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A Conservação do Patrimônio no Brasil - Teoria e Prática

Date post: 13-May-2023
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CO N S E r vaÇ ÃO br Seminário da Rede 1 A C o n s e r v a ç ã o d o P a t r i m ô n i o n o B r a s i l T e o r i a e P r á t i c a Orgaização: Silvio Zancheti Gabriela Azevedo Carolina Moura
Transcript

C O NS E r

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à O br

Seminário

da Rede1

A C o n s e r v a ç ã o d o P a t r i m ô n i o n o B r a s i l

T e o r i a e P r á t i c a

Orgaização:Silvio Zancheti

Gabriela AzevedoCarolina Moura

Organizadores

Silvio Mendes Zancheti

Gabriela Magalhães Azevêdo

Carolina Moura Neves

A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL

TEORIA E PRÁTICA

1º Seminário da Rede Conservação_BR

Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada – CECI

Olinda 2015

Capa

Carolina Moura Neves

Projeto Gráfico

Gabriela Magalhães Azevêdo

Todos os direitos reservados

Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada

Praça do Carmo, n. 5, apt. 6. – Bairro do Carmo

53120-000 Olinda PE Brasil

Fone: 3439 3445

http://www.ceci-br.org

[email protected]

A Conservação do Patrimônio no Brasil: teoria e prática. Organizado por Silvio Mendes Zancheti, Gabriela Magalhães Azevêdo e Carolina Moura Neves / Olinda: Centro de Estudos da Conservação Integrada, 2015.

223 p.:il.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-98747-21-7

1. Conservação. 2. Memória. 3. Paisagem.

4. Instrumentos.

A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL: TEORIA E PRÁTICA

1º SEMINÁRIO DA REDE CONSERVAÇÃO _ BR

12 a 13 de Novembro de 2012

Auditório do Hotel 7 Colinas

Ladeira de São Francisco, Carmo.

Olinda – Pernambuco – Brasil

ORGANIZAÇÃO

Rede Conservação_BR

Centro de Estudos Avançados da Conservação

Integrada (Ceci)

Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento

Urbano da UFPE (MDU)

Curso de Mestrado em Ambiente Construído e

Patrimônio Sustentável

COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO

Flávio Carsalade (UFMG)

Silvio Zancheti (Ceci e UFPE)

Virgínia Pontual (Ceci e UFPE)

SECRETARIA EXECUTIVA

Raquel Bertuzzi (Ceci)

Gabriela Azevêdo (Ceci)

Carolina Moura Neves (Ceci)

COMITÊ CIENTÍFICO

Alex Oliveira de Souza (UEMA)

Ana Carmen Jara Casco (IPHAN)

Cêça Guimaraens (UFRJ)

Cecília Ribeiro (UFPE e Ceci)

Elio Trussiani (La Sapienza, Itália)

Flaviana Lira (UNB)

Flavio Carsalade (UFMG)

Leonardo Castriota (UFMG)

Lúcia Hidaka (UFAL)

Marluce Wall Venâncio (UEMA)

Natália Vieira (UFRN)

Norma Lacerda (UFPE e Ceci)

Paula Maciel (UNICAP)

Renata Cabral (USP, São Carlos, Ceci)

Rosane Piccolo Loretto (Ceci)

Silvio Mendes Zancheti (UFPE e Ceci)

Tomás Lapa (MDU e Ceci)

Virgínia Pontual (UFPE e Ceci)

Sumário

Apresentação

Os organizadores 03

Texto Abertura

Patrimônio como construção cultural 05

Flavio Carsalade

Parte 1 Patrimônio e teoria

Por uma agenda de discussões sobre a conservação da arquitetura moderna

26

Flaviana Lira

Gestão da conservação - restauração do patrimônio cultural: algumas reflexões sobre teoria e prática

38

Ozana Hannesch, Elisabete Edelvita da Silva, Marcus Granato e Ana Paula de Carvalho

A “via crítica” no patrimônio cultural: Uma perspectiva comparativa

49

Leonardo Castriota

Parte 2 Patrimônio e memória

Ayrton Carvalho e a disseminação do campo da conservação no Brasil

65

Juliana Melo Pernambuco

O papel da memória na conservação sustentável do patrimônio: O Cine Bandeirante em Sabará/MG

76

Fabiana De Lucca Munaier e Felipe Munaier

Memória e estruturação do espaço nas colônias italianas no Rio Grande do Sul. Estudo crítico-comparativo entre Bento Gonçalves/RS e as terras de origem

87

Décio Rigatti, Lívia Piccinini e Elio Trusiani

A forma segue a função? Uma contribuição ao estado atual da arte da conservação patrimonial no Brasil a partir de dois estudos de caso: o Touring Club e o Brasília Palace Hotel

108

Ana Elisabete Medeiros e Oscar Luís Ferreira

Parte 3 Patrimônio e paisagem

Paisagens urbanas tradicionais 124

Letícia Miguel Teixeira

A paisagem do Plano Piloto de Brasília a partir de suas escalas

133

Gabriela Azevêdo e Carolina Neves

Parte 4 Patrimônio e seus instrumentos

CRONIDAS: Proposta de padronização de representação em mapas de danos

145

Luís Gustavo Costa e Lucas Figueiredo Baisch

Por que os mestres escutam as pedras? Uma investigação sobre a trajetória profissional do trabalhador da construção civil que atua na restauração de imóveis

157

Régis Martins e Antônio de Pádua Tomasi

Utilização da conservação patrimonial material como instrumento de inclusão social: Avaliação do programa Escuelas Taller no Nordeste do Brasil

167

Karla Nunes Penna e Elisabeth Taylor

Delitos contra o patrimônio cultural: Insuficiências normativas brasileiras e espanholas

181

Anauene Dias Soares

Identificação patrimonial e instrumentos de inventário aplicados às edificações históricas de Espírito Santo do Pinhal/SP

193

Camila Corsi Ferreira

Pelas cidades: Jornadas de planejamento municipal pela proteção da memória e do patrimônio cultural dos municípios

205

Fábio José Martins de Lima

Texto de Encerramento

Plano de gestão da conservação para edificações de valor cultural

218

Jorge Tinoco

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APRESENTAÇÃO

Esse livro reúne os trabalhos selecionados e apresentados no seminário A

conservação do patrimônio no Brasil: teoria e prática realizado entre os dias 12 a 13

de novembro de 2012, no centro histórico da cidade de Olinda, Pernambuco.

Foram publicados trabalhos escolhidos, por uma avaliação criteriosa, entre um

conjunto de mais de uma centena de propostas apresentadas à comissão

editorial do seminário.

O conjunto de artigos reflete a maturidade alcançada pela pesquisa sobre

a conservação patrimonial no meio acadêmico e profissional do Brasil. Muitos e

diversos temas estão contemplados com profundidade e rigor científico. Pode-

se afirmar, sem desprezar contribuições importantes que, até os anos 1990, a

produção sobre a conservação patrimonial reunia, basicamente, relatos de

aplicações práticas de ações de restauro ou estudos preliminares, quase sempre

históricos, sobre as obras que receberiam essas intervenções. Pouco se discutia

sobre teoria, métodos ou abordagens de intervenção em objetos patrimoniais.

Os trabalhos reunidos nesses anais são uma prova cabal dessa afirmação.

Forão tratados temas teóricos e práticos da conservação patrimonial, nos seus

mais variados aspectos, com uma diversidade e profundidade notável para um

campo de pesquisa e discussão teórica tão recente em nosso país.

Todos os textos apresentam ideias originais, inéditas e elaboradas com

critérios científicos consagrados. Comentar os trabalhos apresentados seria uma

tarefa exaustiva e redundante, já que foram publicados com resumos bem

elaborados que facilitam a consulta do leitor.

O objetivo principal do seminário foi fornecer uma panorâmica sobre o

estado da arte da pesquisa da conservação do patrimônio cultural no nosso

país. Também, e não menos importante, foi iniciar um diálogo estruturado e

sistemático entre pesquisadores e suas equipes, para a formação de uma rede

colaborativa de pesquisa.

O tempo decorrido entre a publicação do livro e o seminário não

arrefeceu o interesse nos temas tratados no evento. Logo após o seminário os

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artigos apresentados no evento foram disponibilizados na página da web do

Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (Ceci) e, até o

momento da publicação desse volume (junho de 2015), havido sido realizados

mais 29.000 downloads dos artigos.

A formação da rede foi um desafio insuperável pelo Ceci. As redes

científicas requerem recursos econômicos, institucionais e humanos que

ultrapassam, em muito, as capacidades de organismos como o Ceci para

assumir a liderança necessária para a sua consolidação. Assim, mesmo não

podendo continuar a proposta da rede, o Ceci publica o livro esperando que

com isso a rede possa ser assumida e desenvolvida por outras instituições ou

indivíduos.

Os organizadores do seminário e da publicação querem expressar

gratidão a todos os colegas pesquisadores e administradores do Ceci que

colaboraram na realização do seminário e da publicação. Sem o esforço e

abnegação deles esses produtos não existiriam. Também, querem agradecer a

colaboração dos membros do Comitê Científico do seminário pelo excelente

trabalho de análise e seleção dos textos. Querem ainda estender os seus

agradecimentos aos dois grandes conservadores do patrimônio no Brasil que

realizaram as conferências de abertura e encerramento do seminário: Professor

Flavio Carsalade e o Arquiteto Jorge de Lucena Tinoco.

Olinda, junho de 2015

Silvio Mendes Zancheti

Gabriela Magalhães Azevêdo

Carolina Moura da Fonseca Neves

Organizadores

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PATRIMÔNIO COMO CONSTRUÇÃO CULTURAL1

Flavio de Lemos Carsalade

Resumo O artigo examina a pertinência dos fundamentos da teoria da preservação vigentes nas áreas da cultura (estabilidade cultural), história (objetivismo histórico) e artes (imanência da arte) visando discutir sua validade no campo da preservação e restauro do patrimônio construído. A partir dessa análise, o autor discute o que efetivamente se preserva e restaura em arquitetura, indicando a necessidade de uma abordagem própria para este campo, a partir da contribuição da hermenêutica e do reconhecimento da intersubjetividade. Palavras-Chave: patrimônio cultural, patrimônio histórico, patrimônio artístico

Introdução

A noção de Patrimônio Cultural contemporânea é muito mais ampla do que aquela que se fazia há poucas décadas atrás, quando ela se estabelecia apenas sobre os pilares da história e da arte, sendo que a excepcionalidade artística ainda tutelava o reconhecimento histórico. Os tempos mudaram, mas as raízes de formação do pensamento patrimonial ainda definem com bastante intensidade o tratamento que é dado aos bens patrimoniais. A abordagem que se pretende fazer aqui é antes uma maneira de investigar as diversas faces do conceito de patrimônio e as conseqüências que elas têm nas estratégias de preservação, evitando-se mascara-las como se houvesse uma unidade de pensamento supostamente estabelecida pelas “cartas internacionais” ou que certas tensões, como por exemplo, a opção entre instância estética ou instância histórica já tivessem sido superadas pela história do restauro.

1. Princípios de preservação/ restauração

A consolidação moderna de uma consistente “teoria da restauração” foi realizada pelo italiano Cesare Brandi (1906-1988), a partir das contribuições sobre o tema que já vinham sendo debatidas na Europa desde o século XIX. A sua teoria se estabeleceu sobre os dois pilares acima citados, a história e a arte, levando-o a discorrer sobre uma instância histórica e uma instância artística aplicáveis aos objetos a serem restaurados. Dois conceitos fundamentais para o entendimento contemporâneo do patrimônio – a cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a serem

1 Artigo publicado em Cadernos de Estudos do PEP V. 9 (Contribuição dos Palestrantes da 8a Oficina do PEP, Petrópolis 2008). Edição IPHAN 2009, ISBN 978-85-7334-126-3 UFMG. [email protected]

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preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas com relação às obras de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto patrimônio.

Além disso, a separação entre uma instância histórica (na maior parte das vezes relacionada à matéria) e artística (na teoria brandiana associada à imagem) possibilita também uma separação entre imagem e matéria, a qual muitas vezes aponta para uma atitude simplista que reduz o trabalho de restauro a uma mera adaptação da matéria à obra de arte em sua exigência formal, desconhecendo envolventes da memória e da cultura.

A partir dessas distinções – instância histórica e instância artística, imagem e matéria - de certa maneira, o processo histórico de abordagem do patrimônio e seu restauro têm se estabelecido a partir de três crenças principais, as quais procuraremos analisar aqui e que são: o objetivismo histórico (a matéria como prova inequívoca do passado), a imanência da arte (a imagem dotada de uma aura única e reveladora, imutável) e a estabilidade da cultura (a identidade e os costumes como padrões imutáveis caracterizadores de um determinado povo).

1.1. OBJETIVISMO HISTÓRICO

“Vinte e cinco anos depois, tudo pode ser verdade. O homem está disposto a admitir qualquer coisa desde que traga a chancela do tempo”. (Carlos Drummond de Andrade, Fala Amendoeira)

A questão do objetivismo histórico pode ser abordada sob dois ângulos. O primeiro diz respeito à epistemologia da própria disciplina da História e a segunda relativa ao par autenticidade/verdade, o qual documentaria inequivocamente a historiografia.

A) Quanto à história:

Embora a História contemporânea questione a idéia “objetiva” de “verdade histórica”, ela está tão arraigada no senso comum e na patrimonialidade “agregada” aos objetos que elas se confundem com a impossível busca de recuperar os fatos passados como eles realmente aconteceram, contrariando a constatação de que o discurso histórico é essencialmente dedutivo e as suas explicações são antes “avaliações” que “demonstrações”. O movimento da década de 70 conhecido como Nova História já reconhecia alguns pontos epistemológicos importantes:

O acontecimento é singular: o fato histórico só acontece uma vez e não se repete. Daí decorrem três grandes problemas. Primeiro, a primazia do acontecimento (não confundir fato histórico com o acontecimento real); segundo, a parcialidade e a fragmentação dos fatos, privilegiando, como é mais usual, os indivíduos e as grandes personalidades; terceiro, a redução da História à narração (o que leva a escolhas não explícitas na narração);

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É impossível uma reconstrução integral dos fatos exatamente como ocorreram. Na realidade, a História agrupa fatos em função do método e do historiador, sendo, portanto, extremamente influenciada pelo momento em que é escrita;

Na outra ponta, as fontes que supostamente “documentariam” objetivamente os fatos podem ter sido manipuladas pelo poder (documentos “oficiais”) ou pela opinião (fontes jornalísticas) ou pelo filtro do narrador (indeterminação da memória);

Constatações como essa levam, é claro, a uma grande suspeição sobre uma única verdade histórica e, consequentemente, propõe uma revisão de conceitos e métodos.

B) Quanto á autenticidade

É a materialidade do bem cultural, talvez, que lhe confira um status de História objetiva, pois se os momentos históricos são recriações, a matéria que sobreviveu ao tempo é um fato concreto, palpável, um documento, portanto. Uma análise desse suposto “documento” seria, então, de grande utilidade para a nossa análise. Dois problemas metodológicos ocorrem com relação aos documentos, nessa abordagem:

Se não há uma neutralidade da história, como se esta fosse a narração da “verdade” dos acontecimentos, a qual história esse documento se refere? Até que ponto ele é puro e resultante de uma seleção desinteressada e até onde eles comprovariam uma determinada versão histórica, a qual, na verdade, atende às intenções das classes dominantes ou aos recortes próprios de cada historiador que os colecionou;

Quais os critérios decisivamente científicos que comprovariam a suposta autenticidade do documento e como se daria a conservação dessa autenticidade? Nesse caso, ainda que seja verificada a sua idade, não há como saber se ele espelharia a verdade como ela realmente aconteceu ou se seria uma versão “fabricada” para provar uma história oficial ou desejada.

Qualquer que seja a sua forma, no entanto, o documento antigo constitui um acervo patrimonial, posto que é uma herança que vem do passado e tem sua origem em um tempo que não volta mais. Independentemente de seu valor de “verdade”, ele é um objeto do passado, com potencial de expressão próprio. Isto não quer dizer, no entanto, que ele é certamente o documento comprobatório da história e nem que ele é original de um determinado fato histórico ou de um único momento específico de criação: ele deve ser absolutamente relativizado como sobrevivente do passado, mas sem a aura de um inconteste documento de uma História “real”. No entanto, e apesar disso, a idéia de preservação do documento está muito ligada aos conceitos de veracidade e autenticidade, sobre os quais repousariam o seu valor documental. Ambos são conceitos complexos que merecem uma atenção especial.

O conceito de “verdade” é bastante complexo no campo da filosofia e, quando examinado quanto ao seu compromisso com a idéia de preservação, ele oferece vários ângulos de exame. No entanto, apesar de toda essa indeterminação quanto ao

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verdadeiro e ao autêntico, o terror de se preservar uma “mentira” é tão grande na área patrimonial que vários textos e encontros foram realizados em nome da autenticidade. Para a Carta de Brasília, o entendimento sobre autenticidade repousa sobre os conceitos de identidade e herança, reconhecendo que ela não poderia ser abordada desde um ponto de vista objetivo. Ao reconhecer a mutabilidade do conceito de autenticidade, a Carta arrisca uma definição:

As diferentes vertentes que integram uma sociedade apresentam leituras de tempo e espaço diferentes mas igualmente válidas, que devem ser levadas em conta no momento em que se fizer a avaliação da autenticidade [...] O significado da palavra autenticidade está intimamente ligado à idéia de verdade: autêntico é o que é verdadeiro, o que é dado como certo, sobre o qual não há dúvidas. Os edifícios e lugares são objetos materiais, portadores de uma mensagem ou de um argumento cuja validade, no quadro de um contexto social e cultural determinado e de sua compreensão e aceitação pela comunidade, os converte em patrimônio. Poderíamos dizer, com base neste princípio, que nos encontramos diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o objeto material e o seu significado (CARTA DE BRASÍLIA, 1991, grifos nossos).

A própria UNESCO, no seu Operational Guideliness, também se distancia do conceito de autenticidade como uma suposta “verdade objetiva” e se aproxima do entendimento de uma autenticidade sócio-cultural. Essa nova abordagem da autenticidade, é claro, acaba influindo também na idéia de integridade (cuja recuperação seria teoricamente a meta do restauro), a qual passa a ser relativa aos valores culturais.

Colocada a questão da verdade e da autenticidade, resta-nos ainda investigar outras relações entre as duas. Vimos até agora que a autenticidade se ampara sobre dois fatores, a matéria (se ela é substituída, a autenticidade do objeto é ameaçada) e à imagem. A estes, Viñas acrescenta outros dois: a idéia que originou o objeto e a sua função material (especialmente nos bens arquitetônicos). Segundo o autor, esses fatores acabariam por gerar, na teoria do restauro, quatro concepções sobre supostos estados autênticos do objeto2: um “estado autêntico como estado original” (ou o que tinha o objeto quando acabou de ser produzido); um “estado autêntico como estado prístino” (ou seja, aquele que o objeto deveria ter, ainda que não tenha tido nunca); um “estado autêntico como estado pretendido pelo autor” (ou seja, como o mais parecido possível como o autor o queria) e um “estado autêntico como estado atual” (ou seja, a única autenticidade possível seria aquela maneira como o objeto efetivamente se apresenta a nós). Desses quatro, Viñas reconhece que a autenticidade não é um fato objetivo, mas que, “de fato, todos os objetos são autênticos, autênticos pelo fato de existir, tautologicamente autênticos.” 3

2 VIÑAS, 2003, p. 84-86 3 VIÑAS, 2003, p.93

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1.2. IMANÊNCIA ARTÍSTICA

“Arte é tudo aquilo que os homens chamam de arte” (Formaggio)

Sendo a obra de arte considerada a expressão máxima da cultura e o resultado do gênio criador, a imposição da inteligência e da sensibilidade humana sobre a matéria informe, é compreensível (embora discutível) que a atividade do restauro se detivesse sobre a questão da imagem. A preservação e a continuidade de sua expressão seriam um desafio ao qual não poderiam se furtar os profissionais da área.

Vale a pena, aqui, explorarmos brevemente o conceito de “imagem”. Este já foi entendido como resultado da nossa ação fisiológica de ver (ela mesma eivada de conteúdos culturais e existenciais), como representação (seja do ponto de vista comunicacional da semiologia ou da substituição do ser pela sua designação) como substituto da representação pela presentificação crítica (como na Fountain de Duchamp) ou, em Platão, como mimesis (como uma mentira que esconde a verdade) e ainda, pela fenomenologia, como sendo a forma como o objeto se nos apresenta: como ele se manifesta e como é por cada um percebido, ligado portanto à sua aparência, a qual inclui, integradamente, a sua materialidade e seu significado.

Às várias concepções de imagem, ainda se acrescentam outras questões intrinsecamente ligadas a ela e que nos interessam especialmente quanto à sua preservação. Primeiramente, vamos examinar a preservação da imagem assentada na idéia de sua legibilidade. Nesse enfoque, as deteriorações causadas pelo tempo são aceitas até o ponto em que não interfiram na capacidade da obra exercer a sua expressão, ou seja, permanecer legível. A partir desse entendimento de legibilidade, vários são os tratados que definem como sendo a sua recuperação a tarefa precípua do restaurador, como a Carta do Restauro de 1972 que entende o restauro como “qualquer intervenção destinada a manter em funcionamento, facilitar a leitura e transmitir integralmente ao futuro” os objetos patrimoniais.

Para empreender seu raciocínio quanto à legibilidade, Viñas nos lembra que, em primeiro lugar, que a questão da legibilidade é baseada em códigos e, portanto depende tanto do que está “escrito” quanto da capacidade de quem vai lê-lo e de seu conhecimento sobre os códigos ali utilizados e que, em segundo lugar, as lacunas eventualmente existentes em uma obra de arte necessariamente não a tornam ilegível, mas propõem uma outra forma de legibilidade, incorporando nessa nova forma também os acidentes do tempo.

Os dois pontos levantados por Viñas são importantes para o entendimento do conceito de legibilidade na abordagem que aqui fazemos porque remetem à questão fenomenológica da relação entre obra e sujeito e reforçam que o procedimento do restauro na verdade é fruto de decisões pessoais do restaurador e das eleições que ele faz, privilegiando uma das possíveis leituras do objeto sobre outras. A passagem do tempo modifica a peça e, na outra ponta, também as condições de leitura do observador presente são outras. Não há, portanto, como recuperar a totalidade existencial da obra daquele momento neste novo momento, qualquer intervenção sobre ela privilegia um fator sobre o outro, na sua construção presente.

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Esse mesmo raciocínio abre as portas para que suspeitemos também de uma visão muito determinista do conceito de deterioração. Para nos ajudar a explorar este aspecto, cabe referência à questão da pátina, a qual é muitas vezes essencial ao entendimento da passagem histórica do bem e cuja supressão acabaria por lhe retirar até mesmo sua apreensão de autenticidade. O entendimento, portanto, de deterioro como “alteração material do bem” não é suficiente, posto que a passagem do tempo, é claro, imprime suas marcas no objeto e elas não são necessariamente negativas ou destruidoras. Na verdade, consideramos deterioração aquilo que entendemos como sendo um valor “negativo” para a peça, novamente mostrando que mesmo uma questão que, a princípio parece tão centrada no objeto como o deterioro, também depende do sujeito e das relações intersubjetivas que se estabelecem.

A autenticidade da expressão, outro suposto atributo da “aura” do objeto artístico, é também buscada muitas vezes no processo de restauro sob diversos enfoques tais como a congenialidade com o autor e o tempo (“é assim que o autor queria”), o proto-estado ou estado originário. Sob todas essas formas fica difícil se falar objetivamente de uma suposta expressão autêntica posto que o tempo passou para a peça e sobre ela imprimiu suas marcas, as quais não são apenas marcas materiais - também autênticas - mas mesmo as da tradição, a qual fez com que a peça se apresentasse desta ou daquela maneira aos pósteros. Sob esse aspecto, inclusive, convém lembrar que a raiz da palavra “tradição” (do latim traditio, tradere, trado) é a base tanto da palavra transmissão quanto da palavra traição, reforçando o fato de que nem sempre a transmissão é neutra e fiel.

A solução brandiana para o restauro está exposta no seu primeiro axioma, onde ele define que, na obra de arte, só se restaura a matéria. Ora, para o entendimento contemporâneo de alguns autores como Bardeschi não faz sentido um entendimento de restauro centrado na preponderância da imagem e muito menos que só se restaura a matéria, para ele exatamente o que não se deve restaurar, pois é a única coisa autêntica remanescente do bem, portanto a única a se manter a salvo de qualquer intervenção.

Outro problema prático do restauro levantado por Brandi e também correlato á legibilidade trazido pela questão da fragmentação e da lacuna. O conceito de lacuna apresenta problemas quer do ponto de vista semiológico, da leitura, quer do ponto de vista da percepção gestáltica, especialmente quanto à extensão lacunar. Sob o primeiro ponto de vista, a lacuna pode ser de tal ordem que interrompa a compreensão do texto e, sob o ponto de vista da segunda, ela pode interromper o liame das partes e dificultar a legibilidade da obra. O conceito de lacuna, no entanto, não é único. Para a hermenêutica gadameriana, por exemplo, ele não está centrado no objeto, mas na relação entre ele, o sujeito e a compreensão que este faz daquele, remetendo também ao intérprete.

1.3. ESTABILIDADE CULTURAL

A visão antropológica contemporânea entende a cultura como sendo uma visão de mundo que estabelece padrões públicos e determina o destino das nações, uma consciência coletiva, uma forma de falar sobre identidades coletivas. Na medida em que ela apresenta esse papel intermediador, a cultura faz parte integrante de nosso ser,

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da nossa relação com o mundo. Talvez pelo fato de que ela não seja herdada biologicamente, mas assimilada, sujeita ao vai-e-vem dos processos históricos, ela apresenta várias características que nos importam nesse momento, tais como um caráter dinâmico (com várias sub-culturas, abertas, sincréticas, instáveis) e diversos níveis interdependentes (indivíduo, grupo ou classe, sociedade). Na realidade, os valores culturais são variáveis e relativos e não predeterminados e eternos e, no seu desenvolvimento, ela se apresenta como criação e recriação contínuas, muitas vezes à base de empréstimos e trocas.

As ideias culturais são expressas e comunicadas por meio de símbolos, padrões explícitos e implícitos, idéias tradicionais com valores vinculados. Como sistema simbólico, ela é influenciada e influencia as relações sociais, a economia, a arte, a religião e outras formas do ser humano se manifestar ou se comportar. Tais funções psicológicas e existenciais fazem com que a cultura nos pareça estável, sob pena de perdemos nosso próprio eixo, se assim não fosse. No entanto, não é bem assim.

Na medida em que a simbologia muitas vezes se constrói sobre objetos físicos, no caso das coletividades sobre monumentos ou objetos fortes e presentes, a ilusão da estabilidade cultural leva a uma errônea imbricação entre objeto e significado, como se este último fosse imanente àquele. O entendimento de que para garantir o significado da obra é preciso mantê-la intacta ou como era está claramente centrado no objeto e na sua imanência própria e, de certa forma, desconhece a relação com o sujeito que, à sua maneira lhe impões significações pessoais e de grupos que lhes impõem também outras significações próprias.

A preservação da dimensão simbólica, no entanto apresenta várias particularidades:

Pelo seu caráter sinedóquico, ou seja, do particular representar o todo, faz com que, de certa maneira, a preservação dependa mais da sobrevivência do bem, seja de que maneira for, do que da estrita preservação da matéria, como mostram os exemplos de Ouro Preto e Varsóvia;

Pelo seu caráter difuso, representa conceitos imprecisos (do ponto de vista descritivo, como identidade, por exemplo) ou excessivamente abrangentes (de grandes grupos sociais, como nação, por exemplo), os quais, de certa maneira, também não se associam diretamente às sutilezas e detalhes da forma ou da matéria;

Pela natureza de sua seleção, remete mais a uma construção idealizada, política ou econômica do que propriamente a uma conservação intacta (da qual se aproveitam as estratégias oportunistas de preservação);

Pelo fato de simbolizar vários e diferentes conceitos (valores “altoculturais”, de identificação grupal, ideológicos e até mesmo sentimentais), também apresenta diferentes modos e métodos de preservação;

Pela sua estreita ligação com a sociedade e os valores a que serve, os quais muitas vezes se sobrepõem à sua função original - pois a dimensão simbólica se

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apresenta como mais importante - causa alterações na forma e na matéria para se adaptar ao predomínio dessa função4;

Pela maneira como se apresenta, na sua preservação podem se alternar valores e métodos que se relacionam mais com a sua presença como objeto artístico ou histórico, ou ainda de maneira magnificada ou reduzida;

Pela flexibilidade inerente à classificação de um objeto como obra de arte, pode induzir a diferentes decisões sobre sua preservação. Essa flexibilidade, por exemplo, faz com que alguns objetos sejam considerados como pseudo-artísticos e, portanto, sem “necessidade” aparente de preservação (como “a pintura banal de uma igrejinha qualquer”), a qual poderia ser substituída (do ponto de vista artístico) ou mantida (pelo valor sentimental, ligado à memória);

B) A questão da identidade

É essa mesma esperança de estabilidade, de permanência, que cria a confusão quanto ao conceito de identidade, entendido como um atributo imutável, associado ao ser, como o “mesmo”, aquilo que não muda, aquilo que se aproxima do referente. Se essa concepção for utilizada de maneira rígida, como muitas vezes o é, “identidade” seria um conceito dominador e evanescente que a todo o momento entraria em choque com a realidade, esta sempre dinâmica e diversa.

Face à imprecisão de seus contornos, o termo “identidade” tem apresentado vários entendimentos. Muitas vezes aparece como a tentativa de materialização de um ente coletivo dotado de coerência e continuidade, uma “objetificação cultural”5, a construção de um modelo que aparece como um conceito tão ideal que nunca acontece na prática ou acaba por determinar quais elementos devem ser preservados para construir este ente. Outras tantas vezes, a identidade aparece como “sentimento de ser”, ligado a uma suposta autenticidade do grupo. Essas acepções, como não poderia deixar de ser, acabam sendo utilizadas como plataforma de dominação, usado na prática para justificar as mais diferentes ações. Sob outro ponto de vista, a identidade também pode ser entendida pelo seu conceito complementar, a diversidade. Por esse processo, seria mais operacional reconhecer aquilo que se parece pela contraposição com o que lhe é diverso, diferente. O que acabaria por levar a um entendimento mutável de identidade como o “mesmo na recognição” ou uma repetição que se diferencia6, sempre transformação e criação. É importante, então, que não entendamos “identidade” como um conceito absoluto, pré-existente e congelado, mas sempre relacional, calcado na ação presente e na compreensão da sua diversidade e transformação.

D) Quem escolhe o que é patrimônio

Já em 1903, Riegl nos mostrava que, em face dessa relatividade e instabilidade cultural, a questão do patrimônio se assentava sobe valores. E, nesse caso, como se

4 Por exemplo, a mudança operada após o período de vandalismo da Revolução Francesa nos palácios que deixaram de ser residências para se tornarem espaços coletivos, patrimônio comum. 5 GONÇALVES, 1996 6 MAGNAVITA, 2003, p. 69

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mede o valor coletivo? A régua usada tem sido a força do Estado, o gosto das elites e, modernamente, a imposição da mídia ou do capital. A partir daí podemos depreender que os valores não estão apenas no objeto, mas na compreensão que as sociedades fazem sobre ele. Essa compreensão se sobrepõe, portanto àquela de que o próprio teria uma “verdade” imanente, a qual deveria ser preservada.

A questão da classificação de um objeto como patrimônio ou não parece estar ligada a uma suposta imanência do próprio objeto, impregnando-o de uma função totêmica, como se ele, por ele, fosse o catalisador das comunidades, o gerador das identidades. Também neste aspecto é colocar carga demais sobre o objeto. Na realidade, não é ele que gera as identidades, apenas as simboliza, representa valores anteriormente gerados que se agregam em torno daquilo que podemos chamar “identidades”.

Dessa discussão fica claro que o “ser” patrimônio não está no caráter imanente do objeto, mas sim em uma outra forma de relação que passa também pela pessoa, comunidade ou sociedade, portanto pelo sujeito, que lhe confere tal grau. E quem é esse sujeito? Também esse sujeito tem caráter mutante, dependendo do grupo social, do tempo histórico e dos valores que lhes são inerentes. Alguns teóricos, a partir dessa constatação, tendem a estabelecer que a característica comum dos objetos-patrimônio é o significado que eles trazem consigo, ou seja, seu caráter simbólico. Dessa forma, eles seriam, antes que objetos memoráveis, objetos rememoradores7.

De qualquer maneira, também não é o sujeito que, independentemente do objeto cria seus significados. Para Viñas, “a patrimonialidade não provém dos objetos, mas dos sujeitos: pode definir-se como uma energia não-física que o sujeito irradia sobre um objeto e que este reflete.” 8. No nosso entendimento – e segundo nosso método de análise – isto também não é verdade, pois aqui se coloca toda a responsabilidade sobre o sujeito. Parece-nos, antes, que a posição de patrimônio está na interação entre sujeito e objeto, no acontecimento, no fenômeno, pois se objetos específicos refletem a intenção do sujeito, de alguma forma eles têm em si certas propriedades (espaciais, históricas, artísticas) que lhe conferem esse poder. Há nisso um correlato importante com o entendimento hermenêutico sobre o objeto histórico. Segundo Gadamer, “o verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas a unidade de um de outro, uma relação formada tanto pela realidade da história, quanto pela realidade do compreender histórico” 9. O significado, portanto está na relação que se estabelece entre o sujeito e o objeto e a compreensão hermenêutica está na consciência dessa reciprocidade.

F) Os significados patrimoniais

Os debates que se fazem em torno da restauração mostram com clareza a mesma oscilação que se faz na discussão sobre o patrimônio em seu caráter histórico, artístico e cultural. Enquanto os estritos defensores do caráter histórico ainda se ressentem do positivismo e de um objetivismo documental, os defensores do caráter

7 VIÑAS, 2003, p. 55 8 VIÑAS, 2003, p. 152 9 GADAMER, 2004, p. 396

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artístico se prendem a um idealismo calcado na expressividade da imagem, ambos centrados no objeto em si. A vertente cultural tende a aproximar-se do sujeito, enfatizando mais as questões subjetivas e do senso coletivo, em parte também considerado pelo ramo crítico-criativo relacionado ao caráter estético. A postura fenomenológica se propõe a superar essa dicotomia, na medida em que não valoriza mais o objeto ou o sujeito, mas a relação entre eles. Não há apenas o objeto em sua imanência, independente do sujeito que o observa, frui e nele intervém e nem o sujeito em sua consciência estrita que apenas usa o objeto como ponte para seus próprios pensamentos, podendo, em face a essa minimização de seu valor objetivo, alterá-lo ao seu bel prazer, posto que o sujeito e a sociedade são só o que contam.

A presença do sujeito modifica a apreensão do objeto. Viñas10 nos revela que essa modificação ocorre a partir de quatro fenômenos principais:

A inércia icônica, segundo a qual o espectador reconhece o objeto como está acostumado a fazê-lo e qualquer alteração na sua forma lhe parece estranha ou inverídica (como exemplo, nos pareceria estranho ver os templos gregos coloridos – como efetivamente eram no momento de sua criação, posto que nos acostumamos a vê-los brancos);

O preconceito histórico, segundo o qual o objeto deve adaptar-se ao que o espectador pressupõe (que é o que acontece, por exemplo, nos filmes os quais inclusive ajudam a criar o modo como “devemos” reconhecer os diferentes períodos históricos: a Idade Média escura e sombria, a Renascença cheia de luzes);

O fetichismo material, segundo o qual a verdade está no material original, ainda que a réplica seja perfeita e feita com o mesmo material do original (o espectador se sente enganado, por exemplo, quando fica sabendo que grande parte das esculturas urbanas de Florença não são as originais);

A garantia dos “experts”, segundo a qual os técnicos sabem mais do que qualquer um e, portanto, seu saber é superior (eles devem, inclusive, nos dizer como devemos pensar).

Um exame das atitudes do sujeito face aos bens artísticos, culturais ou históricos mostra bem como esses fenômenos sempre apareceram de uma forma ou de outra na história e condicionaram o próprio ato de intervenção neles. Por exemplo, a inércia icônica aparece no Renascimento na valorização da cultura greco-romana, como ela parecia ao homem dos séculos XIV e XV; o preconceito histórico, da mesma forma, na Renascença, na negação do gótico e na adição de elementos clássicos ao Panteão ou ainda, no século XVIII com o saudosismo estilístico dos “neos” com resquícios até mesmo nas restaurações fantasiosas de Viollet-le-Duc; o fetichismo material aparece seja nos “souvenirs”, seja no documento histórico valorizado de forma diferente no Iluminismo ou no positivismo do século XIX; a garantia dos experts é também presente na história, só mudando os experts, os quais muitas vezes foram os nobres ou os clérigos.. Aos diferentes tipos de valor atribuídos aos monumentos, em função de diferentes momentos históricos e contextos correspondem também diferentes meios para sua preservação.

10 VIÑAS, 2003, p. 97-98

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Assim, nem a imagem é a-histórica e nem a história é homogênea. A compreensão dessas premissas é fundamental para a atitude do restaurador, fazendo com que o seu juízo histórico-estético influencie substancialmente sua prática. Hoje já superamos a idéia de neutralidade científica até mesmo nas ciências humanas e sociais, onde até mesmo os próprios antropólogos, por exemplo, já não acreditam mais em uma posição “neutra” de análise de uma determinada cultura, entendendo que mesmo o observador está profundamente marcado pela cultura e tradição do homem que as examina.

Por trás da vertente cultural está a questão do significado do bem para o homem e as sociedades, o qual, como vimos nos casos de Varsóvia, Veneza ou Ouro Preto, interfere decisivamente nos métodos e processos de restauração. O significado do bem muitas vezes supera a mensagem da própria imagem, fazendo com que a sua força simbólica ultrapasse a expressividade estética nele contida. Na realidade, a questão do significado ultrapassa as imposições da forma, tendo com relação a esta uma relativa autonomia. Embora a imagem congregue significados e estimule relações, o bem patrimonial parece estimular outros níveis de relação ligados ao mundo existencial do fruidor. Essa autonomia do significado em relação à obra única se exerce em diferentes maneiras:

Pelo “descolamento” entre a imagem e a obra física, objeto histórico, quando a imagem precisa ser evocada ou utilizada independemente do seu suporte material existir ou não, como no caso das cidades supracitadas ou das sucessivas tentativas de reconstrução do Templo de Salomão ou do uso de suas formas como base para outros templos construídos ao longo da história;

Pela sua “mutabilidade operacional”, quando a imagem precisa ser adequada ou atualizada ou reformada para melhor atender aos novos usos e práticas que nela se fazem ou dela se extraem, como ocorre na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador, onde vários de seus espaços são alterados ao longo do tempo, de forma a facilitar a relação com os fiéis;

Pelo seu “uso icônico”, que é o caso citado por Walter Benjamin em seu texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, onde a imagem deixa de ser necessariamente associada ao seu suporte material original – a perda da aura – e ganha mundo com apropriações diversas como é o caso, por exemplo, da Mona Lisa, “pop star”;

Pelo seu “significado ritualístico”, ligado a aspectos cíclicos das tradições ou à afirmação do mundo simbólico, como soe ocorrer no Oriente em práticas tradicionais como a reconstrução do Templo de Ise.

2. O que se preserva/ restaura

Se compreendermos que as ações de patrimonialização e restauro não estão centradas apenas no objeto, mas também no sujeito, devemos compreender também a importância de se trabalhar o patrimônio como um campo de relações, a partir das quais se estabelece a sua compreensão, olhando com suspeita as teorias apriorísticas que sobre ele se lançam. Acreditamos que só há abertura e pacto possível entre o fruidor e o

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patrimônio se este tiver um sentido para aquele11. A questão da significação, assim, traz consigo uma grande abertura na medida em que entendemos que não existe um significado único e universal, mas vários deles, advindos dos modos particulares a partir dos quais ele é experimentado. Da mesma forma, não há metodologia única de intervenção, mas no nosso entendimento todas elas devem levar em conta a questão de dotação de sentido, sob pena de esvaziar aquilo que se abre na historicidade do monumento O significado do bem patrimonial, entretanto, não parte apenas da sua história ou da sua esteticidade, mas da integração dessas duas formas de apropriação se estabelecendo ainda sobre uma série de referências, sejam elas de natureza espacial, de conceitos prévios emanados do mundo sócio-cultural ou pessoal, em suas vivências e memória.

Alguns perigos, no entanto, se apresentam à compreensão/ interpretação (e seu rebatimento na preservação) que necessitam ser apontados para o uso adequado de nosso método12:

O perigo historicista acontece quando colocamos o “contexto no lugar do texto”, ou seja, quando tentamos entender o bem patrimonial não como ele se apresenta hoje a nós, mas como ele era e se portava no contexto onde ele nasceu. Este é o perigo que conduz ao embalsamento e a mumificação do bem e que também conduz a sua apropriação excessivamente setorial (geralmente pela indústria do turismo) e que, ao tentar lhe recuperar a “verdade” do significado, acaba por lhe retirar quase todo ele;

O perigo psicológico acontece quando, na preservação, procuramos interpretar a intenção do autor ou o espírito da época em uma forma de congenialidade que é mais pretensiosa do que possível. O próprio Brandi já nos alertava para o perigo dessa atitude, ao condenar a tentação do restaurador de fazer “como” o autor;

O perigo objetivista13 acontece quando se procura derivar o sentido do bem a ser interpretado a partir apenas dele próprio, “tornando-o independente do autor, do contexto e do intérprete”. Segundo Brandão, esta tentação acaba por promover um insulamento da obra de arte e da Arquitetura, especialmente aquele que se verifica nos museus e galerias de arte;

O perigo relativista, próximo ao historicista, acontece quando obliteramos nosso modo próprio de interpretação pela tentação de relativizar sempre a obra ao seu contexto original. Por esse perigo substituímos a fruição/ intervenção do presente pelo excesso de zelo pelo suposto documento;

O perigo subjetivista acontece quando a balança pende para o lado do leitor/ restaurador que impregna o bem patrimonial com sua própria e exclusiva

11 Levantamos, inclusive, que a perda de sentido é um dos principais problemas pelo qual passa a preservação hoje. 12 Os cinco primeiros foram trabalhados a partir daqueles apresentados por Carlos Antônio Brandão em BRANDÃO, 1999, p. 115, 116. A eles acrescentamos os últimos três. 13 BRANDÃO chama a este perigo de “positivista”, mas preferi reservar este termo para as posturas esteticistas e filológicas do limiar dos séculos XIX e XX.

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interpretação ou quando, no processo de intervenção, minimiza a presença da sua historicidade para fazer valer sua própria intencionalidade;

O perigo positivista acontece quando se acredita poder trabalhar o bem apenas pelo método científico, sobre supostas bases “seguras” que a ciência ou o método analítico pudesse lhe fornecer. Aqui se enquadram tanto o método filológico quanto o método de recomposição da unidade estilística citados no início deste capítulo;

O perigo idealista aparece, no patrimônio edificado, naquilo que tange ao culto à imagem ou a matéria como se elas fossem, respectivamente, os centros da expressão artística ou da historicidade do objeto. Esta discussão também será retomada com mais profundidade nos capítulos seguintes;

O perigo do senso comum aparece na suposta “verdade” superficial assimilada coletivamente ou na superficialidade do gosto ou do juízo comum.

Do exame desses perigos, podemos verificar que compreender estética e historicamente não se dá a partir de uma congenialidade, nem a partir de algo que seria imanente ou transcendente ao próprio objeto, nem ainda sobre o esforço analítico, mas a consciência da filiação da obra a nosso mundo.

A) O QUE SE PRESERVA

Ao mudar a cultura, transformam-se os valores e transformam-se, também, é claro, as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, parece que o que se preserva, na realidade, é a identidade em transformação, ou seja, a preservação não está na capacidade do bem de permanecer como está, mas na sua capacidade de mudar junto com as mudanças sócio-culturais. Essa concepção se choca com a acepção de imutabilidade do bem a ser preservado. Também ele, como a tradição e a cultura, está em constante transformação.

Não há, portanto, como buscar a essência do objeto de restauro em uma idéia imutável de “objeto” que sobreviveu à história, pois ele está inserido na história da vida, a qual se caracteriza pela transformação. Não há esse objeto a-histórico “essencial” - além do que isso seria uma contradição com seu valor como patrimônio histórico conferido exatamente por ser histórico. Mesmo a idéia de uma transmissão “neutra”, independente da cultura e da tradição não se sustenta. Benjamin e Osborne trabalham o conceito de transmissão, comparando o pensamento de Heidegger e de Benjamin, ambos convergentes para o fato de que a História não é um ato progressivo e nem o presente um herdeiro inconteste do passado. A partir dessa convergência constatam:

Enquanto o Iluminismo e o antiiluminismo conferiam à tradição o sentido de transmissão, Heidegger e Benjamin recuperaram seu sentido traiçoeiro e perigoso de uma rendição potencialmente destrutiva. O ato de “entregar” destrói o objeto cedido; não é de modo algum um “meio”, muito menos um meio “neutro”, para a transmissão do passado para o presente. Como ambos reconheceram em 1916, a tradição é não só o que é transmitido num dado tempo como também a outorga desse tempo, ele próprio na distinção entre passado e presente ao mesmo tempo que os

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supera ao entregá-los um ao outro; ela tanto funda quanto pressupõe o tempo que tem lugar. Como Heidegger e Benjamin mostraram em 1916, a tradição é um fenômeno paradoxal, e até destrutivo, caracterizado por uma transmissão que ao mesmo tempo excede ao que é transmitido e é por ele contida. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 29).

Assim, toda transmissão ao presente seria também uma forma de destruição do passado, resultando, portanto, numa quebra da autenticidade daquilo que é transmitido, pelo menos naquela autenticidade “pura” ou a uma suposta plenitude “original” da obra de arte14.

Dessas discussões resultou que os objetos que sobreviveram à torrente do tempo são, na realidade, aquilo que foi selecionado para ser passado ao futuro, portanto fruto intencionado de uma sociedade que queria ser lembrada de certa maneira, afinal a História é uma versão do fato, não o fato em si.

Mas as duas impossibilidades, a da objetividade da história e a da imanência da imagem, persistem apesar da relatividade cultural e social e acabam por gerar uma tensão entre verdade e leitura que afeta substancialmente as práticas de preservação. Para entendermos as suas formas mais usuais partimos da disjunção entre História e patrimônio revelada por Lowenthal:

A história e o patrimônio transmitem coisas diferentes a audiências diferentes. A história conta a todos os que querem ouvi-la o que ocorreu e como as coisas chegaram a ser o que são. O patrimônio se baseia em mitos de origem e continuidade, conferindo a um grupo prestígio e objetivos comuns. A história se engrandece quando seu conhecimento se propaga; o patrimônio se vê diminuído e degradado quando se estende. A história é para todos, o patrimônio somente para nós. A história não é completamente aberta - os investigadores protegem suas fontes, os arquivos se fecham, aos críticos se nega o acesso aos documentos e os erros são esquecidos. Mas a maior parte dos historiadores condena a ocultação. Ao contrário, as mensagens do patrimônio estão restritas aos eleitos. [...] o patrimônio se baseia em regras tribais que convertem cada passado em uma posse exclusiva e secreta. Criado para gerar e proteger interesses de grupos, somente nos beneficia se o isolamos dos demais. Compartilhar, ou inclusive mostrar, um legado histórico aos demais diminui suas virtudes e poderes. [...] Ser do clã é essencial para sobrevivência e bem estar de um grupo. (Lowenthal, 1996) (VIÑAS, 2003, p. 143-144).

14 “Duas coisas emergem do processo de ‘vir ser e desaparecer’: uma é o objeto ou evento que vem e vai, e a outra é a vinda e ida de objetos e eventos, sua tradição. Para Benjamin, o preço que se paga para se tornar um objeto de tradição é a inautenticidade e a imperfeição; tal objeto nunca pode estar autenticamente ali, integral em si mesmo, uma vez que só está ali graças ao fato de ter sido transmitido pela tradição. Sua emergência já é sempre o seu desaparecimento – o local da tradição não é um lugar onde passado, presente e futuro são reunidos para uma ação resoluta, mas um lugar onde o presente é obsedado não só por seu passado como também por seu futuro de vir a ser passado. É um lugar de luto. Aqui a origem e seus objetos jamais podem atingir a autenticidade, estando sempre em dívida com algo que não se revela”. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 34).

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A partir dessas constatações, Para Lowenthal, a preservação do patrimônio se acomoda ao uso que se faz dele mediante três operações fundamentais e interligadas: uma atualização (no sentido de se impor imagens e valores a personagens do passado); uma melhora (que destaca aquilo que mais se considera hoje) e uma exclusão (o que, ao contrário da anterior, consiste em “esquecer” aquilo que hoje não é apreciado) (VIÑAS, 2003, p. 146).

A questão da preservação se centra agora, portanto, no conceito de transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que não se rompa a delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade, pois, ao intervir no bem patrimonial nós o estamos modificando, sempre, afinal pela tradição ele já nos chega alterado, pela cultura ele nos chega tematizado e, pelo tempo, com sua significação “original” perdida.

B) O QUE SE RESTAURA

Após o exame do conceito de preservação, resta-nos que a grande dificuldade epistemológica do restauro está na evanescência de seu objeto de aplicação. Afinal, a que se aplica o restauro? O que se restaura? A palavra restaurar, de origem latina, traz consigo a idéia de recobrar, reaver, recuperar, recompor. Ora, pelo que vimos até agora, estas são ações impossíveis com relação ao bem patrimonial, posto que, ao intervirmos na sua matéria, seja na sua estrutura ou na sua aparência, não o estamos recuperando, mas modificando-o. Além do mais, preservar e restaurar, apesar de serem conceitos interligados, não são exatamente ações associadas e nem sempre complementares, pois restaurar significa intervir em um bem, ao passo que preservar significaria apenas, a princípio, a sua transmissão através do tempo. A interligação biunívoca entre as práticas de preservação e restauração, portanto, só teriam sentido se para a transmissão do bem - e o seu vigor no presente – fosse indispensável a sua recuperação, o que já vimos não ser também sempre necessário. A ação de restaurar, portanto, se aplica apenas quando há um objetivo precípuo de superar a destruição causada na transmissão daquele bem que, sem a ação do restauro, perderia totalmente o seu potencial de significação15. Restaurar, portanto, parece ser uma ação interventiva que visa recolocar o bem patrimonial no jogo do presente através da recuperação de suas próprias perdas e é, portanto, sempre um processo de re-significação e daí uma re-criação que se faz sobre a matéria que conseguiu sobreviver ao tempo.

Essas premissas poderiam nos dar a ilusão de que, então, ao desaparecer efetivamente o objeto do restauro, se desapareceria também o seu objetivo, o que, é claro, não faz sentido. Essa digressão nos leva a compreender, então, que a ação de restaurar está presente na dimensão existencial do ser, mas deve ser repensada mais quanto aos seus objetivos do que quanto aos seus objetos (sobre os quais a História da Restauração sempre versou). No entanto, não é pelas dificuldades epistemológicas relacionadas ao objeto do restauro que estariam liberados os limites de ação do restaurador. Essas dificuldades só nos mostram que, na realidade, ao aprofundarmos nossa investigação sobre patrimônio, preservação e restauro, não estamos “reduzindo”

15 O que também já vimos, através de Riegl, ser impossível, pois mesmo uma ruína é prenhe de significados.

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a aplicabilidade desses conceitos, mas ampliando-os e com isso, também redimensionando o “objeto” do restauro. É essa a tarefa que se nos apresenta neste momento e convém começarmos por algumas distinções conceituais importantes que se dão, por exemplo, entre preservação e restauro ou entre conservação e restauro, dentre outras.

Assim, o que se preserva não é:

O bem “intocado”, pois se o não tocarmos ele se degrada e, ao nele tocarmos, acabamos por modificá-lo;

A matéria “original”, como aparece no paradoxo da Nau de Teseu;

A forma “congelada” do bem, posto que é impossível parar a ação do tempo e de cada geração sobre o bem;

Uma suposta “verdade” histórica, posto que esta não existe objetivamente;

O seu momento “original” de criação, posto que esse já passou e só poderia ser acessado por uma suposta congenialidade, esta também impossível;

A intervenção apenas na matéria, sem com isso intervir na dimensão imaterial;

A redução de seus significados ou de sua complexidade

E nem se dá através de um método exclusivamente científico, universal e neutro (que pende para o lado do objeto), mas também não tão aberto que desconsidere elementos compartilhados coletivamente (o que penderia para o lado do sujeito) e nem se faz a partir de um entendimento “globalista”, onde o objeto artístico é entendido de maneira global, sem levar em consideração as especificidades de cada expressividade artística.

A partir disso, entendemos que, na realidade, o que se preserva é:

A “existência” do bem patrimonial, na sua capacidade de se fazer presente;

A sua capacidade de pontuar a existência, referenciando-a, a sua especialidade no espaço e no tempo;

A sua capacidade de nos atrair e possibilitar um pro-jeto;

A fruição do presente instituída pela memória e as possibilidades abertas pelo passado: não é o retorno ao passado, mas a sua vivência no presente;

A abertura de significados que a obra de arte (e de resto, mesmo o bem patrimonial não dotado de caráter artístico) “fixou” na matéria e no lugar e não apenas pelas características objetivas (formais e físicas) do objeto, portanto as suas dimensões material e imaterial;

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A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem, mantendo o equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da dinâmica do tempo e da cultura;

3. Saídas

Quais seriam, portanto, as saídas para os dilemas que a própria noção de patrimônio cultural traz consigo? Até onde nos é permitido vislumbrar, podemos propor que essas saídas estão no reconhecimento da relatividade do bem patrimonial e no reconhecimento da intersubjetividade.

A) RECONHECIMENTO DA RELATIVIDADE DO PROCESSO: A CONTRIBUIÇÃO DA HERMENÊUTICA

Para compreendermos a relatividade do processo de patrimonialização, a Hermenêutica de Gadamer, de base fenomenológica, pode ser de importante ajuda.

Em primeiro lugar, ela é entendida como cura. A cura é um conceito de Heidegger que pode ser entendido, de forma simplificada, como o exercício do ser na sua existencialidade, ou seja, na lida cotidiana do homem com as coisas, com as outras pessoas, com o mundo, dentro da vida.

Essa questão pode ser exemplificada pela tradição patrimonial no Brasil Segundo José Reginaldo Santos Gonçalves, ela teria sido edificada sobre o medo da perda e sob a necessidade de se construir um projeto de nação e, segundo Vera Millet, fortemente marcada pelo controle governamental e econômico. Essas atitudes acabam por levar a um desequilíbrio entre o bem patrimonial e a vida cotidiana e continuada: ao invés do bem se assentar com serenidade no transcorrer da vida, é claro exercendo sua função referencial como sempre, ele se superexpõe e se torna espetáculo, portanto, à parte da própria seqüência “natural” dos acontecimentos, afinal, “o que está em vias de desaparecer deve ser magnificado”16. Ao se fazer assim, ele também magnifica certos significados “selecionados”, “fechando” neles a compreensão da obra preservada e criando uma distância entre ela e o seu fruidor.

Outro ponto importante relacionado à questão da cura é o que se dá em decorrência da ilusão de perenidade é de que o objeto patrimonial é a imagem congelada do passado. Como imagem, ela teria, portanto, uma imanência própria que a desvincularia do fruidor, possuindo em si as propriedades necessárias para gerar sempre a mesma mensagem. Na realidade, ele é um elemento de interação reflexiva com o fruidor, seja pela consciência histórica ou artística, seja como estímulo à sua compreensão pessoal.

Em segundo lugar, a Hermenêutica de Gadamer reforça a importância da relatividade do pensamento presente na consciência histórica. Para Gadamer, o homem moderno tem o privilégio de “ter consciência da historicidade de todo presente e da

16 JEUDY, 2005, p. 27

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relatividade de toda opinião (...) e ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico co-extensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo” 17. Esse senso histórico permite ao homem moderno se entender na perspectiva do tempo e relativizar a sua opinião, dois pontos fundamentais para se exercer a abertura necessária à interpretação hermenêutica.

Quanto ao terceiro ponto, Gadamer identifica também uma consciência estética, como sendo um tipo de compreensão que se realiza a partir do próprio centro da relação entre o fruidor e a obra de arte, na verdade que aí, na relação, se estabelece. Para ele, a verdade da arte não estria na referência à realidade, como resultado de sua imitação ou transformação, mas no mundo que ela própria institui, o qual cria a sua própria verdade quando a nós se apresenta. Tal distinção que a obra de arte possibilita em relação ao objeto real – à qual Gadamer chama de “distinção estética” –uma abstração que lhe é salutar, na medida em que cria o canal específico de sua compreensão, independente dos outros elementos de sua “realidade” (seu objetivo, sua função ou o significado de seu conteúdo). Essa abstração, no entanto, não deve ser confundida com a suposta qualidade estética ligada apenas ao belo e ao gênio, os quais apontamos anteriormente, posto que o belo muitas vezes é influenciado pela consciência histórica e que a genialidade é antes o reconhecimento do outro, portanto exteriorizada. A abstração a qual Gadamer se refere está situada antes na esfera do modo da experiência, na abertura de um outro modo de vivência que a arte institui. A sua realidade objetiva, claro, é também importante para a ancoragem da obra ao mundo e para a complementação de seus significados, mas não substitui a abertura fornecida pela realidade outra que a arte possibilita. “O que perfaz a soberania da consciência estética é poder realizar por toda parte uma tal distinção [entre a realidade e a abstração por ela criada] e poder ver tudo ‘esteticamente’.” 18.

B) RECONHECIMENTO DA IMPORTÂNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE

Além das questões da relatividade colocadas pela saída hermenêutica, resta-nos também a saída do reconhecimento da intersubjetividade. Pelo que depreendemos até agora, parece ter ficado claro que o “ser” patrimônio não está no caráter imanente do objeto, mas sim em uma outra forma de relação que passa também pela pessoa, comunidade ou sociedade, portanto pelo sujeito, que lhe confere tal grau.

A partir do entendimento que é a intersubjetividade que, na realidade, insitui o patrimônio, qualquer intervenção nesse patrimônio diz respeito também a essa intersubjetividade, ou seja, o que subjaz sob qualquer discurso de preservação é o discurso da ética. A missão ética presente na preservação remete aos pontos desenvolvidos anteriormente, tendo a ver com a herança e a sobrevivência, com a proteção da identidade, mas também fortemente com a preservação da verdade e da autenticidade. No entanto, se esses conceitos não podem ser estabelecidos de forma precisa e pragmática, cabe também suspeitar de que uma ética baseada em critérios acríticos também possa estar a serviço de interesses pouco claros. A partir dessa

17 GADAMER, 2003, p. 17, 18 18 GADAMER, 2004/ I, p. 136

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constatação, supera-se, novamente, a centralidade no objeto e retorna-se, assim, à questão do sujeito e do significado. Surgem daí várias correntes, todas elas em defesa da ética, mas com visões diferentes, as quais defendem em graus também diferentes uma intervenção maior ou menor no objeto, mas que de uma forma ou de outra, estão profundamente condicionadas pelos valores de época, os quais, também por sua vez, não são homogêneos. Para Viñas, por exemplo, a preservação seria, na verdade, tanto mais “ética” quanto mais correspondesse ao horizonte de expectativa social. A discussão de valores acaba levando à inclusão do debate sobre a função do bem patrimonial, a qual além das funções psicológicas e sociais já mencionadas (proteção da identidade, herança, etc.), também leva ao resgate mesmo da sua utilidade como fator ético importante para servir à sociedade em que se insere o bem. De qualquer forma, os objetos de preservação

[...] também podem desenvolver funções de natureza muito variada, tangível ou não. Ele, constantemente, produz conflitos entre os sujeitos afetados por um processo de Restauração, porque potencializar uma função habitualmente limita ou condiciona outras. A importância de cada função variará para cada usuário; a decisão eticamente correta sobre que ações desenvolver não pode basear-se nas prioridades de um indivíduo como restaurador, como químico, como historiador da arte, como proprietário, como decisor, etc. Seria eticamente mais correto (mas também funcionalmente melhor) tentar melhorar o mais sincera e equilibradamente possível as eficácias que esse objeto tem para seus usuários, para cada pessoa, para quem desenvolve alguma função de algum tipo. Nestes casos, o critério de atuação tampouco pode variar muito com respeito ao que se viu antes: em teoria o ganho funcional tem que ser máximo. (VIÑAS, 2003, p. 159).

Face às sutilezas conceituais que o problema da autenticidade/ verdade apresenta – e à sua restrita circunscrição aos meios dos experts – alguns autores acreditam que a ética da preservação, para ser verdadeira, deve se estender a todos os segmentos das sociedades envolvidas. Tal postura acaba por levar à noção de que um bem é tanto melhor preservado quanto maior o número de pessoas satisfeitas com sua forma de preservação. Esta, segundo Viñas, é uma fórmula defendida seguidamente na teoria contemporânea da restauração e se funda no entendimento de uma ética baseada na “negociação (Staniforth, 2000; Avrami et al., 2000); no equilíbrio (Jaeschke, 1996; Bergeon, 1977), na discussão (Molina y Pincemin, 1994), no diálogo (Reynolds, 1996), ou no consenso (Jiménez, 1998)” 19. Para ele, portanto, a preservação não pode ser tecnocrática, mas tampouco populista, devendo ser realizada, contemporaneamente, sob a égide da negociação e sustentabilidade.

É assim que a dimensão ética e o entendimento da preservação/ restauro apontam para a face do desenvolvimento sustentável. Conforme entendemos hoje esse conceito, ele aponta para a capacidade de um determinado meio de absorver os impactos da transformação, baseado na integração das agendas social, econômica,

19 VIÑAS, 2003, p. 163

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ambiental e cultural e nunca dizendo respeito a um modelo final a ser perseguido, mas, antes, a um processo. Tudo isso, a nosso ver, em estreita correspondência com a preservação de nosso patrimônio cultural.

Referências Bibliográficas

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POR UMA AGENDA DE DISCUSSÕES SOBRE A CONSERVAÇÃO DA ARQUITETURA MODERNA

Flaviana Barreto Lira

Resumo

As cartas ou recomendações são documentos, elaborados no nível internacional e nacional, nos quais estão definidos procedimentos, normas e conceitos balizadores da prática da conservação. Conforme informa Rowney (2004), visam atender a dois objetivos principais: apresentar uma destilação da filosofia da conservação do momento presente e definir diretrizes para a prática da conservação. Juridicamente as cartas não têm força de lei. Todavia, são fontes fundamentais utilizadas pelos Estados na concepção das normas e na execução das estratégias de proteção ao patrimônio. Tratando especificamente da arquitetura moderna (AM), ainda que sua importância e seus valores venham sendo progressivamente legitimados nesses documentos, são ainda reduzidas as discussões sobre a forma como os princípios de conservação dos exemplares da arquitetura de períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período. Nesse sentido, este artigo discute as possibilidades de aplicação das recomendações ou cartas patrimoniais, elaboradas considerando as características dos bens culturais de períodos mais antigos, aos edifícios da AM. A abordagem não tem por objetivo apenas apontar as limitações, mas sim consolidar uma reflexão pautada na construção de caminhos possíveis de leitura e aplicação desses documentos. Considerando que no campo da conservação do patrimônio cultural não há respostas prontas, pois cada edifício demanda questões particulares, sempre que possível as discussões serão ilustradas com exemplos práticos. Espera-se, assim, construir uma abordagem com maior clareza e consistência, capaz de apontar direções que possam vir a se constituir numa agenda, ainda que embrionária, para elaboração de novas cartas, focadas nos desafios impostos pela arquitetura desse momento.

Palavras-chave: recomendações internacionais, arquitetura moderna e conservação.

Introdução

As cartas patrimoniais são elaboradas com o fim de trazer considerações sobre aspectos relativos à conservação do patrimônio. São produzidas em encontros de entidades internacionais, como o ICOMOS, (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) e nas sessões da UNESCO. Atendem a dois objetivos: apresentar destilação da filosofia da conservação do momento e definir diretrizes para a prática da conservação (ROWNEY, 2004).

UNB. [email protected].

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Juridicamente não têm força de lei, mas são fontes fundamentais para a concepção das normas legais e para a execução das estratégias de proteção e de conservação do patrimônio.

Apesar da existência em alguns países já no século XIX de dispositivos institucionais de proteção ao patrimônio, a primeira carta de abrangência internacional só foi elaborada depois da I Guerra Mundial, em virtude da necessidade de restaurar o

patrimônio destruído naquela ocasião20. A partir daí, a preocupação com o patrimônio passou a ser questão internacional.

Com a instituição do título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO na década de 1970, há um aumento considerável na produção de cartas. De acordo com Rowney (2004), visa-se consolidar princípios universais de conservação, garantindo a salvaguarda em iguais condições dos bens classificados na Lista do Patrimônio Mundial. Mesmo buscando entendimentos ou posturas consensuais aplicáveis internacionalmente, cada país é estimulado a elaborar suas próprias cartas patrimoniais, considerando seus contextos sociais, econômicos e culturais.

Em relação ao conteúdo trazido pelas cartas, pode-se constatar que são diversas as questões tratadas e que o traço comum a todas elas é a busca pela consolidação de princípios balizadores da prática. Outro aspecto perceptível a partir da leitura das cartas é que há uma significativa transformação no tempo das noções de patrimônio, de conservação e de outras correlatas ao tema.

Tratando especificamente da AM, ainda que sua importância e seus valores venham sendo progressivamente legitimados nas cartas patrimoniais, não são comuns discussões voltadas para a forma como os princípios de conservação dos exemplares da arquitetura de períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período.

Nesse sentido, busca-se responder a uma pergunta central: em que medida os princípios destilados pelas cartas patrimoniais podem ser adotados na conservação da AM?

Para tanto, o artigo encontra-se estruturado em três seções. Na primeira são explicitadas as particularidades trazidas pelos edifícios modernos e os desafios à sua conservação. Na seção seguinte, essas particularidades guiam a análise sobre como o conteúdo de algumas das mais importantes cartas trazem à conservação dos exemplares da AM. Na última seção, é realizado um exercício de síntese com o intuito de consolidar premissas envolvidas na problemática da conservação da AM, bem como apontar as direções para seu enfrentamento.

20 Como resposta a essa demanda, no ano de 1931 os países europeus organizaram conferência sobre o tema e elaboraram o primeiro documento internacional a tratar de políticas de preservação do patrimônio: a Carta de Atenas. É importante ressaltar que a referida carta, publicada em 1931 pelo Escritório Internacional dos museus, é distinta da Carta de Atenas elaborada em 1933 e publicada em 1945 pelo CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna).

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1. As particularidades da arquitetura moderna e os desafios à sua conservação

Segundo Macdonald (2003), nos últimos vinte anos presencia-se um aumento no interesse em conservar o patrimônio do século XX. Isso pode ser observado tanto no nível nacional, como no internacional, por intermédio da atuação do DOCOMOMO.

Por iniciativa do DOCOMOMO, foi publicada em 1990 uma carta focada exclusivamente na preservação da AM: a Declaração de Eindhoven (1990) 21. Mesmo sendo uma iniciativa pioneira, não há no escopo dessa declaração nenhum entendimento que já não estivesse presente em outras cartas elaboradas com o foco no patrimônio de períodos anteriores.

Além da atuação de organismo de proteção local e do DOCOMOMO, também se pode observar mais recentemente aumento do interesse pela proteção da AM, por parte de agências e organismos vinculados à UNESCO. Essa tendência é expressa por meio do número crescente de conferências internacionais sobre o tema22.

Todavia, apesar dos avanços recentes, a conservação do patrimônio moderno ainda traz grandes desafios. Sobre o assunto, Macdonald (2003) dispõe:

Lacunas do reconhecimento (com exceção dos ícones), a ausência de pesquisas que construam um referencial teórico para a identificação desse patrimônio e a pouca proteção trazem como consequência a perda de importantes exemplares (MACDONALD, 2003, p. 1, tradução nossa).

Em termos filosóficos e metodológicos, a teoria que fundamenta a conservação do patrimônio de períodos anteriores pode ser aplicada às obras da AM, todavia essa aplicação não é direta. Isso considerando que os edifícios modernos romperam a lógica projetual e construtiva tradicional, ao introduzir novas concepções arquitetônicas, novos materiais, novas tecnologias e novas estruturas.

Macdonald (2003), ao buscar clarear as particularidades da AM com vistas à sua conservação, identifica sete aspectos: i. projeto e funcionalismo; ii. tempo de vida; iii. materiais; iv. detalhamento; v. manutenção; vi. pátina do tempo; vii. reconhecimento.

O funcionalismo, um dos principais pilares da AM, é definidor do projeto. Macdonald (2003) discute que, em razão disso, a adaptação dos edifícios modernos às necessidades contemporâneas de uso, conforto, segurança pode se tornar mais complexa que no caso de edifícios de períodos anteriores, pois, grandes mudanças

21 De forma sintetizada, esta declaração dispõe sobre: a importância de chamar a atenção do público, das autoridades, dos profissionais e da comunidade educacional sobre o significado do movimento moderno; o estímulo à identificação e à documentação das obras por meio de registros escritos, fotografias, desenhos e outros documentos; a promoção do desenvolvimento de técnicas e de métodos apropriados de conservação e a disseminação delas no meio profissional; a oposição à destruição e à desfiguração de obras desse movimento; a importância de atrair financiamento para sua documentação e conservação; a necessidade de explorar e desenvolver o conhecimento acerca do movimento moderno. 22 Em 2001 a UNESCO promoveu encontro voltado para a discussão sobre os meios de aprimorar a identificação e a documentação do patrimônio moderno, como forma de ampliar a representatividade dos bens desse período na Lista do Patrimônio Mundial Como produto, foi elaborada uma publicação denominada “Identification and documentation of Modern Heritage” disponível em < http://whc.unesco.org/documents/publi_wh_papers_05_en.pdf>, acessado em 23 de abril de 2009.

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funcionais e estruturais subvertem sua concepção projetual. O princípio de que a forma segue a função pode tornar os edifícios modernos menos flexíveis a adaptação a novos usos e, consequentemente, mais suscetíveis à obsolescência e a demolições prematuras.

Macdonald (2003) entende que o argumento de que os edifícios modernos foram concebidos para ter um tempo de vida útil curto não se aplica a toda a produção desse período. Para ela, são apenas os edifícios descritos como “futuristas”, do início do modernismo, que foram projetados com esse fim.

Apesar de romper com esse mito, que pode ter servido de justificativa para uma série de demolições, a autora dispõe que estudos realizados no Reino Unido demonstraram que os edifícios modernos exigem reparações iniciais em aproximadamente metade do tempo dos edifícios de períodos anteriores, ou seja, entre 25-30 anos após sua construção. As grandes reparações costumam ser necessárias no prazo de 50-60 anos para os edifícios modernos e entre 100-120 anos para edifícios tradicionais.

Macdonald (2003) dispõe que o desgaste precoce e mais acelerado desses edifícios é, frequentemente, resultado do uso de materiais sem o adequado conhecimento de sua performance, bem como da utilização de materiais tradicionais de novas maneiras.

O abandono de formas tradicionais de detalhar, com o objetivo de alcançar uma “nova estética moderna”, e a ausência de um adequado conhecimento da melhor forma de utilizar os novos materiais é outra questão que traz desafios à conservação da AM. Em virtude disso, são comuns em muitos edifícios modernos problemas de infiltração e de acondicionamento térmico.

Figura 1. Infiltrações na estrutura e lacunas nos vitrais, Catedral de Brasília. Fonte: Autora, 2009

Figura 2. Lacunas e rachaduras, Igreja de Nossa Sra. de Fátima. Fonte: Autora, 2009

Outro aspecto importante a ser ressaltado em relação à AM é o seu processo criativo: primordialmente focado na inovação, deixava em segundo plano aspectos relativos à manutenção. Esse fato se justifica pela ideia da arquitetura enquanto objeto de arte, isto é, os edifícios eram concebidos como obras concluídas, diferente de grande parte dos exemplares da arquitetura tradicional, concebidos prevendo adições posteriores.

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Figura 3. A arquitetura como artefato artístico concluído: Catedral de Brasília. Fonte: Autora, 2009

Figura 4. A arquitetura como artefato artístico concluído: Igreja de Nossa Sra. de Fátima, Brasília. Fonte: Autora, 2009.

A manutenção não era, portanto, um aspecto primordial uma vez que os edifícios deveriam satisfazer às necessidades daquela sociedade, pois as gerações futuras levantariam suas próprias necessidades. “Mesmo mestres modernos, como Aalto, costumavam desconsiderar a possibilidade de proteger suas obras por mais tempo que sua funcionalidade permitisse” (JOKILEHTO, 2003, p. 108, tradução nossa).

A pátina do tempo é também questão polêmica e complexa na conservação da AM. Os materiais com superfícies polidas e com brilho, como o vidro e os metais, e as formas arrojadas que caracterizam a AM parecem não “deixar espaço” para a pátina.

Macdonald (2003) afirma que o entendimento de que o edifício moderno não foi concebido para ser envolto pela pátina tem levado a uma postura que privilegia a substituição dos materiais sob o argumento de que o reparo sem a reconstrução vai suprimir do edifício algo que é central à sua autenticidade: a sua imagem.

O reconhecimento da AM como patrimônio cultural, por meio da atribuição de significados e valores, apesar de ser a última questão levantada por Macdonald (2003), é a primeira que deve ser solucionada. Mesmo que os organismos de proteção estejam cada vez mais empenhados na proteção desse legado, a adesão da sociedade é ainda reduzida. Jokilehto (2003), ao buscar explicações para esse fato, afirma:

Acessar a significância de algo normalmente leva tempo. No caso do patrimônio moderno, a distância é ainda curta e o julgamento é difícil. Ainda que nossos entornos sejam em grande parte resultantes de obras do Movimento Moderno, nós temos dificuldade em compreendê-los, pois parece que estamos julgando a nós mesmos (JOKILEHTO, 2003, p.108-109, tradução nossa).

A conservação da AM é, portanto, complexa, tanto pela dificuldade de reconhecimento de seus valores, quanto pela capacidade de responder satisfatoriamente aos desafios impostos por suas especificidades. Todavia, os processos

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de projetar e de construir edifícios modernos ainda estão vivos na memória, oferecendo um potencial para entendê-los de uma maneira muitas vezes superior àqueles empregados na arquitetura tradicional.

2. A arquitetura moderna e as cartas patrimoniais

Muitas foram as cartas elaboradas desde a publicação da Carta de Atenas (1931). Este artigo não se propõe a esgotar o tema da aplicabilidade desses documentos à AM. Pretende-se discutir, à luz dos sete aspectos identificados por Macdonald (2003), em que medida o conteúdo trazido por algumas das cartas de maior relevância já produzidas pode dar respostas aos desafios impostos pela AM.

Projeto e funcionalismo

A seção anterior pontuou as dificuldades de adaptação a novos usos comuns aos edifícios modernos. Por outro lado, é consenso entre os documentos publicados desde a Carta de Veneza (1964) que a continuidade de uma função útil à sociedade é imprescindível para a conservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico.

O paradoxo que se instaura é comum a edifícios de qualquer período. A prerrogativa de que a reutilização é condição imprescindível para a preservação parece ter produzido entre os técnicos e especialistas em conservação a ideia de que no interior são aceitos critérios de intervenção mais flexíveis que aqueles aplicados no invólucro externo.

É interessante observar que na mesma Carta de Veneza (1964), em que é ressaltada a importância da destinação de um uso contemporâneo ao patrimônio, está também disposto que as alterações necessárias à adaptação não devem implicar alterações na disposição ou decoração dos edifícios.

A despeito desse entendimento, antigas alfândegas viram shoppings, igrejas se transfiguram em salas de exposições, galpões portuários em bares e restaurantes, entre outros. Essa postura, tão disseminada na prática da conservação do patrimônio, tem como consequência a fragmentação da natureza própria da arquitetura, ao tratar interior e exterior como entes independentes, e não como partes que, articuladas, constituem o espaço arquitetônico. Se a arquitetura se consubstancia por meio do espaço, o desafio posto à reutilização de um exemplar moderno ou de um do período colonial é o mesmo: dotar o edifício de um uso compatível23 com suas características compositivas, e não o contrário. Assim, os desafios trazidos pelo projeto funcionalista moderno à introdução de novos usos não são, em princípio, distintos ou maiores que os de edifícios de períodos anteriores.

A complexidade da preservação e conservação, todavia, não pode servir de argumento para o abandono. Como dispõe a Declaração de Amsterdã (1975), o patrimônio precisa ser tratado como parte integrante da cidade, que tem uma função social a cumprir. Neste documento é explicitamente defendido que mesmo naqueles

23 Por uso compatível, segundo a Carta de Burra (1999), entende-se aquele que respeita e não provoca mudanças na significância cultural do sítio em que o edifício se localiza.

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casos nos quais as operações de restauração são mais onerosas que a construção do novo, os “custos sociais” da segunda opção são maiores.

Outra questão de grande importância trazida pela Carta de Veneza (1964) refere- se às adições. No corpo dessa carta está disposto que as contribuições de todos os períodos devem ser respeitadas e mantidas, a menos que não possuam interesse ou estejam ocultando algo de valor. Se a AM foi projetada como um produto acabado, como manter as adições sem comprometer a sua estética?

Em princípio pode-se dizer que a dimensão estética deve prevalecer em detrimento da dimensão histórica nos edifícios modernos. Tal postura poderia se contrapor à Carta de Veneza e até mesmo à visão contemporânea de conservação, mas poderia ser justificável perante a sociedade, e mesmo perante os especialistas, quando se considera que se trata de um edifício moderno concebido enquanto um artefato fechado, concluído.

Ainda que esse “desejo” de remover adições seja muitas vezes legitimado por um grupo, generalizações podem ser arriscadas considerando a multiplicidade estilística incluída sob a denominação de AM. Brandi (1964) propõe que o processo de tomada de decisões relativo à restauração de obras de arte (estando aí incluídas as obras de arquitetura) seja realizado a partir de um juízo crítico entre as instâncias estética e histórica; esse é também o caminho mais acertado para se decidir sobre a manutenção ou não das adições nos edifícios modernos.

Tempo de vida, materiais, detalhamento e manutenção

A Carta de Veneza (1964), em relação à conservação, defende que a forma mais adequada de alcançá-la é por meio da manutenção regular e permanente. Na AM, como disposto, a conservação dos edifícios impõe desafios específicos decorrentes do pouco conhecimento à época de sua construção das propriedades dos materiais utilizados, como também da primazia do ato criativo sobre a manutenção e a sustentabilidade dos edifícios. Nesse sentido, a manutenção periódica, como forma de retardar o envelhecimento precoce e de evitar intervenções restaurativas é postura desejável.

Construções emblemáticas do modernismo, como o Edifício Seagram em Nova York, de Mies van der Rohe, e o Parque Guinle, de Lúcio Costa, no Rio de Janeiro, vêm sobrevivendo em muito bom estado graças à aplicação de processos contínuos de manutenção (ZANCHETI, 2009).

Nos casos em que o restauro ou a reconstrução é inevitável, a Carta de Veneza (1964) dispõe que o desafio consiste em fazer uma diferenciação clara e, ao mesmo tempo, harmônica entre as partes antigas e as novas.

Muitos dos materiais utilizados nos edifícios modernos ainda são utilizados hoje, no entanto de uma forma tecnologicamente mais desenvolvida. Esse fato acaba por gerar tendência a intervir por “substituição” e não por “conservação”. O refazimento de partes do edifício com o mesmo material, fazendo uso de técnicas mais avançadas, apaga o que Viñas (2001) convencionou chamar de valor historiográfico da técnica.

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Foi buscando evitar que se corrompesse esse valor e o traço historicizado da fachada do edifício Pirelli, Milão – Itália, que a equipe responsável pela restauração procedeu. Projetado e realizado entre os anos de 1956 e 1961 por uma equipe coordenada pelo arquiteto Giò Ponti, o conjunto Pirelli representa uma das maiores expressões arquitetônicas do século passado, na qual as soluções tecnológicas se integram perfeitamente com as escolhas formais e decorativas (CARBONARA; CAMPANELLI, 2003).

Os danos decorrentes da colisão de uma aeronave de pequeno porte no ano 2002 atingiram, sobretudo, o exterior do volume mais importante do conjunto, a torre de cerca de 130 metros, com duas fachadas quase completamente em vidro, excetuando-se as partes estruturais em cimento armado (pilastras e laterais), que são revestidas com mosaico de pastilha cerâmica.

A intervenção nas fachadas teve duas grandes frentes: o restauro de parte dos perfis metálicos da cortina de vidro e a recuperação do mosaico de pastilha cerâmica.

Em relação à cortina de vidro, a primeira decisão foi conservar seus perfis em alumínio, evitando substituições por elementos novos análogos ou por um sistema contemporâneo. Vidros e guarnições foram substituídos de modo a garantir padrões adequados de conforto e bem-estar térmico, enquanto isso foi realizada a recuperação dos perfis metálicos e de seus acessórios, posto ser eles de reconhecido valor arquitetônico e construtivo. Excluindo-se aqueles irremediavelmente danificados ou perdidos, cada parte foi limpa, rechumbada e reanodizada, a fim de que readquirisse a funcionalidade e a capacidade de resistência aos agentes atmosféricos, conservando, porém, os traços de seu natural envelhecimento (CARBONARA; CAMPANELLI, 2003).

A mesma linha conceitual orientou a intervenção sobre o revestimento do mosaico de pastilha cerâmica da fachada. Depois de um atento mapeamento dos danos, foi realizada a consolidação e a limpeza das pastilhas e, onde foi necessário, a reintegração com elementos novos. A opção pela uniformização entre partes originais e partes integradas justificou-se pelo desejo de não fragmentar a imagem do edifício – na qual as pastilhas representam uma estrutura orgânica e contínua sem que prevaleça nenhum elemento – e em razão da relativa pequena extensão percentual da lacuna (CARBONARA; CAMPANELLI, 2003).

O restauro do conjunto Pirelli pode ser tomado como um caso paradigmático de restauração de um edifício moderno, seja pelo respeito aos materiais e às técnicas originais, seja pelo cuidadoso processo de documentação.

Pátina do tempo

Em 1972 foi publicada na Itália a Carta do Restauro, que traz para o debate da conservação uma importante noção: a de pátina.

De acordo com esse documento, a pátina, entendida como o efeito da passagem do tempo nas superfícies dos objetos, deve ser conservada por razões históricas, estéticas e técnicas. No caso dos edifícios modernos, como visto anteriormente, não é consenso a manutenção da pátina, especialmente quando se argumenta que eles não foram projetados para envelhecer.

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A passagem do tempo deixa marcas nos edifícios modernos e, ainda que eles tenham sido pensados para não carregar tais marcas em suas superfícies, é importante que a pátina seja mantida porque houve um transcurso no tempo que não deve ser apagado.

A intervenção no conjunto Pirelli traz, também neste aspecto, contribuições importantes. Segundo Salvo (2005), o princípio orientador da intervenção adotado pela equipe foi o reconhecimento do valor de “trâmite” que a matéria autêntica possui na perpetuação da imagem e, naturalmente, do valor histórico e também estético do objeto.

A partir dessa abordagem, o edifício foi aceito como era, “marcado pelo tempo, em sua forma e substância” e, “mesmo os ‘defeitos’, erros técnicos ou alterações superficiais do material representam testemunhas históricas do processo que conduziu à situação contemporânea, devendo assim ser conservados absolutamente ‘autênticos’” (SALVO, 2005, p. 68, tradução nossa).

A opção pela manutenção ou limpeza da pátina deve resultar de um juízo crítico que considere, por um lado, a sua importância estética e como elemento que agrega ao edifício valor de ancianidade e, por outro, o limiar em que esta deixa de ser um efeito positivo para se tornar algo destrutivo, por se formar a partir da degradação do próprio material.

Reconhecimento

A Carta de Burra (1999) é uma das mais importantes cartas patrimoniais já publicadas em virtude da abrangência dos temas que trata e da precisão dos conceitos que propõe relativos à conservação. Nesse sentido, apesar de trazer entendimentos já presentes em outras cartas, pode-se dizer que ela é mais completa e operacional que a Carta de Veneza (1964), documento norteador de sua construção, além de ser responsável por vincular definitivamente a conservação do patrimônio à sua significância cultural.

Segundo esse documento, o fim principal de qualquer ação que envolva o patrimônio deve ser a garantia de sua significância cultural. No corpo dessa carta está disposto que, em primeiro lugar, deve vir “a compreensão do significado cultural, depois o desenvolvimento da política e, finalmente, a gestão do sítio de acordo com essa política”.

Reconhecer a significância cultural de edifícios do movimento moderno ainda é um desafio, pois são difíceis os consensos sobre os valores passíveis de conservação entre os envolvidos com esses bens, em especial quando se considera o público comum.

O único caminho para despertar nas pessoas a consciência da importância de preservar os edifícios modernos é por meio de programas de educação e divulgação de suas características e de seus significados. Como afirma a Carta de Burra (1999), a significância cultural nem sempre está a vista, muitas vezes é preciso explicitá-la.

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3. Por uma agenda de discussões sobre a conservação da AM

As discussões até aqui construídas demonstram que os princípios balizadores da conservação da arquitetura de períodos mais antigos são capazes de dar respostas à problemática específica da AM. No entanto, enquanto há muitas posturas consensuais do que vem a ser boas práticas de conservação e restauração em edifícios ditos tradicionais, nos exemplares modernos os consensos ainda estão por serem formados.

Sem perder de vista que no campo da conservação do patrimônio cultural não há respostas prontas, esta seção buscará levantar aspectos com os quais os profissionais envolvidos na conservação da AM deverão ser deparar. Para tanto, alguns pontos tratados nas seções anteriores serão retomados em forma de premissas, bem como outros serão levantados. Pretende-se, assim, sistematizar essa problemática, apontando caminhos para seu entendimento e enfrentamento.

Premissa 1: Reconhecer a significância cultural de edifícios do movimento moderno é o maior desafio à sua conservação. A ausência de consciência patrimonial está relacionada tanto à falta de conhecimento sobre os significados históricos e artísticos dos bens, como a inexistência de um sentimento de identificação e pertencimento das pessoas para com eles. É necessário conscientizar a comunidade por meio de programas de educação e de divulgação de suas características e de seus significados, para tanto o especialista tem papel central. Apenas por meio dessa mobilização é possível alcança o apoio político necessário para se proceder à sua conservação.

Premissa 2: O experimentalismo, tanto no uso de novos materiais e técnicas, como no emprego de materiais tradicionais de maneira não usual, é um traço comum à AM. Uma das principais consequências dessa particularidade é o envelhecimento precoce e a deterioração acelerada. O caminho mais adequado para retardar esse processo e evitar intervenções restaurativas – sempre mais impactantes – é por meio da realização periódica e programa de ações manutenção.

Premissa 3: A continuidade de função útil à sociedade é condição imprescindível para a conservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico moderno. O preceito de que a forma segue a função pode ser rompido quando são destinados usos não condizentes com o projeto funcionalista moderno. Usos que requeiram mudanças na espacialidade interna ou na decoração dos edifícios devem ser evitados, sob a pena de perda de suas características projetuais e figurativas autênticas. O desafio é melhorar suas condições de uso e de conforto ambiental sem comprometer sua espacialidade e figuratividade

Premissa 4: Os edifícios modernos estabelecem estreita relação com o entorno urbano ou rural onde são implantados, que pode ser, harmônica, ao buscar integração, ou contrastante e conflituosa, ao buscar a ruptura. Por isso, é latente a necessidade de preservar o entorno o mais próximo possível do original, como forma de compreender o significado do próprio edifício.

Premissa 5: Muitos dos materiais utilizados na AM ainda são utilizados hoje, no entanto de forma tecnologicamente mais desenvolvida. A questão a ser enfrentada para que não se apague esse aspecto da autenticidade diz respeito ao cuidado no emprego, quando necessário, de técnicas construtivas e materiais atuais. Quando não

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for possível ou desejável fazer uma distinção clara entre as parte novas e as originais, é fundamental que a intervenção seja documentada por meio de registros escritos e fotográficos.

Premissa 6: A passagem do tempo deixa marcas nos edifícios modernos, ainda que eles tenham sido pensados para não carregar tais marcas em suas superfícies. É importante que a pátina seja mantida porque houve um transcurso no tempo que não deve ser apagado ou mascarado, sob pena de perda de significados tanto históricos como estéticos desses edifícios. Quando for necessária intervenção que acarrete substituição dos materiais, deve-se buscar a utilização de materiais que proporcionem envelhecimento das superfícies semelhantes aos originais.

Premissa 7: Grande parte dos exemplares da AM foram concebidos enquanto objetos de arte, ou seja, como obras concluídas. Adições posteriores podem comprometer suas características projetuais e figurativas autênticas e, por esta razão, a postura principal deve ser favorável à sua remoção. Todavia, a cautela recomenda que qualquer processo de tomada de decisões relativo à conservação e restauração de obras de arquitetura seja realizado a partir de juízo crítico entre as instâncias estética e histórica.

A discussão construída neste artigo teve foco eminentemente teórico acerca da conservação da AM. Ainda que tenha buscado ilustrar tal discussão com pequenos estudos de caso, na prática da conservação, cada intervenção irá demandar novos desafios. Todavia, apesar do seu caráter geral, as premissas explicitadas são capazes de apontar direções que possam se constituir numa agenda, ainda que embrionária, para elaboração de novas cartas, focadas nos desafios impostos pela AM. O caminho está aberto, mas não resta dúvida de que ainda há muito a ser percorrido.

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GESTÃO DA CONSERVAÇÃO-RESTAURAÇÃO DO

PATRIMÔNIO CULTURAL: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE

TEORIA E PRÁTICA

Ozana Hannesch, Elisabete Edelvita Chaves da Silva♦, Marcus Granato♥ & Ana Paula

Corrêa de Carvalho♠

Resumo

Este artigo traz reflexões sobre como as correntes teóricas do campo da

conservação definem as práticas e os padrões das ações de intervenção no

patrimônio cultural. Reforça que a ação dos Conservadores está na

materialidade, mas o que se espera preservar e/ou conservar são os valores

associados com o patrimônio. Estes valores são influenciados por razões

temporais, sociais e subjetivas. Então, os contextos que determinam os

objetos da conservação-restauração, durante toda a história desta

disciplina, trazem consigo implicações para a autenticidade, a integridade e

a subjetividade, e têm impacto nas decisões técnicas e críticas dos

profissionais desta área.

Palavras chave: patrimônio cultural, gestão da conservação, teoria da

conservação.

Introdução

Na sua estruturação enquanto disciplina a Conservação-restauração esteve ligada

à pesquisa, tanto no aspecto teórico quanto prático, pois a construção do campo pelos

antiquários e, posteriormente, pelos arquitetos-restauradores do século XIX e XX

estava relacionada à experimentação concomitantemente a um habitus teórico que

respaldasse a intervenção.

Viollet-le-Duc, Ruskin, Brandi e tantos outros definiram suas orientações de

acordo com os códigos e atitudes estabelecidas nos cortes temporais que constituem a

história por eles vivenciada, e que foram assimiladas ou não, de acordo com os novos

grupos sociais herdeiros dos patrimônios construídos pelas humanidades, ou seja,

pelas diferentes culturas. Choay escreve que:

Museu de Astronomia e Ciências Afins. [email protected] ♦ UNIRIO. [email protected] ♥ Museu de Astronomia e Ciências Afins. [email protected] ♠ UFRJ. [email protected]

39

É uma concepção comum da arquitectura memorial que leva Ruskin a considerar

os monumentos do passado como sagrados e intocáveis e Viollet a promover uma

aproximação histórica e didáctica da restauração...

[...] Quando preconiza a restauração, Viollet trabalha num país em que disse e

repetiu que ignorava a cultura de manutenção (Choay, 2009, p.33).

Boito dirige-se para o valor documental dos monumentos: o respeito pela matéria

original, à unidade de estilo e à distinguibilidade. Riegel diferencia os conceitos de

monumento e monumento histórico e os valores a eles inerentes, como os

rememorativos e os de contemporaneidade e, assim, subsidia as novas premissas que

sustentam o patrimônio e as categorias das intervenções, ao definir também o valor

instrumental e o valor artístico relativo etc. “Ele demonstrou que em matéria de

restauração não pode existir nenhuma regra científica absoluta, cada caso inscreve-se

numa dialética particular de valores em jogo...” (Choay, 2009, p.35).

Brandi, que nos é mais próximo, preconiza diretrizes de observância à estética, à

história, à função e à ambiência cultural. Vê o empirismo como inerente ao ato de

intervenção, ao considerar que o restauro é um ato crítico no qual devemos dar atenção

para o juízo de valor. Viñas direciona para a sociedade a coresponsabilidade da gestão

da conservação, que deve subsidiar a intervenção.

Esses profissionais gestores – restauradores, arquitetos, historiadores,

administradores – demonstram-nos que as práticas têm acompanhado os valores

intrínsecos em cada época e que os preceitos teóricos fazem parte dos desdobramentos

que essas ações desencadeiam. Assim, apesar de intervir na materialidade, o que se

deseja preservado ou conservado são os valores: temporais, sociais e subjetivos

inerentes aos patrimônios culturais, decorrentes dos grupos sociais que os constroem.

As características constitutivas do patrimônio, constatadas pelo olhar do final do

século XX e início do século XXI, tais como ambiguidade, polissemia, materialidade,

etc., requerem a ampliação do foco dos gestores para fora dos seus domínios de

trabalho, em função do caráter inclusivo deste conceito, das categorias e dos seus

limites.

1. Termos e conceitos

Como uma disciplina em fase de consolidação, a Conservação-Restauração ainda

hoje enfrenta uma terminologia difusa no seu uso. Os verbos preservar, conservar e

restaurar aparecem em diferentes contextos e épocas, às vezes como sinônimo, às vezes

como excludentes.

Se considerarmos a adoção do termo conservação preventiva e sua definição

mais recente (Vantaa, 2000), percebemos que ainda estamos longe de chegar a um

40

acordo nestas conceituações, especialmente quando recordamos o questionamento de

Viñas (2003) que defende, por definição, que toda conservação já embute uma ideia de

prevenção, não?

Por fim, acentuando esta problemática frente aos conceitos utilizados no exercício

profissional, trazemos o termo restauração preventiva, utilizado por Brandi (2004). Aos

olhos do século XXI podemos afirmar que estas discussões já estão superadas dentro

do que chamamos de linguagem especializada?

Toda esta terminologia repercute nos equívocos e na compreensão que o público

em geral faz destes termos, ao mesmo tempo em que é por meio destas discussões que

nossa visão profissional vai se tornando mais clara quanto aos conceitos. Jokilehto

coloca o tema da seguinte perspectiva:

Os conceitos modernos relacionados com a conservação do patrimônio cultural e

natural estão fundamentalmente relacionados com o desenvolvimento da

modernidade. Esse desenvolvimento começa no século dezoito, embora baseado em

raízes mais antigas. A própria modernidade é marcada por várias mudanças na

sociedade, indo de inovações técnicas e cientificas a aspectos sociais e econômicos e a

reflexões filosóficas e culturais. (Jokilehto, 2002, p. 12).

A visão deste autor traz uma perspectiva sincrônica em função da temporalidade

nos quais estão inseridos os processos de conservação-restauração de bens culturais. E

que, na atualidade, encontramo-nos, cada dia mais, diante de um ideal de

inclusividade de valores, difícil de ser delimitado na interdisciplinaridade.

2. Correntes teóricas

Pode-se afirmar que o interesse histórico e científico pelos monumentos antigos

desenvolve-se muito lentamente no período conhecido como Renascimento. Mas é

apenas com a Revolução Francesa que se inicia o empenho e a intervenção do Estado

pela preservação destes, assim como pela sua promoção como de interesse público.

Para Luso, Lourenço e Almeida (2004), neste período, tornou-se necessário não só

protegê-los, mas definir as metodologias para sua conservação e restauração de uma

forma entendida como adequada. É possível verificar o quanto essas iniciativas deram

origem às primeiras legislações nos países europeus e que, posteriormente, foram

assimiladas por países do continente americano e disseminadas por organismos

internacionais governamentais como a UNESCO, o ICOM, ICOMOS, ICCROM, entre

outros.

Eugène Emmanuel Viollet-Le-Duc (1814-1879) desponta, na França, um dos

primeiros teóricos da restauração, fundamentando a intervenção no conhecimento do

passado para, entendendo às intenções do autor e a lógica do projeto, recompor a

41

construção para o que seria sua forma ideal: a pureza de estilo (Violllet-le-Duc, 2000).

Estas ideias foram explicitadas no Dicionário de Arquitetura Francesa, publicado entre

os anos de 1854 e 1871, especialmente no verbete Restauração. Sua produção teórica

não o eximiu das críticas que se apresentaram ao caráter de suas intervenções,

conforme coloca Choay (2006), que escreve:

A noção de estrutura, porém, levava-o a retomar, ao empreender a restauração

real dos edifícios medievais, a atitude idealista que havia presidido às “restaurações”

dos monumentos clássicos desenhadas pelos antiquários e que davam continuidade às

“restituições” da Escola de Belas Artes. Reconstituindo um tipo, ele se mune de uma

ferramenta didática que restitui ao objeto restaurado um valor histórico, mas não a sua

historicidade (CHOAY 2006, p. 158).

Na sua contemporaneidade as ações de Viollet foram interpretadas como uma

intervenção drástica e, numa época posterior, como um falso histórico. Entretanto, na

tarefa de conhecer a obra, procurava reunir o maior grupo de documentos e de

documentação para entendê-la. Esse esforço em prol de uma pesquisa que

fundamentasse as intervenções talvez seja seu principal legado.

Em oposição ao que poderíamos chamar da corrente teórica difundida por

Viollet, está John Ruskin (1819-1900), Inglaterra, que difundia o absoluto respeito à

matéria original e negava qualquer possibilidade de intervenção no edifício que não

fosse apenas para sua manutenção. Propunha considerar e manter as alterações feitas

em uma obra durante sua existência. Ao tratar deste tema Jokilehto afirma:

A nova consciência histórica que evoluiu do século dezoito chamou a atenção

para o significado da autenticidade do material histórico dos monumentos antigos.

Compreendeu-se que o trabalho de um artesão ou de um artista era inevitavelmente

caracterizado pela cultura e pelas condições socioeconômicas da época. Era, portanto,

impossível reproduzir o trabalho em seu significado original em um contexto cultural

diferente, mesmo que as formas fossem fielmente copiadas (Jokilehto, 2002, p. 13).

Neste sentido, ao revermos os preceitos difundidos por Ruskin, percebemos o

respeito máximo ao tempo de existência de uma obra, um aspecto do conceito de

autenticidade, relacionado ao seu caráter documental. Contudo, ao buscar a

manutenção ou sua conservação, em que medida se afeta ou afetará seu valor

simbólico? Ainda hoje nós, profissionais da conservação-restauração24, nos

defrontamos com esta pergunta.

No final do século XIX e início do século XX, surge ainda Camillo Boito (1836-

1914), na Itália, que defendia uma intervenção mínima – a essencial para que o edifício

24 Aplicamos aqui este termo a fim deixar claro o uso dos dois conceitos, isto é, a Conservação como mais abrangente, englobando a Restauração (ação restrita e especializada), e a conservação, tanto preventiva como curativa, porém com intervenções sobre o acervo ou ambiente. Do mesmo modo retomaremos o termo neste texto quando desejarmos fazer esta ênfase.

42

mantivesse a unidade de estilo, com a preservação da pátina – mas, se necessário,

também a demolição de elementos acrescentados com o tempo (Boito, 2002).

Considerava, numa linha mais centralizada, que toda adição de recomposição deveria

ser claramente identificável, “consolidando uma via, conhecida na Itália como ‘restauro

filológico’, que dava ênfase ao valor documental da obra” (Kühl, 2008, p. 19). Os

princípios deste verbete de atuação foram apresentados no III Congresso de Arquitetos

e Engenheiros Civis, em Roma, 1883.

Nesse contexto considera-se que todo objeto está arraigado de informações que

dizem respeito à cultura de onde advêm materiais (localidade, especificidades

constituintes), estilo que representam (apresentação estética, período), uso (culto,

artefato, arte, moradia); nível tecnológico e científico em que foram

criados/produzidos (técnicas construtivas, alteração dos materiais) etc. Estes

elementos contêm dados sobre as obras e as identificam, sendo importantes

ferramentas no trabalho de todo conservador-restaurador.

No rastro da Segunda Grande Guerra Mundial, monumentos e coleções inteiras

ficaram muito danificados, gerando um movimento de questionamento dos conceitos

do "Restauro Científico" que exigiam postura de quase neutralidade do

arquiteto/conservador em relação ao bem cultural. Uma nova postura prevaleceu, o

Restauro Crítico, com uma atitude mais flexível por parte dos profissionais,

principalmente europeus, face à pressão social e política pela recomposição de

monumentos e objetos danificados.

Em 1964, durante um congresso em Veneza, os princípios do Restauro Científico

voltam a prevalecer, sendo ampliados e revistos na Carta Italiana de Restauro de 1972,

por Cesare Brandi. Brandi, acrescentou outras questões e reflexões aos que o

antecederam, buscando entender a obra na sua materialidade e epifania, definindo que

(Brandi, 2004): a) restaura-se a matéria da obra de arte, ou seja, sua estrutura – é sobre

ela que devemos atuar;

b) entretanto, esta restauração visa restabelecer a unidade potencial da obra, em

toda sua manifestação, sem cometer o falso artístico ou o falso histórico.

Brandi (2004) aplica o fundamento de que na obra de arte deve haver prevalência

do critério estético sobre o histórico, por ele considerá-lo sua função primordial.

Verifica-se ainda, na episteme desta consciência, o critério que permitia ao artesão-

restaurador experimentar uma relação de criação com a obra, ao mesmo tempo em que

desenvolvia a prática das intervenções, possibilitando, contudo, reflexões e

questionamentos sobre a disciplina que estava se estabelecendo. Viñas (2006) afirma

que isto se dá dentro de uma atmosfera do restauro ainda intuitivo e subjetivo.

É possível reconhecer, nestas poucas linhas de texto, princípios que hoje

continuam orientando critérios de intervenção não somente da parcela do patrimônio

cultural denominada de “patrimônio arquitetônico”, mas também do artístico,

43

bibliográfico, arqueológico, entre outros. Estas foram tentativas de disciplinar os

tratamentos, a fim de que não trouxessem prejuízos às obras, o que nem sempre se

pode considerar que foi sucedido. Entretanto, são ações carregadas do contexto de suas

épocas e experiências inequívocas de delimitar o “campo” da conservação

/restauração.

Neste quadro, surge um novo paradigma do final do século XX, que tem como

marco a perda de patrimônio nas enchentes de Florença (1966 – Itália) e a tomada de

consciência sobre o problema da poluição desenfreada, da chuva ácida, e do papel

quebradiço (1960 – EUA). O foco das ações direciona-se a recuperar grandes volumes

de acervos e edificações que foram danificados e que necessitam de longo prazo, alto

custo e inúmeros especialistas para serem recuperados, sem a certeza de que o trabalho

seria concluído de forma adequada ao custo versus benefício. Junta-se a esta dúvida o

alargamento do conceito de patrimônio, que amplia cada vez mais os domínios de

atuação da conservação-restauração e a participação das outras disciplinas que lhe são

complementares.

É também neste período da segunda metade do século XX, que a Conservação-

Restauração tornar-se uma disciplina mais científica, na tentativa de abandonar os

modelos mais artesanais, para reivindicar legitimação enquanto ciência independente.

Entretanto, esta área vê-se em frente a dois problemas imediatos: 1) ausência de

formação especializada – consequentemente, tendo um número restrito de

profissionais com formação acadêmica e de pesquisa – e, 2) a necessidade de

reaproximação com o viés humanístico, que lhe é característico deste seu estágio

empírico. Tenta, assim, caminhar para uma visão de cunho mais interdisciplinar e

comprometido com aspectos culturais, científicos, bem como políticos e

administrativos. Aqui se verifica uma nova perspectiva de reflexão crítica, que produz

transformações na prática, técnica e ética da profissão.

Desde o início da disciplina Conservação-Restauração, sempre estiveram

presentes as orientações quanto à documentação e estudos preliminares para o

entendimento dos aspectos formais, do projeto original, da epifania da obra e seu

reconhecimento enquanto obra de arte, preceitos estes originados no Humanismo.

A apropriação e destruição do patrimônio cultural em decorrência de guerras e

invasões impulsionaram os gestores do patrimônio e de aí decorrem o advento das

‘cartas patrimoniais’, os esforços para aplicação de novos materiais de intervenção e os

novos métodos de exame e de tratamento com base científica (que é uma forte corrente

já no século XX), posturas que influenciam o trabalho desta disciplina, refletindo num

período reconhecido como Restauro Científico. Junta-se a isto a dificuldade de

reconstrução e duma enormidade de edifícios destruídos pelas grandes guerras na

Europa, o que suscita a reconstrução dos elementos materiais e do aspecto formal de

prédios e cidades, com vista a recuperação de seu valor simbólico.

44

Tais situações vêm ao encontro da mudança no cenário social de valorização do

passado e presente, que depois serão absorvidos dentro dos códigos de ética e da

atuação do profissional da conservação-restauração como princípios basilares, que

ainda são aplicados nos dias atuais.

3. A tomada de consciência: o valor simbólico e intangível

Verificamos que as práticas interventivas sempre existiram. Muitas delas

originadas de desenvolvimentos tecnológicos que foram assimilados rapidamente por

inúmeros países, sob pena de parecerem subdesenvolvidos. Entretanto, algumas

práticas foram aplicadas sem o tempo de maturação necessário à avaliação dos seus

efeitos em longo prazo e de acordo com padrões locais, ambientais e, porque não dizer,

materiais, distintos de onde eles foram replicados.

Estas ações de intervenção, baseadas em tendências internacionais, como o foram

os produtos clareadores sobre o papel, os adesivos não removíveis em telas, entre

outras, não eram dirigidos para a especificidade da materialidade inerente ao

patrimônio cultural brasileiro, por exemplo, nem para os ambientes onde ele estava

inserido.

Adriana Hóllos em sua dissertação coloca que nós, profissionais da conservação-

restauração precisamos perceber nosso papel para além da utilização de um conjunto

de técnicas e materiais aplicáveis. A autora lembra que já existem pressupostos e bases

teóricas na área estabelecidas desde no século XIX (Hollós, 2006). Assim, tomando

como afirmação uma ação difundida por Brandi, precisamos nos utilizar do ato crítico,

a fim de estabelecermos nossas práticas e definirmos a base teórica considerada, para a

sociedade, profissional e adequada.

Como afirma Viñas (2003), reconhecemos que, com o restauro, a obra ganha

outra dimensão e atualiza-se, nunca mais será como antes. Contudo, existe uma

preocupação cada vez maior com a autoria, os materiais originais, a investigação

científica, a documentação e contextualização da obra. Porém, isto só respalda o

partido da intervenção e, como já afirmado neste texto, depende dos pressupostos de

cada época. A intervenção é, então, caracterizada pelo período em que foi realizada:

materiais, técnicas, níveis de intervenção e por atitudes subjetivas, a partir de

abordagens filosóficas particulares e individualizadas sobre a obra.

A tomada de consciência verifica-se, no final do século XX, dentro do

reconhecimento do caráter interdisciplinar em que o trabalho passa a ser realizado – ou

deveria sê-lo. Esta abordagem reflete uma visão mais holística dos ‘aspectos’ que

afetam não só o patrimônio cultural, como também e, especialmente, o patrimônio

natural. Assim, a Conservação-Restauração hoje deve ser pensada numa escala que

prima pelo equilíbrio do planeta – ambiental, econômico, político, social cultural, e

45

numa visão que conjugue: globalização e identidade, participação e responsabilidade

social.

Neste sentido, é no final do século XX que reconhecemos a dimensão e o peso de

outro valor inerente aos bens culturais, que até aquele momento não havia sido

definido pelos teóricos de nossa área: o valor simbólico, conforme coloca Vinãs:

Ninguna circunstancia material justifica la preocupación por ellos, porque su

valor es otro: es un valor convencional, acordado y concedido por un grupo de

personas, o incluso, en ciertos casos, por una sola persona. Sobre estos objetos se

vuelcan unos valores que en realidad corresponden a sentimientos, creencias o

ideologías, es decir, a aspectos inmateriales de la realidad (2006, p.41).

É o entendimento do bem cultural em seu caráter simbólico e impregnado de

sentidos, um conceito ainda não explicitado. Identificamos em Brandi (2004) o ponto de

partida dos primeiros pressupostos a serem seguidos no final do século XX e início do

século XXI, ao apreender este caráter imaterial e simbólico e apontar que a restauração

atua na materialidade.

À medida que a disciplina vai se aprimorando, estreita-se também a relação com

a ciência (no sentido positivista). Basear nossas decisões no conhecimento científico, no

entendimento e proteção do(s) seu(s) significado(s), na documentação que lhe deve ser

complementar, na expectativa e benefício do seu proprietário e da sociedade e das

gerações futuras, este é o contexto que nos encontramos hoje. Numa dinâmica social

cada vez mais veloz... Como não cristalizar o patrimônio sem des-significá-lo25? Como

atualizá-lo na dinâmica temporal, considerando sua materialidade e imaterialidade26?

Entretanto, passados mais de trinta anos das primeiras reflexões de Brandi, ainda

nos encontramos buscando pontos de apoio mais seguros para a tomada de decisão e

de entendimento e proposição das intervenções, sem, contudo, de estarmos eximidos

de alguma crítica. O que é correto? Melhor seria perguntar: que atitude é aceita na

sociedade atual.

4. Os contextos do Conservador-Restaurador no Brasil atual

Dentro do contexto e das questões apresentadas anteriormente, voltamos o nosso

olhar para a área de Conservação-Restauração no Brasil. A restrita formação e pesquisa

no campo representam ainda a reaplicação das técnicas de intervenção adotadas no

exterior, sem a devida crítica e reflexão, o que vem sendo, nos últimos 10 anos,

25 Queríamos aqui reforçar a ideia do termo significado, pois entendemos que este tem um sentido simbólico distinto para cada grupo social ou individuo. 26 Utilizamos este termo aqui em oposição ao anterior, mas preferimos a forma patrimônio intangível. Neste sentido, o termo a ser utilizado seria intangibilidade.

46

substituída pelos estudos sobre a avaliação dos espaços de guarda, sobre o estado de

conservação dos acervos e os novos métodos e materiais de trabalho.

Já a partir do último quartel do século passado, não havia mais como pensar em

dirigir-se apenas para itens individualizados com o impulso da Conservação

Preventiva. As pesquisas científicas passaram a se voltar para os estudos das condições

ambientais necessárias para os acervos, os métodos de levantamento e amostragem

para seleção de materiais a serem reproduzidos, protegidos, conservados e

restaurados. Houve uma corrida para atender aos parâmetros e referenciais

estabelecidos pela Ciência da Conservação. Contudo, é necessário rever o cenário em

que estavam inseridas as políticas de conservação no Brasil.

Na década de 1980, poucos eram os especialistas na área de Conservação-

Restauração, seja de obras de arte, arquitetura e engenharia e havia quase que ausência

de profissionais para atuar em objetos científicos. Aliás, estes últimos não eram

enquadrados enquanto categoria de patrimônio, conforme atestam os documentos

naquele período, conforme escreve Granato (2008). A formação se obtinha pela

frequência em ateliês, oficinas e “canteiros de obras” de restauro e em cursos de curta

duração promovidos por instituições de guarda ou fiscalização do patrimônio, pelo

Instituto Brasileiro de Arquitetos do Brasil – IAB, em eventos da Associação Brasileira

de Conservadores e Restauradores – ABRACOR, entre outros. Alguns profissionais,

que atuavam na a partir de meados do século XX, inclusive os vinculados a instituições

públicas, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tiveram a sua

formação na Europa e nos EUA, como foi o caso de Edson Motta, entre outros.

Do mesmo modo, os projetos de restauração inicialmente não continham o nível

de detalhamento que hoje possuem. A prática da restauração começava a ter uma

maior dinâmica e um padrão adequado (isto é, que primasse pelo respeito aos

princípios éticos internacionalmente seguidos), na medida em que as obras de restauro

eram realizadas, como por exemplo, a obra de restauração do Museu da República, no

final da década de 1980.

Sobre outro aspecto, verificamos que, o reconhecimento do patrimônio cultural

brasileiro como patrimônio da humanidade pela UNESCO, a partir dos anos 80,

alavancou uma série de intervenções em Centros Históricos, incrementando as

políticas públicas de conservação dos conjuntos arquitetônicos, bem como de outros

acervos integrados. Importantes contribuições para a gestão estão inseridas no

Programa Corredor Cultural, no Rio de Janeiro, que recuperou várias edificações

localizadas no centro antigo da cidade; e em Pernambuco, no bairro do Recife, a

implantação de um núcleo de conservação integrada em parceria com a Universidade

Federal de Pernambuco, a Prefeitura, a UNESCO e o IPHAN. Esses projetos de

revitalização do patrimônio cultural só foram adotados no norte do país a partir dos

últimos anos da década de 90.

47

Entre as décadas de 1980 e 1990, destacamos, na formação de um quadro mais

acadêmico, a criação de cursos em nível de especialização, na Universidade Federal de

Minas Gerais/Escola de Belas Artes – EBA-CECOR, na Fundação de Artes de Outro

Preto – FAOP, ambos em Minas Gerais, na Universidade Federal do Rio de

Janeiro/Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro, na Universidade Federal da Bahia, e

na Universidade Federal de Pernambuco, estes últimos tendo continuidade nos dias

atuais. Na primeira década do século XXI, agregam-se várias iniciativas de cursos de

graduação em conservação e restauração, como os da Faculdade Estácio de Sá, da

UFMG e da UFRJ.

Conclusão

A partir das breves considerações que foram apresentadas nesse trabalho,

verifica-se que, a visão dicotômica entre prática e teoria, é mais de complementaridade

ou dissociação. Neste sentido, a Conservação-Restauração deve buscar a adoção da

prática segundo uma teoria, que lhe fundamenta e dá apoio à tomada de decisão e

respaldo à opção escolhida. Tentando, a partir deste breve histórico, fazer um paralelo

com o tema que propusemos abordar, apontamos uma sintonia e reconhecemos que

ainda nos vemos no país dentro de um estado empírico de trabalho. Reforça esta

perspectiva a recente de abertura de oferta acadêmica em nível de graduação, o não

reconhecimento da profissão, que esperamos seja instituída ainda este ano, e a busca,

ainda presente e incessante, pelo aprendizado de técnicas, sem o embasamento

filosófico e crítico necessário a esta atuação.

Estamos ainda em fase de amadurecimento, de pensar a Conservação-

Restauração não apenas como uma questão técnica, mas, como já afirmava Brandi

(2004), uma ação crítica. Para isso, é necessário abandonar os métodos artesanais de

aprendizagem, entender o documento em seus valores constitutivos, e o acervo como

uma “representação”, no sentido adotado por Le Goff: aquele que “abrange todas e

quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida”(1984, p. ).

Como, a partir de uma complexa discussão do trinômio: preservação-

conservação-restauração e considerando as teorias já difundidas, podemos

compreender a dinâmica e as implicações de intervir no patrimônio cultural, nas suas

perspectivas material e intangível, considerando os conceitos de autenticidade,

integridade, identidade, responsabilidade e participação social e desenvolvimento

sustentável?

Quisemos com este trabalho apresentar algumas reflexões que vimos tendo no

nosso exercício profissional e suscitar outros colegas a tornarem-se mais ativos nas

discussões políticas, administrativas e sociais que envolvem a salvaguarda e gestão de

nosso patrimônio cultural. Isto, acreditamos, apenas será conseguido com o contínuo

48

debate e crítica ao estado da arte desta disciplina em nosso país, visto que somos nós,

em diferentes eventos e momentos, que estamos em vias de consolidar o campo da

Conservação-Restauração no Brasil.

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49

A “VIA CRÍTICA” NO PATRIMÔNIO CULTURAL: UMA

PERSPECTIVA COMPARATIVA

Leonardo Barci Castriota

Resumo

Nos últimos anos, o campo do patrimônio cultural sofreu uma mudança decisiva, deixando, na nossa opinião, a sua fase "dogmática" e se aproximando de um ponto de vista "crítico" que aborda o patrimônio como um fato social e historicamente determinado. Com essa mudança de foco, as diferentes formas em que o campo da conservação constituiu e articulou nos diferentes contextos nacionais tornaram-se objetos privilegiados de análise. Apesar das diferentes circunstâncias e momentos, as politicas de conservação do patrimônio em diversos países tem trabalhado a memória nacional sob a ótica dialética da lembrança/esquecimento. Assim, concentrando em certos aspectos em detrimentos de outros e iluminam momentos históricos enquanto obscurecem outros. Com essa estrutura esse trabalho revê a discussão recente sobre o patrimônio em dois contextos nacionais - Brasil e Alemanha - procurando mostrar, em uma perspectiva comparativa, como ambas políticas patrimoniais sofreram mudanças radicais

Palavras chave: Patrimônio, memória, via crítica, política de conservação

Introdução

Nos últimos anos, o campo do patrimônio cultural tem passado por uma mudança decisiva, deixando, a nosso ver, sua fase “dogmática” e acercando-se de uma perspectiva “crítica”, em que o próprio patrimônio é percebido como histórica e socialmente determinado. Com isso, passa-se a adotar uma perspectiva crescentemente reflexiva, não se tomando mais as políticas da área como algo dado, derivadas do reconhecimento de valores objetivos e universais incorporados nos bens culturais, mas, reversamente, como construções sociais, multiplicando-se os trabalhos que examinam as suas condições de possibilidade, o seu enraizamento temporal e social27.

UFMG. [email protected]

27 Como anota Andrea Daher: “Ao deixar de ser definido como uma coleção de obras canônicas, ‘patrimônio’, nesta acepção contemporânea, remete à diversidade cultural das práticas sociais. No entanto, essa concepção, por mais que constatável em escala ocidental, não pode responder às indagações sobre as próprias representações que a noção veicula, sobretudo nos discursos voltados para a preservação, nem tampouco das práticas que as ensejaram. Daí a necessidade de uma perspectiva que dê conta da lógica específica de práticas e discursos em torno de ‘patrimônio’, no interior de diferentes regimes de representação em que foram operados, evidenciando o seu caráter tanto imaginário quanto institucional e, assim, os seus diversos sentidos históricos.” (Daher, 2010, p. 199-200)

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Ao perscrutar os diversos valores envolvidos em cada escolha patrimonial, a teoria contemporânea em nossa área vem realizando uma “virada copernicana” de moldes kantianos: assim como Kant colocou a razão no centro de suas investigações, para que primeiramente fosse examinado como se processa e se fundamenta o conhecimento, a teoria atual do patrimônio coloca o próprio patrimônio — enquanto campo e atividade social — no centro de suas investigações, examinando primeiramente como se processam e se fundamentam as escolhas que conformam o corpus desse campo. Hoje, mais do que nunca, se percebe que as escolhas (e consequentes omissões) das políticas de patrimônio são decorrentes de um Zeitgeist determinado, e se expressam, via de regra, numa historiografia específica28. Aqui poderíamos dizer, com Dominique Poulot, que a história do patrimônio, como tem sido praticada “há uma geração com êxito incontestável” é “amplamente a história da maneira como uma sociedade constrói seu patrimônio”. (Poulot, 2009, p. 12)

Neste sentido, têm sido objetos privilegiados de análise as maneiras diferenciadas com que se articula e se constitui o campo da conservação nos diversos contextos nacionais. Concebidas e postas em prática em momentos e circunstâncias diversificadas nos diversos países, as políticas do patrimônio trabalham, via de regra, com a dialética lembrar-esquecer: para se criar uma memória nacional, privilegiam-se certos aspectos em detrimento de outros, iluminam-se certos momentos da história, enquanto outros permanecem na obscuridade. Esse processo – marcado por seleção e escolhas sempre discricionárias – parece oferecer um terreno ideal para se perceber o caráter de construção social das memórias nacionais, foco de interesse desses estudos recentes. E aqui cabe notar que essas análises críticas a que tem sido submetido o campo do patrimônio fazem-se mais factíveis exatamente devido à intensa revisão historiográfica que ele tem sofrido nos últimos anos, quando se tem examinado, em profundidade e por diversos ângulos, a sua gênese social e ideológica nos diversos países.

É natural que essas revisões, esses estudos que examinam como se processam e se fundamentam as escolhas que conformam e mantêm o corpus patrimonial, também venham a ter ênfases diferenciadas, conforme o contexto nacional. Assim, por exemplo, no caso dos Estados Unidos, têm se multiplicado, nos últimos anos, trabalhos que, principalmente a partir da perspectiva especificamente anglo-saxônica da participação da sociedade civil e abordando as questões da história social e da memória dos lugares, submetem a uma revisão radical as políticas institucionais de patrimônio29. Neste texto vamos passar em revista a discussão recente em dois contextos nacionais diferentes: na Alemanha pós-Unificação e no Brasil das duas últimas de décadas, mostrando como em cada um desses contextos, releem-se as escolhas patrimoniais de forma também distinta.

28 A esse respeito, confira o capítulo “História da arquitetura e preservação do patrimônio: diálogos”, do livro Patrimônio Cultural, de nossa autoria (Castriota, 2009, p. 65-76)

29 No caso dos Estados Unidos, podemos citar uma série de publicações, entre as quais Lowentahl, 1986; Boyer, 1994; Hayden, 1995; Frank; Petersen, 2002; Page; Mason, 2004; Murtagh, 2006; Kaufmann, 2009. Especial ênfase deve ser dada à edição especial do Journal of the Society of Architectural Historians (JSAH), de setembro de 1999, que teve como tema a relação entre a preservação do patrimônio e a história da Arquitetura, com diversos artigos abordando o tema.

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1. Alemanha, reunificação e reconstrução

Em primeiro lugar, poderíamos citar aqui o caso da Alemanha, onde, principalmente após a reunificação do país em 1990, tem ficado bastante clara a perspectiva política e ideológica das escolhas patrimoniais, que têm sido tematizadas em diversos trabalhos recentes. O fato é que com a incorporação da antiga República Democrática Alemã, do leste, pela República Federal, aquele país europeu tem se visto às voltas com muitas questões envolvendo seu passado e seu patrimônio, o que tem feito com que se discutam ali com muita ênfase questões centrais da teoria da conservação, entre as quais vai ter grande destaque a questão da reconstrução.

Dentre os inúmeros trabalhos que acompanham como a teoria e a prática no campo do patrimônio têm refletido a – difícil - construção da identidade nacional alemã, destaca-se, a nosso ver, o trabalho de síntese de Michael Falser, Zwischen Identität und Authentizität (Entre Identidade e Autenticidade), fruto de uma tese defendida na Universidade Técnica de Berlim (Falser, 2008). Preocupado principalmente em ligar os discursos da história da arte e do público em geral, por um lado, com a questão da formação da identidade nacional, por outro, Falser produz uma impressionante história política do patrimônio alemão nos últimos dois séculos, desde o período do Iluminismo e das reformas da Prússia-Renânia, procurando identificar e discutir sempre o contexto das diversas escolhas patrimoniais30.

O seu trabalho vai abordar três eras bastante específicas na trajetória do patrimônio na Alemanha: o Século XIX, o período que vai de 1945 a 1989 e o seu momento presente, por volta do ano 2000. Suas observações sobre a teoria e o discurso são baseadas em seis estudos de caso (Fallbeispiele), sendo que o primeiro deles aborda o desenvolvimento da Prússia entre 1795-1840, tomando especificamente o papel de Friedrich Gilly e Friedrich Karl Schinkel, e os casos conhecidos e polêmicos envolvendo Marienburg e a Catedral de Erfurt. Em segundo lugar, o autor vai ter como foco o caso do Castelo de Heidelberg por volta de 1900, apresentando-se o intenso debate no qual, naquele momento, autores tão diversos como Georg Dehio e Alois Riegl se manifestaram contra uma possível reconstrução das ruínas, controvérsia na qual Falser vê o início da moderna preservação de monumentos na Alemanha. Ao analisar esse caso, o autor ilustra sua tese de que a teoria e prática no campo do patrimônio refletem a construção da identidade nacional, procurando esclarecer, nos processos da formação da nação alemã, estratégias culturais recorrentes que constantemente alteram os fundamentos da preservação do patrimônio.

À luz desse caso, Falser analisa a situação da preservação do patrimônio na região de língua alemã (deutschsprachigen Denkmalpflege), relatando a controvérsia entre o alemão, historiador da arte, Georg Dehio, e o austríaco, historiador da arte e conservador geral dos monumentos, Alois Riegl, na tentativa de esclarecer diferentes pontos de vista na conduta de conservação, tendo em vista as distintas identidades nacionais das duas regiões. Como se sabe, o fim do século XIX foi marcado na Europa por um excessivo nacionalismo, que teve reflexo na 1ª Guerra Mundial, que terminou

30 Aqui cabe se destacar também a obra do historiador norte-americano Rudy Koshar, que já havia tentado escrever uma história social dos monumentos na Alemanha pelo menos desde o final do século XIX. (Confira Koshar, 1998; 2000).

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por dissolver a monarquia de Habsburgo – efetivamente o Império Austro-Húngaro ao fim da 1ª Guerra – e o Reich alemão. Após 1848 (Pequena Solução Alemã), 1866 (Guerra Austro-prussiana) e 1871 (Unificação Alemã), a “Prússia-Alemanha” e a “Áustria dos Habsburgos” seguiram trajetórias fortemente divergentes na formação de seus Estados. O desenvolvimento deste processo foi bastante notável no campo da cultura, da política e da preservação estatal do patrimônio: enquanto no Império Alemão havia desde a unificação, em 1871, o conceito de uma Kulturnation sob a qual estariam agrupados de forma homogênea numa mesma nação língua, cultura e tradições, o governo dos Habsburgos tinha em Viena uma capital multicultural, entendendo-se a nação como a união de diferentes etnias que compartilhavam a mesma história e condição. Assim, na Alemanha, após a unificação de 1871, o comando político propagava a Kulturnation e a consolidação da história alemã, o que na prática implicou numa separação entre poder e cultura, estando o desenvolvimento desta última relacionado a um processo de “cultivação" e um conflito entre cultura e civilização.

O império Austro-Húngaro, por sua vez, era um Estado multicultural que em 1900 abrangia doze nacionalidades com suas respectivas línguas, tradições, além de três religiões monoteístas combinadas. Com isso, sua característica principal vai ser uma grande diversidade, além de uma ambivalente identidade coletiva. No círculo intelectual de Viena no início do séc. XX vão estar em voga as ideias de uma política cultural e artística, assim como o conceito de uma política social. Nesse ambiente, a preservação do patrimônio também vai ser percebida como um meio de estabilização de uma certa “ideia de Estado”, , quase federalista, e incentivador da arte, que se constituía na virada do século na República do Danúbio. Desde o início, então, a língua vai ser vista, simultaneamente, como um meio potencial de unificação – ou de separação – nacional e um problema na construção de uma identidade na monarquia dos Habsburgos31. A tese de Falser vai ser, então, que a ideia de preservação do patrimônio de Riegl, sobretudo a sua teoria do valor de ancianidade, somente poderia surgir dessa realidade, numa sociedade supranacional onde coexistiam várias línguas, uma sociedade subjetiva e emocional.

O terceiro caso estudado já vai envolver a reconstrução pós-2ª Guerra Mundial, depois de 1945, enfocando-se principalmente os debates sobre a reconstrução em Frankfurt am Main, enquanto o quarto caso já toma a repercussão do Ano Europeu do Patrimônio, em 1975, nos programas nacionais e iniciativas dos grupos comunitários na República Federal, mostrando um certo caráter retrógrado da interpretação da Alemanha Ocidental do pensamento europeu sobre o patrimônio, também expressa no lema "Um futuro para o nosso passado"32. Em quinto lugar, toma-se o caso do desmantelamento e a reconstrução na década de 1980, sob a égide do pós-modernismo, do mercado de Hildesheim. Finalmente o último caso de estudo trata de Berlim após 1990, principalmente as intervenções realizadas no entorno da ilha no rio Spree, e os debates sobre a "eliminação" da história – incômoda – da arquitetura da República Democrática Alemã (RDA), bem como a reconstrução de uma história nacional prussiano-alemã idealizada. Excelentes objetos para discussão, tais como o

31 As decisões tomadas quanto à preservação do patrimônio na Ringstraβe de Viena denotam o caráter centralizador e institucional que o tema assumiu no império. 32 A seu ver, a expansão do conceito de patrimônio a todo tecido social vai ser provocado apenas iniciado a partir do exterior (história da arte) e de baixo para cima (iniciativas de cidadãos).

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monumento a Lenin em Berlim Oriental, a Neue Wache, a desmontagem do Palácio da República e o projeto para reconstrução do castelo real são trazidos à baila, parecendo este caso ser o ponto de convergência do trabalho de Falser. Se realiza um trabalho eminentemente descritivo, sua posição é inequívoca: ele ataca a destruição dos vestígios de uma história frágil e controversa, que vem sido, a seu ver, provocada pelas elites políticas e empresariais no intuito de criar um espaço mítico purificado.

A tese principal do trabalho de Falser é que "o discurso da teoria e prática da preservação histórica” vão ser “um reflexo da construção político-cultural da identidade nacional" (Falser, 2008, p. 59). Assim, a história da construção da nação alemã – cheia de crises, de rupturas profundos e inúmeras revoluções fracassadas desde o final do Século XVIII – teria se refletido nos debates recorrentes sobre o patrimônio nacional e principalmente sobre a questão da reconstrução de objetos transmitidos pela tradição: "O tema da reconstrução permanece até hoje”, escreve, “o reverso material do ‘caminho especial’ mental do processo de construção da nação alemã, com a sua construção contínua da identidade sempre dúvida e auto imposta."(p. 68). Para ele, não seria fortuito, portanto, que esse debate – que juntamente com a questão da autenticidade constitui um dos desafios centrais da conservação do patrimônio – ocupe uma posição central na Alemanha e que sempre reapareça no horizonte33.

2. Brasil: redesenhando o “mapa do passado”

No caso brasileiro, cabe se destacar a contribuição decisiva de diversos trabalhos que, desde o final dos anos 1980, têm realizado a “desnaturalização” das escolhas que vinham compondo o corpus patrimonial, mostrando como as políticas de preservação em nosso país, principalmente aquelas em nível federal, são responsáveis pela criação de um “mapa do Brasil passado” muito específico34. Aqui cabe chamar a atenção para a contribuição da Antropologia, que, nos últimos anos, vai ser decisiva na abertura dessa “via crítica” em nosso país, situando histórica e culturalmente o discurso que se produzia na área. Se os antropólogos já vinham participando secundariamente de um campo dominado por arquitet os e historiadores35, o patrimônio vai se tornar objeto de reflexão sistemática dos

33 Um trabalho interessante sobre a questão da reconstrução na Alemanha é o artigo “Wiederaufbau: a Alemanha e o sentido da reconstrução”, de Luiz Antonio Lopes de Souza, publicado no ARQUITEXTOS em duas partes (Souza, 2009a; 2009b). 34 Dentre os diversos trabalhos recentes nessa linha, cabem se citar Gonçalves, 1995; Rubino, 1996; Santos, 1996; Fonseca, 1997; Castriota, 1999; Guimarãens, 2004; Gonçalves, 2007; Lima Filho; Eckert; Beltrão, 2007; Chuva, 2009. 35 Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu mostram que a atuação dos antropólogos no campo do Patrimônio não é nova, especialmente se incluirmos no campo do Patrimônio os museus. Em seu importante artigo, lembram-nos que a Antropologia “nasceu nos museus”, sendo “marcada pela ideia de preservação desde o início, quando os primeiros pesquisadores da disciplina coletavam objetos e documentos em suas pesquisas de campo e depois os armazenavam nos laboratórios de pesquisa. Se internacionalmente podemos nos lembrar de Franz Boas, Georges Henri Rivière (Museu de Artes e Tradições Populares de Paris), Paul Rivet (Museu do Homem) e mesmo Claude Lévi-Strauss (colaborador do Museu do Homem e do Projeto de fundação da UNESCO), no Brasil não há como se esquecer das figuras emblemáticas de Édison Carneiro (Museu Nacional), Darcy Ribeiro (fundador do Museu do Índio) e Luiz de Castro Faria (Museu Nacional). Já no que tange a atuação junto às instituições

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antropólogos apenas nas últimas décadas, especialmente quando alguns pesquisadores incluíram o tema em suas teses de doutorado. Aqui cabe se citar os pioneiros Antônio Augusto Arantes Neto36, que em 1978, defendeu a tese Sociological aspects of folhetos literature in Northeast Brazil , orientada por Edmund Leach na Universidade de Cambridge / King´s College, Inglaterra, e que mais tarde publica o livro Produzindo o passado (1984), e José Reginaldo Gonçalves, com a tese Rediscoveries of Brazil: Nation and Cultural Heritage as Narratives, orientada por Richard Handler e defendida na Universidade da Virginia (EUA) em 1984 e também transformada no livro A Retórica da Perda – os discursos do patrimônio cultural no Brasil em 199637.

Essa trilha fecunda aberta pelos dois antropólogos, vai ter sequência no início dos anos 1990, quando dois importantes trabalhos acadêmicos seguem na mesma linha, tratando de circunstanciar as políticas de preservação no país, colocando sob escrutínio suas escolhas e a constituição de seu discurso38. E falar em políticas de patrimônio no Brasil é falar do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que não foi um mero órgão burocrático, mas, como apontam à exaustão trabalhos recentes, formulou um ideário e implementou as ações de preservação em nosso país, desde sua fundação na década de 1930. Em As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968, dissertação defendida na UNICAMP em 1991, sob a orientação de Antônio Augusto Arantes, Silvana Rubino realiza um minucioso trabalho de desmistificação da ação desse órgão, investigando criticamente a sua utilização de conceitos ligados à memória, patrimônio histórico, cultural e artístico, mostrando as motivações políticas das diversas escolhas. O corpus com que trabalha emana dos primeiros anos do

de patrimônio propriamente ditas, a atuação dos antropólogos “se fez sentir desde o início, mas sempre de forma esporádica”, destacando-se a atuação no Conselho do Patrimônio do IPHAN de Gilberto Velho e, mais recentemente, de Roque de Barros Laraia. (Lima Filho, Manuel Ferreira; Abreu, Regina Maria do Rego Monteiro de. A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In: Associação Brasileira de Antropologia, 2007, p. 21-22.) 36 Antônio Augusto Arantes vai ter uma trajetória que combina pesquisa acadêmica e militância junto aos

órgãos de preservação. Do ponto de vista universitário cabe se destacar sua carreira docente de quatro

décadas em duas universidades paulistas – a USP e a Unicamp, que ajudou a criar em 1970. Nos anos de

1980, com o processo de redemocratização, participou da intensa discussão sobre a conceituação do

patrimônio, assumindo em 1983 a Presidência do CONDEPHAAT em São Paulo. Também esteve à frente

do IPHAN, de 2004 a 2006, como seu presidente, tendo implementado o Departamento de Patrimônio

Imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial deste órgão. Dentre a sua produção acadêmica

sobre o patrimônio, cabe se citar o livro pioneiro Produzindo o passado, publicado em 1984. 37 Segundo Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu, esses dois trabalhos “podem ser considerados marcos de uma reflexão antropológica sobre o patrimônio no Brasil. Um tema antes tratado por arquitetos e historiadores passava a ser focalizado sob o viés da Antropologia. A tônica destes trabalhos consistiu em apresentar uma visão desnaturalizada de um campo eivado por ideologias e por paixões sobretudo de cunho nacionalista. Arantes e Gonçalves esforçaram-se por propor uma outra leitura de construções discursivas particularmente eficazes na fabricação de uma memória e de uma identidade nacionais”. (Lima Filho e Abreu, A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In: Associação Brasileira de Antropologia, 2007, p. 21-22.) 38 Aqui se costuma citar também a tese de doutorado de Antônio Luiz Dias de Andrade, Um Estado completo que pode jamais ter existido, defendida junto à FAU/USP, em 1993.

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Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a partir do qual a antropóloga recompõe o contexto do nacionalismo e da forte presença do Estado nos anos 1930, que configuravam o campo cultural aquando da emergência da política cultural no Brasil. Através da análise de personagens como Lucio Costa, Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Gustavo Capanema, Manuel Bandeira e Rodrigo Mello Franco de Andrade, Rubino recupera conexões entre campos profissionais/intelectuais da antropologia, arquitetura e literatura, que marcaram a chamada “fase heroica” daquele órgão39.

Já a tese de doutorado de Mariza Veloso Motta Santos, O tecido do tempo: a ideia de patrimônio cultural no Brasil, 1920-1970, defendida na UnB, em 1992, num movimento paralelo, analisa o surgimento da ideia de patrimônio e das práticas sociais consolidadas a partir dessa ideia, naquele período, evidenciando a presença ativa de um grupo modernista, principal articulador da trama discursiva construída em torno das ideias de patrimônio e nação. A questão do patrimônio é tratada ali como uma ideia -força que ordena e estrutura uma matriz discursiva voltada ao passado e que engloba concepções sobre a história, o tempo, a estética, a memória, o espaço público e, primordialmente, sobre a nação brasileira. A autora mostra como esse grupo modernista que institucionaliza, em 1937, o SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), vai articular uma estratégia baseada numa peculiar teoria da temporalidade: ao mesmo tempo em que “redescobre” o barroco - que vê como a origem da cultura brasileira , inventa um futuro para a nação que se acreditava nascente 40. O trabalho centra sua análise em torno da atuação de dois personagens carismáticos e exemplares do grupo: Rodrigo Melo Franco de Andrade e Mário de Andrade, e analisa, por fim, a criação a “Academia SPHAN” e o exercício de sua prática institucional por meio de documentos sobre rotinas e procedimentos adotados naquele período41.

Em meados dos anos 1990, duas publicações dão a conhecer a um público mais amplo essa nova perspectiva de análise, que começa a impregnar os trabalhos acadêmicos sobre o patrimônio em nosso país. Assim, em 1996, mesmo ano da publicação do Volume 24 da Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional , que traz diversos artigos

39 A pesquisa recompõe o contexto do nacionalismo e da forte presença do Estado nos anos 30, e o campo

cultural da emergência da política cultural no Brasil, em quatro perspectivas: (1) a proto-história, ou todo o

trabalho pró-preservação anterior ao SPHAN; (2) a criação do SPHAN em 1937; (3) a prática do SPHAN

através da análise do acervo preservado; (4) o legado intelectual e acadêmico da experiência do SPHAN. 40 A esse respeito, confira Castriota, 1999, artigo publicado posteriormente em versão alterada como o capítulo “Nas encruzilhadas do desenvolvimento: a trajetória da preservação do patrimônio em Ouro Preto (MD)”, em Castriota, 2009, p. 131-152.

41 Em 1996, essas mesmas autoras vão contribuir para o volume 24 da Revista do Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, com os artigos “O mapa do Brasil passado” (Rubino, 1996, p. 97-105) e “Nasce

a Academia SPHAN” (Santos, 1996, p. 77-95), em que de certa forma retomam os temas de suas

respectivas teses.

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nessa linha, José Reginaldo Santos Gonçalves publica como livro o interessante estudo A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil42, versão de sua tese já citada, no qual avalia a estratégia de narração da identidade nacional, nos conduzindo a questões cruciais apon tadas por Otávio Velho, as analogias entre alegoria, ruína e patrimônio; o barroco como "signo totêmico" da identidade nacional brasileira; as associações entre os discursos a partir de patrimônio e os discursos modernistas; o papel dos intelectuais na produção de valores supostamente em declínio, entre outros. Gonçalves também vai analisar as duas figuras centrais na formulação de políticas do patrimônio no Brasil: Rodrigo Mello Franco de Andrade – um dos idealizadores e primeiro diretor do SPHAN, que inspirou sua política de 1937 a 1979 – e Aloísio Magalhães – que esteve à frente do SPHAN/Pró-Memória por um curto período, de 1979 a 1983, mas que foi decisivo para sua transformação. Segundo o autor, no discurso de cada um deles, o Brasil seria “objetificado de certo modo e segundo determinados propósitos”. A partir dessa premissa, ele explora “contrasticamente (sic) as estratégias através das quais esses intelectuais, por meio de narrativas diversas, inventam o patrimônio cultural, a nação brasileira e a el es próprios, enquanto guardiões desse patrimônio.” (Gonçalvez, 1995, p. 33)

Gonçalez mostra como a questão da identidade nacional vinha sendo pensada desde os últimos anos do império e desde a instauração do regime republicano, em 1889, centrando-se, no entanto, as discussões sobre esse tema, naquele período, na ideia de “raça”. Ao longo da segunda e terceira décadas do século XX, o foco vai mudar substancialmente e o problema passa a ser discutido, não mais em termos raciais, mas culturais, como uma busca da “brasilidade”, de uma “essência”, “alma” ou simplesmente “identidade” da nação brasileira.” (p. 41). Para Rodrigo Mello Franco de Andrade, o patrimônio deveria ser pensado como parte de um patrimônio universal, mas ao mesmo tempo, ele situaria as origens da cultura brasileira na “tradição” singular produzida pelas contribuições da populações indígenas, africanas e europeias no Brasil.(...) uma síntese de valores “primitivos” e “exóticos”.” (Gonçalvez, 1995, p. 44 -45) Essa visão, que se torna hegemônica no SPHAN, postula que uma “tradição” brasileira veio a ser criada e estabelecida com base nesse processo de combinação cultural, não sendo enfatizadas em sua narrativa as “diferenças entre essas heranças”, ganhando o primeiro plano “um quadro unificado e singular da identidade cultural brasileira.” Com isso, o autor pode concluir que seria possível dizer que “em certo sentido, Rodrigo, durante determinado período, modela o

42 A ideia de perda, que perpassa o livro, está, como mostra o autor, sempre presente na “criação” dos

patrimônios nacionais, como explicitado pelo autor: “A História aparece como “um processo inexorável de

destruição, em que valores, instituições e objetos associados a uma “cultura”, “tradição”, “identidade” ou

“memória” nacional tendem a se perder.(...) O efeito dessa visão é desenhar um enquadramento mítico

para o processo histórico, que é equacionado, de modo absoluto, à destruição e homogeneização do

passado e das culturas.” (Gonçalves, 1995, p. 22)

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patrimônio cultural brasileiro, ao mesmo tempo que o patrimônio o modela, enquanto persona pública.” (Gonçalvez, 1995, p. 47)

Já Aloísio Magalhães, que assume a direção do SPHAN nos anos 1970, anos finais do regime político autoritário que vigorava no Brasil desde o golpe militar de 1964, dá início a uma nova política para o patri mônio cultural brasileiro, substituindo o “patrimônio histórico e artístico” de Rodrigo pela noção de “bens culturais”. Segundo Rodrigues, quando usa a noção de “cultura brasileira”, Magalhães “enfatiza mais o presente do que o passado” e, principalmente “a diversidade cultural no contexto da sociedade brasileira”, embora continuasse acreditando que, além dessa diversidade, existiria uma cultura brasileira “integrada, contínua e regular.” (Gonçalvez, 1995, p. 52) Pensando num projeto de desenvolvimento nacional, o propósito de Aloísio Magalhães seria “identificar e preservar o caráter nacional brasileiro de forma que o processo de desenvolvimento econômico e tecnológico possa prosseguir sem que isso represente uma perda de autonomia cultural frente aos países do primeiro mundo.” Assim, os bens culturais seriam pensados “não como objetos fixos, exemplares, mas no processo mesmo de criação e recriação que lhes dá realidade.” (Gonçalvez, 1995, p. 55)43

É interessante percebermos, com o autor, que Rodrigo e Aloísio usam diferentes “estratégias de autenticação”: enquanto Rodrigo autentica sua posição “opondo-a a um discurso não científico, não profissional sobre a cultura brasileira.” (Gonçalvez, 1995, p.61), Aloísio “autentica sua própria posição desafiando a de Rodrigo”, sendo sua estratégia “a de narrar a cultura nacional brasileira, não necessariamente de um ponto de vista distante e impessoal, mas, aproximadamente, valorizando o que (...) chamamos de “ponto de vista narrativo”. Apesar dessa distinção, as narrativas dessas duas figuras emblemáticas do patrimônio se aproximariam no fato de que “em ambas as narrativas a nação é objetificada como uma “busca” pela identidade. (p.62) Essas narrativas se diferenciariam, de novo, no propósito que viam na apropriação necessária da cultura e do patrimônio nacional: enquanto para Rodrigo o propósito de apropriação seria o de “defender uma “tradição” para “civilizar”, para Aloísio era necessário “preservar a “heterogeneidade cultural” para garantir o “desenvolvimento”.” (Gonçalvez, 1995, p.63-64)44

A Retórica da Perda segue mostrando como esses diferentes “discursos” se refletem e moldam as práticas do patrimônio cultural no Brasil, em dois

43 José Reginaldo Santos Gonçalves chama a atenção também para a aproximação da ideias de Magalhães com aquelas do projeto original de Mário de Andrade, de 1936, que segundo Aloísio não teraim sido seguidas pela instituição até então. O Projeto de Mário de Andrade é bastante abrangente, englobando as “diferentes formas de ‘cultura popular’”; a “autêntica” identidade nacional (cultura popular); uma “visão pluralista e, de certo modo, “antropológica” do brasil”, continuando o patrimônio a ser pensado também como uma “causa” (Gonçalves, 1995, p. 56) 44 Num outro trecho, o autor enuncia: “A estratégia de apropriação da cultura nacional pressuposta no discurso de Aloísio trazia como consequência uma representação da nação brasileira como uma totalidade cultural diversificada e em permanente processo de transformação.” (Gonçalves, 1995, p.81)

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períodos distintos: o que vai de 1937 a 1979, onde predominam as ideias de Rodrigo e o período posterior, quando se nota a influência de Aloísio Magalhães. Assim, no período inicial, numa política que o autor denomina de “em busca do tempo perdido”, o SPHAN praticaria uma defesa dos monumentos “como signos visuais de uma condição civilizada” (Gonçalvez, 1995, p.65), utilizando-se para isso do instrumento do tombamento (o correspondente ao termo registration, em inglês, e ao termo classement, em francês), também criado em 1937, e cujo procedimento é resenhado pelo autor. Aqui Gonçalves analisa, como vão fazer vários autores, os tombamentos da “primeira leva”, especialmente o tombamento de Ouro Preto e a defesa da arquitetura colonial a ela subjacente. Segundo ele, “Rodrigo justificou essa concentração argumentando que, no século XVIII, mais que em qualquer outra região do país, um número superior de monumentos e obras de arte “com feição mais expressiva” foi produzido em Minas Gerais ([1969] 1987:73).” (Gonçalvez, 1995, p.71) Nesses tombamentos, realizados sob a ótica inicial dominante no SPHAN, predominaria o “ponto de vista estético”, sendo que a religião, especialmente o catolicismo, desempenharia um “papel crucial na narrativa de Rodrigo”.

Identificando-se mais com a visão de Aloísio Magalhães, o autor ressalta a aproximação deste com as posições de Mario de Andrade: “Para Aloísio, a noção de “patrimônio cultural” concebida por Mário (de Andrade) estava muito próxima de uma concepção democrática e pluralista do que a veio a inspirar a política implementada por Rodrigo.” (p.73) O foco das políticas do SPHAN continuaria no passado, mas “um passado concebido como um instrumento, uma referência a ser usada no processo de desenvolvimento econômico e cultural”, onde os ”bens culturais”, “considerados como parte integrante da vida cotidiana de distintos seguimentos da sociedade brasileira”, desempenhariam um papel central (p. 76) A partir dessa visão, vai ser peça central a criação do CNRC (Centro Nacional de Referência Cultural) que vai ter o objetivo de “estudar e propor uma política alternativa de patrimônio cultural”, a fim de “traçar um sistema referencial básico para a descrição e análise da dinâmica cultural brasileira, tal como é caracterizada na prática das diversas artes, ciências e tecnologias (Magalhães [1979] 1985:130). ” (Gonçalvez, 1995, p.77)

Cabe observar, por fim, que, em sua pesquisa, José Reginaldo Santos Gonçalves adota, como apontam Manuel Ferreira Lima Filho e Regina Maria do Rego Monteiro de Abreu, a noção de “colecionismo” de Clifford, identificando que os bens considerados dignos de preservação deveriam formar, nas construções discursivas estudadas (de Rodrigo Mello Franco de Andrade e de Aloísio Magalhães), uma espécie de mosaico “autenticamente” nacional:

Gonçalves, utilizando-se de estratégia etnográfica e tomando os discursos de Rodrigo Mello Franco de Andrade e de Aloísio Magalhães como os de informantes selecionados numa pesquisa de campo,

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produz a relativização desta categoria fundante das modernas ideologias ocidentais. O tema do patrimônio emerge, assim, como um lugar de construção de valores – e, como tal, extremamente plástico e variável. O bem cultural “autêntico” como representação metafórica da totalidade nacional é desnaturalizado, e a sua face ideológica e ficcional descortinada. (Lima Filho e Abreu, A antropologia e o patrimônio cultural no Brasil. In: Associação Brasileira de Antropologia, 2007, p. 21-22.)

Na mesma linha, Maria Cecília Londres Fonseca publica em 1997 O Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil, que tinha sido apresentado inicialmente como tese de doutorado em Sociologia da Cultura na UNB, no qual traça a trajetória da política federal de preservação do patrimônio histórico e artístico nacional até os anos 1980. Como no trabalho de Gonçalves, o foco de análise não se concentra apenas na chamada “fase heroica”, estendendo-se para as décadas posteriores. Assim, ao focalizar dois momentos fundamentais nas políticas de patrimônio – a chamada “fase heroica” e a “fase moderna”, a partir dos anos 197 0, a autora, que é funcionária do IPHAN, vai centrar sua discussão nas práticas institucionais adotadas no processo de construção desse patrimônio e como ao longo desse período os diversos grupos de intelectuais envolvidos nesse trabalho, nas palavras de Janete Tanno, “influenciados pelas mudanças sociais, políticas e culturais e pelas novas tendências internacionais sobre o tema”, vão contribuir para alargar a noção de patrimônio em nosso país, propondo “mudanças significativas no sentido da democratização desses bens, não somente pelo envolvimento da sociedade civil no processo, como na discussão do significado econômico e político da preservação”. (Tanno, 2006, p.233)

Cecília Londres adota, então, uma perspectiva “primordialmente histórica”, tomando como “objeto de pesquisa o processo de construção do patrimônio histórico e artístico no Brasil, considerado enquanto uma prática social produtiva, criadora de valor em diferentes direções” (Fonseca, 1997, p. 19-20). Tomando o viés institucional, a autora mostra que, num primeiro momento, o instrumento de legitimação das escolhas – que recaía, via de regra, sobre a herança luso-brasileira, restringindo-se, principalmente, às expressões culturais e arquitetônicas das elites econômicas e religiosas 45 – era a autoridade dos técnicos do SPHAN, “revestidos da aura intelectual que cercava o grupo de modernistas que fazia parte da instituição”. Analisando as condições de atuação do órgão, a autora chama a atenção para como o grupo de intelectuais desenvolvia suas atividades com grande autonomia no interior do Ministério da Educação e Saúde, a despeito de atuar em plena ditadura do Estado Novo. Ao tomar a segunda etapa de sua periodização, no

45 Nessa primeira fase de trabalho do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), os tombamentos privilegiaram, em especial, igrejas e prédios do período colonial, prevalecendo uma apreciação de caráter estético, sendo que o valor histórico era pouco considerado. A esse respeito, confira a crítica de Tanno, 2006, p. 233-234.

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entanto, nota-se como esse quadro irá se alterar, com o novo contexto político, social e cultural do país. Por meio da análise dos processos de tombamento abertos entre 1970 e 1990, Fonseca mostra, então, as modificações na política de proteção ao patrimônio histórico, a conceituação deste e a busca de novos instrumentos de proteção no contexto sociopolítico que se instaurou no País, sobretudo a partir da década de 1980. Ao tomar as novas formulações do SPHAN, pós-Rodrigo Mello Franco, Fonseca aponta para a ampliação da participação da sociedade organizada na definição do que deveria ser preservado como patrimônio cultural, mostrando principalmente o aumento da participação de diversos grupos sociais, e não somente dos técnicos ou das elites, e o direito de acesso aos bens culturais 46.

Ainda nessa perspectiva, cabe chamar a atenção para o trabalho de Márcia Regina Romeiro Chuva,que em 1998 defende sua tese de doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense com o título Os arquitetos da memória: a construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil – anos 30 e 40, que vai se transformar em livro em 2009, quando é publicado pela Editora UFRJ com o título Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Neste trabalho, a autora, prosseguindo a mesma linha das pesquisas anteriormente citadas, vai mostrar como o patrimônio vai ser histórica e temporalmente determinado, o que fica mais claro na própria escolha do subtítulo do trabalho. Ao falar de uma “sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil”, Chuva recusa qualquer naturalização desse conceito, concentrando-se na definição do "serviço" do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: o "patrimônio", nesta perspectiva, não vai ser algo dado, mas muito mais uma arena em que práticas e representações, correspondentes aos mais variados programas políticos estatais, se encontram em disputa.

Para mostrar as lutas de representação, em diversos âmbitos, que marcaram a história do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Chuva utiliza-se da sua proximidade com o Arquivo Central do IPHAN, gerando uma obra de notável riqueza documental, que consegue delinear com precisão como se deu a “construção do patrimônio histórico e artístico nacional no Brasil” naquele período, com a invenção de seus objetos e a escolha de seus métodos de trabalho. Ao se concentrar no período 1930-1940, a autora mostra como “a implementação de ações de proteção do patrimônio nacional foi estratégica para a ampliação das redes territoriais na formação do Estado e para a construção de sentimentos de pertencimento a uma comunidade nacional imaginada, na medida em que

46 É interessante anotarmos aqui que na reedição de 2005, a autora aprofunda o tema da democratização da

política de preservação, mostrando como essa pode ser observada tanto no alargamento da noção de

patrimônio, quanto na introdução do instrumento do registro cultural, que já se mostra abrangente pelos

próprios títulos dos livros de registro, estabelecidos pelo decreto-lei nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 1)

Livro de registro dos saberes; 2) Livro de registro das Celebrações; 3) Livro de registro das formas de

expressão; 4) livro de registro dos lugares.

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essas ações geraram uma territorialização particular da nação, garantindo a permanência, no tempo e no espaço, de objetos monumentalizado” (Abreu, 2010) Mais uma vez aqui, deparamo-nos com um trabalho que “desnaturaliza” as escolhas patrimoniais, mostrando como os “arquitetos da memória” inventaram os “quadros da memória nacional”, cuja referência primordial das origens da nacionalidade foi associada estreitamente a imagens das Minas Gerais do século XVIII. Márcia Chuva resume essa ideia

Esse patrimônio mineiro foi de tal forma reproduzido em revistas, jornais, mapas, folhetos, etc. que, multiplicando-se infinitamente, tornou-se ícone máximo de “brasilidade‟ na escala de valores que se impôs. O Sphan esteve, sem dúvida, aderido ao projeto de nacionalização implementado pelo Estado Novo, ao unificar uma escala hierárquica de valores patrimoniais a partir de um padrão de arte e arquitetura determinado pela produção mineira colonial. (Chuva, 2009, p. 63)

Se esses trabalhos citados se voltam, em primeira linha, para as escolhas que determinam o corpus patrimonial, identificando sua gênese e pano de fundo institucional, outro trabalho recente aborda criticamente outra faceta das políticas de patrimônio: a restauração. Trata -se do livro Restauração arquitetônica . A experiência do SPHAN em São Paulo, 1937-1975, de Cristiane Souza Gonçalves, fruto de sua dissertação de mestrado defendida na FAU-USP (Gonçalves, 2007). Se as escolhas efetuadas pelos técnicos do SPHAN nos permitem traçar o “mapa do Brasil passado” que aquele órgão queria deixar em herança para as gerações futuras, também a maneira de intervir sobre aqueles bens, as restaurações pensadas e efetivamente executas naquele período vão ser igualmente significativas da forma de se gerir o patrimônio47.

Assim, Cristiane Gonçalves se debruça sobre esse primeiro momento de ação institucional (1939-1975), tomando principalmente a atuação de Luís Saia, a frente da Superintendência Regional do IPHAN em São Paulo, e vai mostrar como ele pensava o restauro, a luz de exemplos concretos, entre os quais o restauro da antiga Câmara e Cadeia de Atibaia. Neste caso, mas também nos outros exemplos estudados – igreja de São Miguel Paulista, casa-sede e capela do Sítio Santo Antônio e Fazenda Pau D’Alho – a autora mostra como muito mais que aderir às normas que internacionalmente vinham sendo implementadas no campo do patrimônio naquele momento, tinha-se a tendência de se classificar os monumentos, enquadrando-os em modelos estilísticos previamente determinados, como fazia Viollet -le-Duc, o que levava a que se buscasse o princípio da “unidade estilística” 48,

47 A respeito do livro de Cristiane Gonçalves, confira a interessante resenha de Claudia dos Reis e Cunha

(Cunha, 2007). 48 A unidade estilística, como coloca a autora, é uma “ideia [que] atravessa os trabalhos apresentados com tal vigor que é quase impossível não observá-la nos resultados obtidos, sendo inevitável associá-la aos propósitos finais das restaurações, bem como aos processos que levaram até as soluções alcançadas, nos quatro casos analisados...” (Gonçalves, 2007, p. 186).

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apagando-se as marcas e as modificações deixadas pelo tempo. Além disso, mostra-se que não se atendia também minimamente a outros princípios como a da “distinguibilidade”: Se desde as primeiras restaurações já se procurava diferenciar a intervenção recente da matéria original (principalmente atr avés do uso do concreto nos reforços estruturais ou reconstrução de partes ruídas), isto acabava prejudicado pela uniformização no tratamento das fachadas, que, em busca da unidade do conjunto, mascarava as técnicas recentes (Gonçalves, 2007, p.196).

Conclusões

Como pudemos ver, salta aos olhos, nos dois casos estudados, como nos últimos anos tem se submetido, de fato, a uma análise crítica as escolhas que conformaram o corpus patrimonial desses dois países, bem como a maneira de se intervir sobre ele. No caso da Alemanha, vimos, tomando principalmente o trabalho de Michael Falser, como a teoria e prática no campo do patrimônio refletem efetivamente a – problemática – construção da identidade nacional, âmbito no qual ganha especial destaque a questão da reconstrução, tão combatida pela teoria internacional da conservação e tão prezada pelos alemães. No caso brasileiro, pudemos acompanhar a intensa reflexão crítica, que, desde o final dos anos 1980, tem empreendido uma “desnaturalização” das escolhas que vinham compondo o nosso corpus patrimonial, e que eram responsáveis, como vimos, pela criação de um “mapa do Brasil passado” muito específico.

Para finalizar, cabe ainda observar que essa perspectiva tem se espalhado com muita intensidade em nosso país, pr incipalmente pelo rebatimento que tem tido no campo da academia: são inúmeros hoje os trabalhos que têm se produzido nos diversos programas de pós -graduação que se voltam para o próprio patrimônio como objeto de estudo, analisando as maneiras pelas quais esse campo tem se articulado ao longo dos anos nas diversas esferas de governo – federal, estadual e municipal. Com isso, avança crescentemente a nossa compreensão do patrimônio como uma construção social , e as inúmeras consequências que advêm dessa compreensão.

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AYRTON CARVALHO E A DISSEMINAÇÃO DO CAMPO DA

CONSERVAÇÃO NO BRASIL

Juliana Melo Pereira

Resumo

Este artigo discorre sobre as práticas de Ayrton Carvalho, chefe do 1º Distrito Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a fim de revelar sua contribuição para o campo da conservação no Brasil. Com a hipótese que a contribuição deste intelectual não foi limitada a sua atuação no IPHAN, procuramos primeiramente compreender sua formação, dedicando atenção especial à experiência como estagiário na Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, coordenada pelo arquiteto Luiz Nunes. Depois, partimos para a análise da atuação de Ayrton Carvalho enquanto chefe do 1º Distrito Regional do IPHAN. Este percurso investigativo percorre diferentes ambientes culturais e nos permite perceber que as práticas da salvaguarda no Brasil são conformadas interagindo diretamente com o campo da arquitetura moderna. Deste modo, defendemos o argumento que entre os intelectuais que conformaram o campo da conservação no Brasil, os referenciais foram múltiplos e resultantes das diversas formações, filiações e referenciais teóricos, apesar da tendência historiográfica de destacar e unidade e centralidade de pensamento. Portanto, através deste estudo, seguimos a direção oposta à tendência de atribuir a um único grupo a responsabilidade sobre as concepções acerca do patrimônio histórico e artístico nacional, bem como as práticas no sentido de sua salvaguarda.

Palavras-chave: Ayrton Carvalho, arquitetura moderna, patrimônio histórico e artístico nacional.

Introdução

Ayrton de Almeida Carvalho foi engenheiro, professor no curso de Arquitetura e chefe do 1º Distrito Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)49. Responsável pelos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, realizou inúmeros tombamentos, restaurações, inventários, pesquisas, cursos e outros trabalhos voltados para a conservação do patrimônio. Graças à atuação deste profissional, exemplares preciosos da arquitetura tradicional foram descobertos,

UFPE. [email protected] 49 Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), de 1937 à 1946; Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), de 1946 à 1970; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), de 1970 à 1979; Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), de 1979 à 1990; Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), de 1990 à 1994; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), 1994. Neste trabalho adotamos a nomenclatura ‘IPHAN’ para todos os períodos.

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estudados e salvaguardados até os dias atuais. Extrapolando os limites da instituição, Ayrton Carvalho constituiu em torno do 1º Distrito um ambiente cultural composto por estudantes e intelectuais de diversas áreas e instituições, dispostos a conhecer e colaborar com a conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.

Por tais motivos, a presente investigação tem como objeto de estudo as práticas de Ayrton Carvalho, a fim analisar, sob um viés diferenciado, como se constituiu o campo da conservação no Brasil. A historiografia sobre este temática, talvez pela pouca distância temporal ou pelo peso das instituições envolvidas, é permeada de figuras mitificadas sobre as quais é atribuída toda responsabilidade sobre a delimitação do patrimônio histórico artístico nacional e as práticas no sentido de sua salvaguarda. Para além de Rodrigo Mello Franco e Lúcio Costa, mais ainda, para além do IPHAN, buscamos neste texto explorar a contribuição de Ayrton Carvalho, na disseminação de práticas no campo da conservação no país. 50

1. Formação profissional e a experiência na Diretoria de Arquitetura e Construção

Ayrton Carvalho formou-se em 1939, pela Escola Livre de Engenharia de Pernambuco. Com quase 50 anos de fundação, o curso já era referenciado regionalmente por sua excelência e contava com professores renomados como Joaquim Cardozo, Newton Maia, João Holmes Sobrinho, Luís Freyre, José Estelita, entre outros. Segundo o engenheiro Antônio Baltar, estudante desta escola na mesma época que Carvalho, o ensino das matérias básicas era no nível das melhores universidades do mundo, ao ponto de alunos formados ingressarem sem dificuldade em instituições internacionais. Em relação ao ensino aplicado, a Escola não contava com o mesmo avanço, o que se deve ao atraso geral em que se encontravam os serviços públicos e empreendimentos de engenharia no país (BALTAR, 1995).

Uma tentativa de romper com o atraso e pouca eficiência dos serviços públicos foi a criação da Diretoria de Arquitetura e Construção (DAC), apontada um dos mais importantes episódios da arquitetura moderna brasileira. A diretoria reuniu um grupo em sintonia com os debates da arquitetura internacional e as peculiaridades locais e pode ser considerada uma das primeiras experiências no sentido de conformar uma escola de arquitetura moderna nacional, embora predomine na historiografia, o pioneirismo do eixo Rio-São Paulo. Este movimento foi vivenciado de perto por Ayrton Carvalho, que ainda estudante participou como estagiário da equipe inovadora e teve a oportunidade de complementar sua formação.

A DAC foi criada em 1934, com o objetivo de coordenar e executar os projetos de edifício públicos do estado. Estava inserida num projeto de modernização da máquina administrativa, no primeiro mandato do interventor do estado de Pernambuco, Carlos Lima Cavalcanti. Para chefiá-la, foi convidado o arquiteto mineiro, recém-formado pela ENBA, Luiz Nunes 51 que conformou a equipe inicial junto aos engenheiros José

50 Este artigo é resultado da pesquisa de mestrado desenvolvida pela autora, intitulada ‘Admiráveis Insensatos: Ayrton Carvalho, Luís Saia e as práticas no campo da conservação no Brasil’ (PEREIRA, 2012). 51 Luiz Carlos Nunes de Souza (1908-1937) formou-se arquiteto na ENBA, em 1931. Quando estudante, liderou junto a Jorge Moreira, a greve de apoio à reforma de Lúcio Costa. Em 1933, desenvolveu projetos

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Noberto, Gauss Estelita e Jaime Coutinho, o desenhista Hélio Feijó, os estudantes de engenharia Antônio Baltar e Ayrton Carvalho, além de muitos outros profissionais. A diretoria inovou no serviço público pela tentativa de racionalização e padronização dos materiais e por inserir nas discussões diplomados e operários, em pé de igualdade em busca de melhores soluções construtivas. As pressões políticas fizeram com que a DAC fosse dissolvida em 1935, sendo retomada em 1936, como Diretoria de Arquitetura e Urbanismo (DAU) incorporando para sua pauta questões da cidade, junto a Luiz Nunes, fizeram parte da nova equipe: os arquitetos Fernando Saturnino de Britto, João Corrêia Lima e o paisagista Roberto Burle Marx.

Como estagiário, Ayrton Carvalho ficou responsável pela Seção de Materiais, encarregado do levantamento de todos os materiais utilizados nas construções. Segundo Joaquim Cardozo esta não era uma habilidade comum, pois deveria ser feito o levantamento minucioso de nomes, utilidades, vantagens e desvantagens do emprego de cada material. Cabia também a Carvalho, o estudo e classificação das possibilidades em conjunto dos materiais, por exemplo: madeira, ferros, vidros, materiais para coberturas e impermeabilização. Estes estudos resultaram em um caderno de encargos (uma espécie de catálogo) onde se escolhiam materiais adequados para cada construção da DAU (CARDOZO, 2007).

A Diretoria assinava várias revistas nacionais e importadas, entre as quais Pencil Points, Architecture D’Aujourd’hui e Architectural Form, que eram distribuídas entre os funcionários, ficando cada um encarregado de ler determinado artigo, relatá-lo e apresentar sua apreciação sobre o texto. Os temas mais debatidos foram a obra da Bauhaus, as ideias de Le Corbusier, Walter Gropius, Mies Van Der Rohe, Hames Mayer, Andrea Lurçat e todo grupo francês (MELO, 2000:115).

Ayrton Carvalho participou da construção das duas obras mais emblemáticas da DAU, que marcaram a história da arquitetura moderna brasileira: a Caixa d’Água de Olinda (1936) e o Pavilhão de Verificação de Óbitos da Faculdade de Medicina (1937). Na primeira, juntamente com seu colega de estágio e curso, Antônio Baltar, conduziu a construção. Já na segunda, foi mais além, ao buscar com Luiz Nunes, alternativas para possibilitar financeiramente sua construção.52 Os edifícios destacam-se pelo seu pioneirismo seja estrutural e funcional, como a Caixa d’Água (Figura 1), ou estético e formal, como o Pavilhão de Óbitos (Figura 2).

de edifícios de apartamentos no Rio de Janeiro, considerados por Lúcio Costa no artigo “Depoimento de um arquiteto carioca” obras percussoras da arquitetura moderna no Rio de Janeiro (XAVIER, 2003: Apêndice). 52 Segundo Geraldo Gomes, a participação de Ayrton Carvalho na execução deste edifício foi além do habitual, ele teria possibilitado sua construção deste edifício através das sobras de outras construções e quase teve que responder judicialmente por ter construído um edifício público sem verbas específicas para tal (SILVA, 1997).

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Figura 1 e 2: Caixa d’água de Olinda e Pavilhão de óbitos (respectivamente), fotos publicadas na ‘Brazil Builds’. Nos agradecimentos, Philip Godwin inclui Ayrton Carvalho, Antônio Baltar e Benício Dias, por mostrar a arquitetura moderna e colonial pernambucana (Fonte: Goodwin, 1943:89).

A experiência da DAC/DAU apropriou-se dos preceitos da arquitetura moderna, em voga no eixo internacional, que unidos ao conhecimento sobre os materiais e técnicas construtivas locais, resultaram numa arquitetura moderna, genuinamente pernambucana e brasileira. Segundo Glauco Campello (2001), a arquitetura seiscentista no Nordeste, se destaca pela conformação ao ambiente natural, aos condicionamentos locais, economia de meios e simplicidade pragmática (mesmo nas construções eruditas). O diálogo entre as construções da DAC com esta tradição colonial é evidente, nas técnicas construtivas, nos programas e na adaptação às condições locais, o que permitiu criar projetos de arrojo arquitetônico e estrutural, utilizando elementos da arquitetura local, como o combogó, para adaptação climática. Esta reinterpretação das tradições, somado caráter empirista da diretoria, de experimentar e buscar in loco novas soluções, unidas à base na Escola Livre de Engenharia, se refletiu tanto na prática de Ayrton Carvalho à frente do IPHAN, quanto na docência, pois seus alunos na disciplina ‘Arquitetura no Brasil’ foram levados a viajar e percorrer diversas cidades, construindo em campo o saber sobre a arquitetura brasileira.

A equipe da DAU se dispersou em 1937, após o falecimento precoce de Luiz Nunes. Ayrton Carvalho formou-se e ingressou no IPHAN, como Assistente Técnico de 3º classe, responsável por fiscalizar e coordenar as obras em andamento. Os contatos tecidos e os conhecimentos adquiridos na DAC/DAU foram fundamentais para sua indicação.

2. Ayrton Carvalho e o 1º Distrito Regional do IPHAN

O IPHAN foi criado em 1937, com o intuito de identificar, promover e salvaguardar o patrimônio histórico e artístico nacional. Funcionou de forma extremamente centralizada nos primeiros anos, mesmo com colaboradores em diferentes estados desde a criação, com única sede no Distrito Federal (Rio de Janeiro). Esta estrutura foi modificada em 1946, quando as instituições passaram por um processo de reorganização pós-Estado Novo. Foram então criados quatro Distritos Regionais, com sede das cidades do Recife, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, com

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a finalidade de viabilizar e disseminar as práticas da instituição nestas regiões, considerando as dimensões continentais do país. Para chefiar estes Distritos, foram nomeados quatro intelectuais que já colaboravam com o IPHAN: o engenheiro Ayrton Carvalho (1º Distrito), o escritor Godofredo Filho (2º Distrito), o arquiteto Sylvio de Vasconcellos (3º Distrito) e o engenheiro-arquiteto Luís Saia (4º Distrito).

A sede da instituição permaneceu no Rio de Janeiro, sob a direção de Rodrigo Mello Franco de Andrade e constante orientação de Lúcio Costa, chefe da Divisão de Estudos e Tombamentos (DET), como mostra o esquema seguinte:

Figura 3: Organograma da estrutura técnico-funcional do IPHAN determinada pelo Regimento Interno de 1946, (Fonte: Autora).

Assim que foi criado o IPHAN, pessoas de notório saber foram convocadas para listar monumentos representativos passíveis de tombados em seus estados, os Assistentes Técnicos respondiam pela repartição em oito diferentes regiões do país.53 Em Pernambuco, esta primeira tarefa coube ao sociólogo Gilberto Freyre, mas a necessidade de um técnico conhecedor da arquitetura tradicional fez com que, em 1939, o engenheiro Ayrton Carvalho também fosse convidado para a função, pois apesar de jovem e recém-formado, já havia trabalhado ao lado de nomes como Luiz Nunes e Joaquim Cardozo no estágio na DAC. Em pouco tempo, o engenheiro tornou-se o principal representante em Pernambuco, função que exerceu por 42 anos, independente das transformações administrativas, políticas e conceituais.

Ayrton Carvalho ingressou no IPHAN para executar os reparos necessários da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres e da Capela de Nossa Senhora da Conceição (Capela da Jaqueira). Nestas obras, o engenheiro era responsável pela contratação de mão-de-obra, elaboração de orçamentos e relatórios periódicos, além do intermédio

53 1ª. Distrito Federal e Rio de Janeiro; 2ª. Amazonas e Pará; 3ª. Maranhão, Piauí e Ceará; 4ª. Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas; 5ª. Bahia e Sergipe; 6ª. São Paulo e Mato Grosso; 7ª. Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; 8ª. Minas Gerais e Goiás (ANDRADE, 1987).

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com as autoridades locais.54 Segundo Luís Saia (1977), neste momento as práticas da instituição se pautavam em três ações fundamentais: o inventário de exemplares significativos da formação brasileira; as reparações imediatas aos monumentos ameaçados de ruína e a introdução na normalidade nacional, do instrumento do tombamento e de suas consequências.

Com a criação do 1º Distrito Regional no Recife, Ayrton Carvalho passou a contar com uma sede fixa para o IPHAN e um pequeno quadro de funcionários. Tirando alguns auxiliares administrativos e o arquiteto José Ferrão Castelo Branco, que faziam parte do quadro oficial, os demais profissionais que colaboravam com a instituição eram contratados por serviço prestado. Como nos demais Distritos, era fundamental a presença de um fotógrafo para manter a Área Central inteirada do andamento das obras e dos bens a serem tombados, no Recife, essa tarefa foi levada por Benício Watley Dias.

O quadro reduzido e a escassez de verbas não impediram que Ayrton Carvalho constituísse um amplo corpo de colaboradores, a sede do 1º Distrito, no sobrado da Rua da União, era uma espécie de centro cultural onde se reuniam todas as tardes, intelectuais renomados para debates acalorados. Neste cenário, o ‘Dr. Ayrton’ (como era conhecido) constituiu uma rede de relações bem estabelecidas com o corpo docente da Universidade do Recife, além de setores da administração Estadual e Municipal. Entre os que fizeram parte deste grupo: o engenheiro Joaquim Cardozo, o jurista Luiz Delgado, o advogado Berguedoff Elliot, o filósofo Evaldo Coutinho, o artista plástico Hélio Feijó, o historiador José Antônio Gonsalves de Mello, os intelectuais José Maria de Albuquerque Melo e José Césio Regueira Costa, os engenheiros Antônio Baltar e Edgard D’Amorim, além dos arquitetos Delfim Amorim, Acácio Gil Borsói, Gerson Loretto, Edmundo Barros, José Luiz da Mota Menezes, Geraldo Gomes, Vital Pessôa de Melo, Augusto Reynaldo, Valdomiro Alves de Souza, Marcos Domingues, Conceição Lafayete, Zildo Sena Caldas e Zenildo Caldas, entre outros.55 Todos prestavam serviços como colaboradores da instituição, recebendo honorários por isso, ou não.

Os primeiros tombamentos do 1º Distrito contemplaram principalmente exemplares da arquitetura religiosa do século XVII, Monumentos como o Conjunto Franciscano de João Pessoa, o Mosteiro de São Bento, em Olinda, a Capela da Jaqueira (Figura 4) e a Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, pelo excepcional valor artístico e, por vezes, histórico. Além das religiosas, as edificações militares também foram contempladas: o Forte Orange, em Itamaracá, o Forte do Pau Amarelo, em Olinda, o Forte das Cinco Pontas e do Brum, no Recife, remetiam valores que não deveriam ser esquecidos pela nação. Mais tarde, a arquitetura civil dos engenhos também foi alvo de tombamento, como principal registro da arquitetura rural colonial (Figura 5).

54 Documentos arquivados na Série Assuntos Administrativos, Subsérie Ayrton Carvalho. Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro. 55Informações concedidas à autora em entrevistas (Geraldo Gomes, José Luiz da Mota Menezes e Zulmira Carvalho) e levantadas nas correspondências entre o 1º Distrito e a Área Central.

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Figura 4: Capela da Jaqueira, Recife-PE, 1939; (Fonte: Arquivo Central do IPHAN, Série Obras- Capela da Jaqueira).

Figura 5: Engenho Poço Bonito, Vicência-PE, 1946; (Fonte: Arquivo Central do IPHAN, Série Obras- Engenho Poço Bonito).

Ayrton Carvalho fez manobra com as verbas mínimas que lhe foram fornecidas, muitas vezes em desacordo com a Área Central56, teve querelas com padres, que teimavam em reformar igrejas tombadas, e proprietários displicentes, que deixavam edificações em ruínas. Brigou, literalmente, com Deus e o mundo, para fazer cumprir a salvaguarda do patrimônio histórico e artístico. Tarefa esta, apropriada como ‘causa’ pelos intelectuais engajados no projeto do IPHAN. Assim como os demais técnicos, Carvalho também atuou em obras de restauro e conservação, entretanto foi na defesa de monumentos ameaçados pelas transformações urbanísticas que conseguimos identificar a contribuição mais significativa deste engenheiro-urbanista.

Assim como as principais capitais brasileiras, as áreas centrais do Recife foram alvo de reformas urbanas da primeira metade do século XX. Em busca de melhorias de estética, salubridade e circulação, sucessivos planos propunham a abertura de novas avenidas e construção de edifícios verticalizados nos bairros de Santo Antônio e São José, até então permeados de representações negativas por conta da forma urbana tradicional – ruas estreitas, tortuosas, ocupadas por sobrados e casario de porta-e-janela – vinculados ao atraso econômico e social. A verticalização nestes bairros, que também eram território de diversas edificações tombadas foi enfrentada por Ayrton Carvalho, à frente do 1º Distrito e gerou inúmeros confrontos que podem ser observados nos processos de aprovação de novas edificações na Avenida Dantas Barreto entre as décadas de 1950 e 1960.57

Em um período cujos conceitos de conservação urbana ainda eram incipientes no país, Ayrton Carvalho construiu um escopo de práticas no sentido de proteção à

56 Nas correspondências pesquisadas identificamos em vários momentos, conflitos entre a administração central do IPHAN e Ayrton Carvalho devido à relocação de verbas, muitas vezes o chefe do 1º Distrito transferia a verba destinada a determinado serviço para outro de maior urgência, sem esperar a autorização. Numa destas vezes, Rodrigo Mello Franco declarou: “O Ayrton tem, pois de deliberar se lhe convém ou não a minha chefia. De minha parte, já verifiquei definitivamente que não serve o regime estabelecido por ele” (Rodrigo Mello Franco. Carta 394, para João Malheiros [inspetor do IPHAN] 09 ago. 1950). 57 Estes processos encontram-se arquivados na 5ªSuperintendênciaRegional do IPHAN e foram analisados detalhadamente por Pereira (2009).

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vizinhança e visibilidade dos bens tombados, com o aporte mínimo da legislação que se resumia ao vago art. 18º do Decreto-lei nº. 25/1937:

Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandado destruir a obra ou retirar o objeto, impondo neste caso multa de cinquenta por cento do valor do mesmo objeto (BRASIL. Decreto-lei nº. 25/1937).

O chefe do 1º Distrito não só conseguiu conter parte da verticalização no entorno de monumentos como a Igreja do Carmo, Pátio de São Pedro e Igreja de Santo Antônio, como também se articulou com a Municipalidade, conseguindo inserir e efetivar a determinação do Decreto nº. 25 na legislação municipal. A parceria entre as instituições resultou no Plano de Gabaritos para os Bairros de Santo Antônio e São José, o primeiro instrumento municipal de salvaguarda ao patrimônio. A preocupação de Ayrton Carvalho era voltada para o monumento em si, porém considerava como parte da composição deste, a ‘arquitetura menor’ da vizinhança, o que nos permite aproximar as concepções deste engenheiro com as do arquiteto Gustavo Giovanonni:

O que nos preocupa agora é evitar que os monumentos nacionais, em face da re-urbanização planejada, fiquem amesquinhados. O levantamento das construções muito altas, nas proximidades dos monumentos, inteiramente divorciadas do espírito sadio da boa arquitetura contemporânea, conduz, inevitavelmente, a esse fim, impedindo ou diminuindo-lhes a perspectiva, total ou parcialmente, de modo a quase apagá-los na sua majestade, no meio urbano em que se encontram (Ayrton Carvalho. Of.nº. 219/52, para Rodrigo Mello Franco. Recife, 26 nov.1952).

O que se percebe ao longo da atuação de Ayrton Carvalho no 1º Distrito Regional é o dilema permanente entre as práticas do urbanismo modernista e da conservação, na cidade do Recife, inclusive entre os profissionais que compunham o quadro funcional do IPHAN. A construção de edifícios verticalizados no entorno de monumentos tombados era relativizada, a partir de ser ou não um exemplar da arquitetura moderna. O próprio Ayrton Carvalho demonstra esta posição ambígua, ao encaminhar o projeto elaborado pelo arquiteto Delfim Amorim, para substituição do casario que compõe Pátio de São Pedro por edifícios com base de dois pavimentos (Figura 7). Segundo o chefe do 1º Distrito, a proposta de Amorim, respeitava o pátio e constituía um conjunto inofensivo para a igreja, a proposta foi impugnada por Lúcio Costa que defendeu a manutenção das alturas das casas atuais e sua variedade, a fim de desestimular a iniciativa imobiliária.

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Figura 6: Estudo de Acácio Gil Borsói para a construção do Ed. Banco Mercantil, vizinho à Matriz de Santo Antônio; (Fonte: Arquivo Central do IPHAN-RJ).

Figura 7: Proposta de Delfim Amorim para o Pátio de São Pedro; (Fonte: Arquivo Central do IPHAN-RJ)

A partir da análise sobre as práticas de Ayrton Carvalho no 1º Distrito do IPHAN, percebemos que apesar da concepção inicial acerca do patrimônio histórico e artístico nacional ser bastante ligada àquela disseminada pela Área Central do IPHAN, vai sendo relativizada ao longo de sua atuação, a partir de novas experiências. Se de início, via como principal característica de um bem para tombamento, seus valores artísticos mensurados a partir do paradigma do Barroco mineiro, na década de 1950, o engenheiro já atenta, em seus inventários, para expressões da arquitetura local, como o Sítio da Cruz e o da Trindade (Figura 8) 58, tradicionais da cidade.

Figura 8: Sítio da Trindade, década de 1960; (Fonte: Acervo do Laboratório da Paisagem.)

O entendimento de Ayrton Carvalho da ‘ambiência’ como parte da composição do monumento, se faz notar em momentos como a ocasião em que o Sítio da Jaqueira (hoje um importante parque da cidade) estava para ser loteado e o engenheiro se opôs:

Solicito urgentes providências junto ao Instituto dos Comerciários no sentido de serem eliminadas ruas projetadas partes posterior e lateral da Capela da Jaqueira. Estas exigências imprescindíveis, a nosso ver tem finalidade. Esta repartição que só assim manterá aspecto do

58 Em 1953, durante os preparativos para o Tricentenário da Restauração Pernambucana, o jornalista Aníbal Fernandes sugeriu à Comissão do Tricentenário a construção de um hospital público no terreno deste Sítio. Ayrton Carvalho, que fazia parte da comissão, discordou e sugeriu a criação de um grande parque para crianças (o que foi aceito). (Ayrton Carvalho. Carta à Rodrigo Mello Franco, 23 mai. 1953).

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monumento, magnífico exemplar capela sítio. (...) Nosso parecer é que toda área ao redor da capela deve se constituir um único parque com aproveitamento de toda linda e antiga arborização existente sem ruas intercaladas (Ayrton Carvalho. Telegrama a Rodrigo Mello Franco, Recife, 08 abr. 1945).

Assim como os demais chefes de Distrito Regionais, Ayrton Carvalho teve papel fundamental na mobilização de colaboradores que ajudaram a suprir as limitações da instituição, tornando sua atuação eficaz. O contato com profissionais de outras instituições e ambientes culturais, fez com que os debates acerca da conservação dos monumentos ultrapassassem os limites do 1º Distrito. Através destas articulações, a legislação federal de salvaguarda, antes desconsiderada até mesmo pelos instrumentos municipais, passou a ser assimilada e repercutida. Esta habilidade com no trato com as instituições e em fazer funcionar os instrumentos legislativos, bem o modo de pensar a cidade, nos permite concluir que em sua atuação Ayrton Carvalho no IPHAN foi, sobretudo, um urbanista.

Conclusão

A análise sobre as práticas de Ayrton Carvalho nos revela a relação intrínseca entre a arquitetura moderna e a conservação do patrimônio histórico e artístico nacional, que se constituíram interagindo de forma direta sem contraposição. Percebemos que o saber acerca da arquitetura tradicional é construído por Carvalho, a partir de uma experiência pioneira no sentido de constituir uma arquitetura moderna brasileira. Na DAC/DAU o engenheiro foi levado a estudar a fundo os materiais e técnicas construtivas tradicionais e locais, para se apropriar destes e produzir uma arquitetura moderna em sintonia com os preceitos difundidos por Le Corbusier e pela Bauhaus, condizente com as condições e peculiaridades locais.

À frente do 1º Distrito Regional, vimos que os valores da ‘boa arquitetura’ – Colonial ou Moderna – enunciada por Lúcio Costa guiavam as práticas de Ayrton Carvalho, fosse nas restaurações, inventários, tombamentos ou intervenção no entorno de vizinhança de monumentos. Cabe destacar este último ponto, como uma de suas principais contribuições, a inserção de edifícios verticalizados na vizinhança de monumentos tombados exigiu que este desenvolvesse um tirocínio acerca dos instrumentos urbanísticos ainda pouco avançado no âmbito nacional. Enquanto chefe de Distrito – ainda que tenha realizado pesquisas, inventários e tombamentos como os demais – o papel maior de Ayrton Carvalho foi como urbanista. Graças a este engenheiro a cidade hoje pode contar com parques em sítios tradicionais como o da Jaqueira e o da Trindade e além dos pátios e casario do conjunto histórico dos bairros Santo Antônio e São José. Para além da atuação na instituição, Ayrton Carvalho constituiu uma espécie de centro cultural em torno do 1º Distrito Regional, onde alunos e intelectuais eram instigados a contribuir e discutir soluções para os impasses cotidianos, levando o conhecimento acerca das práticas da salvaguarda a se disseminar por diversos ambientes institucionais e culturais.

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Referências

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O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSERVAÇÃO SUSTENTÁVEL DO PATRIMÔNIO: O CINE BANDEIRANTE EM SABARÁ (MG)

Fabiana De Lucca Munaier & Felipe Carneiro Munaier♥

Resumo

O objetivo deste artigo é desenvolver uma discussão em torno da memória do lugar como um componente que atribui sentido ao bem cultural e, consequentemente, como um caminho para viabilizar a sua conservação enquanto ambiente construído. A memória do lugar ajuda a comunidade a definir um passado comum e a apropriar-se do bem patrimonial, o que favorece a sua conservação de forma mais duradoura. O artigo utiliza o Cine Bandeirante, inaugurado em 1959, em Sabará (MG), como estudo de caso que demonstra como um lugar que perde sua ligação com a sociedade tende a cair no esquecimento. Seu prédio, já há alguns anos sem nenhum uso, encontra-se no estágio inicial do processo de restauração. O Cine Bandeirante fez parte da vida da cidade, mas não é apenas um resquício do passado. O estudo busca mostrar que o lugar, mesmo que não cumpra mais suas funções originais, precisa dialogar com o presente.

Palavras-chave: cinema, identidade, memória, Sabará, sustentabilidade, patrimônio

Introdução

O objetivo deste texto é destacar a importância da conservação do ambiente construído, enquanto bem cultural referente à identidade de indivíduos e grupos, enquanto possuidor de uma memória essencial. Para preservar o lugar, vivenciado no passado e vivido no presente, é necessário resguardar sua memória, o que contribui para a apropriação do bem patrimonial pela sociedade e colabora com a manutenção dos seus valores culturais.

Trata-se de um texto resumido, com vistas à ampla discussão que circunda o tema e os inúmeros desafios que surgem ao trabalhar com patrimônio e sustentabilidade na atualidade. O Cine Bandeirante, antigo cinema de Sabará (MG), é usado no texto como estudo de caso que ajuda a pensar a relação entre patrimônio e memória de forma sustentável.

UFMG. [email protected][email protected]

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1. Breve estudo de caso: o Cine Bandeirante ontem e hoje

No início do século XX, o Teatro Municipal de Sabará foi adaptado e transformou-se em Cine Teatro Borba Gato, mas com o passar dos anos suas instalações chegaram ao limite de não suportar a produção cinematográfica em escala industrial que demandava arquitetura sofisticada e aparelhagens avançadas. Pode-se afirmar que o cinema, diretamente relacionado ao consumo, se desenvolveu seguindo os anseios da modernidade capitalista (Benjamin, 1975).

Na década de 1950, surgiu a ideia de construir em Sabará um cinema com equipamentos de áudio e projeções que oferecessem à população a possibilidade de assistir aos mesmos filmes em cartaz nos cinemas de Belo Horizonte. Em 1959, através da iniciativa do prefeito José Costa Sepúlveda, o moderno Cine Bandeirante foi inaugurado. O projeto do cinema foi feito pelo engenheiro Paulo Penaforte Parreiras e as obras de construção foram executadas por profissionais da construção civil em Sabará, liderados por Antônio Lourenço59. Durante muitos anos foi opção de lazer e cultura, com a projeção de filmes dos mais diversos gêneros. Tinha capacidade para aproximadamente oitocentos espectadores (Novo cinema, 1958). A nova sala proporcionou a primeira experiência cinematográfica de massa na cidade.

Eram poucas as pessoas que possuíam televisores até o início da década de 1970, consequentemente, era comum a existência de longas filas para entrar no cinema. A partir de 1978, o Cine Bandeirante entrou em decadência. A ampla difusão da televisão e a facilidade de acesso a Belo Horizonte colaboraram para a redução do público até culminar no fechamento definitivo. Posteriormente, o prédio passou a chamar-se Centro Cultural José Costa Sepúlveda e começou a atender programas como o “Férias no Cinema”, ensaios de teatro, palestras e formaturas (Conselho, 2002, p. 4-8). Mas essas atividades, que eram tentativas de atribuir uso ao local, não vingaram.

O declínio do Cine Bandeirante foi marcado por filmes do gênero pornochanchada e ocorreu de forma semelhante à decadência do Cine Candelária em Belo Horizonte. Aliás, foi da mesma forma como aconteceu em várias salas de cinema pelo Brasil. Além da predominância da exibição desse tipo de filme, Teodoro Assunção (2009, p.20) afirma que a decadência das salas é marcada pela “massificação dos hábitos televisivos e – por meio de uma novidade tecnológica decisiva – a introdução do hábito cômodo e doméstico do home video com todo o novo comércio das videolocadoras”.

Em 2002, o prédio do Cine Bandeirante recebeu o título de patrimônio histórico e cultural. Sua estrutura foi tombada e protegida em nível municipal60. Com a ampliação do campo de abrangência do chamado patrimônio “instrumentos como o tombamento (...) passam agora a expor, de uma maneira cruel, suas limitações e têm, a nosso ver, que ser revistos à luz de novos condicionantes e critérios” (Castriota, 2009, p.86). As considerações de Leonardo Castriota são relevantes na medida em que é possível observar o precário estado de conservação em que estava o Cine Bandeirante

59 A arquitetura do prédio do Cine Bandeirante foi projetada no estilo Art Déco. A ideia era seguir os modernos traços arquitetônicos da cidade de Belo Horizonte, típicos do século XX, bem como a política de modernização defendida pela elite nacional da época. 60 Conforme decreto 275/2002 e inscrição 22-T do Livro de Tombos de Sabará, fls. 05 (Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Sabará).

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às vésperas do início das obras de restauração começadas em junho de 2012. As figuras 1 e 2 ilustram os problemas de infiltração que a estrutura do prédio do cinema passou nos últimos anos.

Figura 1. Hall de entrada do Cine Bandeirante Fonte: Felipe Carneiro Munaier

Figura 2. Foto do teto acima da plateia do cinema Fonte: Felipe Carneiro Munaier

A situação em que a construção chegou mostra que qualquer proposta de intervenção precisa garantir a integridade e o uso do Cine Bandeirante, recuperando-o como “documento monumento” da cidade (Le Goff, 2003). O tombamento, por si só, é uma ferramenta importante, mas falha no contexto atual. O Cine só vai se tornar efetivamente patrimônio coletivo quando a

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comunidade lhe conferir sentido. A memória funciona como elo entre a sociedade e o bem cultural. A preservação da memória do cinema em Sabará, na sua vinculação com a história, pode contribuir para a recuperação do seu sentido cultural. A população vivenciou o lugar, logo os órgãos de preservação não podem tomar decisões sem dialogar com a sociedade que, ao apropriar-se do bem, contribui para a continuidade dos seus aspectos culturais e ambientais. As intervenções no campo do patrimônio devem levar em consideração os diversos suportes da memória: as edificações e os espaços, os documentos, as imagens e as palavras (Castriota, 2009, p.86). Envolver a comunidade e observar como o lugar foi vivenciado no passad o e como é rememorado atualmente pode ajudar os profissionais da conservação a identificar os vínculos entre os sabarenses de hoje e o cinema.

A preservação do patrimônio ambiental urbano: “é, antes, preservar o equilíbrio da paisagem, pensando sempre como inter-relacionados à infra-estrutura, o lote, a edificação, a linguagem urbana, os usos, o perfil histórico e a própria paisagem natural” (Castriota, 2009, p.89). Os usos e os desusos influenciam na conservação dos bens culturais. O patrimônio não é está tico, a cidade é um organismo vivo, em transformação, os costumes mudam, a cultura é dinâmica. As políticas de preservação devem priorizar o acesso da população ao bem cultural. Em suma, o Cine Bandeirante não cumpre mais suas funções originais, bem como já não abriga nenhuma atividade cultural há alguns anos. O lugar precisa de um uso que garanta sua integridade, preservando-lhe as linhas arquitetônicas externas e detalhes internos, assim como sua memória. O diálogo com a comunidade é fundamental para o processo de tomada de decisões sobre a conservação e os diversos valores que envolvem o bem cultural devem ser discutidos antes de definir um novo uso para o lugar.

O jornal Estado de Minas, no dia 15 de maio de 2012, noticiou que “os dias de glória da sétima arte, turbinados pela moderna tecnologia e novas gerações de atores e atrizes, vão voltar à cidade colonial, com a restauração do prédio do antigo Cine Bandeirante” (Werneck, 2012). A notícia destaca que há sete anos fechada e abandonada, a construção va i se transformar em local multimídia, com espaço reservado para sessões de cinema. Os custos do projeto estão estimados em R$1,3 milhão.

É a memória afetiva que eleva o Cine à categoria de patrimônio, depositário do passado histórico. O local, que tem seu período de uso cada vez mais distante no tempo, corre o risco de perder o seu caráter identitário, relacional e histórico, o que configuraria um brusco rompimento cultural. A população precisa ficar próxima das ações de intervenção durante toda a execução do projeto de restauração.

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2. Patrimônio Sustentável

2.1 Memória e Conservação

A partir do pressuposto de que cada lugar tem sua memória, podemos considerá-la como aliada às estratégias de valorização e conservação dos bens culturais que compõem a relação identitária entre população e cidade. O ser humano tende a valorizar e cuidar do que lhe desperta afeto ou identificação. Quando a identidade cultural fica ameaçada, o patrimônio sofre consequências. É importante preservar a memória do lugar para que o bem cultural não perca seu sentido.

O lugar é o lar das tradições e memórias. Conforme Tuan (1983, p.3 -6), tempo e lugar são componentes básicos do mundo vivido e aos lugares atribuímos valores. Muitos são definidos pela cultura, que é exclusiva do ser humano. O espaço indiferenciado se transforma em lugar depois que o dotamos de valor (Tuan, 1983, p.6). O autor defende que o lugar e o espaço são experimentados. De acordo com Casey (1987, p.186-187), a “memória do lugar” seria “a persistência estabilizadora do lugar como um contenedor de experiências que contribui tão poderosamente para a sua memorabilidade intrínseca”. A memória se vincula ao lugar, portanto, é orientada e/ou suportada pelo lugar. As pessoas têm capacidade de se conectar com o ambiente construído. Então, a “memória do lugar” se configura como a chave para se definir um passado comum. Segundo Hayden (1995, p.47), explorar a “memória social” e a “memória do lugar” é uma ideia poderosa que pode servir a preservação do ambiente construído.

Ana Carlos afirma que é relevante

[...] pensar a história particular de cada lugar se desenvolvendo, ou melhor, se realizando em função de uma cultura/tradição/língua/hábitos que lhe são próprios, construídos ao longo da história [...]. O lugar é a base da reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade habitante - identidade - lugar. [...] As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos do uso [...] (2007, p.17).

Por meio dos modos de uso o homem habita e se apropria do espaço, transformando-o em lugar. Portanto, o lugar pode ser compreendido através do conjunto de sentidos impresso pelo uso. Atualmente o Cine Bandeirante demanda que os profissionais envolvidos no projeto de restauração articulem meios da sociedade se reapropriar do bem. O período de desuso pode ter causado uma perda de identidade principalmente com relação às novas gerações que sequer vivenciaram o cinema em funcionamento. O cinema foi parte do cotidiano da cidade até que as atividades cinematográficas foram encerradas em meados da década de 1980. Recentemente, a Prefeitura, junto de parceiros da iniciativa privada, iniciou a restauração do prédio, uma vez que o mesmo não oferecia condições adequadas para abrigar qualquer tipo de atividade. O local estava correndo o risco de cair no esquecimento. Nessa situação, a relação da comunidade

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com o bem cultural fica comprometida, considerando-se o Cine Bandeirante como parte da construção identitária dos sabarenses. “Identidade coletiva (...) não seria aquilo que é igual, mas o que faz as pessoas se reconhecerem como grupo: valores comuns, ritos e ritmos compartilhados” (Carsalade, 2007, p.177). Seriam as práticas cotidianas compartilhadas por uma comunidade.

Choay (2006, p.26) completa o conceito de identidade coletiva ao afirmar que o patrimônio tem papel fundamental na preservação da identidade dos povos e dos grupos sociais. Também ressalta que as relações dos bens culturais com o tempo, a memória e o saber interferem na sua conservação. O esquecimento, o desapego e a falta de uso levam o bem ao abandono. O patrimônio possui caráter transformador que precisa ser relido e utilizado de forma consciente e sustentável. Sem, no entanto, perder o lastro da memória. Duas dimensões convivem num mesmo lugar da memória, a perenidade do passado e a dinâmica do presente, numa complementaridade que permite uma reutilização do bem patrimonial, que, longe de ser apenas um resquício do passado, é plástico o suficiente para dialogar com o presente.

O conceito de “patrimônio” está em constante ampliação. Segundo Castriota (2009, p.85), aos critérios estilísticos e históricos se juntam a preocupação com o entorno, ambiência e o significado que a comunidade confere ao bem patrimonial. O conceito de “sustentabilidade” tamb ém é amplo e está ainda em construção, mas seu escopo já é claro: as necessidades de uso dos recursos disponíveis não podem comprometer a qualidade de vida no futuro. Os bens culturais precisam ser considerados como recursos de suma importância para o futuro.

O economista David Throsby (2001) insere o conceito de sustentabilidade como um princípio não apenas para as decisões sobre a conservação do ambiente construído, mas como uma estrutura holística para interpretações interligadas entre economia, sociedade, cultura e sistemas biológicos. O autor afirma que é preciso reconhecer a importância do valor intangível do patrimônio, as ligações com a história local que um bem representa, assim como o valor da educação e o papel simbólico para a comunidade. Esses valores podem se servir para que a comunidade se aproxime das ações voltadas para a conservação dos bens locais. Os valores sociais, culturais e ambientais são fundamentais para a preservação do ambiente construído, mas não podem ser dissociados da esfera econômica (Throsby, 2001, p.4).

Pelo viés da sustentabilidade social, a antropóloga Setha Low (2001, p.47) afirma que a formação da identidade cultural está diretamente relacionada ao ambiente construído. As lembranças físicas fornecem um sentimento de identificação com o lugar, através da continuidade e conectividade que raramente temos consciência, mas que desempenham um papel importante em nosso desenvolvimento psicológico como indivíduos e grupos. Low (2001) retoma os princípios de sustentabilidade de Throsby

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(2001) e reforça que para a sustentabilidade social ser atingida em nível de indivíduos e grupos é preciso que o lugar seja preservado. Para Martins (2006) o patrimônio “é uma consequência da percepção do homem e seu valor, no contexto no qual está inserido”, e a falta de informação à população sobre valorização cidadã de patrimônio têm consequências nos sujeitos enquanto povo e memória (Martins, 2006, p.45).

Os bens culturais devem ser compreendidos como recursos essenciais para o presente e o futuro das cidades e é nessa órbita que carece ser pensada a conservação do Cine Bandeirante em Sabará. De acordo com Carneiro

[...] quem assegura que as relações entre as pessoas dessa cidade não sofram perdas em termos de qualidade, sempre que algo desaparece do convívio de todos? Se há uma reação sintomática melancólica, já se pode pensar que parte da história de um cidadão rui junto com um cinema, uma edificação, uma árvore etc. (2006, p.22).

A preocupação com o patrimônio está diretamente relacionada à qualidade de vida e, nesse processo, a memória possui papel crucial, pois tem a ver com afetividade e identidade.

2.2. Patrimônio e identidade

O patrimônio possui estreita ligação com a memória e encontra fundamento como ponto de referência para a formação da identidade coletiva. Sob um ponto de vista sociológico Castells afirma que

A construção de identidades vale-se da matéria prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço (Castells, 1999, p.23).

A dinâmica da identidade tratada por Castells sugere que “Como, e por quem, diferentes tipos de identidades são construídas, e com quais resultados, são questões que não podem ser abordadas em linhas gerais, abstratas: estão estritamente relacionadas a um contexto social” (Castells, 1999, p.26). Para Marc Augé, a superabundância e os excessos enfraquecem as referências coletivas gerando um individualismo da identidade. Assim sendo, o chamado “não-lugar” caracteriza-se por não ser identitário, histórico e relacional.

Essa necessidade de dar um sentido ao presente, senão ao passado, é o resgate da superabundância factual que corresponde a uma situação

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que poderíamos dizer de supermodernidade para dar conta de sua modalidade essencial: o excesso (Aaugé, 1994, p.32).

Por outro lado está o espaço antropológico, histórico, criador de identidade e fomentador de relações interpessoais; “[…] é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa” (Augé, 1994 p. 51). Nesse sentido, o Cine Bandeirante é um bem cultural que compõe a identidade da população sabarense. Isso ocorre tanto pelas experiências passadas quanto pela forma de rememorá-las. Em uma reflexão sobre o discurso a respeito da história e seu conceito, Walter Benjamin coloca que somente para a humanidade redimida o passado é citável em cada um dos seus momentos (Benjamin, 1994, p. 223). A determinação específica da ciência histórica, segundo ele, não é conhecer o passado, mas sim furtar a ele sentidos e ambientes que possam auxiliar o homem a lidar com problemas de seu tempo.

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. [...] Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela (Benjamin, 1994, p. 224).

A identidade se constrói a partir da tentativa de criação de blocos sociais coesos, através do reconhecimento de fatores em comum e que representam a personalidade de uma população. Nesse sentido, identidades são arquitetadas em função de interesses socioeconômicos e políticos, onde a cultura é um discurso que constrói sentidos, influencia e organiza ações e concepções dos sujeitos relacionados ao presente, sua diversidade e transformação. Segundo Le Goff (1996, p.423-424) no próprio processo de memória do homem existe uma ordenação e uma releitura dos vestígios. A leitura dos símbolos importantes de formação cultural é função da memória quando confere o sentido da identidade.

Pierre Nora (1993) reforça que a memória é carregada por grupos vivos e está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. É um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. É afetiva e mágica. A memória emerge de um grupo que ela une. É, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. Se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. Nesse viés, Carneiro (2006, p.20) completa que “a memória está diretamente ligada ao patrimônio de um povo, pois gera, a partir da cultura (...) um ponto de referência de sua identidade e as fontes de sua inspiração”. A partir desse pressuposto o autor acredita que a perda de um bem cultural se configura como fonte de sofrimento psíquico. Os elementos materiais de uma cultura servem de alicerce para o sentimento de identidade e pertencimento a um lugar.

Portanto, a intervenção no Cine Bandeirante que hoje se faz necessária, e que já teve início recentemente, precisa visar sua conservação como ambiente construído que guarda a memória do cinema na cidade. Ele se constitui como produção de sentidos

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consequentes da formação de identidade entre interlocutores e ambiente a partir da interação entre os mesmos. Esse importante detalhe não pode ser desconsiderado.

Conclusão

Para conservar um bem cultural é preciso ir além do que simplesmente tombá-lo. É importante que haja um efetivo diálogo entre os órgãos públicos e a sociedade, que deve ser envolvida no processo. Ao apropriar-se do bem cultural, através do uso e de uma relação afetiva, a sociedade pode contribuir para a continuidade dos seus aspectos culturais e ambientais. Para criar estratégias de conservação para o Cine Bandeirante é importante envolver a comunidade e pensar como o lugar foi vivenciado no passado e como é rememorado atualmente. Somente a população, através da memória, poderá garantir o sentido do patrimônio.

Os usos e os desusos influenciam na conservação dos bens culturais. Sem uso o bem tende a perder a ligação com a comunidade e a cair em esquecimento. A preservação só faz sentido se priorizar o acesso da população ao bem. Através do uso, o homem habita e se apropria do bem cultural. Se cada lugar tem sua memória, logo ela se configura como um caminho para a valorização e conservação dos bens culturais, ou seja, a memória é um dos quesitos para atribuir sentido ao patrimônio. A relação do patrimônio com a sociedade interfere na sua conservação. O Cine Bandeirante é um depositário do passado, mas o mesmo precisa dialogar com o presente, pois possui valor histórico e simbólico para a comunidade. Os valores são fundamentais para a conservação do patrimônio e auxiliam na definição de um novo uso para o bem cultural na mesma medida em que corroboram para aproximá-lo da comunidade.

Para trabalhar o patrimônio edificado é preciso fazer considerações em longo prazo, o que nos remete ao conceito de sustentabilidade. Além de valor econômico, o Cine Bandeirante possui valor histórico, arquitetônico, estético e simbólico, isto é, valor cultural. Esse precisa ser preservado como um importante recurso tanto para o presente quanto para as gerações futuras. Conservar o lugar e sua memória é preservar a identidade cultural de indivíduos e grupos.

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MEMÓRIA E ESTRUTURAÇÃO DO ESPAÇO NAS COLÔNIAS

ITALIANAS NO RIO GRANDE DO SUL. ESTUDO CRÍTICO-

COMPARATIVO ENTRE BENTO GONÇALVES/RS E AS

TERRAS DE ORIGEM

Décio Rigatti, Lívia Terezinha Salomão Piccinini♦ & Elio Trusiani♥

Resumo

O trabalho, resultado parcial de uma pesquisa em andamento entre a UFRGS e a Sapienza Universidade de Roma, aborda a questão geral da paisagem cultural através de uma metodologia de investigaçao histórica entre dois aspectos: o nível do territorio e o nível da arquitetura rural. A ocupação da serra do Estado do Rio Grande do Sul com a vinda de colonos italianos a partir de 1875 resulta numa paisagem única no Brasil. O presente trabalho se propõe a descrever a evolução histórica do território e da paisagem atual ante as novas formas de uso e a discutir, de forma crítica, os vínculos e os sinais de permanência/transformação entre a colônia italiana e as terras de origem de seus habitantes. O trabalho pretende investigar as regras das matrizes históricas dos assentamentos, sua evolução e sua relação com o território atual e as paisagens contemporâneas e identificar, a partir da análise dos layouts de uma amostra de habitações rurais no interior do município de Bento Gonçalves - RS, de que maneira os traços da história e da tradição da imigração italiana se manifestam e se articulam com a experiência arquitetônica das áreas de origem, além de permitir o exame das novas funções do território e das novas tipologias de paisagens, pondo a questão da conservação das permanências históricas como recurso para valorizar o territorio e a paisagem. Os resultados, até o momento, mostram que, no que se refere especificamente à estrutura das habitações rurais, estas possuem grande similaridade de organização, embora apresentem formas, materiais, implantação, etc. diferentes entre si e das matrizes históricas, e que estas recorrências parecem representar modos culturalmente arraigados de se estabelecerem: (i) relações internas entre os membros das famílias; (ii) externamente com os visitantes; (iii) e na organização do cotidiano das famílias e da vida comunitária.

Palavras-chaves: estrutura da paisagem de colonização italiana no RS, estrutura da habitação rural de colonização italiana no RS, memória e estrutura do espaço.

UFGRS. [email protected], UFRGS. [email protected], Sapienza Università di Roma, [email protected]

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Introdução

Este trabalho traz os primeiros resultados de uma pesquisa em andamento que trata dos aspetos de estruturação de uma parte do território do Estado do Rio Grande do Sul tendo início com o processo migratório ocorrido desde o segundo quartel do século XIX, a partir do qual colonos italianos oriundos especialmente do norte da Itália se estabelecem nas recém-criadas colônias na serra gaúcha.

A ocupação que acontece na encosta de cima da serra no Estado do Rio Grande do Sul com a vinda de colonos italianos, a partir de 1875, baseada, no nível político, nos planos oficiais de colonização e, fisicamente, nos desenhos dos engenheiros militares para as “linhas e travessões”, resulta na configuração de uma paisagem única no Brasil.

Estudos dos últimos cinquenta anos sobre a imigração italiana no RS produziram uma boa literatura especializada sobre a região que é centrada, principalmente, em abordagens sociológica, econômica, etnológica, lingüística e antropológica, além dos estudos nas áreas da fito-geografia e da geografia física, de maneira ampla. Especificamente nos campos da arquitetura e do urbanismo existem diversos estudos realizados sobre a moradia dos primeiros habitantes e, mesmo, da evolução urbana dos núcleos coloniais pioneiros e das novas cidades criadas a partir do século XIX. No entanto, ainda não existe um trabalho sistemático que vincule as modalidades de ocupação do território, as tipologias urbanas e edilícias e suas relações quando examinados com os lugares de origem dos imigrantes, particularmente das regiões do Vêneto e do Trentino Alto Ádige.

1. Objetivos

O presente trabalho se propõe a descrever a evolução histórica do território e da paisagem atual ante as novas formas de uso e as paisagens contemporâneas, e a discutir, de forma crítica, os vínculos e os sinais de permanência/transformação entre a colônia italiana e as terras de origem de seus habitantes. A pesquisa pretende reconstituir as regras das matrizes históricas dos assentamentos, sua evolução e sua relação com o território atual e as paisagens contemporâneas. Além disso, busca ainda investigar/identificar o papel que os traços da história e da tradição da imigração italiana apresentam hoje nas novas funções do território e nas novas tipologias de paisagens, de novos assentamentos, em relação a evolução urbana e regional.

Como estudo de caso, será estudado o território do município de Bento Gonçalves, e compreenderá o período entre 1875-2005. O estudo de Bento Gonçalves, como parte da Primeira Colônia, a partir da qual os imigrantes aguardavam a sua destinação final, ou seja, o seu assentamento nos lotes de terras rurais, possibilita que as questões propostas sejam avaliadas desde o inicio do processo da colonização italiana no Rio Grande do Sul.

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2. Metodologia

O trabalho está baseado em pesquisa histórica com particular interesse nas questões espaciais. Assim, serão utilizadas informações de dados primários presentes no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e em arquivos nas cidades de colonização italiana, especialmente o existente na Universidade de Caxias do Sul, que abriga documentos importantes sobre o período. Do mesmo modo, serão pesquisados dados secundários, a partir de documentação institucional e de particulares, dissertações, teses e trabalhos acadêmicos em geral, que serão utilizados como fontes de informação.

A cartografia disponível sobre projetos das colônias nas áreas urbanas permitirão recompor a parte de evolução histórica da ocupação do território, bem como plantas, fotos antigas, levantamentos in loco e outras formas de registro permitirão caracterizar as tipologias edilícias. Neste particular, as técnicas da sintaxe espacial (Hillier e Hanson, 1984) serão aplicadas para avaliar os aspectos de estrutura da organização espacial da habitação rural implantada na região de análise avaliando, portanto, questões que vão além dos aspectos formais.

Em relação à paisagem, o objetivo é o de identificar os âmbitos e os locais que constituem os elementos da estrutura fundamental do sistema paisagístico por meio do estudo dos elementos estruturais, morfológicos e perceptivos que permitam reconstituir a estrutura plurisistêmica da componente paisagística cultural. Os critérios adotados serão descritivos e interpretativos do mosaico paisagístico, especialmente da trama dos tecidos da paisagem agrária, além do residencial produtivo. Isto permite interpretar as formas, as diferenças culturais de implantação e as diferentes relações com as áreas de mata e de plantações com seus ritmos, tipos e regras compositivas que se tornam valores e recurso na definição dos sub-âmbitos da paisagem. São privilegiados os elementos fixos da paisagem: estradas, percursos, canais, cursos d’água, em relação aos modificáveis, como os limites das matas. Estes permitem individuar os diferentes âmbitos da paisagem - montanhoso, de bosques, de cultivo em encostas e nas áreas planas, etc. - referidos à geografia, ao caráter paisagístico, aos valores ambientais, perceptivos e culturais:

Trabalho semelhante, porem mais expedito será realizado nas regiões do Vêneto e Trentino Alto Ádige na Itália e, a partir destes, serão possíveis as análises e os estudos comparativos necessários para avaliar as transposições/adaptações tipo-morfológicas realizadas pelos imigrantes nos novos territórios da América.

No presente trabalho, serão apresentados particularmente os resultados relacionados com as habitações rurais, parte inicial da pesquisa, que estuda as casa implantadas originalmente pelos primeiros colonos que ocupam o território de Bento Gonçalves-RS.

3. Antecedentes históricos

No Brasil Imperial, as questões de mão-de-obra e escravidão são apontadas por vários autores como os responsáveis pela adoção da política imigratória e de colonização. Para Celso Furtado, a chave do problema econômico do país estava na mão-de-obra. Para Nelson Sodré, a imigração européia do século XIX está ligada

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intimamanete à escravidão. A extinção do tráfego escravo (Lei Euzebio de Queiroz, 1850) e os problemas com a manutenção das fazendas cafeeiras levou a economia do Império a se decidir pelo emprego da mão-de-obra livre e pela ocupação das terras pelos imigrantes europeus. Aqui, a abolição do tráfego de negros e o estabelecimento da Lei do Ventre Livre (1874) apontava para a necessidade de adotar novas formas de trabalho para explorar o solo e alternativas para resolver as demandas provenientes da agricultura.

Neste período, na Itália, a Unificação, fruto de interesses políticos-econômicos entre diferentes grupos, foi uma revolução incapaz de reorganizar a propriedade da terra de uma maneira eficaz a ponto de diminuir os conflitos. Ao lado do latifúndio e dos grandes senhores de terra, os camponeses empobrecidos viviam em pequenas propriedades que não geravam o suficiente para a sobevivência da própria família, quanto mais gerar excedentes que pudessem ser comercializados. A forma de modernização acelerada promovida pela introdução do capitalismo naquele país prejudicou camponeses e trabalhadores assalariados. Ao mesmo tempo em que as novas tecnologias (trem, telégrafo, máquinas industriais) auxiliavam na superação da economia feudal existente liberando grandes contingentes da população rural para novas cidades e indústrias, uma igualmente grande quantidade da população não conseguia ser absorvida pelo mercado de trabalho nacional, nem pelos mercados dos demais países da Europa, que haviam passado por esse processo anteriormente. A pressa em superar séculos de atraso e adaptar-se ao capitalismo levou o Estado italiano a pressionar os trabalhadores assalariados e camponeses, cobrando taxas e impostos impossíveis de serem atendidos pelos mais pobres e incapazes de gerar empregos suficientes, obrigava-os a abandonar suas familias, vender suas terras para pagar as dívidas, emigrar. Greves, protestos e manifestações populares avançavam sobre as cidades, ao mesmo tempo em que a fome (gerando a pelagra) e as doenças (cólera, malária) atacavam as populações. Em um país que na época constituia-se de trinta milhões de pessoas, havia muitos habitantes dispostos a se aventurarem a abandonar a Pátria e rumar para o exterior, mesmo para terras longínquas, em busca da sobrevivência e de melhores condições de vida.

Os acordos entre os governos brasileiros e italianos acionaram milhares de pessoas entre os dois países, propagandeando as vantagens de imigrar para o Brasil e organizando e orientando desde a navegação e as condições de trabalho até as formas de propriedade da terra. É estimado que chegaram ao Rio Grande do Sul oitenta e quatro mil italianos e que no total, chegou um milhão de italianos no Brasil entre 1875 e 1913, provenientes de diversas regiões e cidades italianas, mas a maior parte provenientes do norte da Itália, tais como Beluno, Treviso, Bergamo, Trento, Calabria, Modena, Milao, Padova, Genova, Napolis, Firenze e outros. Os custos de transporte da Europa ao Brasil e dos portos de chegada até a área do assentamento, ficavam a cargo do governo brasileiro e o cálculo das dividas individuais com as despesas de imigração era calculada em 30% sobre o valor dos lotes. O período de tempo entre a saída da Itália e a chegada ao assentamento final, no Brasil, não era muito longo (ao redor de um mes), embora desagradável e penoso, nos navios com falta de espaço e higiene, alimentação inadequada e doeças que atormentavam as crianças e as mulheres, pois a maioria dos imigrantes vinha acompanhado da mulher e de filhos, em grupos de duas a dez famílias.

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Em 18 de setembro de 1850, D. Pedro II assinou a Lei n. 601, a “Lei das Terras” que passou a regular a colonização e a imigração para o Brasil. A lei dispõe com precisão sobre os usos das terras devolutas do Império, decidindo como legitimar as sesmarias já concedidas e orientando sobre a venda de terras. Desde o início do século XIX vinha-se desenvolvendo um pensamento pró-imigração no Brasil. No entanto, se por um lado a Coroa Imperial Portuguesa no Brasil representava interesses comerciais, por outro lado, as classes proprietárias de terras, esforçavam se para garantir a delimitação das terras para imigração e colonização que lhes fossem convenientes. No Rio Grande do Sul, o pensamento pró-imigração desejava não apenas resolver o problema de escassez de mão-de-obra, mas significava a opção por substituir a escravatura e complementar a monocultura ganadeira com novas práticas: a colonização e o povoamento da região norte do estado, o trabalho livre, a pequena propriedade, a gricultura.

Autores ressaltam que o processo de imigração e de colonização no Brasil, deve ser entendido sob a marca da “Lei das Terras” (1850), que institucionalizou, a nível jurídico-político, a propriedade privada da terra no país. Assim, a política de colonização foi regida pela Lei Provincial n. 304 datada de 30 de novembro de 1854, que garantiu a imigração subordinada aos interesses dos grandes proprietários de terra (SANTOS, 1978). Paralelamente, e de certa forma contraditoriamente, a opção pela imigração apoiava-se em um conjunto de motivos inovadores, significando um progresso ante a escravidão e a monocultura e criticando as condições da sociedade escravocrata das charqueadas, buscava o acesso ao trabalho livre de imigrantes europeus, proprietários e brancos (SANTOS, 1978).

A Lei autorizava a compra de terras, pelo governo, com base nos seguintes princípios: (a) divisão de lotes de 48 hectares, com reservas de áreas para as servidões públicas (mas a maioria dos lotes destinados aos imigrantes italianos não ultrapassava os 30 hectares); (b) venda de lotes em pagamentos por até cinco anos, com garantia dos mesmos como hipoteca; (c) auxílio aos imigrantes (para a compra de alimentos, ferramentas, sementes, etc.) reembolsáveis dentro de cinco anos, com dois anos de carência; (d) proibição dos colonos de possuirem escravos seus.

Em maio de 1854, o governo brasileiro regulamenta disposições sobre os marcos, as demarcações das léguas, dos travessões, linhas e lotes. Ficam determinados os preços dos lotes, o auxílio financeiro aos imigrantes até a colheita das primieras safras, as zonas urbanas, as reservas florestais, os locais das fortificações e os portos (GIRON, 1977).

No estado do Rio Grande do Sul, o Decreto n. 1984 de 06 de outubro de 1857 criou a Repartição Especial de Terras Públicas na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, que autorizava a venda das terras finalmente escolhidas para a localização dos colonos. A área escolhida foi a região da Encosta Superior do Nordeste, área de difícil acesso, pedregosa e pouco fértil, com topografia muito acidentada, rios de baixa navegabilidade e grandes distâncias dos portos. Essa localização garantiu, no entanto, o espaço para a continuidade da grande propriedade latifundiária do sul do estado. O governo oferecia a possibilidade de os colonos trabalharem durante 15 dias, no mes, na abertura de estradas na região e o pagamento seria descontado do custo dos lotes. Após o pagamento de um terço do lote, o colono recebia um título provisório do

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mesmo, e quando o valor integral da divida fosse quitado e, comprovado que o lote era cultivado e ocupado, o título definitivo lhe era conferido. O processo e os procedimentos em relação à terra, tais como demarcação, divisão, medição, distribuição dos lotes e o assentamento dos moradores das colonias eram desenvolvidos por engenheiros, agrimensores, desenhistas e topógrafos pertencentes à Inspetoria Especial de Terras e Colonização.

4. A casa rural implantada no interior de Bento Gonçalves

4.1 O Edifício

Por mais simples que seja o programa de uma moradia, ela apresenta peculiaridades que permitem compreendê-la muito além do que nos transmite pela sua aparência, pelos materiais utilizados, pela sua escala, proporções, relações entre cheios e vazios, enfim, pelos seus atributos físicos e imediatamente reconhecíveis. Neste particular, e mantidas as exceções, cada moradia tende a se constituir num objeto único, seja na busca da marca e das particularidades de quem nela habita, seja como resultado dos conceitos e ideais que justificaram a sua concepção e projeto, entre tantas opções possíveis.

Isto é tanto verificado numa arquitetura que podemos conceituar como erudita, no sentido de que foi matéria de um processo de desenho por um especialista que, via de regra, não é o próprio morador, quanto na arquitetura dita vernacular, aquela que é produzida muito mais por processos de reprodução incutidos no tempo e no espaço pela cultura.

Mas a acepção da casa, tal com exposta acima, expõe um problema metodológico para a sua análise, uma vez que limita a abordagem essencialmente às questões de forma, sendo que seu conteúdo enquanto espaço de vivência, fica subentendido como uma dimensão quase que independente da forma, como se os processos de uso não tivessem no arranjo espacial, um atributo essencial para a sua viabilização ou para sua própria constituição.

Toda casa, assim como todo o edifício, distingue-se do espaço público dado que, enquanto o último é constituído por um contínuo, o edifício constitui-se numa construção de limites a esse espaço contínuo e, portanto, a experiência possível nesses dois domínios é muito diversa. O edifício, enquanto interrupção do contínuo espacial que caracteriza o domínio público, propõe uma distinção fundamental entre um exterior e um interior. Enquanto que o exterior é conceitualmente o espaço do livre uso, através do qual de qualquer lugar se pode ir a qualquer outro lugar, o interior constitui o domínio do controle das relações sociais, uma vez que o limite espacial imposto pelo edifício estabelece limites relativamente claros quanto às relações entre o morador, aquele que controla esse espaço delimitado, e o estranho, ou visitante que pode, na medida em que lhe é permitido, penetrar e se movimentar nesse interior de acordo com cláusulas prévias e socialmente acordadas.

O edifício estabelece, portanto, o potencial de relações entre os moradores e visitantes, utilizando-se de estratégias de arranjo espacial, através das quais são definidas fisicamente as possibilidades, mesmo que não determinísticas, das relações sociais no espaço.

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A importância desta distinção é fundamental para a compreensão das modalidades socialmente construídas do uso do espaço e permite que a produção e a reprodução das relações sociais utilizem o espaço como uma de suas instâncias, responsável pela geração das possibilidades de interfaces de estranhos entre si – no domínio público – e pelas interfaces entre moradores entre si e com estranhos, no domínio privado delimitado pelo edifício.

Como dizem Hillier, B. e Hanson, J. (1984:145):

“In moving from outside to inside, we move from the arena of encounter probalities to a domain of social knowledge, in the sense that what is realised in every interior is already a certain mode of organizing experience, and a certain way of representing in space the idiosyncrasies of cultural identity.”

Assim, um dos conceitos-chave é o de ordem espacial, que é como é possível definir a natureza das relações entre categorias sociais. Ordenar o espaço significa

“...at least some domain of unitary control, that ‘unitariness’ being expressed by two properties: a continuous outer boundary, such that all parts of the external world are subject to some form of control; and continuous internal permeability, such that every part of the building is accessible to every other part without going outside the boundary.” (Hillier, B. e Hanson, J. (1984:147)

4.2 O instrumental da Sintaxe Espacial

Uma vez conceituado o papel do edifício como interface de diferentes categorias sociais, fica evidente que qualquer método de análise a ser utilizado precisa resolver uma questão fundamental, ou seja, deve possibilitar a identificação do conteúdo espacial presente na sociedade e, ao mesmo tempo permitir que o conteúdo social impresso no espaço possa ser identificado e descrito de alguma maneira.

Para tanto, serão utilizados os procedimentos de análise da sintaxe espacial, sistematizados em 1984 por Hillier e Hanson, através da publicação The social logic of space (Cambridge University Press) e debatidos em congressos internacionais específicos, os International Space Syntax Symposium, encontro bi-anual que em 2012 fechou sua oitava edição.

A sintaxe espacial constitui-se num procedimento útil na medida em que permite que os padrões espaciais utilizados em determinado território, tanto na escala urbana quanto na escala do edifício, sejam avaliados em seus aspectos estruturais ultrapassando, portanto, as questões de descrição tipo-morfológica, agregando os aspectos de configuração e uso do espaço permitindo, deste modo, descrever as diversas morfologias e, ao mesmo tempo, suas relações com o uso social do espaço.

Como esta teoria está já consolidada por uma ampla produção acadêmica e de uso prático, os aspectos mais conceituais serão remetidos à literatura existente ao passo que serão retidos apenas aqueles aspectos que interessam mais de perto as questões a serem discutidas na presente pesquisa, tanto do ponto de vista dos métodos de representação do espaço, quanto de sua interpretação.

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As formas de representação adotadas permitem que sejam feitas mensurações das propriedades espaciais presentes em determinadas morfologias. Deste modo, é possível comparar edificações distintas a partir de seus elementos estruturais e relacionais o que, de outro modo, seria limitado aos aspectos formais e, portanto, de difícil comparação.

A representação básica das edificações é feita pela construção de um ‘mapa justificado’, no qual cada compartimento é representado por um círculo e cada relação de permeabilidade existente entre quaisquer compartimentos é representada por uma linha. Deste modo, abstraem-se da edificação os aspectos de forma e materiais e são retidas as relações espaciais. Este mapa tanto reproduz as relações espaciais existentes como também permite a quantificação das propriedades espaciais.

O exemplo simples abaixo é extraído do The social logic of space (p. 148) e permite ilustrar o argumento, sendo que à esquerda é representada a planta-baixa da edificação, com seus compartimentos e, à direita, o gráfico correspondente:

A

B

C

a

a

c

a

b

a

a

a

c

a

b

a

a

a

c

a

b

a

a

a

c

a

b

a

a

a

c

a

b

a

a

a c

a

b

a

95

Os compartimentos ‘a’ e ‘b’ estão, de alguma forma, relacionados com o espaço exterior – ‘c’ – e o papel relativo de cada um dos compartimentos depende da sua posição relativa, entre si e com o espaço externo. Assim, em A, ‘a’ e ‘b’ são simétricos a ‘c’, com todos os espaços situados ao longo de um único anel. Em B, o exterior se relaciona com ambos os espaços internos, mas estes não se relacionam entre si, isto é, para ir de ‘a’ para ‘b’ é necessário utilizar o espaço externo. No caso de C, o espaço ‘b’ só pode ser acessado do exterior mediante a passagem pelo espaço ‘a’ que, portanto, assume um papel de controle do que ocorre entre ‘c’ e ‘b’, possuindo uma estrutura em árvore. Essas diferentes configurações representam modos distintos de os espaços controlarem as diferentes morfologias e, portanto, enfatizam propriedades relacionais de controle das categorias sociais envolvidas.

O espaço externo, representado por um círculo cruzado nas situações representadas, é a raiz dos gráficos. Isto se deve a uma condição essencial para a compreensão do funcionamento das edificações, ou seja, de que forma um edifício pode ser entendido do ponto de vista do espaço externo. A raiz do gráfico, no entanto, pode ser qualquer um dos espaços do conjunto considerado, mudando-se apenas o ponto de vista de como o sistema em análise é visto a partir dele.

Ao analisar diferentes edificações através destes procedimentos, é possível a identificação de famílias de estruturas – os genótipos – e esses genótipos é que permitirão examinar o objetivo fundamental da pesquisa que se centra na identificação de que modo os imigrantes italianos que se radicam na região de Bento Gonçalves reproduzem essas estruturas, muito além do que reproduzem enquanto forma, materiais ou técnicas construtivas. São os genótipos os que permitem estabelecer os vínculos essenciais entre morfologia e uso social do espaço.

“...a genotype in buildings (gamma, no original) can be defined in terms of associations between labels of spaces and differentiations in how those spaces relate to the complex as a whole... (...) genotypes will be the result of relations of inhabitants and inhabitants with visitors” (Hiller, B.; Hanson, J., 1984:154).

E são exatamente as interfaces entre os moradores e visitantes os geradores sociais fundamentais dos edifícios (Hanson, J., 1998:22).

4.3 As medidas sintáticas

Nesta pesquisa, serão utilizadas apenas algumas das medidas sintáticas, entre tantas possíveis, consideradas fundamentais para a descrição das propriedades estruturais de um layout.

A medida mais importante é a integração, ou seja, a medida que avalia o papel relativo de cada um dos compartimentos de um edifício, em relação a todos os outros do conjunto. Esta medida permite avaliar em que medida os espaços componentes contribuem ou não para aproximar todos os espaços entre si (daí o termo integração espacial) e é função da profundidade de cada espaço em relação a todos os demais. Profundidade, aqui, é entendida como o número de compartimentos é necessário percorrer para, de qualquer espaço alcançar qualquer outro na composição.

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A medida de integração é dada pela fórmula: , onde RA é a medida

de integração, Md é a profundidade média do sistema considerado e n é o número de espaços que compõem o sistema. Com a finalidade de permitir a comparação entre sistemas de tamanhos diferentes, utiliza-se a medida de integração normalizada:

onde RRa é a integração normalizada, RA a medida de integração descrita

anteriormente e k é um coeficiente relativo ao número de espaços (p. 112 de The social logic of space). Para que o resultado tenha um significado direto (maior valor=maior integração), o que facilita enormemente as análises, é utilizada a recíproca de RRA, ou seja, 1/RRA.

4.4 Os ‘rótulos’, ou os usos dados aos compartimentos

Parte importante da análise é a avaliação dos rótulos, ou seja, a identificação do que acontece em cada um dos compartimentos de um edifício. Isto permite comparar a posição de cada compartimento no sistema – seu nível de integração – com o que acontece nele. Deste modo, as regularidades ou diferenças constantes num grupo de edifícios é que vão definir as famílias de estrutura ou os genótipos.

Como diz Hanson:

“Integration has emerged in empirical studies as one of the fundamental ways in which houses convey culture through their configurations. (...) we began to find that in cases where we were able to work with a statistically reliable sample of real houses from the traditional and vernacular record, different functions or activities were systematically assigned to spaces which integrated the dwellings to differing degrees. Function thus acquired a spatial expression which could also be assigned a numerical value. Where these numerical differences were in a consistent order across a sample of plans from a region, society or ethnic grouping, then we could say that a cultural pattern existed, one which could be detected in the configuration itself rather than in the way in which it was interpreted by minds. We called this particular type of numerical consistency in spatial patterning a house ‘genotype’ ”(Hanson, J., 1998:32).

São exatamente esses padrões culturais que interessam resgatar nesta pesquisa, a partir de uma amostra de habitações rurais do interior de Bento Gonçalves.

5. A amostra

O ponto de partida para a definição da amostra das habitações a serem analisadas nesta pesquisa é o Inventário do Patrimônio Histórico Edificado de Bento Gonçalves realizado em 1996, compreendendo todo o território do município. Dos 491 bens inventariados como de interesse de preservação, foram selecionados apenas as residências localizadas na área rural do município, já que este foi o principal destino dos imigrantes recém-chegados da Itália, eles mesmos oriundos basicamente da área rural de diversas regiões do norte, especialmente do Vêneto pré-alpino, origem de mais do que 54% dos imigrantes.

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Tendo em vista os objetivos da pesquisa, procedeu-se levantamentos in loco, procurando agregar informações não constantes das fichas de levantamento de 1996, como a paisagem de implantação das residências, a reconstituição das plantas-baixas, com a destinação de uso de cada compartimento. Das 203 residências selecionadas em todo o território do município, foram feitos levantamentos prioritários naquelas localidades que apresentavam uma maior concentração de edificações, que foram as localidades de São Pedro, Linha Paulina, Linha Eulália e Linha Leopoldina.

Na ocasião dos levantamentos optou-se por incluir na observação eventuais residências não listadas, mas que apresentavam interesse para a pesquisa e, também, nos casos em que a edificação tenha sido tão modificada a ponto de perder suas características e impedir a reconstituição da planta, estas foram descartadas. Alguns bens listados que foram objeto de reformas recentes, mas que ainda dispunham de documentação com registros das situações originais foram mantidas, sendo utilizado o material de arquivo, normalmente dos escritórios de arquitetura responsáveis pelas reformas. As casas ou residências são denominadas pelo nome de família, mantendo-se sua identificação como foi feito pelo levantamento dos bens de interesse para preservação de 1996.

A listagem final dos bens, com plantas-baixas e paisagem de entorno levantadas, com sua localização, consta da tabela abaixo.

Tabela 1 : Relação das residências rurais de Bento Gonçalves levantadas

NOME LOCAL OBSERVAÇÕES

Antiga Casa Moret Linha Paulina

Antiga Casa Rossatto Linha Eulalia

Casa Irmãos Bianchi Estrada Geral de São Pedro

Casa das Massas Estrada Geral de São Pedro Originalmente residência, não consta do inventário de 1996

Casa Destro Linha Eulalia

Casa e Cantina Moret Linha Paulina

Casa e Cozinha Toniollo Linha Eulalia Alta

Casa Gabardo Linha Eulalia Baixa

Casa Jatir Toniollo Linha Eulalia Alta

Casa Merlin São Pedro

Casa Rossato Linha Eulália

Casa Rossato Eulália Alta

Casa Simadon Linha Paulina – Vale Aurora

Casa Somenzzi Linha Paulina Baixa

Casa Strapazzon Estrada Geral de São Pedro

Residência Arsego São Pedro

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Residência Comiotto Estrada Geral de São Pedro

Residência Zachet São Pedro

Fonte: levantamentos dos autores

5.1 A Casa Rural do Imigrante italiano no interior de Bento Gonçalves

É importante identificar preliminarmente os papéis e o funcionamento da casa rural do imigrante italiano, pois isto permite reconhecer partes importantes e constitutivas da própria organização espacial, tanto da casa como do território circundante.

A casa rural no período inicial da colonização da serra gaúcha não constitui apenas o núcleo principal do abrigo da família, mas é parte de uma organização que só pode ser compreendida em sua complexidade, a partir tanto dos modos de enfrentamento dos problemas inicialmente encontrados nos processos de formação da rede espacial e social da imigração italiana, particularmente na área rural de Bento Gonçalves, um dos primeiros destinos dos imigrantes e objeto de nosso estudo, quanto das particularidades provenientes das suas origens e as adaptações necessárias ao novo território.

Assim, a residência normalmente não é a única transformação territorial efetuada, mas é o centro de um número de atividades complexas que implicam em outras edificações complementares, além da transformação da paisagem propriamente dita.

A residência, além de local de abrigo e da reprodução da força de trabalho, no cotidiano da atividade rural possui também papel importante como elemento fundamental para a sobrevivência do núcleo familiar, principalmente nos primeiros e mais difíceis anos. Deste modo, a casa cumpre o papel de abrigo, o papel de representação, especialmente nas relações com os outros e, num nível mais pragmático e funcional, como local que permite assegurar a manutenção independente da família ao longo do ano, o qual é marcado por temporalidades bem delineadas de trabalho com a terra e com os animais, de plantio, de cuidados, de colheitas, de armazenagem, sem os quais, a própria sobrevivência ficaria em risco. A casa é parte integrante de todo este processo e a organização espacial reflete todos estes aspectos, simultaneamente, independente do seu tamanho ou do tamanho do núcleo familiar a que pertence. Neste particular, o tamanho do núcleo familiar sempre foi de importância vital para o sustento e o progresso da família, especialmente porque significava que, quanto mais braços, mais mão de obra e, portanto, mais trabalho poderia ser investido na terra, num período em que inexistia mão de obra assalariada, mas cada núcleo familiar era o único responsável pelo trabalho e sustento, com algumas poucas exceções, especialmente de parcelas de colheitas que poderiam agregar, por exemplo, vizinhos em sistema de troca de trabalhos.

Numa situação típica, uma casa rural de imigrante italiano na serra gaúcha pode ser compartimentada para fins analíticos por diversos setores.

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Uma parte fundamental é o setor de serviços, composto normalmente por uma sala de refeições, uma cozinha e uma pequena área de lavagem de louças e de preparo de comidas. A sala de refeições é intensamente utilizada ao longo de todo o dia pelos membros da família que são responsáveis pela manutenção da casa, incluindo a limpeza, arrumação dos quartos, lavagem de roupa, consertos de roupas, preparo das refeições, preparo de outros alimentos como o pão, cuidados e alimentação dos animais domésticos, que pode incluir a ordenha das vacas, a coleta de pastagem para a sua alimentação, além de obtenção e fornecimento de alimentação para as aves, fontes de carne e ovos, os porcos, importante fonte de proteína, além de matéria prima para os embutidos que, por suas características, permite a estocagem por longos períodos de tempo, do mesmo modo que o queijo.

A cozinha é normalmente composta por um fogão a lenha (fuocolare, na fase inicial de ocupação da colônia) e, nos invernos, serve como área de estar de toda a família, principalmente à noite, onde permanece ao longo de grandes bancos ou cadeiras, usufruindo tanto do calor quanto da iluminação do fogo, sendo importante espaço de trocas sociais e de discussão da organização da família e do trabalho. No verão, a parte externa da casa é mais utilizada.

A parte correspondente à pia é utilizada como área de preparo de refeições e para a lavagem da louça, tendo um caráter mais de despejo e de produção de dejetos.

O acesso a este setor da casa normalmente se dá por meio de porta independente, diretamente voltada para o espaço exterior. Portanto, seu acesso é feito sem a necessidade de se ingressar em outros setores da casa, importante modo de manter certas partes da casa fora do contato com outras, mais limpas e com funções mais específicas, como veremos. Outra solução espacial também comum para este setor da casa é, além de manter acesso independente para o espaço exterior, possuir um volume também separado e, muitas vezes, independente do restante da casa, conectado ao restante da edificação por um alpendre coberto. Esta separação, principalmente quando toda a casa é construída em madeira, ou quando a parte de serviço é feita em madeira e o restante da edificação é realizado em alvenaria de tijolos ou de pedra tem o papel de servir como elemento separador para fins de segurança, já que a área da cozinha é mais sujeita a acidentes com fogo. No caso em que toda a residência é construída em alvenaria, o volume da cozinha continua como um conjunto de espaços independentes, porém justaposto ao volume restante da casa.

O programa da parte íntima da casa é bastante simples, usualmente composta por uma sala de estar, normalmente pouco utilizada pela família, tendo uma função mais relevante na recepção de estranhos ou de visitas mais formais. As visitas mais informais, como os vizinhos e parentes, costuma ter como espaço de vivência a parte de serviço da casa. O mobiliário tende a ser mais elaborado, embora com pouca utilização pela família. Normalmente a sala serve como elemento de ligação direta com os dormitórios, separados por sexo e faixa etária, sendo que os filhos menores tendem a ficar juntos ou mais próximos aos pais. Esta parte da casa também costuma ter acesso independente ao espaço exterior sendo que, nos casos em que a parte de serviço é justaposta com a íntima, sempre existe uma conexão interna de relação entre estas duas partes da casa. No caso de volumes separados entre a parte de serviço e a íntima, o alpendre cumpre a função de servir como elemento de ligação e de relação com o

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espaço exterior. Apesar do pouco uso cotidiano da sala, esta se constitui num espaço importante para a representação da família, principalmente perante os estranhos e é fundamental para determinadas ocasiões da vida da família, como lugar de recepção para festas como casamentos, ou para realizar parte dos serviços fúnebres de membros da família, já que serve como local do velório. Deste modo, a sala possui uma relevância fundamental para a realização de socialidades que implicam nas relações da família, principalmente com estranhos.

Como parte importante da casa rural, o porão é elemento constante em todas as residências. Normalmente é construído em pedra e apresenta poucas aberturas e acessos, os quais são independentes do restante da casa. Os materiais e o controle das aberturas permite que a temperatura seja mantida baixa e praticamente constante, importante para a conservação de alimentos produzidos, como queijos e embutidos, assim como para a produção e armazenagem de vinhos, servindo também como área de estocagem da produção de outros alimentos mais frágeis como batatas e sementes. Deste modo, o porão assume um papel fundamental para a garantia da subsistência da família, como local de armazenagem de alimentos que requerem baixas temperaturas, como uma espécie de geladeira natural, obtida a partir do modo de inserção no terreno – frequentemente com partes em contato direto com a terra - e do uso de materiais e técnicas construtivas adequadas.

Com papel semelhante, o sótão das casas sempre possui um papel utilitário para o funcionamento do conjunto. Além de normalmente abrigar parte dos dormitórios da casa, o sótão, como área submetida a temperaturas mais elevadas e com baixa humidade, serve como área para a conservação de grãos – os chamados granaros - fundamentais para que, ao longo do ano, possam ser transformados em farinhas para o pão e para a polenta, alimentos essenciais para o sustento da família.

Além da residência e dos seus compartimentos, tantos voltados às atividades cotidianas como as excepcionais, outras edificações e espaços fazem parte do conjunto do que se denomina de casa rural e também representam papéis fundamentais para a sobrevivência da família, tanto na produção de alimentos quanto no abrigo de animais de trabalho e dos implementos necessários às tarefas do dia a dia. O paiol será a edificação onde é feita a guarda de implementos, como ferramentas, maquinários diversos e, muitas vezes, é usado para a armazenagem de parte da produção agrícola. Já a estrebaria será a área de cuidados com os animais domésticos, principalmente para os bois utilizados para a tração do arado e carretas, as vacas que são ali abrigadas, alimentadas e ordenhadas e também para os cavalos, que são utilizados prioritariamente como meios de transporte. A localização do paiol e, principalmente, da estrebaria, em função da necessidade de cuidados especiais de limpeza e de higiene, é cuidada, mantida certa distância da residência.

A criação de porcos e de aves se dava normalmente em áreas específicas e separadas, mas nunca muito distante da residência, tanto por questões de controle como de facilidade para os cuidados e alimentação, que são constantes.

Já a horta e o pomar, estes se localizam próximos à residência, por questões de controle e de facilidade no uso e manutenção. A horta é sempre cercada, para impedir o acesso de animais. Produtos de presença constante são os temperos para as comidas e os chás e outras ervas utilizadas para o tratamento de doenças mais comuns. Durante o

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ano, produtos sazonais são cultivados para a variação de temperos, alimentos e produtos para conservas, como o tomate, a vagem, o pepino, a abóbora, por exemplo. O pomar normalmente não existe como uma área separada e organizada. As árvores frutíferas ficam mais dispersas, próximas da residência. As árvores frutíferas que requerem mais cuidados e tratamentos usualmente são dispostas ao longo dos perímetros dos parreirais e, quando do tratamento destas, as árvores frutíferas como o pessegueiro e a figueira também são tratadas com o mesmo sulfato de cobre utilizado nos parreirais.

Deste modo, a casa rural é o núcleo de produção e de reprodução da família mas também assume um papel fundamental para as condições de sobrevivência, comportando funções de produção e de armazenagem de alimentos que, produzidos ao longo do ano, garantem a alimentação do grupo familiar e dos animais criados. A casa é parte de um conjunto organizado de transformação do território, que implica em espaços edificados e outros não, mas sempre trabalhados. É nesta perspectiva de multiplicidade de funções e de espaços transformados que se pode, então trabalhar tanto as questões de organização da residência propriamente dita e do território da colônia como um todo.

6. Análise preliminar dos resultados

Das dezoito casas pesquisadas até o presente momento, a residência com o menor número de espaços é a Antiga Casa Moret, com seis compartimentos, datada de 1897 e construída em pedra. É uma pequena casa, que logo foi substituída por outra maior, nas suas proximidades, assim que a família cresceu. A residência com o maior número de compartimentos é a Casa e Cozinha Toniollo, com 20 compartimentos. As demais residências possuem um número de compartimentos variável, sendo que praticamente em metade da amostra o número de compartimentos é de nove ou dez, com o restante da amostra ficando acima deste número – oito casas – e apenas duas com um número de compartimentos menor do que nove (tabela 2).

Tabela número 2 – As residências da amostra por número de compartimentos61

Ca

sa

Número de Compartimentos

de 6 a 8 de 9 a 10 de 11 a 15 de 16 a 20

Antiga Casa Moret

Casa Irmãos Bianchi Casa Arsego Residência Comiotto

Residência Zachet Casa Strapazzon Casa e Cozinha Toniollo

Casa Merlim Casa Gabardo Casa Destro

Casa das Massas Casa e Cantina Moret

Casa Simadon Casa Rossato – Eulália Alta

Casa Rossato – L. Eulália Casa Jatir Toniollo

Casa Somenzzi

61 Na contagem do número de compartimentos, em todas as residências o exterior é contado como um dos seus compartimentos.

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Antiga Casa Rossato

Fonte: levantamentos dos autores.

O que se observa é que o número de compartimentos tem uma maior variação dependendo do número de dormitórios que a casa apresenta, o que tende a refletir o número de pessoas que compõe a unidade familiar. São nove as residências com um número de dormitórios entre dois (o menor número encontrado na amostra) e quatro, dez possuem entre cinco e seis dormitórios, sendo que a Casa e Cozinha Toniollo apresenta oito dormitórios e a Residência Comioto, apresenta o maior número de dormitórios da amostra, com nove (tabela 3).

Tabela número 3 – As residências da amostra segundo o número de dormitórios

Ca

sa

Número de dormitórios

de 2 a 4 de 5 a 7 8 e mais

Residência Zachet Casa Irmãos Bianchi Residência Comioto

Casa Merlim Casa Arsego Casa e Cozinha Toniollo

Casa Simadon Casa das Massas

Antiga Casa Moret Casa Strapazzon

Casa e Cantina Moret Casa Gabardo

Antiga Casa Rossato Casa Rossato – L. Eulália

Casa Somenzzi

Casa Rossato – Eulália Alta

Casa Destro

Casa Jatir Toniollo

Fonte: levantamentos dos autores

Outro aspecto que pode afetar o número de compartimentos é o nível de complexidade apresentado pela residência, já que às vezes a função de habitação é compartilhada por alguma outra atividade econômica particular, que produz, além de uma ampliação do número de compartimentos, uma estrutura espacial específica, já que a ênfase dada nas relações internas e externas das casas varia, dependendo da importância desta atividade na vida cotidiana e das suas relações com os estranhos ou os usuários desta atividade. Da amostra considerada, a Casa Jatir Toniollo apresenta também a função de comércio, com loja e depósitos compondo a mesma edificação com a residência. A Casa Destro, por sua vez, apresenta atividades de ferraria e carpintaria como negócios articulados à residência propriamente dita. No restante dos casos, todos os compartimentos são os comumente encontrados em todas as habitações.

103

A parte de serviço é comum a todas as residências, apenas apresentando variações em termos de a cozinha e o comedor, ou sala da jantar, constituírem um compartimento único – em oito das vinte e uma residências levantadas – ou a cozinha constituir compartimento independente do comedor. Em apenas três residências encontramos um compartimento específico para a lavagem de louças e preparo de alimentos, compartimento este ligado diretamente à cozinha e normalmente associado a uma área de despejo, seja de água servida, seja de restos de alimentos. Esta parte da casa se apresenta como um corpo edificado diferente do restante, ou seja, com o comedor e cozinha, formando ou não um compartimento único e a área de lavagem e preparo de alimentos, em dez residências, muitas vezes com um único pavimento, mesmo quando o restante da casa apresenta outro pavimento na parte social e íntima. Isto significa que, nesses casos, não existe sótão sobre a cozinha. Nas demais casas, o volume é um só, abrigando tanto a parte de serviço quanto a social e íntima.

Tabela número 4 – Residências que apresentam a parte de serviço com volume diferente do restante

ORDEM CASA

1 Casa e Cantina Moret

2 Casa e Cozinha Toniolo

3 Casa Simadon

4 Casa Gabardo

5 Casa das Massas

6 Casa Strapazzon

7 Residência Comioto

8 Residência Zachet

Fonte: levantamentos dos autores

Embora se constituindo numa tipologia usual entre as casas rurais da região italiana gaúcha, a amostra apresentou apenas duas residências – a atual Casa das Massas e a Casa Strapazzon – com o acesso à residência feito a partir de uma passagem coberta, que separa a parte de serviço do restante da casa. Em sete residências o acesso à residência a partir do exterior é feito a partir de um alpendre, que funciona como espaço de transição entre a casa e o exterior. Nas doze casas restantes, o acesso ao interior das residências se dá diretamente do espaço exterior, sem transição, seja por passagem coberta, seja por um alpendre.

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Tabela número 5 – As residências da amostra segundo o tipo de acesso pelo exterior

Ca

sa

Tipo de Acesso a Partir do Exterior

Acesso Direto Por Alpendre Por Passagem Coberta

Casa Irmãos Bianchi Casa Destro Casa das Massas

Residência Zachet Casa Arsego Casa Strapazzon

Casa Merlim Residência Comioto

Casa Simadon Casa e Cantina Moret

Casa Gabardo Casa Jatir Toniollo

Casa Rossato – L. Eulália Casa e Cozinha Toniollo

Casa Somenzzi

Antiga Casa Moret

Casa Rossato – Eulália Alta

Antiga Casa Rossato

Fonte: levantamentos dos autores

7. As Casas da Amostra

Para fins ilustrativos, serão mostrados os procedimentos analíticos utilizados para uma das casas levantadas, a Casa Rossato localizada na Linha Eulália. As casas restantes estão em processo de complementação de dados e de graficação dos resultados para o apoio às análises. É importante salientar que, na fase em que se encontra a pesquisa, os resultados que emergem das análises até o momento referem-se à parte brasileira da pesquisa, faltando a incorporação das análises que serão efetuadas na região do Vêneto pré-alpino na Itália.

Outro aspecto importante é que os aspectos de construção da paisagem também serão objeto de avaliação posterior, tanto da parte brasileira quanto da italiana.

A Casa Rossato da Eulália Alta possui dez compartimentos e apresenta algumas características peculiares em relação ao restante da amostra. Uma única entrada frontal faz o acesso de toda a residência a partir da sala de estar, por onde a parte de serviço e o porão se ligam. Assim como em alguns outros casos, o porão existe como compartimento, mas não se encontra abaixo do nível do restante da casa e ocupa parte da projeção da casa, no mesmo nível do térreo, com o corpo contido na mesma. Possui um dos acessos independentes, por fora da residência e, outro, que se liga com o restante da casa por uma porta para a sala de estar. O pavimento térreo conta apenas com a sala, a cozinha com comedor e o porão, por onde se faz o acesso ao sótão, no andar superior. Neste, encontramos duas salas, uma imediatamente acima do porão e, outra, para onde se ligam todos os dormitórios.

As plantas e as fotos abaixo ilustram o exemplo descrito acima (figura 1).

105

Figura 1 – Plantas e fotos dos autores

8. A Estrutura Interna das Casas – conclusões preliminares

Os procedimentos adotados para a análise da estrutura das habitações rurais de Bento Gonçalves levaram em consideração, graficamente, o ponto de vista de todos os compartimentos para que se possa entender seu papel na organização do layout e representados pelos diversos grafos justificados correspondentes (figura 2, abaixo). Neles, cada um dos compartimentos, cuja função é indicada com uma cor, que é repetida para todos os compartimentos de mesma função em todas as demais residências, é colocado na raiz do grafo, marcado com o círculo cruzado, e os demais compartimentos são dispostos nas profundidades respectivas em relação a este espaço raiz, daí o uso do termo ‘justificado’. O resultado apresentado significa como a habitação é compreendida a partir deste. Deste modo, dependendo de qual

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compartimento é utilizado como raiz do grafo, os demais compartimentos são mais ou menos próximos, ou rasos, se são definidos setores específicos na moradia ou não, se a estrutura interna é mais rígida, ou ordenada, ou mais aberta, se a estrutura é mais anelar ou na forma de árvore. Todas estas peculiaridades definem as formas de investimento social realizado no espaço e, deste modo, esclarecem tanto das relações internas da casa e de seus moradores, quanto das relações destes com o mundo exterior.

Figura 2: Fonte, os autores

Além dos grafos, foram calculados os valores de integração espacial de cada compartimento de cada habitação, bem como sua integração média. A partir destas informações examinamos uma ordenação dos compartimentos de cada habitação por ordem decrescente de integração espacial, o que permite compreender, para cada residência, o tipo de investimento social feito para a organização espacial da moradia.

Das dezoito residências que fazem parte da amostra, dez, ou seja, 55,6% delas possuem a sala de estar como o compartimento mais integrado de toda a casa. Em uma delas a sala é o segundo compartimento mais integrado, em duas casas a sala é o terceiro compartimento mais integrada e em um caso, a sala de estar é apenas o quarto compartimento em ordem de integração. É interessante observar o papel central que este compartimento apresenta, uma vez que é o responsável pela mediação das relações internas e, principalmente, o espaço que será o responsável pelo acolhimento dos estranhos nos momentos especiais da vida da família como os batizados, casamentos e outras festas familiares, bem como a recepção de visitas especiais e a realização das cerimônias fúnebres dos membros das famílias falecidos.

Em 22,2% dos casos, o compartimento com maior valor de integração da casa é a sala do sótão. Esta se apresenta com esta relevância, principalmente como elemento de articulação do restante da casa com a parte mais íntima e, a partir do qual uma grande parcela dos dormitórios é acessada.

Em relação ao papel do espaço exterior na organização das casas, também encontramos algumas regularidades interessantes. Primeiramente, em nenhuma das residências o exterior é o espaço mais integrado. Em 22,3% dos casos ele é o segundo espaço mais integrado; em 44,6% dos casos é o terceiro espaço mais importante, em outros 22,3% dos casos é o quarto espaço de maior integração. Em dois casos, ocupam um papel de maior segregação. Isto significa que, na grande maioria dos casos, o

107

exterior ocupa um papel relevante na composição sem, no entanto, representar habitações extrovertidas nem introvertidas, ficando em situação de pequeno afastamento do interior da casa, mas sempre a poucos passos de profundidade do conjunto. Isto assegura uma organização que viabiliza certa privacidade da vida familiar, mas com boa acessibilidade com o mundo exterior.

No caso das duas residências da amostra onde o espaço de maior profundidade ou segregação em relação ao conjunto de todos os compartimentos é o exterior, pode-se inferir que o investimento social nessas residências para o seu arranjo espacial é realizado de modo a serem produzidas habitações mais introvertidas, isto é, valorizando muito mais as relações internas da família e dos moradores entre si e menos destes com o mundo exterior, topologicamente mais afastado na configuração.

Outro aspecto que chama a atenção na amostra e que reforça o argumento das práticas sociais amparadas nos modos de produção do espaço material é o caso da Casa Jatir Toniollo que compartilha numa mesma edificação a função residencial com comércio. Neste caso, a loja se apresenta como o compartimento de maior integração, obviamente por ser o espaço prioritário de circulação de estranhos e, portanto, esse movimento é facilitado pelo modo como o comércio é inserido na moradia.

No estágio em que a pesquisa se encontra já se vislumbra uma série de consistências apresentadas pelos resultados da amostra, o que permite inferir que, mesmo com formas, materiais e soluções arquitetônicas distintas, as habitações rurais construídas no início da colonização do interior de Bento Gonçalves apresentam semelhanças notáveis do ponto de vista da sua estrutura.

Parece evidente que estas recorrências estruturais, longe de serem casuais, são fruto da cultura manifesta pelos colonos italianos sendo que, interessa agora examinar se, além da reprodução de um modo de vida impresso no espaço no território onde se instalaram no final do século XIX, estas repetições estruturais são verificadas nas terras de origem, objeto da outra parte da pesquisa.

Referências Bibliográficas

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A FORMA SEGUE A FUNÇÃO? Uma contribuição ao estado atual

da arte da conservação patrimonial no Brasil a partir de dois

estudos de caso: o Touring Club e o Brasília Palace Hotel

Ana Elisabete de Almeida Medeiros & Oscar Luís Ferreira

RESUMO

A insistência da Carta de Veneza em defender que edifícios e sítios deveriam ser vistos como documentos históricos que não poderiam ser falsificados vem sendo usada para justificar intervenções modernistas. A Declaração de Amsterdã vem sendo utilizada para justificar novos usos em bens patrimoniais como a melhor maneira de permitir a sua inserção na vida contemporânea. Todavia, a crença modernista do pós-guerra no “fim da história” não iria suspeitar que cidades e edifícios modernos iriam se tornar “patrimônio cultural” tão cedo. 52 anos depois, Brasília se oferece à análise não mais apenas como a cidade projetada, construída ou tombada. É possível ir além da exaltação do projeto arquitetônico e urbanístico originais e refletir Brasília a partir da perspectiva de uma cidade vivenciada. Considerando os desafios e complexidades envolvendo o processo de intervenção em edifícios e sítios considerados patrimônio cultural modernos, o presente artigo pretende contribuir para o debate em torno do estado da arte da conservação patrimonial no Brasil por meio da análise de dois edifícios em Brasília, ambos de Oscar Niemeyer: o Touring Club e o Brasília Palace Hotel. Através da análise de projetos, imagens, documentos e pesquisa arquitetônica, o artigo pretende situar a relação entre o princípio da planta livre, do espaço flexível e a antecipação das necessidades futuras, de um lado e, de outro, das possibilidades de reuso. O artigo defende o fato de que as intervenções sofridas por ambos os edifícios ao longo dos anos, manifesta as contradições e complexidades da questão da conservação do patrimônio moderno. Se a forma segue a função e esta muda no contexto de plantas livres, como as intervenções em edifícios modernos tombados têm lidado com esse fato? Seria possível verificar se as cláusulas usadas para justificar intervenções modernistas poderiam ser utilizadas para reivindicarintervenções tradicionais ou pós-modernistasnos estudos de caso selecionados?

Keywords: Patrimônio Cultural, Brasília, Touring Club, Brasília Palace Hotel, Reuso, Conservação

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Introdução

Igreja de São Francisco de Assis (1947), Catetinho (1959) e Catedral de Brasília (1967): inicia-se o processo de construção social do patrimônio moderno que culmina no tombamento do Plano Piloto, em 1990, pelo IPHAN, três anos após o seu reconhecimento pela UNESCO.

A prática preservacionista recente tem estimulado abordagem com ênfase na intervenção por mudança de uso. Brasília não é diferente: se à Catedral e ao Congresso estão reservadas ações mais restritas, aos demais bens, reconhecidos nas dimensões nacional e local, cabem intervenções apoiadas em Cartas Patrimoniais que justificam novos usos como a melhor maneira de permitir a sua (re)inserção na vida contemporânea.

Embora exigências relativas à acessibilidade, segurança e saúde constituam questões que se colocam para a prática preservacionista de bens culturais tradicionaisou modernos, algumas distinções entre a preservação dos edifícios e tecidos urbanos tradicionais e aquela da arquitetura e urbanismo modernoschamam a atenção quando se trata, sobretudo, da mudança de uso.

Aprimeira apresenta uma cultura conservacionista sedimentada em anos de prática e teoria. Asegunda ainda padece da ausência de uma cultura da preservação, de arcabouço teórico próprio capaz de alicerçar uma prática consistente. Sobre a arquitetura e urbanismos modernos paira o peso da proximidade do tempo que dificulta a sua apropriação como patrimônios culturais, cuja definição se encontra associada aos valores histórico e de antiguidade, além do de arte. Soma-se a este aspecto a banalização do tipo lógico da arquitetura moderna que, transformado em modelo, (re)produz-se indiscriminadamente (Lima, 2012). Fatosqueescapam àarquitetura e urbanismostradicionais.

While significance has historically been found largely in a building’s physical reality, modern architecture’s significance has gravitated toward the conceptual: the idea of the architect’s design intent. Questions about preserving the design as built or as intended, even If original materials must be sacrificed, arise as a result of efforts to establish and maintain continuity with the intent of the designer rather than just in the material.(PRUDON, 2008: 25)

Os materiais modernos não aceitam a pátina, associada ao mau desempenho. Exigem reposições freqüentes e colocam em xeque a autenticidade: cara à prática preservacionista tradicional, quando associada à perenidade dos materiais, sugere ser entendida, no contexto da prática preservacionista contemporânea, que lida com o bem cultural moderno, como um conceito relacionado à sobrevivência de uma concepção espacial intrinsecamente ligada à integração das artes, àpromenade architecturale, ao uso dos cinco pontos da arquitetura moderna.

Outra distinção fundamental:a tipologia funcionalmente determinada dos edifícios e sítios modernos resultante da form follows function a qual se contrapõe a forma urbana e/ou edilícia tradicionais, menos funcionalmente determinada.

As intervenções contemporâneas se alicerçam nas ruínas da máxima sullivaniana form follows function. A crítica de Rossi (1960) ao funcionalismo ingênuo mostra o

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caminho: a fruição de fatos arquitetônicos cuja função foi perdida demonstra que o valor dos mesmos reside na forma. Formstays, function changes.

Se a forma da arquitetura moderna resulta da função, a planta livre decorre de um único uso? Mas, a planta livre não é espaço flexível apto a antecipar necessidades futuras? Espaço cuja vocação real é a polivalência, um item que perpassa todas as propriedades que definem uma edificação: forma, função, materiais e tecnologia? (Rosso, 1980:96) Tais propriedades não seriam impregnadas pelas características que configuram a polivalência: flexibilidade, adaptabilidade, ampliabilidade e agregação de funções?

Se a forma segue a função ou permanece, se a função muda com o tempo como situar as intervenções noTouring Club e no Hotel Brasília Palace (BPH), de Niemeyer - o primeiro tombado (2007) e o segundo desconhecido em todosos níveis de institucionalização da prática preservacionista, embora encerre valores que o qualificam comomonumento?

Para responder estas questõeso artigodebate aCarta de Veneza (1964) e a Declaração de Amsterdã (1975); analisa a planta livre, relacionando-a com aformfollowsfunction; apresenta e discute intervenções no BPH e Touring e apresenta conclusão.

1. Cartas Patrimoniais

As Cartas Patrimoniais significam a sistematização da teoria da preservação durante os últimos 81 anos. Seu foco, porém, ainda refere-se aos “monumentos do passado”. A preservação da arquitetura modernacontinua objeto de discussão.Segundo Jokilehto:

We can see conservation and modernity as the dialectics of our contemporary culture; both have become essential factors in today’s society(Jokilehto, 2003:108)

Como documentos balizadores da prática preservacionista, a (re)leitura das Cartas Patrimoniais para orientar as intervenções contemporâneas em patrimônio moderno parece necessária e indispensável. Assim, dois importantes documentos que justificam intervenções demudança de uso do patrimônio são objeto de atenção nas linhas que se seguem: a Carta de Veneza e a Declaração de Amsterdã.

1.1 Carta de Veneza

A Carta de Veneza (1964) coloca a destinação de função útil como elemento da conservação dos monumentos (Cury, 2000:92).

The conservation of monuments is always facilitated by making use of them for some socially useful purpose. (ICOMOS, 1965:2)

Segundo Veneza sempre que “as técnicas tradicionais se revelarem inadequadas, a consolidação do monumento pode ser assegurada com o emprego de todas as técnicas modernas de construção” (Cury, 2000:93). O emprego dos novos materiais, devidamente datados e identificados é fruto da interpretação dos Artigos 10, 11 e 12 que aceitam a substituição de elementos ausentes por material ou técnica novos, desde

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que estesse integrem em harmonia e diferenciem-se do original evitando o falso, e toleram acréscimos desde que se respeite a edificação e suas partes. Em suma: a Carta recomenda o uso criativo demateriais e técnicas.

Para Almeida (Almeida, 2010)1960 foiadécadade aproximação entre conservar e projetar, devidoà ampliação quantitativa do patrimônioexigindo intervenções, principalmente novos usos capazes de preservá-los após o restauro.

A fronteira entre os termos ‘restauro’ e ‘projeto’ ...tende a diluir-se ... O restauro vem sendo chamado a intervir, deixando para trás seu caráter meramente conservativo ...a intervenção de projeto vem sendo chamada a considerar as preexistências ...a tirar partido da experiência histórica ... (Almeida, 2010:71).

Onze anos separam a Carta daDeclaração. Período insuficiente para gerar grandes transformações. Suficiente para registrar mudançasquanto à função social do patrimônio cultural.

1.2 Declaração de Amsterdã

A Declaração de Amsterdã(1975) entendeu que a alteração de uso do patrimônio arquitetônico como ação de conservação está vinculada às funções sociais identificadas durante os procedimentos de levantamento e avaliação dos bens culturais, envolvendo a interveniência dos atores sociais e passando pelo reconhecimento da arquitetura como elemento formador do tecido urbano.

NaConservação Integrada, proposta pela Declaração, o tratamento dispensado ao patrimônio deveria obedecer ao reconhecimentodos valores estéticos, históricos, científicos e sociais paraestabelecer metas para a sua preservação e integração em políticas econômicas e sociais. Trata-se do princípio de responsabilidade social como instrumento da preservação:

... descobre-se que a conservação das construções existentes contribui para a economia de recursos e para a luta contra o desperdício ... construções antigas podem receber novos usos que correspondam às necessidades da vida contemporânea.(Cury, 2000: 201-2)

A função social do patrimônio arquitetônico é um dos princípios da Declaração que propõe a mudança de uso com atribuição de funções que respeitem o caráter do patrimônio e o integrem na vida social. O valor do bem deve ser avaliado também por seu “valor de utilização” (Cury, 2000).

What is social Value? It is the foundation of our identity as individual and member of a community; an irreplaceable centre of significance.(Hay apudJohnston, 1992:7)

A Declaração recomenda novos usos com destinação social. As Cartas adotam a mudança de uso como ação de intervenção, respeitados parâmetros de compatibilidade. As Cartas sugerem o respeito aos valores identificados que configuram a significância. Aceitam a introdução de novas técnicas ou materiaisque constituem a arquitetura moderna.Incentivam seu uso. Mas, no caso de intervenção no moderno que materiais e técnicas são aceitáveis? O que é a significância do patrimônio moderno?

Diante destasquestões, as Cartas restam em silêncio ou induzemrespostas nas entrelinhas permitindointerpretações variadas. A questão da substância, da

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autenticidade e/ou integridade coloca-se de forma a acentuar a consistência material. Não há referência quanto à concepção espacial e sua permanência no tempo. Não há registro de reflexões sobre a planta livre ouformfollowsfunction na determinação do espaço e das relações entre este e a mudança de uso.

2. Forma, Função, Planta Livre

Paris, 1926:L’Esprit Nouveaupublica artigo de Le Corbusier intitulado “Os Cinco Pontos de uma Nova Arquitetura”resumindo a nova maneira de se conceber a arquitetura moderna por meio do uso de cinco elementos independentes: o pilotis,construção solta do chão por pilares, elevando o centro de gravidade da composição,possibilitando a fruição do térreo; o terraço-jardim onde telhas cedem espaço à laje plana; a planta livre,resultado da técnica, dos novos materiais de construção permitindo a estrutura independente e paredes internas, transformadas em simples divisórias cuja função estrutural inexiste; a janela em fita, resultado da técnica estendendo-se por toda a extensão da fachada; e a fachada livre, último ponto, decorrência do recuo da estrutura maximizando a integração interior/exterior, a interpenetração espacial (Giedion, 1990).

Segundo Hebly, embora compareça como o terceiro ponto da nova arquitetura, a planta livre

is usually taken as the focal point of these 5 Points introducing what was an essentially new architecture, one which develops from the inside towards the outside. The column and the uninterrupted floor slab are the constructional premises for this free plan: it is the function that gives the form to the interior space. (Hebly, 1989: 47)

No programa por excelência da arquitetura moderna européia, o habitar dá forma ao espaço interior. Le Corbusier faz da planta livre obra de arte (Giedion, 1990). O morar se organiza livremente a cada andar, subvertendo a disposição do habitar tradicional. Alicerçado na nova concepção do espaço cubista o plano é o elemento gerador da composição, ainda que seu significado se encontre fora de si mesmo, no volume cuja sessão vertical revela a interpenetração espacial indissolúvel entre interior e exterior, alcançada por meio de escadas e rampas, que promovem a promenadearchitecturale, e pela liberdade do agenciamento de cada pavimento.

Mass and surface are elements by which architecture manifests itself. Mass and surface are determined by the plan. The planis the generator(…)carries in itself the veryessence of sensation.(Corbusier apudRisselada, 1989)

Alicerçadas nos cinco pontos da nova arquitetura, as formas externas das residências projetadas por Le Corbusier não retratam fielmente as respectivas disposições interiores. (Hebly, 1989).O uso inicial dos 5 pontos está associado ao tema-chave da produção arquitetônica daquele período - a forma abstrata. Mas, a forma segue ou não a função?

Risselada e Michl fornecem elementos de reflexão. Risseladacontrapõe a planta à fachada livres, partindo da análise entre as maisonsCitroan e Dom-ino, de um lado, e os projetos corbuserianos, do outro, revelando as relações entre planos horizontais e verticais. O problema formal da introdução de elementos de ligação vertical aparece: o plano horizontal livre não mais se define por paredes portantes. Também a fachada

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livre não decorre da organização interna, segue regras próprias determinadas por traçados reguladores. O autor demonstra que é nas Villa Baizeau e Savoye que a fachada, livre estruturalmente, não mais goza da prerrogativa da liberdade compositiva refletindo a organização interna.

Michlquestiona:formfollowswhat?Argumenta que não há sentido no entendimento da função que precede a forma. Salvo se há distinção entre função pretendida daquela existente. Forma sempre precede a função quando se refere a uso já existente e forma segue a função sempre que esta diz respeito a um desejo latente cuja forma precisa ser encontrada. Michl lembra que os modernos adotam a noção de função como ponto de partida objetivo, demanda colocada pela Modernidade que rompe com o passado gerando uma forma arquitetônica nova. O autordefende que, sem este ponto de partida objetivo, destituído de um entendimento metafísico, o funcionalismo moderno seria apenas mudança de estilo e não defesa de uma causa (Kopp, 1990). Isto porque, percebida como demanda própria da causa modernista, para cada nova função corresponde a forma funcional, única capaz de responder às exigências da modernidade. O habitar, trabalhar, viver modernos definem formas intrínsecas a soluções funcionais que se colocam acima das demandas estéticas do mercado. O arquiteto detém o discurso e a prática competentes na salvaguarda dos interesses do usuário no processo de concepção arquitetônica.

Le Corbusier determina os cinco pontos como resposta formal às funções do habitar definidas em um futuro presente. Para ele, o habitar moderno é uma nova função a qual deve se seguir uma nova forma do morarcapaz de moldar o homem moderno, baseada no pilotis, no teto jardim, na janela em fita e na planta e fachada livres.

A arquitetura modernanão permanece atrelada à função habitar ou à Europa. No Brasil, o programa por excelência do movimento moderno são as funções públicas. Aqui, apesar da idéiade que ser moderno significava pensar o novo a partir da tradição (Santos, 1992), os cinco pontos da nova arquiteturacomparecem associados à integração das artes e ao resgate de elementos da arquitetura tradicional; adaptados ao clima; compondo uma obra de arte total, (re)definindo, formalmente, o morar, o trabalhar, o divertir-se.

Na capital projetada e construída ondea arquitetura é o elemento primeiro, formfollowsfunction: Brasília materializa-se em formas arquitetônicas que decorrem da reinvenção do morar, trabalhar, circular, divertir-se, do modo de viver que se quer forjar moderno e nacional. Nesta cidade ainda não tombada epouco vivenciada (Medeiros & Campos, 2010)os cinco pontos comparecem em toda parte. Panos de vidro criam reflexos substituindo o jogo de luz e sombra, estabelecendo uma relação de continuidade entre interior/exterior e revelando fachadas livres que gozam, além da independência estrutural, a liberdade compositiva.

É a este recorte espaço-temporal que pertencem o BPH e o Touring.

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3. Estudos de Caso

3.1 Brasília Palace Hotel

Figura 1. BPH. Fachada Oeste. 09/2012.(Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)

Inaugurado em 30/06/58, o então Hotel de Turismo foi um dos primeiros edifícios de Brasília (Ficher, 2000). Niemeyer concebeu-o como um edifício longo, três pavimentos, estrutura metálica revestida de concreto, modulação estrutural de 7mX7mcombalanços transversais de 2,5m e 3,5m, nas empenas. Abrigandodormitórios e governança eraperpassado por volume de um pavimentocom cobertura retilínea e estrutura periférica modulada de 7mX15m entre eixos de pilares e balanços de 3m. As vedações foram livremente trabalhadasabrigando funções distintas: salões, boate, bar e restaurante. Pisos foram executados em meios níveis etransparênciapermitiu a interpenetração espacial.

Figura 2. BPH.Térreo. Projeto Original.1958.(Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)

O uso dos temas base e destaque está presentena barra longilínea sobre pilotis eno bloco horizontal em planta livre e vedações curvas. A edificação apresenta características estéticas que a qualificam como obra de arte e documento históricoda arquitetura moderna. Dos cinco pontos de Le Corbusier falta ao BPH o toit-terrasse. Além da execução de estrutura e vedações segundo o conceito da Maison Dom-ino, aqui comparecem a integração das artes, a busca do novo pela tradiçãoe a adaptabilidade ao

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clima local. A forma decorre da função de hospedar que se quer nova, exigindo uma materialidade arquitetônica moderna e brasileira. O edifício materializa o registro artístico de uma forma de fazer arquitetura, cultura técnica, artística e histórica de um passado recente.

O edifício como documento: Palco e personagem da epopéiada construção de Brasília. Também historicamente, o BPH desempenhou papel fundamental na materialização de Brasília que, até então, era apenas sonho e projeto.

Figura 3. BPH. Fachada Leste. (Fonte: ArPDF/PROAU-8/FAU/UnB)

Danificado por um incêndioem 05/08/78, teve sua recuperação adiada, durante anos, por custos impeditivos. Em 1997, a TERRACAP conseguiu o direito de licitar a edificação arrendada, até então, pela Prudência de Grandes Hotéis S.A.

Figura 4. BPH. Fachada Oeste. Empena Sul.(Fonte: PROAU-8/FAU/UnB).

Em 2001, o BPH foi arrendado pela Paulo Octávio Empreendimento Imobiliários que iniciou intervenção a cargo do escritório de Niemeyer, sob a responsabilidade do arquiteto Carlos Magalhães e supervisão do próprio Niemeyer.Em 2004, parcialmente protegida por intervenções pontuais o BPH teve azulejos do painel do lobby vandalizados. A ausência completa de vedações em todos os pavimentos acentuava a concepção onde estrutura, forma e função se complementam para gerar a planta livre. Em 2007, foi reaberto.

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Figura 5. BPH. Fachada Oeste.2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB). Figura 6. BPH. Bloco barra. Segundo pavimento, sem vedações dos dormitórios. 2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)

A análise do BPH representa a permanência da forma após o sinistro, abandono e arruinamento. Formstays, functionstays. A mudança de paradigma proposta por Prudon (Prudon, 2008:25) para a preservação da arquitetura moderna permite inferir que a preservação coerente dos ideais de seu criador, suas intenções, bem como o desenho original da edificação estão, em certa medida, acima das preocupações com aspectos de significância material. No caso do BPH tais preocupações são perceptíveis uma vez que Niemeyer foi o responsável pela intervenção. Porém, pode-se inferir que os quatro pontosque caracterizam o BPHdevem ser objeto de consideração em intervenções futuras.

3.2 Touring Club

Figura 7. Touring Club. Fachada Oeste vista a partir da praçado SDS. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB); Figura 8. Vista a partir da praçadoSDS. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)

“Previram-se igualmente nesta extensa plataforma... (rodoviária) duas amplas praças privativas dos pedestres, uma fronteira ao teatro da Ópera e outra, simetricamente disposta, em frente a um pavilhão de pouca altura debruçado sobre os jardins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa de chá”(COSTA, 2001:24).

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Teatro da Ópera e Casa de Chá, tanto o Teatro Nacional quanto o Touring foram previstos por Costa no Relatório do Plano Piloto.

Figura8.Touring.Planta original.Pavimento superior (Fonte: Mello, 2008:4).

Projetado por Niemeyer (1963) o Touringsegue concepção do tema destaque pavilhonar com estrutura de cobertura em vigas invertidas de concreto abrigandoauditório e salão de exposições, e tema base com dois pavimentos,funcionando como anexo. O sistema construtivo segue a concepção da Maison Dom-inocom clara percepção do sistema estrutural, vedações e fachadas livres.

Responsabilidade da construtora Domingos Moreira e Cia LTDA, concluída em 1967, a obra mantém as diretrizes referentes à forma e atende a outras indicações do Relatório do Plano Piloto. Porém, o “restaurante, bar e casa de chá” cedeu lugar ao Touring,no Brasil desde 1923.

Figura 9.Touring.SCS.2004. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB). Figura 10. Sistema construtivo. 1965. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB).

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Figura 11. Touring Club. Escada. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)

Decadentedesde 1970, o Touringfoi reformado, em 1983, por Niemeyer:teve o salão de exposiçõesliberado e, com ele, esquadrias em vidro que permitiam a leitura interior/exterior/interior. Dos quatro pontos presentes, a fachada livre foi descaracterizada. No lugar do salão:salas. A escada foi enclausurada e o auditório substituído por sanitários e salas administrativas.O grau de degradação, nos anos1990, levou Niemeyer a sugerir sua demolição. (Schleeet al. 2007:3).

Figura 9. Touring Club. Pavimento superior. 1985. (Fonte: Mello, 2008:5).

Em 2001, o edifício passouà categoria de patrimônio disponível da administração pública. Colocado a leilão em 2005, foi arrematado pela empresa Global Distribuidora de Combustíveis. Em 2007, foi sede da Casa Cor. Apesar do marketing do “intervir restaurando”, de que “... a mostra valorizou o local e o fez superar a fama de ponto de violência, drogas e prostituição, indicando que é um espaço privilegiado da cidade, de boa visibilidade e que pode atrair bons investimentos”(Araújo, 2007),devolvido à sociedade em outubro/2007, o prédio não apresentava nenhuma característica do “restauro”. Descaracterização e desrespeito são mais apropriados para qualificar a “intervenção” tal o grau de camuflagem a qual o edifício foi submetido pelos 52 ambientes. Estrutura mascarada, planta livre ilegível, fachadas idem.

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Figura 13. Touring. Fachada Norte. 2008. (Fonte: PROAU8/FAU/UnB)

Em 2008, tombada, a edificação estava novamente abandonada, repleta de “novos entulhos epatologias”:sobra das intervenções,partes de revestimentos, placas de gesso, restos de ambientes distintos da arquitetura niemeyeriana. Os balanços da edificação?Irreconhecíveis. Os sanitários? Químicos portáteis.

Hoje,a estrutura de concreto aparente está “caiada” e as patologias “maquiadas”.Nestas condições, o Touringé ocupadopeloGDF: Centro de Referência de Assistência Social, DF Digital, Coordenadoria de Ações Especiais e núcleos vinculados à Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda do Distrito Federal.

Figura 14. Touring. Fachada Sul. 2002. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB); Figura 15. Fachada Sul. 2012. (Fonte: PROAU-8/FAU/UnB)

A planta com pilares de concreto periféricos e vão livre de 14,50m, balanços laterais de 5,80m e 8m nas fachadas Norte e Sul, permitiu alterações de organização espacial, uso e função. No entanto, em nenhuma das intervenções propostas, mesmo naquela realizada em 1983 por Niemeyer houve respeito aopilotise à planta e fachada livres.

Conclusão

Na Brasília metrópole tombada, patrimônio mundial em que o arquiteto divide o discurso competente, a forma não mais segue a função: precede-a. À luz do argumento

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de Michl, a arquitetura contemporânea em Brasília, inclusive as intervenções em bens patrimoniais, não almeja forjarfunção geradora de nova forma.

Se Berman (Berman, 1997) estava certo, se tudo que é sólido desmancha no ar e a aventura da modernidade, segundo definição de Heynen (Heynen, 1999), continua então o futuro presente parece ter-se perdido, em Brasília, em um passado presente intimidador, que nega uma modernização em curso, alicerçada no novo: tecnologias, materiais, sistemas de comunicação, embate local versus global, etc.

A forma e a função ficam. A forma fica, a função muda. Masnão no sentido de transformação a exigir nova materialidade arquitetônica. Trata-se de função já existente que apenas se “transfere” forçando adaptação da velha forma.

No momento de concepção e construção do BPH a forma segue a função. Depois do incêndio a forma fica, a função muda: empenas transmutam-se em paredões derappel. Em seguida, a forma fica e a função de hospedar retorna, mas o faz sem pretensões de inserir novos conceitos que exijam novas expressões formais arquitetônicas. Nenhuma demanda do atual espírito de modernidade conduz a transformações. O princípio da planta livre é respeitado e serve ao acréscimo de quartos. A leitura volumétrica do edifício com os temas base e destaque permanece inalterada. O pilotis, a planta e a fachada livres lá estão. Entretanto, embora goze da liberdade estrutural, a fachada não mais permite sua leitura formal, devido à supressão das esquadrias originais. As janelas em fita também não mais comparecem. Contudo, a integração das artes pode ser usufruída.

Quanto ao Touring, formfollowsfuction é uma verdade da sua concepção à materialização primeira. Mas, este princípio se perde. O edifício recebe múltiplas funções que nãose colocam como exigência de novas expressões arquitetônicas formais. Funções que, ao se inserirem em forma existentedesrespeitam valores intrínsecos. O pilotis, a planta e fachada livres são pontos da arquitetura que nem sempre podem ser lidos claramente após as intervenções.

À luz da questão a forma segue a função? a análise do BPH e do Touringpermitediscutir o estado da arte da conservação no Brasil. As intervenções colocam em xeque o legado da arquitetura moderna que se quer perpetuar, por meio da prática preservacionista, às gerações futuras. Que legado é este? Trata-se de preservar uma forma que segue a função? Ou a herança é considerar, em cada época, o Zeigeist ou espírito do tempo?

Os dois: a necessidade de preservar a forma resultante da então nova função proposta pelo Zeigeist dos anos vinte ao sessenta do século passado; a forma que fica em sua essência e substância, na sua autenticidade e integridade compreendidas para além da materialidade física e que se estabelece na imaterialidade do conceito por trás do espaço conformado na relação entre os cinco pontos da arquitetura moderna, na integração das artes, no partido temas base/destaque, na arquitetura como obra de arte total ena reinterpretação da tradição e adaptação ao clima local.E também: a urgência em considerar o espírito do tempo presente, na recusa ao pastiche que invalidafalsos modernos, e na defesa do espírito criador que responde às exigências da atual modernidade e do processo de modernização em curso, embora respeitoso dos valores precedentes.

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Nem futuro presente, passado presente, e sim, presente presente que, diante da tensão entre tradição e modernidade aceite o restauro dentro de uma intervenção criadora, capaz de gerar o novo, estética e tecnicamente, respeitando preexistências em sua essência. Apesar das várias leituras que o bem cultural permite como valor artístico, histórico e/ou social, é possível estabelecer parâmetros para uma aproximação analítica e crítica do objeto de intervenção capaz de preservar suas características intrínsecas sem engessá-las em um tempo pretérito.

À luz da análise do BPH e do Touring, propõe-se que a liberdade de intervenção seja tomada como um processo de reinserção no presente necessariamente comprometido com o passado, com o presente, e com o futuro.

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PAISAGENS URBANAS TRADICIONAIS

Letícia Miguel Teixeira

Resumo

Semelhantes a uma grande colcha de retalhos, as paisagens urbanas

revelam-se a partir de fatos urbanos, específicos para cada experiência de

interação das pessoas com os lugares. Por sua vez, observar e analisar os

processos de alteração urbana das paisagens urbanas tradicionais pode ser

também uma importante ferramenta auxiliar no processo de planejamento

e gestão das cidades onde estas se inserem. Como parte integrante e co-

autor desta paisagem, o fazer do indivíduo pode ser o ponto de partida

para a análise do espaço urbano, pois cabe ao cidadão comum um

importante papel no processo de transformação do território. E, por outro

lado, cabe ao poder público promover um ordenamento urbano apropriado

as tradições de sua população, com foco busca da na qualidade das cidades.

Introdução

As cidades são criações sociais, a todo tempo reconstruídas pela ação das pessoas que no cotidiano conservam, modificam e transformam o espaço onde vivem. Especialmente as paisagens urbanas são um produto social que interage reciprocamente nos seus processos de produção e permanência. Assim, o que se lê na cidade é o reflexo de diversos símbolos que revelam o homem e sua interação com o cenário pré-existente.

A fruição das paisagens urbanas relaciona-se tanto com a comunidade diretamente envolvida com a transmissão de uma forma de habitar que propiciou sua continuidade, quanto na capacidade de identificação do restante da população com os elementos intrínsecos a esta paisagem.

As paisagens urbanas tradicionais designam conjuntos urbanos reconhecidos por sua expressão material e imaterial, sendo atribuída à expressão imaterial a caracterização das práticas do habitar que proporcionam a conformação da expressão material.

Todavia, em relação à leitura das paisagens urbanas tradicionais e à compreensão de seus processos de transformação, há necessidade de se deter o olhar sobre as formas de expressão do habitar dos indivíduos que constroem essas paisagens, operando em grande parte esta transformação.

Por sua vez, observar e analisar os processos de alteração urbana das paisagens urbanas tradicionais pode ser também uma importante ferramenta auxiliar no processo de planejamento e gestão das cidades onde estas se inserem. A importância

Ministério das Cidades. [email protected]

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sociocultural de se preservar estas paisagens é concomitante à sua inserção na dinâmica cidade. Lembrando que as paisagens urbanas tradicionais são, ou já foram, parte do núcleo pulsante da estrutura urbana do município.

Assim, o desafio deste artigo é conseguir demonstrar como a leitura das paisagens urbanas, em especial as tradicionais, pode contribuir para o planejamento e ordenamento qualitativo das cidades. Levando em conta que e a compreensão dos seus processos constitutivos, enquanto reflexos de uma manifestação cultural das formas do habitar de indivíduos que leem e interpretam as paisagens, pode oferecer subsídios para construção de leis que depreendam o que há de melhor nos costumes construtivos de sua população.

1. Cidades Criações Sociais que comunicam mensagens

A cidade é fruto da produção social sobre o território. A cidade, enquanto paisagem urbana, é uma grande colcha de retalhos de arquiteturas observadas a partir da escala cujo referencial é o homem. Rossi (1995, p. 115)i designa a cidade a partir de fatos urbanos, específicos para cada lugar que propiciou o desenvolvimento de uma determinada realidade e experiência. A arquitetura é vista como o “momento último desse processo”, denominado fato urbano, pois corresponde a um elemento detectável. A arquitetura de cada edifício, os lugares coletivos de permanência e de passagem, são quem dão o suporte material que possibilita a experiência da vida em sociedade. Cada pequeno fragmento da composição imagética mantém, junto à respectiva paisagem que compõe, a mesma relação que o indivíduo mantém com a sociedade que integra.

Assim como a parte está para o todo na construção da imagem da paisagem urbana, as características de cada ser estão para a formação do social, do coletivo, em igual grau de relação. As cidades são criações sociais, a todo tempo reconstruídas pela ação das pessoas que no cotidiano conservam, modificam e transformam o espaço onde vivem. O ambiente urbano é um produto social.

Enquanto processo e enquanto fruição, a cidade é fragmentada, não linear, por mais previsível que se tente construí-la, mesmo quando apresente normas urbanísticas reguladoras bastante rígidas. As experiências da fruição do ambiente pelo transeunte nas áreas comerciais de grandes centros mostram esta diversidade. A cidade, apesar de aparentemente ostentar uma ordem iminente na distribuição hierárquica de suas vias arteriais e secundárias, é rizomática (Deleuze, 2000) ii na sua expansão, que se repete e se recria na multiplicidade das formas de habitar heterogêneas para grupos heterogêneos.

A cidade pode ser considerada um sistema que verbaliza mensagens através de seus elementos significantes, onde lemos realidades sobrepostas umas às outras, onde os principais elementos significantes serão aqui definidos, como elementos primários: (Rossi1995).

...que participam da evolução da cidade no tempo de maneira

permanente, identificando-se frequentemente com os fatores

constituintes da cidade. iii

126

Como uma mensagem, a cidade é interpretada como um símbolo que se vê e o que se sente. Esta é uma experiência cognitiva, onde as sensações são despertadas especialmente através da imagem. Esta, por sua vez, estimula a troca entre o cidadão e o espaço fruído que despertou aquelas sensações. E essa interação do homem que reconstrói a imagem, por sua vez, é reassimilada por ele e pelos demais indivíduos que compartilham daquele espaço da cidade. As interpretações são infinitas, variam de acordo com a cultura de cada cidadão, de sua experiência de vida, dos traços de sua personalidade.

Na sociedade urbana, caracterizada pela heterogeneidade de indivíduos, a cidade reflete um sistema de sensações e interpretação distintas. E, dentro da dinâmica urbana, estas interpretações e novas construções se sobrepõem. (Lepetit, 2001)

As sociedades urbanas não se alojam em conchas vazias

encontradas por acaso: procedem continuamente a uma

reatualização e a uma mudança de sentido das formas antigas.

Elas se reinterpretam.iv

Escolhas individuais determinam o que se altera e o que permanece inalterado nos edifícios. Novos cenários surgem a todo instante a partir de pequenas modificações de cada elemento que compõe a paisagem: janelas, portas, telhados, jardins, grades, calçadas, volumes e vazios do construído. E com cada ato, cada decisão individual, a morfologia urbana e as imagens do lugar vão se transformando. Cada ação de cada cidadão em seu espaço individual, que se reflete na composição da paisagem, desencadeia uma série de novas reações nos demais indivíduos que interagem naquela comunidade.

Quando um grupo toma posse de um território, transforma-o à

sua imagem - o espaço ratifica relações sociais – e, ao mesmo

tempo, é pressionado pela própria materialidade de sua criação,

à qual acaba obedecendo:ele se fecha no interior do quadro que

construiuv

Assim, a sobreposição das imagens na paisagem urbana se constrói contrapondo a permanência com a substituição, permitindo que novas relações sejam travadas com os espaços vivenciados e novas mensagens sejam disseminadas e reinterpretadas.

2. Paisagem Urbana Tradicional

As cidades são as paisagens contemporâneas por excelência. E na grande expansão das formas de vida urbana, onde vemos a maior parcela da população do planeta habitar cidades, o termo 'paisagem urbana' adquire uma conotação tão ampla quanto a multiplicidade de grupos e comunidades que leem as cidades com suas lentes. Assim, os efeitos da ação do homem sobre as paisagens são, nas cidades, tomadas de uma escala desproporcionalmente ampliada, como vimos no tópico

127

anterior que mostrou como as cidades, e por sua vez as paisagens urbanas, são criações sociais que comunicam mensagens.

A paisagem é tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, podendo ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca, conforme Santos (1988). Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons, etc. A paisagem, que se oferece aos olhos sob as luzes diáfanas das primeiras e últimas horas do dia, compõe a ambientação adequada para a fruição dos detalhes, da manifestação da matéria, e permite que os artefatos mais banais se transformem em objetos singelos, talvez até belos, sempre ricos em informações sobre a pragmaticidade de suas funções, seus aspectos físicos. Elementos de composição da paisagem são cheios de suas próprias histórias, que se relacionam com diversos tempos e com inúmeras pessoas. Alguns de seus componentes são capazes até mesmo de resgatar memórias de afetos e outras lembranças. Assim, há um paradoxo neste conceito, pois toda esta estrutura, que é composta pela união de elementos materiais, físicos e palpáveis, não possui, no conjunto, uma dimensão tátil, posto que a paisagem é essencialmente algo a ser percebido.

Conforme Santos (1988) “a dimensão da paisagem é a dimensão da percepção, o que chega aos sentidos” (Santos, 1988, p. 22). Para o geógrafo, cabe ao chamado aparelho cognitivo a responsabilidade sobre como cada indivíduo processa as mensagens que as paisagens transmitem. Esta apreensão é feita de forma seletiva de acordo com as referências pessoais de cada indivíduo, obtidas pela educação formal ou informal que recebe ao longo da vida. Para Santos (1988), a conceituação de paisagem parte da proposição de que o espaço se define como um “conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações” (SANTOS, 1988, p. 10), no qual a paisagem deve ser entendida como “categoria analítica interna”. Ou seja, a partir deste conceito de espaço, devemos compreender a lógica da paisagem enquanto objeto constituído pela matéria que efetivamente é, ocupando lugar e possuindo escala frente a outros referenciais espaciais. Ressalta-se, neste sentido, sua concomitante interação com seu sistema de criação e recriação, ou seja, os atos e ações por ela sofridas à custa da própria natureza e do homem.

Por sua vez, há Paisagens que sofrem transformações mais lentas, permanecendo conectadas a uma experiência de memória. Com toda sorte estão de alguma forma integradas a vida contemporânea e sendo por elas mesmas elos do passado, vinculadas à uma tradição.

O conceito de tradição denota uma conexão com o passado, um elo entre a história pretérita e as ações presentes. A palavra tradição é oriunda do verbo latim tradere que se remete a trazer, transmitir, no nosso português. Este processo de uma entrega dos valores legados por antepassados envolve um ritual de recebimento e perpetuação das heranças apreendidas.

A tradição associa-se à idéia de entregar um conhecimento, ou ensinar por meio da transmissão de fatos e costumes, seja de natureza espiritual, filosófica, moral, técnica ou material. Como conjunto de idéias, práticas, memórias, recordações e símbolos, a tradição é conservada, reassimilada e até transformada. Apesar de não ser

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engessada, pressupõe uma continuidade persistente que mantém a integridade de uma essência, um caráter, que resiste às mudanças desintegradoras.

Assim, as paisagens urbanas tradicionais são, por sua vez, parcelas do território onde se verifica a existência de práticas, sistematicamente reproduzidas, que se relacionam diretamente com a transformação e a preservação desta paisagem ao longo do tempo. A carga mnemônica instaurada ao longo de sua conformação, é responsável pela propagação de mensagens, especialmente as visuais, que são apreendidas tanto por meio de suas partes - fragmento, quanto pelo todo – paisagem. Essa apreensão se deve às diversas formas de interpretações cognitivas dos indivíduos. Enquanto processo, esta paisagem é a conjunção destes fragmentos que, de modo harmônico, se interagem e se integram formando uma “tela” exposta à cidade. Assim como a paisagem é urbana por estar na cidade, é tradicional por perpetuar-se nela.

A paisagem urbana tradicional desencadeia no indivíduo uma reflexão sobre quem ele é, pois, além de inspirá-lo a refletir, influencia-o na reflexão sobre si, na medida em que a leitura da paisagem se acumula à sua cultura e também a transforma por meio de percepções e escolhas. Por que a paisagem urbana tradicional é múltipla? Porque sua composição imagética é múltipla, ocorre em tempos distintos e de formas distintas, já que é recriada por cidadãos com referências diversas, possibilidades únicas.

Menos como algo a ser observado, e mais como parte integrante e co-autor desta paisagem, o fazer do indivíduo pode ser o ponto de partida para análise do espaço urbano. Para Gourou (1973), “o homem é um fazedor de paisagens”, pois munido de técnicas de transformação das mesmas pôde ser capaz de viver em associação com outros indivíduos naquilo que o autor define como “um tecido de técnicas”: a vida em sociedade.

3. Cognição e o Habitar

A paisagem urbana tradicional é, assim, um tipo de lugar construído a partir das interpretações cognitivas de indivíduos sobre seus desejos e possibilidades, e comporta o aspecto táctil que pode ser observado na sua arquitetura, em suas texturas e materiais, calçadas, vias, vegetações, pessoas, ambiências, interações e sensações. As descobertas dos visitantes e o ritmo do cotidiano de seus habitantes.

Dentre os estudos desenvolvidos na ciência da psicologia, há o que trata da cognição social, definido como “processo que orienta condutas frente a outros indivíduos da mesma espécie” (Butman; Allegri, 2001). É um campo de estudo que investiga a maneira como pensamos sobre nós mesmos e a sociedade da qual somos parte, considerando as seleções – memórias - e interpretações.

A cognição, entendida como a aquisição do conhecimento a partir da percepção, estabelece parâmetros e categorias adotadas para descrever a totalidade de informações de quem a percebe e capta na mente. Essas percepções, dos lugares, dos indivíduos, dos grupos e mesmo da própria identidade, são edificadas com base nos chamados artefatos cognitivos, que auxiliam a mente na construção dos consensos.

129

Trata-se de artifícios externos, observados, selecionados, utilizados, compartilhados, vivenciados no cotidiano, que se manifestam por meio da memorização, da interpretação que os indivíduos realizam a partir do contato estabelecido com formas de comunicação. Estas variam de acordo com o modo com que o receptor analisa as mensagens transmitidas por meio destes artefatos cognitivos.

No caso de produção da arquitetura ou da paisagem, enquanto artefato fruto de um processo cognitivo, pode ou não ter havido uma intenção de um autor com relação a esta produção, ou seja, ela pode ou não ter sido premeditada. E o simples fato de ter havido uma intenção de um autor não garante a mesma interpretação de quem usufrui deste artefato. Não há uma necessária correlação entre o pensamento daquele que premeditou: o arquiteto, o construtor e o simples usuário, sujeito que habita e por este ato transforma as arquiteturas e paisagens.

Schulz (1980), que trata da intenção em arquitetura, evidencia a transcendência que a vivência do lugar implica psiquicamente no ser como algo maior que os aspectos meramente funcionais. O habitar implica em sentidos e sentimentos individuais que refletem as diversas situações que o espaço existencial adquire para cada ser. A dimensão existencial do lugar - que se relaciona a algo mais do que meramente abrigar-se - foi analisada sob aspectos fenomenológicos. Schulz (1980) procurou inter-relacionar os complexos e até mesmo contraditórios caminhos destas análises cognitivas que partem da arquitetura como elemento concreto, que permite a ação e ocorrência de eventos que imprimem caráter ao lugar, para chegar a uma teorização a respeito do Ser no Mundo.

Genius Loci, é uma antiga expressão utilizada para dizer sobre a existência de

um Espírito do Lugar, protetor, de acordo com a tradição grego-romana62. Schulz (1980) a utiliza para designar esta capacidade única impressa aos lugares, que são o que são pela capacidade do homem de imbuí-los de significados. Significados esses que, apesar de toda análise cognitiva de diferentes homens com suas cargas pessoais, são próprios de cada lugar. A impressão de um caráter único àquele espaço é percebida através da fruição do habitar, que orienta o homem quanto à visualização de características deste lugar que, por sua vez, se sobrepõe até mesmo às diferenças sócio-culturais de diversos indivíduos.

Esta abordagem sobre cognição e habitar é importante para que se possa, por meio da investigação filosófica do ser que habita, tentar delinear os aspectos que envolvem as decisões tomadas pelos indivíduos que expressam a cultura do habitar na forma como transformam as paisagens urbanas tradicionais. Daí temos que as paisagens urbanas tradicionais são fruto e conseqüência do conjunto das práticas dos grupos de indivíduos organizados no território, exercendo processos cognitivos de escolha e atuação.

62 De acordo com SMITH, William. A Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology. Boston, Little Brown and co., 1867, p. 241-242. disponível em < http://www.ancientlibrary.com/smith-bio/1349.html >, consultado em 29 de julho de 2010.

130

4. O Código de Obras/Edificações como instrumento de gestão da transformação das paisagens urbanas tradicionais.

O Código de Obras/Edificações é uma norma municipal de regulação das construções. Ele deve possibilitar o controle e fiscalização das edificações por parte do poder público municipal, que são os entes federados constitucionalmente responsáveis pela política de desenvolvimento urbano, conforme o artigo 182 da Constituição Federal de 1998, CF-88. Política esta que tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

Por meio da determinação de procedimentos administrativos e parâmetros técnicos a serem observados pela administração pública e pelos demais interessados e envolvidos na execução de obras e na utilização das edificações, nos Código de Obras/Edificações, são estabelecidos padrões de qualidade dos espaços edificados que satisfaçam as condições mínimas de fruição adequada pelos usuários diretos e demais cidadãos.

Esta lei também poderá definir os procedimentos de aprovação de projetos e licenças para a execução de obras, bem como os parâmetros para fiscalização do seu andamento e aplicação de eventuais penalidades. Quanto ao seu conteúdo, há uma diversidade de formas de cobrança desta legislação pelas administrações locais. Alguns municípios estabelecem um Código de Obras/Edificações mais detalhado, observando as características de diversas tipologias e usos, considerando a interface com a lei de uso e ocupação do solo que contem o zoneamento urbano. Outros municípios já optam pelo estabelecimento de diretrizes mais genéricas, sem especificação de detalhes por tipo de uso ou relação com o lugar onde a obra se encontra.

Portanto, se esta lei atua sobre as regras gerais e específicas a serem obedecidas no projeto, licenciamento, execução, manutenção e utilização de obras e edificações, dentro dos limites dos imóveis, é uma lei que atua na propriedade particular, em como o indivíduo habitará seu imóvel. Por outro lado, a CF 88 também nos diz no inciso XXIII do artigo 5 que a propriedade atenderá a sua função social. Então devemos considerar que o cumprimento ao Código de Obras/Edificação é o cumprimento da função social da propriedade, tendo em vista que esta lei deve conter o atributo de garantir que este direito constitucional fundamental seja respeitado pelo dono do imóvel urbano edificado? E é isso que temos visto nas nossas cidades?

Nos últimos anos, tem-se debatido muito pouco sobre a importância desse tipo de legislação para a construção das cidades, e mais ainda de manutenção de paisagens urbanas tradicionais. Pode se dizer que nas últimas duas décadas essa discussão sobre este tipo de lei de ordenamento arquitetônico, deu lugar a outras discussões relacionadas ao Planejamento Urbano de forma mais genérica.

O Plano Diretor foi empoderecido pela CF88 como o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Posteriormente, a lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade, trouxe diversos instrumentos urbanísticos a ser integrados ao Plano Diretor, especialmente para se fazer cumprir a função social da propriedade. Mas o legislador optou por não trazer nenhuma expressiva orientação sobre códigos de obras/edificações.

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Talvez pelo fato de tais códigos se tratarem de uma lei que atua no imóvel da porta para dentro, tenha se pensado que eles não tem nenhuma relação com a construção do ambiente urbano? Ou porque estes são realmente um capítulo a parte que não caberiam ser apenas mencionados no Estatuto? Mas é certo que estas normas se refletem sim na cidade, pois são elas que trazem os parâmetros construtivos que orientam os indivíduos a arquitetarem o quebra cabeça das paisagens urbanas, por meio de cada elemento construtivo de cada edifício. Lembrando do que vimos sobre a contribuição de cada indivíduo, que por meio do imóvel que ocupa compõe a paisagem urbana, enquanto imagem e enquanto processo construtivo.

Os códigos devem ser concebidos de modo a garantir as condições de salubridade, segurança, acessibilidade, adequação ambiental e preservação cultural, atuando como agente legalizador dos costumes construtivos da cidade. Bem, e essa relação com a legitimação dos costumes construtivos implica em um conhecimento sobre o território existente. E mesmo que o código incida sobre uma área de expansão urbana, a concepção de suas regras se orientou por ideais do que se acredita serem bons exemplos, observados em paisagens urbanas existentes.

Conclusão

Vimos que as cidades, e em especial as paisagens urbanas tradicionais, transmitem mensagens sensoriais aos indivíduos que com ela se interagem. A carga mnemônica instaurada ao longo de sua conformação é responsável pela propagação de mensagens, especialmente as visuais, que são apreendidas tanto por meio de suas partes - fragmento, quanto pelo todo – paisagem. Essa apreensão se deve às diversas formas de interpretações cognitivas dos indivíduos. Enquanto processo, esta paisagem é a conjunção destes fragmentos que, de modo harmônico, se interagem e se integram formando uma “tela” exposta à cidade.

As paisagens urbanas tradicionais foram aqui definidas como parcelas do território onde se verifica a existência de práticas, sistematicamente reproduzidas, que se relacionam diretamente com a transformação e a preservação destas paisagens ao longo do tempo. Como parte integrante e co-autor desta paisagem, o fazer do indivíduo pode ser o ponto de partida para a análise do espaço urbano. Pois cabe ao cidadão comum um importante papel no processo de transformação do território, papel esse que o poder público tem menosprezado.

Vimos que os Códigos de Obras/Edificações devem atuar como agente legalizador dos costumes construtivos da cidade. Um dos trabalhos iniciais do planejamento é o levantamento de dados e diagnóstico das condicionantes locais, onde são identificadas as estruturas atuais e o histórico dos processos que levaram àquela conformação de uso e ocupação da paisagem. Embora desconsideradas e não levantadas dentre os itens do diagnóstico do planejamento, as ações de modificação de edifícios realizadas por seus usuários se refletem no uso e ocupação do território.

Assim, na paisagem urbana tradicional, e mesmo em outras partes da cidade, onde o habitar popular está a exprimir suas mensagens, o desafio posto é a construção de políticas atentas à reciprocidade desta relação dos indivíduos com a paisagem, não

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perdendo de vista a responsabilidade que cabe ao poder público neste processo, de acordo com o que aqui foi refletido.

Finalmente, em que medida essas reflexões podem ajudar a fundamentar futuras diretrizes para o planejamento urbano, tendo em vista os limites da intervenção do Poder Público na garantia das qualidades ambiental, social e cultural presentes nas paisagens urbanas tradicionais.

Pois se as pessoas leem as paisagens e delas interpretam mensagens, também cabe ao Poder Público municipal, que tem a prerrogativa do ordenamento urbano, ler o que essas paisagens tem a dizer sobre o desenvolvimento das formas de ocupação do indivíduo no espaço urbano, de modo a se apreender informações que ajudem na construção de cidades mais humanizadas com melhor qualidade de vida.

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A PAISAGEM DO PLANO PILOTO DE BRASÍLIA A PARTIR DE SUAS ESCALAS

Gabriela Azevêdo & Carolina Neves♥

Resumo

Este trabalho pretende analisar de que modo as escalas refletem a paisagem de Brasília, e assim como são responsáveis pelas diferentes expressões urbanas da cidade. Para tanto, o artigo está estruturado em duas partes. Na primeira parte é abordado como Lucio Costa construiu cada escala no projeto do Plano Piloto, e na segunda parte, como os aspectos fundamentais de cada escala refletem nas diferentes paisagens de Brasília. A partir desta análise percebeu-se que a apropriação dos espaços das escalas é determinante para o processo de conservação ou degradação do espaço da cidade.

Palavras chave: Brasília, escalas urbanas, paisagem cultural.

Introdução

Este presente trabalho é o desdobramento de uma pesquisa de iniciação científica que teve como objetivo principal construir a declaração de significância1 de Brasília, e como objetivo específico identificar os bens que são expressivos para a compreensão dos significados deste conjunto urbanístico.

Nos resultados parciais da pesquisa, obtidos a partir de análise documental, identificou-se os objetos e processos2 patrimoniais de Brasília. São eles: 1) Plano Piloto 2) Edifícios excepcionais de Oscar Niemeyer 3) Conjuntos urbanos 4) Paisagens e vistas 5) Dinâmicas urbanas e processos distintos de ocupação do solo.

Os itens 1 e 2 foram extraídos dos documentos de inscrição de Brasília na Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO e dos demais documentos de preservação do sítio. Os itens 3, 4 e 5 foram extraídos a partir da análise de outras fontes documentais (livros, trabalhos acadêmicos, trabalhos técnicos de órgãos públicos, além de imagens, mapas e fotografias significativas para compreensão e apreensão dos valores do bem).

Os planos de preservação do conjunto urbanístico de Brasília estão baseados, em sua maioria, nas características fundamentais das quatro escalas urbanas (monumental, residencial, gregária e bucólica). Porém, percebeu-se que muitas dessas características são processos patrimoniais, e não objetos. Ou seja, mais do que nos aspectos materiais, grande parte das características fundamentais do Plano Piloto está

UFPE. [email protected] ♥ UFPE. [email protected] 1 Declaração de significância: documento onde estão expressos os valores do bem patrimonial. 2 Objetos patrimoniais: artefatos que possuem valor patrimonial. Processos patrimoniais: dinâmicas presentes no sítio, decorrentes das relações entre pessoas-pessoas e pessoas-objetos, reconhecidas como possuidoras dos valores patrimoniais.

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nas dinâmicas urbanas, nas relações interpessoais e nas relações entre as pessoas e o espaço construído.

Estas dinâmicas urbanas trazem a tona o conceito de paisagem cultural, onde o foco é o processo de interação do homem com o meio natural. A paisagem cultural está relacionada com os cenários resultantes da modificação do meio ambiente pelo homem, expressados através da composição do espaço natural com o espaço construído.

E sendo a paisagem uma construção social, marcas da relação entre o homem e o meio, ela passa a ter valores patrimoniais a partir do momento em que é singular, em que as suas qualidades são únicas (ALMEIDA, 2006). No caso de sítios patrimoniais, a paisagem faz parte da compreensão dos significados culturais do sítio, pois a paisagem é um reflexo do processo de construção da identidade de um determinado grupo social com o espaço que o envolve.

O objetivo deste trabalho é analisar de que modo as escalas refletem a paisagem de Brasília, e assim como são responsáveis pelas diferentes expressões urbanas da cidade. Para tanto, o artigo está estruturado em duas partes. Na primeira parte é abordado como Lucio Costa construiu cada escala no projeto do Plano Piloto, e na segunda parte, como os aspectos fundamentais de cada escala refletem nas diferentes paisagens de Brasília.

1. O Plano Piloto de Brasília

A ideia de levar a capital do litoral para o interior do país é antiga, anterior mesmo à independência, mas apenas com o governo de Juscelino Kubitschek, na década de 50 do século XX, é que o projeto de construção de Brasília foi concretizado. Nas palavras de Mario Pedrosa, Brasília é muito mais do que urbanismo, é uma hipótese de reconstrução de todo um país. No entanto, ela faz parte de um velho sonho nacional (PEDROSA, 1981).

A construção de Brasília³ uniu o desenvolvimento tecnológico e econômico pelo qual o país estava passando com a necessidade de ocupação do cerrado e com o processo de construção de uma identidade nacional. Brasília chegou como elemento de integração nacional, como afirmou Vilanova Artigas: "Ontem, construíamos timidamente alguns edifícios; hoje, fazemos Brasília – uma cidade inteira – com argumentos nossos. De Casa em Casa, de Cidade em Cidade, ficais certos, ajudaremos a reconquistar o Brasil para os brasileiros" (ARTIGAS apud SEGAWA, 2002, p.122).

Em 1956, foi lançado o Concurso para a Nova Capital, e dele participaram 26 projetos. O projeto vencedor foi o do arquiteto e urbanista Lucio Costa. Nas palavras do júri do concurso, a proposta de Costa foi a "que melhor integra os elementos monumentais na vida quotidiana da cidade, como Capital Federal, apresentando numa composição coerente, racional, de essência urbana – uma obra de arte".

Em todas as propostas apresentadas ao júri havia uma semelhança na concepção projetual, todos partiam do pressuposto modernista que o racionalismo funcional seria capaz de resolver as contradições sociais e econômicas da sociedade, juntamente com os problemas urbanos mais latentes. Assim, todos os projetos tinham em comum: a) divisão da cidade pelas funções consideradas básicas (habitação,

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trabalho, lazer); b) vias exclusivas para automóveis, a partir de um sistema de circulação hierarquizado, com vias expressas para evitar ao máximo os cruzamentos; e c) muitos vazios urbanos, fazendo composição com a baixa densidade construtiva (BICCA, 1985; KOHLSDORF, 1985; BASTOS e ZEIN, 2010).

O projeto de Costa se enquadra no "modelo" citado acima, afinal, é a concepção urbanística de uma época; porém, o projeto vencedor foi o único que foi além dos cânones internacionais. Segundo a análise de Antônio Carpitero, o projeto de Lucio Costa está longe de seguir à risca os preceitos da Carta de Atenas, pois ele deu atenção a inúmeras soluções que destoam daqueles princípios, como a atenção dada à bacia hidrográfica e ao relevo, bem como à tradição arquitetônica trazida pelos portugueses (CARPITERO apud FREITAG, 2002).

A inovação da proposta de Lucio Costa foi o zoneamento da cidade a partir das diferentes interações humanas com o espaço. A cidade está dividida basicamente em três setores: de lazer e comércio, de moradia (com pequenos equipamentos urbanos) e o centro cívico-administrativo do país. A partir de dois eixos, que se cruzam inicialmente em ângulo reto, e depois um deles se arqueia para melhor adaptar-se a topografia, surge o traçado urbano da cidade.

Figura 1: Croquis de Lucio Costa Fonte: Relatório do Plano Piloto.

No Relatório do Plano Piloto, Lucio Costa não utiliza o termo escala para o zoneamento que ele faz da cidade. Ele faz referência a diferentes setores: setores residenciais, setor central de diversões, setor bancário-comercial e setor municipal. Em 1987, Costa reavalia o processo de concepção e construção da cidade no documento Brasília Revisitada. Nele são pontuadas as características fundamentais do plano. Entre outras, está a interação entre as quatro escalas urbanas, a estrutura viária, a importância do paisagismo e a presença do céu.

Apesar de só ser apontado por Costa três décadas após a formulação do plano, o conceito de escala é um dos princípios norteadores do projeto. Escala é a relação de uma grandeza a partir de um referencial conhecido, está relacionado à proporção. Este conceito se reflete na concepção urbanística do plano através das relações entre o homem e o espaço construído.

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A expressividade alcançada pelo projeto de Lucio Costa está na sutileza atingida pela interação entre as diversas dimensões urbanas presentes em Brasília, e como elas se relacionam com a paisagem do planalto central. Como afirma Lauande (2007), a topografia e a horizontalidade foram utilizadas como elementos de composição para os cenários e perspectivas, onde a cidade e a paisagem natural se fundem em uma magnífica compreensão de espírito de lugar.

1.1 As escalas

O Plano Piloto de Brasília está zoneado em quatro escalas, e cada uma delas possui características espaciais singulares, que conferem diferentes interações humanas.

A escala monumental está configurada pelo eixo monumental, da Praça dos Três Poderes até a Praça do Buriti. A partir de uma grande esplanada estão dispostos os edifícios que abrigam a alma político-administrativa do país e do governo local, que representa a dimensão coletiva da cidade. A ocupação do solo na escala monumental é feita a partir de um eixo único, que tem claramente um foco que representa os três poderes do estado, ocupado por edifícios monumentais centralizados (Praça dos Três Poderes). A relação de proporção entre as áreas edificadas e as não edificadas, o contraste entre os extensos vazios urbanos e os imponentes edifícios, com excepcional qualidade artística, confere a monumentalidade do lugar.

A escala residencial organiza as residências multifamiliares através das superquadras, que são conjuntos de edifícios dispostos em lâminas, de gabarito uniforme com seis pavimentos, suspensos por pilotis. A área térrea é de livre acesso aos pedestres, o que modifica a relação entre solo público e privado, comumente delimitado pelos muros das cidades tradicionais. Em Brasília, o lote deixa de existir, e é transferido pela projeção da lâmina do edifício. Os edifícios são circundados por um grande cinturão verde, e a circulação de veículos e pedestres é distinta. Quatro superquadras formam uma unidade de vizinhança, com comércio, escola primária, igreja de bairro, e outros equipamentos de pequeno porte.

A escala gregária é formada pela interseção dos eixos monumental e rodoviário-residencial, sendo considerada o coração da cidade. Tem como principal elemento – e o que melhor sintetiza sua função agregadora – a plataforma rodoviária, que integra o Plano Piloto com as cidades satélites. Nela encontram-se também os setores de diversões, comerciais, bancários, hoteleiros, médico-hospitalares, de autarquia e de rádio e televisão.

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Figura 2: As três (das quatro) escalas do Plano Piloto.

Fonte: autora.

A escala bucólica está presente nos vazios urbanos e na densa massa vegetal que envolve a cidade, configurada em todas as áreas livres. Enquanto que as outras três escalas possuem uma clara definição espacial, com seus padrões de uso e ocupação do solo e gabaritos limitados, a escala bucólica possui uma expressão intangível, que permeia todas as outras. A escala bucólica é responsável pelo caráter de cidade-parque (BOTELHO, 2009), o que faz de Brasília uma cidade aberta, sem limites espaciais, um genuíno exemplo do espírito de época moderno.

A importância do paisagismo, citado por Costa no Brasília Revisitada, é na verdade essa relação com a natureza que ele traz pra dentro da cidade: "na passagem sem transição do ocupado para o não ocupado em lugar de muralhas, a cidade se propôs delimitada por áreas livres arborizadas" (COSTA, 1987). E assim a escala bucólica está presente no Plano Piloto de formas distintas: 1) através das densas áreas arborizadas que formam um cinturão verde em torno das superquadras; 2) com o paisagismo como elemento de composição e integração entre a arquitetura e outras artes (escultura, pintura, painéis), fazendo-se de elo entre o interior e o exterior dos edifícios; 3) como elemento de composição volumétrica a partir dos cheios e vazios (áreas non aedificandi), como no caso do canteiro central do eixo monumental, que deve estar sempre gramado e não edificado; 4) com a presença do céu como "moldura" para os edifícios institucionais.

Assim, o paisagismo é o elemento de coesão do Plano Piloto. Funciona como uma membrana de proteção, resguardando a cidade da expansão urbana, ao mesmo tempo em que gera uma compreensão de unidade, dentre as diferentes expressões urbanas da cidade.

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2. A paisagem a partir das escalas

A configuração espacial de Brasília é o resultado da soma da configuração espacial de cada escala e simultaneamente, da interação entre elas. Os espaços de cada escala, tendo características distintas, buscam, em um jogo de proporções e significações, se complementarem e interagirem (MONTE JUCÁ apud BOTELHO, 2009, p.88).

Figura 3. Interação entre as quatro escalas.

Fonte: Nelson Kon (marcação nossa).

A diferença existente na morfologia urbana de cada escala é responsável pela paisagem multifacetada da cidade, que vai da dimensão cotidiana (urbs), presente na escala residencial, à dimensão simbólica (civitas), presente na escala monumental.

Os aspectos que definem a paisagem nas escala são fundamentalmente três: os parâmetros urbanísticos (uso e ocupação do solo), a forma de implantação (afastamentos e a relação entre cheios e vazios) e as atividades realizadas no território. Apesar destes aspectos serem expressos em características materiais – alturas, volumes, proporções – eles possuem um caráter subjetivo, pois diz respeito as dinâmicas urbanas da cidade.

2.1 A Escala Monumental

A vista ampla e desimpedida do eixo monumental, com a esplanada dos ministérios gramada e desocupada, o Congresso como ponto focal, e os edifícios ministeriais reforçando essa perspectiva, é uma paisagem que reflete poder e soberania. Essa é a imagem que está mais presente na memória coletiva de visitantes ou moradores quando se faz referência ao Plano Piloto. Os recursos compositivos utilizados no eixo monumental, como a utilização das técnicas de terraplenos, a marcação de pontos focais e a precisão na localização dos edifícios, são responsáveis pelo caráter simbólico do lugar.

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Figura 4. Esplanada dos Ministérios. Fonte: Paulo César Brandt.

Estava previsto no Relatório do Plano Piloto que "a perspectiva de conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedida até além da plataforma (rodoviária) onde os dois eixos urbanísticos se cruzam". Segundo analise de Paulo Bicca (1985), a perspectiva de Brasília é descendente do urbanismo haussmaniano, criador de uma paisagem de eixos e perspectivas que vão desembocar em edifícios monumentais.

É no eixo monumental onde mais se vê o horizonte, e a presença do horizonte como elemento de composição dessa paisagem cria a sensação de amplitude e vastidão, reforçando a monumentalidade dos edifícios governamentais (projeto de Oscar Niemeyer). Alguns autores consideram que o caráter simbólico ao qual chegou à proposta de Costa foi a uma das suas maiores contribuições à arquitetura e ao urbanismo modernos, retomando a questão simbólica para o cerne da arquitetura.

Figura 5. Vista do eixo monumental a partir da Torre de Televisão. Fonte: Beatriz Brasil (marcação nossa).

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A forma como foi resolvida a questão viária, evitando os cruzamentos (através das tesourinhas e das mudanças de níveis) também tem ressonância na paisagem urbana de Brasília. Outro elemento fundamental à composição da paisagem desse eixo é a torre de televisão. A presença vertical da torre no meio de uma esplanada é o contraponto vertical do edifício do congresso, e além de ser um símbolo de comunicação e modernidade, seu mirante permite a fruição de diversos cenários da cidade.

O resultado desses diversos elementos significantes da paisagem do eixo monumental é de caráter cenográfico, que induz mais a contemplação e menos a experimentação do espaço. Essa paisagem é de certa forma estática, criada para ser apreciada como uma obra de arte.

2.2 A Escala Residencial

A escala residencial, também chamada de escala doméstica, propicia uma relação de proximidade entre quem usufrui do espaço livre e o espaço construído. Esta relação é responsável pela nova maneira de viver, uma relação que resguarda a vida cotidiana do resto da cidade.

Isto acontece, pois, o eixo residencial representa o homem no nível individual de sua existência (LAUANDE, 2007), já que foi concebido a partir da escala humana. As superquadras procuram atender às formas de convívio, onde o homem pode viver com qualidade de vida, junto à natureza e perto de diversos serviços, sem necessitar percorrer longas distâncias para efetuar as atividades cotidianas.

Figura 6: Entrada da escala residencial.

Fonte: Nelson Kon.

Figura 7: Pátio interno da escala residencial. Fonte: Nelson Kon.

A composição dos espaços na escala residencial resulta em uma paisagem fluida e permeável. O cinturão verde que emoldura os edifícios gera uma relação de maior proximidade do homem com a natureza, quebrando com a dicotomia entre meio urbano e meio natural. A proximidade nesses espaços entre pequenos equipamentos urbanos e edifícios residenciais reforça o sentimento de pertencimento dentro das superquadras, gerando um sentimento de coletividade.

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2.3 A Escala Gregária

Desenvolvida a partir da plataforma rodoviária, a escala gregária é o centro urbano de Brasília. Foi concebida para ser um local de agregação, com diversos setores reunidos para propiciar encontros e trocas – econômicas, sociais, afetivas, culturais, simbólicas (KOHLSDORF apud GOULART, 2009).

O caráter vertical dos edifícios, a alta densidade construtiva, e a predominância dos espaços edificados aos espaços livres são os elementos que compõem a paisagem da escala gregária. As áreas que mais se aproximam com o que foi previsto no Relatório do Plano Piloto (um corpo arquitetônico contínuo, com galeria, amplas calçadas, terraços e cafés) são as que mais possuem características de agregação e urbanidade.

Nas áreas em que estas características não foram adotadas a paisagem é árida e desumana, apresentando espaços com grandes diferenças de níveis, sem relação com o entorno e extensas áreas ainda não ocupadas.

Figura 8: Plataforma de embarque no térreo,

e edifício do setor cultural sul no nível superior. Fonte: Nelson Kon.

Figura 9: Aridez na paisagem e extensas áreas desocupadas na escala bucólica.

Fonte: Maurício Goulart

Em compensação, a plataforma rodoviária, ponto de interseção entre os dois eixos, é onde melhor se manifesta a urbanidade de Brasília. Desenvolvida em três níveis, a plataforma é edifício e espaço público simultaneamente. A dinâmica urbana da plataforma rodoviária é viva e pulsante, com milhares de pessoas que se apropriam do seu espaço diariamente, através das relações de troca e convívio.

2.4 A Escala Bucólica

A escala bucólica é a responsável por muitas das características das outras três escalas, pois faz a interação da paisagem natural com os elementos construídos, assim, ela pode ser encontrada nas diferentes fisionomias da paisagem das quatro escalas.

Além da interação com os elementos construídos, pode-se dizer que esta escala é a que possui uma forte ligação com as relações humanas, pois propicia atividades de lazer e passeio (nos parques, praças e na orla do lago). A escala bucólica, de acordo com a fisionomia em que aparece, funciona tanto para dispersar pessoas como para concentrar. As paisagens desta escala que têm forte caráter concentrador são

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encontradas no interior das superquadras, enquanto que no eixo monumental, possui caráter dispersor que enaltece o valor de monumentalidade.

Figura 10: Inserção da escala bucólica na

escala residencial. Fonte: Leonardo Finotti.

Figura 11: Presença do céu como elemento de composição da paisagem. Fonte: Idem.

Considerações Finais

O projeto da cidade de Brasília poderia ter sido apenas o projeto de mais uma cidade, ou tão somente uma resposta às necessidades da época – renovação das configurações sociais e urbanas brasileiras, heranças do passado colonial. Lucio Costa foi muito além das exigências do Relatório do Plano Piloto, pois repensou a arquitetura, o urbanismo e a paisagem urbana a partir das diferentes interações humanas com a cidade. A concepção espacial do Plano Piloto é, na verdade, a tradução de diversas relações sociais, consideradas por Lucio Costa como uma forma de viver, de habitar, e de referenciar o estado nacional.

Da mesma forma que se observa diferenciação das características das paisagens e das relações humanas, pode-se perceber que a apropriação dos espaços das escalas é determinante para o processo de conservação ou degradação do espaço. Isto porque, de acordo com Monte Jucá (2009), “a paisagem se realiza, também, por meio de evocações afetivas e simbólicas”.

Porém, a partir do que foi abordado neste trabalho, surgem questionamentos a respeito da conservação deste sítio, único conjunto urbanístico contemporâneo tombado até o momento pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade. Se muitas das características fundamentais do Plano Piloto estão refletidas nos aspectos imateriais, nas dinâmicas urbanas e percepções espaciais, como conservá-las? Se a mudança é algo inerente à paisagem, como conciliar conservação com transformação?

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Referências

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CRONIDAS: PROPOSTA DE PADRONIZAÇÃO DE

REPRESENTAÇÃO EM MAPAS DE DANOS

Luís Gustavo Gonçalves Costa & Lucas Figueiredo Baisch♥

Resumo

Este artigo discute a padronização de mapas de danos - utilizados no diagnóstico de projetos de conservação e restauro de edificações de interesse histórico-cultural - através da base de dados Cronidas. Entende-se por mapa de danos a documentação ilustrativa de prejuízos - sejam esses materiais, funcionais ou estéticos - necessária para embasar os trabalhos de intervenção conservativa ou restaurativa. O conteúdo desses mapas é feito por material essencialmente gráfico - superposição de hachuras, fotografias, índices, cores, caracteres e legendas - com a finalidade de localizar, identificar, quantificar e especificar as avarias encontradas nas edificações. Diante das várias formas de se representar graficamente as informações dos mapas de danos, as possibilidades são tantas que dificultam a leitura objetiva e única delas. Isso abre margem a interpretações dúbias e, por isso, gera a necessidade da formular uma proposta de padronização. Diante disso, surge a construção da base de dados Cronidas na web. Cronidas é uma coleção de fichas com informações sobre patologia da construção. Cada ficha contém a descrição do dano, sua identificação em edificações, fotografias e o código padrão de representação em uma ferramenta CAD. A descrição e identificação do dano é feita a partir de consulta bibliográfica de diferentes autores. Na seleção desses códigos, levou-se em consideração os aspectos de comunicação visual e relações de contrastes de cores na percepção visual. Assim, com essa seleção, gera-se o repositório de códigos dos danos para serem aplicados nas fichas da base de dados Cronidas. Com o intuito de divulgar e otimizar o acesso à base de dados, é desenvolvido um website - confeccionado com o content mannagement system WordPress. Assim, na Internet, é possível a colaboração de conteúdo por usuários cadastrados - profissionais interessados para inserção de novas informações sobre danos - integrando-as à base de dados. Além disso, usuários podem acompanhar notícias e fóruns de discussões nas redes sociais - como o Twitter e Facebook. Assim, espera-se que com a unificação da representação gráfica, os projetos de edificações de interesse histórico e cultural, sejam de fácil leitura pelos profissionais envolvidos.

Keywords: Standardization, databases, Cronidas, damage maps, pathology building, graphic representation

UNIJORGE. [email protected] ♥ UNIJORGE. [email protected]

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Introdução

Este trabalho se enquadra na linha investigativa da teoria e da tecnologia da conservação e restauro do patrimônio histórico, patologia da construção, especificamente no estudo das representações de mapa de danos, etapa fundamental de um projeto de conservação e restauro.

O universo dos mapas de danos é o tema abordado neste artigo, abrangendo a patologia da construção e a criação da base de dados Cronidas para a padronização da linguagem e da representação de mapa de danos. Essa representação contém informações que auxiliam o profissional da área a especificar serviços e procedimentos de intervenção em edificações que delas necessitem.

Neste contexto, o mapa de danos é um material ilustrativo contendo a representação dos componentes construtivos (parede, piso, esquadria, telhado, etc.) e os danos encontrados, bem como as informações necessárias para embasar os trabalhos de intervenção e consolidação em projetos de conservação e restauro. Este material apresenta sobreposição de elementos gráficos, hachuras, fotografias, índices, cores, letras e legendas contendo dados sobre os danos incidentes nos componentes da construção e nos materiais empregados na construção. Logo, o mapa de danos é um instrumento que antecede a elaboração dos projetos de intervenções, conservação e restauro de edificações, sendo importante para identificar, quantificar, especificar e localizar as avarias na edificação. Para a identificação desses danos utiliza-se, a princípio, os diversos sentidos de percepção. Entretanto, para que seja precisa, faz-se necessário realizar prospecções e análises laboratoriais.

Tabela 1: O processo patológico e de danos: gráfico sequencial e seus componentes

Localizar Identificar Especificar Quantificar

Determina a área ou o ponto exato onde

ocorre o dano.

Constata, comprova ou reconhece o

dano.

Detalha e particulariza o

dano.

Mensura áreas afetadas.

Fonte: (Carrió ,1990).

A identificação das áreas prejudicadas e a elaboração dos mapas de danos é um

pré-requisito do diagnóstico para intervenções em um roteiro para o projeto de restauro.

Desta forma, o conhecimento da patologia das edificações é indispensável para todos os que trabalham com a construção civil, em conservação e restauro, pois conhecer os materiais que foram empregados, os defeitos ou as deteriorações que apresentam, assim como suas causas é fundamental na proposição de intervenções e procedimentos de tratamento, para reverter ou estabilizar os danos existentes em edifícios de interesse cultural. Assim, a pesquisa conta com a elaboração de uma base de dados contendo informações sobre danos em materiais de construção, com sua descrição, fotografias desenhos esquemáticos com resultados retirados de revisão bibliográfica ou de casos reais de obras. Consta também de uma recomendação para representação dessas avarias em mapas de danos. As informações estão organizadas sistematicamente em forma de fichas e disponibilizadas através de acesso em um website específico, aberto à colaboração de conteúdo, aceitando novas fichas e

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incorporando-as à base de dados. Este website oferece informações reunidas para a consulta aos profissionais da conservação e do restauro, impressão e para o download, favorecendo a padronização da linguagem e da representação gráfica para o mapeamento de danos em edificações brasileiras de interesse artístico, histórico e cultural.

1.O processo patológico

Denomina-se de processo patológico, toda a investigação de como se manifesta o dano com todas as suas características e possibilidades de reparo ou previsão da evolução desse dano (Carrió,1990).

Figura 1. O processo patológico e de danos: gráfico sequencial e seus componentes. (Fonte: Carrió, 1990).

Assim como um texto, o mapa de danos transmite uma visão específica do estado da edificação contendo um discurso técnico, configurando-o como instrumento de análise para o diagnóstico para intervenções de restauro, para ações conservativas ou de manutenção. Conseqüentemente, o mapa de dano é um instrumento importante para o estudo investigativo de um processo patológico, pois ele indicará os sintomas aparentes na edificação. Dando inicio na identificação do agente envolvido no dano e examinando as causas.

Tabela 2: Estudo investigativo (diagnóstico de dano)

Sintoma Agente Causa

Manifestação percebida Ação determinante dano É o que ocasiona o dano

Exemplos

Manchas de umidade Infiltração Furo na tubulação de água

Perda de Material Cristalização de sais Presença de água associada a sais

Fonte: Anotações de aula de Silvia Puccioni.63

63 Aula de identificação de danos, (patologia das construções) ministradas no CECRE - Salvador em junho de 2009, pela professora Silvia Puccioni.

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Tendo o diagnóstico como o resultado da investigação de causas, agentes e

sintomas, parte-se para o tratamento, o prognóstico e/ou a prescrição para prevenção contra futuras reincidências. Um exemplo de diagnóstico é a investigação de uma mancha na parede (sintoma), cuja ação é a infiltração (agente) ocasionada por um furo na tubulação de água (causa).

2. Padronização de mapas de danos

Existem inúmeras formas de apresentar informações graficamente e, no caso particular dos mapas de danos, são tantas as possibilidades que surge a necessidade de se organizar uma proposta de padronização, já que esses mapas são apresentados de diferentes maneiras, o que dificulta a leitura única, abrindo margem para interpretações imprecisas. A boa leitura do mapa de danos é condicionada pela facilidade em avaliar corretamente os dados representados. Na representação gráfica de mapas de danos, os códigos devem ser organizados de modo a compartilhar a informação pretendida com clareza.

Figura 2. Codificação de danos. Fonte: Costa, 2010

A representação gráfica é integrante de um sistema de sinais que armazena,

compreende e comunica por meio da construção da imagem.

Figura 3. Componentes do sistema de comunicação de um mapa de danos. (Fonte: Inferência a partir de Archela, 2008).

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A fonte de informação é a edificação, a mensagem que se quer passar é o estado

da edificação informando a incidência dos danos com sua localização exata, pelo levantamento dos danos (emissor) que identifica os danos e os codifica através de mapa de danos (códigos) onde o profissional responsável (receptor) lê, decodifica e utiliza para a finalidade (destino) de diagnosticar os problemas de conservação da edificação.

Então alguns procedimentos foram realizados para a padronização da representação dos danos tais como: codificação dos danos em AutoCAD® , testes de impressão e seleção desses códigos e classificação de danos.

2.1. Codificação de danos em AutoCAD®

O dano é representado através de um código gráfico aplicado no mapa base. Para a codificação de danos na representação gráfica, a ferramenta utilizada é o programa AutoCAD® e verifica-se a existência de danos que se apresentam características pontuais, lineares ou em áreas. Deste modo, na representação pontual de danos (exemplo: entupimento de calha) são usados símbolos (figuras geométricas), no caso: o quadrado, o triângulo e o círculo. Na representação linear de danos (exemplo: rachadura e abaulamento) são usadas linhas nas quais foram escolhidas: a linha contínua e a linha tracejada (hidden). Já nas feições caracterizadas em áreas (zonas) de danos (exemplo: erosão e crosta negra), são selecionados polígonos fechados preenchidos com hachuras.

A codificação de danos pode ser expressa através do uso de símbolos, linhas, manchas de cores ou de texturas e índices.

Códigos de símbolos (pontuais) Código de linhas (lineares) Código de manchas (áreas)

Assim, a presença de dano pontual como pontos de entupimento de calhas, pode ser representada por um símbolo ou figura geométrica; uma região atacada por cianobactérias ou qualquer dano que ocupe uma região da superfície do material ou componente construtivo, pode ser representada por uma área; já as trincas ou abaulamentos, danos com características lineares podem ser representados por linhas desenhando seu trajeto.

2.2. Testes de impressão e seleção de códigos

Foram realizados testes de impressão para representações gráficas foram

fundamentadas na teoria cartográfica da Semiologia Gráfica. A seleção dos códigos de representação para elaboração de mapas de danos, levou-se em consideração, os aspectos de comunicação visual e as relações de contrastes de cores na percepção visual, através de testes de impressão de concepções empíricas de elementos de

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representação gráfica do AutoCAD® gerando um repositório de códigos atribuídos para os danos inclusos na base de dados.

Desta forma, a seleção dos códigos de representação de danos e os resultados dos testes estão registrados na (Tabela 3).

Tabela 3: Resultado dos testes de impressão.

Variáveis de Codificação Quantidade disponível

no Auto CAD 2008 Quantidade utilizadas no teste de impressão

Quantidade Selecionada

Cores de Linhas 255 87 6

Cores de hachuras 255 87 9

Cores de símbolos pontuais 255 87 5

Tipos de linha 60* 2 2

Espessuras de linhas 24 17 3

Hachuras 80* 20 20

Símbolos pontuais Várias 3 3

Tamanho de símbolos Várias 3 1 Fonte: (Costa, 2010) * Padrão do AutoCAD

3. Classificação dos danos

Sabendo-se que o universo dos danos é muito amplo, os mesmos foram divididos em conjuntos para entendimento do todo e das partes que o compõem. Deste modo, utilizou-se uma classificação de danos para a modelagem do banco de dados para a base de dados Cronidas, estabelecendo três grupos:

Grupo 1 - Agentes patológicos; Grupo 2 - Tipos de danos; Grupo 3- Incidência de danos em materiais ou componentes construtivos. Essa classificação auxilia a caracterização do dano no estudo investigativo,

definindo o diagnóstico. Foi utilizada na construção do banco de dados do website, facilitando a busca de danos com características em comum.

Tabela 4: Componentes da base de dados Cronidas

Lista de danos Grupo 1: Agentes

Grupo 2: Tipo de dano

Grupo 3: Incidência do dano

90 Danos* * Número de danos inicial, por se tratar de uma base de dados poderá receber colaborações de profissionais.

6 Agentes 6 Tipos 12 Materiais e 11 Componentes construtivos

Fonte: (Costa, 2010)

4. A base de dados Cronidas A base de dados recebeu nome de Cronidas, baseado no mito grego dos filhos

do Titã Cronos (Senhor do Tempo). Alegoricamente busca-se a analogia da mitologia com a luta dos restauradores contra a ação do tempo nas construções. Para apresentar

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esta analogia, foi editado um vídeo explicativo narrando a associação do mito com a base de dados disponibilizada no website. A proposta de elaboração dessa base de dados surge da necessidade da padronização de mapas de danos.

A base de dados Cronidas é uma coleção de informações que consiste em uma lista de danos ocorrentes nas construções do patrimônio histórico-cultural, com sua representação (codificação padronizada) para a elaboração de mapa de danos no programa AutoCAD®, essa base de dados foi organizada em fichas disponíveis em um website.

Tabela 5: Itens da ficha de dano da base de dados Cronidas

TÍTULO

(Nome do dano)

TERMOS EQUIVALENTES

(Nomes com que o dano pode ser conhecido)

DESCRIÇÃO

(O que é o dano e características peculiares)

IDENTIFICAÇÃO

(Como identificar)

IMAGENS

(Fotografias ou desenhos ilustrando o dano com os créditos da imagem)

REPRESENTAÇÃO EM MAPA DE DANOS (AutoCAD® )

(Padrão da codificação gráfica do dano para elaboração de mapas em AutoCAD® )

ETIMOLOGIA

(Trata da origem e formação através da palavra do nome do dano)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(livros, site, CD-ROM) Fonte: (Costa, 2010)

Para o registro fotográfico para essas fichas, utilizou-se dois campos de visão

diferentes para melhor compreensão do dano e onde ele está localizado na edificação e também uma escala gráfica para a referência de tamanho.

Para a fotografia, pensou-se um campo médio e outro fechado. Na figura 4, tem a foto num campo médio onde se observa a edificação como dano de desagregação numa parede de adobe revestida de barro e pintada de cal branca. Já na figura 5, da mesma edificação, se tem o registro do mesmo dano da mesma edificação, mas num campo fechado com a escala gráfica. Nesta foto, é possível observar o dano com mais detalhes, como por exemplo:

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Figuras 4 e 5. Diferentes campos de registro fotográfico para melhor compreensão do dano

Sobre a escala gráfica, ao mesmo tempo, identifica a foto pertencente a base de dados Cronidas e da a dimensão real do que está sendo fotografado. A escala está impressa num cartão e tem do lado da frente o logotipo do Cronidas, nome do fotógrafo e o logotipo do website. Foi feita no software CorelDraw e impresso em placa policarbonato branco com impressora inkjet.

Figura 6. Modelo do cartão com escala gráfica de Cronidas

Assim, esta base de dados é apresentada em modo de catálogo explicativo e

ilustrativo de dano, com sua respectiva representação. Para isto, foram testados diversos códigos com suas variáveis, buscando selecionar o número de 198 padrões, com o propósito de suprir o conteúdo inicial (90 danos) da base de dados e ainda deixar reservado um número suficiente para possíveis colaborações e adição de novos danos na base de danos. Assim, esta base de dados é uma coleção de informações sobre os vários tipos de danos ocorrentes nas edificações, com a sua representação e codificação padronizadas em ferramenta CAD64, tendo como objetivo auxiliar o

64 CAD: é a abreviatura de Computer Aided Design, que significa projeto auxiliado por computador. É, também, utilizada como sinônimo de software para projetos e desenhos.

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inventário de danos contendo a descrição, identificação, ilustração e representação gráfica codificada destes danos, visando contribuir, como foi dito, para a padronização da representação gráfica de mapas de danos. Além disso, a base de dados contempla a definição de termos relacionados à patologia das edificações, suas características e agentes, procedimentos para identificar e diagnosticar as manifestações, além de catalogar os danos mais incidentes nos diversos materiais de construção e nos componentes construtivos. A Figura 7 ilustra o resultado de um mapa de danos utilizando o padrão proposto nesta pesquisa.

Figura 7. Mapa de danos utilizando a base de dados Cronidas.

Tabela 6. Lista de danos

1. Abrasão 36. Desgaste 71. Perda de aderência

2. Alteração cromática 37. Deslizamentos de telhas 72. Perda de pigmento

3. Alveolização 38. Destacamento (descolamento) 73. Perfuração

4. Ausência de recobrimento de armadura

39. Destelhamento 74. Pichação (Grafismo)

5. Batidas (estocadas) 40. Diferenças de brilho no verniz 75. Pitting (furos)

6. Bolhas (vesiculas) 41. Eflorescência 76. Presença de plantas

7. Brocas (xilófago) 42. Enrugamento 77. Pulverulência

8. Calcinação 43. Entupimento de calha 78. Rachadura

9. Capilaridade 44. Enxame 79. Rasgos

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10. Carbonatação do concreto 45. Erosão 80. Ressecamento

11. Carbonização 46. Erros de intervenção 81. Riscos

12. Cianoficeas 47. Erros de repintura 82. Saponificação

13. Cisalhamento 48. Escavação 83. Segregações no concreto

14. Clivagem 49. Escorrimento 84. Sujidade

15. Colonização biológica – biofilme

50. Esmagamento 85. Trinca

16. Concreção 51. Estresse externo 86. Vandalismo

17. Condensação 52. Estresse interno 87. Vazamento goteiras

18. Corrosão 53. Fadiga 88. Xilófagos marinhos

incrustantes

19. Craquelê 54. Fissura 89. Xilófagos marinhos

perfuradores

20. Criptoflorescência 55. Fratura 90. Extra sobre Pátina

21. Crosta negra 56. Fungos (apodrecedores,

emboloradores)

*listagem inicial de danos, com possibilidade de inclusão de outros danos por profissionais colaboradores.

22. Crosta salina 57. Furos

23. Cupins térmitas 58. Gelividade

24. Defeito de fabricação 59. Infiltração

25. Defeito de solda 60. Intervenções anteriores

26. Defeitos congênitos (nós, fendas ou encurvamento)

61. Lacuna (perda)

27. Deformação (amassados) 62. Lascamento do concreto

28. Deformações (abaulamento) 63. Líquenes

29. Degradação diferencial 64. Lixiviação (presença de

estalactites)

30. Dejetos, guano 65. Manchas superficiais

31. Delaminação (esfoliação, escamação)

66. Musgos

32. Desagregação 67. Ninhos

33. Desbotamento (fotodeterioração)

68. Oxidação

34. Descamação em placas 69. Oxidação do verniz

35. Descascamento 70. Peças trocadas

5. O website colaborativo

Com o intuito de divulgar e otimizar o acesso à base de dados, foi desenvolvido um website disponível no endereço <http://www.cronidas.net>, utilizando a ferramenta WordPress para gerenciamento de conteúdo web (Content Management System), associada à ferramenta MySQL (para gerenciamento de base de dados) através do modelo-entidade relacionamento, e finalmente a linguagem de programação PHP (Hypertext Preprocessor, utilizada para gerar conteúdo dinâmico na web). Assim, o website foi modelado no conceito da web 2.0, possibilitando colaboração de conteúdo por usuários cadastrados, profissionais interessados para inserção de novas informações sobre danos, que uma vez postados serão submetidos a um comitê técnico (formado por especialistas da área de restauro), sendo então as informações

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posteriormente integradas à base de dados. Nestas novas informações são anexadas codificações de representação determinadas pelo webmaster. Dentre as seções propostas estão: o banco de dados disponibilizando as fichas de danos para consulta, impressão e download; o sistema de busca por categorias ou palavras-chave; o formulário de cadastro para colaboradores; apoio e instruções de como utilizar os códigos de representação nos mapas de danos, e o download do arquivo “cronidas_padrao” em formato DWG (AutoCAD® ) contendo a representação dos danos catalogados. Neste arquivo, as informações estão estruturadas por layers e com seus respectivos padrões de representação, e dotadas das competentes legendas. Além disto, o website integra os seus usuários às redes sociais: Facebook e Twitter, que possibilitam acompanhar as atualizações da base de dados, notícias da área, além de permitir o acesso a fóruns de discussões.

Figura 8. Página para o download do Arquivo-padrão.

Em 2012, o programa de iniciação cientifica do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Jorge Amado- Salvador-BA, integrou-se a equipe do Cronidas, sob a orientação do professor Luis Gustavo Gonçalves Costa, contando com 20 alunos-pesquisadores para implementação da base de dados.

Considerações Finais

Este trabalho está inserido em um contexto tecnológico que ocorre uma expansão das ferramentas participativas que vem sendo chamado de web 2.0. Deste

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modo, a pesquisa contempla o assunto de websites colaborativos que se consolidam nos últimos anos, despontando-o como uma das principais ferramentas presentes na internet para estimular os usuários a produzirem os seus próprios conteúdos. Assim a base de dados Cronidas está preparada para receber novos conteúdos por meio de colaborações de profissionais da área de conservação e restauro e da patologia da construção, tornando o sistema aberto ao crescimento monitorado.

Com relação ao arquivo “cronidas_padrao.dwg” (disponível para o download), o uso do programa AutoCAD® ® fez-se necessário devido a preocupação em utilizar hachuras e linhas no padrão já existente na escolha da representação de danos, ainda que a criação de novos padrões fosse cogitada para o teste de impressão. Porém, o usuário poderia ter problemas com o uso do roteiro de procedimentos a ser executado e poderia tornar-se uma barreira para seu uso e adoção desse padrão. Portanto, a facilidade de sua utilização foi tomada como prioritária na escolha de linhas e hachuras já existentes no programa e que compõem a base de dados para representação de patologia da construção em mapa de danos.

Outro ponto a se considerar na confecção de mapas de danos é a sobreposição de danos que pode comumente ocorrer. Como se notou um prejuízo na percepção do dano, recomendou-se a divisão do mapa de danos em diferentes pranchas, evitando ambiguidade na leitura.

Referências

ARCHELA, R. S. Análise da cartografia brasileira: bibliografia de cartografia na geografia no período de 1935-1997. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo- Curso de Geografia, Departamento de Geografia. 2000, p.300.

CARRIÓ, J. M.. Curso de patologia: conservación y restauración de edifícios, Madrid: Colegio Oficial de Arquitectos de Madri. 1990, p.82. COSTA, L. G. G. Cronidas: Elaboração da Base de dados para mapas de danos. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia-PPGAU-FAUFBA. 2010, p.260.

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POR QUE OS MESTRES ESCUTAM AS PEDRAS? Uma

investigação sobre a trajetória profissional do trabalhador da

construção civil que atua na Restauração de Imóveis

Régis Eduardo Martins & Antônio de Pádua Nunes Tomasi

Resumo

Este artigo tem por finalidade apresentar a pesquisa em desenvolvimento no mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Ensino Tecnológico de Minas Gerais, que investiga a trajetória profissional de trabalhadores da construção civil que atuam em obras de restauração de imóveis antigos. Objetiva-se nesta pesquisa encontrar subsídios para o entendimento da trajetória do trabalhador pesquisado, considerando os elementos que os direcionaram para o aprendizado das técnicas construtivas antigas e não para o caminho comumente seguido no setor.

Palavras-chave: Educação Profissional, Trajetória Profissional, Construção Civil, Restauração de Imóveis, Patrimônio Cultural.

Introdução

O presente artigo tem como premissa apresentar a pesquisa em andamento, desenvolvida no Mestrado em Educação Tecnológica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), que busca compreender como trabalhadores da construção civil adquirem os saberes necessários ao trabalho na restauração de imóveis. Por meio da investigação da trajetória profissional desses indivíduos, tentar-se-á chegar ao entendimento de como o conhecimento é transmitido entre os profissionais da área e de como que o saber-fazer necessário às intervenções de restauro transforma a atuação desses trabalhadores.

1. Contextualização

Incialmente, no intuito de demonstrar os propósitos da proposta deste estudo, é preciso apresentar o “ambiente gerador” no qual se desenvolve a trajetória profissional do trabalhador estudado. Para tanto, a construção civil será tratada a partir de aspectos gerais, a fim de descrever o setor no Brasil, bem como sua origem, o perfil do profissional atuante na área, os canteiros de obra, entre outros que se mostrarem pertinentes durante a discussão da pesquisa.

CEFET MG. [email protected] CEFET MG. [email protected]

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Historicamente a construção civil brasileira é um espaço dominado pelo baixo nível de escolaridade, alta rotatividade da mão de obra, índices elevados de desperdício de material e de acidentes de trabalho. Também, é importante ressaltar que se tratar de uma área fortemente influenciada pelos ciclos de crescimento econômico do país, uma vez que por muito tempo foi o setor produtivo responsável por alavancar os índices de empregabilidade aferidos pelo Ministério do Trabalho.

Diante desse quadro desenvolveu-se por muito tempo, de um modo geral, um certo preconceito em relação à construção civil, seja enquanto campo de pesquisa no meio acadêmico seja quando se objetiva trata-la como setor produtivo de cunho industrial. TOMASI (1999) discorre sobre essa imagem negativa relacionada à área:

Não obstante a contribuição de estudos econômicos, a imagem negativa do setor já estava definida, graças a sua dependência do uso da força física e do gesto artesanal do trabalhador que prevalecia às inovações tecnológicas, representadas na indústria, pela introdução de máquinas, equipamentos e componentes cada vez mais performantes que vão revolucionar não somente a fábrica mas a própria sociedade. (TOMASI, 1999. p.22)

É necessário observar que a construção civil ao longo do tempo não acompanhou

o percurso de industrialização vista em outros setores produtivos. Nela prevaleceu o trabalho manual e o emprego de máquinas de pequeno porte; ao mesmo tempo em que não houve uma adequação à organização do trabalho contemporaneamente percebida no meio industrial. Também, cabe destacar que boa parte das pesquisas científicas destinadas à área dirige-se ao desenvolvimento de materiais, ao comportamento de estruturas e à pós-ocupação dos imóveis; não oferecendo de forma efetiva uma contribuição para o entendimento do setor quanto a sua composição humana. Tendo em vista as características peculiares do setor, bem como, os conhecimentos e a cultura ligada aos seus sujeitos integrantes; ainda pouco se sabe sobre os agentes responsáveis pela execução de obras, no intuito de entender quais as particularidades do seu saber, a sua interação com os outros membros de sua categoria e a sua adequação às tarefas empreendias nos canteiros.

O trabalhador da construção civil difere bastante da mão-de-obra encontrada em outros setores produtivos ligados à atividade industrial no Brasil. Segundo TOMASI (1999), a mão-de-obra, por seu turno, foi garantida por uma população de migrantes e/ou imigrantes, basicamente de origem rural e habituada aos trabalhos duros e, de certa forma, aos procedimentos e ferramentas utilizadas na Construção. Sendo assim, nem sempre o profissional em seu ingresso possui uma formação ou uma carreira estabelecida no setor. Na maioria das vezes o indivíduo chega ao canteiro desprovido de conhecimentos sobre os serviços que lhes serão repassados. Diante desse quadro, em boa parte dos casos, o vigor físico e a disposição aos trabalhos duros são os fatores determinantes para a admissão do empregado.

Apesar das inovações tecnológicas e organizacionais inseridas no setor, ainda prevalece a formação profissional desenvolvida no local de trabalho, a partir de um aprendizado empírico e fundamentado na observação de outros profissionais. Sendo assim, o indivíduo, na maioria das vezes, não passa por treinamento preliminar e chega à obra normalmente na posição de ajudante. No dia-a-dia do canteiro, o contato com diferentes serviços e as relações pessoais estabelecidas entre seus pares proporcionam a mudança de posição, fazendo com o trabalhador ascenda para um

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posto de trabalho mais elevado ao anteriormente ocupado. Em conformidade com esse entendimento, BARONE (1999) nos diz que:

Os trabalhadores estão agrupados, segundo sua qualificação e de forma hierárquica, em ajudantes, serventes, meios oficiais, oficiais, encarregados, mestres de obra e, acima, o engenheiro de obra. [...] Entre as diferentes categorias ocupacionais, há uma relação pessoal, não explicitada. A partir do nível e ‘qualidade’ dessa relação (‘boa/ruim’), os trabalhadores de menor qualificação vão sendo ‘escolhidos’ e inseridos no processo de aprendizagem do trabalho, realizado no cotidiano do canteiro de obras, conduzindo lentamente a uma mudança na escala da estrutura hierárquica de ocupações. (BARONE, 1999, p.109)

A mudança na escala hierárquica aludida pela autora, na maioria dos casos, tem

a ver com a aquisição de saberes pelo profissional, que tende permitir a progressão entre as atividades comumente existentes na construção civil. Nesse quadro de posições, há uma setorização provocada pela natureza do ofício desempenhado, o que produz classificações como as de: ajudante, meio-oficial, pedreiro, carpinteiro, armador, instalador, pintor, encarregados e mestres de obra.

Campo dessas transformações, o canteiro de obras na construção civil é o cenário das relações profissionais e da produção em si. Nele, indivíduos de diversas origens e qualificações empreendem um trabalho condicionado ao emprego de grande esforço corporal e de reconhecida periculosidade. Nesse contexto, o trabalhador do setor adquire os saberes necessários à execução dos serviços, ao mesmo tempo em que delineiam um perfil profissional característico; geralmente do sexo masculino, jovem e disposto a empregar, principalmente, a força física como moeda de troca a ser paga pelo empregador. Como contribuição para essa descrição, TOMASI (1999) contribui com a assertiva seguinte:

Atrasada, como querem alguns, ou um modo original de fabricação, como querem outros, o certo é que nos canteiros de obras da Construção Civil predominam, ainda hoje em todo mundo, atividades ‘simples’, perigosas, insalubres e que exigem grande esforço físico. Essas atividades definem a necessidade de uma mão-de-obra jovem, forte, ‘corajosa’ e de ‘boa vontade’ para conviver com tais condições, assim como para adquirir os conhecimentos necessários à sua execução. (TOMASI, 1999, p.7)

Outra característica destacada pelo autor citado tem a ver com a aparente

ausência de transformações ocorridas ao longo do tempo nos locais onde ocorrem as atividades diárias da construção civil. Segundo o autor citado, os canteiros de obras de hoje guardam grande semelhança com os da Idade Média, das grandes obras como, por exemplo, das catedrais que conhecemos daquela época. Ainda, [...] asseguram a semelhança a grande dependência que a Construção tem da sua mão-de-obra, sobretudo qualificada, ou do trabalho artesanal [...] (TOMASI, 1999, p.10). Como se tem verificado no Brasil, nas últimas décadas este quadro tem mudado, ainda que marcas fortes do trabalho artesanal possam ser facilmente identificadas.

Ao mesmo tempo, a lenta transformação no setor propicia alguns pontos positivos. A organização do trabalho reproduzida desde o período medieval tende a

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manter inertes certos saberes que são fundamentais para alguns ramos da construção civil, como o campo da restauração de imóveis.

As edificações antigas apresentam um caráter construtivo distinto dos métodos de produção utilizados na atualidade. No passado, a inexistência de uma cadeia produtiva de materiais de construção obrigava aos trabalhadores terem um domínio acertado das técnicas a serem empregadas e da exploração de matérias-primas com as quais se obteriam os elementos constituintes do edifício. Normalmente, os materiais básicos a serem utilizados eram: a terra, a madeira, a cal, a pedra e, em menor proporção, o metal. Além desses, em alguns lugares, aproveitavam-se fibras vegetais, esterco bovino e entre outros que pudesse ser aproveitado eventualmente.

No caso brasileiro, a arquitetura produzida até o fim do período colonial foi fortemente marcada pelo caráter das relações mantidas com Portugal. A dependência econômica e cultural em relação ao Reino fez com que as edificações erguidas no Brasil mantivessem uma marcante uniformidade, construtiva e arquitetônica, ao longo dos quase quatro séculos de domínio português. Nesse sentido, a construção de residências, edifícios públicos e religiosos, obras viárias e demais instalações, estiveram condicionadas a princípios criados na Metrópole e pouco sofreram modificações quando aqui desenvolvidas.

Apesar da corrente de modernização provocada pelas novas técnicas e materiais introduzidos a partir do séc. XIX, a dependência do trabalho manual não permitiu o abandono completo da herança construtiva portuguesa de imediato. Em regiões mais remotas do país, ainda é possível encontrar edificações produzidas com terra crua e matérias-primas vegetais, nas quais foram empregados métodos construtivos semelhantes aos encontrados em imóveis do período colonial. Sobre a predominância de tais características na construção civil, HARDMAN & LEONARDI (1991) observam que:

No século XIX e início do atual [séc. XX], entretanto, a construção civil ainda guardaria muitas das características da arquitetura do século XVIII. Na construção de casas residenciais, o trabalho ainda era artesanal, sendo empregados muitos artistas nos serviços de alvenaria e madeira, guarnecimento de janelas e balcões, utilização de ferro forjado, azulejos etc. (HARDMAN; LEONARDI, 1991, p.39)

Se num passado não muito distante a herança construtiva portuguesa foi

considerada sinal de atraso e de um processo defasado de construir, na atualidade o desconhecimento das características das construções dos séculos passados, bem como dos materiais e técnicas utilizados antigamente, tem sido um dos maiores desafios na conservação do patrimônio arquitetônico brasileiro. Nesse sentido, a dificuldade em se encontrar profissionais com a qualificação necessária à execução de restaurações é um dos problemas recorrentes na construção civil voltada para a área. As técnicas construtivas empregadas nos edifícios do período colonial estão em desuso em boa parte do país; além disso, o ensino de tais técnicas muitas vezes não faz parte do cotidiano das obras e de cursos de capacitação que atendem o setor.

No Brasil, pensando-se no mercado existente para a preservação do patrimônio edificado, poucas empresas do setor construtivo destinam suas ações somente para o restauro de edifícios. A grande maioria define a atuação no campo da restauração como uma atividade complementar, sem a exigência de manter um quadro profissional especializado para tal função. A falta de uma política sólida de investimentos na

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preservação aliado ao alto custo da mão-de-obra capacitada para a função são normalmente os maiores empecilhos para a consolidação do restauro como um setor promissor na construção civil, apesar do grande acervo de bens arquitetônicos em todo o país. Tal situação interfere diretamente na formação de trabalhadores para atuar na área, uma vez que não há continuidade nas medidas de incentivo criadas para atender a demanda de bens que precisam ser restaurados e, por consequência, não incentivam a formação de mão-de-obra especializada através de cursos profissionalizantes.

Com a evolução das técnicas construtivas e a inserção de materiais industrializados na construção de edifícios, as práticas derivadas da arquitetura colonial foram abandonadas gradualmente após as primeiras décadas do séc. XX na maioria das cidades brasileiras. No entanto, o saber fazer ligado às técnicas construtivas tradicionais sobreviveu em locais onde a renúncia definitiva destas não foi possível, seja por fatores econômicos que retardaram o desenvolvimento urbano local ou pela existência de edifícios que necessitassem de tais técnicas para obras de manutenções ou reformas e, posteriormente, nas restaurações promovidas pelos órgãos de proteção do patrimônio cultural.

Tais conhecimentos foram necessários às primeiras obras de restauro promovidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão chancelado pelo Estado para a proteção do patrimônio cultural brasileiro em atuação no país desde 1937. Conforme Márcia Chuva (2010) nos mostra no trecho abaixo, identificar profissionais que ainda detinham o saber relacionado às técnicas construtivas antigas foi fundamental para a restauração de imóveis.

Para fabricação de materiais novos semelhantes aos ‘primitivos’, era necessário recorrer à mão-de-obra local que dominasse as técnicas antigas, como, no caso dos carpinteiros empregados [na restauração da casa na Rua do Amparo nº 28 em Olinda], agregando, assim, trabalhadores cujas funções, ofícios, conhecimentos e serviços não encontravam mais demanda, substituídos por produtos industrializados. Eles tornaram-se fundamentais nas restaurações, que necessitavam da produção artesanal de peças de carpintaria, serralheria, cantaria, por exemplo e, desse modo, populações desconectadas das malhas de controle do Estado por se encontrarem isoladas em suas próprias localidades foram sendo paulatinamente integradas. Essas pessoas foram identificadas e integradas como trabalhadores ou como fornecedores de peças de produção artesanal, inacessíveis por estarem fora do circuito comercial e produtivo. (CHUVA, 2010, p.3)

Dessa forma, o IPHAN teve importante contribuição para que determinados

ofícios praticados na arquitetura antiga continuassem a serem usados, principalmente, nas cidades chanceladas pelo órgão onde se encontram grande parte das edificações do período colonial. As orientações para a restauração destes imóveis influenciaram na manutenção de técnicas construtivas e materiais semelhantes aos originais, no lugar da simples substituição.

Condicionados por estes e outros fatores extrínsecos a esse debate, vários ofícios tradicionais da construção civil ainda subsistem espalhados pelo país. Em Minas Gerais, principalmente na região das cidades do Ciclo do Ouro, diversos profissionais ligados a estas técnicas ainda podem ser encontrados, entre os quais boa parte têm sua atividade principal voltada a obras de preservação do patrimônio arquitetônico.

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De imediato, sabe-se que estes trabalhadores normalmente possuem uma faixa etária mais elevada e aprenderam os ofícios tradicionais a partir do tirocínio in loco, apreendido a partir do contato com as técnicas construtivas antigas. O conhecimento adquirido, em boa parte dos casos, desenvolveu-se como comumente ocorre na construção civil, baseado na observação de outros trabalhadores em atuação e no cotidiano do canteiro de obras. No contexto que trata da forma de apreensão do trabalho, os autores, citados anteriormente, fazem a seguinte referência sobre a transmissão de saberes entre os indivíduos a serem pesquisados:

Nota-se no sítio esta clara relação de transmissão do conhecimento, o qual se dá prioritariamente pela relação mestre/aprendiz. [...] Ainda dentre os profissionais identificados, notou-se a presença de alguns com tradição familiar no ofício ou ainda com aprendizado na Europa. (ALONSO; ARAÚJO, 2010, p.48)

A transmissão do conhecimento conforme o registrado por ALONSO & ARAÚJO

(2010) se assemelha bastante com o método difundido no período colonial, de acordo com a tradição difundida pelas Corporações de Ofícios da Idade Média. No Brasil, no entanto, cabia às irmandades religiosas e confrarias o papel desenvolvido pelas corporações, como regulador das atividades produtivas e do ensino dos ofícios (HARDMAN; LEONARDI, 1991).

Nesse quadro de transmissão de saberes, ao mesmo tempo semelhante pelo método de aprendizado mas distinto pelo caráter do serviço a ser realizado nas restaurações, é preciso compreender por que alguns trabalhadores da construção civil acabaram seguindo um caminho diferenciado, adquirindo assim uma qualificação distinta dos demais profissionais da área. É importante considerar também, que somente o contato com as técnicas construtivas do passado talvez não seja o fator determinante nesse quadro; haja vista que, em locais onde são encontrados imóveis construídos até a primeira metade do séc. XIX, a arquitetura antiga coexiste com a praticada após esse período.

Com isso, faz-se necessário aumentar o foco de observação para os fatores socioculturais estabelecidos em torno das funções exercidas no nicho da construção civil no qual se estabelece o recorte. O caráter de rememoração de um passado distante relacionado ao ato de restaurar um imóvel antigo pode ser um dos motivos a influenciar a escolha deste profissional, no intuito de restituir a sensação de estabilidade e continuidade provocada pela arquitetura. Com isso, podemos recorrer a HALBWACHS (2006) no entendimento desse sentimento:

A estabilidade da habitação e sua aparência interior não deixam de impor ao grupo a imagem pacificante de sua continuidade. Anos de vida comum passados num contexto a esta altura uniforme mal se distinguem uns dos outros, e se poderá duvidar que muito tempo tenha passado e tenhamos mudado imensamente no intervalo. Isso não está totalmente errado. Quando inserido numa parte do espaço, um grupo o molda à sua imagem, mas ao mesmo tempo se dobra e se adapta a coisas materiais que a ela resistem. O grupo se fecha no contexto e construiu. A imagem do meio exterior e das relações estáveis que mantém com este passa ao primeiro plano da ideia que tem de si mesmo. [...] (HALBWACHS, 2006, p.159)

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Provocados pela ideia de uma continuidade estabelecida permitida pelos edifícios, este autor ainda nos infere que “quando um grupo humano vive por muito tempo em um local adaptado a seus hábitos, não apenas a seus movimentos, mas também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens materiais que os objetos exteriores representam para ele [...]” (HALBWACHS, 2006, p.163). Com isso, percebemos que a existência de locais onde se salvaguarda a arquitetura dos séculos anteriores pode influenciar nos indivíduos o intuito de manter vivos os laços com os objetos materiais que representam este passado. Nesse sentido, a opção pela atuação no restauro de imóveis antigos pode ter sido originada em uma experiência coletiva e não somente individualmente, conforme as oportunidades profissionais oferecidas ao trabalhador a ser estudado.

Ainda cabe discutir a constituição das atividades executadas pelos trabalhadores da construção civil que atuam na restauração a partir da concepção de ofício. No contexto estudado tratamos de práticas que não estão encerradas na fragmentação do saber, mas na exploração de todas as possibilidades técnicas envolvidas na recuperação de materiais e elementos a serem restaurados. Pela diversidade de soluções construtivas empregadas na arquitetura antiga, o profissional atuante nessa área precisa explorar habilidades que se dão em conjunto e não permitiriam aplicação do saber de forma dissociada. Para compreensão de ofício nos moldes tratados, recorremos ao trecho abaixo referendado em TOMASI & SILVA (2007):

O ofício, portanto, no sentido que sempre balizou as práticas artesanais e que muitos sociólogos do trabalho ainda hoje reclamam, é o encontro de habilidades técnicas, intelectuais e manuais associadas a uma experiência. É, finalmente, o reconhecimento social da posse de um saber, de um saber-fazer, de uma identidade, construídos a partir desta tripla habilidade, esta experiência. (TOMASI; SILVA, 2007, p.6)

Estes autores recorrem à ideia de que o ofício tem a ver com o reconhecimento

social que por consequência produz identidade, fato que concernentemente condiz com a proposta da pesquisa em andamento. Ao ser reconhecido pela função exercida no campo da restauração, o profissional a ser estudado adquire fundamental importância, uma vez que existe em todo o país um grande número de bens que demandam de preservação.

De acordo com a metodologia empregada no restauro, deve-se sempre preferir a manutenção de técnicas e materiais semelhantes aos originais. Segundo a Declaração de Amsterdã de 1975, “[...] é importante atentar para que os materiais de construção tradicional ainda disponível e as artes e técnicas tradicionais continuem a ser aplicados” (IPHAN, 2004, p.209). Igualmente, a Carta de Restauro de 1972, “[...] uma exigência fundamental da restauração é respeitar e salvaguardar a autenticidade dos elementos construtivos da obra. Esse princípio deve sempre guiar as escolhas operacionais.” (BRANDI, 2005, p.244).

Por fim pretende-se na pesquisa empreendida entender que caminhos conduziram alguns trabalhadores da construção civil à atuação na restauração de imóveis, sendo que possivelmente esse ato não esteja limitado às situações vivenciadas nos canteiros de obra. Dessa forma, o tema abordado permite uma investigação de processo, no qual se desenvolve a formação do trabalhador diante sua natureza, suas características e as exigências existentes na trajetória profissional desse indivíduo; ao

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mesmo tempo em que possam ser encontradas motivações de cunho sociocultural na “opção” ou na “falta de opção” por este campo dentre outros no setor.

2. Método de Análise Usado na Pesquisa

O desenvolvimento da pesquisa será realizado em duas etapas. A primeira delas pretende construir um modelo teórico inicial para referendar a análise dos dados obtidos na etapa de investigação de campo. Antes de tudo, é preciso definirem-se algumas concepções metodológicas, necessárias à compreensão do objeto de pesquisa de forma a enquadrar-se no campo da educação profissional e tecnológica.

Na análise a ser inferida, sabe-se que o trabalhador estudado domina competências que o singulariza de outros de sua categoria, como: a habilidade para trabalhos detalhados, a compreensão do funcionamento das técnicas construtivas antigas, o conhecimento da possibilidade de uso e da limitação dos materiais de construção empregados nas edificações dos séculos passados, a posse de um senso artístico e estético razoavelmente elaborado e, também, uma vocação para trabalhos artesanais. Sem desqualificar o individuo que atua na construção civil convencional, que também constrói sua carreira a partir de experiências e conhecimentos específicos permitidos por sua atuação, entendemos que o profissional inserido na área da restauração necessita reunir alguns saberes que o qualifica para tanto. Esse arcabouço de saberes são os que, ao mesmo tempo, o modifica e o distingue dos outros membros de sua categoria profissional, permitindo o afastamento da prática que lhes é concernente daquelas que são comumente reconhecidas no segmento construtivo.

A luz desse entendimento pode-se inferir que os trabalhadores a serem estudados são transformados pelo seu trabalho; no sentido de que o caráter da atuação do indivíduo permite, por meio de seus atos, interagir com seu objeto de trabalho. Por consequência disso, ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. [...] (MARX, 1996, p.297)

Na área da construção civil na qual se desenvolve este estudo, tem-se a oportunidade de conhecer que determinados indivíduos interagem com seu objeto trabalho e desta relação desenvolvem uma linguagem própria de atuação; como, por exemplo, no caso de mestres canteiros que, de acordo com o conhecimento popular, “conversam” com as pedras para obter o produto final de seu trabalho. Este ato de “conversar com o objeto” se dá por meio do conhecimento adquirido, na experiência profissional e na interação entre homem e natureza. Nesse sentido, também se pode recorrer a BERGER & LUCKMANN (2010) que oferece a seguinte compreensão:

A expressividade humana é capaz de objetivações, isto é, manifestações em produtos da atividade humana que estão ao dispor tanto dos produtores quanto dos outros homens, como elementos que são de um mundo comum. Estas objetivações servem de índices mais ou menos duradouros dos processos subjetivos de seus produtores, permitindo que se entendam além da situação face a face em que podem ser diretamente apreendidas. [...] (BERGER; LUCKMANN, 2010, p.52)

Desta forma, como método de validação das hipóteses apresentadas, na segunda

etapa dar-se-á a partir da realização de entrevistas semiestruturadas, que contribuirão

165

com o entendimento de que a trajetória profissional do trabalhador atuante na restauração decorre de uma interação socioprofissional, na qual esse indivíduo é transformado, ao mesmo tempo, por sua prática na construção civil e pelo meio no qual está inserido. Com isso, o nicho profissional dos indivíduos estudados teria incisiva influência sobre o caminho a ser seguido, no sentido de que diante da inexistência certas condições, necessárias ao desenvolvimento dos conhecimentos voltados ao trabalho de restauro, não surjam àquelas que farão com que o trabalhador esteja apto para tal.

Considerações Finais

Diante das perspectivas apontadas pelo aporte inicial da pesquisa, tem-se o entendimento que os fatores, que conduzem a trajetória profissional dos trabalhadores para o campo da restauração e não para os demais da construção civil, são fruto de uma inter-relação entre as oportunidades profissionais e os saberes disponíveis a serem apreendidos. Sendo assim, o caminho seguido por este indivíduo se caracteriza por uma convergência entre habilidades possuídas e um ambiente gerador; ambiente este possivelmente relacionado a locais que dispõem de imóveis antigos.

Desta forma, o trabalhador inicia sua carreira, comumente, como qualquer agente da construção civil, exposto aos mesmos percalços existentes a todos os profissionais do setor. Porém, a possibilidade de adquirir os conhecimentos necessários à restauração tenderia a transformar e a caracterizar esse indivíduo, de acordo com os valores existentes no meio. Com isso, pode-se presumir que a posse do conhecimento advém de uma interação socioprofissional, na qual objeto de trabalho e trabalhador interagem a partir de uma linguagem singular, constituída no cerne de um campo profissional específico.

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167

UTILIZAÇÃO DA CONSERVAÇÃO PATRIMONIAL MATERIAL COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL: AVALIAÇÃO DO PROGRAMA ESCUELAS TALLER NO NORDESTE DO BRASIL

Karla Nunes Penna & Elisabeth Taylor

Resumo

O objetivo desse artigo é discutir estratégias locais para fortalecimento de

capacidades regionais, através da avaliação de programas de treinamento para

a conservação patrimonial localizados no nordeste do Brasil 65, usando como

estudo de caso as Oficina-escolas (Escuelas Taller) implantadas nas cidades de

São Luís, João Pessoa e Salvador. O foco é discutir a utilização de programas

de treinamento para a conservação como instrumento de inclusão social,

investigando questões decorrentes dessa associação e desafios a serem

superados para garantir o desempenho apropriado e a continuidade de

programas dessa natureza.

Palavras-chaves: avaliação, conservação patrimonial, inclusão social, Escuelas

Taller, nordeste do Brasil.

Curtin University of Australia, School of Education. [email protected] CECI. [email protected] 1 Esse estudo é resultado de uma pesquisa de mestrado em Patrimônio Cultural, realizada pelos autores deste artigo, através da Curtin University of Australia. Essa foi uma pesquisa etnográfica realizada em 2010/2011, que incluiu coleta e análise de documentação, entrevistas semi-estruturadas e observação direta in loco, com o objetivo de desenvolver uma análise de performance de centros de treinamento para a preservação, usando como estudo de caso não só as oficinas escolas mas também outros programas de formação para a conservação localizados na região nordeste do Brasil. A investigação foi focada em obter e analisar dados com o objetivo de identificar problemas relacionados à educação para a preservação pertinentes a esses centros de treinamento.

168

Introdução

Ensinar não é tranferir conhecimento, mas criar possibilidades para a

sua produção ou sua construção. Quem ensina aprende ao ensinar, e

quem aprende ensina ao aprender. Paulo Freire

As dificuldades sociais e econômicas as quais os países em desenvolvimento

estão sujeitos afetam fortemente a preservação do patrimônio dos centros históricos

localizados nessas áreas. A prioridade de ação política tem como foco questões básicas

de sobrevivência, tais como redução da pobreza, estabelecimento da equidade e da

sustentabilidade, luta para atender às necessidades básicas como alimentação,

moradia, cuidados médicos e acesso à educação, o que faz com que a conservação

patrimonial fique relevada a segundo plano dentro do contexto urbano.

Esses problemas sociais e econômicos afetam fortemente o desenvolvimento de

processos educativos, frequentemente tornando impraticáveis iniciativas de promoção

social e econômica sustentáveis. Ao mesmo tempo, a expansão econômica

ambientalmente insustentável em países em desenvolvimento, conduz a um perigoso

processo de degradação dos recursos naturais e culturais, dos quais as pessoas imersas

na pobreza dependem para sua sobrevivência (King, 1999)

Analisando o contexto das cidades históricas do nordeste do Brasil, de um lado

podemos observar enormes e valiosos acervos a serem mantidos, com prédios

apresentando alto estágio de degeneração, muitos abandonados, e áreas urbanas

degradadas. Por outro lado, temos os centros históricos abrigando comunidades de

baixíssima renda, inseridas e contribuindo para manter um difícil e complexo ambiente

social.

Na tentativa de associar as questões sociais e a preservação do patrimônio,

diversos programas tem sido implementados visando capacitar jovens em situação de

vulnerabilidade social para executar serviços de conservação de prédios e centros

históricos, com o objetivo de incluir essas pessoas em uma futura carreira no mercado

da construção civil. Esse tipo de programa de capacitação tem um forte apelo social, e

tem se apresentado como uma forma indireta de redução da pobreza através de

169

treinamento profissional, buscando geração de oportunidade de emprego e renda e

integração desse público no mercado de trabalho.

Um importante exemplo desse tipo de ação é o Programa Oficina-Escola. A

partir de 1991 os governos espanhol e brasileiro entraram em acordo para a

implementação do programa Escuelas Taller no nordeste do Brasil, conhecido pelo

nome de Oficina-Escola nas cidades de João Pessoa e São Luís e como Escola-Oficina

em Salvador (Agencia Española de Cooperación Internacional y Desarrollo – AECID,

2010). Após mais de 20 anos de implantação do primeiro projeto na cidade de João

Pessoa, é importante fazer uma avaliação desse tipo de iniciativa, com foco (1) na

discussão sobre a utilização de programas de conservação do patrimonial cultural

como instrumento de inclusão social e (2) nos desafios a superar para viabilizar o

funcionamento de programas dessa natureza.

É impossível dentro do escopo desse artigo discutir por completo esse tópico

mas alguns pontos importantes podem ser abordados visto que são familiares aos

profissionais envolvidos com o sistema de treinamento para a preservação.

1. Sites culturais, comunidades locais e pobreza

As principais questões a serem enfrentadas pelas cidades que possuem

patrimônio cultural a preservar geralmente não giram em torno de questões culturais e

sim de aspectos sociais, tais como: a luta pela redução da pobreza, promoção de

programas para a garantia dos direitos civis e políticos das comunidades locais,

melhoria dos níveis de empregabilidade e renda, busca por maior qualidade de

habitação e acesso à educação, serviços de saúde e equipamentos sociais (King, 1999).

Vários outros problemas são resultados de rápido desenvolvimento,

disposições legais insuficientes, dificuldade de coordenação interdepartamental e de

integração de políticas, falta de planejamento e monitoramento, e falta de recursos em

comparação com a demanda, entre outros (International Centre for the Study of the

Preservation and Restoration of Cultural Property - ICCROM, 1995). Para agravar a

situação, ou como uma conseqüência dela, o Brasil é um país que apresenta um dos

mais altos níveis de desigualdade econômica e social entre o grupo G20 (OXFAM,

170

2012). A longo prazo, essa desigualdade crescente torna improvável um crescimento

sólido o suficiente para melhorar o estado atual de pobreza em determinadas áreas do

país.

Ao examinar algumas questões referentes a preservação cultural levantadas

durante essa investigação e também observando as rápidas mudanças que ocorrem

atualmente no ambiente natural e seus impactos sobre o patrimônio cultural e

assentamentos humanos, podemos observar que, a fim de alcançar práticas de sucesso

em formação para a conservação, é imperativo saber não só como lidar com estas

questões relacionadas à pobreza, mas também saber gerir o sensível equilíbrio entre

políticas, instrumentos, estratégias e as atores interessados (Sullivan, 2004).

Sítios considerados patrimônio mundial demandam uma gestão complexa.

Analisando as cidades utilizadas como estudo de caso nessa pesquisa, São Luís por

exemplo, é o maior centro histórico na América Latina. Mais de 5.600 edifícios

distribuídos em 220 hectares, prédios de enormes dimensões, grande parte

abandonados ou servindo como moradia de parte das pessoas mais pobres da cidade

(Nunes, 2005). Devido a esse difícil contexto sócio-econômico, os centros históricos

apresentam todo o tipo de problema social: alto índice de criminalidade, prostituição,

tráfico de drogas, violência, expondo os moradores a uma vida instável e insegura.

A situação do centro histórico de São Luís é muito semelhante com as outras

cidades históricas do nordeste do Brasil, consideradas ou não patrimônio da

Humanidade pela UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural

Organization). Apesar de ter histórias, influências e assentamentos urbanos diferentes,

há várias semelhanças entre essas cidades, que se conectam através da similaridade do

contexto econômico e social.

Trabalhar com patrimônio cultural em países em desenvolvimento não é uma

tarefa fácil. Além das questões sociais e econômicas, existe uma grande preocupação

com a falta de especialistas qualificados que garantam a conservação do patrimônio e o

uso sustentável dos recursos (Albert, Bernecker, Perez, Thakur, e Nairen, 2007).

Preservação demanda pessoas treinadas com habilidades necessárias para conduzir

intervenções e processos de decisão levando em conta a complexidade e a

171

multidisciplinaridade desse campo. Não apenas treinadas para trabalhar levando em

consideração a preservação do patrimônio natural e cultural em contextos de pobreza,

mas principlamente considerando que existe acima de tudo um "patrimônio vivo",

pessoas que vivem, trabalham e usufrem de locais históricos em suas vidas cotidianas

(Thakur, 2007). Além disso, sítios históricos têm que atender a exigentes e inflexíveis

legislações nacionais e recomendações internacionais, e ainda devem atender às

demandas econômicas da sociedade nos quais estão inseridos. Agravando a situação,

os problemas sistêmicos profundamente enraizados nos países em desenvolvimento,

tais como corrupção, violência, e injustiça social, tornam mais difícil as possibilidades

de desenvolvimento de políticas de sucesso (The World Bank, 1999).

Como conseqüência, muitas vezes os resultados dos programas não atendem as

demandas das comunidades locais. Sendo assim, encontrar maneiras de conciliar os

problemas decorrentes do contexto local e as ações de treinamento para a conservação

e preservação tem provado ser um desafio a ser superado por governos, instituições,

gestores e profissionais.

2. Programas de formação para a conservação e inclusão social

O objetivo do treinamento para a conservação é garantir que os procedimentos

sejam executados dentro do quadro legal e técnico estabelecido pelos orgãos gestores e

reguladores da preservação, considerando ainda as qualidades e os valores de cada

sociedade, o contexto cultural, social e econômico local, e os riscos e pressões a que

cada sítio está submetido (International Centre for the Study of the Preservation and

Restoration of Cultural Property – ICCROM, 2010). O treinamento para a conservação é

uma ação interdisciplinar, que demanda interação entre comunidades locais, os setores

público e privado e os todos os outros atores envolvidos e interessados no processo de

preservação. Gilmour (2007) enfatiza que é importante considerar que a preservação

depende do que as pessoas acham que vale a pena preservar, em um determinado

momento de suas histórias, e dentro de um contexto específico. Sendo assim, as

estratégias de treinamento para conservação devem ser desenvolvidas com base nessa

percepção das comunidades locais.

172

Durante a história da conservação patrimonial não houve programa de

treinamento ideal, e sim uma longa história de tentativas, experiências e reflexões, que

geraram uma grande quantidade de recomendações e propostas de formação. A partir

da Convenção do Patrimônio Mundial (UNESCO, 1972) em diante, um número

crescente de programas de formação foram organizados em universidades e

instituições de formação técnica. Em paralelo com essas iniciativas, o conceito de

patrimônio em si tem sido ampliado, principalmente na segunda metade do século 20,

com o envolvimento de um número sempre crescente de disciplinas e de partes

interessadas no processo de treinamento (Jokilehto 2006).

Por um longo tempo, os governos de países em desenvolvimento têm investido

grande esforço no sentido de implementar programas de treinamento que auxiliem a

revitalização do patrimônio. Estas iniciativas são de grande importância para a

preservação de bens culturais e para as comunidades locais. Investimentos em

conservação do patrimônio construído têm sido reconhecidos por instituições

internacionais de desenvolvimento como fatores importantes para a redução da

pobreza. Documentos recentes do Banco Mundial elaborado no âmbito do tema

"Desenvolvimento Ambiental e Socialmente Sustentável (ESSD)" consideram os

investimentos em conservação de áreas históricas como estratégias viáveis para a

redução da pobreza, especialmente por meio de projetos que favoreçam a criação de

novos empregos e mão de obra qualificada, resultando em redução da pobreza e uma

maior inclusão social.

3. O programa Escuelas Taller no Brasil

A situação social que os países em desenvolvimento apresentam têm

despertado o interesse da comunidade internacional, especialmente as organizações

interessadas em promover benefícios econômicos e redução da pobreza, através de

programas de preservação do patrimônio cultural, tais como, Banco Mundial e

UNESCO. Muitas parcerias também tem sido estabelecidas entre países latino-

americanos e europeus, buscando o desenvolvimento sustentável da preservação

através de programas com foco na promoção da inclusão social (ICCROM, 1995).

173

Nesse sentido, uma importante iniciativa foi realizada pelo governo espanhol,

chamada Oficina-Escola (Escuelas Taller). Esse projeto tem como objetivo proporcionar

a jovens carentes, entre 18 a 23 anos, em situação de vulnerabilidade social,

oportunidades de inserção no mercado de trabalho e de integração social, por

intermédio da formação de mão-de-obra para a recuperação do patrimônio cultural, e

da complementação da escolaridade formal dos alunos (AECID, 2010). O projeto

Oficina-escola abrange mais que uma mera qualificação de mão-de-obra. Visa também

a complementação da educação formal. Teoria e prática são indissociáveis nesse

contexto, estabelecendo uma ligação entre trabalho manual, valorização do patrimônio

e promoção da cidadania.

O projeto baseado no programa espanhol Escuelas Taller y Casas de Ofícios,

iniciado em 1985 em Madri, está no Brasil desde 1991, com escolas de João Pessoa

(implantanda em 1991) , de Salvador (1997) e de São Luís (2006). As oficinas-escolas são

centros de trabalho e formação, onde jovens que vivem em situação de risco social

recebem formação profissional, ao mesmo tempo que praticam um ofício tradicional

específico dentro de um canteiro de uma obra de restauro (OECD, 1998). A essência da

metodologia da oficina-escola é de "aprender a fazer, fazendo" e, enfatizando o "como

fazer", o "porquê fazer" e "para que fazer" (FUMPH, 2006).

Analisando dados estatísticos relacionados ao público alvo, podemos observar

que entre os 191 milhões de brasileiros, 34,6 milhões são jovens de 15 a 24 anos de

idade (IBGE, 2010) e 14,5% da população vivem em situações precárias de extrema

pobreza (linha de indigência). Temos assim cerca de 5 milhões de jovens sob condição

social vulnerável, com potencial de serem envolvidos neste tipo de curso de formação

profissional. Se considerarmos aqueles que estão abaixo da linha de pobreza (não

considerados em pobreza extrema), mas ainda sem condições adequadas de vida,

temos o índice de 34,1%, ou seja, cerca de 11,8 milhões de pessoas. Isso significa que

temos quase 17 milhões de jovens expostos a todos os tipos de risco social, que vivem

sem oportunidades, dentro de um mundo cercado por violência e injustiça. Programas

de formação dirigidos a esses jovens são uma forma de ajudar a aliviar a situação. Eles

podem fornecer formação profissional a esses jovens e prover acesso a um outro

mundo com outras possibilidades diferentes das quais eles possuem atualmente.

174

A AECID, instituição responsável por fomentar essa iniciativa e também por

parte do suporte financeiro das Oficinas-Escolas, não impõe um projeto definitivo nem

um modelo a seguir, e sim um projeto adequado a cada cidade, desenvolvido pela

equipe gestora local, baseado em um intercâmbio de experiências e conhecimentos que

a Espanha tem em determinadas áreas (Mansilla, 2007). Em cada cidade, a

implementação do projeto Oficina-escola demandou a constituição de parcerias

públicas e privadas para viabilizar os programas. O projeto Oficina-escola teve como

prioridade criar condições para que a própria comunidade possa participar do

processo de revitalização, promovendo sua inclusão como parte atuante nas decisões,

como residentes conscientes de suas responsabilidades, direitos e deveres e como mão

de obra qualificada no processo de preservação e conservação de seu patrimônio

cultural.

No entanto, apesar de todo o mérito social que esse programa possui, algumas

questões decorrentes do uso do restauro como instrumento de inclusão social precisam

ser discutidas. A fim de se alcançar um contexto educacional e formativo sustentável

muitos problemas precisam ser superados.

4. Desafios a serem superados

Associar a demanda do mercado por pessoas treinadas em conservação com a

necessidade de oferecer mais oportunidades de emprego e renda a jovens em situação

de vulnerabilidade virou uma constante a nível nacional, que muitas vezes pode não

resolver nem um problema nem outro. Independente do forte apelo social dessas

iniciativas, a abordagem prática desses programas tem que ser discutida.

A pergunta a ser respondida é se é válido e eficiente _social e tecnicamente

falando_ usar programas de conservação do patrimônio como instrumento de inclusão

social. Quais são os benefícios reais desse tipo de associação? Sem dúvida, programas

dessa natureza trazem a curto prazo fortes benefícios sociais, gerando, além de uma

renda temporária por dois anos, oportunidades para essas pessoas de serem inseridas

no mercado de trabalho ao mesmo tempo que treina profissionais para atuar nas obras

de conservação. Segundo alguns participantes da pesquisa, essa associação restauro-

inclusão social é possível e trás vários benefícios associados. Primeiro, como o jovem

175

integrante da Oficina-escola se mantem na escola formal, ele agrega o benefício da

formação escolar tradicional à formação profissional. Segundo, os jovens que

trabalham com um patrimônio que pertence a eles e com o qual eles se identificam

“enxergam” e defendem melhor seus monumentos, empreendendo esforço e dedicação

laboral para recuperar sua própria cultura.

O diferencial do treinamento é a evocação do sentimento de pertencimento, a

apropriação sentimental, e consequentemente a responsabilidade associada de cuidar

do que é seu. O valor cultural único, significativo para a comunidade no qual o jovem

está inserido associado à capacitação técnica e à educação complementar (como a

formação para a cidadania), gera resultados mais efetivos do processo de educação

para a preservação, tornando-a mais abrangente e eficaz. No entanto, para atingir essa

efetividade, existem muitos desafios a superar. Entre outras questões, os seguintes

problemas foram identificados pelos participantes do estudo:

(1) O primeiro ponto levantado é que muitas vezes a implantação desses

programas é feita sem um apropriado conhecimento do mercado, um estudo

compreensivo para identificar quais cursos promover para que esse jovem seja

absorvido após o treinamento com mais facilidade, atendendo as demandas locais do

setor da construção civil. O planejamento dos treinamentos devem ser baseados na

investigação do que o mercado realmente precisa, que tipo de profissionais precisam

ser formados. Conhecendo exatamente o que o mercado precisa e as habilidades

requeridas, a formação pode ser mais direcionada, visando preencher as lacunas

existentes dentro dos contextos locais.

(2) Em segundo lugar, programas práticos de treinamento para a conservação

demandam grande engajamento do aprendiz com o ambiente de trabalho. Qualificação

é resultado de um processo de aprendizado prolongado dada a necessidade de

envolvimento e compreensão de técnicas e procedimentos. Com as obras de restauro

_canteiro prático dos treinamentos_ sendo regidas pela Lei n. 8.666 (que prevê que a

execução de obras da construção civil será concedida à empresa que oferecer proposta

com menor preço e/ou execução em menor prazo), torna-se praticamente inviável o

treinamento adequado dos aprendizes. A pressão pela execução rápida afeta a

transmissão do conhecimento e consequentemente a qualidade do ensino. Outro

176

problema relacionado à mesma questão é que o aprendiz, o mestre de obra e qualquer

outro profissional relacionado com os trabalhos de conservação tem que estar

obrigatoriamente vinculados a uma empresa ou construtora, visto que só a elas é

concedido o direito de intervir fisicamente nos prédios.

(3) Outra questão é que esses programas objetivam treinar pessoas muitas vezes

sem preparo educacional formal. Os programas estão sendo direcionados para jovens

que não possuem conhecimento prévio de construção civil, e que muitas vezes mal

sabem ler e escrever. Esse público tem um ritmo diferente de aprendizado. Deixando

um pouco à parte a questão patrimonial e analisando a situação social dos jovens-alvo

desses programas, verificamos que eles se encontram numa situação social

desfavorável onde muitos estão envolvidos com drogas, com prostituição, estão fora da

escola porque as famílias precisam que trabalhem para complementar a renda, muitas

vezes engajados em trabalho semi-escravo, imersos em famílias desfuncionais. Essas

pessoas requerem assistência específica e metodologias diferenciadas com vistas a

promover uma aprendizagem eficiente. A capacitação técnica é a chave do

treinamento, mas estratégias mais elaboradas de associação da formação profissional

ao contexto social são fundamentais na busca do desenvolvimento social e pessoal

desses aprendizes.

(4) A fluência da transmissão de conhecimento entre o mestre e o aprendiz

também afeta o treinamento. Existe um abismo de conhecimento entre os mestres-

artífices e os jovens. De um lado, o conhecimento que levou à construção patrimônio

brasileiro não foi um conhecimento popular, foi um conhecimento erudito, onde as

pessoas que não frequentavam a escola formal tinham formação de qualidade; esse é o

background dos mestres. Do outro lado, temos os jovens em risco social, com

dificuldade de absorver o conhecimento e demonstrando problemas de

comportamento, interação social e formação elementar. Foi observado durante a

pesquisa que os mestres tem dificuldade em lidar com os aprendizes e acabam por

tratá-los como “peões de obra”. Issso torna a relação mestre-aluno difícil, e dificulta a

transmissão de conhecimento. Além disso, as gerações são muito diferentes. A geração

dos jovens, com outra leitura do mundo, não está muitas vezes disposta a se engajar

em uma trasmissão lenta do conhecimento, de se tornar discipulo de um mestre em

177

anos de aprendizado contínuo. A própria construção civil contemporânea demanda

um tempo de formação mais rápida, com aplicação de novas tecnologias e

metodologias. É necessário haver uma conexão entre essas duas “línguas”. Essa nova

linguagem também demanda informatização, enquanto muitos mestres mal sabem

ligar um computador.

(5) A falta de reconhecimento desses cursos pelo Ministério da Educação - MEC

também foi apontado como um problema a superar. O certificado emitido pelas

Oficinas-escolas não possui a selo do MEC o que significa que não é uma ação

educativa inserida no processo formação regrada e continuada oficial. É importante

que esse período dentro da oficina escola seja homologado dentro do sistema

formativo o país. Enquanto isso não acontece, as oficinas fornecem um ensino que não

pode ser aproveitado na grade oficial de educação no Brasil, que nem dá uma titulação

nem tem interface com a formação tradicional. Mesmo que as oficinas estejam

provendo uma educação de excelência, esse conhecimento não está sendo integrado no

sistema oficial de ensino.

(6) O inexistente acompanhamento do ex-aluno também foi um fator apontado

pelos participantes como um problema. Nenhum dos centros de treinamento sob

estudo possui um mecanismo sistematizado de monitoramento do aluno pós-

treinamento, apesar de todos os entrevistados ressaltarem o quanto isso seria

importante, visto que isso forneceria um feedback essencial sobre se o ensino fornecido

está sendo suficiente e adequado ao que o mercado e instituições demandam. A

escassez de recursos foi a justificativa geral apresentada para a não avaliação pós-

implantação dos projetos. Há a falta de recursos, sempre presente em países em

desenvolvimento, onde a obtenção de recursos para iniciativas de preservação do

patrimônio exige forte articulação política e esforços institucionais integrados, e mesmo

assim, a provisão de recursos é irregular e limitada. O recurso para as oficinas em geral

é suficiente para o desenvolvimento do curso de formação específica, mas é

insuficiente para financiar outras tarefas de gestão, tais como monitoramento e

avaliação.

178

Conclusão

Em meio as demandas a serem atendidas no campo da preservação do patrimônio, a

preocupação com a educação para a conservação tem sido contínua. O assunto é

complexo e gera várias questões sobre a qualidade da capacitação fornecida pelas

oficinas escolas e por outros centros de formação que visam a inclusão social além do

treinamento para a conservação. As questões variam desde problemas financeiros e

falta de apoio político e institucional para esses programas, até assuntos mais

específicos, tais como o escopo do curso, conteúdo, metodologia de ensino, associação

de teoria e prática, a qualificação dos professores e mestres, o perfil dos participantes e

da inter-relação entre o grau desejado de educação e o grau real alcançado.

Baseado nos documentos analisados é difícil medir em que extensão está havendo um

real desenvolvimento social, ou mesmo profissional, proveniente do treinamento

fornecido pelas Oficinas-escolas. A inclusão social através das atividades de

preservação do patrimônio cultural pode funcionar enquanto formação para a

cidadania mas é necessário o desenvolvimento de avaliações qualitativas e de estudos

de impactos sociais para verificar se os treinamentos estão sendo realmente efetivos

quando se trata de capacitação profissional. As avaliações baseadas em indicadores

qualitativos como a eficácia da capacitação, o nível de aprendizado, ou se o

aprendizado fornecido gerou novas oportunidades de emprego ou incremento real de

renda proveniente de um trabalho formal estável, podem fornecer importante feedback

sobre o processo de treinamento, importante para a melhoria da qualidade do

programa (Patton, 1987).

A conservação do patrimônio histórico de áreas urbanas degradadas, centros

urbanos, e muitos outros bens culturais de uma sociedade, pode ser encarado como

atividades importantes que procuram aliviar a pobreza e aumentar a coesão social

através da valorização da história de uma nação (Jokilehto, 2006). As Oficinas-escolas

fazem parte das experiências de planejamento integrado no Brasil, e tem reconhecida

importância em cidades históricas nas quais foram implementadas.

No entanto, apesar do mérito social dessas iniciativas educacionais serem

inegáveis, infelizmente, a pobreza não pode ser percebida apenas em termos de

179

privação de recursos, mas também em termos de capacidade de investir em soluções

sustentáveis. Associam obras de conservação e inclusão social pode ser arriscado e

gerar uma situação não-sustentável. Apesar de isso parecer a princípio reverter o

cenário atual de indicadores sociais, refletindo alguma melhora, na verdade isso pode

criar um futuro aumento do nível de desemprego, uma vez que essas pessoas não

serão capazes de manter-se no mercado devido à execução de serviço de má qualidade.

É importante investigar se estes projetos representam um alívio efetivo para a pobreza

local ou geram apenas uma “ilusão” de profissionalização que em poucos anos se

tornará inútil.

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DELITOS CONTRA O PATRIMÔNIO CULTURAL: INSUFICIÊNCIAS NORMATIVAS BRASILEIRAS E ESPANHOLAS

Anauene Dias Soares

Resumo

Ao longo dos anos o patrimônio cultural sofre com constantes atentados. Infelizmente, práticas ilícitas como o tráfico e o comércio ilegal de património cultural podem ser considerados um dos maiores setores do comércio internacional. Assim, neste artigo, objetiva-se analisar procedimentos acerca da proteção do patrimônio cultural brasileiro. Com esse propósito serão verificadas as elaborações de ordem normativa que envolve a conservação dos bens culturais e, à luz da legislação espanhola, sobretudo da Lei Orgânica 12/95 - ao tratar do contrabando do património cultural do referido país; destacar pontos que necessitam ser mais bem precisados na normativa brasileira para impedir o tráfico ilítico de bens culturais no Brasil, principalmente no que tange o tráfico de bens patrimoniais culturais na escala internacional. Este estudo, também, considerará aspectos relativos aos valores patrimoniais para a elaboração normativa, seja de valores culturais ou econômicos, concernentes à efitividade legal a fim de proteger o patrimônio cultural que é a memória e a identidade de uma comunidade.

Palavras-chave: patrimônio cultural, normativa internacional, tráfico ilícito

Introdução

O tráfico de patrimônio cultural abrange numerosas atividades, que vão da exportação de bens culturais pelos seus legítimos proprietários, sem a necessária autorização, até ao comércio especializado de objetos furtados, passando pela apropriação e comercialização de obras de arte desconhecidas pelas autoridades. O combate aos atentados contra as riquezas arqueológicas, históricas e artísticas que constituem heranças nacionais exige a cooperação internacional, quer na prevenção das infrações, quer para assegurar a restituição dos bens subtraídos. (Askerud & Clément 1997)

No Brasil, os problemas de tráfico ilícito ainda não são confrontados por legislação suficientemente adequada e elaborada. Até então o que se tem é a Convenção da UNESCO de 1970 firmada por países, como Brasil e Espanha, enumerando medidas de proteção acerca do tráfico ilícito de bens culturais. Assim, a criação de uma legislação nacional é requisito a imposição de sanções e penas a fim de

ECA/USP. [email protected]

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coibir a prática deste delito. Hoje, há leis voltadas para a proteção de bens culturais, mas não se fez nenhum tratamento diferenciado nacionalmente como no ordenamento espanhol ao tratar do contrabando destes.

A tipificação penal brasileira mais próxima desta conduta é a receptação qualificada enumerada pelo art. 180, §1º ou o contrabando e descaminho previsto no artigo 334, § 1º, “c”, ambos pertencentes ao Código Penal e, o bem jurídico protegido por estes, abrangem tanto o patrimônio público quanto o privado e, por isso, se estende ao patrimônio cultural66. Por outro lado, há, também, previsão legal no artigo 48 da lei de Contravenções Penais para o Exercício ilegal do comércio de coisas antigas e obras de arte67, não existindo legislação especial penal que trate do patrimônio cultural especificamente, encontrando apenas referência a este em esfera ambiental.68 No mais, a Constituição brasileira atribui competências em ordem administrativa, legislativa e judiciária para União, Estados, Municípios e Distrito Federal na proteção ao patrimônio cultural.69

Ainda, segundo a Constituição Brasileira, o Patrimônio Cultural constitui um elemento estrutural da identidade de certas comunidades, tal como instrumento de coesão social e memória; além disso, de acordo com a Constituição Espanhola, possui um valor cultural objetivo e sua proteção independe que seja de titularidade pública ou privada ou qual seja o seu regime jurídico. No mais, o valor cultural de determinados bens é a causa para proteção e definição como condutas delitivas previstas no Código Penal Espanhol. 70 Segundo Tamarit Sumalla (1997):

“[...] o valor subjacente ao bem jurídico não é de caráter econômico, senão cultural, devendo-se considerar o dano ou a deterioração que ocorre com o objeto material do delito, independentemente do valor do prejuízo causado economicamente. Sendo relevante a afetação que se produziu aos interesses culturais, históricos ou artísticos, para se estabelecer a existência ou não de uma conduta delitiva.” (Tradução

minha) 71

A dificuldade de demonstrar às instâncias judiciais a ilicitude penal do Patrimônio Cultural se deve também ao princípio da mínima intervenção penal e do conflito entre o valor econômico e o valor cultural dos bens (Rus 1996), pois a legislação vigente considera apenas os aspectos de valor econômico, seja por avaliação pericial ou tributária, seja nacional ou internacional, seja na lei orgânica de contrabando espanhola.

A criação e adoção de medidas específicas adequadas, tanto na Espanha quanto no Brasil, de normas protecionistas ao patrimônio cultural, superando o valor

66 Bens culturais elencados pelo art.216, CF/88, Brasil. 67 Art. 48, Lei de Contravenções Penais, Brasil. 68 Lei 9.605/98, Brasil. 69 Arts. 23, 24 e 30 , CF/88, Brasil. 70 Art. 2.1 e) LO. 12/95, Espanha. 71 Tamarit Sumalla 1997 apud Polo 2006 p.8. Texto original: “[...]el valor que subyace en el bien jurídico no es de caráter econômico, sino cultural, debiéndose tener cuenta el daño o deterioro que se produce al objeto material del delito independientemente de la cuantia del prejuicio causado económicamente. Siendo relevante la afectación que se produce a intereses culturales, históricos o artísticos para establecer la existência o no de la conducta delictiva.”

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econômico como elemento determinante das tipicidades penais; campanhas de sensibilização da sociedade para assumir a responsabilidade da própria identidade e aprimoramento da cooperação internacional se fazem necessárias atualmente. (Polo 2006)

Portanto, um estudo à luz do ordenamento espanhol quanto à repressão do contrabando do patrimônio histórico artístico, precipuamente da Lei Orgânica 12/95, se relacionando com normativas nacionais, foi realizado com o intuito de apontar a insuficiência e inefetividade das normativas de combate à comercialização ilegal de bens culturais nos dois países.

1. Concepção de patrimônio cultural como bem jurídico tutelado

A proteção de bens patrimoniais como suportes da memória e de identidade é um direito que envolve características que abrangem desde a conservação a usos sociais destes, como a educação e a difusão patrimonial; visto que o patrimônio “expressa à solidariedade que une aqueles que compartilham um conjunto de bens e práticas que os identificam”72. Ou seja, ela deve ocorrer, também, por meio da participação dos grupos sociais pelo patrimônio, a partir de uma apropriação coletiva e democrática. (N. Canclini 1999)

Assim, o patrimônio cultural, nos dizeres de Silvia Zanirato (2009, p.145-146) “é conformado pelas manifestações materiais e imateriais criadas pelos sujeitos ao longo da história. Neles se incluem objetos e estruturas dotados de valores históricos, culturais e artísticos, bens que representam as fontes culturais de uma sociedade ou de um grupo social.”

Ressalta-se que o conteúdo material de proteção do patrimônio cultural, no ordenamento espanhol atual, em suas diferentes manifestações, vem dado por um bem jurídico em que seu conteúdo material se concentra no interesse coletivo e, que, a tutela do direito se fundamente no compromisso de possibilitar e permitir o acesso e a participação dos cidadãos. Encontra-se então a existência de um bem jurídico de titularidade dos cidadãos - da sociedade, bem jurídico coletivo.

Todavia, a priori das discussões do constitucionalismo moderno, o bem jurídico era reconhecido apenas quanto “patrimônio histórico, como o conjunto de elementos naturais ou culturais, materiais ou imateriais, herdados do passado, onde um determinado grupo social reconhecesse sua própria identidade” (Polo 2006, p.6).

2. Os delitos contra o patrimônio cultural

O tráfico de bens culturais constitui o terceiro crime mais rentável no mundo e de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – responsável legal pela conservação de bens tombados pelo governo federal brasileiro listou em 1997 aproximadamente 1.032 objetos de arte roubados no Brasil, passando a figurar a lista dos dez países que apresentam os maiores roubos de obras culturais do mundo. (Costa & Rocha 2007)

72 N. Canclini 1996 apud Zanirato 2009, p.146.

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As obras de arte, especificamente, são objetos de tráfico pelos valores nelas contidos, que justificam a ânsia pela posse, ainda que muitas vezes irregular, de peças, daí a comercialização ilegal, o furto, a falsificação e o extravio, para além de outros. Segundo Fincham (2009):

“(...) o roubo de arte é geralmente efetuado com a finalidade de revenda ou resgate e, comumente, os ladrões são comissionados por colecionadores particulares confidenciais. A arte roubada é também usada frequentemente entre criminosos em um sistema de operação bancária internacional, como o submundo do tráfico de drogas e de armas, ou simplesmente, como meio de troca destes artigos.” (Tradução minha)

Por esses bens serem considerados não consumíveis, constituem quase sempre um investimento financeiro muito rentável a médio e longo prazo – sendo o suporte do mercado internacional de arte. “Informações fornecidas pelo FBI – Federal Bureau of Investigation, o tráfico internacional de obras de arte movimenta aproximadamente U$ 6 bilhões por ano”(Costa & Rocha 2007). Além disso, se tornou uma maneira talentosa e segura de lavagem de dinheiro por facções criminosas advindos de tráficos de entorpecentes, armas, prostituição, jogos ilícitos e contrabando de joias preciosas.

A situação complica ainda mais se considerar que há países com atitudes diametralmente opostas quanto à possibilidade de devolução de bens aos países de onde foram ilicitamente retirados, sem contar que há argumentos como a saída de que não há ilegalidade, sob a tutela da boa fé, normalmente utilizados como explanação por grandes "lobbies" do comércio de antiguidade (Bo 2003).

Ocorre assim a importação significativa de obras, simplificada pela fragilidade de controles alfandegários, o que propicia a inclusão no mercado internacional de objetos furtados nos países. Portanto, o tráfico, além de promover a introdução clandestina de determinado bem ilícito para o comércio interno de um país, possibilita a sua exportação para outros mercados (Costa & Rocha 2007).

Assim, podem ser assinalados em três grupos distintos os delitos relacionados ao patrimônio cultural, tais como os referentes á aquisição ilegal, os de tráfico ilegal e o concurso de crimes dos dois anteriores. O tráfico consiste justamente no ato de comerciar ou mercadejar bens provenientes de negócios ilícitos ou indecorosos (Nunes 1999). No mais, tem-se notado a preocupação com que os diferentes Estados - inclusive Brasil e Espanha, tanto dos receptores como dos destinatários no combate ao tráfico ilícito de bens culturais.

3. Regime jurídico internacional do patrimônio cultural

O principal órgão internacional de guarda do patrimônio cultural é a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Essa instituição entende que a destruição ou mutilação de bens culturais constitui um empobrecimento nefasto para todos os povos, por essa razão instituiu, no plano internacional, medidas destinadas à proteção. Uma delas foi definida pela Convention on the Means of Prohibiting and Preventing the Illicit Import, Export and Transfer of Ownership of Cultural Property em 14 de novembro de 1970. Em seu artigo 3, essa Convenção estabelece que “The import, export or transfer of ownership of cultural

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property effected contrary to the provisions adopted under this Convention by the States Parties thereto, shall be illicit”73. Entende, ainda, como ilícito, em seu artigo 11 “The export and transfer of ownership of cultural property under compulsion arising directly or indirectly from the occupation of a country by a foreign power shall be regarded as illicit.”74

Outra convenção aprovada pela UNESCO é a Convenção Sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural, aprovada pela Conferência Geral em 16 de novembro de 1972 em Paris e inserida no ordenamento brasileiro em 12 de dezembro de 1977 pelo Decreto n° 80.978.

Segundo a UNESCO, os Estados signatários das Convenções devem estabelecer esforços para inventariar seus bens culturais, protegê-los e, quando for o caso, por seus valores excepcionais, propor a sua inscrição na lista de patrimônio mundial. O país deve então se esforçar para evitar o trafico internacional, seja na exportação ou na importação de bens culturais. Isso implica em um sistema de vigilância que previna e reprima o comércio ilegal de obras de arte. Frisa-se que a Convenção da UNESCO de 1970 também define como requisito a imposição de penas e sanções adequadas de forma a coibir a prática do tráfico ilícito de bens culturais. (Costa & Rocha 2007)

O Brasil aderiu à Convenção de 1970, integrada ao sistema legal nacional pelo Decreto 72.312, promulgado em 21 de novembro de 1973 e intitulado Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transportação e Transferência de Propriedade Ilícitas dos Bens Culturais.

Houve então a criação da Coordenação-Geral de Proteção ao Meio Ambiente e Patrimônio Histórico, no Departamento da Polícia Federal, e a implantação, em 27 Estados da Federação, de Delegacias de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico responsável pelo cuidado com os bens sujeitos ao comércio ilícito. É importante destacar ainda que foram promulgadas no Brasil várias leis75 direcionadas à proteção dos bens culturais, as quais devem colaborar para impedir o avanço da circulação e da comercialização ilegal de bens. (Costa & Rocha 2007)

Também, há países76 com tributação favorecida (paraísos fiscais) e com utilização abusiva dos tratados e convenções internacionais como mecanismos para

73 Tradução: “A importação, exportação ou transferência de propriedade de bens culturais realizadas em oposição às disposições previstas pela presente Convenção, adotadas pelos respectivos Estados-Membros, será ilícito.” 10 Tradução: “A exportação e transferência de propriedade de bens culturais de um determinado país sob compulsão direta ou indireta decorrentes da ocupação por uma outra potência estrangeira deve ser considerada como ilícita.” 11 Cf. Decreto-Lei 25/37 (organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional); Lei 3.924/61 (dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos); Lei 4.845/65 (proíbe a saída para o exterior de obras de arte produzidas no país até o fim do período monárquico); Lei 5.471/68 (dispõe sobre a exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros); Decreto-Lei 72.312/73 (sobrevinda da Convenção da UNESCO em 1970) e Portaria 262/IPHAN. 76 A Instrução Normativa SRF nº 188, de 06 de agosto de 2002, dispõe: “Consideram-se países ou dependências que não tributam a renda ou que a tributam à alíquota inferior a 20% ou, ainda, cuja legislação interna oponha sigilo relativo à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade as seguintes jurisdições:Andorra; Anguilla; Antígua e Barbuda; Antilhas Holandesas; Aruba; Comunidade das Bahamas; Bahrein; Barbados; Belize; Ilhas Bermudas;Campione D’Italia; Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey e Sark); Ilhas Cayman; Chipre; Cingapura; Ilhas Cook; República da Costa Rica; Djibouti; Dominica; Emirados

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lavagem de dinheiro e remessa ilegal de divisas. A cooperação internacional também é analisada por intermédio dos organismos internacionais e nacionais de assistência administrativas, que dão suporte à atuação do poder judiciário na repatriação de ativos. (Silva 2000) No Brasil, o crime de lavagem de dinheiro, é tipificado pela Lei nº. 9.613 de 1998 e é um crime de amplitude internacional que consiste em dar uma aparência lícita a recursos obtidos por meio de outro crime, como o tráfico ilícito de bens culturais.

4. Abrangência da proteção ao patrimônio cultural na Constituição da República Federativa do Brasil e na Constituição do Reino da Espanha

Nesses termos, a proteção do patrimônio cultural por via do Direito se faz indispensável para fins de sua conservação, seja por previsão constitucional, penal ou administrativa; pois, o patrimônio cultural constitui um elemento estrutural da identidade de certos povos, como instrumento de coesão social, como prevê a Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 215, ao dizer que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais” e determinar o direito à memória. Cabe ao Estado o dever de executar políticas para que efetivamente seja vivido o direito à memória pela sociedade. (Derani 2010)

Conforme dispõe o artigo 216 da Constituição Federal de 1988, constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Podem ser formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A Carta Magna brasileira em seu artigo 23 atribui competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios de proteger os bens de valor histórico, artístico e cultural, monumentos, paisagens notáveis e sítios arqueológicos. Para proteger esses bens, o Poder Público deve efetuar registros, proceder a inventários, exercer vigilância, tombar e desapropriar bens. É também interesse da comunidade o respeito e manutenção do patrimônio cultural, tanto por sua função social, quanto ao fato de este pertencer a todos os povos. (Polo 2006). O entendimento é o de que quando se preserva legalmente e socialmente o patrimônio cultural, conserva-se a memória e reforça-se a identidade da nação.

A vigente Constituição do Reino da Espanha regula esta matéria em seu artigo 46, não visando um protecionismo em sentido possessivo, seu principal objetivo é a manutenção e conservação do patrimônio cultural em similar ao nacional, estabelecendo a respeito Los poderes públicos garantizarán la conservación y promoverán el

Árabes Unidos; Gibraltar; Granada; Hong Kong; Lebuan; Líbano; Libéria; Liechtenstein; Luxemburgo (no que respeita às sociedades holding regidas, na legislação Luxemburguesa, pela Lei de 31 de julho de 1929); Macau; Ilha da Madeira; Maldivas; Malta; Ilha de Man; Ilhas Marshall; Ilhas Maurício; Mônaco; Ilhas Montserrat; Nauru; Ilha Niue; Sultanato de Omã; Panamá; Federação de São Cristóvão e Nevis; Samoa Americana; Samoa Ocidental; San Marino; São Vicente e Granadinas; Santa Lúcia; Seychelles; Tonga; Ilhas Turks e Caicos; Vanuatu; Ilhas Virgens Americanas; Ilhas Virgens Britânicas.”

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enriquecimiento del patrimonio histórico, cultural y artístico de los pueblos de España y de los pueblos que lo integran, cualquiera que sea su régimen jurídico y titularidad. La ley sancionará los atentados contra este patrimonio77; por outra parte o Tribunal Supremo espanhol designa que a previsão constitucional se estenda a toda classe de bem que “per se” ou na realidade tenham o mencionado valor, seja qual for à situação jurídica, de domínio público ou privado.

Ainda no artigo 46 da constituição espanhola, além de comprometer os poderes públicos quanto à proteção do patrimônio histórico, cultural ou artístico preceitua que a legislação penal sancionará os atentados. A proteção de bens culturais por via do Direito Penal é imprescindível para sua conservação, o valor cultural de determinados bens só é protegido de acordo com a definição da prática delitiva prescrita no Código Penal. A proteção penal dos bens jurídicos coletivos correspondentes com os denominados direitos sociais e econômicos tem relevância constitucional. (Polo 2006)

5. Regime jurídico de proteção ao patrimônio cultural dentro da legislação nacional e espanhola

Nesses termos, a previsão de penas e sanções para esses crimes não recebeu tratamento diferenciado na legislação penal brasileira, havendo apenas prescrição em leis esparsas78 quanto a danos causados a esses bens. No Código Penal, a tipificação mais próxima à conduta de negociação ilícita de determinado bem cultural é a receptação qualificada prevista no artigo 180, §1º, com seguinte redação:

“Art. 180. (...)

§1º Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisas que deve saber ser produto de crime:

Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa (grifo meu)

Se o agente manter em depósito, vender ou expor à venda bem cultural estrangeiro introduzido ou importado de forma fraudulenta no país, responderá pelo crime de contrabando ou descaminho, previsto no artigo 334, §1º, “c”, do Código Penal79 e não pelo crime de receptação qualificada.(Costa & Rocha 2007)

77 Tradução minha: “Os poderes públicos garantirão a conservação e promoverão o enriquecimento do patrimônio histórico, cultural e artístico das comunidades da Espanha e das comunidades que a integram, qualquer que seja seu regime jurídico ou titularidade. A lei sancionará os atentados contra este patrimônio.” 14 CF. Lei 9.605 (dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas das condutas e atividade lesivas ao meio ambiente); Lei 7.347/85 (disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens de direitos e valor artísticos, estéticos, históricos e turísticos); Decreto-Lei 6.514/2008 (dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente, estabelece o processo administrativo federal para apuração destas infrações, e dá outras providências). 79 Art. 334, Código penal, Espanha (...) “c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto

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Ainda no que se refere à tutela do patrimônio cultural em âmbito penal, este se encontra incluso nas matérias direcionadas ao campo ambiental, na Lei n. 9.605/98. Nela verifica-se que o Direito Penal Ambiental brasileiro sequer constitui uma especialidade do Direito Penal, pois apenas enumera crimes realtivos a destruição, inutilização, alteração ou deterioração dos bens culturais.80

O Decreto-lei n. 3.688/1941 (Lei de contravenções penais), em seu Capítulo VI, que disciplina as contravenções relativas à organização do Trabalho, de forma taxativa e reducionista, prevê a figura da contravenção de “exercício ilegal do comércio de coisas antigas e obras de arte”, consistindo em:

“Art. 48. Exercer, sem observância das prescrições legais, comércio de antiguidades e de obras de arte, ou de manuscritos e livros ou raros:

Pena – prisão simples, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa”

Já o Código Penal espanhol vigente, não estabelece um modelo adequado de proteção também, que subordine de modo claro, o interesse patrimonial dos bens pertencentes ao patrimônio cultural em seu viés social. O Capítulo II do Título XVI, nos artigos 321 ao 32481, regula a proteção ao patrimônio histórico, estendendo esta aplicabilidade a todos os bens patrimoniais como preceitua os mandamentos constitucionais.

5.1 Repressão ao Contrabando: Lei Orgânica 12/95, Espanha

A partir de 1993, com o tratado da União Europeia, popularmente conhecido como Tratado de Maastrich, houve o desaparecimento de fronteiras entre os membros pertencentes a UE, o que afetou de forma significativa as relações do contrabando,

de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; (...)” 80 Artigos 62 e 63, Lei 9.605/98, Brasil. 81 ”(...) CAPÍTULO II. DE LOS DELITOS SOBRE EL PATRIMONIO HISTÓRICO Artículo 321 Los que derriben o alteren gravemente edificios singularmente protegidos por su interés histórico, artístico, cultural o monumental serán castigados con las penas de prisión de seis meses a tres años, multa de doce a veinticuatro meses y, en todo caso, inhabilitación especial para profesión u oficio por tiempo de uno a cinco años. En cualquier caso, los Jueces o Tribunales, motivadamente, podrán ordenar, a cargo del autor del hecho, la reconstrucción o restauración de la obra, sin perjuicio de las indemnizaciones debidas a terceros de buena fe. Artículo 322 1. La autoridad o funcionario público que, a sabiendas de su injusticia, haya informado favorablemente proyectos de derribo o alteración de edificios singularmente protegidos será castigado además de con la pena establecida en el art. 404 de este Código con la de prisión de seis meses a dos años o la de multa de doce a veinticuatro meses. 2. Con las mismas penas se castigará a la autoridad o funcionario público que por sí mismo o como miembro de un organismo colegiado haya resuelto o votado a favor de su concesión a sabiendas de su injusticia Artículo 323 Será castigado con la pena de prisión de uno a tres años y multa de doce a veinticuatro meses el que cause daños en un archivo, registro, museo, biblioteca, centro docente, gabinete científico, institución análoga o en bienes de valor histórico, artístico, científico, cultural o monumental, así como en yacimientos arqueológicos. En este caso, los Jueces o Tribunales podrán ordenar, a cargo del autor del daño, la adopción de medidas encaminadas a restaurar, en lo posible, el bien dañado. Artículo 324 El que por imprudencia grave cause daños, en cuantía superior a 400 euros, en un archivo, registro, museo, biblioteca, centro docente, gabinete científico, institución análoga o en bienes de valor artístico, histórico, cultural, científico o monumental, así como en yacimientos arqueológicos, será castigado con la pena de multa de tres a 18 meses, atendiendo a la importancia de los mismos.(...)”

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principalmente referentes ao patrimônio cultural (Polo 2006). Dessa forma, considerando os ditames legais estabelecidos por este tratado, o contrabando em âmbito Espanhol, regula-se pela Lei Orgânica 12/95.

Esta norma, segundo estabelece a parte final da primeira disposição dos motivos da referida lei; se aplicará de forma complementar pelo Código Penal em acordo com o Título 1º (Delitos de contrabando); pela Lei Tributária Geral e pela Lei do Regime Jurídico das Administrações Públicas e Procedimento Administrativo Comum, prescrito no título 2º (infrações administrativas de contrabando). Tudo sem prejuízo das remissões em branco ou de outras normas que este texto se submete. A Lei 12/95 é uma lei penal especial devido seu caráter múltiplo de norma penal e administrativa, considerando também seu caráter processual por algum dos mandatos do dito texto82.

Assim, conforme a normativa, comete o delito ou infração de contrabando, em função de seu valor, quem tirar do território espanhol bens que integrem o Patrimônio Cultural da Espanha, sem a devida autorização da Administração do Estado quando for necessário, inclusive se seu destino for para qualquer um dos países signatários da UE83.

O reconhecimento dos direitos sociais e econômicos pelo constitucionalismo moderno, passou a considerar os princípios do Direito sancionador penal ao invés do administrativo, regulamentando no artigo 25 não só o poder penal do Estado, mas também o poder sancionador e disciplinar da Administração. Portando, quem comete o delito de contrabando será punido com uma pena de prisão de menor infração (máxima de 3 anos) e multa proporcional ao valor do bem.

A qualificação do contrabando como um delito menos grave, possibilita a redução das medidas judiciais, maculando as investigações devido às dificuldades técnicas e políticas atribuídas a elaboração de tipos penais adequados para a proteção do patrimônio cultural. Além disso, o princípio da mínima intervenção penal dificulta a identificação da notória gravidade e atuação dolosa exigida no artigo 321 do próprio Código Penal, por exemplo. Essa imprecisão legal determina a dificuldade de aplicação do sistema penal, reduzindo o mecanismo a uma simples sanção administrativa em função do dano causado, quando em realidade há uma grande disparidade entre o valor econômico e o valor cultural. (Polo 2006)

No artigo 10 da lei reguladora ou de repressão ao contrabando, em questão de valoração dos bens integrantes do patrimônio cultural, caberá ao juiz buscar os serviços competentes para a avaliação destes.

Por último, cabe uma consideração em destaque: se há a presença de uma figura normal ou especial, pois, do ponto de vista formal legislativo, o tráfico do

82 Art. 2.1 e) LO. 12/95, Espanha. 83 Art. 2.1 a) e g) LO. 12/95, Espanha. “a) La importación o exportación de bienes del patrimonio histórico artístico sin presentar-las para su despacho en las oficinas de aduanas o en los lugares habilitados por la administración aduanera, teniendo en cuenta que la ocultación o sustracción dolosa de estos bienes a la acción de la administración Aduanera dentro de los recintos o lugares habilitados equivaldrá a la no presentación. g) La obtención mediante alegación de causa falsa o de cualquier otro modo ilícito del despacho aduanero o la autorización para la salida de bienes que integren el patrimonio histórico artístico español.”

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patrimônio cultural, não só é regulamentado por uma lei especial criminal, mas também concorre a seus infratores, uma série de atributos que dão especialidades a figura, configurando como um dos principais atos no que tange à economia ou ao incentivo do enriquecimento de grupos envolvidos nessa atividade (Polo 2006).

Conclusão

O comércio ilegal (tráfico) de bens culturais tem causado expressivos e irreparáveis danos ao patrimônio cultural, tanto no Brasil quanto na Espanha, sobretudo pela omissão na elaboração e no cumprimento de normas legais e regulamentadoras destinadas a disciplinar e sancionar a comercialização desses bens. Logo, é necessário incrementação, o aperfeiçoamento e a intensificação da elaboração efetiva para a aplicação de legislações a fim de coibir a prática destes delitos.

Contudo, não existe uma legislação especialmente criada para regulamentar, prevenir e combater o tráfico ilícito de bens culturais no Brasil, nem mesmo nos moldes estabelecidos em relação à Lei Orgânica 12/95 de Repressão ao Contrabando da Espanha. Ainda que esta contenha incoerências e lacunas das normas legais fazendo-se necessário o uso subsidiário do Código Penal espanhol e de outras normativas legais.

Ainda assim, mesmo com a carência de uma regulamentação normativa específica e adequada, as condutas e atividades consideradas lesivas ao patrimônio cultural sujeitam os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, seja em território brasileiro ou espanhol, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

No mais, se faz necessária à efetiva interação e cooperação nacional e internacional entre poder público, órgãos, instituições e entidades culturais – principalmente aquelas responsáveis pela tutela de bens e valores culturais – para proporcionar maior celeridade e eficácia na adoção de medidas e ações, preventivas e reparadoras, relacionadas à proteção, do patrimônio cultural.

Quando se pensa em patrimônio, se faz necessário considerar os valores atribuídos aos bens culturais que lhes darão significados quanto identificação e memória para certos povos. Para proteger esse patrimônio, principalmente por meio de bases normativas, é preciso se ater que o objetivo não pode simplesmente se manter na dimensão material, econômica daqueles bens, mas sim, em salvaguardar também, os valores culturais que a eles lhes são agregados.

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IDENTIFICAÇÃO PATRIMONIAL E INSTRUMENTOS DE

INVENTÁRIO APLICADOS ÀS EDIFICAÇÕES HISTÓRICAS

DE ESPÍRITO SANTO DO PINHAL - SP

Camila Corsi Ferreira

Resumo

Relato de uma experiência de utilização de instrumentos de inventário aplicados às edificações históricas de Espírito Santo do Pinhal, uma cidade paulista em cuja região a ocupação, por mineiros e paulistas vindos de outra região, remonta o início do século XVIII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no contexto da expansão da economia cafeeira. Trata-se da elaboração de um registro amplo que inclui levantamentos métricos, fotográficos, documentais e entrevistas, de edificações ecléticas em sua maioria, patrocinadas pela camada da população local formada por proprietários rurais e negociantes bem sucedidos. Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural já foram identificados 34 imóveis que deverão ser conservados integralmente, uma vez que expressam um somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes para o local. Estes casarões constituem um significativo acervo arquitetônico na cidade, e importante acervo arquitetônico do ecletismo e da história do ciclo cafeeiro no estado de São Paulo. O exemplo apresentado é o do Chalet Monte Negro. Ao longo dos últimos anos, grande parte dessas edificações está sendo destruída ou descaracterizada. Com essa análise buscamos destacar a importância do estudo e do registro da arquitetura da burguesia cafeeira, apontando para a necessidade de conscientização e preservação deste patrimônio como documento histórico e arquitetônico.

Palavras-chave: Patrimônio histórico. Inventário. Ecletismo. Ciclo do café. Espírito Santo do Pinhal - SP.

Introdução

Ao buscar a compreensão do presente para a construção de um futuro consciente, o estudo do passado e seu reconhecimento através de uma releitura constante dos fatos mais significativos se fazem questão fundamental. A identidade de um povo é, além de outros fatores, formada com referências de sua memória, seu passado. O século XIX e o início do século XX são de especial interesse por representarem um período de grandes transformações no panorama da cultura nacional. A transferência da Corte para o Brasil, a mudança da sede do governo para o Rio de Janeiro, deslocando o centro de decisões e a polarização do comércio interno e

USP. [email protected]

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externo, a abertura dos portos às nações amigas tiveram como consequência o desencadeamento de fatos históricos como a Independência e a decadência e posterior abolição do trabalho escravo que irão culminar, em fins do século, com a proclamação da República. A segunda metade do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX constituem um período de intensas transformações no modo de vida patriarcal da sociedade paulista.

O século XIX foi também o período da introdução da cultura do café no estado de São Paulo, um novo ciclo agrícola que já existia em Campinas em 1830, e cuja expansão atingiu, por volta de 1880, a região de Espírito Santo do Pinhal, uma cidade paulista em cuja região a ocupação, por mineiros e paulistas vindos de outra região, remonta o início do século XVIII, e que teve o apogeu de seu desenvolvimento no contexto da expansão da economia cafeeira.

Financiados pela riqueza acumulada pelo café, vários casarões urbanos foram construídos em Espírito Santo do Pinhal nas últimas décadas do séc. XIX, principalmente depois da instalação da ferrovia na cidade, e nas três primeiras décadas do séc. XX, e constituem um importante acervo arquitetônico do ecletismo e da história do ciclo do café no estado de São Paulo. Em geral, localizam-se no centro da cidade, principalmente próximo à Praça da Matriz.

Para a análise e compreensão da história das cidades e das pessoas, a arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificações, os modos de vida e de construção de uma época. Além de referência urbana, as edificações são a história materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevância histórica e/ou arquitetônica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de qualquer ação preservacionista.

Nesse sentido, este trabalho84 apresenta o relato de uma experiência de utilização de instrumentos de inventário aplicados às edificações históricas Espírito Santo do Pinhal, através da exposição de um levantamento completo. Trata-se da elaboração de um registro amplo que inclui levantamentos métricos, fotográficos, documentais e entrevistas, de edificações ecléticas em sua maioria, patrocinadas pela camada da população local formada por proprietários rurais e negociantes bem sucedidos. Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural já foram identificados 34 imóveis que deverão ser conservados integralmente, uma vez que expressam um somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes para o local. Desse total, foi realizado o levantamento completo em 14 edificações. As etapas necessárias para a elaboração do inventário do patrimônio material de Espírito Santo do Pinhal foram guiadas por publicações já existentes, baseando-se em seu trabalho de sistematização, e também a partir da análise de diferentes metodologias aplicadas pelo IPHAN, e pelos governos de vários estados. O levantamento sistemático consta de registro das características formais das edificações e de análise tipológica, sistematizadas em ficha de identificação contendo dados históricos e construtivos, fotografias e plantas.

84 O presente artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado “Arquitetura residencial urbana:

Espírito Santo do Pinhal, 1880-1930”, orientada pela Profa Dra Maria Ângela P. C. S. Bortolucci e defendida

em 2011 na EESC-USP.

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A construção do inventário de bens arquitetônicos é etapa indispensável no processo de registro de bens culturais, trabalho necessário no sentido de incentivar a preservação dos mesmos e viabilizar ações municipais nesse sentido. A organização desse amplo registro pretende, através dos instrumentos de inventário, fornecer subsídios para o conhecimento e a conscientização da sociedade local sobre seu patrimônio, como documento histórico e arquitetônico, e a necessidade de preservá-lo.

1. A cidade

Espírito Santo do Pinhal, cidade paulista que teve sua formação na mesma época do surto cafeeiro e seu desenvolvimento por ele patrocinado, situa-se na região sudeste do Brasil, a leste do estado de São Paulo, a 199 km da capital paulista, a 95 km de Campinas e apenas 20 km da fronteira com o sul do estado de Minas Gerais. Foi fundada em 27 de dezembro de 1849. Cidade de pequeno porte, sua população é de 40.480 mil habitantes distribuídos em 392 km2, sendo o perímetro urbano de 10 km2.

Pinhal85 originou-se a partir de uma doação de terras que estava relacionada a uma disputa entre fazendeiros pela sua posse. Sua origem foi singular, uma vez que a cidade não surgiu a partir de povoações preexistentes nem teve seu sítio escolhido com o intuito de se formar uma aglomeração. O local onde hoje se encontra o centro, iniciado em 1849, foi escolhido por ter sido o palco de confronto relevante envolvendo os donos das fazendas. Trata-se de um lugar alto, um espigão circundado por córregos e ribeirões na parte mais baixa, fazendo parte de um amplo entorno de topografia montanhosa. O núcleo inicial foi organizado em torno da praça da atual Igreja Matriz (Praça da Independência), então capela, de onde partem algumas ruas em tabuleiro de xadrez até o limite das divisas originais do patrimônio.

Os casarões urbanos financiados por essa riqueza advinda da cultura cafeeira foram construídos em Pinhal nas últimas décadas do século XIX, principalmente depois da instalação da ferrovia na cidade, e nas três primeiras décadas do século XX, e constituem ainda um significativo acervo arquitetônico na cidade. São belas residências construídas para fazendeiros de café e profissionais liberais enriquecidos, como médicos e advogados, em sua maioria no período compreendido entre 1880 – o início do progresso da cafeicultura na cidade – e 1930, que, em decorrência da quebra da bolsa em Nova Iorque, gerou um processo de estagnação na economia local e consequentemente, na produção arquitetônica.

Os registros de imagem mais antigos de Pinhal, que datam da década de oitenta do século XIX, indicam uma cidade com vínculos arquitetônicos tradicionais, percebidos nos casarões edificados no alinhamento e nas laterais dos lotes, com telhados geralmente de duas águas com beirais, ainda construídos em taipa. Na década seguinte é notório o aumento no número de edificações, e percebemos que, apesar das poucas modificações empreendidas, já é possível encontrarmos construções da classe abastada começando a incorporar os princípios do ecletismo, como as platibandas.

85 No decorrer do texto iremos nos referenciar à cidade apenas pelo nome Pinhal, por ser esta a forma mais

usada por seus moradores.

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Em Pinhal, a arquitetura eclética foi introduzida pelo fazendeiro de café, que frequentemente visitava São Paulo e Rio de Janeiro, e que, conhecendo também as cidades europeias, buscou inspiração na produção arquitetônica destes lugares para executar sua própria residência urbana, que deveria representar sua posição social e econômica. A consolidação dessa imagem do fazendeiro de café passou necessariamente pela remodelação de sua residência urbana. Dessa forma, esse ecletismo produzido em outros lugares e especialmente na capital da então província de São Paulo serviu de para novas apropriações e reinterpretações locais.

Apesar de ser importante acervo arquitetônico, ao longo dos anos, grande parte dessas edificações vem sendo destruída ou descaracterizada, sendo escassos os registros, documentação ou estudos mais aprofundados.

2. Instrumentos de inventário

Para a análise e compreensão da história das cidades e das pessoas, a arquitetura tem papel relevante por materializar, nas edificações, os modos de vida e de construção de uma época. Além de referência urbana, as edificações são a história materializada. Nesse sentido, entende-se que os bens de relevância histórica e/ou arquitetônica devem ser devidamente documentados e inventariados, antes mesmo de qualquer ação preservacionista.

O trabalho de inventário do patrimônio arquitetônico é a principal ferramenta de documentação, e cria um amplo panorama dos bens arquitetônicos de uma localidade. A partir do levantamento de dados necessários, como a construção do conhecimento histórico de como surgiu a edificação, quais suas características primitivas, seus elementos construtivos, suas alterações ao longo do tempo etc, pode-se reunir as informações para a elaboração de um inventário, que deve seguir um procedimento metodológico específico e que servirá de base para a elaboração de um dossiê sobre a edificação.

Numa perspectiva de preservação do patrimônio cultural, visando à legitimação e perpetuação, nessa sociedade, de seus bens culturais, seja pelo reconhecimento e preservação do objeto, ou através de sua documentação, vem sendo elaborado amplo registro das edificações, através de levantamentos métricos, fotográficos, documentais e entrevistas. Tais instrumentos de inventário serão um caminho para o conhecimento e a conscientização da sociedade local sobre seu patrimônio e a necessidade de preservá-lo.

2.1 Abordagem metodológica

As etapas necessárias para a elaboração do inventário do patrimônio material de Espírito Santo do Pinhal foram guiadas por publicações já existentes, baseando-se em seu trabalho de sistematização, e também a partir da análise de diferentes metodologias aplicadas pelo IPHAN, e pelos governos de vários estados.

Nesse caso, o procedimento metodológico utilizado tem como referência principal as fichas de inventário do Inepac – Rio de Janeiro, as fichas desenvolvidas

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pelo Ipac – Bahia, as fichas elaboradas pelo DPH – São Paulo, e também pelo IPHAN, bem como textos de apoio que abordam a questão da metodologia para inventários.

Entre as edificações de interesse histórico na cidade, correspondentes ao ciclo do café, já foram identificados 34 imóveis que deverão ser indicados para serem conservados integralmente, uma vez que expressam um somatório de valores urbanísticos, históricos e arquitetônicos relevantes para o local. Além disso, já foi realizado levantamento em 14 edificações, cujos registros terão implantação no lote, planta, fotos internas e fotos externas, além de uma ficha de levantamento contendo dados sobre a edificação. O levantamento documental é de primordial importância ao possibilitar a análise e avaliação dos dados vistos “in loco”.

Figura 1. Mapa do centro da cidade com a localização dos casarões. (Fonte: Ferreira, 2010)

A escolha dos casarões obedeceu aos seguintes critérios:

cronológico, edificados entre 1880 – início do progresso da cafeicultura na cidade e portanto da riqueza – e 1930, período da quebra da bolsa, que gerou um processo de estagnação na economia local e consequentemente, na produção arquitetônica;

localização das residências, em sua maioria implantadas no centro da cidade;

disponibilidade das fontes, a fim de facilitar o trabalho e reduzir tempo;

diferenças tipológicas e formais de exceção, dificilmente encontradas em cidades de pequeno porte com relação ao mesmo período;

edificações que apresentarem risco de demolição, devido ao risco de perdê-los sem documentação;

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residências onde ainda exista mobiliário de época, possibilitando uma reconstrução mais consistente do modo de vida da época.

A ficha de inventário deverá conter o maior número de informações possíveis sobre o edifício, reunindo conhecimentos de vários aspectos para sua catalogação e posterior análise. Essa ficha deverá apresentar:

nome da edificação;

número de registro;

localização e endereço original;

primeiro proprietário e atual proprietário;

construtor e época/ano da construção;

uso original e atual;

possibilidades de acesso ao bem inventariado;

data do levantamento e contato;

descrição e histórico arquitetônico, contendo descrição da área do entorno;

existência de projetos, fotos e móveis antigos, memoriais, documentação sobre o imóvel etc;

intervenções realizadas;

estado de conservação;

descrição e caracterização da edificação: tipologia, partido, implantação, características particulares, estilo arquitetônico;

dados técnicos, materiais e sistemas construtivos;

levantamento arquitetônico contendo representação gráfica da planta, utilizando a ferramenta CAD;

levantamento fotográfico externo de todas as edificações e interno quando possibilitado o acesso;

documentação iconográfica;

meios de preservação.

3. Modelo de ficha de inventário

A seguir será apresentado um modelo de levantamento, documento histórico e instrumento indispensável para possíveis intervenções, que consiste no registro gráfico do imóvel construído a partir da tomada de medidas das fachadas, ambientes internos e detalhes construtivos essenciais à leitura do edifício e sua representação. Nele consta o registro das características formais das edificações e de análise tipológica,

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sistematizadas em ficha de identificação contendo dados históricos e construtivos, fotografias e plantas. Todo o material coletado foi digitalizado com o uso da ferramenta CAD.

Buscou-se a reconstrução da história do bem arquitetônico estudado, iniciando-se pela coleta de dados da edificação. As fontes para essa etapa foram os acervos locais públicos e particulares, com material iconográfico e bibliográfico, visitas de campo e entrevistas. Em seguida foi definida a localização da edificação na malha urbana, e posteriormente a tipologia arquitetônica, que tem relação com a função do edifício, implantação e distribuição dos espaços internos. Os produtos dessa etapa são as fotografias internas e externas e a representação gráfica da planta e da implantação. Nesse momento buscou-se analisar a distribuição dos ambientes internos, bem como hábitos e costumes na época da construção, e também classificar o estilo arquitetônico.

Procurou-se identificar também os sistemas e materiais construtivos, permitindo o conhecimento da técnica construtiva utilizada no período da construção, dos seus elementos estruturais e arquitetônicos característicos, e dos materiais e métodos de sua utilização.

3.1 O Chalet Monte Negro

Ao contrário dos outros fazendeiros, encontramos diferente opção por parte do Comendador Monte Negro, que preferiu se instalar longe do centro, próximo à Estação Ferroviária recém-inaugurada, exatamente onde os imigrantes não pertencentes à elite habitavam, local que Tamaso (1998) chamou de “parte baixa” da cidade. Essa região compreendia o entorno da Vila Monte Negro, próximo ao prédio da Estação Ferroviária e ao ‘chalet’ do Comendador, sendo que ambas as edificações pertenciam ao Comendador João Elisário de Carvalho Monte Negro. Próspero fazendeiro de café, Monte Negro loteou essas terras e fundou a Vila Montenegro, doando uma parte para a instalação do prédio da Estação Ferroviária e construindo, em 1896, o ‘chalet’ em um dos seus terrenos. O fechamento do terreno desse casarão era feito por meio de gradis de meia altura em 1903, mas atualmente é cercado por muros altos, e tanto o portão de acesso principal quanto o portão para automóveis são em madeira, sem ornamentos.

Monte Negro emigrou para o Brasil no início da década de 1840, vindo de Lousã, próximo a Coimbra, Portugal, e se dedicou primeiramente ao comércio, trabalhando como caixeiro viajante. Realizou sua primeira viagem à província de São Paulo em 1856, e já em 1867 comprou as terras onde fundou a Colônia Nova Louzã, onde se estabeleceu com 29 imigrantes portugueses, “com trabalho livre e remunerado em plena época do regime de escravidão no Brasil”, segundo Bartholomei (2010). Em 1894 realizou uma viagem à Europa, retornando um ano depois, e em 1896 construiu seu casarão, conhecido em Pinhal como ‘chalet’ do Comendador. Faleceu em 8 de maio de 1915, com quase 91 anos, solteiro, e está sepultado no Cemitério Municipal de Pinhal em um túmulo simples, segundo seu desejo expresso em testamento. Como não teve filhos, deixou o chalé para seu sobrinho Alfredo. O segundo proprietário do casarão era da família Pieroti, e em 1949 passou a pertencer a Fernando V. Martins, sendo que sua esposa, Lavínia Lessa Martins, vendeu o imóvel em 1976 para o atual proprietário, Jacob Leme Antunes.

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Entendemos que a opção do Comendador por construir sua residência nesse local se deve ao fato de ser possuidor de quase todo o entorno nessa região, e, além disso, também era imigrante como a maior parte da população desse local. Foi uma pessoa de ideias progressistas, avançadas para a época, e pudemos perceber pelos registros que era uma pessoa altruísta, livre de preconceitos. Talvez por tudo isso Monte Negro tenha se sentido livre para se instalar em suas terras, em oposição à elite do entorno da Igreja Matriz. Acreditamos, inclusive, na hipótese de ter sido o Comendador de certa forma excluído da sociedade abastada da época, ainda que de maneira sutil e velada, por causa de seus pensamentos de liberdade em uma época de escravidão; de igualdade em um tempo da mais marcada discriminação social.

O terreno onde foi construído o sobrado em 1896 tem um pequeno declive. É de uso residencial, elevado do solo com base de pedra e com porão que aproveita o declive natural do terreno, e as paredes são de tijolos, fabricados na olaria da Colônia

Nova Louzã, de sua propriedade, contendo suas iniciais. Foi erguido no alinhamento e com jardins laterais, sendo sua volumetria movimentada. Está implantado em lote bastante irregular, com seu formato parecido com um triângulo, e três faces são voltadas para diferentes ruas. A fachada frontal é simétrica, e as demais fachadas voltadas para a rua apresentam apenas janelas. As fachadas voltadas para o jardim lateral e para o quintal apresentam portas e janelas.

Figuras 2 e 3. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A primeira imagem contem as informações gerais do edifício; a segunda imagem mostra sua localização e ambiência. (Fonte: Ferreira, 2010)

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Figuras 4 e 5. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 4 mostra a implantação do edifício, e a figura 5 mostra a planta do térreo. (Fonte: Ferreira, 2010)

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Figuras 6 e 7. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 6 mostra a planta do pavimento superior, e na figura 7 vemos a descrição arquitetônica e dados tipológicos e construtivos. (Fonte: Ferreira, 2010)

Figuras 8 e 9. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A duas figuras apresentam a descrição arquitetônica e os dados tipológicos e construtivos. (Fonte: Ferreira, 2010)

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Figuras 10 e 11. Fichas de levantamento do Chalet Monte Negro. A figura 10 trata do estado de conservação e das intervenções realizadas no edifício. A figura 11 mostra os dados históricos encontrados e a proteção existente, quando há, dos órgãos de preservação. (Fonte: Ferreira, 2010)

Conclusão

A arquitetura do século XIX vem sendo progressivamente estudada e reavaliada, em um processo iniciado há algumas décadas, passando necessariamente pela quebra dos preconceitos. Esse movimento certamente está contribuindo para o surgimento de uma nova consciência sobre a proteção e a restauração do patrimônio cultural do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Essa arquitetura guarda em si valores culturais, sociais e simbólicos. São representantes de distinção social e poder econômico de uma época de importantes e significativas transformações. É fundamental a preservação dessas referências que representam as raízes culturais do lugar, documentos vivos da memória cultural da cidade.

A construção do inventário de bens arquitetônicos e posteriormente uma análise da edificação em seu contexto mais amplo são etapas indispensáveis no processo de registro de bens culturais, trabalho necessário no sentido de incentivar a preservação dos mesmos e viabilizar ações municipais nesse sentido. Além disso, almejamos propiciar um maior conhecimento do lugar, das pessoas e das edificações, pois conhecendo a história entenderemos nosso presente. Verificamos uma preocupante escassez de estudos referentes ao objeto, o que certamente impede que ações que assegurem sua manutenção sejam devidamente tomadas. Não se preserva aquilo que não se conhece, é preciso dar a conhecer para então saber preservar. Nesse sentido, através do registro dessa arquitetura, pretendemos apresentar alguns subsídios para contribuir para que haja maior conscientização sobre a necessidade de preservação desse patrimônio como documento histórico e arquitetônico.

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PELAS CIDADES: JORNADAS DE PLANEJAMENTO

MUNICIPAL PELA PROTEÇÃO DA MEMÓRIA E DO

PATRIMÔNIO CULTURAL DOS MUNICÍPIOS86

Fabio Jose Martins de Lima

Resumo

O trabalho é parte do Programa Urbanismo em Minas Gerais, da Universidade Federal de Juiz de Fora – URBANISMOMG/UFJF, o qual inclui atividades de pesquisa e extensao aplicadas as cidades do Estado de Minas Gerais, Brasil, particularmente nas municipalidades da Zona da Mata Mineira. A comunicaçao sintetiza os ultimos resultados, com prioridade para as questoes socio-culturais e naturais, buscando contribuir para o desenvolvimento urbano qualificado das cidades. Para discutir as demandas atuais das cidades, participaçao se coloca como essencial na perspectiva da gestao democratica das cidades. Neste sentido, foram propostos oficinas com professores e servidores municipais, os quais foram envolvidos nas discussoes relativas ao planejamento urbano, priorizando o tema do patrimonio cultural. O trabalho tem o apoio do Ministerio da Cultura e se vincula aos resultados da pesquisa em planejamento urbano com o suporte da CAPES, CNPq, Min Cidades e FAPEMIG.

Palavras chave: patrimonio cultural, participaçao e planejamento urbano.

Introdução

A participação se coloca como essencial na atualidade, considerando as possibilidades de gestões democráticas, de acordo com a Lei no10.257, o Estatuto das Cidades, aprovado em 2001. Muitas dificuldades se colocam para pensarmos os rumos futuros das cidades. Esta constatação não é de hoje e podemos dizer que planos não

86 O texto expõe resultados de atividades de pesquisa e extensão junto ao Grupo Urbanismo em Minas Gerais, cadastrado no CNPq, vinculado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Engenharia da UFJF. Estas atividades envolvem a continuidade de estudos anteriores com a participação de professores, pesquisadores e alunos graduandos. Desde 1994, o NPE URBANISMOMG trabalha com projetos de pesquisa envolvendo idealizações e realizações urbanísticas para as cidades mineiras, inicialmente com o apoio do CNPQ e, posteriormente, com o apoio da FAPEMIG, que se inserem na rede de pesquisa Urbanismo no Brasil, coordenada pela Professora Maria Cristina da Silva Leme, da FAUUSP. A partir de 2005, os desdobramentos da pesquisa foram ampliados através de ações extensionistas relacionadas aos municípios próximos à Juiz de Fora, abrangendo temas vinculados à questão do Planejamento Urbano e Rural. Com o desenvolvimento do PROEXT Cultura, em 2008, foram realizadas as oficinas de planejamento, com ações em municípios da região de grande aproveitamento. UFJF . [email protected]

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faltaram. De tudo o que foi pensado e projetado para as cidades, pouco foi implementado. O que temos hoje são aglomerações cada vez mais segmentadas e desiguais. Novas ocupações e parcelamentos em áreas de proteção permanente se tornaram lugares comuns nas expansões urbanas. Em muitos dos casos a própria formação da cidade já foi definida de maneira inadequada. Para uma reflexão sobre o futuro de nossas urbes torna-se necessário o entendimento, no passado e no presente, das práticas e do pensamento sobre as cidades. Por esta via, temos a compreensão do município na sua globalidade e a relação com os municípios do entorno, tendo em vista a definição de diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural. Isto implica considerar a inserção dos municípios em regiões de planejamento. Os temas que se interpõem são diversos, como a proteção da memória e do patrimônio cultural, a preservação da paisagem natural, a educação, a saúde, a assistência social, o transporte e a circulação urbana e rural, a habitação, as infraestruturas urbanas, dentre outros. Emerge, assim, a necessidade de se pensar em um desenvolvimento que considere a inclusão social e a distribuição de renda.

A compreensão do município e sua região na globalidade e a relação com os municípios do entorno, permite pensar diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural conjunto destes municípios. O enfoque sobre os municípios numa perspectiva de analise comparada busca uma aproximação sobre especificidades locais e regionais em termos de demandas sócio-culturais. A capacitação através de oficinas de planejamento de caráter multidisciplinar mostra-se necessária para o envolvimento das comunidades envolvidas. Por meio destas oficinas se coloca a sensibilização com relação aos temas relacionados ao planejamento urbano, com particular atenção para a proteção da memoria e do patrimônio cultural, em suas diversas manifestações.

Por esta via, o principal argumento para o desenvolvimento das Jornadas de Planejamento em 2012 está relacionado à continuidade de projetos que envolvem atividades de pesquisa e de extensão nas regiões do Estado de Minas Gerais, numa perspectiva de análise comparada, com vistas à compreensão de especificidades locais e regionais. Há o interesse em trabalhos conjuntos aos municípios, principalmente de cunho sociocultural, que possam contribuir para o desenvolvimento urbano e rural qualificado.

Vale mencionar que a participação no grupo de profissionais de outras áreas, além da Arquitetura e do Urbanismo, como Turismo, Comunicação, Engenharias, Geografia, Estatística e História, tem ampliado a visão sobre os problemas urbanos, particularmente sobre a problemática relacionada à proteção do patrimônio cultural. Eventos e publicações têm possibilitado a apresentação dos resultados da pesquisa e ampliado os debates.

1. Planejamento e patrimônio

A construção das cidades como um processo longo na história revela densidades de tempos diferenciados e contrastes entre o passado e o presente. Nos dias de hoje, muitas são as dificuldades colocadas, em graus de complexidade distintos, em se pensar os rumos futuros. Em Minas Gerais, particularmente, inúmeros planos, projetos e propostas foram elaborados por técnicos na tentativa de organizar os sistemas e usos da cidade, com o intuito de melhorar a vida urbana. No entanto, muito do que foi

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pensado não foi executado como deveria, ou mesmo não se encaixou na realidade efetiva.

Desta forma, como síntese deste processo, tem-se a formação de aglomerações urbanas cada vez mais segmentadas e desiguais, com novas ocupações e parcelamentos em áreas de proteção permanente como lugares comuns nas expansões urbanas, além de inúmeros serviços nas áreas da saúde, educação, transporte, lazer, entre outros, que representam o direito à cidade e, entretanto, não são oferecidos por falta de um planejamento adequado.

O que se busca, em termos de aproximações sobre a história das cidades, é a compreensão deste processo como uma chave de reflexão sobre o futuro das urbes, em suma, o entendimento do passado e do presente, do que foi implementado e do que foi pensado. Neste contexto, o passado atua na fundamentação das propostas sobre as cidades existentes e as novas expansões, já que a percepção do processo contínuo de transformações sobre as cidades coloca-se de modo emergente na atualidade, para que se possa prever o seu futuro de maneira planejada.

A compreensão do município e sua região na globalidade, bem como a relação com os municípios do entorno, possibilitam diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural conjunto destes municípios. Dentre outros fatores que emergem, destaca-se a necessidade de se pensar um desenvolvimento que considere a inclusão social e a divisão de renda, além da compreensão de que os temas se interpõem neste cenário e são diversos, podendo ser aqui citados a proteção da memória e do patrimônio cultural, a preservação da paisagem natural, a educação, a saúde, a assistência social, o transporte e a circulação urbana e rural, a habitação, as infraestruturas urbanas, dentre outros.

A perspectiva que se coloca, de análise comparada, busca a compreensão das especificidades locais e regionais, acerca das demandas colocadas pelos municípios em Minas Gerais, particularmente na região da Zona da Mata. Por esta via segue a atuação do Programa Urbanismo em Minas Gerais da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, através do Núcleo de Pesquisa e Extensão Urbanismo em Minas Gerais, tendo em vista a definição de diretrizes urbanísticas para o desenvolvimento urbano e rural em bases sustentáveis. Pode-se destacar que a preservação da memória e do patrimônio cultural inseridos no ambiente urbano e rural dos municípios auxilia muito na formação da identidade cultural. Percebe-se que as transformações urbanísticas das cidades intercalam diversas intervenções, as quais envolvem, muitas vezes, renovações e reabilitações do seu ambiente construído.

É importante salientar a necessidade do entendimento das origens dos núcleos urbanos para compreender todo o percurso histórico de sua sociedade e finalmente propor mudanças e melhorias em suas projeções de crescimento. Para isso, os bens de importância cultural e ambiental tangível e intangível de um município devem ser considerados como parte da ambiência da cidade, fazendo dela única. As cidades que se tornam genéricas, sem identidade ou sem referenciais não promovem fluxos e não evoluem.

Dessa forma, o pensamento sobre a proteção e conservação do patrimônio cultural, seja este ambientai, móvel ou imóvel, tangível ou intangível, deve estar

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intrínseco ao pensamento sobre o desenvolvimento urbano. Para tanto, as cartas patrimoniais e o Decreto-Lei Federal no 25, de 30 de novembro de 1937, em particular, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, devem ser referências constantes sobre o destino das cidades.

1.1 Importância do processo participativo

A participação coloca-se como essencial na atualidade para as abordagens sobre os meios urbanos e rurais, na perspectiva de gestões democráticas. Assim preconiza a Lei nº 10.257, o Estatuto das Cidades, aprovado em 2001. A perspectiva que se coloca é aquela da participação comunitária, considerando as especificidades locais e regionais. Pensar o município na sua globalidade e a relação com os municípios do entorno é essencial, o que implica considerar a inserção municipal em uma região de planejamento.

Essa estratégia envolve a elaboração de planos diretores, na perspectiva colocada pelo Estatuto da Cidade, que traz a regulamentação dos artigos números 182 e 183 da Constituição Federal. Os princípios e normas constitucionais, nestes artigos, referem-se às Políticas Urbanas, e é o Estatuto da Cidade que regulamenta tais artigos com diretrizes específicas, de forma a contribuir com uma gestão mais eficiente e eficaz, na perspectiva da descentralização e da participação da sociedade civil. Assim, no Capítulo III, relativo ao Plano Diretor, o Estatuto ressalta que “... a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas (...)”.

A renovação das esperanças por um futuro melhor, para as gerações que virão, está relacionada às políticas públicas construídas de modo coletivo, que considerem a requalificação urbana e rural dos municípios. Neste sentido, pensar mecanismos de gestão de planejamento municipal com efetiva participação comunitária emerge nas discussões atuais. A referencia aqui ao planejamento municipal, considera várias frentes como desafios a serem enfrentados pelas administrações locais, numa perspectiva de desenvolvimento que considere a inclusão social e a distribuição de renda.

As leis dos Planos Diretores, debatidas em conferências públicas e aprovadas pelas Câmaras Municipais, como uma esperança para a requalificação dos municípios, ainda estão por se materializar. O potencial interesse turístico, que motivou a elaboração das leis dos planos diretores em determinados municípios, ainda encontra-se fragmentado. A ênfase no patrimônio cultural dos municípios, revelado por paisagens exuberantes, cursos d’água abundantes e cenários bucólicos, além de conjuntos urbanos e rurais edificados, reacendeu as esperanças por um futuro melhor. Os vários tempos da memória da ocupação trazem boas lembranças do passado e incertezas quanto às opções recentes em termos de renovações.

A perspectiva que se coloca, então, considerando a inclusão social, a acessibilidade, dentre outros aspectos citados, é a de uma compreensão mais abrangente das questões para repensar os espaços construídos e os naturais. Ficam as dificuldades mencionadas na esperança da melhoria da qualidade de vida nos meios

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urbanos e rurais, por um desenvolvimento em bases sustentáveis para as cidades mineiras.

2. As Jornadas pelas Cidades

O projeto apresentado desenvolve-se em três cidades da Zona da Mata Mineira, especificamente na Microrregião de Juiz de Fora: Matias Barbosa, Chácara e Pequeri (fig.1). Seus limites são definidos à sudeste pela divisa dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, à noroeste, norte e nordeste, respectivamente, às microrregiões de Barbacena, Ubá e Cataguases, e à sudoeste pela mesorregião Campo das Vertentes. Os três municípios estão inseridos na bacia hidrográfica do rio Paraibuna que também compõe a bacia do Paraíba do Sul, um dos rios mais importantes da região sudeste do Brasil.

Figura 1. Municípios que integram o projeto Jornadas de Planejamento Municipal: pela memoria e pelo patrimônio cultural dos municípios. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

Tal projeto é organizado por etapas, levando-se em conta um processo de construção coletiva, que considere as especificidades físico-geográficas, bem como a inclusão de todos os segmentos socioculturais. Para atingir os objetivos propostos, já foram realizadas atividades que envolvem incursões em acervos locais e regionais para levantamentos de dados, entrevistas com as comunidades (fig.2), e demais trabalhos de campo. Nesta etapa, foram retomados pesquisas e levantamentos já desenvolvidos sobre os municípios, na perspectiva de uma complementação da revisão de literatura. Esta complementação foi desencadeada nos acervos locais junto às prefeituras e em acervos situados em centros urbanos médios e grandes, incluindo acervos em Belo Horizonte/MG, contemplando documentação gráfica e fotográfica.

O mapeamento cultural dos municípios merece ser destacado, inicialmente construído no processo de elaboração dos planos diretores, que se compõe de

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representações da realidade urbana e rural, tendo em vista leituras atuais desta realidade e projeções futuras. Tal mapeamento tem como base fotografias aéreas, imagens de satélites, mapas e plantas urbanas, que, associadas ao trabalho de campo, representam os seguintes dados: manchas urbanas, da sede municipal e dos distritos; fragmentos vegetais relevantes; bacias hidrográficas – rios, ribeirões, córregos e nascentes; cachoeiras e formações rochosas; estradas, caminhos e identificação das referências culturais – dos bens imóveis e móveis nos municípios trabalhados.

Figura 2. Aspecto de atividade de entrevista com moradora da cidade de Pequeri/MG. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

A produção dos mapas consiste no levantamento de dados, edição desses dados e publicação em meio digital e impressos. Além do levantamento de dados geográficos em órgãos governamentais, foram necessárias visitas a campo para complementação do levantamento. Com o uso do aparelho de GPS (System Position Global), pontos de interesse cultural e ambiental foram marcados e georeferenciados. Os mapas ainda se encontram em fase de elaboração.

Feito o levantamento de cada uma das cidades, a comparação destes dados, principalmente quando temos mais de uma localidade para investigação, fornece interessantes observações e significantes indicações sobre as potencialidades do patrimônio ambiental e cultural nestes municípios, podendo auxiliar na demarcação, implantação, gestão e planejamento destas potencialidades voltadas para o aproveitamento turístico-cultural. Este material subsidiou a apresentação das oficinas para a capacitação.

O que se pretende com as oficinas é pensar a proteção da memória e do patrimônio cultural dos municípios, promovendo a capacitação de professores e alunos, no tocante aos temas relacionados ao planejamento urbano e rural, e proporcionar uma perspectiva de análise comparada da participação no âmbito das administrações municipais. A partir das especificidades de cada local, podem ser definidas diretrizes para a expansão urbana, e não apenas parâmetros, pois estas compõem planos globais e integrados considerando a cidade e suas vizinhanças, visando um desenvolvimento sustentável e a sensibilização comunitária acerca da proteção patrimonial.

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Desta forma, procura-se estabelecer diretrizes que promovam o desenvolvimento urbano e rural qualificado, considerando as especificidades e as demandas locais e regionais, visando maior sensibilização da comunidade, permitindo a visualização, espacialização, distribuição, zoneamento, potencialidades do patrimônio ambiental e cultural das áreas em estudo, e possibilitando uma maior interface entre os órgãos públicos, os pesquisadores e a comunidade.

As oficinas são interativas, envolvendo a participação comunitária de maneira efetiva, não tendo o objetivo único de levar o conhecimento. Mais do que o sentido da educação, a ideia é abrir uma via de mão dupla, no momento em que se leva e, ao mesmo tempo, são trazidos conteúdos, através dos quais se entende melhor, com a visão de quem é do lugar, o que aquela determinada comunidade valoriza e entende como patrimônio. A oficina acontece durante um dia inteiro em cada cidade, sendo dividida basicamente em três momentos: o momento inicial com a realização de dinâmicas, um segundo que consiste em apresentação de conceitos acerca do tema, e o momento final do jogo do patrimônio.

A primeira dinâmica (fig.3) tem por objetivo interagir os participantes de forma descontraída, a partir de um jogo de perguntas aleatórias e apresentação pessoal de cada participante. É desenvolvida com os participantes em circulo, e uso de balões com cartões de perguntas que eles próprios fazem uns aos outros, com alguma relação direta ao trabalho a ser desenvolvido pelo núcleo de pesquisa.

Figura 3. Dinâmica de apresentação realizada em Pequeri/MG, também desenvolvida para os outros municípios, a saber, Chacara/MG e Matias Barbosa/MG. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

Figura 4. Dinâmica mapa mental realizada em Pequeri/MG, também desenvolvida para os outros municípios, a saber, Chacara/MG e Matias Barbosa/MG. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

Outra dinâmica proposta é a do mapa mental (fig.4), que, além de ser uma ferramenta de organização de ideias através de um diagrama, é uma forma de exteriorizar suas opiniões. No caso do mapa mental da jornada de planejamento municipal, o objetivo principal é fazer com que os participantes da oficina, ao desenharem a imagem que tem em mente da sua cidade, destacando seus principais pontos, sejam positivos ou negativos, despertem o sentido de pertencimento àquela cidade. É a partir deste sentimento de pertencimento que surge a valorização do seu

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lugar e assim a proteção deste. Para essa atividade, o público é divido em grupos, entre os quais são distribuídos os materiais de desenho. Cada grupo elabora o seu mapa mental da cidade e posteriormente apresenta a todos.

Após as duas primeiras dinâmicas, o grupo do núcleo Urbanismomg faz uma breve apresentação (fig.5) dos principais conceitos e referências referentes à temática patrimonial, desde o próprio conceito de patrimônio, relacionado à memória e identidade, passando pelas diferentes formas de manifestação desse patrimônio e proteção do mesmo, até os marcos legislativos e leis/programas de incentivo no que diz respeito a essa questão. Nesse momento, é apresentado ainda um breve histórico do local, com os bens e leis patrimoniais específicos do município trabalhado.

O jogo do patrimônio (fig.6), por sua vez, é a atividade final das oficias. Consiste em um tabuleiro com cartas e dados, em versões física e digital, desenvolvidas pelo núcleo de pesquisa. Traçado com a intenção de incentivar a conservação dos patrimônios e a importância destes para a formação da identidade da cidade, as cartas, que ditam o funcionamento do jogo, criam momentos fictícios de vivencias do cidadão com o patrimônio e as problemáticas enfrentadas para a preservação do mesmo. Abrangendo diversas formas positivas e negativas de ação, o jogador é agraciado ou penalizado através do deslocamento pelo tabuleiro, até que um grupo atinja a linha de chegada.

Figura 5. Apresentação dos conceitos e temas ligados ao patrimônio cultural no município de Chácara/MG, também desenvolvido nos outros municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG.. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

Conclusão

Pensar e propor intervenções e diretrizes para as cidades com participação da comunidade local permite uma compreensão mais abrangente de como se articulam as suas ocupações e de como estas ocupações, como apropriações de territórios, fazem parte da construção da memória social do lugar. Isso permite e provoca repensar os

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espaços construídos, tendo em vista os grupos e os seus territórios carregados de significados e conteúdos.

Para os pesquisadores, colaboradores e alunos envolvidos, trata-se de poder vivenciar realidades diferenciadas como um laboratório que inclui atividades de pesquisa e extensão. Para as comunidades envolvidas, tomar conhecimento do que se desenvolve no âmbito acadêmico faz ver a importância destes trabalhos e permite também compreender melhor a diversidade que se revela nestes espaços, como reflexos dos múltiplos horizontes históricos. Afinal, a consideração da experiência acumulada permite reavaliar as soluções possíveis.

Figura 6. Jogo do patrimônio, tabuleiro referente à Chácara/MG, também em fase de desenvolvimento para os outros municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG.. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

Acredita-se que trabalhar em bases sustentáveis é uma opção viável para tais cidades devido ao pequeno porte dos municípios e à maior facilidade de se ter uma administração, planejamento e uma organização espacial urbana, ainda que estas cidades sejam organismos vivos em constante crescimento e mutação. Entende-se ainda que trabalhar com a conservação e preservação dos diversos tipos de patrimônios locais é uma forma de se estimular a cultura local, proporcionar uma identidade cultural, o reconhecimento dos munícipes em seu espaço, o interesse turístico, e maior qualidade dos espaços públicos, com a conservação da história local e regional.

Após o fechamento das jornadas de planejamento municipal, os trabalhos não se encerram, já que a proposta é continuar apoiando na conscientização e disseminação das diretrizes e importância dos planos diretores, além da produção de materiais para

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esses municípios, sempre visando à importância da participação coletiva na construção e consolidação do desenvolvimento urbano e rural em bases sustentáveis.

Ao longo do desenvolvimento do trabalho, o material levantado e o mapeamento construído já estão sendo digitalizados e disponibilizados para as comunidades através do site www.ufjf.br/urbanismomg. Uma cópia impressa do jogo do patrimônio também já foi repassada aos municípios durante as oficinas. Além disso, um guia do patrimonio cultural cada cidade (fig.7a e b) e uma cartilha do patrimônio cultural (fig.8) vem sendo elaborados com o objetivo de reunir os principais termos e conceitos relativos ao patrimônio cultural e ambiental, para que as discussões desencadeadas nas oficinas possam ser repassadas e refeitas em outros momentos através dos professores envolvidos nas atividades. Pretende-se promover ainda uma exposição itinerante dos trabalhos com fotografias e projeções de vídeos, a ser desencadeada nos municípios enfocados.

Figura 7 a, b , c. Guia do Patrimonio Cultural de Chácara/MG, também em fase de desenvolvimento para os outros municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

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Figura 8. Cartilha do Patrimonio Cultural, também em fase de desenvolvimento para os outros municípios, a saber, Pequeri/MG e Matias Barbosa/MG.. Fonte: acervo NPE URBANISMOMG, 2012.

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PLANO DE GESTÃO DA CONSERVAÇÃO PARA EDIFICAÇÕES DE VALOR CULTURAL

Jorge Eduardo Lucena Tinoco

Resumo Esta comunicação trata do Plano de Gestão da Conservação como um instrumento de planejamento que estabelece uma política de administração para o uso adequado dos espaços e dos componentes construtivos, bem como da manutenção periódica do imóvel. Aborda a carência atual no âmbito técnico especializado da conservação do patrimônio construído dos procedimentos para elaboração de um documento que concilie os processos políticos e administrativos de dotações orçamentárias e de captações financeiras versus as necessidades técnico-operacionais das obras e dos serviços. O artigo apresenta o case do Plano de Gestão da Conservação da Basílica da Penha, elaborado pelo CECI no ano de 2006, como uma experiência exitosa para a garantia da integridade e autenticidade de um bem cultural construído.

Palavras-chave: plano de gestão de conservação; plano diretor de conservação; conservação do patrimônio.

Introdução O Plano de Gestão da Conservação para edificações de valor cultural é um

instrumento de planejamento que estabelece uma política de administração para o uso adequado dos espaços e dos componentes construtivos, bem como da manutenção periódica do imóvel. Tem como finalidade a garantia para a sociedade da integridade física do edifício e dos valores de significância do bem cultural que se quer preservar. Trata-se de uma ferramenta que se apresenta como um novo modelo de gestão a ser adotado pelo Poder Público e pela Inciativa Privada na conservação do patrimônio cultural construído.

No Brasil de hoje, é patente que os métodos correntes e as técnicas de projetos de restauro privilegiam apenas a execução das obras, seguindo na contramão das condutas mais avançadas para a salvaguarda da herança cultural construída. Há uma lacuna no meio técnico especializado da conservação do patrimônio construído sobre os procedimentos para elaboração de um planejamento integrado para a conciliação dos processos políticos e administrativos de dotações orçamentárias e de captações financeiras versus as necessidades técnico-operacionais das obras e dos serviços.

É comum constatar-se que os projetos de conservação são totalmente dissociados das ações periódicas e contínuas da gestão e da manutenção da edificação. O planejamento mais avançado tem que extrapolar as questões básicas e cotidianas comuns às planilhas orçamentárias e aos cronogramas físico-financeiros dos projetos. Não se fazer previsões ou se estabelecer parâmetros e custos quanto à manutenção da

CECI, [email protected]

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edificação que se pretende empreender a conservação e o restauro é uma prática lesiva aos cofres públicos e a poupança privada.

Desde a criação de programas governamentais sistematizados de preservação, a partir da década de 1970 até os primeiros anos deste novo século, as obras e os serviços em edificações de valor cultural, sob a proteção do Poder Público, valem-se da expertise dos profissionais e dos métodos operacionais da construção civil na condução dos principais empreendimentos. O Curso de Gestão de Restauro do CECI , através de viagens de estudos pelas principais cidades históricas do Nordeste e Sudeste do Brasil, tem verificado que as expectativas quanto à qualidade final das intervenções tomam de empréstimo parâmetros utilizados pelo mercado imobiliário, particularmente das áreas das construções habitacionais e comerciais, nem sempre adequadas aos materiais, técnicas e sistemas construtivos tradicionais. Dentre os vários materiais e procedimentos aqueles que mais causam interferências nas edificações antigas são os relativos às inovações tecnológicas, particularmente de materiais sintéticos para impermeabilidade e estanqueidade das estruturas e revestimentos, conforto térmico, comunicações etc..

Dos projetos da primeira hora do PCH – Programa de Cidades Históricas aos atuais relativos aos eixos um e dois do PAC das Cidades Históricas não há previsões de dotações orçamentárias (para o caso do Ente Público) ou de capacidade econômico-financeira (no caso de Ente Privado) para se manter adequadamente o uso da edificação, sequer num horizonte mínimo de dez anos.

Ainda em nosso meio, parece que a antiga assertiva do artigo 9º da Carta de Veneza de 1964 de que a restauração é uma operação que deve ter um caráter excepcional ainda não encontrou a ressonância no âmbito do Poder Público seja federal, estadual ou municipal, e quiçá em alguns profissionais especialistas. A restauração deve ceder à conservação. A política de manutenção tem se de ser estimulada, implementada e garantida. Urge, portanto, uma mudança de paradigma.

1. Plano de Gestão da Conservação O Plano de Gestão da Conservação – PGC é composto por um conjunto de

documentos técnicos comprometidos com ações integradas de curto, médio e longo prazos para a realização de ações conservativas que não podem mais ser abordadas com a visão imediata da obra de restauro, que se encerra com as solenidades de aposição de placas pelos políticos ou de outras comemorações.

PGC não se limitada às ações das obras em si. Os procedimentos relacionados no Plano devem ir além da entrega das obras ou serviços, monitorando a gestão do uso, bem como os desgastes e as falências naturais dos seus componentes construtivos. Neste sentido, destacam-se as recomendações e orientações sobre as ações periódicas de inspeções e manutenções, bem como as estimativas dos custos desses procedimentos. A elaboração do plano deve ser iniciada pari passu com a idealização dos projetos, ainda nas pranchetas dos profissionais . Devem respaldar-se em estudos e no conhecimento dos procedimentos necessários às rotinas de inspeções e manutenções periódicas dos materiais e técnicas construtivas a especificar. A antevisão das capacidades de carga, a vida útil dos materiais, as situações de riscos, necessariamente, têm de ser abordadas.

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Apresenta-se a seguir as experiências do CECI na elaboração e implementação do Plano para a Basílica de Nossa Senhora da Penha, localizada na cidade do Recife, em Pernambuco no período de fev/2006 a dez/2012.

2. Basílica de Nossa Senhora da Penha – Caso O PGC da Basílica da Penha foi elaborado pelo CECI no ano de 2006 por

demanda da Província de Nossa Senhora da Penha do Nordeste do Brasil – PRONEB. O plano foi executado em duas etapas pelo fato de a edificação encontrar-se em estado iminente de sinistros por incêndios e por desabamentos. A primeira etapa consignou a proposta básica de intervenção das obras e serviços de conservação e restauro; a segunda contemplou os procedimentos e as orientações para a gestão do acervo cultural construído dos Capuchinos e as medidas para as inspeções e manutenções periódicas dos componentes construtivos, bem como as estimativas dos custos com essas despesas.

O plano da Basílica consistiu na estruturação de ações de conservação integrada , reunindo um conjunto orientações técnicas direcionadas às intervenções físicas em nível de restauro da edificação. O plano tratou da identificação dos atributos tangíveis e intangíveis significativos da Basílica a serem preservados, sinalizou as patologias e os danos mais evidentes, definiu os principais atores responsáveis pela sua conservação e meios para sustentabilidades atuais e futuras da conservação do edifício. Teve por objetivo oferecer subsídios aos Frades sobre as práticas protetivas de forma a instruir o pedido de tombamento em níveis estadual e federal, e de sugerir as alterações necessárias em seus Estatutos para o favorecimento das tomadas de decisões e implementação das ações.

O Plano teve como ponto de partida a Declaração de Significância da Basílica cujo orago de Nossa Senhora da Penha é a santa padroeira da Indústria e do Comércio da cidade do Recife. Essa declaração teve o intuito de evidenciar os valores essenciais materiais e imateriais atribuídos à edificação, associados à sua estrutura de templo e às suas práticas religiosas e sociais, merecedoras de ações de salvaguarda e proteção, garantindo sua permanência no tempo. Assim, abriu-se a possibilidade de se instituir uma rotina de monitoramento da conservação, capaz de assegurar a constante aferição e avaliação das mudanças pelo dia a dia do uso, estabelecendo estratégias para se garantir a salvaguarda do bem cultural num horizonte de até vinte anos.

O plano da Basílica foi diferenciado dos outros dois elaborados pelo CECI para os Franciscanos de Olinda e Serinhaém devido à urgência para se eliminar os riscos de incêndio e desabamentos. A primeira etapa foi elaborada em quarenta e cinco dias. Um tempo recorde, considerando-se que a Basílica não possuía nenhum registro cadastral de plantas por mais elementares que fossem. A segunda etapa foi realizada quando da captação dos recursos financeiros junto aos governos estadual e federal e à iniciativa privada para a execução das obras.

2.1 Etapa I – Plano de Conservação Integrada O modelo elaborado e aplicado pelo CECI constou dos seguintes documentos:

Apresentação; Declaração de Significância; Localização; Propriedade; Vínculos Legais e Normas de Proteção; Antecedentes Históricos; Origens da Localização; Origem da Consagração da Construção Religiosa; Cronologia dos Processos Histórico-Construtivos; Significância Histórica; Características Físicas da Edificação; Registros

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Cadastrais (planta-baixa, fachadas, cobertas, usos, bens integrados); Patologias e Danos; Autenticidade e Integridade; Gestão da Propriedade (caráter social da comunidade, sustentabilidade, conservação atual); Planilha de Orçamento (estimativas de custos); Cronograma Físico-Financeiro; Referências Bibliográficas; Glossário; Ficha Técnica.

Dessa etapa destacam-se dois importantes documentos para a continuidade do plano na segunda etapa e para o novo processo de gestão adotado pelos Capuchinhos – a Declaração de Significância e o Mapa de Danos.

A Declaração de Significância da Basílica assim manifestou-se: A Basílica de Nossa Senhora da Penha, da Ordem dos Frades Menores

Capuchinhos constitui um imponente edifício na paisagem urbana do Bairro de São José – fortemente marcada pela presença das torres sineiras altas e delgadas e da enorme cúpula do transcepto, símbolos de uma forte religiosidade – que norteou a configuração urbana do início da formação da cidade.

A volumetria da Basílica destaca-se no contexto pela sua monumentalidade e singularidade que, além da pertinência como elemento arquitetônico, o partido de planta em cruz, ao gosto românico, coroa a devoção religiosa cristã tão forte na cidade do Recife.

A Basílica de Nossa Senhora da Penha merece uma emergencial ação de conservação por reunir os seguintes valores materiais e imateriais:

- Registra a monumentalidade da arte religiosa, de estilo eclético com influência do neoclassicismo da segunda metade o século XIX, no bairro histórico de São José, coração da cidade do Recife;

- Representa o vigor devocional e religioso, marcante dos séculos passados e que perdura até os dias atuais, sem perda de valor, recebendo semanalmente milhares de fiéis para as benções de São Felix e da Virgem ;

- Apresenta expressivos valores artístico e histórico, refletidos em sua concepção de planta, volumetria e bens integrados, bem como a introdução de elemento abobadado em cúpula na sua coberta, materializando o poder religioso na paisagem urbana.

- É um dos mais representativos exemplares no Brasil das técnicas construtivas do primeiro período da Arquitetura eclética . Os trabalhos decorativos em estuque, particularmente nas técnicas do marmorino e escaiola, tanto no interior como no exterior, fazem-na única no Nordeste do Brasil.

O conjunto desses elementos representa a permanência dos valores simbólicos e documentais singulares, testemunho insubstituível da religião, da arte e da história, merecendo o ato de preservação para conhecimento e usufruto das futuras gerações.

O Mapa de Danos foi elaborado a partir de fichas que permitiu a coletada em campo de dados técnicos das deteriorações em todos os componentes construtivos. Esse documento serviu de base não só para a definição e dimensionamento dos serviços, mas, também, para a elaboração da metodologia de conservação da segunda etapa.

O mapa foi configurado a partir da produção de sessenta fichas, contendo as principais patologias responsáveis pela degradação da Basílica. Os danos mais significativos estavam localizados nos telhados devido às infiltrações generalizadas pelas ações inadequadas de alteração das técnicas e dos materiais; nas instalações elétricas remanescentes de 1918 e pela proliferação de gambiarras e extensões de força

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e energia improvisadas; nos revestimentos internos e externos das paredes, degradados pela aplicação de tinta plásticas de base PVA látex.

2.2 Etapa 2 – Plano de Gestão da Conservação A elaboração desse plano aprofundou as pesquisas e os levantamentos

produzidos na primeira etapa. Foram revisados, ampliados e elaborados os seguintes documentos:

Todas as plantas cadastrais, através de levantamentos minuciosos, inclusive simulações em virtuais em 3D das técnicas dos sistemas construtivos dos telhados e imagens em VR360o tour ; o Inventário do Acervo dos Bens Arquitetônicos Integrados e Aplicados, bem como do acervo do mobiliário e das alfaias; os Projetos Complementares de Conservação e Restauro dos Elementos Artísticos com respectivas as Planilhas de Orçamento e Cronogramas ; os Manuais de Inspeção e de Manutenção periódicas; as alterações do Estatuto e do Regimento Interno da PRONEB.

As alterações no estatuto da PRONEB, os manuais de inspeção e manutenção periódicas e as Fichas de Identificação de Danos – FIDs são as peças em destaque nesta etapa. Sem estes documentos, não seriam viáveis ações planejadas de salvaguarda dos valores de significância da Basílica dentro dos proceitos da mínima intervenção e do respeito à autenticidade.

A principal alteração no Estatuto dos Capuchinhos foi a inserção do art. 51, onde “O Governo Provincial-Diretoria será assistido pela Comissão de Arte Sacra no âmbito da preservação do patrimônio cultural da Província” (PRONEB, Estatuto – abril/2012, p. 11). Essa comissão ficou responsável pela preservação dos bens patrimoniais de valor histórico e artístico, reconhecidos pelo Poder Público através do instituto jurídico do tombamento, além de aqueles classificados, tombados e registrados pela própria Comissão no Livro do Patrimônio Cultural da Província. No Nordeste do Brasil essa é a primeira notícia que se tem da introdução de um órgão no organograma jurídico de uma ordem religiosa para se garantir a integridade e a autenticidade dos seus bens patrimoniais de valor histórico e artístico. Essa comissão já se encontra em atividade, tendo contratado um profissional com amplas habilidades nos principais ofícios tradicionais da construção, capacitado pelo CECI há mais de cinco anos, inclusive com participação nas obras de restauro da Basílica .

Os manuais de inspeção e manutenção periódicas estabeleceram as ações de rotina para orientar os frades e funcionários da Basílica nas suas atividades como moradores e observadores dos espaços e dos componentes construtivos da edificação. Com um texto coloquial fornece orientações que buscam sensibilizar essas pessoas a criarem um olhar mais apurado, capaz de identificar pequenos sinais de degradação, possibilitando uma intervenção precoce e menos invasiva ao patrimônio .

As Fichas de Identificação de Danos – FIDs são documentos normalizados com registros e anotações gráficas e fotográficas sobre os danos existentes numa edificação. As FIDs contêm os registros principais para a produção do Manual de Manutenção de uma edificação de valor cultural porque cadastram desde as causas das degradações, quando da elaboração do Mapa de Danos, até as condutas propostas, os métodos e os materiais utilizados na realização das intervenções.

São os documentos essenciais e indispensáveis para os procedimentos de intervenção de manutenções periódicas nos componentes construtivos de uma edificação. Sem os registros das origens, natureza, agentes e causas, além das anotações

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dos procedimentos e dos materiais utilizados nas intervenções, não é possível se dar a continuidade segura e econômica da conservação .

Conclusões A modelagem e a aplicação do Plano de Gestão da Conservação é hoje uma

ferramenta útil à Administração das edificações de valor cultural. O Plano pode garantir a eliminação de grandes intervenções de restauro num horizonte de até vinte anos, proporcionando reduções significativas dos custos, possibilitando a permanência dos valores de significância e de integridade da edificação.

O custo para a produção do Plano é relativamente baixo se comparado ao preço final de um projeto elaborado nos moldes atualmente exigidos pelo IPHAN , pois pode ser considerado como um projeto complementar pela Administração. Também, os gastos com as inspeções e manutenções periódicas são reduzidos. Tomando-se por base a área de 1.200m2 e a ordem de grandeza dos componentes construtivos e dos elementos artísticos integrados e aplicados da Basílica da Penha, a Paróquia tem um custo médio mensal de R$ 4.200,00 com mão de obra, mais R$ 1.800,00 com materiais. Isto representará no longo prazo, no horizonte de vinte anos previsto no Plano, um total de aproximadamente R$ 1.440 mil, que é apenas 10% do total a ser gasto com o restauro em andamento . Evidentemente que alguns procedimentos de manutenção exigirão maiores investimentos quando dos serviços previstos nas manutenções quinquenais e decenais como as repinturas das fachadas externas, a substituição da fiação da rede de energia elétrica, cujo horizonte de vida útil média é de dez anos, etc..

O cenário brasileiro para a gestão da conservação de edificações de valor cultural deve ficar aberto às periódicas recomendações emanadas pelos organismos e reuniões técnicas internacionais e nacionais. Os trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pelo CECI e outras instituições ajudam na ampliação desse conhecimento, pois também se fundamentam em estudos realizados em teses de mestrado e doutorado por seus associados, no âmbito da Academia, bem como na prática junto as entidades que aceitaram essa nova maneira de pensar e agir sobre seus edifícios históricos.


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