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A CONSTRUÇÃO DE AFROBRASILIDADES NO USO DA INTERNET POR JOVENS DA GRANDE CRUZEIRO

Date post: 30-Mar-2023
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A CONSTRUÇÃO DE AFROBRASILIDADES NO USO DA INTERNET POR JOVENS DA GRANDE CRUZEIRO Deivison Moacir Cezar de Campos 1 ULBRA/UNISINOS RESUMO: O artigo tem como objetivo apontar relações estabelecidas pelos jovens entre música e internet, buscando verificar como as informações sobre música são consumidas por jovens moradores da Grande Cruzeiro em Porto Alegre. Trata-se de um estudo de campo, utilizando referenciais dos Estudos Culturais latino-americanos e ingleses e da Geografia social. As informações obtidas na internet são vestidas simbolicamente pelos jovens para construir ou fortalecer um estilo, que encontra na música seu elemento mais visível. PALAVRAS-CHAVE: Grande Cruzeiro; território; consumo; música; internet. 1 INTRODUÇÃO A música ocupa um importante espaço na construção da identidade negra na diáspora. Fruto da ressignificação de inúmeras culturas africanas, desterritorializadas durante o período colonial, as identidades afro-referenciadas foram geradas a partir de uma indeterminação linguística superada pela musicalidade. A estratégia possibilitou que, no período pós-escravista, os negros se reorganizassem em torno de batuques e cantos seguidos de coros, com conteúdo sagrado ou profano. 1 Jornalista. Doutor em Ciências da Comunicação. Coordenador do curso de Jornalismo da Ulbra.
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A CONSTRUÇÃO DE AFROBRASILIDADES NO USODA INTERNET POR JOVENS DA GRANDE CRUZEIRO

Deivison Moacir Cezar de Campos1

ULBRA/UNISINOS

RESUMO: O artigo tem como objetivo apontar relaçõesestabelecidas pelos jovens entre música e internet,buscando verificar como as informações sobre música sãoconsumidas por jovens moradores da Grande Cruzeiro em PortoAlegre. Trata-se de um estudo de campo, utilizandoreferenciais dos Estudos Culturais latino-americanos eingleses e da Geografia social. As informações obtidas nainternet são vestidas simbolicamente pelos jovens paraconstruir ou fortalecer um estilo, que encontra na músicaseu elemento mais visível.

PALAVRAS-CHAVE: Grande Cruzeiro; território; consumo;

música; internet.

1 INTRODUÇÃO

A música ocupa um importante espaço na construção da

identidade negra na diáspora. Fruto da ressignificação de

inúmeras culturas africanas, desterritorializadas durante o

período colonial, as identidades afro-referenciadas foram

geradas a partir de uma indeterminação linguística superada

pela musicalidade. A estratégia possibilitou que, no

período pós-escravista, os negros se reorganizassem em

torno de batuques e cantos seguidos de coros, com conteúdo

sagrado ou profano.

1 Jornalista. Doutor em Ciências da Comunicação. Coordenador do curso de Jornalismo da Ulbra.

Em decorrência dos sucessivos processos de

desterritorialização locais, as identidades afro-

brasileiras têm se construído a partir da ressignificação,

construção e tradução destes elementos simbólicos

reorganizados. No entanto, ao contrário de outras formas de

representação,

A identidade negra não é meramente uma categoriasocial e política a ser utilizada ou abandonada deacordo com a medida na qual a retórica que a apóiae legitima é persuasiva ou institucionalmentepoderosa. [...] Embora seja sentida muitas vezescomo natural e espontânea, ela permanece oresultado da atividade prática: linguagem, gestos,significações corporais, desejos (GILROY, 2001,p.209).

Os jovens têm a música como principal produto de

consumo cultural (DAYRELL, 2005), constituindo a partir

dela diferentes estilos. Os estilos vão determinar as

práticas a serem adotadas para sua representação. No

entanto, outros símbolos percorrem a vivência musical,

principalmente tratando-se da cultura negra. Para Glissant

(1989),

Não é nada novo declarar que para nós a música, ogesto e a dança são formas de comunicação, com amesma importância que o dom do discurso. Foi assimque inicialmente conseguimos emergir da plantation: aforma estética em nossa cultura deve ser moldada apartir dessas estruturas orais (apud GILROY, 2001,p.162).

A música afro-brasileira tem características híbridas,

apresentando referências identitárias de ser [percussão] e

devir [combinação com novas sonoridades], propostas por Hall

(1996) para o estudo das identidades negras na diáspora. A

ambiência afro constrói um território geográfico de fluxo

que surge e desparece pela intervenção de um dispositivo de

mídia sonora.

O artigo resulta de uma pesquisa que teve como

objetivo traçar as relações estabelecidas pelos jovens

entre música e internet, verificando os usos da internet

para consumo da música e os usos feitos pelos jovens desse

conteúdo em sua prática cotidiana. O texto insere-se numa

investigação ainda incipiente de como os jovens negros

estão construindo seu pertencimento étnico a partir do

consumo da música urbana afro-brasileira. O consumo, neste

caso, não somente das letras e sonoridades, mas das

ambiências e vivências experimentadas e possibilitadas pela

música.

A amostragem utilizada constitui-se num grupo de nove

jovens, com idade entre 15 e 22 anos, moradores da Grande

Cruzeiro, pertencentes a famílias da classe C e D. Oito dos

jovens são negros e um branco, sendo seis homens e três

mulheres. A abordagem foi aleatória, mas a seleção

sistemática. Os jovens foram contatados por estarem junto

às escolas José Loureiro da Silva, rua Capivari, e

Brigadeiro Silva Paes, na avenida Cinco de Novembro.

A definição da amostragem não propõe restringir a

pesquisa a “jovens negros pobres”, um dos estereótipos mais

presentes nos discursos sociais estereotipados. Trata-se

apenas de um dos grupos de jovens que serão trabalhados.

Por outro lado, buscou-se contextualizar as entrevistas

numa região considerada de negros, buscando refletir sobre

a multiterritorialidade [espaço geográfico, espaço social,

territorialização e desterritorialização simbólica, fluxos]

existente nesse espaço e de como a experiência

comunicacional mediada e vivida ocorre neste contexto.

O marco teórico estabelecido é os estudos de recepção,

a partir dos Estudos Culturais latino-americano (CANCLINI,

1996) e ingleses (GILROY, 2003). Também os estudos da

Geografia Social (SANTOS, 1996; HAESBAERT, 2004), para

discutir a questão da territorialidade.

O trabalho dividiu-se em dois momentos para o

levantamento de dados. No primeiro, foi aplicado um

questionário com sete questões abertas, a partir dos quais

foram realizadas as análises. a partir da oralidade

temática (MEIHY, 1998). Os questionários foram analisados

considerando também o método indiciário (GINZBURG, 1990),

buscando indicações e sintomas que funcionam como “chaves

para o conhecimento de realidade, minúsculas partes

singulares, tradicionalmente menosprezadas por predomínio

de hábitos e reflexos condicionados” (SANTORO, 2002).

O texto está organizado em dois momentos.

Inicialmente, discute-se a construção de uma leitura

hegemônica da Grande Cruzeiro como um território negro e

como a música, através de dispositivos midiáticos, tem

produzido territórios de fluxo. Na segunda parte, discute-

se como os jovens têm se utilizado desse lugar de fluxo

para construir seu estilo e também seus pertencimentos,

neste caso a uma identidade étnica afro-brasileira.

2 Música e afro-brasilidade na Grande Cruzeiro

A região denominada Grande Cruzeiro, em Porto Alegre,

agrega 29 vilas entre os bairros Santa Teresa e Nonoai,

iniciando próximo ao centro e estendendo-se até a zona sul

da cidade. A vila Grande Cruzeiro tem uma população

estimada em 200 mil habitantes. Esses se caracterizam pelo

reduzido nível de escolaridade e exclusão do mercado de

trabalho. Aproximadamente 30% dessa população é formada por

negros (OBSERVA, 2008). Esse número indica que, enquanto

espaço geográfico, a região possui uma população

majoritariamente branca. No entanto, o espaço social

apresenta características de um território negro.

A Grande Cruzeiro começou a se estruturar no século

XIX quando as charqueadas e sítios ali localizados, então

periferia de Porto Alegre, começaram a ser loteados. O

processo de urbanização, dinamizado em torno da metade do

século passado, empurrou muitos moradores da região do

Segundo Distrito2 para áreas mais distantes do Centro. O

aterramento de parte do Rio Guaíba, a construção da

2 O Segundo Distrito compreendia a região da rua Baronesa do Gravataí até a avenida 13 de Maio [atual Getúlio Vargas] e, no sentido norte-sul, da rua 28 de Maio [continuação da Ipiranga antes das obras de assoreamento do arroio] até a José de Alencar. Nas áreas próximas ao Dilúvio havia grandes áreas sem ocupação e sem ruas definidas, constituindo-se num prolongamento do território negro. Nesta área, localizava-se principalmente a Ilhota, que ficava isolada pelo arroio,tendo como único acesso a Travessa Batista (PESAVENTO, 1999). Atualmente a região constitui os bairros Menino Deus, Cidade Baixa e Praia de Belas, principalmente.

primeira Perimetral e a mudança do leito do Dilúvio

descaracterizam espacialmente o antigo território negro,

que se tornou valorizado do ponto de vista imobiliário. As

obras acabaram com a Ilhota e transformaram o Areal da

Baronesa (CAMPOS, 2006), levando muitos a se instalarem no

Morro Santa Teresa, marco inicial da Cruzeiro.

O deslocamento da população do antigo Segundo Distrito

fez com que a leitura hegemônica sobre a Grande Cruzeiro a

caracterizasse como um território negro não tradicional3.

Para Leite (1996), “o território negro integra o corpus de

representações partilhadas pelo grupo, geralmente associado

a um lugar, a uma experiência”. Defende também que o

território constitui-se por uma experiência que constrói

subjetividade numa trajetória temporal que perfaz a

história do grupo.

Essa trajetória tem sido marcada por sucessivos

movimentos espaciais, conceituados por Gilroy (2001) como

diásporas. A diáspora pode ser compreendida, em síntese,

como um movimento de desterritorialização e

reterritorialização de uma população fora de seu lugar de

origem e, portanto,

[...] é um conceito que ativamente perturba amecânica cultural e histórica do pertencimento. Umavez que a simples sequência dos laços explicativosentre lugar, posição e consciência é rompida, opoder fundamental do território [espacial] para

3 Denomino território negro não tradicional aqueles que surgiram depois do período da primeira diáspora local; ou seja, quando os negros tiveram que desocupar as áreas povoadas no período pós-abolição.

determinar a identidade pode também ser rompido(GILROY, 2001, p.18).

O movimento de desterritorialização e

reterritorialização, provocado pela transferência dos

territórios tradicionais, retoma o movimento espacial da

diáspora global. Como uma reprodução em menor escala do

deslocamento desencadeado pelo escravismo colonial, o negro

perde seus referenciais de espaço, tendo que adaptar sua

rede de significações e representações em outro território

que não o lugar em que foram construídos, caracterizando

uma diáspora local (CAMPOS, 2009). Neste caso, a Vila

Cruzeiro tornou-se o destino dos moradores do antigo

Segundo Distrito.

A década de 60 marca no Brasil uma aproximação entre

as populações rurais e urbanas, segundo o IBGE4, passando

de 55,9%, em 1970, para 81,2% em 2000. Neste cenário, o

“espaço urbano capitalista-fragmentado” articula-se a

partir de símbolos e campos de lutas (CORREA, 1995) e

estrutura-se em centros comerciais, financeiros,

industriais, residenciais e de lazer. As desigualdades

sociais da paisagem urbana, assim como as novas e

diferentes temporalidades e as multiterritorialidades

também provam o sentido de fragmentação da cidade. Desta

maneira,

compreender a cidade e explicar a produção doespaço urbano implica entender esse espaço comorelacionado à sua forma (a cidade) mas não sereduzindo a ela, à medida que ela expressa muito

4 Tendências Demográficas, 2000. IBGE, 2001.

mais que uma simples localização e arranjo delugares, expressa um modo de vida. Esse modo devida não está ligado somente ao modo de produçãoeconômica, embora sofra seu constrangimento, masestá ligado a todas as esferas da vida social:cultural, simbólica, psicológica, ambiental eeducacional (CAVALCANTI, 2001).

As relações de poder estabelecidas pelos modos de vida

geram os territórios que são “uma construção coletiva, um

espaço de representações e de ações que combinam os

territórios históricos, os territórios vividos e os

territórios projetados e que, por sua vez, a rede é um

artefato técnico que se sobrepõe ao território” (MUSSO apud

UEDA in HEIDRICH, 2008, p.78), seja ela pessoal ou mediada.

Esses diferentes territórios formam o que Haesbaert (2004)

vai denominar multiterritorialidade que se realiza, para o

indivíduo, ao “experimentar vários territórios ao mesmo

tempo e [...] a partir daí, formular uma territorialização

efetivamente múltipla”

Essa multiplicação do vivido por uma comunidade

constrói a territorialidade, possibilitando que os homens

vivam, ao mesmo tempo, segundo Raffestin (1993), o processo

e o produto territorial através de um “sistema de relações

existenciais e/ou produtivistas”, geradas no conjunto

formado pela sociedade, espaço e tempo, sendo a “’face

vivida’ e a ‘face agida’ do poder”. Nesse processo,

percebe-se a constituição de “uma nova espacialidade urbana

que depende de redes desterritorializadas e fronteiriças”

(UEDA in HEIDRICH, 2008, p.82).

Os territórios negros tradicionais, neste caso o

Segundo Distrito, haviam criado dinâmicas internas –

éticas, estéticas e estruturais - próprias, considerando a

invisibilidade frente ao público. O processo de

desterritorialização provocou a “dessocialização dos grupos

étnicos”, que se constitui na transformação dessas

comunidades em grupos culturais simbólicos, estruturados a

partir de marcas de identidade esvaziadas, a

territorialidade espacial. Segundo Schneider,

É precisamente quando as minorias deixam de viverem colônias e se acham diretamente confrontadas comos outros grupos que suas especificidades culturaistornam-se fonte de mobilização coletiva e que sedesenvolve o que Gans denominou de etnicidadesimbólica (apud POUTUGNAT; STREIFF-FENART, 1998,p.71).

A etnicidade simbólica provoca outro movimento

espacial que denomino denominado diáspora relacional

(CAMPOS, 2010). Marcado por redes de relações

desterritorializadas [fluxo], proporciona elementos de

identificação e de espacialidade, como, por exemplo, nos

cultos afro brasileiros.

Isto que dizer que não se trata apenas de umartifício técnico no contexto da musicalidade, masde uma configuração simbólica que, conjugada adança, constitui ela própria um contexto, umaespécie de “lugar”, ou de cenário sinestésico esinergético, onde ritualisticamente algo acontece[...] a reatualização dos saberes do cultosimultânea à inscrição do corpo do indivíduo numterritório, para que se lhe realimente a forçacósmica, isto é, o poder de pertencimento a umatotalidade integrada (SODRÉ, 2006, p.214).

Os dispositivos midiáticos têm exercido um efeito

semelhante à territorialidade negra produzida pela roda

(CAMPOS, 2010), construindo outras ambiências a partir de

elementos simbólicos, pois territorializar-se “significa

também, hoje, construir e/ou controlar fluxos/redes e criar

referenciais simbólicos num espaço em movimento, no e pelo

movimento” (HAESBAERT, 2004).

A circulação e apropriação de estilos, idéias e

histórias, baseados em referenciais africanos reelaborados,

tem ocorrido por transferência de formas culturais,

políticas e estruturas de sentimentos, respaldadas em

discursos políticos de cidadania, justiça racial e

igualdade. O fluxo comunicacional nessa nova espacialidade

tem sido facilitado por um fundo comum de “experiências

urbanas, pelo efeito de formas similares – mas de modo

algum idênticas - de segregação racial, bem como pela

própria memória da escravidão, um legado de africanismos e

um estoque de experiências religiosas definida por ambos”

(GILROY, 2001, p.175). O consumo cultural torna-se então um

importante lugar de troca social e de construção de

pertencimento, possibilitando o acesso aos diferentes

estilos.

Nesse movimento, os elementos simbólicos locais e

diaspóricos de constituição de afro-brasilidades têm

circulado, principalmente, através de estratégicas

estéticas, fazendo com que a música ocupe um importante

lugar de visibilidade, pois o mercado tem se apropriado de

sonoridades geradas nesses territórios negros em busca de

novidades para o consumo (KELLNER, 2001). Os usos da

internet, relacionadas à música, pelo grupo pesquisado,

combinadas com outros suportes, como o videoclipe, servem

para a construção do efeito de presença desses jovens e, a

partir dele, formas comunicativas de constituição de

pertencimento.

3 O uso do simbólico mediado no vivido

A relação entre a música e a juventude, segundo

Dayarell (2005) é uma construção histórica, que se iniciou

no século passado com o jazz. Na década de 70, ocorre uma

expansão e diversificação de estilos. Também verifica-se a

ampliação da possibilidade dos jovens tornarem-se

produtores musicais, com a popularização da aparelhagem

eletrônica. Os jovens pobres também se inserem no mercado

de trabalho, gerando a ampliação do consumo juvenil,

principalmente na moda e no lazer, e criando espaços

próprios de diversão nas periferias dos grandes centros,

como os bailes e sons.

Como principal produto cultural consumido pelos

jovens, a música está integrada ao cotidiano das cidades,

oferecendo “a possibilidade de conjugar a trama de um

caminho de busca existencial com os signos de uma pertença

coletiva” (DAYRELL, 2005, p.37). Os signos de identificação

acabam por constituir as chamadas subculturas juvenis,

ligadas aos diferentes estilos que surgem a partir das

preferências musicais. O estilo, neste contexto, é a

“manifestação simbólica das culturas juvenis expressa em um

conjunto mais ou menos coerente de elementos materiais e

imateriais que os jovens consideram representativos da sua

identidade individual e coletiva” (p.41).

As subculturas tornam-se uma forma de territorialidade

em meio a globalização, pois “quanto mais globalizado, mais

fragmentado o mundo reaparece. Nesse globalizar-se-

fragmentar-se grupos e grupelhos afloram. A vizinhança

passa a ser uma escala geográfica importante na vida das

pessoas.” (CANCLINI, 1996, p.31). Partindo desta

perspectiva, buscou-se uma amostragem que compartilhasse as

características de grupo.

Os jovens do grupo pesquisado na Grande Cruzeiro ouvem

principalmente pagode e funk5, utilizando-se de símbolos dos

estilos musicais no cotidiano. Desta maneira, além da

própria idéia de juventude ser “uma condição social e uma

representação” (DAYRELL, 2005, p.21), buscam outros lugares

de representação. Os meios de comunicação, enquanto esfera

socializadora, tem oferecido elementos para a construção

desses estilos, reforçando a tendência de estetização da

vida cotidiana (FEATHERSTONE, 1995, 100). No que tange a

música, Canclini (1996) diz que a circulação de músicas

étnicas tem contribuído para reproduzir e renovas os

imaginários. Mesmo que as músicas de preferência dos jovens

5 O funk é uma derivação do rap. No entanto, suas letras são cantadas e não faladas. As temáticas das letras estão ligadas aos cotidianos de pobreza, violência e principalmente a sexualidade. As letras são consideradas alienadas pelos músicos do rap e pelo movimento social negro (DAYRELL, 2005).

não sejam étnicas, apresentam características afro-

brasileiras, combinando formas vernaculares africanas

[batuque] com novas sonoridades.

Além do pagode e do funk, um dos jovens referiu outro

estilo musical afro-diapórico - o hip-hop. Os três estilos

apresentam as características de hibridização que tem sido,

no processo dinâmico do mercado musical, recombinado das

mais diferentes formas. As batucadas, que “adaptaram os

padrões sagrados às exigências seculares” (GILROY, 2007,

p.246), podem ser ouvidas nos estilos indicados, mantendo

um diálogo sempre reatualizado com os elementos

considerados africanos. No entanto, a “África que vai bem

nesta parte do mundo é aquilo que a África se tornou no

Novo Mundo, no turbilhão violento do sincretismo colonial,

reforjada na fornalha do panelaço colonial” (HALL, 2003,

p.40).

Os grupos referidos nas entrevistas seguem essa

combinação. Três jovens o apontaram o Bom Gosto como

preferido, seguido pelo Exaltasamba, com duas referências.

Com essa sonoridade [híbrido de samba e pop], também foram

citados, uma vez cada, Sorriso Maroto, Rodriguinho, Grupo

Zoeira e Pura Cadência. Zói di Gato foi o único MC de funk

apontado. Representando a música afro-diaspórica, foram

citados as cantoras Beyonce e os rappers Boy e Soldier.

Sobre a musicalidade de artistas da diáspora negra, Gilroy

(2001) vai dizer que

Os ritmos irreprimíveis do tambor, outroraproibido, muitas vezes ainda são audíveis em seu

trabalho. Suas síncopes características aindaanimam seus desejos básicos – serem livres e seremeles mesmos – revelados nesta conjunção única decorpo e música da contracultura (p.163-164).

Canclini (1996) também aponta uma nova constituição

social em que as esferas de cidadania, meios de comunicação

de massa e consumo estão aproximados, sendo necessária a

criação de novos patamares e modelos de cidadania. Os

estilos, evidenciados pelos gostos musicais, são uma das

estratégias utilizadas pelos jovens para as negociações

pessoais e coletivas, obtendo esses referenciais de

representação através do consumo de bens culturais. O

consumo, para o autor, “é o conjunto de processos

socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos

dos produtos” (p.77).

A internet, enquanto meio convergente, possibilita que

os jovens experenciem a música a partir de vários formatos

– áudio, vídeo, texto, letras, imagens, etc. Ao mesmo

tempo, oferece a oportunidade de que os jovens encontrem

espaços de relacionamento com pessoas da mesma subcultura.

Para Sodré (2006), as novas tecnologias do social

possibilitam a “emergência de uma nova Cidade humana.” Este

lugar, é um espaço privilegiado para o processo de

territorialização do simbólico.

Do grupo pesquisado, sete dos nove jovens tem acesso

mais freqüente à internet. Um diz acessar pouco e um não

acessa. Cinco dos oito jovens acessam a internet em casa,

quatro referem acessar a internet em lan house6. Desses,

6 O papel das lan houses como lugar de interação pessoal nas regiõespopulares ainda não foi devidamente pesquisado.

dois coincidem com os que acessam de casa e dizem ir às

casas que comercializam o acesso a internet para encontrar

os amigos. Dois entrevistados disseram acessar a internet

no “curso” e um utiliza o computador no serviço.

A navegação se dá principalmente em sites de

relacionamento. Os oito possuem conta na página de

relacionamento Orkut e quatro utilizam o Messenger (MSN).

Com esses acessos, buscam essencialmente relacionar-se com

amigos. Afirmam não falar diretamente sobre música, mas

conversam principalmente sobre as festas que frequentam ou

que irão freqüentar e também sobre cantores e shows. O

jovem que referiu ouvir hip-hop participa de comunidades

que tratam dessa cultura.

Seis dos jovens dizem navegar em outros sites, buscando

notícias sobre seus artistas preferidos e letras das

músicas. Com isso, conseguem cantar as músicas durante as

festas e em “rodas de samba”. As informações sobre cantores

serão alguns dos assuntos discutidos quando estiverem com

os amigos ou nas festas. Acessar o site do Youtube para

assistir e baixar videoclipes de funk, pagodes e hists

americanos, foi referido por sete jovens.

A internet, portanto, serve para construir e manter

redes desterritorializadas, que se territorializam em

determinados lugares, como nas festas, por exemplo. Por

outro lado, servem de fonte de informações que serão

utilizadas nos momentos de interação pessoal e para buscar

elementos para a identificação de símbolos para a

construção do seu estilo. “Logo, devemos admitir que no

consumo se constrói parte da racionalidade integrativa e

comunicativa de uma sociedade” (CANCLINI, 1996, p.56).

Os jovens homens consomem informações, imagens e

sonoridades na internet para, principalmente, observar como

os cantores se vestem, buscando adaptar as roupas para o

uso cotidiano e nas festas. Também os gestos e posturas dos

cantores. As mulheres estão atentas principalmente ao jeito

das cantoras dançarem e como estão penteadas. Todos

referiram que, em síntese, buscam novidades para cada nova

festa e para “atualizar o visual”.

Os lugares frequentados pelos jovens são as que tocam

os estilos referidos. Os mais citados são a quadra da Banda

da Saldanha e da escola de samba Imperadores, a cervejaria

Chopp1, o Delmar e o Risca Faca7. Nestes locais, os

elementos simbólicos apropriados pelo consumo são levados

ao vivido. As jovens apresentam novos penteados e passos de

dança apropriados dos músicos também na internet. Referem

que assistir ao clipe na televisão não oferece a

possibilidade de repetição para aprender as coreografias,

levando-os à internet. Os jovens observam os gestuais e a

maneira de parar e caminhar dos cantores preferidos,

construindo a partir deles sua performance.

A performance faz do corpo o “âmbito de convergência

das práticas culturais” (FILHO, 2009), tornando-o elemento

central para o efeito de presença. Nesse lugar, a

convergência da experiência de corporidade, ao som das

7 Os dois últimos locais da lista ficam na própria Vila Cruzeiro. Funcionam durante o dia como sinuca e secos e molhados, respectivamente. À noite, os salões são esvaziados e transforma-se em baile funk. Dos nove entrevistados,sete afirmaram frequentar os locais.

músicas híbridas afro-brasileiras, com o efeito de presença

– apropriado e ressignificado a partir do consumo –

possibilita um reforço da representação do estilo ao qual

estão ligados. Também nessa ambiência, no caso estudado,

acontece a construção de um território negro de fluxo, em

que são oferecidos elementos para uma experiência de afro-

brasilidade. Para Gilroy,

Os músicos, dançarinos e artistas negros do NovoMundo difundiram reflexões, estilos e prazeresatravés dos recursos institucionais das indústriasculturais colonizadas e capturadas por eles. Essasmídias, principalmente a gravação de som, têm sidoapropriadas às vezes com propósitos subversivos deprotesto e afirmação (GILROY, 2007, 159).

Essa afirmação se dá com base numa tradição que está

em permanente movimento, pois “as culturas negras não são

estáticas [...] são constantemente construídas e

reconstruídas” (SANSONE, 2007), num movimento espaço-

temporal ainda múltiplo. Ao territorializar elementos

simbólicos de estilos afro-brasileiros, os jovens também

experimentam uma vivência negra.

4 CONSIDERAÇÕES

A análise da relação estabelecida, pelos jovens

pesquisados, entre música e internet indica que esta não se

dá de maneira direta. Ao navegar, os jovens buscam

relacionar-se com os amigos, tendo as festas que freqüentam

um importante tema de conversa. Também buscam adquirir

informações que possam ser utilizadas nas suas interações

pessoais e para construir ou fortalecer um estilo, que

encontra na música seu elemento mais visível.

As informações obtidas na internet são vestidas

simbolicamente. Os jovens homens buscam referencias de

roupas a usar e expressões gestuais. As mulheres estão mais

atentas aos penteados e a novos passos de dança. O uso

desses bens simbólicos apropriados não se dá somente no

ambiente específico da festa. São levados ao cotidiano,

visando fortalecer a representação do estilo escolhido.

O grupo utilizado na amostragem pertence a famílias

das classes C e D e, por isso, fortalece a representação

simbólica por não terem acesso a todos os produtos que

produziriam os mesmos sentidos em nível material. Pode-se

observar que, além da adaptação de roupas ao estilo,

compartilham expressões de fala e utilizam gestos dos

mestres de cerimônia de funk e cantores de pagode.

Os jovens indicaram consumir principalmente músicas

afro-brasileiras, com destaque para o pagode. No entanto,

em nenhum momento referiram as letras. A atenção está nas

sonoridades e na manifestação expressiva. Pode-se inferir

com isso que enquanto a primeira produz o estilo, a segunda

gera a possibilidade de vivência de um pertencimento

étnico.

A ambiência musical produzida pela intervenção de um

dispositivo de mídia sonora perturba o cotidiano,

construindo uma territorialidade geográfica negra que, como

referido, por ser simbólica, é desterritorializada. O uso

dos elementos simbólicos do estilo e a apropriação de

elementos negros durante as interações pessoais, ainda

devem ser aprofundados em pesquisas posteriores, estando

aqui apontados que ocorrem.

Inicialmente, a pesquisa buscava refletir sobre as

possibilidades de investigação ao se construir uma

territorialidade negra de fluxo [festa, roda de conversa]

num território geográfico negro [Grande Cruzeiro].

Observou-se, no entanto, que a territorialidade negra por

constituir-se a partir do simbólico independe de um espaço

geográfico específico, podendo realizar-se em outros

lugares.

REFERÊNCIA

CAMPOS, Deivison. Da roda ao disco: a mediatização da afro-brasilidade. Trabalho apresentado no GP Geografias da Comunicação, X Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Caxias do Sul, 2010.

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CANCLINI, Nestor Garcia. Cultura sem fronteiras. [São Paulo:2008] Entrevistador: Reynaldo Damazio. Disponível em: <http://www.edusp.com.br/cadleitura.asp>. Acesso em 22 jun 2010.

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