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FACULDADE METODISTA GRANBERY – FMG
CURSO DE DIREITO
KÉLVIA FARIA FERREIRA
A EXISTÊNCIA DE CONSTITUIÇÕES SUPRANACIONAIS E A
MITIGAÇÃO DA SOBERANIA ESTATAL
JUIZ DE FORA
2012
KÉLVIA FARIA FERREIRA
A EXISTÊNCIA DE CONSTITUIÇÕES SUPRANACIONAIS E A MITIGAÇÃO DA
SOBERANIA ESTATAL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como requisito para obtenção do título de
Bacharel em Direito da Faculdade Metodista
Granbery.
ORIENTADOR: PROF. DR. CARLOS
FREDERICO DELAGE JUNQUEIRA DE
OLIVEIRA
JUIZ DE FORA
2012
KÉLVIA FARIA FERREIRA
A EXISTÊNCIA DE CONSTITUIÇÕES SUPRANACIONAIS E A MITIGAÇÃO DA
SOBERANIA ESTATAL
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para obtenção do título de
Bacharel em Direito da Faculdade Metodista Granbery.
Juiz de Fora, 30 de novembro de 2012.
Professor Doutor Carlos Frederico Delage Junqueira de Oliveira – Orientador
Faculdade Metodista Granbery
Professora Mestra Tathiana Machado Araújo Haddad Guarnieri – Examinadora
Faculdade Metodista Granbery
Professor Mestre Guilherme Madeira Martins – Examinador
Faculdade Metodista Granbery
JUIZ DE FORA
2012
À minha amada filha, por alegrar cada um dos meus
dias com seu mais belo sorriso.
Aos meus pais, por acreditarem e compartilharem
deste sonho comigo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu irmão que, despretensiosamente, me sugeriu um tema pelo qual
me encantei desde a primeira leitura.
Agradeço ao meu Orientador, Carlos Frederico Delage Junqueira de Oliveira, pelo
livro emprestado, o qual me forneceu o marco teórico deste trabalho.
À Professora Tathiana Machado Araújo Haddad Guarnieri que com suas aulas
despertou a grande paixão que alimento pelo Direito Internacional.
À Coordenadora Isaura Barbosa de Oliveira Lanza e, novamente, à Professora
Tathiana, pela presteza e solução do entrave no momento de marcação da minha Banca.
Ao meu amor, pela ajuda com as pesquisas e por sempre me acalmar nos
momentos de desespero.
Às preciosas amigas Jéssica Farineli e Priscila Moraes, pelas dificuldades
compartilhadas nesta reta final, mas que nunca abalaram o amor fraterno existente entre nós.
A toda a minha família, pela paciência e pelos momentos de felicidade e angústia
compartilhados.
“Imagine que não houvesse nenhum país
Não é difícil imaginar
Nenhum motivo para matar ou morrer
E nem religião, também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz
Você pode dizer que eu sou um sonhador
Mas eu não sou o único
Espero que um dia você se junte a nós
E o mundo será como um só”
(Imagine – John Lennon)
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a existência e importância das
Constituições Supranacionais no atual quadro que se delineia internacionalmente, no intuito
de discorrer sobre o futuro do Estado nacional, nos moldes hoje conhecidos, e sobre a
possibilidade de novas conformações estatais. Para tanto, irá discorrer sobre conceito,
evolução histórica e características do Estado nacional, bem como sobre o papel da soberania
enquanto requisito caracterizador deste, representação da liberdade estatal e sua importância
nas relações internacionais. Pretende ainda analisar as uniões que os Estados podem celebrar
entre si, a fim de conceituar as mencionadas Constituições Supranacionais e proceder à
análise de seu papel na atual conjuntura internacional.
Palavras-chave: Estado. Soberania. Relativização. Constituições Supranacionais. Futuro do
Estado.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................9
2 O ESTADO......................................................................................................11
2.1 Surgimento.........................................................................................................................11
2.2 Evolução histórica.............................................................................................................15
2.3 Território, povo e soberania.............................................................................................17
3 O PODER DO ESTADO: O PAPEL DA SOBERANIA............................24
3.1 Conceito e aspectos históricos..........................................................................................24
3.2 A soberania como requisito intrínseco da conceituação de Estado..............................27
3.3 A soberania como representação da liberdade estatal..................................................29
3.4 A importância da soberania estatal nas relações internacionais..................................31
4 AS UNIÕES DE ESTADOS........................................................................34
4.1 Uniões paritárias e uniões desiguais................................................................................34
4.2 Uniões de Direito Constitucional e uniões de Direito Internacional............................35
4.3 Uniões simples e uniões institucionais.............................................................................36
4.4 União pessoal e União real................................................................................................37
4.5 Confederação.....................................................................................................................38
4.6 Commonwealth...................................................................................................................39
4.7 Estado vassalo....................................................................................................................40
4.8 Protetorado........................................................................................................................41
4.9 Estado exíguo.....................................................................................................................41
4.10 Estado cliente e Estado satélite......................................................................................42
4.11 Estados associados...........................................................................................................42
5 AS CONSTITUIÇÕES SUPRANACIONAIS E O FUTURO DO
ESTADO......................................................................................................44
5.1 Conceito de constituições supranacionais.......................................................................44
5.2 O Estado nacional tem futuro?........................................................................................48
5.3 Constituições supranacionais versus soberania estatal: aliadas ou inimigas?.............51
6 À GUISA DE CONCLUSÃO....................................................................52
REFERÊNCIAS................................................................................................55
9
1 INTRODUÇÃO
As duas guerras vieram despertar o homem para a busca da liberdade e paz
mundial. Essa busca o levou a partir para soluções mais complexas e
envolventes, que simples alianças bilaterais. A busca da paz e de liberdade e
a melhor convivência na comunidade internacional tem levado os Estados a
se constituírem em comunidades associativas de âmbito mundial e de âmbito
regional. (SILVA, 2005, p. 158)
O aumento populacional desenfreado ocorrido nos últimos séculos, bem como a
existência de necessidades comuns a todos os homens e a dificuldade de sozinho, no âmbito
interno, atender a todas as demandas dos cidadãos, levam os Estados a buscarem subsídios
junto aos demais.
Atualmente, na era da globalização, esta necessidade de cooperação transnacional
tem se mostrado cada vez maior, fazendo surgir questionamentos sobre o futuro dos Estados
na sua formação clássica e as formas pelas quais se darão as integrações entre eles.
Em todos os âmbitos de atuação estatal, nota-se o aumento da importância das
relações diplomáticas, quer seja no que tange à economia, à política ou à sociedade. Neste
sentido, a celebração de tratados tem-se mostrado cada vez mais abrangente, motivo pelo qual
se cogita hoje a adoção de Constituições Supranacionais, ou seja, um regramento único que
submeta as Constituições nacionais às suas normas.
Neste sentido é a doutrina de Uadi Lammêgo Bulos:
“A grande nuança do poder constituinte transnacional, portanto, está na sua
capacidade de submeter as diversas constituições nacionais ao seu poder
supremo, mas de modo pacífico, sem uso da força, da demagogia, da
imposição de teses ou ideias de um grupo pequeno de pessoas.
[...]
Quer dizer, povos diferentes, ocupando territórios distintos, com culturas e
perfis particulares, que antes só se uniam sob leis comuns de impérios
ditatoriais, como o da extinta União Soviética, estão analisando a viabilidade
de uma constituição transnacional democrática.” (BULOS, 2011, p. 434)
A propósito, são ainda as palavras de Carlos Brandão:
Com a explosão populacional dos últimos 350 anos, período em que os
Estados atuais se consolidaram e em que o número de habitantes saltou de
pouco mais de 400 milhões para 6 bilhões, a interdependência entre os
Estados cresceu na mesma proporção. Essa interdependência tende a ser
10
cada vez mais crescente, o que reforça o questionamento sobre a transcrita
definição de Estado, que ainda prevalece no Direito Internacional.
(BRANDÃO, 1998, p. 119)
Portanto, necessária se faz a discussão sobre a continuidade ou abolição do Estado
nos moldes atuais e, ainda, sobre uma possível nova formação estatal, na qual o fundamento
basilar seja a otimização dos bens e recursos disponíveis, ainda que, para tanto, ocorra a
mitigação da soberania na forma como a conhecemos, deixando surgir no seu lugar uma nova
conformação estatal.
Neste sentido, os estudiosos do tema têm se ocupado de debater o assunto,
apontando uns para o fim do Estado nacional, nos moldes conhecidos atualmente, e outros
para um possível Estado global.
Nesta senda, tem o presente trabalho a intenção de discorrer sobre tais polêmicas.
Para tanto, partiremos dos primórdios do Estado, analisando seu surgimento, evolução
histórica e elementos característicos. Deste ponto se ocupa o primeiro capítulo deste texto.
Em seguida, analisaremos no segundo capítulo separadamente um dos requisitos
caracterizadores do Estado, qual seja, a soberania estatal, já que é o ponto fulcral do debate,
tendo em vista a possível relativização de seu papel no âmbito internacional em função de
uma maior integração global e da possibilidade de atender de maneira efetiva às necessidades
populares.
Prosseguindo, no terceiro capítulo, perpassaremos pelas espécies de uniões
estatais conhecidas, apontando seus aspectos mais relevantes, bem como apresentando
exemplos históricos já ocorridos.
No quarto capítulo, conceituaremos as Constituições Supranacionais e
realizaremos a análise sobre a possibilidade do fim do Estado-nação, bem como
confrontaremos a existência deste tipo de união estatal com a soberania interna de cada
Estado, no intuito de chegarmos a alguma conclusão sobre o futuro do Estado.
11
2 O ESTADO
2.1 Surgimento
Os teóricos que se propuseram a estudar tal tema ainda não chegaram – e, ao que
tudo indica, não chegarão – a um consenso sobre como e quando surgiram os Estados. Há
quem diga que eles sempre existiram, estando seu surgimento intrinsicamente ligado ao
próprio surgimento da sociedade. Outros o entendem como uma formação moderna, aceitando
sua existência apenas a partir do séc. XVII.
Não se pretende aqui defender este ou aquele posicionamento, nem tampouco
inová-los, mas, tão somente, trazer à baila as inúmeras teorias existentes a respeito, já que tal
compreensão mostra-se perfeito ponto de partida para a análise que nos propusemos a fazer.
Como dito, há estudiosos que defendem a concomitância do surgimento de Estado
e sociedade e há os que defendem a existência da sociedade num primeiro momento sem que
fosse estabelecido um Estado, o que leva os teóricos a se ocuparem da conceituação e da
análise da relação entre tais institutos.
Paulo Bonavides, na obra Ciência Política (2002), ressalta que os conceitos de
Estado e sociedade podem ser empregados como sinônimos ou em contraposição. Neste
último sentido, estabelece que a sociedade é o círculo mais amplo de convivência social e o
Estado o mais restrito, razão pela qual entende ter aquela surgido primeiro.
Neste mesmo sentido, Darcy Azambuja, em seu livro Teoria Geral do Estado
(2002), preceitua que na sociedade estão incluídos todos os grupos sociais dos quais o
indivíduo participa (família, igreja, sociedade comercial), inclusive o Estado, com a diferença
de que neste último o homem ingressa obrigatoriamente. Ressalta que o Estado também é uma
espécie de sociedade, a chamada sociedade política.
Bonavides pondera que o dualismo Estado-sociedade, no qual tais conceitos são
adotados em contraposição, surge com o fim do corporativismo da Idade Média e o advento
da burguesia, já que para esta Estado era ordem jurídica, corpo normativo e máquina do poder
político, enquanto sociedade era a esfera onde os indivíduos dinamizavam sua ação e
expandiam seu trabalho.
12
Ressalta ainda o autor que, de todos os filósofos estudiosos do tema, foi Rousseau
o mais feliz ao diferenciar Estado de sociedade, visto que:
Por sociedade, entendeu ele o conjunto daqueles grupos fragmentários,
daquelas ‘sociedades parciais’, onde, do conflito de interesses reinante só se
pode recolher a vontade de todos (volonté de tous), ao passo que o Estado
vale como algo que se exprime numa vontade geral (volonté générale), a
única autêntica, captada diretamente da relação indivíduo-Estado, sem
nenhuma interposição ou desvirtuamento por parte dos interesses
representados nos grupos sociais interpostos. (BONAVIDES, 2002, p. 60)
A dicotomia é tão marcante que, ao buscar desvendar o surgimento dos Estados,
os teóricos o fazem à luz da contraposição Estado-sociedade, donde uns entendem se tratar de
movimentos simultâneos e outros primam pela existência de um antes do outro.
Dalmo de Abreu Dallari, em sua obra Elementos de teoria geral do Estado
(2002), ensina que, ao questionarmos o surgimento do Estado, devemos ter em mente duas
indagações, quais sejam: em que época surge o Estado e quais os motivos que determinam seu
surgimento.
No que tange à época de surgimento do Estado, conforme já assinalado acima,
não há consenso entre os teóricos.
Para muitos, o Estado sempre existiu sendo, portanto, contemporâneo da
sociedade. Para tanto, argumentam que, dadas as necessidades do homem, que sozinho não é
capaz de sobreviver, sempre esteve ele interligado aos demais e, por ser racional, mas apesar
disso, possuir um instinto dominador, desde sempre esteve organizado em sociedades mais ou
menos rudimentares, as quais possuíam em comum o sentimento de poder e autoridade, sendo
alguns os responsáveis pela dominação dos demais.
Para outra parcela de estudiosos, os quais representam a maioria dos que se
aventuram a estudar o tema, a sociedade sobreviveu certo período sem o Estado, nascendo
este para atender às necessidades e conveniências do grupo dominante, sendo certo que tais
necessidades variam de uma sociedade para outra, bem como varia no tempo o nascimento do
Estado em cada parte do globo.
Uma terceira corrente de pensamento apenas aceita que se caracterize como
Estado a sociedade política dotada de certas características específicas. Por isso, para estes, o
Estado surge apenas no século XVII, momento no qual surge o conceito de soberania.
Carl Schmitt, filiado a esta teoria e citado por Dallari, aponta que “o conceito de
Estado não é um conceito geral válido para todos os tempos, mas é um conceito histórico
13
concreto, que surge quando nascem a ideia e a prática da soberania, o que só ocorreu no
século XVII.” (SCHMITT apud DALLARI, 2002, p. 53)
Realmente, a expressão Estado com o significado de “situação permanente de
convivência e ligada à sociedade política” (DALLARI, 2002, p. 51) é adotada pela primeira
vez no século XVI, quando Nicolau Maquiavel escreve O príncipe, daí o motivo para que esta
corrente defenda a tese de que apenas no século XVII surge o Estado.
A outra indagação sugerida por Dallari é a respeito dos motivos que determinam o
surgimento do Estado, ou seja, das razões que levam um certo número de indivíduos a se
reunirem sob a égide de certos mandamentos. Neste ponto, o sociólogo aponta para as
diversas correntes existentes, donde se conclui, novamente, não haver consenso.
Segundo Dallari, deve-se distinguir primeiro a formação originária dos Estados da
formação derivada, subdividindo-se a formação originária em natural e contratualista. A partir
de então, o autor se ocupa de trazer à lume os diversos posicionamentos daqueles que
entendem pela formação não contratual dos Estados, formação portanto, natural.
Dentro desta formação natural, o autor destaca o surgimento de Estados com
origem familiar, origem em atos de força, origem em causas econômicas e origem no
desenvolvimento interno da sociedade.
Os que apontam como causa determinante do surgimento do Estado a origem
familiar defendem que cada família origina um Estado diferente, ao passo que estão todos
submetidos à autoridade do patriarca.
A corrente que defende a origem dos Estados através de atos de força, violência
ou conquista se caracteriza pela submissão do grupo mais fraco a um grupo mais forte, ou dos
vencidos em face dos vencedores.
As inúmeras necessidades da população levaram ilustres pensadores, como Platão,
Marx e Engels, a defenderem a origem do Estado em causas econômicas ou patrimoniais,
acreditando estes que o Estado surge como forma de propiciar a ajuda mútua dos homens
(DALLARI, 2002, p. 55).
Por fim, há quem acredite que a origem do Estado está atrelada ao
desenvolvimento interno da sociedade que o compõe, ou seja, não há nenhum tipo de
influência externa de outros Estados, sendo causa única de seu surgimento o desenvolvimento
de sua sociedade.
Com relação à formação derivada dos Estados, Dallari pondera que esta pode
ocorrer pelo fracionamento de Estados ou pela união deles. O fracionamento de Estados seria
espécie de formação derivada de Estados, tendo em vista que, quando um Estado se divide, dá
14
origem a pelo menos um outro. A união de Estados se caracteriza pela junção de Estados
soberanos sob a égide de um mesmo regime, passando a existir apenas um Estado.
De se notar que, na atualidade, apenas este tipo de formação estatal pode ocorrer,
já que todo o território do globo se encontra ocupado, não havendo “terras de ninguém”
passíveis de serem ocupadas originariamente.
Azambuja, na obra supracitada, também aponta para as diversas formas de origem
do Estado, sem fazer, contudo, as subdivisões propostas por Dallari.
Para Azambuja, o Estado pode ter origem familiar, contratual, violenta, natural,
histórica e jurídica.
No que se refere à origem familiar, o doutrinador ressalta que, aceitar como
origem estatal a origem familiar, seria o mesmo que confundir a origem da humanidade com a
origem do Estado, apontando para a inexistência de qualquer comprovação empírica a este
respeito. Aceita o autor, apenas, que se entenda o surgimento da sociedade como derivada da
família, mas nunca o do Estado. Neste sentido, é possível observar que, para o autor, não há
coincidências na época de surgimento da sociedade e do Estado, sendo aquela anterior a este.
Com relação à origem contratual do Estado, o autor aponta para o inconveniente
de que, acreditando-se no fato de que todos os homens “assinaram um contrato” com o Estado
no qual aceitam se submeter a ele, poderiam eles desfazê-lo quando ficassem insatisfeitos,
levando à dissolução do Estado e a anarquia. A solução então seria a instauração de um
regime absolutista, o que geraria novos inconvenientes. Principais defensores desta tese são os
pensadores Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau, John Locke, dentre outros
(AZAMBUJA, 2002, p. 99).
Azambuja esclarece que a origem violenta dos Estados pode ser uma verdade, mas
não para todos os Estados, o que se admite é que, quando um grupo mais forte vence um
entrave e escraviza o mais fraco, tem-se a criação de um Estado com origem violenta.
No que tange à formação natural do Estado, Azambuja a conceitua como aquela
que surge quando uma sociedade primitiva se submete à autoridade de um chefe ou conselho
de anciãos, que passam a dirigi-la permanentemente. Todavia, nos adverte se tratar de um
conceito esquemático, já que sua aplicação apenas se dá para as sociedades sedentárias, uma
vez que os povos nômades não possuíam um dos requisitos caracterizadores do Estado, qual
seja o território, mas ainda assim se submetiam à autoridade destas figuras.
Retomando a discussão sobre a correlação entre Estado e sociedade, os que
acreditam na formação natural do Estado, defendem que o homem sempre viveu em
15
sociedade e que, por depender essa de organização, fez ela nascer o Estado, como mecanismo
de garantir a autoridade e a liberdade dos homens.
Partindo de uma perspectiva histórica, o autor esclarece que os modos históricos
de formação estatal são basicamente três: modo originário, secundário e derivado. Aqui
também se faz a ressalva de que na atualidade não há mais que se falar em formação
originária estatal, conforme esclarecido supra.
O modo secundário de formação estatal, dentro da formação histórica, traduz-se
na união ou fracionamento de Estados, conforme já abordado alguns parágrafos acima.
O modo derivado de formação histórica dos Estados consubstancia-se naquele em
que a formação do Estado sofre influências exteriores, de outros Estados, mas não
necessariamente há união ou fracionamento, sendo esta influência apenas democrática.
A formação histórica do Estado no modo derivado contrapõe-se à origem do
Estado no desenvolvimento interno da sociedade, sem quaisquer tipos de influência externa,
ao passo que no modo derivado o Estado surge justamente em virtude das influências
externas.
Por fim, o autor nos apresenta a formação jurídica de Estados, a qual pode ser
compreendida de duas formas, ou o Estado se forma quando há uma Constituição que o rege,
ou quando os demais Estados o reconhecem como tal.
2.2 Evolução histórica
É certo que as diversas conformações estatais não seguem uma linearidade no
transcorrer dos séculos. Isso ocorre por toda a História, sendo errôneo acreditar que os fatos
históricos ocorreram numa sucessão cronológica exata.
Por óbvio, o Estado Antigo não se findou na exata data em que nasceu o Estado
Grego, e assim sucessivamente, mas antes ocorreram movimentos diversos em diversas partes
do globo, podendo ainda afirmar-se que os diversos tipos de Estado não surgiram nem se
findaram na mesma época em todo o mundo.
Todavia, por razões didáticas, os teóricos buscam estruturar uma evolução
histórica dos diversos tipos estatais, usando como marco o tipo predominante da época, sendo
certo que tal linha evolutiva nos permitirá apontar, embasados nos estudos até então
empreendidos pelos estudiosos do tema, para a futura conformação estatal.
16
Consensualmente, entende-se que a evolução estatal se deu do Estado Antigo para
o Estado Grego, deste para o Estado Romano, de tais Estados para o Estado Medieval e deste
para o Estado Moderno. Passemos à breve análise das principais características de cada um.
O Estado Antigo é conhecido primordialmente por sua forma Teocrática, na qual
os governantes justificam seu poder alegando tê-lo recebido de Deus ou dos deuses. Em
outras culturas o governante se autointitula como o próprio deus. Logo, aduzem ser sua
vontade representativa da vontade daqueles, não havendo espaço para questioná-la. Em
contrapartida, seu poder é limitado pela vontade dos próprios deuses. Podem-se citar como
representativos deste tipo de formação estatal os povos indianos, pérsios, chineses, egípcios e
hebreus.
O Estado Grego apresenta como principal característica a divisão de seu território
nas conhecidas cidades-Estado ou pólis gregas, as quais se caracterizavam pela
independência governamental dentro destes pequenos territórios, ou seja, cada divisão
territorial do tamanho médio das cidades modernas possuía as características de um Estado,
sendo dotados de autossuficiência. No que tange à política, o Estado Grego é conhecido pela
dominação da elite, a qual influi sobremaneira nas decisões dos governantes, sendo certo que,
na esfera privada, a autonomia da vontade era restrita, havendo grande influência do poder
governante neste aspecto. Por fim, cabe a advertência feita por Azambuja (2002), no sentido
em que, muito embora filósofos como Aristóteles aleguem ser a Grécia uma democracia, o
poder era exercido por um pequeno grupo, a elite, sendo que mais da metade da população era
formada por escravos sem direito algum. Logo, existia sim uma aristocracia.
O Estado Romano se assemelha ao Grego em alguns aspectos, afastando deste em
outros. Aqui, diz-se que o povo participava diretamente do poder, no entanto, povo deve ser
compreendido como pequena parcela da população, da mesma forma que ocorrera no Estado
Grego. A organização do Estado Romano era conhecida por ser uma organização familiar, na
qual se garantia privilégios às famílias patrícias. No transcorrer dos anos, outras camadas
adquiriram direitos, todavia, foi mantida a estrutura familiar originária. Convém ressaltar
também que, tanto no Estado Grego, quanto no Estado Romano, prevalecia ainda a confusão
entre governo e religião, donde os cidadãos submetiam-se não somente ao poder político do
governante, mas também às suas crenças religiosas.
A passagem destas formas de Estado, Estado Grego e Estado Romano, para o
Estado Medieval foi marcada por diversas mudanças, sendo o Cristianismo um dos principais
responsáveis por tal fato. Este pregava a liberdade de consciência, visando à separação entre
Estado e religião, fato que desagradava os imperadores da época, razão que culminou com a
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perseguição dos cristãos. Ademais, o sentimento de fraternidade cristã pretendia fosse esta
estendida aos estrangeiros, o que também desagradou os imperadores, já que, até então,
predominava a xenofobia. Característica marcante deste tipo de Estado foi também a
indefinição das fronteiras decorrente das invasões bárbaras e das guerras do período. Outro
traço fundamental para a definição do chamado Estado Medieval foi a ascensão do
feudalismo, o qual era marcado pela subsistência dentro dos feudos, que não mantinham
relações mais estreitas com os vizinhos, acentuando a ausência do comércio. Os feudos, muito
embora autossuficientes, se encontravam submetidos ao príncipe que governava à luz do
Direito Natural e do Direito Positivo. Aquele Direito, segundo a concepção da época,
emanava dos céus, sendo considerado, por isso, divino. Em contrapartida, o Direito Positivo
era formulado pelo próprio príncipe, mas sempre respeitando os mandamentos divinos.
Por fim, tem-se a concepção moderna de Estado. O Estado Moderno surge em
face da insatisfação com o modelo medieval, no qual não havia unidade, conforme explicitado
supra. Daí advém a organização do Estado em um território definido dotado de poder
soberano. Esta conformação é conhecida também como Estado Liberal, apontando Azambuja
para a incorreção do termo, já que, neste período, era o Estado responsável pela satisfação de
todas as necessidades populares. Sob o argumento de emanar o poder do povo, este entendia
serem os governantes responsáveis por satisfazer todas as suas necessidades, o que levou à
hipertrofia do Estado, tendo em vista a finitude de recursos e a infinidade de necessidades.
Todavia, a tolerâncias às diferenças e a maior liberdade dos homens surgiu neste período,
sendo, por isso, adotada a expressão Estado Liberal.
2.3 Território, povo e soberania
Ao conceituar Estado, os estudiosos acordam em apresentar, pelo menos, três
elementos caracterizadores: território, povo e soberania. Há quem inclua outros elementos
como indispensáveis ao conceito, todavia, os três supra elencados são acordes na doutrina
estatista sendo, por isso, os de maior relevo e objeto de análise.
Todavia, há que se fazer uma ressalva ao que o grande doutrinador Hans Kelsen
considerou como sendo o quarto elemento da conceituação de Estado: o tempo. Em uma de
suas mais famosas obras, Teoria Geral do Direito e do Estado, Kelsen discorre sobre os
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elementos caracterizadores do Estado, incluindo entre eles o tempo, o qual será por nós
analisado após a análise do território do Estado.
No que se refere ao território, há que se ressaltar, primeiramente, que a
preocupação com a delimitação de um espaço territorial surge apenas com o Estado Moderno,
sendo, antes disso, irrelevante a preocupação com o tema.
Não que os Estados pré-modernos fossem desprovidos de território, mas a
preocupação com fronteiras e demarcação não se fazia presente à época, principalmente em
função dos constantes movimentos expansionistas, mostrando-se desinteressante a
delimitação de um espaço definido, já que a intenção era sempre aumentá-lo.
A fixação de um território delimitado está, então, intrinsecamente ligada à ideia de
soberania, já que, com a prática desta, surge a necessidade de se fixar os limites da atuação do
poder soberano.
Segundo Dallari, na obra já citada Elementos de teoria geral do Estado (2002, p.
86), há consenso em reconhecer a indispensabilidade do território para a formação do Estado,
todavia, os estudiosos do tema o entendem de maneiras diferentes. Para a maioria dos
teóricos, território é elemento constitutivo essencial do Estado. Para outros é condição
necessária exterior do Estado.
Já para Hans Kelsen, a necessidade do território se perfaz no sentido de delimitar
o âmbito de alcance das normas jurídicas, garantindo a convivência de diversas ordens
estatais diferentes ao mesmo tempo. Neste sentido, assim dispõe:
A limitação da esfera de validade da ordem coercitiva chamada Estado a um
território definido significa que as medidas coercitivas, as sanções,
estabelecidas pela ordem, têm de ser instituídas apenas para esse território e
executadas apenas dentro dele. [...] Se as suas esferas territoriais de validade
não fossem juridicamente delimitadas, se os Estados não possuíssem
quaisquer fronteiras fixas, as várias ordens jurídicas nacionais, e isso quer
dizer, os Estados, não poderiam coexistir sem conflitos. (KELSEN, 2000, p.
300/301)
A partir de então, necessário se faz analisar a relação do Estado com seu território,
divergindo a doutrina em dois grandes ramos, quais sejam o dos que entendem ser esta uma
relação de domínio e os que afastam tal concepção.
Dentre aqueles que apontam para a existência de relação de domínio, ou seja, de
propriedade do Estado sobre seu território, tem-se duas concepções antagônicas (DALLARI,
2002, p. 87). Para a primeira delas, o Estado atua como proprietário de seu território, podendo
usar, gozar e dispor dele, existindo uma relação de direito real de natureza pública. A
19
segunda concepção rebate esta teoria, apontando para a incompatibilidade da convivência da
propriedade pública, que seria a do Estado para com o seu território, com a propriedade
privada, que é a propriedade dos particulares sobre este mesmo território, defendendo a
existência de um direito real institucional, sendo este direito exercido sobre o solo e seu
conteúdo determinado pelo que exige o serviço da instituição estatal (DALLARI, 2002, p.
88). Como nenhuma das duas teorias foi capaz de solucionar os inconvenientes desta
concepção, os adeptos dela encontram solução ao conceituar o domínio exercido pelo Estado
como domínio iminente e o domínio exercido pelos particulares como domínio útil.
Em contrapartida, há teorias que negam a existência de relação de domínio entre
Estado e território. Para estas ultimas, domínio é expressão do poder de império do Estado,
razão pela qual exerceria o Estado domínio sobre as pessoas que se encontram naquele
território e não sobre o território em si. Neste mesmo sentido, mas visando expandir a teoria
anterior, surge teoria entendendo que, enquanto poder de império do Estado, o domínio estatal
se estende não somente às pessoas, mas também às coisas que se encontram naquele território.
No intuito de agrupar as teorias que cuidam do tema, Paulo Bonavides aponta para
concepções fundamentais sobre território, as quais surgiram da reunião do até então dito sobre
o assunto (BONAVIDES, 2002, p. 98 e ss.).
A primeira delas é chamada pelo autor de Território-patrimônio e reflete o
pensamento adotado pelo Estado Medieval, no qual não havia diferença entre dominium e
imperium. O Estado era considerado dono de seu território como qualquer proprietário
particular, podendo dele, inclusive, dispor livremente.
A segunda concepção é a de Território-objeto, na qual o território é concebido
como objeto de direito real de caráter público, o que significa dizer: “o território estaria assim
para o Estado do mesmo modo que a coisa para o proprietário, e a soberania territorial seria
no direito público aquilo que no direito civil é o direito de propriedade.” (BONAVIDES,
2002, p. 100)
Num terceiro aspecto, tem-se a concepção de Território-espaço, onde o território
é conceituado como a extensão espacial da soberania do Estado, partindo-se aqui do
pressuposto de que o Estado tem um direito de caráter pessoal implícito na ideia de imperium.
Por fim, tem-se a concepção do Território-competência, concepção esta que mais
agradou o estudioso Kelsen, “por admitir de modo especial um conceito jurídico de
competência e de modo geral um conceito de validade do direito” (BONAVIDES, 2002, p.
104).
20
Do exposto, conclui-se que há consenso quanto aos seguintes aspectos: não existe
Estado sem território, sendo este, portanto, um requisito indispensável do conceito de Estado;
o território estabelece a delimitação da ação soberana do Estado e o território é objeto de
direito do poder soberano.
Antes de adentrarmos na análise do povo do Estado, cumpre salientar a
observação feita por Hans Kelsen sobre a inclusão do elemento tempo na conceituação de
Estado.
Para ele, o tempo apresenta-se como elemento necessário para a conceituação de
Estado, já que a impossibilidade de dois Estados ocuparem o mesmo território é uma
limitação temporal, ou seja, aquele mesmo território poderá pertencer a outro Estado em outro
espaço de tempo.
Neste sentido ensina:
Quando se diz que não pode existir mais de um Estado dentro do mesmo
espaço, obviamente, pretende-se dizer que não pode existir mais de um
Estado dentro do mesmo espaço ao mesmo tempo. Toma-se como auto-
evidente o fato de que, como demonstra a história, dois diferentes Estados
podem existir, um após o outro, pelo menos até certo ponto, dentro do
mesmo espaço. (KELSEN, 2000, p. 314)
Mas não é só. Kelsen entende também que “o problema da esfera temporal de
validade da ordem jurídica nacional costuma ser apresentado como o problema do nascimento
e da morte do Estado” (KELSEN, 2000, p. 315), ou seja, para saber se um governo
independente, firmado sobre certo território, com uma população definida, constitui um novo
Estado, é necessário que, antes dele, não tenha se firmado naquele mesmo território outro
governo sobre o mesmo povo, caso em que haverá tão-somente a mudança de governo e não o
nascimento de um novo Estado.
Em suas palavras:
Caso haja se estabelecido um governo capaz de obter obediência permanente
à sua ordem, em um território e por parte de uma população que já eram o
território e a população de um único Estado, se o território e a população
forem idênticos, então nenhum novo Estado, no sentido do Direito
internacional, começou a existir; apenas foi estabelecido um novo governo.”
(KELSEN, 2000, p. 316)
Prosseguindo em sua explanação sobre a importância do tempo para a
conceituação do Estado, Kelsen aponta que o Estado não se modifica se não houver
21
modificação de suas normas jurídicas, isto é, o Estado perdurará enquanto perdurar sua ordem
normativa:
Um Estado permanece o mesmo por tanto tempo quanto seja mantida a
continuidade da ordem jurídica nacional, ou seja, por tanto tempo quanto as
mudanças dessa ordem, mesmo as mudanças fundamentais no conteúdo das
normas jurídicas da esfera territorial de validade, sejam o resultado de atos
executados em conformidade com a constituição e desde que a mudança não
implique o término da validade da ordem jurídica nacional como um todo.
(KELSEN, 2000, p. 316)
Aponta ainda para o fato de que é o elemento tempo que mostrará quando um
Estado nasce e quando este Estado deixa de existir, já que sua existência depende da validade
de sua ordem jurídica. Assim preleciona sobre o tema:
A resposta dada pelo Direito internacional é a de que uma ordem jurídica
nacional começa a ser válida tão logo se torne – como um todo – eficaz, e
deixa de ser válida tão logo perca essa eficácia. A ordem jurídica permanece
a mesma na medida em que sua esfera territorial de validade permaneça
essencialmente a mesma, ainda que a ordem seja modificada de outra
maneira que a prescrita na constituição, por meio da revolução ou coup
d’état. (KELSEN, 2000, p. 317)
Analisada a importância do tempo para a conceituação do Estado na doutrina de
Kelsen, passemos à análise do elemento pessoal do Estado, seu povo.
Outro requisito indispensável à conceituação de Estado, acordando a doutrina
também neste aspecto, é a existência de um povo para o qual é dirigida a atuação estatal e em
função do qual é criado o Estado.
Há expressões próximas que hodiernamente são utilizadas como sinônimos de
povo, todavia, adverte Dallari e Azambuja, essa utilização despreocupada mostra-se errônea.
Expressão rotineiramente utilizada para se referir a povo é população, a qual se
refere à mera expressão numérica, demográfica ou econômica (DALLARI, 2002, p. 95),
sendo inadequada para traduzir o vínculo jurídico destas pessoas para com o Estado, já que
inclui também aquelas que transitoriamente estejam no território do Estado.
Outra expressão inadvertidamente utilizada como sinônimo de povo é nação.
Segundo a doutrina, o termo nação, tecnicamente utilizado, se mostra muito mais abrangente
do que o termo povo. Nação significa “uma comunhão formada por laços históricos e
culturais e assentada sobre um sistema de relações de ordem objetiva”, (DALLARI, 2002, p.
22
96). Assim, enquanto tradução de uma comunidade, a qual se traduz no uso da mesma língua,
costumes e práticas comuns, não é o termo nação capaz de traduzir uma situação jurídica.
Azambuja, na supracitada obra, também se ocupa de diferenciar povo e nação,
apresentando o seguinte conceito:
Povo é a população do Estado, considerada sob o aspecto puramente
jurídico, é o grupo humano encarado na sua integração numa ordem estatal
determinada, é o conjunto de indivíduos sujeitos às mesmas leis [...].
Nação é um grupo de indivíduos que se sentem unidos pela origem comum,
pelos interesses comuns e, principalmente, por ideais e aspirações comuns.
Povo é uma entidade jurídica; nação é uma entidade moral no sentido
rigoroso da palavra. (AZAMBUJA, 2002, p. 19)
Ressalvadas tais observações, cumpre salientar que a construção doutrinária do
conceito de povo foi dada por Jellinek, em obra publicada em torno de 1900, conforme
assevera Dallari (JELLINEK apud DALLARI, 2002, p. 98), apontando aquele autor para a
distinção entre um aspecto subjetivo e um aspecto objetivo do termo.
No que tange ao aspecto subjetivo, tem-se que, sendo o Estado sujeito do poder
público e sendo o povo um de seus elementos constitutivos, participa este último da condição
de sujeito do poder. Quanto ao aspecto objetivo, tem-se que o povo é objeto da atividade
estatal.
Assim, razoável concluir que, sendo os indivíduos sujeitos e objetos do Estado,
estão eles subordinados ao poder estatal, logo, sujeitos de deveres, mas também são membros
do Estado e, assim, sujeitos de direitos.
Cabe ressaltar que a simples união de pessoas sob a mesma autoridade não é
capaz de constituir um Estado, sendo necessário que essa pluralidade de pessoas esteja
associada a outros elementos num determinado momento jurídico.
Reconhecendo-se que entre Estado e povo há um vínculo jurídico, surge para
aquele a imposição de algumas atitudes negativas, positivas e de reconhecimento. As atitudes
negativas se traduzem nas imposições de certos limites estabelecidos pelo Direito, a fim de
respeitar os cidadãos. As atitudes positivas são aquelas tomadas com o intuito de proteger e
favorecer o povo. As atitudes de reconhecimento têm lugar quando o indivíduo age em nome
do Estado e este tem a obrigação de reconhecê-lo como se fosse um órgão seu.
Do exposto, conclui-se que o povo, além de elemento constitutivo necessário do
Estado, é também componente ativo deste, já que sujeito e objeto seu. Segundo Dalmo
23
Dallari, “o povo é o elemento que dá condições ao Estado para formar e externar uma
vontade.” (DALLARI, 2002, p. 99).
Para Kelsen:
Assim como o Estado tem apenas um território, ele tem apenas um povo, e,
como a unidade do território é jurídica e não natural, assim o é a unidade do
povo. Ele é constituído pela unidade da ordem jurídica válida para os
indivíduos cuja conduta é regulamentada pela ordem jurídica nacional, ou
seja, é a esfera pessoal de validade dessa ordem. Exatamente como a esfera
territorial de validade da ordem jurídica nacional é limitada, assim também o
é a esfera pessoal. (KELSEN, 2000, p. 334)
Povo é, assim, o conjunto de indivíduos que se unem para constituir o Estado,
através de um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade
do Estado e do exercício do poder soberano.
Ao mencionar o poder soberano, pertinente se faz a análise deste último requisito
caracterizador do Estado, a qual, dada a importância para este estudo, será realizada em
capítulo apartado.
24
3 O PODER DO ESTADO: O PAPEL DA SOBERANIA
3.1 Conceito e aspectos históricos
Da mesma forma que ocorreu com o conceito de território, a preocupação com o
conceito de soberania apenas surgiu na Idade Média, sendo este conceito um dos pilares do
que se convencionou chamar por Estado Moderno.
Na Antiguidade Grega e Romana não existia a preocupação com a chamada
soberania, tendo em vista que não havia oposição de poderes, não havia outros movimentos
que visassem tomar para si a autoridade do governante.
Na Grécia Antiga, as cidades-Estado se estruturavam sobre as chamadas
autarquias que, conforme já aduzido supra, eram dotadas de autossuficiência, sem que se
preocupassem com disputas entre elas e as cidades vizinhas.
Em Roma, o poder se traduzia em poderio civil e militar, poder de combater
através das armas e de seus soldados, bem como na autoridade dos Magistrados, sendo
utilizadas as expressões majestas, imperium e potestas para se referir a este poder.
A necessidade de se afirmar a soberania surgiu, então, na Idade Média, em virtude
da estrutura da época, na qual o príncipe não possuía ingerência dentro dos feudos, estando o
poder dividido entre o soberano, que apenas era referenciado sem que, contudo, efetivamente
governasse, e os senhores feudais, os quais realmente governavam dentro de seus feudos,
sendo que a eles deviam os camponeses certas obrigações.
Desta estrutura, surgiu a confusão entre as atribuições do Estado e de outras
entidades, as quais tomaram para si atribuições características do próprio Estado como, por
exemplo, a tributação, o que durou até o século XII. No decorrer do século XIII, os monarcas
vislumbram tal situação, empreendendo esforços para afirmar sua independência em face dos
senhores feudais e da Igreja. Já no século XVI, consegue a monarquia reunir todo o poder em
suas mãos, donde surge a noção de soberania.
Jean Bodin se ocupa de conceituar soberania, estabelecendo tratar-se de um
“poder absoluto e perpétuo” (BODIN apud DALLARI, 2002, p. 77). Para este, a soberania é
um poder ilimitado, não havendo lei capaz de limitá-la, à exceção das leis divinas. Entende
25
ainda o estudioso que não há soberania se não houver capacidade de perpetuação, ou seja,
deve o poder soberano ser transmitido de um governante para o outro.
No que tange ao trato com os outros Estados, Bodin estabelece que o soberano
não pode dispor do poder, de maneira que detenha menos do que dispôs, “ele não concede
tanto que não retenha sempre mais” (BODIN apud DALLARI, 2002, p. 78). Assim, ainda que
indiretamente, afirma o autor a prevalência do direito interno em face do Direito
Internacional.
Já no século XVIII, Jean-Jacques Rousseau, ao escrever O contrato social,
pretende transferir a titularidade da soberania para o povo, tendo em vista as arbitrariedades
cometidas pelos monarcas, os quais se consideravam detentores absolutos do poder: “O
Contrato Social gera o corpo político, chamado Estado quando passivo, soberano quando
ativo e Poder quando comparado com os semelhantes.” (DALLARI, 2002, p. 78). Assim,
conclui Rousseau que a soberania é inalienável, enquanto exercício da vontade geral, e
indivisível, já que depende da participação de todos (DALLARI, 2002, p. 78).
O conceito de Rousseau influenciou os ideais da Revolução Francesa, na qual se
reivindicava a soberania popular. No começo do século XIX, a soberania aparece como
expressão do poder político e já na metade do referido século, tem-se o Estado como titular
dela, donde surge a Teoria da Personalidade Jurídica do Estado.
No século XX esta teoria se aperfeiçoa, sendo elaborada a Teoria Jurídica da
Soberania, um estudo aprofundado do tema, no qual se buscou ressaltar os aspectos mais
relevantes sobre o assunto.
No que tange ao conceito de soberania, houve uma gradação de pensamentos entre
os estudiosos, sendo para alguns a tradução do poder do Estado, para outros a qualidade do
poder do Estado, para Heller e Reale uma qualidade essencial do Estado e para Jellinek a nota
essencial do poder do Estado (DALLARI, 2002, p. 79). Observa-se aqui a interligação de
todos os conceitos à ideia de poder.
Já para Kelsen “o poder do Estado ao qual o povo está sujeito nada mais é que a
validade e a eficácia da ordem jurídica, de cuja unidade resultam a unidade do território e a do
povo” (KELSEN, 2000, p. 364). E prossegue:
O “poder” do Estado deve ser a validade e a eficácia da ordem jurídica
nacional, caso a soberania deva ser considerada uma qualidade desse poder.
Porque a soberania só pode ser a qualidade de uma ordem normativa na
condição de autoridade que é a fonte de obrigações e direitos. (KELSEN,
2000, p. 364/365)
26
Outro aspecto a se salientar é a evolução do sentido político para o sentido
jurídico do termo. Enquanto se adotava o sentido político de soberania, esta era conceituada
como “poder incontrastável de querer coercitivamente e de fixar as competências”. Em
contrapartida, o sentido jurídico do termo significa “poder de decidir em última instância
sobre a atributividade das normas” (DALLARI, 2002, p. 80).
Conceito formulado com maestria é o de Miguel Reale, para o qual soberania é “o
poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade
de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência” (REALE apud DALLARI, 2002,
p. 80).
Conceituada, cabe ressaltar as características da soberania, a qual, segundo a
doutrina dominante, é una, indivisível, inalienável e imprescritível. Havendo ainda quem
acrescente como característica tratar-se a soberania de um poder originário, exclusivo,
incondicionado e coativo (DALLARI, 2002, p. 81).
Duguit, sintetizando o até então formulado sobre o tema, diz ser a soberania um
poder de vontade comandante e independente, não admitindo que qualquer convenção
internacional seja obrigatória para o Estado (DUGUIT apud DALLARI, 2002, p. 81/82), fato
este que inviabilizaria a existência do Direito Internacional. Assim, a doutrina aponta uma
solução, traduzida na Teoria da Autolimitação, embasada esta na abdicação de parte de sua
soberania por vontade própria, a fim de possibilitar a convivência dos Estados no âmbito
internacional.
No decorrer da História, a soberania encontrou justificações diversas, sendo as
primeiras teorias, surgidas no fim da Idade Média, as chamadas Teorias Teocráticas, as quais
defendiam que todo o poder emanava de Deus, sendo seu titular na Terra o monarca.
Já as Teorias Democráticas defendem que o poder emana do povo, sendo
subdivididas em três fases, nas quais a titularidade muda de mãos. Na primeira delas, o titular
do poder é o povo, enquanto massa amorfa e situada fora do Estado. Na segunda fase, a
titularidade do poder é atribuída à nação, conceituada como o povo concebido numa ordem
integrante. Esta concepção foi sustentada durante a Revolução Francesa. Na terceira fase, o
titular do poder soberano é o Estado, sendo esta concepção a predominante no século XX.
Segundo essa concepção, o titular da soberania apenas poderia ser uma pessoa jurídica, sendo,
por isso, atribuída ao Estado. Assim, já que o povo faz parte do Estado e este atua para
satisfazer as necessidades daquele, seria o Estado o legítimo titular do poder. Esta é a
chamada concepção legitimista (DALLARI, 2002, p. 82/82).
27
Por fim, quanto ao objeto e à significação da soberania, cabe a observação feita
por Dallari:
Afirmado o poder soberano, isto significa que, dentro dos limites territoriais
do Estado, tal poder é superior a todos os demais, tanto dos indivíduos
quanto dos grupos sociais existentes no âmbito do Estado. E com relação aos
demais Estados a afirmação da soberania tem a significação de
independência, admitindo que haja outros poderes iguais, nenhum, porém,
que lhe seja superior. (DALLARI, 2002, p. 83)
Apresentadas as diretrizes básicas que estruturaram nossa linha de raciocínio,
passemos à análise mais detida do papel da soberania nas relações estatais.
3.2 A soberania como requisito intrínseco da conceituação de Estado
Conforme dito no capítulo anterior, a doutrina acorda em entender como
requisitos mínimos caracterizadores do Estado a existência de um povo, agrupado em
determinado território sob a égide de um poder soberano.
Segundo Habermas o qual aborda o tema em sua obra A inclusão do outro:
estudos de teoria política:
“Estado” é um conceito definido juridicamente: do ponto de vista objetivo,
refere-se a um poder estatal soberano, tanto interna quanto externamente;
quanto ao espaço, refere-se a uma área claramente delimitada, o território do
Estado; e socialmente refere-se ao conjunto de seus integrantes, o povo do
Estado. (HABERMAS, 2004, p. 129/130)
A soberania é, portanto, fundamento e princípio estrutural do Estado, estando
insculpida como fundamento de nossa República no art. 1º, I da Carta Magna de 1988.
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
Um sem-número de pessoas que vivam num mesmo território, mas que não
possuam o poder de se autodeterminarem, não pode ser considerado, portanto, Estado e isto
28
traz certas implicações no âmbito internacional. Esse aglomerado de pessoas não poderá ser
reconhecido como sujeito de Direito Internacional, logo, não se relacionará com os outros
Estados, vivendo à margem da sociedade internacional, fato este que tornará inviável o
perpetuamento independente deste agrupamento de pessoas.
O conceito de soberania comporta três significados distintos, mas complementares
e não excludentes entre si, quais sejam os aspectos externo, interno e territorial, muito bem
lembrados por Rodrigo Fernandes More, no artigo O moderno conceito de soberania no
âmbito do Direito Internacional.
No que tange ao aspecto externo, soberania está correlacionada ao conceito de
independência na relação com os demais Estados. É a capacidade que este possui de se
autodeterminar no trato com os outros, de decidir quais obrigações assumirá sem que seja
submetido a nenhuma outra força que direcione sua decisão.
O aspecto interno da soberania consiste na capacidade de o Estado estabelecer
suas próprias normas que regerão as relações travadas em seu interior, através de institutos e
da legislação. Este aspecto pode ser traduzido nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Por fim, o aspecto territorial determina que, dentro do território soberano, apenas
aquele próprio Estado tem ingerência, não podendo ali interferir nenhum outro, sendo ele
soberano sobre coisas e pessoas.
Muito embora a soberania seja tida como requisito caracterizador do Estado e
possua as três facetas apontadas, seu conceito vem sendo mitigado em função da necessidade
de integração entre Estados soberanos e independentes, sendo correto afirmar que não se pode
conceituá-la mais como queria Jean Bodin, ou seja, a soberania não é um poder absoluto e
ilimitado.
Noutras palavras, o aspecto externo da soberania, ou seja, a relação com os
demais Estados, constitui verdadeiro obstáculo aos aspectos interno e territorial, à luz do que
preceitua More:
No âmbito internacional, a bem da verdade, nem a Carta das Nações Unidas
nem a lei internacional reconhecem a soberania absoluta de um Estado, o
que leva a afirmar que não existe um Estado em isolamento, no gozo
completo e absoluto de seu "poder soberano". Assim como os indivíduos, os
Estados não estão completamente livres para agir como bem entendam. Os
aspectos interno e territorial da soberania encontram óbice no aspecto
externo, que, por sua vez, freiam nas regras internacionais de limitação da
jurisdição e competência internacional do Estado. (MORE, s.d)
29
Todavia, não perde esta sua imprescindibilidade. Neste sentido são as palavras de
Jair Rodrigues Nóbrega, no artigo Noção de soberania à luz do Direito Internacional do
desenvolvimento:
Do ponto de vista do direito internacional, apesar da relativização da
soberania, não se pode dizer com isso que ela deixou de ser elemento
essencial ao conceito de Estado. Como bem asseverou Gilda Russomano “...
a soberania – no seu sentido original de autoridade suprema – não existe,
nem pode existir, na ordem externa, porque, nela, os Estados são submetidos
ao Direito Internacional, por um processo semelhante ao que submete, na
ordem interna, os indivíduos às normas do direito nacional”. (NÓBREGA,
2002)
Disso, conclui-se que a soberania ainda pode ser considerada requisito necessário
para que se forme um Estado, todavia, não há que considerá-la como poder absoluto e
ilimitado, estando atualmente intrinsecamente atrelada aos mandamentos de Direito
Internacional.
3.3 A soberania como representação da liberdade estatal
A soberania é considerada também, principalmente na doutrina de Jürgen
Habermas, na obra já citada (2004), como meio representativo da liberdade estatal, no sentido
em que é através dela que os Estados soberanos se relacionam na sociedade internacional,
celebrando tratados, acordos e submetendo-se às normas de Direito Internacional.
Para melhor compreensão do tema, cabe aqui a digressão realizada por Habermas
(2004, p. 134), a qual remonta ao nascimento dos Estados nacionais, nascimento este que
gerou verdadeira mudança de paradigmas no que se refere ao conceito de liberdade.
Segundo o doutrinador, até a Idade Moderna a relação havida entre população e
Estado era tão somente uma relação de submissão, o sujeito integrava o Estado quando se
submetia à sua autoridade.
O surgimento do conhecido Estado Democrático de Direito foi o responsável por
esta mudança de paradigma, fazendo nascer a noção de cidadania, tornando a população não
somente sujeita de obrigações, mas também sujeita de direitos.
A mudança da condição de súditos para a condição de cidadãos é primordial para
que surja o sentimento de nação, ou seja, para que nasça entre pessoas até então estranhas
30
entre si uma relação de proximidade, uma “coesão solidária”, nas palavras de Habermas
(2004, p. 134).
Por certo, o Estado moderno já vinha regulando desde o início seus limites
sociais sobre os direitos de nacionalidade, isto é, os direitos de integrar o
Estado. Mas integrar o Estado, no início, não significava mais do que a
submissão ao poder estatal. É só com a transição ao Estado democrático de
direito que deixa prevalecer esse caráter de concessão que se faz ao
indivíduo, de que possa integrar uma organização, para então prevalecer a
condição de membro integrante do Estado conquistada agora (ao menos pela
anuência implícita) por cidadãos participantes do exercício da autoridade
política. (HABERMAS, 2004, p. 134/135)
Mas, no que esta mudança de paradigmas se relaciona com a noção de soberania
como liberdade estatal? Foi também graças a tal mudança que a soberania mudou de
titularidade, desencadeando todo o processo a que estamos nos referindo.
Até o Estado Moderno, a soberania era vista como pertencente ao monarca, ao
príncipe, sendo ele o seu titular e propriamente ‘dono’ dela. Com o nascimento do Estado
Democrático de Direito e, consequentemente, do sentimento de nação e reconhecimento da
condição de cidadão, a soberania muda de mãos, surgindo aqui a conhecida e tão bem quista
soberania popular. Com esta, nasce toda uma gama de direitos do homem, baseados estes,
principalmente, na ideia de liberdade, nos moldes da Revolução Francesa.
Com a mudança da soberania baseada no príncipe para a de cunho popular,
esses direitos dos súditos transformam-se em direitos do homem e do
cidadão, ou seja, em direitos liberais e políticos de cidadania. Do ponto de
vista de uma tipologia ideal, tais direitos garantem não só a autonomia
privada, mas também a autonomia política, que em princípio é atribuída com
igualdade a cada um. O Estado constitucional democrático, de acordo com a
ideia que o sustenta, é uma ordem desejada pelo próprio povo e legitimada
pelo livre estabelecimento da vontade desse mesmo povo. (HABERMAS,
2004, p. 135)
Percebe-se, assim, que a liberdade é a tônica dos recém-formados Estados
nacionais. Neste sentido, liberdade, no recém-surgido Estado Democrático de Direito, assume
três distintos significados, nascendo ao lado dos sentidos individualistas do termo um sentido
coletivo. Em seus sentidos individualistas, liberdade é “liberdade privada do cidadão na
sociedade e a autonomia política do cidadão no Estado.” (HABERMAS, 2004, p. 136).
Já no sentido coletivo, a liberdade não se refere aos cidadãos, mas sim ao próprio
Estado, assumindo o significado de autodeterminação.
31
Com o surgimento do Estado nacional, também se modifica, como vimos, o
sentido da soberania estatal. Isso não diz respeito tão-somente à reversão da
soberania do Estado principesco em Estado popular; também a percepção da
soberania externa sofre modificações. A ideia de nação enreda-se à vontade
maquiavélica de auto-afirmação, pela qual o Estado soberano se havia
deixado conduzir desde o início, na arena dos ‘poderes’. A auto-afirmação
existencial da nação nasce da auto-afirmação estratégica do Estado moderno
contra seus inimigos externos. Com isso entra em jogo um terceiro conceito
de ‘liberdade.’. (HABERMAS, 2004, p. 136)
Assim, percebe-se que o surgimento do Estado nacional fez surgir consigo o
significado de soberania estatal como representação da liberdade do Estado, significando
aquela o poder de autodeterminação deste frente aos demais. Disso, deflui-se que, enquanto
Estado-nação soberano, não há para este a obrigatoriedade de submeter-se às regras de Direito
Internacional, sendo o Estado livre para orientar sua conduta, o que condiz perfeitamente com
o aspecto externo da soberania aduzido no tópico supra e mencionado por Habermas.
Contudo, vale ressaltar novamente, a liberdade estatal, ou aspecto externo da
soberania, não significa necessariamente uma afronta aos demais Estados, de maneira que
estes entrem em confronto constantemente a fim de reafirmar sua soberania, mas pode sim
significar o firmamento de acordos, tratados e uniões, através das quais estes Estados mitigam
sua soberania em prol de um interesse maior.
3.4 A importância da soberania estatal nas relações internacionais
A moderna doutrina internacionalista entende que podem ser sujeitos de Direito
Internacional Estados e Sociedades Internacionais, mas o entendimento predominante nem
sempre foi esse. Classicamente, aceitava-se como atores internacionais tão-somente os
Estados, ficando de fora as sociedades internacionais, tão comuns na atualidade.
Todavia, muito embora o posicionamento tenha sido alterado, o Estado continua
sendo considerado o sujeito de maior importância para o Direito Internacional “devido ao fato
de que ele é o único que realmente dispõe de um poder próprio”. (MELLO, 1976, p. 57). Este
poder referido por Celso Mello nada mais é do que a multicitada soberania estatal.
A importância da soberania está no fato de permitir ao Estado o exercício de sua
vontade, o que seria inviável acaso não possuísse este a livre capacidade de autodeterminação.
Numa simplória comparação, a soberania é o alcance da “maioridade do Estado”, o qual
32
nenhuma decisão poderia tomar se dependesse de autorização, tal como os filhos menores
dependem da de seus pais.
O exercício livre da vontade é requisito indispensável para que o Estado possa
atuar no âmbito internacional, já que a celebração de tratados, convenções e acordos depende
inevitavelmente do consentimento das partes.
Na doutrina de Celso Mello:
Este poder nacional é que ainda se manifesta, acintosamente, no campo
internacional, em que cada estado enfraquece ou fortalece uma determinada
organização conforme o seu interesse e o seu poderio.
O estado grande ator da sociedade internacional é o estado soberano, isto é,
aquele que se encontra direta e imediatamente subordinado à ordem jurídica
internacional. (MELLO, 1976, p. 58)
A expressão da vontade por parte dos Estados foi sempre uma preocupação dos
teóricos internacionalistas, fazendo surgir doutrinas que visam explicar a submissão destes
aos mandamentos de Direito Internacional.
A primeira delas, e a que mais importância deu à vontade, é a chamada Doutrina
Voluntarista. Segundo esta, o Estado apenas se submete aos mandamentos de Direito
Internacional por vontade própria, a qual pode exteriorizar-se de maneira expressa ou tácita.
Nas palavras de Mazzuoli:
[...] de acordo com a concepção voluntarista, o Direito Internacional Público
é obrigatório porque os Estados, expressa ou tacitamente, assim o desejam e
querem. O seu fundamento encontra suporte na vontade coletiva dos Estados
ou no consentimento mútuo destes, sem qualquer predomínio da vontade
individual de qualquer Estado sobre os outros. (MAZZUOLI, 2007, p. 75)
O trecho supra deixa claro que o aceite das normas de Direito Internacional
decorre, inexoravelmente, do exercício da soberania estatal, traduzida no consentimento em se
submeter a elas.
Entretanto, adverte Mazzuoli, que esta doutrina tem sido muito criticada pela
doutrina internacionalista, haja vista deixar sobremaneira aberta a possibilidade dos Estados
se imiscuírem da responsabilidade assumida internacionalmente com fulcro na livre vontade,
bem como não ser capaz de explicar como novos Estados podem estar submetidos às normas
de Direito Internacional sem terem participado da formação da vontade coletiva.
A segunda doutrina, que busca rebater as críticas da primeira, é a Doutrina
Objetivista, a qual se respalda no Direito Natural, apontando para a existência de princípios e
33
fundamentos superiores ao direito interno, surgindo daí a obrigatoriedade do Direito
Internacional.
[...] a corrente objetivista apregoa que a obrigatoriedade do Direito
Internacional advém da existência de princípios e normas superiores aos do
ordenamento jurídico estatal, uma vez que a sobrevivência da sociedade
internacional depende de valores superiores que devem ter prevalência sobre
as vontades e os interesses domésticos dos Estados. (MAZZUOLI, 2007, p.
76)
Esta corrente, conforme ressalva Mazzuoli, também merece críticas, por subjugar
a vontade soberana dos Estados.
Das críticas elaboradas em face de ambas as correntes nasceu uma terceira,
mitigada, conhecida como objetivista temperada ou regra do Pacta Sunt Servanda. Esta
corrente aponta para a obrigatoriedade do Direito Internacional, mas não exclui
completamente a vontade dos Estados soberanos.
Isso significa que os tratados são ratificados por livre e espontânea vontade das
partes, contudo, devem ser cumpridos, sem que o direito interno ou mesmo a mudança de
opinião sirva como supedâneo ao descumprimento. Quando o Estado participante deixa de ter
interesse em fazer parte daquele acordo, deve usar do instituto da denúncia e não,
simplesmente, descumprir o acordado com fulcro em sua livre vontade.
Novamente, nas precisas palavras de Valério Mazzuoli:
Em verdade, trata-se de uma teoria objetivista temperada, por também levar
em consideração a manifestação de vontade dos Estados. Afinal de contas,
um Estado ratifica um tratado internacional pela sua própria vontade, mas
tem que cumprir o tratado ratificado de boa-fé, sem se desviar desse
propósito, a menos que o denuncie (e então, novamente, aparece a vontade
do Estado, hábil a retirá-lo do compromisso que anteriormente assumira.
(MAZZUOLI, 2007, p. 77)
Do exposto, pode-se notar que a soberania é de suma importância para que os
Estados participem da sociedade internacional, haja vista que sem ela não há que se falar em
Estado, o qual deve ser livre para celebrar os tratados e acordos que melhor aprouverem a
política interna e internacional. Percebe-se, ainda, que o chamado aspecto externo da
soberania traduz-se na liberdade do Estado para Habermas e é o mesmo paradigma utilizado
na elaboração da teoria objetivista temperada ou doutrina do Pacta Sunt Servanda.
34
4 AS UNIÕES DE ESTADOS
Feito o apanhado sobre o surgimento e desenvolvimento do Estado no transcorrer
da História e analisados os seus requisitos caracterizadores, interessante se faz um breve
percurso sobre as uniões que tais Estados podem celebrar.
Essa análise é de relevante interesse, já que permite a observância das diversas
formas pelas quais os Estados podem se ligar uns aos outros, podendo surgir daí uma relação
de subordinação ou uma relação de igualdade.
Em nosso trabalho, utilizaremos as classificações propostas por Paulo Bonavides,
em sua obra Ciência política (2002), e por Celso D. de Albuquerque Mello, na obra Curso de
Direito Internacional Público (2004).
A análise levada a termo pelo professor Bonavides parte, principalmente, da
divisão entre uniões paritárias e uniões desiguais, já o doutrinador Mello toma como ponto de
partida a estrutura dos Estados, a qual pode ser simples ou composta, conforme será exposto
nos próximos parágrafos.
4.1 Uniões paritárias e uniões desiguais
Às uniões que apresentam como traço característico a existência de subordinação
e hierarquia, damos o nome de uniões desiguais. Nestas, um Estado exerce dominação sobre o
outro, o qual se vê numa relação de dependência deste. Exemplo típico desta forma de Estado
é a vassalagem, apontando Bonavides como formas de Estados desiguais “o Estado vassalo, o
Estado protegido ou protetorado e o Estado sob mandato ou administração fiduciária”.
(BONAVIDES, 2002, p. 159).
Esta forma de união de Estados não necessariamente coloca o subordinado numa
situação prejudicial, decorrendo muitas vezes de sua própria vontade, por não possuir este
mecanismos de total emancipação, ou seja, não é este Estado capaz de exercer plenamente sua
soberania sem auxílio externo.
As uniões paritárias têm como traço marcante a igualdade entre os Estados que se
unem, não havendo dominação de um pelo outro. Contudo, há que se observar, essa igualdade
35
pode ser tão somente jurídica, sendo cediço pontuar que quase sempre um dos Estados é
dominante, ao menos economicamente, sobre o outro.
Bonavides esclarece ainda que as uniões paritárias podem ser subdividas em
uniões desprovidas de organização e uniões organizadas (2002, p. 159). Estas dispõem de
órgãos comuns com ingerência em ambos os participantes da união, bem como abrangem
comunidades administrativas permanentes.
Aquelas – uniões desprovidas de organização – são consideradas comunidades
administrativas “de fato”, regulamentando tão somente assuntos técnicos, sem que haja uma
formalização da união, havendo autores que desqualificam tal classificação do conceito de
união de Estados (BONAVIDES, 2002, p. 159).
O estudioso Nawiasky, citado por Bonavides (NAWIASKY apud BONAVIDES,
2002, p. 159), inclui no conceito de uniões paritárias organizadas o Estado Federal,
denominando-o de confederação qualificada, haja vista que, ao lado dos Estados-membros
unidos inicialmente, haveria um Estado central, agregando-se à união em momento posterior.
4.2 Uniões de Direito Constitucional e uniões de Direito Internacional
Tal classificação refere-se à forma jurídica observada para a adoção da união.
As uniões de Direito Constitucional são aquelas dotadas de um ordenamento
jurídico estatal interno, ou seja, todos os participantes adotam as mesmas leis. Bonavides traz
como exemplo a federação (BONAVIDES, 2002, p. 160).
Segundo Mello (2004, p. 375), o Estado Federal caracteriza-se justamente pela
perda da soberania dos estados-membros em favor da união, de maneira que se apresentam no
plano internacional como Estado simples, ou seja, como um único Estado representado pela
União Federal, já que os estados-membros, embora dotados de autonomia, não são soberanos,
sendo restrita sua atuação no âmbito internacional. É o caso do Brasil, dos Estados Unidos da
América, da Suíça, da Alemanha Ocidental, dentre outros (MELLO, 2004, p. 375).
Já as uniões de Direito Internacional podem adotar a forma comunitária ou a
forma societária, caracterizando-se esta última pela existência de organizações interestatais,
ou seja, órgãos com ingerência em ambos os Estados, sendo exemplo típico deste tipo de
união a Confederação de Estados e exemplos de tais organizações interestatais a União Postal
Internacional, o Fundo Monetário Internacional, a Organização das Nações Unidas e suas
36
agências especializadas, como a UNESCO, e as uniões aduaneiras (BONAVIDES, 2002, p.
160).
A forma comunitária de união de Direito Internacional caracteriza-se pela
existência de órgãos comuns administrativos e judiciários, bem como pela existência de um
mesmo chefe de Estado para os integrantes da união, a exemplo do que ocorre nas uniões
reais (BONAVIDES, 2002, p. 160).
4.3 Uniões simples e uniões institucionais
As uniões simples não geram, na verdade, uma união de Estados, mas surgem da
ação coordenada de vários Estados visando uma finalidade convergente (BONAVIDES, 2002,
p. 160).
Em contrapartida, as uniões institucionais geram verdadeiras uniões de Estados,
sendo subdivididas em gerais, particulares, composta ou complexa.
As uniões institucionais gerais são abertas para toda a comunidade internacional,
nela podendo entrar qualquer Estado interessado.
Já as uniões particulares não abrangem todo o globo, podendo assumir forma
clássica ou contemporânea. As formas clássicas são as confederações, federações e uniões
monárquicas, enquanto as formas modernas são as uniões regionais e supranacionais.
Por fim, as uniões institucionais traduzidas nos Estados complexos ou compostos
podem ser exemplificadas pelos Estados vassalo e Estado Federal.
Como dito, Mello (2004, p. 375) parte desta dicotomia para analisar os Estados
quanto à sua estrutura, dividindo-os em Estados simples e Estados compostos.
Os Estados simples são reconhecidos pela existência de um poder único e
centralizado, enquanto os Estados compostos apresentam uma estrutura complexa
basicamente descentralizada.
Conforme será abordado infra, os Estados complexos, na maioria das vezes,
fazem surgir uma união de Estados soberanos, ou seja, os integrantes do dito Estado
complexo continuam independentes e atores do cenário internacional, tornando incerta e
passível de questionamento sua classificação como Estado.
Ressalte-se, ainda, que os Estados compostos, na doutrina de Celso Mello, podem
ser oriundos de coordenação ou subordinação. São espécies de Estados compostos por
37
coordenação a União Federal, Confederação de Estados, as Uniões de Estado pessoal e real e
a Commonwealth. Por outro lado, são exemplos de Estados compostos por subordinação o
Estado vassalo, protetorado internacional, Estado cliente, Estado satélite e Estado exíguo
(MELLO, 2004, p. 375).
Passemos agora à análise de algumas dessas mencionadas espécies de união de
Estados.
4.4 União pessoal e União real
Tais uniões apresentam como traço característico o fato de serem governadas pelo
mesmo monarca. Encontram-se, por isso, em desuso, já que quase não há mais espaço para a
existência da monarquia na atualidade.
A União pessoal acontece quando, coincidentemente, por razões de sucessão
dinástica, o monarca governante de um Estado assume o trono de outro. Não há aqui a
vontade de ambos os Estados em celebrar a união, mas esta decorre de mero acaso.
Nestes casos, os Estados mantêm-se independentes, cabendo ao príncipe agir ora
em nome de um e ora em nome do outro.
Não se forma nenhum fundamento jurídico unitário entre os Estados
participantes, que mantêm intacta sua soberania, sendo a União destituída de
personalidade jurídica internacional, de sorte que o monarca atua como chefe
de governos separados e distintos. (BONAVIDES, 2002, p. 161)
Possuem, ainda, caráter transitório, podendo se desfazer pela extinção da dinastia
ou aparecimento de impedimento jurídico, não existindo requisitos específicos para esta
dissolução, sendo o único traço de união entre tais Estados a pessoa do monarca, daí a
denominação União pessoal.
Bonavides nos traz como exemplos de uniões pessoais presentes na História, os
casos de:
Inglaterra e Hanover (1714-1837), Prússia e Neurenburg (1707-1837), Países
Baixos e Luxemburgo (1815-1890), Dinamarca e Islândia (1918-1941),
Saxônia e Polônia (1697-1763), a Alemanha e Espanha, sob Carlos V (1519-
1556), etc. (BONAVIDES, 2002, p. 161)
38
Por outro giro, tem-se a União real, na qual também há coincidência do mesmo
monarca em Estados distintos, mas decorrente da vontade destes, os quais, por deliberação
própria, acordam em serem regidos pelo mesmo soberano.
Alguns aspectos deste tipo de união de Estados merecem ser ressaltados, dentre
eles os seguintes.
Muito embora também ocorra em Estados monárquicos, a União real assemelha-
se mais à Confederação do que à União pessoal. Da união, decorre a impossibilidade de
guerra entre estes Estados, já que não seria lógico o monarca declarar guerra contra si mesmo,
havendo ainda o dever de defesa mútua entre estes em face dos demais Estados.
A União real também não cria um novo Estado enquanto sujeito de direito, mas
sim uma união de Estados, mantendo-se, assim, ilesa a soberania dos participantes. Bonavides
estabelece tratar-se essa relação entre os Estados de uma relação de Direito Internacional
(BONAVIDES, 2002, p. 165). Neste ponto, discorda Mello, para o qual, formalizada a União
real, a personalidade jurídica internacional passará a ser da União (MELLO, 2004, p. 378).
Exemplos históricos apontados em comum por Paulo Bonavides e Celso Mello
são os casos do Império Austro-Húngaro, formado pela união real de Áustria e Hungria entre
1867 e 1918, e da união de Suécia e Noruega que perdurou de 1815 a 1905 (BONAVIDES,
2002, p. 165/166 e MELLO, 2004, p. 379). Celso Mello aponta, ainda, como exemplo de
união real a celebrada entre Brasil e Portugal em 1815.
Sobre o Império Austro-Húngaro, interessante a análise realizada pelo professor
Bonavides:
No caso vertente, observa-se ademais que a mesma personalidade era a um
tempo Imperador da Áustria e Rei da Hungria: como Imperador da Áustria,
chamava-se Carlos I e como Rei da Hungria, Carlos IV (Kuechenhoff), ali,
portanto, coroa imperial, aqui, coroa real, ficando assim a União estritamente
reduzida à pessoa do monarca. A comunhão por consequência se fez apenas
na pessoa do soberano, permanecendo todavia distintos e separados os
órgãos ou títulos da direção suprema. (BONAVIDES, 2002, p. 166)
4.5 Confederação
A Confederação é a típica união de Estados soberanos, os quais conservam esta
qualidade, ainda que confederados.
39
A união tem como finalidade a defesa recíproca, adotando os Estados
confederados política comum de defesa externa e segurança interna, sendo regidos por órgãos
interestatais.
A existência destes órgãos, ou instituições confederais, comuns a todos os
participantes diferencia a Confederação das simples alianças, sendo o órgão central chamado
de Dieta. A Dieta consiste na reunião de agentes diplomáticos dos Estados confederados para
a tomada de decisões que serão ratificadas pelos Estados-membros.
As confederações nascem da coordenação de vontades políticas e são
formalizadas através de tratados e não de constituições, sendo, por isso, os laços dos Estados
confederados de Direito Internacional.
Bonavides aponta como exemplos históricos: “a Confederação dos Países Baixos
(1579), a Confederação dos Estados Unidos (1778-1787), a Confederação Suíça (1815-1848),
a Confederação do Reno (1806-1813) e a Confederação Alemã (1815-1866).” (BONAVIDES,
2002, p. 166).
Já Celso Mello pondera que:
As confederações praticamente desapareceram nos dias de hoje, uma vez que
elas tendem a se transformar em Estado federal, enquanto este tende para o
Estado unitário. Exemplo recente é a federação dos sultanatos árabes do
Golfo Pérsico, criada em 1968, e reestruturada em 1971. Ela tem um
Conselho Supremo (os sete soberanos), um Conselho de Ministros e um
Conselho Nacional da União (40 membros), com função consultiva. A
personalidade é da própria confederação. (MELLO, 2004, p. 377)
Por fim, o doutrinador internacionalista cita o caso mais recente de confederação,
a Senegâmbia, que mal nasceu e já foi dissolvida:
O mais recente caso de confederação era Senegâmbia (Senegal e Gâmbia),
criado por tratado de 1981, que começou a vigorar em 1982. O nome do
novo Estado era Confederação Africana Ocidental de Senegâmbia, e o seu
governante, o Presidente de Senegal. Estabeleceram ainda que nas
organizações internacionais em que ambos os Estados eram membros a
situação permanecerá igual, mas as delegações dos dois países teriam uma
posição comum. Senegâmbia foi dissolvida em 1990. (MELLO, 2004, p.
377)
4.6 Commonwealth
40
A Commonwealth, ou comunhão de Estados, é união sui generis de Estados e
acontece na Inglaterra, surgindo da união daqueles que se submetem à Coroa Britânica e
respaldada na cooperação recíproca e na igualdade racial.
Nas palavras de Paulo Bonavides, a Commonwealth:
chega aos nossos dias fundada numa composição heterogênea de Estados,
onde a forma monárquica convive com a forma republicana, mediante ‘um
vínculo de recíproca cooperação e colaboração’ de todos os Estados-
membros. (BONAVIDES, 2002, p. 169)
Esta forma de união de Estados é desprovida de órgãos próprios com atuação
definida. Também não há ordenamento federativo, traduzido numa Constituição comum. Tal
fato faz com que a Commonwealth venha se enfraquecendo a cada dia, tendo em vista a
ausência de instituições concretas capazes de colocar seus princípios em prática.
4.7 Estado vassalo
Finda a análise das uniões de Estados paritárias, cabe uma breve explanação sobre
as uniões desiguais, as quais, muito embora sejam pouco utilizadas, também constituem
uniões de Estados, merecendo, por isso, nossa atenção.
O Estado vassalo remonta à Idade Média e se coloca numa “situação intermediária
entre a completa subordinação e a independência” (MELLO, 2004, p. 381). Isso porque, o
Estado vassalo não estava de tudo excluído do contexto internacional, mas dependia do
auxílio do suserano que o prestava através de intervenções na economia e na segurança do
Estado. Em contrapartida, cabia ao vassalo cumprir certas obrigações perante o suserano, tais
como pagamento de tributos, auxílio militar, observação dos tratados celebrados.
Por fim, cabe observar que, na prática, o Estado vassalo raramente participava do
contexto internacional, sendo tal função desempenhada pelo suserano.
Tem-se como exemplos de Estados vassalos que ocorreram durante a História:
os 550 Estados da Índia, até a independência de 1947, quando quebraram os
derradeiros vínculos com o Império Britânico. No século XIX, os Estados
cristãos dos Balcãs – Moldávia e Valacchia (Romênia), a Sérvia e a Bulgária
41
foram vassalos do Império Otomano, bem como o Egito muçulmano.
(BONAVIDES, 2002, p. 174)
4.8 Protetorado
Celso Mello faz a ressalva de que a denominação correta deste tipo de união de
Estados é Estado protegido, tendo-se, por óbvio, um Estado protetor (MELLO, 2004 p. 381).
Estes Estados celebram tratado no qual um se compromete a proteger o outro,
estabelecendo o documento, ainda, a divisão de competências entre eles, fixando a
contrapartida que o protegido deverá prestar ao protetor. Esta contrapartida não
necessariamente será financeira, ao contrário, mostra-se quase sempre política, traduzida na
possibilidade de maior ingerência do protetor no território protegido.
Teoricamente, o Estado protegido não deixa de ser personagem na comunidade
internacional, todavia, o tratado pode estabelecer limitações, dentre elas, situações nas quais o
protegido poderá atuar internacionalmente sem a autorização do protetor e outras, nas quais
necessitará de autorização. Logo, tem-se aqui a relativização da soberania do protegido.
À guisa de exemplificação, Mello traz os casos da Tunísia pela França (1881) e
das Ilhas Jônicas pela Inglaterra (1815-1863) (MELLO, 2004, p. 381), elucidando ainda que:
Atualmente, não existem Estados protegidos. Um dos últimos casos foi o
Sultanato de Brunei, Estado protegido da Grã-Bretanha, de 1888 a 1983, e
pouco antes dele foi o de Sikkim, incorporado à Índia em 1975. Um exemplo
ainda do protetorado é o Butão, em relação à Índia (David Munro – The
Oxford Dictionary of the World, 1995). Parece que recentemente ele deixou
de ter protetorado. (MELLO, 2004, p. 382)
4.9 Estado exíguo
Os Estados exíguos podem também ser chamados de microestados. Estes possuem
pequeno território e, consequentemente, pequena população, fato que os impede de exercer
plenamente sua soberania.
Assim, os Estados limítrofes acabam por interferirem em seus vizinhos, exercendo
sobre eles alguma competência.
42
Segundo Mello, os Estados exíguos:
possuem o direito de convenção, de legação e o de ser parte nos tribunais
internacionais. Todavia, não possuem o direito à guerra e não têm ingresso
nas organizações de aspecto predominantemente político, tais como a SDN e
a ONU, uma vez que não têm capacidade para cumprir as obrigações
impostas por estas organizações. (MELLO, 2004, p. 382)
Tal fato, contudo, não impede que estes Estados participem de organizações de
caráter técnico ou científico, a exemplo da UNESCO.
Enfim, o citado doutrinador chama a atenção para a proliferação de microestados
na atualidade, demonstrando que há países com número de habitantes inferior a cem mil,
sendo estes muito menores do que diversas cidades.
São exemplos de microestados os principados de Liechtenstein e Mônaco e a
República de San Marino (MELLO, 2004, p. 382).
4.10 Estado cliente e Estado satélite
Em ambas as uniões de Estados a situação fática é a mesma, todavia, ocorreram
em lugares diferentes, sendo o caso do Estado cliente relativo à relação entre os países da
América Central com os Estados Unidos e o caso do Estado satélite ocorrido na extinta União
Soviética.
No primeiro caso, os Estados da América Central entregavam a administração de
suas alfândegas e exércitos ao poderio norte-americano, mas conservavam, ao menos
juridicamente, sua soberania e personalidade internacional. No entanto, na prática, havia
grande influência do Estado patrono sobre o cliente, de maneira que estes não conseguiam
traçar livremente suas políticas econômicas.
Tal forma de união de Estados teve fim com o governo do Presidente americano
Franklin Roosevelt, o qual instituiu a política de boa vizinhança.
O chamado Estado satélite decorre da mesma subordinação havida na América,
porém se dava em face da União Soviética.
4.11 Estados associados
43
Esta forma de união decorre do processo de descolonização levado a termo,
principalmente, no século passado e corresponde ao que Bonavides considera Estado sob
mandato ou administração fiduciária (BONAVIDES, 2002, p. 174).
Fato é que, os países recém-independentes, com pequeno território e
subdesenvolvidos, não possuíam mecanismos para exercer sua soberania plena, de modo que
não se desvinculavam plenamente das antigas metrópoles, mantendo-se associados a elas que
se encarregavam de sua defesa e política externas.
Mello adverte que esta nova nomenclatura não passa de eufemismo para a mesma
situação de protetorado e cita como exemplos os: “Estados Associados das Índias do Oeste
em relação a Grã-Bretanha; as Ilhas Cook (1965) e Nioué (1974), com a Nova Zelândia; Porto
Rico com os EUA” (MELLO, 2004, p. 385).
44
5 AS CONSTITUIÇÕES SUPRANACIONAIS E O FUTURO DO
ESTADO
5.1 Conceito de constituições supranacionais
As constituições supranacionais, como o próprio nome já diz, são ordenamentos
jurídicos que se encontram acima das Constituições que regem os Estados-nações e nascem da
união das vontades de Estados soberanos. Neste sentido, pode-se dizer, num primeiro
momento, que são elas uma espécie de tratado de Direito Internacional, todavia, conforme se
verá, possuem traços diferenciadores destes que as conferem um caráter de especialidade em
face dos tradicionais tratados.
Uadi Lammêgo Bulos, em seu Curso de Direito Constitucional, ensina que:
O poder constituinte transnacional almeja fazer constituições que
ultrapassem as fronteiras domésticas de um Estado, em nome de uma
integração maior, com vistas a alcançar uma comunidade de nações. Para
tanto, sugere que os Estados se reorganizem internamente, de modo a se
adaptarem à supranacionalidade, ideia muito próxima de um direito
comunitário. (BULOS, 2011, p. 434)
Da lição de Bulos, podem-se extrair algumas primeiras conclusões. A primeira
delas é a de que as constituições supranacionais decorrem de um poder constituinte
supranacional ou transnacional, expressões sinônimas. Para Bulos, esse poder constituinte
caracteriza-se por ser um poder de fato, cuja “fonte de validade finca-se na cidadania
universal, na multiplicidade de ordenamentos jurídicos, no desejo dos povos de se integrarem
e interagirem, propondo um redimensionamento no conceito clássico de soberania” (BULOS,
2011, p. 434).
De tal desejo dos Estados, surge então a necessidade de reestruturação do direito
interno destes, de maneira a se adaptar a esta nova figura, a supranacionalidade.
Daí advém a principal diferença entre os tratados tradicionais de Direito
Internacional e as Constituições Supranacionais. Quando um Estado pretende ratificar
determinado tratado, mas este apresenta dispositivos que contradizem seu direito interno,
pode fazê-lo com ressalvas, ratificando e permitindo submeter-se a ele apenas naquilo que não
for contrário ao seu direito interno, acaso não prefira modificar este último.
45
Com as Constituições Supranacionais a lógica é inversa. Para que o Estado possa
ratificá-la e submeter-se a ela, deve adequar seu direito interno aos mandamentos
supranacionais.
Pode-se dizer, então, que as Constituições Supranacionais são “tratados
qualificados”, já que também decorrem da vontade do Estado soberano em se submeter e
devem seguir o mesmo trâmite legal que os tradicionais tratados, todavia, no primeiro caso,
observa-se a adequação do Direito Internacional de acordo com os ditames do direito interno,
pelo menos dentro do território deste determinado Estado. Já nos casos de supranacionalidade,
é o direito interno que vai se adequar ao Direito Internacional.
Neste sentido, esclarece Marina Pereira Manoel, no excelente artigo A primazia
do direito comunitário face à supremacia constitucional:
não há meios de instrumentalizar a Comunidade Européia para a consecução
de seus interesses sem que exista uma adaptação de suas diretrizes
normativas à ordem constitucional interna de cada um de seus Estados-
membros. Esse fato, indubitavelmente, implicará a renúncia de parcela de
sua soberania para o alcance do interesse comum, revelando aquilo que se
denominou de supranacionalidade. (MANOEL, 2007, p. 173)
O instituto da supranacionalidade nasceu junto com a intenção de se instituir um
Direito Comunitário no interior da União Europeia, sendo atualmente o único exemplo.
Cogita-se a possibilidade de se instituir o Direito Comunitário também no âmbito do
MERCOSUL e do NAFTA, respectivamente, na América do Sul e na América do Norte,
conforme nos lembra Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no artigo Especulações sobre o futuro
do Estado (1998, p. 105), todavia, tal fato parece estar longe de se tornar uma realidade.
Defendendo a necessidade de uma Constituição para a União Europeia, Alexandre
Coutinho Pagliarini, em seu artigo Constituição Supranacional: uma internacionalização do
Direito Constitucional?, aduz o seguinte:
É a futura Constituição Europeia um ícone representativo da nova verdade
histórica: a supranacional. Neste prisma, a Carta Magna europeia é uma
necessidade intransponível que os tempos impuseram às comunidades de
países que se juntaram naquele continente, na formação desta diferente
espécie constitucional chamada União Europeia. Ademais, sem favores e
sem “jeitinhos”: se é indiscutível a existência de um substrato constitucional
na Europa, então é possível uma Carta para o Velho Continente. E se é
verdade que a UE pode se dotar de Constituição, então é também verdadeiro
que nada impede o exercício de um poder constituinte supranacional.
(PAGLIARINI, 2009, p. 12)
46
O Direito Comunitário possui como principal característica justamente essa maior
integração entre os Estados, almejando estes um fim comum superior, fato que justifica a
submissão a certas normas, mesmo que contrárias ao seu direito interno, motivando a
adequação deste ao que preceitua a Constituição Supranacional.
Neste sentido, são precisas novamente as palavras de Marina Manoel:
Considerando-se todos os pontos esposados, é possível inferir que, para a
real consecução dos ideais comunitários, é imprescindível a formação e
reconhecimento do Direito Comunitário como fonte normativa superior ao
direito interno. Esse reconhecimento deve restar vivo e solidificado dentro
do corpo normativo e social de cada Estado-membro, de tal sorte que reste
garantida a estabilidade integracionista. (MANOEL, 2007, p. 177)
Sobre o assunto, aduz também Eduardo Biacchi Gomes, no artigo A
supranacionalidade e os blocos econômicos:
Um dos principais suportes do Direito Comunitário é o instituto da
supranacionalidade, que contribui decisivamente para a consolidação dos
objetivos da União Européia, possibilitando o desenvolvimento de políticas
comunitárias compatíveis com a legislação dos Estados-membros e
uniformidade na tomada de decisões, com base no primado e na
aplicabilidade direta das normas comunitárias. Além disso, a
supranacionalidade dá condições para que as normas produzidas pelos
órgãos comunitários possam ser aplicadas de forma homogênea e imediata
no ordenamento jurídico dos Estados-membros. (GOMES, p. 161)
Este autor, no mencionado artigo (GOMES, p. 162), nos traz ainda a lição de que
a supranacionalidade caracteriza-se pela delegação de competências privativas do Estado ao
ente supranacional, de maneira que este último possa legislar plenamente sobre os temas
delegados pelo tempo determinado na delegação, o que diferencia o instituto da transferência
de competências privativas, a qual se caracteriza por ser permanente.
Tem-se aqui mais um item diferenciador das Constituições Supranacionais e dos
tradicionais tratados de Direito Internacional. Nestes últimos, não há que se falar em atividade
legislativa supressiva da atividade interna estatal, pelo contrário, os mandamentos de Direito
Internacional necessitam percorrer um iter legal para que sejam cogentes no território
nacional. Situação inversa ocorre nos casos de supranacionalidade, os Estados que aderem ao
Direito Comunitário delegam competência ao ente supraestatal, o qual legislará e tornará suas
normas cogentes para seus Estados-membro.
47
Em contrapartida, os institutos se aproximam por ser garantido ao Estado-membro
denunciar o tratado traduzido em Constituição Supranacional, de maneira que retome para si a
competência delegada.
O supracitado autor preleciona que:
A supranacionalidade, instituto peculiar do Direito Comunitário, permite
eficaz aplicação e interpretação de suas normas. Seu conceito foi construído
mediante a interpretação desse direito pelos tribunais nacionais dos Estados-
membros da União Européia e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades
Européias; agregando-se a essa noção os princípios da aplicabilidade e do
efeito direto, da primazia do Direito Comunitário e da uniformidade na
interpretação e aplicação das normas comunitárias.
[...]
Noção intrínseca ao conceito de supranacionalidade é a de delegação de
poderes ou competências soberanas, pela qual os Estados-membros,
livremente e por um ato de soberania, delegam aos órgãos comunitários
poderes constitucionais para legislar sobre determinada matéria. (GOMES,
p. 162)
Do exposto, pode-se concluir que as Constituições Supranacionais não deixam de
ser tratados de Direito Internacional, no entanto, apresentam traços diferenciadores do
conceito tradicional destes, razão pela qual se cunhou aqui aquele instituto como “tratados
qualificados” pela primazia de seus mandamentos e pelo maior poder atribuído ao ente
supranacional, fato este que nos levará à análise do futuro do Estado nacional que
conhecemos, bem como da situação da soberania estatal nestes casos.
Corroborando este posicionamento, cabe a lição de Pagliarini no já citado artigo:
Um tratado internacional pode inserir num sistema nacional norma de
estatura constitucional, e para uma realidade supranacional, até mesmo uma
Constituição inteira. No caso de Estados vistos isoladamente, um pacto pode
inserir norma constitucional quando dispuser sobre Direitos Humanos. Na
Holanda, nem mesmo é necessário que o pacto seja de Direitos Humanos
para que este mude a Carta. Os tratados internacionais de direitos humanos
inauguraram um novo paradigma para a pós-modernidade: o da
supranacionalidade, o que tem afetado fortemente as ordens constitucionais
nacionais. (PAGLIARINI, 2009, p. 15)
5.2 O Estado nacional tem futuro?
48
Dada a existência desta nova figura, a supranacionalidade, os estudiosos da Teoria
do Estado começaram a questionar sobre o futuro deste, cogitando-se a possibilidade de um
futuro sem Estados ou a existência de um Estado global. Certo é que a grande integração
surgida no âmbito da União Europeia ocasionou a quebra de um antigo paradigma, o qual
vinha sendo defendido com todos os esforços desde a assunção da Idade Moderna, conforme
visto nos primeiros capítulos deste estudo, a soberania estatal enquanto “poder absoluto e
perpétuo”, nas palavras de Jean Bodin (BODIN apud DALLARI, 2002, p. 77).
Acordes estão os teóricos estatistas de que a clássica concepção de Estado-nação
não é hoje suficiente para acomodar as novas configurações surgidas a partir da união de
Estados soberanos e dos problemas da globalização.
Neste sentido é a lição de Jürgen Habermas, na supracitada obra A inclusão do
outro:
A seu tempo, o Estado nacional foi uma resposta convincente ao desafio
histórico de encontrar um equivalente funcional às formas de integração
social tidas na época como em processo de dissolução. Hoje estamos
novamente diante de um desafio análogo. A globalização do trânsito e da
comunicação, da produção econômica e de seu financiamento, da
transferência de tecnologia e poderio bélico, especialmente dos riscos
militares e ecológicos, tudo isso nos coloca em face de problemas que não se
podem mais resolver no âmbito dos Estados nacionais, nem pela via habitual
do acordo entre Estados soberanos. (HABERMAS, 2004, p. 128/129)
Na mesma linha de raciocínio são as palavras de Ferreira Filho, no já abordado
artigo Especulações sobre o futuro do Estado:
Este modelo [Estado-nação], surgido no final da Idade Média, está,
certamente, com seus dias contados. Dois fatos incontestáveis se combinam
para torná-lo inadequado aos tempos modernos. Realmente, afetam eles,
profunda e radicalmente, tanto a sua base socioeconômica, como a sua
viabilidade político-jurídica. (FERREIRA FILHO, 1998, p. 104)
Ora, se esta supremacia interna é conservada pelos Estados-nação – embora
muitos sejam ameaçados por grupos revolucionários, como as guerrilhas
marxisantes ou religiosas – no plano externo ela desapareceu, salvo quiçá
para os Estado Unidos. Assim, o imperativo de segurança obriga os Estados-
nação a agregarem-se em unidades maiores, mais fortes, inclusive para
assegurarem a própria sobrevivência. (FERREIRA FILHO, 1998, p. 106)
De tal situação, surgiu o movimento já abordado da supranacionalidade e a
preocupação com o fim do Estado nacional.
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Conforme brilhantemente aduzido por Habermas, o Estado nacional teve seus
tempos áureos, nos quais se mostrava como a solução adequada para acomodar as novas
sociedades nascidas a partir do fim do feudalismo e foi utilizado como tal durante bom espaço
de tempo. Contudo, a afluência de um mundo globalizado em que o Estado, sozinho, não é
capaz de atender a todas as demandas de sua população, necessitando travar relações cada vez
mais próximas com os demais Estados, fez surgir a necessidade de novos institutos, dentre
eles o Direito Comunitário, representativo da supranacionalidade, com a consequente
mitigação da soberania estatal nos moldes tradicionalmente defendidos por Bodin.
Sobre o fim do Estado-nação, Habermas adverte:
O discurso sobre a superação do Estado nacional é ambíguo. De acordo com
uma maneira por assim dizer pós-moderna de entender a questão, o fim do
Estado nacional leva-nos também à separação do projeto de autonomia para
o Estado de cidadãos que, segundo essa visão estourou seu crédito sem
esperanças de recuperação. Para a outra maneira de entender a questão, não
derrotista, ainda há chance para o projeto de uma sociedade apta a aprender e
capaz de agir sobre si mesma por meio da vontade e da consciência política,
mesmo para além de um mundo constituído por Estados nacionais.
(HABERMAS, 2004, p. 148)
Deflui-se, assim, no magistério de Habermas que o Estado nacional está sim
próximo de seu fim, todavia, há duas vertentes de pensamento sobre o que virá após sua
inevitável queda.
Da maneira pós-moderna de entender a questão, estaríamos diante do fim da
soberania dos Estados nacionais, desmantelando-se a organização estatal baseada na lógica
para cada nação um Estado, passando todas as nações a conviverem sob um mesmo Estado
global.
Por outro giro, poder-se-ia aceitar a possibilidade de sociedades que continuassem
organizadas de acordo com o sentimento de nação, ainda que não mais divididas nos
multicitados Estados nacionais.
Ferreira Filho, que conforme já aduzido, também aponta para o fim do Estado
nação, acredita que em seu lugar surgirá uma nova forma de federalismo, com traços da
federação e da Confederação de Estados, figura esta que chama de Comunidade, apenas.
Da Confederação tem ela o caráter de associação de Estados independentes
que aceitam a condução em comum de certos interesses, conquanto não de
todos os de que cuida o Estado. Seus órgãos e serviços são mantidos por
meio de contribuição dos Estados (e não por tributação direta dos cidadãos).
50
A execução das decisões de seus órgãos faz-se por intermédio da máquina
administrativa de cada Estado.
Entretanto, do Estado Federal adota a deliberação por maioria, o comando
(inclusive legiferação) independentemente do consentimento dos associados,
a sujeição dos litígios à Corte judicial da Comunidade, e, também, o acesso
direto de todos os cidadãos a tal Corte, para a defesa de seus direitos
individuais. (FERREIRA FILHO, 1998, p. 106)
Da análise de tal instituto apontado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
observa-se tratar-se ele do que aqui se vem chamando de supranacionalismo ou Constituições
Supranacionais, regidas pelas normas de Direito Internacional, mas com grande reflexo no
interior de seus participantes.
Na lição do supramencionado autor:
Esta comunidade tem como lei suprema não uma Constituição, mas um
Tratado, adotado de acordo com as regras do direito internacional e somente
alterável de conformidade com estas. Isto, sem excluir uma Declaração de
Direitos e Garantias diretamente aplicável pela Corte competente.
(FERREIRA FILHO, 1998, p. 106)
Percebe-se, assim, que, conforme vínhamos defendendo desde o início, as regras
aplicáveis a tais uniões são de Direito Internacional, todavia, possui certas peculiaridades já
abordadas no tópico supra.
Por fim, saliente-se que Manoel Gonçalves Ferreira Filho prega pela
impossibilidade de ocorrência de um Estado global, entendendo tal doutrinador que, no
futuro, será a comunidade internacional formada por algumas “Comunidades”, para usar o
termo adotado por ele, as quais, segundo o estudado até aqui, serão regidas por tratados
equiparados ou travestidos nas Constituições Supranacionais.
O professor citado defende a impossibilidade de um Estado global, devido à
existência de divergências culturais irreconciliáveis. Nas suas precisas palavras:
Os Estados atuais vinculam-se a grandes “culturas” ou “civilizações”
(“ocidental” – com pelo menos três variantes, a anglo-saxônica, a latina e a
bizantina, e a “oriental” – islâmica, budista, confucionista), em cujo cerne
estão diferentes maneiras de conceber a vida e o mundo, o que se reflete
numa diversidade de práticas, de usos e de costumes. Ora, como demonstrou
o fracasso de políticas colonialistas, difícil é estabelecer o convívio pacífico
dessas culturas debaixo de um mesmo poder. (FERREIRA FILHO, 1998, p.
107)
51
5.3 Constituições supranacionais versus soberania estatal: aliadas ou inimigas?
De todo o exposto, é possível afirmar que, para os doutrinadores estatistas, o
Estado nacional está próximo de seu fim. Contudo, isso não significa necessariamente a perda
total de sua autonomia dentro de seu território. Manoel Gonçalves Ferreira Filho apontou com
maestria para a impossibilidade de se adotar um Estado global, sob pena de incorrermos nas
mesmas barbáries do Imperialismo, as quais decorrem inexoravelmente das diferenças
culturais impossíveis de serem conciliadas e da tentativa frustrada de submeter-se uma à
outra.
Assim, pode-se dizer, sem pretensão de certeza, que, possivelmente, no futuro,
viveremos sob a égide de Comunidades, as quais serão formadas por Estados com culturas
parecidas e decorrentes do exercício da vontade destes.
Não necessariamente haverá o desaparecimento da clássica soberania estatal, a
qual já vem a muito sendo mitigada. Todavia, esta mitigação pode se mostrar mais forte,
conforme demonstramos neste capítulo, haja vista a possibilidade de delegação de
competências privativas para o ente supranacional.
Neste sentido, pode-se dizer que soberania estatal e supranacionalidade são
aliadas, na medida em que é graças à existência de soberania que os Estados podem celebrar
tratados internacionais e submeter-se a uma Constituição Supranacional. Em contrapartida, as
alianças decorrentes do Direito Comunitário mostram-se necessárias para que os Estados
sobrevivam no mundo globalizado, onde fica cada vez mais evidente a impossibilidade de
sobrevivência dos Estados sem a cooperação internacional.
52
6 À GUISA DE CONCLUSÃO
De todo o exposto nos capítulos anteriores, pode-se concluir que o tema não é
pacífico e imune a críticas e controvérsias, todavia, mostra-se de suma importância na
atualidade tendo em vista o crescente fenômeno da globalização.
Vimos que os teóricos não encontram consenso sequer ao tentar conceituar Estado
ou apontar para seu surgimento, o que nos leva a crer que também não haverá consenso
quanto ao possível fim do Estado com o advento do Direito Comunitário e das Constituições
Supranacionais.
Como visto, a necessidade de união entre Estados não é privilégio da atualidade,
sendo as alianças celebradas desde o momento em que se tem a prática da soberania e o
“sentimento de Estado”, todavia, nossa era tem sido posta frente a novas problemáticas, as
quais estão levando os chefes de Estado e estudiosos do assunto a buscarem novas formas de
união.
Os tempos contemporâneos não enfrentam mais a problemática da origem ou
formação originária de Estados, sendo possível existir atualmente apenas o fenômeno da
formação derivada de Estados, haja vista a inexistência de terra nullius. Assim, a formação de
Estados hoje apenas pode ocorrer através da união ou fracionamento de outros Estados.
Daí a preocupação com as possíveis novas conformações estatais, principalmente
com as uniões de Estados que, aparentemente, geram a relativização do conceito de soberania
nacional, dentre elas as uniões que são respaldadas em Constituições Supranacionais.
Com o advento do Direito Comunitário, que é o maior exemplo de uma possível
utilização das Constituições Supranacionais e que tem como finalidade o melhor atendimento
às necessidades do homem, os Estados que o aceitarem estarão se submetendo a
mandamentos que, muitas das vezes, poderão não condizer com seu direito interno, gerando
para este Estado uma obrigação de adequar seu direito interno em face do Direito
Internacional Comunitário.
Tal fato, que em um passado não tão distante parecia inaceitável, tem como
respaldo a atenção a valores mais importantes, ou seja, as necessidades da população e do
próprio Estado estão de mostrando prioritárias sobre o exercício inconsequente da soberania.
A principal diferença entre as Constituições Supranacionais e os tratados
“comuns” de Direito Internacional, conforme visto no quarto capítulo, é justamente a
53
submissão do direito interno em face do Direito Internacional, o que apenas se aceita por
estrita necessidade.
O fato que leva tais Estados a aceitarem tais conformações, certamente, não é
apenas a preocupação com o atendimento das necessidades populares, mas a impossibilidade
de sobrevivência na sociedade internacional sem o apoio de outros Estados, o que, conforme
já dito, se mostra cada vez mais presente na atualidade.
Em nossa História, houve momentos em que a celebração de tratados de Direito
Internacional foi questionada por ser a soberania defendida como um poder absoluto e
ilimitado, contudo, a experiência mostrou que a limitação ao poder do Estado era necessária
para que fosse possível a convivência de diversos poderes soberanos ao mesmo tempo.
Hoje, estamos novamente frente ao mesmo dilema, a impossibilidade do Estado
sobreviver sozinho o tem levado a firmar tratados cada vez mais abrangentes e com maior
ingerência nas competências, até então, privativas suas. Tal fato significa, portanto, o fim do
Estado? Como vimos, e de outra maneira não poderia ser, a doutrina não é unânime,
apontando cada teórico para um futuro distinto para o famigerado Estado nacional.
Há quem diga que estamos caminhando para a futura formação de um Estado
global, isto é, um poder único que conduzirá toda a população mundial, fazendo desaparecer
os tradicionais Estados nacionais, os quais ficariam dissolvidos no interior deste novo e único
Estado.
Outros apontam para a impossibilidade de um Estado global, haja vista as diversas
diferenças culturais, políticas e econômicas existentes que inviabilizam a junção sob o mesmo
regime de nações com costumes tão contrastantes entre si, sob pena de voltarmos à era das
guerras para solução de conflitos.
Assim, estes defendem que o futuro nos reserva não um Estado global, mas
diversos Estados regionais, ou seja, uniões que respeitem as proximidades culturais, políticas,
econômicas e também as necessidades comuns. Neste sentido, pregam, por exemplo, uma
união regional na União Europeia, uma união regional no âmbito do MERCOSUL, outra no
âmbito do NAFTA, etc. Ressalte-se que os Estados formadores da União Europeia são os que
estão mais próximos de celebrar este tipo de união, sendo devida a eles toda a discussão
desencadeada.
Muito embora não haja consenso sobre o futuro do Estado, mesmo porque não há
como prever o que está por vir, certo é que a maioria acorda sobre o fim do Estado-nação nos
moldes atualmente conhecidos. É dizer que a força globalizante abalou permanentemente as
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estruturas da formação atual dos Estados, sendo inevitável a mudança de sua forma num
futuro bem próximo.
Todavia, há que se ressaltar, não há como prevermos com grau de certeza e
precisão qual forma tomará o hoje conhecido Estado nacional. Será seu fim ou apenas um
amadurecimento?
Quando do início deste trabalho, tínhamos como hipótese a continuidade do
Estado-nação, não havendo que se falar em seu fim com a adoção de uma Constituição
Supranacional. Acreditávamos, ainda, que a celebração deste tipo de tratado apenas ressaltaria
a soberania estatal, já que sem ela não seria o Estado capaz de comprometer-se
internacionalmente.
Entretanto, realizada a pesquisa para este estudo, tendemos a acreditar que o
Estado nacional não possui vida longa, ao menos em sua forma clássica adotada nos dias
atuais. O advento do Direito Comunitário e a adoção das Constituições Supranacionais gera
sim a mitigação da soberania estatal e garante ao ente supranacional maior ingerência em
temas até então privativos do Estado.
Contudo, não é a relativização em si que nos faz crer pelo fim/alteração do Estado
nacional, haja vista que apenas abdica de parte de um direito quem o possui, logo, apenas o
Estado soberano pode celebrar tratados e se comprometer perante os outros, mantendo nosso
posicionamento quanto a este ponto, mas o que nos faz acreditar nesta mudança de paradigma
é a força da globalização e a necessidade cada vez maior que um Estado tem do outro. Ou
seja, nenhum Estado é capaz de sobreviver sozinho e esta interdependência tende a crescer
cada dia mais, tendo em vista as necessidades do mercado, comércio, produção, ensino,
tecnologia, dentre tantos outros aspectos da vida moderna.
A questão que ainda persiste é se a adoção do Direito Comunitário e a ratificação
de uma Constituição Supranacional extinguem os Estados que dela participam fazendo nascer
um novo em seu lugar. Como já dito, tais questões apenas o futuro poderá responder, já que
dependerão da vontade de tais Estados ao ratificarem tais tratados. Logo, defendemos o
posicionamento de que a existência deste tipo de tratado, por si só, não elimina do mundo
jurídico o Estado que o ratificar, dependendo tal fato da vontade soberana de seus
participantes.
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