P A N Ó P T I C A
CARVALHO, Angelo Gamba Prata de. A biopolítica de Oliveira Vianna. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 36-54,
jan./jun. 2016.
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A biopolítica de Oliveira Vianna
Angelo Gamba Prata de Carvalho1
Recebido em 18.11.2015
Aprovado em 15.1.2016
Resumo: Francisco José de Oliveira Vianna
foi um jurista e cientista político de relevante
atuação política na primeira metade do
século XX, com importante ênfase no
período do Estado Novo, no qual chegou a
exercer cargos públicos e a apoiar com sua
produção acadêmica. Oliveira Vianna
buscou, ao longo de sua obra, expor as bases
da formação histórico-cultural do Brasil, a
fim de fornecer um diagnóstico da situação
política de sua época e uma solução para a
melhora do quadro. Essa solução pode ser
resumida ao chamado “autoritarismo
instrumental”, que consiste na adoção de um
governo forte e centralizador para que se
chegue a um Estado liberal, somente
alcançável a partir do advento de uma
sociedade também liberal. O que se observou
na obra de Oliveira Vianna foi um forte e
permanente traço biopolítico, uma vez que
todo seu projeto diz respeito à sujeição dos
corpos dos indivíduos à ação do Estado,
controlando, em um primeiro momento, sua
disposição genética e os respectivos traços
fenotípicos e, em um segundo momento, sua
colocação como cidadãos por meio da
outorga de características a uma “raça
brasileira” composta pela força aglutinante
dos sindicatos. A separação entre um “Povo”
incluído e um “povo” excluído, seguida da
tentativa de transformá-los em um unico
bloco homogêneo, é uma constante na obra
de Oliveira Vianna, de modo que se pôde
Abstract: Francisco José de Oliveira Vianna
was a jurist and political scientist with a
relevant political role in the first half of the
twentieth century, especially in the period
called “Estado Novo”, when he held public
positions and supported the regime with his
academic work. Oliveira Vianna has tried to
produce a diagnosis of the political situation
of his time and also to produce a solution to
the problems he has found. This solution can
be synthetized by the concept of
“instrumental authoritarianism”, which
consists on the adoption of a strong and
centralized government for the construction
of a liberal State, only achievable with the
establishment of an also liberal society. A
strong and permanent biopolitical trace has
been observed in Oliveira Vianna’s works,
since his whole production is about the
submission of the individuals’ bodies to the
State, first trying to control the genetical and
physical characteristics of the population
and, later, the development of a so-called
“Brazilian race” and its respective
characteristics through the agglutinative
force of worker’s unions. The division
between the included “People” and the
excluded “people”, followed by the attempt
to transform them into only one homogenous
block, is constant on Vianna’s works, in a
way by which one can observe the
characteristics of Biopolitics, as described by
theorists like Giorgio Agamben and Michel
1 Graduando pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Bolsista de Iniciação Científica
PIBIC/CNPq. Integrante do Grupo de Pesquisa em Retórica, Argumentação e Juridicidade. E-mail:
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observar em sua produção as características
da biopolítica que descreveram autores como
Giorgio Agamben e Michel Foucault.
Foucault.
Palavras-chave: Oliveira Vianna;
Biopolítica; Eugenia; Giorgio Agamben;
Michel Foucault.
Keywords: Oliveira Vianna; Biopolitics;
Eugenics; Giorgio Agamben; Michel
Foucault.
1. Introdução
No final de Vontade de Saber, o primeiro volume da História da Sexualidade, Michel
Foucault sintetizou a ideia de biopolítica ao concluir que o fato de viver não surge como
questão para a intervenção do Estado apenas no nascimento e na morte do indivíduo, uma vez
que no “limiar da modernidade biológica” a espécie entra como fator essencial na formulação
de estratégias políticas. (FOUCAULT, 1988, p. 134)
O entrelaçamento entre vida política e vida biológica, definido por Löwith como
“politização da vida”, consistiu em fator fundamental para o estabelecimento dos Estados
totalitários do século XX. Uma vez que a vida biológica se torna o fato politicamente decisivo
para as democracias de massa, conforme Agamben (2007a, p. 126-128), todo evento político
passa ser de dupla face, já que, a cada nova liberdade ou direito conquistado pelos indivíduos,
suas vidas se tornam cada vez mais inscritas na ordem estatal.
Como apontou Agamben (2007a, p.129) em seu Homo Sacer, uma série de
acontecimentos históricos marcam o desenvolvimento do paradigma biopolítico como padrão
da modernidade, desde as declarações de direitos até os princípios eugenéticos dos nazistas. O
esforço teórico levado a cabo para que assuntos atinentes à vida biológica dos povos fossem
convertidos em conceitos jurídico-políticos foi parte essencial da atividade política do século
XX, no que se pode observar a contiguidade entre democracias de massa e Estados
totalitários.
Francisco José Oliveira Vianna foi um dos autores brasileiros que procurou
compreender a formação de uma democracia brasileira por meio do fornecimento de uma
síntese da organização política e social brasileira. A procura de um ethos do brasileiro, de
explicações acerca de nossa estrutura social e, por vezes, de soluções para as mazelas
diagnosticadas, é o tema de obras importante como as Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de
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Hollanda e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, ambos contemporâneos (e divergentes
quanto às conclusões) em relação a Oliveira Vianna.
Oliveira Vianna nasceu em 1883 e foi um jurista, professor e jornalista, além de ter
desempenhado funções estatais (foi consultor da Justiça do Trabalho e ministro do Tribunal
de Contas da União) após a chamada Revolução de 1930. Em 1920, publicou Populações
Meridionais do Brasil, um estudo no qual distinguiu as três sociedades que compõem o povo
brasileiro (a dos sertões, a das matas e a dos pampas), observando em cada uma seu
respectivo personagem (o sertanejo, o matuto e o gaúcho).
Nas Populações Meridionais, Oliveira Vianna inicia sua descrição da sociedade
brasileira partindo do trabalho de autores como Tobias Barreto, Sílvio Romero e Alberto
Torres, que buscavam compreender a realidade brasileira de um ponto de vista culturológico,
a fim de compreender as causas do baixo grau de solidariedade existente entre os brasileiros.
Os estudos de Oliveira Vianna têm continuidade em obras como Idealismo da Constituição
(1920) e Evolução do Povo Brasileiro (1923), culminando na obra Instituições Políticas
Brasileiras, de 1949.
Por meio da adoção de princípios da eugenia, atrelados a um modelo de explicação
culturológico da formação social do Brasil, Oliveira Vianna traça um perfil daquilo que
chama de “Povo-massa”, a fim de descrever o estado em que se encontra o desenvolvimento
de um governo democrático no Brasil que, segundo o autor, só pode ser alcançado por meio
de um governo forte (à moda do pensamento de Alberto Torres), que teria o papel de
desenvolver o indivíduo e coordenar a sociedade.
Neste trabalho, serão analisadas as principais obras de Oliveira Vianna acerca da
organização política brasileira, procurando identificar a importância da argumentação
biopolítica em sua trajetória intelectual. Propõe-se, ainda, que se compreenda a integração das
ideias de Oliveira Vianna ao imaginário político nacional no que concerne ao pensamento
autoritário brasileiro, de modo a perceber sua relevância, junto a outros autores como
Francisco Campos e Carlos Medeiros Silva, na formulação do ideário político tanto da
ditadura do Estado Novo quanto da ditadura militar de 1964.
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2. As populações meridionais do Brasil
Oliveira Vianna deixa claro que seu objetivo ao estudar a formação da nação brasileira é
o de desmistificação da ideia de que o povo brasileiro é uniforme, estruturado de forma
homogênea ao longo de todo o território. Tendo em vista as constantes críticas de Oliveira
Vianna às “importações” de modelos para que sejam aqui aplicados, notadamente criticando a
atuação de Rui Barbosa2, pode-se perceber o esforço argumentativo desenvolvido pelo autor
ao longo de toda sua obra para que se desenvolva uma estrutura de ação política que tenha
como pressuposto uma análise histórica da sociedade brasileira.
No prefácio de Populações Meridionais do Brasil, o autor expõe seu intuito de maneira
abstrata, intuito este que será melhor desenvolvido nas Instituições Políticas Brasileiras.
Nesse livro, Oliveira Vianna trata daqueles grupos que considera mais importantes no que
toca à compreensão da mentalidade política nacional, uma vez que considera que o Centro-sul
foi a região onde com mais complexidade foi instalado o aparato colonial, mais tarde
transformando-se em Império e depois em República, porém sempre com a atividade política
concentrada nessa região.
Este livro é uma tentativa de aplicação desses critérios novos à interpretação da nossa
História e ao estudo da nossa formação nacional. Todo o meu intuito é estabelecer a
caracterização social do nosso povo, tão aproximada da realidade quanto possível, de modo a
ressaltar quanto somos distintos dos outros povos, principalmente dos grandes povos
europeus, pela história, pela estrutura, pela formação particular e original. Trabalho penoso,
dada a extrema insuficiência dos elementos informativos. Nós somos um dos povos que
menos se estudam a si mesmo: quase tudo ignoramos em relação à nossa terra, à nossa raça,
às nossas regiões, às nossas tradições, à nossa vida, enfim, como agregado humano
independente. (OLIVEIRA VIANNA, 2005, p. 51)
O autor não pretende, portanto, apresentar tão somente uma nova explicação acerca da
formação do povo brasileiro, mas um modelo de explicação baseado em novos marcos
teóricos que faltavam aos seus antecessores. Oliveira Vianna coloca que seria preciso levar
em consideração um novo grupo de ciências que teriam valor inestimável para a compreensão
do fenômeno histórico. Os novos critérios dos quais fala o autor são a antropogeografia de
Ratzel; a antropo-sociologia de Gobineau, Lapouge e Ammon – “gênios possantes; fecundos
2 Cf. OLIVEIRA VIANNA, 1999, p. 369.
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e originais” –; a psicofisiologia de Ribot; a psicologia coletiva de Tarde e, sobretudo, a Escola
da Ciência Social de Le Play. (OLIVEIRA VIANNA, 2005, p. 51)
A influência de Arthur de Gobineau (autor do Essai sur l’inégalité des races
humaines3), Georges de Lapouge (autor de L’Aryen, son rôle social
4) e Otto Ammon (autor de
Natürliche Auslese beim Menschen5) sobre Oliveira Vianna é evidenciada pelas suas
ocasionais referências à eugenia, considerando que tais autores estão entre os precursores dos
estudos eugênicos, que ainda serão tratados mais a fundo neste trabalho. Além disso, esses
autores foram inspiração para Silvio Romero, um dos principais referenciais teóricos de
Vianna.
2.1 O tipo rural aristocrático
O principal ponto de partida para o modelo de Oliveira Vianna é a da preponderância do
tipo rural sobre o tipo urbano no Brasil colônia e, no Império, seu pleno estabelecimento. O
estabelecimento de uma economia baseada no latifúndio, nas grandes propriedades nas quais
os senhores tinham poderes semelhantes a senhores feudais, foi o fundamento para que se
desenvolvesse uma aristocracia rural que seria o lugar de desenvolvimento da mentalidade
branca e burguesa ou, nas palavras de Oliveira Vianna, de polarização dos elementos arianos
da nacionalidade. (OLIVEIRA VIANNA, 2005, p. 98)
A ênfase dada pelo autor à aristocracia rural existe em razão do caráter essencialmente
antiurbano do latifúndio que, ao isolar os indivíduos da convivência com grandes grupos,
fortalece a vida familiar, produzindo um sprit de corps diferente daquele que vivenciava o
europeu, porém aproximado da solidariedade familiar romana. A família é uma instituição
privada que, em razão da importância que recebeu frente à preponderância do latifúndio,
acaba por se tornar instituição política.
É importante, aqui, a caracterização do cidadão de formação rural, isto é, do matuto
proveniente de São Paulo, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. São quatro as características
desse tipo rural: a fidelidade à palavra dada, a respeitabilidade (que apenas a alta nobreza
rural possui), a probidade e a independência moral, qualidades mais facilmente perceptíveis
na “nobreza fazendeira”. Tais características, sobretudo a da independência moral, produzem
3 Tradução livre: “Ensaio sobre a desigualdade entre as raças humanas”
4 Tradução livre: “O ariano e seu papel social”
5 Tradução livre: “Seleção natural entre os homens”
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uma postura política da aristocracia rural que beira a rebeldia perante o governo central, o que
acaba por dar origem a fenômenos de dominância política como o caudilhismo. (OLIVEIRA
VIANNA, 2005, p. 106-108)
O matuto se destaca dos outros personagens agrários elencados por Oliveira Vianna em
razão da importância histórica atribuída a sua localização. O matuto seria o homem de ideias e
convicções que teria capacidade para elaborar um grande programa de regeneração e
moralidade públicas, de modo traçar as diretrizes para que o povo brasileiro superasse suas
mazelas históricas. Os outros tipos interioranos, os gaúchos e os sertanejos, seriam
fenômenos por demais regionais para que servissem para liderar o processo político brasileiro.
Ao passo que os sertanejos das regiões áridas do norte viveriam sem tradições regulares de
autoridade, fustigados pela seca, os gaúchos dos pampas teriam autoridades vigorosamente
firmadas, de modo que foi produzida no extremo sul uma atitude combativa peculiar frente ao
poder. (OLIVEIRA VIANNA, 2005, p. 391-393)
2.2 A raça da plebe rural
Considerando que, para Oliveira Vianna, a classe superior brasileira seria um ponto de
convergência dos ideais arianos e, dessa forma, teria a capacidade de refletir e assimilar a
civilização ocidental e os seus altos ideais. Eis o perfil, portanto, de nossa aristocracia rural
que, em razão de não estar poluída com as máculas da mestiçagem, tem força como elemento
de síntese, coordenação e direção da civilização brasileira. (OLIVEIRA VIANNA, 2005, p.
173-180)
Por mais que atribua o principal papel político de condução nacional à elite branca de
ascendência europeia, Oliveira Vianna delineia, também, uma função política para a massa de
mestiços que representa parte bastante significativa da população. O autor explora, no que
toca a esse assunto, o arcabouço teórico da eugenia e do darwinismo social, expondo aquilo
que chama de “seleção regressiva dos atavismos étnicos”.
O autor orienta sua análise por determinadas leis, às quais atribui estatuto de verdade
científica, para demonstrar o caráter deletério da miscigenação. Dessa forma, na ocasião da
fusão de raças, prevalece o “elemento inferior” (que consiste em toda raça que não seja a
ariana), de modo a ser determinante tanto para as características físicas quanto, como parece
mais importante para o autor, para os aspectos psicológicos ou “da índole”.
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Dentre estes há alguns que, embora intelectualmente superiores, trazem fortes heranças
morais de negro de tipo inferior, como sobrepeso das qualidades más do branco, porventura
cacogênico – porque também é lei antropológica que os mestiços herdem com mais
freqüência os vícios que as qualidades dos seus ancestrais. Os mestiços desta espécie são
espantosos na sua desordem moral, na impulsividade dos seus instintos, na instabilidade do
seu caráter. O sangue disgênico, que lhes corre às veias, atua neles como a força da gravidade
sobre os corpos soltos no espaço: os atrai para baixo com velocidade crescente, à medida que
se sucedem as gerações. Os vadios congênitos e incorrigíveis das nossas aldeias, os grandes
empreiteiros de arruaças e motins das nossas cidades são os espécimens mais representativos
desse grupo. (OLIVEIRA VIANNA, 2005, p.173-174)
A dissonância dos aspectos físicos e da conduta dos mestiços, negros e índios seria,
então, uma evidência de sua divergência da “natureza inteiriça” e coesa dos arianos. A plebe
rural seria, em síntese, um mediador entre escravos e nobres, de modo que os indivíduos dessa
plebe poderiam estar mais ou menos próximos desses extremos, produzindo, de um lado, sua
ascensão intelectual ao status de branco (o que o autor chama de “clarificação”), e, de outro,
sua degeneração e eventual perecimento pela miséria moral ou física. (OLIVEIRA VIANNA,
2005, p. 176-177)
Da mesma forma que é clara a função política atribuída por Oliveira Vianna à
aristocracia rural, é claro o lugar da plebe rural nessa investigação. A organização das terras
brasileiras com base no latifúndio e o fortalecimento dos senhores como caudilhos em seu
isolamento gerou uma grande demanda por uma massa de indivíduos que servisse à agressão
e ao combate. “Esta plebe, que não possui nenhum valor próprio e que, economicamente, tem
uma importância secundária, exerce, em nossa vida histórica, a função específica de ser
viveiro da capangagem senhorial”. (OLIVEIRA VIANNA, 2005, p. 249)
Morrer em rusgas territoriais seria, assim, a função social do mestiço, que não chega a
ser política, uma vez que o mestiço por definição está excluído da esfera política, ainda que
sujeito às diretrizes da política de que não participa. Cabe aos senhores brancos, assim, a
decisão sobre as vidas da mestiçagem, cuja função precípua na ordem social é não terem
função alguma que não a própria morte.
Nessa construção da sociedade brasileira que Oliveira Vianna traça é evidente, então, o
diagnóstico de Agamben acerca da biopolítica moderna, já que o dado biológico se apresenta
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imediatamente como político. (AGAMBEN, 2007a, p.153-155) A vida do mestiço é
reiteradamente definida por Oliveira Vianna como uma forma inferior de vida ou, nos termos
da eugenética, disgênica. Ainda nos termos de Agamben, o que se observa na análise de
Oliveira Vianna é que a tutela da vida passa a coincidir com a defesa contra o inimigo.
O zoon politikón, aqui, não é político apenas por ser homem, mas por ser homem e por
fazer parte de uma linhagem que lhe conferiu por herança genética as aptidões físicas e
psicológicas do político.
A síntese que Oliveira Vianna tentou fornecer acerca do povo brasileiro trabalha
avidamente na definição do problema e encontra seu lugar de solução: a falta de coesão
política do povo brasileiro é fruto da formação histórica, do isolamento dos senhores e da
simplificação das relações socioeconômicas resultantes dessa organização, o que será
resolvido pelo fortalecimento da mentalidade liberal dos brancos. Tais conclusões serão
exploradas em outro nível de análise nas Instituições Políticas Brasileiras, que parte dos
pressupostos traçados nas Populações Meridionais e tenta diagnosticar as agremiações e
estruturas estatais da República, utilizando o mesmo aparato teórico das obras anteriores de
Oliveira Vianna.
3. O povo massa e os homens de mil
Em Means Without End, Giorgio Agamben coloca que a palavra “povo”, à parte e seu
significado político, pode também ser utilizada nas línguas europeias modernas para designar
a massa de sujeitos excluídos, de modo que o “homem do povo” se opõe ao “aristocrata”.
Com isso, o autor busca demonstrar que o conceito de povo é compreendido de maneira
bipartida, de modo que serve para designar tanto a existência política (o “Povo”) quanto a
vida nua (“povo”, com “p” minúsculo). O próprio conceito de povo, portanto, traz consigo a
divisão zoé-bios que caracteriza a biopolítica, representando tanto aquilo que não pode ser
incluído no todo do qual é parte quanto o que não pode pertencer àquele todo ao qual sempre
esteve incluído. (AGAMBEN, 2000, p. 30-31)
Nesse sentido, em Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Vianna diferencia as
populações meridionais (o Centro-Sul) das setentrionais (o Norte) e, com mais ênfase, a
aristocracia rural e a plebe rural. Em Instituições Políticas Brasileiras, obra de 1949, Oliveira
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Vianna utiliza como ponto de partida o grupo de conclusões que obteve em suas obras
anteriores, conclusões estas sintetizadas no item anterior.
Nas Instituições, o autor não retorna à discussão do método antropogeográfico que tanto
trabalhou anteriormente, de modo que passa a buscar explicações para o modelo institucional
brasileiro na Ciência Política e no Direito. Nessa obra, o que se encontra é um estudo mais
aprofundado acerca dessa divisão do povo brasileiro, buscando torná-la prática no sentido de
determinar os caminhos a serem seguidos para que sejam aproveitadas as potencialidades da
mentalidade da elite branca. O autor adapta, então, seu estudo antropogeográfico das
Populações para tentar compreender o desenvolvimento das instituições nacionais, baseadas
no espírito de clã originado pelo latifúndio e pela tradição caudilhista.
A fim de que se compreenda a nova classificação do “Povo” por Oliveira Vianna, será
sintetizada a formulação do desenvolvimento histórico das instituições para que, então, sejam
expostas a definição de “Povo massa” e a alegoria dos “Homens de 1.000”.
3.1 O desenvolvimento das instituições
O modelo teórico elaborado por Oliveira Vianna para tentar compreender as instituições
políticas e a própria ideia de Estado é claramente teleológico. “Tudo mostra, assim, que o
mundo vai caminhando para um só tipo de Estado: - o Estado Nacional, de base
democrática.” (OLIVEIRA VIANNA, 1999, p. 125, grifo do autor) Para o autor, o grande
problema da implantação do Estado moderno de base democrática tal como idealizado na
Revolução Francesa é a superação dos antigos modelos, tanto de escala maior (como o
Estado-Império), quando de escala menor (o Estado-aldeia e o Estado-cidade).
O centrifugismo da população brasileira nos tempos coloniais, resultado de uma política
de fundação de povoações esparsas, isto é, baseada no latifúndio e na divisão da terra em
sesmarias, acabou por gerar o que Oliveira Vianna chamou de “antiurbanismo”. Tal fenômeno
já é visível no estudo das Populações Meridionais, quando o autor destaca o tipo agrário
como base da formação do povo brasileiro. (OLIVEIRA VIANNA, 1999, p. 127-135)
A gênese do espírito político brasileiro estaria, assim, no Brasil colônia, em que foram
estabelecidos os primeiros usos e costumes nacionais. O grande problema, na verdade, foi que
não havia usos e costumes nacionais. Segundo Oliveira Vianna, o Brasil colônia produziu
indivíduos cuja ética política era baseada fundamentalmente em um individualismo familiar,
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de modo a não depender da comunidade para sua subsistência. A aldeia agrária brasileira era
o engenho, uma célula sem qualquer autonomia em relação às construções senhoriais. O
caráter censitário de definição dos direitos políticos acabou por gerar uma elite de “homens
bons” que tinham capacidade para figurar nas esferas de decisão política que não era, porém,
democrática, uma vez que a natureza dos cargos públicos era honorífica. A principal crítica
de Oliveira Vianna, aqui, é a origem exógena dessas câmaras municipais, que foram resultado
do simples transplante de instituições portuguesas, gerando um povo-massa sempre passivo.
(OLIVEIRA VIANNA, 1999, p. 144-167)
A principal conclusão de Oliveira Vianna nesse aspecto consiste em um diagnóstico de
que não existe, no Brasil, um sentimento de solidariedade social que compreenda a nação
propriamente dita ou, nas palavras do autor, uma “mística social” que direcione a atuação dos
indivíduos para um ethos nacional que produza um sentimento abarcante de patriotismo. O
que o autor observa é que o povo brasileiro não ultrapassou a fase de solidariedade de clã ou
de partido (relacionada às células familiares e aos primeiros partidos políticos), geradora de
sentimentos nitidamente locais, de modo a não terem desenvolvido uma consciência superior
aos interesses de seus grupos privados.(OLIVEIRA VIANNA, 1999, p. 293)
3.2 O Direito Público costumeiro brasileiro
Os tipos sociais descritos nas Populações Meridionais, as instituições sociais formadas
ao longo da História do Brasil (como, por exemplo, o espírito de clã e os partidos regionais) e
alguns usos e costumes da política nacional, acabaram por estruturar um tipo de Direito
Constitucional e Administrativo não escrito que, em contraste com o Direito Público oficial,
correspondem às práticas políticas corriqueiras da população nacional.
Nesse ponto, torna-se nítida a distinção entre “elite” e “povo-massa”. Segundo Oliveira
Vianna, as leis do povo-massa, na maioria das vezes, estão orientadas em um sentido
diferente daquele expresso nas Constituições. Os textos constitucionais estabelecem padrões
teóricos ideais, ou seja, por modelos daquilo que se deseja da vida pública. (OLIVEIRA
VIANNA, 1999, p. 193)
Nesse sentido, Oliveira Vianna aponta como erros as tentativas de “importação” do
modelo liberal para a sociedade brasileira por meio de uma Constituição liberal. A força do
Direito Público Costumeiro, com instituições firmemente arraigadas (o nepotismo, por
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exemplo), penetra na conduta tanto dos integrantes do povo-massa quanto das “elites
superiores”. A criação de um texto dessa natureza por certos indivíduos de intelecto inspirado
pelas tendências europeias e norte-americans, sem levar em conta aspectos culturais e sociais
como aqueles apontados pelo autor em suas obras, não seria capaz de transformar o Brasil
num Estado liberal.
O que Oliveira Vianna diagnostica nas elites brasileiras é uma cegueira aos fatos, de
modo que a elaboração do Direito Constitucional escrito e a interpretação da Constituição se
embasa em teses de juristas em vez de fundamentar-se em nos fatos sociais e culturais do
Brasil. A elite estaria impregnada de um “idealismo utópico” que impediria esses indivíduos
de perceberem que o êxito ou o fracasso de um texto constitucional estaria condicionado a sua
sensibilidade ao Direito Público costumeiro da “sociedade viva”. (OLIVEIRA VIANNA,
1999, p. 353-367)
Dessa maneira, é possível relembrar o raciocínio de Giorgio Agamben em Means
Without End quando, comentando acerca da questão de a fratura biopolítica ser intrínseca ao
próprio conceito de “povo” (uma vez que é clara a divisão entre o “Povo” incluído e o “povo”
excluído), coloca que pobreza e exclusão não são somente conceitos sociais, mas importantes
categorias políticas. Tal colocação está evidenciada, também, na obra de Oliveira Vianna,
como se observa na passagem do argumento das Populações Meridionais para as Instituições
Políticas Brasileiras.
Nesse sentido, Agamben aduz que o período em que nos encontramos é caracterizado
por um esforço metódico e implacável de preencher o abismo que divide o conceito de povo
ao eliminar radicalmente o povo excluído. A tentativa de se produzir um povo único e
homogêneo, plano biopolítico presente e todos os países industrializados, coincide com a
ideia de desenvolvimento. No caso da Alemanha nazista, por exemplo, identificados
exatamente aqueles que constituíam o “povo”, tentou-se eliminar essa “fratura biopolítica”
por meio da “Solução final” contra os judeus. (AGAMBEN, 2000, p. 32-33)
Oliveira Vianna deixa explícito em suas obras que o grande problema do Brasil,
considerando sua formação histórica, é a falta de um sentimento abarcante de unidade
nacional. O caminho apontado pelo autor é, como se verá mais adiante, um “governo forte”.
A formação de um governo forte se deve, no entanto, a fatores como o caráter eugênico da
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população, caráter este que Oliveira Vianna busca demonstrar com a alegoria dos “Homens de
1.000”.
3.3 Os “Homens de 1.000”
A dicotomia estabelecida entre nobreza rural e plebe rural nas Populações Meridionais
permanece nas obras posteriores de Oliveira Vianna. O critério da raça, no entanto, que
inicialmente era considerado pelo autor um caminho para o desenvolvimento da nação, passa
a ser considerado de forma mais científica e menos (porém ainda) política em obras como
Raça e Assimilação.
Nas Instituições Políticas, além do conceito de povo-massa, surge o conceito de
"Homens de 1.000", ou seja, da aristocracia nacional que transcende as vicissitudes da política
nacional, historicamenta fragmentária, que teria dado origem a uma moral individualista que
não poderia produzir um sentimento nacional homogêneo.
Esse conceito surge de uma alegoria bíblica que o autor retira do livro de Êxodo (cap.
18, v. 25): "E escolheu Moisés homens capazes de todo o Israel, e os pôs por cabeças sobre o
povo: maiorias de mil, maiorias de cento, maiorias de cinqüenta e maiorias de dez."
(OLIVEIRA VIANNA, 1999, p. 326)
Os "Homens de 1.000" seriam, então, a elite nacional que teria como motivação as
necessidades coletivas do povo brasileiro. Em razão da fraqueza de instituições da sociedade
civil como sindicatos, comitês e universidades, a função de homem público seria guiada
apenas por uma intuição republicana, na falta de uma opinião pública que alcançasse a esfera
nacional de deliberação política. A formação dessa elite se deu, segundo o autor, por meio da
seleção eugênica de potencialidades hereditárias para o trabalho com a máquina pública e,
ainda, pelos cargos vitalícios instituídos pelo Império. A República, assim, teria dificuldades
em angariar "Homens de 1.000", o que tornaria ainda mais difícil a formação de uma política
nacional. (OLIVEIRA VIANNA, 1999, p.337-341)
A crítica de Oliveira Vianna ao fragmentarismo da política brasileira é fortemente
inspirada pela ideia de Estado burocrático weberiano, de modo que é possível encontrar uma
série de semelhanças entre as formulações de Sérgio Buarque de Hollanda em seu Raízes do
Brasil: o Homem cordial, por exemplo, o arquétipo brasileiro que tem dificuldades para
distinguir o público do privado.
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Há, portanto, na obra de Oliveira Vianna, um projeto biopolítico não apenas direcionado
ao povo-massa, mas também a uma elite (por conseguinte, de incluídos), que não se considera
ideal para que se cumpram os anseios nacionais. Ao passo que o "povo" (massa) deve ser
direcionado conforme às leis naturais que criaram para si, o "Povo" é problemático, porém
potencialmente ideal para canalizar o sentimento nacional que se espera para o Brasil.
Recordando Agamben (2007b, p.19-20) e Aristóteles, toda potência é, também, uma
"potência de não", ou seja, só pode haver potência que se realize em ato se tal potência for
capaz de não realizar-se. Um objeto em potência passa ao estado de ato a partir de sua própria
ação ou da ação de outro sujeito que o faça. Oliveira Vianna percebe na elite política
brasileira a potência de tornar-se um Estado liberal, em razão das características que
apontamos acerca da aristocracia descrita pelo autor. Há potência justamente porque, de
acordo com o diagnóstico do autor, o Estado liberal não virá naturalmente, ou seja, é possível
que a sociedade brasileira não se torne liberal se determinado conjunto de fenômenos não vir
a acontecer.
O Estado burocrático ou, melhor dizendo, o Estado liberal de inspiração inglesa e norte-
americana, seria o objetivo a ser alcançado pela política brasileira. Para que tal estado de
coisas fosse alcançado, Oliveira Vianna refutava a possibilidade de uma evolução natural.
Seria preciso um governo autoritário que organizasse a nação e a preparasse para o advento do
liberalismo. Essa ideologia, chamada posteriormente de "autoritarismo instrumental", será
abordada a seguir.
4. Teoria e prática do autoritarismo de Oliveira Vianna
Além de ser autor de extensa produção intelectual, Oliveira Vianna ocupou posições no
interior da estrutura estatal que sua obra justificava. Em Direito do Trabalho e Democracia
Social, o autor defendeu as doutrinas que embasavam o governo Vargas, iniciado em 1930 e
convertido na ditadura do Estado Novo pelo golpe de 1937. O autoritarismo e a urgência por
um governo forte receberiam novos contornos com a adição da ideologia do trabalhismo e do
sindicalismo corporativista como vetores de organização do povo massa pelo Estado (no caso,
o Estado Novo).
Segundo Bresciani (2007, p.484), o projeto político de Oliveira Vianna era estruturado
de tal maneira a deixar pouco espaço para a imaginação, criatividade e iniciativa pessoal, de
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modo que tudo estaria prescrito, previsto e orientado por um projeto político centralizado no
Estado. José Murilo de Carvalho (1998, p.225) diverge da autora em certa medida quando
infere que o indivíduo, em Oliveira Vianna, mantém sua identidade e tem seus direitos
respeitados, de modo a não ser pulverizado no bojo do Estado. Tais direitos, no entanto,
seriam inicialmente os civis e, nas obras mais recentes do autor, os sociais (com o advento de
seu pensamento sindicalista e corporativista), de forma que os direitos políticos nunca
estiveram em primeiro lugar em seu projeto para o povo-massa, pois seriam consequência dos
demais direitos.
O diagnóstico de Oliveira Vianna segundo o qual não se faziam presentes no Brasil as
características essenciais de uma sociedade liberal, tendo em vista a descentralização política
causada pelos fatores atuantes em nosso processo de colonização, conduz o autor à conclusão
de que é impossível que se estabeleça um Estado liberal sem que tais características de
sociedade liberal existam no país. Para que essa sociedade liberal fosse contruída, seria
precido que um Estado forte rompesse as raízes da sociedade familística. Trabalha-se o
autoritarismo de Oliveira Vianna, portanto, como um “autoritarismo instrumental”, que seria
um mero caminho para que se alcançasse o fim que se pretendia para a nação: o do
liberalismo político e, por conseguinte, o capitalismo moderno (SANTOS, 1998, p. 48).
Foi nesse sentido que a teoria política de Oliveira Vianna justificou diretamente um
regime autoritário (o Estado Novo) e, ainda, permaneceu associada ao pensamento autoritário
nacional ao passo que seus fundamentos foram invocados novamente para que fosse
justificada a ditadura militar de 1964. O autoritarismo se mostra instrumental justamente ao
passo em que Oliveira Vianna adota para si as bandeiras do sindicalismo e dos direitos
trabalhistas que, como mostra Angela de Castro Gomes em A invenção do trabalhismo,
tiveram uma natureza peculiar no Brasil, em comparação com outros países:
Coube ao Estado antecipar-se e elaborar a legislação, antes mesmo que o espírito
associativo dos trabalhadores organizasse o sindicato. O sindicato aqui foi conseqüência e não
causa do processo que estabeleceu os direitos trabalhistas. No Brasil, o trabalhador obteve por
outorga do poder público, sem lutas, os benefícios que tanto custaram a outros povos.
Em nosso país, devido a estas circunstâncias, cumpria ao Estado “fazer progredir o
povo”, esclarecendo os trabalhadores e criando neles o espírito associativo que ainda não
possuíam. (GOMES, 1989, p. 241, grifos da autora)
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A construção da figura de Getúlio Vargas foi de suma importância para o projeto
político do Estado Novo. O presidente não somente recebia caraterísticas proféticas ou
messiânicas, mas também era aproximado do povo como “o amigo de todas as horas” e o “pai
dos pobres”. O Estado Novo passou a glorificar a chamada “raça brasileira”: trabalhadora,
dotada de ânimo, capacidade e honestidade, responsável pela mobilidade e ascensão social
dentro do novo Estado. A imagem de Vargas reunia, então, povo e patriciado ou, para utilizar
conceitos de Oliveira Vianna, as características de trabalhador da “raça brasileira” e o gênio
patriótico dos “Homens de 1.000”.6 (GOMES, 1989, p. 241-243)
A síntese do povo brasileiro que o Estado Novo tentou produzir para superar os
estigmas da colonização ainda permanentes na Primeira República, não elimina a a “fratura
biopolítica” de que fala Agamben. Ainda que a “raça brasileira” tente dissolver a eugenia que
vociferava contra a miscigenação e as degenerescências dela acompanhadas, foi produzida
uma nova clivagem biopolítica em que se observa claramente a diferença política entre o
“cidadão de bem” trabalhador e aqueles excluídos da esfera do trabalho (os mendigos,
subversivos e os marginais em geral).7
A divisão entre incluídos e excluídos que impregna a obra de Oliveira Vianna não está
mais tão relacionada à raça quanto esteve nas Populações Meridionais, mas agora ao
sindicalismo outorgado e à liturgia (nos termos de Agamben em Opus Dei), ou seja, à
ritualística relacionada à figura de Vargas e ao Estado nela representado. Aponta, ainda,
Angela de Castro Gomes: “O comprometimento pelo trabalho – entendido em lato sensu –
significava ganhar identidade política, isto é, passar de um modo de ser para outro. Assim, o
povo era um conjunto que tinha “vida comum” sancionada pelo Estado.” (GOMES, 1989, p.
252, grifo da autora)
A ideologia do Estado Novo, portanto, se encaixou perfeitamente no projeto que o autor
já preparava desde suas primeiras obras, projeto este que foi lustrado e polido pelas teorias
sindicalistas e pela ideologia dos direitos sociais que emergiram no Brasil sobretudo a partir
da década de 1930.
6 Cf. AGAMBEN, 2013, p. 35-40.
7 Cf. GOMES, 1989, p. 251.
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5. Conclusões
Oliveira Vianna é, sem dúvida, um produto de seu tempo. Herdeiro da tradição de
Tobias Barreto e Silvio Romero, além de leitor da teoria sociológica europeia de seu tempo,
esse autor é essencial para que se compreenda a forma como as doutrinas sociológicas e
mesmo eugenistas foram desenvolvidas na intelectualidade que lutava para ser brasileira.
Era lugar-comum procurar traçar uma síntese do povo brasileiro, de modo que a obra
de Oliveira Vianna tem grandes pontos de convergência com autores seus contemporâneos
que até hoje ainda são de inegável importância para a compreensão da formação histórica
nacional, como Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e mesmo Darcy Ribeiro, mais
recentemente.
A história brasileira é permeada não somente de autores que procuram prescrever um
ethos do povo, mas é fortemente marcada por um traço autoritário que pode ser evidenciado
pelas duas ditaduras aqui estabelecidas no século XX. Nos dois períodos, houve quem
delineasse seus projetos políticos e seus objetivos teóricos, feitos que poucos autores têm a
chance de levar a cabo de forma concreta8. Oliveira Vianna pôde viver e contribuir para a
construção de um regime justificado em alguma medida por seu pensamento, de modo que
ainda que sua obra possa conter certa quantia de “idealismo utópico”, como apontou José
Murilo de Carvalho, os fundamentos do autoritarismo instrumental foram reproduzidos e
postos em prática no Estado Novo e reverberaram nos teóricos da ditadura militar de 1964.
Ainda que se tente apartar as ideias de Oliveira Vianna do totalitarismo europeu e
mesmo do integralismo de Plínio Salgado em razão de sua defesa dos direitos do indivíduo e
do “fim da história” que seria o liberalismo político, é tênue a fronteira entre autoritarismo e
totalitarismo em sua obra. Por mais que o autor defenda a manutenção do conceito de
indivíduo, visando à garantia dos seus direitos civis e sociais e, por conseguinte, do espaço
privado, a ideia de “espaço público controlado por um Estado forte” de Oliveira Vianna só faz
sentido com uma tutela especial da vida privada dos indivíduos, de modo que suas escolhas
estariam condicionadas pela adequação às características de uma elite ou de uma raça
colocadas não em patamar superior, mas em patamar padrão.
8 Volto a citar, aqui, Darcy Ribeiro, que em suas Confissões tanto lamenta não ter conseguido pôr em prática
seus projetos para a nação.
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O giro sindicalista de Oliveira Vianna pode ter acarretado no abandono de suas ideias
eugenistas, uma vez que o que se encontrou no sindicalismo foi o caminho para a superação
da díade “eugênico-disgênico”: a criação, pelo Estado Novo de Vargas, de uma raça nacional
que independia de etnia. A “raça nacional” foi criada e outorgada, de modo que não apenas a
burguesia era obrigada a conceder direitos trabalhistas, mas os trabalhadores eram também
obrigados a recebê-los caso quisessem ser reconhecidos como “Povo” (com “P” maiúsculo) e
diferenciados da minoria perigosa de subversivos e vadios que integravam o “povo”.
Não fazia mais sentido propagar soluções e arquétipos de um Brasil rural quando a
tendência de organização social era majoritariamente urbana. “Homens de 1.000” como o
Barão de Rio Branco e o Duque de Caxias tampouco teriam relevância quando já estivesse
instrumentalizado o governo forte de que necessitava o país, ainda por cima quando se tratava
de um governo forte que se legitimava pela figura do ditador e por sua proximidade com o
povo (massa), remetendo até à democracia de Schmitt.
Os direitos sociais garantidos pelo Estado centralizador de Vargas criaram uma
sociedade civil relevante para a organização coletiva dos indivíduos, porém também
produziram uma nova esfera de controle do Estado que, ao fornecer certa autonomia,
aproximavam do cuidado estatal aqueles dignos das virtudes do trabalhador brasileiro. Assim,
recebia tutela do Estado tanto a massa incluída (com direitos trabalhistas), quanto a massa
excluída (com a persecução penal). Novamente, a tutela da vida se confunde com a defesa
contra o inimigo a ser perseguido pelo Estado. A antiga elite (aquela dos senhores patrões)
nesse momento convivia com outra elite a ela submetida. A fratura biopolítica foi, na verdade,
duplicada, e não eliminada pela invenção do trabalhismo e da “raça brasileira”.
Pode restar dúvida se Oliveira Vianna seguiu racista e eugenista (traços que o marcam
até os dias de hoje, em razão de estarem presentes em suas obras mais divulgadas e de
refletirem o pensamento político de sua época), porém não há qualquer embargo para que se
afirme que seu modelo de explicação do Brasil permaneceu biopolítico.
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