinatura digital garantir a integridade do documento.

§ 1º Os extratos digitais e os documentos digitalizados e juntados aos autos pelos órgãos da Justiça e seus auxiliares, pelo Ministério Público e seus auxiliares, pelas procuradorias, pelas autoridades policiais, pelas repartições públicas em geral e por advogados pú-blicos e privados têm a mesma força probante dos originais, res-

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salvada a alegação motivada e fundamentada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização.

por força deste parágrafo, os documentos digitais, públicos ou privados, juntados aos autos por órgãos públicos ou por advogados, têm a mesma força probante que os originais, o que nos remete à re-gulamentação do código de processo civil (arts. 364 a 369).

um ponto é de grande importância: o documento particular di-gital somente pode ser considerado assinado, para os termos do art. 368 do cpc, se tiver sido assinado digitalmente, dentro da Icp-Bra-sil, conforme o art. 10, § 1º da M.P. n. 2.200-2/2001. Assim, um e-mail, por exemplo, sem assinatura digital, é um documento digital. porém, não se pode presumir verdadeira a declaração em relação ao seu emitente, que poderá argüir sua falsidade.

§ 2º A argüição de falsidade do documento original será processa-da eletronicamente na forma da lei processual em vigor.

A argüição de falsidade do documento eletrônico será resolvida por perícia. porém, insista-se, havendo assinatura digital dentro da Icp-Brasil, a presunção corre contra o seu signatário. caso seja um documento digital sem assinatura digital dentro da Icp-Brasil, não há presunção de veracidade, e quem juntou tal documento aos autos terá que provar inclusive a autoria.

portanto, para documentos eletrônicos que não têm origem em documentos em papel, a regra para a solução da argüição de falsidade há de ser a perícia técnica da computação. Trata-se de casos de escri-tos, sons ou imagens fixados diretamente em arquivos digitais sem as-sinatura digital como, por exemplo, fotografias digitais, arquivos que contenham textos de escritos digitais, gravações de sons digitais, dentre outros. nestes casos, se a outra parte vier a argüir falsidade, uma perícia técnica da computação é necessária para verificar tanto a origem quanto a integridade do documento eletrônico. Em relação à autoria do docu-mento, não há que se falar de presunção de que quem enviou documen-to eletrônico, se o documento não tiver a assinatura digital.

Assim, por força do artigo § 1º do art. 10 da M.P. n. 2.200-2/2001, caso o documento contenha uma assinatura digital com o

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processo de certificação dentro da ICP-Brasil, presume-se que ela foi assinada pelo titular do certificado digital e a ele caberá desconstituir tal presunção (nota-se que o fato de ele emprestar a sua chave privada de criptografia a terceiros corresponde a uma assunção do risco de o terceiro assinar digitalmente documentos que serão imputados ao titular daquela chave). Aqui há de se aplicar a presunção de origem e de inalterabilidade do conteúdo do documento.

Quando se tratar de documento eletrônico com assinatura digital com processo de certificação fora da ICP-Brasil, por força do § 2º do art. 10 da M.p. n. 2.200-2/2001, a presunção de que foi produzido pelo titular do certificado digital vale apenas entre as partes que previa-mente elegeram aquela forma de identificação no mundo eletrônico. caso um terceiro venha a opor o documento digital contra o assinante, a ele caberá o ônus da prova de que fora realmente o titular do certifi-cado digital fora da Icp-Brasil quem enviou o documento. por força da tecnologia da assinatura digital, se, por um lado, não se aplica a presunção de origem do documento digital, por outro, a presunção da inalterabilidade do documento digitalmente assinado prevalece.

outro caso é o dos documentos digitais que contenham meras assinaturas eletrônicas. Estes não têm presunção de inalterabilidade do conteúdo do documento, e lhes aplica, todavia, a presunção de origem do assinante eletrônico, apenas em relação às partes que pre-viamente elegeram aquela assinatura eletrônica co-mo forma de iden-tificação no meio virtual, por força do mesmo § 2º do art. 10 da M.P. n. 2.200-2/2001.

Por fim, nota-se que os documentos eletrônicos com assinaturas eletrônicas que foram geradas por uma das partes, por força de um contrato de adesão, em uma relação de consumo, além de não terem a presunção de inalterabilidade do conteúdo, também estão sujeitos à inversão do ônus da prova. portanto, ainda que tal assinatura ele-trônica tenha sido adotada pelas partes, por força de um contrato de adesão, o consumidor poderá inverter o ônus da prova ao argüir a falsidade do documento.

A argüição de falsidade de documentos eletrônicos que tiveram sua origem em documentos previamente fixados em papel deve ser resolvida com a apresentação dos originais em papel. nesta situação, na grande maioria dos casos, o próprio magistrado poderá decidir a

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argüição sem a necessidade de uma perícia técnica, por simples com-paração do conteúdo do documento em papel com o documento di-gital. uma solução simples, em caso de algum erro de digitalização, ou de parte do documento digitalizado estar ilegível, pressupondo-se presente a boa-fé, é a simples nova digitalização do documento físico original, com o conseqüente descarte da versão digital anterior. uma vez que o § 3º deste mesmo artigo 11 impõe a obrigação de manu-tenção do documento digitalizado pelo seu detentor até o trânsito em julgado (ou até o final do prazo da rescisória), o descumprimento de tal preceito leva à perda de valor probante do documento digitalizado em caso de argüição de falsidade, pela outra parte, que não terá acesso ao documento físico original.

§ 3º Os originais dos documentos digitalizados, mencionados no § 2º deste artigo, deverão ser preservados pelo seu detentor até o trânsito em julgado da sentença ou, quando admitida, até o final do prazo para interposição de ação rescisória.

Aqui a lei faz referência expressa aos originais físicos dos docu-mentos digitalizados. portanto, este parágrafo se aplica aos documen-tos gerados em papel e que foram digitalizados para serem juntados ao processo eletrônico.

um documento que já tem sua origem como um documento digital também não precisa ser preservado pelo seu detentor porque o documento originalmente digital não é “digitalizado”. documento digitalizado é documento digital correspondente a um documento fí-sico existente anteriormente. Uma vez que a digitalização pode gerar um documento digital de pouca legibilidade, por exemplo, é razoável exigir-se a preservação dos originais até o término do prazo exigido pela lei em comento.

§ 4º (VETADO)

§ 5º Os documentos cuja digitalização seja tecnicamente inviável devido ao grande volume ou por motivo de ilegibilidade deverão ser apresentados ao cartório ou secretaria no prazo de 10 (dez) dias contados do envio de petição eletrônica comunicando o fato, os quais serão devolvidos à parte após o trânsito em julgado.

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O princípio da razoabilidade informa o texto de lei em tela por-que seria absurdo exigir-se a digitalização de um documento muito antigo, ou muito pequeno, por exemplo, que levaria a um documento digital ilegível. o mesmo princípio será usado pelo juiz para a inter-pretação do que seja “grande volume” dentro do estado da técnica disponível a cada momento e em cada tribunal. os sistemas de com-putadores poderão comportar documentos até determinado tamanho em bytes, a partir do qual a parte será obrigada a apresentá-los em cartório ou secretaria.

§ 6º Os documentos digitalizados juntados em processo eletrônico somente estarão disponíveis para acesso por meio da rede externa para suas respectivas partes processuais e para o Ministério pú-blico, respeitado o disposto em lei para as situações de sigilo e de segredo de justiça.

Aqui está criada a obrigação de segurança para o poder público que deverá tomar todas as medidas tecnicamente possíveis para pre-servar o sigilo dos documentos digitais. Em caso de quebra da segu-rança do sistema, responderá o poder público pelos danos, indepen-dentemente de culpa.

o princípio da segurança dos atos praticados no meio eletrônico ou virtual informa claramente este dispositivo da lei. Este princípio, aliado ao princípio da confiança, é vital para que as partes e seus ad-vogados possam valer-se das vantagens que a utilização do mundo virtual trará para o processo judicial sem que bens maiores como a privacidade e a própria dignidade da pessoa humana sejam violados, dados os enormes riscos de fraudes e de acesso indevido, entre outros, que circundam o mundo virtual ou eletrônico.

Este dispositivo da lei deve ser interpretado em conjunto com o disposto no § 1º do art. 12 a seguir comentado.

Art. 12. A conservação dos autos do processo poderá ser efetuada total ou parcialmente por meio eletrônico.

A obrigação da preservação dos autos do processo judicial pode ser satisfeita pelo poder público de forma eletrônica, ainda

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que parcialmente, nos casos em que parte dos autos ainda se encon-tre em papel.

A preservação eletrônica dos autos do processo eletrônico exi-ge que o poder público mantenha atualizados os sistemas de acesso aos documentos eletrônicos. Em outras palavras, a eventual mudança no programa de computador ou no sistema de computador que dá acesso aos processos eletrônicos não pode ser justificativa para que se deixem de acessar os autos antigos (sob inaceitável justificativa de estarem em “versão defasada” ou “superada”, por exemplo).

§ 1º Os autos dos processos eletrônicos deverão ser protegidos por meio de sistemas de segurança de acesso e armazenados em meio que garanta a preservação e integridade dos dados, sendo dispen-sada a formação de autos suplementares.

Mais uma vez, surgem os princípios da confiança e da segu-rança dos atos praticados no meio eletrônico como informadores do processo eletrônico.

A lei cria uma obrigação do poder público de proteger o acesso aos autos do processo eletrônico, seu armazenamento com segurança e a integridade dos dados.

há uma presunção de que os documentos eletrônicos são manti-dos íntegros. Em casos de adulteração, ou de ataques externos de cra-ckers, cabe ao poder público restaurá-los aos seus estados anteriores à alteração, sob pena de responsabilidade objetiva.

§ 2º Os autos de processos eletrônicos que tiverem de ser reme-tidos a outro juízo ou instância superior que não disponham de sistema compatível deverão ser impressos em papel, autuados na forma dos arts. 166 a 168 da lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – código de processo civil, ainda que de natureza criminal ou trabalhista, ou pertinentes a juizado especial.

A lei permite que o processo eletrônico “deixe” o mundo virtual e seja impresso em papel nos casos em que o outro juízo ou a outra instância não tenha sistema compatível. Trata-se de um dispositivo que será muito usado em casos de transição, quando um determinado juízo tiver o processo eletrônico, e o outro ainda não.

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Após o retorno do processo da instância superior, nada impede que os autos sejam novamente digitalizados e o processo retorne à forma eletrônica.

Assim, o sistema processual brasileiro permite o chamado pro-cesso judicial de “forma híbrida”, na qual podem alternar a forma digital e a forma eletrônica, sem prejuízo do andamento do feito.

§ 3º No caso do § 2º deste artigo, o escrivão ou o chefe de secretaria certificará os autores ou a origem dos documentos produzidos nos au-tos, acrescentando, ressalvada a hipótese de existir segredo de justiça, a forma pela qual o banco de dados poderá ser acessado para aferir a autenticidade das peças e das respectivas assinaturas digitais.

uma conseqüência direta da forma híbrida do processo judicial brasileiro é a necessidade de se garantir a autenticidade das peças do processo eletrônico que era garantida pela assinatura digital.

caberá ao chefe de secretaria, ou ao escrivão, assegurar não só a autenticidade dos documentos produzidos nos autos, como a forma de se aferir tal autenticidade.

§ 4º Feita a autuação na forma estabelecida no § 2º deste artigo, o processo seguirá a tramitação legalmente estabelecida para os processos físicos.

corolário do processo híbrido é a aplicação da lei em comento somente durante a fase na qual o processo for eletrônico, deixando-se de aplicá-la, naquilo que for o caso, quando o processo estiver trami-tando em meio físico.

§ 5º A digitalização de autos em mídia não digital, em tramitação ou já arquivados, será precedida de publicação de editais de inti-mações ou da intimação pessoal das partes e de seus procuradores, para que, no prazo preclusivo de 30 (trinta) dias, se manifestem sobre o desejo de manterem pessoalmente a guarda de algum dos documentos originais.

A não-observância desta norma implica responsabilidade obje-tiva do poder público, dado o direito da parte de manter algum docu-

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mento original. o silêncio da parte após o prazo de 30 dias acarreta a preclusão do direito.

Art. 13. o magistrado poderá determinar que sejam realizados por meio eletrônico a exibição e o envio de dados e de documentos necessários à instrução do processo.

A instrução eletrônica torna-se uma faculdade conferida ao ma-gistrado que a deverá utilizar dentro do princípio da razoabilidade. uma vez que muitos cadastros de empresas e de órgãos públicos já se encontram digitalizados, a ordem do magistrado será, em muitos casos, facilitadora para a própria parte.

Há de se interpretar esse dispositivo em consonância com o § 5º do art. 11 já comentado a fim de se evitarem ordens de produção de prova em meio eletrônico quando a digitalização dos documentos mostrarem-se inviável ou não razoável, tanto sob o aspecto tecnológico quanto o econômico.

A diferença entre “exibição” e “envio” de dados reside no com-putador no qual tais dados ou documentos eletrônicos ficarão armaze-nados. Quando se tratar de envio de dados, a parte deverá obrigatoria-mente juntar uma cópia do arquivo digital ao programa que controla o processo eletrônico. Por outro lado, em hipóteses de exibição de dados e de documentos, tais dados ou documentos ficarão disponibili-zados nos computadores da parte com a possibilidade de acesso con-ferido ao magistrado. A razão para se optar pela exibição de dados ou de documentos muitas vezes pode ser tecnológica, a fim de se evitar a reprodução de grande quantidade de dados nos computadores do po-der Judiciário quando se necessita apenas de parte da base de dados.

Apenas a título ilustrativo, para se poder verificar a diferença entre a exibição e o envio de dados; tome-se como exemplo o acesso a dados de parte dos servidores públicos de um Estado para fins de realização de perícia. Ao invés de se reproduzirem todos os dados dos servidores nos computadores do Poder Judiciário, o Poder Executivo pode franquear ao magistrado (ou ao perito) o acesso apenas aos dados relevantes para a perícia. Ao final dos trabalhos periciais, o perito requer a juntada do laudo pericial aos autos do processo eletrônico, evitando-se, desta for-ma, grande alocação de dados inúteis no processo.

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§ 1º Consideram-se cadastros públicos, para os efeitos deste ar-tigo, dentre outros existentes ou que venham a ser criados, ainda que mantidos por concessionárias de serviço público ou empresas privadas, os que contenham informações indispensáveis ao exer-cício da função judicante.

Esse parágrafo, como se verá a seguir, deve ser interpretado de forma restritiva. Sabe-se que os bancos de dados de caráter público são passíveis de habeas data, porém o que o presente dispositivo de lei faz é ir além e tornar cadastro público aquele que contenha infor-mação indispensável ao exercício da função judicante. Ocorre que somente é possível tal publicação do cadastro para os fins específicos de produção da prova para a instrução no processo eletrônico.

O magistrado, por exemplo, deverá levar em consideração o si-gilo de dados ao aplicar a norma desse parágrafo. Ademais, cadastros específicos podem ter um tratamento especial na lei processual. É o caso da exibição dos livros comerciais, que, a requerimento da parte, poderá ocorrer nas hipóteses do art. 381 do cpc.

um ponto importante e que diz respeito ao próprio mundo vir-tual é o referente aos cadastros dos usuários da Internet. o presente § 1º é plenamente aplicável na situação em que o magistrado neces-sita saber em qual computador teve origem determinado documento eletrônico. neste caso, é legal a ordem ao provedor de acesso ou à empresa responsável para que seja apresentado o endereço Ip de origem de determinado documento. É claro que o endereço Ip pode fazer prova do computador do qual se originou o documento eletrô-nico, mas não faz prova de quem efetivamente enviou tal mensagem (somente a assinatura digital certificada dentro da ICP-Brasil cria a presunção de que foi o assinante quem enviou a mensagem e, por conseqüência, a inversão do ônus da prova).

§ 2º O acesso de que trata este artigo dar-se-á por qualquer meio tecnológico disponível, preferentemente o de menor custo, consi-derada sua eficiência.

Aqui a lei deveria ter manifestado expressamente preocupação maior com a segurança dos dados. o princípio da segurança é o que

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informa as relações jurídicas praticadas em meio virtual em face do grande risco de fraude. usuários muito mais capacitados na técnica da computação em relação ao homem comum e a presença de crackers põem em grande risco aqueles que operam pelo ambiente eletrônico, e a atenção à segurança deve estar presente no processo eletrônico, principalmente na fase de instrução, a fim de se evitarem possíveis nulidades futuras.

Por outro lado, o princípio da eficiência tem, no meio eletrônico, o princípio da segurança como seu corolário lógico. Assim, deve-se interpretar esse dispositivo de lei no sentido de que a eficiência pres-supõe a segurança porque um meio tecnológico eletrônico inseguro não pode apresentar eficiência alguma.

§ 3º (VETADO)

cApÍTulo IVdISpoSIÇÕES GERAIS E FInAISArt. 14. os sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do poder Judiciário deverão usar, preferencialmente, programas com códi-go aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização.

Essa norma revela a opção do poder público pelos programas de computador de código aberto, o que significa que a preferência será pelo programa cujo código-fonte for disponibilizado para o po-der Judiciário. Somente poderá, destarte, o poder Judiciário adotar um programa cujo código fonte não seja aberto quando outro se-melhante não estiver disponível. há que se interpretar esta norma em consonância com o princípio da eficiência e com o princípio da razoabilidade. Assim, não se pode impor ao poder Judiciário a ado-ção de um programa de código-fonte aberto quando tal programa de computador for manifestamente menos eficiente do que um outro programa de computador, ainda que ele não tenha o código-fonte aberto. A mesma interpretação vale para a padronização de progra-mas de computador.

Parágrafo único. Os sistemas devem buscar identificar os casos de ocorrência de prevenção, litispendência e coisa julgada.

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Louvável iniciativa legal de se procurarem identificar, desde o início, os casos de prevenção, litispendência e coisa julgada, porém, cuida-se de norma que não terá implicação processual direta porque, mesmo que a ocorrência não seja localizada pelo sistema de computa-dor, poderá ser argüida pelas partes na forma da lei processual.

Art. 15. Salvo impossibilidade que comprometa o acesso à justiça, a parte deverá informar, ao distribuir a petição inicial de qualquer ação judicial, o número no cadastro de pessoas físicas ou jurídicas, conforme o caso, perante a Secretaria da Receita Federal.

Este artigo traz à baila uma importante discussão sobre a pro-teção de dados pessoais. uma vez que a própria lei do processo ele-trônico requer que sejam informados os números do c.p.F., e tal dado fica disponibilizado para acesso pela Internet, não é razoável enten-der-se tal dado como sendo um “dado sigiloso” ou “dado privado”. o número do c.p.F. é um dado público que vem sendo perigosamente utilizado como “senha” para confirmação de operações no mundo vir-tual, porém de forma descabida.

Uma conseqüência lógica da exigência legal do art. 15 em análise é que um documento digital que contém o número do c.p.F. de alguém não pode ser considerado “assinado” pela pessoa correspondente (a não ser que tenha uma assinatura digital, é claro). ou seja, contratos ele-trônicos que se baseiam em números de C.P.F. como os identificado-res dos contratantes não têm a força probante que têm os documentos digitalmente assinados. Se a própria lei do processo eletrônico exige a “publicização” do número do C.P.F., não há que se falar em identifica-ção do autor do documento eletrônico sob o único argumento de que ele fornecera o número do c.p.F., que seria sigiloso.

parágrafo único. da mesma forma, as peças de acusação crimi-nais deverão ser instruídas pelos membros do Ministério público ou pelas autoridades policiais com os números de registros dos acusados no Instituto Nacional de Identificação do Ministério da Justiça, se houver.Art. 16. os livros cartorários e demais repositórios dos órgãos do poder Judiciário poderão ser gerados e armazenados em meio to-talmente eletrônico.

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os livros cartorários eletrônicos são uma evolução conseqüente do próprio processo eletrônico e, se ainda não são uma obrigação do poder público (pois a lei diz que eles “poderão ser gerados”), por outro lado, caso sejam adotados, ficam sujeitos às mesmas obrigações de conservação e de preservação eletrônica, discutidas na análise do art. 12, inclusive no que se refere à atualização dos sistemas e com-patibilização com as versões futuras dos programas de computador adotados para a leitura e o acesso aos livros.

Art. 17. (VETAdo)

Art. 18. os órgãos do poder Judiciário regulamentarão esta lei, no que couber, no âmbito de suas respectivas competências.

Apenas há de se lembrar a necessidade de se observar o princí-pio da eficência sem prejuízo de seu corolário: o princípio da seguran-ça. Ademais, a busca pela padronização estipulada no art. 14 também deve ser uma meta a ser alcançada pelo poder Judiciário.

Art. 19. Ficam convalidados os atos processuais praticados por meio eletrônico até a data de publicação desta lei, desde que tenham atin-gido sua finalidade e não tenha havido prejuízo para as partes.

Trata-se de uma relevante regra de direito intertemporal que visa preservar as iniciativas anteriores de eletronização de processos judiciais.

não há, pois, nulidade de atos processuais praticados por meio eletrônico apenas porque eles foram praticados anteriormente à publi-cação da lei n. 11.419/2006.

Podemos tomar como exemplo o caso de perícia realizada an-teriormente à edição da lei em análise e que foi disponibilizada para consulta, por via eletrônica, em site do Tribunal, e com a adoção de assinatura digital para assegurar a integridade dos dados. As cópias impressas de tal laudo pericial que foram utilizadas em processos físi-cos têm sua validade assegurada pelo artigo em questão.

Art. 20. A lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – código de pro-cesso civil, passa a vigorar com as seguintes alterações:

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Art. 8º [...]parágrafo único. A procuração pode ser assinada digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora creden-ciada, na forma da lei específica. (NR)

A exigência da assinatura digital com base em certificado emiti-do por Autoridade Certificadora (AC) credenciada é a forma prescrita em lei para as procurações outorgadas a advogados; tal exigência le-gal é, pois, da essência do ato jurídico. Caso não existam a assinatura digital e o certificado emitido por AC credenciada, o efeito é o mesmo da ausência de procuração.

A AC pode ser credenciada na forma da lei específica, no caso, hoje, a M.p. n. 2.200-2/2001 que criou a Icp-Brasil. por outro lado, por se tratar de identidade de advogado, também o certificado digital emitido pela Icp-oAB tem que ser aceito porque a lei confere à oAB tal prerrogativa de identificação do profissional da advocacia.

Art.154 [...]

parágrafo único. (VETAdo)§ 2º Todos os atos e termos do processo podem ser produzidos, transmitidos, armazenados e assinados por meio eletrônico, na forma da lei. (nR)

Sobre o processo eletrônico, v. nossos comentários ao capítulo III da Lei n. 11.419/2006. O presente parágrafo deixa claro que não há qualquer nulidade no fato de os atos e termos do processo serem produzidos e armazenados na forma eletrônica. Assim, a liberdade de forma no processo civil abrange também a forma eletrônica.

O CPC torna expresso que não há nulidade em se utilizar o meio eletrônico para a prática de todos os termos e atos do processo, inclu-sive para a sua transmissão e armazenamento, descartando-se, portan-to, qualquer necessidade, ainda que para fins de arquivo, da impressão em papel de todo ou de parte do processo eletrônico.

Art.164 [...]

parágrafo único. A assinatura dos juízes, em todos os graus de ju-risdição, pode ser feita eletronicamente, na forma da lei. (nR)

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V. comentários ao art. 8º da Lei n. 11.419/2006.Melhor teria sido se o CPC tivesse exigido a assinatura digital

como a espécie de assinatura eletrônica para ser utilizada pelos ma-gistrados no processo eletrônico, em razão das questões de segurança que já foram tratadas. o motivo da manutenção do gênero “assinatu-ras eletrônicas” deve-se ao fato de muitas assinaturas eletrônicas de magistrados já terem sido lançadas em processos eletrônicos anterio-res à lei nos juizados especiais.

logo, não há que se falar em nulidade em decorrência da utili-zação de assinaturas eletrônicas por magistrados. Todavia, em face do princípio da segurança, melhor que o magistrado adote a assinatura digital por ser ela a mais segura espécie de assinatura eletrônica.

Art. 169 [...]

§ 1º É vedado usar abreviaturas.§ 2º Quando se tratar de processo total ou parcialmente eletrônico, os atos processuais praticados na presença do juiz poderão ser pro-duzidos e armazenados de modo integralmente digital em arquivo eletrônico inviolável, na forma da lei, mediante registro em termo que será assinado digitalmente pelo juiz e pelo escrivão ou chefe de secretaria, bem como pelos advogados das partes.

A possibilidade de se praticar ato processual por via eletrôni-ca, em processo total ou parcialmente eletrônico, requer que os atos praticados na presença do juiz também sejam armazenados de forma eletrônica.

Interessante que neste artigo o CPC faz referência expressa ao termo “digital” no que se refere ao armazenamento de modo integral-mente digital no processo eletrônico.

Assim, poderão ser gravados termos de audiências e as próprias audiências em arquivo digital que será assinado digitalmente pelo juiz, chefe de secretaria e pelos advogados.

O CPC é expresso ao exigir a assinatura digital, e não mera assinatura eletrônica no caso do armazenamento dos arquivos em dis-cussão para que estes permaneçam invioláveis, em razão da cripto-grafia da assinatura digital que assegura a integridade do documento digitalmente assinado.

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§ 3º No caso do § 2º deste artigo, eventuais contradições na trans-crição deverão ser suscitadas oralmente no momento da realização do ato, sob pena de preclusão, devendo o juiz decidir de plano, registrando-se a alegação e a decisão no termo. (nR)

o cpc refere-se ao momento da transcrição para que as ques-tões a ele sejam suscitadas e decididas, sob pena de preclusão. É claro que da decisão do juiz caberá agravo oral.

Art. 202 [...]

§ 3º A carta de ordem, carta precatória ou carta rogatória pode ser expedida por meio eletrônico, situação em que a assinatura do juiz deverá ser eletrônica, na forma da lei. (nR)

V. comentários ao parágrafo único do art. 164 do cpc, supra.

Art. 221 [...]

IV – por meio eletrônico, conforme regulado em lei própria. (nR)

Sobre a citação por meio eletrônico, v. os comentários ao capí-tulo III da lei n. 11.419/2006.

Art. 237 [...]

parágrafo único. As intimações podem ser feitas de forma eletrô-nica, conforme regulado em lei própria. (nR)

Sobre as intimações eletrônicas, v. os comentários ao capítulo II da lei n. 11.419/2007.

Art. 365 [...]

V – os extratos digitais de bancos de dados, públicos e privados, desde que atestado pelo seu emitente, sob as penas da lei, que as informações conferem com o que consta na origem;

V. os comentários ao art. 11 da lei n. 11.419/2006.

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Esse dispositivo do cpc, iluminado pelo princípio da Instru-mentalidade das Formas, contempla os extratos digitais de bancos de dados com a mesma força probante dos originais. há um requisito obrigatório: o emitente deve atestar que as informações conferem com os originais.

VI – as reproduções digitalizadas de qualquer documento, público ou particular, quando juntados aos autos pelos órgãos da Justiça e seus auxiliares, pelo Ministério Público e seus auxiliares, pelas procuradorias, pelas repartições públicas em geral e por advogados públicos ou privados, ressalvada a alegação motivada e fundamen-tada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização.

V. os comentários ao art. 11 da lei n. 11.419/2006.

§ 1º Os originais dos documentos digitalizados, mencionados no inciso VI do caput deste artigo, deverão ser preservados pelo seu detentor até o final do prazo para interposição de ação rescisória.

V. os comentários ao art. 11 da lei n. 11.419/2006.

§ 2º Tratando-se de cópia digital de título executivo extrajudi-cial ou outro documento relevante à instrução do processo, o juiz poderá determinar o seu depósito em cartório ou secretaria. (nR)

Esse poder conferido ao juiz para que determine o depósito do título em cartório ou secretaria torna-se um dever quando se tratar de documentos que, apesar de poderem ser digitalizados, são necessários para o exercício do próprio direito. É o caso, por exemplo, dos títulos de crédito típicos. Assim, não pode o magistrado dar início a uma execução de título de crédito sem que o documento físico lhe seja apresentado.

Art. 399 [...]

§ 1º Recebidos os autos, o juiz mandará extrair, no prazo máxi-mo e improrrogável de 30 (trinta) dias, certidões ou reproduções fotográficas das peças indicadas pelas partes ou de ofício; findo o prazo, devolverá os autos à repartição de origem.

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Dispositivo sem alteração no conteúdo em relação ao texto an-terior do código de processo civil.

§ 2º As repartições públicas poderão fornecer todos os documen-tos em meio eletrônico conforme disposto em lei, certificando, pelo mesmo meio, que se trata de extrato fiel do que consta em seu banco de dados ou do documento digitalizado. (nR)

V. os comentários ao art. 11 da lei n. 11.419/2006.

Art. 417 [...]

§ 1º O depoimento será passado para a versão datilográfica quan-do houver recurso da sentença ou noutros casos, quando o juiz o determinar, de ofício ou a requerimento da parte.

Dispositivo sem alteração no conteúdo em relação ao texto an-terior do código de processo civil.

§ 2º Tratando-se de processo eletrônico, observar-se-á o disposto nos §§ 2º e 3º do art. 169 desta Lei. (NR)

V. os comentários aos referidos artigos. Abre-se aqui a possibi-lidade do armazenamento em arquivo digital, tanto do termo quanto do próprio depoimento. Sempre há de se observar que os documentos digitais que contêm os depoimentos deverão ser digitalmente assina-dos, nos termos da nova redação do § 2º do art. 169 do CPC.

Art. 457 [...]

§ 4º Tratando-se de processo eletrônico, observar-se-á o disposto nos §§ 2º e 3º do art. 169 desta Lei. (NR)

V. os comentários aos referidos artigos. Abre-se aqui, também, a possibilidade legal do armazenamento em arquivo digital tanto do termo quanto do ocorrido na audiência.

Sempre há de se observar que os documentos digitais que con-têm os termos e demais atos praticados na audiência deverão, obriga-

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toriamente, ser digitalmente assinados, nos termos da nova redação do § 2º do art. 169 do CPC.

Art. 556 [...]

parágrafo único. os votos, acórdãos e demais atos processuais po-dem ser registrados em arquivo eletrônico inviolável e assinados eletronicamente, na forma da lei, devendo ser impressos para jun-tada aos autos do processo quando este não for eletrônico. (nR)

Aqui, mais uma vez ressalta-se o fato de a lei ter exigido apenas a assinatura eletrônica, e não a assinatura digital com a garantia da inte-gridade do conteúdo dos votos, dos acórdãos e dos demais atos proces-suais. contudo, desloca-se para o poder Judiciário toda a obrigação de manter tais documentos digitais em arquivos eletrônicos invioláveis.

uma das formas de se garantir a inviolabilidade dos arquivos eletrônicos de que trata este dispositivo do cpc seria a adoção de criptografia forte para assegurar que o conteúdo não seja violado. Mais uma vez, chama-se a atenção ao princípio da segurança que deve sempre nortear a conduta no meio virtual tão susceptível à atuação de crakers e de outros piratas de computadores.

Art. 21. (VETAdo)

Art. 22. Esta lei entra em vigor 90 (noventa) dias depois de sua publicação.Brasília, 19 de dezembro de 2006; 185º da Independência e 118º da República.luIZ InÁcIo lulA dA SIlVAMárcio Thomaz Bastos

4 ConCLuSão

parece-nos inegável que a utilização do mundo virtual para a implementação do processo eletrônico é uma realidade no Brasil que vem ao encontro das expectativas da sociedade de um direito mais moderno, mais rápido e mais eficiente. Destacamos, por um lado, que

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a economia de tempo com a informatização é muito grande porque reduz tarefas administrativas como retirar grampos de petições, furar, carimbar, numerar páginas, amarrar processos e capas. por outro lado, devemos nos lembrar de que sempre haverá a figura humana do juiz que preside o processo. Sobrecarregar o magistrado com um anda-mento veloz do processo eletrônico pode demonstrar que o material humano é sempre o mais importante. Não podemos deixar de consi-derar que o número de juízes ainda é pequeno no Brasil, em relação à população e à enorme extensão territorial no país.

o processo eletrônico democratiza o acesso à justiça quando per-mite o acesso ao Judiciário mesmo nos rincões do país, todavia, o acesso à tecnologia, aos computadores e à rede internet de alta velocidade é um imperativo para que tal democratização se faça efetiva como desejamos.

o risco de fraude, inerente ao uso do mundo virtual, deve ser minimizado ao máximo, com o uso de criptografia forte e assinatura digital em todos os atos do processo. porém, a segurança do proces-so eletrônico é um dever de todos que o utilizam. Terminamos com uma reflexão: devemos tomar cuidado para evitar que situações cor-riqueiras como o uso de uma rede sem fio em casa, com uma senha de acesso simples ou sem a alteração da senha do roteador que veio do fabricante possa permitir ao vizinho de prédio o acesso a todas as petições enviadas pelo advogado de sua casa.

5 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

AlMEIdA FIlho, José carlos de Araújo. Processo eletrônico e teo-ria geral do processo eletrônico. A informatização judicial do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

BRASIl. lei n. 11.419 de 19 de dezembro de 2006. dispõe so-bre a informatização do processo judicial. Disponível em: <http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/2006/11419.htm>. Acesso em: 27 de outubro de 2007.

BRASIl. lei n. 9.998 de 17 de agosto de 2000. Institui o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações. disponível em: <http://www.portaltributario.com.br/legislacao/lei9998.htm>. Aces-so em Acesso em: 27 de outubro de 2007.

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cARloS AlBERTo RohRMAnn

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BRASIl. lei n. 9.800 de 26 de maio de 1999. Permite às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais. disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9800.htm

BRASIl. lei n. 9.296 de 26 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte final, do artigo 5º da Constituição Federal. disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20i/prilei9296.htm

BRASIl. lei n. 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Institui o código de processo civil. Disponível em: <http://www010.dataprev.gov.br/sis-lex/paginas/17/1973/5869.htm>. Acesso em 27 de outubro de 2007.

BRASIl. Medida provisória n. 2.200-2 de 24 de agosto de 2001. Insti-tui a Infra-Estrutura de chaves públicas Brasileiras – Icp-Brasil, trans-forma o Instituto nacional de Tecnologia da Informação em autarquia, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder Executivo. Brasília. DF, 27 de agosto de 2001. Seção 1.

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o dAno MoRAl E A JuSTIÇA do TRABAlho

nAncI dE MElo E SIlVA

Sumário

1. Introdução. 2. A competência da Justiça do Tra-balho e o dano Moral. 3. uma decisão precursora. 4. conclusão. 5. Referências bibliográficas.

Resumo o dano moral na Justiça do Trabalho foi objeto de discussão. o

debate envolvia não só os limites da aplicação como também a própria competência da Justiça do Trabalho. Este artigo revê a competência da Justiça do Trabalho brasileira para conhecer do dano moral, em face da Emenda constitucional n. 45 de 2004 e apresenta uma decisão pre-cursora sobre o tema, proferida em Minas Gerais, em 2005.pAlAVRAS-chAVE: Justiça do Trabalho. dano Moral. Emenda cons-titucional n. 45/2004. competência.

AbstractThe issue of moral damages in the labor courts has been object

of debates. debates included not only the limits of the application of moral damages, but also the jurisdiction of the labor courts to hear those cases. This article addresses moral damages in Brazilian labor courts after the constitutional Amendment number 45, of 2004. This text also analysis a leading case about moral damages in the Labor courts from Minas Gerais of 2005.

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KEYWoRdS: labor courts. Moral damages. constitutional Amend-ment n. 45 of 2004. Brazilian constitution. Jurisdiction.

1 intRodução

A discussão acerca do dano moral no âmbito da Justiça do Tra-balho encerra questões relativas não só à questão de direito material como também o tópico referente à competência da própria Justiça do Trabalho para conhecer da matéria e julgar questões pertinentes ao tema. o presente artigo analisa a competência da Justiça do Trabalho em questões que envolvam os pedidos de dano moral, tendo em vista a Emenda constitucional n. 45 de 2004. para tal, faremos uma breve explanação da questão relativa à competência e, a seguir, apresenta-remos a questão sob um prisma prático, em uma decisão proferida em 2005. Por fim, temos que os fundamentos teóricos do dano moral, aplicados à matéria trabalhista serão sumariamente revistos.

2 A CoMpetÊnCiA dA JuStiçA do tRABALHo e o dAno MoRAL

A constituição da República, com relação à competência da Justiça do Trabalho, trazia em seu art. 114 que competia a essa justiça especializada conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregados e, na forma da lei: “[...] outras con-trovérsias decorrentes da relação de trabalho [...]”

Entendia a maioria dos intérpretes desse artigo que o pedido de indenização por dano moral, ainda que tal dano decorresse da relação de trabalho, estaria excluído da competência da Justiça do Trabalho.

No entanto, o inciso X do art. 5° para se tornar efetivo com relação aos trabalhadores levou a que outros muitos entendessem que, se o alega-do dano moral fosse em conseqüência das relações de emprego, a com-petência para apreciar a questão, sem dúvidas, estaria implícita em “[...] outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho [...]” do art. 114, acima citado, entendimento que precedeu a reforma do artigo 114 nos

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termos da Emenda constitucional n. 45/2004 que acresceu a este artigo 114 o inciso VI, ampliando as atribuições da Justiça do Trabalho.

3 uMA deCiSão pReCuRSoRA

A 1ª (então) Junta de conciliação e Julgamento de congonhas, em agosto de 2005 assim decidiu em uma ação ajuizada por um em-pregado que pleiteava, entre outros direitos, inclusive as parcelas da rescisão e pagamento do último salário que não fora efetuado, uma indenização por dano moral por estar o autor e sua família, à mín-gua, vivendo de favores de vizinhos e amigos passando necessidades, sem conseguir pagar o aluguel. Acrescentava que as indenizações não pagas visavam exatamente a permitir a sobrevivência do trabalhador enquanto não encontrava novo emprego, e que foi atingida profunda-mente a sua dignidade de chefe de família.

pretendia, assim, que o empregador respondesse pelos danos morais sofridos, além dos danos materiais, à evidência. A pretensão era de multa de um salário/dia após a data da dispensa.

O empregador, em sua defesa alegou notórias dificuldades fi-nanceiras, em risco até mesmo à “continuidade da sociedade”, que não procedeu ao acerto por essa razão, o que tornaria justificável sua inadimplência.

A contestação apresentada trazia argumentos lógicos. no entan-to, afirmada a difícil situação financeira inclusive com risco de “des-continuidade da sociedade” a alegada inexistência de norma legal a embasar os pedidos do empregado-autor soa incoerente porquanto também inexiste norma legal a fundamentar a pretensão de que o risco do empreendimento seja suportado pelo empregado. É exatamente o contrário, como se vê da dicção do art. 2°, caput, da clT.

no pedido de indenização por danos morais, por meio de multa de um salário por dia após a dispensa, a petição inicial fala do so-frimento do empregado-autor tendo que sobreviver e sustentar sua família às custas de terceiros porque não recebeu nem ao menos as parcelas rescisórias, e que foi atingida profundamente sua dignidade de chefe de família.

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A indenização por dano moral está incluída no inciso V do art. 5°, da Constituição da República vigente, no Capítulo que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos. A preocupação com o as-pecto moral das questões que atingem os indivíduos já não constituía novidade ao ser introduzida na constituição de 1988 o que apenas demonstra a importância do tema.

Antes de mais nada cabe compreender o que são danos morais:

danos morais são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoal na-tural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patri-mônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico. (WIl-Son MElo dA SIlVA, em “o dano Moral e sua Reparação”, Ed. Saraiva , 3ª ed., 1983).

Ainda, segundo o mesmo autor, a aceitabilidade ou recusa da doutrina dos danos morais prendeu-se a uma questão de princípio: conceituação do bem e do dano. o jus, o nexo jurídico, a relação, estaria em função de um sujeito e de um objeto, ideal ou não-ideal, conversível, ou não, em dinheiro. E nem sempre se torna simples o restabelecimento do equilíbrio rompido entre o sujeito e o objeto, pela subtração ou diminuição deste último. E isto ocorre principalmente quando, pela natureza ideal do objeto, resulta falho o critério da sim-ples equivalência ou da substituição “a tanto por tanto” (WIlSon MElo, op. cit.).

prossegue o autor que isso não poderia jamais constituir motivo para que se deixassem sem tutela jurídica os direitos aos bens extrapa-trimoniais, que uma questão de cifras viesse a derrogar um princípio de equidade.

Ora, nesse contexto, é irrelevante de forma absoluta a alegação das Reclamadas de dificuldades financeiras e, mais ainda, irrelevante a assertiva de que nunca “ofendeu o trabalhador em sua honra” ou deu informações que o prejudicassem profissionalmente ou “para o debilitar moralmente”. porque a pessoa tanto pode ser lesada no que tem, como no que é, e não se pode contestar que se tenha um direito a sentimentos afetivos. “A ninguém, se recusa o direito à vida, à hon-ra, à dignidade, a tudo isso, enfim, que sem possuir valor de troca da

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economia política nem por isso deixa de se constituir em bem valioso para a humanidade inteira.” (WIlSon MElo, op. cit.).

E há que se admitir que se o Reclamante trabalhou, empregou sua força de trabalho em favor da Reclamada em troca de sustento para si e sua família, a recusa – ainda que decorrente de alegada dificuldade financeira – ao pagamento de parcelas salariais, além das indenizações próprias da rescisão injusta, levando o empregado a precisar de favores de terceiros para a sua manutenção e do seu grupo familiar, constitui, sem dúvida alguma, uma ofensa não só à sua dignidade, mas ao seu direito e de sua família à própria vida mantida às custas do seu trabalho honesto. ofensa, à evidência, causadora de sofrimento íntimo, de or-dem moral, além do sofrimento físico pela falta do próprio alimento.

cARnEluTTI entendia por dano uma lesão de interesses (apud WIlSon MElo, op. cit.), emprestando ao dano o sentido de toda e qual-quer lesão ao nosso interesse na significação da relação entre o homem e um bem qualquer. E os danos morais, para WIlSon MElo dA SIlVA, “compreendem toda sorte de dores: morais e físicas”.

E continua:

E como dano que é, reclama também uma reparação, seja ela qual for.Se o dinheiro não paga diretamente o preço da dor, pode, no en-tanto, indiretamente, contribuir para aplacá-la, o que é outra coisa. (Idem, idem).prossegue o mesmo autor:[…] não dispomos de meios científicos que nos auxiliem a aqui-latar da exata extensão de nossos sentimentos morais. Os testes, abundantes em psicologia e psiquiatria, são um caminho para isso. Talvez algum dia se possa, com precisão, determinar-se a enormi-dade da dor de cada qual e, então, fácil será ao juiz estabelecer a compensação, de maneira menos subjetiva.por ora, temos de nos ater às inevitáveis contingências da vida hu-mana. e o direito aplicado tem de sofrer, como obra humana, as conseqüências da própria imperfeição humana. (Grifo nosso).

Completa o autor afirmando que em suas decisões comuns o juiz age sempre com arbítrio e que o arbitrário “é da essência da pró-

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pria justiça e não vemos como o possamos excluir sem que se altere, antes, o próprio fator homem.”

Inevitável, assim, o arbítrio do Juízo, – estando caracterizado o dano moral sofrido pelo Reclamante –, no arbitramento do valor devido a título de indenização.

4 ConCLuSão

Considerando o fato objetivo e notório das dificuldades finan-ceiras das Reclamadas, e para tornar possível o recebimento da in-denização por dano moral, pelo Autor, visando a que não se torne esse direito à reparação mais um direito frustrado, foi, então, deferido o pedido de indenização por danos morais que arbitrou-se em valor igual ao total dos direitos trabalhistas devidos ao autor.

O critério para a fixação do valor da indenização baseou-se nas próprias leis trabalhistas pelas quais os direitos não pagos são pena-lizados, de maneira sistemática, com a condenação ao pagamento em dobro do que for devido.

5 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

BRASIl. constituição (1988). Emenda constitucional n. 45 de 8 de dezembro de 2004. Lex. Legislação Federal e Marginalia. São paulo, v. 68, t. XII, p. 3226 dez II, 2004.

SIlVA, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação. 3. ed. Sa-raiva, 1983.

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dIREITo, TEoRIA doS SISTEMAS E pRAGMATISMo: EnSAIo SoBRE oS uSoS dA TEoRIA doS SISTEMAS A pARTIR do conFRonTo EnTRE nIKlAS luhMAnn E

A FIloSoFIA pRAGMÁTIcA

lucAS dE AlVAREnGA GonTIJo

Sumário

1. Introdução. 2. discussões preliminares sobre sis-temas e acoplamentos estruturais. 2.1 direito e cul-tura. 2.2 direito e moral. 2.3 direito e política. 3. Auto-referência versus pragmatismo: dilema entre os lingüistas e os sistemáticos. 3.1 direito como sis-tema auto-referencial – a proposta de niklas luh-mann. 3.2 direito como sistema de linguagem. 3.2.1 Algum aprofundamento sobre a relação do direito com a reviravolta lingüístico-pragmática. 4. consi-derações finais. 5. Referências bibliográficas.

Resumo Existiria, a princípio, aquilo que Niklas Luhmann chamou de fe-

chamento operacional aplicado ao feudo do direito? O presente texto propõe discutir até que ponto a proposta luhmanniana é concebível. Por meio da filosofia pragmática é possível compreender como o di-reito se fecha como ordem autopoiética e, ao mesmo tempo, se abre como ordem alopoiética, sem que haja uma contradição performati-va. não obstante, será preciso determinar as relações entre direito e

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linguagem, caminhando para uma discussão sobre o pragmatismo e, enfim, tecer algumas características do direito que, na concepção con-temporânea, revelam seus usos e seus sentidos.pAlAVRAS-chAVE: direito. Teoria dos sistemas. pragmatismo.

AbstractIs there, by start, what niklas luhmann cold operational close

on the law’s field? In the present text, We propose to discuss how far the luhmanian theory is acceptable. Thought the pragmatic philoso-phy it is possible to comprehend how the law is closed as an autopoie-tc order and, at same time, it is opened as an alopoietc order, without any per formative contradiction. no longer, We must to determinate the relations between law and linguistic, on way to a discuss about pragmatism to present some law’s characteristics which, in the con-temporaneous conception, show it’s uses and significations.KEYWoRdS: law. Theory of the systems. pragmatism.

1 intRodução

Em certa ocasião, um professor de direito, de uma das insti-tuições que leciono, questionou-me se a disciplina de filosofia do direito guardava qualquer serventia para os profissionais do meio jurídico. dizia ainda que os professores das disciplinas propedêuti-cas, nas quais eu me incluo, gastavam as aulas falando sobre diver-sos assuntos, mas não sobre o direito propriamente dito, ou seja, “o direito em si”, tomando-lhe a expressão. Perplexo, passei a pensar o que seria “direito em si”, pois tinha que o fenômeno jurídico se constituía a partir de muitas áreas de saberes, de práticas sociais, mas “direito em si” parecia-me inconcebível, mesmo quando pode-mos observá-lo como integridade, nos termos propostos por Ronald dworkin1. Mas a questão vale a pena se esmiuçada, não para rebater

1 A proposta de dworkin é completamente diferente. o direito para o autor anglo-americano reafirma as questões que são matérias de direito e devem respeitar seus próprios princípios. Mas esse ponto de vista não condiz com a idéia de que haveria uma área de saber que tives-se como fonte ela mesma. consultar: dWoRKIn, Ronald. O império do direito.

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o colega proponente, mas para servir aos iniciados na teoria do direi-to, como reflexão e crítica.

Existiria, a princípio, um sistema de idéias que poderia definir-se como direito em seu feudo específico, isso porque o direito tem, como se analisará neste texto, um fechamento operacional, ou seja, ele conta com função e estrutura peculiares2. por outro lado, ainda se supõe que este nunca poderia ser concebido a partir de si mesmo, mas sempre a partir das relações que estabelece com outras ordens, pois nelas tira seus substratos, isso porque o direito é também um sistema lingüístico e só pode ser pensado segundo os jogos pragmáticos que o constroem, que o (re)alimentam e o redefinem a todo tempo.

Este texto procurará afirmar que discutir os fundamentos do direito é reconhecer que esse sistema perfaz-se em relação a outros sistemas e, sem nenhuma contradição performativa, ainda sim tem seus próprios limites. A princípio, denota-se a unidade do direito pelo simples fato de que perceber um ente é conceber suas diferen-ças, ou ainda, reconhece-se algo quando se denota sua especifici-dade. Isso já estava nas teorias da linguagem de platão, mas luh-mann reconstrói essa idéia a partir do cálculo das formas de Georg S. Brown. Mas esta unidade, por sua vez, é relativa, pela simples percepção de que o direito é um sistema lingüístico e seus sintagmas (unidades léxicas) são comuns aos da língua que o nutre, com sen-tidos específicos, por certo, mas sempre pragmaticamente criados para seus usos específicos.

para luhmann, a linguagem não é um sistema auto-referencial, mas sim aquilo que permite acoplamentos estruturais entre sistemas de comunicação. por sua vez, os sistemas de comunicação são aqueles que têm consciência3, para esse autor. o nosso marco-teórico alemão não aceita que a linguagem possa ser um sistema próprio, como supôs Saussure, por exemplo, mas apenas ela é aquilo que apenas tem uma função, qual seja acoplar, via comunicação, sistemas entre si.

Quando uma pessoa leiga pensa em direito, logo se remete a uma miríade de crenças sociais e, sobretudo, implicações diretas de

2 luhMAnn, niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. vol. II.

3 luhmann distingue três tipos de sistema: os vivos, os psíquicos ou pessoais e os sociais.

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áreas ou sistemas de saberes, como direitos humanos, regras éticas, cultura, moral, política, etc.. Especular, então, como se delimitam as cercanias do feudo jurídico frente às tantas outras ordens de conheci-mento que o compõem e também o contrapõem, é o primeiro objetivo destes escritos. o segundo é compreender este fenômeno sob o viés da filosofia pragmática, já que se pretende defini-lo a partir de uma formatação contemporânea, capaz de caracterizá-lo como sistema au-tônomo e, ao mesmo tempo, demonstrar como de fato se relaciona com seu ambiente e outros sistemas diversos. A filosofia pragmática permite compreender como o direito se fecha como ordem autopoié-tica e, ao mesmo tempo, se abre com ordem alopoiética, sem que haja uma contradição performativa.

Esboçar algumas considerações sobre que é direito, em que se funda, que tipo de problema absorve e, mais precisamente ainda, como se relaciona com a filosofia da linguagem são as metas gerais deste texto, que se propõem como um mero ensaio sobre esses as-suntos. Seguem, aqui, algumas pistas e não muito mais que apenas inícios, bem a estilo de Michel Foucault.

2 diSCuSSÕeS pReLiMinAReS SoBRe SiSteMAS e ACopLAMentoS eStRutuRAiS

para empreender tal demanda, acredito que seria necessário co-meçar demarcando as esferas externas que acabam por confluir com o sistema de pensamento que cunha o direito. Isso posto, é necessário trabalhar as relações que o fenômeno jurídico tem com a cultura (1.1), com a moral (1.2) e com a política (1.3). não obstante, será preciso determinar as relações entre direito e linguagem, caminhando para uma discussão sobre o pragmatismo e, enfim, tecer algumas carac-terísticas do direito que, na concepção contemporânea, revelam seus usos e seus sentidos. O presente seguimento serve para exercitarmos alguns entendimentos que tornarão nossa discussão mais profícua, ex-plicitando alguns pontos de partida conceituais propostos pela teoria luhmanniana, tais como a idéia de acoplamento estrutural e sistema auto-referencial.

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2.1 direito e cultura

Não tem sido levada em conta a importância que uma reflexão sobre a cultura representa para o direito, pelo simples fato de que ela compõe o horizonte sob o qual o fenômeno jurídico é criado e exercido. Mas cultura não se confunde com direito, pois é justamente o conjunto de práticas sociais exercidas-compreendidas por grupos maiores ou menores, por guardarem certa identidade comum. Velam por significados e sentidos comuns que podem ser reproduzidos com a finalidade de exercer intersubjetividades e unir os membros de deter-minada sociedade.

Todavia, usualmente, a cultura não desenvolve auto-crítica ou seja, não há preocupação em refletir sobre efeitos colaterais às comu-nidades que a praticam. É cultura, por exemplo, a prática do rodeio. no entanto, o rodeio implica torturas psíquica e física aos animais, de sorte que rodeio pode ser, inclusive, legal, mas é imoral. Já a rinha de galo é tanto imoral quanto ilegal, mas tanto rinha como rodeio não deixam de ser cultura. A cultura como prática irrefletida não está pau-tada por uma ética do discurso e, portanto, não analisa conseqüências quanto mais seus pressupostos de ação.

Mas os efeitos da cultura, sob um prisma antropológico, são muito importantes por outros fundamentos, indiferentemente de se-rem morais, éticos ou legais. um povo que sofre a desintegração de sua cultura ou a aculturação perde suas referências e tende à anomia, à alienação e à violência. os estudos sobre a cultura que partiram das lavras de Marcuse, Adorno, horkheimer, lukács e outros pensadores da primeira metade do século XX conduziram a filosofia contempo-rânea a uma fase muito mais interessante e complexa. Mas definitiva-mente guindaram a preocupação com a idéia de cultura ao centro de toda e qualquer reflexão sociopolítica. Segundo o referencial que se criou a partir deles, a sociedade que não protege sua cultura sofrerá da avassaladora perda de legitimidade, de seus pressupostos éticos, perda dos sentidos e crenças e, portanto, será arrastada pela anomia e alienação de seus membros. A cultura é, então, responsável por fixar valores, tornar os membros de uma sociedade capazes de assumir res-ponsabilidades, pois, a partir de seu exercício, compreendem práticas

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comuns, atribuem-lhe significado e, portanto, as valorizam. Enche os olhos ver o poder de síntese do professor Javier herrero, ao dispor que:

A cultura se renova através da reprodução cultural que permite a continuidade e o crescimento do saber. A sociedade se reproduz através da integração social, i.é, a coordenação da ação segundo regras reconhecidas intersubjetivamente, e da produção de soli-dariedades dos grupos pela aquisição de capacidades generaliza-das de ação. A pessoa se reproduz na socialização, i.é, mediante o processo de formação da identidade pessoal e da responsabili-dade social. Assim, as estruturas simbólicas do mundo da vida se reproduzem pela ação comunicativa que se estende na dimensão semântica dos significados simbólicos pela continuidade da tra-dição e da coerência do saber válido (racionalidade do saber); na dimensão do espaço social pela estabilização da solidariedade dos grupos, e na dimensão do tempo histórico pela formação de sujei-tos capazes de responsabilidade4.

Visto isso, como se pode pensar o direito sem se preocupar com o fenômeno da cultura? Se direito é uma ciência social aplicada, for-mam-se seus cientistas como aqueles que são sensíveis e capazes em compreender a relação humana, interpretá-la e sobretudo recriar seus entendimentos sem destruir seus legítimos liames.

2.2 direito e Moral

há quem defenda que a moral tem foro íntimo. no enfoque aqui proposto, no entanto, a moral deve ser entendida como capacidade racional e universal de julgar as ações humanas. A moral é crítica por-que utiliza o confronto de argumentos, buscando a transparência das motivações e, portanto, a lucidez da razão crítica. Respalda-se, pois, na capacidade de racionalização dos argumentos sob o fundamento da ética do discurso, sopesando-os, defrontando-os, sob os auspícios do

4 BoTIn, Francisco Javier herrero. Racionalidade comunicativa e modernidade. Síntese n. 37 (1986), p. 21.

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bom senso e da sinceridade absoluta, da capacidade de reconhecimen-to dos argumentos contrários e na observação dos fundamentos.

A moral está, então, diretamente ligada à possibilidade-condi-ção da racionalidade. Vale lembrar que a razão enfrentou grande crise no campo filosófico no século XX e esse repensar tornou-se, durante as décadas de 20 até 70, uma espécie de “despensar”, ou impossi-bilidade de se pensar com lucidez. As formuladas críticas à razão, puxadas por tantas pontas, como a tomada do primeiro Wittgenstein, do círculo de Viena, da primeira geração da Escola de Frankfurt, do existencialismo negativo, e outras escolas como a de Freud, de Derri-da, de Foucault, de deleuze criaram a impressão de que o humano é ser esclerosado, sem capacidade de uso da razão para fim melhor do que sua própria utilidade.

Todavia, a partir dos estudos de Karl-otto Apel, Jürgen haber-mas e seus seguidores, revitalizou a possibilidade de razão esclarecida. Fizeram-na a partir de uma releitura pragmática de Kant, entendendo-o não como mero idealista iluminista, mas como primeiro inventor de uma nova forma de pensar a ética, a moral e o direito. Esse renovado Kant, de cunho pragmático e atento às experiências, tornou-se a base de uma nova era para a filosofia moral. Sobre o assunto nada mais indica-do do que ler Immanuel Kant, de otfried höffe5. Mas junta-se aqui uma interessante passagem de Robert Brandon, quando dispõe que:

The nature and significance of the sea change from Cartesian cer-tainty to Kantian necessity will be misunderstood unless it is kept in mind that by ‘necessary’ Kant means ‘in accord with rule’. It is in this sense that he is entitled to talk about the natural necessity whose recognition in implicit in cognitive or theoretical activity, as species of one genus. The key concept of each is obligation by a rule. It is tempting, but misleading, to understand Kant´s use of the notion of necessity anachronistically, in terms of contem-porary discussions of alethic modality. It is misleading because Kant´s concerns are at base normative, in the sense that the fun-damental categories are those of deontic modality, of commitment and entitlement, rather than of alethic modality, of necessity and

5 hÖFFE, otfried. Immanuel Kant. Tradução de christian Viktor hamm, Valerio Rohden. São paulo: Martins Fontes, 2005 (Tópicos).

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possibility as those terms are used today. Kant´s commitment to the primacy of the practical consists in seeing both theoretical and practical consciousness, cognitive and conative activity, in these ultimately normative terms6.

o direito, por sua vez, não é moral. o sistema jurídico compõe-se de fins pragmáticos próprios e isso não lhe dá os mesmos pon-tos de partida da moral, que é intocável nos seus pressupostos de ter por dever a missão de dizer o que é justo. o direito tem seu próprio fechamento operacional por cumprir o equacionamento de interes-ses sociais, pois o direito tem como precípua obrigação coordenar as ações humanas, tornando possível a vida dentro de certos limites de interesses.

Enfim, para Luhmann, a moral é um sistema auto-referencial, de modo que não é mero acoplamento estrutural, porque determina seus próprios sentidos.

2.3 direito e política

Antes de iniciar a discussão sobre o que vem ser política, bem cabe a ressalva de que não há possibilidade de se objetivar o signo política sem fragmentá-lo, ao menos, em duas acepções preliminares. Suas significações podem se projetar tanto como campo de práticas

6 Tradução em parceria com os colegas Matheus leite e Guilherme Kisteumacher: “A natureza e significância da ‘completa’ mudança da certeza Cartesiana para a necessidade Kantiana será mal compreendida a menos que se tenha em mente que por ‘necessidade’ Kant quer dizer ‘em conformidade com uma regra’. É nesse sentido que ele é autorizado a falar sobre a necessidade natural cujo reconhecimento é implícito na atividade cogniti-va ou teórica, como espécie de um gênero. o conceito chave de cada um é obrigação por uma regra. É tentador, mas enganador, entender o uso kantiano da noção de necessidade anacronisticamente, em termos de discussões contemporâneas da modalidade alética. É enganador porque as preocupações de Kant são normativas em sua base, no sentido que as categorias fundamentais são aquelas de modalidade deôntica, de comprometimento e titularidade, antes que de modalidade alética, de necessidade e possibilidade como estes termos são usados atualmente. o comprometimento de Kant com a primazia do prático consiste em ver ambas as consciências teórica e prática, atividade cognitiva e conativa, nesses termos ultimamente normativos”. BRAndoM, Robert.BRAndoM, Robert. Making it explicit: rea-soning, representing, and discursive commitment. harvard university press, 1998. p.10.harvard university press, 1998. p.10.

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específicas da vida macro-política, ou seja, exercer a política estatal, como também usá-la de maneira ampla, como exercício de qualquer atividade que implique relação humana. na primeira acepção, luh-mann a concebe como auto-referencial, por ser um sistema perfeita-mente distinto, com seus limites, com seus output e inputs. Mas nes-sa segunda acepção, política em sentido amplo, luhmann a entende como acoplamento estrutural, porque compõe o ambiente em que os outros sistemas operam.

A esfera da política, segundo essa significação, não é uma área do conhecimento, propriamente dita, mas exatamente aquilo que move os interesses humanos. Exercer a política seria dinamizar os interesses deste ou daquele sistema, com a intenção de convencer ou direcionar os outros membros de determinada sociedade ou sistema para direção almejada7. Metaforicamente falando, o exercício da polí-tica é como o do vento que empurra as velas do direito, pois este sem aquela permaneceria inerte.

3 Auto-ReFeRÊnCiA VERSUS pRAGMAtiSMo: diLeMA entRe oS LinGÜiStAS e oS SiSteMÁtiCoS

3.1 direito como sistema auto-referencial – a proposta de niklas Luhmann

Expostas essas três acepções iniciais, pensemos o que vem a ser direito, a que chamamos de sistema, não porque se acredita em sua suposta unidade, ordem interna e coerência formal, como afirmaram os positivistas dos séculos XIX e XX. Muito antes pelo contrário, essas ca-racterísticas nunca passaram de uma espécie de mito fundador da teoria do ordenamento jurídico, no discurso utilitarista do direito positivo.

o direito não possui coerência interna como condição de sua sistematicidade, não há unidade vez que prescinde dela e nem mesmo

7 note-se que luhmann também concebe a idéia de sistema sem sujeitos. o que foi radi-calmente revolucionário há algum tempo, mas hoje é perfeitamente aceito e a partir deste entendimento muito se tem teorizado e progredido.

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obedece a uma só ordem hierárquica, ou a um só sentido. não há hie-rarquia material, quanto mais formal se a função do direito é trabalhar com valores. os valores são reconhecidos por meio de signos e se esses mudam conforme a conjuntura experimentada, explodem em várias dimensões semânticas e em construções sintáticas. o direito é, então, capaz de suportar antinomias perenes e não há tão pouco lacu-nas porque é fragmentado por formação. Aliás, se há uma definição abrangente para o fenômeno jurídico, poder-se-ia dizer que ele é por excelência um sistema antinômico, fragmentado e complexo.

Mas é um sistema próprio e, portanto, aceitaria o rótulo de auto-referencial atribuído por niklas luhmann, isto porque tem fechamen-to operacional, ou seja, tem estrutura e função próprias. Esse ensi-namento vem da primeira fase de niklas luhmann, que considerava sistema aquilo que se diferenciasse do ambiente8. Se tivermos a cul-tura, a moral e a política como outros sistemas ou em conjunto como ambiente, poderemos definir o jurídico como algo diverso, como dis-se, com função e estrutura particularizadas.

Então, restam duas marcantes características que formam o direi-to: a primeira é que ele é auto-referente, ou seja, estabelece seus próprios “sentidos”. Assim havia entendido luhmann e também não é diferente em Ronald Dworkin, quando este afirma que direito é uma questão de princípios9. A partir de sentidos ou princípios próprios constroem-se fronteiras, limites que diferenciam o direito de outras ordens.

Além desse fechamento operacional, a função do direito é sua segunda e fundamental particularidade, pois se concentra, exatamente em reduzir complexidades e negar paradoxos, facilitando, assim, a coexistência de indivíduos em uma comunidade.

Se ele tem fechamento operacional, pode então ser chamado de sistema e, se pode perfeitamente sê-lo, é porque constitui um conjun-

8 luhMAnn, niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. vol. II9 dWoRKIn, Ronald. Uma questão de princípios. luhmann não usa a palavra princípio,

optando sempre pela expressão sentido. creio que essa é melhor terminologia, porque princípio, etimologicamente, remete à idéia de direito natural, porque define aquilo que deveria vir antes do estabelecimento da ordem. “primo” ou “príncipes”, do latim. pensar sobre a incoerência do uso da palavra princípio foi sugerida pelo professor Antônio cotta Marçal, nos encontros do grupo de estudos em Filosofia do Direito da PUC Minas, Uni-dade São Gabriel.

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to de disposições lingüísticas. E, exatamente, por ser composto por idéias reveladoras de interesses é, ao seu modo, um sistema aplicável às relações e aos conflitos de uma determinada sociedade. O direito é por definição uma ciência social aplicada e tem estrutura própria, é auto-referencial por dispor seus próprios sentidos e tem função espe-cífica: reduzir complexidades e dirimir conflitos sociais.

Até aqui a teoria luhmanniana não enfrenta qualquer problema. Mas o direito não pode ser entendido apenas como um sistema imerso em um ambiente de maneira tão simples. o grande dilema consiste no fato de que o direito é, também, um sistema lingüístico e este passa a ser o nosso problema de agora em diante neste texto.

3.2 direito como sistema de linguagem

Assim como qualquer sistema de idéias, lingüisticamente propos-to, o direito é capaz de suportar antinomias e não é, de forma alguma, completo ou acabado. o direito não é um resultado, mas um processo em contínuo movimento. À colação de outros sistemas de idéias, como a Bíblia, por exemplo, é capaz de sustentar posições antagônicas e mes-mo reinterpretá-las, acrescendo-lhes inéditas justificações e alternativas diferentes daquelas que, há certo tempo, pareciam esgotar a hermenêu-tica da norma jurídica, no caso da Bíblia, interpretação da parábola.

Vejam um mero exemplo sobre a disposição de idéias na Bíblia, não se lê em Lucas 13:6, na parábola da figueira estéril, “corte-a e lan-ce-a ao fogo”? Não é possível sustentar, segundo essa parábola, que devemos ceifar as oportunidades daqueles que não produzem ou não as aproveitam? Mas, no mesmo sistema de idéias, não há a expressão de que devemos “perdoar setenta vezes sete”? (Mateus 18:21-35) Ou ainda, em João 8:7, “Aquele dentre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra”? Não se trata, propriamente, de dizer que a Bíblia tem contradições internas, mas apenas reconhecer que, como qual-quer sistema lingüístico, permite recriações contextualizadas, pois a linguagem reinventa o mundo a todo tempo.

Reinventar, recriar, inovar por meio da hermenêutica jurídica é a revelação fundamental da filosofia analítica, embora essa proposta ain-

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da seja muito pouco cultivada nos feudos do direito10. A linguagem não é algo estático, pronto, mas sim aquilo que está disponível à recriação contínua e inarredável. Essa questão foi inaugurada por charles S. pier-ce, mas muito bem explicada pelo segundo Wittgenstein, na proposição número 2 do Investigações Filosóficas. As idéias de Wittgenstein, em nossas próprias expressões de linguagem, seriam mais ou menos assim: um pedreiro pede ao seu servente que lhe passe um tijolo. logo depois, diz: “outro”, na terceira vez diz: “Anda”; “Agora”; “Que está esperan-do?”; “Dormiu?”. Em todas as expressões ele repete a idéia “passe-me um tijolo”. Isto prova que há muitas formas de se dizer a mesma coisa com expressões absolutamente diferentes, dadas aos contextos especí-ficos. O inverso e de maneira muito mais sugestiva para o direito é pos-sível também: pensemos em usar a palavra tijolo para significar coisas diversas, como, por exemplo, “este tributo é um tijolo sobre minhas costas”; ou ainda, “Mandela é um dos mais importantes tijolos de fun-dação da democracia racial”; ou ainda, “Georg Bush é inteligente tal qual um tijolo”, etc. É preciso compreender que sobre os signos é pos-sível recriar, reinventar. Se um substantivo concreto como tijolo dá-nos tamanha abertura, que se dirá sobre os substantivos abstratos, como os signos dignidade, ética, justiça, etc11.

Apenas a título de maior especulação sobre a importância des-se saber para o direito, marque-se que a práxis jurídica, mesmo que inconsciente, sempre soube disto. ora, o direito é uma ciência social aplicada e, nessa privilegiada condição ou qualidade, é informado pela realidade que o cerca e o define como tal. Teorias objetivistas do direito, alienadas e criticamente indolentes, não percebiam esse fenô-

10 A partir do final do século XIX a teoria da linguagem começou a enveredar-se por novos caminhos, desvendando uma série de problematizações sintáticas que passavam desper-cebidas ao crivo dos lingüistas e dos juristas. o direito, mesmo como parte da lingüística, demorou a perceber que seria necessariamente arrastado por esse novo tipo de filosofia. Somente a partir dos anos 60 e sobretudo com a influência da Teoria Comunicativa, proposta por Jürgen habermas – que fez muito sucesso nos campos do direito pela cul-tuada germanofilia peculiar desta área no Brasil – é que despertaram os juristas para esse aspecto intrigante e complexo do pensamento humano.

11 Essa discussão sobre a pragmática dos sentidos no Investigações Filosóficas de Witt-genstein pode ser encontrada entre as proposições 2 até 8 e, ainda, da 25 até a 33. WIT-TGEnSTEIn, ludwig. Investigações Filosóficas, trad. de José carlos Bruni. São paulo: nova cultural, 1999. (coleção pensadores).

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meno, que é tão peculiar do direito: os advogados, juízes, promotores são habilidosos transformadores de sentido. É que a teoria do direito ensinada nas faculdades ainda não reconheceu a guinada lingüístico-pragmática, permanecendo enclausurada na primeira metade do sécu-lo XX. Mas não há receio de que no campo prático a capacidade de recriar sentidos dos juristas deixaria admirado qualquer Baudelaire.

A linguagem sempre está encerrada num determinado contexto social e participa da consciência dos comunicantes para efetivar-se. Toda comunicação é permeada por uma dimensão intencional e reside aí, naquilo que revela, oculta ou recria. Em outras palavras e segundo a orientação da lingüista Villaça Koch, da unIcAMp, a linguagem deve ser “encarada como forma de ação, ação sobre o mundo e dotada de intencionalidade, veiculadora de ideologia, caracterizando-se por-tanto pela argumentatividade”12.

Se pensarmos a relações do direito com o mundo a partir des-sa teoria, ou seja, a filosofia analítica, podemos, enfim, compreender como o sistema jurídico pode ter um fechamento operacional, e tam-bém pode, ao mesmo tempo, abrir-se para o mundo externo, intera-gindo com este, completando-o e sendo completado.

3.2.1 Algum aprofundamento sobre a relação do direito com a reviravolta lingüístico-pragmática

Entende-se por sintaxe o estudo da estrutura da sentença. Em-bora esse tipo de pensamento já compusesse uma das preocupações de Aristóteles, somente com Noam Chomsky, no século XX, esse as-sunto passou a ser recebido como um decisivo fator para teoria da linguagem e consequentemente para ordenação da filosofia em geral. chomsky cria a gramática gerativa e a partir daí pode-se pensar numa espécie de filosofia da linguagem ou, ao menos, renovação da lingua-

12 Koch, Ingedore Grundeld Villaça. Argumentação e Linguagem, 4. ed. São paulo: cor-tez, 1996, p. 17. A autora dispõe ainda, em complemento à essa idéia supra citada – que compõe, até certo ponto, o objetivo maior de suas proposições no campo da argumenta-ção – que a linguagem deve ser analisada como capacidade de refletir de maneira crítica sobre o mundo e em especial sobre a utilização da língua como instrumento de interação social. p. 17-18.

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gem, conhecida também por gramática transformacional. Essas duas linhas do pensamento abriram campo para outros desdobramentos hoje muito em voga no mundo da lingüística, sobretudo seguindo os passos de Joseph Greenberg, com sua tipologia sintática, que tam-bém passou a ser denominada de funcionalismo. Fato é que, a partir de Chomsky e Greenberg, floresceu um novo tipo de teoria dos atos de linguagem capaz de juntar os gramáticos aos filósofos e estes aos juristas. No caso do direito, mais precisamente, o autor que trouxe melhor investigação foi John l. Austin, a partir de seus atos de fala, previstos no livro How to do things with words, onde deixou claros suas pesquisas sobre atos performativos, atos ilocucionários e atos locucionários e, mais profundamente, em uma pesquisa, a linguagem e seus significados, a partir da publicação do Philosophical papers.13

nessas pesquisas, deparou com a rica questão do significado, que deu origem aos estudos da semântica14. A semântica, como dito, interessa ao direito porque as palavras podem assumir muitos signifi-cados, dados seus contextos. A palavra contexto, por sua vez, implica uma espécie de pensamento sistemático. A teoria da linguagem pas-sou, então, a trabalhar como um sistema, dando início ao que veio a se convencionar por estruturalismo. da mesma forma, o direito, ou mais precisamente a hermenêutica jurídica, deve ser entendido, a par-tir de um sistema complexo, que permeia contextos e experimenta os ganhos da filosofia analítica no campo do estruturalismo.

luhmann não entende a linguagem como um sistema, mas tão somente como um acoplamento estrutural, porque a linguagem via-biliza o funcionamento dos sistemas sociais ou, ainda, sob a ótica da idéia de um sistema social, a linguagem para luhamnn liga os indivíduos formando a sociedade, mas não opera com função própria. Se a linguagem não é sistema e sim acoplamento que possibilita a co-municação dos sentidos do direito, estes sim definem o direito como um sistema. observe-se, no entanto, que, se a linguagem constrói os sentidos, o faz pragmaticamente, ou seja, por meio dos usos que se

13 AuSTIn, John l.,AuSTIn, John l., Philosophical papers. Oxford University Press, 2. ed., 1970. 14 A semântica, termo cunhado pelo lingüista francês Michel Bréal, ao seu turno, é o ramo da

lingüística que estuda o significado, compondo um segmento praticamente autônomo da teoria da linguagem e, sem dúvida, fundamental para a prática da hermenêutica jurídica.

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fazem destes. A construção dos sentidos se dá por meio da linguagem e desta forma, o suposto sistema auto-referencial do direito nunca se fecha completamente, mas apenas parcialmente porque comunga com o mundo externo – o ambiente e outros sistemas – a formação dos signos que usa e interpreta. Esse fenômeno é a expressão mais precisa do que este texto entende por hermenêutica jurídica.

No estudo dos significados dos signos (semântica), há duas li-nhas de pesquisa bem diferentes entre si: a primeira estuda o signifi-cado intrínseco da forma lingüística que o contém e o segundo estuda a interação entre a forma lingüística de um enunciado e o contexto em que se encontra. Ao direito interessa essa última linha de pesquisa (para a Escola de Exegese interessava apenas o primeiro). Como a primeira linha é cunhada como semântica propriamente dita, o direito não tem como problema o estudo da semântica, mas sim o da semi-ótica. Em termos rigorosos de teoria da linguagem o direito trabalha no campo da pragmática. nesse sentido, pode-se pensar sobre a idéia de concreção, tão preciosa para Friedrich Muller. o direto só ganha realidade ao passo que é pensado a partir do fato concreto. A norma é apenas um ponto de partida e deve, a partir da experimentação fática, tomar forma e sentido. pensar a norma isolada não é propriamente pensar o conteúdo da norma, mas apenas captar seu texto, indefinido e, portanto, inaplicável ao mundo concreto15.

Isso porque, embora os operadores do direito usem inadverti-damente a expressão pragmática ou pragmatismo num sentido lato, referindo-se essas palavras ao mundo da motivação das ações (peir-ce)16, para os lingüistas, a palavra pragmatismo refere-se tão somente

15 MÜllER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Tradução para o francês de oli-vier Jouanjan. paris: presses universitaires de France, 1996. Título original em alemão: Juristiche Methodik. ou ainda: MÜllER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. Título original da tradução em2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. Título original da tradução emTítulo original da tradução em espanhol: Métodos de trabajo del derecho constitucional, e em alemão: Die juristische Methode im Staatsrecht.

16 para o Cambridge Dictionary of Philosophy a palavra pragmatismo está ligada à idéia de conhecimento experimental (não-metafísico) como instrumento – “a tool to organi-zing experience satisfactorily” (uma ferramenta para organizar a experiência satisfato-riamente). dispõe, ainda, o verbete: “pragmatism, a philosopy that stresses the relationdispõe, ainda, o verbete: “pragmatism, a philosopy that stresses the relation of theory to praxis and takes the continuity of experience and nature as revealed through the outcome of directed action as the starting point for reflection. [...] Knowledge is therefore guided by interests of values. Since the reality of objects cannot be known prior

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ao estudo da linguagem, assim como é empregada pela língua inglesa quotidiana. neste sentido, a pragmática estaria ligada às problemáti-cas da semântica formal, ligada à lógica formal, mas também aplicada aos contextos que motivam as ações, ganhando realidade ao concre-tizarem-se no mundo experimentado. O que resulta na teoria da se-mântica vericondicional, teoria dos modelos (situações) que serve ao direito dentro de seu espectro da filosofia ética apontada inicialmente por Moore e que teve muitos outros responsáveis pelo seu desenvolvi-mento, no caso do direito, as maiores influências são Karl-Otto Apel, com sua ética do discurso, lançada no Transformação da Filosofia e no Estudos de Moral Moderna e Jürgen habermas, inicialmente a partir do texto Que é pragmática universal? E sobretudo na sua Teo-ria da Ação Comunicativa.

4 ConSideRAçÕeS FinAiS

conclusões sobre as relações entre pragmática e direito e suas implicações para uma suposta teoria dos sistemas aplicada ao fenô-meno jurídico.

o direito, segundo o interesse destes escritos, que é fundamen-talmente contra-formalista, estaria alinhado ao universo da semiótica. A semiótica ou semiologia seria, segundo Villaça, o estudo da produ-ção social de significados com base em sistemas de signos17, porque os objetos de seu estudo, “são examinados como textos que comuni-cam significados, e esses significados derivam da interação ordenada de elementos portadores de sentido, os signos, que estão eles mesmos encaixados num sistema estruturado, de maneira parcialmente análo-

to experience, truth claims can be justified only as the fulfillment of conditions that are experimentally determined, i.e., the outcome of inquiry”. (Pragmatismo: uma filosofia(Pragmatismo: uma filosofia que tenciona a relação entre teoria e prática e toma a continuidade da experiência e da natureza revelada por meio de um viés direto da ação como ponto de partida da reflexão. [...] conhecimento é, portanto, guiado pelo interesse de valores, desde que a realidade dos objetos não pode ser conhecida senão pela experiência). Cambridge Dictionary of Philosophy, 2. ed., cambridge university press, 1999.

17 TRASK, R. l., Dicionário de Linguagem e Lingüística, título original: Key concepts in language and linguistics, tradução de Rodolfo Ilari, São Paulo: Contexto, 2004. p. 263.

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ga aos elementos portadores de significado em uma língua”18. Então, se a semiótica estuda o significado que a linguagem atinge mediante o contexto em que é empregada, a idéia de contexto deve ser analisada pelo direito de forma cuidadosa, pois reside aí seu maior desafio. Que é contexto?

para o direito há dois hemisférios básicos para se pensar o con-texto. O primeiro é o momento que em a lei é feita – ponto de partida – e, segundo, no momento em que é aplicada ou interpretada – mo-mento de concreção –. Cada um desses momentos sugere contextos específicos embora segundo a ótica dos exegetas formalistas isso pou-co importe.

Fato é que o direito deve estar atento a uma “análise crítica do discurso”, pois aí está seu graal. nesta ótica interessa fazer alguns questionamentos especiais, como: em que contexto social e político o discurso é proposto? Quem o propõe (a que ordem o propositor está inserido)? A quem esse discurso está dirigido e por quê? E fi-nalmente, com grande perspicácia, a mais perigosa das perguntas: o propositor do discurso jurídico tem objetivos ocultos, ou seja, seu agir é estratégico? Ou ainda: Que interesses subjazem o texto produzido pelo operador do direito? A análise crítica do discurso é um segmento originalmente proposto pela filosofia analítica,19 mas que tem a maior importância para o mundo jurídico, por sua dimensão efetiva na prá-xis política do direito.

A lei trabalha uma série de terminologias que têm grande diver-sidade semântica, pois mudam em contextos específicos (questão situ-acional) assim como mudam também de pessoa para pessoa (questões de perspectivas). Este é o problema conotativo da expressão legal, que se vê permeada pela pragmática de outros sistemas, não neces-sariamente jurídicos. Isso significa que palavras particularmente car-regadas de sentido cultural ou político podem explodir em diferentes interpretações, reconstruindo o próprio direito sem que este tenha, a princípio, definido seus sentidos de antemão. Isso porque os sistemas

18 TRASK, R. l., Dicionário de Linguagem e Lingüística, p. 263.19 Trask aponta o sociolingüista britânico norman Fairclough, como pioneiro nos anos 80 a

propor a “critical discourse analysis” com teoria da consciência lingüística crítica (critical language awareness). TRASK, R. l., Dicionário de Linguagem e Lingüística, p. 31.

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cultura, moral e direito, no campo lingüístico, se permeiam sem cri-térios para suas delimitações ou auto-referências, ou seja, os sistemas sociais são auto-referentes uns dos outros e se perfazem mutuamente. Sob a terminologia utilizada por luhmann seriam, então, alopoiéti-cos. luhmann, entretanto, assim não os entende, pois acredita que o direito é autopoiético. Sua posição é contrafactual se analisarmos pragmaticamente palavras como homossexualismo, racismo, prosti-tuição, devido suas delicadas percepções políticas e principalmente suas recém-instauradas composições culturais e morais.

Tomemos um sintagma, a título de especulação: prostituição. É possível afirmar que esse signo tem perdido seu caráter pejorativo? Ao menos, tem-se veiculado, contemporaneamente, que a profissional prostituta é vítima de um contexto social excludente tanto pelo mer-cado de trabalho quanto pelo moral. há, assim, certa consciência de que a sociedade mantém certo processo de “guetização” da atividade profissional relacionada ao sexo. A perspectiva desestigmatizadora só é ventilada em termos de um esclarecimento sócio-político de alguns grupos, ou seja, apenas uma reflexão crítica como a da moral moderna tem feito esta análise do discurso, porque, embora seja sensível a per-cepção de que há crescente desestigmatização no senso comum brasi-leiro (cultura brasileira), a figura da prostituta continua como vítima de preconceito tanto social quanto da práxis jurídica.

o sistema auto-referencial da moral, que é, por sua vez críti-co-racional e opera a partir de uma ética do discurso, pode-se inferir que: a) as prostituição é composta, majoritariamente, de um grupo social pobre, sem instrução que não consegue ingressar no mercado de trabalho porque se encontra desqualificado para exercer atividades disponíveis no mercado de trabalho; b) a grande maioria é composta pela população feminina, que é ainda, em nossa sociedade, outro fator de exclusão.

Isso posto, vez que essa atividade profissional é desqualificada pelo senso comum, a cultura, exerce-se sobre ela uma série de opres-sões que podem ser captadas no plano da “epistemé” jurídica também (expressão utilizada por Foucault para designar certa proposição in-consciente, mas que atua nos jogos de poder travados entre os sujeitos e sujeitados de uma relação social). Isso significa que os sistemas cul-tural e moral penetram semanticamente no sistema jurídico. há aqui

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uma interseção de sistemas muito mais complexa do que os meros input e output que a teoria luhmanniana descreveu.

Há, então, um paradoxo entre cultura e moral quanto à definição do sintagma prostituição. Esse termo pode ser visto segundo a ótica crítica de fundamentação reflexiva da ética do discurso, que o enxerga como um problema social que deve ser assistido pelo Estado e pela sociedade civil porque encerra violência e acaba por correlacionar-se com a prostituição infantil, vitimando, desta forma, dois grupos de devida proteção: os fragilizados pela tenra idade (infância) e os ex-cluídos economicamente. pode, no entanto, por outro lado e parado-xalmente, receber influxos negativos, vindos da cultura, que por sua vez não reflete conseqüências e nutre-se do senso comum. Por isto, o mesmo sintagma apresenta, no direito, aplicação de normas específi-cas. para o direito brasileiro, a prática da prostituição é quase ilícita, impedindo que a prostituta possa ingressar em juízo para “cobrar seus serviços”, mesmo no campo trabalhista contra seu patrão, como frente a um dono de casa noturna, por exemplo, ou ainda, contra o Estado, para requerer os benefícios da aposentaria por invalidez.

o que faz o direito apenas reconhecer ou objetivar um viés da expressão prostituição? A resposta para essa questão agora é simples. A teoria da linguagem serve ao direito como um método para produzir objetividade e assim fazer um recorte epistemológico de até onde se estende o campo de aplicação do direito. A linguagem é, de fato, o meio pelo qual é dado o conhecimento, no caso do direito a lingua-gem é interpretada sob o prisma da hermenêutica jurídica, que dispõe sobre as condições de seu entendimento. para o direito, então, a lin-guagem é o meio pelo qual se limita a capacidade de interpretação da semiótica, ou seja, a linguagem serve como obstáculo para que o processo de conhecimento do direito trabalhe com certos limites ou mesmo, que não interceda em determinadas demandas sociais.

É daí que o problema da linguagem se relaciona diretamente com o problema do método jurídico, pois linguagem é uma forma procedimental do pensamento e, portanto, um método de conheci-mento. O direito trabalha com a linguagem exatamente nesse sentido e estabelece o fechamento operacional de determinados apontamen-tos por força do cumprimento de sentidos pré-ordenados, preconce-bidos. Mas estes sentidos não se fecham completamente, na prática,

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porque bebem da mesma “seiva” que nutre outros sistemas, ou ainda, nutre-se da seiva produzida por outros sistemas.

A pré-determinação de sentidos rompendo com os usos pragmá-ticos conjuntos de outros sistemas afins pode provocar, no próprio di-reito, impotência perante as demandas da vida. A teoria da linguagem não pode aparecer como uma limitação do pensamento jurídico me-diante um método de objetivação do pensamento. A lei como estrutu-ra lingüística deve ser interpretada de maneira aberta, compromissada apenas com o problema e não com as condições discursivas a priori, propostas pelo legislador. Satisfatoriamente, como a linguagem é o viés que faz com que o direito seja também alopoiético, há uma espe-rança que nasce com a própria natureza do saber jurídico: a dimensão pragmática. E esta, em um “sentido restrito, deve ser vista como o estudo da atividade inter-individual realizada no discurso.”20

Em qualquer nível de significação, quem diz algo o diz porque quer recriar sentidos e a questão é apenas perceber que jogos de poder subja-zem essas operações. compreender uma enunciação é compreender suas intenções. Isso posto, como pode o juiz firmar que julga no sentido do ordenamento jurídico? Que ordenamento se há tantos? Ora a teoria da auto-referência vê-se prejudicada quando observada a partir de um pris-ma sistemático fechado, auto-referencial. dispõe Villaça que:

Todo texto caracteriza-se pela textualidade (tessitura), rede de re-lações que fazem com que um texto seja um texto (e não uma simples somatória de frases), revelando uma conexão entre as in-tenções, as idéias e as unidades lingüísticas que o compõem, por meio do encadeamento de enunciados dentro do quadro estabele-cido pela enunciação.21

o direito pode, desta forma, aprender com a ética do discurso, entrevendo-se com o sistema moral e pode, ao mesmo tempo, rechear-se da realidade cultural, interpretá-la e expandi-la no sentido de suas aptidões conciliadoras, solidárias e prudentes.

20 Koch, Ingedore Grundeld Villaça. Argumentação e Linguagem, 4. ed. São paulo: cortez, 1996, p. 25.

21 Koch, Ingedore Grundeld Villaça. Argumentação e Linguagem, 4. ed. São paulo: cortez, 1996, p. 21-22.

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Lembro-me agora, sem muita exatidão, de uma figuração em que o poeta Manoel de Barros passava os dias “rimbaudiano”, isto quer dizer: reinventando os sentidos das palavras, invertendo-os e desta forma fazendo suas poesia. Sabe-se que com um caderninho nas mãos, perambulava pela sua casa, procurando palavras. Ao ver sua esposa escrevendo algo sobre a mesa de jantar, esticou os olhos e perguntou curioso: “Que você está escrevendo?”. Ela respondeu percebendo o mal-entendido do marido: “coisas da terra, Manoel! Coisas da terra: feijão, arroz, trigo, peixe...”. Então Manoel de Barros retrucou sereno: “Peixe é da água.”

Quando for preciso, o direito reverterá o sentido, porque é um sistema consciente, pois tem sujeito: seus operadores. os sistemas sem sujeito de Luhmann só podem existir quando não houver lin-guagem. linguagem é uma questão humana. por este motivo, talvez, perelman escreveu que o “aprendizado de uma língua também signi-fica aderir aos valores de que, de modo explícito ou implícito, ela é portadora, às teorias cujas marcas traz, às classificações subjacentes ao emprego dos termos”22.

Como restou provado, direito em si, de fato, não existe. O direi-to é um fenômeno complexo e sua formação se dá a partir de outras áreas do conhecimento. não há como distinguir de maneira estanque os sistemas da moral, da cultura, da política. por outro lado, é possí-vel perceber no direito seus próprios sentidos e, portanto, certa auto-referência. desta forma criamos algo que deve ser entendido como hermenêutica jurídica. Mas seus sentidos são formados pelas mesmas “seivas” de outros sistemas sociais. Os ensinamentos filosóficos de nietzsche e Foucault dizem que só se conhece algo quando se mistu-ra com ele; misturar-se com a moral, com a cultura e com a política são os meios pelos quais o direito cresce, transforma, acompanha a sociedade, de sorte que a epistemologia jurídica é infértil se isolada. o direito pode usufruir da ética discursiva conquistada pela moral e, desta forma, em sua própria estrutura, aplicar o saber moral na cultu-ra, modificando-a, tornando-a prudente com referência àquilo que ela relaciona e cria.

22 pERElMAn, chaïm. Lógica jurídica e nova retórica. São paulo: Martins Fontes, 2004, p. 148.

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lucAS dE AlVAREnGA GonTIJo

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A linguagem constrói os sentidos e o faz pragmaticamente, ou seja, por meio dos usos que se faz em destes. A construção dos sen-tidos se dá por meio da linguagem e, desta forma, o suposto sistema auto-referencial do direito nunca se fecha completamente, mas apenas parcialmente porque comunga com o mundo externo – o ambiente e outros sistemas – a formação dos signos que usa e interpreta. Esse fenômeno é a expressão mais precisa do que entendemos por herme-nêutica jurídica.

5 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

AuSTIn, John l., Philosophical papers. Oxford University Press, 2. ed., 1970.

BoTIn, Francisco Javier herrero. Racionalidade comunicativa e mo-dernidade. Síntese n. 37 (1986).

BRAndoM, Robert. Making it explicit: reasoning, representing, and discursive commitment. harvard university press, 1998.

Cambridge Dictionary of Philosophy. 2. ed. cambridge university press, 1999.

dWoRKIn, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson luiz camargo. São paulo: Martins Fontes, 1999. (título original: law´s empire).

hÖFFE, otfried. Immanuel Kant. Tradução de christian Viktor hamm, Valerio Rohden. São paulo: Martins Fontes, 2005 (Tópi-cos).

Koch, Ingedore Grundeld Villaça. Argumentação e Linguagem, 4. ed. São paulo: Editora cortez, 1996.

luhMAnn, niklas. Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. vol. II.

luhMAnn, niklas. A nova teoria dos sistemas / org. por clarissa Eckert Baeta neves e Eva Machado Barbosa Samios. porto Alegre: Ed. universidade uFRGS, Goethe-Institut / IcBA, 1997.

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MÜllER, Friedrich. Discours de la méthode juridique. Tradução para o francês de olivier Jouanjan. paris: presses universitaires de France, 1996. Título original em alemão: Juristiche Methodik.

MÜllER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. Título original da tradução em espanhol: Métodos de trabajo del derecho constitucional, e em alemão: Die juristische Methode im Staatsrecht.

pERElMAn, chaïm. Lógica jurídica e nova retórica. São paulo: Martins Fontes, 2004

TRASK, R. l., Dicionário de Linguagem e Lingüística, título origi-nal: Key concepts in language and linguistics, tradução de Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2004.

WITTGEnSTEIn, ludwig. Investigações Filosóficas, tradução de José carlos Bruni. São paulo: nova cultural, 1999. (coleção pensadores).

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BREVE ABoRdAGEM do DISCURSO DO MÉTODO E do SEu luGAR nA hISTÓRIA do pEnSAMEnTo JuRÍdIco

RIcARdo AdRIAno MASSARA BRASIlEIRo

Sumário

1. o lugar de descartes na história do pensamento jurídico. 2. diversas considerações sobre as ciên-cias. 3. principais regras do método. 4. Regras da moral provisória. 5. Considerações finais: funda-mentos da metafísica: razões probantes da exis-tência de deus e da alma humana. 6. Referências bibliográficas.

Resumo o trabalho aborda o lugar do pensamento cartesiano na história

do pensamento jurídico e explana os principais argumentos do Discur-so do Método.pAlAVRAS-chAVE: descartes. Racionalismo Jurídico.

AbstractThe work treats the cartesian thought locus in the history of

juridical thought and explain the main arguments of the Discourse on the Method.KEYWoRdS: descartes. Juridical Rationalism.

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 99-116 2008

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1 o LuGAR de deSCARteS nA HiStÓRiA do penSAMento JuRÍdiCo

REnÉ dEScARTES (1596-1650) é largamente havido como “o pai da filosofia moderna”, tendo estabelecido para a ciência, “aque-le que, ate hoje, permaneceu o seu mais elevado princípio: clara et distincta perceptio, conhecimentos claros e distintos”.1

O vigoroso afloramento das ciências naturais acabou por impor os problemas metodológicos destas disciplinas à filosofia2 e, por via de conseqüência, às humanidades e ao direito. o próprio Discurso do Método foi originariamente veiculado, em 1637, como um prefácio a dois ensaios de física (dióptrica e Meteóros) e a um outro designado Geometria.

prevalecia na época uma idéia de instrumentalização e utiliza-ção técnica da ciência. Conforme explicita o próprio DESCARTES: “é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida e que, em vez da filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode encontrar uma outra prática mediante a qual, conhecendo a força e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam [...] os poderíamos empregar de igual modo em todos os usos para que são adequados, tornando-nos assim como que senho-res e donos da natureza.”3

DESCARTES “reclamou a substituição da velha filosofia ‘teó-rica’, isto é, metafísica, por uma nova filosofia ‘prática’, a fim de, assim, nos tornarmos domini et possessores naturae. A ciência, e tam-bém a filosofia, não mais havia de ser cultivada por causa da curiosi-dade, da vontade de saber (S. Tomás de Aquino: desiderium sciendi),

1 KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAuFMAnn, Arthur; hASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do direito e à te-oria do direito contemporâneas. Trad. [da 6. ed. alemã de 1994] Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Revisão científica e coord. António Manuel Hespanha. Lisboa: Ca-louste Gulbenkian, 2002, p. 83-84, com remissão às Meditationes de prima philosophia, Meditatio IV, de 1641.

2 FASSÒ, Guido. Storia della filosofia del diritto. II. l’etá moderna. 2. ed. Roma-Bari: laterza, 2003, p. 78.

3 dEScARTES, René. Discurso do método. Introdução e notas de Étienne Gilson, trad. João Gama, lisboa: Edições 70, 1993, p. 102, item VI.

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mas por causa da avidez de poder da vontade de domínio (Francis Bacon: knowledge is power).”4

O filósofo não se ocupou diretamente do Direito, mas é certo que, conforme explicita VILLEY: “A história do pensamento jurídi-co foi certamente afetada pelo formidável acontecimento que foi o Discurso do Método.”5 Não deixa de ser curioso, no entanto, que o filósofo tenha se bacharelado e licenciado em Direito, em Poitiers.6

O filósofo, a quem muito agradavam as matemáticas, “devido à certeza e evidência das suas razões”7, não nutria nenhum apreço pelo tipo de raciocínio a que recorria a arte jurídica, acusando-a “de se con-tentar com resultados apenas prováveis, ou seja, de nadar no obscuro, no duvidoso, no discutível.”8

O método que o filósofo erigiu, baseado numa regra de evidên-cia racional, de intuições inerentes ao pensamento, teve larga fortu-na entre os juristas que buscavam a segurança e que “fizeram fé nas idéias claras e distintas, na evidência racional dos primeiros princí-pios do direito, na possibilidade da sua extensão através da dedução; enfim, no poder da razão individual para descobrir as regras do justo, de um justo que fugisse à contingência, por se radicar numa ordem ra-cional (quase matemática) da natureza (mathesis universalis), de que a razão participava.”9 ou seja, sobre os juristas que perigosamente pretenderam fundar o direito sobre o pensamento puro10 e que contri-buíram para uma falsa e perniciosa visão do saber jurídico como um conhecimento duro, rigoroso, preciso.11

4 KAUFMANN. A problemática da filosofia do direito ao longo da história [...], cit., p. 84.5 VIllEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. claudia Berliner.

São paulo: Martins Fontes, 2005, p. 601.6 coTTInGhAM, John. A filosofia de Descartes. Trad. Maria do Rosário Sousa Guedes.

lisboa: Edições 70, 1989, p. 23.7 dEScARTES. Discurso do método [...], cit., p. 45.8 VIllEY. A formação do pensamento jurídico moderno [...], cit., p. 601.9 hESpAnhA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia. 2. ed.

[s.l. – portugal]: publicações Europa-América, 1998, p. 149-150.10 VIllEY. A formação do pensamento jurídico moderno [...], cit., p. 607, onde também se

explora a vertente naturalista que o pensamento cartesiano impôs ao pensamento jurídico moderno.

11 para uma abordagem da “construção jurídica entre um saber ‘mole’ e um saber ‘duro’, confira-se: HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justi-ça nos dias e no mundo de hoje. coimbra: Almedina, 2007, p. 609-636

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É precisamente com o propósito de familiarizar o estudante de direito com o pensamento deste importante autor, é que nos propu-semos a publicar a pequena análise introdutória que se segue da sua mais conhecida obra.

Com o propósito de maior fidedignidade ao pensamento do autor, optamos ora pela citação, ora pela paráfrase da obra objeto da exposição. Quando não suficientemente claros os argumentos do filósofo, procedemos à explicitação analítica com respaldo em bi-bliografia acessória de fácil acesso. A divisão dos tópicos seguiu o fracionamento em partes do Discurso, da primeira à quarta, e o nome a eles atribuído seguiu o conteúdo que a estas deu o filósofo, conforme sustentou no prefácio “para bem conduzir a razão e pro-curar a verdade nas ciências”12. As quinta e sexta partes não foram objeto de apreciação.

2 diveRSAS ConSideRAçÕeS SoBRe AS CiÊnCiAS

Inaugura dEScARTES o seu discurso assertando ser o bom senso ou razão, ou ainda, “o poder de distinguir o verdadeiro do falso”, igual em todos os homens, de modo a não provir de serem uns mais razoáveis do que os outros a diversidade das opiniões, mas apenas por conduzirem os homens os próprios pensamentos por vias diversas e por não considerarem as mesmas coisas: “pois não é suficiente ter o espírito bom, mas o principal é aplicá-lo bem” 13.

12 dEScARTES. Discurso do método [...], cit., p. 37.13 dEScARTES. Discurso do método [...], cit., p. 39. Noutro trecho, explicita DESCARTES,

a corroborar a igualdade de todas as razões, que: na comum opinião dos filósofos, não há “mais ou menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos da mesma espécie.” Idem, p. 40. consoante comentos de GIlSon: “a formaIdem, p. 40. consoante comentos de GIlSon: “a formaconsoante comentos de GIlSon: “a forma de uma substância define-lhe a espécie: ser um homem é possuir uma alma racional. Os acidentes da substância distinguem os indivíduos no seio de uma mesma espécie: a gran-deza, a cor, a ciência, etc., de um determinado homem fazem com que seja tal homem distinto de cada um dos outros indivíduos. logo, só se pode ser homem (isto é: racional) ou não ser; mas pode igualmente ser-se homem (isto é: igualmente racional): possuindo mais ou menos memória e imaginação do que outros homens, porque não é nem a memó-ria, nem a imaginação que definem a nossa humanidade”. GILSON, Étienne. Nota (15) da primeira parte In: dEScARTES. Discurso [...], cit., p. 40.

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Segundo Étienne Gilson, em comentário a este trecho, “o ca-ráter mais patente da reforma cartesiana é precisamente substituir uma confiança exclusiva dos dons do espírito pela arte de guiar a razão de evidência em evidência. o método diminui, portanto, a desigualdade dos espíritos sem chegar, contudo, a suprimi-la”14, porquanto, é também do talhe de dEScARTES a assertiva de que “sem ter mais espírito do que o comum das pessoas, não se deve esperar fazer algo de extraordinário no que diz respeito às ciências humanas”15.

Julga-se dEScARTES muito afortunado por se haver, desde jo-vem, encontrado em certos caminhos que o levaram a considerações e máximas a partir das quais pode constituir um método cuja aplicação é capaz de aumentar gradualmente seu conhecimento e de o elevar, pouco a pouco, ao mais alto grau que a mediocridade do seu espírito – consoante modestamente diz – e a curta duração da sua vida lhe permitirão chegar.

Assim, diz ser seu propósito não o ensinar o método que cada qual deve seguir para conduzir a própria razão, mas apenas mostrar de que maneira procurou conduzir a sua.

diz dEScARTES de sua formação, que preencheu por se o ha-verem persuadido que por meio dela se poderia adquirir um conheci-mento claro e seguro de tudo quanto é útil à vida. Mas que, conquanto em seu termo é costume ser-se acolhido na categoria dos doutos, por encontrar-se embaraçado com tantas dúvidas e erros, mudou dES-cARTES completamente de opinião, parecendo-lhe não haver tirado

14 nota (6) da primeira parte. In: op. cit., p. 3915 Apud GIlSon. nota (37) da segunda parte. In: op. cit., p. 54. no trecho em que se insere

esta nota surpreendentemente disserta dEScARTES sobre as espécies de espíritos que têm “bastante razão [...] para julgarem que são menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros” (op. cit., p. 54, acrescida de destaque), ou seja, de acordo com a própria sinonímia pelo autor fixada (op. cit., p. 39), espíritos que seriam providos de menor razão ou bom senso, em aparente contradição. Todavia, interpreta GIlSon o referido trecho, na mesma nota já citada, afirmando que “todos os homens são igualmente racionais e, por consequência, igualmente capazes de distinguirem o verdadeiro do falso quando lhes é demonstrado. Mas nem todos são capazes do esforço de invenção que con-siste em descobrir o verdadeiro entre a grande quantidade de erros com que o seu espírito está atravancado” (destacou-se): variariam os espíritos, mas não a razão, que juntamente com “a memória, a imaginação e todas as outras faculdades que concorrem para o exer-cício do pensamento” compõem-nos. Vide GIlSon, nota (8) da primeira parte. In: op. cit., p. 40, da qual se extraiu o último trecho reproduzido.

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outro proveito ao tentar-se instruir, senão o de ter realçada a própria ignorância.

Deixando o estudo das letras, pôs-se a viajar e a buscar a ciência no “grande livro do mundo”. notando, contudo, nos costumes dos homens quase tanta diversidade como a que encontrara nas opiniões dos filósofos, decidiu-se pela busca da verdade unicamente em si e no próprio pensamento.

3 pRinCipAiS ReGRAS do MÉtodo

Recluso aos próprios pensamentos, por força do inverno, de-parou-se dEScARTES com a idéia de que “não há tanta perfeição nas obras compostas por várias partes e feitas pelas mãos de diversos mestres como naquelas em que só um trabalhou”16. “donde concluiu que o seu primeiro dever era renunciar completamente a todas as opi-niões que até então lhe tinham ensinado e cujas proveniências eram muito díspares, para as substituir por aquelas que a própria razão le-gitimaria”17.

procurando, pois, um método, com reduzido número de má-ximas, que fosse capaz de compreender as vantagens da lógica, da análise geométrica e da álgebra e que, contudo, pudesse se isentar dos defeitos destas, julgou dEScARTES encontrá-lo nas seguintes quatro regras:

(1) “nunca aceitar como verdadeira alguma coisa sem a conhe-cer evidentemente como tal: isto é, evitar cuidadosamente a preci-pitação e a prevenção: em não incluir nos nossos juízos senão o que se apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida”18.

nesta primeira regra, dita regra da evidência, segundo Reale e Antiseri, trata dEScARTES de um ato intuitivo ou intuição, trata de um “ato que se autofundamenta e se autojustifica, porque sua garantia

16 op. cit., p. 50.op. cit., p. 50.17 GIlSon, Étienne. Análise do discurso do método.GIlSon, Étienne. Análise do discurso do método.Análise do discurso do método. In: dEScARTES. Discurso [...],

cit., p. 30.18 op. cit., p. 57.

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não repousa sobre uma base qualquer de argumentação, mas somente sobre a transparência mútua entre a razão e o conteúdo do ato intuiti-vo”, trata “daquela idéia clara e distinta que reflete ‘unicamente a luz da razão’, não ainda conjugada com outras idéias, mas considerada em si mesma, intuída e não argumentada”19. “É evidente tudo aquilo cuja ver-dade aparece ao nosso espírito de uma maneira imediata”, é o não falso e o não só provável; a regra da evidência elimina, portanto, do domínio da filosofia tudo o que é verossímil, com que se contenta a dialética de Aristóteles, e conserva unicamente as verdades necessárias do tipo ma-temático; aquelas a que toda a razão humana se sente forçada a dar a sua adesão”20. A “evidência é o que salta aos olhos, é aquilo de que não pos-so duvidar, apesar de todos os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos de dúvida, uma evidência resíduo, o produto do espírito crítico. não, como diz bem Jankélévitch, ‘uma evidência juvenil, mas quadra-genária’”21. consoante ainda aqueles autores, o objetivo das outras três regras seria chegar à por eles referida “transparência mútua”22.

(2) “dividir cada uma das dificuldades que eu havia de examinar em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor as resolver.”23

É a defesa do método analítico, único que pode levar à evidên-cia, porque, desarticulando o complexo no simples, permite à luz do intelecto dissipar as ambigüidades. [...] chega-se às grandes conquistas etapa após etapa, parte após parte. Esse é o caminho que permite escapar às presunçosas generalizações. E, como toda dificuldade o é porque o verdadeiro está misturado com o falso, o procedimento analítico deveria permitir libertar o primeiro das escórias do segundo24.

(3) “conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pe-los objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco

19 REAlE, Giovanni; AnTISERI, dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. V. 2. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção filosofia), p. 361.(Coleção filosofia), p. 361.

20 GIlSon. nota (51) da segunda parte. In: op. cit., pp. 56/57.21 VERGEZ, André e huISMAn, denis. História dos filósofos ilustrada pelos textos. Trad.

lélia de Almeida Gonzales. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p. 141.22 op. cit., p. 362.23 dEScARTES. op. cit., p. 57.24 REAlE; AnTISERI. op. cit., p. 362.

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a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos; e supondo mesmo certa ordem entre os que não se precedem natural-mente uns aos outros”25.

É a dita regra da síntese:

é necessário recompor os elementos em que foi decomposta uma realidade. Trata-se de uma síntese que deve partir de elementos absolutos (ab-solutus) ou não dependentes de outros e direcionar-se para os elementos relativos ou dependentes, dando lugar assim a um encadeamento que ilumina os nexos do conjunto. [...] Quan-do essa ordem não existe, é preciso supô-la como a hipótese mais conveniente para interpretar e expressar a realidade efetiva. [...]

Mas qual a importância da síntese? ‘pode parecer que, nesse duplo trabalho, não emerja nada de verdadeiramente novo, já que, no fim, encontramos o mesmo objeto do qual partimos. Na realidade, porém, não se trata mais do mesmo objeto: trata-se do composto reconstruído, isto é, permeado pela luminosidade transparente do pensamento. uma coisa é um fato bruto, outra é um saber como ele é feito, pois entre os dois existe a mediação do conhecimento’ (de Ruggiero).26

(4) “fazer sempre enumerações tão íntegras, e revisões tão ge-rais que tivesse a certeza de nada omitir.”27

“para impedir qualquer precipitação, que é a mãe de todos os er-ros, é preciso verificar cada uma das passagens. [...] Portanto, enume-ração e revisão: a primeira verifica se a análise é completa; a segunda verifica se a síntese é correta”28.

Dessas regras, em seguida à sua exposição, diz DESCARTES, em fundamental trecho: “Estas longas cadeias de razões, completa-mente simples e fáceis, de que os geómetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, tinham-me sugerido que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento do homem se en-

25 dEScARTES. op. cit., pp. 57/58.26 REAlE; AnTISERI. op. cit., p. 363. com similar interpretação à enlevada no primeiro

parágrafo reproduzido: GIlSon. notas (55), (56) e (57) da segunda parte. In: op. cit., pp. 57/58.

27 dEScARTES. op. cit., p. 58.28 REAlE e AnTISERI. op. cit., p. 363.op. cit., p. 363.

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cadeiam da mesma maneira e que, com a condição de simplesmente nos abstermos de aceitar como verdadeira alguma coisa que o não seja, o de observarmos sempre a ordem necessária para as deduzir umas das outras, nenhumas pode haver tão afastadas a que por fim não se chegue, nem tão ocultas que não se descubram”29.

Em nota a este trecho, explicita-o Gilson: “Fórmula muito dis-creta, mas que marca realmente o passo decisivo efectuado pelo pen-samento cartesiano: tudo o que se pode tornar objecto de conhecimen-to verdadeiro, pode, por definição, tornar-se objecto de conhecimento matemático”30.

Reconhecendo dEScARTES os objetos matemáticos como os mais simples e mais fáceis de conhecer aplicou a eles o seu método.

Manifesta o filósofo, no parágrafo que encerra essa segunda par-te do discurso, que mais se contentava com o método por ter certeza de, por seu meio, “usar em tudo a própria razão, se não perfeitamente, pelo menos o melhor que podia”. E também, por pela sua prática, a habituar pouco a pouco o próprio espírito a “conceber mais nítida e distintamente os seus objectos”. Tendo, todavia, notado dEScARTES que os princípios do método “se deveriam derivar todos da filosofia, na qual [...] não encontrara ainda nenhuns certos”, pensou o filósofo ser preciso, antes de tudo, esforçar-se “por nela os estabelecer; e sen-do isso a coisa mais importante do mundo e onde a precipitação e a prevenção são mais para temer”, resolveu não “tentá-lo antes de ter atingido uma idade muito mais madura do que a dos vinte e três anos, que então tinha”31.

4 ReGRAS dA MoRAL pRoviSÓRiA

A ação não pode esperar que a filosofia engendre uma nova mo-ral, portanto, “a fim de não ficar irresoluto” na própria conduta”, en-quanto a razão o “obrigasse a sê-lo nos juízos, e para não deixar de vi-ver o mais felizmente possível a partir de então”, formou dEScARTES

29 op. cit., p. 58.op. cit., p. 58.30 nota (60), initio, da segunda parte. In: op. cit., p. 58.31 op. cit., p. 61.op. cit., p. 61.

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para si próprio “uma moral provisória, apenas constituída por três ou quatro máximas”32, que passa a expor:

“A primeira era obedecer às leis e aos costumes do meu país, con-servando firmemente a religião na qual Deus me deu a graça de ser instruí-do desde a infância e conduzindo-me em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero que fossem geralmente aceites ou postas em prática pelos mais sensatos com quem teria de viver. [...] E, particularmente, incluía entre os excessos todas as promessas pe-las quais se diminui algo da própria liberdade. [...] porque, no meu caso particular, prometia a mim próprio aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e não os tornar piores, pensaria cometer uma grande falta contra o bom senso se, pelo facto de ter aprovado então alguma coisa, me julgasse obrigado a considerá-la depois ainda boa, quando talvez tivesse deixado de o ser, ou eu tivesse deixado de a considerar como tal”33.

na visão de Reale e Antiseri, “distinguindo entre a contemplação e a busca da verdade, por um lado, e as exigências cotidianas da vida, por outro, Descartes para a verdade, exige a evidência e a distinção, que, se alcançadas, nos dão o juízo; já para as segundas considera sufi-ciente o bom senso, expresso pelos costumes do povo junto ao qual se vive. no primeiro caso, é necessária a evidência da verdade; no segun-do, é suficiente a probabilidade’’34, a verossimilhança.

“A minha segunda máxima era a de ser o mais firme e o mais resoluto que pudesse nas minhas acções e, uma vez que me tivesse decidido, não seguir menos firmemente do que as seguiria, se fossem muito seguras, as opiniões mais duvidosas”35.

Esta regra pragmática posta-se à suplantação das protelações, in-decisões e incertezas36. É, contudo, à primeira vista, antinômica com o desenvolvimento da primeira máxima no concernente à limitação da

32 dEScARTES. op. cit., p. 63.33 Id. Ibid., p. 63/64.34 op. cit., p. 388. o termo bom senso, neste trecho empregado, obviamente não referencia

a razão. No mesmo sentido deste trecho diz GILSON: “O verossímil é eliminado da fi-losofia pelo primeiro preceito do método [...]; conservava, contudo, o seu lugar na moral provisória, onde não se trata de saber o que é verdadeiro, mas de conseguir, na prática, ser feliz”. nota (6) da terceira parte. In: op. cit., p. 64.

35 dEScARTES. op. cit., p. 65.36 REAlE; AnTISERI. op. cit., p. 389.

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liberdade pessoal. Quiçá amenize ou dissolva a contraposição o comen-tário de Gilson àquela regra: “deve seguir-se a opinião teoricamente duvidosa quando as exigências da prática exigem uma decisão imediata e não se conheça outra mais certa. A partir do momento em que a adop-temos, ainda que teoricamente continue duvidosa para o entendimento, a vontade deve aderir-lhe tão inflexivelmente como se fosse, com toda a evidência, verdadeira. E até se pode dizer que ela é, com efeito, muito verdadeira e certa, relativamente à nossa vontade, porque, não conhe-cendo o nosso entendimento nada de melhor, não temos nenhuma razão para a mudar”37. para dEScARTES, “julgar é uma função da vontade, ao passo que conhecer é uma função do entendimento”38: conhecidas razões para a substituição da vontade normadora por outra melhor, por mais verdadeira, cessa a atuação daquela.

Continua o filósofo: “A minha terceira máxima era procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, ge-ralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que de-pois de ter procedido o melhor possível, em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível. E isto, por si só, parecia-me ser suficiente para me impedir, futuramente, de desejar algo que não pudesse adquirir e, assim, tornar-me contente”39.

Mais adiante, prossegue dEScARTES, com dizeres nos quais identificam Reale e Antiseri40 uma quarta máxima comportamental do filósofo: “Finalmente, para conclusão dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações que os homens têm nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem nada querer dizer das dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era prosseguir naquela em que, de momento, me encontraram, isto é, empregar toda a vida a cultivar a razão e a avançar, o mais que pudesse, no conhecimento da verda-de, seguindo o método que me tinha imposto”41. com este propósito

37 nota (12) da terceira parte. In: op. cit., pp. 65/66.38 GIlSon. nota (5) da terceira parte.GIlSon. nota (5) da terceira parte.nota (5) da terceira parte. In: op. cit., p 64.39 dEScARTES. op. cit., p. 66.op. cit., p. 66.40 op. cit., p. 389.op. cit., p. 389.41 dEScARTES. op. cit., p. 67. GIlSon – Análise (...), cit., p. 31 – , VERGEZ e huISMAn

– op. cit., p. 145 – não elevam esta dedicação de DESCARTES a uma quarta máxima.

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dedicou dEScARTES nove outros anos a viagens e ao exercício de seu método.

É certo que a construção das três primeiras máximas justifica-a dEScARTES ao fundá-las senão no propósito que tinha de conti-nuar a instruir-se. Era o querer afastar-se da angústia e das disputas para a manutenção da tranqüilidade necessária à consecução de seu desiderato e, assim, fazer-se feliz42: julgava-se o filósofo tanto mais obrigado a poupar o tempo que ainda lhe restava quanto maior era “a esperança de o poder empregar bem”43.

Todavia, não menos correto que, conforme mesmo o comprovam excertos de sua correspondência pessoal e de uma sua outra posterior obra, o Tratado sobre as paixões, delineam os maiores marcos da moral definitiva cartesiana os preceitos da provisória44.

Assina GIlSon que “cada regra proposta pela moral provisó-ria, como uma receita empírica para assegurar na prática as maiores possibilidades da felicidade, encontrar-se-á na moral definitiva como regra nacional justificada sob o ponto de vista da razão”45. deste modo, consoante ainda o escólio deste comentador, “na moral definitiva, o sá-bio, doravante na posse dos verdadeiros princípios, não regulará a sua conduta a não ser pela exigência da própria razão, esforçando-se ‘sem-pre por se servir o melhor possível do seu espírito para conhecer o que deve ou não fazer em todas as ocorrências da vida’46; a segunda máxima “passará tal qual para a moral definitiva; mas, em vez de nela existir a

42 Segundo GIlSon, em parte de nota aposta a outro trecho: “descartes julga com os estóicos, que a felicidade consiste na satisfação de todos os desejos racionais e na certeza correlativa de que os nossos desejos não satisfeitos são impossíveis de satis-fazer, portanto, contrários à razão. Mas é uma característica distinta do cartesianismo que o problema da conduta da vida se confunda nele com o problema da conduta do pensamento. descartes leva a cabo, aqui, como uma transposição do estoicismo e fá-lo passar do plano da prática para o do conhecimento: a aquisição de toda a verdade acessível ao homem torna-se a condição principal da felicidade”. nota (73) da segunda parte. In: op. cit., p. 61.

43 Op. cit., p. 106. Isto diz DESCARTES ao expor uma das razões que o dissuadiram de publicar os fundamentos de sua física, a obra o Mundo, que não teria vindo ao lume em virtude da condenação de Galileu, de cujas doutrinas parcialmente comungava, a despei-to de o não explicitamente frisar no Discurso, cit., p. 101.

44 REAlE e AnTISERI. op. cit., p. 388.45 nota (2) da terceira parte. In: op. cit., p. 63.46 nota (4) da terceira parte. In: op. cit., p. 64.

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resolução de seguir com constância toda a opinião uma vez adoptada, terá como resultado a resolução de seguir com constância qualquer opinião aconselhada pela razão”, sendo, na filosofia de dEScARTES, “a firmeza desta resolução” o que “constitui a própria essência da virtude”47; e, a terceira regra, completar-se-á na moral definitiva “com a doutrina que faz do livre arbítrio do homem a semelhança mais ime-diata entre deus e ele, e do bom uso deste livre arbítrio a sua mais alta virtude”48.

Assertam Reale e Antiseri que “o conjunto torna evidente a orientação da ética cartesiana, isto é, a lenta e trabalhosa submissão da vontade à razão, como força guia de todo homem. [...] A liberdade da vontade só se realiza através da submissão à lógica da ordem que o intelecto é chamado a descobrir, dentro e fora de si [...] Em descartes, predomina o amor pela necessidade do verdadeiro, cuja lógica, uma vez alcançada, se impõe com a força da razão. Somente sob o peso da verdade é que o homem pode se considerar livre, no sentido de obe-decer a si mesmo e não a força exteriores. Se o ‘eu’ é definido como res cogitans, seguir a verdade significa seguir no fundo a si mesmo, na máxima unidade interior e no pleno respeito à realidade objetiva. O primado da razão deve se impor tanto no campo do pensamento como no da ação”49.

Outrossim, com a conjugação das primeira e segunda máxi-mas, vislumbra-se a abertura da razão cartesiana à experiência e ao aprendizado, ao contrário da histórica razão kantiana50, de modo a bem ilustrá-la os dizeres de lefebre, os quais destacam pretender dEScARTES “utilizar a ação para aperfeiçoar a razão e utilizar a razão para aperfeiçoar a ação: [...] fórmula de uma sabedoria concebida como elevação do pensamento na vida e da vida no pen-samento”51.

47 nota (10) da terceira parte. In: op. cit., p. 65.48 nota (14) da terceira parte. In: op. cit., p. 66.49 Op. cit., pp. 389/390. Sobre a definição cartersiana do eu, vide o próximo tópico.Op. cit., pp. 389/390. Sobre a definição cartersiana do eu, vide o próximo tópico.Sobre a definição cartersiana do eu, vide o próximo tópico.50 XAVIER HERRERO. A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática transcen-

dental. Belo horizonte: Síntese Nova Fase, n. 52, 1991, p. 44.51 Apud REAlE e AnTISERI. op. cit., p. 390.

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5 ConSideRAçÕeS FinAiS: FundAMentoS dA MetAFÍSiCA: RAZÕeS pRoBAnteS dA eXiStÊnCiA de deuS e dA ALMA HuMAnA

Estas razões, apresenta dEScARTES, na quarta parte do dis-curso. Os argumentos metafísicos aí apresentados e largamente ex-pandidos na obra prima do filósofo, as Meditações metafísicas, publi-cada quatro anos depois, em 1641, constituem o centro filosófico do sistema cartesiano52.

porque desejava dedicar-se apenas à procura da verdade, pen-sou o filósofo que era forçoso que rejeitasse, como absolutamente fal-so, tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, depois disso, não ficaria alguma coisa em sua crença, que fosse inteiramente indubitável53. Todavia, no momento mesmo em que pen-sava que tudo era falso, era de todo necessário que ele, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: penso; logo, existo, era tão firme e tão certa, julgou que a poderia aceitar como primeiro princípio da filosofia que procurava54.

desse princípio dessume dEScARTES que, por apreender sua existência somente enquanto pensa, é ele uma substância unicamente pensante, ou alma, cuja essência ou natureza, enquanto tal, independe de qualquer coisa material e é “inteiramente distinta do corpo”55.

Do primeiro princípio dessume também o filósofo os critérios para o aferimento da verdade e da certeza: porque só se o pode afirmar como verdadeiro por ser claro e distinto, elevam-se clareza e distinção a atributos distintivos do veraz.

52 coTTInGhAM, John. descartes, René.coTTInGhAM, John. descartes, René. In: hondERIch, Ted (Ed.). The oxford com-panion to philosophy. Oxford – New York: Oxford University Press, 1995, p. 189.

53 dEScARTES. op. cit., p. 73. Esta postura de dEScARTES de provisoriamente consi-dEScARTES. op. cit., p. 73. Esta postura de dEScARTES de provisoriamente consi-Esta postura de dEScARTES de provisoriamente consi-derar como falsas todas as nossas opiniões passadas, a dita dúvida metódica, consoante GIlSon, teria de proveitoso os seguintes: “É que, sendo absoluta [a dúvida], o que poderemos afirmar como verdadeiro não obstante ela só poderá ser de uma absoluta evidência; e, sendo universal, a primeira verdade que poderemos afirmar depois dela será necessariamente a única que não depende de nenhuma outra; será anterior a toda a verdade, e toda a verdade dela dependerá necessariamente; numa palavra, será o primeiro princípio da filosofia”. Introdução. In: dEScARTES. Discurso [...], cit., p. 12.

54 dEScARTES, op. cit., p. 74.55 dEScARTES, op. cit., p. 75.

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deduzidas estas consequências, tendo-se dEScARTES como algo imperfeito, porque duvidava, mas que compartia da idéia de per-feição, pensou que lhe advinha esta idéia de um ser mais perfeito do que o seu, porquanto mais no efeito não pode haver do que na causa, e do dependente ou imperfeito não pode provir a perfeição. conclui, pois, da existência de Deus.

De acordo com o que explicita Gilson: “um ser que tem a idéia de perfeito e que, apesar de tudo, não é perfeito não pode a si mesmo ter dado a existência; sem o que teria a si mesmo dado todas as perfei-ções de que tinha a idéia; ora, somos seres imperfeitos que possuem a idéia de perfeito; logo deve existir um autor do nosso ser e desta idéia, que é deus. Simultaneamente, parece que a natureza de deus está subtraída a toda imperfeição, que não tem nenhum defeito, e tudo o que existe depende dele, de tal maneira que nada poderia subsistir um só momento sem ele.”

“Uma vez estabelecida a existência de Deus, o pensamento pode voltar-se para as coisas exteriores que pôs em dúvida com tudo o mais. Mas, ao procurar o que concebemos distintamente na matéria, pensamos na extensão geométrica e nos teoremas que a seu respeito demonstramos. O que sugere uma nova prova da existência de Deus. Toda a certeza das demonstrações geométricas assenta, com efeito, em as concebermos evidentemente; ora, examinando a idéia de um ser perfeito, descobre-se que a existência está aí tão necessariamente compreendida como qualquer propriedade do triângulo na do triângu-lo; logo, Deus existe”.

“Adquirida doravante esta certeza, a existência do mundo ex-terior não experimenta qualquer dificuldade. O Deus, cuja existên-cia provamos, é perfeito, portanto, verídico; ora, enganar-nos-ia se as nossas idéias claras e distintas fossem apesar de tudo falsas; logo, cabe-nos acautelar-nos contra as sensações confusas e obscuras ou as ilusões de toda a espécie de que podemos ser vítimas. Estamos certos de não cometer erro algum afirmar que a extensão geométrica existe, isto é, é a única coisa do mundo exterior que percebemos clara e dis-tintamente”56.

56 GILSON. Introdução, cit., p. 32, de quem valeu-se para a exposição do intrincado racio-cínio metafísico de dEScARTES.

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Expendida a linha do raciocínio metafísico cartesiano, paira, to-davia, uma questão: se se precisa provar a existência de Deus a fim de assegurar a confiabilidade do entendimento humano, como se pode estar seguro da confiabilidade das razões necessárias para o estabele-cimento de sua existência em primeiro lugar57?

6 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

coTTInGhAM, John. A filosofia de Descartes. Trad. Maria do Ro-sário Sousa Guedes. lisboa: Edições 70, 1989.coTTInGhAM, John. René descartes. In: hondERIch, Ted (Ed.). The oxford companion to philosophy. Oxford–New York: Oxford Uni-versity press, 1995, p. 188/192.dEScARTES, René. Discurso do método. Introdução e notas deIntrodução e notas de Étienne Gilson, trad. João Gama, Lisboa: Edições 70, 1993, (Textos filosóficos).FASSÒ, Guido. Storia della filosofia del diritto. II. l’etá moderna. 2. ed. Roma-Bari: laterza, 2003.GIlSon, Étienne. Análise do discurso do método. In: dEScARTES, René. Discurso do método. Introdução e notas de Étienne Gilson, trad. João Gama, Lisboa: Edições 70, 1993, (Textos filosóficos).GIlSon, Étienne. Introdução. In: dEScARTES, René. Discurso do método. Introdução e notas de Étienne Gilson, trad. João Gama, lis-boa: Edições 70, 1993, (Textos filosóficos).GIlSon, Étienne. notas. In: dEScARTES, René. Discurso do mé-todo. Introdução e notas de Étienne Gilson, trad. João Gama, lisboa: Edições 70, 1993, (Textos filosóficos).hESpAnhA, António Manuel. O caleidoscópio do direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. coimbra: Almedina, 2007.

hESpAnhA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia. 2 ed. [s.l. – portugal]: publicações Europa-América, 1998.

57 AnToInE ARnAuld.AnToInE ARnAuld. Apud: coTTInGhAM. In: descartes […], cit., p. 190.

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KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. In: KAuFMAnn, Arthur e hASSEMER, Winfried. In-trodução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Trad. [da 6. ed. alemã de 1994] Marcos Keel e Manuel Seca de oli-veira. Revisão científica e coord. António Manuel Hespanha. Lisboa: calouste Gulbenkian, 2002.

REAlE, Giovanni; AnTISERI, dario. História da filosofia: do huma-nismo a Kant. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1990. (Coleção filosofia). V. 2

VERGEZ, André; huISMAn, denis. História dos filósofos ilustrada pelos textos. Trad. lélia de Almeida Gonzales. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.

VIllEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. claudia Berliner. São paulo: Martins Fontes, 2005.

XAVIER HERRERO. A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática transcendental. Belo horizonte: Síntese Nova Fase, n. 52, 1991, p. 35/57.

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A AuTonoMIA pRIVAdA nA pERSpEcTIVA do ESTAdo dEMocRÁTIco dE dIREITo

cIMon hEndRIGo BuRMAnn dE SouZA1

Sumário

1. Introdução. 2. A autonomia privada em face do Estado liberal. 2.1 o declínio do Estado liberal. 3. A autonomia privada em face do Estado Social. 3.1 Aspectos históricos 3.2 As repercussões no campo obrigacional. 3.3 A falência do Estado Social. 4. A autonomia privada em face do Estado democrático de direito. 4.1 As críticas à filosofia da consciência. 4.2 A proposta de heidegger. 4.3 A contribuição de habermas. 4.4 Teoria proposta. 5. conclusão. 6. Re-ferências bibliográficas.

Resumo A autonomia privada é, sem dúvida alguma, um dos mais im-

portantes conceitos não apenas do direito civil, mas do ordenamento jurídico como um todo. Acontece, porém, que a maior parte dos es-tudos até então realizados a respeito do tema leva em conta ora uma perspectiva liberal, ora uma perspectiva paternalista, típica do Esta-

1 A Michelle, minha esposa e meu amor, sem a qual nada disso faria sentido. A meus queri-dos amigos césar Fiuza e Rodolpho Barreto, minha eterna gratidão pelo carinho e apoio, fundamentais para meu crescimento acadêmico.

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 117-144 2008

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do Social, sendo inegável, portanto, a necessidade de mudanças. daí, aliás, o propósito do presente trabalho: apresentar uma releitura da autonomia privada, visando adaptá-la ao contexto atual, superando também um paradigma filosófico em franco declínio, que é a filosofia da consciência. para tanto, passa-se a concebê-la de uma forma mais ampla, conferindo às partes não apenas a possibilidade de fixar, in abstrato, as cláusulas contratuais que irão reger suas relações, mas, principalmente, o poder de discutir concretamente o sentido que elas deverão assumir e a melhor solução para os problemas surgidos ao longo da execução da relação contratual.pAlAVRAS-chAVE: Autonomia Privada. Filosofia da Consciência. Relação contratual.

AbstractThe private autonomy is undoubtedly one of the most impor-

tant concepts not only for civil law but the legal system as a whole. however, that most studies conducted so far on the subject takes into account a liberal perspective or a paternalistic approach, typical of the welfare state, been undeniable, therefore, the need for change. hence, in fact, the purpose of this work: to present a rereading of the private autonomy, for adapting it to the current context, also surpas-sing a philosophical paradigm in decline, which is the philosophy of consciousness. For both, is to design it to a larger extent, giving the parties the opportunity not only to determine, in abstract, contractual terms that will govern their relations, but mainly the power to discuss specifically the sense that they should take and the best solution to the problems encountered during the execution of the contract.KEYWoRdS: private autonomy. philosophy of consciousness. con-tract relationship.

1 intRodução

o presente trabalho propõe-se a discorrer sobre a autonomia privada na perspectiva do Estado democrático de direito, entre nós consagrada pela constituição de 1988. Antes, porém, visando a uma melhor compreensão do tema, cumpre efetuar uma breve análise

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histórica, analisando as transformações sofridas pelo instituto ao longo do tempo.

A esse respeito, é de fundamental importância ressaltar as ca-racterísticas do objeto do presente estudo em face de dois paradigmas estatais distintos: o liberal e o social. com isso, pretendemos com-preender seu sentido e limites, sobretudo a partir do novo modelo de Estado consagrado pelo Texto Constitucional de 88.

por outro lado, é importante frisar que a maioria das pesquisas realizadas até o presente momento sobre o tema está fundada em uma perspectiva paternalista, típica do Estado Social. Tal postura, porém, não mais se justifica. Mesmo porque vivemos sob a égide do Estado democrático de direito, o qual, embora também esteja voltado para a inclusão social, o faz de forma menos paternalista que o modelo anterior. daí a necessidade de uma releitura dos principais conceitos e institutos presentes no ordenamento jurídico pátrio, como é o caso da autonomia privada.

nesse sentido, é inegável que boa parte dos conceitos utiliza-dos pelo Direito Civil teve origem no Direito Romano, em contexto, portanto, completamente diverso do atual, sendo nítido seu caráter individualista e liberal.

Sendo assim, é premente a necessidade de evolução. É passada a hora de adaptarmos os principais institutos jurídicos ao contexto atual. E é exatamente esse o objetivo do presente trabalho, contribuir para uma releitura deste que é, sem dúvida alguma, um dos mais im-portantes institutos de todo o direito: a autonomia privada.

2 A AutonoMiA pRivAdA eM FACe do eStAdo LiBeRAL

A autonomia privada, tradicionalmente denominada de autono-mia da vontade, é um dos princípios fundamentais do direito, sobre-tudo do direito obrigacional, a partir do qual se estruturam institutos de grande valor para todo o ordenamento jurídico, como o contrato, a propriedade privada e a própria família. Apesar da importância, no entanto, até o presente momento poucos são os estudos realizados a respeito do tema (pelo menos na perspectiva ora proposta).

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nesse sentido, muito se tem discutido a respeito do verdadeiro papel da vontade na formação dos contratos. Classicamente, define-se contrato (ou negócio jurídico de um modo geral) como a manifesta-ção ou acordo de vontades que tem por fim a produção de efeitos ju-rídicos, os quais decorreriam diretamente dessa vontade manifestada. daí falar-se em autonomia da vontade (em vez de autonomia priva-da), entendida como o poder atribuído pelo ordenamento jurídico à vontade exteriorizada, no intuito de criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica.

Tamanha a importância atribuída a esse conceito que se tornou corrente o entendimento de que “o homem só pode ser vinculado pe-las obrigações que ele próprio, voluntariamente, haja assumido.”2

É evidente, porém, que todo esse prestígio atribuído à vontade está fundado nos valores consagrados pelo liberalismo econômico, o qual, além de defender a não-ingerência do Estado na economia, sustentava uma liberdade quase absoluta às partes para que pudessem manifestar validamente sua vontade. por isso mesmo, essa idéia foi amplamente acolhida pelos códigos civis que se seguiram à Revo-lução Francesa, dentre os quais merecem destaque especial o código civil Francês, de 1804, e o código Alemão, que entrou em vigor so-mente em 19003.

o papel atribuído à vontade gozava de tanto prestígio entre os ci-vilistas que passou a ser visto como verdadeiro dogma, pressuposto de todo o direito obrigacional, o qual tinha na vontade sua principal fonte.

2 noRonhA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus princípios fundamentais. São paulo: Saraiva, 1994, p. 43.

3 o código civil alemão foi promulgado em 1896, mas entrou em vigor somente em 1º de janeiro de 1900, o que evidencia um período bastante longo de vacatio legis (04 anos). Na realidade, o BGB (abreviação da expressão alemã Burgerlich Gesetzbuch) caracte-riza-se por um processo bastante longo em todas as fases de sua criação. Ao contrário do código civil francês, promulgado a partir de um projeto elaborado em 04 meses e discutido durante 102 sessões no conselho de Estado, o BGB pressupôs vários anos de trabalhos e debates, tendo os trabalhos sido iniciados em 1874, terminando apenas em 1896, quando o Código foi finalmente votado e aprovado. Dentre as características que o distinguiam dos demais está sua divisão em duas partes distintas: uma geral e outra especial. Estrutura que foi adotada por grande parte dos códigos que se seguiram ao modelo alemão, dentre eles o código civil brasileiro, de 1916, bem como o código de 2002. WIEAcKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. lisboa: calouste Gulbenkian, 2004, p. 536-542.

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Seu fundamento encontrava-se assentado na idéia de que a justiça nas relações obrigacionais decorria exclusivamente da liberdade atribuída às partes para negociarem livremente as cláusulas contratuais.

Tal postura deve-se à crença de que todas as pessoas capazes estavam em igualdade de condições para estabelecer os termos dos regulamentos contratuais. Trata-se, é óbvio, de uma igualdade mera-mente formal, que desconsidera a realidade social dos participantes das relações obrigacionais.

Nesse contexto, o Estado, de acordo com o ideário liberal, deve-ria permanecer à margem das relações econômicas, intervindo apenas quando a vontade fosse emitida com algum vício. daí a grande im-portância atribuída aos vícios do consentimento (erro, dolo, coação), nesse período.

Sendo, contudo, emitida livremente, sem qualquer dos vícios anteriormente apontados, a vontade seria apta a vincular as partes en-volvidas, transformando-se em lei entre elas.

daí, portanto, o surgimento de outro princípio marcante do Es-tado Liberal, tão bem sintetizado por meio da expressão pacta sunt servanda, ou seja, os pactos devem ser observados. Idéia que reforça ainda mais a crença na vontade como causa determinante dos víncu-los obrigacionais.

nesse sentido, ao ressaltar as características do Estado liberal, observa José luiz Quadros de Magalhães que:

Em linhas gerais, o Estado liberal caracteriza-se pela omissão perante os problemas sociais e econômicos, não consagrando di-reitos sociais e econômicos no seu texto além da regra básica de não-intervenção no domínio econômico. As constituições liberais declaram os direitos individuais, entendidos como direitos que re-gulam condutas individuais e protegem a esfera de interesses indi-viduais, contra o Estado, sendo o limite desses direitos o direito do outro, além de assegurarem ainda os direitos políticos.4

outra característica do Estado liberal, agora apontada por nor-berto Bobbio, diz respeito à crença na certeza do direito, a qual, se-gundo ele, só é alcançada quando existe um corpo estável de leis, e

4 MAGAlhÃES, José luiz Quadros de. Direito Constitucional. 2. ed. Belo horizonte: Mandamentos, 2002, p. 63. Tomo I.

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aqueles que devem resolver as controvérsias se fundam nas normas nele contidas e não em outros critérios. caso contrário, a decisão se torna arbitrária e o cidadão não pode mais prever com segurança as conseqüências das próprias ações (recordem-se as célebres palavras ditas por Montesquieu e Beccaria a este respeito). A exigência da se-gurança jurídica faz com que o jurista deva renunciar a toda contribui-ção criativa na interpretação da lei, limitando-se simplesmente a tor-nar explícito, através de um procedimento lógico (silogismo), aquilo que já está implicitamente estabelecido na lei.5

A difusão desse modelo liberal de Estado justifica-se plenamen-te quando levamos em conta os anseios da classe então emergente: a burguesia, que tinha como objetivo precípuo pôr fim aos inúmeros entraves impostos pelo Estado durante todo o regime feudal à livre circulação de riquezas.

A esse respeito, ainda segundo Bobbio:

do ponto de vista institucional, o Estado liberal e (posteriormente) de-mocrático, que se instaurou progressivamente ao longo de todo o arco do século passado, foi caracterizado por um processo de acolhimento e regulamentação das várias exigências provenientes da burguesia em ascensão, no sentido de conter e delimitar o poder tradicional.6

2.1 o declínio do estado Liberal

com o tempo, porém, começam a ruir os fundamentos sobre os quais se estruturava o Estado liberal, o que se deve a uma série de fato-res, tanto internos como externos. Dentre aqueles, podemos citar a forte pressão exercida pela classe operária, que não mais aceitava as péssi-mas condições e as elevadas jornadas de trabalho às quais era exposta.

É, aliás, o que observa paulo Bonavides:

Aquela liberdade conduzia, com efeito, a graves e irreprimíveis situações de arbítrio. Expunha, no domínio econômico, os fra-

5 BoBBIo, norberto. O positivismo Jurídico. São paulo: Ícone, 1995, p. 81.6 BoBBIo, norberto. A era dos Direitos. Trad. carlos nelson coutinho. Rio de Janeiro:

campus, 1992, 147- 148.

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cos à sanha dos poderosos. o triste capítulo da primeira fase da Revolução Industrial, de que foi palco o ocidente, evidencia, com a liberdade de contrato, a desumana espoliação do traba-lho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração eco-nômica, a que nem a servidão medieval se poderia, com justiça, equiparar.7

outro fator decisivo para a queda do modelo liberal foi a grande depressão econômica vivida pelo capitalismo na década de 1930, a qual se agravou em virtude das duas grandes guerras.

No que tange aos fatores externos, não nos podemos esquecer da “ameaça socialista” decorrente da Revolução Russa de 1917. Essa Revolução exerceu grande fascínio sobre o mundo ocidental, prome-tendo a tomada de poder pela classe operária e difundindo a idéia da concretização de um sonho antigo: a conquista da igualdade real entre os indivíduos.

Todos esses fatores fizeram com que o Estado adotasse uma nova postura, outrora severamente combatida, passando a intervir nas relações contratuais no intuito de assegurar um maior equilíbrio entre as partes.

desse modo, após mais de um século de liberalismo econômi-co, finalmente chegou-se à conclusão de que seria fundamental, até mesmo para a sobrevivência do capitalismo, a intervenção estatal nas relações econômicas.

como conseqüência, tornou-se premente a atuação do Estado, que passou a assumir algumas atividades tidas como essenciais, além de regular exaustivamente outras, tendo por objetivo assegurar uma maior justiça social.

Infelizmente, porém, essa mudança tardia no comportamen-to estatal não foi suficiente para evitar a grave crise mundial que, dentre outras conseqüências, deflagrou a primeira grande guerra (1914-1918). Esta, por sua vez, acabou tornando-se um divisor de águas entre dois modelos de organização estatal: o Estado liberal e o Social.

7 BonAVIdES, paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São paulo: Malheiros, 1996, p. 59.

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3 A AutonoMiA pRivAdA eM FACe do eStAdo SoCiAL

3.1 Aspectos históricos

É com o advento do Estado Social que o ente estatal passa a as-sumir, definitivamente, seu importante papel na regulamentação das re-lações econômicas e sociais. Percebeu o Estado, após vários conflitos e reivindicações, que o lema do liberalismo econômico – laissez faire, laissez passer – era fonte de grave desigualdade, permitindo a exploração dos mais fracos pelos detentores do poder econômico. por isso, tornou-se fundamental sua atuação no sentido de buscar uma igualdade efetiva entre os homens, e não apenas formal, como apregoava a burguesia.

A partir da sobredita mudança, foi reconhecida uma nova cate-goria de direitos, chamados de direitos fundamentais de 2ª geração, também conhecidos como direitos sociais. Entre eles podemos desta-car o direito à saúde, à educação e ao trabalho.

diferentemente dos direitos individuais, preocupados em pro-teger o cidadão contra o absolutismo do Estado, os direitos sociais caracterizam-se por pressupor uma nova postura estatal, marcada pelo intervencionismo e pela promoção do bem-estar social. Rompe-se, portanto, com o Estado abstencionista, tão difundido nas Codifica-ções do século XIX, nascendo a partir daí a busca pelo welfare state (Estado do bem-estar social).

As primeiras constituições a consagrar esse novo rol de direitos fundamentais foram a Mexicana, de 1917, e a Alemã, de 1919. Esta, sobretudo, pode ser apontada como a matriz do constitucionalismo social, servindo de modelo para quase todas as constituições que se seguiram ao primeiro pós-guerra.

no Brasil, a primeira constituição a reconhecer essa nova cate-goria de direitos foi a de 1934, considerada uma das mais avançadas de nossa história. lamentavelmente, porém, ela vigorou pouquíssimo tempo, sendo substituída pelo Texto Constitucional de 1937, outorgado por Getúlio Vargas, que acarretou o retorno ao regime de exceção.

Somente com a constituição de 1946 ocorreu a redemocratiza-ção do país e a retomada das conquistas sociais. Todavia, mais uma vez

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esse período democrático foi extremamente curto, sendo interrompido pelo golpe militar de março de 64, que se estendeu por intermináveis duas décadas, marcando profundamente a história brasileira.

Importa ressaltar, ainda, que, além do Brasil, quase todos os países da América latina e África viveram situações semelhantes, al-ternando regimes democráticos com sistemas ditatoriais. com isso, tornou-se bastante evidente o enorme contraste em relação aos cha-mados países ricos, que muito já haviam conquistado em termos de direitos e garantias sociais.

desse modo, não há como negar que o verdadeiro modelo de Estado Social passou muito distante de nossa realidade, ficando res-trito aos países desenvolvidos. Estes, por meio de instituições conso-lidadas e fortes, muito caminharam no reconhecimento das conquis-tas sociais. para tanto, foi de fundamental importância a atuação dos órgãos de classe, como os sindicatos, por exemplo, que contribuíram decisivamente na efetivação de vários desses direitos.

Sendo assim, enquanto na Europa e Estados unidos as interven-ções estatais implicavam melhoria considerável na qualidade de vida, na América latina, o Estado, ao interferir nas relações econômicas, o fazia de forma desastrosa, criando cabides de emprego e fontes inter-mináveis de corrupção.

Tudo isso fez com que o Estado se agigantasse, deixando de lado as funções que são verdadeiramente essenciais, como saúde, educação e segurança, para interferir em outras não tão relevantes. Quem não se lembra, por exemplo, da COBAL, supermercado manti-do pelo próprio Estado brasileiro e que representava mais uma “gene-rosa” fonte de corrupção?

por sua vez, grande parte da população permanecia vivendo em condições precárias, amontoadas em favelas e becos, às voltas com ditaduras e golpes políticos, evidenciando uma democracia insipiente, incapaz de assegurar um mínimo de bem-estar social.

3.2 As repercussões no campo obrigacional

ocorre que, apesar das conquistas apontadas não terem se es-tendido a todos os países, é forçoso reconhecer que essa mudança de

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paradigma repercutiu profundamente no campo jurídico e, principal-mente, na autonomia da vontade.

como conseqüência, surgiram diversos princípios jurídicos, os quais, aos poucos, foram sendo acolhidos também pelo nosso ordena-mento. É o caso, por exemplo, do dirigismo e da revisão contratual, que passaram a exigir uma releitura profunda do papel desempenhado pela vontade na formação dos negócios jurídicos.

É, aliás, o que ressaltam césar Fiuza e Giordano Bruno:

Esse movimento de intervenção estatal na economia do contrato, geralmente chamado de dirigismo contratual, é característico do Estado Social e fundamenta-se na prevalência dos interesses gerais sobre os particulares e não mais aceita os postulados de igualdade formal, ao contrário, caracteriza-se por exercer discriminação po-sitiva, protegendo a parte economicamente mais fraca.8

por sua vez, no que tange à teoria da imprevisão, tornou-se evi-

dente a possibilidade, sempre em caráter excepcional, de realizar a re-visão ou até mesmo a extinção dos contratos. Para isso, é fundamental que ocorra fato imprevisto, situado fora do campo de percepção da álea normal da contratação, alterando profundamente a base negocial.

É o que afirma Nelson Borges:

A teoria da imprevisão é o remédio jurídico a ser empregado em situações de anormalidade contratual, que ocorre no campo extra-contratual – ou ‘aura’ das convenções -, de que se podem valer as partes não enquadradas em situação moratória preexistente, para adequar ou extinguir os contratos – neste caso com possibilidades indenizatórias – sobre os quais a incidência de um acontecimen-to imprevisível (entendido este como aquele evento ausente dos quadros do cotidiano, possível, mas não provável), por elas não provocado mediante ação ou omissão, tenha causado profunda al-teração na base contratual, dando origem a uma dificuldade exces-siva de adimplemento ou modificação depreciativa considerável da prestação, de sorte a fazer nascer uma lesão virtual que poderá

8 FIuZA, césar; RoBERTo, Giordano Bruno Soares. Contratos de adesão. Belo hori-zonte: Mandamentos, 2002, p. 43.

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causar prejuízos àquele que, em respeito ao avençado, se disponha a cumprir a obrigação assumida.9

Em vista do exposto, é inquestionável que todas essas transfor-

mações determinaram uma acentuada mudança na forma de conceber a autonomia da vontade, levando a concluir que, ao contrário do que se acreditava, não é a vontade a fonte determinante dos vínculos obri-gacionais, como também não é ela a causa geradora dos direitos e deveres provenientes das obrigações.

Essa nova concepção torna-se ainda mais evidente a partir da difusão dos contratos de adesão, conseqüência da sociedade de con-sumo, os quais dão origem a uma nova forma de relação contratual, cujo conteúdo é determinado apenas por uma das partes. neste caso, não há que se falar em negociação prévia das condições. Como exem-plo, podemos citar os contratos que celebramos com as prestadoras de serviços públicos essenciais, como a companhia energética e a com-panhia de água.

Além do mais, não nos podemos esquecer dos contratos obrigató-rios, como o DPVAT, por exemplo, que jogam por terra, definitivamente, a idéia de que é a vontade a força geradora das relações obrigacionais.

É essa, aliás, a lição sempre atual de Emílio Betti:

na verdade, a ‘vontade’, como fator psicológico meramente inter-no, é qualquer coisa em si mesma incompreensível e incontrolável, e pertence, unicamente, ao foro íntimo da consciência individual. Só na medida em que se torna reconhecível no ambiente social, quer por declarações, quer por comportamentos, ela passa a ser um fato social, susceptível de interpretação e de valoração por parte dos con-sorciados. Somente declarações ou comportamentos são entidades socialmente reconhecíveis e, portanto, capazes de poder constituir objeto de interpretação, ou instrumento de autonomia privada.10

É importante frisar, porém, que essas declarações ou comporta-mentos não são, ainda segundo Betti, a simples exteriorização de um

9 BoRGES, nelson. A teoria da imprevisão no Direito Civil e no Processo Civil. SãoSão paulo: Malheiros, 2002, p. 80.

10 BETTI, Emílio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. campinas: lZn, 2003, p. 80.campinas: lZn, 2003, p. 80.

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estado de espírito interno, ou de um propósito. Ao contrário, segundo o jurista italiano:

(...) declaração e comportamento são a realização ordenadora de uma linha de conduta, em confronto com outras disposições, por meio das quais o indivíduo regula as suas relações com outros, e que têm, portanto, uma relevância essencialmente social e uma eficácia operativa própria, que não é validade outra forma: eficácia que, primeiro se manifesta, logicamente no plano social, e depois, graças à sanção do direito, se destina a produzir-se também no plano jurídico.11

Por isso mesmo, a expressão autonomia da vontade vem sen-

do, aos poucos, substituída por outra, mais adequada a essa nova realidade. Em face do novo contexto, fala-se em autonomia priva-da, expressão que pretende eliminar a carga individualista e liberal existente na anterior, não obstante a inexistência de consenso a res-peito.

Ocorre que, apesar de toda a controvérsia em torno das expres-sões e embora muitos afirmem que elas designem o mesmo fenôme-no, não há como contestar a diferença de perspectiva entre elas. nesse sentido, define-se autonomia privada como o poder de regulamentação conferido pelo ordenamento no intuito de dispor acerca dos próprios interesses. Trata-se, portanto, de uma forma de auto-regulamentação dos interesses pessoais, entendida sempre de forma objetiva.

A esse respeito, visando a distinguir as duas expressões, afirma césar Fiuza que:

A autonomia privada é a esfera de liberdade em que às pesso-as é dado estabelecer normas jurídicas para regrar seu próprio comportamento. os contratos são um fenômeno da autonomia privada, em que as partes se impõem normas de conduta. di-fere do princípio da autonomia da vontade, em que o contrato viria de dentro para fora. Seria fenômeno exclusivamente voliti-vo. Na autonomia privada, o contrato não vem, exclusivamente, de dentro; não é fenômeno meramente volitivo. As pessoas não

11 BETTI, Emílio. Teoria..., cit., p. 81.

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contratam apenas porque desejam. A vontade é condicionada por fatores externos, por necessidades, que dizem respeito aos moti-vos contratuais. 12

No mesmo sentido, entende Francisco Amaral que “a expressão ‘autonomia da vontade’ tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real.”13

Ainda segundo este autor:

(...) quando nos referimos especificamente ao poder que o parti-cular tem de estabelecer as regras jurídicas de seu próprio com-portamento, dizemos, em vez de autonomia da vontade, auto-nomia privada. Autonomia da vontade, como manifestação de liberdade individual no campo do direito, e autonomia privada, como poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, vale dizer, o poder de alguém de dar a si próprio um ordenamento jurídico e, obviamente, o caráter próprio desse ordenamento, constituído pelo agente, diversa, mas complementarmente ao or-denamento estatal.14

por sua vez, observa Bruno Torquato que:

A denominação autonomia privada veio apenas substituir a car-ga individualista e liberal da autonomia da vontade. Ao direito, pois, resta analisar a manifestação concreta da vontade, segundo critérios objetivos de boa-fé, e não suas causas e características intrínsecas. não é o objeto do direito perquirir sobre o conteúdo da consciência interna de cada ser. daí decorre nossa preferência por esta posição e, conseqüentemente, pela expressão autonomia privada.15

12 FIuZA, césar. Direito Civil. Curso Completo. 8. ed. Belo horizonte: del Rey, 2004, p.8. ed. Belo horizonte: del Rey, 2004, p. 379-380.

13 AMARAl, Francisco. Direito Civil. Introdução. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 335-336

14 AMARAl, Francisco. Direito..., cit., p. 335.15 nAVES, Bruno Torquato de oliveira. Relacionalidade e autonomia privada. O princípio

da Autonomia Privada na Pós-Modernidade. dissertação de Mestrado apresentada para a obtenção do grau de Mestre pela puc-Minas, 2003, p. 82.

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como se percebe, essa nova forma de entender a autonomia privada põe em realce um aspecto menos subjetivista e, por isso, mais voltado à realidade social, preocupando-se não mais com a manifes-tação de vontade em si, mas sim com os efeitos que o ordenamento jurídico atribui expressamente a ela.

Foi exatamente a partir dessa mudança que ganhou espaço, na dou-trina, a chamada teoria objetiva do negócio jurídico, a qual põe em desta-que o papel do ordenamento na produção dos efeitos jurídicos. o proble-ma, porém, é que ela apresenta matizes variados, podendo ser desdobrada em outras teorias distintas. É o caso, por exemplo, da teoria preceptiva, muito bem sintetizada por Antônio Junqueira de Azevedo. Segundo ele,

(...) quer-nos parecer que uma concepção estrutural do negócio jurídico, sem repudiar inteiramente as concepções voluntaristas, dela se afasta, porque não se trata mais de entender por negócio um ato de vontade do agente, mas sim ato que socialmente é visto como ato de vontade destinado a produzir efeitos jurídicos. A pers-pectiva muda inteiramente, já que de psicológica passa a social. o negócio não é o que o agente quer, mas sim o que a sociedade vê como a declaração de vontade do agente. Deixa-se, pois, de exa-minar o negócio através da ótica estreita do seu autor e, alargando-se extraordinariamente o campo de visão, passa-se a fazer o exame pelo prisma social e mais propriamente jurídico.16

Certo é, porém, que em face do novo contexto não há como

negar a ampliação ainda maior das restrições impostas ao exercício da liberdade negocial, decorrente da crescente intervenção do Estado nas relações econômicas.

3.3 A falência do estado Social

o problema é que a evolução histórica foi, aos poucos, eviden-ciando também as falhas apresentadas pelo Estado Social, sobretudo em virtude das dificuldades advindas de uma demanda social cada

16 AZEVEdo, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São paulo: Saraiva, 2002, p. 21.

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vez maior, a qual o Estado, em virtude das diversas crises econômicas vivenciadas ao longo do século XX, não conseguia suprir. Por isso mesmo, falou-se na falência do Estado, trazendo à tona todas as defi-ciências apresentadas pelo paradigma social.

É inegável que enquanto havia crescimento econômico e alta arrecadação tributária, o Estado pôde sofisticar-se, oferecendo servi-ços públicos cada vez melhores. A educação era inteiramente pública e gratuita. A assistência médica, além de acessível a todos, tinha qua-lidade indiscutível. Assim, são evidentes os avanços advindos do mo-delo social, os quais acarretaram melhoria considerável dos índices de desenvolvimento humano.

Ressalte-se, no entanto, que essas conquistas estavam restritas aos países desenvolvidos. Até porque, como foi dito, os países em desenvolvimento estavam às voltas com ditaduras e golpes de Estado, evidenciando uma democracia frágil e incapaz de assegurar uma qua-lidade de vida razoável à população menos favorecida.

de todo modo, a capacidade do Estado de resistir a crises (mes-mo dos mais desenvolvidos e prósperos) tinha limites de intensidade e duração, e poucos contavam com a crise profunda da década de 70.

A partir dessa nova crise econômica houve uma diminuição brusca da arrecadação tributária, o que comprometeu a eficiência dos serviços estatais. Em um primeiro momento, porém, o Estado ainda conseguiu absorver o impacto. Mesmo porque vinha preparando-se para isso há algum tempo, trabalhando com a idéia de superávit e dé-ficit orçamentário, ou seja, poupar nos momentos de abundância para enfrentar as situações de crise.

o problema foi que a crise aprofundou-se consideravelmente, diminuindo de forma alarmante a capacidade do Estado de resposta à crescente demanda social, ficando mais frágil justamente no período em que era mais requisitado.

como conseqüência, começaram a ruir também os fundamentos do Estado Social, tornando-se bastante adequado o momento para a pe-netração de uma nova proposta, denominada neoliberal, a qual já estava presente como uma crítica ao Estado Social desde o pós-guerra.17

17 MAGAlhÃES, José luiz Quadros de. Direito Constitucional. 2. ed. Belo horizonte, 2002, tomo I, p. 70-71.

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Diante de todo o exposto, tornou-se inevitável a busca por um novo modelo ou paradigma de organização estatal, capaz de intervir na economia (quando necessário), sem apresentar, contudo, os exces-sos paternalistas tão característicos do Estado Social. daí nasceu o Estado democrático de direito, entre nós consagrado pela constitui-ção de 1988.

Foi também a partir desse Texto Constitucional que teve início um novo processo de redemocratização do país, à semelhança do que ocorreu em 1946. Além do mais, destacou-se a constituição de 88 pela promoção da pessoa humana à categoria de fundamento do or-denamento jurídico pátrio, o que ensejou um movimento ainda mais amplo, denominado de repersonalização do direito civil, que rompe definitivamente com a lógica patrimonialista consagrada pelas codi-ficações liberais.

A principal mudança, no entanto, adveio da queda do modelo de Estado anterior (se é que algum dia existiu entre nós um ente estatal voltado para a promoção do bem-estar social), surgindo, em contra-partida, uma nova forma de Estado, menos paternalista e caracteriza-da pela busca da inclusão dos desiguais.

Esse novo paradigma tem como característica básica a pressu-posição de um sistema aberto de regras e princípios, que exige uma atuação mais efetiva do intérprete na construção do direito, sempre diante do caso concreto.

no novo modelo, a preocupação não se restringe à segurança jurídica, como ocorria no Estado liberal. Ao contrário, seu objetivo maior consiste na busca pela efetivação de outros valores essenciais, como a justiça, por exemplo.

Desse modo, podemos afirmar que a essência do Estado De-mocrático de direito está na síntese (bastante complicada, diga-se de passagem) entre segurança e justiça.

É o que afirma Menelick de Carvalho Netto. Para ele, é necessá-rio que o Judiciário, em face do Estado democrático de direito:

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tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princí-pios e regras constitutivos do direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto no sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.18

Em face do novo paradigma não há como negar o prestígio e poder atribuído ao Judiciário, o qual deve buscar, sempre diante do caso concreto e a partir das normas e princípios que compõem o or-denamento jurídico, a solução mais justa, sem jogar por terra, porém, a segurança jurídica, o que se evidencia por meio de decisões devida-mente fundamentadas.

Resta evidente, portanto, que não mais se justifica a desconfian-ça em face do Judiciário, como amplamente difundido pelo Estado liberal. Foi-se o tempo em que o papel do juiz era de mero aplicador do texto legal, investigando apenas a mens legislatoris, ou seja, a fina-lidade proposta pelo legislador, que, por sua vez, detinha o monopólio da criação do direito.

não faltam, contudo, críticas veementes à proposta hermenêu-tica introduzida por este novo paradigma estatal. A maioria delas for-muladas por juristas apegados a um ranço positivista, que se incor-porou a nossa cultura jurídica em virtude do longo período ditatorial por nós vivenciado. Segundo se afirma, essa nova postura, na qual o intérprete passa a ter papel preponderante na construção do direito, põe em risco a segurança do direito, conquistada a duras penas ao longo da evolução jurídica.

Essa afirmação, porém, não mais se sustenta. Até porque exis-tem mecanismos, como o duplo grau de jurisdição e a obrigatorieda-de da fundamentação das decisões, que permitem um amplo controle por parte das decisões judiciais, desmistificando o pensamento liberal acerca da insegurança advinda da liberdade atribuída aos juízes na revelação do direito. Ademais, importa observar que a segurança ab-soluta é utopia, não podendo ser totalmente alcançada, ainda que os

18 cARVAlho nETTo, Menelick de. Requisitos pragmáticos de interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de direito comparado. Belo horizonte, v. 3, p. 473-486, 1999, p. 482.

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juízes se transformem em escravos da lei, tal como defendido por alguns liberais mais exaltados.

Diante do novo contexto, é indiscutível a necessidade de reali-zar uma releitura da autonomia privada, visando exatamente a adaptá-la ao novo modelo de organização estatal.

A esse respeito, não há como negar a repercussão dos princípios consagrados pelo Texto Constitucional de 88, dentre os quais mere-cem destaque: o princípio do valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV); da solidariedade social (art. 3º, I); da igualdade substancial (art. 3º, III); além, é claro, do princípio da proteção da dignidade da pes-soa humana, eleito pela constituição como fundamento da República Federativa do Brasil.

Todos esses princípios jurídicos evidenciam um processo que ficou conhecido como repersonalização do Direito Privado, que tem como característica principal o fato de colocar a pessoa humana como centro do ordenamento jurídico, e não mais o patrimônio, como se deduzia das codificações do período liberal.

É o que afirma Gustavo Tepedino:

com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como funda-mento da República, associada ao objetivo fundamental de erradica-ção da pobreza e da marginalização, e da redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido de não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, con-figuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento.19

A partir dessa nova concepção e de alguns princípios consagra-

dos no Código Civil de 2002, como, por exemplo, o da função social dos contratos (art. 421) e da proteção da boa-fé objetiva (arts. 113 e 422), torna-se irreversível a já citada tendência de reformulação da autonomia privada.

Importa ressaltar, ainda, que o reconhecimento da função social do contrato parte de uma transformação mais ampla, que defende a

19 TEpEdIno, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 48.

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funcionalização dos principais institutos do direito civil, como, por exemplo, a propriedade e a própria autonomia privada.

Diferentemente da teoria estrutural, preocupada exclusivamente em saber como o direito é feito, a teoria funcional volta-se para a análi-se da eficácia das normas e dos institutos vigentes, analisando para que serve o instrumento jurídico e qual seria sua causa ou razão de ser.

É, aliás, o que observa Francisco Amaral:

Representa, assim, a função econômico-social, a preocupação com a eficácia social do instituto, e, no caso particular da autono-mia privada, significa que o reconhecimento e o exercício desse poder, ao realizar-se na promoção da livre circulação de bens e de prestação de serviços e na auto-regulamentação das relações disso decorrentes, condicionam-se à utilidade social que tal circulação possa representar, com vistas ao bem comum e à igualdade mate-rial para todos, idéia que se ‘desenvolve paralelamente à evolução do Estado moderno como ente ou legislador nacional’.20

Sendo assim, é inegável que todas essas mudanças implicam a

ruptura do modelo jurídico tradicional e o surgimento de uma nova forma de pensar o direito, mais voltada à realidade social e à promo-ção da justiça distributiva.

É óbvio, contudo, que todas essas mudanças deixam patente a necessidade de um novo modelo hermenêutico, mais adequado a uma sociedade extremamente complexa, que descortina universos cultu-rais e políticos cada vez mais distintos.

com base nele, os juristas devem abandonar as categorias e conceitos forjados pelo Direito Romano e difundidos pelas codifica-ções liberais, uma vez que já não possuem qualquer ligação com a realidade complexa da sociedade contemporânea.

Para isso, é fundamental percebermos que o texto da Lei não basta a si mesmo. Ao contrário, seu sentido deve ser continuamente construído, não sendo algo que uma disciplina metódica deva desen-tranhar, como se ali sempre estivesse.

20 AMARAl, Francisco. Direito Civil. Introdução. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 354-355.

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4.1 As críticas à filosofia da consciência

A ressaltada mudança de perspectiva delineia uma transformação ainda mais profunda, advinda da quebra de um paradigma filosófico há muito dominante no meio científico. Trata-se da filosofia da consciên-cia, a qual teve como precursores filósofos de grande importância para a história do pensamento humano, como descartes e Kant.

A filosofia da consciência parte do princípio de que matéria e razão são duas coisas completamente distintas e independentes e que, por isso, o homem, por meio de um processo racional, pode conhecer de maneira neutra e absoluta tudo aquilo que está a sua volta. daí, aliás, a crença no papel do sujeito como fundamento sobre o qual se pode estruturar cognitivamente a realidade.

Tal posição, apesar do amplo predomínio durante largo período de tempo, vem sofrendo severas críticas no campo filosófico, sendo defendida sua substituição por um novo paradigma ou modelo de co-nhecimento.

4.2 A proposta de Heidegger

dentre as críticas, cumpre citar aquelas provenientes do pensa-

mento profícuo de Martin heidegger. heidegger parte do princípio de que todo o pensamento moderno assenta-se em uma idéia equivoca-da de que o “ser”, ou seja, a “essência” das coisas, pode ser sempre encontrada nelas mesmas, o que, segundo ele, não procede. para o autor de Ser e Tempo, toda vez que buscamos conhecer a essência dos objetos apenas descobrimos algumas características perceptíveis de seu ente.

Ainda segundo heidegger, essa busca pela essência das coisas deve partir não delas mesmas, mas sim do próprio homem. Isso por-que é o homem o único ser que possui consciência de si mesmo. por isso, é dele que devemos partir em busca do sentido mais profundo das coisas.

Importa observar, porém, que o homem a que se refere heidegger não é o homem abstrato, típico do pensamento liberal-burguês, mas

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sim o homem concreto, completamente inserido em um determinado ambiente. Daí a utilização do termo Ser-aí, o qual se refere exatamente ao homem enquanto completamente inserido no meio em que vive.

Somente partindo do Ser-aí, segundo heidegger, é que pode-mos encontrar o correto sentido para as coisas. Este, porém, jamais pode ser visto como algo imutável, que não sofre transformações. Ao contrário, o sentido das coisas está em constante mutação ao longo do tempo. Até porque o próprio homem também se modifica. Como conseqüência, é inegável o duro golpe sofrido pela filosofia da cons-ciência.

outro aspecto importante do pensamento de heidegger, poste-riormente desenvolvido por Gadamer, diz respeito à crença em torno de um novo modelo hermenêutico, denominado de hermenêutica fi-losófica ou círculo hermenêutico. De acordo com ele, o sentido das coisas, entre elas os textos legais, deve ser constantemente construí-do, levando em conta, sempre, as experiências históricas de seus in-térpretes.

Ante o exposto, não há como negar que a interpretação é funda-mental não para a elucidação do Direito previamente existente, mas sim para sua própria criação, uma vez que o sentido das normas não é algo que deve ser simplesmente extraído do texto legal, como se fosse inerente a ele. Ao contrário, é a interpretação que constrói esse sentido, o qual é constantemente renovado.

nesse sentido, segundo Gadamer

Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete pre-lineia um sentido do todo. naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A com-preensão do que está posto no texto consiste precisamente na ela-boração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avan-ça na penetração do sentido.21

21 GAdAMER, hans-Georg. Os traços fundamentais de uma teoria da experiência herme-nêutica. In: Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. petrópolis: Vozes, 1997. p. 402.

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4.3 A contribuição de Habermas

outro autor que também tece severas críticas ao paradigma filosófico-consciencial é Jurgen Habermas. Habermas considera tal modelo filosófico também exaurido e inadequado para pensar criti-camente a sociedade contemporânea. Sua proposta, porém, atenta à pluralidade que caracteriza o mundo moderno, destoa da contribuição advinda do autor de “Ser e Tempo”. Mesmo porque, tem como prin-cipal objetivo o resgate da racionalidade a partir de uma base comu-nicativa, e não meramente compreensiva, como defende heidegger e Gadamer.

habermas, partindo de uma nova concepção de democracia, defende a necessidade de os destinatários das normas participarem ativamente da construção de seu sentido. Isso significa que a interpre-tação do Direito não pode ser uma atividade exclusiva do Juiz, que muitas vezes põe-se acima do bem e do mal, como se fosse o dono da verdade. Para ele, em uma sociedade complexa e repleta de valo-res divergentes, como a nossa, é fundamental que a interpretação das normas decorra diretamente da participação de seus destinatários. So-mente assim, alcançaremos a tão desejada legitimidade para o fenô-meno jurídico, sem descuidar de seu fim último, qual seja, a justiça.

4.4 teoria proposta

A partir das contribuições acima mencionadas, mas, sobretudo, das críticas realizadas à filosofia da consciência, não há como negar a necessidade de repensar a forma de conceber a autonomia privada. Até porque ela não pode continuar sendo entendida como poder atri-buído para que as partes possam regular, previamente, os próprios interesses, escolhendo com quem contratar ou estabelecendo o con-teúdo da relação contratual.

Tal concepção não mais se sustenta, uma vez que está assen-tada em um paradigma ultrapassado, que é exatamente a filosofia da consciência. ora, a partir do momento que restringimos a autonomia privada ao poder de escolher com quem contratar, ou, ainda, ao poder

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de fixar o conteúdo do negócio jurídico a ser realizado, partimos de uma concepção equivocada, como se as cláusulas de um negócio jurí-dico (um contrato, por exemplo), encerrasse uma verdade definitiva, cabendo ao intérprete posteriormente apenas extraí-la.

Por outro lado, com a massificação das relações contratuais, a liberdade para a discussão de suas cláusulas tem se tornado cada vez mais restrita, cabendo a uma das partes apenas, na maioria das vezes o credor, o poder de fixar todo o conteúdo da relação contratual.

Sendo assim, além de se assentar em um paradigma filosófico bastante criticado, a concepção clássica da autonomia privada contra-ria o que ocorre na grande maioria dos contratos e demais negócios jurídicos. daí, portanto, a necessidade de se buscar uma nova forma de concebê-la, mais adequada à realidade contemporânea.

desse modo, visando a apresentar alternativas plausíveis em face do novo contexto em que vivemos, defendemos a autonomia pri-vada como a prerrogativa conferida às partes de participar ativamen-te, e sempre de forma concreta, da regulação dos próprios interesses. Essa prerrogativa pode ser exercida quando das tratativas para o es-tabelecimento da relação contratual, mas deve se tornar efetiva prin-cipalmente quando, diante de um caso concreto, as partes buscarem a concretização das referidas disposições contratuais, fixando o sentido que elas devem assumir diante de uma situação específica.

Essa proposta se justifica uma vez que a declaração de vontade, assim como os demais elementos presentes em uma relação contratual, não possuem um sentido objetivo e imutável. como visto, a partir do declínio da filosofia da consciência não mais se sustenta a tese de que razão e matéria são objetos distintos e independentes, como se esta pos-suísse uma essência objetiva, sempre pronta para ser captada.

na verdade, conforme anteriormente ressaltado, a “essência” ou o ser dos objetos nunca pode ser concebido como simples presença, ou seja, como algo permanente, sempre pronto para ser extraído. Ao contrário, devemos concebê-lo sempre enquanto evento, isto é, como algo mutável, tanto no tempo quanto no espaço. para tanto, porém, devemos partir do homem concreto, ou seja, do homem enquanto in-serido do meio em que vive.

No caso específico dos contratos, são as partes envolvidas na relação contratual o juiz, caso haja litígio levado à apreciação judicial,

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que irão determinar o sentido que as cláusulas assumirão diante do caso concreto.

Tal fato, porém, como é óbvio, não impede a participação recí-proca também no momento de estabelecimento das referidas cláusu-las. ora, essa participação, mais do que legítima, seria desejável. o problema, porém, é que, diante da massificação das relações contra-tuais, exigir que um grande grupo econômico, como Casas Bahia ou Carrefour, por exemplo, venha a discutir concretamente as cláusulas dos milhares de contratos celebrados diariamente é utopia. Algo incon-cebível que jamais seria implementado. por isso mesmo, em situações como essa, a autonomia privada deve caracterizar-se principalmente pela possibilidade que as partes têm de discutir, concretamente, ainda que perante o judiciário, a validade ou não de determinada cláusula e, princi-palmente, o sentido que estas assumirão naquela situação específica.

Ainda nesse sentido, entendemos, tal como propõe habermas, que a fixação desse sentido não pode ser obra exclusiva de um ser “iluminado”, acima do bem e do mal, capaz de proporcionar soluções sempre justas a partir das pretensões deduzidas concretamente. Ao contrário, são as próprias partes que, numa perspectiva procedimen-talista, devem contribuir para a formação do entendimento mais ade-quado, por meio de argumentos compartilhados intersubjetivamente. Tal fato deve ocorrer seja no âmbito de um procedimento jurisdicio-nal ou, ainda, a partir de um acordo realizado entre os interessados diante do caso concreto.

5 ConCLuSão

Em vista de todo o exposto, é inegável que não mais se justifi-ca conceber a vontade como causa determinante dos efeitos jurídicos que decorrem de uma relação contratual. por isso mesmo, é descabida a expressão autonomia da vontade, sendo mais conveniente falar em autonomia privada. Tal expressão, aliás, conforme ficou assentado, veio substituir a carga individualista e liberal presente na anterior.

por outro lado, contudo, importa ressaltar que a autonomia pri-vada também não pode ser entendida como o simples poder conferido

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às partes para, in abstrato, estabelecer o conteúdo da relação contra-tual ou escolher com quem contratar. como visto, tal postura, além de se assentar em um paradigma filosófico em franco declínio, destoa completamente da realidade do novo milênio. Até porque é grande o número dos contratos de adesão, como também dos contratos obriga-tórios, nos quais inexiste liberdade para que possam ser discutidas as cláusulas contratuais.

desse modo, é fundamental que a autonomia privada seja enten-dida de forma mais ampla, como verdadeiro poder para que as par-tes, dialeticamente, possam participar da construção do sentido que as cláusulas negociais irão assumir em face de um determinado contexto. nesse sentido, não podemos nos esquecer que boa parte das relações contratuais tem seu conteúdo fixado em um determinado momento, destinando-se, porém, a produzir efeitos que se prolongam no tempo.

Isso não significa, no entanto, que esteja completamente afas-tada a possibilidade de as partes discutirem previamente as cláusulas contratuais que irão reger suas relações. longe disso. o que quere-mos é dotar a autonomia privada de maior amplitude, de modo que as partes possam, como fruto desse poder atribuído pelo ordenamento, não apenas discutir a redação das cláusulas contratuais (quando pos-sível, obviamente), mas principalmente participar de forma ativa da construção do sentido que essas devem assumir ao longo da relação contratual e até mesmo após sua extinção. Assim, além de ultrapassar-mos os obstáculos apostos à filosofia da consciência, aproximamos a autonomia privada da realidade marcante do novo milênio.

6 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

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noVoS ModEloS conTRATuAIS pARA uMA noVA MATRIZ EnERGÉTIcA: ASpEcToS

JuRÍdIco-EconÔMIcoS pARA pRoduÇÃo dE BIocoMBuSTÍVEIS no BRASIl

STEFAnIA nunZIATA VAlEnZA pAIVA

Sumário

Apresentação: a origem do pnpB. 1. Marco legal dos biocombustíveis no Brasil. 2. o fenômeno da quase-integração. 3. Aspectos jurídicos das relações contratuais de produção integrada no Brasil. 4. os contratos de integração vertical agroindustriais na produção do biodiesel. 4.1. Eficiências e ineficiên-cias do pnpB no enfoque da análise econômica do direito e das organizações. 5. conclusão. 6. Refe-rências bibliográficas.

Resumo o presente artigo pretende analisar sob enfoque jurídico, com

apoio na análise econômica do direito e das organizações, as relações contratuais presentes na cadeia produtiva dos biocombustíveis no Brasil, também denominados biodiesel., a partir do marco legal apon-tado no programa nacional de produção e uso de Biodiesel, lançado em 2004. pretende enquadrar os novos contratos de produção de bio-diesel na categoria mais extensa dos contratos de integração vertical

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 145-174 2008

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agroindustriais, bem como analisar os mecanismos estatais presentes na legislação de incentivo à contratação interprofissional, tal como ocorre na Itália e França para a cadeia agro-alimentar, merecendo es-pecial destaque a técnica de isenção tributária e certificação social do produto. o trabalho, assim, adota a interface direito e economia para analisar os impactos econômicos derivados do marco legal para pro-dução do biodiesel e os incentivos eleitos pelo legislador para influen-ciar o comportamento dos agentes econômicos privados: a empresa, o produtor rural em regime familiar e os sindicatos rurais.pAlAVRAS-chAVE: Biocombustíveis. programa nacional de pro-dução e uso de Biodiesel.

AbstractThe present article intends to evaluate under legal focus, based

on the economical analysis of law and analysis of the organizations, the contractual relationships present in the biofuels productive chain in Brazil, also named biodiesel, since the legal mark pointed in the national program of production and use of biodiesel released in 2004. The aim is to fit the new contracts of production of biodiesel in the wider category of contracts of vertical integration agro-industrial, and to analyze the states mechanisms existent in the legislation of incenti-ve to interprofessional act of contract, as it occurs in Italy and France for the agricultural chain, emphasizing the exemption technique taxes and social certification of the product. The work, therefore, adopts the interface law economy to appraise the economical impact s originated from the legal mark for biodiesel production and the incentives cho-sen by the legislator to influence the behavior of the privative econo-mics agents: the company, the rural producer in familiar system and agricultural unionsKEYWoRdS: Biofuels. program of production and use of biodiesel.

ApReSentAção: A oRiGeM do pnpB

não seria possível discorrer acerca dos contratos de integração para a produção de biocombustíveis no Brasil, tema central deste tra-

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balho, sem antes fazer uma referência, ainda que breve, ao programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel lançado oficialmente em 6 de dezembro de 2004. o pnpB nasceu após os estudos de viabilidade da produção e uso do biodiesel no Brasil realizado por um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) com ampla participação dos setores interessados (universidades, pesquisadores, fabricantes, produtores, governos e indústria automobilística, dentre outros). o debate levou à conclusão de que o biodiesel poderia ser um vetor de contribui-ção para a promoção da inclusão social de pequenos agricultores em regime de economia familiar, para a geração de renda e diminuição das desigualdades regionais, para a economia de divisas e redução da “petrodependência”1, e enfim, para a redução da emissão de poluentes com impacto positivo nas questões ambientais e da sanidade da po-pulação. É preciso ainda ressaltar que a palavra “biodiesel” até então não existia legalmente no Brasil tendo sido criada pela Lei 11.097 de 13.01.2005, que o definiu como “biocombustível derivado de biomas-sa renovável para uso em motores a combustão interna com ignição por compressão, ou, conforme regulamento, para geração de outro tipo de energia, que possa substituir parcial ou totalmente combustí-veis de origem fóssil”2.

A razão motivadora da criação do pnpB assenta-se basicamente nos seguintes pontos: a energia é espécie de combustível indispensá-vel ao desenvolvimento; o petróleo até então principal fonte de com-bustíveis tende a se esgotar em prazos relativamente curtos; o Brasil tem nítido potencial, pelas condições de solo e clima, para produção de biomassa. Sendo assim, a definitiva segurança energética passa pela capacidade de cada país de produzir combustíveis de fontes re-nováveis, e o biodiesel é uma dessas possibilidades. Nesse contexto, o governo pretendeu engajar pequenos produtores da agricultura fami-liar e aqueles das regiões mais pobres do país na cadeia produtiva do biodiesel, por meio de incentivos normativos, como a criação do Selo combustível Social e reduções tributárias.

1 denominação dada à clássica dependência do petróleo importado.2 lei 11.097/05 de 13 de janeiro de 2005. dispõe sobre a introdução do biodiesel na matriz

energética brasileira e dá outras providências. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, dF, 14 jan. 2005. Seção 1, p. 8.

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1 MARCo LeGAL doS BioCoMBuStÍveiS no BRASiL

como dito anteriormente, a palavra biodiesel foi efetivamente construída por força de uma normativa legal. Assim, pode-se referir como um marco legal para a produção e uso do biodiesel no Brasil um conjunto de leis ordinárias complementadas por inúmeros decretos e resoluções emitidos pelo Ministério do desenvolvimento Agrário (MdA) e pela Agência nacional de petróleo, Gás natural e Biocom-bustíveis que manteve a sigla Anp embora tenha sofrido o acréscimo de competência para fiscalizar e regular a produção e comercializa-ção de biocombustíveis. dentre as leis ordinárias destacam-se a lei 11.097 de 13 de janeiro de 2005 que dispõe sobre a introdução do biodiesel na matriz energética brasileira, definindo o biodiesel, esta-belecendo a mistura obrigatória nos combustíveis fósseis utilizados de 2% e 5% até 2013, e ainda amplia a competência da Anp.

Igualmente relevante enquanto fonte normativa de base é a lei or-dinária 11.116 de 18 de maio de 2005 que dispõe sobre a exigência de registro na Secretaria da Receita Federal do produtor e importador de bio-combustíveis e ainda sobre a incidência de tributos federais diferenciados por região, por matéria-prima e tipo de agricultor. A lei base do chamado “modelo tributário aplicado ao biodiesel” é complementada pelo decre-to 5.297 de 2004 e seu diploma alterador decreto 5.457 de 2005 que criam o Selo Combustível Social e instituem os coeficientes de redução do PIS/CONFINS. Por fim, as instruções normativas do MDA n. 01 de 05 de julho de 2005 e a n. 02 de 30 de setembro de 2005 dispõem sobre os critérios para o enquadramento social das empresas produtoras de bio-diesel; sobre os percentuais mínimos de aquisição de matéria-prima de produtores agrícolas em regime familiar para que a empresa possa obter os benefícios da lei; a obrigatoriedade da co-participação das instituições representativas dos produtores rurais nas propostas de contrato de cultivo e venda de matéria-prima para as indústrias processadoras do biocom-bustível; sobre o conteúdo mínimo desses contratos.

2 o FenÔMeno dA QuASe-inteGRAção

No contexto das sociedades industrializadas, as mutações qua-litativas das relações entre a agricultura e a indústria constituem um

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dado novo. As modificações mais significativas, segundo Jannarelli3, surgem das profundas transformações ocorridas no setor industrial e que interessam, a princípio, às indústrias alimentícias.

As indústrias alimentícias, buscando posicionar-se no mercado competitivo cada vez mais agressivo, adotaram modernas técnicas de marketing, fundadas preferencialmente sobre a diferenciação dos pro-dutos que serão oferecidos no mercado consumidor. particularmente, para assegurar fontes constantes de fornecimento de matéria-prima idônea destinada à transformação industrial, optaram por uma política contratual de integração. Nesse sentido afirma Jannarelli4,

In alternativa alla soluzione, economicamente non sempre prati-cabile, di inglobare nell’attività di impresa anche la fase agricola (integrazione verticale in senso stretto), ossia quella legata alla produzione della materia prima, l’integrazione mediante contratto (ossia la quasi-integrazione) ha rappresentato il veicolo attraverso il quale l’impresa industriale o commerciale operante nel settore dell’alimentazione si è indirizzata alla creazione di una propria rete di fornitori di prodotti agricoli con l’obiettivo, soppratutto, di orientare l’offerta alle esigenze specifiche proprie dei processi di trasformazione e di commercializzazione dei prodotti.

Assim, pode-se dizer que os contratos de integração vertical agroindustriais, nesse âmbito, realizam o importante papel de instru-mento de modernização da agricultura, por meio da cooperação entre os setores produtivo, transformador e comercializador. Se a princípio esse fenômeno de “quase-integração” interessa apenas às indústrias de alimentos e aos produtores de gêneros alimentícios, atualmente, pode-se afirmar que a coordenação dos setores industrial e rural atin-ge áreas diversas, tais como a produção de biocombustíveis. cres-ce assim a importância de estudos sistematizados dessa modalidade contratual cuja função socioeconômica poderia ser sintetizada no seu potencial de fortalecer a atividade empresarial pela minimização dos riscos existentes, sobretudo às oscilações de mercado.

3 JAnnAREllI, Antonio. Diritto Agrário e Società Industriale. T. 1. Bari: cacucci,T. 1. Bari: cacucci, 1993, p. 111.

4 JAnnAREllI, Diritto ..., cit., p. 111.

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Preliminarmente, faz-se necessária uma definição geral do fe-nômeno da integração, que deverá referir-se ao fenômeno de origem econômica, uma vez que a definição jurídica só é possível de se obter a partir da análise da disciplina legal de cada país.

o fenômeno da integração indica certo tipo de interação econô-mica entre duas partes que desenvolvem uma das operações do ciclo produtivo referentes à produção, transformação e venda de um de-terminado produto. Existe um centro de decisões que se concentra na parte que desenvolve ao menos duas das operações descritas an-teriormente e que normalmente seriam desenvolvidas por diferentes núcleos operativos. São possíveis formas de integração em diferentes níveis, como, por exemplo, no setor distributivo para ligar o produtor ao varejista. distinguem-se duas formas de integração, quais sejam, a horizontal – as partes pertencem à mesma categoria econômica; a vertical – as partes pertencem a categorias diferentes.

Mas deve-se observar que, na realidade, freqüentemente não se realiza uma verdadeira e própria integração vertical, mas simplesmen-te o fenômeno que os economistas chamam de “quase-integração”, e que corresponde ao meio termo entre a integração total e o livre mercado5. Também chamada de integração contratual, tal forma inte-grativa conserva a independência jurídica das partes, ao contrário da integração total em que haveria a perda da independência econômica e jurídica de uma das partes e do livre mercado no qual se conservam a independência econômica e jurídica6.

5 Vide JAnnAREllI, Antonio. disciplina legale e prassi applicativa nei contratti diVide JAnnAREllI, Antonio. disciplina legale e prassi applicativa nei contratti di Integrazione verticale in agricoltura: l’esperienza francese. In: Rivista di Diritto Agra-rio, I, Milano: Giuffrè, 1981, p. 327, segundo o qual “l’espressione quasi-integrazione, ovvero integrazione mediante contratti, è usata nella letteratura economica per descri-vere quei rapportiche su base contrattuale si organizzano tra diversi settori produttivi al fine di coordinare l’attività di imprese operanti nei vari segmenti della catena produzione – trasformazione – distribuzione dei beni sotto la direzione di un polo integratore”. TaisTais relações desenvolvem, sem dúvida, um papel restritivo no mercado o que nos leva a uma interessante análise de sua compatibilidade com as normas que vedam as restri-ções à concorrência.

6 o contrato de sous-traitance realiza perfeitamente o fenômeno da quase-integração, de-senvolvendo a tarefa de ligar economicamente os sous-traitants à empresa chefe, permi-tindo-lhes conservar a plena independência econômica. Em particular vide, TRAIScI, Francesco paolo. I contratti di integrazione verticale in agricoltura in Francia, Germania e Italia. Rivista di Diritto Agrario, pt. 1., Milano, 1992, p.555.

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As formas de integração mencionadas podem ser encontradas basicamente em todos os setores produtivos, e, particularmente, no setor produtivo agrícola a integração é freqüente, seja na forma hori-zontal como na vertical. A integração horizontal é fundamental para a correção dos efeitos negativos derivados da excessiva fragmentação das unidades produtivas, e isso, seja do ponto de vista de poder con-tratual em relação aos setores fornecedores de insumos e adquirentes de matéria-prima agrícola, seja da obtenção da economia de escala para específicas funções produtivas7. A integração horizontal favorece ainda uma maior homogeneidade da produção agrícola, de forma que o mercado possa ser abastecido de produtos padronizados, segundo ti-pos bem definidos e possam subtrair os agricultores da bem conhecida inferioridade contratual nas relações com os demais setores da econo-mia. portanto, os objetivos fundamentais dessa forma de integração é a correção das distorções de mercado dos produtos agrícolas e a expansão do campo em que o mecanismo do preço competitivo pode surtir efeitos. por isso, as formas de associação de produtores como as cooperativas e consórcios são sempre bem vistas e numerosas as normativas que incentivam tais associações.

A forma integrativa vertical é menos presente na prática, pois implica a concentração de custos e riscos e pode ser representada por uma empresa industrial ou comercial que cultiva um fundo agrícola próprio, utilizando a produção na própria atividade de transformação ou comercialização. As condições econômicas que levam a empresa a efetuar a integração vertical podem ser resumidas da seguinte forma: a primeira refere-se ao fato de que a integração pode reduzir ou elimi-nar alguns custos de transferência dos produtos de uma fase a outra; a segunda consiste na possibilidade de se assegurar tanto o abasteci-mento quanto a venda de produtos e serviços que, de outra forma, po-deriam encontrar obstáculos no mercado; a terceira deriva do fato de que a integração pode ser determinada por condições de riscos exis-

7 por meio da economia de escala que se torna possível utilizar os processos que dão lugar a economia dos custos unitários, economias conexas à utilização ótima dos equipamen-tos, da atividade administrativa e de outros serviços que de forma alguma as empresas não-integradas poderiam conseguir sozinhas devido a sua insuficiente dimensão. Vide cEcchI, c.; cIAnFERonI, R.; pAccIAnI, A. Economia e politica dell’ agricoltura e dell’ ambiente. Milano: cEdAM, 1991, p. 279-309.

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tentes no canal distributivo relativos a preços no momento de venda ou aquisição e características qualitativas da oferta e da demanda fu-tura (uma comunicação e informações mais eficientes reduzem o risco da atividade comercial); a última refere-se à possibilidade de alcançar algum controle do mercado pela capacidade de influenciar a formação dos preços ou colocar em ação políticas de mercado a seu favor.

no entanto, a forma de integração que vem se desenvolvendo com maior freqüência é a contratual, representada por uma empresa industrial ou comercial que adquire os produtos necessários à própria atividade, por meio de um ou mais contratos de cultivo ou de criação de animais, estabelecidos com uma empresa agrícola. Essa chamada integração contratual ou quase-integração que atua por meio de con-tratos, pode apresentar um vínculo de agregação mais ou menos es-treito entre as partes. Assim, haverá a quase-integração parcial quan-do o vínculo entre as partes for mais brando, de forma que a empresa industrial ou comercial se integra à empresa agrícola para garantir o seu fornecimento de matéria-prima. de outra forma, haverá a qua-se-integração total quando a parte agrícola se vincula à parte indus-trial ou comercial, garantindo-lhe o fornecimento de matéria-prima e recebendo dela provisões de insumos, financiamentos e assistência técnica.

do ponto de vista econômico, resultados de observações em-píricas8 indicam que a atividade regulada por contratos de integração gera profundas transformações tecnológicas e organizacionais, além de caracterizar os produtores integrados como um conjunto diferen-

8 nesse sentido vide BAndo, paulo Massanore. Coordenação vertical no complexo agro-industrial frutícola brasileiro; uma proposta para a Zona da Mata Mineira, 1998. disser-tação (Mestrado em Economia Rural). departamento de Economia Rural. universidade Federal de Viçosa, p. 9.; AlVES, Rosângela costa. A comunicação entre integradora e integrados: o caso da agroindústria suinícola no meio oeste catarinense, 1998. dis-sertação (Mestrado Extensão Rural) – Departamento de Economia Rural, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, p. 7-9; SIlVEIRA, carla diniz. Estrutura e desempenho da agroindústria alimentícia no Brasil: evolução e tendências, 1997. dissertação (Mestrado em Economia Rural). departamento de Economia Rural. universidade Federal de Viço-sa, Viçosa; VAlEnZA, nunziata Stefania. Os contratos de integração vertical agroin-dustriais: a viabilidade de uma disciplina legal em face da prática contratual brasilei-ra (estudo comparativo doutrinário e legal dos sistemas italiano, francês e brasileiro), 2005. dissertação (Mestrado em direito). Faculdade de direito. universidade Federal de Minas Gerais, Belo horizonte, 2005.

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ciado de produtores rurais. na verdade, as empresas integradoras es-peram que os integrados atuem como empresários e tenham disposi-ção para investir, buscando assim assegurar o fornecimento constante de matéria-prima e sua estabilização.

os contratos de integração vertical vêm sendo fortemente utili-zados tanto nos setores da industrialização como da comercialização. A maioria da produção de legumes para processamento industrial na França, na holanda, no Reino unido, na Itália, na Espanha e no Brasil, somente para citar alguns países, é produzida sob contratos que não são meramente de entrega e de venda, mas se constituem em “contra-tos de transferência administrativa ou empresarial” em que as firmas contratantes são responsáveis por muitas ou todas as tomadas de deci-são, ou pela execução de atividades do processo de produção agrícola, incluindo oferta de insumos, determinação das épocas de plantio e tratamento, e até mesmo realizando a colheita e o transporte.

os contratos que começam a ser celebrados no Brasil entre pro-dutores de matérias-primas cujo uso se destina à produção de biocom-bustíveis no Brasil, tais como mamona, soja, dendê, pinhão-manso, vêm sendo construídos consoante a lógica da integração vertical parcial e em formato contratual bastante semelhante a já consolidada prática brasileira de integração nos setores da avicultura e suinocultura. contudo, a pronta intervenção do Estado em regulamentar essa específica inter-relação, con-ferindo ainda incentivos sob a forma das sanções premiais – no binômio selo social e isenção fiscal, bem como se preocupando em traçar limites para a confecção dos contratos individuais e de alguma forma exigindo a participação de entes coletivos representativos dos produtores, são, sem dúvida, traços distintivos entre o modelo de integração contratual pratica-do no setor alimentício sem qualquer intervenção do Estado e o modelo esboçado para a cadeia produtiva do biodiesel.

3 ASpeCtoS JuRÍdiCoS dAS ReLAçÕeS ContRAtuAiS de pRodução inteGRAdA no BRASiL

no Brasil, a utilização de modelos contratuais distanciados no seu conteúdo e função dos modelos típicos do código civil e que re-

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gulam as relações de colaboração entre os setores produtivos agrope-cuário e agroindustrial é uma realidade latente há mais de vinte anos. A observação na prática dos negócios indica uma nítida multiplicação dessa modalidade contratual no Brasil, no mesmo ritmo em que se modernizam as relações agricultura-indústria, mas trata-se ainda de uma modalidade contratual autônoma desprovida de tutela legal es-pecífica. A lacuna deixada pela falta de regulamentação legal, bem como da precisa qualificação doutrinária e jurisprudencial, precisa ser vencida. Mormente quando se observa o espraiar-se dos modelos contratuais de integração vertical agroindustriais, antes terreno soli-tário da matéria-prima alimentícia, para o novel setor de produção de biocombustíveis. Nesse sentido uma adequada conceituação, classifi-cação e interpretação sistematizada da doutrina jurídica é de grande importância, inclusive porque se entende não seja possível separar economia, direito e organizações. o avanço no plano econômico do plano nacional de produção de Biodiesel depende da construção e re-construção de instituições, dentre as quais o direito, mais adequadas a nova demanda social. Segundo Zylberstajn e Sztajn9

As organizações são relações contratuais coordenadas (governa-das) por mecanismos idealizados pelos agentes produtivos. Se a firma pode ser entendida como um nexo de contratos, então pro-blemas de quebras contratuais, de salvaguardas, de mecanismos criados para manter os contratos e, especialmente, mecanismos que permitam resolver problemas de inadimplemento, total ou parcial, dos contratos, sejam tribunais ou mecanismos privados, passam a ter destaque na Economia. Além disso, fazem a ponte para as organizações, através do direito.

A integração do setor primário ao setor industrial provocou uma profunda revolução no mundo agrícola. A importância dessas formas integrativas destinadas a uma forma de organização dos mercados (oferta de produtos agrícolas orientada, em última instância, pelo mer-cado consumidor) levou os Estados a se ocuparem de algumas formas de intervenção. dentre as muitas técnicas e modelos utilizados, nota-

9 ZYlBERSTAJn, décio; SZTAJn, Rachel. (org) Análise econômica do direito e das or-ZYlBERSTAJn, décio; SZTAJn, Rachel. (org) Análise econômica do direito e das or-(org) Análise econômica do direito e das or-ganizações. In: Direito e Economia, Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 7.

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se que as legislações européias privilegiaram o incentivo ao desenvol-vimento de associações de produtores e à organização dos mercados agrícolas por meio das chamadas “leis de orientação agrícola”, que prevêem dispositivos de acordos entre setores produtivos diversos. É o que acontece na Itália com os accordi interprofessionali e na França com os accords interprofessionels a long terme. no Brasil, o modelo proposto para a produção de biodiesel tem algo de inédito, pois, pela primeira vez, o Estado intervém de forma a estimular a participação de setores produtivos excluídos, como a agricultura familiar, sem a injeção própria de recursos públicos, mas criando uma rede de incen-tivos para a colaboração das empresas privadas e com a legitimação contratual por parte do sindicalismo. Segundo AccARInI10 no que se refere ao programa nacional de biodiesel “o papel das políticas públi-cas tem sido o de propiciar condições para que o mercado de biodiesel funcione de forma mais eficiente possível e de dar suporte aos elos mais frágeis do mercado.”, que seriam os agricultores familiares de um lado e os consumidores de combustíveis na outra ponta da cadeia. Quanto à questão da eficiência do programa brasileiro de biodiesel o uso da ferramenta da análise econômica do direito e das organizações é de fundamental importância pois pode permitir perceber riscos fu-turos potenciais inerentes ao ambiente institucional desenhado e com isso permitir a criação de salvaguardas.

Grande é a dificuldade quando se trata de dar tratamento jurídi-co às formas de integração contratual que apresentam problemas de re-equilíbrio do poder contratual e buscam soluções jurídicas diversas daquelas destinadas simplesmente a regular a colocação dos produtos no mercado. É preciso estar atento para o grau de intervencionismo na matéria que originariamente é de domínio dos particulares.

A intervenção estatal por meio de legislação específica é im-portante para garantia do produtor, uma vez que este se encontra em posição contratual mais fraca, para garantia da agroindústria, uma vez que permite sejam fixadas as definições e os limites para a aplicação das normas jurídicas vigentes no país, sobretudo em termos tributá-rios, trabalhistas e previdenciários, e importante para a própria exis-

10 AccARInI, José honório. Biodiesel no Brasil: estágio atual e perspectivas. periódico Bahia Análise & dados, Salvador, v.16, n. 1, jun. 2006, p. 61.

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tência dessa categoria contratual destinada a servir de instrumento de organização do mercado agrícola. contudo, é preciso que esse inter-vencionismo não comprometa a necessária autonomia da vontade das partes. por isso, muitas vezes, a opção das legislações européias em disciplinar os contratos de integração vertical agroindustriais junto à disciplina das associações, parece ser mais sábia, pois coloca lado a lado a autonomia individual e a autonomia coletiva: uma garantindo a liberdade na contratação e a outra, o equilíbrio entre as partes no contrato.

Embora o marco legal até o momento editado não tenha se preo-cupado com a questão da normatização dos contratos de integração nem tenha avançado na disciplina das organizações coletivas inter-profissionais como entes legitimados a representar os interesses das partes contratantes, produtores e industriais, nas negociações e na fase de cumprimento dos contratos, algum avanço pode ser sentido quan-do o Estado por meio de incentivos positivos vincula a produção do biodiesel à participação colaborativa das empresas privadas, dos pro-dutores familiares e dos sindicatos, que irão legitimar as contratações de matérias-primas destinadas à indústria.

4 oS ContRAtoS de inteGRAção veRtiCAL AGRoinduStRiAiS nA pRodução do BiodieSeL

A política pública de incentivo ao uso e à produção do biodiesel no Brasil tem como um de seus objetivos o de ser um instrumento de promoção da inclusão social de agricultores familiares mediante a geração de renda devido ao engajamento na cadeia produtiva do biodiesel. Segundo Abramovat e Magalhães11 a integração contratual que ocorre na produção do biodiesel proposta no pnpB é mais do que um caso típico, já conhecido nas cadeias de produção de alimentos como na avicultura e fruticultura. o que se tem é um padrão inédito

11 ABRAMoVAY, Ricardo; MAGAlhÃES, Reginaldo. O acesso dos agricultores familia-res aos mercados de biodiesel: parcerias entre grandes empresas e movimentos sociais. disponível em: http://www.fipe.org.br/web/publicacoes/discussao/textos/texto_06_2007.pdf. Acesso em 03/10/2007.

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de funcionamento do próprio mercado e sua coordenação. nesse novo padrão as empresas se apóiam no movimento sindical (na entidade coletiva de organização dos trabalhadores rurais) para selecionar seus fornecedores de matéria-prima, bem como para negociar os contratos e organizar a oferta de matéria-prima, controlando a qualidade do pro-duto mediante um aparato de assistência técnica que ocorre durante todo o processo produtivo no campo, sendo garantido aos produtores um preço mínimo e garantia de compra do produto. nesse quadro o Estado participa oferecendo os incentivos adequados, dentre os quais criando o selo social que permite aos detentores dessa “certificação” participar dos leilões organizados pela Agência nacional do petróleo, assim como usufruir importantes isenções fiscais.

A dimensão da produção do biodiesel ultrapassa certamente o campo da produção e colocação do produto no mercado. Abre ca-minho para a incorporação de temas como a responsabilidade social das empresas, a segurança alimentar na integração com a produção de alimentos, e a preservação ambiental na medida em que biocom-bustíveis ajudam na diminuição de gases poluentes e trabalham a in-tegridade ecológica dos territórios agrícolas por onde os produtos da matéria-prima se expandem.

Basicamente três são os atores sociais envolvidos na produção do biodiesel: as empresas que produzem o biodiesel, os produtores ru-rais, dentre estes os agricultores familiares, os sindicatos dos trabalha-dores rurais e o Estado por meio do Ministério do desenvolvimento Agrário (MdA). Segundo Abramovat e Magalhães12 não se trata do mesmo tipo de relação que empresas integradoras de pequenos ani-mais mantêm com os agricultores do Sul do país, porque no caso do biodiesel os contratos são “monitorados socialmente, regulamentados pelo governo e sujeitos a negociações que não se limitam à empresa e aos agricultores”. os sindicatos teriam um papel que vai além da defesa dos interesses dos agricultores para assumirem um vivo papel normativo na formulação e execução dos contratos.

12 ABRAMoVAY, Ricardo; MAGAlhÃES, Reginaldo. O acesso dos agricultores familia-res aos mercados de biodiesel: parcerias entre grandes empresas e movimentos sociais. disponível em: http://www.fipe.org.br/web/publicacoes/discussao/textos/texto_06_2007.pdf. Acesso em 03/10/2007.

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A base do incentivo estatal à participação das empresas no pnpB é a normativa que determina como obrigatória a mistura de 2%, começando em 2008 e atingindo 5% em 2013, de matéria-pri-ma energética não-fóssil na composição do óleo diesel mineral. Essa regra normativa cria de alguma forma uma garantia de que haverá mercado para o produto e um mercado crescente. uma vez dado o incentivo pela norma, é possível inserir medidas de caráter social que seriam a promoção da participação na cadeia produtiva dos agricul-tores familiares13, uma categoria marginalizada no mercado e que de outra forma provavelmente não participaria dessa cadeia produtiva. A norma dispõe que as empresas somente poderão participar dos leilões nos quais a pETRoBRAS realiza a compra antecipada da produção de biodiesel (novamente a idéia de garantia de mercado) apresentando o selo social.

O selo social é espécie de certificação social atribuída pelo MdA tendo por base uma minuciosa análise do contrato de integra-ção que as empresas e os produtores firmaram, com a participação do sindicato de trabalhadores rurais do município onde a produção da matéria-prima do biodiesel será efetivada. A norma contida na Instru-ção Normativa do MDA n. 02, de 30 de setembro de 2005, art. 3º, fixa os parâmetros para a obtenção do selo criando percentuais diversos de participação obrigatória da agricultura familiar no montante de ma-téria-prima adquirida pela empresa processadora, dependendo ainda da região geográfica onde se encontra, com o objetivo transversal de promover para atenuar as disparidades regionais no Brasil. Assim, no nordeste e semi-árido o percentual mínimo de aquisição de matéria-prima advinda de agricultores familiares integrados é de 50%, para as regiões Sudeste e Sul 30% e para o norte e centro oeste 10%.

no entanto, a garantia de compra do produto representada pelo selo social não é o único incentivo normativo criado para fazer com que as empresas negociem com os pequenos agricultores, há ainda

13 Agricultor familiar é aquele que explora direta e pessoalmente com auxílio de sua família propriedade familiar. Esta é definida pelo art. 4, inciso II, Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) como sendo “o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progres-so social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com a ajuda de terceiros”.

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importantes isenções fiscais. Nesse ponto o incentivo tem caráter dú-plice: visa a estimular a relação contratual entre empresas e agriculto-res familiares e ainda beneficia o uso de matérias-primas pouco em-pregadas na produção do biodiesel, como a mamona e o dendê, mais adaptáveis ao sistema de produção familiar. Além disso, a norma se revela em importante incentivo à policultura no lugar das monótonas monoculturas até hoje implantadas como fontes para a produção de biocombustíveis, e que se expandem por vastas áreas, inclusive con-tribuindo com o crescente desmatamento, como o que ocorre com a cana-de-açúcar e a soja.

o controle sobre o cumprimento das percentagens estabelecidas na lei vem dos contratos de integração individuais assinados com os produtores, mas que são assinados e monitorados pelos Sindicatos dos Trabalhadores do Município em questão.

Quanto à forma e conteúdo desses “novos” modelos contratuais de integração o art. 5º da Instrução Normativa do MDA n. 02, de 30 de setembro de 2005, dispõe que a proposta de contratos terão a parti-cipação de pelo menos uma representação dos agricultores familiares. A interpretação literal da norma indica que já na fase de negociação do contrato deverá existir a participação dos sindicatos, e não a mera aposição de assinatura do mesmo no instrumento contratual pré-ela-borado pela empresa industrial. o parágrafo único do mesmo artigo determina o conteúdo mínimo a ser observado nos contratos: prazo contratual; o preço de compra do produto e os critérios de reajustes de preços; condições de entrega da matéria-prima; as garantias con-tratuais; a assinatura de concordância da entidade representativa do agricultor familiar que participou das negociações comerciais.

dispõe a norma que será requisito obrigatório para a obtenção do selo social que a empresa disponibilize e opere um plano de as-sistência e capacitação técnica dos agricultores familiares que serão atendidos individualmente.

Enfim, por todas as características contratuais apresentadas pode-se concluir que o pnpB absorveu o modelo contratual autônomo que realiza o fenômeno da quase-integração já amplamente utilizado em outros setores como a integração operada pela Sadia e perdigão, dentre outras. A construção de um conceito dos contratos de integra-ção vertical agroindustriais, certamente, terá por base os elementos

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essenciais que os caracterizam. São estes: a reciprocidade das obriga-ções de fazer e de dar14; o fornecimento recíproco de bens ou serviços; a dominação que é um critério identificável no poder de controle e di-reção exercido pelo pólo integrador na busca da qualidade dos produ-tos; a função de troca e de cooperação pela qual se pretende resolver o problema da irregularidade na oferta de matéria-prima para a indústria e a dificuldade de colocação no mercado dos produtos agrícolas pelo produtor; os sujeitos da relação que são sempre o produtor agrícola de um lado e a empresa industrial do outro, ou melhor, a empresa agrária de um lado e a empresa industrial ou comercial do outro lado.

A diferença entre os contratos da cadeia do biodiesel e os contra-tos da cadeia alimentícia parece residir no arranjo institucional criado pelo Estado que permitiu a sua intervenção indireta por meio de me-canismos entrelaçados de incentivos, dentro de uma política pública de uso e produção de biocombustíveis, enquanto na cadeia alimen-tícia, no tocante aos contratos de integração, nota-se uma absoluta abstenção do Estado em intervir deixando completamente lacunosa a disciplina a ser dada às relações privadas nascidas dos contratos de integração agroindustriais. contudo, a partir dos primeiros marcos legais da produção do biodiesel, conforme tratado no item 1, impõem-se os seguintes questionamentos: pode-se dizer que no Brasil a partir da a Instrução normativa n. 02 de 30 de setembro de 2005 do MdA que dispõe dentre outras coisas a obrigatoriedade da co-participação das instituições representativas dos produtores rurais nas propostas de contrato de cultivo e venda de matéria-prima para as indústrias processadoras do biocombustível e sobre o conteúdo mínimo desses contratos, que haveria uma tipificação legal direta dos contratos de integração vertical agroindustriais? Não haveria também a possibi-lidade de se considerar uma tipificação indireta a partir dos modelos contratuais-tipos formulados pelas empresas e sindicatos dos traba-

14 A dependência recíproca entre agentes econômicos torna o planejamento especial, dan-do-lhe perfil menos competitivo. Não que isso signifique o desaparecimento da concor-rência, mas há uma espécie de rotina associativa entre unidades produtivas que aparece fora do tradicional esquema de constituição de sociedades. ocorre sob outras formas para facilitar o exercício da atividade em regime de especialização e cooperação de longo pra-zo. Não há necessidade de ter um único centro de imputação da atividade, que se exerce ao longo da cadeia produtiva. Vide, SZTAJn. Teoria jurídica da empresa – atividade empresária e mercados. São paulo: Atlas, 2004, p. 14.

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lhadores rurais/agricultores familiares? Terão os sindicatos condições de serem bem sucedidos na tarefa normativa, ou seja, contribuir para elaboração de contratos de integração de cunho coletivo (já bem con-solidados no direito do trabalho)?

certamente inter-relação, empresa – agricultor familiar, criada na cadeia do biodiesel ainda não foi estabilizada e nada garante que terá vida longa; contudo, o mérito reside no avanço institucional sig-nificativo que, numa análise ainda que breve, parece ter fortes chan-ces de se consolidar.

4.1 Eficiências e ineficiências do PNPB no enfoque da análise econômica do direito e das organizações

A Economia pode, de forma simplificada, ser conceituada como ramo das ciências sociais aplicadas, destinado à análise da forma pela qual a sociedade gera, organiza e usufrui dos limitados recursos mate-riais com o objetivo de atender as suas necessidades. Já o direito, tam-bém numa concepção simplificada, pode ser conceituado como ramo das ciências sociais aplicadas, destinado ao estudo de princípios e re-gras destinados a reger as condutas das pessoas na sociedade e que no seu conjunto irão compor um sistema jurídico. A princípio poder-se-ia pensar, como de fato ocorria há algumas décadas, na existência de um abismo intransponível entre direito e Economia, pois ao direito alinha-va-se a idéia de valores dentre os quais a justiça, enquanto a Economia dizia respeito à eficiência. Contudo, os estudos interdisciplinares, que numa discussão contemporânea têm como pioneiros Ronald coase, Guido calabresi e Trimarcchi, apontaram novos aspectos na relação Economia e direito contribuindo para o esmorecimento do mito da existência da completa incomunicabilidade entre Ciência econômica e ciência jurídica. Algumas interfaces podem, de plano, ser percebidas.

o economista de hoje não é desprovido de uma escala de valo-res e o fundamento dessa escala de valores é a eficiência econômica com a suposição de que o homem é um maximizador racional dos ob-jetivos de sua vida e de suas satisfações. os instrumentos conceituais de posner são a noção de preço, de custo, de custo de oportunidade,

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de alocação dos recursos da maneira mais vantajosa. Eficiência no trabalho de Posner significa, portanto, o aproveitamento dos recursos econômicos de modo que o valor, ou seja, a satisfação humana me-dida pela vontade de pagar por produtos e serviços, alcance o nível máximo.15

Por sua vez o critério da eficiência não é uma idéia afastada do Direito, muito pelo contrário, pois aferir a eficiência ou ineficiência de leis e decisões judiciais condiz com a produção melhor ou pior dos efeitos pretendidos pela norma em abstrato no mundo das relações concretas. pode-se partir da idéia de que o “direito não dá coman-dos impossíveis, pois comandos impossíveis não serão cumpridos”16, compreender que a maior ou menor efetividade das normas está re-lacionada com escolha pela norma dos incentivos (sanções restritivas e sanções premiais) mais ou menos adequados. Embora a eficiência econômica, corporificada pela maximização na geração e distribuição da riqueza disponível em uma dada sociedade, não seja o único va-lor a ser perseguido pelo ordenamento jurídico, é certamente um dos valores que serão implementados. Trata-se de valor-meio na medida em que consiste num instrumento pelo qual se permite ao indivíduo a plenitude de outros valores fundamentais, tais como a liberdade e a dignidade humana.17

A partir da idéia defendida por coase de que “as instituições legais impactam significativamente o comportamento dos agentes econômicos” e de Guido calabresi de que “uma análise jurídica ade-quada não prescinde do tratamento econômico das questões”18, tor-na-se clara a relevância dos estudos interdisciplinares da Economia e do direito levados a efeito pela Análise Econômica do direito que conforme Silva19 “é a aplicação da teoria econômica e dos métodos

15 AlpA, Guido. Interpretazione giuridica e analisi econômica. A cura di Guido Alpa et al. Milano: Giuffrè, 1982, p.11.

16 Idem, p. 11Idem, p. 1117 cooTER, Robert; ulEn, Thomas.cooTER, Robert; ulEn, Thomas. Law & Economics. 4 ed.(s.l.)A. Wesley, longman,

2005, p. 4.18 ZYlBERSTAJn, décio; SZTAJn, Rachel. (org) Análise econômica do direito e das or-ZYlBERSTAJn, décio; SZTAJn, Rachel. (org) Análise econômica do direito e das or-(org) Análise econômica do direito e das or-

ganizações. In: Direito e Economia, Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 2.19 SIlVA, Mariana duarte. A economia de um direito humano: análise econômica do direi-

to à liberdade de expressão garantido na Convenção Européia dos Direitos do Homem. In: Revista de direito público, doutrina Estrangeira, n. 13, Jul-Ago-Set/2006, p. 3.

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econométricos no estudo da formação, dos processos e do impacto das normas e instituições jurídicas, sendo estas vistas como variáveis dentro do sistema econômico e não como fatores externos a ele”. A análise econômica deve considerar o “ambiente normativo” que en-volve os agentes econômicos para não “correr o risco de chegar a conclusões equivocadas ou imprecisas”, por não ter em consideração as sanções impostas ao comportamento dos agentes20.

A análise econômica tem aspectos positivos e normativos. no primeiro a função da análise econômica seria o de prever os efeitos das regras de direito, analisando como os agentes econômicos irão reagir às mudanças nas regras jurídicas. Esse tipo de análise posterior-mente pode ser usado com fins normativos, ou seja, a partir dos escla-recimentos produzidos na análise positivista, procuram-se estabelecer recomendações de políticas públicas e modelos normativos diversos baseados nas várias conseqüências econômicas21. A análise econômi-ca tem um papel explicativo e prescritivo do modelo normativo do programa nacional de produção e uso do Biodiesel. Em primeiro lugar porque permite denunciar os efeitos das normas criadas para permitir a implantação do programa, e depois porque uma vez iden-tificados os efeitos caberá ao legislador, a partir dessa informação, decidir se esses efeitos são ou não adequados aos valores prevalentes na sociedade, podendo inclusive modificar a normativa de forma a tornar o PNPB mais eficiente.

Enfim, é preciso estabelecer um significado para a eficiência. Diz-se que o Direito é eficiente, segundo a regra de Pareto, “quando molda a conduta dos indivíduos de forma a incentivá-los a alocar os recursos materiais disponíveis na propriedade daqueles que mais os desejem.” para pimenta22 numa outra concepção de eficiência “haverá um ganho real no bem-estar e riqueza da sociedade quando determi-nada conduta ou ato economicamente relevante redistribuir os bens e

20 ZYlBERSTAJn, décio; SZTAJn, Rachel. (org) Análise econômica do direito e das or-ganizações. In: Direito e Economia, Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 2.

21 pInhEIRo, Armando castelar; SAddI, Jairo. Curso de law & economics. Rio de Janei-ro: Ed. campus, p. 23.

22 pIMEnTA, Eduardo Goulart. Direito, Economia e relações patrimoniais privadas. In: Revista de Informação legislativa, n. 170, ano 43, abr/jun 2006, Brasília, p. 164.

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serviços disponíveis de forma que os agentes econômicos afetados pe-los efeitos dessa medida econômica não estejam dispostos a retornar à posição original ainda que recebam, em dinheiro, o valor correspon-dente ao acréscimo em seus bens e serviços que a medida ou conduta em análise os atribuiu”. A análise econômica do direito pressupõe que a conduta conforme a lei ou desconforme com ela é decidida a partir de seus interesses e dos incentivos que encontra para efetuá-la ou não. os agentes pautam suas condutas analisando previamente a melhor relação custo X benefício. Assim, a sanção jurídica será o elemento encorajador ou desencorajador do cumprimento do preceito contido na norma de direito; não será o mero temor ao poder de coerção do Estado a fazer com que indivíduos dirijam suas condutas de acordo com o dispõem as normas, será em primeira e última instância uma análise econômica de custos e benefícios nos quais incorrerão, caso o façam ou deixem de fazê-lo.

na perspectiva de análise custo/benefício podem ser elucida-das algumas vantagens e algumas desvantagens (riscos) extraídas do modelo legal, base do programa nacional de produção e uso do Biodiesel.

para que a indústria fabricante do biodiesel venha aderir ao pnpB, contratando a compra de matéria-prima dos pequenos agri-cultores familiares na forma descrita pela instrução normativa n. 02 de 30 de setembro de 2005 do MdA, ou seja, obedecendo ao per-centual mínimo de quantidade a ser contratada e fazendo-o com a intermediação dos sindicatos de trabalhadores rurais, dois impor-tantes incentivos foram dados a elas. Trata-se da redução da car-ga tributária federal incidente sobre o biodiesel, tendo sido fixada alíquota zero para o IpI, não-incidência da cIdE-petróleo, redução proporcional do PIS/Pasep e Cofins. A tabela23 apresentada em se-guida mostra resumidamente a incidência de tributos federais e a comparação com o diesel mineral.

23 Fonte: decretos n. 5.298 de 06.12.2004; 5.297 de 06.12.2004 e 5.457 de 06.06.2005;Vide ainda: ABRAMoVAY, Ricardo; MAGAlhÃES, Reginaldo. O acesso dos agricultores familiares aos mercados de biodiesel: parcerias entre grandes empresas e movimentos sociais. disponível em: http://www.fipe.org.br/web/publicacoes/discussao/textos/texto_06_2007.pdf. Acesso em 03/10/2007.

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Tributos federais incidentes sobre o biodiesel por tipo/origem da matéria-prima

Tributos Federais

Agricultura familiar no norte e nordeste e Semi-árido com mamona ou palma

Agricultura familiar

norte, nordeste e Semi-árido com mamona ou palma. Fornecedor diverso agricultura familiar.

diesel mineral

IpI Alíquota zero Alíquota zero Alíquota zero Alíquota zero

cIdE Inexistente Inexistente Inexistente R$ 0,070

pIS/pasep e Cofins

Redução de até 100%

Redução de até 68%

Redução de até 32%

R$ 0,148

Total de tributos em

R$/litroR$ 0,00 R$ 0,070 R$ 0,218 R$ 0,218

A redução da carga tributária estabelecendo um vínculo entre a agricultura familiar e as localidades brasileiras onde os níveis de desenvolvimento humano e econômico são mais críticos, bem como ao produto que servirá de matéria-prima para o biodiesel (mamona e palma) diverso daqueles já praticados o Brasil em sistema de plantio em grandes áreas, com alta tecnologia e monocultura, como é o caso da cana-de-açúcar e da soja, são medidas que contribuem, em parte, para atenuar uma já apontada desvantagem do programa, que seria a degradação ambiental e o perigo para a segurança alimentar. A expan-são da cana-de-açúcar no centro-oeste brasileiro, por exemplo, culti-vada em grandes superfícies territoriais levando a conseqüente mo-notonia da paisagem agrícola e com base em degradantes condições de trabalho dos cortadores de cana poderia levar ao deslocamento da pecuária e do cultivo de soja cada vez mais em direção à Amazônia, aumentando ainda mais o desmatamento. Aponta-se ainda como des-

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vantagem genérica dos programas de produção de biocombustíveis a ameaça à segurança alimentar mundial, pois como afirmam Abra-movay e Magalhães24, citando Jean-Marc Boussard, a “generalização e a exclusividade no uso de biocarburantes como fonte de energia poderia constituir uma pressão insuportável sobre as terras agrícolas”. os produtos que inicialmente constituíam matéria-prima primordial-mente alimentar, agora passariam a também se constituir em matéria-prima de um importante setor de produção de combustíveis, o que levaria à redução dos estoques mundiais de alimentos e aumento dos preços dos produtos agrícolas que são base da alimentação da popula-ção mundial, notadamente, milho e soja.

Contudo, em contraponto às desvantagens expostas anterior-mente o pnpB criou incentivos positivos, redução de carga tributária é um deles, para que se privilegie a produção de matéria-prima para a indústria do biodiesel que não estão na base da alimentação, como o dendê e a mamona, e que podem ser cultivados por pequenos agricul-tores, inclusive aproveitando áreas que já se encontram degradadas, como o semi-árido brasileiro.

outra estratégia de incentivos estabelecida pela normativa do pnpB é a criação do selo social para o biodiesel. Trata-se de espé-cie de certificação ainda restrita ao aspecto social que é dada pelo Ministério do desenvolvimento Agrário às indústrias que cumpram os seguintes requisitos expressos nos artigos 2º, 6º, 7º da Instrução normativa do MdA n. 01 de 5 de julho de 2005: • os percentuais mínimos de aquisições de matéria-prima do

agricultor familiar, feitas pelo produtor de biodiesel para con-cessão de uso do selo combustível social estabelecidos em 50% (cinqüenta por cento) para a região nordeste e semi-árido, 30% (trinta por cento) para as regiões Sudeste e Sul e 10% (dez por cento) para as regiões norte e centro-oeste;

• para concessão de uso do selo combustível social, o produtor de biodiesel deverá celebrar previamente contratos com todos os

24 ABRAMoVAY, Ricardo; MAGAlhÃES, Reginaldo. O acesso dos agricultores familia-res aos mercados de biodiesel: parcerias entre grandes empresas e movimentos sociais. disponível em: http://www.fipe.org.br/web/publicacoes/discussao/textos/texto_06_2007.pdf. Acesso em 03/10/2007.

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agricultores familiares ou suas cooperativas agropecuárias de quem adquira matérias-primas. As negociações contratuais terão participação de pelo menos uma representação dos agricultores familiares que poderá ser feita por: I. Sindicatos de Trabalhado-res Rurais, ou de Trabalhadores na Agricultura Familiar, ou Fe-derações filiadas à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – contag; II. Sindicatos de Trabalhadores Rurais, ou de Trabalhadores na Agricultura Familiar, ou Federações filiadas a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar – Fetraf; III. Sindicatos de Trabalhadores Rurais ou de Agricultores Fami-liares ligados à Associação nacional dos pequenos Agricultores – AnpA; e IV. outras instituições credenciadas pelo MdA;

• para concessão de uso do selo combustível social, o produtor de biodiesel assegurará a assistência e capacitação técnica a todos os agricultores familiares de quem adquira matérias-primas.

o selo combustível social confere ao seu possuidor o caráter de pro-motor de inclusão social dos agricultores familiares enquadrados no pro-grama nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – pRonAF. Terá validade de 5 (cinco) anos a partir da data de publicação no diário Oficial da União. O MDA avaliará, em uma freqüência anual, o cumpri-mento, pelo produtor de biodiesel, dos critérios de concessão de uso do selo combustível social, mediante realização de avaliação externa.

A obtenção do selo social traz para a indústria do biodiesel van-tagens, como a garantia de mercado representada pelo direito de parti-cipar dos leilões de compra de biodiesel, realizados antecipadamente pela pETRoBRAS e ainda atribui ao seu produto uma marca social que poderá lhe proporcionar maiores oportunidades de acesso e me-nores riscos de contestação por parte dos consumidores. Atualmente não se nega mais a dimensão ética que permeia a atividade negocial, complementar às dimensões econômica e legal. o pnpB busca en-corajar a formação do mercado do biodiesel no Brasil, notadamente, com a dimensão da responsabilidade social que, segundo Abramovay e Magalhães25 é o resultado da coalizão de três atores sociais: empre-

25 ABRAMoVAY, Ricardo; MAGAlhÃES, Reginaldo. O acesso dos agricultores familia-res aos mercados de biodiesel: parcerias entre grandes empresas e movimentos sociais.

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sas que passaram a adotar a responsabilidade social como núcleo de seus negócios; os movimentos sociais que de uma postura de contes-tação passaram a condição de parceiros nos negócios, e o Estado que passou a exercer um papel coordenação de antigos interesses antagô-nicos dos sujeitos envolvidos no processo.

O termo responsabilidade social corporativa significa de manei-ra ampla que as decisões que se tomarão nos negócios serão permea-das por valores éticos que incorporam o respeito pelas pessoas, pelas comunidades e pelo meio ambiente. Agindo dessa forma as empresas tendem a conquistar o respeito das pessoas e comunidades atingidas por suas ações, o engajamento dos seus colaboradores e a preferência dos consumidores26.

Assim, supõe-se que as vantagens da certificação social sejam superiores às desvantagens da indústria em restringir sua liberdade de atuação no mercado consubstanciado na obrigação de vincular-se por contrato de aquisição de matéria-prima aos agricultores familiares, nos percentuais mínimos fixados em lei e na forma contratual estabelecida.

Ainda no contexto das vantagens e desvantagens da contratação entre a indústria produtora de biodiesel e os agricultores familiares representados por seus sindicatos ou associações, tem-se o seguinte panorama: para as indústrias de biodiesel a integração contratual re-presenta uma estabilização das fontes de abastecimento de matéria-prima, aliada à vantagem de não ficarem dependentes de um só tipo de matéria-prima (como ocorre com a produção de etanol a partir da cana-de-açúcar) e se beneficiarem dos menores custos de produção da agricultura familiar. Em contrapartida, para os produtores rurais envolvidos no processo há a vantagem da inserção na cadeia produti-va do biodiesel que de outra forma não seria possível para a pequena produção, pois que historicamente a produção de matéria-prima para indústria de combustíveis sempre foi privilégio de grandes proprietá-rios de terras (latifundiários). A integração contratual com a indústria

disponível em: http://www.fipe.org.br/web/publicacoes/discussao/textos/texto_06_2007.pdf. Acesso em 03/10/2007.

26 MAchAdo FIlho, cláudio Antonio pinheiro; ZYlBERSZTAJn, décio. Responsabi-lidade social corporativa e a criação de valor para as organizações. Série de Working pa-pers n. 03/024, Faculdade de Economia, Administração e contabilidade, universidade de São paulo. disponível em: http://www.ead.fea.usp.b/wpapers. Acesso em 27/09/2007.

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garante-lhes a compra do produto, o preço mínimo preestabelecido, o aporte de tecnologia uma vez que o PNPB exige a execução de um plano de assistência técnica a cargo da indústria, além do que a in-termediação dos sindicatos pode agir diretamente na negociação dos preços da matéria-prima e na organização do novo mercado.

Embora a indústria com a inserção no pnBp incorram em cus-tos e despesas consideráveis, como para a prestação da assistência técnica individualizada dos seus integrados, os agricultores familiares contam com vantagens, conforme já discutido anteriormente, além do fato de que a intermediação dos sindicatos pode reduzir os custos na busca de novos integrados, bem como na execução dos contratos que passam a ser fiscalizados pelos sindicatos, o que tende a reduzir os riscos de quebra-contratual.

5 ConCLuSão

o programa nacional de produção e uso de Biodiesel repre-senta um esforço do governo brasileiro em criar condições para for-mação de um novo mercado em que há co-participação de indústrias produtoras de biodiesel, agricultores familiares, movimentos sociais e órgãos governamentais no esforço conjunto de favorecer o uso de biocombustíveis cujo impacto ambiental positivo é de fundamental importância em face dos índices de poluição causados pelos com-bustíveis fósseis, de reduzir as desigualdades regionais e atenuar os índices de miséria criando uma alternativa rentável para pequenos produtores.

o pnpB utiliza para tanto uma técnica normativa de “função promocional” do ordenamento jurídico27. Essa função pode ser assim explicada: quando o ordenamento atua na função repressiva e proteto-ra procura provocar certas condutas e atua sempre de forma negativa prevalecendo a técnica do desencorajamento; quando atua na função promocional a técnica típica é positiva, ou seja, há o encorajamento de certas condutas que, para se produzirem, necessitam das sanções

27 BoBBIo, norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria celeste cordei-ro leite dos Santos. 10. ed. Brasília, Editora unb, 1999, p. 13.10. ed. Brasília, Editora unb, 1999, p. 13.

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positivas também ditas premiais. As sanções premiais lançadas pelo PNPB foram a redução de tributos específicos e a criação do selo com-bustível social que dá às empresas produtoras de biodiesel vantagens mediante a contratação com a agricultura familiar, nos percentuais mínimos e com a obrigatória intermediação dos sindicatos.

Alguns desafios, contudo ainda devem ser superados. Um deles seria o de estimular e apoiar a organização dos agricultores familiares em associações, cooperativas e outras formas de aglutinação social, para o fortalecimento do próprio sistema de integração contratual agroindustrial. É necessário começar a pensar numa regulamentação incentivadora do papel normativo a ser desempenhado pelos sindica-tos e demais organizações dos produtores rurais, a exemplo do que já ocorre no direito do trabalho e nas chamadas organizações interpro-fissionais atuantes em alguns países europeus.

Um outro desafio a ser considerado no contexto do PNPB se-ria o de incentivar a implantação de sistemas integrados de produ-ção de alimentos e de energia com aproveitamento, por exemplo, dos resíduos da produção do biocombustível na alimentação animal, na produção de biogás, na produção de energia elétrica e em compostos agrícolas que retornariam para a produção de alimentos. o plano de assistência técnica elaborado pelas indústrias em benefício dos agri-cultores familiares integrados poderia conter previsão obrigatória de técnicas já disponibilizadas pela ciência agrária de produção integra-da de energia e alimentos.

Enfim, um outro desafio se impõe: seria a idéia de ampliar o movimento de certificação, presente no PNPB por meio do Selo Com-bustível Social, que a princípio trata somente da dimensão da inclusão social da agricultura familiar à cadeia do biodiesel, incluindo-se a cer-tificação ambiental da produção de biodiesel, considerando-se que o esforço internacional de certificação e rastreabilidade dos biocombus-tíveis é um sinal importante do problema produzir matéria-prima para biocombustíveis, sem promover maior degradação ambiental, ou ain-da, promovendo a recomposição ambiental de áreas já degradadas.

A direção e o sentido do desenvolvimento do mercado do bio-diesel deverão voltar-se para a qualidade e sustentabilidade não so-mente econômica, mas também social, ambiental e tecnológica. o

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papel do direito será o de escolher os incentivos adequados insertos nas normas jurídicas de modo a promover a segurança e as condições favoráveis para o funcionamento dos mercados e outros arranjos ins-titucionais.

6 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

ABRAMoVAY, Ricardo; MAGAlhÃES, Reginaldo. O acesso dos agricultores familiares aos mercados de biodiesel: parcerias entre grandes empresas e movimentos sociais. disponível em: http://www.fipe.org.br/web/publicacoes/discussao/textos/texto_06_2007.pdf. Acesso em 03/10/2007.

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BRASIl, decreto 5.297, de 6 de dezembro de 2004. dispõe so-bre os coeficientes de redução das alíquotas da contribuição para o pIS/pASEp e da coFInS incidentes na produção e na comerciali-zação de biodiesel, sobre os termos e as condições para a utilização das alíquotas diferenciadas, e dá outras providências. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, dF, 07 dez. 2004. Seção 1, p. 2.

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BRASIl, decreto 5.298 , de 6 de dezembro de 2004. Altera a alíquota do Imposto sobre produtos Industrializados incidente sobre o produto que menciona. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, dF, 07 dez. 2004. Seção 1, p. 3.

BRASIl, decreto 5.457, de 6 de junho de 2005. dá nova redação ao art. 3º do Decreto 5.297 que reduz as alíquotas da contribuição para o pIS/pASEp e da coFInS incidentes sobre a importação e comer-cialização do biodiesel. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, dF, 07 jun. 2005. Seção 1, p. 1.

BRASIl, lei 11.097/05 de 13 de janeiro de 2005. dispõe sobre a in-trodução do biodiesel na matriz energética brasileira e dá outras pro-vidências. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasí-lia, dF, 14 jan. 2005. Seção 1, p. 8.

BRASIl, lei 11.116 de 18 de maio de 2005. dispõe sobre Registro Especial, na Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, de produtor ou importador de biodiesel e sobre a incidência da con-tribuição para o PIS/Pasep e da Cofins sobre as receitas decorrentes da venda desse produto e dá outras providências. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, dF, 19 maio. 2005. Seção 1, p. 2.

BRASIl. Instrução normativa n. 01 de 5 de julho de 2005. Ministério do desenvolvimento Agrário. dispõe sobre os critérios e procedimen-tos relativos a concessão de uso do Selo combustível Social. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, dF, 7 jul. 2005. Seção 1, p. 65.

BRASIl. Instrução normativa n. 02 de 28 de setembro de 2005. Mi-nistério do desenvolvimento Agrário. dispõe sobre os critérios e pro-cedimentos relativos ao enquadramento de projetos de produção de biodiesel ao Selo combustível Social. Diário Oficial (da) República Federativa do Brasil, Brasília, dF, 30 set. 2005. Seção 1, p. 125.

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em direito). Faculdade de direito. universidade Federal de Minas Gerais, Belo horizonte, 2005.

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o concEITo dE conSTITuIÇÃo nA ModERnIdAdE: uM ESTudo A pARTIR dA REVoluÇÃo FRAncESA

FERnAndo JoSÉ ARMAndo RIBEIRo

Sumário

1. Introdução. 2. A ruptura revolucionária e a nova dimensão do conceito de liberdade. 3. A revolução pretende-se concretizar pelo direito. 4. o delinea-mento teórico do novo conceito de constituição. 5. As aporias do pensamento revolucionário. 6. con-clusão. 7. Referências bibliográficas.

Resumo A reflexão sobre o direito constitucional brasileiro e mun-

dial não pode prescindir de uma detida análise dos pressupos-tos conformadores do constitucionalismo moderno. Assim, na tentativa de reconstrução histórica do conceito de constituição, apresentamos aqui um estudo de um dos principais momentos definidores de tal conceito, vale dizer, a Revolução Francesa. A reflexão acerca de seu substrato teórico e suas ideologias servirá para melhor compreendermos as tensões e contradições inerentes ao projeto constitucional moderno cujo resgate e contínuo apri-moramento são exigências que se recobram hoje de todos os que lidam com o direito.pAlAVRAS-chAVE: constitucionalismo. Revolução Francesa. liberdade. direitos humanos.

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 175-196 2008

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FERnAndo JoSÉ ARMAndo RIBEIRo

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AbstractThe reflection about the constitutional law in Brazil as well as

all over the world cannot be done without the attentive analysis of the presuppositions of the modern western constitutionalism. In pursue of a historical reconstruction of the concept of constitution, we present here a paper about one of the most important historical moments in the definition of the concept of Constitution: the French Revolution. The analysis of its theoretical and ideological basis will lead us to a better understanding of the tensions and contradictions inherent to the modern constitutional project, witch nowadays we are all invited to observe and to improve. KEYWoRdS: constitutionalism. French Revolution. Freedom. hu-French Revolution. Freedom. hu-man Rights.

1 intRodução

no momento em que se celebram os 20 anos de nossa mais importante constituição, a sociedade brasileira vê-se tomada por dis-tintas e contraditórias manifestações a respeito da carta de 1988. Ao mesmo tempo em que se louvam as conquistas democráticas e hu-manas entoadas por esta constituição, vozes não faltam a dilapidá-la como instrumento de atraso e engessamento das relações políticas e econômicas do Brasil de hoje. Ademais, em tempos de festa e de ce-lebração de nossa constituição mais democrática, acusam-na de bas-tardia.

Todavia, para além dos insondáveis desígnios das estratégias e dos interesses políticos, parece haver algo mais que permeia o nosso ce-nário de incompreensão – até ousaria dizer, analfabetismo – constitucio-nal. São pré-compreensões historicamente construídas que, permeando mesmo os períodos de efervescência democrática, têm marcado uma visão mal formada ou distorcida sobre o fenômeno constitucional.

parece-me, pois, ter lugar aqui também a famosa provocação lançada por Immanuel Kant, no alvorecer da Era Moderna: “sapere aude”! ouse conhecer! ousemos nós todos conhecer e procurar dis-cutir e esclarecer os verdadeiros sentidos de uma constituição, seus

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o concEITo dE conSTITuIÇÃo nA ModERnIdAdE...

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pressupostos e suas possibilidades. Talvez, a partir de uma visão mais clara acerca dos verdadeiros significados do constitucionalismo, pos-samos entender mais e melhor acerca de nós mesmos, e do que o direito e a constituição podem ou/e devem fazer em uma sociedade politicamente organizada. Talvez possamos, a partir daí, aprender a aceitar a imperfectibilidade inerente a toda e qualquer constituição e melhor reconhecer e implementar suas grandes conquistas. Que pos-samos então deixar de lado, os brasileiros, a obsessão de reformular simplesmente os textos – como se eles tudo pudessem, e passemos a reformular a interpretação, pela ampliação dos parâmetros de nossa própria compreensão. Só assim poderemos nos aproximar da impor-tante verdade, tão bem explicitada por Souza Cruz, de que o processo constituinte deve assumir a condição de um aprendizado coletivo per-manentemente aberto para a inclusão, aquisição e transformação dos direitos que regram a sociedade (SouZA cRuZ, 2006, p. 98).

o estudo que ora realizamos faz parte de uma tentativa de recons-trução histórica do conceito de constituição, destacando e apresentan-do tanto os seus pressupostos filosóficos e políticos quanto sua inserção paradigmática na vivência da Modernidade ocidental. Sua importância pode ser facilmente justificada se entendermos, com Chamon Júnior, que a compreensão da legitimidade do direito na Alta Modernidade deve comportar um permanente entrelaçamento com os aspectos dog-máticos, históricos e sociológicos (2005: XXVI; 222-226). Se em textos anteriores pretendemos realizar a análise da organização política anti-ga e medieval, intenta-se agora chegar à organização política moderna, com a afirmação da Constituição como estrutura normativa superior, reguladora e controladora do Estado e de suas instituições, limitando e dividindo o exercício do poder estatal em nome das liberdades fun-damentais do indivíduo por ela consagradas. Trata-se da análise de um dos momentos fundadores do constitucionalismo.

no momento em que se fala de um “constitucionalismo mun-dial”1, e no Brasil se celebra o aniversário da fundação constitucional de nosso Estado democrático – ao mesmo instante em que se ou-vem vozes clamando por sua re-fundação ou reformulação integral –,

1 AcKERMAn, Bruce. The rise of world constitutionalism.AcKERMAn, Bruce. The rise of world constitutionalism. In: Virginia law review, 83, 1997, 771-797., 771-797.

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faz-se oportuno tecer algumas reflexões sobre a fundação do Estado constitucional na França revolucionária. Ao fazê-lo, não somos mo-tivados por objetivo outro senão o de apontar a dialeticidade inerente ao processo de afirmação do próprio constitucionalismo, permeado por tensões e contradições, sempre possíveis e passíveis de superação no correr da vivência humana intersubjetiva.

2 A RuptuRA RevoLuCionÁRiA e A novA diMenSão do ConCeito de LiBeRdAde

Tão grande foi a ruptura e a transformação que o direito so-freu com a Revolução Francesa de 1789, que esta viria a se consagrar como um verdadeiro símbolo histórico do universo jurídico e político moderno, fenômeno que hegel iria tematizar como o verdadeiro “par-to de uma sociedade nova” (olIVEIRA, 1991, p. 74). É que, como ensina Baracho Júnior, no período que antecede a formação das orga-nizações políticas modernas, as normas que regulam o agir humano têm uma fundamentação transcendental (2000, p. 23), pouca distinção havendo entre o direito e demais ordens normativas. Entretanto, o processo de ruptura e transformação não adveio do acaso, mas é fruto de longa sedimentação histórica. como ensina Ferraz Jr.

Na passagem do século XVIII para o século XIX, há uma mudança no quadro das teorizações científicas, já preparada na ciência renas-centista, na dúvida cartesiana e na necessidade de fundar o conhecer a partir de si próprio. A dicotomia entre contemplação e ação, bem como a idéia platônica de que a verdade era percebida apenas no ato solitário da visão, começara a ser abalada quando a ciência se torna atividade que faz, que constrói os objetos que conhece. com isso, a velha noção de teoria como contemplação e como conjunto de verdades concatenadas e dadas vira hipótese de trabalho que pode ser mudada conforme os resultados que produz, fazendo depender sua validade não daquilo que desvenda (alétheia), mas pelo fato de funcionar (produção científica) (1989, p. 5).

Ademais, desde a Idade Média que a técnica de produção se transmudara, fazendo com que o poder econômico se deslocasse

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das glebas feudais para a burguesia das navegações, do comércio e das manufaturas, criando nas cidades a base da nova sociedade que paulatinamente deixaria suas antigas fundações no campo e na terra. Num primeiro momento, as exigências econômicas farão com que os monarcas, já sem meios de qualquer ação impeditiva à expansão capitalista da primeira idade do Estado moderno, venham a esti-mular a classe burguesa mediante o desenvolvimento de políticas mercantilistas. Assim agindo, entretanto, a monarquia absoluta não fazia mais que atenuar e encobrir a contradição latente e frontal que se escondia sob a convivência de um governo de reis e nobres, de direitos feudais e instituições do período medievo, em uma sociedade de ba-ses econômicas tão profundamente modificadas. Ali, o poder da ri-queza gravitava já em órbita social absolutamente distinta, qual seja o da burguesia recém-formada e fortalecida (BonAVIdES, 1995, p. 69-72).

com essa política de suporte à burguesia e de apoio a livre em-presa, a monarquia sufocara temporariamente a rebelião burguesa e seus intentos de tomada do poder político. Todavia, como assevera Bonavides, quando a burguesia cimentou seu inquebrantável poder econômico, tornou-se-lhe impossível tolerar a autoridade política em mãos de um príncipe guardião da antiga ordem jurídica e social privi-legiada, que vinha da Idade Média, num desafio de continuidade aos tempos modernos, a saber, os tempos da burguesia (1995, p. 71).

Assim é que a Revolução em armas seria apenas o “epílogo militar” (BonAVIdES) da revolução econômica dantes instaurada pela transmutação do processo de produção de riquezas, e da revolu-ção intelectual que dantes se impingira nas consciências, trazendo ao processo revolucionário a adesão dos melhores espíritos de França, fortalecendo a burguesia com o apoio e a aliança de pensadores da envergadura de um Montesquieu e um Sièyes. Seria o braço forte que permitiria que a entidade denominada Nação – já trabalhada e erigida pelo pensamento anterior – se tornasse, então, soberana, assumindo o lugar antes ocupado pelo rei.

A grande questão trazida, pois, à vivência histórica daquele mo-mento passou a ser a tentativa de fundação de uma nova ordem so-cial, sustentada nos princípios universais da justiça social, igualdade e fraternidade e tendo como fim precípuo a manutenção de uma con-

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vivência humana livre e ao mesmo tempo possuidora de um nível de segurança jurídica compatível com a racionalidade dos novos tempos. Assim é que, com pretensões de definitividade e univer-salidade, veio a se afirmar, na Déclaration des Droits de l’Homme e du Citoyen de 1789, os princípios racionais da nova organização social que soerguiam imaculados sobre os escombros da ordem anterior.

o dualismo de complementaridade – direitos do homem e do cidadão – que, em análise apressada, poderia até mesmo sugerir al-guma redundância no enunciado da célebre Déclaration, justifica-se, como ensina comparato, em função do caráter universal presente no espírito dos revolucionários, fazendo-se, pois, conscientes de que não se dirigiam apenas ao povo francês, mas a todos os povos, conceben-do, pois, o documento em sua dupla dimensão: nacional e universal (1999, p. 132). Aliás, as “disposições fundamentais” da constituição de 1791 fazem a nítida distinção entre os “direitos do homem”, in-dependentemente de sua nacionalidade, e os “direitos do cidadão”, próprios unicamente dos franceses.

Ademais, como esclarece Reale, todo o conteúdo das decla-rações de direitos revolucionárias deve ser entendido como in-fluência direta dos ventos da Ilustração, que levaram os juristas da Revolução a assinalar, com enorme ênfase, o valor primordial consubstanciado no caráter inato e universal dos direitos funda-mentais do homem. Ao ressaltarem tal valor, fizeram-no, porém, a partir da natureza mesma do homem, sem qualquer alusão a deus como sua fonte originária, ao contrário da declaração norte-ame-ricana, de base inegavelmente religiosa, que timbra em reconhecer a origem transcendente dos direitos inatos. A declaração francesa é uma proclamação laica, obra exclusiva da sociedade e do Estado, que, até mesmo em conseqüência da tentativa de ruptura ideológi-ca, fez-se à margem de qualquer interferência da Igreja ou de seus princípios (1990, p. 76).

Como assinala o jusfilósofo brasileiro, poder-se-ia dizer que esse entendimento marca o apogeu do racionalismo no plano da expe-riência jurídica, ou da autoconsciência do direito. o Cogito cartesia-no (Cogito, ergo sum) projeta-se no domínio social, convertendo-se em: Cogito, ergo sum subjetus iuris. Ser sujeito de direito significa ser

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cidadão, adquirindo, assim, a cidadania um sentido de universalidade (REAlE, 1990, p. 76-77).

na ótica de hegel, que fará da Revolução Francesa uma das ba-ses de seu pensamento filosófico, esta só se faria historicamente com-preensível a partir da idéia de liberdade, sendo que o grande legado da Revolução à história universal seria justamente erigir a liberdade a fundamento da vida humana: “a liberdade absoluta se eleva ao trono do mundo sem que poder algum lhe possa opor resistência” (hEGEl, 1993, p. 94). A liberdade será então concebida como o próprio princí-pio racional do Estado, encontrando nos direitos do homem o sustentá-culo para a sua convivência.

Assim, para hegel, se a história universal tem seu início com os gregos, com que desponta a consciência da unidade impostergável entre o ser-homem e ser-livre, esse momento era revelador de uma li-berdade concreta ainda limitada, posto que reservada apenas a alguns. o cristianismo é que iria trazer ao ocidente a consciência do homem livre enquanto livre (hEGEl, 1995, p. 55-60; 189-202; 271-283).

Entretanto, será a Revolução Francesa que concretizará a cons-ciência cristã da liberdade, fazendo dela o fundamento da socialidade, visto que a liberdade política é elevada a fundamento mesmo da or-dem social. A liberdade, que já fora princípio da história européia é convertido em princípio da história universal, base de todas as ordens estatais e jurídicas. É um mundo novo e um tempo novo que surge a partir de então. É com esse entusiasmo que hegel fará consignar em sua Filosofia da História:

Nunca, desde que o Sol começou a brilhar no firmamento e os planetas começaram a girar ao seu redor, se havia percebido que a existência do homem está centrada em sua cabeça, isto é, no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real. Anaxágoras já havia dito que o nous governa o mundo; contudo, somente agora o homem conseguiu conhecer a realidade espiri-tual. (hEGEl, 1995, p. 366).

Qual seria, porém, o limite ou a extensão dessa liberdade, tão enaltecida, mas com tamanha potencialidade conflitiva inserida na declaração de direitos francesa? É que, como apontam abalizados

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estudiosos2, o conteúdo normativo insculpido na célebre Déclaration vem a refletir, desde sua gênese, a marca das duas grandes tradições do pensamento político moderno: a liberal e a republicana. Tal confluência adviria, não apenas da histórica divergência entre jacobinos e gerundi-nos, mas também dos pilares teóricos que motivaram e sustentaram a revolução. Assim, se de um lado, a tradição republicana – que remonta a Aristóteles – pode encontrar vazão na voz de um J.J. Rousseau3, não se pode esquecer da abertura à tradição liberal – de John locke e Stuart Mill – oferecida por um Montesquieu e um Sièyes, todos eles igualmente con-vertidos em verdadeiros lastros teóricos do movimento revolucionário.

como mostra cattoni de oliveira, tal contradição já se faz presen-te no conteúdo normativo do disposto nos artigos 4º e 5º da Declaração universal dos direitos do homem e do cidadão (2007, p. 25-29). o art. 4º, ao declarar que “a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem” demonstra a ausência de limites ao exercício dos direitos naturais do homem, à exceção daquele que garante a todos os seus membros o gozo de iguais direitos. Todavia, o art. 6º iria intro-duzir uma fonte diversa de normatividade que não aquela representada pelos direitos naturais anteriores à conformação da sociedade política. É que, com Rousseau, consagrar-se-ia a idéia de que a lei é expressão da vontade geral, tendo todos o direito de concorrer para sua formação. Trata-se da díade entre democracia e liberdade individual que, como alicerces das conquistas do Estado constitucional moderno estão a de-monstrar que a ruptura moderna não é algo tão simples e acabado, mas um projeto cuja dialeticidade faz parte de sua própria gênese, sendo-lhe talvez condição de possibilidade.4

2 JIMÉnEZ REdondo, Manuel. Introducción. In: hABERMAS, Jürgen. Facticidad y velidez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho em términos de teoria del discurso. Madrid: Trotta; cATTonI dE olIVEIRA, Marcelo A. Direito, política e filo-sofia. São paulo: lúmen Júris, 2007.

3 Bem traduzindo os pressupostos comunitaristas inerentes ao pensamento de Rousseau, as-sim se posiciona Mário lúcio Quintão Soares: “o ato constitutivo desta associação produz, em substituição à pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, o Es-tado, mero executor das decisões, composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, adquire sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade” (2001, p. 114).

4 O caráter dialético e conflituoso dos princípios encetados pela Revolução Francesa fora também percebido por notáveis publicistas brasileiros: Almeida Melo assim se manifes-tou: “A Constituição teve, então, a finalidade de frear o governante e o Estado. Como o

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3 A RevoLução pRetende-Se ConCRetiZAR peLo diReito

diante de tal quadro, necessário seria que se efetivassem os postulados da declaração de direitos de 1789, garantindo-se sua rea-lização prática mediante procedimentos e instituições, para que desde logo se concretizassem em reformas políticas e jurídicas fundamen-tais. Entretanto, como constatou Tocqueville, esse modo de pensar e de agir não poderia buscar sua fundamentação no sistema político-jurídico até então vigente, haja vista a crença, partilhada pelos revo-lucionários, de que a construção da nova ordem necessitava mais de princípios ditados pela razão do que de exemplos históricos ou costu-mes antigos (1988, p. 293-294).

nesse sentido a constatação de Ferraz Jr., ao demonstrar que o direito, com a Revolução Francesa, torna-se uma criação ab ovo. É que o direito passou a ter sua validade percebida como algo maleável e, ao fim, manipulável, podendo ser tecnicamente limitada no tem-po, possibilitando, em alto grau, o detalhamento dos comportamen-tos como juridicizáveis, não dependendo mais o caráter jurídico das condutas de algo que tivesse sido sempre direito (1989, p. 9). A plena convicção de novidade, partilhada pelos revolucionários, revela-se bem pela mudança das formas métricas tradicionais, pela criação do sistema métrico decimal e, sobretudo, pela abolição e substituição do calendário cristão.

Assim, a necessidade de implantação de uma nova ordem so-cial traz em seu bojo a idéia de uma nova constituição do Estado, a qual haveria de ser baseada na separação de poderes e na garantia dos direitos individuais (art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do

rei era quem mandava, enfraqueceu-se a sociedade política, com a criação de limites e travamentos à sua organização e a seu funcionamento. A constituição serviu de primeiro instrumento destinado a enfraquecer o Estado” (1996, p. 29); Ricardo Fiuza e Mônica costa lançam o seguinte questionamento: “Rousseau entendia o homem como dotado de soberania individual, inalienável. Mesmo acorrentado, amordaçado, sob pressões e torturas, o homem é livre e soberano. Mas, como viver em conjunto, com tanta soberania individual?” (FIUZA; COSTA, 2006, p. 51). José Adércio L. Sampaio também ensina que “na França revolucionária [...] reinava uma certa ambigüidade no emprego da pala-vra Constitution, ora assimilada à ordem, ora à norma” (2002, p.13).

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Homem e do Cidadão). da observação conjunta da declaração de direitos e da constituição de 1791 constata-se facilmente tratar-se de documentos que representam a quintessência das realizações consti-tucionais da fase inicial da Revolução Francesa, sendo que, a partir de então, sobretudo da norma contida no célebre art. 16, só se pode-rá falar de uma constituição, com o sentido que lhe é atribuído pelo constitucionalismo moderno, desde que se observe nos textos uma adesão a certos requisitos anteriormente definidos.

como constata horst dippel, notável historiador do constitu-cionalismo, embora não tivessem sido completamente reproduzidos na declaração francesa de 1789 e na constituição de 1791, os dez tra-ços essenciais de Virgínia apenas se tornaram elementos constitutivos do constitucionalismo moderno como fenômeno global porque foram recebidos (acolhidos) em França em 1789, e em virtude do art. 16 de-clarar que somente a presença de certos traços essenciais nos permite falar de constituição no seu sentido moderno. Qualquer que tenha sido a importância do art. 16 num contexto especificamente francês, o seu significado global reside no fato de nele se insistir, pela primeira vez, num documento constitucional, que o constitucionalismo moderno envolve certos elementos na ausência dos quais não podemos falar propriamente de constitucionalismo moderno (2007, p. 16-17).

porém, como essa nova ordem não deveria absorver os legados do passado, a idéia de constituição se confundirá com a idéia de uma construção grandiosa e racional de uma ordem social e política total-mente nova5, tendo-se, pois, a noção, precisa e exata, da Constituição do Estado como substrato de realização da liberdade. A constituição viria a se manifestar como a própria forma de exercício das liberdades do povo soberano.

Analisando o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, Reale constata que seus dispositivos logo se revelariam como têtes de chapitre de novas disciplinas jurídicas, sobretudo no que se refere ao direito constitucional (1995, p. 82). de fato, é com a Revolução Francesa que se assentam as bases do

5 digna de nota é a conclusão a que chega Velloso de que “tendo como fonte um poder inicial, incondicionado, autônomo e do qual derivam os demais poderes, é inegável estar a constituição acima das normas elaboradas pelos órgãos por ela constituídos” (1994: 126).

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constitucionalismo e se torna possível uma compreensão unitária e sistemática do direito constitucional. A partir daí é que se instalam as primeiras cátedras de direito constitucional, as quais, tendo em vista a efervescência do movimento político na França, viriam a ter lugar na Itália – ainda no período jacobino – espalhando-se por pavia, Bolonha, pádua e Gênova.

4 o deLineAMento teÓRiCo do novo ConCeito de ConStituição

Seria ingênuo pensar que o novo conceito de constituição do Es-tado se fizesse definir de forma direta e imediata, sem arrastar consigo inúmeros e graves debates. Afinal, como constata Saldanha, quando do advento da Revolução, os franceses ainda pensavam em constitui-ção como estrutura política, forma de governo, modo de ser do Estado ou coisa similar, sendo que o moderno conceito de constituição não se atingiria antes que o moderno conceito de Lei, como norma con-substanciadora de direito objetivo, dominasse o processo legislativo.6 Também foi preciso que na linguagem política se enraizasse a fórmu-la de Rousseau, segundo o qual a lei é a expressão da vontade geral, detentora da soberania. Assim, entender-se-ia a constituição como lei geral de organização política, sendo esta a compreensão inicial da constituição moderna (SAldAnhA, 1983, p. 70).

de fato, grandes divisões se fazem no pensamento constitucio-nal desse período. Alguns constituintes de linhagem mais conserva-dora7 traçavam um modelo de Constituição extremamente vinculado

6 lúcida é a advertência de Kildare carvalho, para quem o constitucionalismo do Estado liberal de direito acarretou o nascimento do abstracionismo constitucional, é dizer, o direito abstrato tomou o lugar do direito historico, pois, com os influxos doutrinários do Iluminismo, chegou-se à racionalização do poder, cujo formalismo propiciou a expansão do constitucionalismo formal (2006, p. 216).

7 A crítica reacionária surgida à época insurgiu-se também contra o “racionalismo abstra-to” presente no pensamento de grandes líderes revolucionários de 1789, os quais estariam mais preocupados em defender a pureza das idéias do que a dignidade concreta da pessoa humana. Assim, sustentará de Maistre que “a constituição de 1795, tal como as suas ir-mãs mais velhas, é feita para o homem. ora, não há homem no mundo. Em minha vida, vi franceses, italianos, russos, etc. Sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa: mas

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à tradição feudal francesa, onde nobreza, clero e terceiro Estado for-mavam um só corpo político, ordenado e estável, vez que convergen-tes ao princípio ordenador comum, representado pela autoridade da coroa. Essa a posição ocupada por um Mirabeau, que, na proposta de constituição apresentada na sessão de 28 de julho de 1789, assim se posiciona:

nós, os representantes da nação francesa, convocados pelo rei, reunidos em Assembléia nacional, em virtude dos poderes que nos foram confiados pelos cidadãos de todas as classes, encarre-gados especialmente por eles de fixar a constituição da França e de assegurar a prosperidade pública, declaramos e estabelecemos, pela autoridade de nossos comitentes, como constituição do Im-pério francês, as máximas e regras fundamentais e a forma de go-verno, tal como se expressará em seguida; e quando tenham sido reconhecidas e ratificadas pelo rei, não poderá mudar-se nenhum dos artigos que encerram, a menos que seja pelos meios que na-quelas se encontre reconhecido. (Apud dInIZ, 1998, p. 60).

outros pensadores, no entanto, adotariam a postura de largo consagrada pelo movimento liberal-burguês: a idéia de que a cons-tituição deveria ser escrita, consistindo no ato fundador por meio do qual a nação soberana, por intermédio de seus representantes e de

quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei em toda a minha vida; se ele existe, eu o ignoro completamente”(Apud coMpARATo, 1999, p. 114). Também Edmund Burke, na mesma trilha, fez-se notável no debate contra-revolucionário. Indagava ele: “Qual a utilidade de se discutir o direito abstrato do homem à comida ou ao remédio? A questão toda gira em torno do método para obtê-los e fornecê-los. Eu aconselharei sempre que se convoque o auxílio de um agricultor e de um médico, antes que o de um professor de metafísica”. (Apud coMpARATo, 1999, p. 115). Todavia, a rápida difusão dos ide-ais revolucionários não só pelo continente europeu, mas atingindo regiões tão distantes quanto a Índia, a Ásia Menor e a América latina, demonstraria, com nítida certeza, que é justamente em seu universalismo que reside a grande importância histórica da Revolu-ção Francesa, a qual, como bem disse Tocqueville, serviu para “aproximar ou separar os homens, a despeito das leis, da tradição, dos temperamentos, da língua, transformando por vezes os compatriotas em inimigos e os estrangeiros em irmãos; ou antes, ela formou, acima de todas as nacionalidades particulares, uma pátria intelectual comum, da qual os homens de todas as nações puderam tornar-se cidadãos”. (1988, p. 87). Vêem-se aí lançadas as bases do princípio, ou pressuposto de racionalidade que permeia o sistema constitucional moderno.

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acordo com os postulados do art. 16 da declaração de 1789, organiza-ria juridicamente o Estado, pela distribuição e limitação dos poderes em termos precisos e da proteção e garantia dos direitos naturais e inalienáveis do homem. Essa a postura adotada por Sieyès em diver-sos pronunciamentos por ele proferidos, e que lançariam sólidas bases na fixação da noção moderna de Constituição (SIEYÈS).

Refletindo a respeito, assim se posiciona Baracho,

o conceito racional-ideal (de constituição) provém do momento histórico da difusão do constitucionalismo vigente à época da Re-volução Francesa, cuja doutrina foi exposta por SIEYÈS. A Teoria do Poder Constituinte de SIEYÈS propunha o estabelecimento de uma constituição baseada nos seguintes pontos capitais: declara-ção de direitos, forma escrita, governo representativo, separação entre poder legislativo e executivo. Tornava-se necessária a con-vocação de uma Assembléia nacional, representativa de toda a na-ção, com os poderes extraordinários, constituintes, para formular a nova constituição. (BARAcho, 1979, p. 17)

Instaura-se, então, a partir daí, a crença que envolveria os prin-cipais espíritos dos séculos XVIII e XIX, de que a Constituição do Es-tado consubstancia-se numa lei Fundamental, escrita e sistemática, que assegura a supremacia desse corpo de leis sobre todas as demais regulamentações de conduta existentes no Estado. Sob a influência de autores como locke e Rousseau, a constituição do Estado passará também a ser vista analogamente ao “contrato social”, sendo impe-rioso, pois, que seja escrita e redigida da forma mais clara e completa possível, a fim de assegurar, não apenas sua posição hierárquica su-perior, como também o valor da segurança jurídica – tão caro aos ho-mens desse período – por meio do amplo conhecimento a todos dado de seus direitos constitucionais.

daí poder-se constatar que se trata de uma fase essencial na teorização dos pontos cardeais das constituições. Tem-se, pois, que as leis constitucionais ou fundamentais são anteriores e superiores às leis ordinárias, impondo-se o respeito do poder legislativo às leis constitucionais. A autoridade do legislador ordinário não pode atingir a possibilidade de mudança das leis constitucionais, posto que “é da

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Constituição que os legisladores retiram e justificam seus poderes. não podem mudá-la sem destruir o fundamento de sua autoridade” (BARAcho, 1985, p. 27-28).

5 AS ApoRiAS do penSAMento RevoLuCionÁRio

como demonstra Reale, é todo um direito novo, o direito Mo-derno, que se acha embutido na declaração revolucionária, o que expli-ca tenha ela servido de preâmbulo à constituição de 1791 (1990, p. 77). promulgada em 3 de setembro de 1791, a constituição francesa teria uma destacada influência, servindo de modelo a várias Constituições do continente europeu. Entretanto, o sistema constitucional da liberda-de erigido em solo francês terminaria por sucumbir, e, à instabilidade constitucional que marcaria a primeira década pós-revolucionária, se-guir-se-ia a explosão de violência que faria tantos dos ideários naufra-garem em uma sanguinolenta vertigem de cabeças cortadas.

Hegel se apresenta aqui como a mais autorizada voz na expli-cação das contingências do fenômeno revolucionário. A Revolução Francesa, rompendo com a “bela totalidade grega”, traria para o oci-dente, como grande conquista da humanidade, a afirmação do prin-cípio da subjetividade. Vale dizer, tendo por base o pensamento de Rousseau, que erigira a vontade como fundamento do Estado, eleva a liberdade, enquanto unidade consigo mesma, a fundamento do Estado e de todo Direito. A influência do pensador genebrino verifica-se no vigoroso intuito dos revolucionários de estabelecer um regime popu-lar8. Todavia, a liberdade trazida pela Revolução apresenta-se ainda como liberdade abstrata, que, como liberdade absoluta, aparece “à primeira vista a mais real e rica, mas que se revelará, entretanto, como a mais pobre, abstrata e desprovida de realização” (BIccA, 1988, p. 53), como dirá hegel: “o mundo é para ela pura e simplesmente sua vontade e esta é vontade universal” (Apud BIccA, 1988, p. 53).

8 Adotou-se na constituição francesa de 1791 um sistema legislativo unicameral em que os membros da assembléia eram eleitos por dois anos e se faziam plenos depositários da soberania nacional. O rei constituía apenas figura decorativa, dispondo tão somente de um veto suspensivo por três legislaturas (cf. BARAcho,1985: 26-31; coMpARATo, 1999: 132-138).

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É uma liberdade que não se efetiva, posto que não se determina, pois não se diferencia e estabelece a determinidade de um conteúdo específico. A determinação é essencial no pensamento de Hegel, con-cebida como “a negatividade imanente ao universal, a solução dialéti-ca para o dualismo da infinitude (universal) e da finitude (particular)” (olIVEIRA, 1991, p. 76). ora, a efetivação do homem como ser li-vre, para hegel, só pode ser feita mediante a elevação do indivíduo empírico ao plano da existência universal, vale dizer, a liberdade vista como processo dialético de determinação imanente do universal. A particularidade do indivíduo, negada pela universalidade do logos, será “superada”, uma vez que o homem, portador do logos universal, torna-se a universalidade concreta, a síntese do universal e do particu-lar, sendo que realizar o homem na história, para hegel, é justamente encontrar a síntese entre a universalidade e a particularidade, que se faça compatível com as contingências próprias à situação histórica (olIVEIRA, 1991, p. 77).

na Revolução Francesa, entretanto, apesar de ser a vontade universal e absoluta, é tão-somente vontade dos indivíduos singula-res, sendo que, como esta vontade dá fundamento ao direito, o direito termina por ser “o que a lei quer”. Essa lei, contudo, procede das vontades individuais, posto que o Estado que a edita é um agregado de muitos indivíduos, sem constituir uma “unidade substancial em si e para si”, configurando-se, pois, o direito, como produto de uma vontade absoluta (SAlGAdo, 1996, p. 311). o primeiro momento revolucionário apresenta-se como exacerbação do caráter imediato da liberdade, sendo esta, pois, destituída da percepção da necessidade de mediação, vale dizer, da sua composição mediante a criação de um mundo de instituições que estabeleçam a garantia de sua dignidade: o mundo objetivo da efetivação da liberdade.

Trata-se da percepção reducionista da liberdade, típica do libe-ralismo, que a concebe de forma adstrita à esfera da ação subjetiva, sendo que por subjetividade compreende-se então como a interiori-dade em contraposição à realidade objetiva. ora, como hegel de-monstrou, a liberdade moderna não pode ser concebida como mera subjetividade, mas, ao contrário, só poderá ser corretamente percebi-da na medida em que se faça historificada na esfera das normas, dos costumes e das instituições, é dizer, do mundo objetivo. não que se

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queira negar a subjetividade, enquanto momento constitutivo da liber-dade – o que hegel reconhece –, mas o que não se pode é reduzi-la a esse momento, sob pena de parcialidade extremamente compromete-dora de sua realização efetiva.

para hegel, a partir dessa concepção abstrata de liberdade, a Revolução apresenta-se debilitada em sua capacidade de produzir uma estrutura estável do mundo, ao mesmo tempo compatível com a racionalidade moderna e a nova consciência da liberdade. Assim, com a proclamação da República em 1792 e a prisão do desventurado luís XVI, entra em franco declínio a Constituição de 1791, sendo logo substituída pela carta de 24 de junho de 1793, a qual, por sua vez, num furor de radicalismo democrático, vem a consagrar dispositivos absolutamente inaplicáveis de democracia direta, não logrando, pois, ser posta em funcionamento.

É que, logo após sua promulgação, a convenção nacional9 veio a instituir um governo provisório, denominado “governo republicano”, para atuar enquanto durasse a guerra contra as potências monárquicas. O Poder Executivo seria atribuído a comissões de deputados, dentre as quais se destacaram a “comissão de governo” e a de “salvação pública”, na qual pontificava Robespierre, cujos poderes tenderiam rapidamente à ditadura pura e simples (cf. coMpARATo, 1999, p. 136).

na análise de hegel, o terror adviria, assim, como uma trágica conseqüência inerente à dialética histórica do próprio movimento re-volucionário. o terror apresenta-se como um momento caracterizador de uma necessidade dialética dos rumos trilhados pela Revolução. Afinal, ao afirmar-se a liberdade individual como absoluta, exclui-se o reconhecimento de qualquer outra, afirmando-se como exclusi-va. Essa pluralidade de consciências de si absolutas será a própria contradição em si, posto que, como conseqüência dessa afirmação de liberdade, tem-se a exclusão da outra individualidade livre e a luta para que cada uma seja reconhecida como absoluta. note-se que já não mais se cuida do reconhecimento da consciência de si, mas da sua

9 “convenção nacional” foi o nome que a Assembléia legislativa, que havia sucedido à constituinte de 1789, logrou dar à nova Assembléia constituinte por ela convocada para, após o declínio da carta de 1791, votar uma nova constituição para a França. A denomi-nação deve-se à influência do exemplo norte-americano (COMPARATO, 1999: 135).

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liberdade absoluta. Isso, porém, só ocorreria com a eliminação das outras liberdades que também se querem absolutas.

com o golpe de Estado de 9 do termidor do Ano II (27 de julho de 1794), seguida da prisão, julgamento sumário e execução imedia-ta de Robespierre, a constituição de 1793 será logo substituída pela Constituição do ano VIII, ou Constituição diretorial de 1795. Esta viria a introduzir no sistema francês o modelo de Executivo colegia-do, vale dizer, um diretório composto de cinco membros, cada um dos quais tomava o título de presidente pelo período de três meses (coMpARATo, 2000, p. 136-138). Todavia, as guerras da França revolucionária contra os Estados opositores da ideologia liberal na Europa exigiriam uma brusca transformação de governo. Assim é que somente por meio do “intermezzo napoleônico” a sociedade francesa pôde voltar às fontes originárias de sua Revolução, superando, a um só tempo, as forças comprometedoras do populismo radical e do au-toritarismo (REAlE, 1990, p. 81).

A dialética histórica da Revolução Francesa se revelará como um dos grandes embates para a afirmação do conceito de Constituição moderna, como institucionalização concreta da liberdade humana. no fundo de todas as contingências e cisões presentes em seu processo, situa-se aquela contradição, latente e profunda, dos conceitos de liber-dade dos antigos e da modernidade liberal. o choque da sociabilidade e da subjetividade aparece, enfim, como o grande embate que propicia a síntese do espírito revolucionário, e seu legado para a história universal. A partir da Revolução, como demonstra Salgado, ordem e liberdade têm de encontrar-se na vida social, de modo irreversível e eficaz, reali-zando a unidade da ação política dos franceses com a reflexão filosófica do idealismo alemão. Assim, a ordem deixaria de ser uma organização política do arbítrio para se converter numa “organização constitucional dos direitos do homem” (SAlGAdo, 1996, p. 316).

A síntese temporária ou o equilíbrio historicamente possível entre os pressupostos de uma tradição liberal e aqueles da tradição republicana tinham sido alcançados e haviam-se afirmado novos ele-mentos de legitimação do direito. Todavia, uma aporia permaneceria aberta no quadro dessa nova configuração do Direito moderno. Os problemas dela advindos marcariam todo o século XIX e primeiras décadas do século XX. Refiro-me ao fato, constatado por Cattoni de

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oliveira, de que tanto a tradição liberal quanto a tradição republicana pressupõem uma visão de sociedade centrada no Estado (2007, p. 35). A superação dessa visão monopolística do direito como sendo algo que só se realiza no Estado será um dos grandes desafios que à “alta modernidade” cabe resolutamente enfrentar.

6 ConCLuSão

o fenômeno do constitucionalismo é um dos elementos centrais

da cultura jurídica e política moderna. com ele foram estabelecidas e concretizadas algumas das mais importantes transformações que justificariam a própria idéia de uma Idade Moderna. As conquistas obtidas pelas revoluções que marcam essa era podem muito bem ser compreendidas a partir de um conceito chave que apenas no contexto político-cultural do século XVIII se fará aparecer: a Constituição do Estado.

Ao estudar a influência da Revolução Francesa sobre o conceito de constituição moderno, queremos destacar, de um lado, a profunda ruptura ideologicamente pretendida por esse conceito, com o qual se pretende a concretização da consciência histórica da liberdade. Trata-se da visão triunfal de que ali, na declaração universal de direitos, o homem atingiria não apenas a consciência da sua liberdade indivi-dual, mas a consciência da liberdade de todo ser humano, compreen-dendo que, por ser universal, deve ser realizada e garantida a todos e por todos.

Todavia, como uma decorrência das próprias influências teóri-cas que desaguariam na Revolução Francesa, bem como da ruptura com um paradigma de liberdade que marcara toda a tradição pré-mo-derna, os ideários político-jurídicos consagrados nas constituições francesas fariam em breve ressaltar a contraditoriedade latente que lhes era implícita. Assim, a dialética entre indivíduo e sociedade, bem como entre liberdade e democracia seriam o reflexo normativo da ten-são entre o grande arcabouço de tradições e pré-compreensões que fundaram as condições de possibilidade para o aparecimento da pró-pria Revolução. Nesse sentido, o conflito entre as tradições liberal e republicana, ambas tão bem representadas em território francês, tanto

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por seus grandes teorizadores, como nos embates políticos que con-formariam a ordem revolucionária.

desde sua gênese, o Estado constitucional pretende ser um Es-tado que erige a liberdade como seu valor polar, e a distribui equani-memente pela sociedade. Todavia, a definição – ou redefinição – dos limites dessa liberdade, bem como sua condição de nova fonte de legitimação do direito legaria ao constitucionalismo moderno uma tensão até hoje não inteiramente resolvida, e que se apresenta como de importância vital nos dias contemporâneos. o legado constitu-cional da declaração de direitos está muito além das aparentemente simples fórmulas de organização política do Estado, da delimitação do poder e da proteção dos direitos humanos. há algo mais que se esconde, desde o início, nessas notáveis formulações jurídicas. os séculos vividos e pensados que lhes subjazem não poderiam levar senão à grande riqueza e profunda densidade que entremeia todos os seus textos.

A análise do fenômeno de sua manifestação histórica serve bem para mostrar que a Modernidade não nos vem oferecida numa bande-ja. Ela não está pronta. nunca esteve e possivelmente nunca estará. cabe conquistá-la! não com a postura romântica e ingênua de revo-lucionários que miram o novo pelo simples desejo de mudar, mas com a consciência do conflito que, inerente a todo consenso racional, recobra dos juristas não a atenção impávida para com os legados do passado, mas o compromisso com a integridade do direito e sua per-manente reconstrução.

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Sumário

1. Introdução. 2. os Riscos. 3. As chances. 4. A pers-pectiva latino-americana: os casos do MERcoSul e do Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos. 4.1 o Mercosul. 4.2 o Sistema Interame-ricano de proteção aos direitos humanos e a atuação das onGs. 5. Referências bibliográficas.

Resumo A participação das organizações não-Governamentais na esfera

política tem sido objeto de ampla discussão no meio acadêmico. Varia-das são as teorias utilizadas para explicar seus alcances e limitações. nos últimos anos, um especial movimento tem chamado a atenção desses teóricos: há um novo crescimento no número dessas organiza-ções, acompanhado do alargamento do rol de seus tipos e funções. na primeira parte do texto, discute-se a emergência da Sociedade Civil enquanto um sujeito no processo de governança. um panorama dos principais poderes e patologias decorrentes da inserção das onGs no sistema de governança global é colocado. A partir dele, pode-se tecer inferências importantes acerca dos problemas a serem enfrentados em um futuro breve. A última parte desse trabalho tem como objetivo

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a aplicação das ferramentas teóricas anteriormente colocadas a duas das principais instituições americanas: o MERcoSul e o Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos.pAlAVRAS-chAVE: organizações não-Governamentais. Governan-ça Global. MERcoSul. Sistema Interamericano de proteção dos di-reitos humanos.

Abstractparticipation by non-Governmental organizations in the po-

litical sphere has been the object of broad discussion in the aca-demic milieu. The theories used to explain their scope and limi-tations are varied. In recent years, a special movement has called the attention of these scholars: there has been additional growth in the number of these organizations, and the list of their types and functions has lengthened as well. In the first part of the text, civil society’s emerging as a subject in the governance process is discussed. An overview of the main chances and risks resulting from nGos being introduced into the global governance system is provided. From it, important inferences about the problems to be faced in the near future can be woven. The aim of the last part of this paper is to apply theoretical tools, previously set out, to two of the main American institutions: MERcoSuR and the Interameri-can human Rights protection System.KEYWoRdS: non-Governmental organizations. Global Governan-ce. MERcoSuR. Interamerican human Rights protection System.

1 intRodução

A atuação das organizações não-Governamentais é apontada como principal indicador da crescente participação da Sociedade ci-vil no procedimento de formulação de políticas – sejam elas de ca-ráter nacional ou internacional. Variadas são as abordagens que se ocupam dos novos mecanismos de governança (governance), cujo foco tem sido a possível modificação do papel do Estado Soberano na determinação das diretrizes das mais relevantes questões da Agenda

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Internacional1. nesse sentido, a compreensão do alcance das onGs deve ser feita com vistas ao seu relacionamento com o Estado. o que se propõe, neste trabalho, é que essa relação seja analisada com base em duas dimensões complementares: legitimidade e normatividade. conforme se argumentará, a necessidade de legitimação do processo de tomada de decisões públicas cria um contexto propício para a ação de atores que inicialmente eram apenas objeto dessas deliberações. A partir do momento em que são juridicamente reconhecidos, e que passam a interferir de forma decisiva na formulação e implementação de políticas, há uma nova alteração no seu padrão de relacionamento com o meio social no qual atuam, quando passam a ser questionados, igualmente, por uma demanda pela criação de instrumentos de con-trole sobre sua própria alteração. A definição dos termos do debate deve se dar, portanto, com base nessa dinâmica.

o crescimento da participação das onGs tem sido indicado como fator de modificação do padrão de exercício do poder políti-co. Sua atuação é, dessa forma, colocada como uma variável inter-veniente nos modelos teóricos que afirmam a superação da óptica “westphaliana” (Westphalian) clássica, na qual os Estados apare-cem como os atores legítimos desse processo2. Isso determinaria, de acordo com os teóricos da governança global (global governance), a alteração das formas de exercício da autoridade política3. confor-me seu argumento, seria possível indicar como se dá a formação de um padrão de governo menos hierarquizado, baseado na abertura de canais de comunicação com a sociedade. nesse sentido, haveria uma perda de poder por parte dos Estados, acompanhada do “empo-deramento” (empowerment) de atores não estatais4. Formar-se-iam,

1 Ver, por exemplo, ROSENAU, James. Toward an Ontology for Global Governance. In: Approaches to Global Governance Theory. hEWSon and TIMoThY (eds) 1999; RoSEnAu, James. Governance in a New Global Order, 2002; hEld, david, and Mc-GREW, Anthony (eds.) Governing Globalization, london: polity press, 2002.

2 collInGWood, Vivien; loGISTER, louis.collInGWood, Vivien; loGISTER, louis. State of the Art: Addressing the INGO ‘Legitimacy Deficit’, 2005, p. 176.

3 hEld, david, and McGREW, Anthony (eds.).hEld, david, and McGREW, Anthony (eds.). Governing Globalization, london: polity press, 2002.

4 KEcK e SIKKInG.KEcK e SIKKInG. Activists Beyond Boarders. Advocacy networks in Interna-tional politics, 1998; e RoSEnAu, James. Toward an Ontology for Global Gover-nance, 1999.

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assim, estruturas de governança nas quais o Estado tem um papel estratégico, mas não necessariamente dominante5.

As onGs podem, igualmente, atuar a partir de uma perspec-tiva de ordem técnica. nesses casos, elas oferecerão informações relevantes para a definição das políticas, seja no momento de sua formulação, seja no de sua implementação (para que se tenha a certeza da efetividade das ações). por outro lado, elas podem atuar de forma direta, após concessão estatal, na própria execução das políticas. Isso ocorre em situações nas quais o Estado não tem, por questões políticas6 ou técnicas7, a capacidade para fazê-lo de forma satisfatória. nos casos de ajuda humanitária, essas organi-zações podem, por não serem vinculadas a nenhum Estado, se fur-tar a empecilhos de ordem política e obter o consentimento dos envolvidos para que atuem em determinadas regiões8. Elas podem, igualmente, prestar auxílio para parcelas carentes da população, para que essas tenham efetivo acesso aos instrumentos jurídicos que lhes são conferidos9.

Além de atuação pelos mecanismos institucionalmente confe-ridos pelos Estados, as onGs adquirem, dada a magnitude de sua atuação na sociedade internacional, alguns poderes que ultrapassam as balizas colocadas pelos primeiros. Elas podem, por exemplo, atuar como lobistas, influenciando em decisões políticas que teoricamente são de cunho exclusivamente estatal. Em decorrência disso, essas or-ganizações, em muitas circunstâncias, servem como um instrumento de empoderamento (empowernment) de grupos sociais que, por al-

5 SEndInG, ole Jacob; nEuMAnn, Iver B.SEndInG, ole Jacob; nEuMAnn, Iver B. Governance to Governmentality: Analyzing NGOs, States, and Power, 2006, p. 651.

6 Ver, por exemplo, KU, Charlotte; DIEHL, Paul F.dIEhl, paul F. Filling In the Gaps: Extrasystemic Mechanisms for Addressing Imbalances Between the International Legal Operating Sys-tem and the Normative System, 2006, p. 168.

7 collInGWood, p. 177. The case of the ban on antipersonel landmine, is for instance,collInGWood, p. 177. The case of the ban on antipersonel landmine, is for instance, a successful example of transnational netework advocacy (ver SENDING, Ole Jacob. nEuMAnn, Iver B. Governance to Governmentality: Analyzing NGOs, States, and Power, 2006, p. 664-668).

8 lISchER, Sarah KenyonlISchER, Sarah Kenyon. Military Intervention and the Humanitarian “Force Multi-plier”, 2007.

9 Ver, por exemplo, o caso do Amicus Curiae, e sua participação em cortes e tribunais internacionais.

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guma razão, estariam excluídos do processo político. Contribuiriam, nesses casos, para o fortalecimento da democracia participativa10.

Em situações especiais, as organizações não-governamentais po-dem ser verdadeiros agentes de mudança. Isso porque podem contribuir decisivamente para dar publicidade a questões negligenciadas no âmbito inter-estatal, divulgar e colocar em pauta descobertas científicas11, e ainda auxiliar na fixação de significados e na construção de consenso acerca de determinadas questões12. onGs têm ainda o condão de possibilitar a ne-gociação e viabilizar soluções para casos cujos mecanismos tradicionais de solução de conflitos se mostraram ineficazes13. Por fim, em alguns casos, elas conseguem uma monta dramática de recursos, que devem ser destinados para um tipo específico de políticas. Elas, assim, passam a formular, financiar e implementar projetos independentemente da chan-cela estatal. Essas ações podem, dessa forma, complementar deficiências políticas estatais e ultrapassar a mora dos trâmites burocráticos14.

de fato, as ações dessas organizações normalmente são de cinco ordens distintas: (i) consagração de valores amplamente aceitos na so-ciedade internacional, como os direitos humanos; (ii) a partir do supor-te a suas atividades, seja pelo número de membros seja pelas doações de recursos; (iii) com base em suas excelência técnica e conhecimento para solução de determinadas situações; (iv) alcance de suas ações, por exemplo, muitas ONGs humanitárias conseguem preencher espaços nos quais Estados não conseguiriam intervir; e (v) subjetivamente, a partir de noções como confiança, integridade e reputação15.

10 Ver BuchAnAn and KEohAnE.Ver BuchAnAn and KEohAnE. The Legitimacy of Global Governance Institu-tions, 2006.

11 oppEnhEIMER, Michael.oppEnhEIMER, Michael. Science and Environmental Policy: The Role of Nongovern-mental Organizations, 2006, p. 884.

12 Ver BRoWn, l. david; TIMMER, Vanessa.Ver BRoWn, l. david; TIMMER, Vanessa. Civil Society Actors as Catalysts for Trans-national Social Learning, 2006, p. 3-6.

13 Ver BRoWn, l. david; TIMMER, Vanessa. Civil Society Actors as Catalysts for Trans-national Social Learning, 2006, p. 9-10; YAnAcopuloS, helen. The strategies that bind: NGO coalitions and their influence, 2005, p. 98-107.

14 BuRchEll, Jon; cooK, Joanne. Assessing the impact of stakehoider dialogue: chan-ging relationships between NGOs and companies, 2006.

15 SlIM, hugo. By what authority? The Legitimacy and accountability of non-governmen-tal organizations, paper presented at the International council on human Rights policy, International Meeting on Global Trends and human Rights – Before and After September 11, Geneva, 10-12 january, 2002.

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A crescente influência das ONGs, todavia, envolve riscos. Al-gumas relevantes críticas a essas abordagens foram colocadas por estudos que se voltaram para uma perspectiva prática, na qual se dis-cutia a efetividade da atuação de agentes oriundos do terceiro setor16. A falta de mecanismos de controle e responsabilização por seus atos, bem como o nível de abertura para a participação de grupos da socie-dade civil dentro das próprias onGs, são apontadas como elementos relevantes para a caracterização de uma crise de legitimidade17.

Em uma direção diversa, alguns autores negam a idéia de mo-dificação no padrão normativo do exercício do poder político. Não haveria, portanto, canais de comunicação institucionalmente criados entre o terceiro setor e a esfera estatal. Sua emergência seria um fator extra-sistêmico, que surgiria como resposta, ao lado de outros ele-mentos (internalização de normas internacionais, soft law, etc), à in-capacidade de resposta do sistema legal tradicional face aos desafios postos pela dinâmica atual da Sociedade Internacional18.

2 oS RiSCoS

de fato, ao se observar a dinâmica da atuação das onGs, três dimensões estruturais envolvem riscos. A primeira delas refere-se ao princípio norteador de suas atividades. o principal fundamento de existência das ONGs está relacionando à crença de que elas atuam em função de objetivos coletivos, que eventualmente podem estar excluí-dos dos procedimentos ordinários de formulação de políticas públi-cas. por vezes ela é indicada como um instrumento de apoio ao Esta-do, na medida em que atuaria em caráter suplementar, nas situações nas quais esse se mostrasse ineficiente19. A definição, nesse sentido,

16 Ver EdWARdS, M, and hulME, d. (eds), Non-Governmental Organizations – perfor-mance and accountability: beyond the magic bullet. london: Earthscan, 1995.

17 clARK, I. Legitimacy in a Global Order, Review of International Studies, 29, 2003, p. 75-96; KAGAn, R. America´s Crisis of Legitimacy, Foreign Affairs, March/April, p. 65-87.

18 Ver, por exemplo, KU, Charlotte; DIEHL, Paul F.dIEhl, paul F. Filling In the Gaps: Extrasystemic Mechanisms for Addressing Imbalances Between the International Legal Operating System and the Normative System, 2006.

19 Ver Ku, charlotte; dIEhl, paul F. Filling In the Gaps: Extrasystemic Mechanisms for Addressing Imbalances Between the International Legal Operating System and the Nor-

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dos princípios que nortearão seu escopo de atividades se mostra es-sencial para sua legitimidade. na prática, contudo, isso pode se tornar problemático, por variadas razões.

A primeira delas refere-se à questão da representatividade20. po-dem ocorrer casos, por exemplo, em que determinadas camadas da sociedade sejam “contempladas” por várias organizações, ao passo que outras, igualmente carentes, se vejam negligenciadas. Esse perigo ainda é exponenciado pelo fato de que a maioria das ONGs tem sua origem nos países desenvolvidos. Quem determinará, em última aná-lise, onde os recursos serão aplicados serão as pessoas desses países, e não aqueles que serão beneficiados com suas ações21. Ademais, há a possibilidade de choque de interesses entre as organizações e o Esta-do ou a população que são objeto de suas políticas22.

por outro lado, a efetividade das ações das onGs podem não ge-rar os resultados esperados por uma série de razões distintas, inclusive por motivos fortuitos ou de força maior, imprevisíveis no momento da formulação das políticas. o que se pode perceber, contudo, é que, em alguns casos, essa falha é causada por problemas estruturais, normal-mente ligados à falta de planejamento das ações conjuntas das onGs com os Estados e com outras organizações que têm o mesmo âmbito de trabalho23. Se os Estados, ao depararem com elas, optarem por dei-xar a seu cargo a formulação e implementação de políticas para de-terminado ponto da agenda, ele corre o risco de sofrer pela execução de programas esparsos. haveria, nesse sentido, o comprometimento de ações de longo prazo, e as carências seriam sanadas apenas em al-

mative System, 2006, p. 167-171; MILLS, Alex; JOYCE, Daniel. Non-governmental Or-ganisations and International Norm Transmission on the Fault Lines of the International Order, p. 15-18.

20 collInGWood, Vivien; loGISTER, louis.collInGWood, Vivien; loGISTER, louis. State of the Art: Addressing the INGO ‘Legitimacy Deficit’, 2005, p. 188.

21 WoodWARd, B.K.;WoodWARd, B.K.; Global Civil Society and International Law in Global Governance: Some Contemporary Issues, 2006, p. 265; BEBBInGTon, Anthony. NGOs and uneven development: geographies of development intervention; RuBAGoTTI, Gianluca. Non-Governamental Organisations and the Reporting Obligation under the International Covenant on Civil and Political Rights, 2005, p. 74.

22 collInGWood, Vivien; loGISTER, louis.collInGWood, Vivien; loGISTER, louis. State of the Art: Addressing the INGO ‘Legitimacy Deficit’, 2005, p. 179.

23 Ver WAlSh, Eoghan; lEnIhAn, helena.Ver WAlSh, Eoghan; lEnIhAn, helena. Accountability and effectiveness of NGOs: adapting business tools successfully, 2006.

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guns pontos ou regiões contemplados por essas ações. Em uma situa-ção igualmente problemática, a falta de planejamento pode fazer com que duas onGs com propósitos semelhantes destinem seus recursos e esforços para a mesma área e para o mesmo público alvo. Além da possibilidade de conflito entre elas, há a clara demonstração que os recursos poderiam ter sido mais bem alocados, para que pudessem atingir a uma parcela maior da sociedade24.

o que se deve destacar, nesse sentido, é que a efetividade das ações das onGs está intimamente relacionada à sua legitimidade. Conceituar legitimidade é algo notadamente complexo25. por um lado, a legitimidade de uma instituição deve ser compreendida como o direito que ela tem de criar e aplicar normas; enquanto, por outro, essa deve ser entendida como a crença generalizada que ela tem esse direito26. uma discussão a esse respeito deve contemplar, assim, “a combination of procedural constraints on the exercise of power (such as accountability, transparency, democratic decision making, and so forth) and some sort of correspondence between the power-holder´s values and those held by the community in which it operates”27. Sua conceituação remete, dessa forma, a aspectos de ordens legal e ética. para que se possa avaliar a relação entre Estado e onGs, a partir da idéia de legitimidade, é necessário, portanto, indicar não apenas se essas instituições são (juridicamente) legítimas, mas se elas são per-cebidas como tal28. É importante se identificar, igualmente, de onde a

24 collInGWood, Vivien; loGISTER, louis.collInGWood, Vivien; loGISTER, louis. State of the Art: Addressing the INGO ‘Legitimacy eficit’, 2005, p. 183; SEndInG, ole Jacob. nEuMAnn, Iver B. Gover-nance to Governmentality: Analyzing NGOs, States, and Power, 2006, p. 667-668.

25 para uma visão geral acerca da legitimidade das ações do Estado, ver BEEThAM, d. The Legitimization of Power. london: Macmillan, 1991; and FRAncK, Thomas, The Power of Legitimacy Among Nations, New York: Oxford University Press, 1990. Para a discussão dos padrões de legitimidade das instituições da Governança Global, ver BodAnSKY, daniel, The Legitimacy of International Governance: A Coming Challenge for Interna-tional Environmental Law?, American Journal of International law, 93, n. 3, July 1999, p. 596-624.

26 BuchAnAn and KEohAnE.BuchAnAn and KEohAnE. The Legitimacy of Global Governance Institutions, 2006 p. 405.

27 collInGWood, Vivien; loGISTER, louis.collInGWood, Vivien; loGISTER, louis. State of the Art: Addressing the INGO ‘Legitimacy Deficit’, 2005, p. 178.

28 BuchAnAn and KEohAnE.BuchAnAn and KEohAnE. The Legitimacy of Global Governance Institutions, 2006, p. 407.

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legitimidade advém (fontes das normas), bem como a noção de como essas instituições devem operar29.

Por fim, talvez a mais sutil e problemática patologia das ONGs esteja relacionada à possibilidade de que seus recursos e estrutura se-jam apropriados por grupos que visem apenas à consecução de seus interesses individuais, distorcendo, portanto, seu propósito e finalida-de. pode-se citar situações em que Estados criem organizações “fan-tasmas” para facilitar a aplicação de determinados recursos financei-ros, ou ainda para conseguir penetrar em esferas de outros Estados que não conseguiriam atingir pelas vias ordinárias30. Além disso, há o risco que interesses privados, a partir de exigência de aplicação es-pecífica dos recursos que doam, exerçam o controle sobre a atuação das onGs31. A regulamentação dessas situações coloca, no entanto, a dificuldade de se conseguir o equilíbrio na tênue linha que separa mecanismos de accountability de uma burocratização desnecessária.

3 AS CHAnCeS

A centralidade do Estado enquanto a instância decisória única das matérias relativas ao interesse “nacional” tem sido questionada há pelo menos três décadas. Keohane e nye indicavam, em 1972, a emergência de fluxos e interações de ordem transnacional, que cria-vam um cenário de interdependência complexa no qual a noção de soberania estatal deveria ser substituída pelo conceito de autonomia, medido pelas dimensões de sensibilidade e vulnerabilidade32. o qua-dro atual, entretanto, é ainda mais diversificado, na medida em que o adensamento das redes entre Estados, Empresas privadas e Movimen-

29 collInGWood, Vivien; loGISTER, louis.collInGWood, Vivien; loGISTER, louis. State of the Art: Addressing the INGO ‘Legitimacy Deficit’, 2005, p. 178.

30 MAYhEW, Susannah h.MAYhEW, Susannah h. Hegemony, Politics and Ideology: the Role of Legislation in NGO Government Relations in Ásia in Journal of Development Studies, 2005, p. 728.

31 WIllETTS, p. 319; MAYhEW, Susannah h.WIllETTS, p. 319; MAYhEW, Susannah h. Hegemony, Politics and Ideology: the Role of Legislation in NGO Government Relations in Ásia in Journal of Development Studies, 2005, p. 748-749.

32 KEohAnE, R; and nYE, J.KEohAnE, R; and nYE, J. Power and Interdependence: world politics in transition, new York: longman, 1989.

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tos do Terceiro Setor33, marcado por um mercado no qual a troca de bens e serviços adquire feições globais34.

Neste contexto, sintomática é a afirmativa do Secretário Geral das nações unidas, na Assembléia Geral de 1999, de acordo com a qual “Estados devem servir seus povos. Se eles fracassarem em fazê-lo e permitirem sérios abusos de direitos humanos, eles se abrem à inter-venção justificada da comunidade internacional, na forma da própria onu”35. o que se pode observar é a percepção, pela sociedade civil, da necessidade de controle das ações estatais, acompanhada da demanda por sua efetiva participação no processo de tomada de decisões políti-cas. Esse movimento é refletido na Agenda 21, na qual se afirma que os governos devem adotar “any legislative measures necessary to enable the establishement by non-governmental organizations of consultative groups, and to ensure the right of non-governmental organizations to protect the public interest through legal action”36.

Tem-se, assim, uma significativa pressão para a criação de canais de comunicação entre o Estado e a Sociedade civil, que se traduzirão (i) em um ambiente propício para a atuação das onGs; e (ii) na proble-matização dos padrões clássicos de produção normativa internacional, na medida em que a legalidade (baseada no consentimento) não mais será suficiente como fundamento de validade de seus diplomas.

As pressões por transparência e accountability nas decisões es-tatais são acompanhadas, igualmente, por uma alteração na dinâmica de criação normativa na esfera internacional. os Estados foram cha-mados a estabelecer normas sobre matérias de interesse comum, vitais à comunidade Internacional e ao bem-estar de seus indivíduos37. A partir desse momento, o fundamento de validade das normas jurídicas internacionais assume um aspecto material, tendo seu foco voltado

33 KEohAnE, R., and nYE, J.KEohAnE, R., and nYE, J. Introduction. In.: nYE, Joseph S., and donAhuE, John d. (eds.), Governance in a Globalizing World , Washington: Brookings Instituition press, 2000.

34 ESTEVES, paulo l. Governança Global: Ordem e Justiça na Sociedade Internacional, p. 71; e TuSSIE, Novos Procedimentos e Velhos Mecanismos: a governança global e a sociedade civil, p. 41. In.: ESTEVES, paulo l. Instituições Internacionais: Segurança, comércio e Integração. Belo horizonte: Editora puc-Minas, 2003.Belo horizonte: Editora puc-Minas, 2003.

35 Financial Times.Financial Times. People First. Sept. 22th, 1999, p. 13.36 Agenda 21, paras. 27.10 e 27.13.Agenda 21, paras. 27.10 e 27.13.37 WoodWARd, B.K.WoodWARd, B.K. Global Civil Society and International Law in Global Governance:

Some Contemporary Issues, 2006, p. 268.

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para a promoção de valores essenciais, em uma lógica bastante dis-tinta do formalismo clássico das concepções voluntaristas. há, nesse sentido, uma substituição de um padrão regulatório horizontalizado, que marcava uma relação de coordenação na esfera interestatal38 por um cenário que consagra certa hierarquia na produção normativa, re-presentada pela prevalência de interesses da comunidade (tais como na celebração da proteção ambiental), e pela valorização do indiví-duo39, principalmente a partir dos direitos humanos e do direito huma-nitário. consagra-se, portanto, uma tensão entre a soberania estatal e a tendência à comunitarização das relações internacionais40.

A noção clássica de ordenamento jurídico internacional, baseada na legalidade formal, como mera conseqüência do consentimento es-tatal se mostra ultrapassada tanto do ponto de vista estatal, na medida em que, como nos adverte pellet, o seu desejo nem sempre coincide com sua manifestação volitiva41, quanto do ponto de vista estrutural. como ressalta Shelton, a consagração de normas de jus cogens e a emergência do soft law dão claros sinais da superação do papel essen-

38 Nesse sentido, afirma Waltz: “As partes dos sistemas políticos domésticos mantêm rela-ções de superioridade e subordinação. Alguns têm o condão do comando, outros devem apenas obedecer. Sistemas domésticos são centralizados e hierárquicos. As partes do sis-tema político internacional mantêm relações de coordenação. Formalmente, todos são iguais. nenhum tem o condão do comando, ninguém deve obedecer. Sistemas interna-cionais são descentralizados e anárquicos”. WAlTZ, Kenneth n. Theory of International Politics, 1979, p. 88.

39 Ver, nesse sentido, TRIndAdE, Antônio Augusto cançado. Direitos Humanos: perso-nalidade e capacidade jurídica internacional do indivíduo, 2004.

40 Ver, nesse sentido, pEllET, Alain. As Novas Tendências do Direito Internacional: As-pectos “Macrojurídicos”, 2004, p. 6. como destaca o autor, a consolidação do indivíduo como sujeito do dI ainda carece de avanços institucionais que permitam com que ele te-nha maior capacidade de atuação na esfera internacional. Ver, igualmente, MILLS, Alex;Ver, igualmente, MILLS, Alex; JoYcE, daniel. Non-governmental Organisations and International Norm Transmission on the Fault Lines of the International Order, 2006, p. 16.

41 pEllET, Alain.pEllET, Alain. The normative dilemma: Will and consent in International law-making, 1992, p. 42-43, onde afirma: “Isso, de fato, é pura hipocrisia. Não basta desejar; é tam-não basta desejar; é tam-bém necessário ser capaz de desejar. E está muito claro que, na sociedade internacional, se os Estados são iguais, alguns são ‘mais iguais’ que os outros. (...) É óbvio que o desejo de um Estado pequeno e fraco é ‘menos livre’ que o daqueles maiores e mais poderosos. (...) Se os Estados são soberanos, por que eles celebram tratados que na realidade não desejam? A resposta é porque eles precisam. Não apenas em virtude da necessidade de dinheiro, assistência técnica, urgência de ajuda alimentar, etc. Mas também porque sen-tem a absoluta necessidade de ‘participar’. E isso é verdade não só para os tratados, mas, de uma forma geral, para o direito Internacional, qualquer que seja sua forma”.

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cial do consentimento na determinação legal42. diante desse cenário, a mera legalidade do direito Internacional se mostra um elemento insuficiente para conferir legitimidade a suas instituições43.

Este panorama lança desafios críticos para o Direito Interna-cional contemporâneo, tais quais o de se identificar quais seriam os procedimentos adequados para a produção normativa, bem como o de se determinar quando, porque e em que medida atores sub-estatais podem influenciar o comportamento dos Estados44.

O que se percebe, portanto, é que a supracitada modificação dos padrões de relacionamento na sociedade internacional implicou uma conseqüente alteração na concepção acerca da utilização de me-canismos de governança (ou racionalidade governamental) entre seus agentes sociais45, que significou, em certa medida, uma nova forma de institucionalização da autoridade política. As demandas criadas por esse contexto, que serão denominadas, no âmbito desse trabalho, “de-mandas de primeira geração”, são relativas, em sua maioria, (i) à pos-sibilidade de definição da agenda de políticas a ser discutida e votada; (ii) do acompanhamento dos processos decisórios, de forma que fique garantida a transparência do mesmo; (iii) de prestação de serviços técnicos – tanto no momento da criação quanto no da implementação; e (iv) de fiscalização da execução das políticas adotadas. O que carac-teriza as onGs, nesse sentido, é uma tendência de participação como observadores do processo, que traduz de forma bastante sintomática os anseios por legitimidade que nortearam seu surgimento. por um lado, visa-se à construção social das funções e objetivos das políticas adotadas (aspecto sociológico)46; por outro busca-se transparência e accountability nos processos decisórios (aspecto normativo)47.

42 ShElTon, dinah.ShElTon, dinah. International Law and “Relative Normativity”, 2003, p. 145-150.43 BuchAnAn and KEohAnE. The Legitimacy of Global Governance Institutions,

2006, p. 413, destacam que essa situação seria agravada pela ação de Estados não demo-cráticos, ou daqueles que sistematicamente violam direitos humanos de seus cidadãos.

44 WoodWARd, B.K.WoodWARd, B.K. Global Civil Society and International Law in Global Governance: Some Contemporary Issues, 2006, p. 249.

45 SEndInG, ole Jacob; nEuMAnn, Iver B.SEndInG, ole Jacob; nEuMAnn, Iver B. Governance to Governmentality: Analyzing NGOs, States, and Power, 2006, p. 653-658.

46 BRoWn, l. david; TIMMER, Vanessa.BRoWn, l. david; TIMMER, Vanessa. Civil Society Actors as Catalysts for Transna-tional Social Learning, 2006, p. 4.

47 REIMAnn, Kim d.REIMAnn, Kim d. A View from the Top: International Politics, Norms and the World-wide Growth of NGOs, 2006, p. 55-58. para uma discussão aplicada aos direitos huma-para uma discussão aplicada aos direitos huma-

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Essas demandas de primeira geração foram satisfatoriamente consagradas pelo ordenamento jurídico internacional48. Entretanto, o desenvolvimento desses padrões propiciou um crescimento dramático das organizações da sociedade civil, que variaram enormemente suas tipologia e funções49. Esse novo conjunto de atores foram os respon-sáveis por um novo padrão de demandas, que serão denominadas de “segunda geração”. Essas ainda não foram completamente absorvidas pela sociedade internacional e, como argumento que se segue, aca-bam impulsionando uma tensão por novas práticas de governança e exigem uma outra adaptação do sistema normativo internacional.

por ser um movimento que se manifestou nos últimos anos, não houve uma resposta definitiva do sistema normativo a esse respeito. Há, contudo, vários esforços de discussão e definição das diretrizes para o tratamento da questão. destaca-se, nesse sentido o trabalho do “Panel of Eminent Persons on United Nations – Civil Society Rela-tions”, presidido por Fernando Henrique Cardoso (Ex-Presidente do Brasil), que deu origem ao relatório “We the peoples: Civil Society, the United Nations and Global Governance”50, de 11 de junho de 2004. Seus objetivos eram:

– Review existing guidelines, decisions and practices regarding civil society organizations access to and participation in united nations deliberations and processes;

nos, ver BREEn, claire. Rationalising the work of UM Human Rights Bodies or Reduc-ing the input of NGOs? The changing role of Human Rights NGOs at the United Nations, 2005, p. 104-116.

48 para uma consistente discussão do papel das onGs no âmbito das nações unidas, ver WoodWARd, B.K. Global Civil Society and International Law in Global Governance: Some Contemporary Issues, 2006, p. 348-353. no que se refere à resposta das organiza-ções do Sistema Financeiro Internacional, ver TuSSIE, Novos Procedimentos e Velhos Mecanismos: a governança global e a sociedade civil, p. 51-56; MuRphY, Jonathan. The World Bank, NGOs, and Civil Society: Converging Agendas? The Case of Universal Basic Education in Niger, 2005. no âmbito da oMc, ver WTo SMYThE, Elizabeth. SMITh, peter J. Legitimacy, Transparency, and Information Technology: The World Trade Organization in an Era of Contentious Trade Politics, 2006.

49 MAWdSlEY, Emma; ToWnSEnd, Janet G.; poRTER, Gina.MAWdSlEY, Emma; ToWnSEnd, Janet G.; poRTER, Gina. Trust, accountability, and face-to-face interaction in North–South NGO relations, 2005, p. 79-81; Wood-WARd, B.K. Global Civil Society and International Law in Global Governance: Some Contemporary Issues, 2006, p. 338-342.

50 un doc. A/58/817.un doc. A/58/817.

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– Identify best practices in the united nations system and in other International organizations with a view to identifying new and better ways of interacting with non-governmental organizations and other civil society organizations;– Examine the ways in which the participation of civil society ac-tors from developing countries can be facilitated;– Review how the secretariat is organized to facilitate, manage, share experiences and evaluate the relationships of the United Na-tions with civil society.

Como se pode perceber, a finalidade desse painel é fruto da ten-são colocada pelo alargamento do rol de funções das onGs. o mes-mo tipo de discussão é feita em âmbito regional e na esfera doméstica de muitos países51. o caráter ainda incipiente do consenso sobre a necessidade de reforma da estrutura normativa a elas aplicadas, e a falta de regulamentação sobre as novas atividades desenvolvidas gera um problema adicional a esse cenário: a efetividade das ações dessas organizações começa a ser questionada, o que implica um questiona-mento severo de sua legitimidade nesse novo contexto.

4 A peRSpeCtivA LAtino-AMeRiCAnA: oS CASoS do MeRCoSuL e do SiSteMA inteRAMeRiCAno de pRoteção AoS diReitoS HuMAnoS

4.1 o Mercosul

desde seu estabelecimento, o Mercosul foi concebido como um espaço de integração econômica. o caráter eminentemente inter-go-vernamental dos procedimentos de tomada de decisão no MERcoSul se colocam como um grave entrave institucional para a participação das onGs. os governos são, nesse sentido, relutantes em assumir compromissos e criar instituições que incorporem uma dimensão de cidadania mais ampla, e que enunciem uma descentralização na for-mulação das políticas.

51 Ver, para uma análise dessa tendência, WoodWARd, B.K.Ver, para uma análise dessa tendência, WoodWARd, B.K. Global Civil Society and International Law in Global Governance: Some Contemporary Issues, 2006, p. 51-55.

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A estrutura normativa relativa à incorporação das decisões to-madas pelos órgãos do MERcoSul é outro fator que desestimula a ação das onGs: as medidas são implementadas separadamente dentro de cada Estado-parte e, nesta perspectiva, não detém caráter univer-sal. A ação da Sociedade civil nas esferas domésticas se mostra, dessa forma, mais produtiva, e, a princípio, de articulação mais fácil.

o protocolo de ouro preto estabeleceu, em 1994, dentro da es-fera de atuação e competência do Grupo Mercado Comum (GMC) – instância executiva, porém não decisória do bloco –, dois espaços reservados à participação da sociedade civil: o Fórum Consultivo Econômico-Social (FCES)52 e, a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul (CPCM)53. o que se percebe, contudo, em ambos os casos é a participação de grupos de interesse específicos – coalizão de empre-sários e sindicatos. o mesmo acontece em outros grupos e subgrupos ligados ao GMc54 e ao conselho do Mercado comum55: organizações do terceiro setor são contempladas apenas com o status de observa-doras, e, em sua maioria, são representantes de entidades de classe ou de grupos privados.

Deve-se, por fim, destacar os esforços não-institucionais de incorporação das demandas da sociedade civil no MERcoSul. os próprios governos dos Estados-Membro têm promovido ações nes-se sentido. A I Cúpula Social do Mercosul, também conhecida como Cúpula de Brasília, é exemplo desta realidade. Ocorrida entre os dias 13 e 15 de dezembro de 2006, durante o período de presidência pro tempore do Brasil, a reunião procurou estabelecer um espaço de con-vergência e participação de organizações da sociedade civil, nacionais e regionais, em consonância com os ditames do tópico “Mercosul So-cial” previsto no programa de Trabalho para os anos de 2004 a 2006. A iniciativa do governo brasileiro foi recebida de forma tão positiva que, a partir da 32ª Reunião de cúpula dos chefes de Estado do Mer-

52 Arts. 28 , 29 of the protocol.Arts. 28 , 29 of the protocol.53 Arts. 22 to 25.Arts. 22 to 25.54 Ver Grupo Alto nível Estratégia Mercosul de crescimento de Emprego; e Reunião de

Altas Autoridades de direitos humanos do Mercosul e Estados Associados.55 Ver Subgrupo de Trabalho n.10 (SGT-10) – Assuntos Trabalhistas, Emprego e Seguri-

dade Social; Reunião Especializada da Mulher; Reunião Especializada de Agricultura Familiar; e Reunião Especializada de cooperativas do MERcoSul.

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cosul, realizada em janeiro de 2007, no Rio de Janeiro, ficou acordado o caráter permanente da cúpula Social, que deverá ser realizada con-juntamente com as reuniões dos chefes de Estado do bloco.

Outro exemplo é a iniciativa Somos Mercosul, criada na vigên-cia da presidência pro tempore do uruguai, em 2005, com o apoio financeiro e institucional da organização alemã Friedrich Ebert Stif-tung (FESuR). destaca-se, igualmente, a iniciativa da presidência pro tempore argentina na promoção do Encontro por um Mercosul Produ-tivo e Social, nos dias 19 a 21 de julho de 2006, em córdoba, com o apoio do Centro de Formação para a Integração Regional (CEFIR) e da organização alemã InWEnt – Internationale Weiterbildung und En-twicklung gemeinnützige GmbH. como resultado dos trabalhos fora lançado o Programa Integral de Formação em Integração Regional e Mercosul, que será implementado de forma virtual.

Neste mesmo panorama insere-se o Programa Mercosul Social e Solidário. Localizado também fora do contexto institucional do blo-co, o programa, atualmente financiado pela União Européia, foca sua atuação no desejo de melhorar o exercício da cidadania e a qualidade de vida de grupos sociais marginalizados nos países do cone Sul. por meio de uma participação social ampla, efetiva e diferenciada em relação à matéria – englobando o debate de temas como soberania, políticas públicas, igualdade entre homens e mulheres, saúde, direitos humanos e economia solidária – busca consolidar os processos demo-cráticos no âmbito do Mercosul. para tanto, conta com a participação de 18 onGs de cinco países da região, Brasil, Argentina, paraguai, Uruguai e Chile. No caso específico do Brasil, as ONGs atuantes são as seguintes: o CEDAC/RJ – Centro de Ação Comunitária (Rio de Janeiro), o CENTRAC/PB – Centro de Ação Cultural (paraíba) e o POLIS/SP – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políti-cas Sociais (São paulo).

4.2 o Sistema interamericano de proteção aos direitos Humanos e a atuação das onGs

o papel das onGs no Sistema Interamericano de proteção aos Direitos Humanos é significativo. Elas atuarão, de forma diferencia-

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da, em todas as instâncias do sistema (oEA, comissão e corte Intera-mericana de direitos humanos). o que se percebe, nesse caso, é que a implementação dos direitos humanos é matéria que tradicionalmente enseja a participação de organizações com esse caráter. o viés emi-nentemente fiscalizador de suas instituições faz com que as demandas colocadas pela sociedade civil sejam as de “primeira geração”. por essa razão, status legal que é a elas conferido responde satisfatoria-mente a esses inputs, criando um ambiente de relativa estabilidade entre os Estados e as organizações não-Governamentais.

A) A atuação das onGs na oeA

o registro na oEA, cujas diretrizes estão consagradas na resolu-ção cp/RES 759 de 199956, garante a possibilidade de receber e exigir informações sobre os processos desenvolvidos nos principais órgãos da OEA, o que na prática se traduz no acesso aos textos preparató-rios das resoluções da Assembléia Geral e do conselho permanente, além da possibilidade de participação nas suas reuniões. há, contudo, vários entraves à participação dessas organizações. para que elas te-nham voz nas reuniões da Assembléia Geral, por exemplo, os Estados membros devem ceder parte de seu tempo57. por essa razão, têm agido por meio da emissão de opiniões escritas ao conselho permanente, assim como ao conselho Interamericano para o desenvolvimento In-tegral (cIdI).

no que se refere à elaboração dos Tratados Regionais de di-reitos humanos, elas podem propor a temática do tratado ou declara-ção. contudo, para que seja votada, deve ser objeto de uma decisão preliminar da Assembléia Geral. na etapa que se segue, também há possibilidade da participação das onGs, embora de maneira restrita. A partir da decisão da Assembléia de aceitar a preparação do docu-

56 Feito a partir de critérios objetivos (representação legal, diretor geral, sede oficial) e subjetivos (reconhecida reputação, representatividade em sua esfera de atuação, disponi-bilidade de recursos pra financiar seus objetivos).

57 Foi este o caso da reunião da Assembléia Geral ocorrida no panamá em 1996, em que o próprio Estado panamenho permitiu que uma organização defensora dos direitos dos deficientes visuais fizesse suas considerações acerca do texto provisório da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de discriminação contra pessoas com Deficiências, adotada alguns anos depois.

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mento, o conselho permanente forma um Grupo de Trabalho com o auxílio do Comitê de Assuntos Jurídicos e Políticos, que formula os artigos do instrumento internacional proposto. Tal grupo é composto por representantes dos Estados, os quais podem requerer a participa-ção de determinadas onGs58.

B) As organizações não-Governamentais e a Comissão in-teramericana de direitos Humanos

no âmbito da comissão Interamericana de direitos humanos, as onGs têm duas funções relevantes: atuar no momento das visitas in loco (a) e peticionar quando há desrespeito aos direitos garantidos pela convenção Interamericana (b).

De fato, as ONGs exercem um papel essencial no que tange às visitas in loco. por um lado, atuam na tentativa de persuadir a co-missão acerca necessidade da visita59. por outro, elas constituem um instrumento importante para que a própria comissão possa conhecer de forma acurada a realidade dos direitos humanos no Estado em que a visita se realiza60.

A participação das onGs nas petições no sistema interameri-cano não é algo novo, mas ela só pôde ser consolidada a partir das mudanças políticas e redemocratização na América latina, que per-mitiram um aprofundamento das atividades das organizações não-go-

58 neste sentido, tornou-se um paradigma a criação da convenção Interamericana sobre o desaparecimento Forçado de pessoas. o primeiro documento, produzido pelos Esta-dos, foi de tamanho retrocesso em relação à jurisprudência da corte – caso Velásquez Rodriguez – que um grupo de onGs – latin American federation of Relatives of di-sappeared detainees (FEdEFAM), Global Rights, Anistia Internacional e International comission of Jurists – solicitou que as instituições da sociedade civil fossem ouvidas para preparação do documento final. As organizações participantes, com o significante apoio de Argentina, chile, canadá e EuA, trabalharam ativamente para o fortalecimento da convenção, a qual estabeleceu padrões importantes para a diminuição do número de desaparecimentos forçados na região.

59 Como fizeram a Justiça Global e Terra de Direitos, ao requerer que estado do Pará fosse visitado com o objetivo de monitorar o caso da freira americana dorothy Stang, ativista de dirietos humanos assassinada em 2005.

60 neste sentido, são realizados encontros entre a comissão e as organizações da sociedade civil envolvidas com a proteção aos Direitos Humanos, como se deu, por exemplo, nas visitas in loco feitas ao Brasil em 1995, Bolívia e colômbia em 1997, Guatemala em 1998, Argentina, Haiti e México em 2002.

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vernamentais no continente. Atualmente, é bastante comum que as petições sejam apresentadas pelas onGs, o que se deve ao fato de muitas delas prestarem serviços de consultoria e assistência jurídica, além de possuírem familiaridade com os instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos e experiência com o sistema inte-ramericano de proteção.

C) As organizações não-Governamentais e a Corte intera-mericana de direitos Humanos

na corte Interamericana de direitos humanos, as onGs agem tanto no âmbito consultivo quanto no contencioso. Em ambos, a atua-ção ocorre por meio do instituto do amicus curiae61. no que concerne à competência consultiva, ele é o único meio de participação. no que se refere à competência contenciosa há, além dele, a possibilidade de que atuem como testemunhas e com auxílio à vítima como seus representantes.

nas opiniões consultivas, as cartas de amicus curiae estiveram presentes desde o primeiro caso levado à corte, quando da oc-1/82, solicitada pelo peru, a qual discute acerca da interpretação do artigo 64 da convenção Americana sobre direitos humanos. na oportuni-dade, diversas onGs ofereceram seus pontos de vista como amigos da corte, tais quais International human Rights law Group, Interna-tional league for human Rights e lawyers committee for Internatio-nal human Rights o que levou ao estabelecimento de um importante precedente. desde então, vários avanços e retrocessos ocorreram no tratamento da matéria62, mas a importância da atuação dessas organi-zações não pode ser negligenciada.

desde o primeiro caso contencioso (Velazquez Rodriguez), a corte recebeu várias cartas amicus curiae de onGs como Amnesty International e a lawyers committee for human Rights. Entretanto, a menção à atuação das onGs, enquanto amicus curiae é limitada so-mente ao registro, no corpo da decisão, do recebimento de tais cartas,

61 pôde-se observar a participação como amicus curiae da Anistia Internacional e da Rights International no caso Benavides cevallos Vs. Equador; ainda, a International human Rights law no caso Gangaram panday Vs. Suriname e no caso Barrios Altos Vs. peru.

62 Ver, por exemplo, decisões OC–16/99; OC-17/02; OC-18/03 e OC-19/05.

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sem maiores análises ou referências ao texto particular de cada uma. como verdadeiras peças processuais, as cartas são submetidas a um juízo de admissibilidade.

A atuação das onGs vem sendo ampliada, contudo, a partir do aprofundamento da atuação dos indivíduos no âmbito contencioso, após significativas modificações em seu regulamento, que possibili-tam a apresentação de argumentos orais e escritos em paralelo aos apresentados pela comissão. Sendo os advogados das vítimas nume-rosas vezes vinculados a essas organizações, amplia-se a possibilida-de de que estas se façam ouvir63.

5. ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

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63 Ver, por exemplo, o caso Penal Miguel Castro vs. Peru em 2006, no qual a sentença considerou a tese da impetrante, mudando o rumo do julgamento. Em casos brasileiros, a atuação das ONGs também se mostra relevante. Ver Ximenes Lopes (2003) e Gilson nogueira de carvalho (2005), no qual não houve, contudo, condenação do Brasil.

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Sumário

1. Introduction. 2. ultrafast communication net-works. 3. Tapping. 4. data retention. 5. legal pro-tection of privacy. 6. conclusions. 7. Reference.

AbstractIn the fight against crime and terrorism, many governments are

gathering communication data in order to gain insight into methods and activities of suspects and potential suspects. Tapping, or wiretap-ping, has been used for a long time and nowadays most countries are extending this to data retention, i.e., large-scale storage of various kinds of data available on communications. At the same time, how-ever, efforts are being made in the field of technology to develop a new generation of communication networks, based on ultrafast optical and wireless communication. This is likely to result in a significant increase in the speed and volume of information transfer on communi-cation networks such as the Internet. These increasing amounts of in-formation require increasing storage and analysis capacity, for which

1 This paper was first published in Kierkegaard, S. (2007) Cyberlaw, Security and Privacy,This paper was first published in Kierkegaard, S. (2007) Cyberlaw, Security and Privacy, p. 289-300

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automated solutions are being developed. In this contribution, the way in which these technological developments influence the possibilities of tapping and data retention is discussed and some suggestions are made on how to deal with this.KEYWoRdS: Tapping. data Retention. legal protection of privacy.

1 intRoduCtion

Government organizations, particularly those engaged in fight-ing crime and terrorism, have a particular need for personal infor-mation. Personal data may help to find out who a person is, whether he poses a risk to society and with what people he is in contact. Such information may play an important role in preventing crime and ter-rorism, as well as in solving or reconstructing in retrospect any such cases that have taken place.

In recent years, crime and terrorism have become more organized. As a result, it is no longer sufficient to investigate and profile individual suspects. There is also now a need to reveal the networks of people where these suspects operate. Gaining insight in who is communicating with whom may bring other suspects into scope, particularly first offenders, who were hitherto unknown to the authorities. In a way, finding out who knows who has become easier in the information age, as communication increasingly takes place via such information and communication networks as phones and the Internet. Tapping these communication lines is technologically straightforward. Telephone tapping is almost as old as the telephone itself. Apart from the term telephone tapping, the term wiretapping is often used to include tapping Internet communication. nowadays, the term tapping is becoming more common, since this also includes various types of wireless communication networks. In this contribution, the common term tapping is used to indicate the tapping of all forms of electronic and/or digital communication. communication without any tools such as phones or Internet can also be overheard and or recorded, but is beyond the scope of this contribution.

Data retention is a more recent form of investigating who knows who. Because of the ever-growing storage capacity of information systems, it has become technologically possible to store all communication that

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takes place over these networks. It is important to note that this is not currently happening, but it can be done. nevertheless, the secret services in the united States are building large databases with communication data. Echelon is a global electronics communications surveillance system that gathers and processes vast amounts of communication data (hagar, 1997, Madsen, 1998). Furthermore, in 2002, the uS department of defense was planning a project known as Total Information Awareness (TIA). This project envisioned the creation of a gigantic government database of personal information, including communication data, to be analyzed under various models to detect patterns and profiles for terrorist activities (Markoff, 2002). When a major news story about TIA broke, civil liberties groups, commentators and politicians voiced criticism. In 2003 the program was renamed Terrorism Information Awareness and it was stated that privacy would be protected, though without specifying how. however, that same year, the uS Senate stopped funding TIA (see also Solove, 2004).

In March 2006, the European union adopted a directive that re-quires telecom operators and Internet providers in all member states to implement data retention systems for both telephone and Internet traffic. It is significant to note that this EU Directive does not require or allow the retention of the contents of any communication. This contrasts to tapping, which focuses on the content of any form of communication. data retention focuses on the storage of call detail records of telephony and Internet traffic and transaction data. Basically this concerns phone calls made and received, emails sent and received and web sites visited. These data provide an idea of who is in contact with whom, when, and how frequently. When possible, further identifying information may be added, as well as location data.

With the rise of new technologies and the ever-increasing volumes of information being transferred, new security issues arise regarding tapping and data retention. In the past decades there has been a significant increase in communication between people. At the same time there has been a significant increase in data storage and analysis relating to this communication. This raises the question of how these technological developments influence the potential of tapping and data retention.

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This contribution will provide a brief overview of current use of tapping and data retention that will provide an answer to the question above and make some suggestions on how to deal with these new de-velopments. In Section 2, the technological developments regarding ultrafast communication networks will be discussed briefly. In Sec-tions 3 and 4, tapping and data retention will be discussed, respective-ly. how tapping and data retention works in ultrafast communication networks and what effects this may have will be explained in more detail in these sections. In Section 5, (European) privacy legislation will be discussed briefly. In Section 6, conclusions will be drawn and some suggestions will be made on how to deal with these effects. The focus will be on the developments in the Eu and uS.

2 uLtRAFASt CoMMuniCAtion netwoRkS

Technological change is exponential. According to Moore’s Law, the number of transistors on an integrated circuit (a ‘chip’ or ‘micro-chip’) for minimum component cost doubles every 24 months (Schaller, 1997). This, more or less, implies that storage capacity doubles every two years or that data storage costs are reduced by fifty per cent every two years. Gordon Moore’s empirical observation was made in 1965; by now, this doubling speed is approximately 18 months. Moore’s Law deals with storage capacities, but similar observations have been made for communication speed and volume. According to Gilder’s law, the total bandwidth availability of uS communication systems has tripled every twelve months since the 1980s and will expand at the same rate for the next 30 years to come (Raessens, 2001).

Moore’s Law is not only about making existing technologies more efficient. It also takes into account the new ideas and inventions in the field of information technology. The latest developments to increase the speed and volume of transferring information on communication networks are focused on changing from electronic communication to optical communication. This is likely to result in a significant increase in the speed and volume of information transfer on communication networks. This new type of communication is referred to as ultrafast communication (Miller, 2004). In order to achieve all-optical networks,

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efforts are being made to develop and introduce optical communication hubs. Many optical fibers are already used for communicating optical signals over longer distances, but there are currently no optical alterna-tives for many electronic building blocks, such as flips flops, gates, buf-fers, memories, shift registers, and transistors.

optical communication is not the only method for ultrafast com-munication. Wireless communication, using electromagnetic waves, is also considerably faster than electronic communication systems. The speed of wireless networks is often slowed down because wire-less networks may involve electronic transmission at both ends of a data transmission. The development of all-optical building blocks will overcome the limitations for ultrafast communication systems.

3 tAppinG

Wiretapping, or tapping for short, focuses on the contents of communication. The information communicated between persons may be very useful in criminal investigations. obviously tapping is considered a serious infringement of some basic human rights, such as privacy and freedom of expression. Most legal systems explicitly mention privacy of letters and privacy of phone calls a, as there are many different types of privacy. Those most commonly distinguished are spatial, relational and communicational privacy, all of which have physical and informational aspects (Blok, 2002).

Since tapping violates basic human rights, it is generally not al-lowed, but there are exceptions. In Western countries, such exceptions are strictly controlled and often concern (serious) suspicions of crime or terrorism or both. The police are often the executing authority. In most countries, tapping needs to be authorized by a court. permission to tap is only provided under strict conditions (Koops, 1999). The crimes have to be severe; tapping is not allowed for minor offenses. usually this means that the case must involve an offense punishable with, for instance, at least four years of imprisonment. Another condi-tion is that there is a reasonable expectation that the suspect will par-ticipate in the conversation. not only suspects’ phones can be tapped, but also, for instance, relatives’ phones. When the communication

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involves people with professional rights of non-disclosure, such as lawyers and doctors, monitoring the conversation is not allowed. Tap-ping is only allowed for public networks; private networks are beyond scrutiny.

The rapid developments in communication infrastructure are posing major challenges to the technical feasibility of tapping. Tapping regular (electronic) communication systems usually works by clicking a tapping device on the wire and copying (or interfering with) the sig-nal. From a technological perspective optical tapping is quite different. The socket of the cable has to be removed to get to the fiber. When bending the cable, part of the optical data stream will no longer follow the path of the fiber but will go straight ahead b . This sub-stream can be read when using the proper devices. When a lot of light is being tapped, this may cause the quality of the signal at the receiving end of cable to decrease. This could indicate to users that a cable is being tapped.

obviously this way of tapping signals is rather complicated, even when cryptography is not used to encrypt the information. Since most communication is at least partially wireless (usually the parts of the communication closest to the end users), it is much easier to tap wire-less information. The advantage of tapping wireless communication is that the signal is transmitted in all directions and can therefore be eas-ily intercepted. The major disadvantage of tapping wireless signals is that it requires being physically present at the place where the signal is being transmitted wireless. Generally speaking, the wireless part of a communication covers only a very small distance compared to the com-plete distance over which the communication takes place. For instance, a phone call between Europe and the united States is transmitted via long-distance wires on the bottom of in the ocean (covering thousands of kilometers) and only via short wireless distances close to the users (covering a few kilometers). Furthermore, ensuring that the largest part of the communication takes place via optical transmission has the ad-vantage of higher quality and less use of energy c. Since wireless signals constitute the weakest link when it comes to tapping, it is likely that this is where actual tapping will take place.

users may protect themselves from content tapping by using encryption. This is why governments seem to prefer encryption meth-

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ods with trapdoors, i.e., possibilities that allow a person with addi-tional information to tap encrypted data flows (Van der Lubbe, 1997, Schneier, 2000, Abelson et al., 1998, Akdeniz, 1998). Government institutions may then use such additional information for criminal investigations. companies like Microsoft, netscape, and lotus have implemented trapdoors in their software (leprovost, 1999).

4 dAtA Retention

In March of 2006, the European union adopted directive 2006/24/Ec on the retention of data generated or processed in con-nection with the provision of publicly available electronic communi-cations services or of public communications networks. This Euro-pean directive requires all Eu member-states to implement national legislation to ensure that communications providers retain particular data, for a period of between six months and two years. The providers are mainly Internet Service providers (ISps) and telecommunication companies. As indicated above, in contrast with tapping, data reten-tion does not focus on the contents of the communication, but rather on the storage of call detail records of telephony and Internet traffic and transaction data.

obviously these data are stored with a purpose. According to Article 1 of the directive, the aim is to use the data for “investigation, detection and prosecution of serious crime”. considering that a lot of communication takes place, data retention involves building vast databases. The costs for this are for the ISps and telecom operators, who are subjected to fines if they fail to comply. In the light of the de-velopments regarding ultrafast communication systems, it is expected that the volumes of communication will significantly increase. Hence, the capacity needed for storage and analysis of the data will increase accordingly. This will result in an overload of information. There-fore, the ability to distill useful information from these large amounts of data is becoming more and more important. Technologies are be-ing developed for this and one of the most promising is data mining, which provides an automated analysis of data in order to find patterns

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and relations (Adriaans and Van Zantinge, 1996, Fayyad et al., 1996). Such an automated analysis may result in revealing networks around particular people and it may result in risk profiles of both individuals and groups (custers, 2004).

The use of such risk profiles may have some typical advantages and disadvantages. The main advantages concern efficacy and (cost) efficiency, as it may be easier to find the individuals or target groups that are being looked for. A particular advantage is the possibility of finding so-called first offenders. This works as follows: if the charac-teristics of a particular individual in the database are very similar to the characteristics of some known individuals, it is assumed that such a person poses an increased risk. obviously this does not mean the person actually is a terrorist or is planning a terrorist attack. however, there are also some disadvantages of using such risk profiles. One of the main problems is that the profiles may not always be accurate (custers, 2003). There may be false-positives (i.e., innocent people who also fit the profile) and false-negatives (i.e., terrorists and crimi-nals that do not fit within the profile and are hence out of scope). The false-positives may result in arrests of innocent persons; the false-negatives may result in missing the persons who need to be identified. When particular criteria, such as ethnic origin and religion, are used to create a profile, this may result in unjustified discriminationd. If such profiles become known publicly, this may also result in stigmatization of particular groups (harvey, 1990).

people who want to be protected against data retention have sev-eral options to avoid leaving traces of their communication or to en-sure that traces lead to other persons. These methods cause decreased reliability of the data retained. Basically identifying persons commu-nicating via a network means establishing a link between the user and the network. Furthermore the user needs to be identified, often by traditional methods, using identity documents, face recognition, pass-words, keys, etc. The methods of identification are easily tampered with, rendering the user anonymous. Tampering with the link between the network and the user is a typical form of identity fraud and is often straightforward. The Internet can be used anonymously by walking into an Internet café somewhere in the world. When registration is required, it is usually easy to provide a fake name. people who want

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to disseminate computer viruses often use this method in order to be untraceable.

The user access point to a network is usually indicated by an address. For cell phones, this is on the SIM card (Subscriber Identity Module), a removable smartcard for cell phones. on the Internet, Ip ad-dresses (Internet protocol addresses) are used, which are numbers that locate someone’s computer on the Internet. Some Ip addresses are stat-ic, i.e., they do not change every time a user logs on to the Internet. If a user has a dial-up connection to the Internet or is using a computer that is connected to the Internet intermittently, it is most likely picking up a dynamic Ip address from a pool of possible Ip addresses at the Internet service provider’s network during each login. obviously, dynamic Ip addresses may be used to tamper with the link between the network and the user, since this is no longer a uniquely identifying link. It might be easy to retrieve the Ip number used at a particular point in time, but it could prove difficult to build a dossier on a particular IP number when there are different users. At one moment the Ip number could be used by a terrorist suspect; at another moment, it could be used by someone else who has nothing to do with this suspect. There are many techno-logical applications that can be used for accessing and using the In-ternet anonymously. using telecommunication networks anonymously is simple as well. For instance, anonymous phone calls can be made by buying a prepaid cell phone in a supermarket. The phone can be thrown away afterwards. At the moment, this may not be really cheap, but prices are decreasing.

5 LeGAL pRoteCtion oF pRivACy

When confronted with the developments described in the previ-ous sections, many people ask whether there is any legal protection of privacy that may prevent the effects of tapping and data retention. In this section I will indicate that there are cases where these (mainly European) privacy laws fall short. The main reason for this is that tapping and data retention legislation usually overrules privacy legis-lation. Privacy is often regarded as a hindrance in fighting crime and terrorism, although views on this are changing. Analyzing all avail-

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able data is not always as effective as a targeted (and more privacy-preserving) approach.

however, even when privacy legislation is not overruled by tap-ping and data retention legislation, there are some difficulties with the legal protection of privacy. A brief explanation of how (European) pri-vacy legislation works is required. In Europe, the collection and use of personal data is protected by a European directive (the so-called ‘privacy directive’), which has been implemented in national law in the member countries of the European unione . privacy principles that are safeguard-ed in the European privacy directive correspond to the principles in the organization for Economic co-operation and development (oEcd) guidelines, f which were also included in the council of Europe Treaty of Strasbourg g. (For a more detailed account, see Bygrave, 2002.)

These principles are:

• the collection limitation principle, stating that “[t]here should be limits to the collection of personal data and any such data should be obtained by lawful and fair means and, where appro-priate, with the knowledge or consent of the data subject”;

• the data quality principle, stating that “[p]ersonal data should be relevant to the purposes for which they are to be used, and, to the extent necessary for those purposes, should be accurate, complete and kept up to date”;

• the purpose specification principle, stating that “[t]he purposes for which personal data are collected should be specified and that the data may only be used for these purposes”;

• the use limitation principle, stating that “[p]ersonal data should not be disclosed, made available or otherwise used for purpos-es other than those specified, except a) with the consent of the data subject; or b) by the authority of law”;

• the security safeguards principle, stating that reasonable pre-cautions should be taken against risks of loss, unauthorized ac-cess, destruction, etc., of personal data;

• the openness principle, stating that the subject should be able to know about the existence and nature of personal data, its purpose and the identity of the data controller;

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• the individual participation principle, stating, among others, that the data subject should have the right to have his personal data erased, rectified, completed or amended;

• the accountability principle, stating that the data controller should be accountable for complying with measures support-ing the above principles.

These privacy principles for fair information practices are based on the concept of personal data, which is described in article 2 sub a of the European privacy directive as ‘data concerning an identified or identifiable natural person’, a definition that also stems from the OECD guidelines. Personal risk profiles contain personal data and are there-fore protected by the (national implementation of the) directive, but group risk profiles do not necessarily contain personal data and may therefore lack this protection. particularly in the case of data retention, the use of group risk profiles is useful to avoid privacy legislation. A group profile is a property or a collection of properties of a particular group of people. Group risk profiles may contain information that is already known, for instance people who smoke live on average a few years less than people who do not smoke. But group risk profiles may also show new facts, such as, for instance, people living in zip code area 8391 are (significantly) more often terrorists. Group profiles do not necessarily describe a causal relation. For instance, people driving a red car may show (significantly) more criminal behavior than people driv-ing a blue car. As was already indicated in the previous section, group profiles, though useful, may result in stigmatization and errors. (For a more detailed discussion, see ( custers, 2004) ).

6 ConCLuSionS

currently, there is a lot of information on communication being collected and processed to support the fight against crime and terror-ism. As a result of new technological developments, such as the de-velopment of ultrafast communication networks, it is expected that the amount of communication data will continue to increase. This new gen-eration of networks is likely to be a combination of optical and wireless

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devices. The former are relatively hard to tap; the latter are relatively easy to tap. Tapping should only be possible if the prescribed conditions allow it. It is therefore particularly recommended that cryptography is used to prevent unauthorized tapping for the wireless parts of ultrafast communication. This cryptography should not be too strong to be deci-phered in cases in which tapping is allowed. The use of trapdoors and technologies such as key recovery systems, key escrow systems and trusted third-party encryption may be useful to achieve this.

Whereas tapping concerns the contents of the communication, data retention focuses on storing and analyzing communication data, particularly call detail records regarding phone calls and Internet traf-fic. Ultrafast networks will require larger capacities for storing and analyzing data. The former is relatively easy, since storage capac-ity continues to grow (though the costs involved are the subject of a major discussion); the latter is a significant problem. Analyzing vast amounts of data needs to be automated, for example, by means of data mining. however, most data mining technologies are not yet sophisti-cated enough for large-scale use. Furthermore, a major disadvantage is that the risk profiles resulting from the automated analyses may not be accurate. False-positives may result in investigating and even ar-resting innocent people. False-negatives may result in criminals and terrorists being out of scope.

When risk profiles have limited accuracy, they should only be used with the utmost care, in order to prevent investigating and ar-resting innocent people. It is recommended to always perform double checks on existing risk profiles and not to merely rely on data in da-tabases, but to also conduct significant fieldwork. In order to prevent the worst forms of unjustified discrimination and social polarization, it is recommended not to include sensitive personal data, such as reli-gion and ethnic background, in the risk profiles.

It is important to note that the increasing speed of network com-munication on tapping and data retention does not present much of a difference to civil liberties issues. Issues like privacy, guilt by as-sociation and wrongful arrest do not present much of a difference if a fast or slow network is presented. however, the combined effects of new technologies and new powers for government organizations have far-reaching consequences for the constitutional rights and privacy of

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individuals. Recent research in the netherlands shows that the over the past few years, the dutch government has approved numerous laws that have drastically increased the intelligence-gathering powers of the police, judiciary and intelligence services (Vedder et al. 2007).

Summarizing, tapping and data retention in the age of ultrafast communication networks may be very useful to reveal criminal and terrorist networks and to find first offenders. Both aspects are increas-ingly needed in the fight against crime and terrorism. However, because of the increasing amounts of data that are communicated over ultrafast networks, it is vital to start by determining which data should be col-lected. Even though all data can be stored, it is not recommendable to do so because the overview will be lost. It is better to make a selection of the data that may be useful. This will make the approach better tar-geted and effective than storing and analyzing all available data.

ReFeRenCeS

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a See for instance Article 12 of the universal declaration of hu-See for instance Article 12 of the universal declaration of hu-man Rights and Article 8 of the European convention on human Rights.

b note that actually cutting the cable is not necessary to tap the in-note that actually cutting the cable is not necessary to tap the in-formation flow.

c Generally speaking, optical transmission is in only one direction,Generally speaking, optical transmission is in only one direction, whereas wireless transmission is usually in all directions. As a re-sult the strength of a wireless signal decreases with a factor of 1/r2 over a distance r.

d note that telephone and Internet data do not include such charac-note that telephone and Internet data do not include such charac-teristics; however, they may be derived with some accuracy from location data, since particular locations may be indicators for char-acteristics like ethnic background and religion.

e European directive 95/46/EG of the European parliament and theEuropean directive 95/46/EG of the European parliament and the council of 24th october 1995, [1995] oJ l281/31.

f See <http://s3-hq.oecd.org/scripts/pwv3/pwhome.htm>.See <http://s3-hq.oecd.org/scripts/pwv3/pwhome.htm>.g See <http:/www.coe.fr/dataprotection/Treaties/Convention%2010-

8%20E.htm>.

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InTERcEpTAÇÃo E RETEnÇÃo dE dAdoS nAS REdES dE coMunIcAÇÃo ulTRA-RÁpIdA2

BART cuSTERSTradução: carlos Alberto Rohrmann

Sumário1. Introdução. 2. Redes de comunicação ultra-rá-pida. 3. Interceptação. 4. Retenção de dados. 5. pro-teção legal da privacidade. 6. conclusão. 7. Referên-cias bibliográficas.

Resumona luta contra o crime e o terrorismo, muitos governos cole-

tam dados de comunicações com a finalidade de identificar suspeitos potenciais, seus métodos e suas atividades. A interceptação (ou inter-ceptação de comunicações) vem sendo usada há muito tempo, e, atu-almente, muitos países estão adotando também a retenção de dados, isto é, o armazenamento de grandes volumes de dados de vários tipos. por outro lado, concomitantemente, assinalam-se esforços no campo da tecnologia para o desenvolvimento de uma nova geração de redes de comunicações baseadas em comunicação óptica e sem fio. Isso representará um aumento significativo na velocidade e no volume de transferências de informações nas redes de comunicações, como a In-ternet. Esses volumes crescentes de informações requerem armaze-namento com potencialidade crescente e capacidade de análise, para os quais estão sendo desenvolvidas soluções automáticas. neste ar-tigo discute-se o modo como esses avanços tecnológicos influenciam a prática de interceptação e retenção de dados e sugere-se como lidar com essa situação.

2 Este artigo foi publicado em Kierkegaard, S. (2007) cyberlaw, Security and privacy, p. 289-300.

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pAlAVRAS-chAVE: Interceptação de dados. Retenção de dados. proteção legal de privacidade.

AbstractIn the fight against crime and terrorism, many governments are

gathering communication data in order to gain insight into methods and activities of suspects and potential suspects. Tapping, or wiretap-ping, has been used for a long time and nowadays most countries are extending this to data retention, i.e., large-scale storage of various kinds of data available on communications. At the same time, how-ever, efforts are being made in the field of technology to develop a new generation of communication networks, based on ultrafast opti-cal and wireless communication. This is likely to result in a signifi-cant increase in the speed and volume of information transfer on com-munication networks such as the Internet. These increasing amounts of information require increasing storage and analysis capacity, for which automated solutions are being developed. In this contribution, the way in which these technological developments influence the pos-sibilities of tapping and data retention is discussed and some sugges-tions are made on how to deal with this.KEYWoRdS: Tapping. data retention. legal protection of privacy.

1 intRodução

As organizações governamentais, principalmente aquelas en-volvidas na luta contra o crime e o terrorismo, de modo especial, necessitam de informações pessoais. certos dados pessoais podem ajudar a descobrir quem é uma pessoa, se ela representa algum risco para a sociedade e com quem ela mantém contato. Tais informações podem exercer um importante papel na prevenção do crime e do ter-rorismo, assim como, retrospectivamente, solucionar ou reconstituir casos.

nos últimos anos, o crime e o terrorismo tornaram-se mais or-ganizados. Em virtude disto, não basta investigar e traçar o perfil dos suspeitos. A atual situação mostra a necessidade de se revelarem as conexões de pessoas com as quais os suspeitos atuam. Descobrir com

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quem certas pessoas se comunicam pode provocar o aparecimento de mais suspeitos, principalmente criminosos primários, até então desconhecidos pelas autoridades. de certa maneira, descobrir quem certas pessoas conhecem é mais fácil na era da informação, conquanto as comunicações cada vez mais se processam via redes de comuni-cações, como telefones e a Internet. A interceptação de tais linhas de comunicações é, tecnologicamente, uma questão simples. A escuta telefônica é quase tão antiga quanto o próprio telefone. considerando o termo escuta telefônica à parte, o termo interceptação de comuni-cações é muitas vezes usado também para definir a interceptação nas comunicações via Internet. Atualmente, o termo interceptação torna-se cada dia mais comum, uma vez que ele designa vários tipos de redes de comunicações sem fio. Neste trabalho, o termo interceptação é usado para definir a interceptação de todas as formas de comunica-ções eletrônicas ou digitais. outros tipos de comunicações que não usam instrumentos, como fones ou Internet, e que também podem ser escutados e/ou gravados, estão fora do escopo deste trabalho.

A retenção de dados é uma forma recente que permite investi-gar quem uma determinada pessoa conhece. Em virtude da capacidade crescente de armazenamento dos sistemas de informações, tornou-se tecnologicamente possível armazenar todos os dados de comunicações que trafegam nessas redes. É importante observar que isso ainda não ocorre, mas é viável, haja vista que os serviços secretos dos Estados unidos estão montando enormes bancos com dados de comunicações. Echelon é um sistema global de vigilância eletrônica que coleta e pro-cessa grandes quantidades de dados de comunicações (hagar, 1997, Madsen, 1998). Além disso, em 2002, esteve nos planos do departa-mento de defesa dos Estados unidos um projeto conhecido como TIA – Total Information Awareness (Vigilância Total de Informações). Esse projeto pretendia criar um gigantesco banco de dados pessoais para o governo, inclusive dados de comunicações, que seriam analisados sob vários aspectos e detectariam padrões e perfis de atividades terroristas (Markoff, 2002). Quando alguns fatos sobre o TIA vieram a público, movimentos civis pela liberdade, comentaristas e políticos criticaram o projeto. Em 2003 o programa foi rebatizado de Terrorism Information Awareness (Vigilância de Informações sobre Terrorismo), quando se estabeleceu que a privacidade seria protegida, embora sem esclarecer

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como isto seria realizado. naquele mesmo ano, o Senado dos Estados Unidos interrompeu os financiamentos ao TIA (v. Solove, 2004).

Em março de 2006, a união Européia adotou uma diretiva para todos os seus Estados-membros, requerendo que as empresas op-eradoras de telecomunicações e os provedores de Internet criassem sistemas de retenção de dados para telefonia e Internet. É importante observar que tal diretiva não determina nem autoriza a retenção de conteúdos de quaisquer tipos de comunicação, contrastando com a prática da interceptação, cujo foco é o conteúdo de qualquer forma de comunicação. A retenção de dados tem como foco o armazenamento de detalhes de chamadas telefônicas, o tráfico da Internet e dados de transações. Basicamente, isso abrange chamadas telefônicas efetua-das e recebidas, emails enviados e recebidos e web sites visitados. Esses dados permitem saber com quem uma detrminada pessoa esteve em contato, quando e com que freqüência esses contatos ocorreram. Sempre que possível, outras informações identificadoras podem ser acrescentadas, assim como dados de localização.

com o surgimento de novas tecnologias e o sempre crescente aumento dos volumes de informação transferidos, aparecem novas questões de segurança relativas à interceptação e retenção de dados. Nas últimas décadas houve um aumento significativo das comuni-cações entre as pessoas. Ao mesmo tempo ocorreu um aumento sig-nificativo de armazenamento de dados e análise dessas comunicações, surgindo a dúvida de como esses avanços tecnológicos influenciam o potencial de interceptação e retenção de dados.

Este trabalho fará um breve exame da prática atual de intercep-tação e retenção de dados, de modo a poder responder a questão acima e sugerir como proceder diante desses avanços. na Seção 2, serão discutidos, em linhas gerais, os avanços tecnológicos referentes às redes de comunicação ultra-rápida. na Seções 3 e 4, serão discutidas, respectivamente, a interceptação e a retenção de dados, mostrando-se como elas funcionam nas redes de comunicação ultra-rápida e expli-cados em detalhes os efeitos que causam. A Seção 5 será dedicada a uma breve discussão da legislação européia sobre a privacidade. A Seção 6 destina-se às conclusões e sugestões sobre como lidar com os tais efeitos, tendo como foco os resultados nos países da união Euro-péia e nos Estados unidos.

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2 RedeS de CoMuniCAção uLtRA-RÁpidA

As transformações tecnológicas ocorrem de maneira exponen-cial. de acordo com a lei de Moore, o número de transistores num circuito integrado (um chip ou microchip) dobrava a cada 24 meses como componente de custo mínimo (Schaller, 1997). Isso quer dizer, mais ou menos, que a capacidade de armazenamento dobrava a cada dois anos ou que os custos para armazenamento de dados reduziam-se em cinqüenta por cento a cada dois anos. Essa observação empírica de Gordon Moore data de 1965. Atualmente esse fato ocorre em 18 meses. A lei de Moore se refere à capacidade de armazenamento, mas observações similares vêm sendo feitas em relação à velocidade de comunicação e volume. de acordo com a lei de Gilder, a amplitude total de comunicação disponível nos sistemas de comunicação dos Estados unidos vem triplicando a cada doze meses desde os anos 80 e continuará expandindo-se nessa mesma proporção nos próximos 30 anos (Raessens, 2001).

A lei de Moore não considera apenas o desenvolvimento das tecnologias atuais. Ela também leva em consideração as novas idé-ias e invenções no campo da tecnologia da informação. os últimos avanços para aumentar a velocidade e o volume das transferências de informações nas redes de comunicação têm pretendido transformar as comunicações eletrônicas em comunicações ópticas. o resultado foi o aumento significativo da velocidade e do volume das transferências de informações nas redes de comunicação. Esse novo tipo de comu-nicação é conhecido como comunicação ultra-rápida (Miller, 2004). A fim de se alcançarem todas as redes ópticas, esforçam-se para de-senvolver e implantar centralizadores de comunicações. Já se usam muitas fibras ópticas para a comunicação de sinais ópticos através de longas distâncias, mas atualmente não existe alternativa óptica para muitos princípios estruturais eletrônicos, tais como multivibradores biestáveis, portais, regiões de memória temporária, memórias, shift registers3 e transistores.

A comunicação óptica não é o único meio de se resolver a questão da comunicação ultra-rápida. A comunicação sem fio, que

3 n. T. dá-se o nome de shift register a um conjunto de multivibradores biestáveis.

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utiliza ondas eletromagnéticas, é consideravelmente mais rápida que os sistemas de comunicação eletrônica. A velocidade das redes sem fio muitas vezes se reduz porque as redes sem fio podem exigir trans-missão eletrônica em ambas as extremidades de uma transmissão de dados. o desenvolvimento de um princípio estrutural todo óptico pode ultrapassar os limites dos sistemas de comunicação ultra-rápida.

3 inteRCeptAção

A interceptação de dados, ou simplesmente interceptação, visa ao conteúdo da comunicação. As informações entre pessoas podem ser muito úteis em investigações criminais. Evidentemente, a inter-ceptação é considerada uma violação séria de alguns direitos humanos básicos, como a privacidade e a liberdade de expressão. Muitos siste-mas legais mencionam explicitamente a privacidade de correspondên-cia e a privacidade de conversa telefônicai, porquanto existem muitos tipos de privacidade. os tipos mais comuns de privacidade são a do espaço, a relacional e a de comunicação, todas com aspectos físicos e de informação (Blok, 2002).

por violar os direitos humanos básicos, não se admite geralmente a interceptação, mas há exceções. Nos países do Ocidente, tais ex-ceções são controladas rigorosamente, e muitas vezes a interceptação é empregada quando há suspeitas (sérias) de crime ou terrorismo, ou am-bas. Geralmente compete à polícia o papel de executar essa tarefa. Em muitos países a interceptação se realiza com autorização judicial. A au-torização para interceptar somente é concedida sob condições especiais (Koops, 1999). os crimes devem ser sérios, porquanto não se admite a interceptação para crimes de menor importância. Isto quer dizer que o caso deve envolver um delito punível com, pelo menos, quatro anos de detenção. outra condição é a presunção razoável de que o suspeito participará da conversa. não só os telefones dos suspeitos podem ser interceptados, mas também os de seus parentes. Quando a comunicação envolve profissionais com direitos específicos de inviolabilidade, como advogados e médicos, o monitoramento de conversas não é permitido. A interceptação somente é permitida em redes públicas, visto que as redes privadas não podem ser alvo dessa prática.

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o desenvolvimento rápido da infra-estrutura das comunicações está apresentando grandes desafios à realização da interceptação. A interceptação regular (eletrônica) em sistemas de comunicação con-siste na conexão de um aparelho de interceptação no fio que copiará o sinal (ou interferirá nele). do ponto de vista tecnológico, a inter-ceptação óptica é bastante diferente. Deve-se remover o encaixe do cabo para se ter acesso à fibra. Ao se dobrar o cabo, parte dos dados que compõem o fluxo não segue o curso da fibra, mas continua direta-mente em frenteii . Esse subfluxo pode ser lido com o uso de aparelhos próprios. A interceptação de muita luz pode causar a queda de quali-dade do sinal no lado receptor do cabo. Isso pode indicar ao usuário que está ocorrendo uma interceptação num cabo.

obviamente esse modo de interceptar sinais é relativamente complicado, mesmo quando não se emprega informação criptogra-fada. Como muitas comunicações são realizadas parcialmente sem fio (geralmente algumas dessas partes da comunicação estão mais próxi-mas dos usuários finais), é muito mais fácil interceptar informações sem fio. A vantagem de se interceptar uma comunicação sem fio con-siste no fato de que o sinal é transmitido em todas as direções, e, por conseguinte, ele pode ser facilmente interceptado. A grande desvanta-gem dessa prática consiste no fato de se requerer a presença física no local em que se transmite o sinal sem fio. Em linhas gerais, a parte sem fio de uma comunicação cobre somente uma distância muito pequena comparada com a distância total em que a comunicação ocorre. por exemplo, uma ligação telefônica entre a Europa e os Estados Unidos é transmitida via cabos de longa distância que estão no fundo do oceano (cobrindo milhares de quilômetros) e apenas através de uma distân-cia pequena sem fio perto do usuário (cobrindo poucos quilômetros). Ademais, é de se levar em conta que a maior parte da comunicação via transmissão óptica tem a vantagem de apresentar maior qualidade e gastar menos energiaiii . Como os sinais sem fio constituem o vínculo mais fraco quando se faz a interceptação, é de se esperar que sejam os preferidos para a interceptação.

os usuários podem proteger-se de interceptação com o uso de criptografia. Este é o motivo pelo qual alguns governos parecem preferir métodos criptográficos conhecidos como “alçapões”, isto é, recursos que permitem a uma pessoa com informações adicionais interceptar

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fluxos de dados criptografados (Van der Lubbe, 1997, Schneier, 2000, Abelson et al., 1998, Akdeniz, 1998). os órgãos governamentais po-dem, então, usar tais informações adicionais para investigações crimi-nais. Empresas como a Microsoft, netscape e lotus desenvolveram “alçapões” em seus programas (leprovost, 1999).

4 Retenção de dAdoS

Em março de 2006 a união Européia adotou a diretiva 2006/24/EC sobre a retenção de dados gerados ou processados em conexão com o dispositivo legal que trata dos serviços de comunicação eletrônica disponíveis ao público ou redes de comunicação pública. Essa direti-va requer que todos os Estados-membros da união Européia imple-mentem legislações no sentido de que os provedores de comunicação retenham dados particulares por um período que varia de seis meses a dois anos. Tais provedores são principalmente os de Serviço de Internet (ISPs – Internet Service Providers) e empresas de telecomunicações. Conforme explicado anteriormente, ao contrário da interceptação, a re-tenção de dados não tem como foco o conteúdo da comunicação, mas principalmente o armazenamento de gravações de detalhes de chama-das telefônicas, tráfico de Internet e dados de transações.

obviamente, tais dados são armazenados com um propósito. de acordo com o artigo 1° da Diretiva, o objetivo de tais dados é a “in-vestigação, detenção e condenação por crimes sérios”. levando-se em consideração os grandes volumes de comunicação, a retenção de dados envolve a construção de bancos de dados enormes. os custos decorrentes disto são de responsabilidade dos ISPs e das operado-ras de telecomunicações, entidades que estão sujeitas a multas se não cumprirem o estabelecido no citado regulamento. À luz dos desen-volvimentos ocorridos nos sistemas de comunicação ultra-rápida, é de se esperar que os volumes de comunicação aumentarão significati-vamente, indicando que a capacidade necessária para armazenamento e análise dos dados também aumentará na mesma proporção. Isso resultará numa sobrecarga de informações. Assim, a capacidade de extrair informações úteis dessas enormes quantidades de dados tor-

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na-se muito importante a cada dia. desenvolvem-se tecnologias para este fim, e uma das mais importantes é a garimpagem de dados, que proporciona uma análise automática de dados com a finalidade de se descobrirem padrões e relações afins (Adriaans e Van Zantinge, 1996, Fayyad et al., 1996). Tal análise automática pode revelar redes em torno de pessoas específicas e pode fornecer perfis de risco de pessoas e de grupos (custers, 2004).

O emprego de tais perfis de risco pode oferecer, tipicamente, al-gumas vantagens e desvantagens. As principais vantagens consistem em proporcionar operação eficiente e baixo custo, porquanto fica mais fácil encontrar indivíduos ou focalizar grupos procurados. uma vanta-gem peculiar é a possibilidade de se encontrarem os chamados crimi-nosos primários. o processo funciona da seguinte maneira: se as car-acterísticas de um indivíduo no banco de dados forem muito similares às características de alguma outra determinada pessoa, presume-se que tal pessoa poderá representar certo risco. Evidentemente, isso não quer dizer que essa pessoa seja realmente terrorista, ou que ela esteja plane-jando um ataque terrorista. há também algumas desvantagens em usar tais perfis de risco. Um dos principais problemas diz respeito ao fato de que esses perfis nem sempre são precisos (Custers, 2003). Podem aparecer positivos falsos (pessoas inocentes que se enquadram no per-fil) e negativos falsos (terroristas e criminosos que não se enquadram no perfil, daí ficarem fora do escopo). O resultado de positivos falsos pode causar a prisão de pessoas inocentes, ao passo que o de negativos falsos pode redundar na perda de indivíduos que precisam ser identifi-cados. Quando se emprega algum critério particular para a criação de um perfil, como origem étnica e religião, pode-se estar criando uma discriminação injustificadaiv. Se tais perfis chegarem ao conhecimento do público, poder-se-á cometer a prática de estigmatização de um deter-minado grupo em particular (harvey, 1990).

As pessoas que desejarem proteger-se contra a retenção de dados têm diversas opções para evitar vestígios de suas comuni-cações ou que esses vestígios apontem para outras pessoas. Esses métodos diminuem a eficiência dos dados retidos. Basicamente, a identificação de pessoas que se comunicam através de uma rede se faz pelo estabelecimento de um vínculo entre o usuário e a rede.

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Além disto, muitas vezes o usuário tem de ser identificado por méto-dos tradicionais, usando documentos de identidade, reconhecimento facial, senhas, chaves, etc.. Os métodos de identificação são facil-mente adulteráveis, possibilitando ao usuário permanecer anônimo. A adulteração do vínculo entre a rede e o usuário é uma forma típica, quase sempre direta, de fraude de identificação. Pode-se usar a In-ternet anonimamente num Cyber Café em qualquer lugar do mundo. Se o registro for solicitado, é fácil informar um nome falso. As pes-soas que disseminam vírus de computador usam esse método para não serem rastreadas.

o ponto de acesso do usuário numa rede é geralmente indicado por um endereço. para os telefones celulares, este detalhe se encontra no cartão SIM (Subscriber Identity Module – Módulo de Identidade do Assinante), um cartão de memória removível, para telefones celulares. na Internet, são empregados os endereços de Ip (Internet Protocol – protocolo de Internet), que são os números que localizam o computador do usuário na rede. Alguns endereços de Ip são estáticos, isto é, eles não se alteram todas as vezes em que o usuário se conecta à Internet. Se o usuário possui uma conexão discada para a Internet ou estiver usando um computador que se conecta à Internet intermitentemente, é muito provável que ele use um endereço dinâmico de Ip do conjunto de endereços de Ip possíveis de seu provedor de serviços de Internet cada vez que se conecta à rede. obviamente, os endereços dinâmicos de Ip podem ser usados para adulterar o vínculo entre a rede e o usuário, visto que não se trata mais de um único elo identificador. Poderia ser fácil recuperar o número de Ip usado num determinado tempo, mas seria difícil montar um dossiê sobre um número de IP específico em vista de envolverem diferentes usuários. Em determinado momento um terror-ista suspeito poderia usar certo número de Ip. noutro momento, outra pessoa, que nada tem a ver com o suspeito, poderia usar esse mesmo número. há muitas outras aplicações tecnológicas que podem ser em-pregadas para se acessar e usar a Internet anonimamente. da mesma maneira, é simples usar as redes de telecomunicações anonimamente. Por exemplo, um telefonema anônimo pode ser utilizado para comprar um telefone celular pré-pago num supermercado. o telefone pode ser descartado depois. no momento, esta prática pode não ser realmente barata, mas os preços estão caindo.

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5 pRoteção LeGAL dA pRivACidAde

Quando confrontadas com os avanços descritos nas últimas seções, muitas pessoas se perguntam se existe alguma proteção legal da privacid-ade que poderia evitar os efeitos da interceptação e da retenção de dados. Na seção I esclareço que existem casos (principalmente europeus) em que as leis de privacidade não alcançam seu objetivo. A principal razão disto é que a legislação sobre a interceptação e a retenção de dados entra em choque com a legislação sobre a privacidade. A privacidade muitas vezes é considerada como um estorvo na luta contra o crime e o terror-ismo, embora essa maneira de pensar esteja mudando. A análise de todos os dados disponíveis nem sempre é tão eficiente quanto a abordagem direta, sendo que esta envolve mais a preservação da privacidade.

Contudo, verifica-se que existem algumas dificuldades relativas à proteção legal da privacidade, mesmo quando a legislação sobre a inter-ceptação e retenção de dados não contraria a legislação sobre a privacid-ade. Impende explicar de maneira resumida como a legislação européia sobre a privacidade funciona. na Europa, uma diretiva Européia (a tão-chamada “diretiva da privacidade”) protege a coleta e o uso de dados pessoais, tendo sido implementada na legislação de cada país membro da união Européiav . os princípios da privacidade, protegidos na diretiva Européia de privacidade, correspondem aos princípios das diretrizes da organização para cooperação e desenvolvimento Econômico (ocdE)vi

os quais também foram incluídos no Tratado de Estrasburgo, do con-selho da Europavii (para maiores detalhes, veja Bygrave, 2002).

Tais princípios são:

• o princípio do limite de coleta, que estabelece: “deve haver limites para a coleta de dados pessoais, e tais dados devem ser obtidos por meios legais e legítimos e, quando for pos-sível, com o conhecimento ou consentimento do possuidor dos dados”;

• o princípio da qualidade dos dados, que estabelece: “os da-dos pessoais devem ser relevantes para os propósitos a que se destinam, e, na medida do necessário, devem ser precisos, completos e atualizados”;

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• o princípio da especificação da finalidade, que estabelece: “a finalidade para a qual os dados pessoais se destinam deve ser especificada, e que os dados sejam utilizados somente para tais finalidades”;

• o princípio da limitação de uso, que estabelece: “que os da-dos pessoais não sejam divulgados, não sejam disponibiliza-dos nem usados para outras finalidades além das especificadas, exceto nos casos de a) com o consentimento do possuidor dos dados, ou b) por decisão de autoridade judicial”;

• o princípio da segurança dos dados, que estabelece: devem ser tomadas medidas de segurança razoáveis contra o risco de perda dos dados pessoais, acesso não-autorizado, destruição, etc..

• o princípio da abertura, que estabelece: o possuidor dos dados deve estar ciente da existência e natureza dos dados pessoais e sua finalidade, devendo conhecer a identidade do controlador dos dados;

• o princípio da participação individual, que estabelece dentre outros direitos, o direito de o possuidor dos dados ter seus dados pessoais apagados, retificados, completados ou corrigidos;

• o princípio da responsabilidade, que estabelece que o con-trolador dos dados deve ser responsável pelo cumprimento das medidas estabelecidas nos princípios acima relacionados.

Esses princípios de privacidade para o uso justo da informação baseiam-se no conceito de dados pessoais, o qual se encontra descrito no artigo 2°, letra “a”, da Diretiva Européia sobre Privacidade como “dados relativos a uma pessoa natural identificada ou identificável”, uma definição que também está contida nas diretrizes da OCDE. Os perfis pessoais de risco contêm dados pessoais e, por conseguinte, es-tão protegidos pela diretiva (pela implementação nacional da diretiva), mas os perfis de risco referentes a grupos, necessariamente, não con-têm dados pessoais e não carecem dessa proteção. particularmente, no caso da retenção de dados, o emprego de perfis de risco referentes a grupos é útil para se escapar da legislação sobre privacidade. O perfil de um grupo é uma característica ou um conjunto de características

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de um determinado grupo de pessoas. Os perfis de risco referentes a grupos podem conter informações já conhecidas, por exemplo, as pessoas que fumam vivem em média menos tempo do que as pessoas que não fumam. Mas os perfis de risco referentes a grupos devem também mostrar fatos novos, como, por exemplo, a sugestão da pos-sibilidade maior de existirem terroristas entre as pessoas que vivem na área correspondente ao código de endereço postal 8391. Os perfis de grupos necessariamente não descrevem uma relação de causa. por exemplo, uma pessoa que dirige um carro vermelho pode sugerir um potencial de comportamento criminoso maior do que uma pessoa que dirige um carro azul. Como já comentado na última seção, os perfis de grupos, ainda que úteis, podem causar estigmas e erros (para maiores detalhes, v. custer. 2004).

6 ConCLuSão

Atualmente recolhem-se e se processam muitas informações sobre comunicação com a finalidade de se apoiar a luta contra o crime e o terrorismo. como resultado de novos avanços tecnológicos, como os ocorridos nas redes de comunicação ultra-rápida, é de se esperar que a quantidade de dados de comunicação continue a crescer. Essa nova geração de redes deve resultar da combinação de instrumen-tos ópticos e instrumentos sem fio. O primeiro tipo é relativamente difícil de se interceptar, ao contrário do último, que é mais fácil. A interceptação deveria somente ser possível se as condições prescritas o permitissem. Assim, recomenda-se de modo especial o emprego da criptografia para se evitar a interceptação não-autorizada nas partes sem fio das comunicações ultra-rápidas. Essa criptografia não deve-ria ser tão forte a ponto de dificultar a decifração, no caso em que seja necessária a autorização de uma interceptação. o emprego de “alçapões” e tecnologias como sistemas de recuperação de chaves, sistemas de depósito de chaves e a criptografia de um terceiro con-fiável podem ser úteis para se alcançar o referido objetivo.

considerando que a interceptação diz respeito ao conteúdo de uma informação, a retenção de dados tem como foco o armaze-namento e a análise dos dados de comunicação, particularmente os

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registros de detalhes de chamadas telefônicas e o tráfico da Internet. As redes ultra-rápidas vão requerer maiores capacidades para arma-zenar e analisar dados. o primeiro requisito é relativamente simples, uma vez que a capacidade de armazenamento continuará a crescer (embora os custos envolvidos sejam objeto de uma discussão maior). O último requisito se apresenta como um problema mais significativo. A análise de quantidades enormes de dados exige automação, por ex-emplo, pela garimpagem de dados. Entretanto, muitas tecnologias de garimpagem de dados ainda não são suficientemente sofisticadas para uso em larga escala. Ademais, a maior desvantagem disso é o fato de que os perfis de risco obtidos de análises automáticas podem não ser exatos. Os resultados positivos falsos podem causar investigações e até prisões de pessoas inocentes, ao passo que os resultados negativos falsos não ajudam o descobrimento de criminosos e terroristas.

Como possuem um grau de exatidão limitado, os perfis de risco deveriam ser usados com o maior cuidado possível a fim de se evi-tarem a investigação e prisão de pessoas inocentes. É recomendável sempre reverificar os perfis, e não simplesmente confiar nos dados dos bancos de dados, como também executar trabalhos de campo sig-nificativos. A fim de se evitarem as piores formas de discriminação injustificada e polarização social, é recomendável não fazer constar dos perfis de risco dados pessoais sensíveis, tais como religião e an-tecedentes étnicos.

É importante notar que a velocidade crescente com que se in-terceptam e se retêm dados de redes de comunicação pouco afeta as questões de liberdades civis. o fato de uma rede se apresentar rápida ou lenta pouco afeta as questões de privacidade, culpa por associação e prisão indevida. Entretanto, os efeitos combinados de novas tecnolo-gias e novos poderes a organizações governamentais têm conseqüên-cias de longo alcance diante dos direitos constitucionais e direitos individuais de privacidade. Uma pesquisa recente nos Países Baixos mostra que nos últimos anos o governo holandês aprovou muitas leis que aumentaram drasticamente os poderes da polícia judiciária e out-ros órgãos de inteligência para lograr a obtenção de dados (Vedder et al. 2007).

Resumindo, a interceptação e a retenção de dados na era das redes de comunicação ultra-rápida podem ser muito usadas para reve-

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lar redes de criminosos e de terroristas, assim como para encontrar criminosos primários, objetivos muito importantes na luta contra o crime e o terrorismo. Entretanto, em virtude do crescente aumento da quantidade de dados que trafega nas redes ultra-rápidas, é de suma im-portância começar por determinar quais dados podem ser recolhidos. Embora todos os dados possam ser armazenados, não é recomendável assim fazê-lo, porquanto perder-se-ia o objetivo. É melhor selecionar os dados que podem ser úteis. dessa maneira, atingir-se-á o objetivo de maneira mais efetiva, ao invés de se armazenarem e analisarem todos os dados disponíveis.

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notas

i Vejam-se, por exemplo, o artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 8° da Convenção Européia de Direitos humanos.ii Atualmente não é necessário cortar o cabo para interceptar um fluxo de informação.iii Falando-se de um modo geral, a transmissão óptica ocorre unica-mente em uma direção, enquanto a transmissão sem fio acontece em todas as direções. Como resultado, a intensidade de um sinal sem fio decresce com um fator de 1/r2 sobre a distância r.iv observe-se que os dados de telefonia e de Internet não têm essas características. contudo, eles devem ser retirados com muito cuidado dos dados de localização, visto que certos locais, de modo especial, podem indicar antecedentes étnicos e religiosos.v diretiva Européia 95/46/EG do parlamento Europeu e da Assem-bléia de 24 de outubro de 1995, [1995] oJ l281/31.vi V. <http://s3-hq.oecd.org/scripts/pwv3/pwhome.htm>.vii V. <http:/www.coe.fr/dataprotection/Treaties/Convention%20108%20E.htm>.

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Sumário

1. Introduction. 2. The nemo dat rule and its excep-tions. 3. The market overt exception. 4. The ratio-nale for the market overt exception. 5. Further dif-ficulties arising from the market overt exception in hong Kong. 6. possible alternatives. 7. Suggested amendments to the sale of goods ordinance. 8. con-clusion. 9. References.

Abstractunder what circumstances can a sale of goods by a person who

is not the owner of the goods nonetheless confer good title on the pur-chaser? The common law rule “nemo dat quod non habet” embodies the principle that the transferee of goods cannot get better title than that of the transferor. In other words, if goods are sold by a person who does not have title to the goods (for example, because he had obtained the goods by theft), then he would be unable to pass title to a subsequent purchaser since he did not have title to begin with. The nemo dat rule thus protects the true or original owner of goods. one of the exceptions to this rule under the Hong Kong Sale of Goods Or-dinance is the market overt exception, which seeks to protect innocent purchasers. This article first considers the meanings of and rationales behind the nemo dat rule and the market overt exception respectively. Problems with the existing market overt exception will next be dis-cussed. A suggestion will then be made that the market overt excep-

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tion be replaced with a rule that protects innocent buyers who deal as consumers and who have purchased goods from shops or markets in hong Kong. KEYWoRdS: Market overt. nemo dat Rule. Sale of Goods. con-sumer protection. hong Kong.

1 intRoduCtion

“This case raises the ever-recurring question: which of the two innocent parties is to suffer by the fraud of a third? It is the fa-miliar contest between the original owner who had been deceived into parting with this property, and the innocent purchaser who has been deceived into buying it.”

lord Justice denning in Central Newbury Car Auditions Ltd v Unity Finance Ltd (1957)

Imagine a situation where goods have been stolen from their owners and are then sold by the rogue to a purchaser who is unaware that these are stolen goods. The thief then disappears. Who should have title to the goods? The original owners would argue that they deserve title to the goods as the goods have been stolen from them. on the other hand, the innocent purchasers would argue that they had acted in good faith and had paid for the goods, and so should be al-lowed to retain the goods.

The common law principle nemo dat quod non habet (the “nemo dat” rule) protects the original owners. This maxim embod-ies the idea that no one can give what he does not have. Applying the principle to our scenario above, the thief has no title to the stolen goods and thus has nothing to pass to the purchasers. Title therefore remains with the original owners who can reclaim the goods from the purchasers. The nemo dat rule is embodied in section 23 of the hong Kong Sale of Goods ordinance (cap. 26). There are, however, various exceptions to the nemo dat rule, as contained within the Sale of Goods ordinance and the Factors ordinance (cap. 48). one of these is the market overt exception in section 24 of the Sale of Goods ordinance.

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This article first considers the rationale behind the nemo dat rule and the market overt exception. It next considers the problems that the existing market overt exception creates. It will then sug-gest reforms to the law in the light of these considerations, for the consideration of legislators, the business community, the consumer council and other interested parties (such as the hong Kong depart-ment of Justice).

2 tHe NEMO DAT RuLe And itS eXCeptionS

“In the development of our law, two principles have striven forIn the development of our law, two principles have striven for mastery. The first is for the protection of property: no one can give a better title than he himself possesses. The second is for the pro-tection of commercial transactions: the person who takes in good faith and for value without notice should get a better title.”

lord Justice denning in Bishopsgate Motor Finance Corpo-ration v Transport Brakes (1949)

The nemo dat rule embodies the idea that the transferee cannot get a better title to goods than that of his transferor. It thus favours the original owner over the innocent purchaser The nemo dat rule is given statutory effect in section 23(1) of the Sale of Goods ordinance, which provides that where goods are sold by a person who is not the owner thereof, and who does not sell them under the authority or with the consent of the owner, the buyer acquires no better title to the goods than the seller had. This rationale of this rule is thus to protect ownership rights.

however, in order to maintain the balance between the original owner and the innocent purchaser, various exceptions to the nemo dat rule have evolved, as contained in the provisions of the Sale of Goods Ordinance and the Factors Ordinance. Amongst the exceptions contained in the Sale of Goods Ordinance are exceptions relating to estoppel (section 23), sales in a market overt (section 24), sales under a voidable title (section 25) and sales by seller or buyer in possession (section 27). An innocent purchaser, faced with a claim for a return of the goods from the original owner, would attempt to argue that one of

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these exceptions to the nemo dat rule applied to his situation, enabling him to keep the goods.

of course, the purchaser could also look to the person from whom he bought the goods, on the basis that the seller of goods lacked title to the goods. As against his immediate seller, the purchaser could argue that there has been a breach of the implied contract term with regard to title under section 14 of the Sale of Goods ordinance. Section 14(1)(a) of the Sale of Goods ordinance provides that in every contract of sale, there is an implied condition on the part of the seller that in the case of the sale, he has a right to sell the goods, and in the case of an agreement to sell, he will have a right to sell the goods at the time when the property is to pass. however, often under such circumstances, the person from whom the purchaser bought the goods has either disappeared or has insufficient funds. This would then make impossible or meaningless a contract law-based claim. There would then be a contest between the original owner and the innocent purchaser as to who has title to the goods, and it is in this context that the exceptions to the nemo dat rule become significant.

3 tHe MARket oveRt eXCeption

The market overt exception is contained in section 24 of the Sale of Goods ordinance. pursuant to this section, where goods are openly sold in a shop or market in hong Kong, in the ordinary course of business of such shop or market, the buyer acquires a good title to the goods, provided he buys them in good faith and without notice of any defect or want of title on the part of the seller. The purpose of the market overt exception is to protect commercial transactions. As Goode (2004) explains, the market overt exception was designed to promote the integrity of the market.

The first impression that one might have on considering this ex-ception is that its terms appear to have a very broad scope. however, the scope of the market overt exception has been steadily narrowed by the interpretation given it in Hong Kong courts. One example of this may be seen in the hong Kong court of Appeal decision of Au Muk-

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Shun v Choi Chuen-Yau (1988). In this case, 43 tons of pig-iron had been stolen from the appellants. The thieves then sold the pig-iron to a third party who in turn sold the goods to the respondent.

The issue in that case was whether the appellants or the respon-dents should have title to the pig-iron. In the judgment of Vice-presi-dent cons, the meaning of the term “shop” in section 24 was consid-ered. It was noted that the term was not defined in the Sale of Goods ordinance, and the learned judge did not propose to lay down any definition of shop. Rather, it was a question of fact to be considered in the context of the section. The judge emphasized that a key aspect of a “shop” is its retail nature, and reasoned that it could not possibly be said that the sale of 43 tons of pig-iron was a retail sale. The respon-dents in this case were thus unable to rely on section 24 of the Sale of Goods ordinance in order to claim the pig-iron. The court in this case thus effectively narrowed the scope of section 24 of the Sale of Goods Ordinance by interpreting the phrase “shop” to be confined to retail sales.

The scope of section 24 of the Sale of Goods ordinance was further narrowed in the hong Kong high court case of R v Tai Shing Jewellery (1983). The applicant in this case was a jewellery company, who had bought some silver coins at its premises for full market value from a seller who had in fact obtained the coins in the course of a robbery. The applicant was unaware of this fact. The seller was then convicted for robbery and the applicants applied for an order that the silver coins be returned to them, on the basis that the situation fell within the scope of section 24 of the Sale of Goods ordinance.

Judge penlington took a purposive view of section 24 of the Sale of Goods ordinance. The judge opined that the legislation did not intend to afford protection for a shopkeeper who purchased goods in his own shop. Rather, the judge emphasized that section 24 was designed to ensure that a member of the public who uses a shop to buy goods in the normal way gets a good title. It was not intended to pro-tect a shopkeeper who buys from the public just because he happens to use his shop premises to do so. This purposive interpretation of section 24 thus confines section 24 to sales to members of the public, despite the fact that this is not explicitly stated in section 24.

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4 tHe RAtionALe FoR tHe MARket oveRt eXCeption

The market overt exception protects innocent purchasers against the claims of their original owner. It has its roots in England, going back to Anglo-Saxon times. As Smith (1997) pointed out, the market overt exception “appears to have been generated by practical consid-erations born out of a desire to encourage and facilitate commercial activity by protecting purchasers of goods who bought openly in those places which were authorized for the buying and selling of goods.” Goode (1982) further explains that the owner of goods “was expected to look for his goods in the market; and if he did not intervene at the market prior to the sale of the goods, the bona fide buyer was given an assurance of good title”.

It has been largely acknowledged that this rationale for the mar-ket overt exception is poorly suited to modern times. In older times where transportation was more limited, it would have been feasible for a person whose goods had been stolen to expect to find them be-ing sold at a market nearby. however as transportation became more developed, “thieves can easily dispose of goods at the other end of the country” (howells, 1995).

Indeed, a key criticism of the market overt exception has long been recognized as promoting trade in stolen goods. In explaining the abolition of the market overt exception in England, Goode (2004) said that “a rule designed to promote honesty among buyers and the integ-rity of the market came to be seen as providing a charter for thieves”. This point is also raised by Sealy & hooley (2003), who said that the rule had “attracted criticism because it facilitated, and perhaps even encouraged, trafficking in stolen goods.”

This problem is exacerbated by the increasing importance of internet sales. The literal words of section 24 of the Sale of Goods ordinance do not preclude internet sales. persons who have stolen goods may seek to dispose of these goods via the internet, hoping to benefit from the relative anonymity and privacy that the internet al-lows. If the particular factual matrix falls within the scope of section 24, such rogues may then rely on section 24 to pass good title to in-

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nocent purchasers. It is thus arguable that the practical applicability of section 24 of the Sale of Goods ordinance has widened as a result of the growth of internet sales.

5 FuRtHeR diFFiCuLtieS ARiSinG FRoM tHe MARket oveRt eXCeption in HonG konG

Another difficulty of the market overt exception as embodied in section 24 of the Sale of Goods ordinance relates to the fact that the narrow interpretation given it by hong Kong courts (as discussed above) is not reflected in the words of the section, which are at face value very broadly expressed. This is against the grain of purpose of the Sale of Goods ordinance as a codifying ordinance. The long Title of the Sale of Goods ordinance states that it is an ordinance “to codify the law relating to the sale of goods”. The general aim of a codifica-tion exercise is to increase accessibility to the law, by compiling and organizing the law in respect of a particular field in one statute. This makes it easier to ascertain what the law is, as one would merely need to have recourse to the particular codifying statute, rather than sift though a large body of case law. The case of Bank of England v Vagliano Brothers (1891) offers some guidance on how a code should be interpreted. In that case, lord herschell said that the purpose of a codifying statute “surely was that on any point specifically dealt with by it, the law should be ascertained by interpreting the language used instead of...roaming around a vast number of authorities”. The gen-eral idea is that in order for codification to be meaningful, the words of the code should accurately reflect the legal position. There is thus a discrepancy between the broad terms of section 24 of the Sale of Goods ordinance and the narrow interpretation of the courts, which does not sit well with the idea of the Sale of Goods ordinance as a codifying ordinance.

It is also confusing that section 24 of the Sale of Goods ordi-nance is titled “Market overt”, when this term does not in fact appear in the words of the section itself. It is important to note at this juncture that the words of section 24 of the Sale of Goods ordinance differ from the market overt exception that used to exist (but has since been

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repealed) under the English Sale of Goods Act. The now-repealed sec-tion 22(1) of the English Sale of Goods Act pertained only to goods sold in a market overt. As Mark (1971) explained, all shops in the city of london were regarded as market overt for the purposes of their own trade, while outside the city of London, markets overt could exist by grant or prescription. In contrast, section 24 of the Sale of Goods ordinance is wider in scope as it applies to “shops and markets” and is not confined to sales in a market overt. It is thus confusing that sec-tion 24 of the Sale of Goods ordinance is still titled “Market overt” when the words of that section in fact cover a broader scope.

6 poSSiBLe ALteRnAtiveS

It seems clear that the market overt exception should be abol-ished, given the problems and difficulties as discussed above. Such a move has already been effected in England. Such a move, however, might be criticized as tilting the balance too heavily against consum-ers, striking another blow at the protection of consumers, who are already in a disadvantaged position as a result of the nemo dat rule.

The Report on contracts for the Supply of Goods (2002) pre-pared by the law Reform commission of hong Kong recommended that the market overt exception be abolished, without also recom-mending any replacement provision that might offer some comfort to purchasers. (The recommendations of this Report, made six years ago, have yet to be implemented, without any reasons provided for the delay, as far as the author is aware). In making this recommendation, the point was made that as between the original owner and the inno-cent purchaser, the owner was more vulnerable. It was thus reasoned that since the owner was more vulnerable, there was no need for a re-placement provision for the protection of purchasers. In particular, it was observed that while a buyer could make enquiries as to the source of goods or go to more reputable shops, burglary and robbery could be prevented no matter how cautious the owner had been.

It is submitted with respect that this view does not fully rep-resent the vulnerability of the purchaser. A buyer’s enquiries as to the source of goods are unlikely to yield illuminating results if the

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seller is a rogue who is determined to hide the true provenance of the goods. Such unscrupulous sellers may exist even in reputable shops. Moreover, a reputable shop may itself have obtained the stolen goods unknowingly from a supplier and then passed them on to an innocent buyer. Thus merely making enquiries and buying from respectable shops would not be enough to protect a buyer. This difficulty is exac-erbated if the sale is made on-line. It is arguably harder to tell whether the persons behind an internet site or e-mail address are trustworthy, as there is no face-to-face contact between buyer and seller which would might enable the buyer to assess the respectability and trust-worthiness of the seller.

It is also important to consider the position of consumers as a special class of buyers. consumers may be in a particularly disadvan-taged position as they may well have less bargaining power and may be less well-informed of their rights and entitlements. As Salomons (2007) observed, “in the final analysis, rules on bona fide acquisition deal with risk apportionment”. owners of goods are in a better posi-tion in this regard, as they can not only take better care of their goods to prevent theft, but also arrange for insurance against theft.

7 SuGGeSted AMendMentS to tHe SALe oF GoodS oRdinAnCe

In the light of these considerations, it is suggested that the existing market overt exception in section 24 of the Sale of Goods ordinance be replaced with a rule to protect buyers who deal as consumers and who have purchased goods in good faith in the ordinary course of business of a shop or market in hong Kong. The phrase “deals as a consumer” is already defined in section 2A of the Sale of Goods ordinance. pursuant to section 2A (1) of the Sale of Goods ordinance, a party to a contract of sale “deals as consumer” in relation to another party if (a) he neither makes the contract in the course of a business nor holds himself out as doing so; (b) the other party does make the contract in the course of a business; and (c) the goods passing under or in pursuance of the contract are of a type ordinarily supplied for private use or consumption. It is noted that

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this is a comprehensive definition that covers the respective features of buyer, seller and goods that would have to be satisfied in order for the buyer to be regarded as dealing as a consumer. Section 2A (2) of the Sale of Goods ordinance provides that the buyer in a sale by auction or competitive tender would not be regarded as dealing “as a consumer”. Section 2A (3) then deals with the burden of proof, providing that it is for the person claiming that a party does not deal as consumer to prove that he does not. The advantage of the proposed legislative amendment is that it would sit well with the pre-existing framework of the Sale of Goods ordinance, by employing the use of a key concept already defined therein.

It is submitted that such an amendment would be a step in the direction of greater consumer protection in hong Kong. The protec-tion of the rights of innocent consumers would be conducive to busi-ness and retail trade. owners would be encouraged to take better care as to the security of their goods and to insure valuable goods if neces-sary, thus resulting in pro-active risk management. Such an amend-ment is most unlikely to create a sudden spike in the sale of stolen goods, given that this amendment would be narrower than the existing market overt exception which is not confined to consumers.

Another point for consideration is whether a time limit should be imposed within which original owners must reclaim their stolen goods. Such time limits for the revendication of stolen goods exist in some European jurisdictions (Salomon, 2007). These time limits may encourage owners to take prompt action upon realizing that they have lost their goods, and conversely would give consumer peace of mind after the time period lapses. however it is submitted that this additional time limit is not necessary, in the light of the fact that there are already general statutory limitation periods under the limitation ordinance (cap. 347).

Instead, it is suggested that, where the facts fall within the scope of the proposed new provision enabling the innocent consum-er to claim the goods in question, original owners could nonetheless be given the right to buy back the goods from the consumer. This would give owners who have parted with goods that are of particular sentimental value the right to get the goods back, without depriving consumers substantively of the protection offered under the proposed

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amendment. This small concession would offer original owners some limited comfort, and bring some balance between the rights of origi-nal owners against innocent consumers.

8 ConCLuSion

“It is, of course, a frequent occurrence that the courts have to decide which of two innocent parties is to suffer by the fraud of a third.”

lord Justice lloyd in Shaw v Commissioner of Metropolitan Police

While the market overt exception may have outlived its useful-ness, it is submitted that the demands of consumer protection and the protection of trade would require that the market overt exception be replaced with a new exception to the nemo dat rule, as detailed in this article. It is always a tough call when there is a choice between two innocent parties. A delicate balance must be maintained between the rights of original owners and the rights of innocent purchasers. It is hoped that the proposals in this article will represent one way in which this balance may be rationally maintained.

9 ReFeRenCeS

Au Muk-shun v choi chuen-yua [1988] 1 hKlR 413.Bank of England v Vagliano Bros [1891] Ac 107.Bishopsgate Motor Finance corporation v Transport Brakes (1949) 1 KB 322.central newbury car Auditions ltd v unity Finance ltd [1957] 1 QB 371.Goode, R. (1982) commercial law. (1st Edition) penguin Books. Goode, R. (2004) commercial law. (3rd Edition) penguin Books. howells, G. (1995) consumer contract legislation – understanding the new law.

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law Reform commission of hong Kong. (2002) Report on contracts for the Supply of Goods.

Mark, M. (1971) chalmers’ Sale of Goods Act 1893. Butterworths.

R v Tai Shing Jewellery co [1983] 2 hKc 441.

Sale of Goods Act, united Kingdom.

Sale of Goods ordinance, hong Kong.

Salomons, A.F. (2007) How to draft new rules on the bona fide acquisition of movables for Europe? Some remarks on method and content. Retrieved on 9 May 2008 from http://ssrn.com/abs-tract=979458.

Sealy, LS & Hooley, RJA. (2003) Commercial Law: Text, Cases and Materials.

Shaw v commissioner of Metropolitan police [1987] 1 WlR 1332.Smith, p. (1997) Valediction to Market overt. 41 Am. J. legal hist.41 Am. J. legal hist. 225.

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXCEÇÃO dE MERcAdo pÚBlIco

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Sumário1. Introdução. 2. A regra do nemo dat e suas ex-ceções. 3. A exceção de mercado público. 4. os fundamentos lógicos da exceção de mercado pú-blico. 5. Surgem mais dificuldades em relação à exceção de mercado público em Hong Kong. 6. Alternativas possíveis. 7. Sugestão de alterações ao regulamento de venda de mercadorias. 8. con-clusão. 9. Referências.

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ResumoEm que circunstâncias a venda de uma mercadoria de outra pes-

soa confere titularidade ao comprador? A regra do common law “nemo dat quod non habet” corporifica o princípio de que a transferência de uma mercadoria não confere a quem a recebe maior titularidade do que aquela atribuída ao cedente. Em outras palavras, se uma pessoa vender a um terceiro uma mercadoria que não lhe pertence (por exem-plo, o produto de um furto), este terceiro não conseguirá transferir a respectiva titularidade a um comprador subseqüente, uma vez que ele também não receberá essa titularidade. A regra do nemo dat, assim, protege o proprietário original (legítimo) da mercadoria. de acordo com o Regulamento de Venda de Mercadorias de hong Kong, uma das exceções a essa regra é a exceção de mercado público, cuja finali-dade é proteger os compradores inocentes. Este artigo primeiramente considera os significados e fundamentos lógicos contidos, respectiva-mente, na regra nemo dat e na exceção de mercado público. Discu-tir-se-ão a seguir os problemas identificados na exceção de mercado público. Apresentar-se-á uma sugestão para que a exceção de merca-do público seja substituída por uma regra que proteja os compradores inocentes, na condição de consumidores que adquirem mercadorias de lojas e mercados de hong Kong.pAlAVRAS-chAVE: Mercado público. Regra Nemo Dat. Venda de Mercadorias. proteção ao consumidor. hong Kong.

Abstractunder what circumstances can a sale of goods by a person who

is not the owner of the goods nonetheless confer good title on the pur-chaser? The common law rule “nemo dat quod non habet” embodies the principle that the transferee of goods cannot get better title than that of the transferor. In other words, if goods are sold by a person who does not have title to the goods (for example, because he had obtained the goods by theft), then he would be unable to pass title to a subsequent purchaser since he did not have title to begin with. The nemo dat rule thus protects the true or original owner of goods. one of the exceptions to this rule under the Hong Kong Sale of Goods Ordinance is the market overt exception, which seeks to protect in-nocent purchasers. This article first considers the meanings of and

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rationales behind the nemo dat rule and the market overt exception respectively. Problems with the existing market overt exception will next be discussed. A suggestion will then be made that the market overt exception be replaced with a rule that protects innocent buyers who deal as consumers and who have purchased goods from shops or markets in hong Kong. KEYWoRdS: Market overt. nemo dat Rule. Sale of Goods. consu-mer protection. hong Kong.

1 intRodução

Este caso levanta uma questão sempre recorrente: qual das duas partes inocentes deve sofrer por causa da fraude de um terceiro? É o debate já conhecido, em que o proprietário original perde o seu bem, e a pessoa inocente que o compra se sente enganada.

lord Juiz denning no caso Central Newbury Car Auditions Ltd. x Unity Finance Ltd (1957).

Imagine-se uma situação em que um malfeitor venda mercado-rias furtadas a um comprador que desconheça a origem ilegal dessas mercadorias. o ladrão desaparece em seguida. Quem detém a titulari-dade das mercadorias? O proprietário original alega que detém a titu-laridade das mercadorias, porque elas foram furtadas dele. por outro lado, o comprador inocente alega que agiu de boa-fé e pagou pelas mercadorias, daí pensar que tem direito a tais bens.

o princípio nemo dat quod non habet (a regra nemo dat) pro-tege o proprietário original. Essa máxima corporifica a idéia de que ninguém pode dar a outrem o que não lhe pertence. Aplicando esse princípio ao fato exposto, conclui-se que o ladrão não detém titulari-dade sobre as mercadorias roubadas, e, portanto, nada pode repassar ao comprador. logo, a titularidade permanece com o proprietário ori-ginal, que pode reclamar as mercadorias do comprador.

A regra do nemo dat encontra-se disposta na seção 23 do Re-gulamento de Venda de Mercadorias de hong Kong (capítulo 26). Contudo, existem várias exceções a esta regra, conforme estabelece o citado dispositivo e o Regulamento sobre documentos Mercantis

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(cap. 48). uma delas é a que consta da seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias, que se refere à exceção de mercado público.

primeiramente, este artigo discute o fundamento lógico por trás da regra nemo dat e da exceção de mercado público, passando a de-bater os problemas criados pela exceção de mercado público. A se-guir, à vista dessas considerações, sugere reformas aos legisladores, à comunidade dos negócios, ao conselho de consumidores e a outros interessados, como o Ministério da Justiça de hong Kong.

2 A ReGRA do NEMO DAT e SuAS eXCeçÕeS

para aprimoramento de nossas leis, devem ser levados em conta dois princípios: o primeiro é a proteção da propriedade – ninguém pode outorgar uma titularidade maior do que a que já possui. o se-gundo diz respeito à proteção das transações comerciais – a pessoa pouco consciente, que compra de boa-fé e paga pela mercadoria, deveria receber uma titularidade melhor.

lord Juiz denning no caso Bishopsgate Motor Finance Cor-poration x Transport Brakes (1949).

A regra do nemo dat corporifica a idéia de que, em relação à transferência de uma mercadoria, o cessionário não pode revestir-se de maior titularidade do que aquela conferida ao cedente. Isto favore-ce o proprietário original em relação ao comprador inocente. A regra do nemo dat ganha força legal na Seção 23 (1) do Regulamento de Venda de Mercadorias, visto dispor que, se uma pessoa vender um bem que não lhe pertence e sem autorização ou consentimento do le-gítimo proprietário, o comprador não adquirirá maior titularidade so-bre o citado bem do que aquela atribuída ao vendedor. o fundamento lógico dessa regra é proteger o direito de propriedade.

Contudo, a fim de manter o equilíbrio de posições entre o pro-prietário original e o comprador inocente, várias exceções à regra do nemo dat têm surgido, como as que se encontram no Regulamento de Venda de Mercadorias e no Regulamento de documentos Mercantis. Dentre as exceções encontradas no Regulamento de Venda de Mer-cadorias, apontam-se exceções sobre a preclusão (seção 23), vendas

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em mercado público (seção 24), vendas passíveis de anulação (seção 25) e transações entre vendedor ou comprador que tem a posse (seção 27). diante de um pedido de devolução da mercadoria, por parte do proprietário original, um comprador inocente poderia argumentar que uma dessas exceções à regra nemo dat poderia aplicar-se à sua situa-ção, permitindo-lhe conservar a posse da mercadoria.

obviamente, o comprador poderia também alegar que o ven-dedor realizara a venda sem a titularidade de legítimo proprietário da mercadoria e argumentar que houve quebra do contrato implíci-to em relação à titularidade tratada na seção 14 do Regulamento de Venda de Mercadorias. A seção 14 (1, a) do citado dispositivo legal determina que, em qualquer contrato de venda que se realize, existe uma condição implícita atinente ao vendedor, segundo a qual ele pode realizar a venda imediatamente ou, em caso de um acordo, realizar essa venda posteriormente com a entrega da mercadoria. Entretanto, muitas vezes, nessas circunstâncias, a pessoa que realiza a venda da mercadoria desaparece ou não tem como repor o dinheiro da ven-da. Assim, torna-se impossível ou sem sentido uma reclamação com base na aplicação contratual legal. Surge, então uma disputa entre o proprietário original e o comprador inocente para saber quem tem a titularidade da mercadoria. É neste contexto que as exceções à regra nemo dat se tornam significativas.

3 A eXCeção de MeRCAdo pÚBLiCo

A exceção de mercado público consta da Seção 24 do Regula-mento de Venda de Mercadorias. de acordo com esse dispositivo, den-tro das características próprias de cada estabelecimento, o comprador que adquirir mercadorias vendidas livremente numa loja ou no mercado de hong Kong reveste-se da titularidade legítima dessas mercadorias, desde que o faça de boa-fé, sem qualquer vício e receba a titularidade sem restrição. A finalidade da exceção de mercado público é proteger as transações comerciais. Como explica Goode (2004), a exceção de mercado público foi criada para promover a integridade do mercado.

À primeira vista, o escopo dos termos de tal dispositivo pode parecer muito amplo, mas esse escopo vem sendo reduzido pelas de-

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cisões dos tribunais de Hong Kong. Um exemplo desse fato pode ser comprovado no caso Au Muk-Shun x Choi Chuen-Yau (1988), deci-dido num tribunal de hong Kong, em que 43 toneladas de ferro-gusa haviam sido furtadas do apelante. os ladrões haviam vendido o ferro-gusa a um terceiro, e este revendera a mercadoria ao réu.

neste caso, a questão era saber a quem deveria caber a titulari-dade do ferro-gusa. Em seu voto, o Juiz-Vice-presidente do Tribunal analisou o significado do termo “loja”, que consta da Seção 24, tendo salientado que o citado termo não se encontrava definido no Regula-mento de Venda de Mercadorias. o julgador em questão tampouco pro-pôs uma definição para o referido termo. É certo que se tratava de um assunto que deveria constar do mencionado dispositivo legal. o juiz em apreço enfatizou que a característica principal de uma “loja” é a de vender a varejo, e que não seria razoável considerar a venda de 43 toneladas de ferro-gusa como uma transação de varejo. desta maneira, o apelado não pôde valer-se do disposto na Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias para reclamar o ferro-gusa. nota-se que no presente caso o tribunal restringiu sobremaneira o escopo da Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias ao interpretar o termo “loja”, considerando-o restritivamente para o comércio varejista.

o escopo da Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercado-rias foi ainda mais restringido no caso R. x Tai Shing Jewellery (1983) levado ao Tribunal Superior. A autora, uma companhia do ramo joalhei-ro, segundo argumentava, havia adquirido algumas moedas de prata pelo valor justo de mercado de um vendedor que, na verdade, obtivera as ditas moedas por meio de um roubo. o requerente desconhecia esse fato. o vendedor foi condenado pelo roubo e a autora recebeu de volta as moedas de prata, visto que a situação se configurava dentro do es-copo da Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias. o Juiz penlington interpretou de modo prático a Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias. o magistrado argumentou que a legisla-ção não tinha a intenção de proteger o lojista que negociava em seu estabelecimento, mas assegurar uma titularidade legítima ao cidadão que procurasse uma loja para adquirir mercadorias. A Seção 24 não tinha a intenção de proteger o proprietário de loja somente porque este comprava do público em seu estabelecimento. Essa interpreta-ção prática da Seção 24 restringe sua aplicação ao público em geral,

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apesar de este fato não se encontrar devidamente explícito no citado dispositivo.

4 oS FundAMentoS LÓGiCoS dA eXCeção de MeRCAdo pÚBLiCo

A exceção de mercado público protege os compradores inocen-tes contra as alegações de proprietários originais. Essa prática tem sua origem na Inglaterra dos tempos anglo-saxônicos. Como Smith (1997) observa, a exceção de mercado público “surgiu em decorrência da ne-cessidade de se estimular e facilitar a atividade comercial, protegendo os compradores que adquiriam mercadorias livremente em locais de-vidamente autorizados para a compra e venda de mercadorias”. Goode (1982) vai além e esclarece que “é de se supor que o proprietário de mercadorias roubadas se empenhasse na sua busca; caso essa diligência não fosse bem sucedida antes da venda das citadas mercadorias, garan-tia-se a titularidade legítima ao comprador de boa-fé”.

É bastante claro que esse fundamento lógico para a exceção de mercado público é incompatível com os tempos modernos. Em outras épocas, quando os meios de transporte eram deficientes, era de se es-perar que uma pessoa que tivesse suas mercadorias furtadas pudesse encontrá-las à venda num mercado próximo. Entretanto, com o de-senvolvimento dos meios de transporte, “os ladrões podem vender as mercadorias facilmente no outro lado do país” (howells, 1995).

Realmente, uma crítica importante que se faz à exceção de mercado público é a de que ela estimula o comércio de mercadorias roubadas. Ao explicar a abolição da exceção de mercado público na Inglaterra, Goode (2004) afirma que “uma regra destinada a promo-ver a honestidade entre os compradores e a integridade do mercado tornou-se uma carta branca para os ladrões”. Esta questão também foi tratada por Sealy e hooley (2003), para os quais a regra “foi alvo de crítica porque ela facilitava e talvez até estimulasse o comércio de mercadorias furtadas”.

Este problema torna-se evidente com a importância cada vez maior das vendas pela internet. O texto da Seção 24 do Regulamento

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de Vendas de Mercadorias, literalmente, não diz respeito às vendas pela internet. por meio da internet, que propicia um anonimato rela-tivo e certa privacidade, os ladrões podem desfazer-se dos produtos furtados. Se a situação estiver dentro do escopo da Seção 24, os la-drões podem contar com essa presunção para conferir uma titularida-de legítima aos compradores inocentes. Então, é possível argumentar que a aplicabilidade prática da Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias ampliou-se em decorrência do crescimento das vendas pela internet.

5 SuRGeM MAiS diFiCuLdAdeS eM ReLAção À eXCeção de MeRCAdo pÚBLiCo eM HonG konG

Aponta-se outra objeção na forma como a exceção de mercado público se encontra corporificada na Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias: a interpretação restrita dos tribunais de hong Kong (como se discutiu acima) não se reflete integralmente no texto da referida seção, que trata o tema de maneira muito ampla. o Regu-lamento de Venda de Mercadorias não atende de forma mínima o que era de se esperar de um código verdadeiro. o caput do Regulamen-to de Vendas de Mercadorias especifica que o referido dispositivo é um regulamento destinado a “codificar a lei relativamente a venda de mercadorias”. o objetivo principal de um código é possibilitar o acesso à lei, compilando-a e a organizando num único dispositivo em função de um campo legal específico. Isso facilita o entendimento do que a lei pretende, uma vez que uma pessoa poderia estar tão-somente querendo encontrar determinado assunto legal específico e evitaria ter que procurá-lo em um grande volume de jurisprudênciaas. o caso Bank of England x Vagliano Brothers (1891) oferece uma idéia de como um código pode ser interpretado. nesse caso, lord herschell asseverou que a finalidade de um código legal “certamente, ao tratar de qualquer assunto, especificamente, era a de ser capaz de interpretar a linguagem empregada, em vez de [...] vagar em torno de um número vasto de fontes”. Para que a codificação tenha sentido, as palavras do código devem refletir exatamente a situação legal. De acordo com esse princípio, aponta-se uma discrepância entre o sentido amplo dos

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termos da Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias e a in-terpretação restrita adotada pelos tribunais, fato que não coaduna com a característica de dispositivo codificador atribuída ao Regulamento de Venda de Mercadorias.

Também é perturbador o fato de que a Seção 24 do Regulamen-to de Venda de Mercadorias ostente o título de “Mercado público”, quando o termo, na verdade, não consta do texto da referida seção. No momento é importante notar que o texto da Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias difere do texto que tratava da exceção de mercado público que existia sob a Lei Inglesa de Venda de Merca-dorias (a exceção, ressalte-se, foi revogada). A Seção revogada – 22 (1) – da mencionada lei referia-se somente às mercadorias vendidas num mercado público. Como Mark (1971) explicou, todas as lojas da cidade de londres eram consideradas como mercado público para efeito de cumprimento de suas finalidades, ao passo que, fora daquela cidade, a existência dos mercados públicos somente se devia a outor-ga ou servidão. Contrastando com o exposto, o escopo da Seção 24 do Regulamento de Venda de Mercadorias é mais amplo, uma vez que ele se aplica a “lojas e mercados”, e não tão-somente a vendas num mercado público. Assim, devido à amplitude de seu escopo, justifica-se a afirmação de que é perturbador o fato de a Seção 24 receber o título de “Mercado público”.

6 ALteRnAtivAS poSSÍveiS

Devido a problemas e dificuldades mostradas anteriormente, torna-se evidente que se deve abolir a exceção de mercado público, providência já tomada na Inglaterra. contudo, essa medida pode ser criticada como muito prejudicial ao equilíbrio das relações com os consumidores, pois representa mais um golpe contra eles, já em des-vantagem diante da regra nemo dat.

o Relatório sobre contratos de Fornecimento de Mercadorias (2002) elaborado pela comissão de Reforma da legislação de hong Kong recomendou a abolição da exceção de mercado público, con-tudo sem indicar qualquer dispositivo capaz de substituí-lo de forma a beneficiar os compradores (embora tenham sido propostas há seis

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anos, este autor desconhece os motivos pelos quais essas recomenda-ções ainda não foram implementadas). Essas recomendações levaram em conta o fato de que o proprietário do bem era mais vulnerável do que o comprador inocente. Assim, chegou-se à conclusão de que, por esse motivo, não havia necessidade de se criar um novo dispositi-vo para proteger o comprador. Também observou-se que, enquanto o comprador podia investigar a origem da mercadoria ou procurar outro estabelecimento com maior reputação, os roubos e furtos não pode-riam ser completamente evitados, independentemente dos cuidados tomados pelo proprietário.

leve-se em conta que tal entendimento não traduz inteira-mente a vulnerabilidade do comprador. A investigação da origem da mercadoria, por parte do comprador, pode não produzir resul-tados esclarecedores se o vendedor for um indivíduo velhaco, que esteja decidido a esconder a verdadeira origem da mercadoria. Esse tipo de pessoa inescrupulosa pode existir até em lojas de boa reputação. Além disso, uma loja de boa reputação pode desconhe-cer a origem ilícita de um produto e repassar a mercadoria ao com-prador inocente. logo, tentar investigar a origem da mercadoria e comprá-la de uma loja respeitável pode não ser o suficiente para proteger o comprador. A questão pode exacerbar-se se a transação for realizada on-line. não se sabe se uma pessoa por detrás de um site da internet ou de um endereço de e-mail é confiável, porquanto não há contato pessoal entre o comprador e o vendedor, o que im-pede o primeiro de avaliar a respeitabilidade do segundo e quanto pode confiar nele.

Também é importante considerar a posição do consumidor como um tipo especial de comprador. o consumidor pode encontrar-se numa posição particularmente desvantajosa, visto que ele pode ter menos poder de troca e não se encontrar tão bem informado em re-lação a seus direitos. conforme Salomons (2007) observa, “conclui-se que as regras para aquisição com boa-fé pressupõem partilha de risco”. o proprietário de um bem se encontra numa posição melhor nessa questão, uma vez que ele não só pode cuidar melhor de seu bem, para evitar furto, como também contratar um seguro contra esse tipo de prejuízo.

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7 SuGeStão de ALteRAçÕeS Ao ReGuLAMento de vendA de MeRCAdoRiAS

Diante dessas considerações, sugere-se substituir a exceção de mercado público da Seção 24 do Regulamento de Venda de Merca-dorias por uma regra que proteja o comprador que atue como con-sumidor, que tenha adquirido mercadoria de boa-fé, numa transação normal, de uma loja ou mercado de hong Kong. A frase “atue como consumidor” já se encontra definida na Seção 2A do Regulamento de Venda de Mercadorias. de acordo com a Seção 2A (1) do Regu-lamento de Venda de Mercadorias, uma das partes de um contrato de venda “atua como consumidor” em relação à outra parte se (a) ela não elabora o contrato no curso da negociação nem participa de sua feitura; (b) se é a outra parte que elabora o contrato no curso da negociação; (c) se a mercadoria objeto do contrato é para uso ou con-sumo próprio. Observa-se que se trata de uma definição muito ampla, que abrange as características do comprador, vendedor e mercadorias, características que devem ser satisfeitas para que o comprador seja considerado como consumidor. A Seção 2A (2) do Regulamento de Venda de Mercadorias estabelece que o comprador não é considera-do “consumidor” quando realiza a transação sob as diversas formas de um leilão. A Seção 2A (3) trata do ônus da prova, especificando que compete a quem não se considera consumidor o ônus de provar essa condição. uma vantagem dessa alteração é que ela se ajusta ao espírito do Regulamento de Venda de Mercadorias ao empregar um conceito-chave pré-definido.

Argumenta-se que tal alteração seria um passo a mais para a obtenção de maior proteção do consumidor em hong Kong. A proteção dos direitos do consumidor inocente poderia beneficiar todos os tipos de negócios. os proprietários seriam estimulados a cuidar mais de suas mercadorias, contratando seguros para as mais valiosas, promovendo, assim, a administração de riscos. dado a sua especificidade, é pouco provável que essa alteração estimule o comércio de mercadorias furtadas, considerando que a atual ex-ceção de mercado público não se aplica exclusivamente aos con-sumidores.

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outra questão que se deve considerar diz respeito ao tempo-limi-te que um proprietário teria para reclamar suas mercadorias furtadas. Esse tempo-limite existe em algumas jurisdições européias (Salomon, 2007) e poderia estimular o proprietário, vítima de furto, a tomar pro-vidências imediatas após constatar o prejuízo e o consumidor poderia sentir-se mais aliviado com esse prazo. contudo, argumenta-se que esse tempo-limite adicional não é necessário, diante do fato de que já existe uma limitação legal de tempo, determinada pelo Regulamento de limitações (cap. 347).

Ao invés disso, sugere-se que, ao prevalecer o escopo das novas alterações, em que o consumidor inocente poderá reclamar a posse da mercadoria, o proprietário original poderia ter o direito de comprar de volta a mercadoria do consumidor. Isso daria àquele que teve um bem de valor sentimental furtado o direito de reavê-lo sem contrariar a pretendida proteção ao consumidor. Essa pequena concessão propiciaria certo alívio ao dono original do bem e traria equilíbrio entre os direitos do dono original e os do consumidor inocente.

8 ConCLuSão

Freqüentemente os tribunais têm que decidir qual das duas partes inocentes tem que sofrer em virtude de fraude praticada por um terceiro. lord Juiz lloyd em Shaw x Commissioner of Metropolitan Police.

Conforme demonstrado neste artigo, ao se considerar a exceção de mercado público como uma regra ultrapassada, insta argumentar que a proteção ao consumidor e ao comércio reclama a substituição da exceção de mercado público por uma nova exceção à regra nemo dat. È uma questão crucial ter-se que escolher entre duas partes inocentes. deve-se manter um bom equilíbrio entre os direitos do proprietário original e os direitos do comprador inocente. Espera-se que as pro-postas contidas neste artigo possam apontar um caminho que alcance o equilíbrio racionalmente.

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TRuTh FIndInG: do SuBSIdIES conTInuE AFTER PRIVATIZATION?1

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Sumário1. Introduction. 2. The concerned WTo rules and fin-dings. 3. history of testing relation of subsidies and privatization. 4. Recent development and analysis of “fair market value”. 5. conclusion. 6. Reference.

AbstractThe theme of this article is to discuss whether a pre-privati-

zation subsidy would be extinguished after privatization of entities. Since WTo AB held that privatization at arm’s length and for fair market value may, not must result in extinguishing the benefit, it pro-vides possibilities for the investigating authorities to develop more methodologies to examine the issue. Actually, how to define a fair market value directly influences standards employed by the investi-gating authorities to assess the problem. After reviewing the changes of u.S. methodologies of assessment, this article intends to clarify the crucial meaning of fair market value, claiming a fair way in which the transaction of privatization is conducted more effectively ensures realization of a fair market value.KEYWoRdS: Subsidy. privatization. pair market value. AScM.

1 This paper was first published in Kierkegaard, S. (2007)This paper was first published in Kierkegaard, S. (2007) International law and Trade: Bridging the East-West Divide. p. 159-172

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 275-308 2008

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1 intRoduCtion

A subsidy in AScM2 means a financial contribution or benefit thereby conferred by governments or any public body within the ter-ritory of a member country.

Subsidies exist in various forms. This article makes an attempt to address the continuity of subsidies especially after privatization. For example, a steel producer obtained a subsidy from the govern-ment while it was a state-owned enterprise. Aided by the provision of subsidies, the steel producer was encouraged to export and there-fore made a great improvement in its produce. In the recent reform of this country, privatizing the steel producer was necessary, and then transferred to a new producer. A question arises here whether the privatized steel producer still enjoyed the benefit of subsidies, and accordingly would be subjected to countervailing duties3 from other countries upon its steel exports, only because the prior steel producer did receive the subsidy before privatization. Will a non-recurring financial contribution to the previous owners still confers a benefit to the new owners and therefore qualifies as a countervail-able subsidy?4

The WTo panel, in many of its cases, ruled that “while Mem-bers may maintain a rebuttable presumption that the benefit from pri-or financial contributions (or subsidization) continues to accrue to the privatized producer, privatization at arm’s length and for fair market value is sufficient to rebut such a presumption”.5 The Appellate body clarified that privatization at arm’s length and for fair market value may not result in extinguishing the benefit. However, how to define

2 AScM: the Agreement on Subsidies and countervailing Measures.3 countervailing duties are a means to restrict international trade in case where imports

are subsidized by foreign countries and hurt domestic producers. According to WTo rules, a country can launch its own investigation and decide to impose duties to coun-teract the subsidies.

4 Julie Dunne, Delverde and the WTO’ British Steel Decision foreshadow more conflict where the WTo Subsidies Agreement, privatization, and united States countervailing law intersect, 17 Am. u. Int’l l. Rev.(2001-2002) p. 81.

5 WT/dS212/AB Report at para 126; panel Report at para.7.82.

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a fair market value varies and is not fixed because of the different places, time, and the methods of privatization.

In fact, the problem would become more complicated when the subsidy is offered during the process of privatization. The interplay between privatization and countervailing duties laws occurs at two main points: the treatment of past subsidies to enterprises (whether they are extinguished by the transfer of ownership), and the treat-ment of subsidies given in connection with the privatization process as incentives to private purchasers.6 The second treatment is directly concerned with privatization itself.

privatization is the transfer of property or responsibility from the public sector (government) to the private sector (business). The term can refer to partial or complete transfer of any property or re-sponsibility held by government. There are three main methods of privatization: (1) Share issue privatization – selling shares on the stock market. Share issue requires a mature and sufficiently devel-oped capital market, otherwise it is difficult to find enough buy-ers, and transaction cost would be high; (2) Asset sale privatization – selling the entire firms or part of it to a strategic investor, usually by auction. As a result of higher political and currency risk deter-ring foreign investors, asset sales are more common in developing countries; (3) Voucher privatization – shares of ownership are dis-tributed to all citizens, usually for free or at a very low price. It has been mainly used in the transition economies of central and Eastern Europe, such as Russia, poland, the czech Republic, and Slovakia. To judge whether a subsidy is transferred to the new owner after privatization, the choice of methods of privatization closely relates to the answer, because the standard to test the “transfer of subsidies” in privatization by an auction may no longer apply to the voucher privatization. Therefore, while the u.S. intends to lists the factors to proceed to a consideration of whether the sale of privatization was at arm’s length for fair market value, it needs to consider the method of privatization, but it appears not.

6 david S. da Silva coenell, Maybe you can take it with you, after all: subsidies and privatization underdogs. countervailing duty law, 25 law & pol’y Int’l Bus.(1993-1994) p. 1309.

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This article intends to analyze the basic standard set up by WTo Appellate body firstly. Pertinent to the proposed methodology and the factors that might be considered by u.S. government in the test of subsidies continuity, a clarification is made that some considered fac-tors are not appropriate for judging whether subsidies are transferred to a new privatized entity. The article is divided into three parts: first-ly, reviewing the WTo rules and cases, especially looking through the development of methodology to test the “transfer of subsidies” by u.S. government. Secondly, introducing and analyzing the new fac-tors and possible standards of u.S. to test fair market value, in order to point out irrationality of some factors. Thirdly, identifying some unresolved problems during the process of test, and attempting to find the solutions for them.

2 tHe ConCeRned wto RuLeS And FindinGS

With respect to assessing the transfer of subsidies after privati-zation, the only rule in uruguay Round Agreement on Subsidies and countervailing Measures (AScM) concerning this problem is Article 27.13

“The provisions of part III shall not apply to direct forgive-ness of debts, subsidies to cover social costs, in whatever form, in-cluding relinquishment of government revenue and other transfer of liabilities when such subsidies are granted within and directly linked to a privatization programme of a developing country Mem-ber, provided that both such programme and the subsidies involved are granted for a limited period and notified to the Committee and that the programme results in eventual privatization of the enter-prise concerned.”

In other words, in consistent with necessary conditions such as notification to the Committee, some partial subsidies can be not actionable if the subsidies encourage the privatization. As for this Article 27.13, there are three points needed to be clarified: firstly, this article only applies to developing countries, rather than the dis-

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putes between u.S. and E.c., since this article is part of Article 27 entitled with Special and differential treatment of developing coun-tries members. However, the definition of “developing countries” is not clearly given in AScM. Secondly, the subsidies that are only granted within or directly linked to a privatization might not be con-sidered for countervailing duties by import countries. Virtually, the purpose of most subsidies offered during the process of privatiza-tion is to encourage privatization of entities rather than encourage exports or use of domestic over imported goods, thus such subsidies are not prohibitive subsidies. It also provides an answer to whether a concurrent subsidy with privatization, e.g. debt forgiveness, relin-quishment of government revenue and transfer of liabilities, can be extinguished during the privatization, or a new subsidy to the new owners, provided the subsidies can just cover social costs. however, it only happens in privatization of developing countries instead of developed countries. Thirdly, due to the purpose of such subsidies offered to encourage privatization, they are not categorized to pro-hibitive subsidies, but actionable subsidies. If such subsidies are cover social costs or contingent upon export or use of domestic over imported goods, or happening before privatization, they should be actionable or even prohibitive.

obviously, it does not answer the question of whether the subsi-dies offered before privatization would be extinguished in privatized entities. nonetheless, the WTo Appellate Body in united States- countervailing Measures concerning certain products from the Eu-ropean communities, WT/dS212/AB/R (december 9.2002) recom-mended an option to assess the problem.

The Panel clarified that its findings apply only to changes in ownership that involve privatizations in which the government re-tains no controlling interest in the privatized producer and transfer all or substantially all the property.7 The panel then stated that “while Members may maintain a rebuttable presumption that the benefit from prior financial contributions (or subsidization) continues to accrue to

7 WT/dS212/AB/R, at paras. 85 and 117, footnote 177; panel report at para. 7.62.

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the privatized producer, privatization at arm’s length and for fair mar-ket value8 is sufficient to rebut such a presumption”9.

While the Appellate Body clarified that privatization at arm’s length and for fair market value may result in extinguishing the ben-efit. Indeed, we find that there is a rebuttable presumption that a ben-efit ceases to exist after such a privatization. Nevertheless, it does not necessarily do so. There is no inflexible rule requiring that in-vestigating authorities, in future cases, automatically determine that a “benefit” derived from pre-privatization financial contributions expires following privatization at arm’s length and for fair market value10.Privatization may, not must, result in extinguishing the ben-efit. The Appellate Body changes an irrebuttable presumption into a rebuttable presumption.

As for this case, the first question arising is why subsidies could be extinguished if the transaction of privatization is made at arm’s length and for fair market value. Since a government grants a finan-cial contribution to a pre-privatization entity, it is possible for the pro-privatization entity to get the benefit of the subsidy. The purpose of the countervailing duty law is to offset the competitive benefit enjoyed by subsidized firms. The mere change of ownership of the shares from the government to the private company does not reduce the competi-tive benefit and therefore it is difficult to say the prior subsidies do not pass through to new entities. Before assessing whether the finding is reasonable, the following is an example:

consider a person (“A”) who is given £100 through a govern-ment financial contribution. This £100 confers a “benefit” on A, as

8 The European communities are using the terms “arm’s length transaction” and “fair ma-rket value” in accordance with their accepted meanings: Arm’s length transaction. Said of a transaction negotiated by unrelated parties, each acting in his or her own self interest; the basis for a fair market value determination. A transaction in good faith in the ordinary course of business by parties with independent interests… The standard under which unrelated parties, each acting in his or her own best interest, would carry out a particular transaction.

Fair market value. The amount at which property would change hands between a willing buyer and a willing seller, neither being under any compulsion to buy or sell and both having reasonable knowledge of the relevant facts. BlAcK’ lAW dIcTIonARY, West publishing co. (6th Ed.1990).

9 WT/dS212/AB Report at para 126; panel Report at para. 7.82.10 WT/dS212/AB Report at para. 127.

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the recipient of the money. A then purchases a chair with the £100. he sells the chair to an unrelated purchaser, B, for its fair market val-ue, £100. This example shows that the “benefit” of the £100 has not “passed through” to B. The government is £100 poorer and A is £100 richer; both before and after the sale of the chair. B has not benefited at all. He has exchanged £100 for a chair which is worth that amount. If the price increases in value to £ 125, A received a benefit of £100 from the government, and made a profit of £ 25 due to the increased value of his purchased asset, no benefit conferred to B. If there are too many chairs providers in the market and at the price declined by £25, B buys the chair for £75. In this case, B does not benefit from the government contribution, and the government has spent £100.

Therefore, after Firm A is owned by the state and has received financial contributions for some years, the company is valued at £100 million. Firm B, in the same industry, has the identical type of plant and equipment, but has never received any government assistance. The two companies are put up for sale in a competitive bidding pro-cess. The companies will have the same value to prospective purchas-ers, and they should sell for the same price. This is because a rational purchaser is indifferent between the two firms. The rational purchaser would not offer a higher price for Firm A than for Firm B simply be-cause the former had received a subsidy. nor would a purchaser value Firm B at a higher amount because it had never received any govern-ment assistance.”11

If the privatization involves debt forgiven by the government, or tax relinquishment as negotiated, some could argue that the change in ownership did not affect the pass-through of benefits and therefore, the repayment of any remaining value of prior subsidies apart from the market value will result in their extinguishment. However, “since a given transaction is at arm’s length, one must conclude that the buy-er and the seller have negotiated in their respective self-interests, the buyer has taken into consideration all relevant facts, and has paid an amount which represents the market value of all it is to receive. Be-cause the countervailable benefit does not survive the arm’s length transaction, there is no benefit conferred to the purchaser and, there-

11 WT/dS138/R, p. 60.

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fore, no countervailable subsidy within the meaning of the uS cVd12 statute. The purchaser, thus, will not realize any competitive counter-vailable benefit and any countervailable duty assigned to it amounts to a penalty”13. Accordingly, “at arm’s length”, to some extent, can ensure the transaction of privatization is made at market value, and the proper economic inquiry in consideration of whether benefit or advantage has pass through to a buyer should be the degree to which the authorities consider that “market value” was paid. Such consid-eration includes the fairness and transparency of the negotiation and sales process and adequacy of value received for the company based on commercially meaningful criteria.14

3 HiStoRy oF teStinG ReLAtion oF SuBSidieS And pRivAtiZAtion

Reviewing the history of American cases concerning subsidies “pass-through” after privatization, we could determine whether subsi-dies continue to exist after privatization from the debate of U.S. na-tional decisions. The constant change of methodologies to examine this problem reflects U.S. trade policies are seriously influenced by differ-ent interests groups. In order to achieve the truth of this problem, it is necessary to research on different concerned phases. The department of Commerce (DOC) intends to come up with standards to examine this issue all along. Four phases of policies and the treatment of countervail-able subsidies after a privatization transaction are identified.

phase 1. The full-extinguishment approach establishes the prin-ciple in Lime from Mexico15 that if the privatization is at transaction at an arm’s length, the subsidies before privatization do not lead to pass-through of any pre-privatization subsidies. The Mexican government

12 u.S. countervailing duties Statute.13 Saarstahl AG v. u.S. 858 F. Supp. 187 (cIT.7. June. 1994), See also Inland Steel Bar co.

v. u.S., 858F, Supp. 179 (cIT.7. June. 1994).14 WT/dS138/R,p.62, para 61.15 Lime from Mexico, 54 Fed. Reg.1753 (Dep’t Comm), supra note 3, (17. January. 1989)

at 1754-1755.

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sold one hundred percent of ownership in Sonocal to Bomintzha, a private company, at the price determined in the process of bidding, while considering various factors such as “the continued economic vi-ability of the company and the preservation of employment”.16 having determined that there was an actual sale, doc came to the conclusion that the price paid for the privatized company reflected its market value and that “therefore no benefits to [the government owned company] passed through to [the privatized company]”17.

phase 2. The “pass-Through” methodology is formulated in certain hot-Rolled lead and Bismuth carbon Steel product (u.S. – lead bars).18 The doc radically changes its policy position, as-suming that all pre-privatization subsidies automatically pass through to the new owners. In this case, privatization involved debt by the government as part of the negotiated transfer of majority ownership and merger to create a new company.19 The government did not only retain the control after privatization, but also had a negotiation with only one bidder. It resulted the petitioner argued that the change in ownership did not affect the pass-through of benefits. At last, the DOC determined that “a company’s sale of a ‘business’ or ‘productive unit’ does nothing to alter the subsidies enjoyed by that productive unit”.20 This methodology was challenged under the “Tokyo Round Subsidies code”. during the course of the panel preceding, the united States amended its change-in-ownership methodology and did not defend the “pass-through methodology” to the extent that this methodology did not take account of the transaction value.21

phase 3. The “Gamma Methodology”, or “partial pass-through Methodology”. In response to criticism, doc revised the “pass-through” methodology, claiming part of any pre-privatization subsi-dies automatically be pass through to the new owners. The “Gamma

16 Lime from Mexico, at 1755.17 Lime from Mexico, at 1755.18 certain hot-Rolled lead and Bismuth carbon Steel products the united Kingdom, pre-

liminary determination 57 Fed. Reg. 42974 (17. September. 1992).19 certain Steel products from Sweden, and certain hot-Rolled lead and Bismuth carbon

Steel products, supra note 33, at 6234.20 Final Affirmative Countervailing Duty Determination: Certain Hot-Rolled Lead and Bis-

muth carbon Steel products the united Kingdom; 58 Fed. Reg. 6237 (27 January 1993).21 united States – leaded Bars: GATT panel Report; para. 425.

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methodology” purports to allocate past subsidies or productive as-sets previously owned by the recipient between the recipient of those subsidies and the purchaser of the company. A portion of purchase price can reflect part of remaining value of prior subsidies. Virtually, it means it is impossible that the totality of pre-privatization subsidies could pass through after privatization.

The “Gamma Methodology” was introduced in July 1993, a six months after doc had introduced its “pass-through” methodology, so that the methodology is also challenged by European union in WTo case united States — Imposition of countervailing duties on certain hot-Rolled lead and Bismuth carbon Steel products originating in the United Kingdom. The DOC classified such alleged subsidies as non-recurrent and thus spread them out over 18 years, deemed to be the useful life of productive assets in the steel industry. The doc found that the alleged subsidies in question “passed through” from BSC to UES first, and then more recently to BSES.

The WTo dispute panel found that the privatization methodol-ogy used by commerce in countervailing duty investigations incon-sistent with the united States’ obligations under the WTo Subsidies Agreement. Article 10 provides that a WTo member country is not authorized to impose countervailing duties unless there is a subsidy to offset. Article 19.1and 19.4 require the respondent to demonstrate whether a subsidy exists before countervailing duties are imposed, and criteria for finding whether a subsidy exists must include a ben-efit. The Appellate Body on 10 May 2000 reached the same conclu-sion as the panel. It held:

The question whether a “financial contribution” confers a “ben-efit” depends, therefore, on whether the recipient has received a “fi-nancial contribution” on terms more favourable than those available to the recipient in the market. In the present case, the panel made factual findings that UES and BSplc/BSES paid fair market value for all the productive assets, goodwill, etc., they acquired from BSc and subsequently used in the production of leaded bars imported into the united States in 1994, 1995 and 1996. We, therefore, see no error in the panel’s conclusion that, in the specific circumstances of this case, the “financial contributions” bestowed on BSC between 1977 and

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1986 could not be deemed to confer a “benefit” on UES and BSplc/BSES.22

In fact, the decisions in delverde v. united States23 by uS court of Appeals for the Federal circuit of 2 February 2000 prompted a review of this methodology. The Federal circuit held that it is incon-sistent with § 1677 (5) (F).

“The Act did not allow the department to presume conclusively that the subsidies granted to the former owner of delverde’s corpo-rate assets automatically “pass-through” to delverde following the sale. Rather, where a subsidized company has sold assets to another company, the Department need to examine the particular facts and circumstances of the sale and determine whether the purchasing com-pany directly or indirectly received both a financial contribution and benefit from the government.”24

phase 4. “The same person” methodology. pursuant to the Fed-eral Circuit’s finding, the DOC developed the new methodology and was applied to the Grain-oriented Electrical Steel from Italy for the first time. The DOC posited two steps to analyze the existence of a countervailable subsidy after a change-in-ownership transaction. The first step under this methodology was to determine whether the legal person to whom the subsidies were given was, in fact, distinct from the legal person that produced the subject merchandise exported to the united States. If it is determined that the two persons were distinct, we then analyzed whether a subsidy was provided to the purchasing entity as a result of change-in-ownership transaction. If the original subsidy recipient and the current producer/exporter were the same person, then DOC determined that the person continued to benefit from the original subsidies, and its exports were subject to counter-vailing duties to offset those subsidies.25

This methodology, when applied in the Grain-oriented Electri-cal Steel from Italy, had initially been developed in the draft. The final

22 united States – leads Bars: Appellate Body Report, para. 62.23 delverde Srl v. united States 202 F. 3rd 1360 (Fed cir. Feb 2, 2000) reh’g denied (20

June 2000). Attached as Exhibit EC - 5.24 delverde III, 202 F. 3rd at 1364-1368.25 Acciai Speciali Terni S.p.A. v. united States, ct. no. 01-00051, Final Remand Redeter-

mination, page 13.

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results of a red termination are pursuant to a court remand. In Acciai Speciali Terni S.p.A. v. United States, Ct. No. 01-00051,26 the doc adopted a non-exhaustive list of factors which was used to analyze whether the subsidy recipient is the “same person” as the company under investigation: continuity of general business operation; conti-nuity of production facilities; continuity of production facilities; con-tinuity of assets and liabilities; and retention of personnel27.

however, in the United States – Countervailing Measures Con-cerning Certain Products from the EC, the panel found that the same person method is inconsistent with the ScM Agreement because it `prohibits the examination of the conditions of the privatization-trans-action when the privatized producer is not a distinct legal person based on criteria relating mainly to the industrial activities of the producers concerned.28. Thus, if the U.S. authorities find that the privatized en-tity is the `same person, they do not inquire into the conditions of the privatization in order to determine whether the benefit of the subsidy continues to exist.

Although the panel held that “once an importing member has determined that a privatization has taken place at arm’s length and for fair market value, it must reach the conclusion that no “benefit” result-ing from the prior financial contribution (or subsidization) continues to accrue to the privatized producer”,29 the Appellate Body reversed the Panel’s finding and found that same person approach inconsis-tent with u.S. obligations under Articles 19.1, 21.2 and 21.3 of the ScM Agreement, relating to original investigations, administrative reviews, and sunset reviews, respectively. The AB held that the obli-gation of WTo Members, to limit cVd’s countervailing duty laws to the amount and duration of the subsidy found by the investigating au-thority, applies to original determinations as well as to administrative

26 This “same-person” privatization methodology is the subject of appeals to the Federal circuit in three cases: Acciai Speciali Terni S.p.A. v. united States, ct. no. 01-00051; Allegheny ludlum corp. v. united States, ct. nos. 03-1189 and 03-1248; and GTS in-dustries, S.A. v. united States, ct. nos. 03-1175 and 03-1191.

27 Ibid note 22.28 united States – countervailing Measures concerning certain products from the Ec, pa-

nel Report, para. 7.77.29 united States – countervailing Measures concerning certain products from the Ec, pa-

nel Report, para. 8.1 (d).

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and sunset reviews; but the same person methodology only applies to one administrative review conducted under Article 21.1 of AScM. Secondly, Article 21.2 of AScM requires that the investigating au-thorities in administrative procedures take into account ‘positive in-formation substantiating the need for a review’.

Lead bars affirmed that ‘an investigating authority, in an admin-istrative review, when presented with information directed at proving that a benefit no longer exists following a privatization, must determine whether the continued imposition of cVd’s is warranted in the light of that information.’ however, when the doc has determined that no new legal person is created as a result of privatization, it reached its conclu-sion without having conducted further analysis of whether privatized entity continues to receive the benefit of subsidies. Therefore, the Ap-pellate Body found that the same person method, as such, is inconsistent with the ScM Agreement.30 As for the sunset review, the AB came to a similar conclusion that the investigating authorities in sunset reviews also have to determine whether a benefit continues to exist, even if no new legal person is created after privatization.

4 ReCent deveLopMent And AnALySiS oF “FAiR MARket vALue”

Recently, the doc proposed to list some factors to assess the “fair market value” and market conditions in response to the AB find-ing. The following non-exhaustive list of factors might be considered:

• Artificial barriers to entry: Did the government impose exclu-sions on foreign purchasers from other industries, or overly bur-densome/unreasonable bidder qualification requirements that ar-tificially suppressed demand for the company? The fundamental consideration is not necessarily the number of bidders; rather, whether the market is contestable, anyone who wants to buy the company or its assets has a fair and open opportunity to do so.

30 united States – countervailing Measures concerning certain products from the Ec, Appellate Body Report, para. 146-147.

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•• Independent analysis: did the government perform due diligence in determining the appropriate sales price, and did it follows the recommendations of any independent analysis, indicating that maximizing its return was the primary consideration? Was the highest bid accepted and was the price paid in cash or close equiv-alent (and not, e.g., with an imbalanced bond-for-equity swap).

• committed investment: were there prices discounts or other inducements in exchange for promises of additional future in-vestment that private, commercial sellers would not normally seek (e.g., retaining redundant workers, building or maintain-ing unwanted capacity).

no matter how changeable are the methodologies that the doc employed, it gradually concluded that the transaction of privatization at arm’s length for fair market value may extinguish the pre-privatiza-tion subsidies although it does not necessarily do that. nevertheless, in what conditions, the benefit of pre-subsidies continues to exist in privatized entities even though the transaction of privatization is at arm’s length for fair market value?

An examination of “fair market value” is needed. First of all, it is difficult to appraise according to the relativity of fair market value. It is important to remember that any vision about value is usually subjective to a number of circumstances, i.e. place (local habits), time (moment), the existence of comparable precedents and the evaluation principles of each person involved. Any value is valid if it is applied, and worthless if not applied. The opinion of 1000 people about their intention to buy a product has no meaning if nobody buys the product. on the other hand, if there is one single person interested in a product, it is a one-person market. In this case, any price would be a fair market price. There-fore, a fair market value is not invariable; it could change depending on the specific situation of market. For example, if a government assesses each tract before bidding to determine the minimum bid of “fair market value”, but no bids are ultimately received due to the deficiencies of information, it is therefore difficult to say the minimum price set by the government is a fair market price. Similarly, it is possible to achieve the fair market value when a government negotiates with only one buyer, only if there is a single one buyer in the market.

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In fact, the “fair” of “fair market value” refers not to the fairness of the amount received, but to the method by which it is determined. Accordingly, the most important feature of prices in a fair market is that they are satisfactory to both parties to the transaction, given their knowledge and voluntary participation. Thus, to ensure to obtain the fair market value, it is reasonable to require governments to open the bidding to any purchasers who qualify the requirements of bidders, and provide sufficient opportunity for those who most highly value the item being sold to participate; and the transaction is free of collu-sion.

Secondly, does the fair market value require governments to maximize revenue from the sale of public resources? The definition of “fair market value” is found in the united States Supreme court decision in the cartwright case: the fair market value is the price at which the property would change hands between a willing buyer and a willing seller, neither being under any compulsion to buy or to sell and both having reasonable knowledge of relevant facts.31 For knowledgeable sellers or buyers, they could be willing to conduct a transaction only when their own best interests can be realised. However, it is noted that there is difference between maximizing the interest of seller or buyer and maximizing the revenue of a govern-ment. A government as a special seller undertakes various responsi-bilities, so that it needs to take into account a “fair return to the pub-lic”. It is evident that the appraisal or fair market value requirement is basically linked to the goals of increasing revenue or obtaining a fair return for state-owned properties, but is not employed where the government is attempting to develop some policy or encourage specific development goals. Therefore, when trying to encourage development, the government can accept a price below the actual value of properties or reduce the price in order to retain redundant workers, or maintain unwanted capacity when the knowledgeable and willing buyer is encumbered by undue pressure and realizes his own best interest in a fair market.

31 united States v. cartwright, 411 u.S. 546, 93 S. ct. 1713, 1716-17, 36 l. Ed. 2d 528, 73-1 U.S. Tax Cas. (CCH) 12,926 (1973).

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Thirdly, the reason why AB held that the pre-privatization sub-sidies may not be extinguished by privatization in the United States – countervailing Measures concerning certain products from the Ec, is mainly because the market conditions were taken into ac-count by AB.

1. Markets are mechanisms for exchange. Market conditions are not necessarily always present and they are often dependent on gov-ernment action. under certain conditions (e.g., unfettered interplay of supply and demand, broad-based access to information on equal terms, decentralization of economic power, an effective legal system guaranteeing the existence of private property and the enforcement of contracts), prices will reflect the relative scarcity of goods and ser-vices in the market.

2. Governments may choose to impose economic or other poli-cies that are intended to induce certain results from the market. In such circumstances, the market’s valuation of the state-owned property may ultimately be severely affected by those government policies, as well as by the conditions in which buyers will subsequently be allowed to enjoy property. In privatization, governments have the ability, by de-signing economic and other policies, to influence the circumstance and the conditions of the sale so as to obtain a certain market valuation of the enterprise.

To analyze the market condition, it needs to examine the effect of the macro economic policies on privatization including the taxation system and legal rules pertain to privatization, regardless of a specific offer of a specific privatization, since it fails to affect the whole market. It is evident that the methodology of “fair market value” is not suitable with “market-transition economy” countries. This raises the questions of how subsidies must be treated after the company has been privatised and before the country assumes a market-economy status.

5 ConCLuSion

To examine whether a pre-privatization subsidy continues to benefit the privatized producer in a market-economy country, it is

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suggested that a process-oriented method be applied. Investigating authorities analyze different cases according to different transactions of privatization. The basic principle of the process-oriented method is the fair examination of whether the transaction of privatization is con-ducted by a fair way so that the producer can be privatized at arm’s length and for fair market value. Therefore, the assessment of fair entry into bidding market, and fair opportunities to obtain object is necessary. however, since the transaction is at arm’s length, the price discount or other inducements could be considered as part of the fair market value.

6 ReFeRenCe

Julie dunne, delverde and the WTo’ British Steel decision foresha-dow more conflict where the WTO Subsidies Agreement, privatiza-tion, and united States countervailing law intersect, 17 Am. u. Int’l l. Rev. (2001-2002).

david S. da Silva coenell, Maybe you can take it with you, after all: subsidies and privatization underdogs. countervailing duty law,25 law & pol’y Int’l Bus. (1993-1994).

Emanuel L. Gordon, What is fair market value?, N.Y.U Tax L. Rev. 35 1952-1953.

WT/dS138/AB, R.

WT/dS212/AB.

Lime from Mexico, 54 Fed. Reg.1753 (Dep’t Comm), supra note 3, (17. January. 1989) at 1754-1755.

certain hot-Rolled lead and Bismuth carbon Steel products the uni-ted Kingdom, preliminary determination 57 Fed. Reg. 42974 (17. September. 1992).

united States – leaded Bars: GATT panel Report.

united States v. cartwright, 411 u.S. 546, 93 S. ct. 1713, 1716-17, 36 L. Ed. 2d 528, 73-1 U.S. Tax Cas. (CCH) 12,926 (1973).

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dEScoBRIndo A VERdAdE: oS SuBSÍdIoS PERDURAM APÓS A PRIVATIZAÇÃO?

Yu WuTradução: carlos Alberto Rohrmann

Sumário1. Introdução. 2. Regras e decisões da oMc. 3. his-tória da relação entre subsídios e a privatização. 4. Evolução recente e análise do “valor justo de merca-do”. 5. conclusão. 6. Referências bibliográficas.

ResumoNeste trabalho procura-se discutir se os subsídios se extinguem

após a privatização das entidades envolvidas. Tendo o Órgão de Apela-ção da organização Mundial de comércio decidido que a privatização imparcial e com preço justo pode, mas, necessariamente, não deve im-plicar a extinção do benefício, é de se esperar que as autoridades que investigam os fatos desenvolvam mais metodologias para examinar a questão. De fato, a determinação do valor justo de mercado tem influên-cia direta sobre os modelos empregados pelas autoridades no trato com o problema. Depois de examinar as alterações das metodologias empre-gadas pelos Estados unidos para avaliação, este artigo pretende escla-recer os pontos cruciais relativos ao preço justo de mercado, concluindo pelo emprego de um modelo justo em que a privatização seja conduzida de modo a garantir efetivamente um preço justo de mercado.pAlAVRAS-chAVE: Subsídio. privatização. preço justo de mer-preço justo de mer-cado. ASMc.

AbstractThe theme of this article is to discuss whether a pre-privati-

zation subsidy would be extinguished after privatization of entities.

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Since WTo AB held that privatization at arm’s length and for fair market value may, not must result in extinguishing the benefit, it pro-vides possibilities for the investigating authorities to develop more methodologies to examine the issue. Actually, how to define a fair market value directly influences standards employed by the investi-gating authorities to assess the problem. After reviewing the changes of u.S. methodologies of assessment, this article intends to clarify the crucial meaning of fair market value, claiming a fair way in which the transaction of privatization is conducted more effectively ensures realization of a fair market value.KEYWoRdS: Subsidy. privatization. Fair market value. AScM.privatization. Fair market value. AScM.

1 intRodução

Segundo o ASMC, subsídio é uma contribuição financeira ou outro tipo de benefício concedido pelo governo ou por qualquer enti-dade pública dentro do território de um país-membro.

Os subsídios existem sob várias formas. Este artigo tem como foco a continuidade dos subsídios, mormente após a privatização. Por exemplo, um produtor de aço obteve um subsídio governamen-tal enquanto era uma empresa estatal. Encorajado com a ajuda desse subsídio, esse produtor de aço começou a exportar e logrou grande desenvolvimento. numa reforma recente em seu país, a privatização do setor tornou-se necessária, tendo esse produtor passado à iniciati-va privada. uma vez que os subsídios eram concedidos antes da pri-vatização, a questão a considerar é se o fabricante privatizado ainda gozaria dos benefícios dos subsídios e se estaria sujeito às medidas compensatórias de outros países exportadores do produto. Uma con-tribuição financeira única concedida aos antigos proprietários pode ser vista ainda como subsídio sujeito a taxações compensatórias?

Em muitos casos a organização Mundial de comércio decidiu que “embora os membros possam alegar que as contribuições finan-ceiras anteriores (subsídios) acompanhem o produtor privatizado, a alegação de privatização imparcial e a questão do valor justo de mer-cado são suficientes para rechaçar tal presunção”. O Órgão de Apela-

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ção decidiu que a privatização imparcial com valor justo de mercado não implica a extinção do benefício. Entretanto, o modo de definir um mercado livre varia e não é fixo por causa dos diferentes lugares, tempo e métodos de privatização.

De fato, o problema fica mais complicado quando o subsídio surge durante o processo de privatização. A relação mútua entre a privatização e as regras das medidas compensatórias ocorre de duas maneiras principais: a abordagem de antigos subsídios a empresas (se eles foram extintos com a transferência de propriedade) e a questão de subsídios concedidos em conexão com o processo de privatização, estes realizados como incentivo aos compradores privados. A segunda questão está diretamente relacionada à privatização em si.

privatização é a transferência de propriedade ou responsabilidade de um setor público (governamental) para o setor privado (livre inicia-tiva). o termo pode abranger a transferência parcial ou completa de qualquer propriedade ou responsabilidade governamental. há três mé-todos de privatização: (1) privatização com emissão de ações – venda de ações no mercado de ações. o processo de emissão de ações requer um mercado de capitais maduro e suficientemente desenvolvido, devi-do à dificuldade de se encontrarem compradores e ao alto custo da tran-sação; (2) privatização com venda do ativo – venda da empresa toda ou em parte a um investidor estratégico, geralmente por meio de leilão. o sistema de venda do ativo – com seus altos riscos políticos e financeiros capazes de desencorajar os investidores estrangeiros – é mais comum nos países em desenvolvimento; (3) A privatização voucher – em que as ações da empresa são distribuídas a todos os cidadãos, geralmente de graça ou a um preço muito reduzido. Ela tem sido empregada nas economias em transição da Europa central e Europa oriental, como Rússia, polônia, República Tcheca e Eslováquia. para se chegar à con-clusão de que um subsídio se transfere ao novo proprietário após a pri-vatização, a escolha dos métodos de privatização está intimamente rela-cionada à resposta, uma vez que o padrão para verificar a “transferência de subsídios” na privatização por meio de leilão pode não se aplicar à privatização voucher. Assim, enquanto os Estados unidos querem listar os fatores capazes de determinar se uma privatização foi realizada de modo imparcial e com preço justo, insta considerar o método de priva-tização, mas ele não aparece.

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primeiramente, este artigo pretende analisar o padrão básico es-tabelecido pelo Órgão de Apelação da oMc. de acordo com a meto-dologia proposta e os fatores considerados pelo governo dos Estados Unidos no exame de prevalência dos subsídios, cabe examinar alguns fatores que não são apropriados para decidir se alguns subsídios são transferidos a uma nova entidade privatizada. o artigo está dividido em três partes: a primeira revê as regras da oMc e alguns casos, focalizando de modo especial o desenvolvimento e a metodologia que possibilitam o exame da “transferência de subsídios” por parte do governo dos Estados unidos. A segunda parte apresenta e anali-sa os novos fatores e padrões factíveis dos Estados unidos, os quais examinam o valor justo de mercado, a fim de se apontar uma eventual irracionalidade de algum fator. A terceira parte identifica alguns pro-blemas não-resolvidos durante o processo de exame e tenta encontrar as respectivas soluções.

2 ReGRAS e deCiSÕeS dA oMC

Relativamente à avaliação da perduração de subsídios após a privatização, a única regra pertinente ao assunto é o artigo 27.13 do Acordo sobre Subsídios e Medidas compensatórias (ASMc) da Ro-dada do uruguai:

o disposto na parte III não se aplica diretamente ao perdão de débitos, subsídios para cobrir custos sociais sob quaisquer formas, inclusive renúncia de receita governamental e outras transferên-cias de obrigações, quando tais subsídios tiverem sido garantidos dentro do programa de privatização de um país-membro em de-senvolvimento e diretamente relacionados a tal programa, a não ser que o programa e subsídios sejam garantidos por tempo li-mitado e notificados ao Comitê e que tal programa resulte numa privatização eventual da empresa em questão.

Em outras palavras, de acordo com certas condições necessárias, como notificação ao Comitê, alguns subsídios parciais podem não ser contestáveis desde que estimulem a privatização. Quanto ao citado ar-tigo 27.13, há três pontos que precisam ser esclarecidos: primeiramen-

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te, tal artigo se refere a países em desenvolvimento, não tendo relação com as disputas entre os Estados unidos e a comunidade Européia, visto que tal disposição faz parte do artigo 27, que se refere especial-mente e de modo diferencial aos países-membros em desenvolvimen-to. Entretanto, a definição de “países em desenvolvimento” não está muito clara no ASMc. Em segundo lugar, os subsídios garantidos ou diretamente relacionados à privatização podem não ser considerados para efeito de aplicação de medidas compensatórias por parte de paí-ses importadores. Virtualmente, muitos subsídios oferecidos durante o processo de privatização têm como finalidade o estímulo da priva-tização de algumas entidades, e não o estímulo de exportações nem o de consumo de mercadorias nacionais em detrimento de mercadorias importadas. Assim, tais subsídios não encerram proibição. Ele tam-bém oferece uma resposta à questão de se saber se outros subsídios concorrentes na privatização, como, por exemplo, perdão de débito, renúncia de receita governamental e transferência de obrigações po-dem ser extintos durante a privatização ou considerados como novos subsídios para os novos proprietários, desde que somente utilizados para a cobertura de custos sociais. contudo, isto se refere somente às privatizações nos países em desenvolvimento, e não aos países desen-volvidos. Em terceiro lugar, levando-se em consideração que a finali-dade de tais subsídios é estimular as privatizações, eles não entram na categoria de subsídios proibidos, mas sim como subsídios suscetíveis de contestação. Se tais subsídios forem utilizados como disfarce de custos sociais para atuarem como mecanismos cambiais nas opera-ções de comércio exterior, ou forem utilizados antes da privatização, eles devem ser contestados e até mesmo proibidos.

Obviamente, isto não esclarece se os subsídios anteriores se ex-tinguiriam após a privatização. contudo, o Órgão de Apelação da oMc nos Estados unidos – Medidas compensatórias para certos produtos originários de comunidades Européias – WT/dS212/AB/R (9 de de-zembro de 2002) – recomenda um modo de resolver o problema.

o painel concluiu que a decisão se aplica somente às alterações ocorridas na propriedade privatizada, desde que o governo não man-tenha nela controle acionário e a transfira toda ou em sua grande parte. o painel, então, decidiu que, “embora os membros possam argumen-tar que as contribuições financeiras anteriores (subsídios) acompa-

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nhem o produtor privatizado, a alegação de privatização imparcial e a questão do valor justo de mercado são suficientes para rechaçar tal presunção”.

por outro lado, o corpo de Apelação decidiu que uma priva-tização imparcial e por um valor justo de mercado pode resultar na extinção do benefício. De fato, vê-se que existe uma presunção, pas-sível de refutação, de que um benefício deixará de existir depois da privatização. Entretanto, isto não ocorre necessariamente. Não exis-te uma regra inflexível que ordene que as autoridades investigantes, nos futuros casos, automaticamente, determinem que um “benefício”, oriundo de contribuições financeiras anteriores a uma privatização, expire após uma privatização imparcial e por valor justo de mercado. A privatização pode, mas não deve causar a extinção do benefício. O corpo de Apelação transforma uma presunção irrefutável numa pre-sunção refutável.

Em relação ao presente caso, a primeira questão que se nos apresenta é por que os subsídios poderiam extinguir-se se a transação da privatização for feita de modo imparcial e por um valor justo de mercado. Se um governo concede uma contribuição financeira a uma entidade antes da privatização, é possível que a entidade sucessora continue com o benefício do subsídio. o propósito da lei das medidas compensatórias é compensar o benefício competitivo gozado pelas firmas subsidiadas. A simples transferência de propriedade das ações de um governo para uma companhia privada não reduz o benefício competitivo, e, por conseguinte, torna-se difícil dizer que tais benefí-cios não devam continuar com as novas entidades. Antes de se con-cluir pela razoabilidade da decisão, veja-se um exemplo:

Suponha-se que a pessoa A receba 100 libras de um governo como contribuição financeira. Essa quantia representa um “benefício” a A, que recebe o dinheiro. Essa pessoa compra uma cadeira por 100 libras e, em seguida, revende o citado móvel a uma terceira pessoa, B (até então sem qualquer participação no negócio), por 100 libras, que é o preço justo de mercado. Este exemplo mostra que o “benefício” de 100 libras não “acompanhou” B. O governo ficou mais pobre em 100 libras e a pessoa A ficou mais rica em 100 libras, ambos os fatos ocorridos antes e depois da venda da cadeira. A pessoa B em nada se beneficiou. Ela gastou 100 libras, que é o valor justo da cadeira. Se o

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preço da cadeira revendida tivesse sido de 125 libras, como A recebe-ra um benefício do governo de 100 libras, teria lucrado 25 libras com a venda. A pessoa B também não teria auferido nenhum benefício. Se a oferta de cadeiras no mercado for muito grande e houver uma queda de 25 libras no preço de cada cadeira, a pessoa B compraria a tal ca-deira por 75 libras. Neste caso, a pessoa B também não se beneficiaria da contribuição governamental, e o desembolso do governo ainda te-ria sido de 100 libras.

Assim, temos outro exemplo: depois de fazer parte da proprie-dade estatal e receber contribuições financeiras durante anos, uma fir-ma, A, é avaliada em 100 milhões de libras, enquanto que um outra firma, B, do mesmo ramo, com o mesmo tipo de fábrica e equipa-mentos, nunca recebera qualquer tipo de ajuda do governo. As duas companhias são colocadas à venda por meio de leilão. Ambas terão o mesmo valor para os compradores, devendo ser vendidas pelo mesmo preço, uma vez que, para um comprador sensato, não existe diferença entre a firma A e a firma B, pois esse comprador não ofereceria uma quantia maior pela firma A simplesmente porque essa firma recebera subsídios. O comprador também não valorizaria mais a firma B pelo motivo de ela nunca ter recebido ajuda do governo.

Se a privatização envolve perdão de dívida por parte do governo ou a renúncia negociada de impostos, pode-se argumentar que a mu-dança de propriedade não afeta a continuidade dos benefícios e, por-tanto, o pagamento de quaisquer valores referentes a subsídios ante-riores fora do valor justo de mercado deve cessar. Entretanto, “desde que uma transação seja conduzida imparcialmente, deve-se concluir que o comprador e o vendedor tenham negociado de acordo com seus respectivos interesses próprios, o comprador tenha levado em consi-deração todos os fatos relevantes e tenha efetuado o pagamento de um valor de mercado representativo de tudo que recebeu. Visto que os benefícios compensatórios não sobrevivem à transação imparcial, não há benefício a conferir ao comprador, e, por conseguinte, não há como reclamar compensação de subsídio nem qualquer dever com-pensatório de acordo com a interpretação da lei de compensação de Subsídios dos Estados unidos. deste modo, o comprador não se beneficiará de qualquer medida compensatória, e qualquer valor com-pensatório atribuído ao negócio implicará penalidade”. A expressão

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“de modo imparcial” de certa maneira pode assegurar que a transação da privatização é realizada com valor de mercado, e o próprio exame econômico que indica se o benefício ou vantagem são transferidos ao comprador deveria ser o fator determinante para as autoridades decidirem se o “valor de mercado” foi pago. Tal consideração inclui a lisura e a transparência da negociação e do processo de venda e a adequação do valor recebido pela companhia com base em critérios comerciais significativos.

3 HiStÓRiA dA ReLAção entRe SuBSÍdioS e A pRivAtiZAção

pela revisão de casos decididos nos tribunais norte-americanos sobre a “transferência” de subsídios após a privatização, podemos concluir se esses subsídios perduram. As mudanças de metodologia para exame do problema, ocorridas com freqüência, refletem o fato de que as políticas de comércio nos Estados unidos são fortemente influenciadas por grupos com interesses diferentes. Para se alcançar a verdade, torna-se necessário realizar a pesquisa em fases diferentes. o departamento de comércio (dc) pretende trazer a lume padrões para o exame do assunto como um todo. Identificam-se quatro fases de po-líticas e tratamento de subsídios compensatórios após a privatização.

Fase 1. O enfoque da completa extinção estabelece o princípio Lime of Mexico, segundo o qual se uma transação ocorrer de modo imparcial, os subsídios antes da privatização não alcançam o perío-do privatizado. O governo mexicano vendeu 1% de sua participação da Sonocal à Bomintzha, uma companhia privada, pelo preço deter-minado no processo de leilão, considerando vários fatores, como “a continuidade da viabilidade econômica da companhia e a preservação de empregos”. o departamento de comércio, reconhecendo a venda, concluiu que o preço pago pela companhia privatizada refletia, o seu valor de mercado e que, “por conseguinte, nenhum benefício [con-cedido à companhia que o governo possuia] passara à outra empresa [privatizada]”.

Fase 2. A metodologia de “transferência” foi formulada com base no caso Certain Hot-Rolled Lead and Bismuth Carbon Steel Pro-

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duct (U.S. – Lead bars). o departamento de comércio radicalmente mudou sua posição, reconhecendo que todos os subsídios antes da privatização passariam automaticamente aos novos donos. neste caso específico, a privatização envolvia débitos do governo como parte da negociação da transferência da maior parte da propriedade e a fusão para criar uma nova companhia. o governo não só manteve o controle após a privatização, como também realizou a negociação com apenas um arrematador. o requerente argumentou que a alteração de proprie-tários não afetava a transferência de benefícios. Finalmente o depar-tamento de comércio concluiu que “a venda de uma companhia ou de uma unidade produtiva não altera os respectivos subsídios gozados”.Esta metodologia foi questionada na Rodada de Tóquio sobre o códi-go de Subsídios. no painel precedente, os Estados unidos corrigiram sua metodologia sobre a alteração de proprietários e não defenderam a metodologia de transferência, considerando que esta metodologia não levava em conta o valor da transação.

Fase 3. A “Metodologia Gama” ou “Metodologia da Transfe-rência parcial”. Em resposta a críticas, o departamento de comér-cio revisou a metodologia “de transferência”, permitindo que parte de quaisquer subsídios anteriores se transformasse automaticamente em subsídios de transferência para os novos donos. A “Metodologia Gama” permite distribuir os subsídios antigos ou bens produtivos (pertencentes anteriormente ao recebedor) entre o recebedor desses subsídios e o comprador da companhia. uma parcela do valor de com-pra pode refletir uma parte restante do valor dos subsídios anteriores. Virtualmente, isto significa dizer que é impossível que a totalidade dos subsídios antes da privatização se transfira após a privatização.

A “Metodologia Gama” foi introduzida em julho de 1993, seis meses após o departamento de comércio ter introduzido a sua me-todologia “de transferência”, tendo tal metodologia sido questionada pela união Européia na organização Mundial de comércio no caso United States Imposition of Countervailing Duties on Certain Hot-Rolled Lead and Bismuth Carbon Steel Products Originating in the United Kingdom. O Departamento de Comércio classificou os ale-gados subsídios como excepcionais e os considerou por cerca de 18 anos, tempo de vida útil dos bens de produção na indústria do aço. o departamento de comércio alegou que os subsídios em questão

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“transferiram-se” primeiramente da BSc para a uES, e, mais recen-temente, para a BSES.

o painel de discussão da organização Mundial de comércio, diante de investigações realizadas, considerou a metodologia de pri-vatização usada pelo departamento de comércio discrepante das obrigações dos Estados unidos perante o Acordo de Subsídios da organização Mundial de comércio. o artigo 10 estabelece que um membro da organização Mundial de comércio não está autorizado a impor obrigações compensatórias, a menos que exista um subsídio a ser compensado. os artigos 19.1 e 19.4 prescrevem que o requerente deverá demonstrar a existência de um subsídio antes de impor obri-gações compensatórias, e o critério indicativo de um subsídio deve referir-se a um benefício. o corpo de Apelação no dia 10 de maio de 2000 chegou a esta mesma decisão no painel:

A questão de uma ‘contribuição financeira’ conferir um ‘be-nefício’ depende, portanto, do fato de o recebedor ter auferido uma ‘contribuição financeira’ em termos mais favoráveis do que aqueles existentes no mercado. No caso presente, o painel ba-seou-se em fatos concretos que levaram a concluir que tanto a uES quanto a BSplc/BSES pagaram um preço justo de mercado pelos bens de produção, conceito comercial etc. Elas adquiriram a BSc e, em seguida, iniciaram a produção de barras de chumbo e a exportação para os Estados Unidos, tendo estas operações ocorrido em 1994, 1995 e 1996. portanto, não vemos nenhum erro na conclusão de que, nas circunstâncias específicas deste caso, a ‘contribuição financeira’ concedida à BSC entre 1977 e 1986 não podia ser considerada como concessão de ‘benefício’ à uES e à BSplc/BSES.

de fato, as decisões tomadas por um tribunal regional federal no caso Delverde x United States, no dia 2 de fevereiro de 2000, pro-vocaram a revisão dessa metodologia. o citado tribunal decidiu que ela era discrepante diante do que dispõe o § 1677 (5) (F).

A lei não autoriza o departamento de comércio a presumir con-clusivamente que os subsídios concedidos ao antigo proprietário da empresa delverde se transferiram à delverde juntamente com a sua venda. Assim, se uma companhia que recebe subsídios for vendida a outra companhia, compete ao departamento de comér-

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cio examinar os fatos específicos e as circunstâncias da venda e determinar se a companhia que está sendo negociada recebeu, di-retamente ou indiretamente, contribuição financeira e algum bene-fício do governo.

Fase 4. A metodologia “da mesma pessoa”. de acordo com a deci-são do mencionado tribunal, o departamento de comércio desenvolveu a nova metodologia e a aplicou à Grain-oriented Electrical Steel, da Itá-lia, pela primeira vez. o departamento de comércio estabeleceu duas etapas para analisar a existência de um subsídio compensatório após a transferência de propriedade. de acordo com tal metodologia, a primeira etapa consistia em determinar se a pessoa jurídica, à qual se concediam os subsídios, era uma empresa distinta da outra pessoa jurídica, cujos produtos eram exportados para os Estados Unidos. Se a conclusão a que se chegasse era a de que as duas entidades eram diferentes, aí, então, ana-lisava-se se o subsídio prevalecia por motivo de ter havido mudança de proprietários. Se o recebedor original do subsídio e o produtor/exportador eram a mesma entidade, o departamento de comércio concluía que a empresa continuava a se beneficiar dos subsídios originais, e suas expor-tações eram objeto de taxações para compensar os subsídios.

Esta metodologia, quando aplicada à Grain-oriented Electrical Steel, da Itália, ainda estava sob a forma de minuta. A decisão judicial final encontra-se pendente. No caso Aciai Speciali Terni Sp.A x United States, Ct. Nº 01-0051, o Departamento de Comércio adotou uma lista não-exaustiva de fatores para verificar se o recebedor do subsídio era a “mesma pessoa” que a companhia investigada: continuidade da ope-ração geral dos negócios; continuidade de produção das instalações; continuidade dos bens e de obrigações; e manutenção de pessoal.

contudo, no caso United States – Countervailing Measures Concerning Certain products from the EC, o painel concluiu que o método da mesma pessoa é discrepante em relação à orientação do ASMC, porque ele proíbe o exame das condições de privatização-transação quando o produtor privatizado não se tratar de uma pessoa jurídica distinta, de acordo com o critério que identifica o produtor com base principalmente em suas atividades. desta maneira, mesmo concluindo que a entidade privatizada é a mesma pessoa jurídica, as autoridades dos Estados unidos não procuram conhecer as condições

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da privatização para determinar se o benefício do subsídio continua existindo.

Embora o painel tenha estabelecido que “uma vez que um mem-bro importador alegue que a privatização tenha ocorrido de maneira imparcial e com valor justo de mercado, chega-se à conclusão de que nenhum ‘benefício’ originário de contribuições anteriores (ou subsí-dios) se adere ao produtor privatizado”, o corpo de Apelação reverteu a decisão do painel e estabeleceu que a tese da mesma pessoa é con-flitante com as obrigações dos Estados Unidos, conforme os artigos 19.1, 21.2 e 21.3 do ASMc, que tratam, respectivamente, de inves-tigações originais, revisões administrativas e revisões periódicas. o corpo de Apelação decidiu que a obrigação dos membros da organi-zação Mundial de comércio para limitar as medidas compensatórias da lei de compensação de Subsídios dos Estados unidos, em termos de valor e duração dos subsídios apurados pelas autoridades inves-tigantes, aplica-se às determinações originais e às revisões adminis-trativas e revisões periódicas. Mas, esta mesma metodologia pessoal somente se aplica a uma revisão administrativa realizada de acordo com o Artigo 21.1 do AScM. Em segundo lugar, o artigo 21.1 do ASCM determina que, nos expedientes administrativos, as autorida-des investigantes levem em consideração “informações positivas que fundamentem o pedido de uma revisão”.

A empresa lead Bars argumentou que, “numa revisão adminis-trativa, quando existe a argumentação de que um benefício não mais existe após a privatização, a autoridade investigante deve esclarecer se a aplicação continuada da lei de compensação de Subsídios dos Estados unidos se baseia nessa informação”. Entretanto, quando o departamento de comércio decidiu que não se cria nenhuma pessoa jurídica numa privatização, constata-se que ele chegou a essa con-clusão sem analisar se a entidade privatizada continuava a receber o benefício dos subsídios. por conseguinte, o corpo de Apelação de-cidiu que tal método pessoal é conflitante com o Acordo do ASMC.Em relação à revisão periódica, o corpo de Apelação chegou a uma conclusão similar, segundo a qual, também numa revisão periódica, as autoridades investigantes devem resolver se um benefício conti-nua a existir, mesmo que nenhuma pessoa jurídica seja criada após a privatização.

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4 evoLução ReCente e AnÁLiSe do “vALoR JuSto de MeRCAdo”

Recentemente, o departamento de comércio propôs uma lista não-exaustiva de alguns fatores destinados a avaliar o “valor justo de mercado” e as condições de mercado em resposta à decisão do corpo de Apelação:

• Barreiras artificiais para entradas: o governo impôs a exclusão de compradores estrangeiros de outras indústrias ou fez exigências exageradas para a qualificação de lances, diminuindo artificial-mente o interesse pela companhia? O aspecto fundamental não é, necessariamente, o número de licitantes. Sem dúvida, sendo um processo aberto, qualquer um que quiser comprar a companhia ou seus bens poderá fazê-lo de maneira justa e livremente.

• Análise independente: o governo realizou alguma diligência necessária para determinar o preço correto da venda, e isto foi feito sob a recomendação de alguma análise independente que indicava a maximização do valor da venda como meta princi-pal? O maior lance foi aceito e o preço foi pago em dinheiro ou por um meio equivalente (e não, por exemplo, por meio de uma permuta desigual de títulos).

• Investimento com finalidade específica: houve descontos de preços ou outros incentivos utilizados como permuta por pro-messa de futuros investimentos adicionais, pelos quais os com-pradores da área privada normalmente não se interessariam (por exemplo: a manutenção desnecessária de empregados, o aumento ou a manutenção de capacidade ociosa)?

não obstante o fato de o departamento de comércio ter empre-gado metodologias variáveis, o órgão concluiu gradativamente que a transação imparcial de uma privatização com preço justo, embora não necessariamente, pode extinguir os subsídios anteriores. Contudo, em que condições os benefícios de subsídios anteriores perduram, mesmo com a transação realizada de maneira imparcial e por um preço justo de mercado?

Torna-se necessário um exame do significado da expressão “va-lor justo de mercado”. Em primeiro lugar, é uma questão difícil de

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ser avaliada em virtude da relatividade do valor justo de mercado. É importante lembrar que a concepção de valor geralmente está sujeita a algumas circunstâncias, por exemplo, de lugar (hábitos locais), tempo (momento), a existência de precedentes comparáveis e os princípios de avaliação de cada pessoa envolvida. cada valor só é válido se for aplicado. A opinião de 1000 pessoas sobre a intenção de comprar um produto não faz nenhum sentido se ninguém comprar o tal produto. Por outro lado, se existir uma única pessoa interessada num produto, ela representa um mercado de uma só pessoa. neste caso, qualquer preço seria um preço justo de mercado. Assim sendo, um preço justo de mercado não é invariável. Ele pode variar de acordo com uma si-tuação específica do mercado. Por exemplo, se o governo avalia cada item para determinar o lance mínimo de um valor justo de mercado, mas nenhum lance é oferecido devido a deficiências de informação, torna-se difícil afirmar que o preço mínimo estabelecido pelo governo seja um preço justo de mercado. de modo similar, é possível determi-nar o preço justo de mercado quando o governo negocia somente com um comprador, quando há somente um comprador no mercado.

Assim, o “justo” do “valor justo de mercado” não se refere à justeza da quantia recebida, mas ao método pelo qual se determina essa quantia. desta maneira, a característica mais importante dos pre-ços num mercado justo é a satisfação de ambas as partes com a tran-sação, em virtude do conhecimento e vontade de participação de cada uma. desta maneira, para ter certeza de obtenção de um valor justo de mercado, é razoável esperar que os governos não restrinjam a par-ticipação daqueles que preenchem as condições de licitantes, dando oportunidade aos que mais valorizam o bem leiloado. É de se evita-rem também os conluios.

Em segundo lugar, o valor justo de mercado da venda de um bem público significa, por parte dos governos, uma maximização de receita? A definição de “valor justo de mercado” encontra-se no caso Cartwight decidido pela Suprema corte dos Estados unidos: o valor justo de mercado é o preço pela qual uma propriedade se transfere de mãos, numa transação entre um comprador que deseja comprar e um vendedor que deseja vender, sem compulsão para comprar ou vender, e tendo ambas as partes conhecimento de fatos relevantes. presume-se que os envolvidos concluam a transação somente quando

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seus interesses são atendidos. Entretanto, é de se notar a diferença entre maximizar o interesse do comprador ou vendedor e maximizar a receita de um governo. como vendedor especial, um governo tem sobre si várias responsabilidades, devendo-se levar em conta o fato de que ele deve “um retorno justo ao público”. É óbvio que a ava-liação ou os requisitos de valor justo de mercado estão basicamente relacionados a metas de acréscimo de receita ou a obtenção de um retorno justo pela venda do bem estatal, mas tal linha de raciocínio não se aplica quando o governo tenta implementar alguma política ou encorajar determinada meta de desenvolvimento. porquanto, ao tentar encorajar o desenvolvimento, o governo pode aceitar um preço abai-xo do valor real dos bens ou reduzir o preço para manter empregos ou uma capacidade ociosa, quando o comprador, que é consciente e deseja comprar, pressionado, age de acordo com seus próprios inte-resses num mercado justo.

Em terceiro lugar, o motivo pelo qual o corpo de Apelação de-cidiu que os subsídios anteriores à privatização não deviam ser extin-tos pela privatização nos Estados unidos - Medidas compensatórias para certos produtos originários de comunidades Européias – deve-se principalmente ao fato de que as condições de mercado foram con-sideradas pelo corpo de Apelação.

1. os mercados são mecanismos para trocas. As condições de mercado, necessariamente, não estão sempre presentes e geralmente dependem de ação governamental. de acordo com certas condições (por exemplo, interação livre entre o fornecimento e a demanda, am-plo acesso a informações livres, descentralização do poder econômico e um sistema legal que efetivamente garanta a propriedade privada e o cumprimento de contratos), os preços refletirão a escassez relativa de mercadorias e de serviços no mercado.

2. os governos podem impor políticas econômicas ou de outras naturezas para provocar certos resultados no mercado. Em tais cir-cunstâncias, os valores de mercado das propriedades estatais devem ser fortemente afetados por essas políticas, assim como pelas condi-ções em que os compradores posteriormente utilizarão esses bens. na privatização, por meio de medidas econômicas e de outras espécies, os governos podem influenciar as circunstâncias e as condições do negócio a fim de obter determinado valor de venda.

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para uma análise das condições de mercado, necessário se faz examinar o efeito de políticas macro-econômicas na privatização, in-clusive o sistema tributário e as disposições legais relativas à priva-tização, independentemente de uma oferta específica referente a uma determinada privatização, uma vez que isto afeta todo o mercado. Evi-dentemente, a metodologia do “valor justo de mercado” não é aplicá-vel aos países de “economia de transição”, o que suscita a questão de como os subsídios devem ser tratados após a privatização e antes de o país assumir a condição de economia de mercado.

5 ConCLuSão

para se saber se um subsídio anterior a uma privatização conti-nua a beneficiar uma entidade privatizada num país com economia de mercado, sugere-se a adoção de um método de processo orientado. As autoridades investigantes devem analisar os casos diferentes de acor-do com os diferentes tipos de transações de privatização. o princípio básico do método de processo orientado é procurar saber de maneira isenta se a transação da privatização é conduzida por meios justos de modo que a propriedade possa ser privatizada imparcialmente e por um preço justo de mercado. Assim, a determinação de regras justas no processo de leilão e oportunidades justas para a consecução do objeti-vo são necessárias. contudo, desde que a transação seja conduzida de maneira imparcial, um desconto no preço e outros incentivos podem ser considerados como parte do valor justo de mercado.

6 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

Julie dunne, delverde and the WTo’ British Steel decision foresha-dow more conflict where the WTO Subsidies Agreement, privatiza-tion, and united States countervailing law intersect, 17 Am. u. Int’l l. Rev. (2001-2002).

david S. da Silva coenell, Maybe you can take it with you, after all: subsidies and privatization underdogs. countervailing duty law,25 law & pol’y Int’l Bus. (1993-1994).

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Emanuel L. Gordon, What is fair market value?, N.Y.U Tax L. Rev. 35 1952-1953.

Lime from Mexico, 54 Fed. Reg.1753 (Dep’t Comm), supra note 3, (17. January. 1989) at 1754-1755.

certain hot-Rolled lead and Bismuth carbon Steel products the uni-ted Kingdom, preliminary determination 57 Fed. Reg. 42974 (17. September. 1992).

united States – leaded Bars: GATT panel Report.

united States v. cartwright, 411 u.S. 546, 93 S. ct. 1713, 1716-17, 36 L. Ed. 2d 528, 73-1 U.S. Tax Cas. (CCH) 12,926 (1973).

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A TEoRIA dE dIREITo nATuRAl dE SAnTo TOMÁS DE AQUINO: UMA REFLEXÃO A PARTIR DAS cRÍTIcAS dE hAnS KElSEn Ao JuSnATuRAlISMo

JÚlIo AGuIAR dE olIVEIRABÁRBARA AlEncAR FERREIRA lESSA

Sumário

1. Introdução. 2. As objeções de hans Kelsen ao jusnatu-ralismo. 2.1 um direito “ideal” e “imutável”. 2.2 A “au-toridade legiferante”. 2.3 A “desnecessidade” do direito positivo. 2.4 A “falácia naturalista”. 3. A compreensão moderna de direito natural. 4. A compreensão clássica do direito natural. 4.1 o direito natural e o resgate do pensamento jurídico clássico. 4.2 A definição de direito (ius). 4.3 As definições de direito natural e de lei natu-ral. 5. conclusão. 6. Referências bibliográficas.

Resumo o objetivo do presente artigo é analisar a compreensão clássi-

ca de direito natural a partir da crítica de hans Kelsen à chamada “doutrina jusnaturalista”. o trabalho apresenta as razões pelas quais as objeções de Kelsen, embora adequadas às construções modernas (jusnaturalismo moderno ou jusracionalismo), não alcançam a teoria de Direito Natural elaborada por Santo Tomás de Aquino no contexto do realismo jurídico clássico. nesse sentido, evidencia-se o distan-ciamento entre o pensamento jusfilosófico moderno e o clássico, que

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levou à perda dos contextos que justificavam os conceitos utilizados no discurso moral moderno e contemporâneo. Por fim, o artigo defende a tese de que a teoria de direito natural de Santo Tomás de Aquino, baseada na filosofia antropológica de Aristóteles, corresponde a uma ela-boração genuína sobre a natureza humana e a realidade que a envolve.pAlAVRAS-chAVE: direito natural. Santo Tomás de Aquino. Aris-tóteles. natureza humana. Realismo jurídico clássico.

AbstractThe present article aims to examine the classic understanding

of natural law, starting from the criticism of hans Kelsen to the so-called “natural-law doctrine”. The work presents the reasons why Kelsen’s objections, although adequate to the modern constructions (modern jusnaturalism or jusrationalism), do not works against the theory of natural law elaborated by Thomas Aquinas in the context of the classic legal realism. Thus, the article highlights the gap between the modern and the classical jurisprudence, which led to the loss of the contexts that justified the concepts used in modern and contem-porary moral discourse. Finally, the article tries to demonstrate that the theory of natural law of St. Thomas Aquinas, based on the anthro-pological philosophy of Aristotle, is a genuine elaboration on human nature and the reality that involves it.KEYWoRdS: natural law. Thomas Aquinas. Aristotle. human nature. classic legal realism.

1 intRodução

O Direito Natural, ao longo dos séculos, foi, no contexto de di-ferentes tradições, compreendido de maneiras diversas. Somente du-rante o recente predomínio do positivismo jurídico, algo que não data de antes do século XIX, o Direito Natural foi visto como uma ficção a ser definitivamente eliminada, uma vez que o fenômeno jurídico de-veria ser compreendido exclusivamente como o conjunto de normas postas pelo Estado.

Hans Kelsen, em várias de suas obras, levou ao extremo essa compreensão do direito, dirigindo duras críticas às doutrinas jusna-

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turalistas (KElSEn, 2001; 2000; 1998). Em “A doutrina do direito Natural perante o tribunal da ciência”, Kelsen (2001) afirma que os teóricos do jusnaturalismo, visando a encontrar um critério absoluto para o problema da justiça, procuram deduzir da natureza as regras para o comportamento humano. para Kelsen, este não é um projeto aceitável pelo tribunal da ciência.

No entanto, é necessário verificar a extensão das objeções de Kelsen ao jusnaturalismo, investigando se, no conjunto daquilo que Kelsen compreende como “doutrina do direito natural”, pode ser in-cluído o pensamento jusfilosófico clássico.

Dessa forma, o que se pretende neste trabalho é, refletindo tanto sobre a concepção moderna de direito natural como sobre a concep-ção clássica de direito natural, especialmente considerando o direito natural em Santo Tomás de Aquino, defender a tese de que o verda-deiro objeto das críticas de Kelsen é a concepção moderna de direito natural, isto é, embora bem elaboradas na medida em que dirigidas às concepções modernas do direito natural (jusnaturalismo moderno ou jusracionalismo), as críticas de Kelsen não alcançam as elaborações clássicas do Direito Natural, mais especificamente, não alcançam a elaboração teórica do direito natural de Santo Tomás de Aquino.

2 AS oBJeçÕeS de HAnS keLSen Ao JuSnAtuRALiSMo

2.1 um direito “ideal” e “imutável”

Hans Kelsen, em “O problema da justiça”, afirma que a doutri-na do direito natural é uma “doutrina jurídica idealista”. da forma como Kelsen a compreende, a doutrina do Direito Natural afirma a existência de “um direito ideal, imutável, que identifica com a justiça” e identifica na natureza a fonte da qual emanam seus preceitos (KEL-SEn, 1998, p. 71).

Essa caracterização vem ao encontro das concepções modernas do direito natural. não obstante, para Santo Tomás de Aquino, o direito Natural não tem absolutamente nada de ideal. Pelo contrário, sua defi-nição, que tem raízes no pensamento aristotélico, envolve observação e estudo das manifestações da realidade. de acordo com Michel Villey:

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Realista e nem um pouco idealista, [Aristóteles] pratica um mé-todo de observação: à maneira de um botânico, colhe as experi-ências dos impérios e das polis de seu tempo. prenuncia o direito comparado e a sociologia do direito. o direito natural é um méto-do experimental (VILLEY, 2005, p. 54).

diferentemente das doutrinas modernas de direito natural, para Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, os preceitos naturais não são deduzidos de princípios a priori. nem Aristóteles nem Santo To-más de Aquino se deixam levar por abstrações. O Direito Natural, na perspectiva aristotélica, como também na tomista, é descrito com base em conceitos concretos, conceitos decorrentes da observação da realidade como, por exemplo, o de natureza humana. Se as caracte-rísticas da abstração e do idealismo podem ser atribuídas a alguma teoria jusnaturalista, elas podem ser atribuídas à descrição moderna do direito natural, não à clássica. Em suas diversas variantes, a teoria jurídica moderna esvaziou o conteúdo dos conceitos constitutivos da definição de Direito Natural, tornando-os ambíguos e afastando-se, definitivamente, da perspectiva antropológica do aristotelismo.

Sobre isso, Anthony Lisska afirma que um dos pressupostos para se compreender a teoria naturalista de Santo Tomás de Aquino é admitir a possibilidade de uma metafísica realista, consistente em uma verdadeira antropologia filosófica derivada de Aristóteles.

nesse sentido, Javier hervada sustenta que a teoria de Santo Tomás de Aquino enquadra-se no realismo jurídico clássico, pois se refere às “coisas naturalmente adequadas ao homem”. Assim, “o di-reito natural é o justo ou adequado à natureza humana pela natureza das coisas” (hERVAdA, 2008, p. 347). nessa perspectiva, o conhe-cimento do direito natural implica o conhecimento da verdadeira es-sência do homem e das coisas que constituem o mundo real.

outra característica conferida por Kelsen às teorias jusnatura-listas é a imutabilidade dos preceitos naturais. Também esse aspecto não pode, de maneira alguma, ser atribuído à descrição de Santo To-más do Direito Natural e da Lei Natural. Existe, sim, um núcleo inal-terável formado pelo preceito primário e geral da lei natural, da qual derivam os demais princípios. o homem, na medida em que possui a capacidade inata de conhecer juízos práticos, capta, infalivelmente,

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um princípio fundamental. Esse princípio, imutável sem dúvida, não diz outra coisa senão: o bem deve ser buscado e o mal evitado.

A partir desse primeiro preceito, o homem avalia, por meio da razão prática e, portanto, a posteriori, coisas como boas ou como más, conforme se dirijam ou não aos fins próprios do ser humano. Assim, esses preceitos secundários podem variar.

Sobre a variabilidade dos preceitos secundários da lei natural, Santo Tomás de Aquino afirma que,

[...] quanto aos primeiros princípios da lei da natureza, a lei da natureza é totalmente imutável. Quanto, porém, aos preceitos se-gundos, que dizemos ser como que conclusões próprias próximas dos primeiros princípios, assim a lei natural não muda sem que na maioria das vezes seja sempre reto o que a lei natural contém. pode, contudo, mudar em algo particular, e em poucos casos, em razão de algumas causas especiais que impedem a observância de tais preceitos, [...]. (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 5).

por derivarem da razão prática e não da razão especulativa, os preceitos naturais são mutáveis, e devem ser mutáveis. A razão es-peculativa volta-se para o necessário, o universal, e, portanto, para aquilo que é imutável.

A razão prática, contudo, trata das coisas contingentes, nas quais se compreendem as operações humanas, e assim, embora exista alguma necessidade nas coisas comuns, quanto mais se desce às próprias, tanto mais se acha a falha. dessa maneira, na especulati-va é a mesma a verdade em todos tanto nos princípios quanto nas conclusões, [...]. nas práticas, não é a mesma a verdade ou retidão prática em todos quanto às coisas próprias, mas apenas quanto às comuns, e naqueles junto dos quais a retidão nas coisas próprias é a mesma, não é igualmente conhecida em todos. (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 4).

A concepção clássica de razão prática é radicalmente diferente da concepção moderna, que tem em Kant seu principal expoente. A filosofia moral kantiana baseia-se num conceito de razão prática no qual não cabem aspectos sensíveis e empíricos. As leis morais são,

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nesse sentido, regras formuladas a priori e dependem, exclusivamen-te, da própria consciência do homem. Já a filosofia moral clássica pressupõe uma aproximação da ordem natural do mundo, na medida em que os preceitos naturais são derivados da razão prática e se en-contram vinculados à natureza do homem e das coisas. A razão prá-tica, na perspectiva aristotélica, vincula a sabedoria e a práxis, tendo como fator primordial a experiência e a observação da realidade.

por derivarem da razão prática e não da especulativa, o conhe-cimento da lei natural se produz em relação a questões contingentes e, portanto, pode variar conforme as circunstâncias do contexto histó-rico no qual se insere a conduta. Segundo Javier hervada:

para compreender o sentido desta historicidade – ou, em termos mais clássicos, mutabilidade -, é preciso observar que no pensa-mento tomista a historicidade que pode afetar os preceitos de lei natural é aquela que afeta os estados na natureza, visto que a lei natural é regra tirada da natureza: enquanto a natureza humana pode acidentalmente variar (idade, saúde ou doença, corrupção moral com as seqüelas da violência etc.), há uma possível adequa-ção da lei natural a esses estados (hERVAdA, 2008, p. 349).

Essa natureza contingente das escolhas morais responde a obje-ções dirigidas, principalmente por empiristas, à teoria do direito natu-ral de Aquino, segundo as quais as diferenças culturais entre os homens impediriam o reconhecimento de uma essência humana. para Santo To-más de Aquino, como a determinação dos preceitos naturais se dá por meio da razão prática, que diz respeito ao particular, admitir a conexão da lei natural com a natureza humana não implica dizer que a escolha entre o certo e o errado deva ser a mesma para todas as pessoas, em qualquer contexto. Neste sentido, as circunstâncias culturais das condu-tas deverão influenciar a determinação das escolhas morais.

críticas, no mesmo sentido, dirigidas à teoria clássica do direi-to Natural afirmam que admitir a existência de uma natureza humana implica negar a historicidade do homem. Tal afirmação baseia-se no fato de que o homem está em constante evolução, tanto ao longo dos tempos, quanto ao longo da vida. no entanto, segundo a teoria clássi-ca, reconhecer a existência de uma natureza humana não implica dizer

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que o homem não modifica sua existência ao longo do tempo, tam-pouco nega o fato de que os homens sejam diferentes entre si. É sim-plesmente admitir, a partir de uma observação primária da realidade, um fato incontestável: o de que existem certos elementos específicos inerentes ao ser humano, que permitem identificá-lo como homem.

2.2 A “autoridade legiferante”

hans Kelsen, em suas obras sobre as doutrinas de direito na-tural, afirma que o jusnaturalismo atribui à natureza a função de auto-ridade legiferante, como se os preceitos naturais fossem “normas que já nos são dadas na natureza anteriormente à sua possível fixação por atos da vontade humana, normas por sua própria essência invariáveis e imutáveis” (KELSEN, 1998, p. 71). Em outro texto, Kelsen procura demonstrar que estas doutrinas sustentam que seus preceitos derivam da autoridade de deus:

A doutrina do direito natural é caracterizada por um dualismo fundamental de direito positivo e direito natural. Acima do di-reito positivo, imperfeito, criado pelo homem, existe um Direito natural, perfeito (porque absolutamente justo), estabelecido por uma autoridade divina. (KElSEn, 2001, p. 142).

para Santo Tomás de Aquino, os preceitos naturais não derivam de nenhum tipo de autoridade – seja ela humana ou supra-humana. A lei natural vincula-se à natureza humana e sua força deriva da razão prática. dessa forma, a teoria clássica do direito natural não se apóia em qualquer tipo de voluntarismo, não sendo necessário, portanto, recorrer à vontade de nenhum ente dotado de autoridade para que se conheçam os princípios naturais. conforme assinala Anthony lisska, um dos pressupostos filosóficos desta teoria é: “a razão tem prioridade teórica sobre a vontade” (lISSKA, 1996, p. 85), (tradução nossa).

dessa forma, sob a perspectiva clássica, é equivocada a idéia de que as normas do Direito Natural preexistem ao homem, como tivessem sido criadas e postas por uma entidade superior, prontas para serem conhecidas por meio da razão. Segundo Roberto p. George, “[a

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lei natural] é intrínseca aos seres humanos; suas referências funda-mentais são os bens humanos que constituem o bem-estar e a com-pletude humanos e, precisamente como tais, são causas para a ação” (GEoRGE, 2004, p. 241), (tradução nossa).

Além disso, a lei natural, entendida como participação da lei eterna na criatura racional, não deve ser compreendida como se os seus preceitos estivessem impressos no ser humano. o que está im-presso é a capacidade de conhecer tais preceitos. Isto pressupõe, por-tanto, que o homem conheça os princípios naturais de forma ativa, por meio da razão prática, e não apenas os deduza, passivamente.

2.3 A “desnecessidade” do direito positivo

cumpre esclarecer também a relação entre direito natural e direito positivo na teoria jurídica clássica. Segundo hans Kelsen, as teorias jusnaturalistas invocam a existência de um Direito natural su-perior e perfeito, ao lado do direito positivo. A partir disso, o autor questiona a necessidade das leis positivas, já que existe um Direito natural, constituído de normas universais:

Se é possível – como afirma a doutrina do Direito natural – descobrir as regras do direito natural por meio de uma análise da natureza; [...] então o Direito positivo é inteiramente supérfluo. Diante da existên-cia de um ordenamento justo da sociedade, inteligível na natureza, a atividade dos legisladores positivos equivale a uma tentativa tola de fornecer iluminação artificial em pleno sol (KELSEN, 2001, p. 142).

na doutrina tomista, é evidente a necessidade da lei humana (positiva). Santo Tomás de Aquino argumenta que é necessário que os homens estabeleçam leis para sua própria paz e para o desenvol-vimento das virtudes (Suma Teológica, Ia, IIae, q. 95, a. 1). Robert p. George expõe duas razões pelas quais Santo Tomás de Aquino defen-de a existência de leis postas pelos homens:

Aquino sustenta que a lei positiva é necessária tanto porque os se-res humanos, algumas vezes, precisam da ameaça da punição para

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impedi-los de fazer algo que a lei natural já proíbe (ou requer que eles façam algo que ela prescreve) como uma questão de justiça, como também porque estipulações impositivas são freqüentemen-te necessárias para coordenar a ação para o fim do bem comum (GEoRGE, 2004, p. 250, tradução nossa).

E, mais do que isso, as leis humanas devem ser derivadas dos princípios da lei natural. Santo Tomás de Aquino argumenta da se-guinte forma:

nas coisas humanas, diz-se que algo é justo pelo fato de que é reto segundo a regra da razão. A primeira regra da razão, entretanto, é a lei da natureza, como fica claro pelo acima dito. Portanto, toda lei humanamente imposta tem tanto de razão de lei quanto deriva da lei da natureza. Se, contudo, em algo discorda da lei natural, já não será lei, mas corrupção de lei. (Suma Teológica, Ia IIae, q. 95, a. 2).

2.4 A “falácia naturalista”

uma objeção comum às teorias de direito natural, e também presente na crítica de Kelsen, sustenta que as teorias jusnaturalistas incorrem na chamada “falácia naturalista”. Isto quer dizer que, ao re-alizarem a “dedução” de valores a partir da natureza (mundo fático), isto é, ao derivarem um dever-ser do ser, cometem um erro lógico:

o valor não é imanente à realidade natural. portanto, o valor não pode ser deduzido da realidade. não se conclui, do fato de que alguma coisa é, que ela deva ser ou deva ser feita, ou que não deva ser ou não deva ser feita. (...) Não existe nenhuma inferência lógica a partir do ‘é’ para o ‘dever-ser’, da realidade natural para o valor moral ou jurídico (KElSEn, 2001, p. 140).

no entanto, essa objeção não pode ser imputada à teoria natura-lista clássica. Seguindo a ética aristotélica, os valores – isto é, os fins ou bens buscados pelo homem – não se encontram em uma ordem dis-tinta do mundo fático. Esses bens ou valores (“ordem do dever-ser”) nada mais são do que desdobramentos da realidade (“ordem do ser”),

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pois são os fins aos quais se dirigem as inclinações componentes da natureza humana.

Alasdair MacIntyre, em Depois da Virtude, afirma que os juízos sobre o que é bom ou justo, na ética aristotélica, são “declarações factuais”, baseadas em uma biologia metafísica e, por isso, não cor-respondem a nenhuma falácia:

os seres humanos, bem como os membros de todas as outras es-pécies, têm uma natureza específica; e essa natureza é tal que eles têm certos objetivos e metas, de modo que se movimentam pela natureza rumo a um telos específico. O bem é definido segundo suas características específicas (MACINTYRE, 1980, p. 253).

Anthony lisska (1996) desenvolve o mesmo argumento, sus-tentando que a dicotomia fato/valor não é adequada à descrição clás-sica de direito natural, pelo fato de esta implicar uma análise meta-física realista da natureza humana. Segundo lisska, compreendendo a natureza humana como um conjunto de propriedades dinâmicas e desenvolventes em direção a determinados fins (bens), não se pode inferir que um valor foi derivado de um fato:

Não há fato/valor dicotomia porque o ‘valor’ – neste caso, o ‘fim’ do processo natural – é o resultado do normal desenvolvimento do fato – neste caso, a propriedade disposicional. não há nenhuma bifurcação radical entre fato e valor porque o valor – i.e. o ‘bem’ – nada mais é do que o desenvolvimento do processo estruturado pela natureza do conjunto de disposições. Segue-se, então, que um valor não é derivado de um fato através do processo de ‘adição’ de um valor ao fato. (...) o ‘fato’ desenvolve-se para o ‘valor’, tudo no plano natural. (lISSKA, 1996, p. 199), (tradução nossa).

Michel Villey (2005) demonstra que a doutrina aristotélica, na qual Santo Tomás se baseia, oferece uma noção de natureza muito di-ferente daquela desenvolvida pelos teóricos modernos neokantianos. A natureza, entendida como princípio da operação, não é um dado estático, como a modernidade a compreende. Sua compreensão exige, também, o estudo das causas finais, ou seja, os fins aos quais se desti-nam todas as coisas. nesse sentido, a observação da natureza constitui

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uma atividade valorativa, na medida em que exige a diferenciação entre aquilo que é conforme os fins e aquilo que, por desviar-se de sua finalidade, é ruim ou injusto. Partindo dessa compreensão de nature-za, é plenamente possível estabelecer um “dever-ser” a partir de um “ser”, já que os valores são uma decorrência necessária da natureza.

A afirmação de que os juízos de valor decorrem, naturalmente, do mundo fático é perfeitamente compreensível, sob a perspectiva da filosofia clássica. No entanto, é algo que os teóricos modernos e seus seguidores não aceitam. na verdade, é uma idéia que o pensamento contemporâneo, no contexto do liberalismo transformado em tradição (MAcInTYRE, 1991) não consegue assimilar bem. nesse sentido, é preciso compreender as objeções de Kelsen às teorias jusnaturalistas dentro do contexto específico da filosofia moral moderna e contempo-rânea, isto é, dentro da tradição liberal. Suas críticas, do ponto de vista da tradição aristotélico-tomista, são a expressão da desordem em que se encontram as idéias e as discussões morais na Modernidade.

Alasdair MacIntyre (1981) sustenta que aconteceu, na passagem da Idade Média para a Modernidade, uma ruptura com a tradição aris-totélica, levando à perda dos contextos que justificavam os conceitos utilizados no debate moral. As tentativas mal-sucedidas de justificar racionalmente os juízos morais culminam com a aceitação geral e im-plícita da tese emotivista. A tese emotivista defende que “não existe e não pode existir justificativa racional válida para qualquer afirmação da existência de padrões morais objetivos e impessoais e, portanto, que tais padrões não existem” (MACINTYRE, 1991, p. 43). E mais, segundo MacIntyre, a nossa cultura absorveu essa tese a tal ponto que podemos afirmar que vivemos em uma cultura predominantemente emotivista (MAcInTYRE, 1991, p. 48).

dessa forma, prepondera a tese de que o que é certo ou erra-do depende das convicções pessoais de cada um. percebe-se, portanto, nas críticas de Kelsen às teses jusnaturalistas, a presença constante dos pressupostos emotivistas. Ao tentar demonstrar que o problema da exis-tência da justiça absoluta é insolúvel, não só pelas doutrinas jusnatura-listas, como também pelas positivistas “relativistas”, Kelsen afirma:

A circunstância de que este relativismo nos ‘deixa em apuros’ sig-nifica que ele nos obriga a tomar consciência de que a decisão da

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questão nos pertence, porque a decisão da questão de saber o que é justo e o que é injusto depende da escolha da norma de justiça que nós tomamos para base de nosso juízo de valor e, por isso, pode receber respostas muito diversas; [...] É este o verdadeiro sentido de autonomia da moral (KElSEn, 1998, p. 114).

Outra passagem deixa evidente a influência do emotivismo no pensamento kelseniano. o argumento de Kelsen contra a fundamen-tação do direito natural a partir das inclinações naturais do homem baseia-se exclusivamente na sua crença na inexistência de padrões morais objetivos:

Se se considera um impulso como dirigido a um fim, se se admite que o ser ao qual é inato o impulso visa, com o seu impulso, rea-lizar um fim, este só pode ser um fim subjetivo, isto é, não um fim que deva ser realizado, não um fim objetivo, mas apenas um fim que este ser pretende realizar. (KElSEn, 1998, p. 81).

Somente o resgate à ética clássica é capaz de recuperar os pres-supostos da filosofia moral aristotélica a fim de demonstrar que é pos-sível justificar racional e impessoalmente os juízos morais. É o que a teoria do direito natural de Santo Tomás de Aquino evidencia ao apoiar-se em conceitos como o de natureza humana, inclinações na-turais, bem, justo, virtude. É possível, dessa forma, justificar a exis-tência de normas de condutas justas. de acordo com MacIntyre, na perspectiva clássica,

[...] ser justo é dar a cada pessoa o que ela merece; e os pressu-postos sociais do florescimento da virtude da justiça numa comu-nidade são, portanto, dois: que haja critérios racionais de mérito e que haja um acordo quanto a quais sejam esses critérios (MAcIn-TYRE, 1981, p. 259).

3 A CoMpReenSão ModeRnA de diReito nAtuRAL

A partir da análise das principais objeções de hans Kelsen às teorias jusnaturalistas, não é difícil constatar que elas não atingem a

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doutrina clássica de Direito Natural. Elas se dirigem, exclusivamente, às teoria modernas e, mais do que isso, a crítica, como um todo, reflete como a Modernidade compreende o fenômeno jurídico e o quanto essa compreensão se afastou do pensamento jurídico e filosófico clássicos.

o pensamento moderno entende o direito como nada mais do que um conjunto de normas postas pelo Estado. o direito natural, aos poucos, é reduzido a uma filosofia e seus preceitos se tornam prin-cípios a priori deduzidos da razão. Mas essa compreensão do direito natural é, não apenas recente em termos históricos, como também desconectada da tradição clássica do direito natural.

desde a antigüidade, em Aristóteles, passando pela jurisprudên-cia romana e culminando em Santo Tomás de Aquino, o entendimento predominante era o de que o direito natural consistiam uma parte do sistema jurídico, ou seja, era direito vigente. Apenas recentemente, com o surgimento do positivismo jurídico, inicia-se um processo de verdadeira distorção da concepção de direito natural.

Esse processo começa com o humanismo jurídico, a partir do século XVI, depois de um período no qual o tema esteve esquecido. hugo Grócio, rejeitando o realismo jurídico de Aristóteles, oferece uma concepção imanentista do direito natural, segundo a qual o justo não está nas coisas, mas na razão do homem. As regras jurídicas só podem ser deduzidas da razão, que é essência da natureza humana (VIllEY, 2005, p. 651). Porém, a natureza humana, aqui, deixa de ter o sentido aristotélico de natureza externa, para passar a se referir apenas à nature-za interna do homem, sem qualquer conexão com a ordem natural das coisas (VIllEY, 2005, p. 651). Essa deformação do conceito de natu-reza humana é uma das noções nas quais as escolas de direito natural subseqüentes irão se apoiar para construir suas teorias.

Segundo Javier hervada, é com a Escola moderna ou Escola Racionalista (locke, hobbes, Rousseau, dentre outros) que a compre-ensão do direito natural passa por uma radical transformação:

o que buscaram foi um sistema de direito de acordo com a razão, deduzido dela, que em muitos tinha a tendência reformista em re-lação ao direito estabelecido. Surgiu assim a idéia – ausente na época anterior – da existência de dois sistemas jurídicos: o natural e o positivo. Para as coordenadas do século XVIII, isso supunha

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um direito racional, obtido à luz da razão, oposto até certo ponto ao direito tradicional (hERVAdA, 2008, p. 25).

hervada acrescenta que, sob essa perspectiva, os preceitos na-turais, partem de princípios supremos inerentes ao traço fundamental da natureza humana. E esse traço, que consistia na base do sistema do direito natural, poderia variar conforme a escola ou autor: “a sociabi-lidade, a fragilidade do homem no estado natural, a liberdade natural” (hERVAdA, 2008, p. 25). nota-se o esvaziamento do conceito de natureza humana, que deixa de possuir o caráter concreto e ontológico que a filosofia clássica lhe atribuía, para se tornar um termo vazio que, na verdade, pode significar qualquer coisa.

o direito natural passa a ser confundido com a moral. Essa mudança de conteúdo se concretiza com a filosofia moral kantiana. para Kant, os preceitos naturais são princípios a priori do direito, sem qualquer conexão com elementos empíricos. A dedução dos prin-cípios naturais passa a ser uma atividade meramente lógica e racio-nal. o direito natural, como um conjunto de princípios orientadores da conduta humana, se torna filosofia e não uma parte do sistema jurídico. E essa nova compreensão harmoniza-se com a corrente de pensamento que emergia, a partir de Hobbes, sustentando a existência exclusiva de normas postas pelo Estado: o positivismo jurídico.

Somente recorrendo ao pensamento clássico, é possível ter a percepção de que o direito natural, conforme entendem os teóricos modernos, é, na verdade, uma distorção do direito natural clássico. Seria inconcebível, no contexto da teoria aristotélica, sequer pensar a possibilidade de dedução dos preceitos naturais diretamente da razão pura do homem. um dos motivos para isso é o próprio método utili-zado por Aristóteles, que é oposto ao moderno, derivado de descartes e Kant. de acordo com Anthony lisska:

Resumidamente, descartes começa com um método epistemoló-gico. Ele enfatiza o papel que idéias claras e distintas exercem na natureza da investigação filosófica. O resultado deste começo de-termina sua análise fundamental. Aristóteles e Aquino, por outro lado, começam com o método metafísico; a epistemologia deles é construída sobre a metafísica. descartes procede na direção opos-

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ta. [...] Este argumento separa radicalmente muitos filósofos gre-gos e medievais dos seus semelhantes na recente filosofia moderna (lISSKA, 1996, p. 50, tradução nossa).

Assim, segundo o método cartesiano, o estudo de um objeto depende, antes de tudo, da maneira como ele é conhecido (método epistemológico). privilegia-se, dessa forma, o “sujeito” que deve par-tir de idéias claras e precisas. Já para Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, a observação do objeto (método metafísico) precede seu co-nhecimento. Tanto é que o direito natural, na perspectiva clássica, é conhecido a partir da observação da realidade, expressa na polis, o que não ocorre na perspectiva moderna.

4 A CoMpReenSão CLÁSSiCA do diReito nAtuRAL

Ao analisar as críticas de Kelsen às teorias de direito natural e constatar que sua compreensão do jusnaturalismo se reduz ao jusnatu-ralismo moderno ou jusracionalismo, foi possível esclarecer algumas características do pensamento de Santo Tomás de Aquino sobre a ques-tão. dessa forma, evitam-se possíveis equívocos quanto à utilização de conceitos que foram utilizados, durante toda a Modernidade, com o sentido completamente diferente do que o atribuído pelo pensamento clássico. Esclarecidas essas questões, pode-se passar à definição de Di-reito natural e lei natural segundo Santo Tomás de Aquino.

4.1 o direito natural e o resgate do pensamento jurídico clássico

A análise do direito natural volta a ter importância no campo da filosofia moral. No entanto, as discussões travadas nesse sentido, durante a Modernidade, ainda não foram ainda capazes de chegar a conclusões consistentes. Segundo a tese de MacIntyre, a linguagem da moralidade encontra-se fragmentada, destruída por uma verdadeira catástrofe, que a levou à perda dos contextos que localizavam e jus-tificavam os conceitos utilizados no discurso moral contemporâneo. Por isto, somente o resgate à ética clássica é capaz de contextualizar

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o debate e fornecer respostas a questões elementares sobre a vida e o comportamento humanos.

Rosalind hursthouse (1999), diante de possíveis indagações so-bre o porquê dessa redescoberta, enumera temas que a filosofia moral moderna, polarizada por deontologistas (inspirados em Kant) e utili-taristas (derivados do pensamento de Bentham e J. S. Mill), ignorou ou colocou em segundo plano:

motivos e caráter moral; [...] educação moral, sabedoria moral ou discernimento, amizade e relações de família, um conceito pro-fundo de felicidade, o papel das emoções na nossa vida moral, e questões sobre que tipo de pessoa devo ser e como devo viver mi-nha vida. E onde estes temas são discutidos? Pasmem, em Platão e Aristóteles (huRSThouSE, 1999, p. 3, tradução nossa).

A tradição do pensamento clássico, representada por Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, compreende o direito natural como uma parte do direito vigente, ao lado do direito positivo. nisso reside uma diferença fundamental entre a compreensão moderna e a clássi-ca. por isso, antes de analisar o conceito de direito natural, é preciso esclarecer a concepção de direito, na perspectiva clássica.

4.2 A definição de Direito (ius)

o direito, na concepção aristotélica e tomista, tem um conteúdo bem distinto daquele que lhe é atribuído pelos teóricos modernos. A de-finição de Direito, segundo o pensamento jurídico moderno, está intrin-secamente ligada ao poder e à vontade do soberano, que se manifestam por meio de leis. No entanto, para filósofos como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, o direito não se reduz a um sistema de normas jurí-dicas postas. A redução do Direito à lei é um fenômeno exclusivamente moderno, difundido e consolidado pelo positivismo jurídico.

na doutrina jurídica clássica, o direito (ius), em seu sentido prin-cipal, não tem qualquer cunho potestativo e vincula-se diretamente com a virtude da justiça. Ius significa, primordialmente, a coisa justa, o suum na fórmula romana da justiça “suum cuique tribuere” (a cada o que é

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seu). É, portanto, objeto da virtude da justiça, ou seja, a coisa na qual recai a ação justa. A lei, por sua vez, é uma das dimensões do fenômeno jurídico e consiste em certa regra ou medida do direito.

o fenômeno jurídico, assim compreendido, refere-se a coisas concretas, conforme destaca Javier hervada:

Quando falamos da justiça e do justo, não estamos fazendo re-ferência a idéias mais ou menos vagas ou não-concretas. (...) o justo é o cumprimento preciso das leis, o pagamento exato pelo devedor, a pena aplicada ao delito de acordo com as leis penais, o pagamento do salário ajustado etc. o justo é, por sua natureza, uma coisa concreta e determinada. E, se algumas vezes se apre-senta como obscura ou difícil, a coisa é determinável mediante o processo judicial (hERVAdA, 2008, p. 143).

Essa definição de Direito implica a vinculação da arte jurídica com duas virtudes: a justiça e a prudência. A virtude moral da jus-tiça, segundo Santo Tomás de Aquino, “é o habitus, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito”. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 58, a. 1).

A prudência é uma virtude intelectual, que consiste na reta ra-zão que orienta o agir humano:

(...) como e por quais caminhos o homem que age pode atingir o meio-termo da razão compete à virtude da prudência. com efeito, ainda que atingir o meio-termo seja o fim da virtude moral, no en-tanto este meio-termo não é encontrado senão pela reta disposição dos meios. (Suma Teológica, IIa IIae, q. 47, a. 7).

nessa perspectiva, arte jurídica é a arte própria do homem jus-to e prudente, que quer e sabe dar a cada um o que lhe é devido. de acordo com hervada:

Se a ação jurídica ou ação justa consiste em dar a cada um o seu, seu direito, o qual é obra da justiça – baseada na vontade –, o saber agir corretamente – saber dar a cada um o seu no momento e prazo adequados – é próprio da prudência jurídica ou jurispru-dência (hERVAdA, 2008, p. 58).

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Conforme alerta Anthony Lisska, essa definição de ius possui uma diferença fundamental em relação ao conceito moderno de di-reito. uma das dicotomias fundamentais da doutrina jurídica moderna é a distinção entre direito objetivo e direito subjetivo. Este último refere-se a uma prerrogativa individual, isto é, a uma condição que permite alguém reivindicar algo em face de outrem. na perspectiva clássica, ius não possui esse caráter subjetivo e “refere-se a um objeti-vo estado das coisas” (lISSKA, 1996, p. 229, tradução nossa).

4.3 As definições de Direito Natural e de Lei Natural

como já foi dito, um dos pressupostos fundamentais da teoria do direito natural de Santo Tomás de Aquino é o reconhecimento da necessidade de uma investigação metafísica acerca da natureza huma-na. Nesse sentido, admite-se que existam certas qualidades essenciais pertencentes ao ser humano que o identificam como tal.

Essas substâncias primárias, enquanto disposições, não são es-táticas, mas estão em pleno desenvolvimento. A natureza humana é constituída por inclinações naturais que se orientam sempre em dire-ção à realização de um fim (telos), consistente em um bem. O fim su-premo buscado pelo homem, de acordo com suas inclinações naturais, é a beatitudo ou, na terminologia aristotélica, a eudaimonia, traduzida como felicidade ou “florescimento”.

Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, apresenta um es-tudo aprofundado sobre o direito natural (ius naturale) e sobre a lei natural (lex naturalis). no Tratado da Justiça (IIa IIae, q. 57), o Aqui-nate, a partir da definição de ius como o justo ou aquilo que é adequa-do e proporcionado a outra coisa, afirma que existem duas maneiras pelas quais uma coisa pode ser adequada ao homem: a primeira de acordo com a natureza da coisa e a segunda por convenção ou comum acordo. uma refere-se ao direito natural e a outra ao direito positivo. o direito natural é, nesse sentido, um conjunto ordenado de princí-pios da razão prática.

no Tratado das leis (Ia IIae, q. 90 ss.), Santo Tomás de Aquino elucida sobre o conceito de lei (lex) e suas quatro manifestações: lei

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Eterna (lex aeterna), lei natural (lex naturalis), lei divina (lex divi-na) e lei positiva (lex humana). Em primeiro lugar, cumpre dizer que a lex é um ordenamento da razão voltado para o bem comum e pro-mulgada por quem tem o cuidado da comunidade. nessa perspectiva, a lei, enquanto medida ou regra do direito, deve conduzir os homens, guiando suas ações em direção ao fim supremo – felicidade ou bem-estar – da comunidade.

Nesse contexto, a Lei Natural é a participação da lei Eterna na criatura racional sendo esta última, por sua vez, um conjunto de arqué-tipos, análogo ao mundo das Idéias, que são encontrados como as idéias divinas na mente de deus (lISSKA, 1996, p. 92). As inclinações natu-rais do ser humano resultam da impressão (impressione) da lei eterna na natureza humana e orientam o ser humano a participar da divina provi-dência. “(...) a alma racional é a própria forma do homem, é inerente a qualquer homem a inclinação natural a que aja segundo a razão. E isso é agir segundo a virtude” (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 3).

os preceitos naturais são “os princípios primeiros das obras hu-manas” (Suma Teológica, Ia IIae, q. 94, a. 1) e o primeiro destes é: o bem deve ser perseguido e o mal evitado. O bem é, assim, o fim buscado pela ação humana, por meio da razão prática. dessa forma, o que nos faz distinguir o bem e o mal nada mais é do que a impressão da luz divina nos seres humanos, ou seja, a lei natural.

desse primeiro preceito são derivados, por meio da razão, todos os demais. no entanto, essa derivação não é uma atividade meramen-te passiva por parte do homem. Javier hervada alerta que o que é impresso na natureza humana não são os preceitos naturais em si, mas “a capacidade de raciocínio do intelecto humano e a virtude da sindé-rese” (hERVAdA, 2008, p. 348), que permitem captá-los.

o direito natural é, nesse sentido, um conjunto ordenado de princípios da razão, que dizem respeito ao comportamento humano. por se conectarem à razão prática, e não à teórica, esses princípios naturais referem-se a questões contingentes e a ações a serem leva-das a efeito em um contexto particular. Assim, quanto à razão prá-tica e aos silogismos que a constituem, “há sempre um contexto de incerteza e individualidade na conclusão” (lISSKA, 1996, p. 213, tradução nossa).

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5 ConCLuSão

Baseando-se no realismo das teorias jurídicas clássicas, o di-reito natural consiste em uma parte do ordenamento jurídico vigente. Ele não pode ser entendido como um conjunto de preceitos mera-mente abstratos que apenas orienta o sistema jurídico positivo. para Javier hervada (2008), o direito natural é o “núcleo de juridicidade natural” inerente a todo sistema jurídico. E é esse núcleo que possibi-lita a existência do Direito Positivo. As normas postas devem, assim, se conformar aos preceitos de direito natural obtidos conforme as inclinações naturais humanas.

A reflexão de Santo Tomás de Aquino sobre o ser humano e os fenômenos a ele referentes baseia-se na contemplação da realidade, isto é, naquilo que as coisas são, e não apenas naquilo que o homem produz. A filosofia moderna parece hostilizar o conhecimento que se baseia nesta atividade da contemplação, dando uma primazia injusti-ficada àquilo que é cultural. E isto tem reflexos no fenômeno jurídico: para as teorias modernas, o direito reduz-se àquilo que é posto pelo homem – o direito positivo. Assim, as teorias jurídicas da moderni-dade resistem em admitir a existência de um Direito Natural válido e vigente, que integraria a totalidade do fenômeno jurídico, juntamente com o direito positivo.

Além disso, uma característica preponderante do pensamento jurídico moderno é a separação entre os domínios da realidade e da norma. Hans Kelsen, exemplo de teórico do Direito capaz de reunir e levar ao extremo, com coerência e profundidade, as características típicas da Modernidade, acredita na validade da premissa na qual se afirma que: “da circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo deve ser se não segue que algo seja” (KElSEn, 2003, p. 6).

Essa premissa não existia – e não poderia existir – no pensa-mento clássico. para Aristóteles era perfeitamente possível derivar um valor a partir da realidade. As normas de conduta humana eram uma decorrência natural do desenvolvimento da natureza humana em direção a determinados fins. A ruptura do pensamento moderno com a ética aristotélica levou à incapacidade de compreender essa noção dinâmica da realidade. Quando, nas teorias jusnaturalistas modernas,

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os preceitos naturais são derivados da natureza, esta já não mais se refere a uma ordem externa, mas à natureza individual do homem e à sua razão interna, que se quer libertada de todas suas “superstições”.

E é exatamente dessa incapacidade de compreender que os va-lores podem decorrer naturalmente da realidade e, por isso, terem um fundamento objetivo e impessoal, que deriva a necessidade das teorias modernas em atribuir o fundamento das normas à vontade de alguém ou de uma coisa. conforme Villey, tendo em vista que o direito, na perspectiva moderna, não se define como o justo e, portanto, não é en-contrado nas coisas, é preciso descobrir outra fonte (VIllEY, 2005).

Assim, as teorias jusnaturalistas modernas, distorcendo os con-ceitos aristotélicos, percorreram vias diferentes, sem encontrarem uma solução: ou dotam a natureza de vontade; ou atribuem à divindade a autoridade de criar e impor as leis naturais; ou mesmo atribuem à ra-zão pura humana a capacidade de deduzir suas próprias normas, sem qualquer compromisso com o mundo exterior. Por outro lado, isso fica ainda mais explícito no pensamento daqueles que nem mesmo admitem a existência de um direito natural, isto é, o pensamento jus-positivista. o direito é apenas um: aquele que é posto pelos homens. Admitir que existe algo além disso, seria uma forma de desvirtuar o fenômeno jurídico.

Porém, as falhas do pensamento jurídico moderno estão sendo ex-plicitadas. A partir da compreensão do pensamento jurídico clássico, é possível perceber que, se existe alguma distorção do fenômeno jurídico, ela foi empreendida pelos teóricos modernos. As críticas de Kelsen às doutrinas de direito natural são apenas uma amostra dessa distorção.

desde Aristóteles e Santo Tomás de Aquino até os dias atuais, muitos conceitos e noções em torno do direito se perderam. E muitas outras teorias triunfaram, abolindo todo o contexto do pensamento clássico do imaginário dos juristas atuais. As teorias jusnaturalistas modernas revelam-se, assim, simulacros do verdadeiro direito na-tural (VIllEY, 2005, p. 752). Apesar de utilizarem conceitos como natureza humana e razão prática, seus sentidos e contextos foram per-didos no passado. E para suprir o vazio deixado por esse afastamento, foram criados verdadeiros dogmas – como a separação entre valores e realidade, a redução do direito à norma posta pelo Estado, o indivi-dualismo – dos quais é preciso, hoje, se desvencilhar.

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6 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

AQuIno, Santo Tomás de. Suma Teológica: 1ª parte da 2ª parte. v. 4. 2. ed. Tradução: Alexandre Corrêa. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1980.

AQuIno, Santo Tomás de. Suma Teológica: 2ª parte da 2ª parte. v. 5. 2. ed. Tradução: Alexandre Corrêa. Porto Alegre: Livraria Sulinaporto Alegre: livraria Sulina Editora, 1980a.

GEoRGE, Robert p. Kelsen and Aquinas on the natural law doctrine. In: GoYETTE, John; lATKoVIc, Mark S.; MYERS, Richard S. St. Thomas Aquinas & the natural law tradition: contemporary perspec-tives. Washington: The catholic university of America press, 2004.

huRSThouSE, Rosalind. On virtue ethics. Oxford: Oxford Univer-sity press, 1999.

KElSEn, hans. O problema da justiça. Tradução João Baptista Ma-chado. 3. ed. São paulo: Martins Fontes, 1998.

KElSEn, hans. A ilusão da justiça. Tradução Sérgio Tellaroli. 3. ed. São paulo: Martins Fontes, 2000.

KElSEn, hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução luís carlos Borges. 3. ed. São paulo: Martins Fontes, 2001.

KElSEn, hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Ma-chado. 6. ed. São paulo: Martins Fontes, 2003.São paulo: Martins Fontes, 2003.

lISSKA, Anthony. Aquina’s theory of natural law: An analytic recon-struction. Oxford: Oxford University Press, 1996.Oxford: Oxford University Press, 1996.

MAcInTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Tradução Jussara Simões; re-visão técnica hélder Buenos Aires de carvalho. Bauru: EduSc, 2001.

VIllEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tra-dução claudia Berliner. São paulo: Martins Fontes, 2005.

VIllEY, Michel. Filosofia do direito: definições e fins do direito: os meios do direito. Tradução Marcia Valéria Martinez de Aguiar. 2. ed. São paulo: Martins Fontes, 2008.

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InTRoduÇÃo AoS ASpEcToS JuRÍdIcoS doS dAdoS GEnÉTIcoS huMAnoS

dAdoS GEnÉTIcoS coMo dIREIToS dE pERSonAlIdAdE E SuA pRoTEÇÃo JuRÍdIcA

BRuno ToRQuATo dE olIVEIRA nAVESAlInE MARIA polloM FRAnco nAVES

Sumário

1. considerações iniciais. 2. projeto Genoma humano. 3. os dados genéticos humanos. 3.1 declarações inter-nacionais. 3.2 A lei de Biossegurança – lei n. 11.105, de 24 de março de 2005 – e os projetos de lei no Brasil. 4. dados genéticos como direitos de personalidade e sua proteção. 5. Referências bibliográficas.

ResumoOs direitos de personalidade figuram como situações subjetivas

em que se protegem os diversos aspectos da pessoa humana; são a própria projeção da pessoa no mundo, abrangendo suas característi-cas peculiares, que a fazem única e individualizada. A essa categoria integraram-se, recentemente, os dados genéticos humanos, que hoje são passíveis de assimilação pelo conhecimento científico. Dados genéticos são informações constantes do material genético, dnA e RnA, capazes de revelar a estrutura do ser humano, seu parentes-co, características e, até mesmo, futuras enfermidades que poderão desenvolver-se. Não há, no Direito brasileiro, menção específica aos

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 331-352 2008

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dados genéticos, todavia, os mecanismos internacionais de proteção, por meio de convenções e declarações internacionais, bem como os instrumentos de tutela dos direitos de personalidade asseguram am-plas garantias aos dados genéticos. neste trabalho apresentam-se a re-gulamentação e os instrumentos de proteção que guarnecem os dados genéticos humanos e, por via de conseqüência, seus desdobramentos, como a identidade genética, a intimidade genética, a manipulação de material genético e seus efeitos patrimoniais, como o patenteamento de material genético.pAlAVRAS-chAVE: dados Genéticos. direitos de personalidade. lei de Biossegurança. declarações Internacionais. Tutela Inibitória.declarações Internacionais. Tutela Inibitória. Tutela Ressarcitória.

AbstractThe rights of personality appear as subjective situations in

which the various aspects of the human person are protected. They are the own projection of the person in the world, including their characteristics, which make them unique and individualized. In this category were included, recently, the human genetic data, which to-day are likely to assimilate the scientific knowledge. The genetic data are informations on genetic material, dnA and RnA, capa-ble of revealing the structure of the human being, his kinship, cha-racteristics, and even future illnesses that may be developped. In Brazilian law, there is no specific reference to the genetic data, ho-wever, the international mechanisms of protection by means of in-ternational conventions and declarations, as well as the instruments of protection of rights of personality provide broad guarantees to the genetic data. This paper presents the in/struments of regulation and protection of human genetic data and, by consequence, their developments, such as genetic identity, genetic privacy, the manipu-lation of genetic material and the property and patenting of genetic material.KEYWoRdS: Genetic data. Rights of personality. Biosafety law. International declarations. Inhibitory protection lawsuit. Repair pro-tection lawsuit.

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1 ConSideRAçÕeS iniCiAiS

Já se tornou lugar-comum descrever as transformações que os avanços da Biotecnologia e do desenvolvimento das pesquisas gené-ticas podem acarretar. Pode-se mesmo afirmar que a persona pós-mo-derna ressoa além da pessoa física do Estado liberal, que desconhecia aspectos que hoje assumem papel fundamental na constituição de sua personalidade. Esse é o caso do patrimônio genético humano, que se elevou como o bem jurídico que mais graves conseqüências trazem para a pessoa humana.

Enquanto a Genética avança rapidamente, o direito persegue, sofregamente, seus passos. no Brasil, há um projeto de lei, ainda em tramitação, que pretende tipificar as condutas ilícitas de discriminação genética – o projeto de lei n. 149, de 1997 –, mas que não encontrou apelo político suficiente para ir a Plenário.

Até há pouco tempo, trabalhos jurídicos envolvendo Genética restringiam-se ao tema da clonagem humana, em razão da perplexi-dade das conseqüências do uso de sua técnica. Todavia, muitas são as vertentes que podem ser trabalhadas sob o enfoque da manipulação genética. no Brasil, o assunto ganhou mais relevo durante o processo de elaboração e votação da Lei de Biossegurança, embora seu texto final tenha se revelado extremamente limitado.

A proteção jurídica dos dados genéticos é tema fundamental para a reconstrução da teoria dos direitos de personalidade no Esta-do democrático de direito. Seu tratamento e interpretação jurídicos envolvem amplas discussões, que poderão modificar por completo a relação do direito com a Ética e com a Medicina.

É claro, portanto, que o conhecimento da técnica de mapeamento e manipulação genética envolve riscos e, nesse ponto, a proteção jurídica dos dados genéticos deve resguardar a dignidade da pessoa humana.

Este trabalho pretende analisar tão-somente os aspectos introdu-tórios para localização dos dados genéticos humanos no ordenamento jurídico e antever formas de proteção. para tanto, iniciaremos com uma exposição do Projeto Genoma Humano, seguiremos no encalço da legislação pertinente e finalmente adentraremos na proteção dos dados genéticos como direitos de personalidade.

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2 pRoJeto GenoMA HuMAno

Em meados do século XVII, a criação do microscópio lança a pesquisa científica rumo à menor unidade da vida. O microcosmo descoberto abre à Medicina as fronteiras da citologia.

Muito se evoluiu da teoria celular à genética clássica. Mendel (1822-1884) bem representa essa passagem à genética científica, des-crevendo que as características do indivíduo são-lhe transmitidas he-reditariamente, com fatores do pai e da mãe, combinados pelas célu-las sexuais (GUÉRIN-MARCHAND, 1999, p. 20).

A descoberta dos cromossomos por Wilhem Waldeyer, em 1888, e a descrição do funcionamento e estrutura do dnA, em 1953, por Ja-mes d. Watson e Francis h. c. crick foram eventos determinantes no desenvolvimento da genética.

desde 1980, a França trabalhava com seqüenciamento genético. Em 1984, Robert Sinsheimer idealizou a criação de um instituto que pudesse fazer o seqüenciamento do genoma humano. no entanto, sua idéia não se consolidou como ele idealizara, mas foi amadurecida por outros pesquisadores e, em 1986, o departamento de Energia dos Esta-dos Unidos organizou um encontro científico, em Santa Fé, para discu-tir questões concernentes à pesquisa do genoma humano. Seu principal interesse no mapeamento genético era a busca de uma melhor compre-ensão de como se dão os “efeitos da radiação sobre os seres humanos e seus genes” (AlBAno, 2004, p. 24). outros órgãos e instituições se interessaram pela pesquisa, pois apesar de demandar tempo e dinheiro, esse seria o maior projeto desenvolvido na área biológica.

o tema apresentado à comunidade de pesquisadores prosperou e foram calorosos os debates. Sua importância era óbvia e, constatan-do-a, os Institutos nacionais de Saúde decidiram tomar a dianteira das pesquisas.

Em 1988, com o intuito de aprofundamento das pesquisas criou-se a organização conhecida como huGo (Human Genome Organi-zation), sob a direção inicial de James Watson, e contando com a par-ticipação de pesquisadores de diversos países. Esse período também é marcado pelo crescente interesse dos países em realizar a pesquisa internamente, ganhando espaço, além dos Estados unidos, no Japão,

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no canadá, na Grã-Bretanha, na Alemanha, na França e na Itália. To-davia, oficialmente, o Projeto Genoma Humano (PGH) teve início em 1990, com a participação inicial de canadá, Estados unidos, França, Inglaterra, Itália e Japão. Aos poucos, mais de 50 Estados ingressaram no projeto, inclusive o Brasil.

o pGh consiste no mapeamento, seqüenciamento e descrição do genoma humano. Realizar o mapeamento genético significa representar graficamente o posicionamento dos genes no genoma humano. Esse processo de mapeamento implica fragmentar o dnA, catalogar seis bi-lhões de bases que o compõem e reconstituir sua seqüência original.

Após a determinação da posição e do espaçamento dos genes, tem início o seqüenciamento, isto é, desfazer-se a dupla hélice de dnA, colocando as bases químicas (adenina, timina, citosina e gua-nina) em seqüência para que possa ser lida a informação contida no cromossomo.

Por fim, decifram-se e interpretam-se as informações obtidas, relacionando-as ao fenótipo, definido como as características visíveis e não visíveis do ser humano.

Em 2000, cinco anos antes do previsto, as primeiras fases do pGh estavam concluídas.

Interessante perceber o conflito econômico que permeia a dis-cussão da liberação de informações sobre o seqüenciamento genético. cientistas franceses e americanos divergiram, desde o início, sobre a reserva de patentes de seqüenciamentos.

conta Moser que, antes do projeto Genoma humano, outros projetos com objetivos semelhantes, mas sem cooperação internacio-nal, foram instituídos. A França largou na frente, em 1980, ao criar o Centro do Polimorfismo Humano (CEPH), com finalidade de decifrar o genoma e localizar genes defeituosos. Em 1988, por meio de empre-endimentos privados, foi criado, na França, o Généthon, laboratório de pesquisa que tornaria público os resultados da pesquisa, sem reser-va de patentes. Em 28 de outubro de 1992, a cEph repassou dois mil seqüenciamentos à unESco (MoSER, 2004, p. 21-30).

de forma diversa ocorreu nos Estados unidos. Em 1987, come-çou a funcionar o US Genome Project, com claro objetivo de patentear as informações obtidas.

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En 1991, el dr. craig Venter, a la sazón en los nIh, presentó a la Oficina de Patentes norteamericana (USPTO) una solicitud de patentes para 337 secuencias parciales de genes humanos, obtenidas mediante transcripción inversa (por acción de la re-verso transcriptasa sobre los ARnm correspondientes). En 1992 la solicitud se ampliaba a 2700 nuevos fragmentos, que por su manera de obtención se denominaron en general de expressed se-quence tags (EST), marcas o etiquetas de secuencias expresadas, porque cada una corresponde a unos cuantos cientos de pares de bases de la versión funcional del gen, es decir aquella que una vez transcrita en ARn primario (por la ARn-polimerasa), madura hasta ARnm por eliminación de los intrones (secuencias intercaladas en la versión genómica del gen, que son escindidas durante el proceso de corte y empalme o splicing).1 (IÁÑEZ pA-REJA, 2000).

divergências, sobre a patenteabilidade de seqüências genéticas, entre Craig Venter e James Watson levaram este a deixar a direção da huGo e, mais tarde, Venter fundou uma empresa privada, objetivan-do a obtenção de seqüências genéticas2.

Importante destacar que, embora se tenha concluído o seqüen-ciamento do genoma humano, ainda é desafiadora a compreensão de quais genes são ativos e a determinação de como e quando são ativa-dos. Também não se sabe a influência dos genes sobre as proteínas que são por eles codificadas.

As dúvidas parecem maiores quando se analisa a função das seqüências de DNA que não codificam proteínas – os íntrons3.

a maioria dos biólogos moleculares os considera sobras evolu-cionárias, ou DNA-lixo. Os íntrons foram considerados remanes-centes de uma época anterior à evolução da vida celular, quando fragmentos de informações codificadoras de proteínas se reuniram nos primeiros genes. [...]

1 Em 1994, os nIh retiraram a solicitação dessas patentes.2 Logo que deixou a pesquisa pública da HUGO, Craig Venter fundou o Instituto de Pes-

quisa Genômica (The Institute of Genome Research – TIGR) e, mais recentemente a Celera Genomics.

3 Em oposição aos éxons, que são seqüências de DNA que codificam fragmentos de proteínas.

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Em termos simples, a charada é esta: menos de 1,5% do geno-ma humano codifica proteínas, mas a maioria dele é transcrita em RnA. ou o genoma humano (e o dos outros organismos comple-xos) está cheio de transcrição inútil, ou esses RNAs desempenham alguma função inesperada. (MATTIcK, [200-], p. 20).

Assim, o anúncio do fim do Projeto Genoma Humano é apenas o primeiro passo na compreensão da complexa arquitetura do ser hu-mano. há um longo e desconhecido caminho a trilhar, mas as poucas e incertas informações decifradas já são capazes de revolucionar a visão que o homem tem de si mesmo.

3 oS dAdoS GenÉtiCoS HuMAnoS

Vê-se que o surgimento de novas tecnologias genéticas tem pro-movido conflitos e dúvidas no âmbito jurídico que não encontram respaldo no aparato legislativo para sua resolução.

Não há legislação específica no Brasil que trate da temática dos dados genéticos. por essa razão, o estudo partirá de documentos in-ternacionais – em especial a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, aprovada na 29ª conferência Geral da unESco, em 11 de novembro de 1997; e a Declaração Interna-cional sobre os Dados Genéticos Humanos, aprovada na 32ª confe-rência Geral da unESco, em 16 de outubro de 2003 – e, em seguida, passará à análise sucinta de algumas legislações sobre o tema.

Por trespassar o tema da manipulação genética, o que se reflete no conteúdo das informações genéticas, também analisaremos a lei de Biossegurança – lei n. 11.105 de março de 2005.

3.1 declarações internacionais

Vários são os documentos internacionais que recomendam procedimentos e práticas nas pesquisas envolvendo seres humanos. pode-se regredir historicamente ao Código de Nuremberg, de 1947, que cuidou das experimentações com seres humanos, estabelecendo as bases do consentimento informado.

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Entidades de classe também elaboraram documentos relevantes como a Declaração de Helsinque, aprovada na 18ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundial (WMA) e emendada em outras As-sembléias da Associação até seu texto atual, de outubro de 2000. Essa declaração, mais detalhada que o Código de Nuremberg, também se dedica ao consentimento e ao procedimento investigativo envolven-do seres humanos, mas reconhece a vulnerabilidade dos pesquisados (art. 8) e a necessidade de avaliação da pesquisa por um comitê inde-pendente de ética (art. 13); regula a pesquisa com incapazes (art. 24, 25 e 26); e estabelece cuidados médicos adicionais, que, independen-temente dos resultados da pesquisa, devem ser utilizados para preven-ção, diagnóstico e terapia (art. 28 a 32).

citem-se, ainda, a Declaração de Inuyama, aprovada em 1990, no Japão, pelo conselho da organização Internacional de ciências Médicas, sobre mapeamento genético, experimentação genética e te-rapia gênica; e a Declaração de Bilbao sobre o Direito ante o Projeto Genoma Humano, de 1993. Esta última menciona a intimidade como patrimônio pessoal e afasta a utilização dos dados genéticos com fins discriminatórios.

Em abril de 1997, foi elaborada em oviedo a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, proposta pelo conselho da Europa. A Convenção, em vigor desde 1º de dezembro de 1999, trata de quaisquer intervenções na área de saúde, incluindo tratamentos e investigações científicas. Vários artigos são dedicados à manifestação do consentimento para as intervenções. Seu capítulo IV refere-se ao genoma humano, havendo artigos que regulam a não discriminação em virtude do patrimônio genético (art. 11); os testes preditivos de doenças genéticas ou propensão a elas (art. 12); intervenções modifi-cativas do genoma humano (art. 13) e a proibição de seleção de sexo em reprodução humana assistida (art. 14).

Devido à importância, influência e especificidade, destacam-se a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Huma-nos, de 1997, e a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003. Ambas foram aprovadas em conferências gerais da unESco e centram-se no respeito à dignidade humana e na prote-ção dos direitos humanos, quando da coleta, tratamento, utilização e conservação de dados genéticos humanos e de amostras biológicas.

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passa-se à análise da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos.

Logo no art. 1º, o genoma humano, expresso como a base da unidade fundamental da espécie humana, é classificado como patri-mônio da humanidade. Fica a advertência de Galán Juárez:

por el momento se acordó que el genoma humano, que atañe a todos los seres humanos hoy existentes ya los que existirán, es pa-trimonio de la humanidad. En este sentido no puede quedar exclu-sivamente en manos de la iniciativa privada, ni deberá explorarse comercialmente. Sin embargo, la investigación que se haga a par-tir de él no es patrimonio de la humanidad: aquí radica el peligro. (GAlÁn JuÁREZ, 2005, p. 230).

preocupada com possíveis discriminações, essa declaração estabelece a necessidade de se garantir o respeito à dignidade e aos direitos humanos, independentemente das características genéticas do indivíduo. Tais características não representam a totalidade do ho-mem, ser único e irrepetível, que não pode ser representado apenas biologicamente.

Quanto às características do genoma humano, o documento cita a evolutividade e a extracomercialidade. É evolutivo, pois submetido a mutações, e reputa-se res extra commercium, devendo ser proibida sua transação financeira.

para investigação, tratamento e diagnóstico que intervenha no genoma humano, o art. 5º incorpora os princípios da beneficência e da autonomia, determinando a avaliação prévia dos riscos e benefícios da intervenção, bem como da necessidade do consentimento prévio, livre e esclarecido das pessoas envolvidas.

ninguém deve ser submetido a discriminação com base em suas características genéticas. Além disso, os dados genéticos que possam identificar o indivíduo deverão ser mantidos em sigilo e qualquer dano, sofrido em razão da intervenção no genoma, é passível de repa-ração de caráter indenizatório (art. 6º, 7º, 8º).

O artigo 9º deve ser analisado com cautela, visto que restringe os princípios do consentimento e da confidencialidade:

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com vistas a proteger os direitos humanos e as liberdades fun-damentais, qualquer restrição aos princípios de consentimento e confidencialidade só poderá ser estabelecida mediante lei, por ra-zões imperiosas, dentro dos limites estabelecidos no direito públi-co internacional e a convenção internacional de direitos humanos. (unESco, 1997).

Interessante perceber que a declaração abre caminho para a in-tervenção do Estado no mais íntimo bem do ser humano – sua perso-nalidade. Assim, em nome do denominado “interesse público”, abre-se mão do consentimento e da confidencialidade.

Rememore-se que a autonomia pública, princípio fundante da democracia, é constituída pelo exercício de plurais “autonomias pri-vadas”. Assim, como alerta daniel Sarmento, há interdependência en-tre interesse público e interesse privado:

portanto, o quadro que se delineia diante dos olhos é muito mais o de convergência entre interesses públicos e particulares do que o de colisão. Tal situação, repita-se, não constitui a exceção, mas a regra. Na imensa maioria dos casos, a coletividade se beneficia com a efetiva proteção dos interesses dos seus membros. Até por-que, o interesse público, na verdade, é composto pelos interesses particulares dos membros da sociedade, razão pela qual se torna em regra impossível dissociar os interesses públicos dos privados. (SARMEnTo, 2007, p. 83-84).

permitir que a necessidade de consentimento seja afastada, ten-do em vista um pretenso “interesse público”, é um procedimento típi-co de Estado totalitário e não de um Estado que pretende a proteção da diferença e do pluralismo.

o acesso aos resultados da pesquisa é garantido no art. 12: “Toda pessoa deve ter acesso aos progressos da Biologia, da Genética e da Medicina em matéria de genoma humano, respeitando-se sua dignidade e direitos” (unESco, 1997).

Ainda sobre o acesso, mas tendo como base outros Estados, preocupa-se a declaração em promover a cooperação internacional quanto ao tratamento de pessoas portadoras de doenças genéticas, in-centivos às pesquisas referentes ao genoma humano. o “capítulo E”

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enfatiza a necessidade da cooperação dos países desenvolvidos àque-les que estão em desenvolvimento, quanto aos estudos e resultados.

Por fim, incentiva os Estados a adotarem os princípios estabele-cidos e a promoverem sua divulgação.

Adentra-se, agora, na Declaração Internacional sobre os Da-dos Genéticos, de 2003. Mais específica que a Declaração anterior, é dividida em 27 artigos, distribuídos em sete capítulos.

o primeiro capítulo estabelece disposições gerais, informando os objetivos e alcances da Declaração, a definição de certos termos, tais como dados genéticos, teste genético, rastreio genético e aconse-lhamento genético.

Dados genéticos humanos são definidos como as “informações relativas às características hereditárias dos indivíduos, obtidas pela análise de ácidos nucléicos ou por outras análises científicas” (art. 2º, I, UNESCO, 2003). São, concomitantemente, informações de um indivíduo e de um grupo, por caracterizarem toda uma descendência.

O art. 3º admoesta que as características genéticas não são ca-pazes de descrever por completo a identidade pessoal, que é composta por fatores complexos.

os dados genéticos podem indicar predisposições genéticas dos indivíduos; podem ter para a família conseqüências importantes que se perpetuam durante gerações; podem conter informações cuja rele-vância não se conheça no momento de extrair as amostras biológicas e também podem ser importantes do ponto de vista cultural para as pessoas ou grupos (art. 4º, UNESCO, 2003).

Os dados genéticos têm a capacidade de identificar indivíduos, revelar futuras enfermidades e fornecer informações sobre parentes-co, uma vez que englobam quaisquer informações genéticas, desde as mais gerais às mais específicas. Assim, pode-se dizer que possuem as características de serem únicos, preditivos, estruturais, probalísticos e geracionais (hAMMERSchMIdT, 2005, p. 17).

os dados genéticos são únicos porque apresentam informações genéticas do ser humano enquanto espécie, sendo, nesse sentido, pa-trimônio da humanidade. São estruturais por guardarem característi-cas especiais de um indivíduo diferenciando-o dos outros, tornando-o singular. São probabilísticos por apresentarem, de forma aproximada,

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as possibilidades do desenvolvimento de alguma enfermidade. E, por fim, são geracionais por informar a herança genética do indivíduo e a sua interligação genética com seus parentes (hAMMERSchMIdT, 2005, p. 17-20).

o segundo capítulo preconiza sobre o fornecimento e a retirada de consentimento pelo indivíduo que se submeterá ao tratamento e como proceder para obter consentimento caso os envolvidos sejam incapazes ou menores.

cabe ao investigado escolher se quer ou não conhecer os resulta-dos da investigação. daí a importância do aconselhamento genético,

que consiste em explicar as conseqüências possíveis dos resulta-dos de um teste ou de um rastreio genético, suas vantagens e seus riscos e, se for caso disso, ajudar o indivíduo a assumir essas con-seqüências a longo prazo. o aconselhamento genético tem lugar antes e depois do teste ou do rastreio genético além de assessora-mento profissional na hipótese de conseqüências importantes para a saúde da pessoa. (art. 2º, XIV, UNESCO, 2003).

os Estados devem adotar medidas que promovam o acesso de seus titulares aos dados genéticos e proteômicos e mantenham a pri-vacidade daqueles dados, coibindo o fornecimento a companhias de seguro, empregadores e instituições de ensino (art. 13, 14 e 15).

os dados genéticos podem ser utilizados como prova em pro-cedimentos judiciais ou para fins de medicina legal, mas devem ser destruídos assim que se tornem desnecessários (art. 12 e 21).

Por fim, destaca-se a necessidade de divulgação da Declaração, cooperação internacional nas pesquisas e partilha dos benefícios dos testes e exames realizados.

3.2 A Lei de Biossegurança – Lei n. 11.105, de 24 de março de 2005 – e os projetos de lei no Brasil

A lei n. 11.105, de 24 de março de 2005, representou, sem dú-vida, um progresso na relação “desenvolvimento tecnológico-prote-ção jurídica”.

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Anterior à sua entrada no ordenamento jurídico pátrio vigorava a Lei n. 8.974, de 1995, que normatizava e fiscalizava as técnicas de engenharia genética, regulando, principalmente, a utilização de orga-nismos geneticamente modificados (OGM), e, mais superficialmente, a manipulação genética humana.

A comissão Técnica nacional de Biossegurança – cTnBio – é o órgão responsável por conceder a autorização para realização de pesquisas envolvendo manipulação de organismos vivos em geral, in-clusive manipulação de material genético.

O art. 6º é mais específico quanto às restrições à manipulação de material genético:

Art. 6º Fica proibido:[...]II – engenharia genética em organismo vivo ou o manejo in vitro de Adn/ARn natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta lei;III – engenharia genética em célula germinal humana, zigoto hu-mano e embrião humano;IV – clonagem humana; (BRASIl, 2005).

Engenharia genética é a atividade de produção e manipulação de moléculas de material genético. Sua utilização em seres humanos é ve-dada, em absoluto, em células germinativas, pois as alterações são pas-síveis de transmissão para descendentes, podendo ocasionar mudanças inesperadas, como malformações e doenças até então desconhecidas. há, inclusive, o risco de gerar problemas recessivos que poderão se manifestar apenas em gerações futuras. o art. 25 criminaliza tal prática, punindo o infrator com reclusão de um a quatro anos e multa.

Já a engenharia genética em células somáticas humanas é per-mitida nos limites da Lei de Biossegurança e segundo os órgãos fisca-lizadores internos da instituição de pesquisa e tratamento – comissão Interna de Biossegurança (CIBio) – e externos – a CTNBio, Comissão Técnica Nacional de Biossegurança e, excepcionalmente, a CNBS, conselho nacional de Biossegurança, que pode ser chamado a anali-sar, a pedido da cTnBio, os pedidos de autorização para a prática de

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engenharia genética, “quanto aos aspectos da conveniência e oportu-nidade socioeconômicas e do interesse nacional” (art. 8º, § 1º, II da lei n. 11.105/2005).

proíbe-se também a geração de novo ser humano com repeti-ção deliberada de material genético de outro ser, isto é, a clonagem, terapêutica ou reprodutiva, de ser humano. A clonagem reprodutiva caracteriza-se pela reprodução assexuada, produzida artificialmente, baseada em um único patrimônio genético, originando um ser com material genético idêntico ao do ser inicial. Já a clonagem terapêutica visa à produção de células-tronco para tratamentos biomédicos.

A realização de clonagem humana é também definida como cri-me e o art. 26 penaliza a prática com reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Saliente-se, mais uma vez, que a lei de Biossegurança não trata especificamente de dados genéticos, isto é, de informações contidas em material genético, no entanto, trata da modificação do material genético e, por via reflexa, da alteração de dados genéticos que, após a transfor-mação produzida, poderia, em vários Estados, ser objeto de patente.4

Houve, por fim, dois projetos de lei que trataram especificamen-te do problema da intimidade em relação aos dados genéticos e sua alteração em desconformidade com o ordenamento jurídico. o pro-jeto de lei do Senado n. 149, de 1997, de autoria do Senador lúcio Alcântara, definia crimes contra a discriminação genética. Seis eram os artigos do Projeto que tipificavam condutas e cominavam penas de detenção e multa. Analisava questões relativas a seguro, plano de saú-de, ingresso ou permanência de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado, inscrição em concurso público ou outras formas de recrutamento e seleção de pessoal, casamento ou convivência so-cial, sempre relacionados à informação genética.

Já o projeto de lei do Senado n. 231, de 2000, proposto pelo Senador Juvêncio da Fonseca, garantia que os dados fossem disponi-bilizados somente pela vontade do consumidor, proibindo-se a exi-gência prévia da análise genética do segurado, a fim detectar doenças,

4 “Atualmente existem mais de duas mil patentes registradas no mundo, dentre as quais a maioria pertence a empresas privados dos EUA e Japão. Os EUA possuem aproximada-mente setecentas patentes baseadas em genes humanos.” (SAhAnIuK, s/d).(SAhAnIuK, s/d).

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para só então ser ou não incluído no quadro de planos e premiações da seguradora5.

Ambos os projetos não encontraram apelo político suficiente para ir a plenário, sendo arquivados em 2007.

4 dAdoS GenÉtiCoS CoMo diReitoS de peRSonALidAde e SuA pRoteção

Os dados genéticos humanos compõem a complexa estrutura de identificação de um indivíduo, apresentando informações a partir da análise de seu dnA. Essas informações genéticas determinam o funcionamento de todo o organismo, mas, como já alertava o citado art. 3º da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Huma-nos, são apenas um componente da identidade.

Para melhor compreensão dos dados genéticos, será exposto um pouco do funcionamento e estrutura dos genes.

Em organismos complexos, eucariontes, o material genético está confinado no núcleo celular. Esse material genético é o cromos-somo, que, nos seres humanos, se constituem em 23 pares. o cro-mossomo é formado de ácido desoxirribonucléico (DNA) e proteínas. Setores específicos do DNA, referentes a informações específicas, são chamados genes.

cada cromossomo possui uma grande quantidade de genes, res-ponsáveis pela transmissão das características hereditárias. nos 23 pares de cromossomos há, aproximadamente, 25 mil genes (MATTI-cK, [200-], p. 20).

há muito que se especulava ser a molécula de dnA, no interior do cromossomo, que explicaria a transmissão das características de geração a geração.

Somente com a descoberta, em 1950, da estrutura do dnA, a Genética pôde solucionar muitas de suas inquietações.

5 “Art. 1º A Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 14-A: ‘Art. 14-A. É vedada a exigência de teste genético para detecção prévia de doenças para o ingresso nos planos ou seguros privados de assistência à saúde’.” (BRASIl, 2000).(BRASIl, 2000).

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A estrutura molecular do DNA consiste em dois filamentos en-trelaçados, formando uma dupla hélice. Cada filamento de DNA é composto de diferentes seqüências de nucleotídeos: adenina, guanina, timina e citosina. O nucleotídeo é a subdivisão do filamento de DNA que contém um desses quatro componentes químicos. cada nucleotí-deo de um filamento une-se a outro específico do outro filamento por ligações químicas, denominadas pontes de hidrogênio.

O DNA codifica diferentes aminoácidos6 a partir das variadas seqüências de nucleotídeos possíveis. Estes, por sua vez, em razão da sua seqüência, originam proteínas diversas. E, por fim, são essas proteínas a matéria-prima do corpo humano.

A interpretação dessas seqüências permite avaliar a propensão a doenças genéticas e até corrigi-las por meio da inserção de novo ma-terial genético, alterando a antiga estrutura. Essa intervenção médica de modificação genética, conhecida por terapia gênica, só se tornou possível após o conhecimento dos dados genéticos.

dados genéticos são, portanto, informações obtidas, ou passí-veis de se obter, do dnA e RnA humanos. A proteção jurídica não se faz presente apenas quando o material genético é transformado em informação; a mera potencialidade de se converter em informação já produz efeitos jurídicos. Assim, não é necessário que alguém tome conhecimento da informação, a simples potencialidade de ela existir pode, no caso concreto, ser juridicamente relevante. por essa razão protege-se a intimidade genética ou se garante ao indivíduo a possibi-lidade de recusar a análise genética.

dessa forma, dado genético e material genético não são coin-cidentes; aquele é o resultado da transformação deste em informação ou, ao menos, a potencialidade de transformar o material genético em informação.

Tal informação, segundo Aitziber Emaldi cirión (2007, p. 201), pode traduzir-se em: a) Predição do futuro, pois diagnostica não so-mente doenças existentes, mas também predisposições a doenças; b) Informação secundária, “quando se investiga em um paciente a rela-ção de um ou vários polimorfismos com a resposta a um medicamen-

6 Existem vinte diferentes tipos de aminoácidos que, combinados das mais diversas formas entre si, com lipídios e com outras substâncias, dão origem a inúmeras proteínas.

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to” (EMAldI cIRIÓn, 2007, p. 201); c) Informação sobre a família biológica, determina a ascendência genética a partir da comparação de perfis genéticos.

Já se afirmou que os direitos de personalidade congregam os diversos aspectos da pessoa humana, consistentes em bens que guar-necem a própria personalidade. São direitos considerados tradicional-mente como necessários, vitalícios, indisponíveis, extrapatrimoniais e intransmissíveis.

Há perfeita correspondência entre os dados genéticos, a defi-nição e as características dos direitos de personalidade. Aqueles são informações vitais para o desenvolvimento da vida humana; são ne-cessários, já que toda a matéria viva é regida, biologicamente, pelas informações de seus genes; são vitalícios, pois se constituem em bens que acompanham o curso da vida humana; são, em princípio, indispo-níveis e intransmissíveis, pois sua disposição ou transmissão implica-ria cessação da vida de seu titular; e, por fim, são extrapatrimoniais, devido à impossibilidade de avaliação econômica, por isso são consi-derados bens fora do comércio.

Se os direitos de personalidade são bens definidores da própria pessoa, por isso projeção jurídica do ser, os dados genéticos encai-xar-se-iam perfeitamente nessa categoria, pois definem um aspecto individual e caracterizador do ser humano.

logo, a proteção oferecida aos direitos de personalidade deve ser utilizada também na garantia das informações genéticas humanas. E, pela gravidade e extensão da ofensa, deve-se sempre preferir a tute-la inibitória, isto é, a tutela preventiva pela qual se evita a concretiza-ção de um ato ilícito que ainda se encontra em potência. É a proteção da mera ameaça a direito e que, no que se refere aos dados genéticos, pode dar-se de maneiras variadas.

A tutela inibitória é uma ação de conhecimento, que encontra guarida no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição da República, ao mencionar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (BRASIl, 1988), e no código civil, art. 12: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da per-sonalidade e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.” (BRASIl, 2002).

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como direito de personalidade, oferece-se proteção aos dados genéticos de forma a remover o ilícito, a ressarcir a vítima dos prejuízos sofridos e, até mesmo, de preventivamente impedir que um dado com-portamento lesivo venha a se concretizar. Sobre o tema, menciona humberto Theodoro Júnior: “o emprego da tutela inibitória presta-se para a repressão das ameaças tanto de dano material como moral; e sua invocação pode ocorrer isoladamente ou em concurso com a tute-la ressarcitória” (ThEodoRo JÚnIoR, 2005, p. 47).

neste ponto importa destacar a diferença entre tutela inibitória e remoção do ato ilícito. Esta se limita a remover os efeitos de ato ilícito praticado, que já se exauriu, mas cujas conseqüências se prolongam no tempo. na tutela inibitória intenciona-se evitar a prática de um ilícito, ou sua repetição. como esclarece luiz Guilherme Marinoni: “a ação inibitória somente pode ser utilizada quando a providência jurisdicional for capaz de inibir o agir ou o seu prosseguimento, e não quando esse já houver sido praticado, estando presentes apenas os seus efeitos” (MARInonI, 2004).

Em ambos os casos, caberá pedido de antecipação de tutela, sem que haja, necessariamente, comprovação de dano, pois a simples “probabilidade da ilicitude pode ser suficiente para a admissão da tu-tela antecipatória” (MARInonI, 2004).

Imaginemos a situação de um empregador que noticia um pro-cesso seletivo para admissão de novos empregados e coloca, dentre os requisitos para contratação, “boa saúde genética”, que seria verifi-cada por meio de exames. Neste caso, será que o candidato deveria se submeter a tal exigência? Qual a medida apropriada em tal situação? deparamos com a conjectura em que a ação inibitória será necessária para impedir possível lesão ao direito de confidencialidade e autono-mia de escolha.

Vários são os fundamentos jurídicos para afastar tal conduta do empregador. primeiro, não é válida a discriminação com base em in-formações genéticas. Segundo, a mera predisposição genética a uma doença não implica necessariamente o posterior desenvolvimento da mesma. Terceiro, os dados genéticos são pessoais e sigilosos, não po-dendo ser exigidos por outros como requisito para obtenção de qual-quer vantagem.

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Sobre esse assunto, saliente-se que o projeto de lei do Senado n. 149, de 1997, citado anteriormente, em seu art. 6º, proibia qualquer restrição ao acesso ao trabalho em empresas públicas ou privadas de-vido às características genéticas, e ainda penalizava quem transgre-disse essa regra:

Art. 6º Recusar, negar ou impedir inscrição em concurso público ou em quaisquer outras formas de recrutamento e seleção de pes-soal com base em informação genética do postulante, bem como, com base em informações dessa natureza, obstar, impedir o acesso ou a permanência em trabalho, emprego, cargo ou função, na Ad-ministração pública ou na iniciativa privada.pena – detenção, de um mês a um ano, e multa. (BRASIl, 1997).

Também podemos cogitar a hipótese, já ocorrida no Reino uni-do, de empresas de seguro de vida e planos de saúde exigirem de seus futuros contratados testes genéticos prévios, a fim de determi-nar o montante da contraprestação ou mesmo a celebração ou não do negócio. A não-celebração do contrato por recusa à submissão ao exame ou pela propensão ao desenvolvimento de alguma doença, de-tectada pela investigação genética, poderá ser coibida pelo Judiciário por meio da ação de remoção de ilícito. Se, contudo, a despeito da celebração do contrato, a contraprestação se mostrar excessivamente onerosa por constatar-se a propensão ao desenvolvimento de doença genética, cabe revisão contratual para remoção do ilícito e ressarci-mento dos possíveis danos.

A possibilidade de se tutelar os dados genéticos por intermé-dio de ação ressarcitória ou indenizatória, nos casos de violação do direito de personalidade aos dados genéticos, raras vezes atingiriam a finalidade própria da responsabilidade civil – a reparação integral. Retornar ao estado anterior à lesão ou ofensa, mostra-se, no mais das vezes, impossível. Assim, nessas hipóteses, o direito se contenta com a compensação do dano, desde que se faça da forma mais ampla pos-sível, cumulada, freqüentemente, com a remoção do ilícito.

Vislumbra-se a possibilidade de cobrança de dano moral base-ada na violação da intimidade genética, por divulgação ou utilização não-autorizada de dados genéticos.

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Percebe-se, pois, que o advento da Biotecnologia modificou a concepção de espaço privado. A intimidade adentrou-se, também, para o nível genético. Esses novos problemas e searas requerem a reconstrução da categoria de “direitos de personalidade” e não mais como direitos inerentes ao ser humano, pois tal predicação recobra a rigidez jusnaturalista, e mesmo juspositivista, de direitos ex ante, previstos pelo legislador, mas fora da situação concreta.

o direito é fato histórico em constante reconstrução. os direi-tos de personalidade também se caracterizam dessa historicidade, que os faz flexíveis ao tempo, mas em constante transformação.

A ausência de regulação específica no ordenamento nacional não exclui a utilização dos meios de proteção da categoria em que se inserem – os direitos de personalidade –, bem como do uso de normas internacionais.

5 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

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A REVISÃo dE ERRo MATERIAl no MoMEnTo do pAGAMEnTo do pREcATÓRIo JudIcIAl

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Sumário

1. precatório como prerrogativa da administração pública. 2. distinção entre erro material e critério de cálculo. 3. poder-dever de revisão do erro de cálculo. 4. conclusão. 5. Referências bibliográficas.

Resumoo presente artigo trata da possibilidade de revisão dos cálculos

inerentes aos precatórios judiciais, havidos contra os entes de direito público, mesmo após sua homologação pelo juízo originário da exe-cução. Prerrogativa atribuída do Presidente do Tribunal que expediu a requisição de pagamento, podendo fazê-lo de ofício em razão do interesse público em jogo e para evitar o enriquecimento sem causa do credor do Estado.pAlAVRAS-chAVE: Revisar. pagamento. precatório.

AbstractThis article presents a review of the possibility of revision of

the determination inherent in the precatory court issued against the entities of public low procedure, even after its approval by the court of origin implementation. This was attributed to president prerogative of the court, wich has dispatched a request for payment measure that can

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be taken from “ oficio “ at any time due to public interest in sealing the game and injust enrichment by the creditor state.KEYWoRdS: Review. payment. precatory.

1 pReCAtÓRio CoMo pReRRoGAtivA dA AdMiniStRAção pÚBLiCA

O ente público detentor de personalidade exerce seus direitos e deveres na ordem jurídica a partir de uma base dogmática consubstan-ciada num regime de prerrogativas e sujeições ao qual a doutrina dá o nome de “regime jurídico-administrativo”.

o fundamento básico do regramento jurídico-administrativo é a busca do equilíbrio entre o regime das liberdades, que garante ao cidadão comum um espaço de autonomia privada frente ao Estado, protegendo-o em seus direitos individuais segundo a inspiração do princípio da legalidade e, por outro lado, o exercício do poder sobe-rano estatal que em nome da supremacia do interesse público dota o Estado de uma série de prerrogativas e privilégios a fim de que o direito aplicado ao particular seja derrogado em prol da consecução do bem comum.

Maria Sylvia di pietro ao tratar da relação jurídica administra-tiva leciona que

daí a bipolaridade do direito administrativo: liberdade do indi-víduo e autoridade da Administração; restrições e prerrogativas. para assegurar-se a liberdade, sujeita-se a Administração pública à observância da lei; é a aplicação, ao direito público do princípio da legalidade. para assegurar-se autoridade da Administração públi-ca, necessária a consecução dos seus fins, são-lhe outorgadas prer-rogativas e privilégios, que lhe permitem assegurar a supremacia do interesse público sobre o particular.1

As prerrogativas estatais são concessões especiais dadas ao po-der público a fim de que o mesmo cumpra o anseio da coletividade.

1 dI pIETRo, Maria Sylvia Zanella. direito Administrativo. 12. ed. São paulo: Atlas, 2000, p. 65.

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derrogam o direito comum e concedem ao Estado uma série de re-galias na relação de direito subjetivo e dever jurídico em que o mes-mo se encontra presente, vantagens que não são concedidas em igual graduação às relações jurídicas travadas meramente entre particula-res. Apresentam-se por meio de restrições ao exercício dos direitos individuais na via do poder de polícia, ou mediante privilégios que asseguram ao organismo dotado de soberania a execução e prestação de serviços públicos de modo adequado. derrogam o direito comum concedendo ao Estado regalias na relação de direito subjetivo e de-ver jurídico. Cretella Júnior define as prerrogativas estatais como “as regalias usufruídas pela Administração, na relação jurídico-adminis-trativa, derrogando o direito comum diante do administrador, ou, em outras palavras, são faculdades especiais conferidas à Administração, quando se decide a agir contra o particular”.2

Vários são os privilégios outorgados ao Estado, dos quais po-demos citar a presunção de veracidade dos atos administrativos, a imunidade tributária, o poder de expropriar, a autotutela e a autoexe-cutoriedade, o poder de alterar ou resilir unilateralmente os contratos administrativos, dentre outros tantos que repercutem nos mais varia-dos ramos do direito.

o processo civil, por sua vez, é impregnado de uma série de vantagens conferidas ao ente público quando o mesmo está em litígio. Como exemplo, há a concessão do prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer (artigo 188 do cpc); a impossibilidade de concessão de tutela de urgência que defira valor pecuniário ao ser-vidor público em face de sua reclassificação funcional (artigo 1° da lei 9.494/97); juízo privativo na esfera federal, a partir da estrutu-ra da Justiça Federal que é especializada no julgamento de questões envolvendo entidades públicas da união; o duplo grau de jurisdição (artigo 475 do cpc); a desnecessidade de pagamento ou antecipação das despesas judiciais pela prática de seus atos processuais (artigo 27 do cpc); a não aplicabilidade da lei 9.099/95 aos feitos em que participam os entes públicos; a previsão de procedimento próprio para as execuções fiscais, descrito na Lei 6.830/80; enfim inúmeras são as vantagens dadas ao poder público quando este se apresenta em juízo

2 Revista de Informação legislativa, v. 97:13.

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como autor, réu ou terceiro nos feitos tramitados sob o rito ordinário, sumário ou especial, em que se busca a tutela declaratória, de execu-ção ou cautelar.

um dos privilégios conferidos ao Estado está consubstanciado no direito subjetivo de pagar suas obrigações pecuniárias, após con-denação em processo judicial, na via do precatório. A sistemática da execução judicial das obrigações pecuniárias deferidas em des-favor do ente dotado de soberania será regida segundo o artigo 100 da Constituição Federal, regra específica que dá ao administrador público um prazo maior de pagamento após a apuração do quantum debeatur em razão da necessidade da previsão da receita e fixação da despesa no orçamento (artigo 100, § 1°, da CF/88 c/c art. 165, III, da cF/88).

Assim o disposto no artigo 100, caput, da constituição de 1988:

À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos de-vidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológi-ca de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respec-tivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

Cabe expender que, ao contrário da interpretação literal que se possa fazer do referido artigo 100, caput, da cF/88, mesmo os crédi-tos de natureza alimentar deverão ser requisitados mediante precató-rio, havendo para eles a prerrogativa de não se submeterem à ordem cronológica estabelecida para os de natureza comum, formando, os alimentares, ordem cronológica específica e autônoma, conforme fi-cou assentado na Súmula n. 655 do Supremo Tribunal Federal:

A exceção prevista no artigo 100, caput, da constituição, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de pre-catório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológi-ca dos requisitórios decorrentes de condenações de outra natureza.

outrossim, a regra do precatório judicial visa a garantir e pre-servar a igualdade entre os credores a partir da instauração de ordem

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cronológica de preferência que não pode ser quebrada sob pena de seqüestro da importância pelo poder Judiciário. o precatório privile-gia os princípios da igualdade (art. 5º, caput, da cF/88) e da impes-soalidade (art. 37, caput, da cF/88), impedindo tratamento diferen-ciado aos credores do Estado. Neste sentido Alexandre de Moraes se posiciona, afirmando que “a Constituição Federal, em seu art. 100, disciplina os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual e Municipal, em virtude de sentença judiciária, com a finalidade de assegurar isonomia entre os credores, impedindo, desta forma, em consonância com o princípio da impessoalidade, consagrado no art. 37 do Texto Magno, qualquer espécie de favorecimento, seja por razões políticas, seja por razões pessoais”,3 posição que foi segui-da pelo Pretório Excelso em decisão da relatoria do Ministro Celso de Mello: “A norma consubstanciada no art. 100 da carta política traduz um dos mais expressivos postulados realizadores do princí-pio da igualdade, pois busca conferir, na concreção do seu alcance, efetividade à exigência constitucional de tratamento isonômico dos credores do Estado”4.

Assim, ao contrário do que ocorre com o particular, que, após as mudanças do estatuto processual que instauraram o processo sin-crético, deve pagar seu débito pecuniário logo após o acertamento do valor devido, sob pena de não o fazendo sofrer uma série de efeitos jurídicos negativos dos quais se incluem a multa prevista no artigo 475-J do código de processo civil e a constrição judicial de seus bens móveis ou imóveis a fim de honrar a dívida expressa em dinheiro, o Estado na forma do artigo 100 da constituição Federal, combinado com o artigo 730 do código de processo civil, após o encerramento do processo de conhecimento e instauração pelo credor da execução por quantia certa, será citado para apresentar embargos do devedor no prazo de 30 dias e, após acertado o valor, o juiz requisitará o pa-gamento por intermédio do presidente do tribunal competente, fazen-do-se a quitação na ordem de apresentação do precatório e à conta do respectivo crédito, vedada a designação de casos e de pessoas nas

3 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 23 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 594.4 Tribunal pleno, Adin n. 584/pR, Medida cautelar. dJ de 22.05.92, p. 7.213.

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dotações orçamentárias. hely lopes Meireles ao tratar do precatório judicial, leciona que

o Código de Processo Civil contém seção especial para a execu-ção contra a Fazenda pública, estabelecendo as regras para o pa-gamento das requisições judiciais, na ordem de apresentação do precatório e à conta do respectivo crédito. Isto significa que caberá ao Poder Público providenciar os recursos necessários à execução, que se realiza sem penhora de qualquer bem público.5

Assevere-se que o regramento do precatório, por si só já é um privilégio concedido ao Estado frente ao seu credor processual em razão da necessidade de não se inviabilizar o cumprimento, pelo ente público, de suas funções e serviços. A eventual possibilidade de pe-nhora de bens públicos ou de pagamento imediato da dívida, como ocorre com o particular, traria insegurança financeira ao Estado, que poderia ver-se sem meios de honrar seu compromisso de fomento e financiamento das necessidades coletivas. A necessidade de prévia dotação orçamentária autoriza o planejamento do pagamento do pre-catório, consubstanciando o princípio da prévia dotação orçamentária prevista no artigo 165, inciso III, do texto constitucional em vigor. Manoel Antônio Teixeira Filho nos instrui que

pensar em citação para pagar ou garantir patrimonialmente a exe-cução, corresponde ignorar os princípios constitucionais da uni-versalidade e da anualidade orçamentária, ou, até mesmo, a vio-lentá-los. [...] A apresentação do precatório – requisitório é, pois, indispensável para que a administração pública possa elaborar, adequadamente, o seu orçamento, na medida em que, dessa ma-neira, terá elementos concretos que lhe possibilitem realizar uma estimativa – o mais perto possível da realidade – do montante de suas despesas no exercício seguinte e, desse modo, programar a correspondente receita.6

5 MEIREllES, hely lopes. direito Administrativo Brasileiro, 18. ed. São paulo: Malhei-ros, 1993, p. 450.

6 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Execução no Processo do Trabalho. 2. ed. São paulo: lTR, 1991, p. 205 e 506.

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2 diStinção entRe eRRo MAteRiAL e CRitÉRio de CÁLCuLo

Ainda no que tange ao pagamento do precatório, a fim de se evitar o depósito de importância superior ao efetivo débito, o ordena-mento jurídico pátrio determina ao presidente do tribunal competente a revisão do erro de cálculo que porventura tenha ocorrido quando da liquidação da sentença transitada em julgado a fim de expurgar da conta liquidada no juízo de origem parcela que não foi deferida pelo decisum. Trata-se de prerrogativa indispensável, pois evita o enrique-cimento sem causa e privilegia a probidade e a moralidade adminis-trativa, reafirmando a coisa julgada material que fora desrespeitada no momento de aferição da conta a ser paga.

o Art. 1-E da lei 9.494/97 autoriza e impõe, por ato de ofício do Presidente do Tribunal que expediu o precatório, o dever de proceder à correção de erros materiais havidos em cálculos judiciais afetos às contas elaboradas pelas partes, ou mesmo pelos contadores judiciais, com o escopo único de aferir o correto valor a ser pago pelo ente pú-blico. Assim o disposto no art. 1-E da lei 9494/97: “São passíveis de revisão, pelo presidente do Tribunal, de ofício ou a requerimento das partes, as contas elaboradas para aferir o valor dos precatórios antes de seu pagamento ao credor. (nR)”.

Antes de adentrarmos na argumentação e fundamentação jurí-dica que autorizam a revisão da conta que será cobrada na execução processada na via do precatório judicial, como primeiro ponto, deve-mos configurar o conceito de erro de cálculo que autoriza a correção pelo presidente do tribunal competente, separando-o do chamado cri-tério de cálculo, cuja jurisprudência dominante não concede o poder de revisão, entendendo não se tratar de erro propriamente dito.

critério de cálculo ocorrerá sempre que a conta de liquidação contiver elementos que não foram descritos expressamente na decisão de mérito transitada em julgado, mas foram aplicados, quando da apu-ração do valor devido, nos moldes da lei, para o suprimento da lacuna decisória. Por exemplo, a hipótese da aplicação de correção monetária a partir de data distinta da fixada em lei ou prevista na jurisprudência dominante em razão de a sentença apenas determinar sua aplicabilidade

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sem fixar data certa para isto. Outro caso seria o da aplicação ao débito inerente à diferença de vencimentos dos servidores públicos de taxa de juros mensal de 1%, nos termos do código civil de 2002, ao contrário da taxa legal de meio por cento ao mês, fixada no art. 1-F da Lei 9.494, já que a sentença apenas se referiu à aplicação de juros moratórios sem determinar a taxa efetivamente devida. De fato, o critério de cálculo transita em julgado, após sua homologação na liquidação de sentença, sem possibilidade de revisão, pois, diante da aplicabilidade de um crité-rio que supre lacuna da sentença de mérito, não se pode alterar o cálculo de liquidação em razão de aí não haver erro, mas mero critério que foi escolhido pelo Estado juiz no momento em que houve a homologação do cálculo que serviu de base para a expedição do precatório.

Já o erro de cálculo existirá sempre que a conta de liquidação homologada pelo juízo contiver elemento diverso do estipulado ex-pressamente pela sentença de mérito transitada em julgado. Sempre que a decisão de mérito contiver critério objetivo de apuração do va-lor, a conta que for contrária ao elemento objetivo fixado pelo deci-sum será eivada de erro material, pois o que transita em julgado é a decisão de mérito e não a conta erroneamente homologada. o erro de cálculo, que é espécie de erro material, é aquele que pode ser visto por intermédio de critérios objetivos, devendo ser identificável pelo sujeito médio e que não corresponde, de modo evidente e inequívoco, à verdadeira intenção do magistrado posta na sentença.

Exemplificativamente, podemos citar o caso de a decisão de mérito transitada em julgado ter determinado, expressamente, que caberá a aplicação de correção monetária ao crédito somente após o ajuizamento da demanda, quando é sabido que a regra geral da corre-ção monetária é dar-se a partir do fato que substancia a pretensão aco-lhida. nesse caso, se a conta apresentada na liquidação e homologada pelo juízo da execução se fizer de modo diverso, atualizando o crédito em data diferente da definida no julgado de mérito que originou a exe-cução, haverá típico erro de cálculo que autorizará a revisão da conta a qualquer momento, pelo presidente do tribunal competente. o juízo objetivo inscrito na sentença, indiscutível e imutável, não pode ser desrespeitado no cálculo de apuração do valor a ser pago ao credor, sob pena de condescendência com o erro material típico.

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observe que erro de cálculo não é apenas o equívoco aritméti-co, mas também toda e qualquer violação ao critério objetivamente descrito na sentença quando da apuração do quantum debeatur, já que por erro deve-se compreender toda a anomalia na apreensão da reali-dade dos fatos, cuja natureza é de vício do consentimento, em razão do equívoco a propósito de determinado evento material. humberto Theodoro Júnior define o erro de cálculo como

vícios que se percebam à primeira vista e sem necessidade de maior exame, tornando evidente que o texto da decisão não traduziu ‘o pensamento ou a vontade do prolator da sentença’. A correção do erro, in casu, poderá ser feita a requerimento da parte, ou, ex ofi-cio, pelo juiz (Código de Processo Civil, art. 463, n° I).7

Toda a discrepância entre a representação do fato objetivo narra-do na formação do documento sentencial meritório que traduz o pensa-mento e a vontade do prolator da decisão e o cálculo que serviu de base para a execução não poderá ser vista senão como erro material reconhe-cível de ofício pelo presidente do tribunal no caso do precatório.

Merece referência a dogmática de carlos Valder do nascimento:

ora se o juiz homologa cálculos com erro, pressupõe-se que, em-bora não seja manifestação inequívoca da sua vontade, o fez por desconhecimento, por irreal percepção do fato, de modo que seu ato contempla o âmago da questão, isto é, sua causa material. E assim configurando discrepância entre sua vontade e a veiculada no próprio conteúdo de sua decisão, torna-a defeituosa. decorren-te disso, o erro de cálculo ou mesmo de sua atualização deve ser corrigido de ofício pelo Judiciário. Ele não reproduz a vontade do magistrado nem o estado pode cobri-lo com o manto do trânsito em julgado. Mesmo homologado nessas circunstâncias, porque ato nulo, não irradia efeitos jurídicos definitivos. Pela sua não inserção na relação processual válida, pode ser recomposto, com vistas ao restabelecimento da sua exatidão a qualquer tempo. O que importa é que se persiga, sem limitação temporal, a eliminação da incerte-

7 ThEodoRo JÚnIoR, humberto. curso de direito processual civil. 47. ed. São paulo: Forense, 2007, p. 577.

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za presente no vínculo jurídico, sendo insubsistente o processo se tal desiderato não for atingido em toda a sua plenitude. não é sem razão que Calamandrei assevera que o fim do processo é a garantia da observância prática do direito objetivo.8

A possibilidade de revisão do erro de cálculo traz em si a preser-vação do justo valor atribuído às partes pela sentença de mérito. não se pode atribuir ao ato processual meramente homologatório do cálculo o poder de ofender ou alterar a vontade manifestada pelo juízo quando da sentença condenatória da obrigação de pagar. Ainda que posterior-mente homologado, o cálculo que se afasta da decisão de mérito rejeita seu substrato original que é a vontade descrita pelo juízo na fase de conhecimento. Quando a conta homologada destoa do critério objetivo sentencial a tal ponto de gerar um valor por vezes absurdo, muito aci-ma do efetivamente determinado no comando sentencial de mérito, por mais forte razão a revisão desse cálculo deve dar-se, especialmente em se tratando de precatório judicial, cujo interesse público de pagar a justa condenação sobreleva-se frente ao interesse particular de receber uma quantia indevidamente homologada pelo juízo da execução. Decisão homologatória incongruente com a sentença transitada em julgado não recebe o condão de se tornar imutável, possibilitando a correção do erro de cálculo em respeito ao justo valor definido na sentença.

3 podeR-deveR de ReviSão do eRRo de CÁLCuLo

Definido o que vem a ser o erro de cálculo, cumpre-nos expen-der argumentação jurídica que autorize a sua revisão pelo presidente do tribunal competente, a qualquer momento, mesmo após a fase de homologação da conta liquidada.

como dito alhures, o art. 1-E da lei 9.494/97, autoriza e atribui ao presidente do tribunal que expediu a ordem de pagamento na via do precatório, por ato de ofício, a atribuição de rever a conta homologada pelo juiz da execução com o escopo de aferir o correto valor a ser pago no precatório, resgatando, por conseguinte, a declaração feita pelo juízo

8 NASCIMENTO, Carlos Valder. Execução Contra a Fazenda Pública. São Paulo: Foren-se, 2000, p. 29 e segs.

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de mérito no processo de conhecimento. cabe aqui ponderar que a des-peito de os atos praticados pelo presidente do tribunal no que concerne ao processamento e pagamento do precatório, em regra, não ter em ca-ráter jurisdicional, mas meramente administrativo (súmula n. 311 do Superior Tribunal de Justiça), por expressa imposição legal será essa autoridade pública a competente para prover a revisão quando existir erro de conta, o que faz pensar que, neste caso específico, o ato revisio-nal praticado pelo presidente é dotado de jurisdição.

há que se ter em mira que o disposto para o precatório não é novi-dade jurídica, pois no mesmo passo, e há tempos, o código de processo civil (cpc) disciplina sobre a não-aplicação da teoria da coisa julgada aos erros materiais, dos quais um de seus exemplos típicos é o erro de cálculo. o art. 463 do cpc assim dispõe: “publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: I – para lhe corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhe retificar erros de cálculo”. No mes-mo norte o artigo 143 do código civil de 2002 que autoriza e obriga à alteração da declaração de vontade quando houver erro de cálculo, permitindo sua retificação quando os mesmos forem formulados de ma-neira equivocada frente à sentença meritória. Assevere-se que por ser o ato processual modalidade de ato jurídico, aplica-se, em sua plenitude, a disposição da lei civil à situação trazida à luz.

No caso específico de Minas Gerais, os artigos 1º e 2º da Por-taria n. 1.527/2003, do Tribunal de Justiça mineiro, instrumento jurí-dico que regulamenta o funcionamento da central de conciliação de precatórios, órgão incumbido da conciliação e pagamento das requi-sições de precatórios comuns e alimentares tomadas contra o poder público, determina que os valores que devem ser pagos, serão con-feridos antes de seu pagamento, devendo ser sobrestado o precatório quando houver impugnação de uma das partes fundada em erro ma-terial, tudo para evitar e expurgar desacertos nas contas de liquidação dos processos que ensejaram o requisitório.

o erro de cálculo pode ser revisto a qualquer momento, não se sujeitando a nenhum limite temporal, não se lhe aplicando os institu-tos da preclusão, decadência ou prescrição. A jurisprudência do Su-perior Tribunal de Justiça é uníssona a esse respeito, como se verifica nos julgados ora transcritos:

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PROCESSUAL CIVIL – EXECUÇÃO DE SENTENÇA – cÁlculoS – hoMoloGAÇÃo – ERRo MATE-RIAl – RETIFIcAÇÃo – coISA JulGAdA – oFEn-SA – InocoRRÊncIA. Em sede de liquidação de sen-tença, embora homologados os cálculos por decisão com trânsito em julgado, é admissível a retificação da conta se constatada a ocorrência de erro material, sem que de tal providência resulte ofensa á coisa julgada. Inteligên-cia do art. 463, inciso I, do cpc – precedentes deste Tri-bunal – RESp. 53.223/Sp e RESp. 7.467/Sp – Recurso especial não conhecido.9

PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. ERRo MATERIAl. coRREÇÃo. nÃo oFEnSA A coISA JulGAdA. A coisa julgada abarca o dispositivo da sentença exeqüenda, não os cálculos eventualmente feitos pelo contador, que podem conter erros intolerá-veis, ainda que não impugnados em tempo oportuno pela parte interessada. Recurso conhecido e não provido.10

pRocESSuAl cIVIl. AGRAVo REGIMEnTAl no REcuRSo ESpEcIAl. VIolAÇÃo do ART. 535 do cpc. nÃo-ocoRRÊncIA. pREcATÓRIo coMplEMEnTAR. ERRo MATERIAl. AlEGAdA OFENSA À COISA JULGADA. INEXISTÊNCIA. JuRoS MoRATÓRIoS. nÃo-IncIdÊncIA. 1. não viola o art. 535 do cpc, tampouco nega prestação ju-risdicional, o acórdão que, mesmo sem ter examinado individualmente cada um dos argumentos trazidos pelo vencido, adotou, entretanto, fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia. 2. o aresto atacado abordou todas as questões necessárias à integral solução da lide, concluindo, no entanto, que o erro de cálculo é corrigível a qualquer tempo, até mesmo de ofí-cio, não implicando ofensa à coisa julgada. 3. A correção monetária, em sede de precatório complementar, deve restringir-se ao período compreendido entre a data da homologação dos cálculos anteriores, que deram origem

9 Recurso especial número 67.013/Sp. Relator Ministro Vicente leal, 6ª Turma.Ministro Vicente leal, 6ª Turma.10 Recurso especial número 127.426/Sp. Relator Ministro Edson Vidigal, 5ª Turma.Ministro Edson Vidigal, 5ª Turma.

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ao último precatório pago, e a data do seu efetivo paga-mento. 4. nessa sistemática, os critérios adotados para a elaboração da primeira conta tornam-se irrelevantes no momento da elaboração do cálculo para a expedição do precatório complementar. 5. A decisão agravada está em consonância com a orientação jurisprudencial desta cor-te, no sentido de que são indevidos os juros moratórios nos precatórios complementares, se satisfeito o paga-mento dentro do prazo estipulado pela constituição Fe-deral em seu art. 100, § 1º, ou seja, no período constante entre 1º de julho de um ano (momento da inscrição do precatório) e 31 de dezembro do ano seguinte. 6. Agravo regimental desprovido.11

pREcATÓRIo coMplEMEnTAR. JuRoS coMpEn-SATÓRIOS. EXCLUSÃO. ERRO MATERIAL. INE-XISTÊNCIA. JUROS DE MORA. INCIDÊNCIA, SE O pAGAMEnTo ocoRRE FoRA do pRAZo conSTI-TucIonAl. [...] 5. o erro material caracteriza-se pelo equívoco de escrita ou de cálculo, sobre a conta homolo-gada, hábil a representar a manifestação viciada da vonta-de, e pode ser sanado a qualquer tempo, para subtrair os juros moratórios e compensatórios da conta do precatório complementar, sem que se ofenda a coisa julgada, hipótese em que o próprio Tribunal a quo entendeu inocorrente. 6. Recurso especial desprovido.12 no corpo do decisum ora ci-tado, restou afirmado pelo Eminente Relator Ministro Luiz Fux que ‘Com efeito, o erro material pode ser sanado a qualquer tempo, inclusive para subtrair os juros moratórios e compensatórios da conta de precatório complementar, sem que se ofenda a coisa julgada, até porque a correção do erro constitui mister inerente à função jurisdicional’.

A análise da legalidade do ato praticado pelo presidente do tri-bunal competente não pode fugir à apreciação de outros princípios

11 Agravo regimental no Recurso especial número 790.282/MT. Relatora Ministra denise Arruda, 1ª Turma. Julgado em 05.09.2006 e publicado o acórdão no diário da Justiça de 05.10.2006, p. 259.

12 Recurso especial n. 652.981/Go, 2004/0065772-9, primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux. Julgado em 09.11.2004, publicado no Diário da Justiça de 29.11.2004, p. 263.

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jurídicos descritos no plano constitucional e infraconstitucional, apli-cáveis ao caso debatido, pois a interpretação dos dispositivos citados alhures, que autorizam a revisão de conta judicial tida com erro ma-terial, deve dirigir-se para o fim de possibilitar a correção do cálculo apresentado pelas partes quando o mesmo apresente vício, já que na aplicação da lei, deve-se ter em mira o fim social a que se dirige e à exigência do bem comum, nos termos do artigo 5º da LICC que de modo peremptório aponta que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Permitir a retificação dos erros constantes nos cálculos judiciais é privilegiar o bem comum que se mostra no interesse público de evitar o enriquecimento sem causa do credor, que receberia valor in-devido e, por vezes, consideravelmente maior, face à aplicação de cri-tério contrário ao expressamente determinado no decisum de mérito transitado em julgado.

o art. 884 do código civil de 2002 disciplina que “aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a resti-tuir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetá-rios”. A vedação ao enriquecimento sem causa significa em último pla-no a preservação dos valores da boa-fé e da eticidade que são princípios norteadores de todo o sistema jurídico. Ademais, o código de processo civil imputa às partes o dever de proceder com lealdade e boa-fé (artigo 14, II), reputando como litigante de má-fé aquele “que alterar a verdade dos fatos” (art. 17, II, do CPC). Formular conta diversa da definida em sentença significa, em última análise, uma alteração da verdade do de-cisum, contrariando a boa-fé, a probidade e a ética processual.

Ainda que homologada a conta na fase de liquidação, caberá a correção da falha a qualquer momento, pois a manutenção do erro de conta atenderá exclusivamente ao interesse particular do credor que se beneficiou pela má e equivocada liquidação do quantum debeatur e não ao interesse da população representada sob o manto do ente pú-blico que terá sobrecarregado seu erário em razão de uma dívida ex-tremamente majorada quando da expedição do precatório. O erro de conta, ainda que esta tenha sido homologada pelo juízo da execução, é vício da vontade que sobrecarrega todos em atenção ao egoístico interesse de um, ou de alguns, credores específicos que pretendem se locupletar com a falha judicial.

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Na visão da teoria da preponderância dos interesses em conflitos, que serve de norte para a interpretação das normas jurídicas em face da análise constitucional que deve ser dado ao tema, vislumbra-se que, no caso pontificado, deverão prevalecer os princípios da moralidade pú-blica, probidade administrativa, segurança jurídica pela manutenção da decisão de mérito havida no processo de conhecimento e da suprema-cia do interesse público em detrimento do exclusivo interesse da parte credora em receber valor maior que o efetivamente devido, por força de um erro de cálculo praticado pelo juízo, pela parte contrária ou até mesmo por ato do credor, quando da liquidação da sentença.

o princípio da supremacia do interesse público sobre o particu-lar nos indica que o axioma social é representado, nesse fato estudado, pela proteção ao erário público que se sobrepõe à idéia do valor indi-vidual. Quando, nas relações jurídicas, o interesse da sociedade entra em rota de colisão com o exclusivo interesse da parte, deve prevalecer o primeiro, não podendo o direito individual equiparar-se aos direitos sociais já que o homem vive em sociedade e não isolado em uma ilha. José dos Santos carvalho Filho doutrina que

desse modo, não é o indivíduo em si destinatário da atividade ad-ministrativa, mas sim o grupo social num todo. Saindo da era do individualismo exacerbado, o Estado passou a caracterizar-se como o Welfare State (Estado/bem-estar), dedicado a atender ao interesse público. logicamente as relações sociais vão ensejar, em determi-nados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público. Trata-se de fato, do primado do interesse público. o indiví-duo tem que ser visto como integrante da sociedade, não podendo os seus direitos, em regra, serem equiparados aos direitos sociais.13

o princípio da supremacia do interesse público inspira o legis-lador no momento da produção legislativa e vincula o administrador no momento de sua atuação, bem como o poder Judiciário no instante de julgar, pois, como bem disse Maria Sylvia Zanella di pietro, “o Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do

13 cARVAlho FIlho, José dos Santos. Manual de direito Administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: lumem Juris, 2006, p. 25.

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indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo”.14 Está aí a razão da supremacia da instância pública sobre a meramente particular.

decorrente do princípio da supremacia do interesse público, ressai o dever de moralidade descrito no caput do artigo 37, da cons-tituição Federal de 1988. A moralidade nos leva à idéia de que nas relações jurídicas em que esteja presente a Administração pública, por meio de suas três funções de poder (executivo, legislativo e judi-ciário), deve prevalecer o padrão ético de conduta das partes. Todo e qualquer ato que imponha ao erário público o dever de pagar mais do que o devido é imoral, pois causa prejuízo patrimonial ao erário em razão de sua lesividade. Ressalte-se que o devido no caso concreto é o percentual de valor fixado na sentença de mérito surgida no processo de conhecimento e não na decisão homologatória do cálculo vicia-do. note-se que a lesividade é o pressuposto objetivo da moralidade administrativa, pois todo ato causador de dano efetivo ou presumido ao erário público é imoral. pagar mais que o devido por um vício de contabilidade é comungar com a improbidade administrativa.

outrossim, o ordenamento jurídico brasileiro impõe a pena de ilicitude, por abuso de direito, a todo o ato que vá de encontro ao fim social (princípio da supremacia do interesse público sobre o particular) e aos padrões éticos de conduta (moralidade), nos moldes do art. 187 do cc/02, que trata dos atos ilícitos: “Art.187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limi-tes impostos pelo seu fim social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

ora, sendo ilícito o ato de apresentação de conta pelo credor em patamares diversos do estipulado na decisão transitada em julgado, o ato de homologação desta conta pelo juízo da execução não produzirá qualquer efeito, posto que nulo de pleno direito (art. 166 do código civil de 2002) em razão de sua ilicitude pela violação ao princípio da moralidade e da supremacia do interesse público.

Sendo ilícito o ato de cálculo contrário aos termos da sentença, este não poderá gerar nenhum direito aos credores, pois, como é sa-bido, do ato ilícito decorrem apenas e tão somente deveres jurídicos à pessoa que o cometeu, não podendo vislumbrar a presença de prer-

14 dI pIETRo, Maria Sylvia Zanella. direito Administrativo 8. ed. São paulo: Atlas, 2000, p. 62.

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rogativas ou direitos subjetivos à parte que atuou contrariamente ao direito posto.

na liquidação do precatório, deve-se seguir a decisão de mérito e não o equivocado cálculo apresentado pelo juízo ou pelas partes processuais. Desprezar a sentença alterando a coisa julgada significa ferir o princípio da segurança jurídica, expresso no art. 5º, XXXVI da constituição da República, que assim dispõe: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

portanto, o valor que deve ser pago no precatório não pode se basear em uma conta que despreza o comando sentencial. Autorizar o agir de maneira diversa significaria violar os efeitos da indiscutibilidade e da imutabilidade da coisa julgada havida em sentença de mérito, nos moldes dos arts. 467 do cpc: “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”; e do 475-G do diploma processual que assim dispõe: “É defeso, na liquidação, discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou”. Aderir ao cálculo errôneo, dando-lhe o caráter de imutável é desprezar o art. 468 do cpc, que nos indica: “a sentença que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas”. o erro de cálculo não pode sobrepor-se à sentença de mérito transitada em julgado no processo de conhecimento, isso porque entregue a prestação jurisdicional, o que se faz pela sentença de mérito na fase do conhecimento, e não em cálculo errado, não se pode rediscutir questão já decidida, nos termos dos arti-gos 471 e 463 do código de processo civil.

Ainda que não fosse nulo o ato de cálculo contrário aos ter-mos do decisum, não gerando o efeito de imutabilidade próprio da coisa julgada material, o ato de contabilidade equivocado e todos os demais que dele decorrerem, poderão ser considerados inexistentes, pois a execução baseada em cálculo viciado, ainda que homologa-do, não terá título judicial que a embase. Toda execução tem como substrato um título judicial, que no caso do precatório é a sentença de mérito do processo de conhecimento. Assim o disposto no artigo 583 do Código de Processo Civil: “Toda a execução tem por base título executivo judicial ou extrajudicial”. Tendo a execução se ba-seado em fundamento diverso do título judicial, os atos nela pratica-dos, senão nulos, serão inexistentes em razão da falta de declaração

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judicial que lhe sirva de alicerce jurídico. Não há execução sem título judicial que, repita-se, no caso do precatório é uma decisão judicial de mérito tomada na fase processual de conhecimento, onde se faz o acertamento do crédito/débito. É nesta decisão do juiz, e não na elaboração ou homologação do cálculo equivocado, que houve a manifestação meritória da jurisdição.

Por fim cumpre-nos deixar definido que não há que se falar em coisa julgada nas decisões meramente homologatórias. A simples ho-mologação do cálculo, especialmente quando não houve discussão dos mesmos na via dos embargos do devedor (caso da Fazenda pú-blica) ou impugnação (nos moldes do cumprimento da sentença) não traz em si a força da coisa julgada.

o próprio artigo 475-h, do código de processo civil, parece ter dado ao ato homologatório da conta judicial a condição de simples de-cisão interlocutória ao dispor que: “Art. 475-h. da decisão de liqui-dação caberá agravo de instrumento”. ora, sendo uma mera decisão interlocutória e incidental no processo, não tem o condão de modificar a sentença de mérito levada a efeito na fase de conhecimento.

4 ConCLuSão

Assim, em conclusão, resta límpido o poder do presidente do tribunal competente para a revisão do cálculo do precatório, no mo-mento do seu pagamento, a fim de expurgar da conta homologada na fase de liquidação da sentença os erros de cálculo encontrados, a fim de preservar o interesse público frente ao interesse particular do credor estatal, sendo válida e constitucional a decisão que determine a revisão da conta quando do adimplemento da dívida pública. não pode o Estado juiz comungar com o erro, sob pena de premiar o enri-quecimento sem causa do particular.

5 ReFeRÊnCiAS BiBLioGRÁFiCAS

cRETEllA JÚnIoR, José. Revista de Informação Legislativa. Bra-sília: Senado Federal, v. 25, n. 97, jan/mar., 1988.

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cARVAlho FIlho, José dos Santos. Manual de direito administra-tivo. Rio de Janeiro: lumem Juris, 2006.

TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Execução no processo do tra-balho. São paulo: lTR, 1991.

ThEodoRo JÚnIoR, humberto. Curso de direito processual civil. São paulo: Forense, 2007.

dI pIETRo, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São paulo: Atlas, 2000.

MEIRElES, hely lopes. Direito administrativo brasileiro. São pau-lo: Malheiros, 1993.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São paulo: Atlas, 2008.

nAScIMEnTo, carlos Valder do. Execução contra a fazenda públi-ca. São paulo: Forense, 2000.

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A pRIncIpIoloGIA conTRATuAl conTEMpoRÂnEA E o dIREITo do conSuMIdoR

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Sumário1. Introdução. 2. o direito contratual. 2.1. A teoria contratual clássica. 2.2. A nova teoria contratual. 2.2.1 Apontamentos da nova teoria contratual no direito pátrio. 3. A principiologia contratual con-temporânea. 3.1. o princípio da boa-fé-objetiva. 3.2. A função social dos contratos. 3.3. Justiça con-tratual. 4. A proteção ao consumidor. 4.1. Escorço histórico. 4.2. contratos de adesão. 4.3. cláusulas abusivas nas relações de consumo. 4.4. o dever de informação do fornecedor. 5. conclusão. 6. Refe-rências bibliográficas.

Resumoo presente estudo visa a analisar os contornos delineados pela

nova principiologia contratual no direito privado contemporâneo, inserida no ordenamento jurídico brasileiro, através do advento do código de defesa do consumidor e do código civil de 2002, tendo como fundamento o Estado democrático de direito delineado a partir da constituição da República de 1988. Busca, ainda, analisar sua cor-relação com o sistema protetivo de defesa do consumidor esculpido pelo direito do consumidor. pAlAVRAS-chAVE: contrato. consumidor. Boa-fé objetiva. Função Social. Justiça contratual. Informação. Transparência. princípios.Transparência. princípios.

REV. FAc. dIR. MIlTon cAMpoS noVA lIMA n. 16 p. 373-400 2008

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AbstractThis study aims to discuss the conseqüences of the new contrac-

tual law principles in the civil law of the contemporary age, focused on the field of the consumer protection and defense. These princi-ples were brought to Brazilian legal system by the consumer defense code (1990) and civil code (2002). To succeed, it looks forward to analyse the phenomenon of the socialization of the contract, inside of the democratic State of law, all presented by norms of public order, specially the objective good-faith, the social function of the contract and contractual justice principles, which restrict the private autonomy in the consumer relations.KEYWoRdS: contracts. consumer. Good-faith. Social function.Social function. contractual Justice. principles. 

1 intRodução

o estudo propõe realizar uma análise do direito contratual1, sob a ótica das relações de consumo, a partir da principiologia contratual contemporânea, fruto de uma concepção social do contrato (MAR-QuES, 2006, p. 210), visando a proceder a uma releitura do instituto jurídico dos contratos.

pretende-se delinear breve histórico sobre a proteção do con-sumidor, determinar o âmbito das relações de consumo, a evolução da teoria contratual e os parâmetros norteadores impostos pela teoria contratual na contemporaneidade.

Nesse contexto, é fundamental a análise do principio da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e da justiça contratual, na conjuntura hodierna do direito contratual, na qual os contratos de-vem obrigatoriamente se adequar aos princípios constitucionais se-dimentados no Estado democrático de direito, no intuito de que os contratantes possam exercer sua liberdade contratual de forma justa, equilibrada e cooperativa.

1 Enzo Roppo define o Direito Contratual como sendo “[...] conjunto – historicamente mu-tável – das regras e dos princípios, de vez em quando escolhidos para conformar, duma certa maneira, aquele instituto jurídico [o contrato], e, portanto, para dar um certo arranjo – funcionalizado a determinados interesses – ao complexo das operações económicas efectivamente levadas a cabo”. (Roppo, 1988, p.11).

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2 o diReito ContRAtuAL

O contrato como fonte geradora de direitos/obrigações afigura-se como principal instrumento de geração de riquezas e circulação de produtos e serviços na sociedade contemporânea, denotando assim sua precípua função econômica.

Surge como uma reivindicação da realidade social para regula-mentar juridicamente a circulação das riquezas na sociedade, por meio da imposição de normas, que incipientemente se aglutinaram e origina-ram a formação do direito contratual (noVAIS, 2001a, p. 33-34).

possui no direito romano suas origens (FIuZA, 2006, p. 390; noVAIS, 2001a, p. 35; pEREIRA, 2007, p. 8; FIuZA, 2007, p. 255), que, perpassando pelo código civil napoleônico de 1804, irradia-se para outros ordenamentos jurídicos, tendo como fundamento o indi-vidualismo, caráter eminentemente patrimonialista, e, sobretudo, a imposição do princípio da autonomia da vontade e do pacta sunt ser-vanda. No Brasil tal influência penetrou no Código Civil de 1916, e passou a reger as relações jurídicas contratuais.

com o advento da constituição da República de 1988 (cR/88) e em seguida do código de defesa do consumidor (lei 8.078/90), a teoria contratual ganha novo afluxo, com a inserção de princípios constitucionais e valores sociais preconizados no Estado democráti-co de direito, que introduzem uma reformulação na interpretação do direito contratual.

nessa esteira, com a promulgação do código civil de 2002, a principiologia contratual é consagrada definitivamente no direito privado, notadamente, no contratual, tendo por fundamento as dire-trizes da socialidade, eticidade e operabilidade (ou concretude), as quais afluem do princípio constitucional da solidariedade esculpido no artigo 3º, I, da Constituição da República de 1988.

2.1 A teoria contratual clássica

o direito contratual que se desenvolveu na modernidade teve por objetivo resguardar os interesses da burguesia e servir de instru-

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mento fundamental ao desenvolvimento econômico da sociedade, im-pulsionado pelo crescente processo de industrialização.

No Estado Liberal, a concepção clássica de contrato, explicita-va um caráter eminentemente individualista, patrimonialista, centra-do no princípio da autonomia da vontade e no pacta sunt servanda (lIMA, 2003, p. 51)2, como fonte geradora de direito nos contratos, e, sobretudo na igualdade formal dos contratantes, o que gerou inú-meras desigualdades, e por conseqüência, demandaram uma atuação intervencionista do Estado no sentido de coibi-las.

Acreditava-se que a ilimitada liberdade de contratar, a igualda-de formal e a obrigatoriedade contratual eram suficientes para garantir a justiça contratual, pois, o contrato firmado era indubitavelmente re-sultado da vontade emanada pelas partes.

Contudo, verificou-se que a justiça contratual encontrava-se ameaçada por uma série de fatores que impediam sua concretização. Assim, com o advento do processo de industrialização, a influência do liberalismo econômico, a massificação dos contratos (FIUZA, 2006, p. 406), o surgimento dos contratos de adesão, e por conseqüência, pelo desequilíbrio contratual gerado, desencadeou-se a crise da teoria contratual clássica, pois, o conceito clássico de contrato não mais se adaptava à realidade socioeconômica do século XX.

Nesse sentido, Enzo Roppo explicita que, “o contrato muda a sua disciplina, as suas funções, a sua própria estrutura segundo o contexto econômico-social em que está inserido.” (Roppo, 1988, p. 24).

Essa crise veio a culminar com uma necessária evolução da teo-ria contratual, para abarcar novos paradigmas principiológicos, advin-dos dos textos constitucionais, no sentido de garantir a efetividade da igualdade material e coibir as desigualdades nas relações jurídicas.

2.2 A nova teoria contratual

As exigências advindas da realidade social e da economia inci-dente no final do século XIX e início do XX culminaram com o ad-

2 nesse sentido ver: lÔBo (1986, p. 13).

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vento do Estado Social de direito, onde a sociedade não admitia mais relações contratuais desequilibradas, eivadas de cláusulas iníquas e abusivas, posto que impostas, pela massificação dos contratos e pelos contratos de adesão.

Nesse contexto, o Estado vê-se forçado a intervir nas relações privadas para prover maior segurança aos contratantes e equilíbrio aos contratos, por meio de um efetivo papel intervencionista na con-secução das finalidades sociais, no sentido de minimizar as desigual-dades sociais e econômicas impostas pelo Estado liberal. (lIMA, 2003, p. 51).

desse modo, a concepção egoística do contrato do Estado li-beral é abandonada no Estado Social de direito, e nessa evolução, o direito contratual passa a ser interpretado em consonância com os preceitos constitucionais, à luz de valores éticos, sociais e existenciais consagrados no Estado democrático de direito.

A autonomia da vontade, consagradora da liberdade contratual, passa a encontrar limites no ordenamento jurídico, sendo hodierna-mente concebida como autonomia privada, de índole objetiva, valo-rizada pela inserção da boa-fé objetiva nas relações jurídicas obri-gacionais e, por conseguinte, nas contratuais, na busca da igualdade material e da relativização da força obrigatória dos contratos, princi-palmente, os de adesão.

Nesse contexto, o aspecto social passa a ser privilegiado, bem como a despatrimonialização das relações humanas, tendo por arca-bouço o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

2.2.1 Apontamentos da nova teoria contratual no direito pátrio

o código de defesa do consumidor (lei 8.078/90) veio a lume

com o objetivo de coibir os abusos e a implementar o reequilíbrio das relações jurídicas de consumo. Seu advento consagrou a nova teoria contratual no direito brasileiro, por meio da positivação desta no refe-rido código consumerista, com a introdução da principiologia contra-tual contemporânea, notadamente, encabeçada pela cláusula geral da boa-fé objetiva. (MEllo, 2001b, p. 70).

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na evolução da teoria contratual, o código civil de 2002, assu-me um papel importante, pois, incorpora e consagra de forma defini-tiva a principiologia contratual contemporânea no direito privado, o que enseja a reinterpretação de seus institutos jurídicos.

Tal fato deve-se em razão de ambos os diplomas legais se co-municarem e interagirem, pois, afluem da mesma matriz princípio-lógica, qual seja, a constituição da República de 1988, por meio do diálogo de fontes3, expressão consagrada no Brasil, por Claudia Lima Marques.

Trata-se da interligação sistemática existente entre o Código de defesa do consumidor e outros diplomas legais, especialmente o có-digo civil, que busca possibilitar maiores benefícios e mecanismos de defesa para o consumidor.

desse modo, a releitura do direito privado, a partir dos ditames constitucionais, impõe profundas alterações no direito contratual, es-pecialmente, no campo da hermenêutica, tendo a principiologia con-tratual papel fundamental na visão dos contratos na contemporaneida-de, no sentido de garantir a igualdade material entre os contratantes.

3 A pRinCipioLoGiA ContRAtuAL ConteMpoRÂneA

3.1 o princípio da boa-fé-objetiva

o princípio da boa-fé objetiva apresenta-se na contemporanei-dade como um dos mais importantes princípios do direito privado. possui grande relevância no direito contratual, dado sua inserção por meio da positivação expressa tanto no Código de Defesa do Consumi-dor quanto no código civil de 2002.

A boa-fé objetiva foi esculpida, inicialmente, no direito brasi-leiro no artigo 131, I, do código comercial de 1850, onde já se previa expressamente a boa-fé, de cunho contratual, no tocante ao aspecto

3 Acerca do diálogo de fontes ver: MARQuES (2006, p. 663-701); MARQuES; BEnJAMIn; MIRAGEM (2006, p. 26-58); MARQuES (2005, p. 11-82); MI-RAGEM (2007, p. 179-180).

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interpretativo. no código civil de 1916 não havia previsão da mes-ma, sendo no referido diploma legal contemplado tão somente a acep-ção subjetiva da boa-fé.

posteriormente, a boa-fé objetiva foi inserida no código de de-fesa do Consumidor (artigo 4º, III e 51, IV, CDC) e, já recentemente, no código civil de 2002, por meio da previsão legal do artigo 422, em consonância com os artigos 113 e 187.

O princípio em comento ensejou profunda modificação na con-cepção tradicional de contrato (relação jurídica estática), que passa a ser visto como relação jurídica complexa e dinâmica (couTo E SIlVA, 1976, p. 10-11)4, formado por um feixe de obrigações múl-tiplas e recíprocas. nesse sentido, a autonomia privada é modelada, relativizada ou, mesmo para alguns, mitigada pela inserção da boa-fé objetiva nas relações jurídicas contratuais.

o princípio da boa-fé objetiva é uma regra de conduta, de com-portamento ético, social imposta às partes, pautada nos ideais de hones-tidade, retidão e lealdade, no intuito de não frustrar a legítima confian-ça, expectativa da outra parte, tendo ainda, a finalidade de estabelecer o equilíbrio nas relações jurídicas. (RoSEnVAld, 2005, p. 80).5

destarte, fundamenta-se na necessidade das partes atuarem reciprocamente com cooperação, lealdade, honestidade e confiança (FIuZA, 2006, p. 410-411; hIRonAKA, 2003, p. 112-113), no intui-to de concretizar a diretriz da eticidade preconizada no código civil.

Esta se traduz como a concretização do princípio da dignidade humana no campo das obrigações, e, por conseguinte, no direito contra-tual. (FARIAS; RoSEnVAld, 2006, p. 41), devendo ser concretizada pelo intérprete de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

o princípio da boa-fé objetiva possui caráter tridimensional, que se exterioriza por meio de três funções elencadas no Código Civil de 2002, quais sejam: a interpretativa (artigo 113), na qual a boa-fé atua como referencial hermenêutico das relações jurídicas contratuais,

4 nesse mesmo sentido ver: MARQuES (2006, p. 217-218); MARTInS-coSTA (2000, p. 382-409); noRonhA (2007, p. 75).

5 nesse sentido ver: FARIAS; RoSEnVAld (2006, p. 40); MARTInS-coSTA (2000, p. 411-412); noRonhA (1994, p. 152); noRonhA (2007, p. 446-447); coRdEIRo (2005, p. 405); coRdEIRo (2007, p. 632); MARQuES (2006, p. 216); lÔBo (2002, p. 193); noVAIS (2001b, p. 22-23).

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a de controle (artigo 187), na qual visa a limitar o exercício abusi-vo do direito subjetivo e a integrativa (artigo 422), na qual a boa-fé objetiva, destaca-se como fonte criadora de novos deveres especiais de conduta a serem observados pelas partes durante todo o vínculo obrigacional e que passam obrigatoriamente a integrar qualquer rela-ção obrigacional, como obrigação secundária, visando a garantir seu adimplemento. (noRonhA, 1994, p. 157; BIERWAGEn, 2003, p. 56; MARTInS-coSTA, 2002, p. 634; lÔBo, 2005, p. 76).

deste modo, a boa-fé objetiva integra o negócio jurídico por meio dos chamados deveres anexos (de proteção, cooperação, informação, dentre outros), os quais visam a consagrar sua finalidade precípua, o adimplemento do contrato, devendo ser observados na fase pré-contra-tual, de execução do contrato e na fase pós-contratual. (MELLO, 2001a, p. 316; couTo E SIlVA, 1976, p. 131; noRonhA, 2007, p. 80).

Devido à importância concretizada pelos deveres anexos de condu-ta nas relações jurídicas obrigacionais, firmou-se entendimento no senti-do de que, quando se descumprem os deveres anexos de conduta, tem-se a chamada violação positiva do contrato ou adimplemento ruim (GAR-cIA, 2007, p. 120)6, pois a obrigação principal é cumprida, porém, ocorre o descumprimento dos deveres anexos (obrigação secundária).

Assim o direito obrigacional, e em especial os contratos, irão se nortear pelo exercício da autonomia privada acrescida pelos deveres anexos de conduta impostos pela função integrativa da boa-fé objeti-va, no intuito de garantir o equilíbrio contratual.

desse modo, a boa-fé objetiva destaca-se como elemento trans-formador de todo o direito obrigacional, irradiando-se para os demais ramos do direito e, em especial, para o contratual. (MARTInS-coS-TA, 2002, p. 611).

3.2 A função social dos contratos

os contratos possuem três funções primordiais, quais sejam: a econômica, ligada ao fato do contrato ser instrumento de geração e

6 nesse mesmo sentido ver: MARQuES (2006, p. 220); SIlVA (2002, p. 82-105); TAR-TucE (2007, p. 103); coRdEIRo (2007, p. 594-602); nAlIn (2006, p. 226); SchREI-BER (2007, p. 135-138).

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circulação de riquezas na sociedade, a pedagógica ou regulatória, fun-dada na possibilidade dos contratantes criarem direitos e obrigações no intuito de regularem dadas situações, e a social, que se apresenta como uma síntese das funções anteriores. (FIuZA, 2007, p. 262-263).

Trata-se de uma cláusula geral, positivada nos artigos 421 e 2.035, parágrafo único do código civil de 2002, norteada pela dire-triz da socialidade, a qual se apresenta como um reflexo do princípio constitucional da solidariedade, consagrado no art. 3º, I, da Constitui-ção da República de 1988.

A função social do contrato pode ser definida como a finalidade a que visa o ordenamento jurídico para conferir as partes instrumentos jurídicos aptos a inibir, coibir quaisquer desigualdades porventura exis-tentes na relação jurídica contratual, no intuito de realização das finali-dades sociais delineadas pela ordem pública (TEIZEn JÚnIoR, 2004, p. 166), relacionando-se assim com a satisfação dos interesses sociais.

Em sua concepção moderna, delineia-se como elemento garanti-dor do justo equilíbrio social nas relações contratuais, enquanto instru-mento de geração e circulação de riquezas e de caráter pedagógico entre os contratantes. (BIERWAGEn, 2003, p. 41-42; lIMA, 2003, p. 54).

consiste em analisar a liberdade contratual no tocante aos seus efeitos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas em relação aos con-tratantes. Assim, as partes devem evitar que sua atuação negocial em seus efeitos prejudiquem terceiros, e, por conseguinte, estes também devem respeitar os efeitos dos contratos no meio social. (ThEodo-Ro JÚnIoR, 2004, p. 31).7

Assim, a função social traduz-se na necessidade das partes atuarem de forma cooperativa e com lealdade entre si e perante a sociedade,

7 nesse sentido, humberto Theodoro Júnior preconiza ainda que “A função social continua sendo desempenhada pelo contrato de consumo nos reflexos que produz no meio social, ou seja, naquilo que ultrapassa o relativismo do relacionamento entre credor e devedor e se projeta no âmbito de toda a comunidade. A lei de consumo protege, é verdade, o lado ético das relações entre fornecedor e consumidor. Mas não é propriamente nesse terreno, que a verdadeira função social se desenvolve, mas no expurgo do mercado de praxes inconvenientes que podem inviabilizar o desenvolvimento econômico harmonio-so e profícuo, tornando-o instrumento de dominação e prepotência. Protege-se, enfim, o consumidor para que a economia de mercado seja mais sadia e a mais desenvolvimentis-ta, dentro do ideal econômico da livre concorrência, e do ideal social do desenvolvimento global da comunidade.” (ThEodoRo JÚnIoR, 2004, p. 68-69).

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para que o contrato seja bom para as partes e bom para a sociedade. deste modo, a função social dos contratos visa a valorizar a auto-nomia privada, sendo a liberdade contratual exercida nos limites da referida função, no intuito de servir de instrumento de promoção do interesse coletivo e do bem comum.

Imprescindível destacar que a função social do contrato visa à consecução de determinados resultados ou de vantagens concretas para sociedade, pois não basta que o contrato produza os efeitos pre-tendidos, e que não cause danos a outrem. Impõe-se, assim, que os interesses individuais dos contratantes sejam exercidos em conformi-dade com os interesses sociais, posto que o contrato tem importância para toda a sociedade. (ToMASEVIcIuS FIlho, 2005, p. 204).

Nesse contexto, a função social do contrato manifesta-se tanto em seu aspecto interno (efeitos do contrato entre os contratantes, con-teúdo genérico inter partes, eficácia interna, função intersubjetiva, função intrínseca, função social interna do contrato) quanto em seu aspecto externo (efeitos do contrato em face da sociedade, conteúdo genérico ultra partes, eficácia externa, função transsubjetiva, função extrínseca, função social externa do contrato).8

portanto, a função social do contrato visa à promoção da justi-ça contratual ao caso concreto, pela limitação à liberdade contratual, para que produza efeitos satisfatórios entre os contratantes e perante a sociedade. destarte, faz-se necessário esforço hermenêutico, no senti-do de reinterpretar a relação contratual conforme os ditames impostos pela função social dos contratos.

3.3 Justiça contratual

o princípio da justiça contratual (equilíbrio econômico dos con-tratos, equivalência contratual ou equilíbrio contratual) apresenta-se

8 A doutrina não é uníssona na utilização das expressões relativas à definição do duplo aspecto da função social do contrato, apesar de possuírem o mesmo significado. Nesse sentido ver: TARTucE (2007, p. 239-248); GodoY (2007, p. 113-155); nAlIn (2006, p. 223-227); GAGlIAno (2006, p. 46); FonSEcA (2007, p. 38-74 e 209-210); Ro-SEnVAld (2007, p. 84-94).

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como um dos pilares da nova teoria contratual, ao lado da boa-fé ob-jetiva e da função social do contrato, possuindo grande relevância na ordem jurídica contemporânea, tendo como pressuposto a consagração da igualdade material (substancial) nas relações jurídicas contratuais.9

para Renata Mandelbaum, “a justiça contratual é vista como uma modalidade da justiça comutativa, pressupondo a equivalência entre prestação e contraprestação.”(MAndElBAuM, 1996, p. 106).

o princípio em comento traduz-se na relação de paridade que é estabelecida entre as partes contratantes, visando à concretização da igualdade material. Representa, assim, a idéia de equilíbrio entre as prestações oriundas de uma determinada relação contratual, tendo por fundamento a primazia da justiça social conforme delineado no artigo 170 cR/88.10

A justiça contratual preconiza que deve haver equilíbrio con-tratual (sinalagma) desde a gênese do contrato até seu adimplemento, pois se tem por objetivo garantir o equilíbrio entre prestação e contra-prestação nas relações contratuais.

É cediço que o equilíbrio contratual prestigia o sinalagma negocial, seja em seu momento genético (evitando a lesão – art. 157, cc), seja em sua fase funcional (onerosidade excessiva – art. 478, CC), em prol daqueles que nas relações privadas são considerados como “menos iguais”, seja ao tempo do ingresso no vínculo, seja, por fim, ao longo de sua trajetória. (RoSEnVAld, 2007, p.91).11

na teoria contratual clássica, o conceito de justiça contratual restringia-se à manutenção pelo intérprete do direito da livre contrata-ção e da igualdade formal dos contratantes. porém, com a nova teoria

9 para Rodrigo Mazzei, o princípio da justiça contratual deriva das diretrizes da eticidade e socialidade do código civil de 2002. (MAZZEI, 2007, p. 209).

10 Nesse sentido, André Luiz Menezes Azevedo Sette expõe que “A justiça contratual con-siste, pois, numa justa distribuição de ônus e riscos entre as partes do contrato, exercendo além da função de controle da equivalência das prestações (ou seja, que a contrapresta-ção seja adequada à prestação), outra integrativa das questões que as partes deixaram de regulamentar no contrato, bem como, ainda, uma função de interpretação das normas contratuais em busca do bem comum e da igualdade material.” (SETTE, 2003, p. 147).

11 nesse mesmo sentido ver: MATTIETTo (2007, p. 133); nEGREIRoS (2002, p. 157-159); (TARTucE, 2007, p. 136-137).

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contratual, o paradigma da justiça contratual modifica-se, para que essa não observe mais tão somente a igualdade formal, prevista em lei, mas, sobretudo, que garanta a consecução da igualdade material entre os contratantes, no sentido de harmonizar os interesses das par-tes, e promover o bem comum e o interesse social.

[...] o fato da igualdade substancial já se presta, por si só e em uma acepção mais restrita, a conceder relevância e suporte ao princípio da justiça contratual – como forma de equalização de vantagens e riscos do negócio jurídico –, merece consideração amplificada em sua especial relação com o princípio da solidariedade. o contrato prossegue na busca pela utilidade econômica que lhe é peculiar, mas passa a instrumentalizar as exigências de afirmação de uma substancial igualdade entre os seus partícipes. (RoSEnVAld, 2007, p. 91).

Tal percepção de compatibilização da função econômica dos contratos com a inserção da igualdade material nas relações jurídicas, notadamente, em face da determinação do conteúdo contratual, im-põe-se no sentido de garantir o equilíbrio contratual tão almejado pelo ordenamento jurídico, na contemporaneidade.

4 A pRoteção Ao ConSuMidoR

4.1 escorço histórico

o movimento de proteção ao consumidor inicia-se na Europa com o advento da Revolução Industrial no século XVIII e com o aper-feiçoamento do Liberalismo Econômico do século XIX, que veio a consagrar o dogma da autonomia da vontade, pela liberdade de con-tratação e igualdade (formal) jurídica dos contratantes. (nIShIYA-MA, 2002, p. 21; coRdEIRo, 2005, p. 653).

Com as transformações sociais, advindas no final do século XIX, e com a crescente massificação dos meios de produção, dá-se o surgimento da denominada sociedade de consumo (mass consumption

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society), na qual a produção manual dos bens (produtos) passa a ser exceção, pela introdução da mecanização, produção em série, etc.12

Essa evolução do processo produtivo gerou um aumento pro-gressivo dos riscos gerados aos consumidores, por meio de falhas resultantes desse processo. Nesse contexto, verifica-se o domínio do crédito, marketing, da publicidade ilícita (abusiva e enganosa), práticas abusivas, cláusulas contratuais abusivas, falta de informa-ção adequada, surgimento dos contratos de adesão, os quais dimi-nuíam ou impossibilitavam o exercício da liberdade contratual, bem como impunham dificuldades de acesso à justiça. (GRINOVER et al, 2007, p. 6-7; nIShIYAMA, 2002, p. 24-25; cARVAlho, 2007, p. 3).

portanto, o fenômeno do consumerismo e o advento da socieda-de de consumo, encontram-se diretamente relacionados com a prote-ção do consumidor, que exsurge para coibir os abusos impostos pelos grandes conglomerados econômicos aos contratantes (consumidores). Havia, também, a insuficiência dos esquemas tradicionais do direito substancial e processual, que já não tutelavam eficazmente novos in-teresses identificados como coletivos e difusos.

Deste modo, o contexto histórico-social, diante dos avanços tecnológicos dos meios de produção e da posição de inferioridade dos contratantes, passou a demandar por uma legislação moderna, que resguardasse não apenas direitos, mas também que punisse com rigor o desrespeito aos direitos estabelecidos em favor dos contratantes.

É nesse cenário que se desenvolve efetivamente a idéia de pro-teção ao consumidor, parte presumivelmente vulnerável, em posição de patente inferioridade em face aos conglomerados econômicos, pelo reconhecimento dessa proteção na esfera dos poderes legislati-vo, Executivo e do Judiciário. (NISHIYAMA, 2002, p. 22).

Entretanto, é recente a inserção da proteção do consumidor em texto constitucional, o que ocorreu, somente, com a promulgação da constituição Espanhola de 1978. no Brasil, com o advento da cons-tituição da República de 1988, a proteção ao consumidor foi expressa-mente delineada no ordenamento jurídico brasileiro, seguindo a ten-

12 nesse sentido ver: MARTInS (2002, p. 6-7); TARTucE (2007, p.108-109).

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dência mundial. (nIShIYAMA, 2002, p. 26-27; cARVAlho, 2007, p. 3; BEnJAMIn; MARQuES; BESSA, 2007, p. 28).

A constituição da República de 1988 adotou a sistemática da proteção ao consumidor, de forma ampla, conforme previsto nos arti-gos 5º, XXXII, 170, V, CR/88 e no artigo 48 do Ato das Disposições constitucionais Transitórias (AdcT), consagrando-a como direito fundamental. (BEnJAMIn; MARQuES, BESSA, 2007, p. 24-27; nIShIYAMA, 2002, p. 15-16; cARVAlho, 2007, p. 4; GRInoVER et al, 2007, p. 8).

Tal perspectiva consolida-se com o advento do código de defesa do consumidor (lei 8.078/90), que positivou a proteção ao consumidor de forma específica, assegurando direitos individuais e coletivos, pela introdução de princípios contratuais, norteados pela sistemática dos preceitos constitucionais e pela concepção social de contrato esculpida na nova teoria contratual, os quais passaram a dire-cionar a interpretação da relação contratual de consumo.

o código de defesa do consumidor é uma lei que consagra princípios fundamentais da República, o mínimo essencial para pro-teção do consumidor e a sobreposição deste em relação aos demais ramos do direito, nos quais se evidenciem relações de consumo.

Este foi erigido sob a égide de um sistema de proteção especí-fica destinado ao consumidor, fundado no sistema moderno da téc-nica legislativa das cláusulas gerais (de normas flexíveis, de caráter exemplificativo) visando à constante evolução/atualização da legisla-ção consumerista, diante das demandas da sociedade, no sentido de viabilizar a proteção efetiva do consumidor.

Insta destacar ainda que, no âmbito das relações de consumo, exsurge como pressuposto fundamental de reconhecimento da tutela do consumidor, o princípio da vulnerabilidade do consumidor (técni-ca, informativa, econômica, jurídica, fática, política, dentre outras)13 esculpido no artigo 4º, I do Código de Defesa do Consumidor, o qual norteia toda a legislação consumerista.

o princípio em comento é reconhecido como o traço marcante, distintivo do código de defesa do consumidor, estando relaciona-

13 Acerca das modalidades de vulnerabilidade do consumidor ver: MARQuES (2006, p. 320-335); MARQuES; BEnJAMIn; MIRAGEM (2006, p. 145).

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do, intimamente, com os princípios da transparência (artigo 4º, caput CDC) e da boa-fé objetiva (artigo 4º, III e 51, IV, CDC), no intuito de garantir o reequilíbrio e a justiça contratual nas relações contratuais de consumo. (MARQuES, 2006, p. 318-320 e 355).14

Por fim, o Código de Defesa do Consumidor destaca-se como fonte de indiscutível força renovadora da teoria dos contratos, pois é reflexo de uma concepção social do contrato, onde a vontade das partes não é mais a única fonte das obrigações, mas, sobretudo, os princípios constitucionais, que migram para o direito privado, e con-sagram uma nova perspectiva interpretativa do direito contratual, na contemporaneidade.

4.2 Contratos de adesão

o fenômeno do consumerismo, intimamente ligado ao desen-volvimento da sociedade de consumo e da massificação dos contratos, fez exsurgir uma nova técnica de formação do contrato, ou seja, um novo modo de contratar, aplicável a qualquer categoria de contrato, os chamados contratos de adesão (SchMITT, 2006, p. 65)15, previstos no artigo 54 do código de defesa do consumidor16, e recentemente nos artigos 423 e 424 do código civil de 2002.

Trata-se de um acordo de vontades, de natureza jurídica con-tratual, cujo conteúdo contratual é pré-constituído (determinado pre-viamente) por uma das partes contratantes, sem que a outra tenha a possibilidade de discuti-lo, ou seja, cabendo, tão somente, à mesma aderir ou não ao pacto, denotando, assim, a aquiescência da vontade

14 nesse sentido ver: MARQuES; BEnJAMIn; MIRAGEM (2006, p. 145); GRInoVER et al (2007, p. 68-70); GARcIA (2007, p. 29); cARVAlho (2007, p. 7-8).

15 nesse sentido ver: GRInoVER et al (2007, p. 524); nEGREIRoS (2006, p. 367); MAR-QuES (2006, p. 76-77); BEnJAMIn; MARQuES; BESSA (2007, p. 287-288).

16 destaca-se que o artigo 54, parágrafo terceiro, do código de defesa do consumidor, foi recentemente alterado pela publicação da lei 11.785/2008, que impôs aos fornecedores a obrigatoriedade de inserção nos instrumentos contratuais de cláusulas com fonte não inferior ao corpo 12 (doze), visando a ampliar a proteção do consumidor. Artigo 54,§ 3º cdc: “os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.”

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de um dos contratantes (proponente/fornecedor) sobre a do outro con-tratante (aderente/consumidor).

César Fiuza e Giordano Bruno Soares Roberto definem o con-trato de adesão como “[...] aquele que se celebra pela aceitação de um das partes de cláusulas contratuais gerais propostas pela outra, a fim de constituir a totalidade ou ao menos a porção substancial do conteú-do de sua relação jurídica.” (FIuZA; RoBERTo, 2002, p. 14).

Assim, não há mais lugar para negociações e discussões acerca de cláusulas contratuais, pois a massificação dos contratos, imposta por meio de cláusulas gerais, adesivas e pré-determinadas em formu-lários impressos, modificou toda a realidade das contratações, per-mitindo aos conglomerados econômicos reduzir custos e otimizar o processo produtivo, para permitir contratações mais céleres. (FIuZA,FIuZA, 2006, p. 406; RIZZARdo, 1995, p. 85).

Nesse contexto, os consumidores aderem a contratos pré-redi-gidos, padronizados, sem que possam ter conhecimento prévio, claro e preciso do conteúdo contratual, pois não tem a oportunidade de ler e ponderar com precaução sobre as cláusulas que lhe são impostas.

na maioria dos casos, o consumidor somente recebe o contrato após concluí-lo, e soma-se a isso a falta de conhecimento para enten-der os termos técnicos do contrato (vulnerabilidade técnica), acresci-dos a conteúdos extensos, impressos em letras de tamanho reduzido, que visam a desestimular a leitura e análise do conteúdo contratual pelo aderente. (MARQuES, 2006, p. 160).

Ademais, há a imposição de várias cláusulas limitativas da con-tratação, as quais não são explícitas e, ao contrário, por vezes encon-tram-se inseridas sem qualquer destaque, o que impede a verificação das mesmas no instrumento contratual.

Assevera-se que o consumidor, via de regra, é leigo, sendo que não possui conhecimentos a fim de compreender o conteúdo contra-tual (vulnerabilidade técnica, jurídica), tendo pouco ou quase nenhum acesso a informações claras, precisas e transparentes sobre o contrato de seguro (vulnerabilidade informativa) e, ainda, avença com grandes conglomerados econômicos (vulnerabilidade econômica), o que lhe impõe posição de evidente inferioridade perante os fornecedores de produto/serviço.

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desse modo, a interpretação dessas situações adquire grande importância na contemporaneidade, com a inserção nas relações de consumo, do princípio da boa-fé objetiva, e em decorrência deste, o da transparência e o dever de informar sobre o conteúdo do contrato, bem como à observância a função social dos contratos e da justiça contratual.

É o sentido que direcionou os artigos 46 e 47 do código de de-fesa do consumidor, e os artigos 113 e 423 do código civil de 2002, os quais prevêem a interpretação dos contratos de forma mais favo-rável ao aderente (MARQuES, 2006, p. 75-76; MARQuES; BEn-JAMIn; MIRAGEM, 2006, p. 803-804; BEnJAMIn; MARQuES; BESSA, 2007, p. 288-291), no intuito de resguardá-lo, em caso de eventual arbitrariedade praticada pelo proponente.

4.3 Cláusulas abusivas nas relações de consumo

O Código de Defesa do Consumidor erigiu, expressamente, no capítulo relativo aos direitos básicos do consumidor (artigo 6º, IV, cdc), a proteção contra cláusulas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços, de modo a garantir ao consumidor a modifi-cação das cláusulas contratuais, que estabeleçam prestações despro-porcionais.

As cláusulas abusivas estão previstas no código de defesa do Consumidor, em seu artigo 51, o qual elenca em seu rol exemplifica-tivo (numerus apertus) diversas condutas que subtraiam do consumi-dor o direito de contratar em condição de igualdade.

As cláusulas abusivas são geralmente impostas em contratos de massa e traduzem-se em uma vantagem exagerada ao fornecedor emtraduzem-se em uma vantagem exagerada ao fornecedor em detrimento do consumidor, por impor-lhe o desequilíbrio contratual, e via de consequência, patente prejuízo, denotando, assim, sua vulnera-bilidade na relação jurídica de consumo.

nesse sentido, o artigo 51, IV do código de defesa do consu-código de defesa do consu-midor, em consonância com seu parágrafo 1º, estabeleceu, fundado no princípio da boa-fé objetiva (artigo 4º, III, CDC), uma cláusula geral proibitória da utilização de cláusulas abusivas nos contratos de

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consumo, que coibe, amplamente, todas disposições relativas a abusos contratuais, com o objetivo de garantir a justiça contratual nas relações de consumo. (MARQuES; BEnJAMIn; MIRAGEM, 2006, p. 701).(MARQuES; BEnJAMIn; MIRAGEM, 2006, p. 701).17

portanto, as cláusulas abusivas que compõem o artigo 51 do có-digo de Defesa do Consumidor não poderão figurar nos contratos de consumo, em face dos ônus excessivos, que as mesmas impõem aos consumidores, e, por conseguinte, o patente desequilíbrio contratual.

no regime jurídico do código de defesa do consumidor, as cláusulas abusivas são consideradas nulas de pleno direito, porque contrariam a ordem pública de proteção ao consumidor e o interesse social, podendo ser conhecidas a qualquer tempo e, inclusive, serem declaradas de ofício, devido às normas de ordem pública serem insus-cetíveis de preclusão.18

4.4 o dever de informação do fornecedor

Dentre os deveres anexos de conduta da boa-fé objetiva, o dever de informação (ou de informar) destaca-se como o mais importante dos referidos deveres, pois a informação é fundamental para que os contra-tantes possam ser alertados sobre fatos de que não poderiam perceber por sua própria diligência ordinária. (RoSEnVAld, 2005, p. 109).

O dever de informação tem por finalidade ampliar o conheci-mento da informação disponibilizada aos contratantes na avença (FA-BIAn, 2002, p. 157; SchIER, 2006, p. 64-72), impondo às partes o dever precípuo de informação acerca de todas as circunstâncias re-levantes sobre o contrato, desde a fase pré-contratual até a fase pós-

17 nesse sentido ver: MARTInS (2002, p. 120-129); SchMITT (2006, p. 89-90); GAR-cIA (2007, p. 174-176); GRInoVER et al (2007, p. 528-532 e 580-583); BEnJAMIn; MARQuES; BESSA (2007, p. 292).

18 Leonardo de Medeiros Garcia assevera que este é o entendimento pacífico da doutrina consumerista, e que, até então, era acolhido pela jurisprudência. porém, destaca que o Superior Tribunal de Justiça em recentes decisões (REsp n. 541.153/RS; 271.214/RS; 407.097/RS e 420.111/RS) modificou seu entendimento no sentido da impossibilidade de declaração de ofício da nulidade de cláusulas contratuais abusivas com fundamento na ofensa ao princípio do tantum devolutum quantum appelattum previsto no artigo 515 do código de processo civil. (GARcIA, 2007, p. 5-8 e 171-172). nesse sentido ver: BEnJAMIn; MARQuES; BESSA (2007, p. 294-295).

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contratual, para que os contratantes possam, livremente, exercitar sua autonomia privada em consonância com os preceitos estabelecidos pela boa-fé objetiva.

Evidentemente, o dever de informação encontra-se diretamente relacionado ao princípio da transparência19, pois as informações pres-tadas devem possuir destaque e clareza em seu conteúdo, para que os contratantes possam ter conhecimento prévio e efetivo de todas as obrigações assumidas no vínculo contratual.

no âmbito das relações de consumo, o direito à informação, esculpido no artigo 6º, III, CDC, em consonância com o princípio da informação, expresso no artigo 4º, IV, CDC, estabelece a obrigatorie-dade da informação, dentre os direitos básicos do consumidor, o qual constitui dever fundamental do fornecedor prestar informações claras e adequadas (transparentes) ao consumidor, relacionadas aos produ-tos/serviços fornecidos. (FABIAn, 2002, p. 157).

o direito à informação apresenta caráter dúplice, pois importa no dever de informar do fornecedor e no direito de ser informado do consumidor, pois a informação adequada sobre o conteúdo do contrato é essencial, no sentido de buscar o reequilíbrio da relação contratual.

[...] a informação, nesse âmbito da ciência jurídica, tem dupla face: o dever de informar e o direito de ser informado, sendo o primeiro relacionado com quem oferece o seu produto ou serviço ao mercado; e o segundo, com o consumidor vulnerável. (TARTu-cE, 2007, p.141).20

o fornecedor passa a ter o dever positivo de prestar informa-ções sobre produtos/serviços que oferece no mercado de consumo, sob pena de responsabilidade no âmbito civil, dentre outras, posto que

19 A transparência impõe a qualificação da informação, que deve ser transmitida de forma clara, ostensiva, precisa e correta, sobre aspectos relevantes da contratação desde a fase pré-contra-tual. nesse sentido ver: MARQuES (2006, p. 715); ToMASETTI JunIoR (1992, p. 53).

20 Nesse sentido, Fabíola Santos Albuquerque explicita que “[...] Ao dever do fornecedor corresponde na mesma via, o direito do consumidor de ser informado, com vistas à me-lhoria do mercado de consumo. o dever de informar funciona como mecanismo de con-trole legal do equilíbrio da relação entre fornecedores e consumidores.” (AlBuQuER-QuE, 2006, p. 108).

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o consumidor, geralmente leigo, não possui acesso às informações, suficientemente, precisas e adequadas, para que possa, livremente, exercer sua liberdade contratual.

hoje o contrato é informação, daí a importância de sua interpre-tação sempre a favor do contratante mais fraco e das expectativas legítimas nele criadas por aquele tipo de contrato. neste momen-to, o elaborador do contrato e aquele que o utiliza no mercado de consumo [...] devem ter em conta o seu dever próprio de informar, que inclui o dever de redação clara e com destaque, além do dever de considerar a condição leiga do outro, evitando dubiedades na redação contratual. (MARQuES, 2006, p. 229).

Destaca-se, ainda, que parte da doutrina firmou o entendimento de que, no âmbito da proteção do consumidor, o dever de informação valoriza-se, de modo a ultrapassar a fronteira dos deveres anexos de conduta da boa-fé objetiva, passando a integrar o próprio contrato, sendo considerado elemento essencial, ou seja, elemento integrante da obrigação principal. (RoSEnVAld, 2005, p. 110; FARIAS; Ro-SEnVAld, 2006, p. 56-57).

5 ConCLuSão

A releitura do direito contratual é fundamental dentro do contex-to contemporâneo das relações jurídicas contratuais, profundamente alteradas pela inserção de princípios constitucionais aos conflitos de direito privado, surgimento da nova teoria contratual e da legislação consumerista.

com o advento do código de defesa do consumidor, e, mais recentemente, do código civil de 2002, as relações contratuais tomam novo impulso, com a consolidação da principiologia contratual contem-porânea no ordenamento jurídico brasileiro, com destaque para o prin-cípio da boa-fé objetiva, função social do contrato e justiça contratual, os quais atuam em consonância com ditames estabelecidos no código de defesa do consumidor, inaugurando, assim, um novo cenário her-menêutico a ser delineado, na aplicação do direito contratual.

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Destarte, no contexto das relações de consumo, inaugura-se um novo viés interpretativo, no qual os contratos de consumo, geralmen-te, delineados por meio de contratos de adesão, devem ser interpreta-dos de maneira mais favorável ao consumidor, o qual se encontra em posição de inferioridade, gerada por sua vulnerabilidade (informativa, econômica, técnica, jurídica, fática, política, dentre outras) em rela-ção ao fornecedor, geralmente, grande conglomerado econômico, no intuito garantir o reequilíbrio contratual das partes e consagrar a jus-tiça contratual nas relações jurídicas contratuais.

o código civil de 2002, ao também se valer dos princípios constitucionais consagrados na constituição da República de 1988, passa a possuir a mesma matriz princípiológica do código de defesa do consumidor, possibilitando assim a efetivação do diálogo de fon-tes entre ambos, visando a proporcionar maiores benefícios e meca-nismos de defesa para o consumidor.

Nesse contexto, a releitura do direito dos contratos é fundamen-tal dentro da realidade contemporânea, que privilegia a busca, espe-cialmente, da boa-fé objetiva, observância à função social dos contra-tos, e também da justiça contratual nas relações jurídicas.

os contratos no Estado democrático de direito devem neces-sariamente submeter-se aos ditames da principiologia contratual con-temporânea e às diretrizes do direito privado, visando a estabelecer uma sociedade justa do ponto de vista contratual, pela concretização da igualdade material nas relações jurídicas contratuais.

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