A CONSTRUÇÃO DE AFROBRASILIDADES NO USODA INTERNET POR JOVENS DA GRANDE CRUZEIRO
Deivison Moacir Cezar de Campos1
ULBRA/UNISINOS
RESUMO: O artigo tem como objetivo apontar relaçõesestabelecidas pelos jovens entre música e internet,buscando verificar como as informações sobre música sãoconsumidas por jovens moradores da Grande Cruzeiro em PortoAlegre. Trata-se de um estudo de campo, utilizandoreferenciais dos Estudos Culturais latino-americanos eingleses e da Geografia social. As informações obtidas nainternet são vestidas simbolicamente pelos jovens paraconstruir ou fortalecer um estilo, que encontra na músicaseu elemento mais visível.
PALAVRAS-CHAVE: Grande Cruzeiro; território; consumo;
música; internet.
1 INTRODUÇÃO
A música ocupa um importante espaço na construção da
identidade negra na diáspora. Fruto da ressignificação de
inúmeras culturas africanas, desterritorializadas durante o
período colonial, as identidades afro-referenciadas foram
geradas a partir de uma indeterminação linguística superada
pela musicalidade. A estratégia possibilitou que, no
período pós-escravista, os negros se reorganizassem em
torno de batuques e cantos seguidos de coros, com conteúdo
sagrado ou profano.
1 Jornalista. Doutor em Ciências da Comunicação. Coordenador do curso de Jornalismo da Ulbra.
Em decorrência dos sucessivos processos de
desterritorialização locais, as identidades afro-
brasileiras têm se construído a partir da ressignificação,
construção e tradução destes elementos simbólicos
reorganizados. No entanto, ao contrário de outras formas de
representação,
A identidade negra não é meramente uma categoriasocial e política a ser utilizada ou abandonada deacordo com a medida na qual a retórica que a apóiae legitima é persuasiva ou institucionalmentepoderosa. [...] Embora seja sentida muitas vezescomo natural e espontânea, ela permanece oresultado da atividade prática: linguagem, gestos,significações corporais, desejos (GILROY, 2001,p.209).
Os jovens têm a música como principal produto de
consumo cultural (DAYRELL, 2005), constituindo a partir
dela diferentes estilos. Os estilos vão determinar as
práticas a serem adotadas para sua representação. No
entanto, outros símbolos percorrem a vivência musical,
principalmente tratando-se da cultura negra. Para Glissant
(1989),
Não é nada novo declarar que para nós a música, ogesto e a dança são formas de comunicação, com amesma importância que o dom do discurso. Foi assimque inicialmente conseguimos emergir da plantation: aforma estética em nossa cultura deve ser moldada apartir dessas estruturas orais (apud GILROY, 2001,p.162).
A música afro-brasileira tem características híbridas,
apresentando referências identitárias de ser [percussão] e
devir [combinação com novas sonoridades], propostas por Hall
(1996) para o estudo das identidades negras na diáspora. A
ambiência afro constrói um território geográfico de fluxo
que surge e desparece pela intervenção de um dispositivo de
mídia sonora.
O artigo resulta de uma pesquisa que teve como
objetivo traçar as relações estabelecidas pelos jovens
entre música e internet, verificando os usos da internet
para consumo da música e os usos feitos pelos jovens desse
conteúdo em sua prática cotidiana. O texto insere-se numa
investigação ainda incipiente de como os jovens negros
estão construindo seu pertencimento étnico a partir do
consumo da música urbana afro-brasileira. O consumo, neste
caso, não somente das letras e sonoridades, mas das
ambiências e vivências experimentadas e possibilitadas pela
música.
A amostragem utilizada constitui-se num grupo de nove
jovens, com idade entre 15 e 22 anos, moradores da Grande
Cruzeiro, pertencentes a famílias da classe C e D. Oito dos
jovens são negros e um branco, sendo seis homens e três
mulheres. A abordagem foi aleatória, mas a seleção
sistemática. Os jovens foram contatados por estarem junto
às escolas José Loureiro da Silva, rua Capivari, e
Brigadeiro Silva Paes, na avenida Cinco de Novembro.
A definição da amostragem não propõe restringir a
pesquisa a “jovens negros pobres”, um dos estereótipos mais
presentes nos discursos sociais estereotipados. Trata-se
apenas de um dos grupos de jovens que serão trabalhados.
Por outro lado, buscou-se contextualizar as entrevistas
numa região considerada de negros, buscando refletir sobre
a multiterritorialidade [espaço geográfico, espaço social,
territorialização e desterritorialização simbólica, fluxos]
existente nesse espaço e de como a experiência
comunicacional mediada e vivida ocorre neste contexto.
O marco teórico estabelecido é os estudos de recepção,
a partir dos Estudos Culturais latino-americano (CANCLINI,
1996) e ingleses (GILROY, 2003). Também os estudos da
Geografia Social (SANTOS, 1996; HAESBAERT, 2004), para
discutir a questão da territorialidade.
O trabalho dividiu-se em dois momentos para o
levantamento de dados. No primeiro, foi aplicado um
questionário com sete questões abertas, a partir dos quais
foram realizadas as análises. a partir da oralidade
temática (MEIHY, 1998). Os questionários foram analisados
considerando também o método indiciário (GINZBURG, 1990),
buscando indicações e sintomas que funcionam como “chaves
para o conhecimento de realidade, minúsculas partes
singulares, tradicionalmente menosprezadas por predomínio
de hábitos e reflexos condicionados” (SANTORO, 2002).
O texto está organizado em dois momentos.
Inicialmente, discute-se a construção de uma leitura
hegemônica da Grande Cruzeiro como um território negro e
como a música, através de dispositivos midiáticos, tem
produzido territórios de fluxo. Na segunda parte, discute-
se como os jovens têm se utilizado desse lugar de fluxo
para construir seu estilo e também seus pertencimentos,
neste caso a uma identidade étnica afro-brasileira.
2 Música e afro-brasilidade na Grande Cruzeiro
A região denominada Grande Cruzeiro, em Porto Alegre,
agrega 29 vilas entre os bairros Santa Teresa e Nonoai,
iniciando próximo ao centro e estendendo-se até a zona sul
da cidade. A vila Grande Cruzeiro tem uma população
estimada em 200 mil habitantes. Esses se caracterizam pelo
reduzido nível de escolaridade e exclusão do mercado de
trabalho. Aproximadamente 30% dessa população é formada por
negros (OBSERVA, 2008). Esse número indica que, enquanto
espaço geográfico, a região possui uma população
majoritariamente branca. No entanto, o espaço social
apresenta características de um território negro.
A Grande Cruzeiro começou a se estruturar no século
XIX quando as charqueadas e sítios ali localizados, então
periferia de Porto Alegre, começaram a ser loteados. O
processo de urbanização, dinamizado em torno da metade do
século passado, empurrou muitos moradores da região do
Segundo Distrito2 para áreas mais distantes do Centro. O
aterramento de parte do Rio Guaíba, a construção da
2 O Segundo Distrito compreendia a região da rua Baronesa do Gravataí até a avenida 13 de Maio [atual Getúlio Vargas] e, no sentido norte-sul, da rua 28 de Maio [continuação da Ipiranga antes das obras de assoreamento do arroio] até a José de Alencar. Nas áreas próximas ao Dilúvio havia grandes áreas sem ocupação e sem ruas definidas, constituindo-se num prolongamento do território negro. Nesta área, localizava-se principalmente a Ilhota, que ficava isolada pelo arroio,tendo como único acesso a Travessa Batista (PESAVENTO, 1999). Atualmente a região constitui os bairros Menino Deus, Cidade Baixa e Praia de Belas, principalmente.
primeira Perimetral e a mudança do leito do Dilúvio
descaracterizam espacialmente o antigo território negro,
que se tornou valorizado do ponto de vista imobiliário. As
obras acabaram com a Ilhota e transformaram o Areal da
Baronesa (CAMPOS, 2006), levando muitos a se instalarem no
Morro Santa Teresa, marco inicial da Cruzeiro.
O deslocamento da população do antigo Segundo Distrito
fez com que a leitura hegemônica sobre a Grande Cruzeiro a
caracterizasse como um território negro não tradicional3.
Para Leite (1996), “o território negro integra o corpus de
representações partilhadas pelo grupo, geralmente associado
a um lugar, a uma experiência”. Defende também que o
território constitui-se por uma experiência que constrói
subjetividade numa trajetória temporal que perfaz a
história do grupo.
Essa trajetória tem sido marcada por sucessivos
movimentos espaciais, conceituados por Gilroy (2001) como
diásporas. A diáspora pode ser compreendida, em síntese,
como um movimento de desterritorialização e
reterritorialização de uma população fora de seu lugar de
origem e, portanto,
[...] é um conceito que ativamente perturba amecânica cultural e histórica do pertencimento. Umavez que a simples sequência dos laços explicativosentre lugar, posição e consciência é rompida, opoder fundamental do território [espacial] para
3 Denomino território negro não tradicional aqueles que surgiram depois do período da primeira diáspora local; ou seja, quando os negros tiveram que desocupar as áreas povoadas no período pós-abolição.
determinar a identidade pode também ser rompido(GILROY, 2001, p.18).
O movimento de desterritorialização e
reterritorialização, provocado pela transferência dos
territórios tradicionais, retoma o movimento espacial da
diáspora global. Como uma reprodução em menor escala do
deslocamento desencadeado pelo escravismo colonial, o negro
perde seus referenciais de espaço, tendo que adaptar sua
rede de significações e representações em outro território
que não o lugar em que foram construídos, caracterizando
uma diáspora local (CAMPOS, 2009). Neste caso, a Vila
Cruzeiro tornou-se o destino dos moradores do antigo
Segundo Distrito.
A década de 60 marca no Brasil uma aproximação entre
as populações rurais e urbanas, segundo o IBGE4, passando
de 55,9%, em 1970, para 81,2% em 2000. Neste cenário, o
“espaço urbano capitalista-fragmentado” articula-se a
partir de símbolos e campos de lutas (CORREA, 1995) e
estrutura-se em centros comerciais, financeiros,
industriais, residenciais e de lazer. As desigualdades
sociais da paisagem urbana, assim como as novas e
diferentes temporalidades e as multiterritorialidades
também provam o sentido de fragmentação da cidade. Desta
maneira,
compreender a cidade e explicar a produção doespaço urbano implica entender esse espaço comorelacionado à sua forma (a cidade) mas não sereduzindo a ela, à medida que ela expressa muito
4 Tendências Demográficas, 2000. IBGE, 2001.
mais que uma simples localização e arranjo delugares, expressa um modo de vida. Esse modo devida não está ligado somente ao modo de produçãoeconômica, embora sofra seu constrangimento, masestá ligado a todas as esferas da vida social:cultural, simbólica, psicológica, ambiental eeducacional (CAVALCANTI, 2001).
As relações de poder estabelecidas pelos modos de vida
geram os territórios que são “uma construção coletiva, um
espaço de representações e de ações que combinam os
territórios históricos, os territórios vividos e os
territórios projetados e que, por sua vez, a rede é um
artefato técnico que se sobrepõe ao território” (MUSSO apud
UEDA in HEIDRICH, 2008, p.78), seja ela pessoal ou mediada.
Esses diferentes territórios formam o que Haesbaert (2004)
vai denominar multiterritorialidade que se realiza, para o
indivíduo, ao “experimentar vários territórios ao mesmo
tempo e [...] a partir daí, formular uma territorialização
efetivamente múltipla”
Essa multiplicação do vivido por uma comunidade
constrói a territorialidade, possibilitando que os homens
vivam, ao mesmo tempo, segundo Raffestin (1993), o processo
e o produto territorial através de um “sistema de relações
existenciais e/ou produtivistas”, geradas no conjunto
formado pela sociedade, espaço e tempo, sendo a “’face
vivida’ e a ‘face agida’ do poder”. Nesse processo,
percebe-se a constituição de “uma nova espacialidade urbana
que depende de redes desterritorializadas e fronteiriças”
(UEDA in HEIDRICH, 2008, p.82).
Os territórios negros tradicionais, neste caso o
Segundo Distrito, haviam criado dinâmicas internas –
éticas, estéticas e estruturais - próprias, considerando a
invisibilidade frente ao público. O processo de
desterritorialização provocou a “dessocialização dos grupos
étnicos”, que se constitui na transformação dessas
comunidades em grupos culturais simbólicos, estruturados a
partir de marcas de identidade esvaziadas, a
territorialidade espacial. Segundo Schneider,
É precisamente quando as minorias deixam de viverem colônias e se acham diretamente confrontadas comos outros grupos que suas especificidades culturaistornam-se fonte de mobilização coletiva e que sedesenvolve o que Gans denominou de etnicidadesimbólica (apud POUTUGNAT; STREIFF-FENART, 1998,p.71).
A etnicidade simbólica provoca outro movimento
espacial que denomino denominado diáspora relacional
(CAMPOS, 2010). Marcado por redes de relações
desterritorializadas [fluxo], proporciona elementos de
identificação e de espacialidade, como, por exemplo, nos
cultos afro brasileiros.
Isto que dizer que não se trata apenas de umartifício técnico no contexto da musicalidade, masde uma configuração simbólica que, conjugada adança, constitui ela própria um contexto, umaespécie de “lugar”, ou de cenário sinestésico esinergético, onde ritualisticamente algo acontece[...] a reatualização dos saberes do cultosimultânea à inscrição do corpo do indivíduo numterritório, para que se lhe realimente a forçacósmica, isto é, o poder de pertencimento a umatotalidade integrada (SODRÉ, 2006, p.214).
Os dispositivos midiáticos têm exercido um efeito
semelhante à territorialidade negra produzida pela roda
(CAMPOS, 2010), construindo outras ambiências a partir de
elementos simbólicos, pois territorializar-se “significa
também, hoje, construir e/ou controlar fluxos/redes e criar
referenciais simbólicos num espaço em movimento, no e pelo
movimento” (HAESBAERT, 2004).
A circulação e apropriação de estilos, idéias e
histórias, baseados em referenciais africanos reelaborados,
tem ocorrido por transferência de formas culturais,
políticas e estruturas de sentimentos, respaldadas em
discursos políticos de cidadania, justiça racial e
igualdade. O fluxo comunicacional nessa nova espacialidade
tem sido facilitado por um fundo comum de “experiências
urbanas, pelo efeito de formas similares – mas de modo
algum idênticas - de segregação racial, bem como pela
própria memória da escravidão, um legado de africanismos e
um estoque de experiências religiosas definida por ambos”
(GILROY, 2001, p.175). O consumo cultural torna-se então um
importante lugar de troca social e de construção de
pertencimento, possibilitando o acesso aos diferentes
estilos.
Nesse movimento, os elementos simbólicos locais e
diaspóricos de constituição de afro-brasilidades têm
circulado, principalmente, através de estratégicas
estéticas, fazendo com que a música ocupe um importante
lugar de visibilidade, pois o mercado tem se apropriado de
sonoridades geradas nesses territórios negros em busca de
novidades para o consumo (KELLNER, 2001). Os usos da
internet, relacionadas à música, pelo grupo pesquisado,
combinadas com outros suportes, como o videoclipe, servem
para a construção do efeito de presença desses jovens e, a
partir dele, formas comunicativas de constituição de
pertencimento.
3 O uso do simbólico mediado no vivido
A relação entre a música e a juventude, segundo
Dayarell (2005) é uma construção histórica, que se iniciou
no século passado com o jazz. Na década de 70, ocorre uma
expansão e diversificação de estilos. Também verifica-se a
ampliação da possibilidade dos jovens tornarem-se
produtores musicais, com a popularização da aparelhagem
eletrônica. Os jovens pobres também se inserem no mercado
de trabalho, gerando a ampliação do consumo juvenil,
principalmente na moda e no lazer, e criando espaços
próprios de diversão nas periferias dos grandes centros,
como os bailes e sons.
Como principal produto cultural consumido pelos
jovens, a música está integrada ao cotidiano das cidades,
oferecendo “a possibilidade de conjugar a trama de um
caminho de busca existencial com os signos de uma pertença
coletiva” (DAYRELL, 2005, p.37). Os signos de identificação
acabam por constituir as chamadas subculturas juvenis,
ligadas aos diferentes estilos que surgem a partir das
preferências musicais. O estilo, neste contexto, é a
“manifestação simbólica das culturas juvenis expressa em um
conjunto mais ou menos coerente de elementos materiais e
imateriais que os jovens consideram representativos da sua
identidade individual e coletiva” (p.41).
As subculturas tornam-se uma forma de territorialidade
em meio a globalização, pois “quanto mais globalizado, mais
fragmentado o mundo reaparece. Nesse globalizar-se-
fragmentar-se grupos e grupelhos afloram. A vizinhança
passa a ser uma escala geográfica importante na vida das
pessoas.” (CANCLINI, 1996, p.31). Partindo desta
perspectiva, buscou-se uma amostragem que compartilhasse as
características de grupo.
Os jovens do grupo pesquisado na Grande Cruzeiro ouvem
principalmente pagode e funk5, utilizando-se de símbolos dos
estilos musicais no cotidiano. Desta maneira, além da
própria idéia de juventude ser “uma condição social e uma
representação” (DAYRELL, 2005, p.21), buscam outros lugares
de representação. Os meios de comunicação, enquanto esfera
socializadora, tem oferecido elementos para a construção
desses estilos, reforçando a tendência de estetização da
vida cotidiana (FEATHERSTONE, 1995, 100). No que tange a
música, Canclini (1996) diz que a circulação de músicas
étnicas tem contribuído para reproduzir e renovas os
imaginários. Mesmo que as músicas de preferência dos jovens
5 O funk é uma derivação do rap. No entanto, suas letras são cantadas e não faladas. As temáticas das letras estão ligadas aos cotidianos de pobreza, violência e principalmente a sexualidade. As letras são consideradas alienadas pelos músicos do rap e pelo movimento social negro (DAYRELL, 2005).
não sejam étnicas, apresentam características afro-
brasileiras, combinando formas vernaculares africanas
[batuque] com novas sonoridades.
Além do pagode e do funk, um dos jovens referiu outro
estilo musical afro-diapórico - o hip-hop. Os três estilos
apresentam as características de hibridização que tem sido,
no processo dinâmico do mercado musical, recombinado das
mais diferentes formas. As batucadas, que “adaptaram os
padrões sagrados às exigências seculares” (GILROY, 2007,
p.246), podem ser ouvidas nos estilos indicados, mantendo
um diálogo sempre reatualizado com os elementos
considerados africanos. No entanto, a “África que vai bem
nesta parte do mundo é aquilo que a África se tornou no
Novo Mundo, no turbilhão violento do sincretismo colonial,
reforjada na fornalha do panelaço colonial” (HALL, 2003,
p.40).
Os grupos referidos nas entrevistas seguem essa
combinação. Três jovens o apontaram o Bom Gosto como
preferido, seguido pelo Exaltasamba, com duas referências.
Com essa sonoridade [híbrido de samba e pop], também foram
citados, uma vez cada, Sorriso Maroto, Rodriguinho, Grupo
Zoeira e Pura Cadência. Zói di Gato foi o único MC de funk
apontado. Representando a música afro-diaspórica, foram
citados as cantoras Beyonce e os rappers Boy e Soldier.
Sobre a musicalidade de artistas da diáspora negra, Gilroy
(2001) vai dizer que
Os ritmos irreprimíveis do tambor, outroraproibido, muitas vezes ainda são audíveis em seu
trabalho. Suas síncopes características aindaanimam seus desejos básicos – serem livres e seremeles mesmos – revelados nesta conjunção única decorpo e música da contracultura (p.163-164).
Canclini (1996) também aponta uma nova constituição
social em que as esferas de cidadania, meios de comunicação
de massa e consumo estão aproximados, sendo necessária a
criação de novos patamares e modelos de cidadania. Os
estilos, evidenciados pelos gostos musicais, são uma das
estratégias utilizadas pelos jovens para as negociações
pessoais e coletivas, obtendo esses referenciais de
representação através do consumo de bens culturais. O
consumo, para o autor, “é o conjunto de processos
socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos
dos produtos” (p.77).
A internet, enquanto meio convergente, possibilita que
os jovens experenciem a música a partir de vários formatos
– áudio, vídeo, texto, letras, imagens, etc. Ao mesmo
tempo, oferece a oportunidade de que os jovens encontrem
espaços de relacionamento com pessoas da mesma subcultura.
Para Sodré (2006), as novas tecnologias do social
possibilitam a “emergência de uma nova Cidade humana.” Este
lugar, é um espaço privilegiado para o processo de
territorialização do simbólico.
Do grupo pesquisado, sete dos nove jovens tem acesso
mais freqüente à internet. Um diz acessar pouco e um não
acessa. Cinco dos oito jovens acessam a internet em casa,
quatro referem acessar a internet em lan house6. Desses,
6 O papel das lan houses como lugar de interação pessoal nas regiõespopulares ainda não foi devidamente pesquisado.
dois coincidem com os que acessam de casa e dizem ir às
casas que comercializam o acesso a internet para encontrar
os amigos. Dois entrevistados disseram acessar a internet
no “curso” e um utiliza o computador no serviço.
A navegação se dá principalmente em sites de
relacionamento. Os oito possuem conta na página de
relacionamento Orkut e quatro utilizam o Messenger (MSN).
Com esses acessos, buscam essencialmente relacionar-se com
amigos. Afirmam não falar diretamente sobre música, mas
conversam principalmente sobre as festas que frequentam ou
que irão freqüentar e também sobre cantores e shows. O
jovem que referiu ouvir hip-hop participa de comunidades
que tratam dessa cultura.
Seis dos jovens dizem navegar em outros sites, buscando
notícias sobre seus artistas preferidos e letras das
músicas. Com isso, conseguem cantar as músicas durante as
festas e em “rodas de samba”. As informações sobre cantores
serão alguns dos assuntos discutidos quando estiverem com
os amigos ou nas festas. Acessar o site do Youtube para
assistir e baixar videoclipes de funk, pagodes e hists
americanos, foi referido por sete jovens.
A internet, portanto, serve para construir e manter
redes desterritorializadas, que se territorializam em
determinados lugares, como nas festas, por exemplo. Por
outro lado, servem de fonte de informações que serão
utilizadas nos momentos de interação pessoal e para buscar
elementos para a identificação de símbolos para a
construção do seu estilo. “Logo, devemos admitir que no
consumo se constrói parte da racionalidade integrativa e
comunicativa de uma sociedade” (CANCLINI, 1996, p.56).
Os jovens homens consomem informações, imagens e
sonoridades na internet para, principalmente, observar como
os cantores se vestem, buscando adaptar as roupas para o
uso cotidiano e nas festas. Também os gestos e posturas dos
cantores. As mulheres estão atentas principalmente ao jeito
das cantoras dançarem e como estão penteadas. Todos
referiram que, em síntese, buscam novidades para cada nova
festa e para “atualizar o visual”.
Os lugares frequentados pelos jovens são as que tocam
os estilos referidos. Os mais citados são a quadra da Banda
da Saldanha e da escola de samba Imperadores, a cervejaria
Chopp1, o Delmar e o Risca Faca7. Nestes locais, os
elementos simbólicos apropriados pelo consumo são levados
ao vivido. As jovens apresentam novos penteados e passos de
dança apropriados dos músicos também na internet. Referem
que assistir ao clipe na televisão não oferece a
possibilidade de repetição para aprender as coreografias,
levando-os à internet. Os jovens observam os gestuais e a
maneira de parar e caminhar dos cantores preferidos,
construindo a partir deles sua performance.
A performance faz do corpo o “âmbito de convergência
das práticas culturais” (FILHO, 2009), tornando-o elemento
central para o efeito de presença. Nesse lugar, a
convergência da experiência de corporidade, ao som das
7 Os dois últimos locais da lista ficam na própria Vila Cruzeiro. Funcionam durante o dia como sinuca e secos e molhados, respectivamente. À noite, os salões são esvaziados e transforma-se em baile funk. Dos nove entrevistados,sete afirmaram frequentar os locais.
músicas híbridas afro-brasileiras, com o efeito de presença
– apropriado e ressignificado a partir do consumo –
possibilita um reforço da representação do estilo ao qual
estão ligados. Também nessa ambiência, no caso estudado,
acontece a construção de um território negro de fluxo, em
que são oferecidos elementos para uma experiência de afro-
brasilidade. Para Gilroy,
Os músicos, dançarinos e artistas negros do NovoMundo difundiram reflexões, estilos e prazeresatravés dos recursos institucionais das indústriasculturais colonizadas e capturadas por eles. Essasmídias, principalmente a gravação de som, têm sidoapropriadas às vezes com propósitos subversivos deprotesto e afirmação (GILROY, 2007, 159).
Essa afirmação se dá com base numa tradição que está
em permanente movimento, pois “as culturas negras não são
estáticas [...] são constantemente construídas e
reconstruídas” (SANSONE, 2007), num movimento espaço-
temporal ainda múltiplo. Ao territorializar elementos
simbólicos de estilos afro-brasileiros, os jovens também
experimentam uma vivência negra.
4 CONSIDERAÇÕES
A análise da relação estabelecida, pelos jovens
pesquisados, entre música e internet indica que esta não se
dá de maneira direta. Ao navegar, os jovens buscam
relacionar-se com os amigos, tendo as festas que freqüentam
um importante tema de conversa. Também buscam adquirir
informações que possam ser utilizadas nas suas interações
pessoais e para construir ou fortalecer um estilo, que
encontra na música seu elemento mais visível.
As informações obtidas na internet são vestidas
simbolicamente. Os jovens homens buscam referencias de
roupas a usar e expressões gestuais. As mulheres estão mais
atentas aos penteados e a novos passos de dança. O uso
desses bens simbólicos apropriados não se dá somente no
ambiente específico da festa. São levados ao cotidiano,
visando fortalecer a representação do estilo escolhido.
O grupo utilizado na amostragem pertence a famílias
das classes C e D e, por isso, fortalece a representação
simbólica por não terem acesso a todos os produtos que
produziriam os mesmos sentidos em nível material. Pode-se
observar que, além da adaptação de roupas ao estilo,
compartilham expressões de fala e utilizam gestos dos
mestres de cerimônia de funk e cantores de pagode.
Os jovens indicaram consumir principalmente músicas
afro-brasileiras, com destaque para o pagode. No entanto,
em nenhum momento referiram as letras. A atenção está nas
sonoridades e na manifestação expressiva. Pode-se inferir
com isso que enquanto a primeira produz o estilo, a segunda
gera a possibilidade de vivência de um pertencimento
étnico.
A ambiência musical produzida pela intervenção de um
dispositivo de mídia sonora perturba o cotidiano,
construindo uma territorialidade geográfica negra que, como
referido, por ser simbólica, é desterritorializada. O uso
dos elementos simbólicos do estilo e a apropriação de
elementos negros durante as interações pessoais, ainda
devem ser aprofundados em pesquisas posteriores, estando
aqui apontados que ocorrem.
Inicialmente, a pesquisa buscava refletir sobre as
possibilidades de investigação ao se construir uma
territorialidade negra de fluxo [festa, roda de conversa]
num território geográfico negro [Grande Cruzeiro].
Observou-se, no entanto, que a territorialidade negra por
constituir-se a partir do simbólico independe de um espaço
geográfico específico, podendo realizar-se em outros
lugares.
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