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A Garota Dinamarquesa Sobre o autor da crítica: Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas. Dirigido por Tom Hooper. Roteiro de Lucinda Coxon. Com: Alicia Vikander, Eddie Redmayne, Ben Whishaw, Pip Torrens, Amber Heard, Adrian Schiller, Matthias Schoenaerts, Sebastian Koch. A história de Lili Elbe é admirável: nascida com um corpo masculino, ela decidiu se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo para ajustar seu físico à sua identidade feminina – isto em 1930, quando tinha 48 anos de idade, tornando-se uma das primeiras pessoas a passar pelo procedimento. Uma pioneira, portanto. Porém, ao contrário do que pode parecer, A Garota Dinamarquesa não é um filme sobre Lili, mas sobre a pintora Gerda Gottlieb, que foi sua esposa por 26 anos. Sim, vivida por Alicia Vikander, indicada a vários prêmios como Atriz Coadjuvante pelo filme no qual é claramente a protagonista, Gerda inclusive dá título ao longa, já que é a ela que alguém se refere como “garota dinamarquesa” na única vez em que a expressão é mencionada – e, da mesma maneira, é ela quem abre e fecha a narrativa, sendo também quem atravessa seu principal arco dramático. Com isso, o projeto (baseado em um livro igualmente controverso de David Ebershoff) transforma Lili em simples motivadora das mudanças vividas pela companheira, o que é, no mínimo, uma pequena traição à sua jornada. Adaptado por Lucinda Coxon, o roteiro nos apresenta ao casal (interpretado por Vikander e Redmayne) quando já estão juntos há alguns anos e Einar Wegener (identidade original de Lili) é um pintor estabelecido que tenta ajudar a esposa Gerda a vender seus primeiros quadros. Felizes e sexualmente ativos, eles começam a mudar sua dinâmica quando Einar veste roupas femininas para posar para a companheira e, a partir daí, passa a se descobrir mais confortável
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A Garota DinamarquesaSobre o autor da crítica:

Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News, Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas.

Dirigido por Tom Hooper. Roteiro de Lucinda Coxon. Com: Alicia Vikander, Eddie Redmayne, Ben Whishaw, Pip Torrens, Amber Heard, Adrian Schiller, Matthias Schoenaerts, Sebastian Koch.

A história de Lili Elbe é admirável: nascida com um corpo masculino, ela decidiu se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo para ajustar seu físico à sua identidade feminina – isto em 1930, quando tinha 48 anos de idade, tornando-se uma das primeiras pessoas a passar pelo procedimento. Uma pioneira, portanto. Porém, ao contrário do que pode parecer, A Garota Dinamarquesa não é um filme sobre Lili, mas sobre a pintora Gerda Gottlieb, que foi sua esposa por 26 anos. Sim, vivida por Alicia Vikander, indicada a vários prêmios como Atriz Coadjuvante pelo filme no qual é claramente a protagonista, Gerda inclusive dá título ao longa, já que é a ela que alguém se refere como “garota dinamarquesa” na única vez em que a expressão é mencionada – e, da mesma maneira, é ela quem abre e fecha a narrativa, sendo também quem atravessa seu principal arco dramático. Com isso, o projeto (baseado em um livro igualmente controverso de David Ebershoff) transforma Lili em simples motivadora das mudanças vividas pela companheira, o que é, no mínimo, uma pequena traição à sua jornada.

Adaptado por Lucinda Coxon, o roteiro nos apresenta ao casal (interpretado por Vikander e Redmayne) quando já estão juntos há alguns anos e Einar Wegener (identidade original de Lili) é um pintor estabelecido que tenta ajudar a esposa Gerda a vender seus primeiros quadros. Felizes e sexualmente ativos, eles começam a mudar sua dinâmica quando Einar veste roupas femininas para posar para a companheira e, a partir daí, passa a se descobrir mais confortável como Lili, o que gera compreensivelmente uma crise no casamento, mas também o fortalecimento da amizade entre as duas.

Desde que venceu injustamente o Oscar de direção por seu trabalho pavoroso em O Discurso do Rei, o britânico Tom Hooper parece ter desenvolvido uma fórmula pessoal de sucesso: assumir projetos que lidam com histórias de crescimento pessoal ou adaptadas de materiais estabelecidos (Os Miseráveis), usando-os como possível blindagem para críticas. Como diminuir, por exemplo, uma obra sobre alguém como Lili Elbe? Simples: reconhecendo que, além de não ser sobre ela (e tentar enganar o público quanto a isso), o filme é um amontoado de cenas melodramáticas concebidas sem qualquer sutileza, soando tão artificial que, mesmo não conhecendo previamente a história de Lili, tive plena certeza de estar assistindo a algo ficcional em determinadas sequências – o que se comprovou posteriormente com uma rápida

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pesquisa. E não, o problema não é ficcionalizar fatos reais, mas fazê-lo de forma tão pobre que a fantasia se denuncia por simples bom senso.

Do ponto de vista de linguagem, Hooper segue sem demonstrar qualquer evolução: sua predileção por lentes grandes angulares e por uma profundidade de campo reduzida seria perdoável se servisse à narrativa ou se ao menos não a atrapalhasse. Infelizmente, não é o que acontece: ao continuamente separar os personagens do restante do ambiente através do foco (ou seja: da pequena profundidade de campo), ele sugere um isolamento que só acontecerá posteriormente, anulando a possibilidade de usar o recurso organicamente. De forma similar, logo no primeiro ato, o cineasta insiste em enquadrar Gerda e Einar através de janelas ou cercados pelos batentes de portas – e, mais tarde, quando volta a usar a composição para levar o espectador a experimentar o sufocamento e a angústia que vivem, não há qualquer efeito, já que não há contraste visual com o que veio antes. Como se não bastasse, Hooper adora tratar planos conjuntos como se fossem americanos, abrindo o quadro para inserir os personagens no ambiente, mas cortando-os na altura dos joelhos, o que traz consequências óbvias: ele quebra a “regra dos terços”, trazendo os atores bem mais abaixo no quadro do que seria o ideal (de um ponto de vista puramente estético), e o faz sem qualquer motivo, já que esta opção é empregada sem critério, jamais refletindo o que quer que seja sobre a situação dos indivíduos vistos naquele momento.

Aliás, quando aponto a incompetência geral do diretor, não é à toa: notem, por exemplo, a cena na qual Einar se olha no espelho enquanto prende o pênis entre as pernas, para escondê-lo, e percebam que o propósito é criar um momento dramaticamente intenso e revelador – o que Hooper anula por ter incluído um plano-detalhe, no final da cena imediatamente anterior, de Gerda cortando uma cenoura com uma faca, denunciando ou um mau gosto terrível do cineasta ou uma tentativa pavorosa de criar algum significado confuso e adolescente. A obviedade, diga-se de passagem, é a marca registrada do realizador, que não hesita em fazer o nariz de Einar sangrar após seu primeiro beijo como Lili (ele perdeu a virgindade, percebem? Uau.) ou em incluir um cãozinho na família cujo rosto dividido por uma mancha serve como representação da dualidade de Einar/Lili. O triste é que Hooper arruína até os instantes nos quais acerta: ao trazer Einar diante de seu reflexo, numa festa na qual é obrigado a abandonar temporariamente a identidade de Lili, o filme sugere sua dualidade – até que, claro, no plano seguinte é Gerda quem aparece com o próprio reflexo, demonstrando que a narrativa não havia compreendido o próprio simbolismo.

Não que A Garota Dinamarquesa não seja belo (ao menos, em uma análise puramente plástica): a cena na qual Einar vai a um peep show e imita a stripper é evocativa (e aqui, sim, trabalha bem os reflexos) e o momento no qual o sujeito é visto entre vestidos de balé é sugestivo; mas, depois de um tempo, as transições entre cenas - que passam a ser calcadas em planos gerais das locações -, começam a sugerir a intenção de Hooper e do diretor de fotografia Danny Cohen de criar um filme “cartão postal”, soando mais interessados em exibir lindas paisagens do que em contar uma história. Em contrapartida, os figurinos de Paco Delgado seguem uma lógica inteligente – desde os tons complementares nas roupas do casal quando se encontram em sintonia até o tamanho exagerado dos ternos e chapéus que passam a vestir Einar na segunda metade e apontam seu desconforto ao usar roupas masculinas. Já a trilha de Alexandre Desplat é excessiva como sempre, já que o compositor parece ser adepto da escola “quanto mais, melhor” em vez de usar a música de forma mais precisa ou econômica.

Mas o que falta de sutileza na direção de Hooper e na trilha de Desplat sobra na performance de Alicia Vikander: ancorando a narrativa com a trajetória de Gerda, a atriz sueca concebe a personagem como uma mulher segura e independente que, devotada ao marido, não vê qualquer problema em participar de suas brincadeiras ao travestir-se – até que, ao constatar que não se trata de simples brincadeira, vai do choque ao companheirismo, passando pela dor, pela tristeza, pela frustração e pela resignação de maneira sutil e convincente. Não é à toa que o longa abre em um close de seu rosto e encerra com uma fala sua; o espantoso é que o

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estúdio tenha conseguido convencer tantos de que ela é coadjuvante em um projeto no qual aparece na tela por mais tempo que o suposto protagonista.

Eddie Redmayne, por sinal, jamais consegue se igualar à força de Vikander – e parte disso se deve à sua abordagem puramente técnica, que claramente consiste em compor sua caracterização de fora para dentro (algo que ele já havia feito em A Teoria de Tudo). Observem, por exemplo, como o ator faz questão de expressar todas as emoções que Einar/Lili experimentam e notem o excesso de tiques e maneirismos: as pálpebras que insistem em tremer, o olhar que sempre se desvia (independentemente da persona que encarna), os gestos grandiosos e uma afetação geral que transformam o(a) personagem não em um ser humano complexo, mas em uma criação artificial que se comporta como se fosse real sem jamais parecer sê-lo. Ao ser beijado pela primeira vez, Redmayne traz Lili com os olhos úmidos, os lábios trêmulos e o corpo encurvado e, quando o parceiro diz seu nome de batismo (“Einar”), ele reage como se houvesse levado um choque – tudo tecnicamente certinho, mas sem vida interior, sem alma.

A abordagem do ator, vale apontar, traz dois problemas: em primeiro lugar, não combina com aquela do restante do elenco (especialmente Vikander), que adota a sutileza e o naturalismo como centro; em segundo, não faz sentido como narrativa. Se as afetações diminuíssem ao longo da projeção, por exemplo, poderíamos deduzir que Lili se torna mais confortável na própria pele e que os maneirismos eram sua forma de “interpretar” Einar, mas o contrário ocorre, apontando para a lógica equivocada de que Lili é uma criação, não Einar.

Ao menos em uma coisa filme e ator se complementam: ambos são excessivamente frios e sem vida. Ainda bem que há Alicia Vikander para tornar tudo um pouco menos aborrecido.

25 de Fevereiro de 2016

A Garota Dinamarquesa': A dinamarquesa Lili Elbe (1882-1931) é conhecida por ser uma das primeiras pessoas transgêneras a fazer a cirurgia de mudança de sexo.Ela entrou para a história da medicina por se submeter a um procedimento que, naquela época, o ano de 1930, era primitivo. A ciência não estava preparada para casos como o de Lili.

Meses após a quarta e última cirurgia em dois anos, que envolvia o transplante de um útero - ela e seu parceiro, o comerciante de arte Claude Lejeune, queriam ter filhos e se casar -, a corajosa Lili morreu.

Antes disso, ela era um homem atormentado que contemplava o suicídio por não compreender sua identidade - o bem-sucedido pintor Einar Wegener foi casado com uma mulher, a também artista Gerda Wegener, por quase 30 anos.

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Ela apoiou o marido e melhor amigo durante toda jornada de autodescobertas que ele viveu, dos questionamentos íntimos até a certeza firme de que era mulher e se submeteria às cirurgias para adequar seu corpo ao gênero.

Esta história inspirou o livro de ficção de David Ebershoff, adaptado para o filme homônimo dirigido por Tom Hooper, A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl, 2015), que estreia nesta quinta-feira (11) nas salas de cinema de todo o Brasil.

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Infelizmente, o que poderia ser encarado como oportunidade para contar uma história fundamental para a comunidade trans, virou, pelas mãos do diretor, um drama superficial.

Einar, interpretado por Eddie Redmayne, é um jovem pintor bem-sucedido na Copenhagen da década de 1920 que entra em uma espiral de questionamentos sobre seu gênero. Em uma tarde, sua esposa, cúmplice e amiga, a pintora Gerda (Alicia Vikander), faz um pedido inesperado a Einar: vestir-se parcialmente como mulher para posar no lugar da modelo que não havia aparecido para a sessão.O toque da pele de Einar com o tecido do vestido e a pose feminina que feita para Gerda concluir a pintura são o suficiente para fazer vir à tona a dúvida que o personagem tem dentro de si: a de que talvez ele não seja, afinal de contas, um homem tradicional.

Depois disso, o casal boêmio e a frente de seu tempo se diverte em eventos sociais com Einar vestido como mulher, fingindo ser Lili, "prima de Einar", a mulher ficcional que nasceu quando o protagonista se tornou a nova musa da esposa.

Mas a situação muda quando Einar percebe que, na realidade, o que tem acontecido é o oposto: o personagem ficcional ali é Einar. Lili é sua verdadeira identidade. Ele nem sente que precisa seguir fazendo arte - pois ela é sua obra máxima e definitiva. A enxurrada de conflitos deslancha aí.

Uma vez que Lili emerge, o casamento de Einar e Gerda é abalado. Ambos sabem que não estão preparados para a chegada dessa nova pessoa, tanto quanto a sociedade do lado de fora daquele relacionamento.

Enquanto isso, Lili embarca em uma jornada particular de autodescoberta, sobre gênero, sobre quem ela é enquanto indivíduo e seu lugar no mundo.

Gerda, por outro lado, vê desaparecer seu melhor amigo, justamente a pessoa que lhe dava mais apoio na busca pela estabilização como pintora. Ela sofre e se confunde - e muito.

O roteiro de Lucinda Coxon, repleto de diálogos óbvios e soluções fáceis - a roteirista já se mostrou muito mais habilidosa em The Crimson Petal and the White(2011), minissérie da BBC - não se aprofunda no conflito vivido por Einar/Lili tão bem quanto no de Gerda.Vikander, em boa atuação, consegue mostrar o drama da personagem com nuances e robustez. Entretanto, o êxito da atriz não esconde o perceptível fato de que ela tem mais tempo de tela que Redmayne.

O que nos leva a pergunta: afinal de contas, A Garota Dinamarquesa é sobre a mulher trans ou a mulher cisgênero?Redmayne, por sua vez, repete o que fez em A Teoria de Tudo (2014), filme pelo qual ele venceu o Oscar em 2015 por interpretar o cientista Stephen Hawking: é impecável na técnica, mas não transmite a turbulência que o personagem vive dentro de si.

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Como Lili, ele é capaz de mostrar o entusiasmo pelas autodescobertas e a fibra para encarar as muitas novidades prestes a acontecerem. Redmayne mexe cabeça, mãos, punhos, quadril e suaviza a fala para dar vida à mulher - mas não avança. Em decorrência tanto da direção preguiçosa quanto do simplismo do texto. A indicação aoOscar que o ator recebeu neste ano não reflete seu desempenho.Nem os coadjuvantes seguram a barra: o sempre competente Ben Whishaw, no papel de um artista apaixonado por Lili, não dá textura a sua presença; Amber Heard, como a dançarina Ulla, amiga do casal, é exagerada; Matthias Schoenaerts dá vida a um amigo do casal, mas também não consegue mostrar mais do que está em sua superfície de sofisticação e bom-senso.O que de fato dá qualidade à Garota Dinamarquesa, além de Vikander - em incompreensível indicação ao Oscar na categoria de melhor atriz coadjuvante, em vez de principal - é o visual, tão belo e vibrante quanto as pinturas dos personagens. Em decisão inteligente, figurino, decoração dos sets e fotografia são tão personagens quanto as pessoas de carne e osso nos planos inusitados de Hooper.O filme acerta também ao explicar o que é a transgeneridade e seu potencial de fazer a sociedade progredir em um sentido de igualdade quando essas pessoas têm seus direitos assegurados.

A Garota Dinamarquesa, entretanto, poderia ter desempenho melhor enquanto peça de cinema se seus personagens fossem mais caprichados.A Gerda da vida real, por exemplo, foi uma artista transgressora, que fazia pinturas e ilustrações eróticas com mulheres nuas masturbando umas às outras. Após a morte de Lili, seu estilo de arte tornou-se obsoleto, o segundo casamento acabou e ela se tornou alcoólatra. Morreu sem ter sua arte devidamente reconhecida. Lili encontrou um amor, quis ter filhos e decidiu ela mesma contar sua história em um livro, com a ajuda de um jornalista, após seu processo de transição ter vazado para a imprensa.

Se você tem curiosidade de assistir ao filme, não se preocupe: vale o ingresso. Afinal, junto de Carol, ele é o atual representante LGBT no Oscar (além das categorias de atuação, A Garota Dinamarquesa concorre por melhor figurino e direção de arte) e é uma chance conhecer a história de Lili. Mesmo sem consistência factual, o longa de Hooper consegue transmitir a importância que ela tem - Lili assumiu os riscos no caminho por uma vida plenamente verdadeira. Não havia medicina, legislação e empatias amplas o suficiente para apoiá-la. Ela foi uma pioneira.

A real "garota dinamarquesa": Como uma pintora foi pioneira na luta trans

18Tiago DiasDo UOL, em São Paulo

11/02/201611h00

The Wellcome Library/Divulgação

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Pintor famosos, Einar Wegener deixou a arte quando se reconheceu mulher sob o nome de Lili ElbeNa década de 1910, as ilustrações de Gerda Wegener eram a sensação em Copenhague, graças à modelo fashion que exalava sensualidade em seus retratos estilizados. Todos queriam saber: quem era essa garota? "É Lili Elbe, irmã do meu marido", respondia Gerda, guardando para si a verdadeira identidade da sua musa: seu próprio marido.

Assim como sua mulher, Lili Elbe foi uma bem-sucedida pintora, mas entrou mesmo para a história por ser a primeira pessoa submetida a uma cirurgia de redesignação sexual (da qual se tem notícia). Sua luta ficou escondida durante muito tempo e é resgatada agora, como grande orgulho do movimento trans, no filme "A Garota Dinamarquesa" que estreia quinta-feira (11).

Mas apenas parte dessa extraordinária vida encontra espaço no filme dirigido pelo oscarizado Tom Hooper ("O Discurso do Rei" e "Os Miseráveis"), e que pode dar a Eddie Redmayne o segundo Oscar consecutivo, após seu papel de Stephen Hawking em "A Teoria de Tudo".

Adaptado do livro de grande sucesso do autor David Ebershoff, "A Garota Dinamarquesa" é uma ficção baseada na história do casal de pintores. Na vida real, sua saga foi mais intensa.

Nascida na Dinamarca com o nome de registro de Mogens Einar Wegener, ela identificou-se a maior parte da sua vida como do gênero masculino. Pintora de grande sucesso, ela é até hoje representada no Museu de Arte de Vejle, lugar onde nasceu e inspirou muitos de seus quadros de paisagens, sempre insólitas e nubladas, em claro contraste com o colorido exuberante dos retratos de sua mulher.

Bastou um dia para que Einar se despertasse. Gerda finalizava um quadro da atriz Anna Larssen vestida de bailarina, mas naquela tarde, a modelo não apareceu. Gerda então pediu ao marido para colocar o vestido com saia plissada, os sapatos de salto e as meias. Bastaria posar por um momento.

Divulgação

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"Lili Elbe" por Gerda Gottlieb, sua mulher na época

Einar hesitou, mas cedeu. Escreveria depois sobre a experiência que mudara sua vida. "Eu não posso negar, por estranho que possa parecer, de que eu gostava de mim neste disfarce", escreveu Einar em seus diários, publicado após sua morte com o título "Man Into Woman" [sem tradução no Brasil]. "Eu gostei da sensação suave daquelas roupas femininas. Eu me senti em casa com elas, desde o primeiro momento."

A partir daí, passou a se vestir esporadicamente, ao lado da mulher, durante viagens à França e à Itália, e servindo de modelo para os quadros e ilustrações que Gerda fazia para revistas como "Vogue" e "La Vie Parisienne". Acolheu a sugestão de uma amiga para um codinome, Lili, e escolheu o nome de um rio que passava pela Alemanha, Elbe, como sobrenome.

Se a questão da transsexualidade é mal assimilada por muitos ainda hoje, é difícil imaginar reação mais adversa do que naquela época. A sociedade dinamarquesa havia descoberto sua verdadeira identidade e a imprensa não dava descanso. O casal então preferiu se mudar, encontrando ambiente mais favorável na noite festeira de Paris.

Uma das coisas que Lili gostava de fazer era desaparecer muitas vezes entre os foliões durante o Carnaval. Gerda, em paralelo, mantinha aventuras com outras mulheres. A euforia de viver na pele de Lili lhe tirava a vontade de voltar às pinturas. Ela tinha certeza que Einar já não encontraria mais espaço. "Minha criatividade não está no meu cérebro, nos meus olhos, em minhas mãos, mas sim no meu coração, no meu sangue", escreveu em suas memórias. "O desejo fervoroso de minha vida de mulher é tornar-se a mãe de uma criança". Em 1930, seu casamento foi anulado pela corte dinamarquesa.

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Na mesma época, vendeu suas pinturas e foi para a Alemanha tentar uma arriscada e experimental cirurgia de redesignação sexual. Uma série de cinco operações foi realizada em um período de dois anos. A primeira, sob a supervisão do sexólogo Magnus Hirschfeld, em Berlim, removeu seus testículos. O resto das cirurgias foi realizado pelo Dr. Warnekros na Clínica Municipal da Mulher de Dresden, para remoção do pênis e reconstrução vaginal. A cada cirurgia, a certeza aumentava, junto com as complicações cada vez mais graves.

Em suas memórias, em setembro de 1931, ela escreve: "Sonhei noite passada com minha mãe. Ela me pegou pelos braços e me chamou de Lili". No dia 13 daquele mês, Elbe morreu dias antes de completar 50 anos, sem saber o quanto inspiraria a luta de tantos transsexuais em busca de sua essência.

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A Garota Dinamarquesa (2016)8 fotos2 / 8

"A Garota Dinamarquesa" é a cinebiografia de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener.Imagem: Divulgação

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A Garota Dinamarquesa’ mira debate trans, mas tem alma retrógrada

 DIEGO OLIVARES · FEVEREIRO 15, 2016- CARTA CAPITAL

Em artigo reproduzido no Indiewire, um dos sites de cinema mais respeitados do mundo, sob o

título “Retrógrado, redutivo e prejudicial: A visão de uma mulher trans sobre o constrangedor A Garota Dinamarquesa, de Tom Hooper”, a trans Carol Grant escreve sobre sua profunda

insatisfação com a abordagem do longa indicado a quatro prêmios Oscar.

Para ela, a caracterização de Lili Elbe (Eddie Redmayne) é calcada em exageros, fetiches e

esteriótipos. Uma visão masculina sobre o que é ser mulher, aprendida quando Lili, ainda como

Einar Wegener, observa uma dançarina num peep show – local onde, por definição, a mulher

busca satisfazer o olhar de um homem.

N O S S A O P I N I Ã O6.5

Filme de Tom Hooper apresenta visão masculina do que é ser mulher, construindo uma

personagem focada apenas em clichês do gênero feminino

Nota – 6.5

Carol ainda aponta para a mudança no estilo de vida de Lili conforme vai assumindo sua real identidade de gênero. Ela abandona a carreira de pintora para aceitar um trabalho como vendedora de perfumes, faz amigas com quem troca risadinhas e fofocas e flerta recadamente com o personagem de Ben Whishaw, um jovem respeitoso e tímido. Em suma: Lili está mais para uma caricatura do que se convencionou chamar de “moça de respeito” do que para uma mulher real.

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Este calcanhar de aquiles não é o único do filme de Hooper (ganhador do Oscar por O

Discurso do Rei). Pesquisadores já levantaram algumas incongruências entre ficção e

realidade, principalmente na relação entre Einar/Lili e a esposa Gerda (Alicia Vikander), que

não foi de total cumplicidade até o fim, como o filme faz parecer, e no personagem Hans Axgil

(Mathias Schoenaerts), fundamental para a trama, mas que nunca existiu.

Alguém pode argumentar que tais liberdades são naturais à criação de um roteiro

cinematográfico. É verdade. Porém, um pôster que coloca em letras garrafais “inspirado na

extraordinária história real” quer desesperadamente vender ao público tal apelo, sabendo que

muitos irão se deixar levar emocionalmente por acreditar que tudo de fato aconteceu daquela

forma.

Colocadas essas ponderações, A Garota Dinamarquesa é um filme pensado para impactar

visualmente e agradar grandes parcelas do público com pouco ou nenhum questionamento.

Tecnicamente funciona (figurinos e direção de arte, que enchem os olhos, foram indicados ao

Oscar), mas desperdiça a chance de ir além num momento em que o tema é discutido como

nunca.

Se a interpretação de Redmayne pouco surpreende quem o viu como Stephen Hawking em A

Teoria de Tudo e é afetada pelos já mencionados problemas conceituais da construção do

personagem no roteiro, quem acaba se beneficiando é Alicia Vikander. Cabe à sueca passar

por uma curva emocional mais diversificada, partindo do que julgava um idílico casamento com

Einar até a aceitação da real identidade de seu par.

Alicia já levou o prêmio de melhor atriz coadjuvante no SAG (o Sindicato dos Atores) e é a

principal favorita a levar a mesma categoria no Oscar. Não poderá ser considerado injustiça, e

isso até mesmo Carol Grant concorda: “Ela rouba o filme inteiro, sua performance é

magnética”, escreveu no artigo.

Um dia, a pintora Gerda Wegener faz um pedido ao marido, o também artista plástico Einar Wegener. Como a modelo que estava posando para Gerda havia faltado ao encontro, ela gostaria que Einar vestisse as roupas femininas para substituí-la durante a sessão de pintura. Dessa forma, ela poderia continuar o trabalho e a encomenda não atrasaria. Einar topa a parada e, desde esse pequeno fato, algo muda em suas vidas. E de maneira radical. Einar passa a se sentir fascinado pelas roupas da mulher, até desenvolver o que seria uma nova personalidade feminina, que batiza com o nome de Lili.

A história é verídica, envolve o casal de artistas plásticos dinamarqueses Gerda e Einar Wegener, tem início na Copenhague dos

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anos 1920. É tema do filme A Garota Dinamarquesa, de Tom Hopper, com quatro indicações para o Oscar: Eddie Redmanyne, como Einar, para melhor ator, Alicia Vikander como Gerda, para atriz coadjuvante, além de figurino e design de produção.A Garota Dinamarquesa tem despertado interesse, pois fala de um dos primeiros casos conhecidos de cirurgia para mudança de sexo em um transgênero. Mas nem tudo é unanimidade. Se você pesquisar na internet, verá que também não está isento de polêmicas. Baseado no livro homônimo de David Ebershoff, o filme vem sendo acusado de romantizar e adocicar a história original, que teria sido muito mais dura para seus protagonistas do que a versão colocada na tela por Tom Hopper. Além disso, grupos LGBT se queixam de que uma pessoa transgênero, como Einar/Lili, tenha sido interpretada por um ator cisgênero. O neologismo designa pessoas que se reconhecem como pertencendo ao gênero que foi designado ao nascer.

PublicidadeFoto: Divulgação

Eddie Redmanyne. Antes Einar Wegener, depois se torna Lili Elbe

Pode-se prever que, em nosso tempo, um filme como A Garota Dinamarquesa vá sempre desagradar alguns setores da sociedade. Seja o dos moralistas de sempre, que, em pleno século 21 não aceitam mudanças de comportamento, seja o de grupos que se sentem mal representados na obra. Não há o que fazer, mesmo porque tanto o filme como o livro no qual se baseia se apresentam como obras de ficção, gozando de relativa autonomia em relação à “verdade histórica” dos fatos narrados e dos personagens descritos. 

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Deixando-se de lado essas questões e olhando-se apenas para o filme, conclui-se que ele tem méritos. É elegante e terno ao colocar a trajetória dos personagens sob uma aura romântica. Às vezes, é verdade, até meio adocicada. Refere-se a uma época em que a tolerância social em relação a questões de gênero parecia muito menor do que na nossa. De modo que, quando Einar Wegener decide fazer a sua transição completa para Lili Elbe, enfrenta muitas dificuldades e incompreensões. Esbarra também numa fase em que a medicina, nesta e em outras áreas, se encontra bem menos desenvolvida do que hoje. 

Neste ponto, A Garota Dinamarquesa é até mesmo convencional e previsível ao relatar o caso clássico do indivíduo contra a mentalidade da sociedade da sua época. Mas, por repetido que seja esse esquema, sempre o acompanhamos com interesse. Primeiro, porque de fato pioneiros em qualquer área sempre sofrem ao lutar contra forças obstinadas em impedir mudanças. Segundo, porque o cinema nos leva sempre a simpatizar e nos identificar com aquele que luta solitário contra uma estrutura muito mais forte e poderosa do que ele. Gostamos dos perdedores e ninguém, em são consciência, ama o vencedor de sempre, o estado conservador das coisas. Mesmo porque, com suas derrotas, os perdedores contribuem para mudar o mundo e, por isso, à luz da história, são os verdadeiros vencedores. Mas há outro ponto bastante interessante em A Garota Dinamarquesa - a relação de Gerda com Einar e, depois, com Lili. Nesse ponto a história toma outro peso e outra direção. Se Lili precisa lutar com incompreensões fora de casa, terá em Gerda uma figura solidária, apesar do inusitado do casamento que se transmuda para amizade e parceria. Um fato que se tende a pensar como bastante raro, ainda mais levando em conta a época em que se deu, a Europa dos anos 1920 e 1930. Mas aí talvez haja um preconceito da nossa parte, achar que a humanidade progride em linha reta e as sociedades caminham sempre para uma maior abertura. Se é verdade que a questão de gênero hoje é vista com mais naturalidade, não se pode esquecer que na Europa dos anos 1920 as ideias de Freud e de outros pensadores da sexualidade já estavam consolidadas e divulgadas. A própria medicina se havia sensibilizado para atuar de forma menos rígida, tanto assim que Lili encontra um médico disposto a ajudá-la. No século passado, talvez apenas a década de 1960 possa rivalizar com a de 1920 em termos de ideias ousadas. 

Há também o relacionamento artístico entre Gerda e Lili. Einar, antes de se tornar Lili, era um pintor de paisagens. Gerda pintava figuras

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humanas. Ambos lutavam para se afirmar no mercado das artes. Quando passa a pintar Lili, sua carreira decola. Encontra no ex-marido, agora transformado em Lili, sua modelo preferencial e exclusiva. As telas passam a vender, ela expõe em Paris e outras capitais, enfim percorrendo os caminhos de uma trajetória artística vitoriosa. 

Nesse ponto, o filme atinge seu maior interesse, no aproveitamento artístico de uma imagem feminina construída, como a de Lili a partir de Einar. Como se a obra, na verdade, não fosse de Gerda, que apenas a registra, mas de Lili, ao construir-se a si própria. Nesse ponto, é impossível não se lembrar de Simone de Beauvoir - “Ninguém nasce mulher - torna-se mulher.” 

Dito isso, é preciso notar que, se fala em um processo de liberação pessoal, A Garota Dinamarquesa é um filme conservador do ponto de vista estético. Quer dizer, entra, em sua linguagem cinematográfica, em contradição com seu tema. A maneira como é construído o leva a uma atenuação do conflito que está em sua gênese. E a falta de radicalidade não condiz com o temperamento corajoso de seus protagonistas. 

Não é ruim. Mas, ao contrário de Lili, que ousou e enfrentou barreiras para se reencontrar, o filme que descreve essa luta se conforma à norma e ao bom comportamento. 

Luiz Zanin Oricchio,O Estado de S.Paulo11 Fevereiro 2016


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