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A Idade Média Portuguesa e o Brasil: A Idade Média Portuguesa e o Brasil: A Idade Média...

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A Idade Média Portuguesa e o Brasil: A Idade Média Portuguesa e o Brasil: A Idade Média Portuguesa e o Brasil: A Idade Média Portuguesa e o Brasil: A Idade Média Portuguesa e o Brasil: JOSÉ RIVAIR MACEDO (ORG.) JOSÉ RIVAIR MACEDO (ORG.)
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A Idade MédiaPortuguesae o Brasil:

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A Idade MédiaPortuguesae o Brasil:

A Idade MédiaPortuguesae o Brasil:

A Idade MédiaPortuguesae o Brasil:

JOSÉ RIVAIR MACEDO

(ORG.)JOSÉ RIVAIR MACEDO

(ORG.)

2011

A Idade MédiaPortuguesa e o Brasil:

reminiscências, transformações, ressignificações

Organização de José Rivair Macedo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Biblioteca Pública do Estado do RS, Brasil)

I18

A Idade média portuguesa e o Brasil: reminiscências, transformações, ressignifi -

cações / organizado por José Rivair Macedo. -- Porto Alegre : Vidráguas, 2011.

216 p. .

1. História – Idade Média - Portugal. 2. História – Brasil.

I. Macedo, José Rivair. II.Título.

CDU 940.1(469) : 981

Rua Francisco Ferrer, 441, conj. 50790420,140 - Porto Alegre - RS

Fone (51) 3392.3727

www.vidraguas.com.br

Copyright@2011 by

Edição: Vidráguas

Coordenação editorial: Carmen Sílvia Presotto

Capa e projeto gráfi co: Ricardo Hegenbart

Finalização: ArteCerta - Propaganda Impressa

Fotografi as de capa: Moisés Evandro Bauer

ÍNDICE

Apresentação ..................................................................................... 7

Sobre a Idade Média residual no Brasil, José Rivair Macedo...... 9

RELIGIOSIDADE EM PORTUGAL

1- Os regimentos de procissões do Corpus Christi no Portugal medieval, Manuela Mendonça. .............................. 232- Religião de proximidade em Portugal em fi nais da Idade Média: estabelecimentos religiosos seculares locais e controlo social, Manuela Santos Silva. ..................... 373- Aspectos da espiritualidade dominicana em Portugal na época medieval. Notas sobre Frei Soeiro Gomes, Julieta Araújo. ............................................................................ 49

MODELOS RELIGIOSOS E SABERES

4- O paradigma religioso e social da morte dos santos. Da Alta Idade Média a undecentos, Maria Helena da Cruz Coelho. ............................................... 615- Cluny e a formação de Portugal, Armando Martins. ........... 796- Agoiros, feitiços e outras maravilhas: crença e crítica no Portugal quatrocentista, Margarida Garcez Ventura. .......... 937- Paixões da alma, melancolia e medicina (séculos XIII – XV), Dulce Oliveira Amarante dos Santos. ..... 107

IDADE MÉDIA E AMÉRICA PORTUGUESA

8- O legado português no Brasil, Helga Iracema Landgraf Piccolo. ........................................... 1239- A monarquia em Portugal e no Brasil – uma longa Idade Média, Maria Eurydice de Barros Ribeiro. ................. 13110- Serviço e benefício: relações e redes sociais na tradição ibérica, Maria Filomena Coelho. ............................. 145

11- Dos concelhos medievais às vilas coloniais: o poder camarário no sul da América portuguesa, Fábio Kühn. ...... 157

RELIGIOSIDADE COLONIAL

12- Cristandade medieval e cristandade colonial: permanências e rupturas, Francisco José Silva Gomes. ....... 16913- A missão jesuíta para o Brasil na estratégia imperial de D. João III, João Marinho dos Santos. ............................... 17714- Em defesa da virtude e em busca do martírio: Jesuítas em missão no Guairá (século XVII), Eliane Cristina Deckmann Fleck. ........................................... 18515- Pelo manto da misericórdia: a obras das santas casas no Brasil colonial, Véra Lucia Maciel Barroso. ..................... 201

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APRESENTAÇÃO

Desde o ano de 2006, por iniciativa das profas. Manuela Mendonça, atual Presidente da Academia Portuguesa de História, e Maria Eurydice de Barros Ribeiro, da Universidade de Brasília, formou-se o Grupo Luso-Brasileiro de História Medieval. A intenção é permitir que pesquisadores dos dois países encontrem-se periodicamente para discutir temas comuns, realizar intercâmbios e contribuir para o aprofundamento das pesquisas sobre a Idade Média peninsular, com ênfase na História de Portugal. Atualmente tomam parte do grupo profi ssionais vinculados às Universidades de Lisboa e de Coimbra, em Portugal, e as Universidades Federais de Brasília, Goiás, Fluminense, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, no Brasil.

Nesses cinco anos de existência, foram realizados três encontros acadêmicos no Brasil, ocorridos na UNB (2006), USP (2008) e UFRGS (2010), e dois em Portugal, ocorridos nas dependências da Universidade de Lisboa e de Coimbra, e na Academia Portuguesa de História (2007; 2009). Os temas discutidos dizem respeito aos traços institucionais e culturais de Portugal na Idade Média1, às relações entre monarquia e sociedade em Portugal2 e às raízes medievais do Brasil3.

Os estudos reunidos no presente livro foram apresentados e discutidos no V Encontro Luso-Brasileiro de História medieval, realizado em Porto Alegre, entre 16 e 18 de novembro de 2010. Tratam do problema das relações históricas entre a Idade Média portuguesa e o Brasil no período colonial. Aos pesquisadores lusos, coube a tarefa de apresentar trabalhos sobre a cristandade peninsular e os modelos religiosos que Portugal legou ao Brasil; já os pesquisadores nacionais incumbiram-se de refl etir a respeito das continuidades e/ou rupturas dos modelos europeus introduzidos no Brasil durante o processo de colonização e os traços culturais, políticos e sociais daí decorrentes. Para tal, além da participação de medievalistas, foram convidados alguns pesquisadores especialistas em temas da História

1 - Maria Eurydice de Barros RIBEIRO (org). Instituições, cultura e poder na Idade Média ibérica. Brasília: UNB,

2007.

2 - Carlos NOGUEIRA (org). O Portugal medieval: monarquia e sociedade. São Paulo: Alameda Editorial , 2010.

3 - Raízes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa de História; Centro de História da Uni-

versidade de Lisboa; Centro de História e da Cultura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2008;

Poder espiritual/poder temporal. As relações Igreja-Estado no tempo da monarquia (1179-1909). Lisboa: Acade-

mia Portuguesa de História, 2009.

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do Brasil colonial que atuam em universidades no Rio Grande do Sul.

De fato, a experiência histórica da colonização portuguesa no Novo Mundo pôs em contato diferentes tipos de sociedade (de origem européia, indígena, africana), instituições político-administrativas e sociais, modos de ser e de pensar os fenômenos sócio-culturais (linguagem, arte, religião, etc). Ao estudar as maneiras pelas quais tais modelos se relacionaram espera-se contribuir para o avanço do conhecimento de nossas raízes, e a tomada de consciência dos aspectos originais de nossa identidade histórico-social.

Aproveitamos o ensejo para agradecer a CAPES, através do Programa PRODOC, pela ajuda fi nanceira que tornou possível a realização deste livro.

Registrem-se também nossos agradecimentos a Bárbara Macagnan Lopes, Fernando Ponzi Ferrari, Karen Cibele Alves da Luz Macedo, Marcos Schulz e Rodrigo Moraes Alberto, pela ajuda na estruturação e realização da organização do V Encontro Luso-Brasileiro de História Medieval.

O organizador

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SOBRE A IDADE MEDIA RESIDUAL NO BRASIL.

José Rivair Macedo*

Em entrevista publicada há alguns anos na revista Signum, da Associação Brasileira de Estudos Medievais, o medievalista português José Mattoso sugeriu que os brasileiros pesquisassem a Idade Média através de temas da Antropologia Histórica, da longa duração1. De alguma maneira, é o que representa esse livro: o resultado do diálogo entre portugueses e brasileiros acerca de temas comuns concernentes ao medievo português vistos na perspectiva das continuidades, rupturas e ressignifi cação histórica.

Há contudo um risco na proposição de José Mattoso, a de involuntariamente fazer crer que o espaço reservado aos pesquisadores medievalistas brasileiros seria apenas o de pensar o que a Idade Média legou (ou não) ao Brasil, enquanto os temas de pesquisa medieval tout court permaneceriam como lugar privilegiado de refl exão dos pesquisadores europeus. Isto não seria bom porque condenaria a medievalística a permanecer enclausurada nos modelos de interpretação da realidade criados pelos próprios europeus, sem maior possibilidade de crítica e reavaliação historiográfi ca a partir de outros pontos de vista2. Dissemos involuntariamente porque, na afi rmação de Mattoso, a difi culdade dos estudos medievais no Brasil não estaria relacionada com a competência ou originalidade dos pesquisadores, mas com o inevitável problema do acesso às fontes históricas, tanto que, em sua opinião, alguns dos maiores medievalistas atuais são norte-americanos.

De fato, na esteira dos debates acirrados que os medievalistas tem feito sobre seu próprio ofício, historiadores não-europeus tem sido convidados a tomar parte na ampla reavaliação historiográfi ca e conceitual3. Este diálogo mostra-se rico para todos os envolvidos porque permite aos europeus avaliar o impacto de certos paradigmas

* Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Programa de Pós-Graduação em

História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

1 - José MATTOSO. “Entrevista a Hilário Franco Jr”. Signum: Revista da ABREM, vol. 3, 2001, p. 224.

2 - Uma visão de síntese alternativa é a do francês Jérôme BASCHET. A civilização feudal: do ano mil à coloni-

zação da América. São Paulo: Ed. Globo, 2006. A obra problematiza a periodização tradicional, amplia e diversi-

fi ca a noção de “longa Idade Média” proposta por Jacques Le Goff , mas o enfoque privilegia a área de colonização

hispânica.

3 - Ver os resultados de diversos colóquios internacionais organizados entre 2001 e 2007 pela pesquisadora

brasileira Eliana Magnani, que atua no Centre d’Études Médiévales de Auxerre, publicados no livro Le Moyen

Age vu d’ailleurs: voix croisées d’Amérique latine et d’Europe. Paris: Presses Universitaires de Dijon, 2010.

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conceituais e as leituras possíveis de sua própria experiência histórica, enquanto os não-europeus, além de enriquecimento que tais intercâmbios representam para a sua formação como pesquisadores, vendo de mais longe e de outra perspectiva podem oferecer alternativas diferentes para as indagações e linhas de rumo das investigações atuais. Não por acaso, os historiadores medievalistas americanos estão afi nados com a crítica ao que tem sido denominado uma visão “colonizada” da Idade Média4, e parte substancial de suas preocupações tem sido dirigida a repensar as noções de “classe social”, “nação”, “povo” e “raça” produzidas na Europa entre os séculos XVIII-XX, que tanto impacto tiveram na gestação e desenvolvimento dos conceitos tradicionais sobre a Idade Média5.

Considerados esses pontos, convém esclarecer o que está em jogo ao tratarmos neste livro sobre problemas decorrentes da historicidade das relações entre Portugal medieval e Brasil colonial.

Em primeiro lugar, é preciso tomar sempre cuidado para não incorrer mais uma vez no que Marc Bloch qualifi cou como o “pecado mortal” dos historiadores: o anacronismo. Não se trata de buscar estabelecer acriticamente relações de continuidade entre a realidade histórica portuguesa medieval e a realidade histórica colonial brasileira, em busca de “sobrevivências” ou “permanências” porque isto signifi caria colocar de lado um dos elementos fundamentais da equação do conhecimento histórico, a noção de duração e temporalidade. De modo similar, também não parece ser o caso buscar estabelecer uma visão retrospectiva em busca de vinculações de caráter étnico, sob o risco de se cair menos numa gênese nacional e mais numa etnogênese6.

4 - Na frase contundente de John DAGENAIS e Margareth R. GRER. “Decolonizing the Middle Ages”. Journal

of Medieval and Early Modern Studies, vol. 30-3, 2000, pp. 431-448, “the Middle Ages is Europe’s dark continent of

history, evens as Africa is its dark ages of geography” . Para estes autores, a Idade Média é um espaço colonizado

em face da história moderna, e pode dar espaço a um discurso de crítica, tal qual ocorre com as teorias pós-

-coloniais. Descolonizar a Idade Média signifi ca também olhar para este período com outros olhos, e lhe fazer

outras perguntas.

5 - Nesse sentido, ver Paul MEYVAERT. “‘Rainaldus est malus scriptor francigenus’. Voicing national antipha-

ty in the Middle Ages”. Speculum, vol. 66-4, 1996, pp. 743-763; Robert BARTLETT. “Medieval and modern

concepts of race and ethnicity”. Journal of Medieval and Early Modern Studies (Duke University), vol. 31-1,

2001, pp. 39-56; Denise Kimber BUELL. “Race and universalism in early christianity”. Journal of Early Christian

Studies (John’s Hopkins University) vol. 10-4, 2002, pp. 429-468; Maaike van der LUGT; Charles de MIRAMON

(orgs). Héredité entre Moyen Age et époque moderne: perspectives historiques. Florença: Sismel - Edizioni del

Galluzzo, 2008; IDEM. “Pensar a hereditariedade na Idade Média: introdução e primeiros apontamentos”. In:

Nilton Mullet PEREIRA; Cybele Crossetti de ALMEIDA; Igor Salomão TEIXEIRA (orgs). Refl exões sobre o me-

dievo. São Leopoldo: Oikos, 2009, pp. 118-148; Néri de Barros ALMEIDA (org). A Idade Média entre os séculos

XIX e XX - estudos de historiografi a. Campinas, SP: Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas -UNICAMP;

LEME - Laboratório de Estudos medievais, 2008.

6 - O medievalista brasileiro Marcelo Cândido da Silva assume posição eminentemente crítica em relação ao

ponto de vista que defende a existência de supostas “origens medievais do Novo mundo”, partindo do pressupos-

to de que o próprio discurso em que tal ponto de vista se baseia não está isento de interferências do momento

em que foram gestadas as ideologias nacionais européias nos séculos XIX e XX. Ver o seu estudo “A Alta Idade

Média entre os séculos XIX e XX: da nação à etnogênese”. In: Nilton Mullet PEREIRA; Cybele de ALMEIDA; Igor

Salomão TEIXEIRA (orgs). Refl exões sobre o medievo, pp. 11-22.

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Trata-se de refl etir um pouco mais acerca de conceitos que possam contribuir para o esclarecimento das dimensões de análise implicadas na historicidade das relações entre o passado medieval português e o passado colonial brasileiro. Mas antes será preciso colocar em discussão a própria noção convencional de “Idade Média”. Como os historiadores bem sabem, o termo é eivado de rótulos e preconceitos, e continua a ser utilizado menos por convicção do que ele de fato representa e mais por comodidade e costume7. Onde está, onde começa e onde termina a Idade Média? Se no século XIX os eruditos não encontrariam maior difi culdade para responder tais questões, no século XXI as respostas mostram-se bem mais sutis e complexas.

REMINISCÊNCIAS

O que se tem percebido é que o conceito de Idade Média não se esgota na temporalidade tradicional que lhe atribuímos: os mil anos que separam a Antiguidade romana da Modernidade. Para além dessa Idade Média propriamente histórica, transcorrida essencialmente na Europa Ocidental8, objeto de estudo dos medievalistas, existem “Idades Médias” vistas em retrospectiva pela posteridade.

A própria denominação “Idade Média” provém da crítica que os humanistas faziam ao que consideravam “gótico”, e a memória dos grandes temas do medievo (Igreja, monarquias nacionais, feudalismo, realeza) ganhou seus contornos mais defi nidos nos séculos XVII e XVIII, quando os escritores iluministas e depois os partidários da Revolução Francesa, bem conhecidos por sua posição crítica em relação ao predomínio social da nobreza e da Igreja, reforçaram o rótulo da selvageria, barbárie e ignorância que acompanham a expressão “Idade das trevas”9.

No século XIX o Romantismo introduziu na história, e na história medieval em particular, o interesse pelas raízes nacionais e

7 - Aspecto demonstrado há décadas por Geoff rey BARRACLOUGH. Europa: uma revisão histórica. Rio de

Janeiro, Zahar, esp. p. 41; para a evolução da idéia de “Idade Média”, ver Christian AMALVI. “Idade Média”. In:

Jacques LE GOFF; Jean-Claude SCHMITT (dirs). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC,

2002, vol. 1, pp. 537-550.

8 - Embora se fale em “Idade Média no Oriente” (Alain Ducellier; Michel Kaplan), em “Idade Média no Japão”

(Kiyoaki Kito; Th omas Keirstead; Wakita Haruko) ou em “Idade Média na África” (Djibril Tamsir Niani; Paulo

Fernando de Morais Farias), não há dúvida que o conceito específi co se refi ra diretamente à cristandade latina e

à experiência histórica da Europa ocidental, aspecto sintetizado por Miguel Angel LADERO-QUESADA. “Ca-

tolicidade e latinidade (Idade Média – século XVII). In: Georges DUBY (org). A civilização latina: dos tempos

antigos ao mundo moderno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 119-140; e Jacques LE GOFF. A velha

Europa e a nossa. Lisboa: Ed. Gradiva, s.d..

9 - Tema desenvolvido na obra de A. GUERREAU, L’avenir d’un passé incertain. Quelle histoire du Moyen Age au

XXI siècle?, Paris, Seuil, 2001. Para a elaboração da imagem da Idade Média como “Idade das Trevas”, ver Jacques

HEERS. La invención de la Edad Media. Barcelona: Editorial Crítica, 1992.

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uma certa visão folclórica da Idade Média ao resgatar as tradições populares. Paralelamente aos historiadores, romancistas (como Walter Scott na Inglaterra e Victor Hugo na França), dramaturgos, pintores e outros artistas buscaram inspiração nas supostas origens medievais. No mundo erudito, nasciam os conceitos de “restauração” e de “patrimônio histórico”. Entre seus defensores mais aguerridos estava o arquiteto francês Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879), um dos primeiros a se especializar em obras de restauração, sobretudo de igrejas e castelos, e a quem se deve parte da substancial dos monumentos preservados de Paris. Na Inglaterra, surgia na mesma época o movimento artístico revivalista conhecido como Irmandade Pré-Rafaelita, que enaltecia os padrões estéticos anteriores ao Classicismo e ao Renascimento. O escritor e crítico de arte John Ruskin (1819-1900), um dos inspiradores do movimento, argumentava: “Destruímos a bela arquitetura de nossas cidades para substituí-la por uma outra, desprovida de beleza e de signifi cação, e raciocinamos sobre o efeito estranho que produzem em nós os fragmentos conservados, por felicidade, em nossas igrejas”10.

Assim, no mesmo instante em que fl oresciam os estudos acadêmicos realizados pela medievalística nascente11, isto é, pelo conjunto de pesquisadores especializados em diversos aspectos objetivos da realidade histórica (história política, social, econômica e cultural; língua e literatura; fi losofi a; direito; arte; arqueologia; numismática; epigrafi a e paleografi a; codicologia, etc), e no mesmo instante em que a história começava ser esboçada como disciplina escolar, para o senso comum a memória do medievo desdobrava-se em pelo menos duas formas de apropriação: as “residualidades medievais” ou “reminiscências medievais” e aquilo que, na ausência de melhor conceituação, denominamos de “medievalidade”12.

Hoje está mais do que evidente que as transformações históricas não são unilineares nem monocausais, e nem sempre se processam seguindo um mesmo ritmo13. Num mesmo contexto podem existir mudanças em certo âmbito e persistências noutro. Mas o passado não se mantém o mesmo, nem nas inércias da história. Em outras

10 - John RUSKIN. Pedras de Veneza, p. 67. Citado por Cristina MENEGUELLO. “O medievalismo na Inglaterra

do século XIX”. Anima: história, teoria e cultura (Rio de Janeiro), ano 1 n° 2, 2001, p. 74

11 - O primeiro volume da Monumenta Germania Historica apareceu na Prussia em 1826 e a Bibliothèque de

l’École des Chartes foi criada na França em 1839; em 1857 tinha início a publicação da coleção de documentos

medievais ingleses conhecida como Rolls Series e em 1850 Alexandre Herculano era encarregado pela Academia

Real de Ciências de Lisboa de recolher os documentos que seriam publicados na coleção Portugaliae Monumenta

Historica.

12 - Para o caso francês, o melhor estudo de conjunto dos estereótipos relativos ao medievo produzidos na sua

posteridade deve-se a Christian AMALVI. Le gout du Moyen Age. Paris: La Boutique de l’Histoire, 2002.

13 - Aspecto demonstrado por Fernand BRAUDEL. “Histoire et sciences sociales: la longue durée”. Annales ESC,

XIII-4, 1958, pp. 725-753.

13

palavras, até os elementos que eventualmente encontrassem suas raízes na Idade Média não seriam plenamente “medievais” na modernidade simplesmente porque foram alterados com o passar do tempo, e se continuaram a existir de forma residual, mudaram de sentido.

Por “residualidades medievais” ou “reminiscências medievais” devem-se entender justamente as formas de apropriação dos vestígios do que um dia pertenceu ao medievo, alterados e/ou transformados no decurso do tempo. Nesta categoria encontram-se, por exemplo, as festas, os costumes populares, as tradições orais de cunho folclórico que remontam aos séculos anteriores ao XV e que preservam algo ainda do momento em que foram criados, mesmo tendo sofrido acréscimos, adaptações, alterações. Festas como a de Corpus Christi, as Folias de Reis e a Festa do Divino Espírito Santo14, o Natal, e mesmo o Carnaval, foram um dia “medievais”, e persistem... mas não da mesma forma, nem desempenhando os mesmos papéis na Europa ou em outras partes do mundo para onde foram levadas15.

Também constituem resíduos ou reminiscências os monumentos arquitetônicos originados na Idade Média, embora ninguém duvide que castelos, pontes, mosteiros ou igrejas atualmente exibidos como “medievais” tenham sido modifi cados progressivamente, restando às vezes muito pouco da construção original16. Tomemos o caso das catedrais francesas ou alemãs (as catedrais de Reims ou de Bamberg, para citar apenas algumas), e dos castelos espanhóis ou ingleses (de Segóvia ou de Dover, por exemplo). Ninguém duvida que sejam efetivamente “medievais”, mas é difícil determinar em que proporção. Isto quer dizer que, depois da Idade Média, eles receberam novos arranjos, às vezes novas funções. O turista ansioso por conhecer uma cidade genuinamente medieval, como Óbidos, na região centro-oeste de Portugal, fi cará talvez decepcionado ao verifi car que o magnífi co castelo, localizado na parte alta da cidade ostenta uma janela de vidro - bem pouco “medieval”, mas muito apropriada para a função de pousada que lhe compete na atualidade.

14 - A respeito da recepção e ressignifi cação das festas do Divino Espírito Santo, ver Noeli Dutra ROSSATTO

(org). O simbolismo das festas do Divino Espírito Santo. Santa Maria: UFSM/fapergs, 2003.

15 - Para o estudo de caso da festa dos “Mouros e Cristãos”, transferida para a América através das cavalhadas,

ver José Rivair MACEDO. “Mouros e cristãos: a ritualização da conquista no Velho e no Novo Mundo”. In: Le

Moyen Age vu d’ailleurs, Bulletin Du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, Hors Série II, 2008: http://cem.revues.org/index8632.html.16 - Em sua avaliação irônica das maneiras de sonhar com a Idade Média, Umberto ECO. “Dez modos de sonhar

a Idade Média”. In: IDEM. Sobre o espelho e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1989, p: 78 afi rma

que: “constróem-se e reconstroem-se as fachadas da catedral de Nápoles, da catedral de Amalfi , de Santa Cruz e

de Santa Maria del Fiore para a alegria do turista não ainda pós-moderno, em busca desesperada de autenticida-

de histórica”.

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Não obstante, ninguém colocará no mesmo patamar tais monumentos genuínos ou parcialmente genuínos com aqueles construídos nos dias atuais inspirados em certos clichês aplicados ao medievo17, que participam mais de uma estética kitsch do que da funcionalidade militar e do caráter defensivo daquele tipo de construção no passado18.

MEDIEVALIDADE

Diferentemente dos “resíduos” ou “reminiscências”, que de alguma forma preservam algo da realidade histórica da Europa medieval, nas formas de apropriação denominadas “medievalidade” a Idade Média aparece apenas como uma referência, e por vezes uma referência fugidia, estereotipada. Assim, certos índices imprecisos de historicidade estarão presentes em manifestações lúdicas (festas, encontros, jogos de vídeo-game ou de computador) obras de divulgação (músicas, histórias em quadrinhos, peças teatrais, fi lmes), nas atividades de recriação histórica de torneios, feiras, festas, cutelaria ou culinária “medieval”19, e na inspiração de temas (magos, feiticeiros, dragões, monstros, guerreiros, assaltos a fortalezas) produzidos pelos meios de comunicação de massa e pela indústria cultural20.

17 - Os edifícios com forma de castelo constituem uma das modas no Brasil no século XX, e em sua construção os

arquitetos e engenheiros reproduzem de modo estereotipado os elementos convencionais desse tipo de construção,

como as torres e seteiras, as portas levadiças amarradas por correntes, as muralhas com pedra e cimento industria-

lizados. Sobre um desses edifícios da cidade de Porto Alegre, conhecido como “Castelinho”, consta que teria sido

construído a mando de um político para sua amante no fi nal dos anos 1940, tema explorado pelo jornalista Juremir

Machado da SILVA. A prisioneira do castelinho do Alto da Bronze. Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1993.

18 - Uma boa análise das referências medievais (góticas e românicas) na arquitetura americana católica e protes-

tante durante o século XIX encontra-se em Paul FREEDMAN; G. M. SPIEGEL. “Medievalisms old and new: the

rediscovery of alterity in north american medieval studies”. American Historical Review (New York) vol. 103-3,

1998, pp. 677-704, esp. pp. 680 e segs.; Para o mesmo fenômeno na América Latina, ver Ofelia MANZI; Francis-

co CORTI, Iglesias reformadas neogóticas. Buenos Aires: Facultad de Filosofi a y Letras da Universidad de Buenos

Aires, 2002; Ofelia MANZI; Francisco CORTI. “Arquitetura religiosa neogótica en Buenos Aires y alrededores”.

Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 1 n. 1, 1998, pp. 427-454; Glenda Pereira da CRUZ. “Antecedentes da

organização do espaço colonial na América ibérica”. Tese de doutorado. Porto Alegre: Programa de Pós-Gradu-

ação em História da PUCRS, 1995. A respeito do aporte da tradição islâmica na arquitetura latino-americana,

ver Estevão PINTO. Muxarabis e balcões e outros ensaios (Coleção Brasiliana). São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1958; Nora Marcela GOMEZ. “La tradicion de jardines hispanomusulmanes en Argentina”. In: Celia

Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais.

Salvador: Quarteto Editora, 2005, 358-366.

19 - Considere-se, por exemplo, as atividades da Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal, integrada por um

grupo de admiradores da Idade Média que ao longo de vinte anos vem organizando inúmeras atividades de

recriação histórica de feiras e torneios em todo o território português. A prática conhecida como medieval

reenactement é difundida em diversos países europeus e na América, como hobby e forma de evasão.

20 - A capacidade de sedução da Idade Média imaginada é enorme em todo o mundo, de modo que se pode dis-

tinguir na atualidade uma “Idade Média Histórica” que é eminentemente diferente da “Idade Média fantástica”.

Embora as refl exões sobre o fenômeno das apropriações ditas “medievais” na contemporaneidade sejam ainda

muito incipientes, algumas pistas podem ser encontradas no já citado livro de Christian AMALVI. Le gout Du

Moyen Age; ver ainda Marie-christine DUCHEMIN; Didier LETT. “Moyen Age d’adolescents”. Médiévales, vol.

6 n. 13, 1987, pp. 13-34; José Rivair MACEDO; Lênia Márcia MONGELLI (orgs). A Idade Média no cinema. São

Paulo: Ateliê editorial, 2009.

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Não será preciso insistir o quanto a dita “medievalidade” tem sido explorada na industria musical, por exemplo. A partir do fi nal dos anos 1960, por ocasião do fenômeno da contra-cultura e do movimento hippie, algo do “misticismo”, ou algo da “barbárie” medieval, tem inspirado a estética visual de diversas bandas de Rock. Um dos antigos membros da banda inglesa Deep Purple, Ritchie Blackmore, possui atualmente um castelo e executa canções e baladas “renascentistas”, “medievais” e “barrocas”. Desde os anos 1980 certas bandas de heavy metal, entre outras, a inglesa denominada Saxon, a norte-americana denominada Manowar e a espanhola denominada Tierra Santa reproduzem nas letras e nos acordes metálicos vibrantes de suas guitarras idéias e sensações difusas dos supostos guerreiros medievais21. Desde meados dos anos 1990 houve uma recuperação das tradições musicais “celtas” e certos grupos musicais de musica pop misturam a sonoridade “medieval” com instrumentos eletrônicos, produzindo às vezes grandes hits para serem executados inclusive em danceterias. É o caso do sucesso alcançado em 1990 pelo grupo Enigma com a composição Principles of lust, ao mesclar o canto gregoriano com sintetizador e instrumentos de percussão, criando um ritmo dançante22.

Outro fi lão explorado pela indústria cultural, em que se pode identifi car claramente aspectos de “medievalidade” são os jogos eletrônicos e o RPG23. Desde os anos 1980, diversos jogos executados em video-games e computadores incorporam formas pretensamente medievais aos heróis que combatem em reinos distantes, às fortalezas, templos e palácios habitados por guerreiros, magos e feiticeiros. Certamente que estes componentes têm sido os responsáveis pela enorme popularidade de temas e assuntos reais ou imaginados tratados em sites ou em grupos de bate-papos virtuais na Internet. Aos já habituais temas de uma mitologia contemporânea do medievo

21 - Ver, entre outras, as seguintes produções musicais: Blackmore’s Night, Shadows of the night, 1997; Saxon,

Crusader, 1984; Manowar. Battle hims, 1984; Tierra Santa, Medieval, 1997.

22 - Ver, entre outras, as seguintes produções musicais: Enigma, MCMXC a.D., 1990; Enya, Th e Shepherd moon,

1991; Dead Can Dance, Th e serpent’s egg, 1988; Era, Th e mass, 2003.

23 - Sigla de Real-Playing Game ou “Jogo de Interpretação de Personagens”. É um tipo de jogo muito apreciadona

atualidade, em que indivíduos ou grupos assumem papéis de personagens e criam situações a partir de regras

pré-determinadas. A prática teve início na década de 1970 e uma modalidade de grande sucesso, Dungeons &

Dragons, baseava-se em elementos ditos medievais. Este jogo depois viraria desenho animado com o título em

português de A caverna do dragão. A prática de RPG aparece retratada no fi lme norte-americano intitulado Role

models (Faça o que eu digo, não faça o que eu faço), do diretor David Wain (2009).

16

(os Templários24 e os Cátaros25, a Távola Redonda e o Graal26, as Cruzadas27 e tantos outros28), somam-se entes sobrenaturais e feéricos de uma Idade Média que deve muito ao extraordinário universo fi ccional criado por J. R. Tolkien em O senhor dos anéis, que tanto impacto exerceu na imaginação do século XX29.

Tudo isto leva a pensar que esta Idade Média “sonhada”, para usar a expressão de Umberto Eco, tenha alguma relação com o vazio deixado pela sociedade de consumo, em que o indivíduo é pulverizado e valores tradicionais são reiteradamente banalizados. A evocação dos refúgios familiares de uma “fl oresta encantada” ou da segurança simbolizada pelo “castelo” teria algo que ver com a busca de um retorno às origens quase míticas. Por isso, Michel Zink, grande conhecedor da civilização medieval, não hesita em afi rmar que no imaginário produzido pela cultura de massa atual a Idade Média é percebida como um “refúgio frágil e infantil”30.

24 - Sobre a continuidade da existência da Ordem dos Templários em Portugal na atualidade, com o nome de

Ordo Supremus Militaris Templi Hierosolymitani, ver o estudo de José Alberto BALDISSERA. “A Ordem Sobera-

na e Militar do Templo de Jerusalém em Portugal na Idade Média e Hoje”. In: Celia Marques TELLES; Risonete

Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais, pp. 231-236; a respeito das

apropriações contemporâneas dos ideais dos templários, ver José Roberto GUIMARÃES. “Militia Templi: o

cavalheiro templário como projeto ecumênico”. Dissertação de Mestrado orientada por Antônio Carlos de Melo

Magalhães. São Paulo: UMESP/PPGR, 1998.

25 A esse respeito, ver os estudos exaustivos de Jean-Louis BIGET. “Mythographie du catharisme (1870-1960)”,

pp. 271-303; Charles-Olivier CARBONELL. “Vulgarisation et récuperation: le catharisme à travers les mass-mé-

dia”, pp 361-380. In: V.V.A.A. Historiographie du catharisme (Cahiers de Fanjeaux, 14). Toulouse: Édouard Privat,

1979. A apropriação desses temas nem sempre foi politicamente desinteressada, e às vezes assumiu conotações

racistas, como demonstrou Jean-Michel ANGEBERT. Hitler et la tradition cathare. Paris: Éditions Robert Lafont,

1971.

26 - Sobre as formas de apropriação e difusão da mitologia arturiana desde o medievo até o presente, ver os es-

tudos de W. R. BARRON. Th e Arthur of the English: the arthurian legend in medieval english life and literature.

Cardiff : University of Wales Press, 2001; Glyn BURGES; Karen PRATT. Th e Arthur of the French: the arthurian

legend in medieval french and occitan literature. Cardiff : University of Wales Press, 2006; W. H. JACKSON; S.

A. RANAWAKWAKE. Th e arthur of the germans: the arthurian legend in medieval german and dutch literature.

Cardiff : University of Wales Press, 2000; Elisabeth JENKINS. Os mistérios do Rei Arthur: o herói e o mito reava-

liados através da história, da arqueologia, da arte e da literatura. São Paulo: Melhoramentos, 2001.

27 - Para o exame dos desdobramentos e ressignifi cações da idéia da cruzada, ver os estudos de Alphonse DU-

PRONT. Le mythe de croisade: essai de sociologie religieuse Paris: Gallimard, 1997 (or. 1957), 4 vols.; IDEM. Du

sacré: croisades et pelèrinages, images et langages. Paris: Gallimard, 1992.

28 - Para Portugal, o tema que melhor se enquadra no repertório mitológico moderno diz respeito aos amores de

D. Pedro I e Inês de Castro, amplamente retratado na iconografi a, literatura, teatro e cinema. Mesmo no século

XVIII, a tragédia dos amantes era encenada com grande sucesso nos teatros de Paris, conforme se pode ver no

estudo de Anna Maria RAUGEI. “Moyen Âge et siècle des lumières: l’écran du passe sur le thêatre du XVIII

siècle”. Cahiers de l’Association Internationale des Études Françaises, vol. 47, 1995, p. 17

29 - A Editora Camargo & Moraes, sediada em São Paulo, publica periodicamente a revista intitulada Universo

Fantástico de Tolkien, na qual aparecem reportagens sobre RPG, jogos eletrônicos, magia e mitologia e outros

aspectos da “Idade Média fantasia”. Na Itália, circula nas bancas a revista de divulgação de música e cultura me-

dieval intitulada Medioevalia: la prima rivista com CD di musica e cultura medioevale, editada pela empresa New

Sounds Multimedia.

30 - Michel ZINK. “Projection dans l’enfance, projection de l’enfance: le Moyen Age au cinema”. Cahiers de la

cinematheque, nº 42-43, 1985, p. 6.

17

ENFOQUES

Nas últimas décadas, em que se assiste no Brasil a emergência de um grupo de medievalistas profi ssionais, alguma atenção tem sido dada ao que se tem produzido a respeito da Idade Média e também ao que restou da Idade Média no Brasil31. Num interessante ensaio, Hilário Franco Jr. equaciona bem o problema dos intrincados cruzamentos temporais na relação entre Idade Média e Brasil contemporâneo, identifi cando certos traços do comportamento coletivo brasileiro em que se podem identifi car efetivamente raízes medievais, e distinguindo de outros, que devem tudo à modernidade. Não se trata, segundo ele, de um “Brasil medieval” ou de uma “Idade Média no Brasil”, mas de um sistema de valores medievais no Brasil. Aqui, tal qual Mário Martins tinha muito bem percebido, a Idade Média é menos uma época histórica e mais uma maneira de ser no mundo32.

Não é à toa que os vestígios mais evidentes da residualidade medieval no Brasil digam respeito aos elementos da religiosidade e sensibilidades populares.

Um bom exemplo é o do castelo construído em 1984 pelo sertanejo chamado José Antônio Barreto, conhecido popularmente como Zé dos Montes, na Serra da Tapuia, encravado na zona agreste do Estado do Rio Grande do Norte. Aqui está sem sombra de dúvida uma reminiscência medieval. Mas o que remonta ao medievo não é a bizarra construção, com suas dezenas de torres brancas sobressaindo-se em meio às rochas, com seu formato sinuoso, em estilo naif que, com muita imaginação, nos remeteria, guardadas as imensas proporções, às criações do espanhol Antonio Gaudi na arquitetura urbana de Barcelona. Aquela edifi cação feita à mão, de estuque, caiada, sem iluminação artifi cial, é a criação de um homem simples, sem instrução, divinamente inspirado. É o fruto de uma missão que lhe foi dada diretamente pela Virgem Maria quando ele

31 - Para uma visão de conjunto dos estudos medievais, ver Hilário FRANCO JR; Mário Jorge da Motta BAS-

TOS. “L’Histoire du Moyen Age au Brésil”. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, vol. 7, 2003, pp. 125-

133; Néri de Barros ALMEIDA. “La formation des médiévistes dans le Brésil contemporain: bilan et perspectives

(1985-2007). Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, vol. 12, 2008, pp. 145-160; Vanessa Colares AS-

FORA; Eduardo Henrik AUBERT; Gabriel CASTANHO. “Faire l’histoire du Moyen Age au Brésil: fondements,

structures, développements”. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, vol. 12, 2008, pp. 125-144; Carlos

Roberto Figueiredo NOGUEIRA. “Os estudos medievais no Brasil de hoje”. Medievalismo (Madrid), vol. 12,

2002, pp. 291-297; Ana Carolina Lima ALMEIDA; Clínio de Oliveira AMARAL. “O Ocidente medieval segundo

a historiografi a brasileira”. Medievalista online (Universidade Nova de Lisboa), ano 4 n. 4, 2008; José Rivair MA-

CEDO. Os estudos medievais no Brasil. Catálogo de dissertações e teses: Filosofi a, História e Letras (1990-2002).

São Paulo: EDUFRGS, 2003; IDEM. “Os estudos de história medieval no Brasil: tendências e perspectivas”. No-

tandum (USP), vol. 21, 2009, pp. 95-104.

32 - Hilário FRANCO JR. “Les racines médiévales du Brésil”. In: Eliana MAGNANI. Le Moyen Age vu d’ailleurs,

Bulletin Du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, Hors Série II, 2008: http://cem.revues.org/index8632.html.

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ainda era menino. Na aparição, Nossa Senhora o teria encarregado de construir o castelo com suas próprias mãos, para que depois lhe servisse como túmulo, como o lugar de seu descanso derradeiro.

Aí está o resíduo interiorizado de uma forma de pensar e de sentir “medieval” no mais puro sentido, pois evoca um tempo em que as imbricações entre sagrado e profano eram maiores, e muitíssimo mais profundas, provocando sensações e atitudes diferentes das nossas, cativas da razão cartesiana. O grande historiador holandês Johan Huizinga resumiu todo este estado de espírito numa bela imagem: para os medievais, o simbolismo religioso apresentava-se como uma espécie de curto-circuito do pensamento: “em vez de observar a relação de duas coisas procurando os caminhos invisíveis de suas dependências causais, o pensamento dá um salto e descobre a relação, não como um enlace de causa e efeito, mas como uma ligação de signifi cado e de fi nalidade”33.

É o mesmo traço de comportamento notado em Zé dos Montes, verdadeiramente “intoxicado pelo sagrado”. Nesse caso, a Idade Média encontra-se viva, pulsante, sem qualquer compromisso com sincronia ou cronologia. E o que dizer da experiência descrita pelo jornalista Gilles Lapouge, correspondente francês do jornal O Estado de São Paulo que, certa vez, durante uma viagem pelo interior do Estado do Rio Grande do Norte, no Nordeste Brasileiro, ao ter sua nacionalidade revelada, foi inquirido por um velho sertanejo sobre que notícias tinha a dar a respeito de Rolando e os Pares de França34?

Entre as possibilidades de abordagem das reminiscências medievais podem-se destacar três tipos: a) o estudo das vicissitudes históricas de determinadas instituições sociais35, econômicas e

33 - Johan HUIZINGA. O declínio da Idade Média. Lousã: Ed. Ulisséia, s.d., p. 211.

34 - Gilles LAPOUGE. Équinoxales. Paris, 1977, p. 168. Citado em epígrafe no livro de João David Pinto COR-

REIA. Os romances carolíngios da tradição oral portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científi ca,

1993, tomo 1, p. 9.

35 - Sérgio Buarque de HOLANDA. A visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do

Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1959; Guillermo GIUCI. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo.

São Paulo: Companhia das Letras, 1992; José Carlos GIMENEZ. “A presença do imaginário medieval no Brasil

colonial: descrições dos viajantes”. Acta Scientiarum (Maringá), vol. 23-1, 2001, pp. 207-213; Maria Isaura PEREIRA

DE QUEIROZ. La guerre sainte au Brésil: le mouvement messianique du Contestado. São Paulo : FFLCH-USP, 1957;

Márcia Janete ESPIG. A presença da gesta carolíngia no movimento do contestado. Canoas, RS: Ed. da ULBRA, 2003;

Manuela MENDONÇA. “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”,

pp. 279-303; Margarida GARCEZ VENTURA. “Para a compreensão da revolta de Canudos: as matrizes do mes-

sianismo político português”, pp. 261-277. In: Raízes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa

de História; Centro de História da Universidade de Lisboa; Centro de História e da Cultura da Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra, 2008; José Rivair MACEDO. “Reminiscências medievais: religiosidade e poder no

Extremo Sul do Brasil”. In: Poder espiritual/poder temporal. As relações Igreja-Estado no tempo da monarquia

(1179-1909). Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2009, pp. 283-306.

19

políticas36; b) o estudo do modo pelo qual elementos de origem medieval se fazem presentes em manifestações culturais de caráter popular – tanto na tradição oral quanto na literatura, em festas e rituais ou na iconografi a religiosa37; c) o estudo dos motivos e condições pelas quais autores ou artistas representantes da cultura erudita brasileira incorporam em suas obras elementos que se poderiam considerar “medievais”38.

36 - Ver Maria Filomena COELHO. A Justiça d’além mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (século XVIII).

Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2009; uma das instituições portuguesas de origem me-

dieval mais estudadas no Brasil é a sesmaria, evidentemente devido ao seu vínculo com o regime das Capitanias

Hereditárias e com a constituição da propriedade no Brasil colonial. Sobre esse assunto, o estudo clássico conti-

nua a ser o de José da COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil. Brasília: Ed. da UNB, s.d.; um importante

estudo a respeito do instituto da almotaçaria nas cidades coloniais do sul do Brasil foi realizado por Magnus

Roberto de Mello PEREIRA. “Almuthasib – considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal

e suas colônias”. Revista Brasileira de História (São Paulo), vol. 21 nº 42, 2001, pp. 365-395.

37 - Diversos estudos examinaram o signifi cado de certos indícios “medievais” nas tradições populares brasilei-

ras, entre os quais estão Luís da Câmara CASCUDO. Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil. Porto Alegre:

PUCRS, 1963; IDEM. Mouros, franceses e judeus: três presenças no Brasil. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982;

Jerusa Pires FERREIRA. Cavalaria em cordel: o passo das águas mortas. São Paulo: HUCITEC, 1993; Elba Braga

RAMALHO. “Carlos Magno no repente nordestino”. In: Celia Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA

(orgs). Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais.Salvador: Quarteto Editora, 2005, pp. 447-451;

Geraldo MOSER. “Elementos medievais na literatura popular do Brasil”. In: Homenagem a Manuel Rodrigues

Lapa. Boletim de Filologia (Lisboa), Tomo XXVIII, 1983, pp. 126-136; Maria Eurydice de Barros RIBEIRO. “Azu-

lejos: quadros da memória portuguesa”. In: Raízes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa de

História; Centro de História da Universidade de Lisboa; Centro de História e da Cultura da Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra, 2008, pp. 247-260; IDEM. “O bestiário medieval português, a gravura e o cordel

no Nordeste do Brasil”. In: Poder espiritual/poder temporal. As relações Igreja-Estado no tempo da monarquia

(1179-1909). Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2009, pp. 585-594;

38 - Entre outros podem-se mencionar: Lênia Márcia MONGELLI. “Entre onças e barbatões: as maravilhas ca-

boclas de José de Alencar”. Signum: revista da ABREM, vol. 5, 2003, pp. 195-232; IDEM. “Buscando decifrar

Ariano Suassuna”. In: Celia Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Interna-

cional de Estudos Medievais, pp. 51-58; Maria do Amparo Tavares MALEVAL. “Neotrovadorismo, no Brasil?”.

Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 21 n. 102, 1998, pp. 405-426; IDEM. “O romanceiro ibérico na poesia

brasileira”. In: IDEM. Atualizações da idade Média. Rio de janeiro: PPG de Letras da UERJ, 2000, pp. 259-289;

Ligia VASSALO. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Livraria Fran-

cisco Alves, 1993; Tereza Aline Pereira de QUEIROZ. “Mimetismo e recriação do imaginário medieval em Auto

da compadecida de Ariano Suassuna e En La diestra de Dios Padre de Enrique Buenaventura”. Revista Brasileira

de História, vol. 18 n. 35, 1998; Henrique Manuel ÁVILA. “Sobrevivência transformação da cultura medieval em

Ariano Suassuna”. Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 1 n. 1, 1998, pp. 65-78; Risonês de Jesus DUARTE;

Ana Camila Lima de SOUZA; Célia Marques TELLES. “A obra regional sallesiana: um encontro com o imaginá-

rio medieval”. In: Célia Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Internacional

de Estudos medievais, pp. 323-326; Roberto PONTES. “Residuos paradigmáticos medievais e trovadorescos na

Lírica de Cecília Meirelles”. In: Angelita Marques VISALLI; Terezinha de OLIVEIRA (orgs). Atas do VI Encontro

Internacional de Estudos Medievais. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2007, pp. 397-402. Também

na literatura norte-americana a Idade Média serviu de inspiração a renomados escritores, e em algumas obras os

índios são associados ao espírito guerreiro medieval como se pode ver no romance Th e last of the Mohicans, de

James Fenimore Cooper (1826), e no poema Th e prairies, de William Bryant (1832). Ver Andrew GALLOWAY.

“William Cullen Bryant’s American Antiquities: medievalism, miscigenation, and race in Th e prairies”. American

Literacy History (Oxford), vol. 22-4, 2010, pp. 724-751.

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Por enquanto, a única obra que apresenta uma visão de conjunto das infl uências medievais na formação brasileira é a do mexicano Luis Weckmann39. O problema é que em obras desse tipo o ângulo de abordagem tende a favorecer apenas um dos componentes essenciais de nossa sociedade: o europeu. Para uma avaliação mais justa do porque a experiência medieval portuguesa seguiu outros rumos no Novo Mundo seria preciso considerar o peso da contribuição indígena40 e africana41 em nossa sociedade, resultante das trocas e fusões durante o período colonial. Neste outro mundo e neste novo tempo é que o legado português foi recebido, fi ltrado, parcialmente assimilado e parcialmente rechaçado, enfi m, revivido e ressignifi cado.

39 - Luís WECKMANN. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. Deve-

-se observar todavia os limites conceituais da idéia de “herança” defendida pelo autor, que vê no processo de

conquista e povoamento da América elemento de transmissão das instituições ibéricas; sua adaptação no Novo

Mundo constituiria uma espécie de continuidade “medieval” até pelo menos meados do século XVII. Esta con-

cepção petrifi cada da Idade Média não permite responder duas questões que nos parecem cruciais: 1) porque

algumas instituições e/ou traços sociais persistiram, e outros não; 2) como tais elementos eram operados pelos

sujeitos históricos dos séculos XVI-XVII, nas circunstâncias específi cas da sociedade colonial.

40 - O caráter híbrido e mestiço da formação cultural mexicana foi realçado no livro de Serge GRUZINSKI. A

Colonização do imaginário. Sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003; para o Brasil, Ronaldo VAINFAS. A heresia dos índios. São Paulo: Com-

panhia das Letras, 1995, demonstrou a maneira pela qual a fusão entre as crenças populares portuguesas e os

cultos indígenas produziram um tipo de religiosidade original, perseguida pelos visitadores do Santo Ofício da

Inquisição em 1591-1595.

41 - Inspirados na obra do pesquisador Jan Vansina, africanólogos norte-americanos tem reavaliado o papel

essencial dos povos bantu da África central na formação das sociedades americanas e considerado o signifi cado

do cristianismo na constituição das identidades africanas antes mesmo da transferência dos milhões cativos du-

rante o tráfi co internacional de escravos. Ver Linda HEYWOOD (org). A diáspora negra no Brasil. São Paulo: Ed.

Contexto, 2009; embora ultrapassada em muitos pontos de seus pressupostos conceituais e perpassada por uma

leitura marcada pela ideologia que sustentou durante décadas o mito da “democracia racial brasileira”, o livro de

Gilberto FREYRE. Casa Grande & Senzala: a formação da família brasileira sob o regime patriarcal. 51ª edição.

São Paulo: Ed. Global, 2006 (or. 1933), apresenta notável quadro das contribuições africanas e indígenas durante

o processo de colonização que alteraram o modo de ser do português e contribuíram para a criação do modo de

ser propriamente brasileiro; uma contribuição original ao debate sobre as relações entre as tradições européias

e as tradições africanas foi apresentada por Muniz SODRÉ. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no

Brasil. Rio de Janeiro: DP & A, 2005 (or. 1978); sobre o signifi cado cultural das tradições populares de matriz

africana, ver Marina de Mello e SOUZA. Reis negros no Brasil escravista. História da festa da coroação do rei do

Congo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.

RELIGIOSIDADE EM PORTUGAL

23

OS REGIMENTOS DE PROCISSÕESDO CORPUS CHRISTI

NO PORTUGAL MEDIEVAL

Manuela Mendonça*

O ocidente europeu, na dimensão que adquire com a terminologia “respublica christiana” que, até ao século XVI, se estendia de Portugal à Hungria, apresenta-se como o local por excelência da prática do cristianismo.

Sem cuidar de seguir os processos de conversão subsequentes ao Império Romano, registemos que, no modelo atingido pelos designados reinos bárbaros ou, mais precisamente, germanos, toda esta Europa se considerava como fazendo parte da mesma cristandade. Nessa medida diremos que foi por esta marca que, na época, o ocidente se reconheceu, conforme fi cou registado em diversos documentos. Atestam-no os cronistas portugueses que, nos respectivos escritos, não utilizam nunca a designação “Europa”, mas sim a de “cristandade” ou “república cristã”. É disso ainda exemplo o Doutor João Teixeira que, quando em 1485 apresentou, em nome do rei de Portugal, a Oração de Obediência ao novo Papa, Inocêncio VIII, referia os “… notáveis serviços” prestados pelo “Rei João” à “República cristã e à Sé apostólica…”1. E já no princípio do segundo quartel do século XVI, ainda Garcia de Resende identifi cava o velho continente com a mesma designação, num âmbito geográfi co que não ia além da península itálica e da Hungria. Com efeito, ao falar dos problemas políticos dos reis do ocidente escreveu: “El Rey Carlos de França fazendo a maior parte da Christandade liga contra elle…”2. E na sua Miscelânea identifi cava, “Quinze reis, quinze reynados/ vimos já na christandade… … castelhanos e franceses/ Alemães, Venezeanos/ Navarros, Aragoneses/ Napolitanos, ingleses/ Romanos, Cezelianos/ Italianos, Millaneses/ Soyços, e Escorceses/ vimos todos batalhar/ huos com outros se matar/ salvo Ungros e Portugueses”3.

*

* Presidente da Academia Portuguesa da História; Professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

1 - Oração de Obediência ao Sumo Pontífi ce Inocêncio VIII, dita por Vasco Fernandes de Lucena em 1485. Edição

com nota bibliográfi ca de Martim de Albuquerque e tradução portuguesa de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa,

1988, p. 23.

2 - GARCIA DE RESENDE. Crónica de D. João II e Miscelânea, nova edição conforme a de 1798, com prefácio

de Joaquim Veríssimo Serrão. 2ª. Edição. Lisboa, 1992, p. 220.

3 - Idem, ibidem, p. 355.

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Serve esta breve introdução para demonstrar como, desde o princípio da nacionalidade, os portugueses se identifi caram com os povos que comungavam idêntica confi ssão religiosa, independentemente dos respectivos projectos políticos. Assim sendo, torna-se natural que, também no interior do reino, a identidade religiosa seguisse a par com os objectivos régios. Basta recordar que Portugal apenas adquiriu independência frente a Leão e Castela quando obteve, numa opção de “enfeudamento” ao poder espiritual, o apoio da Santa Sé. O seu primeiro rei iniciou esse processo declarando-se inicialmente “cavaleiro de S. Pedro”, vindo a conseguir posteriormente o respectivo reconhecimento através da bula Manifestis Probatum, outorgada pelo papa Alexandre III, em 1179. Só então a independência portuguesa fi cou defi nitivamente consagrada.

Nesta perspectiva, não será para admirar que a posterior gesta do povo luso fosse marcada, em termos mentais, pela dilatação da fé, conforme registam os cronistas ao referirem os fi ns perseguidos pelos portugueses no início dos descobrimentos. É certo que tal objectivo, que sempre justifi cou as bulas de cruzada, não era único, sendo verdade que os factores de ordem económica com ele avançaram de mãos dadas na acção portuguesa nas zonas encontradas. Porém, é inegável que nos modelos transferidos para as novas paragens se incluía a opção religiosa, nas suas mais variadas formas de culto. E quando ainda hoje observamos algumas expressões de religiosidade, nomeadamente de religiosidade popular, não podemos deixar de ver nelas reminiscências desse passado longínquo, qual fenómeno de longa duração. E se isso é real no actual mundo português, não o será menos num país como o Brasil – país moderno, mas caldeado nos velhos modelos europeus.

*Para o encontro que hoje nos reúne, pensei trazer um documento

que patenteia o espírito da época através das disposições ofi ciais relativas a uma das manifestações do sagrado de maior adesão por parte dos vários grupos sociais: as procissões. E de entre estas aquela que, no século XV, se transformou em paradigma de todas as outras. Refi ro-me à Procissão do Corpo de Cristo. Para explicar essa preponderância, recordemos que foi o papa Urbano IV que incrementou “… a piedade eucarística, intensifi cando o culto do Santíssimo Sacramento, cuja festa instituiu em 1264 sob a designação de Corpus Christi… encomendando a elaboração do respectivo Ofício ao grande santo e teólogo desse tempo, S. Tomás de Aquino, que enriqueceu a piedade cristã com uma maravilhosa obra-prima

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da liturgia”4. Contudo, a disposição papal visava apenas a instituição da Festa do Santíssimo Sacramento, sendo certo que a respectiva procissão apenas começou a fazer-se no século XIV, inicialmente na Alemanha, França e Itália…, contagiando posteriormente os restantes países da República Cristã. Isso mesmo ocorreu em Portugal dando origem, como a solenidade exigia, a um Regimento próprio.

A procissão medieval não é necessariamente uma expressão religiosa, pois pode defi nir-se como uma manifestação de fé, de crença, mas também de testemunho de adesão, de apoio, de fi delidade a uma pessoa ou causa, seja ela temporal ou espiritual. Com efeito, os povos organizavam-se em grandes manifestações de adesão, tanto quando se impunha testemunhar uma devoção espiritual como quando se queria aclamar uma personalidade, nomeadamente o rei. Recordem-se as procissões que aconteciam, por exemplo, nas entradas régias – a cidade, na primeira vez que recebia o monarca, apresentava-se fora de muros com representantes de todos os grupos sociais, manifestando deste modo a sua adesão ao novo rei. E conduzia-o em procissão até ao local mais nobre da cidade, cujos representantes ostentavam, nestes cortejos, uma pompa que simbolizava todo o seu poder económico e social. Assim se impunha e garantia respeito e privilégios na futura relação com o monarca.

Do ponto de vista espiritual, organizavam-se do mesmo modo os cortejos que se destinavam a proclamar a fé em Jesus Cristo ou nos seus santos. Neles se juntavam autoridades civis e religiosas, com o povo em geral, como que transferindo para estas manifestações de fé a ordem trinitária que agrupava os homens no temporal. Todos os corpos sociais participavam, cada um no lugar que lhe competia, de acordo com a hierarquia social. E na ordem política vigente, os próprios monarcas estabeleciam a regulamentação de tais testemunhos de fé. Diremos mesmo que, no caso português, os reis se assumiam como garantes da prática religiosa, qual Carlos Magno perante o papa, quando se afi rmava responsável por fazer executar tudo o que dizia respeito tanto ao corpo como ao espírito. Nesta mentalidade se deve entender que, nas devoções estabelecidas, se misturassem as opções de louvor estritamente espiritual com a acção de graças por vitórias políticas alcançadas. A justifi cação é dada pelos próprios documentos, estando também inserida no Regimento das Procissões da Cidade de Évora, que contém o texto que nos ocupa. Diz assim o respectivo preâmbulo,

4 - Heitor MORAIS, s.j.. História dos Papas, Luzes e Sombras. 2ª. Edição. Braga: Editorial A. O., 2005, p. 257.

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“Como quer que por todas as coisas que de Nosso Senhor re-cebemos lhe devemos de dar graças como lembrados de seus be-nefícios, e especialmente os reis e príncipes o devem fazer pelas vitórias e vencimentos que de sua mão recebem, o que os reis destes reinos sempre muito perfeitamente fi zeram e guardaram desde o primeiro santo e glorioso rei dom Afonso até nossos dias, segundo que por procissões e solenidades ordenadas que se em cada um ano fazem em alguns lugares destes reinos a todos é no-tório. E querendo nós acerca disto não menos ser grato e reco-nhecer a Nosso Senhor o que em nossos dias e presença nos fez de mercê em a batalha que houvemos em os reinos de Castela…”

Deste modo se justifi cava a intervenção do político na esfera do religioso, legitimando-se a imposição dos instrumentos reguladores e fi scalizadores. O documento que iremos analisar, de acordo com o registo do escrivão, foi copiado e adaptado a partir de um texto que fora dado pelo mesmo rei, D. João II, à vila de Santarém. Não conhecemos a data exacta do original, mas presumimos que seja pouco posterior a 1482, por consagrar já a procissão comemorativa da Batalha de Toro, cujo regimento foi escrito neste mesmo ano. Sabemos que foi elaborado especifi camente para a procissão do Corpo de Deus – paradigma de todas as procissões. Porém, em Évora, seria cumprido noutros três actos de culto similares:

- “no dia do milagre da cera5;- em véspera de Santa Maria de Agosto pelo vencimento da

batalha real6 - no dia em que el rei dom João nosso Senhor venceu a batalha

de entre Toro e Çamora que é aos dois dias de Março7”.Este Regimento deveria aplicar-se em todas estas três procissões, com

uma única excepção: nesta última não iria a “arca onde vai o sacramento”. *

5 - Segundo o Padre António Carvalho da Costa, a tradição deste milagre remonta a 24 de Maio de 1372.

Tendo-se perdido o “trigo”, em virtude do mau tempo, foi feita uma prece colectiva, com Missa cantada e sermão.

Então, diz o autor, o tempo serenou de imediato e Nossa Senhora fez outro milagre, pois “dobrou o peso da cera

que ardia diante da sua imagem todo o tempo que durou a Missa…”. (Corografi a Portugueza. Lisboa, 1708, tomo

II, p. 427). Note-se que o “milagre da cera” era uma devoção específi ca da cidade de Évora. Noutras localidades,

o tema seria o da respectiva devoção, tal como acontece, por exemplo, em Santarém, onde se faz a procissão do

“Santíssimo Milagre”.

6 - Trata-se da batalha que, entre nós, fi cou conhecida por “batalha de Aljubarrota”, ocorrida em 1385, na qual

os portugueses derrubaram o invasor castelhano, que pretendia a coroa de Portugal.

7 - A batalha de Toro, travada em 1476, foi a mais signifi cativa operação militar, ocorrida durante a campanha

portuguesa, levada a cabo por D. Afonso V, com o objectivo de defender a coroa de Castela para sua sobrinha,

Joana. Cumprindo uma promessa feita a seu cunhado, Henrique IV, na sequência da respectiva morte o rei

português invade terras castelhanas, casa com a sobrinha e enfrenta a oposição militar de Isabel, a futura rainha

Católica, que disputava igualmente o trono. A batalha de Toro terminou sem um claro vencedor, sendo certo que

a hoste comandada por D. Afonso V foi derrotada, mas o corpo de tropas liderado por seu fi lho, futuro D. João

II, permaneceu no campo como vencedor. Em consequência, ambos os reinos reclamam a vitória.

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Acompanhemos então o texto do Regimento, para observar quem e como devia “servir” nestas procissões de Évora que, segundo o também estabelecido, tinham um trajecto assinalado: deviam ir “pela selaria à praça”. Quer dizer que todos estes cortejos atravessariam obrigatoriamente o eixo principal da cidade, isto é, o que ligava a Sé Catedral à Praça Pública, hoje ainda a principal, conhecida por Praça do Geraldo8.

No que se refere à organização do evento, as disposições contidas no documento impõem uma presença diferente da que conhecemos nos exemplos estudados por Jacques le Goff . Estes parecem incorporar apenas os indivíduos segundo a sua categoria social, do mais importante para o menos importante. Contudo, no nosso texto destacam-se duas camadas de intervenientes, que surgem em crescendo, convergindo para o principal local: aquele onde vai o “Corpo de Deus”. O primeiro grupo é constituído por “aqueles que servem na procissão”; só o segundo corresponde então à sociedade hierarquizada.

A ordem da procissão é a seguinte: abre com um touro, animal que é conduzido e acompanhado pelos homens ligados ao ofício das carnes, isto é: carniceiros e enxerqueiros, que seguem a cavalo.

Depois surgem aqueles que desempenham actividades ligadas à terra – hortelãos e pomareiros. Estas categorias têm pendão e bandeira, o que signifi ca que estavam organizados. Não há qualquer outra referência a trabalhadores da terra.

Curiosamente, o lugar seguinte é destinado a “mancebas de partido”, ou seja, prostitutas que irão acompanhadas do gaiteiro e devem ir a dançar. Trata-se, pois, de um grupo que se destina a “servir…”.

Em três fi las sucessivas aparecem depois os ofícios de mulheres: primeiro as que vendem peixe, depois as que vendem pão, sendo seguidas por fruteiras, regateiras e outras vendedeiras. Este conjunto, que não apresenta bandeira nem pendão, deve fazer-se acompanhar pelos respectivos gaiteiros.

Não há mais representação feminina nesta parte do cortejo, seguindo-se de imediato os representantes de outros três ofícios: primeiro os almocreves e depois os estalajadeiros e carreteiros. Todos têm pendão, bandeira e atabaque. Os estalajadeiros e carreteiros têm obrigação de se fazer acompanhar de três reis magos.

8 - Os seleiros (ou fabricantes de selas e arreios) não deviam ocupar a rua toda… A importância da Rua da

Selaria reside no facto de pôr em ligação os dois centros da cidade. O primeiro… representado pela Sé, Castelo

e Açougue…é o centro da cidade enquanto esta se circunscrevia ao perímetro da muralha romana ou cerca

velha… O desenvolvimento dos arrabaldes… deslocaram o centro da cidade para a Praça. A Rua da Selaria

surge assim como o eixo de ligação da cidade medieval com a cidade moderna (cf.. Afonso de CARVALHO. Da

Toponímia de Évora, pp. 276-277).

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Terminadas estas representações, abrem-se duas fi las, nas quais se incorporam diversos ofícios, com as respectivas bandeiras, pendão e atabaque, para além de outras particularidades. Assim: de um lado vão os sapateiros, que apresentarão um imperador e dois reis “muito bem vestidos” e com eles os surradores, cortidores e odreiros. A par irão os alfaiates, que igualmente se farão acompanhar das bandeiras.

A seguir, continuando em alas, seguem os homens de armas: 50 besteiros do conto de cada lado, que transportarão as respectivas bestas devidamente enfeitadas, para além da bandeira e atabaque. Não devem levar capas.

Seguem-se, de um lado, os espingardeiros, na mesma ordem e apresentação, ostentando as espingardas. A par entram os besteiros da câmara do rei e os besteiros de cavalo.

O grupo seguinte é constituído por homens de armas: barbeiros, ferreiros, armeiros, ferradores, seleiros, bainheiros, estieiros e latoeiros. Dividem-se pelas duas alas, de cabeça descoberta e ostentando espadas nuas, na mão. Com eles deverão levar a imagem de S. Jorge, com um pagem e um dragão.

O conjunto seguinte é formado, de um lado, por tecelãos, penteadores de lã e cardadores. Conduzirão a imagem de S. Bartolomeu e um diabo preso por uma cadeia. A par irão os correeiros, adargueiros e sirgueiros. Transportam S. Sebastião levando quatro besteiros.

Igualmente com bandeiras, pendões e atabaques surgem, de um lado, ataqueiros e safoeiros, que devem levar São Miguel. Do outro perfi lam-se os olheiros, telheiros e tijoleiros, que devem transportar Santa Clara com duas companheiras.

Vêm depois, ainda distribuídos pelas duas fi las, os carpinteiros, pedreiros, taipadores, calcadores, caieiros, cabouqueiros, molhinheiros, serradores e outros que trabalhem na construção de casas. Deverão transportar Santa Catarina.

Cessa aqui a divisão em duas fi las para voltar a uma única. Seguem-se então sucessivos conjuntos, cujos membros transportam tochas acesas. Primeiro vão os tosadores e cerieiros, logo seguidos de ourives e pichaleiros. Estes levarão igualmente a imagem de S. João.

Atrás do santo são conduzidas duas bandeiras: primeiro a da cidade, levada pelo alferes. Depois a bandeira real, que será transportada por dois cavalos.

Seguem-se os trapeiros e os marceiros, com dois cavalinhos fuscos. Após eles irão os mercadores de panos de cor e, depois deles, os escrivães. Atrás destes incorporam-se os boticários.

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De novo em duas fi las, apresenta-se o restante ofi cialato, transportando igualmente acesas as respectivas tochas: de um lado os tabeliães das notas. Do outro os tabeliães do judicial. Depois os procuradores do número e seus inquiridores, a par com o escrivão dos órfãos e de almotaçaria. Seguem-se os escrivães do rei: o escrivão dos contos e do almoxarifado e o escrivão dos pretos e dos vinhos.

Atrás de todos, junto do Corpo de Deus, estarão os dois juízes do ano anterior ou, na falta deles, dois vereadores também do ano anterior.

Todo este conjunto convergiu para a zona “nobre” da procissão – o local onde vai a “arca com o Corpo de Cristo”. Atrás da mesma Arca iniciam-se novos conjuntos de pessoas, precedida por representações de Apóstolos, Evangelistas e Anjos.

Não temos descrição da sequência que levam, pois o documento apenas diz que se segue a “Procissão”. Tal signifi cará uma organização inversa da anterior, sendo certa a hierarquização social por Clero, Nobreza e Povo.

*Como se verifi ca, o documento em análise dá-nos a preocupação

pelo estabelecimento de um protocolo, de acordo com o que acontece noutras áreas da acção régia, nomeadamente na sua corte. Trata-se, pois, de um “espectáculo-representação” disposto pelo temporal em função do espiritual. Realcemos a manifestação social com o colorido das bandeiras dos respectivos ofícios, qual afi rmação de organização e poder. Mas importa não esquecer que essa representação é hierarquizada, tendo como objectivo o encontro com a mensagem principal da procissão que, neste caso, é o Corpo de Cristo.

O modo como os grupos sociais estão dispostos no terreno permite igualmente uma leitura da respectiva importância na sociedade local. Torna-se então muito interessante verifi car, para lá dos que abrem a procissão (touro e carniceiros), seguidos de um grupo teoricamente excluído, as prostitutas, que o grupo de menor prestígio social será o dos hortelãos e pomareiros, ou seja, o que representa as actividades ligadas à terra. No que se refere às “mancebas do partido”, importa ainda salientar, sem cuidar de uma interpretação aprofundada desta presença, que nesta alvorada da Idade Moderna a mentalidade era mais tolerante. Posteriormente e progressivamente iremos assistir à estigmatização deste e doutros sectores da sociedade. Depois, realcemos que a representação feminina não se apresenta organizada em confrarias: são as mulheres que vendem. Exige-se-lhe apenas espectáculo, isto é, que se apresentem bem arranjadas e sejam acompanhadas de gaiteiro. Só então seguirão as bandeiras, pendões

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e atabaques, testemunhando o poder dos ofícios que é crescente, começando nos almocreves e terminando nos ourives, que precedem as bandeiras da cidade e real.

Os mercadores de panos, qual alta burguesia de Évora, precedem os ofi ciais régios que, em crescendo, acabam nos juízes, junto dos quais vai o Corpo de Cristo.

Poderíamos ainda fazer uma leitura a propósito do santo conduzido por cada grupo profi ssional, que certamente é o respectivo protector. Seja o caso de S. Jorge, conduzido pelos homens de armas, de S. Bartolomeu, da responsabilidade dos que trabalhavam a lã, ou ainda de S. Miguel, com a balança da justiça… De não menor importância seria perguntar qual o signifi cado do “touro” que abre a procissão e outros que, por regimento, carniceiros, enxerqueiros e padeiras deviam dar para esse dia. Mas esse é outro tema….

*Concluindo esta refl exão, atentemos ainda nas disposições fi nais

do documento. Nelas ressalta, mais uma vez, a decisão régia de assumir a responsabilidade pelo cumprimento, por parte de todos, dos rituais religiosos, nomeadamente os que eram impostos por regimento. Por isso o monarca não hesitou em determinar e fazer registar as penas que deveriam ser aplicadas a eventuais infractores: “qualquer que não for a cada uma das ditas procissões que pague de pena duzentos reais para a Câmara e obras da cidade”. E “ o vereador que não fi zer vir todos os que a seu mester pertencem, assim as bandeiras, invenções ou tochas como a cada um é ordenado se os logo não der em rol na Câmara para lhe serem executadas as ditas penas, que ele vereador ou mordomo pague quinhentos reais da cadeia”. E tudo isto porque “el rei nosso Senhor quer per serviço de Deus que nenhuma pessoa cristã de qualquer estado e condição que seja se não escuse nem seja escuso”.

É o exercício régio, no temporal, a garantir o cumprimento do espiritual

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APÊNDICE DOCUMENTAL

REGIMENTO DAS PROCISSÕES DA CIDA DE DE ÉVORA9

Este é o Regimento dos que am de servir nas quatro procissões do dia do Corpo de Deus em cada um ano: dia de quinta feira do Corpo de Deus, e logo ao dia do milagre da cera em que vai o dito Corpo de Deus e véspera de Santa Maria de Agosto pelo vencimento da batalha real e o dia em que el rei dom João nosso Senhor venceu a batalha de entre Toro e Çamora que é aos dois dias de Março.

Item, primeiramente na dianteira de todos irão os carniceiros com um touro por cordas e todos os carniceiros e enxerqueiros a cavalo com ele com sua bandeira de sua divisa e isto além de pagarem os jogos dos meos touros pêra o dia do Corpo de Deus como sempre de costume foi ordenado: os carniceiros dos meos touros dos talhos e os enxerqueiros com os que por costume sempre deram seu jogo de touro. E terão seu atabaque.

Item, logo irão hortelães e pomareiros da cidade e seu termo e levarão a carreta e horta e levarão seus castelos e pendões da sua divisa enramados e pintados e sua bandeira e atabaque.

Item, no meio da procissão virão todas as mancebas do partido com os porteiros todos em uma dança com seu gaiteiro.

Item, as duas pélas das pescadeiras logo detrás elas bem vestidas e arrayadas com seu gaiteiro e elas todas ali em pessoas.

Item, a péla das padeiras que é uma só, porquanto dão todas o jogo dum touro e as padeiras ali com a dita péla por pessoas.

Item, as três pélas das fruteiras e regateiras e vendedeiras e elas todas per pessoa com seu gaiteiro.

Item, os almocreves todos com seus castelos pintados de sua divisa e bandeira e atabaque e pendões bem pintados, todos em pessoa.

Item, os carreteiros e estalajadeiros com seus castelos e pendões pintados e sua bandeira e atabaques e trazerão os três reis magos em sua invenção.

Item, os sapateiros trazerão o seu emperador com dois reis muito bem vestidos como lhe é ordenado com seus castelos e pendões bem pintados e sua bandeira e atabaque todos de uma banda e servirão com eles: sapateiros, surradores, cortidores, odreiros todos em pessoa.

9 - Transcrição de Gabriel PEREIRA. Documentos Históricos da Cidade de Évora. Lisboa: I.N-CM, 1998, II par-

te, pp 159-161.

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Item, os alfaiates doutra banda e trazerão a serpe e seus castelos pintados de sua divisa com pendões e bandeira e virão todos per pessoa e seus atabaques.

BESTEIROS DO CONTO

Item, besteiros do conto tantos de uma banda como doutra que são cento e levarão sua bandeira e atabaque todos sem capas com suas bestas enramadas.

Item, os espingardeiros del rei nosso Senhor com suas espingardas ao colo todos de uma banda com sua bandeira de sua divisa e atabaque, todos sem nenhuma cobertura.

Item, os besteiros da câmara del rei nosso Senhor e assim os de cavalo todos com pelote da outra banda e sua bandeira e atabaque.

Item, os homens de armas atrás estes todos bem armados sem nenhuma cobertura e senhas espadas nuas nas mãos e levarão São Jorge muito bem armado com um pagem e uma donzela para matar o dragão, tantos de uma banda como doutra e seu atabaque e bandeira e servirão nestes armados: barbeiros, ferreiros e armeiros, ferradores, seleiros, bainheiros, estieiros, latoeiros, todos bem armados sem nenhuma cobertura como dito é.

Item, os tecelães, penteadores de lã, cardadores com seus castelos e pendões pintados de sua divisa e sua bandeira e atabaque e levarão São Bartolomeu e um diabo preso por uma cadeia, todos de uma banda.

Item, os correeiros, dargueiros, sirgueiros doutra banda com seus castelos e pendões pintados e sua bandeira e atabaque e levarão São Sebastião com quatro besteiros.

Item, os ataqueiros e çafoeiros com os ditos pendões e castelos pintados e sua bandeira e atabaques, todos em pessoa e levarão São Miguel o anjo com sua balança e os demos.

Item, os oleiros doutra banda e com eles os telheiros e tijoleiros com seus pendões e castelos pintados e atabaque e sua bandeira e levarão Santa Clara com suas duas companheiras.

Item, os carpinteiros e pedreiros e taipadores, calcadores e caieiros, cavouqueiros, molhinheiros, serradores e assim todos os que corregem casas, com seus castelos e pendões pintados mui bem e sua bandeira e atabaque tantos de uma banda como da outra e trarão Santa Catarina mui bem arrayada.

Item, os tosadores e cerieiros farão pombinha na praça e levarão sua bandeira e atabaque e levarão suas tochas com seus castelos de estanho acesas.

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Item, os ourives e pichaleiros estes levarão suas tochas acesas e sua bandeira de sua divisa e atabaques e castelos de estanho como sempre costumaram e levarão São João.

Item, os trapeiros que são os mercadores de pano de linho e os marceiros todos com suas tochas acesas e castelos de estanho e levarão uma bandeira e atabaque e dois cavalinhos fuscos.

Item, mercadores de pano de cor todos pólo modo suso escrito com suas tochas.

Item os escrivães Dante os vigários com suas tochas acesasItem, o escrivão das armas com sua tochaItem, os boticários com suas tochasItem os tabeliães das notas com suas tochas todos de uma bandaItem, os tabeliães do judicial todos doutra banda com suas tochas

acesasItem, os procuradores do número todos com suas tochas e seus

inquiridoresItem o escrivão dos órfãos e de almotaçaria com suas tochas e

assim vem os mais.Item, os escrivães del rei nosso Senhor todos com suas tochas,

convem a saber, o escrivão dos contos e do almoxarifado e o escrivão dos pretos e dos vinhos.

Atrás de todos, ante o Corpo de Deus virão os dois juízes do ano passado com suas tochas dandas, e se aí não houver juízes virão dois vereadores do ano passado.

No meio desta procissão atrás de São João virá a bandeira da cidade e a bandeira del rei nosso Senhor, as quais trazerão a da cidade que virá diante o alferes se o aí houver, e não o havendo aí trazem na os almotacés que em cada uma das ditas quatro procissões for no mês que cair.

E a bandeira del rei Nosso Senhor virá atrás de todas, e o caram dos apóstolos e e trazê-las-ão em dois cavalos com os paramentos e arnezes que Sua Alteza há-de dar.

E logo irão os apóstolosE os evangelistasE os anjosEntão a procissãoE manda el rei nosso Senhor que este regimento se cumpra em

todalas quatro procissões: na do dia do Corpo de Deus que se sempre faz a quinta feira do dia da Trindade, e na procissão do milagre da cera em que também anda o Corpo de Deus vai pela selaria à praça e na procissão real que se faz véspera de Nossa Senhora de Agosto pelo

vencimento da batalha real que também vão pela selaria à praça.

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E assim na procissão que Sua Alteza manda fazer aos dois dias de

Março pelo vencimento, quando venceu el rei dom Fernando na

batalha que houve entre Toro e Çamora assim foi ordenado.

(seguem seis regras ilegíveis)… e assim todos os outros escrivães

tabeliães e a todos os aqui escritos que todos vão per pessoas às ditas

quatro procissões como lhe aqui é ordenado e mandado, e qualquer

que não for a cada uma das ditas procissões que pague de pena

duzentos reais para a Câmara e obras da cidade, e o vereador que não

fi zer vir todos os que a seu mester pertencem, assim as bandeiras,

invenções ou tochas como a cada um é ordenado se os logo não der

em rol na Câmara para lhe serem executadas as ditas penas, que ele

vereador ou mordomo pague quinhentos reais da cadeia porquanto

el rei nosso Senhor quer per serviço de Deus que nenhuma pessoa

cristã de qualquer estado e condição que seja se não escuse nem seja

escuso.

Eu Pero Estaço escrivão da câmara desta mui nobre e sempre leal

cidade de Évora, escrivão em todalas escrituras que a ela pertencem

por el rei nosso Senhor fi z este regimento e o tresladei pelo que veio

de Santarém que el rei nosso Senhor lá mandou fazer pondo aqui o

que à cidade pertence por mandado do juiz e vereadores.

(Arquivo municipal eborense. Livro pequeno de pergaminho, fl .

81, s/data)

PROCISSÃO COMEMORATIVA DA BATALHA DE TORO10

Juizes, vereadores, procuradores e homens bons, Nós el rei vos enviamos muito saudar. Como quer que por todas as coisas que de Nosso Senhor recebemos lhe devemos de dar graças como lembrados de seus benefícios, e especialmente os reis e príncipes o devem fazer pelas vitórias e vencimentos que de sua mão recebem, o que os reis destes reinos sempre muito perfeitamente fi zeram e guardaram desde o primeiro santo e glorioso rei dom Afonso até nossos dias, segundo que por procissões e solenidades ordenadas que se em cada um ano fazem em alguns lugares destes reinos a todos é notório. E querendo nós acerca disto não menos ser grato e reconhecer a Nosso Senhor o que em nossos dias e presença nos fez de mercê em a batalha que houvemos em os reinos de Castela

10 - Transcrição de Gabriel PEREIRA. Documentos Históricos da Cidade de Évora. Lisboa: I.N-CM, 1998, II

parte, pp. 156-161.

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entre Touro e Samora, porem ordenamos e mandamos que daqui em diante em louvor de Nosso Senhor e da bem aventurada virgem Maria sua madre e de Sam Jorge e de Sam Cristóvão que o dito dia trazíamos por nossos padroeiros e nome, em cada um ano aos dois dias de Março em que foi a dita batalha e vitória, a clerezia e todos os dessa cidade façais solene procissão saindo da sé e indo per os lugares principais com toda a solenidade, cerimónia, ofícios e jogos assim e tão cumpridamente como costumais de fazer em dia de corpo de Deus, tirando solamente de não ir a arca onde vai o sacramento. E se em essa cidade houver igreja do precioso mártir e cavaleiro sam Jorge e sam Cristóvão a procissão vá a ela onde se diga missa e pregação em lembrança da dita vitória, segundo o teor e forma desse caderno que vos com esta enviamos. E onde não houver casa do dito sam Jorge e sam Cristóvão, vá a dita procissão e pregue-se onde se costuma ir e pregar per o dito dia de Corpo de Deus. E esta nossa carta vos mandamos que registeis no livro da câmara dessa cidade pêra sempre se haver de fazer o que dito é, em relembrança da causa per que a dita solenidade se faz.

Escrita em Viana da par de Alvito a XII dias de Março. Álvaro Barroso a fez de 1482. Rey.

Por ElRey aos Juizes, vereadores, procurador e homens bons da sua cidade de Évora

(Arquivo Municipal Eborense, Liv. 2º Orig., fl 94. Liv. 1º. De perg., fl . 19v)

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GLOSSÁRIO

açafoeiros (safoeiro) – o que faz ou vende safões (meia perna de pele para aquecer)adargueiros – fabricante de adargas (escudo de couro, oval) almotaçaria – regulação e fi xação dos preçosalmoxarifado – área de jurisdição do almoxarife (cobrador de rendas e impostos reais)atabaque – instrumento musical. Espécie de tamborataqueiros – o que faz atacas (cordão de couro para vestuário)bainheiros – fabricante de bainhas de espadasbesteiros – soldado que usa besta (arma que disparava pelouros ou setas)caieiros – homens que têm por ofício fazer cal ou caiar calcadores – o que coloca e calca (paredes ou chão)cardadores – o que carda a lãcarniceiros – vendedores de carne frescacavouqueiros (cabouqueiros) – os que abrem as fundações de uma construçãocerieiros – os que trabalham a ceracorreeiros – trabalhador do couro que faz ou vende sobretudo correias ou arreioscortidores (curtidor) – preparadores de courosenxerqueiros – vendedor de carne secaestieiros – preparadores ou vendedores de peças de madeira ou de ferroLatoeiros (funileiro) - trabalhador de lata ou latãomancebas do partido - prostitutasmarceiros – Vendedor de géneros alimentícios e quinquilhariasMolhinheiros – os que molinham (misturam)odreiros – fabricante ou vendedor de odres (saco de couro para líquidos)pelote – veste sem mangas, com grandes abas para usar debaixo da capapescadeiras – peixeiraspichaleiros – trabalhador ou vendedor de estanhoregateiras – vendedora de aves, fruta ou peixe, no mercado ou ambulanteseleiros – fabricante ou vendedor de selas para animaisserpe – espécie de espada ou faca grande, em forma arredondada na pontaserradores – serra madeira ou palha para animaissirgueiros (serigueiro) – o que trabalha a seda ou faz peças de seda. Em Lisboa chamavam-se assim os vendedores de chapéus. Surradores – trabalhar e prepara as pelesTabardo – capote com capelo e mangastaipadores – o que faz paredes de tabique (barro ou areia e cal)telheiros – fabricante ou vendedor de telhatijoleiros – fabricante ou vendedor de tijolostosadores – os que tosquiam as ovelhas (tirar a lã)trapeiros - mercadores de pano de linho

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2 - RELIGIÃO DE PROXIMIDADE EM PORTUGAL EM FINAIS DA

IDADE MÉDIA: ESTABELECIMENTOS RELIGIOSOS SECULARES LOCAIS E

CONTROLO SOCIAL.Manuela Santos Silva*

Embora o período seja ainda mal conhecido pela natureza e pela raridade das fontes sobreviventes até aos nossos dias, possuem-se indí-cios sufi cientes para se poder caracterizar o modo como se processou a expansão territorial por parte do reino de Leão, em direcção a sul, na segunda metade do século IX. Os grupos - mais ou menos numerosos – de povoadores anónimos, integrar-se-iam em empresas organizadas por magnates de grande importância social no seu reino de origem ou em campanhas mais modestas de mosteiros em busca de novas locali-zações ou de desdobramento das originais. Alguns, mais afoitos, talvez organizassem por si próprios a sua presúria, esperando poder resistir perante os seus companheiros mais fortes que vinham encarregados pelo rei de dirigir a divisão patrimonial e a distribuição de tarefas1.

IGREJAS E MOSTEIROS NO PROCESSO DE POVOAMENTO DO TERRITÓRIO PORTUGUÊS

Apesar de se dar prioridade à ocupação ou reconstrução de cas-telos, a forma predominante dos novos povoados era muito básica, visando sobretudo a obtenção de terrenos agrícolas e/ou para pas-torícia, havendo porém a tendência para a instalação das casas de morada em pequenos aglomerados de tipo aldeia2.

Parece ter-se tornado desde logo indispensável, quase como se fosse necessário para legalizar o povoado, construir uma pequena igreja, perto ou no seio da aldeia, para a qual se nomeava simples-mente um dos povoadores – que na terminologia portuguesa se tor-naram conhecidos por herdadores – que se encarregaria de ministrar os ofícios religiosos mais básicos3. Outra seria a preparação daqueles

* Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Academia Portuguesa de História.

1 - Salvador de MOXÓ. Repoblación y Sociedad en la España Cristiana Medieval. Rialp: Madrid, 1979, pp. 126-196.

2 - IDEM. Ibidem, pp. 53-54; J. A. GARCIA DE CORTÁZAR y otros. Organización social del espacio en la Es-

paña medieval. La Corona de Castilla en los Siglos VIII a XV. Barcelona: Ariel, 1985, pp. 60-71.

3 - Salvador de MOXÓ. Repoblación y Sociedad en la España Cristiana Medieval, p.54; José MATTOSO. Identi-

fi cação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096 - 1325). 2ª Edição. Editorial Estampa: Lisboa, 1986,

Vol. I – Oposição, pp.190-192; 234-235.

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que, por vezes, em pequeníssimos mosteiros cumpririam as mesmas tarefas ao serviço da comunidade em formação. Uns e outros, po-rém, em espírito de grande liberdade, como um pouco por todo o lado sucedia antes do período reformador de Gregório VII4.

Como facilmente se imaginará, uns e outros eram edifícios de grande simplicidade, quer na estrutura que apresentavam quer quanto aos materiais empregues não sendo fácil, de facto, que per-durassem no tempo. Podemos pelos exemplos esparsos remanescen-tes de épocas próximas – Dume e São Frutuoso de Montélios em Braga, por exemplo, ou a igreja de mosteiro de São Gião – imaginar a singeleza das construções5. Mas, de qualquer modo, a Igreja ganha-va assim na paisagem humanizada do futuro território de Portugal um papel de grande importância, como se conclui da documentação iconográfi ca ao longo de toda a Idade Média (cf. Figuras 1 e 2)6.

Em lugares especiais surgiam pequenos santuários, onde se reu-niam os fi éis em dias de festa, tornando-se por vezes oratórios de pergrinação7. Mesmo eremitérios fundados em locais de algum iso-lamento lograram, em alguns casos, transformar-se mais tarde em igrejas paroquiais, destinadas ao serviço das populações locais.

À medida que o núcleo populacional crescia, independentizavam-se as comunidades da alcáçova – constituída pelos mais poderosos – e a da almedina ou arrabalde, ostentando cada uma a sua igreja8.

4 - Escolhemos entre outros os artigos de José MATTOSO, “A Cultura Monástica em Portugal (875-1200)” e

“O Monaquismo Ibérico e Cluny”. In: IDEM. Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa. Lisboa: Imprensa

Nacional - Casa da Moeda, 1982, pp. 358-363; 57-58, respectivamente.

5 - Vejam-se fi guras anexas 1, 2, 3.

6 - M. Justino MACIEL. “A Arte da Antiguidade Tardia (séculos III a VIII, ano de 711)”. In: Paulo PEREIRA

(ed). História da Arte Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995-1997, vol. 1 – Da Pré-História ao Islão,

pp.127;132, respectivamente.

7 - Como lembrava C. A. Ferreira de ALMEIDA. “Religiosidade popular e ermidas”. Studium Generale. Estudos

Contemporâneos (Porto: Centro de Estudos Humanísticos), 6, 1984, pp.78-82.

8 - Como nós pudemos mostrar através dos nossos estudos sobre a vila de Óbidos, sobretudo em Manuela Santos

SILVA. Óbidos Medieval. Estruturas Urbanas e Administração Concelhia. Cascais: Patrimonia, 1997, pp. 35-37.

39

Muitos mosteiros cumpriam funções sociais do mesmo tipo das das igrejas paroquiais. No século XI, por exemplo, eram muito nu-merosos os mosteiros familiares patrocinados pela nobreza de “in-fanções”. A maioria não tinha mais de 3 a 10 monges e um número incerto de devotae. O sustento era-lhes assegurado por dotações em bens materiais feitas pelos fundadores. Em fi nais do século XI qua-se todos tinham trocado as suas regras originais pela de São Bento, adotando os costumes cluniacenses9. (cf.Figura 3) 10.

Mas, no século seguinte, tornou-se mais complicada a manuten-ção de instituições com estas características, tendo muitas ameaça-do falir. As famílias nobres, que os haviam fundado e que os man-tinham, serviam-se agora dos seus recursos quando elas próprias desejavam aumentar os meios económicos com que contemplar os seus membros. Em época de mudança nos hábitos sucessórios, mui-tos foram encaminhados para Ordens Religiosas Militares ou para Mosteiros dedicados à regra de São Bernardo de Claraval implanta-da em Cister11.

E nas maiores cidades - como Coimbra e Lisboa – instala-se uma nova ordem de cónegos, os Regrantes de Santo Agostinho, que pro-põe uma nova fi losofi a de pastoral urbana vivida, porém, sob uma regra em vida comunitária que, em parte, vai infl uenciar a estrutu-ração da vivência dos cónegos catedralícios e dos benefi ciados de muitas igrejas paroquiais, sobretudo em meio citadino. Inseriam--se assim, de forma perfeita, na estrutura administrativa eclesiástica “ofi cial”, compreendendo-se a estranheza, mas também o entusias-

9 - José MATTOSO. Ricos-Homens, infanções e Cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII.

Lisboa: Guimarães & Cª. Editores, 1982, pp. 95-99; IDEM. Identifi cação de um País. Ensaio sobre as origens de

Portugal (1096 - 1325), vol. I – Oposição, pp.198-199; IDEM. “O Monaquismo Ibérico e Cluny”. In: Religião e

Cultura na Idade Média Portuguesa, pp. 62-65.

10 - M. Justino MACIEL. Op.cit., p. 133.

11 - José MATTOSO. Identifi cação de um País, vol. I – Oposição, pp.204-207; IDEM. Ricos-Homens, Infanções e

Cavaleiros, pp. 99-113; IDEM, “Cluny, Crúzios e Cistercienses na Formação de Portugal”. In: Portugal Medieval.

Novas Interpretações. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985, pp. 101-121.

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mo pela novidade, que suscitaram as ordens mendicantes nos seus primeiros contactos quer com as populações das cidades, quer com os níveis mais elevados da sociedade privilegiada12.

CONSTRUÇÃO DE IGREJAS E FUNDAÇÃO DE

PARÓQUIAS COMO INDICADORES DE

CRESCIMENTO POPULACIONAL

O ritmo construtivo de igrejas em determinadas cidades pode

ainda ser indicativo de outros aspectos da realidade social. De facto,

já vimos que a existência de uma instituição religiosa dava enquadra-

mento a quase todas as povoações medievais. Mas a construção de

múltiplas igrejas dentro de um espaço temporal curto só se explica

pelo crescimento populacional entretanto ocorrido. Assim, um sur-

to de edifi cações religiosas funciona como um indicador importante

de uma migração havida para esse local. Não tem, porém, utilidade

para subsequentes alterações demográfi cas13.

A GEOGRAFIA DAS PARÓQUIAS PRIMITIVAS

Seguindo um paradigma instaurado durante os primeiros tem-

pos de difusão do cristianismo, dependente de cada igreja fi cava

uma área territorial de maior ou menor superfície, constituída nor-

malmente por uma vila e diversas aldeias e ainda diversas unidades

agrárias que eram designadas por quintãs e casais. A recolha das

dízimas dos fi éis constituía um recurso económico de importân-

cia e materializava-se também em géneros que contribuíam para o

enchimento dos celeiros, lagares e adegas das igrejas. Apesar de a

monocultura ser escassamente praticada haveria algum interesse em

conseguir criar manchas coesas de património que permitiam al-

cançar uma administração mais efi ciente. Mas não sendo as igrejas,

e consequentemente as paróquias, criadas em simultâneo, como se

dividiriam as áreas jurisdicionais entre elas? O historiador da Uni-

versidade de Coimbra, Saul António Gomes, propôs para a região de

Leiria uma distribuição espacial com base cronológica mas, em área

12 - José MATTOSO. “Cluny, Crúzios e Cistercienses na Formação de Portugal”; “O enquadramento social e

económico das primeiras fundações franciscanas”. In: IDEM. Portugal Medieval. Novas Interpretações. Lisboa:

Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985, pp. 101-121; pp. 329-345; IDEM, Identifi cação de um País, vol. I –

Oposição, p. 204.

13 - Como demonstrou José MATTOSO em relação à cidade de Leiria: “A Cidade de Leiria na História Medieval

de Portugal”. Ler História 4. Lisboa: A Regra do Jogo, Edições, 1985, pp. 3-18.

41

não muito distante – em Óbidos – nós encontrámos uma geogra-

fi a eclesiástica muito fracturada que, ao longo dos tempos, originou

múltiplas e intensas negociações entre igrejas buscando uma maior

coesão para as suas paróquias14.

PARÓQUIA E FREGUESIA –

AS UNIDADES CONSTITUINTES DOS CONCELHOS.

Cada igreja podia administrar diversas capelas, oratórios e eremi-

térios que se integrassem na sua paróquia. Devia nomear para cada

uma delas ofi ciantes que aliviavam os clérigos eclesiais de algumas

das suas tarefas, nomeadamente de algumas missas semanais. Era

raro, porém, que se consentisse a estes capelães o ministério de sa-

cramentos para além, eventualmente, da comunhão.

Já vimos como eram simples as igrejas medievais; imaginemos

como seriam as capelas suas dependentes, em termos de dimensão e

de ornamentação. Dependiam para tudo das igrejas-mãe. Algumas

delas, porém, conseguiram elevar-se estatutariamente, tornando-se

elas próprias igrejas. Na maior parte dos casos tal aconteceu por ra-

zões de natureza político-administrativa e não religiosa.

Apresentamo-vos o caso do Cadaval, concelho criado a partir de

Óbidos em 1371 e que ganhou as suas freguesias administrativas a

partir da elevação a igreja das suas capelas. É que a própria geografi a

administrativa laica se aproveitava das estruturas eclesiásticas para

se moldar. Mas, curiosamente, e neste caso que citámos, a elevação

das quatro capelas à categoria de igrejas não as tornou autónomas

eclesiaticamente das igrejas da vila de Óbidos de que dependiam an-

tes15.

O CONTROLO EXERCIDO PELAS IGREJAS E CLÉRIGOS: A ORGANIZAÇÃO COLEGIAL

A maior parte das igrejas edifi cadas em vilas e cidades possuía uma organização colegial, reproduzindo “à escala das suas proporções o esquema vigente do Cabido catedralício”, como havia notado José

14 - Saul António GOMES. “Organização Paroquial e Jurisdição Eclesiástica no Priorado de Leiria nos séculos

XII a XV”. Lusitânia Sacra, 2ª série, 4, 1992, pp. 163-309; Manuela Santos SILVA. Óbidos e a sua região na Baixa

Idade Média. Lisboa: Dissertação de Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa, 1996, vol. I, pp. 148-158.

15 - Manuela Santos SILVA. O Primeiro Concelho do Cadaval (1371-1496). Câmara Municipal do Cadaval, 2004,

pp. 26-30; IDEM. Óbidos e a sua região na Baixa Idade Média, vol. II, pp. 174-175.

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Marques ao estudar a arquidiocese de Braga16. Assim, cada igreja tinha um corpo de clérigos de número variável presidido por um prior que, como retribuição pelo desempenho de determinadas obrigações, tinha o direito de participar no usufruto das rendas e dos direitos que a sua igreja auferia. Na sua origem, a organização em colegiada das igrejas urbanas também signifi caria certamente que os seus benefi ciados viveriam em comunidade, eventualmente segundo uma regra, dividindo os proventos entre todos17.

Mas não de forma igualitária! Na documentação que até nós che-gou concluímos que o maior dignitário de cada colegiada – o Prior – podia chegar a usufruir de metade dos rendimentos da igreja, a que acresciam por vezes outros direitos não divisíveis18.

Ao invés das rendas da Mesa Prioral, as da Mesa Capitular eram igualmente distribuídas por todos os benefi ciados ou raçoeiros – por-que recebiam uma ração. Em alguns casos, o provento podia não ser signifi cativo. Por isso, com mais frequência do que esperaríamos, encontramos raçoeiros que acumulavam prebendas em diversas igrejas e que, consequentemente, eram contabilizados entre os au-sentes durante as visitações levadas a cabo, com uma periodicidade talvez anual, pelos delegados dos bispos sob cuja jurisdição se en-contravam.

Tal acumulação de funções e proventos era, porém tolerada e até estava prevista nas normas eclesiásticas. Numa das visitações do de-legado do arcebispado de Lisboa à igreja de Santa Maria de Óbidos recomenda-se que “o que for benefi ciado em duas egreias serua em huma somana em huma e outra em outra”19.

Assim era raro que o corpo de qualquer igreja se encontrasse completo mesmo quando os ofícios dos dias santos exigiam que maior número de clérigos se encontrasse ao serviço da comunidade. Alguns ausentavam-se até por razões menos aceitáveis: ao que parece, na igreja de Santiago de Óbidos, deixavam de ofi ciar as missas e de cumprir as suas obrigações canónicas, mesmo aos Domingos e dias de festas religiosas para andarem na caça20. Apesar da condenação moral que lhes foi feita por servirem de mau exemplo aos laicos, os

16 - Cf. José MARQUES. A arquidiocese de Braga no século XV. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,

1988, p. 479 que notou, aliás, as grandes disparidades existentes entre as 22 colegiadas que estudou.

17 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. “Colegiadas”. Dicionário de História Religiosa de Portugal, A – C. Lisboa:

Círculo de Leitores, 2000, p. 400.

18 - Como encontrámos expresso para a Igreja de São Pedro de Óbidos – Manuela Santos SILVA. “Igrejas-Co-

legiadas na Idade Média: uma linha de investigação a ser (pros)seguida”. In: Olhares sobre a História. Estudos

oferecidos a Iria Gonçalves. Lisboa: Caleidoscópio_Edições e Artes Gráfi cas S.A., 2009, p. 583.

19 - A.N.T.T.. Colegiada de Santa Maria de Óbidos, Lº. 1, Visitação de 24 de Fevereiro de 1424.

20 - Isaias da Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos, I (1434 - 1481)”. Lusitania Sacra (Lisboa),

Tomo VIII, 1967/69, I.

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inspectores do arcebispado de Lisboa limitaram-se a exigir que, ao menos, um número mínimo de eclesiásticos se encontrasse presente nessas alturas, pedindo assim ahos clerigos e beneffi çiados da dicta egreja que tem carego de a servir que nom leixem a dicta egreja ahos domingos e festas e vam fora dezer missa, salvo se em a dicta egreja forem tantos clerigos pera offi ciar às ditas missas na dicta egreja em tal modo que aho menos fi quem em ella três pera offi ciar e huu que diga a missa sob a pena de dozentos brancos quada vez que se assy partir21.

Para motivar à assiduidade aos ofícios litúrgicos, os responsáveis pela administração dos recursos das igrejas e pela sua partilha – o prioste ou prebendeiro - usavam incentivos de natureza material como distribuições diárias em géneros aos presentes às horas ca-nónicas, prémios conferidos aos mais assíduos, distribuições suple-mentares em ocasiões especiais, etc.

Nos seus estudos sobre colegiadas, Ana Maria Rodrigues encon-trou um Compromisso fi rmado pelo Prior e pelos Raçoeiros de São Pedro de Torres Vedras que fazia referências directas à obrigação por parte dos raçoeiros de estarem presentes às horas canónicas22. Mar-garida Garcez Ventura, ao trabalhar a documentação da Colegiada de Santo André de Mafra, encontrou, “arrumado entre duas Cartas de Visitação dos fi nais do século XV”, “um assento”, onde o “aponta-dor”, um ofi cial eleito da igreja, “tinha o encargo de apontar as faltas dos benefi ciados de modo a que as rendas podessem ser distribuídas de acordo com a efectiva dedicação de cada um à igreja” 23.

OS OFÍCIOS RELIGIOSOS

A verdade é que, independentemente do número de benefi cia-dos arrolados a cada igreja, a cura das almas, isto é, a administração dos sacramentos e da missa pro popolo aos Domingos e dias de festa podia ser desempenhada quer pelos raçoeiros como colectivo, quer apenas por um deles, quer por um clérigo trazido de fora, a quem o Colégio pagava um salário24. Mais raro, mas possível, era serem os priores a deter essa função25.

21 - IDEM. I (1434-1481), I.

22 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. “As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”. Didaskalia, XV,

1985, p. 376.

23 - Margarida Garcez VENTURA. A Colegiada de Santo André de Mafra (séculos XV-XVIII): transcrição paleo-

gráfi ca do fundo documental e estudo introdutório. Câmara Municipal de Mafra, 2002, p. 8.

24 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. “Colegiadas”, p. 400.

25 - IDEM. “As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”, p. 379; Joaquim Bastos SERRA. A Colegiada

de Santo Estêvão de Alfama nos fi nais da Idade Média: os homens e a gestão da riqueza patrimonial. Cascais:

Patrimonia Historica, 2003, p. 26.

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Não era esse o caso na Colegiada de Santa Maria da Alcáçova de Santarém. Ao estudar essa importante instituição localizada numa das principais localidades do reino de Portugal, Maria de Fátima Botão concluiu que ao prior não estavam atribuídos quaisquer deveres de culto, sendo este cargo, segundo as suas palavras, “virtualmente hono-rífi co” e, em alguns casos, “ser mais um complemento de outros cargos e funções”, não estando sequer obrigado quer a fi xar a sua residência na urbe escalabitana, quer a deveres concretos do foro eclesiástico e económico”26. No entanto, em localidades de menor dimensão e im-portância como em Torres Vedras ou Óbidos os priores deveriam ser “personagens da classe média cujos méritos, próprios ou de parentes zelosos, haviam despertado o interesse e favorecido a proximidade do rei”, o qual decidira recompensá-los concedendo-lhes uma prebenda27. Mesmo assim, em Santa Maria de Óbidos, a função pastoral do Prior reduzia-se a seis dias por ano (“em dia de natal e em dia de epiphanja e em dia de pascoa de Resurreyçom e em dia do penthicoste e em dia do corpo de deus. E em dia da asumpçom de sancta Maria” e o mesmo sucederia em muitas outras igrejas28.

Os ofícios dos defuntos eram outra das ocupações que mais tra-balho dava aos eclesiásticos. Ofícios do dia do soterramento, celebra-ção do oitavo dia do passamento, missa do mês, do ano e, depois dis-so, as chamadas missas de aniversário, tomavam certamente muito tempo aos clérigos como o parecem demonstrar os numerosos livros de aniversário ainda remanescentes para muitas igrejas, se bem que de difícil leitura, em muitos casos, e de ainda mais difícil tratamen-to. Para além destas celebrações com data marcada, tornou-se ainda hábito, todas as segundas-feiras ir sobre as sepulturas com cruz e água benta29. A memória de todos estes falecimentos perduraria de forma diversa: nos casos em que à celebração dos ofícios estivesse adscrita uma renda ou um bem, o registo escrito da doação, o tes-tamento, ou a inscrição no Livro de Aniversários ajudaria a lembrar a obrigação; mas a instituição ligada ao culto dos mortos que tinha mais condições de perdurar era, sem dúvida, a capelania. Contudo, era aquela que poderia funcionar de forma mais autónoma relativa-mente ao conjunto dos membros da Colegiada, pois embora fosse instituída na Igreja e houvesse sempre um conjunto de rendas cres-cente a ela associado, normalmente era administrada por familiares

26 - Maria de Fátima BOTÃO. Poder e Infl uência de uma Igreja Medieval. A Colegiada de Santa Maria de Alcáço-

va de Santarém. Cascais: Patrimonia, 1998, p. 114.

27 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV, p. 385.

28 - A.N.T.T.. Colegiada de Santa Maria de Óbidos, Maço 1, nº. 19A (16 de Janeiro de 1415); Ana Maria S. A.

RODRIGUES. “As colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”, pp. 379-380.

29 - Cf., por exemplo, Ana Maria S. A. RODRIGUES. “As colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”, p. 382.

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do instituidor que nela eram obrigados a investir, e de cujas rendas deveriam pagar a um ou mais capelães que se encarregassem dos ofícios de sufrágio das almas, não esquecendo toda a manutenção da capela, incluindo altares, panos, cortinados, vestes religiosas, can-deias permanentemente acesas, imagens de santos, cálices e outros instrumentos usados no culto, livros, etc30. Se é verdade que muitas vezes os familiares não demoravam em deixar degradar a capela e respectivo culto, também se pode comprovar que quer os benefi cia-dos da colegiada, quer os visitadores do bispado pressionavam os administradores destas capelas a não descuidar as suas obrigações, ameaçando-os com a expropriação dos bens a elas adscritos. De fac-to, para o seu sustento diário, todos estes indivíduos contavam quer com os rendimentos que as igrejas já possuíam, quer com a contínua generosidade dos fi éis que incrementava incessantemente o patri-mónio de cada igreja.

No entanto, a documentação referente às Colegiadas é mais parca em informações sobre o papel assistencial e cultural das igrejas pa-roquiais. Sabemos que o espaço sagrado era inviolável pelas autori-dades civis judiciais, que muitas igrejas possuíam anexas confrarias e albergarias, mas não sabemos a quem cabia o papel de cuidar dos doentes, pobres ou necessitados. O mesmo sucede no que diz res-peito ao seu papel difusor de cultura, mesmo que apenas religiosa. João da Cunha Matos que procurou elementos para o estudo da Co-legiada de São Cristóvão de Coimbra nos Séculos XII e XIII, encon-trou vestígios de uma actividade escolar a nível básico infantil nessa mesma Igreja31. Em outras é possível encontrar vestígios da existên-cia de um Mestre Escola32. Não são difíceis de descobrir os priores com conhecimentos de nível universitário, por vezes concluídos em Universidades de outras regiões da Cristandade. São frequentes, po-rém, os vários Priores e raçoeiros de Santiago de Óbidos e de Santa Maria que durante vários anos receberam admoestações para que aprendessem a cantar33. Mas depois da criação do Estudo de Lisboa,

30- Vejam-se os nossos artigos: Manuela Santos SILVA. “Contribuição para o estudo das oligarquias urbanas

medievais: a instituição de capelas funerárias em Óbidos na Baixa Idade Média” e “Uma prestigiada linhagem

obidense: a de Rui Nunes nos séculos XIV e XV”. In: IDEM. A Região de Óbidos na Época Medieval. Estudos.

Caldas da Rainha: Património Histórico, Grupo de Estudos, 1994, pp. 155-170; 123-154.

31 - João da Cunha MATOS. A Colegiada de São Cristóvão de Coimbra (séculos XII a XIII). Tomar: Trabalho

apresentado a concurso de Provas Públicas para Professor Coordenador, 1998, p. 24.

32 - Isaias da Rosa PEREIRA (Ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1482-1500)”. II. Lusitania Sacra (Lisboa),

tomo IX, 1972, pp. 99 (1493); p. 103 (1495).

33 - A.N.T.T. - Santa Maria de Óbidos, Lº.1: 1451 – Óbidos, 24 de Agosto: “pedre yanes prior de santiago

rraçoeiro da dicta igreia [de Santa Maria] nom sabe ler nem cantar...”; Vasco Vicente, raçoeiro “aprenda logo a

cantar e ha ler...”; 1451 – 23 de Agosto: Vasco Vicente, raçoeiro de santiago “aprenda logo a cantar”; Isaias da

Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1482-1500)”, I. Lusitania Sacra (Lisboa), tomo VIII,

1970, pp. 103-221.

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itinerante durante os séculos seguintes entre esta cidade e Coimbra, as Colegiadas também foram chamadas a participar com avultadas contribuições para o sustento dos Docentes.

Em Santa Maria de Óbidos, alguns inventários das suas existên-cias dão-nos a conhecer os Livros que a Colegiada possuía. Em 1407 conseguimos contabilizar 17 livros, como é óbvio quase todos liga-dos ao culto e à execução dos ofícios religiosos, e ainda dois cha-mados “cadernos de procissões” – um de pergaminho e outro de papel34. Em 1413 os livros nomeados são em número de 15, mas no número dos cadernos é acrescentado “um caderno de missa de Santa Maria”35. Todas estas obras não deveriam, porém, ser de muito prés-timo à maioria dos fi éis, incapazes de ler latim.

O CONTROLO EXERCIDO SOBRE OS FIÉIS

É através dos relatórios de algumas visitações feitas às igrejas paroquiais que nos podemos aperceber do papel de controlo, sobretudo em matérias relativas ao comportamento moral e religioso, que caberia aos membros do clero paroquial36. É certo que a maior parte dos visitadores se deslocavam às igrejas da sua diocese com a intenção de inspeccionar o próprio clero, no seu exemplo diário e no desempenho das suas funções. Também para cuidar da boa manutenção das Igrejas, tanto das sedes de paróquia como das suas dependentes, assim como para vigiar o cumprimento, quer por parte dos administradores respectivos, quer do Prior e dos restantes benefi ciados, das normas impostas pelos instituidores de capelas funerárias que, tendo deixado bens vários para a nomeação de capelães, realização de missas de sufrágio, iluminação ou ornamentação vária, se encontravam muitas vezes descuidadas por culpa quer dos familiares que delas se deviam encarregar quer por desleixo da própria instituição na qual estavam instituídas.

Mas a par destas preocupações internas ao próprio funcionamen-to das igrejas suas dependentes, as visitações serviam para divulgar Constituições Sinodais37 e normas gerais elaboradas pelos bispos e arcebispos que depois, por esta via, chegavam a todos os locais. De uma visitação feita pessoalmente por D. Pedro de Noronha em

34 - A.N.T.T.. Santa Maria, Maço 5, nº.100 (1407 – Óbidos, 30 de Setembro).

35 - IDEM, maço 16, nº. 311 (1451 – Óbidos, 3 de Julho).

36 - O barreganismo, na sociedade laica como na clerical, era uma das preocupações correntes.

37 - Como as que A. C. Borges de FIGUEIREDO encontrou junto com os capítulos de Visitações a São João do

Mocharro (Revista Archaeologica e Histórica. I, 1887) e Isaías da Rosa PEREIRA incluídas no códice contendo as

feitas a Santiago de Óbidos - Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481) I, pp. 103-104.

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Junho de 1446, por exemplo, resultou a publicação de numerosas regras aplicáveis a todas as Igrejas da Diocese38. O arcebispo preo-cupou-se em esclarecer quais os crimes que só ele tinha poder para absolver, em apelar à disponibilidade total dos clérigos para exercer o ofício da confi ssão sempre que um dos crentes manifestasse desejo de o fazer, em propor um comportamento mais cortês aos membros do clero na sua relação com os fi éis, em sugerir que se usasse de um maior cuidado em indagar as situações em causa quando fossem chamados a ministrar sacramentos – quer se tratasse da extrema--unção, do matrimónio ou do baptismo – dando-lhes assim a digni-dade devida, incentivando ainda a um papel pedagógico do clero no ensino das orações e rituais aos leigos.

TODO O ESPAÇO É RELIGIOSO NA IDADE MÉDIA

O adro da igreja era ainda o espaço privilegiado para se localizarem os paços dos tabeliães - tantas vezes chamados pelos clérigos a ofi cializar contratos - e ainda para erguer paços para a vereação do concelho.

Entre Igrejas fazia-se localizar muitas vezes a Judiaria, com a sua Sinagoga incluída, procurando, quem sabe, exercer infl uência cultural e religiosa sobre estes vizinhos, ao mesmo tempo diferentes e tão semelhantes. Pretendia-se, é óbvio, conseguir a sua conversão, mas pretendia-se que esta fosse feita de forma esclarecida e sincera39.

O ritmo dos dias marcava-o o toque dos sinos, necessário para que os eclesiáticos celebrassem os ofícios das horas canónicas, mas que indicavam aos laicos o passar do tempo e lhes davam a conhecer os acontecimentos de maior importância local.

De facto, na Idade Média, todo o espaço vivia sob a infl uência do Sagrado.

38 - Isaias da Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481)”, I, IV, pp. 112-131

39 - Ver conselhos sobre esta matéria em Isaias da Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1434-

1481)”, I, IX, p. 146.

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3- ASPECTOS DA ESPIRITUALIDADE DOMINICANA EM PORTUGAL

NA ÉPOCA MEDIEVAL. NOTAS SOBRE FREI SOEIRO GOMES.

Julieta Araújo*

Dentro do grande movimento reformista que sacudiu a Igreja na Idade Média, vemos o aparecimento de Ordens religiosas imbuídas de um forte espírito de proselitismo. Participando profundamente desta motivação encontrava-se a Ordem de S. Domingos, cuja origem está ligada à Península Ibérica, pois o seu fundador, Frei Domingos de Gusmão, era natural de Calaruega, nas terras de Castela, onde nasceu cerca de 1170. Foi cónego e subprior da igreja diocesana de Osma. Morreu em Itália, no ano de 1221. Originário de uma família muito religiosa, recebeu uma profunda educação cristã. Sua mãe, Joana de Aza, foi beatifi cada, o mesmo merecimento alcançou um seu irmão. Encontrando-se em Osma, foi escolhido para integrar a comitiva do bispo Dom Diogo, participando na enviatura à corte norueguesa, ordenada pelo rei. Esta viagem e uma outra que se lhe seguiu permitiram-lhe contactar com os perniciosos efeitos das heresias que grassavam no sul de França.

Impressionado com a ignorância ligada a este pecado, sentiu a ardente necessidade de participar na pregação da palavra de Deus. O grande entusiasmo pelo apostolado levou-o a associar-se à campanha de missionação promovida pelo papa e pelos seus bispos, e a defender que uma Ordem dedicada ao ensino das verdades da Fé, tão afastadas do conhecimento do povo ignaro, seria a verdadeira solução. Assim nasceu a Ordem de Frades Pregadores, fundada em Tolosa, no ano de 1215. Aceite pelo Papa Inocêncio III, este ordenou que Domingos escolhesse uma das Regras aprovadas pela Igreja, sob a qual vivessem ele e os companheiros que se lhe juntassem, pelo que assentaram designar para sua vivência a Regra de Santo Agostinho1.

Foi a Bula Religiosam viram, de Honório III (1217), que veio a aprovar a Ordem de Frades Pregadores, destinada a erradicar as heresias, uma vez que, segundo o fundador, a pertinácia na negação de algumas verdades da fé católica resultava da ignorância

* Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Investigadora do Centro de História; Academia Portuguesa

de História.

1 - Frei Luís de SOUZA. História de S. Domingos. Introd. e revisão de M. Lopes de ALMEIDA. Porto: Lello &

Irmão Editores, 1977. In: Tesouros da Literatura e da História, vol. I, cap.VII, p. 47.

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dos ensinamentos mais elementares da Igreja. Nos nossos dias, para conhecermos o curriculum de um frade há que pesquisar a documentação não só no seu convento, mas em todos os da sua Ordem, pelo que este tipo de estudo corre o risco de se encontrar quase sempre incompleto.

Realmente, o Frade Pregador era e é mudado frequentemente, por princípio de obediência, e os documentos que atestam a sua vida e obra encontram-se nos diferentes mosteiros dos territórios para onde foi mandatado, conforme atestam as Actas dos Capítulos Provinciais. Assim sendo, só obterá valor pleno uma investigação de conjunto, de modo a abranger todo o núcleo documental de frades e freiras, por onde se possam ir detectando nomes, presenças e actividades dos diferentes religiosos.

Participando do grupo que acompanhou S. Domingos e que depois se espalhou no exercício do seu mister de pregação, encontramos o primeiro dominicano que chegou ao território português, o que ocorreu no Inverno de 1217. Neste mesmo ano, o fundador dividira os companheiros enviando-os pelo mundo, pelo que chegaram a Portugal, na pessoa de D. Frei Soeiro Gomes. 2

Na grande obra sobre a história dos dominicanos, parcialmente elaborada por Frei Luís de Sousa, cronista da mesma Ordem, dá-se grande importância à sua instalação em Portugal, motivo pelo qual devota vários capítulos a Frei Soeiro Gomes.

Em primeiro lugar, ao analisar as fontes de que se serviu, o cronista refere “que os autores antigos, de cujos escritos pola mor parte colhemos, e vamos tecendo esta historia todos sem exceituar nenhum, são estrangeiros de Espanha”, isto é, nasceram fora de Espanha, e por desconhecimento das realidades ibéricas, “são diminutos, e faltos sobre maneira nas cousas que tocão a Espanha” .3

Este e outros motivos, serviriam de justifi cação para a falta de informação sobre a implantação da Ordem em Portugal. Além disso, o facto de muitos Autores tenderem a latinizar os nomes, acabava por corrompê-los e apresenta como exemplo o caso de Frei Soeiro Gomes.

Sabemos que seria companheiro de S. Domingos e que, ao contrário de outros, não tem indicação de nacionalidade, ou seja, «não lhe dão terra nem nascimento”,4 pelo que o cronista procura

2 - V. D. CARRO. Domingo de Guzman. Madrid, 1973; M. H. VICAIRE. Histoire de Saint Dominique. Paris,

1957; Santo Dominigo visto por sus contemporaneos. Madrid: BAC. 1966, tomo 22 (2e ed.); L. SOUZA. História

de S. Domingos. Porto: Lello & Irmão Editores, 1977. Parte I, Liv. I, Cap.1, p. 17; Frei António do ROSÁRIO.

“Primórdios Dominicanos em Portugal”. Bracara Augusta, 1962.

3 - Frei Luís de SOUZA. Op cit, liv.I, cap.IX, p.52.

4 - IDEM, ibidem.

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demonstrar que Frei Soeiro Gomes era de nacionalidade portuguesa. Começa por referir que o nome era comum em terra lusa, mas não era usual em qualquer outro reino da península Ibérica. Afi rma haver registo do seu falecimento no Livro dos Óbitos de S. Vicente de Lisboa. Por exclusão de partes, conclui tratar-se de um português.

Para atestar essa nacionalidade, Frei Luís de Sousa remete ainda para duas escrituras que encontrou na Torre do Tombo. Uma, do rei D. Sancho II e de suas tias, D. Teresa, D. Sancha e D. Branca, tratava da contenda das donatárias, que as infantas haviam travado com o anterior monarca, D. Afonso II. Neste documento encontrava-se aposta a assinatura do Arcebispo de Braga, D. Estêvão Soares da Silva, o prelado mais importante do reino, e, conjuntamente com esta, aparecia a de Frei Soeiro Gomes, o que colocava o frade em posição de evidente importância política nos negócios da política do reino.

A segunda escritura, entre o rei D. Sancho II e o arcebispo de Braga, versava sobre perdas e danos de que aquela igreja pretendia satisfação contra o rei falecido, pai de D. Sancho II. O juiz escolhido para esta questão fora Frei Soeiro Gomes, o que seria prova inequívoca da nacionalidade e valor deste último.

Escreve o cronista: “Donde fi ca claro que não somente era Portuguez, do que já ninguém pode duvidar, mas que também era muito nobre em sangue, e homem de letras.”5

Mais adiante, explica : “ mas se alguem me perguntar porque me afadigo a provar o que ninguem me nega, nem pode negar”, ele, cronista, responderia com duas razões: A primeira porque lhe parecia errado que os diferentes Autores omitissem propositadamente o facto de Frei Soeiro Gomes ser português; e a segunda, porque “ a alma da Historia é a Verdade e a certeza do que se escreve, convém por honra do ofi cio, que indignadamente nos puseram às costas”, ou seja, que precisa de corroborar a verdade “de sorte que fi que livre de todo o escrupulo, não só de duvida, ainda que ninguem nos encontre, nem contradiga.”6

Para reforçar os seus argumentos, o capitulo X, foi intitulado “Confi rma-se a verdade de Frei Sueiro Gomes ser Portuguez: com algumas rezões, com as quaes se descobre que também era nobre e letrado”.7Considera demonstrada, mais uma vez, a veracidade da identifi cação, ao remeter para o Livro de Linhagens Antigas, da autoria do Conde D. Pedro, fi lho d´el- rei D. Dinis.

5 - IDEM, ibidem, p. 57.

6 - IDEM, ibidem, p. 55.

7 - IDEM, ibidem, Liv.I, cap. X, p. 55.

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Frei Soeiro Gomes, aparentemente, não tivera qualquer difi culdade em arranjar companheiros de missão, nem em obter licença dos prelados do reino para pregar nas suas dioceses, especialmente da parte de D. Pedro, bispo de Coimbra, “o qual é de crer se lhe não concedera tão facilmente, se não fora conhecido por natural em lingoa, e nome”.8 E acrescenta que, em pouco tempo, já o frade tinha seguidores para povoar os seus conventos e dar cumprimento à missão.

A situação política que encontrou não era boa. O rei D. Afonso II envolvera-se em disputas com as irmãs. Fora o caso que seu pai, D. Sancho I, ao falecer, repartira terras, vilas, castelos, dinheiro, ouro e prata lavrada pelas suas três fi lhas, as infantas Tareja, Sancha e Branca. Sentindo-se lesado, D. Sancho procurou apoderar-se das terras, pegando em armas contra as irmãs. Alvoroçou-se o reino. De Roma choviam interditos e excomunhões, que atingiam o monarca, seus conselheiros e ministros, pelas acusações de roubos e delapidação do património eclesiástico. Sobre todo o reino pusera o papa um interdito, pelo que, escreve o cronista, encontrava-se Portugal semelhante aos Mouros, seus vizinhos “em não ter Missa, nem offi cio Divino, nem som de sinos, ou outra solenidade eclesiástica (infelice e calamitoso estado)”, que, segundo o Manual de Inquisidores, poderia levar à desagregação do Estado.9

Foi então que a misericórdia divina permitiu a chegada do “embaixador da nova Religião, D. Frei Soeiro Gomes”.10 Começou este por dar as boas novas ao povo, que via entristecido por tanta igreja fechada e pelo silêncio que pesava como chumbo.

E a maior alegria era falar-lhes dos grandes bens que alcançariam por intermédio do Santo Rosário da Virgem puríssima, “recontando os maravilhosos eff eitos que por elle vira na guerra dos Albigenses”.11Uma vez obtida a protecção da infanta D. Sancha, ordenou esta que se erguesse nas suas terras um convento da nova Ordem. Como era o único frade que falava português teve mais facilidade em transmitir a mensagem que o movia. Os seus companheiros, devido às difi culdades resultantes do desconhecimento da língua, resolveram partir para outros lugares onde o seu esforço alcançasse maior fruto.

8 - IDEM, ibidem, Liv.I, cap. X, p. 56.

9 - Na resposta à questão “Si los súbditus estan desligados del débito de fi delidad cuando los señores temporales han

caído bajo las cadenas de la heresia”, o Manual de Frei Nicolas Eymeric, O.P., respondia afi rmativamente. Fray

Nicolás EYMERIC. Directorium Inquisitorvm. Traducción, selección y introducción de José Antonio FORTEA.

Madrid: La Esfera de los Libros, 2006, p. 95.

10 - Frei Luís de SOUZA. Op..cit., liv.I, cap. XI, pp. 59-60.

11 - Frei Luís de SOUZA. Op..cit., Liv.I, cap. XI, p.61.

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Com o desenvolvimento apostólico, a luta contra o pecado passou a ter em conta o sentir das autoridades civis, ordenando alguns Capítulos Provínciais das áreas de difusão castelhana que os religiosos não predicassem contra os vícios e defeitos desses dirigentes.12

Frei Luís de Sousa, procura demonstrar que Frei Soeiro Gomes teria origem nobre a argumenta que nas escrituras, é designado com o título honorífi co de Dom, contra o que era habitual usar-se para indicar os frades, mesmo os gerais, acrescenta exemplos dessa nomeação praticada pelo rei D. Fernando de Castela e pelo bispo de Coimbra, como acontece nas licenças obtidas para pregar e outras escrituras de compromisso, assinadas perante o rei de Portugal, pelo que seria de concluir que se tratava de um membro de família nobre.

Quanto às suas habilitações literárias refere “ e como em cousas tão antigas, e faltas de luz de historia, he forçado governar por conjeituras”, justifi ca considerar que Frei Soeiro Gomes seria letrado, uma vez que, se São Domingos o enviara para a península como prelado dos restantes companheiros, sendo alguns deles bons letrados, e tendo dirigido para Paris Frei Mateus, também letrado, “bem se segue que não mandaria a sua Patria homem idiota”13.

Entrara, pois, D. Frei Soeiro Gomes em Portugal, num Inverno frio, e triste, tornando-se testemunha e personagem de uma época conturbada da nossa história. Mas outros se lhe seguiram. A sua fama de santo chega a Roma e começam a surgir os milagres, pois afi rmava-se que o frade, a exemplo de Cristo, ressuscitava os mortos. Deste odor de santidade benefi ciaram também os conventos, uma vez que ocorreram pedidos e autorizações para que se ergam outras casas da mesma Ordem.14

Refere Frei António do Rosário que “ na verdade, esta presença missionária dominicana portuguesa remonta à sua chegada à Peninsula, 1217 ( ...). Logo foram impulsionados pelos dois portugueses primeiros provinciais de toda a Península, D. Frei Soeiro Gomes e S. Frei Gil de Santarém, promovendo escolas das línguas árabes e hebraica para a pregação no Sul de Espanha e Norte de África”15.

O primeiro convento, conforme referimos, terá sido fundado por Frei Soeiro Gomes na “serra de Montejunto, perto de Alenquer, sob os auspícios da Infanta D. Sancha (...). Pouco depois outra infanta, irmã

12 - Frei Pablo FERNANDEZ, O.P.. Dominicos donde nace o sol. Barcelona, 1958, p. 156.

13 - IDEM, ibidem, pp. 58-59.

14 - Frei Luís de SOUZA. Op..cit., liv. I, cap XII a XIV, pp. 59 a 82.

15 - Frei António do ROSÁRIO. “Dominicanos no episcopológio dos descobrimentos”. Separata da Revista da

Universidade de Coimbra, Coimbra, vol. XXXVI, 1991, p. 356.

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daquela, e que vivia junto a Coimbra, chamou Frei Soeiro Gomes e se lhe ofereceu para edifi car um mosteiro naquela cidade 16 “ .

Uma vez estabelecidos os Pregadores em Portugal os conventos começaram a surgir e os religiosos receberam várias bulas, por exemplo, de Inocêncio IV, a 17 de Agosto de 1245, que concede a bula Grandi non immerito para defesa e sustento dos conventos. A questão do sustento era controversa, pois levava a queixas e reclamações por parte de outras entidades religiosos e laicas17. Referimo-nos às bulas Non dine multa aos bispos e à Necessitatibus vestris, o papa Alexandre IV. O mesmo problema é referido quanto à Colegiada de Guimarães no início do séc. XV 18.

O convento de Santarém foi receptáculo de várias bulas como a Curriad promerend de Novembro do mesmo ano. Um dos nomes que se destaca é o de Frei Gil, Provincial por incentivar a pregação aos Mouros, como ocorria noutras partes da península.

Parece-nos que este aspecto marca a acção futura da Ordem Dominicana na epopeia portuguesa dos Descobrimentos. Este convento manteve sempre, ao longo do século XV, entre seis a dez frades, pelo que terá sido uma presença activa.

Seguindo o exemplo dos primeiros religiosos, o ideal dos Pregadores depressa se espalhou pelo reino Lusitano e seguiu para além –mar. Foi neste ambiente, nestes conventos, que se criaram os homens e as competências que permitiram o aparecimento dos missionários nos descobrimentos.

Uma dessas casas foi o Convento do Porto, sobre o qual frei António do Rosário fez uma pesquisa extensiva através dos documentos que se lhes referem. No seu trabalho investiga os anos de 1472 a 1544, utilizando o núcleo de pergaminhos conservados no Arquivo Distrital do Porto, nº26. 19 O antigo convento ergueu-se desde o longínquo ano de 1238. A casa do Porto não teve, ao que parece, uma infl uência preponderante, mas talvez tal aconteça apenas por se saber muito pouco acerca da história de vida dos seus frades. Pouco conhecemos sobre o quotidiano de estudo e de refl exão destes religiosos.

16 - Fortunato de ALMEIDA. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense Editora, vol. 1, p.139.

17 - Em 1257 Alexandre IV, envia a Non dine multa. A de Alexandre IV é de 5 de Agosto de 1257, para o prior e

frades da Ordem de Pregadores de Santarém, autorizava-os a que pudessem receber dinheiro em casos especifi cos.

18 - Ver Julieta ARAÚJO. Os Dominicanos na expansão portuguesa. Lisboa: Faculdade de Letras de Lisboa;

Ed.Colibri, 2009.

19 - Frei António do ROSÁRIO. “Frades do convento de São Domingos do Porto ao Dealbar da Época Moderna”.

Separata da Revista de História , Porto, vol.II, p. 5.

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Como refere frei António do Rosário “O Episcopológio do Ultramar Português é tido como assombroso por diversos títulos: pelo número de dioceses, base do apostolado missionário; pela extensão dos territórios da missão; pelo saldo altamente positivo de toda essa epopeia de levar a Fé a tantos povos e terras; e ainda, Episcopológio assombroso pelo bom número de nomes grados, que se conhecem, embora não tão poucos se quedem para sempre sepultos no mais fundo das “águas salsas” de naufrágios vários” 20.

Mas, por vezes, há referências na documentação a alguns frades por motivos menos nobres, pois nem todos conseguiam ter um comportamento exemplar, principalmente pelo grau de exigência que lhes era imposto, tanto a nível intelectual como ético. Por vezes o estudo destes religiosos faz esquecer o seu estatuto de humanos, com todas as fragilidades que tal inclui ( ver apêndice documental).

O grau de exigência encontra-se ligado às responsabilidades e ao poder que lhes eram conferidos, pois muitos foram os serviços prestados pelos Pregadores à Coroa portuguesa, sendo por isso recompensados.

A missionação, constituindo parte da política dos reis de Portugal desde a tomada de Ceuta, estava englobada numa acção integral que incluía aspectos económicos, militares, políticos e comerciais, entre outros. É nesta politica visionária que devemos enquadrar a conquista de Ceuta por D. João I. Assim, “ a missionação portuguesa veio a estabalecer-se e progredirá através da diocese. Mais: através da diocese à europeia. Signifi ca isto dioceses com território delimitado, com sés e cabidos; com bispos, cónegos e clérigos, que o Padroeiro, o Rei de Portugal, como Mestre da Ordem de Cristo, apresentava e cuja nomeação pedia ao papa.”21

As bulas sucederam-se, satisfazendo os desejos do rei de Portugal que, por sua vez, era um novo cruzado, batalhando pela Fé de Cristo . Entre os anos de 1418, data da criação da diocese de Ceuta e das nomeações de religiosos para elevadas dignidades da hierarquia local da Igreja, e o ano de 1436, em que algumas dessas designações ainda tiveram lugar, seguiram-se concessões extraordinárias por parte do Sumo Pontífi ce para os novos bispados. Na bula Romanus Pontifex, de 15 de Setembro de 1436, apesar da rivalidade que separava Portugueses e Castelhanos em relação à posse das Canárias, o Papa Eugénio IV concedeu ao Rei D. Duarte que pudesse conquistar as ilhas que não estivessem na posse de monarcas cristãos. A razão apontada

20 - IDEM. “Dominicanos no Episcopológio dos Descobrimentos”. Separata da Revista da Universidade de Coim-

bra, Coimbra, vol. XXXVI, 1991, p. 355.

21 - IDEM, ibidem, p. 356.

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terá sido a premência da conversão à fé cristã dos seus naturais. A resolução da disputa, que chegou a ser presente ao Concílio de Basileia (1435), fez-se pelo tratado de paz de 1480, que reservou a posse das Ilhas Canárias para Castela e a expansão para sul a Portugal. A partir de 1419-20, o descobrimento dos arquipélagos atlânticos, seguido da sua colonização, conduziram à existência de um número crescente de colonos, entre os quais alguns religiosos, que se foram instalando nas terras recém-descobertas, buscando o horizonte para além dos limites daqueles arquipélagos. É possível que a antevisão de novas terras, que eram apenas manchas conjecturadas na distância, alimentasse esse sonho. Contudo, tais informações, cedidas, ao que parece, por Pietro di Velasco, piloto de Diogo de Teive, que terá partido da ilha do Faial pelo ano de 1452 e rumara a Sudoeste, em busca da Antilha, terão originado as notas de Fernando Colombo. Estas, retiradas dos papéis de seu pai, o Almirante ao serviço de Fernando e Isabel, os Reis Católicos, serviriam, juntamente com as navegações já encetadas por Portugueses e Castelhanos, não só de motivação para a procura de vestígios de terras colocadas para além dos horizontes de lendas e de brumas, mas também, de esperança para a descoberta de um novo caminho das Índias , que fosse alternativa do já atribuído a Portugal…

APÊNDICE DOCUMENTAL

“Dom Afomso etc. A todollos juizes justiças dos nosos regnos a que esta nosa carta for mostrada saude. Sabede que Branca da Rosa molher de Joham Nunez nos enviou dizer que poderia ora aver quatro anos e mais que em a nosa cidade de Lixboa fora morto huum frei Joham da Cerredeyra frade de Sam Domingos o quall matara huum Lourenço Aires çapateiro porquanto ho achara de noute as desoras com sua molher de (?) em sua casa a quall sua molher elle mesmo matara pella quall razam foy tirada inquiriçom per bem da quall inquiriçom ella fora presa em semdo moça solteira huuns quatro dias e esto somente per dicto testemunho de huua Costança Piriz lavradeira e outras pesoas que lhe nom falavam e lhe queriam grande mall as quaees testemunharam em a dicta devasa que (apagado) ella que a dicta estevera casada consentia em sa casa o dicto frade fala e dormir(?) com (?) carnallmente e visto todo pellos juizes do cryme a julgarom por solta e a mandaram soltar e nom fora apelada por parte de justiça e ella nom fora (?) asy dello sua semtença e em sendo ella asy solta (?) ponha e semdo ja casada e vivendo bem honestamente com o dicto marydo os nosos desembargadores per bem da dicta emgraçom

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mandaram prender (Folha manchada na margem) vez por quanto nom mostrara em como desto ja fora livre e por parte da justiça se pro... per feicto contra elle tanto que o feicto fora concluso o qual visto per elles em rolaçom com o testemunho ... testemunhas somente julgarom per sentença que ella fose degradada da dicta cidade e seu ...(termo) licença de livramento que dello ouvera a quall semtença fora dada a treze dias do mes de Janeiro deste presente anno de IIIIc LXVIII em a quall cousa diziam que era muyto agravada e desomrrada por ... taaes testemunhas nom devera de seer condenada e fora feicta ella enxecuçam e des o dicto ... podyam manteer duas casas nos pedia por merçe e a onra da morte e paixom de Noso Senhor Jhesus Chrispto que lhe perdoasemos a nosa justiça e lhe levantasemos o dicto degredo que lhe fora posto e a ouvesemos por relevada dele e nos vendo o que nos asy dizer e pedir enviou se asi he como diz e hy maas nom ha vista a sentença do livramento que dello ouve que perante nos enviou e querendo lhe fazer graça e merce a onrra da <dicta> morte e paixom de Noso Senhor Jheus Chrispto temos por bem e perdoamos lhe a nosa justiça e avemos por relevada do dicto degredo contanto que ella pagase mill e quinhentos reais per a piedade e por ... lloguo os dictos dinheiros os entregou a frey Gil noso esmoller a que teemos dado carego de os receber segundo dello fomos certo per seu asinado vos mandamos que daquy endiante a nom prendaes nem mandes prender nem façaees nem consentaes ser feicto mall nem alguum desaguisado canto he por ella nom conprir e manteer o dicto degredo de que lhe asy foy posto que nosa merçe e vomtade he de asy avermos per relevada delle pella guisa que dicto e queremos que o nom serva mais e al nom façades. Dada em a nosa villa de Santarem XX dias d’Abryll. El Rey o mandou per os doutores Pero da Silva e Joham Teixeira ambos do seu desenbargo e petiçooes. Fernam Gonçallvez a fez. Anno de mil IIIIc LXVIII.”.

(A. N./T.T.. Chancelaria de D. Afonso V , fl .18vº)

MODELOS RELIGIOSOS E SABERES

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4- O PARADIGMA RELIGIOSO E SOCIAL DA MORTE DOS SANTOS. DA ALTA

IDADE MÉDIA A UNDECENTOS.

Maria Helena da Cruz Coelho*

A vida dos santos, únicos mortos a quem é permitido prestar um culto, vai possibilitar à Igreja impor um modelo de comportamento e uma forma de vida exemplar, dignos de imitação e louvor. A sua morte assumir-se-á, assim, como um paradigma, um exemplo que deixa de ser heróico para poder ser vivido pelo povo cristão1. Mas ainda que os santos se apresentem sempre como fi éis seguidores e imitadores de Cristo e respeitadores dos ensinamentos cristãos, a sua santidade contextualiza-se, temporal e espacialmente, de acordo com as variações desta esfera do divino. Pois que se um santo é, antes de mais, “um homem extraordinário habitado por Deus”, apresenta-se, em consentâneo “como resposta às necessidades espirituais de uma geração” e não menos se assume como “a ilustração eminente das ideias que os cristãos de uma determinada época fazem da santidade”2.

Assim se evoluirá do inicial culto dos mártires para o culto dos bispos no Ocidente e dos ascetas no Oriente, dedicados à oração e contemplação, passando-se, então, num tempo de implantação monástica e monárquica, ao culto dos monges e dos reis, em todos estes se aliando, no geral, à proveniência aristocrática a perfeição moral e religiosa, na sacralização do nascimento, autoridade e riqueza3. Mas do modelo de santidade assente na contemplação do mistério divino se caminhará para um modelo de santidade que se fundamenta na imitação de Cristo, no quadro do quotidiano terreno. O santo transmuta-se, então, em exemplo de renúncia, humildade, pobreza, privação e sofrimento, na esteira de S. Francisco. Para depois se apresentarem como modelos, num outro passo de renovação das formas de religiosidade, os profetas místicos e pregadores.

* Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cul-

tura; Academia Portuguesa de História.

1 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints. La scène de la mort dans les Vitae du Haut Moyen Âge”. Le

Moyen Âge. Revue d’Histoire et de Philologie, t. XCIV (5ª série, t. 2), n. 1, Bruxelles, 1988, p. 21.

2 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge d’après les procés de canonisa-

tion et les documents hagiographiques. 2ª ed.. Roma: École Française de Rome, 1988, p. 8.

3 - André VAUCHEZ. “O Santo”. In: Jacques LE GOFF (dir). O Homem Medieval, trad. port.. Lisboa: Editorial

Presença, 1989, pp. 211-230.

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Espectro de santidade e de santos, totalmente diferentes ou extraordinariamente próximos do homem4. Todavia, nunca se dissocia completamente do santo, que atinge o cume da perfeição, um certo grau de distância, de excepcional, de extraordinário. Como se a hagiografi a da santidade imitável, que se desenvolve nos séculos XII e XIII, exigisse também o paradigma da santidade admirável, sem renúncia ao maravilhoso que é “a transposição para o registo literário do halo de prestígio sobrenatural que, na Idade Média, atingia todo o homem que tinha um destino fora do comum”5.

Percorreremos essencialmente o modelo da morte admirável entre os inícios da Idade Média e a centúria de Undecentos.

MÁRTIRES

Os mártires foram durante muito tempo os primeiros e únicos santos dos cristãos. Mas, apesar de certas analogias pontuais, os mártires nada têm de comum com os heróis gregos e romanos. A morte, na Antiguidade, era uma fronteira entre homens e deuses. Para os cristãos, os mártires morrem como seres humanos, por causa da sua fi delidade à mensagem de Cristo, e é graças a esse sacrifício que ascendem à vida eterna6. “O santo é um homem através do qual se estabelece um contacto entre o céu e a terra” e o dia da sua morte (dies natalis) “comemora o seu nascimentos ao lado de Deus” 7.

A santidade dos mártires, publicamente manifestada pela sua morte e perseverança na fé, foi de pronto sancionada, sob o fundamento da vox populi, vox Dei, pelas igrejas às quais pertenciam8. Os primeiros exemplos de hagiografi a medieval em território português são exactamente lendas de mártires locais. Assim os santos mártires Veríssimo, Júlia e Máximo, mártires de Lisboa, Vicente, Sabina e Cristeta de Évora, S. Vítor de Braga e Santa Iria de Santarém, todos eles enquadrados na contextualização de tempos romanos. Mas se o seu culto é antigo, já os textos hagiográfi cos que se conhecem entre nós são bastante tardios, ainda que a vida de alguns se encontre no Passionáro hispânico do século XI9.

4 - André VAUCHEZ. Saints, prophètes et visionnaires. Le pouvoir surnaturel au Moyen Âge. Paris: Albin Michel,

1999, p. 19.

5 - André VAUCHEZ. “Saints admirables et saints imitables: les fonctions de l’hagiographie ont-elles changé

aux derniers siècles du Moyen Âge?”. In: Les fonctions des saints dans le monde occidentale (III-XIII siècle). Roma:

École Française de Rome, 1991, p. 172.

6 - Gerhild Scholz WILLIAMS. “A morte como texto e signo na literatura da Idade Média”. In: Herman BRAET;

Werner VERBEKE (eds). A Morte na Idade Média, trad. bras.. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 132.

7 - André VAUCHEZ. “O Santo”, p. 212.

8 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident..., p. 15.

9 - Giulia LANCIANI; Giuseppe TAVANI (coords). Dicionário de Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lis-

boa: Editorial Caminho, 1993, s. v. Hagiografi a.

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S. Veríssimo e suas irmãs, como também S. Victor, são confes-sores da fé em Cristo. Negam-se a adorar ídolos de “pedra e paos” e a prestarem-lhes culto. Proclamam um Deus e abjuram os deuses. “Confessando o nome do Senhor”, desejam padecer e morrer “com seus tormentos por amor de Jhesu Cristo”, como seus servidores e soldados, para se tornarem exemplo. S. Vicente e suas irmãs enquadram-se no clima de perseguições aos cristãos. Chegam mesmo a fugir para escaparem à ira persecutória de um imperador, mas, apanhados, conhecerão a morte. Se todos sofrem o martírio, na primeira situação ele apresenta-se desde logo como uma oferta, enquanto na segunda se manifesta como uma consequência de que os cristãos são vítimas, embora, em qualquer dos casos, as mortes sejam voluntárias e livremente aceites. Como denominador comum a proclamação ou vivência de uma crença monoteísta, o que, em tempos de politeismo, acarretaria a punição com tormentos e a morte violenta.

S. Veríssimo e suas irmãs serão encarcerados, sofrerão as agruras do acúleo e da “aspa tornadiça” (cruz em forma de x, em que os corpos eram esticados), para depois conhecerem o açoitamento com varas de espinhos e os pentes de ferro a rasgarem-lhes os corpos e as entranhas. Mais publicamente serão atados, arrastados pela cidade e apedrejados, isto segundo Ho Flos Sanctorum, embora os tormentos ainda mais se acrescentem noutras versões da sua hagiografi a10. Por fi m serão degolados e os seus corpos, atados a pedras, lançados ao mar.

S. Vitor, depois de sofrer penas que se expõem menos desen-volvidamente, acabará também degolado. S. Vicente e suas irmãs, após açoitamento e as dores do acúleo, serão mortos por tanto lhes baterem na cabeça.

Todo este desfi ar de castigos parece enfatizar a prisão carnal, que o corpo representa, para mais valorar a libertação da alma que, pela morte desse corpo, se alcança. Mas, no caso dos santos, a glorifi cação da alma não implica uma negação do corpo morto, ao qual era mesmo permitido prestar culto. Os pagãos bem o sabiam. Logo, para evitar o culto dos cristãos após a morte dos mártires de Lisboa, fazem desaparecer os seus corpos no mar e, no caso dos mártires de Évora, deixam-nos no monte para serem devorados pelas feras, interditando o seu enterramento com honra. Mas é aqui que se faz intervir o milagre. O mar devolve, quase de imediato, os corpos dos mártires lisboetas, que os cristãos enterram com toda a dignidade.

10 - Mário MARTINS. “A legenda dos santos mártires Veríssimo, Máxima e Justa, do cód. CV/1-23 d., da biblio-

teca de Évora”. Revista Portuguesa de História, t. VI, vol. I, Coimbra, 1955, pp. 45-93.

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Já os corpos dos mártires eborenses são mais misteriosamente guardados por uma serpente e depois sepultados numa igreja erguida em sua honra, em circunstâncias especiais, por um judeu. Evidencia-se, pois, um cuidado com o corpo dos mártires que, por intervenção sobrenatural, é preservado de qualquer profanação até ser devidamente sepultado.

A vida de Santa Iria oferece-se como paradigmática do martírio pela defesa da virgindade e consagração a Deus. Por ter negado um pretendente e ter fugido às insídias luxuriosas de um monge, instigado pelo demónio, será enganada, sofrendo infâmia na sua honra, e acabará mesmo por ser assassinada com um cutelo na garganta. O martírio advém aqui da perseverança numa virtude, a da castidade, que é também vitória na luta contra o demónio. Outras santas, em contexto eremítico oriental, evitaram este pecado fugindo para o deserto, como Santa Maria Egipcíaca11. Depois de revelada a santidade de Iria, ao seu tio abade, por mensagem divina, e encontrado o seu corpo pelo prodígio sobrenatural das águas se afastarem para o mostrar enxuto aos devotos, que lhe fi zeram ofício e vigílias, as relíquias dos seus cabelos e roupas serão intermediárias do seu poder miraculoso.

Esta morte violenta dos mártires, com efusão de sangue, símbolo da impiedade mas também da purifi cação, seria, depois de consolidado o cristianismo, mais uma morte de carácter público para admirar e venerar, reproduzindo-se no martírio a morte voluntária de Cristo, do que um modelo para seguirem individualmente, salvo em caso limite. Todavia, a sua perseverança na fé a na virtude eram parâmetros comportamentais que os cristãos deviam imitar e estavam ao alcance de qualquer um12.

A hagiografi a destes mártires portugueses é similar à dos demais mártires hispânicos, que Ariel Guiance13 estuda, e que, na sua variedade de casos, permite um mais amplo quadro referencial e interpretativo. Algumas páginas14 dedica aos mártires cristãos no contexto muçulmano, à luz das obras de Eulógio de Córdova, ele próprio também um mártir. O modelo seguido por este autor é o

11 - Cristina Maria Matias SOBRAL. Santa Maria Egipcíaca de Alcobaça: edição crítica das versões medievais

portuguesas da lenda de Maria Egipcíaca. Lisboa: Faculdade de Letras, 1991 (policopiada).

12 - Paul Albert FÉVRIER. “Martyre et sainteté”. In: Les fonctions des saints dans le monde occidental (III-XIII

siècle). Roma: École Française de Rome, 1991, pp. 51-80. Como já foi demonstrado, o culto dos mártires roma-

nos estava difundido em Portugal no século X, como o comprova a carta de doação ao mosteiro de Guimarães

por Mumadona Dias (Maria de Lurdes ROSA. “A religião no século: vivências e devoções dos leigos”. In: Ana

Maria C. M. JORGE; Ana Maria S. A. RODRIGUES (dirs). História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de

Leitores, 2000, vol. I, Formação e Limites da Cristandade, pp. 427-428).

13 - Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la Muerte en la Castilla Medieval (Siglos VII-XV). Valladolid: Junta de

Castilla y Léon. Consejería de Educación y Cultura, 1998, pp. 95-102.

14 - Ibidem, pp. 102-108.

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dos mártires de tempos romanos, mas era inevitável fazer algumas adaptações ao novo cenário. Assim, pela proximidade dos relatos em relação à ocorrência das mortes, os milagres não tinham lugar, sendo pois de demonstrar que os mesmos não eram imprescindíveis à santidade. Mais era necessário justifi car o martírio às mãos de homens não pagãos, apresentando-se então este acto como uma entrega pessoal dos cristãos aos muçulmanos, uma “busca violenta de Cristo”, quase um suicídio sagrado. Morrem, então, pela fé, maldizendo Maomé e amaldiçoando os muçulmanos. O sobrenatural, tal como nas narrações dos mártires romanos, também se manifesta, quer em profecias de desgraça que o mártir pronuncia antes de morrer, quer no anúncio ou presságio que alguns tinham da sua morte próxima e, fi nalmente, na milagrosa preservação dos seus corpos que lhes permitia uma sepultura condigna15.

Em suma, por dentro das tensões e resistências que representaram a difusão do cristianismo no mundo pagão e o choque da submissão dos cristãos aos muçulmanos, estas mortes violentas exaltavam um modelo de perseverança na fé, além de, em último caso, encarnarem um enfrentamento face ao invasor, que, sob o domínio muçulmano, respondia a um desejo social de sair da opressão, até fi scal e cultural, que aquele impunha.

Numa linha de continuidade mais ampla, os mártires da fé em tempos romanos prolongaram-se no martírio de muitos cristãos submetidos aos muçulmanos e mesmo no de todos os guerreiros, os cruzados que derramaram o seu sangue para impor a fé de Cristo e destruir os infi éis, numa sacralização do movimento da Reconquista.

Mas noutros enquadramentos de maior acalmia, o santo não tinha que se assimilar ao mártir, mas podia oferecer um paradigma de morte natural. Morria, então, como um bom cristão, fi el e respeitador das normas religiosas, o que se tornava um modelo mais próximo e acessível do comum dos mortais. Atente-se, porém, que o interesse pela vida dos mártires continua nos séculos da Idade Média plena e mesmo fi nal. Era ainda o fascínio pelo heroísmo do seu testemunho e comportamento, pela invulgaridade da sua experiência, pela vitória fora de comum de um ser humano, que redimensionava a humanidade16.

15 - Sobre a difusão dos santos mártires hispânicos e moçárabes, veja-se Saul António GOMES. “A religião dos

clérigos: vivências espirituais, elaboração doutrinal e transmissão cultural”. In: História Religiosa de Portugal, vol.

I, pp. 342-345.

16 - André VAUCHEZ. “Saints admirables et saints imitables...”, pp. 170-171; Olegario González de CARDEDAL.

“Heroísmo y santidad”. Revista de Occidente, 46, Extraordinário III, Marzo 1985, pp. 75-110.

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A MORTE DOS SANTOS EM TEMPOS VISIGÓTICOS

Mas, por norma, o quadro da morte está relacionado com o modelo de santidade de uma época, ainda que desde tempos altomedievais se defi na uma espécie de “protótipo ideal” de morte, que se prolonga até, pelo menos, ao século XIII17. Após a fragmentação do Império Romano, em unidades regionais e locais, o modelo de santidade é deslocado dos mártires e confessores para os bispos, esses “defensores civitatis” por excelência dos séculos V a VII18, ainda que na Península Ibérica a acção de tais prelados muito se interpenetre com a vida monástica.

Para o período visigótico, e especifi camente para o território português, conhece-se a Vida de S. Frutuoso, bispo de Braga no século VII, escrita por autor anónimo em torno de 670-68019. A Vida apresenta uma estrutura biográfi ca de intenção panegírica, visando a promoção do culto do santo no seu santuário bracarense. S. Frutuoso, descendente da família real visigótica, empenhou-se na fundação de vários mosteiros na Galiza, sobretudo na região de Bierzo, e no Sudoeste da Andaluzia. Depois de viver algum tempo como eremita, ascendeu a bispo da Sé de Braga, que acumulou com Dume, fundando também no espaço bracarense o mosteiro de S. Salvador de Montelhos, para vir a acabar os seus dias por volta de 665. A sua Vida apresenta-o como um “modelo de santo monaquismo”, o que tem paralelo noutras Vidas escritas posteriormente como, entre outras, a de S. Rosendo20, também bispo e monge, e a de Santa Senhorinha, modelo de virgem consagrada a Deus na vida monástica, não sendo

17 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, pp. 21-50. Sobre o enquadramento conciliar e litúrgico

dos rituais e culto dos mortos nesta época, leia-se Maria do Rosário BASTOS. “Testemunhos hispânicos sobre o

mundo dos mortos nos séculos IV a VIII” e José MATTOSO. “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos

VI a XI)». In: O reino dos mortos na Idade Média penisular. Lisboa: Edições Sá da Costa, 1996, respectivamente

pp. 45-54, 55-74.

18 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident, p. 19.

19 - La Vida de San Fructuoso de Braga. Estudio y edición crítica de Manuel C. DIAZ Y DIAZ. Braga, 1974. A

mais completa edição crítica e estudo da Regra de S. Frutuoso e afi ns deve-se a Paula Barata DIAS. Os Textos

Monásticos de Ambinete Frutusiano (séc. VII). 2 vols.. Coimbra: Fundação Mariana Seixas, 2008. Sobre o

monaquismo visigótico veja-se Ana Maria C. M. JORGE. “A vida monástica na Hispânia durante a Antiguidade

Tardia”. In: História Religiosa de Portugal, I, pp. 203-206. Já depois de escrito o nosso texto publicou-se o estudo de

Maria de Lurdes ROSA. “A santidade no Portugal medieval: narrativas e trajectos de vida”. In: Santos e demónios

no Portugal medieval. Porto: Fio da Palavra, 2010, pp. 20-23, que aborda a tradição visigótica e moçárabe da

santidade, referindo-se a S. Martinho de Dume, S. Frutuoso e S. Rosendo.

20 - Vida e Milagres de São Rosendo. Texto latino, com tradução, prefácio e notas de Maria Helena da Rocha

PEREIRA. Porto: Junta Distrital, 1970. Uma nova edição da mesma autora saiu na obra de Maria Helena da

Rocha PEREIRA; Francisco Carvalho CORREIA; Álvaro de Brito MOREIRA. Rudesindus. Pastor egrégio, monge

piedoso, defensor do solo pátrio. Santo Tirso: Câmara Municipal, 2010, pp. 11-97.

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menos de evidenciar a associação da prelazia ao monacato que, ao tempo, era comum na literatura hagiográfi ca21. Mais confl ui nesta específi ca tipologia a de “santos condais”, uma vez que muitos deles são membros das famílias padroeiras de mosteiros e igrejas.

A descrição da morte destes e de outros santos apresenta algumas características comuns, até porque as hagiografi as do período preferem a tipifi cação à individualização, de molde a proporem o modelo da morte ideal do cristão22. Desde logo, os santos conhecem antecipadamente a sua morte, seja por mensagem celestial, revelação divina ou simples pressentimento. Esse anúncio envolve um duplo objectivo, demonstrando tanto o “valor moral” do eleito como permitindo-lhe a devida preparação pessoal e social do passamento. Justamente S. Frutuoso soube, com muito tempo de antecedência, que a sua morte se avizinhava, o que lhe permitiu desde logo trabalhar de dia e de noite para acabar as construções que tinha começado. Já num tempo mais próximo foi atacado de febres, e avaliando o tempo decorrido depois da predição, certifi cou-se de que se “acercava o dia em que tinha de sair deste mundo”. Prepara-se, então, para cumprir os ritos fúnebres, ainda que na Vida de S. Frutuoso eles sejam referidos de uma forma sintética. E nessa descrição da ritualização é o modelo que se impõe, não uma morte individual.

Na tipifi cação dessa ritualidade, destaca-se, como acto fundamental, a contrição, que envolve a confi ssão e a penitência, a qual exige um desprendimento total dos bens materiais. S. Frutuoso faz-se então trasladar para a igreja, e como já tinha tomado todas as provisões da sua casa, apenas ordena um seu servo, “impondo-lhe a mão”, como abade do importante mosteiro de Turonio, que alguns querem identifi car com Montelhos23. Como nos esclarece a Vida noutros passos, já se desfi zera inteiramente da sua casa, distribuindo “entre as igrejas, os libertos e os pobres, todo o capital do seu esplêndido património”, antes de encetar uma vida eremítica.

Depois daquele acto funcional, cuidou de si. Recebeu então “a penitência segundo o estabelecido”. A seguirmos o modelo isidoriano, teria reclamado o cilício e as cinzas, pedindo perdão público, primeiro a Deus e depois a todos os que o rodeassem. Santo Isidoro tomou em seguida a comunhão, expressando uma recomendação moral aos fi éis, e distribuindo os bens que lhe restavam pelos pobres,

21 - Michel SOT. “La fonction du couple saint évêque/saint moine dans la mémoire de l’église de Reims au Xe

siècle”. In: Les fonctions des saints dans le monde occidental (IIIe-XIIIe siècle). Roma: École Française de Rome,

1991, pp. 225-240.

22 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, p. 32; Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la Muerte en

la Castilla Medieval, pp. 83-95.

23 - La Vida de San Fructuoso de Braga, p. 117.

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recolhendo-se depois à sua cela, onde morreu ao fi m de quatro dias. S. Frutuoso, após ter recebido a penitência, fi cou prostrado perante o altar da igreja, todo o dia e toda a noite. O seu passamento ocorrerá, antes do amanhecer, quando “estendendo as suas mãos em oração, entregou o seu espírito imaculado e santo nas mãos do Senhor que coroa os seus santos depois de uma vida de bom serviço”24.

Numa outra faceta do modelo, é a morte em plena paz e tranquilidade. Aliás o próprio fi m, neste como noutros casos, nunca é apelidado de morte, sendo aqui simbolicamente referido, no que é bem comum, como a “entrega do espírito” nas mãos do Senhor. Esta serenidade absoluta do moribundo já antes se atestara. Assim, quando S. Frutuoso anunciou a sua morte aos que o rodeavam, todos choravam e só ele estava alegre, pois não tinha dúvidas que “marchava para a eterna glória dos céus”. E interrogado sobre o seu temor da morte, retorquiu; “realmente não a temo, pois sei que, ainda que pecador, vou à presença do Senhor”25, numa espera sossegada e confi ante do trespasse26.

Detenhamo-nos um pouco mais neste episódio. Nele também a expressão do choro daqueles que ouviram anunciar a sua morte. Será aqui a incorporação de um costume social, o do pranto fúnebre, mas adaptado ao modelo canónico. Tem assim lugar antes do falecimento do santo e pode encarar-se como um sentimento social de perda de um cristão exemplar. Em todo o caso, é um traço bem humano e próximo da mentalidade colectiva dos fi éis27. Não menos parecem ser as palavras de S. Frutuoso. Se por um lado o discurso hagiográfi co remete para a ideia de que o santo compartilha do sagrado e tem, portanto, assegurada a eterna glória, por outro, ao introduzir-se na boca do santo a frase “ainda que pecador”, deixa-se uma mensagem de esperança escatológica ao comum dos mortais. O santo é um homem, logo a santidade está ao alcance dos homens.

E como meio de intermediação entre o santo e o homem, entre o céu e a terra, fi ca o corpo do santo. Corporização da realidade transcendente do sagrado, encerra uma “virtus”, uma energia própria, que dá uma aparência de vida, não se decompondo ou cheirando mal, e a capacidade de operar milagres. As Vidas relatam a inumação desse corpo, ainda sem grandes detalhes - um “sacrantíssimo sepulcro” para o corpo de S. Frutuoso - o qual se converte, de pronto, num centro de peregrinações e milagres. S. Frutuoso sarava

24 - La Vida de San Fructuoso de Braga, p. 117.

25 - La Vida de San Fructuoso de Braga, p. 115.

26 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, pp. 26-27.

27 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, pp. 39-41.

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os enfermos, afugentava os demónios ou, numa manifestação ampla do seu poder, quem, desconsolado, clamava a sua ajuda, obtinha do Senhor o cumprimento do seu pedido.

Como sintetiza Ariel Guiance,28 o modelo da morte da hagiografi a hispana de tempos visigóticos desenvolve-se, assim, em torno de alguns traços comuns - “o presságio que tem o santo sobre a sua própria morte, o abandono do temporal, o cumprimento da penitência, segundo o estipulava a liturgia - talvez o elemento mais original deste modelo -, a recomendação aos fi éis e o falecimento num marco de tranquilidade e paz”. Mas a sua morte é também a de um ser humano que se confessa pecador, dispõe do temporal e faz penitência. O paradigma vincula-se ao real vivido. Os valores religiosos misturam-se com os comportamentos sociais e o modelo assume-se então como um instrumento de pedagogia, com uma força de valor dogmático talvez superior ao do discurso doutrinal elaborado29.

A MORTE DOS SANTOS FUNDADORES

De um monaquismo peninsular de tempos altomedievos transportemo-nos agora para um outro tempo de renovação monástica que, em Portugal, o século XII implica, com a implantação de novas ordens religiosas de cistercienses e agostinhos. É por dentro desse tempo que vamos acompanhar a morte de dois santos - Telo e Teotónio -, que se integram no quadro dos novi sancti, em especial santos fundadores, cuja morte, como escreve Jacques Dalarun,30 deve ser a um tempo “santa e fundadora”, porque “fundar é, sem dúvida, uma das funções essenciais da santidade”. Mas o referencial desta santidade entronca, ainda, nas virtudes e acções dos santos prelados, que, em harmonia, devem conciliar na sua existência os dois aspectos complementares, mas aparentemente contraditórios, do seu poder - serem pastores, que guardam e aconselham, amorosamente, os membros da sua comunidade e chefes, que, com virilidade, têm de defender o seu poder temporal e espiritual, impondo temor e respeito, sobretudo face à autoridade real31. No

28 - Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la muerte en la Castilla Medieval, p. 95.

29 - Por isso esse modelo pode ir evoluindo ao longo dos tempos, como o estudou Ariel Guiance, anotando as

diversas variações na descrição da morte de S. Rosendo, ao longo das diversas edições da sua Vida (“Dormivit

Beatus Isidorus: Variaciones Hagiográfi cas en torno a la muerte de Isidoro de Sevila”, Edad Media. Revista de

História, 6, 2003-2004, pp. 33-59.

30 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”. In: Les fonctions des saints..., p. 194.

31 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident, pp. 333-340. Quanto à difusão da vivência regrante em Portugal

leia-se Hermínia Vasconcelos VILAR. “Os Cónegos Regrantes”. In: História religiosa de Portugal, I, pp. 222-227 e Saul

António GOMES. “A religião dos clérigos...”, pp. 362-366. E sobre o culto dos mortos entre os cistercienses veja-se José

MATTOSO. “O culto dos mortos em Cister no tempo de S. Bernardo”. In: O reino dos mortos, pp. 87-107.

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plano da espacialização hagiográfi ca portuguesa não corresponde menos à predominância ideológica e espiritual do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na condução política do reino, imprimindo-lhe um renovado dinamismo religioso e ideal evangelizador, espelhado no espírito de cruzada e no respeito e mesmo apropriação dos cultos moçárabes.

Telo é um dos doze, número em si mesmo simbólico, fundadores do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Teotónio é o seu primeiro prior. Santa Cruz vai nascer em 1131, graças à vontade de alguns cónegos da Sé de Coimbra, maxime de D. Telo, que pretendem revivifi car o espírito da vida apostólica. Tal desiderato exige o abandono do século, a subordinação a uma regra e a obediência a um superior, numa vida em comunidade. Os seus seguidores desprendem-se dos bens individuais, para em comum os partilharem. Como irmãos e em conjunto, devem dedicar-se à oração, à lectio divina, à caridade e ao trabalho, em particular à difusão da mensagem evangélica. Este outro monaquismo já não se refugia nos campos e nem se fecha em orações e louvores a Deus, mas implanta-se nas cidades, no meio das tensões e labuta dos homens. A sua missão pastoral é uma prioridade, difundindo pela palavra e corroborando pelo exemplo, o modelo e as regras de um viver terreno, que assegure aos homens a salvação escatológica.

Num tempo de implantação de uma nova ordem, o paradigma de vida, e sobremaneira da morte dos seus maiores, é um elemento estruturador da sua raiz fundacional. De pronto os cónegos de Santa Cruz, que logo nos seus primórdios estiveram envolvidos em perigosas controvérsias com a clerezia da sé catedral, deram corpo a uma hagiografi a. Hagiografi a muito característica, como faz notar Aires Nascimento32, com “ausência de epíteto hagionímico nos seus títulos”, assumindo-a essencialmente como “vidas”, tanto pela proximidade entre a morte dos visados e o seu relato, que não dera ainda origem à interiorização ou ao reconhecimento do seu culto, como pela familiaridade dos autores com os biografados que não criava a necessária distância do sagrado.

De facto a Vida de D. Telo deve ter sido escrita em torno de 1155, pelo cónego Pedro Alfarde, quando aquele fundador apenas saíra do mundo em 1136, e a Vida de D. Teotónio, que faleceu em 1162, foi

32 - Hagiografi a de Santa Cruz de Coimbra. Vida de D. Telo. Vida de D. Teotónio. Vida de Martinho de Soure.

Edição crítica de textos latinos, tradução, estudo introdutório e notas de comentário de Aires A. NASCIMENTO.

Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 9. O mosteiro crúzio foi estudado nas teses de Armando Alberto MARTINS. O

mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003

e de Saul António GOMES. In limine conscriptionis. Documentos, chancelaria e cultura no mosteiro de Santa

Cruz de Coimbra. Viseu: Palimage, 2007.

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elaborada por um discípulo, que com ela e por ela buscava minguar as saudades do seu pastor, ainda antes da sua canonização, ocorrida no ano seguinte. A vida e a morte dos santos fundadores estão, assim, muito presentes na mente e no coração dos que escrevem. A tónica biográfi ca é signifi cativa, sem embargo dos autores destas obras plasmarem algumas das suas ideias nos modelos clássicos deste tipo de literatura hagiográfi ca.

Mas a Vida de D. Telo, como já foi notado, imbui-se ainda mais de um pendor cronístico, como um relato de fundação monástico, descrevendo não só a acção de D. Telo para esse fi m - desde a escolha do sítio, aquisição dos bens para implantar o mosteiro, recrutamento de colaboradores até aos privilégios obtidos - mas igualmente copiando os documentos, mormente as bulas que a corroboravam33. A narrativa impregna-se assim de uma racionalidade e materialidade, que não dá lugar ao miraculoso ou sobrenatural, ainda que em algumas páginas se manifestem claramente os traços hagiográfi cos, carregados de um acentuado simbolismo. Já a Vida de D. Teotónio, se bem que seja ainda um relato hagiográfi co de carácter histórico, está menos perpassada da ideologia fundacional, abrindo-se mais à evidência de um modelo de vida de santo, sancionado mesmo por actos sobrenaturais, e um programa espiritual a seguir pelos cónegos regrantes.

Desde logo, a própria origem familiar de ambos parece indiciar as diferenças. Telo é apresentado como fi lho de cidadãos médios (mediocribus civibus), esses comerciantes e artesãos laboriosos que, como o desenvolvimento urbano, se interpõem entre os maiores (privilegiados) e minores (humildes), sustentando pelo trabalho, tributos e serviços a cidade e o reino, ao passo que Teotónio é dito oriundo de pais honestos e piedosos, de uma respeitabilíssima linhagem nobre, como que predestinadora do seu carácter religioso. Assim Telo, ainda que casto, humilde, obediente, fi el, perseverante, constante, paciente e justo, não esteve isento do pecado, embora cometido na juventude ou provindo da ignorância ou fragilidade. A própria Vida não deixar de transparecer uma certa controvérsia em torno da sua pessoa. Bem sabemos que não foi nomeado bispo da sé de Coimbra, como seria de esperar, nem Afonso Henriques nutria por ele, inicialmente, grandes simpatias, como se depreende do episódio sobre a sua sela. Sofreu uma tentativa de envenenamento

33 - Dicionário de Literatura Medieval, s.vv. Hagiografi a e Vida de D. Telo. Remetemos de novo para o estudo, que

conhecemos depois de elaborado este trabalho, de Maria de Lurdes ROSA. “A santidade no Portugal medieval:

narrativas e trajectos de vida”, pp. 15-20, 27-30, que contextualiza e explana a construção dos textos sobre a

santidade de S. Teotónio e D. Telo.

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em França e, mais genericamente, diz-se que havia alguns “que o viam com maus olhos”. Teotónio, logo na puberdade, quando chegou “à bifurcação da letra pitagórica”, do Y, renegou “o ramo esquerdo com os prazeres do século” e deixou-se “atrair pelo direito com todas as veras em desejo do céu”, simbólica apresentação de um caminho de santidade, refl ectido e escolhido desde cedo, nota ainda recorrente da santidade altomedieva. Estes matizes repercutem-se na descrição da Vida de Telo - um enunciar de actos fundacionais - e de Teotónio - um agir conformador de um paradigma moral e canónico - mas, como mais nos interessa, na notícia da sua morte. Morte que não é apenas a passagem da terra ao céu, mas a passagem perigosa de um carisma pessoal a uma instituição para durar, penhor da inserção da Igreja na sociedade34.

Telo, cinco meses depois de regressado da sua viagem a S. Rufo, “é atacado por uma doença mortal”. Doença que é dita um tumor, referindo-se igualmente a sua designação em árabe, numa prova manifesta dos conhecimentos médicos, em que imperava o saber islâmico, que os cónegos crúzios possuiriam, como o atestam os seus livros de Medicina. Tal precisão clínica é invulgar neste tipo de literatura, sabendo-se ainda que a doença foi prolongada. Certamente por isso, o autor da Vida não alude a qualquer presságio extraordinário da sua morte, pois que a própria natureza física lha anunciaria.

Logo, quando sente a “doença (como) insuportável e por excessiva”, retira-se para o claustro. Mas, ainda aí, a agonia foi prolongada, “ao longo de dias e de noites”, o que dá ocasião a uma contrição individual profunda, repassada de suspiros, lágrimas e soluços. Telo é, simbolicamente, assimilado a Madalena, que limpa as suas máculas ao lavar os pés do Senhor com o seu pranto e ao secá-los com os seus cabelos, numa duplicidade, que evoca pecado e penitência, em correlação gradativa. A insistência nos gestos purifi cadores, quase à semelhança dos paradigmas visigóticos, é muito signifi cativa. Sempre que Telo recebe o corpo do Senhor, chora e fi ca em êxtase perante a cruz, imagem de sofrimento e redenção, tão queridos dos crúzios, na sua profunda devoção cristológica, que levará mesmo ambos os santos em peregrinação aos Lugares Santos.

E Telo persegue a sua via sacra. Isola-se no seu “monte das oliveiras” e, no meio do claustro, entre plantações de oliveiras, abençoa os cónegos que passam e sofre o dilema da separação.

34 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, p. 194.

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Deseja morrer, mas oferece-se, mesmo sem forças, para continuar a dirigir os seus discípulos. Teme-se por eles. Coloca-os à guarda do Senhor. É o clássico topos desta hagiografi a de santos fundadores, de sentido institucional, em que o santo, no fi nal da sua vida, anseia pelo descanso eterno, mas, dramaticamente, preocupa-se com a sobrevivência da sua obra fundadora. Na oposição manifesta entre “terra plorante, cielo gaudente”35, os irmãos choram por Telo e Telo manifesta alegria.

E o dia da morte chega, ao fi m de uma longa vida de sessenta anos, referido, como é característico desta literatura, com toda a sua precisão - uma quarta-feira, quinto dia dos Idos de Setembro, ao romper do dia, após a Natividade de Santa Maria, ou seja o dia 9 de Setembro. O que nos remete para a evocação da mãe do crucifi cado e para o início da Quaresma, nessa Quarta-feira de cinzas em que o homem recorda que é pó e em pó deve tornar. Antes ainda de morrer, o gesto antropológico, transmutado em teológico no ritual monástico, de beijar as mãos de todos os irmãos, rogando que o lembrassem nas suas orações, e o pronunciamento das últimas palavras: “nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito”. Só depois entrega realmente o seu espírito a Deus, expressão característica das Vidas, como já vimos, que evitam a terminologia corporal da palavra morte e empregam esta ou similar, que valora a libertação da alma em consonância com o dies natalis, que o dia da morte do santo representa.

Refere-se, em seguida, que o corpo de D. Telo foi lavado e vestido “segundo o costume regular”, precisão com o corpo nada comum noutros relatos. Na igreja, no meio do coro, decorreram os ofícios divinos das exéquias. Exéquias públicas, amplamente participadas, quase mundanas. Presentes os cónegos, as religiosas (talvez as cónegas), virgens e viúvas. Acolitando o ofício estão crianças, adolescentes, anciãos e irmãos leigos. Comparece a cidade representada pelos cónegos da sé, os jovens, os homens da classe média (mediocres), os nobres. No pormenor da descrição, pinta-se o quadro.

As crianças estão sentadas à volta do féretro, os adolescentes circulam em torno dos altares, os anciãos preparam-se para a liturgia solene das missas, os irmãos leigos prestam as homenagens da sepultura. Afastadas do sagrado, intermediado por homens e clérigos, vislumbram-se as mulheres “porque não lhes era consentido fi carem perante ou tocar no corpo sacrantíssimo”. Estão junto das

35 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, p. 197.

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portas, de pé, ou espreitam pelas frestas, soltando lamentos e pedindo que o santo por elas rogasse ao Senhor. Mas estas são as mulheres conotadas com alguma impureza - a vida sexual de casadas (donas) e a pobreza (humildes) - porque as religiosas, as virgens, as viúvas e as matronas tomam lugar no acto. Todos choram, num pranto em uníssono, descrito com o realismo das lágrimas a correrem, nas crianças, até ao queixo. E não falta sequer o gesto bem secular do lamento fúnebre36, “as nénias ibéricas das matronas”, que a igreja anatematizava e o autor da Vida se esforça por justifi car: “não direi que seria legítimo, mas, tanto quanto o amor de piedade conjugado com a dor tornara discreto, apropriado”.

Pedro Alfarde recria na morte de D. Telo todo um modelo de exéquias fúnebres em que a doutrina canónica amplamente se permeabiliza às crenças e comportamentos sociais. Modelo mais apropriado a um leigo que a um clérigo, teria intenção de justifi car a notoriedade, respeitabilidade e honorabilidade deste santo fundador, para mais convincentemente impor os fundamentos da sua obra, que à morte dos fundadores não raro se seguia, como o exemplifi ca Jacques Dalarun37 com Robert d’Arbrissel e S. Francisco. Logo, depois da referência precisa à deposição do corpo, como era habitual nestes relatos - ao lado direito da igreja, junto do altar consagrado ao Espírito Santo -, o autor refere que os cónegos se reuniram para se confortarem e reiterarem a sua vontade de viverem em comum, segundo os preceitos de Santo Agostinho. É a fundação a impor-se, para além da morte do seu fundador.

O cónego anónimo da Vida de D. Teotónio precisa desde logo que o santo, começando a sentir-se doente, se preocupa de imediato com a escolha de sucessor, desiderato máximo de todo o bom pastor que quer deixar guardada a sua comunidade. E faz ainda preceder o início da narrativa da morte do prior por duas visões. Uma consagra a sua santidade, antevendo um ancião o seu lugar na corte celeste e outra anuncia a sua protecção à instituição, tendo sido Teotónio avistado a lutar pela sua eira (o claustro do mosteiro) contra a fúria do mar (o mundo), garantindo-lhe essa boa condução das ovelhas do seu rebanho e a “jurisdição sobre el(a)s no futuro”38.

A descrição da morte tem, pois, de confi rmar esta verdade revelada. E ela abre com o tradicional anúncio aos santos do fi m da sua vida. Numa visão em que Teotónio se fi gura numa torre

36 - Sobre o tema, veja-se José MATTOSO. “O pranto fúnebre na poesia trovadoresca galeo-portuguesa”. In: O

reino dos mortos, pp. 201-215.

37 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, pp. 202-211.

38 - Hagiografi a de Santa Cruz de Coimbra, p. 197.

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elevada no meio do claustro, tendo na mão uma lança sem ponta, comprida e muito branca, depara-se-lhe um “venerando varão de hábito resplandecente” (o Apóstolo Pedro) que lhe dá a entender “ter ordens do Senhor para ele”. E logo lhe anuncia que a sua luta, em que venceu sem ferro (lança sem ponta), está a chegar ao fi m, esperando-o “o gozo da bem-aventurança eterna”, ao mesmo tempo que dá a saber de antemão “que Deus omnipotente fez por ti muito bem a este local e continuará a fazê-lo”. Logo neste relato se enuncia a problemática dual da morte do santo fundador, aqui para a apresentar como resolvida. Teotónio pode subir a escada dos cónegos purifi cados (havia-os menos perfeitos), que dava entrada no céu.

O espírito estava preparado. Segue-se, em conformidade, todo o ritual. Teotónio recebe o sacramento da unção, confi rmando pois a administração deste sacramento na segunda metade do século XII, e a comunhão. Absolve e benze os cónegos e dirige-lhes uma última admoestação - que não deitassem a perder o trabalho de tanto tempo - e um chamamento à responsabilidade - “hoje, fi castes com o encargo da religião nas vossas mãos”39. Muito simbolicamente, o seu último dia será um Sábado, o sétimo dia, o dia do descanso, no qual após as matinas em que se rezaria o ofício dos defuntos, como que na comunhão dos santos com todos os mortos, “inclinou a sua cabeça um tanto sobre o ombro” e benzeu mais profusamente os irmãos. É a prefi guração de Cristo crucifi cado nos seus derradeiros momentos de vida, mas é ainda o bom pastor preocupado com as suas ovelhas. Morreu com alegria, como o provava o seu rosto sorridente e o seu rigor mortis nada alterou à sua fi sionomia grave e composta, salvo a palidez. É, uma vez mais, a imagem da morte tranquila, que no próprio cadáver se manifesta. Mas o autor da Vida explica que a alegria do rosto demonstrava bem “que havia ali uma presença de santos anjos”, para logo um pouco à frente explicitar que também “o inimigo do género humano” se apresentou nesse acto derradeiro e, não encontrando mácula, atormentou um criado do mosteiro. A tentação individual, no momento do passamento, impõe-se agora canonicamente, mesmo na morte dos santos, o que, por via de regra, não acontecia na hagiografi a altomedieva40. Com a vitória absoluta dos anjos, que livremente conduzem as almas ao céu, relevam-se os parâmetros de visibilidade da sua santidade espiritual e corporal.

39 - Hagiografi a de Santa Cruz de Coimbra, p. 199.

40 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, p. 29.

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Na igreja não se escutam prantos ou lamentos, apenas o coro entoa salmos, orações, hinos e cânticos espirituais. É o modelo de um ofício fúnebre estritamente religioso e canónico, próprio de um clérigo santo. Numa santidade que a autoridade máxima terrena reconhece, na afi rmação de Afonso Henriques que “antes estará a sua alma no céu do que o corpo na sepultura”, e a manifestação do sobrenatural credita em pleno, pois que um dia antes do seu falecimento foi avistado um globo de estrelas muito brilhante a descer do céu sobre o claustro, prefi guração do resplendor da sua santidade.

O anónimo termina com precisões de tempos e lugares. O corpo foi sepultado no capítulo pelo bispo de Coimbra, D. Miguel Salomão. A morte é datada pelo dia do mês (que recai a 18 de Fevereiro), o dia da semana (Sábado e não Sexta) e pela hora (a primeira do dia, “aquela em que Cristo ressuscitou”, mais uma vez numa mensagem cristológica, que assim se associava e veiculava pelo calendário litúrgico) e o ano (1162, referenciado através do rei). O seu enterro ocorreu um dia após a sua morte e a sua vida alongou-se modelarmente entre os setenta e oitenta anos, pois os patriarcas, ao contrário dos heróis pagãos que morriam jovens, acabavam os seus dias como venerandos anciãos.

Teotónio obteve a canonização, a qual o autor da sua Vida não conheceria, já que a não refere. Teve lugar no primeiro aniversário da sua morte (18 de Fevereiro de 1163), em concílio provincial celebrado em Coimbra, presidido por D. Miguel Salomão, e a missa ofi ciada foi celebrada por D. João Peculiar e assistida pelos bispos de Viseu, Porto e Lamego. Estávamos ainda num tempo anterior à reserva da canonização para os papas, o que Gregório IX virá a impor nas Decretais, em 123441. Telo, certamente pelos fortes dissídios que se patentearam entre o mosteiro e a catedral, logo após a sua morte, não conheceu tais honras, embora os cónegos a ambos venerassem.

Nas Vidas de D. Telo e D. Teotónio um idêntico modelo - o do santo fundador - com algumas variâncias. Telo é um homem de acção, mais próximo, por isso, das controvérsias e más vontades que um grande empreendimento humano desencadeia. A sua morte é encenada em função da sua obra monástica, no colectivo de uma comunidade que a deve sustentar e da cidade que a deve albergar e respeitar. Uma morte que se quer pública e venerada, justifi cativa do seu legado. É a morte do fundador que se quer santo. Teotónio é o guia religioso dos cónegos, perfeito e virtuoso desde jovem,

41 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident, pp. 25-37.

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todo ele projectado para a vida espiritual e apostólica, na pregação e prática de boas obras. As suas intervenções externas, interpelando veementemente rainhas e reis ou auxiliando-os, servem ainda mais para exaltar o predomínio do espiritual sobre o temporal. O sobrenatural e miraculoso manifestam-se como provas inequívocas da sua santidade. A sua morte é, por isso, muito mais intimista - uma outra faceta deste tipo hagiográfi co - recatada, espiritualizada e ritualizada, segundo a mais estrita ortodoxia dogmática e normativa. Diremos que é a morte de um santo que também foi fundador.

Mas qualquer dos relatos é paradigmático da mensagem teológica que a morte de um santo fundador encerra, ensinando a bem viver pelo bem morrer, numa conformidade e imitação da vida de Cristo, e sacralizadora, pelo seu corpo, da casa que o alberga, a qual deixa de ser um lugar comum para passar a ser um lugar santo. Simultaneamente, numa função eclesial e social, a morte do santo fundador combina a intersecção do mundo terreno com o do além, pois os seus ensinamentos e exigências de vida se enraízam na fundação de uma instituição eclesiástica, que não se separa do mundo, mas procura responder às solicitações de uma sociedade em mutação42. No fundo, o que se desvenda de maneira fragmentária na morte do santo fundador é a difi culdade, o paradoxo, o desafi o que constitui a própria existência de uma sociedade cristã43.

Enfi m, com estes cânones de morte e santidade atravessámos um tempo de afi rmação do cristianismo por entre correntes adversas, rimeiro de paganismo e depois de islamismo, de difusão dos ideais do monaquismo ibérico e das transformações reformistas vividas no reino de Portugal sob a infl uência francesa e gregoriana.

Os relatos das vidas e milagres dos santos foram propondo, pois, diversos modelos de acordo com as coordenadas sociais e mentais de cada época. Mas essas vidas, se implicam uma forma de aproximação ao domínio do sagrado, também envolvem um radical ideológico de valorização e uso das mesmas.

42 - Contemporâneas destas narrações hagiográfi cas são ainda a Vida de S. Geraldo, composta entre 1112 e 1128

e a de S. Martinho de Soure, escrita por Salvado, na primeira metade do século XII. Quer o metropolita de Braga,

quer o presbítero de Soure são modelos das preocupações pastorais da Igreja reformadora de Undecentos, que

visava a restauração do seu quadro organizativo e a instrução e conversão de costumes e moral dos fi éis. A morte

de S. Geraldo aproxima-se muito dos paradigmas anteriormente apresentados, não fora ele o refundador do

prestígio da catedral bracarense. Já o pastor dos fi éis de Soure acaba os seus dias num contexto completamente

diferente. A sua vida e morte evocam-nos as difi culdades de implantação dos quadros eclesiásticos nas terras

reconquistadas e o enfrentamento religioso entre cristãos e muçulmanos. Acaba por morrer em Córdova, ao fi m

de um longo peregrinar de cativeiro. E a sua entrega às cadeias e grilhões, para ajudar os cristãos a perseverar na

sua fé, é como que a rememoração do martírio daqueles primeiros moçárabes que, enfrentando os seguidores

de Alá, deram a vida por Cristo.

43 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, p. 213.

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O procedimento do santo era um exemplo, não só a lembrar mas também a seguir, como que humanizando o sagrado. Logo, a sua morte carregava uma mensagem religiosa e um paradigma de comportamento social. Abrangentemente, a imagem da morte de um santo “confi gurava um esquema de valores em que a manifestação do sagrado, a mensagem ideológica, as crenças sociais e a vontade de imposição eclesiástica se misturavam, no desejo de demonstrar a verdade evangélica através de gestos e palavras”44.

Mais problemática e menos conhecida é, todavia, a recepção de toda a mensagem da Vida dos Santos, transmitidas alegoricamente nos sermões dos pregadores ou lidas, em versões longas e breves, pela gente culta, que poderia causar apenas um fascínio, noutros casos um desejo de imitação e talvez mais comummente uma busca da sua protecção e favores no mundo divino.

Na verdade, esses paradigmas de morte e santidade, para além de um valor a alimentar a fé e a crença dos devotos, carregar-se-iam também de implicações práticas. Fundavam em prestígio social e religioso as casas que albergavam o seu corpo e as suas relíquias. Atraíam, então, a liberalidade dos fi éis que, na sua sepultura ad sanctos, procuravam a proximidade desses lugares-relicários dos santos, entregando juntamente com o seu corpo grande parte dos seus bens para benefício da alma.

O modelo da morte e da vida dos santos norteava, assim, a religiosidade, a moral e o comportamento dos homens em vida, na expectativa de que, depois dela, esses mesmos santos fossem os seus protectores e advogados para alcançarem a salvação eterna no Além.

44 - Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la Muerte en la Castilla Medieval, p. 82.

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5- CLUNY E A FORMAÇÃO DE PORTUGAL.

Armando Martins*

Falar de Cluny, na Europa ou no Brasil, em 2010 e num tão

importante simpósio universitário internacional como o V Encontro

de Estudos Luso-Brasileiros nesta encantada cidade de Porto Alegre

signifi ca, fazê-lo, ao menos, por três razões: primeiro pelo facto de

se comemorarem, mil e cem anos da fundação do famoso mosteiro

borgonhês, cumpridos em 11 de Setembro passado1; segundo

por se atribuir àquele mosteiro importante marca na reforma do

monaquismo ocidental do seu tempo e na modelação do Ocidente

medieval em domínios como a traça dos ‘Caminhos de Santiago de

Compostela’ ou a divulgação do culto dos mortos, ao instituir, em

2 de Novembro, na liturgia monástica, a festa dos ‘Fieis Defuntos’;

terceiro pela infl uência da abadia e dos seus dirigentes em muitos

reinos medievais como aquele de que nasceria Portugal não sendo,

porém, consensual o resultado desse exercício. É nesta terceira linha

justifi cativa, e de alguma suspeita, que se insere o assunto que escolhi

para a minha intervenção, que dividirei em três pontos:

1. O confl ito das interpretações na historiografi a portuguesa

2. Evolução das relações entre D. Afonso VI e Cluny

3. Ligação dos condes D. Henrique e D. Teresa à ‘Cluniacensis

Ecclesia’ 2

O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES

Nos anos trinta do século vinte, quando se preparavam as comemorações dos oito séculos da Independência de Portugal, duas teses deram origem a uma polémica historiográfi ca.

* Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Academia Portuguesa de História.

1 - Em 2010 têm sido vários os eventos evocativos da efeméride por toda a Europa, especialmente os colóquios

internacionais de Junho (religião), Setembro (política e sociedade) e Novembro (17-19: arte e aspectos cientí-

fi cos). A revista Dossiers d’Archéologie, dedicou o H-S n. 19, Août 2010 , a ‘Cluny et ses infl uences en Europe’,

destacando os sítios clunisinos e o projecto “Cluny 2010”. Como se sabe, o ano da fundação de Cluny é contro-

verso, (910 ou 909?) devido a uma ambiguidade de interpretação da indicção em que se encontra expresso: ‘Dado

a três dos Idos de Setembro, ano onze do reinado do rei Carlos, indicção treze’. Vide o texto do diploma em Marcel

PACAUT. L’Ordre de Cluny. Paris: Fayard, 1986, pp. 49-53.

2 - Vulgar, mas impropriamente chamada “Ordem de Cluny”. A organização em ordem é uma realidade, apenas,

a partir do séc. XIII; o “ordo cluniacensis” era, essencialmente, relativo à liturgia e costumes.

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Carl Erdmann (1898-1945), investigador alemão, num trabalho depois muito conhecido, O Papado e Portugal no primeiro século da história portuguesa, editado em Coimbra, em 19353, defendia que o processo de formação e a independência do país não se deviam, de forma alguma, ao Papado ou à Igreja que, nos começos do século XII, tudo fazia para impedir a fragmentação das forças cristãs peninsulares, difi cultando mesmo a separação do clero português sujeito à hierarquia leoneso-castelhana.

Por sua vez, Luís Vieira de Castro, três anos mais tarde, em A Formação de Portugal (1938)4, entendia que a vinda do conde D. Henrique à Península não fora ocasional, mas consequência da política que a França vinha seguindo para ‘conquistar posições que não só lhe facultassem a necessária vigilância sobre os Sarracenos mas, impedissem a formação de um império de inconveniente grandeza para a jovem monarquia dos Capetos»5.

Seria, com efeito, no contexto da Reconquista, com a chegada dos Almorávidas6 que Afonso VI lançou um apelo de ajuda e solicitou apoio ao mosteiro da Borgonha, com quem já os seus antepassados haviam inaugurado relações estreitas. Cluny que começara a enviar monges reformadores, encaminhou também cavaleiros, entre os quais os futuros condes da Galiza e de Portugal, Raimundo e Henrique7.

Vieira de Castro precisa que a infl uência clunisina não se exerceu no sentido da unidade política, argumentando com Menéndez Pidal, que a divisão peninsular, longe de prejudicar a Reconquista, ‘multiplicava e estimulava iniciativas efi cazes’8.

Entre estas ‘iniciativas efi cazes’, viria a própria formação de Portugal que, fi caria pois, a dever-se, em boa medida, à Ordem de Cluny, instituição monástica que alcançava o máximo de prestígio e poder, no governo do abade D. Hugo de Semur, ao longo de 60 anos, entre 1049 e 1109. O ‘abade dos abades’, em tamanha longevidade governativa, foi contemporâneo de nove papas e de vários monarcas do Ocidente, de quem se tornara conselheiro religioso e político.

3 - Reimpressão, Braga, 1996.

4 - Pequeno livro, de 95 páginas, editado no Funchal.

5 - Luiz Vieira de CASTRO. A formação de Portugal. Funchal, MCMXXXVIII, p. 22.

6 - A primeira grande derrota dos cristãos contra os Almorávidas foi no ano seguinte ao da conquista de Toledo,

em Zalaca (Sacrajas), 1086. Vide E. LÉVI-PROVENÇAL; E. García GÓMEZ (ed. E trad.). El Siglo XI en 1.ª per-

sona. Las ‘memorias’ de ‘Abd Allah, ultimo rey ziri de Granada, destronado por los Almorávides (1090). Madrid:

Alianza Editorial, 2010 (1.ª, 1935-1936).

7 - O Cronicon Compostelanum, sem indicar a data, refere que fora D. Afonso VI que mandara vir Raimundo:

‘Reimundo Burgundiae Comite Palatino, quem rex A. a Burgundia in Hispaniam venire fecerat’. Ver E. FLÓREZ.

Hispania Sacra, tomo XX, M. Ed. Revista Agustiniana, 2006, p. 831.

8 - R. MENÉNDEZ PIDAL. La España del Cid, vol. II, p. 688.

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A tese da infl uência prioritária das instituições da Igreja ou dos factores religiosos na autonomização portuguesa, com pequenas variantes, teve como defensores nos anos imediatos, entre outros, Bernardo Xavier Coutinho, Acção do papado na fundação e independência de Portugal, (Porto, 1939) ou Miguel de Oliveira, ‘Factores religiosos da independência de Portugal’ (CMP,1940).

Mas, em 1948, Avelino de Jesus da Costa em A Ordem de Cluny em Portugal, esclarecia bem que: ‘não há documento algum que permita afi rmar que a Ordem de Cluny defendia a fragmentação da Península em diversos Estados’ (…); ‘estes monges defendiam os interesses religiosos das terras onde se encontravam, como se delas fossem naturais e não para favorecer a política francesa’9.

O principal opositor às teses de uma acção política de vanguarda de Cluny em Portugal foi José Mattoso que acha exagerado e sem fundamento, querer atribuir-se, quer ao papa, quer à Ordem, tão determinante papel: ‘seria um anacronismo excessivo atribuir ao abade de Cluny uma estratégia tão precisa e tão particularista’10. A preparação do reino e do processo de independência foram, essencialmente, obra do conde D. Henrique - de quem já, de facto, Herculano escrevera que ‘veio à Espanha para ser o fundador da independência dos Portugueses’11!

Nesta mesma linha, com ou sem divergências, se situam Torquato de Sousa Soares (‘O governo de Portugal pelo conde D. Henrique da Borgonha’12(1974) e Formação do Estado Português13 (1989); Maria Helena da Cruz Coelho, em ‘A génese e afi rmação do reino de Portugal14’ (1994); Oliveira Marques15 (1996), ou, ainda, Geraldo Coelho Dias, (2000)16.

Esta convergência de argumentos, encontra uma mais exigente hermenêutica de pesquisa sobre a real infl uência de Cluny, no historiador americano, Charles Julian Bishko (1930-1989). No aprofundar das suas investigações sobre as relações entre a monarquia leoneso-castelhana com aquela abadia, em ‘O conde D. Henrique

9 - Avelino de Jesus da COSTA. A ordem de Cluny em Portugal. Braga: Ed. Cenáculo, 1948, p. 10.

10 - José MATTOSO. “Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal”. In: IDEM. Portugal Medieval,

novas interpretações. Lisboa: INCM, 1985, p. 106.

11 - A. HERCULANO. Opúsculos, vol. V, p. 50, cit. por Avelino de Jesus da COSTA. Oc., p. 9.

12 - RPH (1974), pp.

13 - T. Sousa SOARES. Formação do Estado português (1096-1179). Trofa: Sòlivros de Portugal, 1989.

14 - Maria H. da Cruz COELHO. “La génesis y afi rmación del reino de Portugal”. In: Pueblos, Naciones y Estados

en la Historia. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1994, pp. 11-27. Deixamos aqui um especial

agradecimento à autora, que teve a gentileza de nos enviar o texto deste seu excelente trabalho de síntese, que

nós não conhecíamos.

15 - A. H. de OLIVEIRA MARQUES. Nova história de Portugal. Lisboa: Ed. Presença, 1996, vol. III, pp. 13 s.

16 - Geraldo Coelho DIAS. “Cluniacenses”. In: Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de

Leitores, 2000, vol. A-C, pp. 381-385

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de Portugal, Cluny e os antecedentes do Pacto Sucessório’ (1971)17 Bishko é, a meu ver, verdadeiramente inovador, explorando pistas até então desvalorizadas, para reforçar o entendimento da estratégia política do marido de D. Teresa18.

O que poderemos, então, acrescentar? Situando-me na esteira do autor do Portugal Medieval, (1985), aproveitando as sugestões interpretativas de Bishko, tentarei mostrar como a acção do conde D. Henrique buscou e encontrou naquela abadia apoio para algumas decisões da sua acção governativa e das possibilidades oferecidas pelas circunstâncias.

CLUNY NA PENÍNSULA IBÉRICA

A relação entre Cluny e a Península Ibérica datava de começos do século XI, quando o rei Sancho III da Navarra doou ao abade Odilão (994-1049) parte do saque da taifa de Dénia19. Por essa altura no mosteiro de S. Juan de la Peña se introduziria a reforma gregoriana: com o rito romano, a substituir o moçárabe, vinham também os Costumes de Cluny.

Novo e importante passo, segundo a Historia Silense20, deu-o Fernando Magno, rei de Leão e Castela (1035-1065), quando, com sua mulher, criou para a abadia, provavelmente em 1063, um censo anual, de mil miticales de ouro, provenientes das párias muçulmanas. É provável, diz Charles Bishko, que tenham sido estes os fundamentos da coniunctio censitaria que iria ligar, estreitamente, a abadia e a política ibérica, permitindo ao abade tantas das suas intervenções.

Com efeito, o herdeiro do rei Magno, D. Afonso VI (1072-1109), se não manteve o censo paterno, em 1073, fez a Cluny a doação do mosteiro de S. Isidro de Dueñas21 e recomendou aos seus magnates que lhe seguissem o exemplo. Ao renovar, em 1077, a obrigação do censo, que duplicava para duas mil peças de ouro, tinha boas razões para estreitar os laços com o ‘abade dos abades’22: por um lado,

17 - Ch. Julian BISHKO. “Count Henrique of Portugal, Cluny and the antecedents of the Pacto Sucessório”. RPH,

1971, pp. 155-188. Veja-se, do mesmo autor, “Liturgical intercession at Cluny for the king-emperors of Leon”.

Studia Monastica, vol. 3, 1961, fasc. 1, pp. 53-76.

18 - Vide outros estudos desta temática por Ch. BISHKO coligidos em Spanish and portuguese monastic history

(600-1300). London: Variorum Reprints, 1984.

19 - C. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Los prioratos de la província y sus redes sociales (1073-ca.

1270). León: Centro de Estúdios e Investigación “San Isidoro”, 2008, p. 146.

20 - Crónica o Historia del Silense. In: J. E. CASARIEGO (intr. y notas). Crónicas de los reinos de Asturias y León.

Madrid: Editorial Everest, s/d.; Ch. J. BISHKO. “Th e liturgical context of Fernando I’s last days according to the

so called Historia Silense”. Hispania Sacra, XVII-XVIII, Madrid-Barcelona, 1964-1965, Miscelánea en Memoria

de Don Mario Férotin (1914-1964), pp. 47-59.

21 - Carlos M. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Oc., pp. 690-692, doc. n. 1.

22 - PL 159, cols. 938-939: (1077) “… ego, anuente Deo, in diebus vitae meae duplicabo”.

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atendia às insistentes súplicas do monge Roberto, representante de D. Hugo na Corte afonsina; por outro, necessitava do seu auxílio de mediação diplomática, pois havia que responder às pressões papais que reivindicava para si a soberania temporal23 sobre os territórios reconquistados na Hispania; havia que resolver, negociadamente, a questão da mudança dos ritos litúrgicos24 e havia que impetrar a aceitação do novo casamento que o monarca, viúvo, estava para contrair.

Cluny, tão ricamente recompensada, considerou o monarca como ‘fi delis amicus’ e fê-lo ‘socius confraternitatis ‘ e ‘benefactor’25, isto é, com direito a especiais benefícios espirituais nas orações da comunidade, de solenidade igual à que era concedida à família imperial germânica26; prometeu-lhe, efi caz intervenção junto do papa em todos os tipos de litígio. Para melhor selar esta amizade com aquele que considerava, no dizer do rei, ‘patronus’ ou protector da dinastia navarro-vasca, D. Afonso VI reforçava a ligação, com laços de consanguinidade, escolhendo contrair o novo casamento, com D. Constança da Borgonha, sobrinha do abade D. Hugo27.

Porém, nem tudo quanto fora solicitado e prometido foi possível alcançar-se do papa, pois, em Roma pontifi cava o intransigente Gregório VII (1073-1085). Em 1080, no concílio de Burgos, presidido por um Legado, decretava-se a substituição do rito moçárabe (e pouco depois, da escrita visigótica) pelos usos romanos, ameaçando-

23 - A reivindicação territorial era «in jus et proprietatem». Demetrio MANSILLA. La documentación pontifi cia

hasta Inocencio III (965-1216). Roma: Instituto Español de Estudios Eclesiasticos, 1955, doc. 13 (28 de Junho de

1077), pp. 21-25.

24 - IDEM, ibidem, docs. 8 (1074) e 12 (1076), pp. 15-16 e 20-21; PL 159: “Sciatis nostram terram admodum deso-

latam esse: unde vestram deprecor paternitatem, quatenus faciatis ut domnus papa nobis suum mittat cardinalem,

videlicet domnum Giraldum, ut ea quae sunt emendata emendet, et ea quae sunt corrigenda corrigat”.

25 - Ch. BISHKO. “Liturgical intercession”. Art. cit., 1961, p. 54.

26 - O estatuto concedido ao rei, na vida e na morte, seria especifi cado, provavelmente em 1090, numa determi-

nação do próprio abade de Cluny, cujo texto está publicado na PL 159, c. 945-946 e em C. Reglero de la Fuente,

Cluny en España, oc., 2008, p. 697, doc. n. 5. Assim, ‘porque nos ajudou na construção da nova igreja dos apóstolos

Pedro e Paulo, aí num dos altares principais (destes havia o altar-mor e quatro outras no presbitério) por ele se

farão orações e sufrágios’:

Em vida e diariamente:

Um salmo: ‘Exaudiat te Dominus…’ (Sl. 19) na hora de Tercia;

Uma oração colecta na missa maior (cantada): ‘Quaesumus omnipotens Deus…’;

Uma prebenda no refeitório, na mesa maior, como se um pobre comesse connosco;

Quinta-Feira Santa: estarão, por ele, 30 pobres na cerimónia do Mandato (Lava-Pés);

Domingo de Páscoa: 100 pobres serão, por seu benefício espiritual, alimentados pelo camareiro;

Na morte:

Num dos altares principais, sufrágios durante um ano, com missa cantada; o mesmo em cada dia do aniversário

(tal como pelo imperador Henrique III);

Em vésperas e na missa: por ele toquem todas as campainhas e seja cantado o tracto com capas; sejam alimenta-

dos 12 pobres e dêem-se-lhes 7 dias de ‘justiça’ (refeição breve) e uma prebenda na mesa maior.

O mesmo se faça à rainha, tal como se faz à imperatriz Inês: por elas, 12 pobres sejam alimentados in Coena

Domini.

27 - Pierre DAVID. Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIe siècle. Lisbonne, 1947, pp. 366;

388-390.

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se o rei e o reino de excomunhão, se resistissem28. O monarca via, igualmente ser exilado da Espanha o seu amigo monge Roberto, até então representante de Hugo na Corte e que, elevado a abade do importante mosteiro de Sahagún, era suspeito, aos olhos do Legado, de impedir a reforma, defendendo as tradições locais29. Esquecia-se, no entanto, a reivindicação do domínio territorial e aceitava-se, como lícito, o casamento com D.ª Constança (1079-1093), apesar de parente da esposa anterior!

Segundo estudos recentes (1997-199830; 199931; 200832 e 2009-201033) de historiadores hispânicos, membros dos ‘Ateliers clunisinos’, os fracassos negociais coincidiram com as novas e mais agressivas campanhas dos Almorávidas, que haviam conseguido unifi car, outra vez, o Al-Andalus. Anulando totalmente os abundantes proventos das párias cobradas por Afonso VI, as doações em ouro interromperam-se, deixando de ser tão intensas as relações entre o abade e o rei.

O famoso diploma de 1090 - ‘perpetua lege servandum’ (!) -, apenas encontrado nos arquivos de Cluny, mas de que não há rasto algum na chancelaria real de Leão e Castela, segundo o qual o abade Hugo teria ido a Burgos, agradecer ao rei o cumprimento das promessas de 1077 e a oferta de dez mil peças de ouro em 1088, bem como obter a confi rmação do censo antes duplicado, suscitou, nos últimos anos, alguma desconfi ança em termos de autenticidade34! Um dos membros investigadores dos ‘Ateliers’, Júlia Montenegro, da Universidade de Valladolid, com bons argumentos, conclui tratar-se de um documento falso35, produzido no mosteiro borgonhês. Teria sido, nessa mesma circunstância, que a redacção da Vida de S. Hugo36,

28 - D. MANSILLA. Oc., doc. 19, pp. 32-33.29 - D. MANSILLA. Oc., doc. 21, pp. 35-36.

30 - Andrés GAMBRA. Alfonso VI. Cancilleria, cúria y império. I. Estudio. León: Centro de Estúdios e Investi-

gación “San Isidoro”, 1997 (Colección ‘Fuentes y estúdios de Historia Leonesa’); Alfonso VI. Cancilleria, cúria y

império. II. Colección diplomática, León, 1998.

31 - Patrick HENRIET. “Cluny en Peninsule Ibérique (XIe-XIIIe siècles). Ateliers clunisiens (Septembre 1999)”.

Révue Mabillon, 2000, pp. 285-286.

32 - C. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Oc., León, 2008.

33 - Júlia MONTENEGRO. “La Alianza de Alfonso VI con Cluny y la abolición del rito mozarábe en los reinos

de León y Castilla: una nueva valoración”. Separata de Jacobus, 25-26, 2009, pp. 47-62; “La Crisis sucesoria en

las postrimerías del reinado de Alfonso VI de León y Castilla: el partido borgoñon”. In: Estúdios de História de

España, XII, 2010, pp. 369-388. Agradecemos aqui a esta ilustre historiadora espanhola a simpatia que teve em

enviar-nos alguns dos seus trabalhos acerca desta temática, fruto das suas recentes investigações.

34 - PL 159, cols. 973-974, “Testamentum domni Adefonsi regis Hispaniarum ad Cluniacum”.

35 - Júlia MONTENEGRO. Art. cit., 2009, p. 61. Segundo a autora são várias as razões que apontam a sua fal-

sifi cação, quer a partir da crítica interna, quer do ambiente político vivido em 1090: o reino estava em difícil

situação económica; muitos dos reinos taifas tributários já tinham caído sob o poder almorávida ou estavam na

iminência de cair; Afonso VI, tão cauteloso, não iria comprometer os seus sucessores a tamanho peso (Bishko

interroga-se se, desta forma, não fi caria “vassalo” de Cluny); o evoluir das relações entre Afonso VI e D. Hugo

já não justifi cava tamanha dádiva. Por outro lado, acrescentamos nós, este diploma vinha alterar radicalmente a

doação de 1077, feita “in diebus vitae meae”, não sendo assim mera confi rmação daquela mas, enorme inovação!

36 - PL 159, Vita Sancti Hugonis, cols. 845-894. A referência a Afonso VI vem no capítulo II, ‘Alphonsus rex

Hispaniarum e carcere liberatus’.

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como peça do seu dossier de canonização, fi cara enriquecida com a legenda da sua intervenção miraculosa, em 1072, quando Afonso jazia na masmorra em que seu irmão Sancho o prendera. Bastaram as orações do abade para acontecer a libertação; e esse fi cou, desde então, em Cluny a ser igualmente celebrado, em memória do grande ‘Rex Hispaniae’37.

Porém, a contrario sensu e pelas razões acima indicadas, as relações entre o rei e o abade, conclui ainda Júlia Montenegro, devem ter fi cado ‘seriamente deterioradas a partir de 1080 e feridas de morte dez anos mais tarde’38.

Esta nova interpretação das relações entre Cluny e D. Afonso VI, na segunda etapa do reinado, ajudaria a perceber melhor as razões da intervenção do abade Hugo no Pacto Sucessório feito, por sua iniciativa, em 1105. O Pacto é um texto em que os dois condes da Galiza e de Portugal, genros do monarca, face a uma ameaça comum, e porque não aceitaram a decisão do soberano de designar como herdeiro no trono ao infante Sancho, nascido da sua relação com a moura Zaida39, secretamente, com o apoio e mediação de D. Hugo, se comprometem a conluiar-se para dividir entre si o reino40.

Ora, o Pacto Sucessório não era, uma peça isolada mas, parte importante de uma série de intervenções do abade D. Hugo com base na conjunctio fraternalis e censitária que o fi zera patronus da dinastia do Imperium Hispaniarum. Por essas intervenções podemos documentar os verdadeiros objectivos e passos de tão audaz acção de D. Henrique que acabaria expulso da corte, caindo na ira régia de seu sogro, como diz a contemporânea Crónica Anónima da Sahagún41.

No longo reinado de D. Afonso VI (1072-1109), porém, as relações entre Cluny e a Espanha não se limitaram aos aspectos que acabamos de referir nem às relações com o rei, rompidas ou não em 1090. A generosidade régia incluíra a doação de mosteiros e igrejas para serem, na categoria de priorados dependentes, reformados segundo os Costumes de Cluny, num total de mais de trinta, um terço

37 - Ch. BISHKO. art. cit., 1961, pp. 65-66.

38 - Art. cit., 2009, p. 62.

39 - Zaida era nora do rei Al-Mutâmid de Sevilha, viúva de um fi lho seu, que se refugiou em Toledo quando da

chegada dos Almorávidas. Sancho teria nascido em 1093. Vide Pierre DAVID. “Le Pacte sucessoral”. Bulletin

hispanique, 1948, p. 285; El Siglo XI en 1.ª persona. Oc., pp. 346-347.

40 - DMP, DR, I, doc. n. 2, pp. 3-4. Em importante e extensa nota o editor dos DMP, Rui de Azevedo discute

a data do diploma e o seu alcance, vol. II, pp. 547-553. Pierre DAVID. “Le Pacte Sucessoral entre Raymond de

Galice et Henri de Portugal”. Bulletin Hispanique, 1948, pp. 275-290.

41 - Las Cronicas anónimas de Sahagún. Ed. A. UBIETO. Zaragoza, 1987. Damião PERES. Como nasceu Portugal.

Porto: Portucalense Editora, 1970 (7.ª), p. 94, n. 2 e 3. Agradecemos ao Prof. João Marinho dos Santos, da Uni-

versidade de Coimbra, o ter-nos recordado que, ainda no século XVI, João de Barros, na Crónica do Imperador

Clarimundo, invocava D. Henrique como ‘Imperador’, o que vem corroborar esta nossa interpretação.

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das quais feitas por parte da ‘nobreza de infanções, ‘fi locluniacense’42 que, assim, melhor se ligava com o monarca, e obtinha benefícios pro anima.

Em nenhum país europeu Cluny se radicava tão profundamente, sendo a primeira parte do reinado de Afonso VI a ‘época de ouro’ de tão grande infl uência. A moderna historiografi a espanhola, desde o século XVII, insurgir-se-á, com mais ou menos frontalidade, contra essa ‘invasão’43, desvirtuadora do que chamou o autêntico ‘carácter nacional da identidade hispânica’44.

Vejamos, agora, comparativamente, as relações de Cluny com Portugal: se a abundância e a tipologia das doações, ou a qualidade e intensidade do relacionamento, correspondem ao que se fazia fora do condado.

PROJECTOS E REALIZAÇÕESDE D. HENRIQUE (1096-1112)

É indiscutível que foi no contexto das guerras da Reconquista que vieram para a Península, Raimundo e Henrique, com o apoio de Cluny, talvez motivados pelo parentesco com a rainha D. Constança45. Vêm para o extremo Ocidente, onde será ajustado o seu casamento com duas das fi lhas de Afonso VI: Raimundo, talvez em 1087, casa com Urraca, a mais velha e legítima; a Henrique coube Teresa, ilegítima, em 1095. O primeiro recebe o condado da Galiza (que incluía o de Portugal e Coimbra, unifi cados, até ao Tejo, visto o rei da taifa de Badajoz ter negociado com Afonso VI a entrega das cidades de Lisboa, Sintra e Santarém). Melhor cavaleiro do que Raimundo, que deixaria perder Lisboa e Sintra em 1094, Henrique destacara-se na luta contra os Almorávidas e, ao casar, o sogro recompensa-o, em 1095-1096, com o condado de Portugal, desligado do da Galiza, doado como tenência hereditária, constituindo-o apenas vassalo do rei, hierarquicamente em pé de igualdade com o primo e cunhado46.

42 - C. Reglero DE LA FUENTE. Oc., p. 240.

43 - Uma visão global da historiografi a espanhola acerca da infl uência de Cluny nos reinos de Leão, Castela,

Navarra e Aragão, é-nos dada por Patrick HENRIET. “Moines envahisseurs ou moines civilisateurs? Cluny dans

l’historiographie espagnole (XIIIe-XXe siècles)”. Revue Mabillon, t. 11 (t. 72), 2000, pp. 135-159. O autor deixa no

ar um interessante desafi o: ‘Il faut par ailleurs souligner le vraisemblable fécondité d’une étude historiographique

portant sur le Portugal’ (p.137, n. 5).

44 - M. MENÉNDEZ Y PELAYO. Historia de los heterodoxos españoles. Madrid, 1992, (1877), p. 570.

45 - A. H. OLIVEIRA MARQUES. Nova História de Portugal. Lisboa: Presença, vol. II, pp. 16-17. Pierre David

põe a hipótese deste casamento ter sido em 1092 (considerando falso o documento de 1087) e justifi ca: deve ter

sido arranjado por D. Constança, quando esta percebeu que não podia dar fi lhos ao rei. P. DAVID. Art. cit., 1948,

p. 283, n. 1.

46 - Paulo MERÊA. “De ‘Portucale’ (civitas) ao Portugal de D. Henrique”. In: Estudos de história de Portugal.

Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, pp. 235-275. A primeira edição deste trabalho foi publicada na

revista Biblos, XIX, 1943.

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Desde logo, distanciando-se de D. Raimundo, o conde D. Henrique, que então devia rondar os vinte anos, se mostrou bom militar e político sagaz, praticando uma estratégia em duas linhas: alargamento do seu território, para Sul e para Leste, no reino de Leão e, progressiva autonomização. Empenhou-se em cuidar da defesa e do povoamento por um lado e, por outro, em fortalecer instituições e meios que lhe permitissem um governo mais efi caz.

Para os primeiros objectivos, inaugura uma política de concessão de forais e protecção de igrejas e mosteiros, através de coutos com privilégios de atracção, começando em 1096 com Guimarães, Constantim, Panóias, S. Tirso e, sobretudo, a Sé de Braga.

Para os segundos, é ele que introduz em Portugal os clunisinos. Adepto da implantação da reforma gregoriana, em articulação com D. Bernardo, arcebispo de Toledo, primaz das Espanhas, D. Henrique colocou à frente das dioceses do seu território dois bispos, simultaneamente dois conselheiros, clunisinos e franceses: em Braga, retomando o programa restaurador da diocese, iniciado pelo bispo D. Pedro (1071), colocou, para futuro metropolita, Geraldo, que viera de Moissac e fora cónego de Toledo; em Coimbra, colocou D. Maurício, que, em 1109, haveria de transitar para Braga, quando Geraldo morreu47.

Os laços com Cluny fortalecem-se, em 1100, quando Henrique e Teresa lhe doavam (através do priorado de La Charité-sur-Loire), a igreja e o termo coutado de S. Pedro de Rates, não longe de Braga, para serem transformados num centro monástico. Acrescentavam-lhe a doação dos dízimos do pão, vinho e linho, dos seus bens ‘reguengos’, em toda a vasta zona de entre Douro e Mondego48. Por estas doações era concedido aos condes de Portugal, à semelhança dos reis de Leão e Castela, o estatuto de ‘benefactores et socii’, de La Charité, colocando-os, portanto, sob a protecção da ‘Cluniacensis Ecclesia’ e do seu abade.

Em 1102, por sua vez, o bispo D. Maurício doava a D. Hugo, ‘pater venerabilis’, pelo mesmo mosteiro de La Charité, a igreja de S. Justa de Coimbra, com toda a jurisdição episcopal, para ser convertida em priorado, oferta que, certamente, fora concertada com a que fora feita

47 - Carl ERDMANN. Oc., pp. 14-20. José MARQUES. O Conde D. Henrique e os alvores da nacionalidade.

Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, Palácio da Independência, 2003, pp. 19-24. Apro-

veitamos esta nota para agradecer ao senhor professor José Marques a gentileza da oferta do presente trabalho,

verdadeiramente inovador em muitos aspectos.

48 - Avelino de Jesus da COSTA. A Ordem de Cluny. Oc., pp. 27-28, doc. nº 1.

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pelos condes anteriormente49. Doação urbana singular, por parte de um bispo, com total cedência de direitos, de que não encontramos outro caso comparável! D. Maurício tornar-se-ia, ele e a sua cidade, mais próximos de Cluny quando, numa viagem à Palestina e Constantinopla, dali trouxe uma relíquia da Vera Cruz que ofereceu ao mosteiro, o que lhe alcançou uma ‘memoria perpetua’ e especial protecção da sé conimbricense50.

Nenhuma doação semelhante encontramos feita a Cluny por D. Raimundo no seu condado da Galiza. Conhecemos, ao invés, a grande soma de mil solidi, por ele oferecidos a uma abadia borgonhesa, mas não clunisina: Saint-Bénigne de Dijon. Também o seu nome não fi gura no Necrológio de S. Zoilo de los Condes, onde Henrique e Teresa estavam registados entre os familiares como ‘amici’, com direitos à protecção de sufrágios anuais e sendo aí D.Henrique intitulado ‘comes Hyspaniarum’51!

Tal comportamento divergente dos condes na direcção das benfeitorias pode ser signifi cativo de relações menos estreitas entre D. Hugo e D. Raimundo, (que não eram parentes) em relação às que mantinha com seu sobrinho-neto Henrique e a sua terra. Mesmo, mais tarde, por parte de D. Urraca, viúva de Raimundo, não encontramos doação de terras, igrejas ou mosteiros e, quando em 1109, tiver lugar a única doação galega (S. Vicente de Pombeiro), fá-lo-á na qualidade de Infanta, a pedido de seu pai. Raimundo não parece jamais ter benefi ciado do estatuto de Henrique de socius ou benefactor e, por isso, pode não ser mera retórica de chancelaria, nem é de leitura linear, a desconcertante titulação que os dois condes se atribuem quando a D. Hugo endereçam o texto do Pacto Sucessório, em 1105: Raimundo dirige-se ao abade, na qualidade de ‘fi lius’, enquanto Henrique o faz na de familiaris52.

49 - Ibidem, pp. 39, doc. n.º 17. Rui de AZEVEDO. DMP, DP, III, 445, doc. 523. C. Reglero DE LA FUENTE.

Cluny en España, pp. 699-700, doc. n. 6. Note-se o “caso notável” e único desta doação, perigosa cedência de um

bispo face ao “ordo monachorum”. Não serão poucos os futuros problemas de jurisdição, quer em litígios com a

Sé, quer com o vizinho mosteiro de Santa Cruz. Cfr. ANTT. Santa Cruz de Coimbra. Livro de D. João Teotónio,

fl . 14v.: “Habuimus non minimas altercationes cum monachis de Caritate …”

50 - C. Reglero DE LA FUENTE. Oc., p. 704, doc. n.º 9 e p. 338. A presente carta mostra como a relíquia da

“Tábua de S. Basílio” com o fragmento da Vera Cruz, que D. Maurício trouxera da viagem de 1104-1108, foi

solenemente entregue em Cluny em 28 de Julho de 1112.

51 - C. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Oc., pp. 646; 668.

52 - Ch. BISHKO. Art. cit., 1971, p. 180; IDEM. Art. cit., 1961, pp. 53-76. Importa esclarecer o vocabulário que li-

gava os leigos com a abadia clunisina e os seus priorados, numa graduação mais ou menos estreita de parentesco

espiritual, entre frater noster, quasi unus ex-nobis, familiaris, amicus, benefactor, socius e fi lius. Numa sociedade

de tipo contratualista, notem-se dois modos distintos: em pé de igualdade e em subalternidade: Raimundo colo-

ca-se neste; Henrique, no primeiro. D. Afonso VI estava entre os familiares, benfeitores e sócios, acima de todos

os reis, “neminem regum…” (Regelro de la FUENTE. Oc., p. 698; 305-309), benefi ciando de um especial estatuto

em vida e post mortem. Vide PL 159, cols. 945-946. Ao contrário da nossa crítica documental, Ch. Bishko não

pôs em dúvida a autenticidade do “diploma imperial” de 1090. Não o seguimos, por isso, nas afi rmações decor-

rentes de raciocínio dedutivo a partir dessa fonte.

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A data do Pacto Sucessório, que não é um acto isolado, como dissemos, tem sido objecto de várias controvérsias: mais provavelmente, será 110353, ano que na chancelaria começa a fi gurar o nome de Sancho, antecedendo os de Raimundo e Henrique ou, 110554, quando o dois condes conferenciaram, em Burgos, com Dalmácio Geret, delegado e camerarius do abade Hugo, chegando a um entendimento na preocupação comum que os afl igiria, e numa outra em que divergiam, e de que Raimundo, com boas razões, suspeitava.

Em Janeiro desse ano de 1105, D. Henrique tinha feito, ao mosteiro leonês clunisino de Dueñas55, uma solene doação dos dízimos de Sanábria (Zamora) e de outras suas quatro igrejas em território leonês-castelhano, documento que fez autenticar por um invulgar número e qualidade de confi rmantes: quarenta e dois! Destes, muitos (27) eram magnates da sua corte, fi gurando aí a principal aristocracia portucalense; mas, 15 eram leoneses: três bispos, três abades, três priores, um conde, três tenentes de terras e dois ofi ciais da alta burocracia da corte régia - ou seja, a elite do alto clero e da alta nobreza portucalense e leonesa!

Por outro lado, os termos em que a doação era feita mostram bem como o conde pretendia estreitar mais a sua ligação à abadia de D. Hugo, sem mediação da Corte e afastando-se dos comportamentos de seu primo a esse respeito.

É, provavelmente, por tudo isto que, pouco depois, D. Hugo recebe, na sua qualidade de ‘patronus’ da dinastia, um pedido de ajuda por parte do conde da Galiza, mostrando-se duplamente ameaçado: pelos ‘sanchistas’ e pela política de ligações do conde de Portugal! É nesse contexto que o abade, no dizer do prólogo do Pacto, envia o seu representante, a fi m de que, entre os primos, se faça um acordo.

O estudo minucioso dos nomes e funções constantes do diploma das doações henriquinas da Sanábria mostra como o conde apontava, muito para além das fronteiras do condado de Portugal, em estabelecer uma rede mais alargada de relações, verdadeira tentativa de frente luso-leonesa para a qual importa encontrar o objectivo. E este parece claro no contexto crítico do triénio 1103-1105: só podia ser o problema da ameaça de sucessão no trono régio. Com esta rede, Henrique, não pretendia apenas opor-se a Sancho mas, também, ao primo, cujo factor clunisino de apoio, na luta pelo poder, sabia ser menor que o seu! Para isso tinha preparado o terreno, projecto no qual estas diligências se incluem; mas também outras.

53 - Torquato de Sousa SOARES. “O governo de Portugal pelo conde D. Henrique de Borgonha: suas relações

com as monarquias leonesa-castelhana e aragonesa”. RPH, 1974, pp. 365-397.

54 - Ch. BISHKO. Art. cit., 1971, p. 186-188.

55 - IDEM, Ibidem, pp. 156 s.

90

Internamente, em 1103, juntamente com o bispo D. Geraldo, conseguira do papa o reforço do poder eclesiástico de Braga56, confi rmando-a como metrópole, criando assim uma igreja portucalense autónoma, que sujeitava a si nove sufragâneas: as quatro do seu condado (Coimbra, Porto, Viseu e Lamego) e cinco da antiga Galécia (Astorga, Lugo, Tui, Mondonhedo e Orense). A atribuição de Coimbra, sufragânea da antiga metrópole da Lusitânia foi, para Portugal, como diz Erdmann, ‘da maior transcendência’57 pois, sendo a maior cidade de Portugal e estando na fronteira, teria papel promissor nas futuras conquistas. Por outro lado, ao aceitar esta divisão, o Papado e a Cúria procediam à alteração do secular agrupamento provincial dos bispados, que datava do Império romano!

D. Henrique contribuiria, pouco depois, para melhoramentos em Coimbra: para obviar às carências materiais da sua sé, faz-lhe generosas mas acauteladas doações. Entre estas a do velho e rico cenóbio de S. Mamede do Lorvão, que ‘nem rei nem conde’ poderiam anular, intitulando-se no diploma de um poder de justifi cação nova: ‘Eu Henrique, pela graça de Deus, conde e senhor de todo o Portugal’, fórmula, que deveremos ler como nítida reivindicação da ‘potestas regia’, mais do que formulário de chancelaria!58

É certo que a defi nição do poder metropolitano de Braga, depois da morte do conde, sofrerá muita contestação, quer por Toledo, quer por Compostela. Mas, em 1114, a D. Maurício é confi rmado o título de arcebispo e consegue ligação directa com Roma, sem laços de dependência do primaz de Toledo. Os novos perigos virão da Compostela de Diego Gelmírez59 e da aventura em que D. Maurício se deixou enredar, aceitando do Imperador germânico a eleição papal (1118-1121). Caberia a D. Paio Mendes da Maia (1118-1138) a difícil negociação com Calisto II para conseguir o regresso das antigas sufragâneas. E se, apesar de tudo, Coimbra (1124) acabaria por se ligar a Toledo, o precedente da tenaz luta eclesiástica por uma ‘igreja portucalense’, por impulso dos clunisinos, era signifi cativo manifesto para a luta política!

Nem com a morte de D. Raimundo (1107), nem com a de Sancho, herdeiro designado (1108), nem mesmo com a do rei e do abade

56 - C. ERDMANN. Oc., pp. 16-18. José MARQUES. Oc., pp. 20-23, onde justifi ca este reforço de poder, sobre-

tudo a partir da doação de 12 de Abril de 1112, com a instituição do senhorio. Mais tarde, no primeiro semestre

de 1128, o infante D. Afonso Henriques doaria a D. Paio Mendes e ao seu cabido o direito de cunhar moeda, o

título de chanceler e a ampliação do couto.

57 - Idem, ibidem, p. 18.

58 - Livro Preto, cartulário da Sé de Coimbra. Ed. Manuel A. RODRIGUES; Avelino de Jesus da COSTA. Coim-

bra: Arquivo da Universidade de Coimbra, 1999, n. 59, doc. datado de Viseu, 29 de Julho de 1109, pp. 99-101.

Entre os 42 confi rmantes incluía-se D. Bernardo, arcebispo de Toledo e primaz das Espanhas!

59 - Historia compostelana. Ed. Emma Falque REY. Madrid: Ediciones Akal, 1994, passim.

91

(1109), D. Henrique dará por caducadas as disposições do Pacto. Pelo contrário, na indefi nição dos primeiros anos do governo de D. Urraca, aproveitando um certo vazio de poder, começa a agir como único soberano no seu condado, deixando de comparecer na Cúria régia e realizando actos de soberania.

Caído na ira regia de D. Urraca, coube a D. Teresa conseguir um outro pacto (em Palência) recebendo a sua parte da herança paterna, alargando o território com os senhorios de Zamora e Astorga. D. Henrique começou, então, a intitular-se, provavelmente com orgulho e esperança, ‘Comes in Alçamora et Asturica et in Portugal’60.

Parece, pois, bem clara a importância do factor Cluny e não apenas na génese do Pacto Sucessório. Quando os laços de amizade com o Imperador das Espanhas tinham afrouxado e, quando com D. Raimundo nunca se tinham estabelecido muito fortes61, D. Henrique era deles o maior benefi ciário, não podendo desse entendimento excluir-se o benefício directo para as suas tendências secessionistas.

As sucessivas investidas dos Almorávidas levaram D. Henrique a voltar-se para Coimbra, onde acabava de surgir um levantamento interno contra os seus homens: o foral de 1111 reconhece a personalidade do concelho, prestigia a sua estrutura municipal e dá mais valor à cavalaria vilã da região62. Mas, quando Santarém cai nesse mesmo ano, a fi m de guarnecer melhor a fronteira sul, tenta recrutar novas forças em Astorga, onde a morte o surpreende, em 1112: tinha 37 anos63. Alargara, como se propusera, o condado que lhe fora doado e levara até onde foi possível a sua autonomia; deixava um projecto impossível de travar e, à frente do condado, D. Teresa, viúva e jovem, com duas fi lhas e um fi lho de tenra idade.

A POLÍTICA DE D. TERESA

No seu governo do condado, D. Teresa ainda fará a Cluny, uma última doação: o mosteiro de Vimieiro (1127), no território de Braga, Nela nenhuma memória é feita do conde D. Henrique, mas, entre os dezassete confi rmantes fi guram, o conde galego D. Fernando de Trava

60 - Ch. BISHKO. Art. cit., 1971, p. 175.

61 - Segundo Rodrigo XIMÉNEZ DE RADA. De Rebus Hispaniae, D. Afonso VI teria expulsado da corte o seu

genro D. Raimundo, por suspeita de reivindicação indevida do poder.

62 - LP. Oc., n. 623, pp. 836-837. Maria Helena Cruz COELHO. Homens, espaços e poderes, sécs. XI- XVI, I –

Notas do viver social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 109 s.

63 - Bernard F. REILLY. Cristianos y musulmanes (1031-1157). In: História de España, VI. Barcelona: Editorial

Crítica, 1992; IDEM. El Reino de León y Castilla bajo el rey Alfonso VI (1065-1109). Toledo, 1988. Segundo o

autor, o conde D. Henrique teria morrido em Astroga, vítima dos ferimentos recebidos na defesa da cidade, onde

se encontrava com sua mulher D. Teresa e a rainha D. Urraca, cercados por Afonso, o Batalhador, rei de Aragão.

Sobre a acção do conde D. Henrique veja-se ainda o belo estudo de Damião PERES. Como nasceu Portugal.

Porto: Portucalense Editora, 1970 (1.ª, 1939).

92

e a fi lha de ambos, D. Sancha: nesta data, tendo-se a ‘rainha’ afastado da orientação autonómica de D. Henrique, Cluny é, tão só, objecto de devoção privada da rainha e já não acto de qualquer plano de governo64. Desviada daquele objectivo, não conseguiu manter a coesão com os barões, que na corte henriquina tinham sido a sua base de apoio com os mosteiros de que eram patronos ao receber os Costumes de Cluny e, no espírito gregoriano, fazer unidade na sua restituição aos bispos, sem perda dos benefícios e sufrágios espirituais65. Assim acontecera com as famílias da Maia, Sousa, Riba Douro, Baião e os Braganções, respectivamente nos mosteiros de Santo Tirso, Pombeiro, Vila Boa do Bispo, Ansede e Castro de Avelãs66.

Com eles, Cluny aparecia, ainda que indirectamente, a contribuir para a coesão do seu grupo, como, mas com severidade excessiva, reconhece Mattoso: ‘a infl uência cluniacense na formação de Portugal terá, portanto, de se procurar no terreno, ao mesmo tempo mais vago e mais profundo, da atitude mental da classe dominante portucalense, sobre a qual os mosteiros exerciam tão grande papel’67.

A partir de 1121 subalternizada D. Teresa à infl uência galega liderada pelo clã dos condes de Trava, emerge a fi gura de D. Paio Mendes da Maia, arcebispo de Braga, como pólo aglutinador da coesão colectiva dos muitos dirigentes que se mantém fi éis e levam ao enfrentamento em S. Mamede, prélio que a tradição situa junto a Guimarães e os Anais de D. Afonso Henriques dizem travado em 24 de Junho de 1128, na festa de S. João Baptista, o santo Precursor.. Mítica ou real, como refere Maria Helena da Cruz Coelho68, ou ambas as coisas, a data marcava o que já um artista plástico denominou com alguma propriedade, e os historiadores consagraram, ‘A Primeira Tarde Portuguesa’69

.

O papel que Cluny tivera no alvorecer desse primeiro dia não deve ser supervalorizado, mas também, não pode ser ignorado.

64 - A doação de 1127 viria a ser anulada, um século depois, em 1227 quando o arcebispo de Braga invocou

nulidade do acto, por não ter sido feito com o consenso da Igreja bracarense. Procedeu seguidamente a nova

doação, mas acautelando a reserva de direitos episcopais.

65 - Alguns magnates resistiam aos bispos gregorianos. Segundo a Vida de S. Geraldo, Soeiro Mendes, enfrentou-

-o com aspereza! Em Leão e Castela foram os infanções (mais que a velha nobreza) que se mostraram mais

cultos e mais abertos às correntes europeias e mais generosos nas doações, imitando o rei. Mas, não parece

ter sido também assim entre nós. No entanto, segundo o testemunho da Cronica Adefonsi Imperatoris. Ed. M.

Pérez GONZÁLEZ. León: Universidad de León, 1997, I, 87, pp. 88-89, alguns «nobres de sangue, portugueses»

temporariamente ao serviço do imperador, acabaram por regressar ao serviço do rei mas, o conde Gomes Nunes,

fez-se monge de Cluny!

66 - José MATTOSO. A Nobreza medieval portuguesa: a família e o poder. Lisboa: Estampa, 1987, p. 270.

67 - IDEM, ibidem, p. 107.

68 - Maria Helena da Cruz COELHO. Art. cit.. In: Oc., p. 18.

69 - Painel de Acácio LINO (1878-1956). Lisboa: Palácio da Assembleia da República. José MATTOSO. “A pri-

meira tarde portuguesa”. conferência realizada em Guimarães, em 24 de Junho de 1978, nos 850 anos da efemé-

ride. In: IDEM. Portugal Medieval. Oc., pp. 11-35.

93

6- AGOIROS, FEITIÇOS E OUTRAS MARAVILHAS: CRENÇA E CRÍTICA NO

PORTUGAL QUATROCENTISTA.

Margarida Garcez Ventura*

O fascínio que a Idade Média exerce sobre a gente comum dos nossos dias radica, porventura, na imagem de um universo povoado de forças enigmáticas, sombrias ou luminosas, que disputavam entre si o domínio de almas e corpos. Cabe ao historiador de profi ssão desmontar essa concepção, contrapondo-lhe um universo mental muito mais matizado, pois, ao mesmo tempo que constata e descreve a crença e a utilização de poderes “maravilhosos”, constata frequentes recuos na admissão dessas forças.

Repare o leitor que logo neste primeiro parágrafo cada palavra é uma armadilha. Sabemo-lo bem… É verdade que o rigor da ciência histórica passa pelo rigor vocabular. Por isso – dizemo-lo com ironia -, não basta colocar aspas para obter o perdão… Mas, como há que prosseguir o trabalho, avancemos, na esperança de que, no fi nal, consigamos alguma defi nição conceptual: senão fi losófi ca, pelo menos em termos operacionais.

Também é certo que o tema proposto se confi gura de extrema complexidade, a qual não devemos escamotear em prol da brevidade do tempo de exposição ou das páginas concedidas… Tentaremos, pois, respeitar a complexidade pugnando pela clareza.

Apesar das difi culdades, valerá a pena explorar neste Colóquio a questão enunciada, pois é larga a posteridade brasileira dos “agoiros, feitiços e outras maravilhas” da medievalidade lusa e europeia em geral, bem miscigenados com elementos índios e africanos…: tudo isso permaneceu ao longo dos séculos, apesar da constante didáctica eclesiástica, dos processos canónicos e civis, das grandes correntes fi losófi cas do racionalismo, do iluminismo e do positivismo…

Comecemos pelas fontes. Mais do que textos literários – leia-se fi ccionais – usaremos textos normativos, quer de índole jurídica, quer de intencionalidade didáctica no plano moral, religioso ou político: actas de sínodos, manuais de confessores, ordenações do reino; recorreremos a documentos da chancelaria régia, em particular às cartas de perdão; usaremos a cronística, com a sua intencional selecção e narrativa dos factos; estarão presentes algumas das obras

* Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Academia Portuguesa da História.

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produzidas pelos príncipes de Avis, obras nas quais a refl exão moral e política são o objectivo ou suportam outra fi nalidade mais explícita.

*

O campo é vasto e há que conhecê-lo e delimitá-lo. Veja-se como no título colocámos agoiros e feitiços entre as “maravilhas”, pois, sob esta categoria, cabe tudo quanto – ao quebrar as regras da ordem natural das coisas -, suscita o nosso olhar de espanto, de dúvida, de admiração ou de medo. Por isso, a primeira tarefa será percepcionar o que cabe neste espectro.

O clássico estudo de Jacques Le Goff revela-se curto… Mas, o trabalho basilar está feito desde que os Padres da Igreja se confrontaram com práticas remanescentes do sagrado pré-cristão. Depois, ao longo da Idade Média, o seu inventário (com alguma sistematização) foi sendo realizado para servir as necessidades pastorais ou judiciais. Por isso, andam a par a enumeração dessas “maravilhas” – ou melhor, como dizem os textos, “falsas maravilhas” – com os fundamentos e com a proposta de emenda dos que as praticam ou delas colhem benefícios.

O rol dessas práticas é bastante estável pois tem uma origem única, de acordo com a enumeração agostiniana continuada, no espaço do noroeste peninsular, por São Martínho de Dume1: a humanidade abandonou o Criador e, instigada pelo demónio, prestou culto às suas paixões e às forças da natureza; tendo sido quebrado o laço de confi ança entre Deus e o homem, fi cou alterada toda a relação da humanidade com a natureza e com o tempo. A intervenção de Deus na história, através da vinda de Cristo, libertou a humanidade dos enganos do demónio, reequacionando a sua posição nos planos divinos e no conjunto da natureza criada por Ele criada. Por isso, só por acção do diabo podem os homens voltar a cair nos antigos erros mencionados pelo apóstolo dos suevos: entre outros, a adivinhação através do voo ou do piar das aves, exame de vísceras e das chamas sagradas… E conclui: “não mandou Deus que o homem conhecesse o futuro, mas que, vivendo sempre no seu temor, esperasse d’Ele orientação e auxílio para a sua vida”.

1 - Cfr. Martínho de BRAGA. Instrução pastoral sobre superstições populares. De correctione rusticorum. Edição,

tradução, introdução e comentários de Aires A. NASCIMENTO. Lisboa: Edições Cosmos, 1997, pp. 55s e § 11,

12 e 13; Cfr. José LEITE DE VASCONCELOS. Religiões da Lusitânia, 4 Vols. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da

Moeda, 1988-1991, Vol. III; Carlos Alberto FERREIRA DE ALMEIDA. Paganismo - sua sobrevivência no ociden-

te peninsular. Sep. de In Memoriam António Jorge Dias. Lisboa, 1974. Cfr. a recente análise, descritiva e positiva,

de Ana Maria RODRIGUES (in História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, pp. 43-45).

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Como fi cou dito, quer os conteúdos quer o fundamento da condenação (e mesmo da crítica) da prática das “falsas maravilhas”, prolongam-se com enorme estabilidade ao longo dos séculos.

Tendo em conta a economia deste nosso trabalho, comecemos por nos fi xarmos na preciosa fonte histórica que é o Libro de las confesiones escrito entre fi nais do século XIII e inícios do século XIV pelo salamantino Martín Pérez. Trata-se de um dos manuais de confessores mais divulgados não só nos meios eclesiásticos, mas na corte do Portugal quatrocentista. Constava da biblioteca de D. Duarte2, que o conhecia bem e se lhe referiu no Leal ConselheiroI3. Julgamos que é um bom ponto de partida para esta refl exão, pois nada escapa à análise do autor, que por diversas vezes faz referência à adivinhação e outras “maravilhas falsas”, colocando-as entre os pecados mortais4. Tomemos boa nota das razões dadas para a condenação dessas práticas.

Martín Pérez começa por afi rmar que aqueles que praticam diversas formas de adivinhação desprezam o poder e a sabedoria de Deus, pois desejam saber as coisas que Ele guardou para si e não revelou ao homem5. Segue-se a listagem dessas formas, todas realizadas por conjurações e obras do diabo: necromancia, geomância, escritos para chamar o demónio, hidromância, aeromância, piromância; também existem outras maneiras a que chamam feitiços ou malefícios, que costumam fazer-se com rãs, cristas de galo ou imagens de cera; outras a que chamam sortilégios, que se fazem deitando sortes com algumas palavras de esconjuras, encantamentos e evocação do diabo; o “prestigium”, que é uma forma de encantamento que faz as coisas parecer o que não são (por exemplo, um outeiro parecer um castelo, ou uma corda parecer uma serpente), coisa grave pois escarnece da capacidade natural dos sentidos; também se pode adivinhar através das estrelas, constelações e sinais dos planetas, prática que dá pelo nome de mathesis; também através do voo e do canto das aves ou das entranhas dos animais; através da consideração de determinados dias, horas e lugares; também as falsas profecias inspiradas pelo diabo; outra forma é ter um espírito pitónico6; adivinhar através de

2 - D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Transcrição

de João José ALVES DIAS, Introdução de A. H. de OLIVEIRA MARQUES e João José ALVES DIAS. Lisboa:

Editorial Estampa, 1982, p. 208, em que se menciona “dous livros de martiym PÉREZ”, sem que saibamos a que

partes se refere ou se estavam traduzidos.

3 - D. DUARTE. Leal Conselheiro [L. C.]. Actualização ortográfi ca, introdução e notas de João MORAIS BAR-

BOSA. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, Cap. XXVI, p. 138 - “um livro que chamam Martim

PÉREZ” - e Cap. LXVII, p. 319, “um livro que fez um que se chama Martim PÉREZ”.

4 - Martín PÉREZ, op. cit., pp. 585-588.

5 - Classifi camos a adivinhação e práticas concomitantes como “crimes contra Deus” e não “contra a moral e os

bons costumes”, como escreveu Luís Miguel DUARTE na sua notável obra Justiça e Criminalidade no Portugal

Medievo (1459-1481). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 368.

6 - Act., 16, 16.

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oráculos ou de sonhos; adivinhar com cera, pez, chumbo ou outro metal; também através de palavras dos salmos ou dos evangelhos apontadas ao acaso; adivinhar com facas ou punhais…

Martín Pérez insiste que estas e outras formas de adivinhação e de operar falsas maravilhas são formas, suscitadas pelo demónio, de desprezar e desonrar a inatingível sabedoria de Deus. Segue-se a enumeração de outros conhecimentos com origem diabólica: esconjurar os diabos, nuvens ou enfermidades, usar fórmulas para forçar amores ou ódios, fazer encantamentos com objectos para curar, deitar cartas ou trazer nóminas com palavras ou sinais não cristãos; colher ervas e pendurá-las ao pescoço…

O panorama não poderia ser mais completo, nem os fundamentos para a condenação mais claros. E, segundo Martín Pérez, doutores e letrados seriam dos mais tentados – por causa da soberba que costuma atacá-los - a praticar as “ciências de adivinhar”, praticando e ensinando a nigromância e a “arte nicoria”, fazendo encantamentos, evocações e escritos para chamar os demónios7.

Martín Pérez testemunha também a existência de homens e de mulheres que fazem da adivinhação o seu ofício8.

Enfi m, um mundo povoado destas práticas, em que as “falsas maravilhas” roçavam o território do milagre; também um mundo com zonas de fronteira, em que frequentemente o ilícito se separava do lícito consoante as palavras inscritas ou pronunciadas…

Sigamos o comportamento de homens e mulheres que praticavam o que acima foi enunciado, os quais, no quotidiano concreto, são objecto das preocupações da Igreja. Disso dão testemunho as actas das assembleias sinodais. Não esperemos encontrar novidades, mas sim a renovação justifi cada da condenação desses actos e alguma achega para a clareza conceptual e vocabular que tentamos obter. Respiguemos alguma informação.

A 64ª constituição do sínodo da Guarda de 15009, já nos limites da Idade Média, começa por afi rmar que só Deus pode conhecer o que não está patente, assim como as coisas futuras. Porém, alguns homens e mulheres contra a sua consciência e ofendendo Deus, tentam chegar a esse conhecimento, “fazendo-se feiticeiros, adivinhadeiros, encantadores, sorteiros, agoureiros, benzedeiros, usando de outras semelhantes artes”.

7 - Martín PÉREZ, op. cit., p. 441.

8 - Idem, Ibidem, p. 445.

9 - Synodicon Hispanum. Dir. António GARCIA Y GARCIA. II – Portugal, por Francisco RODRIGUEZ, Aveli-

no de JESUS COSTA e Isaías da ROSA PEREIRA. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, pp. 257-258.

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Como seria de esperar, tais comportamentos são identifi cados noutras assembleias sinodais anteriores e havidos por extremamente graves (frequentemente no mesmo plano da heresia), sempre com absolvição reservada ao bispo ou seu vigário.

Assim, por exemplo, no sínodo de Lisboa de 140310, estão mencionados os que adivinham e lançam sortes, assim como os que fazem “escritos” para evocar os demónios. Também no sínodo de Braga de 147711 se recomenda aos abades, priores e outros que têm cura de almas que saibam se na sua freguesia existem “feiticeiros, benzideiros e adivinhadores”.

É ainda do contacto com os fi éis nas suas paróquias que saem as profícuas fontes de informação que são as Visitações pastorais. Entre vasta possibilidade de escolha, apontamos as preocupações de correcção manifestadas pelo célebre D. Jorge da Costa, cardeal de Alpedrinha. Por volta de 1460 recomenda aos párocos da diocese de Lisboa que denunciem publicamente por excomungados os feiticeiros, adivinhos, encantadores, benzedeiros, agoireiros e sortilheiros12.

As Ordenações régias contêm expressa condenação da feitiçaria, assim fi cando incluída entre os vários impedimentos para o normal gozo de alguns direitos13. Efectivamente, este é um dos casos em que a gravidade da ofensa a Deus, assim como o prejuízo para todos, impõe a intervenção régia, quer na adequação da lei do reino às exigências da Igreja, quer agindo como braço secular.

O rei terá, por dever de ofício, de castigar tudo e todos que se Lhe oponham e, por conseguinte, a “arte de feitiçaria e todos aquelles, que della usarem”. Estamos a citar as palavras da ordenação de D. Afonso V, que torna mais abrangente e confere justifi cação teórica a uma lei de D. João I, datada de 140314. Esta estava especialmente direccionada ao achamento de tesouros e só castigava com prisão e açoites públicos; a lei afonsina, para além da já mencionada justifi cação baseada nas obrigações da função real, não só penaliza o uso da feitiçaria para o achamento de ouro ou prata como prevê, para certos casos, o degredo para Ceuta e mesmo a pena de morte. De

10 - Synodicon…, p. 321.

11 - Synodicon…, p. 119.

12 - Margarida GARCEZ VENTURA. A Colegiada de Santo André de Mafra (séculos XIV-XVIII). Transcrição pa-

leográfi ca do Fundo Documental e Estudo Introdutório. Mafra: Câmara Municipal, 2002, Doc. LXXX “[Cap. 12],

idem. As Visitações Gerais de D. Jorge da Costa. Notícia e breve análise. Sep. das Actas do III Congresso Histórico

de Guimarães - “D. Manuel e a sua época”. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2004, idem em Estudos

em Homenagem ao Professor Doutor José Marques. 4 vols., Porto: Faculdade de Letras, 2006, Vol. 3, pp. 201-225.

13 - Para herdar, p. ex. Ordenações Afonsinas [O. A.]. Nota de apresentação de Mário Júlio de ALMEIDA COSTA

e nota textológica de Eduardo BORGES NUNES. 5 Vols., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, Liv. 5,

Tít. 100.

14 - O. A., Liv. 5, Tit. 42 (“Dos Feiticeiros”).

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resto, as práticas mencionadas são idênticas: lançar varas ou sortes, fazer evocações do demónio através de escritos, ver em espelhos ou noutros elementos.

As práticas com a fi nalidade de achar tesouros eram muito frequentes, tanto que são previstas na listagem dos Direitos Reais, encomendada por D. Duarte ao Doutor Rui Fernandes e depois passada a ordenação do reino15. Aqui podemos aumentar o nosso léxico: fala-se de “industria” 16usada para achar tesouros, em particular “arte mágica, ou feitiçaria”.

Seguido de uma crítica global (que mais adiante mencionaremos) apresentamos, para fi nalizar, um rol de D. Duarte17: profecias, visões, sonhos, prever o futuro, “virtudes das palavras”, pedras e ervas, sinais dos céus e na terra, em pessoas e animais, terramotos, graças especiais outorgadas por Deus a alguns, astrologia, necromância, geomância e “outras semelhantes ciências, artes, experimentos e subtilezas” e fazer prestidigitação…

*Até agora movemo-nos na constatação da realidade dos agoiros, feitiços

e outras maravilhas… nas várias formas que tomava, na justifi cação da sua condenação, e nalgumas consequências para os culpados.

Não vamos explorar a casuística. Como mais adiante se dirá mais pormenorizadamente, são poucos os protagonistas conhecidos e estável a tipologia dos que chegaram até nós.

Contudo, vamos trazer-vos um protagonista colectivo: o povo de Lisboa. Estava eminente uma grande batalha entre os exércitos do rei de Castela e de Portugal, essa que se iria travar nos campos de Aljubarrota nas vésperas do 15 de Agosto de 1385. Segundo o testemunho de Fernão Lopes18, ambos os reis tinham quem pedisse a Deus que estivesse com o seu “bando”. Por João I de Castela rezava a esposa, donas e donzelas. Como D. João de Portugal não era casado, nem tinha irmã ou parente feminina que intercedesse por si, é a cidade de Lisboa que irá assumir essa missão. Foram chamadas “pessoas religiosas, doutores e mestres em theologia” para darem o seu parecer sobre a forma de realizar tais deprecações. Ora, para conseguir que Deus os ajudasse e aplacasse a ira queporventura merecessem os seus pecados, disseram ser necessário

15 - O. A., Liv. 2, Tít. 24, § 30.

16 - Note-se a contribuição para a história deste conceito.

17 - L. C., Cap. XXXVII, p. 184.

18 - Fernão LOPES. Crónica del Rei Dom Joham I de Boa Memoria e dos Reis de Portugal o Décimo, Parte Segunda

por William J. ENTWISTLE. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1977, Cap. XLI.

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que o povo não perseverasse nas suas “maldades”. Que “maldades” eram essas, bem sabiam os ofi ciais e homens bons dos mesteres que prometeram extirpa-las para sempre: pecados e danados custumes dos gentios”. O cronista vai especifi cando: idolatria, feitiços e ligamentos, evocar diabos, sonhos, lançar roda, sortes, e outras coisas coisa que não possam acontecer naturalmente19. Fica também proibido cantar janeiras e maias ou outro mês do ano, adivinhar com águas ou lançar sortes, carpir e bradar sobre os fi nados.

Como dissemos, não vamos entrar pela exposição de comportamentos particulares. Aliás, para o século XV, os casos estão escassamente documentados20. Faltam-nos, de facto, as sentenças emitidas pelos tribunais eclesiásticos. Os testemunhos só abundam no espólio do Tribunal do Santo Ofício instituído em Portugal, como é sabido, em 154721.

Nas nossas andanças de investigação temos percorrido sistematicamente as chancelarias de D. João I, D. Duarte e parte da de D. Afonso V. No que diz respeito ao tema em estudo, encontrámos somente um caso não mencionado por Baquero Moreno: um tal João Negreiro, preso por feiticeiro, que foge quando está a ser transferido de Arcozelo, onde morava, para a cadeia da comarca de Trás-os-Montes. Desconhecemos o que fi zera, mas não era o mais grave previsto das Ordenações Afonsinas, isto é, da prática da feitiçaria não causara morte ou desonra de ninguém e a notícia chega-nos através da carta de perdão da fuga22. Os nove casos descritos por Baquero Moreno envolviam como agentes activos quase sempre mulheres “mundanas” e alcoviteiras, que praticavam a feitiçaria a pedido de esposas com a intenção de forçar o amor de maridos desatentos… Nos raros casos em que a carta de perdão descreve em que consistia a feitiçaria, lemos práticas de magia simpática (fi guras de chumbo e de terra lançadas à água ou atadas com um cordel sobre as quais diziam orações e outras palavras), de utilização de mezinhas e de lançamento de água, farinha e ramos de oliveira.

*19 - Menciona ainda outras práticas que não conseguimos identifi car: “nem descantaçoões nem dobra de vedeira

nem carautollas”. Note-se a referência à natureza, de que adiante falaremos.

20 - Vd., entre outras obras, Humberto BAQUERO MORENO. A Feitiçaria em Portugal no século XV. Sep. de

Anais, 2ª série, 29. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1984; Maria Helena da CRUZ COELHO. Supersti-

ção, fé e milagres na Idade Média. Coimbra: INATEL, 1995; Maria da Conceição FALCÃO FERREIRA. Breves no-

tas sobre feitiços no Portugal de Quatrocentos. Sep. de Água Mole, 3. Braga,1989; algumas indicações interessantes

em Isabel Maria de MOURA RIBEIRO QUEIRÓS. Th eudas e mantheudas: a criminalidade feminina no reinado

de D. João II através das cartas de perdão. 1481-1485. 2 Vols. Tese de mestrado em História Medieval (exemplar

policopiado). Porto. Universidade do Porto, 1999.

21 - Isaías da ROSA PEREIRA. Processos de Feitiçaria e de Bruxaria na Inquisição em Portugal. Sep. de Anais, 2ª

série, 24. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1977.

22 - Carta de perdão de 20 de Abril de 1446, TT, Chanc. D. Af. V, Liv. 5, fl . 27v e 43v.

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Ponderados os conteúdos de todo esse universo afi m à adivinhação e à feitiçaria, ponderadas as razões da sua condenação e vislumbrados alguns casos particulares, fi ca-nos a certeza da sua omnipresença na sociedade medieval.

Seguidamente, o que nos importa é verifi car a existência de alguma crítica à admissão generalizada sobre a real existência desses fenómenos, assim como perceber algum alargamento das justifi cações para a sua censura para além das explicitamente mencionadas pelas autoridades eclesiásticas.

As respostas não são simples. Os textos parecem admitir tacitamente a possibilidade de

discernir o que só Deus conhece ou de alterar o curso da natureza. A difi culdade - nossa e deles - começa na subtil destrinça entre a alteração da ordem natural das coisas realizada por Deus – é isso o milagre – e aquela que é produzida sob infl uência do demónio. Mais: há que entender, em termos de consequência, como é que na Idade Média se foi colocando a questão de natureza ou da ordem natural, em correlação com o “artifício”23 e o acaso e, muito mais, na sua relação com a Graça divina. Em muitas das fontes atrás referidas não está omissa a licitude de detectar as regularidades ou as constantes da ordem natural para as usar em proveito do homem. Uma ténue linha separa esta prática da tentativa de manipulação da natureza, linha que se vai consolidando ao ritmo do conhecimento empírico e científi co para a separação entre prognóstico e ciência24.

Sabemos que no Portugal quatrocentista, em particular na Geração de Avis, está presente toda uma refl exão sobre a natureza, na sua correlação com Deus. Aquilo a que chamamos natureza, escreveu D. João I no Livro da Montaria, é a natura naturanda, criada por Deus e por ele ordenada. Deus imprime na natureza uma ordenação regular dependente de uma causa exterior, da qual participam, de diversos modos, todas as criaturas. Do mesmo modo o infante D. Pedro – ou Frei João Verba - analisa os conceitos de natureza, acaso e artifício25

Estes pressupostos são de extrema importância, nomeadamente no que diz respeito à chamada astrologia judiciária. Por aqui caminhamos para a crítica e para o recuo que o título prometia… De facto, é necessário lembrar que a astrologia judiciária estava em

23 - Vd. supra n. 17.

24 - Martim de ALBUQUERQUE. Maquiavel e Portugal (Estudos de História das Ideias Políticas). Lisboa:

Aletheia Editores, 2007, p. 153.

25 - Livro de Montaria feito por El-Rei D. João I de Portugal. Introdução, leitura e notas de Manuela MENDONÇA.

Ericeira: Mar de Letras, 2000, Cap. XVIII; Livro da Virtuosa Benfeitoria, In: Obras dos Príncipes de Avis.

Introdução e revisão de Manuel LOPES DE ALMEIDA. Porto: Lello & Irmão-Editores, 1981, Livro Primeiro,

Cap. XI; Cfr. Pedro CALAFATE. “O conceito de ordem natural no Livro da Virtuosa Benfeitoria”. In: Biblos, Vol.

LXIX (1993), pp. 253-263.

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uso por toda a Europa, fruto da convicção na estreita correlação entre o homem, o céu e a terra26 e, por isso, na infl uência dos corpos celestes sobre a natureza terrestre e sobre o homem. Em Portugal, ela foi usada ou registada por médicos famosos e cronistas, como Rui de Pina e Zurara; e, na corte, conhecem-se obras de astrólogos cujas obras fi guram nas livrarias dos príncipe se Avis27.

*

A normal utilização da astrologia judiciária nas cortes da cristandade da baixa idade média torna mais digno de interesse qualquer recuo ou crítica a esta prática. É este o caso de textos da autoria de D. Duarte ou que se lhe referem. Textos tanto mais preciosos quanto não são de eclesiásticos ou letrados, antes signifi cativos de uma cultura média, se não plural, pelo menos não unívoca no Portugal quatrocentista. Se cruzarmos trechos da prosa eduardina, conseguiremos uma coerência de pensamento apoiada na observação concreta que os tornam fi áveis como fonte para a mentalidade da corte e mesmo de certos sectores da sociedade em geral28.

Vejamos como Rui de Pina relata o que se passou no dia em que D. Duarte subiu ao trono29. Passemos ao lado da heurística sobre as intenções gerais da obra de Pina, e centremo-nos no episódio. No dia 15 de Agosto de 1433, depois de se ter confessado e comungado, D. Duarte estava prestes a ser levantado por rei quando foi interpelado por Mestre Guedelha, um judeu seu médico e grande astrólogo. O aviso não podia ser mais claro: que deixasse passar o meio dia, pois a hora marcada para a cerimónia era muito perigosa, pela posição de Júpiter e do Sol e por outros sinais do céu. O infante respondeu-lhe que não duvidava que a astronomia era uma das ciências aprovadas, como não duvidava que os astros – “corpos sobrecelestes” - infl uenciavam os “corpos inferiores”. Todavia, o que ele acredita

26 - Bernard GUNÉE. L’Occident aux xive et xve siècles. Paris: PUF, 1971, pp. 108s.

27 - D. João I, no seu Livro de Montaria, cita de obras de astrólogos, não só de Ptolomeu, mas do catalão João

Gil e de Aly Aben Ragel, autor árabe que Afonso X mandara traduzir para castelhano; D. Duarte possuía dois

livros de astrologia (Aires A. NASCIMENTO. “As Livrarias dos Príncipes de Avis”. In: Biblos, Vol. LXIX (1993),

pp. 267-287, p. 286). É no plano que se aproxima da astrologia geográfi ca que seguem mestres astrólogos na frota

que levou para Itália D. Leonor, fi lha de D. Duarte, aquando do seu casamento com Frederico III, assim como

outros muitos ao serviço do infante D. Henrique.

28 - Cfr., entre outros, os nossos D. Duarte, o Eloquente. Lisboa: QuidNovi / Academia Portuguesa da História,

2009, A Corte de D. Duarte. Gijón: Editorial Trea (no prelo) e “Uma lâmpada de prata e muito mais. Testemunhos

de D. Duarte sobre a santidade de Nuno Álvares Pereira”. Comunicação apresentada ao Colóquio O Condestável

S. Nuno de Santa Maria, organizado pela Sociedade Científi ca da Universidade Católica Portuguesa em conjunto

com a Academia Portuguesa da História (Nov. 2010, no prelo).

29 - Rui de PINA. “Chronica do Senhor Rey D. Duarte”. In: Crónicas de Rui de Pina, Introdução e revisão de

Manuel LOPES DE ALMEIDA. Porto: Lello &Irmão-Editores, 1977, Cap. II (“Como ho Ifante Dom Duarte foy

alevantado por Rey, e como foy aconselhado, que naquella ora se nom alevantasse”).

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é em Deus, que tudo governa e espera com a sua graça e ajuda de Nossa Senhora, bem governar. Insiste Mestre Guedelha que não vê inconveniente em se adiar um pouco a cerimónia para se realizar “prosperamente”. Mas D. Duarte declara que não o faz porque não deve fazê-lo, quanto mais não fosse para não parecer que tem pouca esperança e fé em Deus. O diálogo termina com a profecia de Mestre Guedelha: que ele reinaria poucos anos e com grandes fadigas, e trabalhos.

Rui de Pina, que escreveu já em tempos de D. Manuel, diz que os factos confi rmaram a profecia… e ajudou a criar a lenda. O cronista não descura também assinalar que a lição fora aprendida pelo infante D. Pedro, que, já regente, chama mestre Guedelha para regular, “segundo as ynfl uencias e cursos dos Planetas, a melhor ora e ponto” para o levantamento de D. Afonso V30. E apesar de disto, dizemos nós, aconteceu Alfarrobeira.

Do aviso de Mestre Guedelha, constam os elementos da adivinhação através da observação dos astros, com vista à defi nição de dias e horas favoráveis ou desfavoráveis; da resposta de D. Duarte consta, por um lado, a crença na infl uência dos astros sobre a vida na terra e, por outro, a proclamação do senhorio de Deus no decorrer dos acontecimentos.

Convém perceber a que infl uência se refere o monarca, tanto mais que declara saber que a “astronomia” é uma das ciências permitidas e aprovadas. De facto, D. Duarte, desejando uma explicação cabal sobre o assunto, de acordo com a doutrina da Igreja, solicitara-a ao Doutor Diogo Afonso Mangancha31. A resposta vem fundamentada nos canonistas e em São Tomás de Aquino: é lícito tentar prever fenómenos naturais e a tendência de uma ou outra pessoa para determinada doença; quando, porém, a previsão incide sobre as “obras dos homens que tem liure arbitrio”, aí é proibido pela Igreja; em assuntos importantes ou perigosos dever-se-ia, sim, usar a astronomia com prudente consulta de três peritos. O Doutor conclui conferindo a Deus o poder supremo sobre tudo e todos.

É bem perceptível a informação fornecida pelo grande jurista no pensamento de D. Duarte registado por Rui de Pina, assim como em vários escritos eduardinos. Não é possível estabelecer uma cronologia certa entre o parecer do Doutor Mangancha esses escritos. Porém, é pouco provável que o parecer seja anterior a 1431, data em que Mangancha é mencionado como “doctor utrius que iuris et magister in artibus”32.

30 - Rui de PINA. “Chronica do Senhor Rey D. Aff onso V”. In: Crónicas…, Cap. II, pp. 588-589.

31 - Livro dos Conselhos…, pp. 204-205.

32 - Judite Antonieta GONÇALVES DE FEITAS. A Burocracia do “Eloquente” (1433-1439). Os textos, as normas,

as gentes. Cascais: Patrimonia, 1996, p. 171.

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Assim, se o comportamento de D. Duarte no dia da sua subida ao trono e se alguns escritos adiante mencionados e que constam do Leal Conselheiro, puderam benefi ciar do magistério de Diogo Afonso Mangancha, tal não sucedeu com um testemunho de 1429 que merece a nossa atenção. Trata-se de um esclarecimento inserido na “carta de crença” que D. Duarte escreve ao infante D. Fernando para ser entregue ao infante D. Pedro33. Em causa estavam desavenças entre D. João I e os fi lhos, e de estes entre si, com origem em vários mal-entendidos e agravos relacionados com o casamento de D. Duarte com a infanta D. Leonor de Aragão (Setembro de 1428). A certa altura D. João I teria exigido que a festa de casamento não se realizasse em Évora, como estava previsto, porque havia peste. Pelas palavras de D. Duarte percebe-se que o monarca tinha tomado a peste como sinal de Deus para alterar o local e data da cerimónia, que desejava ver adiada. Para além da peste, em si mesma um sinal divino, o desencontro entre D. João I e o infante teria sido interpretado como determinado pela infl uência dos astros. Ora D. Duarte reduz o acontecimento a factos puramente naturais e racionais: não foi ao encontro do pai porque o mensageiro tardou por causa da peste que grassava na zona de Évora e porque seu pai lhe escrevera dizendo que iria para Trás-os-Montes na data em que ele estaria em Coimbra. E dá o toque fi nal: é bom que se lembrem que “o homem sabedor se asenhorea das estrelas”, que não podem mais do que sugerir-nos alguma tentação, inclinação ou desejo… mas Deus tem poder sobre todas as coisa e nós participamos desse poder, através do livre arbítrio que Deus nos deu… 34Por isso, confi a que D. João I, como bom homem, não fará caso das estrelas nem da astrologia.

Verdade seja dita que constava ser D. João I muito céptico acerca de profecias e feitiços. A informação é de Zurara35, quando descreve a reacção do rei à forma como o pior do Hospital e o capitão Afonso Furtado, enviados para espiar o ancoradouro de Ceuta, lhe comunicam a forte possibilidade de uma rápida conquista: um, transmitindo-lhe uma profecia moura que ouvira ainda em tempos de D. Pedro, outro pedindo-lhe duas cargas de areia, um novelo de fi ta, meio alqueire de favas e uma escudela. Quanto à primeira informação, diz Zurara, que o rei “tijnha em pequena comta

33 - Margarida GARCEZ VENTURA, D. Leonor de Aragão. A Triste Rainha. 1402 (?) – 1445. Lisboa: QuidNovi

/ Academia Portuguesa da História, 2011, p. 24; Monumenta Henricina. XV Vols. Coimbra: Ed. Comissão Exe-

cutiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960-1974, III, pp. 300-304, doc.

142; Livro dos Conselhos…, pp. 50-55.

34 - D. Duarte defi ne assim o livre arbítrio (L. C., Cap. VI, p. 53): “A quarta [vontade], do livre alvidrio, como

Senhor entre todas manda connosco o que se faça em todas as cousas que por nosso escolhimento fazemos” .

35 - GOMES EANNES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I. Publicada por Francisco

Maria ESTEVES PEREIRA. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915, Caps. 17 e 18 (pp. 56-59).

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semelhantes juízos”. E quando lhe pediram o material acima descrito – que afi nal se destinava à construção de modelos do porto e da fortaleza - exclama: “huũ me falla em estrollomia, outro me falla em semelhança de feitiços. Quem auia de cuidar que taaes dous homees ouuessem de trazer semelhamte rrecado”.

Voltemos a D. Duarte, como ponto alto do recuo e da crítica. Não que nos diga algo muito diferente do que lemos como atribuído a D. João I ou escrito por ele, pelo infante D. Pedro ou muito diferente do que era doutrina da Igreja. Todos se movem, afi nal, somente no plano da astronomia/astrologia como conhecimento da infl uência dos astros nos comportamentos previsíveis dentro da ordem natural.

Fixemo-nos, pois, em D. Duarte, seleccionando dois temas: recusa em submeter-se ao determinismo apontado pela conjugação dos planetas; desconfi ança na possibilidade de manipular a vontade e os sentimentos humanos. Os seus veementes escritos, nesta matéria, encontram-se integrados noutros contextos não menos estruturantes: o da fé na providência divina e o da defesa do livre arbítrio.

No capítulo XXXIX do Leal Conselheiro36 D. Duarte diz-nos como se forma e se altera a condição humana. O soberano conjuga os vários elementos, que em linguagem actual se situam no âmbito da pertença a um país ou a uma linhagem, assim como a infl uência do que comemos ou aquilo que aprendemos com as doenças, acontecimentos ou amigos. No meio de todas estas condicionantes aponta ainda: “das planetas, constelação”. Seguem-se esclarecimentos e críticas com recurso a exemplos quotidianos e apelo às questões teológicas que levantavam. Quando chega “às planetas” tem especial cuidado em explicar que os “planetas” nos apontam o que chamaríamos condições, nos induzem a inclinação do bem e do mal, ao modo de tentações, mas nunca de tal forma que não as possamos contradizer com a graça de Deus. Se assim não fosse, não teríamos livre arbítrio: “Fica tudo em poder de nosso livre alvidrio, não nos constrangendo a predestinação nem por ciência de Nosso Senhor Deus.” É a recusa da “necessidade” que permite a cada um escolher e aproveitar as infl uências inerentes à vida em sociedade. Mas é a graça de Deus que permite transformar em bem todas as circunstâncias, mesmo as mais adversas, pois “está escrito” que para aqueles que «amarem o Senhor» “todas as cousas se lhes tornarão em bem”37.

D. Duarte não rechaça a “astronomia ou outras ciências ou artes”38: só pede alguma ponderação antes de lhes dar crédito. Mas não assim

36 - A mesma listagem consta, de forma autónoma, no Livro dos Conselhos (p. 157).

37 - A mesma ideia no L. C.,Cap. V, p. 177.

38 - L. C., Cap. XXXVII, p. 187-188.

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com “agoiros, sonhos, dar de vontade, sinais do céu e da terra”: nenhum homem bom deverá tê-los em conta, pois é difícil discernir se são obra de Deus ou do diabo. De resto, o conselho é sempre não se preocupar com estas coisas, mas colocar a sua confi ança em Deus.

Esta passagem, de grande profundidade teológica e vivencial, terá de ser lida em interacção com outras. Conhecendo o modo como as obras de D. Duarte foram escritas ou compiladas, a custo se poderá estabelecer uma cronologia sequencial. Mas não importa, pois o que interessa é a insistência no tema. Assim, por exemplo, a explanação e o louvor da virtude da Prudência vêm acompanhados com indicações sobre a consulta dos astros, sempre com alguma desconfi ança e dentro dos parâmetros outorgados pela Igreja39; a listagem dos elementos intervenientes na formação e na transformação dos homens, acima referida como integrado o Leal Conselheiro, consta também do conjunto de papéis conhecido por Livro dos Conselhos40 os argumentos e as citações da Escritura são paralelos aos usados, mais resumidamente, na citada carta para o infante D. Pedro, essa, sim, datada de 1429.

Com referência explícita ou simplesmente aludido41, é o livre arbítrio, fruto da graça divina e por ela sustentado, que permite ao homem conduzir a sua vida para além das circunstâncias, isto é, “disposição dos corpos, idades e virtudes a que naturalmente cada um nasce disposto, ou segundo o dito dos astrólogos que as planetas por ordenança de Nosso Senhor o dotaram”42.

De tudo isto se deduz a responsabilidade individual. D. Duarte critica aqueles que “têm desejo de cumprir suas más vontades” e não se corrigem porque dizem que “os bens na vida presente vêm da ventura e não por ordenança de Nosso Senhor”. E afi rma que para os “bons” tudo se converterá em bem… e termina afi rmando que, se buscarmos o Reino de Deus e trabalharmos com esforço e perseverança, alcançaremos “o que Deus, direito e piedoso Senhor, quiser de nos ordenar”, e não “pensar que virão por fortuna nem constelação de planetas”, mencionando a propósito o exemplo de Nuno Álvares Pereira43. Esperando sempre na misericórdia de Deus, há que perseverar no bem, sem ligar a sinais ou sonhos44.

39 - L. C., Cap. LIII, p. 267.

40 - Livro dos Conselhos…, p. 157. Vd. supra n. 37.

41 - P. ex. no L. C., Cap. LXXVI, p. 339 ou no Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela que fez El-Rey

Dom Eduarte de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta. Edição Crítica por Joseph M. PIEL. Lisboa: Imprensa

Nacional-Casa da Moeda, p. 97.

42 - L. C., Cap. XXI, pp. 114-115.

43 - L. C., Cap. XXV.

44 - L. C., Cap. VI, p. 53.

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Nunca é demais insistir na importância das afi rmações de alguns textos dos príncipes de Avis, sobretudo de D. Duarte, pelo esclarecimento, equilíbrio e integração do uso da astronomia numa visão sistémica do Homem perante Deus e o universo. D. Duarte fi ca assim entre os grandes fi lósofos medievais – Nicolau de Oresme, Gerson ou Pico de la Mirandola - que combateram a astrologia porque “reduz a nada a liberdade humana”45.

A par com a salvaguarda do livre arbítrio, também o apego à racionalidade fundamenta a crítica eduardina a crenças e profecias.

Como atrás foi dito, D. Duarte dá-nos uma lista de “virtudes e ciências” a que muitos dão fé46: profecias, visões, sonhos, prever o futuro, poder de certas das palavras, pedras e ervas, sinais dos céus e na terra, em pessoas e animais, terramotos, astrologia, prestidigitação, necromância, geomância e “outras semelhantes ciências, artes, experimentos e subtilezas”. O monarca dá o conselho para ser seguido por quem quiser: é melhor duvidar do que atrevida e estupidamente acreditar. Mais: acredita no que a Igreja manda acreditar, não acredita no que proíbe. Contudo, há acontecimentos tão estranhos aqui e ali que só se podem explicar, não pela razão, mas porque são virtudes que Deus quis conceder a certas pessoas47, e então entramos já em alguma grande maravilha que para os cristãos é “mui evidente milagre”48. Tudo o resto, diz, é mais que certo ser “engano e burla”.

Quanto aos “feitiços” que fazem com que um homem ou uma mulher tomem a fi gura de animais aos olhos do respectivo cônjuge, tal engano dos sentidos não lhe parece possível. Como também não pode acreditar que algo que se dê para comer ou beber possa forçar a vontade de amar: para matar, ou enlouquecer, ou fi car doente, é possível, mas não para amar, pois nunca tal viu, a razão não lhe consente crer e a Igreja não o manda acreditar.

Apelo ao uso da razão, defesa da correspondência entre o real existente e o real apercebido pelos sentidos, crença no senhorio do homem sobre a natureza, valorização do livre arbítrio… tudo isto fundamentado na fé como instrumento da liberdade. Julgo ser esta a importante proposta que germinou no século XV português, no limiar do nascimento do espírito científi co, no limiar de um generalizado contacto com a natureza desconhecida e ameaçadora, no limiar de uma não menor batalha que foi a da autonomia da vontade frente a todas as formas de predestinação.

45 - Cfr. a lúcida análise de Luís Miguel DUARTE, op. cit., p. 137-138.

46 - L. C., Cap. XXXVII, p. 184.

47 - Sobre o tema da ordália do ferro em brasa, vd. Nuno Espinosa GOMES DA SILVA. “Uma referência de D.

Duarte ao ferro caldo, no Leal Conselheiro”. In: Actas das “Iªs Jornadas de História do Direito Hispânico. Lisboa:

Academia Portuguesa da História, 2004, pp. 195-202.

48 - D. Duarte conta a história dos dois corvos do Cabo de São Vicente, com breve teorização (L. C., Cap.

XXXVI). Deixamos de fora deste trabalho a questão tangente do maravilhoso e do milagre.

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7- PAIXÕES DA ALMA, MELANCOLIA E MEDICINA (SÉCULOS XIII-XV).

Dulce Oliveira Amarante dos Santos*

“Quando o medo ou a tristeza duram muito tempo, há um estado melancólico”.

Hipócrates, Aforismo 6, 23

Na Idade Média, as emoções e os sentimentos humanos nas diversas formas de manifestações, de contenção, de equilíbrio ou de excesso eram designados pela expressão paixões da alma. Constituíram-se em objetos de discussões intermináveis em uma ampla gama de textos literários, fi losófi cos, teológicos, religiosos e médicos ao longo do período. Tanto nos textos religiosos quanto nos textos médicos nota-se uma preocupação em compreender, analisar, teorizar e ordenar o universo emocional humano numa busca contínua de minorar o sofrimento e controlá-lo. Sobretudo, porque os sentimentos em transbordamento confi guravam-se como o ponto de cruzamento entre o corpo e alma, já que para os eclesiásticos eram o caminho em direção ao pecado e para os físicos (médicos) eram a via em direção às enfermidades. No enquadramento fi losófi co, desde o V século, com Santo Agostinho que propôs o esquema das quatro paixões principais, desejo, medo, alegria e dor até o século XIII, quando São Tomás de Aquino organizou um sistema mais complexo, percebem-se as tentativas de ordenação da matéria emocional1. Por outro lado, nos primeiros séculos da organização da instituição eclesiástica no Império romano, os religiosos, Evrágio Pontico (345-399) e João Cassiano (360-435) foram os primeiros responsáveis pela composição da lista de pecados capitais, posteriormente complementada por Gregório Magno(540-604). Tratou-se de um sistema bem articulado de normatização das consciências para combater os vícios humanos2 sobretudo entre os clérigos e monges. Essa lista incluía: vanglória, ira, inveja, tristeza ou acídia, gula, fornicação e avareza. Foi mantida por muitos séculos no ensino tradicional dos monges para incentivar

* Depto. de História e PPG de História da Universidade Federal de Goiás.

1 - C. CASAGRANDE. & S. VECCHIO (orgs.) Introduzione. In: idem. Piacere e dolore. Materiale per una storia

delle passioni nel Medioevo. Firenze: Sismel, 2009. pp. 3-11. Em 1649, Descartes lança sua obra, As paixões da

alma, em que desqualifi ca todo o pensamento anterior médico e fi losófi co sobre o tema.

2 - Siegfried WENZEL. “Th e seven deadly sins: some problems of research”. Speculum, XLIII-1, 1968. pp. 1-22.

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a busca da perfeição espiritual e moral na vida religiosa, ou seja, criar modelos de comportamentos virtuosos para o mundo do clero regular e secular, que pudessem funcionar como marca identitária distintiva do mundo dos laicos. Nesse sentido, havia convergências e diferenças entre os discursos fi losófi cos, religiosos e os médicos em relação às emoções humanas.

A partir do século XIII, como a medicina universitária teorizou, sistematizou e tratou as paixões humanas?

A base de toda teoria médica medieval sobre as paixões ou acidentes da alma encontra-se na autoridade das obras de Cláudio Galeno (130-200?), médico que viveu e escreveu sua extensa obra no II século, na Roma imperial. Os 83 textos remanescentes chegaram até nós, sobretudo, pela via das traduções árabes do médico e fi lósofo persa Avicena (980-1037). Galeno, fi lho de pais gregos, nasceu em Pérgamo, na Ásia Menor, estudou também na Grécia e em Alexandria, no Egito, e após breve período como médico dos gladiadores estabeleceu-se em Roma e tornou-se médico da corte do imperador Marco Aurélio (161-180). Ele consolidou e sistematizou as teorias hipocráticas anteriores, a partir das quais criou as suas próprias, que, por sua vez, infl uenciaram junto com as obras da fi losofi a natural de Aristóteles, a medicina universitária da Europa medieval. Dentre seus conceitos, destaca-se o de compleição (em latim, complexio; em grego, krasis), que engloba a constituição física, a disposição do espírito e o temperamento dos indivíduos3. Esse conceito estrutura, de certa forma, as tendências para as diversas paixões da alma. O entrelaçar dos quatro elementos constituintes do universo (terra, água, ar e fogo), os humores corporais (sangue, bílis amarela, bílis negra e fl euma) e a mistura das qualidades (quente, frio, seca e úmida)4 integram a compleição ou temperamento individual, igualmente em número de quatro: sanguíneo, colérico, fl eumático e melancólico. No entanto, essa compleição se alteraria ao longo da vida, por isso seria necessário também levar em consideração a variável idade. A compleição é quente e úmida na infância, quente e seca na juventude, fria e úmida na maturidade e fria e seca na velhice5.

No século XIII, outra conexão teórica foi estabelecida entre as emoções (na perspectiva somática e não psíquica) e o campo da dietética ou medicina preventiva, considerando-as como um dos fatores a serem controlados individualmente para a manutenção do

3 - N. G. SIRAISI. Medieval & Early Renaissance medicine. Chicago: Th e University of Chicago Press,1990. pp.

84-84.

4 - O sangue é quente e úmido como o ar, a fl euma é fria é úmida como a água, a bile amarela quente e seca

como o fogo e a bile negra, fria e seca como a terra.

5 - Carmen PENA; Fernando GIRÓN. La prevencion de la enfermedad en la España bajo medieval. Granada:

Editorial Universidad de Granada, 2006. p. 23.

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equilíbrio dos humores e conseqüentemente da saúde corporal6. È importante ressaltar que o princípio organizador da saúde, desde a Antiguidade até a Idade Média, era o do equilíbrio ou da moderação, o mesmo valendo para o campo das emoções. Assim a obra galênica de medicina preventiva, De sanitate tuenda7 infl uenciou essa parte da teoria médica sobre as paixões da alma, já que nela Galeno elaborou a teoria das seis coisas naturais (fi siológicas) e das seis não naturais (externas) necessárias ao bom funcionamento do corpo e à preservação da saúde humana. No primeiro grupo, o das seis coisas naturais incluiu os quatro elementos que compõem o universo (terra, água, ar e fogo); as compleições; os humores; as partes sólidas do corpo; as operações fi siológicas internas e as faculdades ou grandes funções biológicas8. No segundo grupo, o das seis coisas não naturais, encontram-se as paixões da alma como uma das partes constituintes do conjunto externo à natureza do corpo humano, mas igualmente fundamental na manutenção da saúde corporal. Cinco das quais estão organizadas em pares: o ar e o meio ambiente; o exercício e o repouso; os alimentos e as bebidas; o sono e a vigília; a retenção e a expulsão e a sexta parte, as paixões da alma.

Essa teoria médica defendia a relação estreita entre corpo e alma. Assim, as paixões da alma ou ainda os acidentes da alma (outra expressão encontrada em obras médicas) eram considerados movimentos psicossomáticos afetivos relacionados diretamente ao corpo e indiretamente à alma. Elas se desencadeavam no plano do espírito ou da imaginação, com efeitos imediatos sobre o corpo, no qual produziam uma série de reações vitais ou enfermidades. O órgão central desse processo era o coração. Assim, a dinâmica emotiva era desencadeada pela entrada ou saída do calor e dos espíritos no coração, seguida por mudança no sangue e manifestações somáticas características: avivamento da cor da pele e aceleração da respiração e do batimento cardíaco, por exemplo9. No rastro de Galeno, no Liber de conservanda sanitate, atribuído ao físico Pedro Hispano, afi rma-se, no século XIII:

6 - Alessandro ARCANGELI. “Gioia e tristezza nella tradizione galenica”. In: C. CASAGRANDE; S. VECCHIO

(orgs.) Piacere e dolore…, op.cit., pp.171- 185.

7 - GALENUS. A translation of Galen´s Hygiene (De santitate tuenda) by Dr. Henry Montraville Green with an

introduction by Henry E. Sigerist. Springfi eld, III, Th omas (1951), xxvii.

8 - No século IX, o médico árabe Hunayn Ibn Ishaq, conhecido como Johanitius acrescentou a sétima coisa

natural ao esquema acima, em sua obra Ysagoge (ou Introdução), o pneuma ou espíritos: o espírito animal do

cérebro, o espírito vital do coração e o espírito natural do fígado. Esses espíritos veiculam as três faculdades e

correspondem à tripartição da alma de origem platônica e aristotélica O espírito animal ou psíquico subdivide-se

em três partes do cérebro: a racional, a sensorial e a motora.

9 - Pedro Gil SOTRES. “Les régimes de santé”. In: M. D. GRMEK; B. FANTINI (dirs.). Histoire de la pensée

médicale en Occident. Paris: Le Seuil, 1995. V. 1. Antiqüité et Moyen Age, pp. 276-277; IDEM, «  Los regimina

sanitatis ». In: IDEM, Arnaldi de Villanova Opera Medica Omnia. Barcelona: Publicaciones de la Universitat de

Barcelona, 1996. pp. 473-480.

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O coração é o órgão côncavo, cavernoso em baixo, amplo em cima, e é o termo de todas as operações da alma racional, segundo o testemunho de Galeno. As operações do espírito começam no cérebro e recebem seu complemento no coração.10

Assim, a doença faz parte da natureza na medida em que ela provém de causas naturais, mas também é, de certa maneira, um acontecimento contrário ao percurso natural da vida

Do ponto de vista da prevenção, classifi cavam-se como paixões positivas para a saúde, a alegria e a esperança e os fenômenos fi siológicos relacionados ao prazer, estados que podiam ser favorecidos, segundo alguns conselhos dos físicos, com alimentação propícia, com o convívio dos amigos e com a harmonia com seu grupo. As paixões negativas para a saúde, tais como, a tristeza e a ansiedade, trazem a dor e a doença, portanto, tratam-se de dois estados contrários ao dinamismo vital, que resfriam e secam o corpo e o coração. Igualmente, o medo e a cólera produzem também efeitos péssimos no corpo, como arrepios, frio, palidez e muitas vezes, diarréia. No entanto, o quarto acidente da alma, a ira ou cólera provoca, entre outros, os sintomas de taquicardia e vermelhidão na face. Ela dividia a opinião dos físicos medievais, pois alguns a consideravam, em certas circunstancias, benéfi ca e perniciosa em outras. Para apaziguá-la, prescreviam música, leitura e, sobretudo, um sono reparador.

A MELANCOLIA NA MEDICINA UNIVERSITÁRIA E NO DISCURSO ECLESIÁSTICO

E a melancolia? Como era descrita, avaliada e tratada pelos físicos e pelos eclesiásticos? Quais os pontos de contato entre esses dois discursos ao longo da Idade Média?

Melancolia, humor melancólico, estado melancólico. Muitos são os vocábulos ou expressões que tentam explicar o estado de espírito, a doença ou o temperamento melancólico. Muitos signifi cados divergentes parecem coexistir, criando ambivalências e ressonâncias através dos séculos, da Antiguidade até o início do século XX, quando perdeu seu caráter cultural agregador11. Mas de qualquer forma, a primeira defi nição é médica, como o aforisma de Hipócrates12(V séc. a. C) citado na epígrafe confi rma. O termo melancolia remonta ao vocabulário da medicina antiga, do grego melas (negra) e khole

10 - Pedro HISPANO. Liber de conservanda sanitate. In: Obras médicas de Pedro Hispano. Ed. crítica por Maria

Helena da Rocha PEREIRA. Coimbra: Por ordem da Universidade, 1973. p. 462.

11 - J. RADDEN. “From melancholic states to clinical depression”. In: IDEM (ed.), Th e nature of melancholy.

From Aristotle to Kristeva.Oxford: Oxford University Press, 2000. pp. 3-5.

12 - HIPÓCRATES. Aforismos. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.102;

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(bile), depois atrabilia em latim. A bile negra, mais imaginária que real, era um dos quatro humores ou líquidos constituintes do corpo humano na teoria humoral da escola hipocrática sistematizada por Galeno já referida anteriormente. Apenas a partir do II século a. C. foi defi nida com mais precisão a bile negra, cujo excesso no organismo era responsável pelos estados melancólicos13.

Na explicação galênica, o humor ou temperamento melancólico possui duas qualidades, é frio e seco. Atribui-se esse humor ao excesso da bile negra secretada pelo fígado, que provoca problemas em diversas partes do organismo, sendo que em cada uma variam os sintomas. Pode ocorrer no encéfalo, no sangue das veias de todo o corpo ou no estômago e órgãos digestivos atingindo o encéfalo por meio dos vapores. Dessa maneira esses vapores ofuscam a inteligência e podem possibilitar visões e delírios. A estação do ano mais propícia para a manifestação dessa enfermidade era o outono. Essa descrição do humor melancólico como predisposição física individual (compleição) para a doença foi autoridade na medicina universitária a partir do século XIII14.

A obra salernitana clássica de dietética, Regimen Sanitatis Salernitanum15, na parte da caracterização dos temperamentos, o artigo IV trata das características dos melancólicos:

“Falta ainda dizer da cólera negra as qualidades.Torna as pessoas tristes, disformes, de poucas palavras.Esses fazem vigília a estudar, não é dado sono a mente.

Conservam os seus propósitos, julgam que nada é seguro.É invejoso e triste, cúpido, de mão persistente,

Não isento de dolo, tímido, e do loto tem a cor” (p. 78)

A grande quantidade de traços torna a melancolia difícil de ser caracterizada. Pode ser avaliada, tanto como um estado normal quanto um sinal de perturbação mental, tanto um conjunto de sentimentos, tristeza, apatia, abatimento, desespero, angústia, exaustão quanto formas de comportamento, tais como, inércia, prostração, ociosidade. A melancolia possibilita o contato ao mesmo tempo com o fato biológico e com uma das tradições mais antigas da cultura ocidental.

13 - Jennifer RADDEN (ed.). Th e nature of melancholy…, op.cit., p. 68.

14 - GALEN. On the aff ected parts. Tradução inglesa de Rudolf E. SIEGEL. Basiléia: S. Karger, 1976.

15 - Regimen sanitatis salernitanum. Trad. de Maria Helena da Rocha PEREIRA. Prolóquio de Luís de Pina.

Porto: Centro de Estudos Humanísticos, 1963.

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Duas obras científi cas ibéricas do século XIII propõem terapias diversas para a prevenção e a cura da melancolia, entendida tanto como predisposição física quanto como enfermidade: O Liber conservanda sanitate (Livro sobre a conservação da saúde)16 , atribuída a Pedro Hispano e o Lapidário ou Tratado de las piedras17 traduzido no scriptorium de Alfonso X, do reino de Castela. Dois gêneros de textos: o primeiro um regimento de saúde com três opúsculos18 com informações e conselhos para a preservação da saúde e prescrições de terapias de banhos, de sangrias e de dietas especiais conforme as épocas do ano; e o segundo a tradução de um tratado sobre as pedras da natureza com as virtudes preventivas e curativas das doenças advindas das infl uencias da posição dos astros no fi rmamento.

Na primeira obra, o autor segue os princípios galênicos relacionando os dois órgãos, o cérebro e o coração e associando as enfermidades do coração e a melancolia. No primeiro opúsculo, na parte que estabelece a dieta para as diversas estações do ano, aconselha no outono a purgação da melancolia com ungüento de sena e no verão banhos secos e sulfúreos.19 Outra prescrição para combater a melancolia e as doenças do coração indica o odor agradável dos pomares e prado na estação da primavera: “Calaminta, orégano, mentrasto e casca de cidra em vinho do melhor, e tudo o que for azedo e aromático e quanto purgar o cérebro e fortalecer o estômago e todo cheiro aprazível que há nos pomares e prados, na estação da primavera, faz bem aos melancólicos e aos cardíacos”.20

Ao coração fazem mal peixes sem escamas, fumo ... tristeza, preocupações e qualquer causa que provoque a síncope. Excesso de estudo e meditação, coito frequente e tudo que fi zer mal ao baço faz mal ao coração ... e o que quer que faça a alma entristecer-se, porque o coração é o princípio da vida e o termo da morte.21

Por outro lado, no Lapidário alfonsino, destacam-se dezessete pedras que possuem poderes para agir em relação à melancolia: ouro, ailiaza oscura, aliaza entreverada, adehenich de dos colores, bezebekaury, caberdic, bezahar (bezoar), zarocan, maduz, zexegt, caldamuquida, ceminez, poleo, azul, rezcuiden, yamez e menefi x. O uso de algumas é preventivo na forma de talismãs (para pendurar

16 - Pedro HISPANO. Liber de conservanda.... Op. cit., pp. 446-491.

17 - ALFONSO X. Lapidario. Madrid: Ed. Castália, 1997.

18 - Summa de conservanda sanitate (Suma da conservação da saúde), De his que conferunt et nocent ( Das coisas

que fazem bem e mal) e Qui vult custodire sanitatem (Preservação da saúde).

19 - Pedro HISPANO. Summa de conservanda.... Op.cit., p. 452.

20 - Pedro HISPANO. Summa de conservanda.... Op.cit., p. 462.

21 - Pedro HISPANO. De his que conferunt .... Op.cit., p. 464.

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no pescoço e trazer junto ao corpo) ou na utilização de vasilhas confeccionadas com algumas pedras para os alimentos, que previne as doenças oriundas da melancolia, como é o caso da aliaza oscura : “[..] De esta piedra hacem vasos y escudillas em que comen y beben; mas tiene tal vertud que a quien usa comer o beber em ellos lê crecen cuidados y las enfermedades que vienen por melancolia.22 (LA, p.111).

É recorrente em várias pedras a referência às doenças relacionadas à melancolia. Outra pedra, poleo, apresenta o efeito contrário da anterior, pois provoca o aparecimento da doença: “Piedras son grandes, de que hacen vasos y escudillas, pero son malos para comer em ellos porque hacen enfermar de melancolia”.23

No discurso eclesiástico sobre os pecados capitais, estabeleceram-se relações entre a acídia e a melancolia. Da mesma maneira que a acídia enquanto pecado capital propicia o aparecimento de outros vícios, a melancolia também produz outras enfermidades. Trata-se assim de uma doença cujo poder é, por vezes, de autodestruição. No contexto de João Cassiano o termo acídia ou acedia (grego) designava um conjunto de sentimentos (tristeza, apatia, abatimento, desespero, angústia, exaustão) e comportamentos (inércia, prostração, ociosidade) considerados indesejáveis e necessitando de emenda. Todos muito semelhantes aos sintomas dos estados melancólicos, pois esse religioso utilizou-se de metáforas médicas para caracterizar uma desordem da alma não do corpo. A primeira imagem associada à acídia era a dos eremitas ou os monges cenobitas do deserto inóspito, que se isolavam do convívio social e eram tentados pelo demônio24. Ressentiam-se da falta de companhia, sentiam um torpor, dormiam o tempo todo, nada faziam, portanto, perdiam o prazer da vida espiritual. Assim, a acídia foi uma das tentações de Santo Antão, tema pictórico freqüente na arte medieval. O remédio proposto pelos Pais da Igreja era o trabalho, incluído no lema ora et labora da regra de São Bento (VI séc.), ou seja, o trabalho manual como forma de combater a ociosidade, que permitiria a ação demoníaca. A acídia permaneceu na lista dos pecados capitais até os séculos XIV e XV, quando foi paulatinamente substituída pelo pecado da preguiça25, já que um dos seus componentes, a indolência passou a ser o ponto de destaque. Essa transformação revelou uma

22 - ALFONSO X. Lapidario.... Op. cit., p. 111

23 - ALFONSO X. Lapidario.... Op. cit., p. 121.

24 - Stanley W. JACKSON. “Acedia: the sin and its relationship to sorrow and melancholia in medieval times”.

Bulletin of the History of Medicine, 55, 1981. pp. 172-185.

25 - Teresa Aline P. de QUEIROZ. “Melancolia e acídia na composição do pecado da preguiça no século XV”. In:

Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais, São Paulo, USP/ UNICAMP e UNESP, 1995. pp.108-116.

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tendência de considerar os outros elementos emotivos da acídia, agrupados sob a designação de melancolia, como uma desordem mental no enquadramento médico26. Nesse caso, enquanto doença o tratamento seria da competência dos físicos, ou mesmo no caso que fosse considerada uma tendência geral humana27 a responsabilidade individual diminui e começa a ser julgada menos severamente. No Libro de las confesiones28, do canonista Martim Perez (1316) da Universidade de Salamanca, o pecado da acídia ainda apareceu com essa designação mas com as características da preguiça, desta vez no sentido da negligência tanto do aprendizado das coisas para a salvação da alma quanto da falta de devoção. Assim, talvez isso tenha ocorrido pela valorização progressiva do trabalho na sociedade do fi nal da Idade Média29.

Outro autor do século XIV, o canonista galego Álvaro Pais, em sua obra, Status et planctus Ecclesiae,30, redigida a partir de 1330, na época em que foi penitenciário da cúria papal de João XXII em Avinhão, encontra-se igualmente a acídia como um pecado próprio dos religiosos. Assim, investigou exaustivamente todas as concepções cristãs medievais, recorrendo às autoridades, com citações bíblicas, dos Pais da Igreja e de São Bernardo (sem citar Tomás de Aquino). Em seu texto, nota-se grande ênfase no combate à ociosidade, e na valorização do trabalho monacal como remédio. Assim, evidencia-se o processo lento de transformação da acídia, mais voltada para o universo clerical, em pecado da preguiça, cujo âmbito da refl exão amplia-se para o mundo laico.

D. DUARTE: UM TESTEMUNHO DA MELANCOLIA NO SÉCULO XV

Conforme exposto acima, há um grande número de escritos médicos e religiosos medievais que buscaram teorizar e explicar as paixões ou acidentes da alma, ou seja, as diversas emoções humanas, e dentre elas, a melancolia. Contudo, há poucos testemunhos de pessoas melancólicas ou daquelas que vivenciaram e sofreram a tristeza e outros sentimentos correlatos na vida quotidiana. Nesse sentido o relato da experiência melancólica do rei D. Duarte (1433-

26 - Stanley W. JACKSON. “Acedia…. Op. cit., p. 182.

27 - Stanford M.LYMAN. Th e seven deadly sins: society and evil. New York: St. Martin´s Press, 1978.

28 - MARTIN PÉREZ. Libro de las confesiones. Una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica,

introducción y notas por Antonio GARCIA Y GARCIA; Bernardo Alonso RODRIGUEZ; Francisco Cantelar

RODRIGUEZ. Madrid: BAC, 2002.

29 - Ver Teresa Aline P. de QUEIROZ. “Melancolia e acídia ...”. Op.cit., pp. 108-116.

30 - Álvaro PAIS. Estado e pranto da Igreja. Estabelecimento do texto e tradução de Miguel Pinto de MENEZES.

Lisboa: Junta Nacional de Investigação Científi ca e Tecnológica, 1998, vol. 8.

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1438), no Portugal quatrocentista, em sua obra, Leal Conselheiro (1438)31 e no Livro dos Conselhos de El-rei D. Duarte ou Livro da Cartuxa32 constitui-se em uma fonte valiosa para o estudo da melancolia no período. O primeiro texto régio é uma coletânea de 103 ensaios morais cristãos com ênfase nos pecados capitais, que revela a erudição religiosa do rei, por meio das referências às Sagradas Escrituras, aos fi lósofos clássicos, aos primeiros autores eclesiásticos da Patrística e às hagiografi as33. Tudo entremeado com seu relato das próprias vivencias, refl exões e conselhos morais. Essas características da obra, sobretudo a cultura religiosa de D. Duarte, já foram muito analisadas por historiadores da literatura e fi lósofos. No entanto, até o momento não houve uma leitura do texto na perspectiva da análise da doença melancolia e da memória na escrita de si e das concepções presentes na medicina portuguesa no século XV.

A partir do capítulo X ao XVIII do Leal Conselheiro, D. Duarte tece refl exões sobre as paixões da alma como pecados capitais, dentre elas a tristeza, que nos interessa particularmente. Considera essa paixão de forma ambivalente, como pecado e ao mesmo tempo como doença do corpo: o humor menencórico (melancólico). No capítulo XIX, trata a melancolia como enfermidade como indicado no próprio título, “Da maneira que fui doente do humor menencórico, e dele guareci”. Nesse sentido, o excesso da bile negra (o humor corporal imaginário) em seu organismo teria sido responsável pelo acometimento do conjunto de emoções diversas, tais como a tristeza intensa, o medo da morte, a prostração e a ausência do prazer de viver34. Continua a refl etir sobre o tema nos quatro capítulos seguintes, do XX ao XXIII, tratando dos remédios e aprofundando mais a discussão sobre outra ambivalência da tristeza, como pecado e virtude e o enfadamento: “Com a tenção que primeiro escrevi, de alguns desta breve e simples leitura fi lharem proveitosa ensinança e avisamento, propus escrever o começo, prosseguimento e cura que dele ouve, por tal de minha experiência a outros seja exemplo”35.

Esse é o mote do capítulo XIX, em que se percebe o esforço de racionalizar, a posteriori, a experiência da enfermidade vivida

31 - D. DUARTE. Leal Conselheiro. Introdução de João Morais BARBOSA. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da

Moeda, 1982. Ver Lenia Márcia MONGELLI. (org.) A literatura doutrinária na corte de Avis. São Paulo: Martins

Fontes, 2001.

32 - D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D.Duarte. Livro da Cartuxa. Lisboa: Estampa, 1982.

33 - Margarida G. VENTURA. D. Duarte. O eloqüente. Lisboa: Academia Portuguesa de História, s.d.

34 - No capítulo XXIV, dá conselhos médicos sobre a matéria ao seu irmão, o infante D. Pedro. Esse capítulo é de

redação anterior ao Leal Conselheiro: “[...] Do sobrepojamento dalguns humores que desgovernam o corpo, que

a este poder de sua governança pertence, convém resguardar, porque algumas vezes vem por ele a tristeza, mas

não sempre, porque erram muitos querendo-se logo purgar ou sangrar como são tristes.” IDEM, p. 123.

35 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p.100.

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durante três anos (1413-1416) até a recuperação do prazer de viver perdido nesse período. Esse esforço de ordenar e selecionar no tempo a memória dos sentimentos e dos sofrimentos, tais como a tristeza intensa e o medo da morte, tinha, entre outros, os objetivos de compartilhar com outros suas experiências e, ao mesmo tempo, de servir de exemplo a cura alcançada. Sua narrativa adquire um tom vivo e pessoal, em suma, uma auto-refl exão acerca da experiência vivida, com a construção de uma memória por intermédio da escrita de si. Trata-se de um testemunho de sua juventude de príncipe quando seus tormentos se iniciaram ao ser associado ao governo régio de seu pai, D. João I (1385-1433), com a idade de 22 anos, quando aquele partiu para Ceuta. Nessa época, passou a vivenciar uma rotina árdua de trabalho de manhã à noite, com muito pouco lazer, sobretudo o costumeiro da montaria e da caça.

Na descrição das várias manifestações da tristeza, sobretudo no capítulo XXII, merecem destaque as afl ições, que podem até levar à loucura:

“Além das maneiras da tristeza em cima escritas, é uma mais forte, que tira o dormir e grã parte do comer. E traz dor ao coração com grandes tremores e agastamentos. E aquesto se faz por algum mui especial fundamento de grandes desventuras, males e perdas e outras por arrebatamento dalgumas desconcertadas fantasias vêm a este mesmo sentimento[...] E muitos caem em sandice”36.

O seu quadro complicou-se com a epidemia de pestenença no reino com muitas mortes de súditos, inclusive da rainha, sua mãe, D. Filipa de Lencastre (1359-1415), de quem cuidou até o fi m:

“[...] Em esta grande doença durei o tempo suso escrito calando-me com ela, porque a poucos e pessoas certas de autoridade falava. E de fora em toda minha maneira fazia pequena mudança, nem mostramento do que sentia. E estando em tal estado, a mui virtuosa Rainha, minha senhora e madre, que Deus haja, de pestilência se fi nou, do que eu fi lhei assim grande sentimento que perdi todo receio, a ela em sua infi rmidade sempre me cheguei e a servi sem algum empacho, como se tal dor não sentisse. E aquesto foi o começo da minha cura, porque sentindo ela, deixei de sentir a mim”.37

36 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 116.

37 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 104

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Dois fatores foram preponderantes na cura: o cuidado com a mãe enferma e a fé inabalável no poder de Deus. A seguir, reclama assim de todas as outras tentativas infrutíferas, já que, segundo ele, nem conselhos de confessores e amigos e nem remédios dos físicos produziam os efeitos desejados:

“[...] E por tal temor se pode bem dizer o dito do Catão: “quem teme a morte, perde o prazer da vida”. E de feito não houvera conselho, remédio nem esforço que me valera, segundo entendo, porque com físicos, confessores e amigos falava, e não prestava cousa. Ca dos remédios, das curas, não sentia vantagem”38.

“Em esta tenção fui assim forte, que os conselhos dalguns físicos, que me diziam que bebesse vinho pouco aguado, dormisse com mulher, e deixasse poucos cuidados, todos desprezei, havendo toda minha esperança em o Senhor e sua mui Santa Madre”39.

É sabido igualmente que as pestes foram um grande desafi o para os médicos da época, que davam conta mais da prevenção com a dietética, ou seja, a elaboração de regimentos e ou de conselhos de saúde do que da terapêutica da cura por meio de remédios efi cazes. D. Duarte revela seus conhecimentos dos conselhos e prescrições da medicina da época, que ele confessa que não seguiu. A recomendação de beber vinho era comum, sendo igualmente este um dos principais ingredientes da composição das mezinhas e outros remédios. O outro conselho para ter relações sexuais com mulheres comprova mais uma vez que essa era uma das prescrições para a manutenção da saúde corporal. Mas a fé em Deus e Nossa Senhora era seu foco principal para obter de volta o prazer de viver perdido com a melancolia.

Em outros momentos da obra essa cultura médica também se manifesta. Por exemplo, sobre o capítulo C, “Do Regimento do Estômago”, poder-se-ia dizer que se trata de um texto de um físico medieval e não do rei eloqüente, com todas as prescrições dietéticas da alimentação adequada para a manutenção da saúde do estômago. Como os outros textos da obra, o ponto de partida é a sua experiência pessoal: “Segundo a prática que por mim passei, este acho bom regimento brevemente escrito para quem tal estômago tem que lhe cresça freima40, e alguma vez se destempera por ela41.” Chama a atenção, a familiaridade no uso dos termos do vocabulário médico da época: regimento de saúde, compleição, humor menencórico etc.

38 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 103.

39 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 104.40 - Azia.

41 - D. DUARTE. Leal .... Op. cit., p. 437.

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No capítulo LIV, “Das razões por que me parece bem fugir a pestilência”, defende o conselho dos físicos sobre a fuga dos locais infectados pela pestenença: [...] porque sou por requerimento da vontade e por razão muito inclinado a seguir o conselho dos físicos, e lhe fugir cedo longe e tornar tarde42. Assim, discorre sobre essa fuga e procura justifi cá-la de todas as maneiras para poder por meio da racionalização enfrentar o mal. Mas, em 1438, com o retorno da epidemia de peste em Évora, seguindo o conselho da fuga, a corte mudou-se para Avis e depois se dispersou. A família real foi para Ponte de Sor e daí, o rei seguiu para Tomar, quando no caminho adoeceu e em doze dias faleceu no dia nove de setembro do ano referido.

Uma das razões desse domínio das questões médicas era o ambiente da corte de seu pai, D. João I, onde havia muitos físicos que também eram astrólogos, com quem o príncipe dialogava e tomava conhecimento de obras do campo da medicina. Pois, em sua livraria (biblioteca) pessoal composta de 86 títulos, poucos são aqueles relacionados à área: Viatico, Segredos de Aristotiles, Livro da Lepra, Livro de Estrologia e Dialectica de Avicena. O físico e astrólogo mais renomado era o judeu, Mestre Guedelha, com quem o príncipe provavelmente consultou, emprestou obras e conversou a respeito de seus sintomas da melancolia. Mas, segundo o cronista Rui de Pina, não seguiu o conselho astrológico de Mestre Guedelha para retardar a hora da cerimônia de entronização, em virtude da posição dos astros e muitos atribuem a esse fato um reinado breve de apenas cinco anos.

*

Em suma, ao longo da Idade Média, percebem-se as tentativas de ordenamento e controle das paixões humanas, em suas diversas manifestações, tanto por parte dos médicos quanto da parte dos eclesiásticos. Essa preocupação de entendimento das emoções na perspectiva médica procurou enquadrá-las, com base no galenismo medieval, como predisposição física na teoria dos temperamentos ou compleições ou em alguns casos como enfermidade. No caso da perspectiva religiosa da Igreja, criou-se inicialmente um conjunto de pecados capitais, que abrigava essas paixões numa tentativa de normatização das consciências, sobretudo para o mundo clerical.

42 - D. DUARTE. Leal .... Op. cit., p. 271.

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Dentre as paixões humanas, buscou-se analisar a melancolia, nomeada na Antiguidade, como um conceito médico complexo, que engloba uma predisposição física de um dos quatro temperamentos, o melancólico e também como uma doença causada pelo excesso da bile negra, um humor corporal imaginário. Duas obras científi cas do século XIII, o O Liber conservanda sanitate (Livro sobre a conservação da saúde), atribuída a Pedro Hispano e o Lapidário ou Tratado de las piedras, traduzido no scriptorium de Alfonso X, do reino de Castela, buscam lidar com a melancolia como doença e afl ição humana, prescrevendo terapias com ervas, banhos, bons ares, dentre outros.

Houve correspondências entre a melancolia na óptica médica e o pecado capital da acídia no discurso religioso, depois transformado no fi nal da Idade Média no pecado da preguiça. Essas duas tradições não fi caram indiferentes entre si, pois houve um intercâmbio de noções médicas incorporadas pelo discurso religioso e vice-versa. Os estados melancólicos têm assim, ao longo da história, preocupado os homens, que desde a medicina antiga e medieval, passando pela teologia cristã e chegando até a psicologia e psicanálise contemporânea, tentam explicá-los e controlá-los.

D. Duarte constitui-se em um testemunho valioso para compreender o universo cultural de um príncipe e depois rei português e letrado do século XV. Ao relatar sua experiência ímpar, a posteriori, como enfermo da melancolia por três anos, revelou a construção racional de uma memória, em que ordena o conjunto de sofrimentos oriundos da tristeza profunda e aponta o caminho para a cura. Assim, em seu depoimento há o entrecruzar de elementos da cultura religiosa com outros da cultura médica, que o torna singular e isso motivou o presente estudo.

IDADE MÉDIA E

AMÉRICA PORTUGUESA

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8- O LEGADO PORTUGUÊS NO BRASIL: DA COLÔNIA À EMANCIPAÇÃO

POLÍTICA. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES.

Helga Iracema Landgraf Piccolo*

Da análise feita da obra A História da Independência do Brasil, de autoria de Francisco Adolfo de Varnhagen, a historiadora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves afi rma que o autor “procurou demonstrar a continuidade entre o passado colonial e o novo projeto nacional, enfatizando a infl uência civilizadora da colonização portuguesa sobre o novo país nos trópicos”1.

Tendo o caso brasileiro como exemplo, é inegável a existência de resquícios coloniais que precisam ser tomados em consideração quando se analisa o processo de Independência e sua consequente institucionalização político-administrativa.

Assim sendo, sempre que for pertinente, as Ordenações Filipinas que se basearam nas Manuelinas, serão mencionadas, objetivando apontar para algumas permanências e não só rupturas após a Independência, mostrando, assim, um legado português mesmo tendo sido superado o estatuto colonial.

Algumas observações são, de imediato, necessárias, porque o que foi legado não correspondia exatamente ao que estava na legislação portuguesa que vigorava, teoricamente, no período colonial. A historiografi a produzida mais recentemente no Brasil o demonstra. Se “um dos pilares do exercício de poder e da organização social no Brasil foi a legislação metropolitana” ela, no entanto, não deve ser supervalorizada porque “havia um abismo entre o país formal, existente nas normas jurídicas públicas e privadas, e o país real da Colônia, onde as leis eram frequentemente inaplicadas ou mal aplicadas por causa da força dos proprietários rurais e dos comerciantes, além da venalidade dos funcionários”. É o que nos ensinam Arno Wehling e Maria José C. de Wehling2. Os autores citam João Francisco Lisboa para quem as leis eram “profusas e confusas”, o que facilitava a corrupção e o patronato.

* Professora Emérita do Instituto de Filosofi a e Ciências Humanas – UFRGS.

1 - Lúcia M. Bastos P. NEVES. “Estado e política na Independência”. In: Kaila GRIMBERG; Ricardo SALLES

(orgs). O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, vol. 1: 1808-1831, pp. 97-136.

2 - Arno WEHLING; Maria José C. de WEHLING. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Frontei-

ra, 1994, p. 302.

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É pelo sistema administrativo que começamos com as nossas considerações, enfatizando o papel das Câmaras.

“Modelo quase universal e relativamente uniforme de organização local em todo território da monarquia portuguesa e suas conquistas, as câmaras foram, segundo Charles R. Boxer, instituições fundamentais na construção e na manutenção do Império Ultramarino”3.

Na História Administrativa do Brasil, vol. 1, entendeu um dos colaboradores – Hélio de Alcântara Avellar – começar o seu estudo pelo que ele denominou de “Preliminares Européias”, quando aborda os aspectos jurídico-administrativos, destacando o municipalismo4. Para ele, “o município, que é a divisão territorial fundamental administrativa e cujo papel na formação nacional foi essencial, representa uma herança do municipalismo peninsular”. A instituição foi transplantada a partir de Martim Afonso de Souza.

Discorrendo sobre a vigência no Brasil das Ordenações, tanto Manuelinas como Filipinas, lembra que estas últimas “tiveram impressionante longevidade no sistema jurídico brasileiro. Como direito penal, transpuseram os umbrais da Independência política e só caducaram com a promulgação do Código Criminal (1830). Como direito civil, chegaram até a promulgação do Código Civil em plena República (1915)” . E, citando Waldemar Ferreira5, cujo comentário transcreve: “Por mais paradoxal que pareça, a história do direito brasileiro é muito mais antiga do que a História do Brasil”. Começa com o direito português, que vigorou desde os primórdios da colonização. É uma visão eurocêntrica do processo jurídico, como não podia deixar de ser.

Foi sobre o regime das Ordenações que viveram, teoricamente, as Câmaras municipais no período colonial. Não nos interessando neste momento discutir a origem delas no municipalismo português, devido às diversas e divergentes interpretações a respeito. Mas, falar de Câmaras aponta, logicamente, para o município.

Mais algumas observações sobre as Ordenações nos parecem necessárias.

Como leis gerais, vigoraram no período colonial as Ordenações Manuelinas (de 1521 a 1603), quando da reforma que institucionalizou

3 - Maria Fernanda Baptista BICALHO. “As Câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: João FRAGO-

SO; Maria Fernandes BICALHO; Maria de Fátima GOUVEIA (orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica

imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 191-221.

4 - Hélio de Alcântara AVELLAR. “Preliminares Européias”. In: História Administrativa do Brasil, 3 ed.. Brasília:

Ed. da Universidade de Brasília/Fundação Centro de Formação do Servidor Público, 1984, vol. 3, pp. 15-16; 43.

5 - Waldemar FERREIRA. Op. cit., p. 43.

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as Ordenações Filipinas. Como consolidações legais, estabeleceram os princípios e dispositivos de direito civil sobre a família, sucessões, obrigações, contratos e propriedades, além do direito penal e do direito processual. Além dessas leis gerais, como fonte do direito, existiam as chamadas leis extravagantes. Conforme José Honório Rodrigues, em “Teoria do Estado”6, elas se compunham de toda a legislação posterior às Ordenações, constando de “leis propriamente ditas, de cartas de leis ou cartas patentes”, nas quais eram expressas providências a serem tomadas. E o autor chama a atenção para uma das poucas leis promulgadas pela Assembléia Constituinte Legislativa antes de ser dissolvida por D. Pedro I em 12 de novembro de 1823. É a lei de 20 de outubro de 1823, pouco presente nas análises historiográfi cas, que mandava vigorar no Brasil, além das Ordenações, no caso as Filipinas, as leis, os regulamentos, os alvarás, os decretos e as resoluções sancionadas por D. João VI e pelos quais o Brasil fora governado até 25 de abril de 1821, quando o rei voltou para Portugal. Conforme José Honório Rodrigues, “esta lei assegurou no país à antiga legislação portuguesa e ao Código Filipino uma vitalidade mais prolongada”. Com a Carta Constitucional de 1824, leis (destacamos a Lei de 1º de outubro de 1828, que criou em cada cidade e vila do Império Câmaras Municipais, e a Lei de 12 de agosto de 1834, que fez algumas alterações e adições à Constituição Política do Império) e, em relação à Justiça, o Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832 com a sua Reforma de 1841.

João Camilo de Oliveira Torres, no seu clássico A Democracia Coroada (o que não dispensa o historiador a fazer à obra críticas), afi rma, no capítulo XII, sobre o Poder Judicial: “Grande parte do que viera da Colônia, a velha organização judiciária da Idade Média que se prolongava indefi nidamente sofreu, durante o primeiro reinado e a Regência, uma remodelação completa” 7.

Vale a pena acrescentar o que afi rma Hélio de Alcântara Avellar em obra já citada:

“Observa-se na expansão do Estado português, resultante do Condado portucalense [...] a associação entre realeza e o elemento popular. Infl uências feudais presidem o nascimento do novo reino, cujo soberano se coloca em posição de vassalagem para com a Santa Sé [...]. Estas infl uências transluzem, também, nas limitações do poder real [...]”.

6 - José Honório RODRIGUES. Teoria da História do Brasil (Introdução Metodológica). 3. ed.. São Paulo: Cia.

Editora Nacional, p. 158.

7 - João Camilo de Oliveira TORRES. A Democracia Coroada (Teoria Política do Império do Brasil). Rio de

Janeiro: Livraria José Olympio Editora, p. 245.

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E, valendo-se de Galvão de Souza, transcreve a sua opinião: “Se Portugal não reproduz todos os traços do feudalismo, em compensação oferece um exemplo bem frisante de municípios e agremiações locais com um vivo sentido das suas autonomias” 8.

Esta opinião, evidentemente, não pode ser tomada ao pé da letra, pela generalização implícita.

Voltando a falar das Câmaras, lembra-se que sua organização deveria seguir o que nas Ordenações Filipinas consta no Livro I, títulos 65 a 769. Um sistema eleitoral complicado escolhia os seus ofi ciais: um juiz (a princípio ordinário e depois de fora) que presidia a Câmara, três ou quatro vereadores, um escrivão, um procurador e, por vezes, um tesoureiro.

As eleições eram realizadas de três em três anos, na época das oitavas de Natal.

Enquanto os juízes ordinários, de quem não se exigia formação especializada, eram eleitos pelos homens bons, os juízes de fora eram magistrados indicados pelo rei.

Conforme Arno Wehling e Maria José de Wehling: “A complexidade crescente de atividade judicial, bem como o interesse em tornar mais presente a autoridade real, determinaram a introdução, em 1696, dos juízes de fora, cargo que já existia em Portugal desde a Idade Média”10.

Quando hoje se fala das Câmaras Municipais, fi ca em aberto – ao menos para mim fi cou – a questão dos juízes de paz que adquiriram, no Primeiro Reinado e no período Regencial, um papel político-institucional importante se o pesquisador se ativer às fontes ofi ciais de que dispõe. Mas ele existia ou não já no período colonial sendo, pois, dele um legado?

Sobre a importância social extraordinária dos juízes de paz apresenta-se-nos o Tobias Monteiro na sua História do Império uma série de considerações muito pertinentes e justas: “Manteve a Constituição o juízo de paz (vide o Art. 162) ainda arraigado às tradições da Colônia. Antes da descoberta do Brasil já ele aparecia nas Ordenações Afonsinas [...]”11.

Na lei de 1º de outubro de 1828 que criou as Câmaras Municipais no pós Independência, fala-se profusamente em Juízes de Paz, o mesmo acontecendo no Código de Processo Criminal de 1832.

8 - Hélio de Alcântara AVELLAR. Op. cit., pp. 38-39.

9 - ORDENAÇÕES FILIPINAS. Texto com introdução, breves notas e remissão redigidas por Fernando H.

Mendes de ALMEIDA. São Paulo: Saraiva, 1957, VOL. 1.

10 - Arno WEHLING; Maria José de WEHLING. “O Funcionário Colonial entre a Sociedade e o Rei”. In: Mary

DEL PRIORE (org). Revisão do Paraíso. Os Brasileiros e o Estado em 500 anos de História. Rio de Janeiro: Cam-

pus, 2000, p.146.

11 - João Camilo de Oliveira TORRES. Op. cit., pp. 255-256.

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Deixemos de lado esta questão polêmica e nos fi xemos em outro assunto no qual as Ordenações foram pródigas. O assunto são as sesmarias e o latifúndio.

Quero deixar claro que não tenho condições de abordar o regime jurídico das sesmarias. Neste sentido, indico a já clássica obra Sesmaria e Terras devolutas, de autoria do Prof. Rui Cirne Lima e editada em Porto Alegre pela Editora Globo em 1935. Apesar de ter sido há muito publicada, não perdeu a sua importância. Insiste o autor na expressão “maninho” para as terras não aproveitadas para o cultivo, ou seja, terras incultas.

O instituto da terra, cuja fi nalidade inicial era a cultura efetiva da terra, já havia sido perdido. As exigências de medição e demarcação judicial já não eram mais cumpridas. Consequentemente, a confi rmação régia das doações feitas seja por governadores, seja por capitães generais, também não era efetuada. Além do que o limite das doações (máximo de três léguas) há muito fora ultrapassado12. Depoimentos feitos apontam para os problemas básicos de propriedade da terra com a concentração de “grandes áreas despovoadas e improdutivas nas mãos de particulares e do Estado, e a existência nas diferentes Capitanias de contingentes populacionais que não tinham possibilidade de acesso legal à terra e que habitualmente contornavam esta situação optando pela simples ocupação”. Se até os fi ns do século XVIII o sistema sesmarial vigente na Colônia era, teoricamente informado pelas Ordenações tanto manuelinas como fi lipinas13, posteriormente são baixadas normas como o Alvará de 5 de outubro de 1795, suspenso em 10 de dezembro de 1796, em vista dos “embaraços e inconvenientes” da sua imediata execução. A grande concentração de terras nas mãos de particulares resultou em latifúndios muitos deles improdutivos. A situação caótica além de complexa com a coexistência de sesmarias, posses e terras devolutas explica a resolução de 17 de julho de 1822, pouco antes da proclamação de Independência que mandou suspender “todas as sesmarias futuras até a convocação da Assembléia Geral, Constituinte e Legislativa”, na qual nada foi decidido a respeito. A solução (se de solução se pode falar) foi adiada, sendo a Lei das Terras de 1850 a medida mais importante mas a sua implementação mostrou como o governo central foi incapaz de aprovar medidas que contrariavam os interesses de proprietários.

12 - José Murilo de CARVALHO. “Modernização frustrada: a política de terras no Império”. Revista Brasileira de

História( São Paulo), março de 1981.

13 - Leia-se de Nanci LEONZO. “A Propriedade”. In: Maria Beatriz Nizza da SILVA (coord.). O Império Luso-

-Brasileiro 1750-1822. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, pp. 63-83. Falar das Ordenações, no caso da propriedade,

é apontar para o 2º volume, títulos XLV, LXIX e L, da obra redigida por Fernando H. Mendes de Almeida.

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Quanto ao latifúndio, são pertinentes as observações feitas pelos Wehling na sua obra Formação do Brasil Colonial14, embora algumas interpretações possam hoje ser questionadas pelo avanço da historiografi a pertinente. Para fi carmos com o Rio Grande do Sul colonial leia-se, entre outras, as pesquisas de Helen Osório – no caso é a sua tese de doutorado, transformada num livro de leitura obrigatória: O Império português no Sul da América. Estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. E, alem dessa obra, todos os trabalhos de Fábio Kuhn.

O latifúndio se caracterizou economicamente pela monocultura e socialmente pela mentalidade aristocrática do proprietário rural, especialmente o senhor de engenho. Alguns fatores gerais explicam a existência dessa grande propriedade, tanto canavieira como pecuarista: a abundância de terras, permitindo integrar às primitivas sesmarias novas áreas, com relativamente pouca difi culdade (obstáculos físicos pequenos, baixa resistência indígena), agricultura e pecuária extensiva, tecnicamente atrasadas, exigindo áreas cada vez mais amplas[...].

A questão do latifúndio exige duas observações: A 1ª: ele não deve ser confundido com a expansão territorial. Por exemplo, o latifúndio canavieiro [...] foi responsável pela ocupação de uma estreita faixa litorânea. A grande expansão territorial verifi cada na Colônia se deve ao latifúndio pecuarista e a outras formas de penetração (com a apropriação de terras sem base legal).

A 2ª observação: o latifúndio não foi a única forma assumida pela propriedade rural da Colônia. Com ela coexistiram a pequena propriedade,dedicada ao cultivo do tabaco, na Bahia, a produtora de artigos para o abastecimento urbano em Salvador e no Rio de Janeiro, e a dos casais açorianos na ilha de Santa Catarina e em Porto Alegre no século XVIII. É certo que a existência secundária de pequena propriedade não elimina a existência dominante do latifúndio, mas estabelece algumas nuances importantes na História econômica e social de determinadas regiões.

E falar em latifúndio remete, no período colonial, à escravidão, seja ela africana ou indígena. Ambos, grande propriedade e sistema escravista, foram um legado português. A escravidão, até 1888, e sua abolição, não alterou a estrutura judiciária vigente até hoje.

14 - Mais uma vez apelamos para a obra já citada, cujos autores são Arno e Maria José de WEHLING , p. 191.

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Mas aspectos do sistema judiciário, questões relacionadas com a propriedade da terra, não são o único legado do período colonial na História do Brasil. Muitos outros aspectos poderiam e deveriam ser lembrados. Apenas a título de exemplifi cação, deveria ler lembrado o padroado e a inviolabilidade real que aparece nas Ordenações e informa o Art. 99 da Carta Constitucional de 1824. O certo é que a condição colonial do Brasil permaneceu apesar do 07 de setembro de 1822.

Se os “homens bons” transformaram-se em cidadãos, a cidadania, no entanto, foi restrita a poucos no Império e na República. Permanece, pois, a pergunta: em relação a ela – cidadania – o que mudou?

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9- A MONARQUIA EM PORTUGAL E NO BRASIL – UMA LONGA IDADE MÉDIA.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro*

O título acima pode sugerir uma visão pragmática do estudo da história de Portugal, em particular, da Idade Média para a compreensão da história brasileira. Aparentemente, um raciocínio simples se pensarmos a história como um processo que se desenvolve em um tempo linear e progressivo. Em outras palavras, o medievo português se prolongaria no Brasil, pelo viés da colonização, permanecendo até os tempos atuais. O propósito deste trabalho é analisar o contexto sócio-político que propiciou a implantação do regime monárquico no Brasil, considerando que o conceito de longa Idade Média não implica em linearidade, mas, sim em rupturas. Pretende-se, partindo das cerimônias e rituais próprios ao regime monárquico, concebidos na idade média, compreender os signifi cados de monarquia e dinastia real no Brasil.

Sérgio Buarque de Holanda, na coleção por ele organizada e que formou várias gerações de historiadores brasileiros, tornando-se um clássico da nossa historiografi a1, afi rmou que desde o século XVI registrou-se uma animosidade entre os portugueses da Europa e do Brasil. Dois séculos mais tarde, sob infl uência do liberalismo francês e da emancipação das colônias inglesas da América do Norte, esta animosidade ganhou força adquirindo um caráter de revolta localizado, que como sabemos, nunca constituiu sentimento capaz de fecundar um movimento nacional. Uma série de circunstâncias nas quais se misturava interesses regionais, o modelo administrativo da coroa e a vasta extensão territorial, impediu que no Brasil, o sentimento de nação não se desenvolvesse concomitantemente, com o de independência favorecendo a canalização dos sentimentos para uma via dominante: o regime monárquico. De fato, a partir da transladação da corte portuguesa e principalmente, depois do seu retorno para Portugal, as hostilidades entre os súditos de um mesmo rei manifestadas nas inconfi dências regionais, foram, identifi cadas como “infi delidade a Coroa”, conforme se defi nia na época, a palavra

* Depto. de História e PPG de História da Universidade de Brasília.

1 - Os parágrafos iniciais que permitem introduzir o tema, são muito conhecidos por isso, nos baseamos na co-

leção dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, em especial no capítulo I, A herança colonial – sua desagregação,

que é de sua autoria. Procurou-se enfatizar os sentimentos dos portugueses que viviam ou nasceram no Brasil

com relação a monarquia. Sérgio Buarque de HOLANDA. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo:

DIFEL, 1970, tomo II, vol. I, pp. 9-39.

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inconfi dência.2 Note-se, porém, que tal infi delidade a Coroa lusa, não questionava, o regime monárquico. No século XVII (1645-47) os pernambucanos ressentidos pela indiferença de D. João IV, buscaram a proteção de outro rei católico, no caso o rei da França. Alguns anos depois, em 1692, os moradores da capitania, segundo denúncia do reitor do Colégio de Olinda, juntamente com os de Itamaracá pretendiam entregar “aquelas terras” ao rei francês. No início do século seguinte, em1710, mais uma vez os pernambucanos buscaram o apoio do soberano da França para o projeto de libertação da capitania. Ainda, na segunda metade do mesmo século, chegaram do Pará, notícias de conjuras que dividiam os moradores entre os que eram contra a soberania portuguesa e os que se manifestavam a favor da soberania francesa. Em 1755 quando se pensa em entregar toda a Amazônia, consta que os principais envolvidos teriam escrito ao rei da França por meio das autoridades de Caiena.3

Tais inconfi dências, embora não tenham alcançado êxito e nem mesmo possam ser tidas como representativas considerando a sua expressão exclusivamente local, possuem um signifi cado importante para o que me interessa neste estudo. Não como “antecedentes da independência”, como algumas vezes a historiografi a brasileira referiu-se ao nativismo, exaltando-o em publicações acadêmicas e manuais escolares. São antes as pontas de um iceberg que foi ao longo de quase dois séculos, rompendo as barreiras do gelo, para exibir os picos de um paradoxo, expresso na convivência de sentimentos contraditórios, como o apego ao regime monárquico representado, no início do século XIX por um monarca português aclamado no Brasil.

Sabe-se que antes da emancipação colonial na América Espanhola, os reinos ibéricos haviam caído no descrédito, na medida em que o cenário na Europa se modifi cava e que os argumentos para a manutenção das colônias perdiam consistência. Esta situação não escapava aos brasileiros letrados que haviam estudado nas universidades portuguesas, mas, também, nas universidades francesas e inglesas, possibilitando a formação de uma consciência acerca das riquezas do Brasil e das perspectivas futuras que tais riquezas possibilitariam. Porém, tais refl exões só, começaram a emergir a partir de 1808, visto que o grupo de intelectuais que as abrigava não tinha como até então, meios para expressar-se. Se a vinda da corte, mudou o estatuto da colônia acalmando o nativismo ou quiçá, o ressentimento nativista, não possuiu peso sufi ciente para modifi car o olhar dos brasileiros letrados em relação a Portugal. Ao

2 - Sérgio BUARQUE DE HOLANDA. História Geral... Op.cit. p. 9

3 - IDEM, pp. 9-10

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contrário, a corte lusa desembarcou em um país onde o número de europeus de outras nacionalidades – espanhóis, franceses, ingleses e suíços – era expressivo e se destacava no Rio de Janeiro pelos ofícios que exerciam. Era impossível evitar a comparação e mesmo aqueles que não faziam parte do seleto grupo dos letrados, que formariam em breve a elite política brasileira, passaram a observar mais atentamente os portugueses. Os proprietários de terra instalados em sobrados no Rio de Janeiro viam a aristocracia portuguesa com certa antipatia, embora não pudessem esconder a satisfação, ou mesmo certa vaidade, pela presença da corte e posteriormente do rei nas terras brasileiras4.

Estes sentimentos contraditórios se evidenciaram após o Congresso de Viena quando, uma nova ordem européia reclamou o retorno da família real para Portugal. D. João VI, então, parecia ter outros planos políticos e permanecia no Brasil criando uma situação que desagradava os súditos portugueses que viviam em Portugal. Em 1820 a eclosão da revolução do Porto obrigou o monarca a tomar uma decisão. Imediatamente, a eventualidade do retorno do rei, opôs uns aos outros. Os portugueses, principalmente os comerciantes, reuniram-se no que se denominou “partido português” e se pronunciaram a favor do retorno de D. João VI. Os brasileiros como se denominavam os portugueses nascidos no Brasil, se posicionavam contra a partida de El Rei, pedindo por meios de cartas a sua permanência. Esta correspondência tinha a sua origem nos setores políticos mais infl uentes, isto é, os liberais e os franco-maçons do Grande Oriente que defendiam o regime monárquico 5.

Viriam se juntar a esta correspondência, as brochuras publicadas em Lisboa 6 e no Rio de Janeiro testemunhando como os dois grupos pretendiam atingir a opinião púbica, ainda que, muito restrita na época. A primeira brochura foi editada em francês. O título - O Rei e a Família Real de Bragança devem nas circunstâncias presentes, retornar a Portugal ou permanecer no Brasil? - revelava sem dúvida, a oscilação do monarca, mas, ao mesmo tempo revelava também, o apreço pela instituição monárquica naquele momento representada por D. João VI. Um dos argumentos mais fortes da brochura consistia em afi rmar a superioridade do Brasil sobre Portugal. Tal argumento repousava no fato de que havia treze anos que o Brasil, era o centro

4 - Ibidem, pp. 10-12

5 - Retomo alguns aspectos da análise desenvolvida no livro de minha autoria, Os símbolos do poder, em espe-

cial, os dois capítulos iniciais. Maria Eurydice de BARROS RIBEIRO. Os símbolos do poder. Cerimônias e Imagens

do Estado Monárquico no Brasil. Brasília: Ed. UNB, 1995.

6 - Anônimo. Rio de Janeiro: Impremèrie Royale, 1822. In: Raimundo FAORO. O debate político no processo de

independência,. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973, pp. 1-10.

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do Império Português. Além disso, acrescentava o autor, era mais extenso e mais rico. Ora, um documento vale mais pelo signifi cado que possui, do que literalmente, pelo que diz. O que se pode ler da brochura em francês era a sua fi delidade monárquica, de coloração absolutista, mas, que, almejava romper com as amarras do pacto colonial. A resposta não tardou, em Lisboa e na Bahia apareceram as Considerações sobre a integridade da Monarquia Portuguesa e o “Exame analítico-crítico e a solução da questão: o rei e a família real de Bragança devem nas circunstâncias presentes, voltar a Portugal ou fi car no Brasil?” 7 O segundo documento redigido na Bahia era também, anônimo, mas é evidente que expressava os interesses da maioria da população livre constituída de comerciantes portugueses. Não hesitando em condenar a brochura em francês, seu autor afi rmava que esta era contrária aos interesses do rei e da nação e que os laços que uniam o Brasil a Portugal e Algarves deveriam ser preservados. A defesa da instituição monárquica caracterizava-se aí pelo temor que a maioria de comerciantes portugueses nutria com relação ao rompimento do pacto colonial. Acrescentando, em uma clara referência ao republicanismo, que a Pátria e o Estado encontravam-se ameaçados e os exemplos da América não eram bons para o Brasil. O discurso do anônimo evidenciava ainda, que só existia uma nação, a portuguesa. A nação e o rei formam uma só pessoa e o Estado é a mãe pátria8. Em última palavra, no regime monárquico se “fundem a Nação, o Estado e a Pátria”.

Nas Refl exões sobre a necessidade de promover a união dos estados de que consta o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nas quatro partes do mundo 9, no número 16 das bases, Refl exão 17, declarava claramente que a nação portuguesa são todos os portugueses de ambos os hemisférios, e numerava os prejuízos que sofriam a indústria e o comércio português pela abertura dos portos as nações amigas e pelos Tratados de 1810 com a Inglaterra, sublinhando a necessidade de Portugal deixar para trás o lugar subalterno que vinha ocupando na Europa. As Refl exões expressavam a preocupação com a emancipação do Brasil, argumentando que a maioria da população era constituída por escravos negros e por minoria civilizada. Esta mesma refl exão se repetiria em outros documentos da época, como um obstáculo capaz de barrar a independência. O autor da Justa retribuição dada ao compadre de Lisboa em desagravo dos brasileiros ofendidos por várias acusações...10, identifi ca-se como sendo ao mesmo tempo, português,

7 - IDEM.

8 - Maria Eurydice de BARROS RIBEIRO. Os símbolos do poder.... Op. cit. pp. 31-32

9 - Raimundo FAORO. O Debate político.... Op. cit.

10 - IDEM.

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logo, vassalo do rei, e brasileiro, por habitar no Brasil, obrigado a defender o seu país e seu povo ofendido. A mãe pátria não era apenas Portugal, visto que o Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves, é composto das possessões da Ásia e África, das Ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, fi nalmente, o Império Português do qual para o autor, o Brasil era a parte mais importante.

Ao evocar o regime monárquico representado por D. João VI a documentação explicita a importância política da monarquia, defendendo o status quo que o Brasil adquirira com a presença do rei. D. João VI, que desembarcara no Brasil, como príncipe regente, fora aclamado em terras brasileiras como rei de Portugal, a cabeça de todo o império português que naquele momento, juntamente com a sua corte, se encontrava no Rio de Janeiro. Era dali, que segundo a documentação que se acabou de fazer referência, deveria ser salvaguardada a ordem que a revolução do Porto ameaçava. O restante do império eram os membros deste corpo cuja cabeça era o rei. O que o grupo político formado de forças heterogêneas almejava de fato, e julgava ser o seu direito, era manter a cabeça do Reino Unido no Brasil. A permanência do rei no Rio de Janeiro, soava essencial e seria graças a continuidade da corte no Brasil, que Portugal poderia se tornar uma das maiores monarquias do mundo composta de vários territórios no ultramar, constituindo uma união econômica e social onde as necessidades eram, todavia recíprocas, conforme declaravam as Refl exões. Em última palavra, caberia a cabeça, a partir do Rio de Janeiro, (como de fato já ocorria) garantir a harmonia, assegurando as necessidades recíprocas, isto é, necessidades próprias a cada uma das partes do império português, conforme afi rmam as Refl exões. Para isto, recorria-se a estruturação de imagens mentais que vinha de um passado remoto e que imprimiam continuidade a fi gura real, vinculada a idéia de ordem, lembrando que todos, tanto de um lado, como de outro do oceano, eram súditos do mesmo rei. São como súditos de El Rei, que os brasileiros se reconheciam e assumiam um papel na ordem política do momento. Este apelo a fi gura real remete D. João VI a própria história da monarquia em Portugal. A cerimônia da aclamação vivenciada pelos seus antepassados, inspirada inicialmente, no ritual germânico de levantamento e aclamação de Afonso Henriques no campo de Ourique, não apenas rememorava a imagem do rei guerreiro, mas, entre rupturas e adaptações repetia-se em Portugal e se aclimataria no Rio de Janeiro. Assegurava ao rei o direito, de onde ele se encontrasse, de governar o seu reino, o que já ocorria desde 1808, quando o príncipe regente, governava do Rio de Janeiro, todo o império.

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A gravura produzida por Jean Baptista Debret 11 por ocasião, da aclamação de D. João VI, enfatiza o momento da aclamação. Enfocando em primeiro plano a multidão; e no fundo, o palácio de onde se distinguia com difi culdade a sacada e a minúscula fi gura do rei – contrasta com a mesma representação produzida pelo mesmo artista, por ocasião da aclamação de D. Pedro I em que o imperador aparece claramente na sacada, acenando para a multidão. Na primeira, o artista valorizou a cena externa da aclamação do rei enfatizando a participação pública constituída na época pelos súditos. Na mesma ocasião, produziu outra gravura retratando a cena no interior do palácio, quando o rei foi aclamado. Diante das autoridades eclesiásticas, portando as insígnias reais, tal representação comparada ao retrato de seu fi lho, aclamado, sagrado e coroado permite entrever pelo porte das insígnias, em particular pelo cetro, o que aproximava e separaria um monarca do outro, assinalando o momento de construção de ambas as imagens reais com que ambos seriam projetados na posteridade. D. João VI entrou para a História do Brasil como espécie de rei fraco, o rei bufão de uma corte decadente que perdera o poder; enquanto de D. Pedro I fi cou a imagem de um príncipe viril, temperamental a quem coube os louros da independência, ao ponto que se chegou a transplantar, quando das comemorações dos 150 anos da independência, os restos mortais que foram então, depositados no monumento do Ipiranga.

A imprensa registrou os sentimentos provocados no Brasil nos momentos que se sucede a partida do rei para Portugal, assinalando dois sentidos aparentemente opostos, um, a favor, e outro contra a política das Cortes de Lisboa. Neste contexto, três tendências políticas se delineavam: uma favorável a monarquia absoluta; outra apoiava a monarquia constitucional; e a terceira constituía-se de republicanos e democratas. O cenário político tornara-se mais complexo a qualquer observador uma vez que, se podia ser hostil as Cortes de Lisboa sem ser a favor da independência. Não havia nacionalismo e muito menos nacionalismo separatista, uma vez que conforme já apontado, as conjuras permaneciam locais e não colocavam em questão o regime monárquico. O sentimento que dominava era o medo de que a separação trouxesse consigo a desagregação territorial e consequentemente, a anarquia e a guerra civil. O exemplo de países vizinhos freava os ímpetos de independência. Esses sentimentos que sublimavam o desejo de emancipação, foram bem avaliados por Hipólito da Costa, em 5 de junho de 1821, no Correio Braziliense,

11 - Jean Baptiste DEBRET. Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d’um artiste français au Brésil

depuis 1816 jusqu’en 1831. Paris: Firmin Didot Frères, tomo III, prancha 6.

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quando registrou o desejo de união com Portugal manifestada pelas províncias que passaram a reconhecer o sistema constitucional sem que ao mesmo tempo, se pudesse impedir que alguns julgassem ser tempo do Brasil se emancipar da antiga metrópole.

Aos poucos, a idéia de independência foi se desenvolvendo principalmente, na imprensa e nas sociedades secretas, sem que, a primeira expressasse uma posição separatista inequívoca. Ajustando-se ao contexto político da época, a imprensa só contribuiu na repercussão da idéia de emancipação quando esta já era um fato evidente. Parte dela, como o Correio Braziliense era conservadora e a favor da monarquia constitucional defendendo sempre, a união dos reinos e declarando fi delidade ao Príncipe D. Pedro. Ao mesmo tempo, nas sociedades secretas, em especial na maçonaria, vencia a idéia da independência monárquica, como meio de criar um estado de ordem representado pelo príncipe regente. A idéia de república, ligava-se a desordem e a guerra civil. Assim, em torno do príncipe D. Pedro, representante legítimo da ordem, os ideais da emancipação política do Brasil, gravitavam. O príncipe era considerado como a única possibilidade de reação contrária ao mesmo tempo as Cortes de Lisboa - que exigiam o seu retorno – e ao republicanismo latente, porém ameaçador. Duas imagens mentais se estruturaram evocando o passado monárquico. Ambas apareciam inseparáveis: Inicialmente, a legitimidade do príncipe que provinha do direito de nascimento inerente ao titulo real por transmissão da sua linhagem de sangue, a quem cabia manter a ordem. Ele surgia então, como a única possibilidade capaz de evitar o caos tanto frente as Cortes de Lisboa, quanto as idéias republicanas que ameaçavam a desagregação territorial.

Foi muito expressivo para a época, o número de pessoas que assinaram a representação pedindo ao príncipe que não deixasse o Brasil. Via-se na regência de D. Pedro a única forma de impedir a perda do Brasil, fosse para uma outra monarquia estrangeira mais forte ou para o republicanismo. O documento se referia também, a Constituição vendo nela o instrumento capaz de unifi car as províncias e conceber a união dos dois reinos, Brasil e Portugal.

A política das cortes precipitava as articulações políticas na medida em que a exigência do retorno do herdeiro favoreceria a autonomia das províncias que provavelmente, se separariam. Nas Representações que à Augusta Presença de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente do Brasil levaram o Governo da Câmara e clero de São Paulo por meio de seus respectivos deputados, rogavam,

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“A V.A.R. que para bem seu e nosso, satisfaça as nossas súplicas tão bem fundadas na Religião, que também padecerá da ausência de um Príncipe tão religioso e formado conforme o coração de Deus. Segundo se explicam as Sagradas Escrituras: não nos deixe órfãos, sujeitos a tantos infortúnios”12.

Vou me deter na última frase do documento que apelando

para a bíblia insiste com força para o sentimento de orfandade de quem perde o Pai. Lembrava assim ao príncipe os deveres sagrados próprios a um rei que estabelecidos desde a idade média, associavam o monarca ao estabelecimento da paz e da justiça. Funções estas, que o envolviam originalmente, em uma auréola messiânica onde a fi gura paternal se confundia com o do salvador. Todavia, D. Pedro I era um príncipe moderno, dizia-se mesmo, liberal e a favor da constituição, portanto, convém investigar de que forma o papel de salvador lhe foi atribuído. Sem dúvida, o passado dos seus ancestrais estimulado pela memória coletiva emergia, porém, não sem, importantes rupturas. O exame dos últimos acontecimentos, em particular daqueles narrados pelos manifestos de agosto de 1822; a proposta feita pela maçonaria e aceita pelo príncipe; a convocação de uma Assembléia Constituinte e fi nalmente, como tudo isto foi narrado e divulgado pela imprensa, forjou um discurso sobre quem era, e, sobretudo quem viria a ser o príncipe herdeiro da dinastia de Bragança. Assinale-se que foi aí que o discurso fundador sobre o primeiro imperador do Brasil, começou a ser escrito. A imagem do salvador revivida, respondia a um momento de temor e instabilidade. Como se sabe, foi momentânea e teve curta duração, interrompida posteriormente, pela própria abdicação de Pedro I, embora a historiografi a e os manuais escolares tenham preservado, o título de “Defensor Perpétuo do Brasil”. Seja como for, esta imagem nos momentos que antecederam a independência, sensibilizou a opinião pública, preparando-a para os acontecimentos do Ipiranga, ou mais, foi capaz de captar o apoio e a esperança coletiva.

Raul Girardet, em Mythes et Mythologies Politiques, mostra como os momentos de efervescência mitológica sempre correspondem aos fenômenos de crise, mutação, ou de ruptura, momentos em que se formam o que ele denomina de constelações, isto é, grandes conjuntos político-mitológicos. É neste contexto que surge a fi gura do salvador. Inspirando-se em Bachelard e Lévy Strauss, ele descreve os temas,

12 - Cartas e mais peças ofi ciais dirigidas a Sua Majestade o senhor D. João VI pelo príncipe real o senhor D. Pedro

de Alcântara e juntamente os ofícios e documentos que o general comandante da tropa expedicionária existente na

província do Rio de Janeiro tinha dirigido ao governo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1822

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analisando essas estruturas no contexto de determinada sociedade e cultura13. Uma das primeiras advertências do autor consiste na necessidade de distinguir a parte real daquela que diz respeito ao imaginário político, o que implica em distinguir a espontaneidade criativa, da construção intencional.

O imaginário atribui, no ocidente, desde o medievo, ao rei uma função messiânica, mensagem fácil de passar aos brasileiros católicos e sensíveis no momento, ao apelo nostálgico portador de esperança. Lembre-se que o documento em questão encaminhado ao príncipe, citava as Escrituras e vinha assinado pelo bispo de São Paulo, o que aponta para a atuação da Igreja, a qual se acrescenta as intenções da maçonaria e do grupo em torno dos Andradas, que tinham plena consciência de que uma independência sem perdas territoriais, teria que ser monárquica. Ao mesmo tempo em que a imagem do salvador foi construída, a história se processava marcada pelo jogo de manipulação de peso signifi cativo no processo de elaboração mítica. Isto é, a partir do momento onde todo mito deste tipo toma certa amplidão coletiva e tende a combinar vários sistemas de imagens e representações; e a se constituir em outros termos em uma espécie de encruzilhada do imaginário onde se cruzam e se afrontam as aspirações e as exigências as mais diversas, ou até mesmo, as mais contraditórias14.

A independência monárquica se construiu assim, em oposição à república e envolvida como se mostrou, em várias contradições que misturavam idéias conservadoras e liberais. Recorrer ao passado é uma prática repetitiva histórica. Independente do lugar ou da época, todo regime monárquico, repousa nos laços de família, valorizando os ancestrais. Qualquer família política se considera necessária, quando se trata de afi rmar sua legitimidade ou de assegurar sua continuidade, apelando para o passado sacralizado.

Foi afi rmando a legitimidade de assegurar a continuidade da dinastia de Bragança no poder, que em 9 de janeiro de 1822, escrevendo ao pai, narrando os acontecimentos do dia, o príncipe concluiu, “Deus guarde a preciosa vida e saúde de Vossa Majestade, como todos os portugueses o hão mister e igualmente – Este seu súdito fi el e fi lho obedientíssimo, que lhe beija a Sua Real Mão – Pedro” . Mais do que desejar vida e saúde, votos próprios a um fi lho dedicado, D.Pedro despede-se beijando a mão do soberano. Este ato, porém, vai além de um simples gesto de um fi lho que quer ser abençoado pelo pai. Ao beijar a Real Mão, é o príncipe

13 - Raul GIRARDET. Mythe et mithologies politiques, Paris: Flammarion, 1986, p 72

14 - IDEM, 72-73

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que reconhece a autoridade do rei, reconhecendo que lhe deve submissão. É o pronto reconhecimento de que o Brasil é uma das partes do corpo que constitui o império português, cuja cabeça, é o rei, conforme referência acima. O dia 9 de janeiro entrou para a história como o dia do Fico. A imagem do príncipe como salvador se fortaleceria na medida em que ele salvaria o Brasil das inovações perigosas assegurando os direitos sagrados da Coroa Bragantina. Neste contexto político, sabiamente, a maçonaria ofereceu o título de “Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil,” título que para alguns soava uma provocação as Cortes de Lisboa, mas, que não impediu que o príncipe o aceitasse, embora, com uma ressalva; ele só acataria ser o Defensor, pois segundo ele, o Brasil não precisava da proteção de ninguém; era capaz de proteger-se. Com audácia, um grupo de políticos solicitou ao príncipe que convocasse uma Assembléia Geral dos Representantes das Províncias do Brasil.

As Cortes de Lisboa evidentemente não apreciaram os últimos acontecimentos, exigindo o retorno imediato do príncipe. Os manifestos de agosto, que ao mesmo tempo explicaram ao povo da guerra travada com o governo de Portugal, justifi caram os atos do príncipe em aceitar o título de Defensor e convocar uma Assembléia Constituinte. Em correspondência ao pai, D. Pedro expressava preocupação em salvaguardar a monarquia e, com ela, os direitos da Casa de Bragança:

“Julguei então indigno de mim e do grande rei de quem sou fi lho e delegado desprezar os votos de súditos tão fi éis; que sopeando talvez desejos e propensões republicanas desprezam exemplos fascinantes de alguns povos vizinhos, e depositaram em mim todas as suas esperanças, salvando deste modo a realeza, neste grande continente americano, e os reconhecidos direitos da augusta Casa de Bragança15. ”

A preocupação em assegurar os direitos dinásticos não se restringia apenas ao próprio príncipe. Antes do Fico, no Manifesto do Povo do Rio de Janeiro encaminhado a V.A.R., os suplicantes se diziam “persuadidos, como os demais Cidadãos amigos do sossego e boa ordem, que o Reino do Brasil se conservaria sempre regido pelo primogênito, ou sucessor do trono português, como foi assentado em um Conselho de Estado em Lisboa no mesmo ano de 180716. Ora, esta lembrança ao mesmo tempo em que confi rmava

15 - Cartas e mais peças.... Op. cit., p. 22

16 - IDEM.

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a legitimidade do príncipe em ocupar o trono do Brasil, aludia ao direito de sangue e de progenitura que caracterizaram as dinastias portuguesas desde a fundação da monarquia, fazendo prevalecer a idéia de que ao primogênito caberia herdar a coroa. Por isto, D. Pedro jurou fi delidade ao pai, mantendo o sentimento dinástico, base da sua legitimação. Enfi m, recoloca e põe em cena um modelo de realeza e império.

A independência monárquica se instalou ao mesmo tempo pressionada pelos atos da Corte de Lisboa e se contrapondo a possibilidade de uma separação republicana. Embora alguns, menos conservadores preferissem olhar para D. Pedro como um rei novo, escolhido pelo povo e sem ancestrais. A realidade apresentava-se outra; o príncipe regente simbolizava uma independência indolor, e tinha legitimidade, descendendo de uma dinastia que reinava do outro lado do Atlântico. Em 16 de setembro, mais uma declaração escrita por Ledo, recordava o êxito da união em torno do príncipe, defendia as razões que haviam conduzido a independência, mas, insistia na união territorial do Prata ao Amazonas.

A gravura de Debret que retrata a aclamação de D. Pedro I permite compreender o conteúdo popular que lhe foi atribuído. Segundo o artista, a cerimônia teve lugar no Campo de Santana, e representa o imperador, tendo do seu lado esquerdo, o presidente do Senado da Câmara, José Clemente Pereira, que pronuncia o último viva após erguer no ar o ato que fez de D. Pedro, imperador do Brasil. Em resposta, a tropa por meio de descargas de artilharia, imprimiu grande júbilo ao momento marcado também, por gritos de vivas. Na primeira fi leira da sacada, junto a D. Pedro, ao lado de Clemente Pereira, encontrava-se o porta- estandarte que, sustentando a nova bandeira com as armas do império, saldava a multidão. Do lado direito, a família real, D. Leopoldina e a princesa Maria da Glória erguida nos braços pelo Capitão da Guarda, permitindo assim, que o povo a visse. A segunda fi leira era formada pelos ministros, distinguindo-se José Bonifácio, imediatamente atrás do imperador. Ao seu lado, os demais ministros. Todas as autoridades civis e militares espremiam-se no interior do Palácio17.

Jean Baptiste Debret imprimiu em imagens toda a solenidade que marcou a aclamação do imperador. A quantidade de pessoas presentes no interior e no exterior do palácio, expressou com êxito o signifi cado popular buscado para o momento: o imperador era sem dúvida, aclamado pelo povo com grande euforia. Assim como

17 - Jean Baptiste DEBRET. Voyage Pittoresque et historique…. Op. cit., prancha 47

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os gestos que sustentavam o ato e a bandeira saudavam o novo império, a jovem princesa, ainda uma criança, era também exibida, demonstrando que a continuidade dinástica estava garantida e o império consolidado. Não por acaso, José Bonifácio, encontrava-se atrás do imperador, como uma sombra que o protegia revelando o papel de líder da grande articulação política que resultara na independência monárquica.

Comparada a cerimônia de seu pai, que obedeceu ao modelo dinástico dos Bragança, a aclamação de D. Pedro trouxe várias inovações. Precedendo as cerimônias de Sagração e Coroação, a Aclamação deixava claro, que D. Pedro não seria rei por vontade divina, mas imperador constitucional por vontade popular. Contraditoriamente, porém, o ritual que se seguiria – Sagração e Coroação – assim como o porte das insígnias, em particular a coroa por D. Pedro I permite constatar que o império do Brasil seria muito mais sacralizado que a monarquia portuguesa, a qual o jovem imperador devia a sua legitimidade.

O quadro em que Debret retratou a sagração do primeiro imperador foi considerado por Pedro Calmon 18 como um documento, por excelência, do ato litúrgico. Mas, convém notar que tal ato, não se restringia apenas a um ritual religioso, mas, também político, inaugurando uma liturgia nova inexistente na corte portuguesa, rompendo assim com o cerimonial lusitano, que apenas aclamava o rei. Embora a historiografi a portuguesa busque demonstrar a existência do ritual de sagração e coroação em Portugal, segundo as fontes, nenhum rei português foi sagrado e coroado, o que faz do imperador do Brasil, o primeiro príncipe português a sustentar na cabeça uma coroa. Conforme a tradição, desde D. João IV, o fundador da dinastia de Bragança, os monarcas portugueses haviam consagrado a coroa a N. S. da Conceição, padroeira do Reino. Esta tradição rompida no Brasil, onde o plano das cerimônias foi antecipadamente planejado, aprovado e publicado inspirando-se paradoxalmente, no cerimonial de Napoleão19, enfatizava a importância da dinastia na escolha da data, 1 de dezembro, que segundo a Gazeta do Rio, foi data tão célebre nos anais da nação portuguesa,

18 - Pedro CALMON. Apud Guilherme SCHUBERT, introdução. “A coroação de D. Pedro I”. Comunicação

apresentada durante o Congresso de história da independência do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,

1972, p. 13.

19 - Aparentemente, parece paradoxal que D. Pedro I tome as cerimônias napoleônicas como modelo conside-

rando que, Bonaparte foi a razão da corte portuguesa ter deixado as pressas Lisboa para refugiar-se no Brasil. No

entanto, é importante lembrar que Debret, membro da missão artística francesa, era parente próximo de David,

pintor de Napoleão.

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“... por haver neste dia sacudido o jugo opressivo dos intrusos Felipes, reis da Espanha, elevando ao solio da monarquia ao senhor D. João, oitavo duque de Bragança e quarto entre os reis de Portugal, daquele nome; depois de 182 anos torna ainda mais celebre em que os anais do Brasil, por se haver nele sagrado e coroado e colocado no áureo trono deste vastíssimo império o augustíssimo senhor, D. Pedro, seu quinto neto, que fora aclamado primeiro imperador constitucional e perpétuo defensor dele em 12 do passado mês de outubro”.

O sentimento dinástico, garantido no direito de sangue, era rememorado na sua continuidade histórica, sublinhando a data escolhida para a Sagração e Coroação. Era a mesma do nascimento da dinastia, em analogia com a separação de Portugal da Espanha, assim como o Brasil, se separava de Portugal; rememorava-se o ato heróico da fundação da dinastia de Bragança fundada por D. João, o quarto, que imprimira pela continuidade do nome, a continuidade monárquica. Dela, D. Pedro, seu quinto neto, quarto do nome e primeiro do Brasil, descendia, alimentando do outro lado do Atlântico, a sucessão real, defendo a Igreja e promovendo a justiça conforme, mais uma vez, a distribuição dos lugares atribuída aos personagens, registrada por Debret permite compreender. Dos dois lados do trono, o clero, representando “a concórdia estabelecida entre o Poder e a Fé; no acordo ostensivo da Igreja com a independência” 20 mais abaixo, à direita, de bastão em punho, o velho Andrada regia a festa. Entre ele e o clero, os magistrados e a nobreza; na platéia, dentre os que assistiam a cerimônia, o corpo diplomático21. Tratava-se evidentemente de mostrar com toda a pompa possível, fazendo-se ungir e coroar, o nascimento do novo império que não usurpava o trono, ao contrário, era ocupado pelo primogênito que herdava parte do reino 22.

Concluindo, é possível afi rmar que a continuidade monárquica no Brasil constituiu-se em um movimento de longa duração, que não implicou em continuidade, mas em rupturas importantes, nas quais remetendo a tradição medieval – da transmissão de pai para fi lho primogênito, do reino como herança baseada no direito do sangue – a dinastia de Bragança reinou no Brasil até 1889 como uma stirps regia, isto é, uma dinastia real.

20 - Guilherme SCHUBERT. A coroação... Op. cit. pp. 13-14

21 - Jean Baptiste DEBRET. Voyage Pittoresque et historique…. Op. cit., prancha 47

22 - Ver para detalhes da cerimônia de sagração e coroação de Pedro I, Maria Eurydice RIBEIRO. Os símbolos do

poder... Op. cit..

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10- SERVIÇO E BENEFÍCIO: RELAÇÕES E REDES SOCIAIS NA TRADIÇÃO IBÉRICA.

Maria Filomena Coelho*

O propósito deste encontro é refl etir sobre “a persistência de tradições históricas nascidas no período medieval, em solo americano”. Felizmente, começam a difundir-se as iniciativas deste tipo. Recentemente, o Programa de Estudos Medievais (PEM) da UnB propôs também uma discussão sobre a “longa duração”, que reuniu diversos especialistas para discutir a longevidade dessas tradições, da “antiguidade tardia” à “longa Idade Média”. Na ocasião, medievalistas, historiadores da arte, pesquisadores de Brasil colônia apontaram para a necessidade de se aprofundar o diálogo, por considerar que se abria um importante canal de compreensão do passado1.

Embora muitos medievalistas brasileiros insistam na necessidade de que a área História Medieval seja autônoma com relação a outras cronologias, parece-me, entretanto, que essa precaução está ainda vinculada à necessidade de se afi rmar a existência da disciplina, frente aos ataques ideológicos das décadas de 60, 70 e 80 do século passado. Naquela época, estudar o período medieval somente se justifi cava se isso estivesse a serviço de uma causa maior, ou seja: por meio do conceito de modo de produção, decidir, fi nalmente, a posição que o período colonial brasileiro ocupava na marcha inexorável em direção ao socialismo do século XX. Assim, era importante conhecer a Idade Média ibérica, mas em estreita relação com o Brasil colônia. Aqueles historiadores que insistiam em estudar o período medieval de outras geografi as e períodos, como a França carolíngia, eram fortemente estigmatizados, assim como aqueles que escolhiam abordagens culturalistas. Sob os mais diversos pretextos - todos de caráter ideológico - eram acusados de conservadores, burgueses, alienados... Essa discriminação gerou uma espécie de trauma no medievalismo brasileiro, que, ainda hoje, resiste à possibilidade de empreender estudos de longa duração que juntem as cronologias baixo-medieval ibérica e colonial americana. Mas, a pouco e pouco, as iniciativas vão surgindo, sobretudo nas gerações de medievalistas que não viveram diretamente o confronto acima mencionado. * Depto. de História e PPG de História da Uiversidade de Brasília.

1 - C. FONSECA; M.E. RIBEIRO; M.F. COELHO (Eds.). Por uma longa duração. Perspectivas dos estudos me-

dievais no Brasil. Atas da VII Semana de Estudos Medievais. Brasília: PEM-UnB/Casa das Musas, 2010.

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Permito-me, aqui, fazer um pequeno relato pessoal, de uma trajetória acadêmica que acabou por transitar nessa longa duração. Brevemente, tratarei de expor a conexão entre duas pesquisas realizadas entre o fi nal da década de 1980 e o início da década de 2000. A primeira, sobre o poder feudal no antigo reino de Leão, com base em arquivos monásticos; a segunda, sobre confl itos de poder em Pernambuco (1745-50), a partir de um discurso apologético que registra o embate entre diversas jurisdições. A proposta, que inicialmente pode parecer descabida, tem um fi o condutor que une os dois momentos, e que foi inspirada por alguns problemas que o estudo da História me apresentou já na graduação.

Nessa época, eu gostava de ler os documentos coloniais dos séculos XVI e XVII, verdadeiras epopéias de homens que cruzavam o Atlântico e que, mesmo distantes do poder do rei, teimavam em obedecer-lhe. Eu lia as cartas de Duarte Coelho a d. João III e pensava: como dava trabalho obedecer! Teria sido muito mais fácil, para esse nobre português, comportar-se como aqueles da capitania da Bahia, de quem ele vivia se queixando, que desassossegavam o povo, eram maus vassalos, mas a quem Sua Majestade não alcançava e, ainda assim, dava mercês! Nesse penoso processo da obediência, até o rei atrapalhava. Porém, contra tudo e contra todos, Duarte Coelho, carta após carta, pacientemente, repetia, reafi rmava sua obediência. A própria narrativa dá valiosas pistas ao historiador sobre as raízes dessa tradição política. O capitão-donatário explica que ela foi passada de geração a geração, desde tempos imemoriais2.

DA IDADE MÉDIA...

Foi assim que, há algumas décadas, tomei a decisão de estudar o poder na Península Ibérica, na Idade Média. Porém, inspirada pelos vassalos da conquista do Brasil, mais do que interessada em compreender por que e como se exercia o poder - coisa que de resto se fazia de sobra - eu queria entender por que aqueles homens e mulheres se submetiam ao poder, queriam obedecer, mesmo quando o próprio senhor ‘atrapalhava’. Confesso que minha abordagem não foi acolhida com grande simpatia, sobretudo numa época em que era pecado mortal imaginar que os de baixo não se revoltassem frente aos poderosos e não rompessem as amarras sempre que aqueles baixassem a guarda. Entretanto, parecia-me que a ‘livre’ obediência

2 - José Antônio Gonsalves de MELLO; Cleonir X. de ALBUQUERQUE. Cartas de Duarte Coelho a El Rei.

Reprodução fac-similar, leitura paleográfi ca e versão moderna anotada. Recife: Massangana, 1997. (Primeira

edição, Imprensa Universitária,1967).

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era, sim, uma chave importante para compreender as lógicas do poder medieval.

Escolher um corpus documental foi a etapa seguinte. Precisava de um universo razoável de atores e de situações que oferecessem a possibilidade de pensar o poder em todas as suas facetas. Fui colocada diante da documentação de três mosteiros femininos cistercienses do reino de Leão, com um recorte de duzentos anos, entre meados do século XII e do século XIII 3. Refi ro-me aos mosteiros de Gradefes, Carrizo e Otero de Las Dueñas. Há que dizer que no fi nal da década de 1980, o monacato medieval estudava-se na Espanha pelo “modelo dos domínios monásticos”, ou seja, interessava, sobretudo, entender o mosteiro como uma unidade feudal de poder, com a capacidade de feudalizar o seu entorno, por meio de uma efi ciente formação e exploração dos domínios senhoriais. Entretanto, apesar do que então se dizia quanto ao mutismo das fontes, os documentos aportavam muitas informações que permitiam descobrir a complexidade das relações de poder dentro dos domínios, para além do próprio poder exercido pelos mosteiros sobre seus dependentes. Claro que não se tratava da narrativa colonial, rica em detalhes, mas, ainda assim, a diversidade dos documentos e a leitura paciente, atenta, permitiram descobrir algumas das lógicas que fundamentavam a dinâmica do poder.

Sem dúvida, e em todos os níveis sociais, o princípio da obediência aparecia ligado ao reconhecimento da autoridade, e só tem autoridade aquele que é investido desse poder. Para além da proveniência mágica ou sagrada do poder, há outro elemento que aparece aos olhos de todos como evidência da capacidade de exercer o poder: benefi ciar, recompensar os que servem, aqueles que prestam serviço. Assim, a todo serviço corresponde um benefício, a todo benefício corresponde um serviço. Esta dinâmica, se não explica todos os aspectos das relações pessoais em sociedade na Idade Média, certamente abarca um universo que se aproxima muito da totalidade. Somente pode ser obedecido, ser reconhecido como superior, aquele que reconhece generosamente e com justiça os serviços que prestam os dependentes.

Essa estreita relação entre serviço e benefício desenhou-se claramente no conjunto documental dos mosteiros que estudei. E a questão da obediência parecia-me claramente vinculada à harmonia entre os dois pratos da balança. É mais. O próprio serviço confundia-se com a obediência. Somente se presta serviço àquele

3 - Maria Filomena COELHO. Expresiones del poder feudal. El Císter femenino en León (siglos XII-XIII). León:

Universidad de León, 2006.

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a quem se reconhece superioridade e autoridade, ato do qual se desdobra a obediência como conseqüência natural. Neste sentido, é preciso dizer que a documentação permite reconstruir vários níveis hierárquicos dentro da dinâmica serviço-benefício e de seus atores sociais.

Foi possível encontrar evidências de pequenos camponeses que recebiam, quer dos mosteiros, quer de senhores laicos, terras para serem exploradas sob várias condições, coisa que a historiografi a interpreta como laços de dependência e até mesmo como servidão. Sem desmerecer este aspecto, o discurso dos documentos também permite entender que o ato jurídico é visto como um benefício que o senhor daquele patrimônio entrega ao camponês e à sua família em troca da prestação de uma série de obrigações entendidas como serviço. Não são incomuns os documentos que formalizam a entrega de prestimonia a solariegos ou vassalos e em cujos textos a motivação se explicita pelo amor que o senhor tem pelo benefi ciado e pelo serviço que este já lhe prestou e que se espera continuará prestando. O que quero frisar é que além da dimensão econômica que estes laços supunham, há uma outra, igualmente importante, e que ajuda a entender por que as ordens inferiores se submetiam às superiores. Embora a exploração seja um dos elementos da relação, ela certamente não teria durado tanto no tempo, se não existissem outros elementos que lhe dessem sentido. Do ponto de vista político e jurídico, esta sociedade organizava-se em ordens, com funções e responsabilidades claramente defi nidas, dentro do corpo social. A hierarquização das ordens é da natureza do corpo, e os confl itos e a concorrência entre os seus membros resolviam-se pelo pacto, pela composição, pela reforma. Portanto, ser dependente de um senhor não é estar sob o jugo de um inimigo explorador e, da mesma forma, ter um camponês sob sua jurisdição não é criar um inimigo explorado. Ao contrário. Esses laços de dependência são a teia social, são a garantia da coesão da sociedade, entre as ordens inferiores e as superiores. Eles estabelecem-se numa perspectiva positiva da coesão, e não no pressuposto negativo do confronto e da ruptura. Evidentemente, outra coisa é que houvesse senhores que não cumpriam o pacto, mas isso era entendido como a corrupção do modelo.

Os arquivos monásticos permitem igualmente esquadrinhar essa lógica do serviço e do benefício com relação às ordens superiores. Os mosteiros usaram também o prestimonium para benefi ciar a pequena nobreza local, entregando-lhe patrimônios de diferentes envergaduras fundiárias. Frequentemente, os documentos referem-

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se, para além das terras, a vassalos, solariegos, collazos, casas, moinhos e igrejas. Os pactos variam quanto às cláusulas do desfrute do benefício, mas sempre se explicita que fi nda a vida do benefi ciário e/ou de sua mulher, o patrimônio deve ser reintegrado à posse do mosteiro livre e quite de qualquer embargo. O serviço, neste caso, consiste na proteção e exploração do prestimonium e, sobretudo, em seu acrescentamento, como a construção e/ou restauração de casas e arroteamento de terras. Invariavelmente, estes prestimonia acompanham-se de declarações de amor, bom serviço e benefício.

A encomienda é outra das instituições pelas quais se pode comprovar a importância da relação serviço-benefício. Os mosteiros encomendaram-se, com alguma freqüência, à proteção da nobreza do reino, mas é interessante notar que aquele que protege recebe também um benefício: ser encomendero com todas as benesses que aparecem estipuladas no documento que sela o pacto. Neste caso, aquele que protege não é o senhor da relação, mas o que presta o serviço de proteger. Embora a questão da proteção apareça aqui deslocada com relação à polarização clássica senhor-vassalo, superior-inferior, o fato que nos interessa salientar é tratar-se de mais um laço social importante mediado pelo serviço e pelo benefício.

Por último, no que diz respeito aos mosteiros, assinalo a importância da familiaritas, fórmula amplamente utilizada pelos cenóbios em questão. Por meio dela, camponeses e nobres entregavam seus corpos e seus haveres ao mosteiro e eram recebidos pela família monástica, passando a ter uns direitos que variavam desde a alimentação em vida, à sepultura depois da morte. Dependendo da situação econômica dos familiares e do interesse do mosteiro, o patrimônio poderia ser devolvido aos doadores sob a forma de prestimonium, seguindo a lógica já mencionada. Os documentos que registram os vários exemplos de familiaritas recorrem, tal como nos outros casos, à linguagem do serviço e do benefício, revelando ser esse o motor que incentiva ao ato. Neste caso, é também explicitado por parte do doador o desejo de salvar a alma, o que não deixa de sublinhar tratar-se de um serviço muito especial que os mosteiros estavam em condições de prestar.

Ora, toda esta rede de serviços e de benefícios não era promovida por uma ‘instituição impessoal’, como muitas vezes a historiografi a entendeu a ordem de Cister. Na realidade, há uma vida jurídica que se institui por meio desses mosteiros, que são reconhecidamente autoridades eclesiásticas, mas que justamente se afi ançam porque recorrem à dinâmica dos laços pessoais. É preciso dizer que a própria fundação dos mosteiros não é fruto de uma decisão institucional

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emanada do centro político da Ordem religiosa, no intuito de se difundir pela Europa. O nascimento desses mosteiros foi fruto da decisão da elite local de fundar uma casa religiosa para responder a várias necessidades. A primeira, como ato natural da nobreza cristã que deve mostrar-se piedosa e prover os domínios de seus senhorios ou a sua região de infl uência com esse tipo de fundação religiosa. A segunda, de caráter político, como forma de dotar a parentela de mais um palco para a representação de seu poder. A terceira, econômica, para rentabilizar o patrimônio fundacional e, sobretudo, aumentar e canalizar outros benefícios para a linhagem. Do ponto de vista formal, os mosteiros analisados seguem a regra beneditina, são fi liais do Mosteiro das Huelgas de Burgos, recebem a visita de correição estipulada pelas codifi cações, organizam-se hierarquicamente de acordo às normas da ordem de Cister, enfi m, são instituições monásticas. Entretanto, desde a abadessa às demais dignidades conventuais, observa-se uma ampla rede social com conexões estreitas que têm por base o parentesco biológico e artifi cial. Essa rede estende-se muito além dos muros dos mosteiros e forma verdadeiras malhas de coesão social, alimentadas pelas cessões patrimoniais, pelos benefícios e serviços. É possível deslindar essa intrincada trama por meio da pesquisa cuidadosa nos arquivos e, principalmente, pela análise prosopográfi ca dos atores que deixam seus nomes registrados nos documentos. Os resultados mostram que longe de serem instituições que se assentaram ali para dominar e feudalizar seu entorno, como um corpo estranho, os mosteiros nasceram das dinâmicas políticas e sociais da própria região e sua existência estará marcada pelos movimentos dos grupos sociais e políticos, de suas composições e recomposições.

... AO BRASIL COLÔNIA

Inspirada pelas abordagens de longa duração, decidi há alguns anos realizar um estudo sobre o confl ito jurisdicional ocorrido em Pernambuco, em meados do século XVIII, que enfrentou o bispo de Olinda e Recife, frei Luís de Santa Tereza, ao juiz de fora, Antônio da Mata 4. O documento que registra o confl ito foi redigido sob a forma apologética, com 900 fólios5. Além disso, foi possível contar com documentos complementares do AHU, que elucidam esses acontecimentos. O objetivo era tentar entender como se viviam

4 - Maria Filomena COELHO. A justiça d’além-mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (século XVIII).

Recife: Ed. Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, 2009.

5 - IANTT - Manuscritos do Brasil, livros 34 e 35.

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as instituições no Brasil nesse período, e de que forma se punha o problema da obediência no cenário do poder, transcorridos tantos séculos.

O que primeiro nos salta aos olhos , na leitura dos documentos, é a lógica do serviço e do benefício, que se espalha por todos os níveis das hierarquias sociais. A começar por Sua Majestade, que distribui ofícios régios como benefícios a serem desfrutados, e não como cargos burocráticos. Por sua vez, os próprios ofi ciais régios recorrem às lógicas do serviço e do benefício para tecer suas redes de infl uência que podem até mesmo unir as redes portuguesas àquelas a que eles se integram no Brasil. A Igreja também precisa ser analisada de forma complexa, pois está longe de aparecer como instituição única. Chamam atenção as posições divergentes entre a Sé de Olinda e as diferentes ordens monásticas da região. Mas, ainda assim, sequer podemos falar de posições homogêneas de cada um desses atores institucionais, pois as diferentes redes sociais que lhes dão vida, os cindem internamente numa lógica de bandos e fi delidades. A fi delidade, neste caso, alimenta-se da dinâmica do serviço e do benefício, e a ruptura e/ou a traição – segundo a parcialidade - recorrem à mesma estratégia discursiva. Ou porque o benefício não corresponde à qualidade do serviço, ou, ao contrário, porque não se prestou o serviço pactado.

Este salto cronológico implica entender tratar-se de um período histórico diferente da Idade Média, com especifi cidades próprias do fi nal do Antigo Regime. Entretanto, há aspectos do campo político, mais especifi camente da cultura política, que se mantêm ao longo do tempo e, atrever-me-ia a dizer, com o mesmo sentido. Depois de ler o Discurso Apologético, riquíssimo em detalhes, com uma narrativa viva e por cujas páginas desfi lam dezenas de personagens dos mais variados níveis sociais e políticos, torna-se clara a importância do serviço e do benefício como a argamassa que une a sociedade. Assim, não é um fenômeno anacrônico, arcaico, uma herança, sobrevivência medieval que teima em não desaparecer. É um fenômeno vivo, pleno de sentido, adotado naturalmente como lógica política pela sociedade portuguesa de meados do século XVIII.

Nessa perspectiva, quero ainda refl etir brevemente sobre aquilo que classifi camos hoje como desvios ao modelo racional burocrático do Estado, ou seja, a corrupção e o suborno, e que, surpreendentemente, a historiografi a, de forma anacrônica, se encarrega de aplicar a qualquer época histórica.

Conseguir um ofício na administração burocrática do império português requeria, quase sempre, conhecer as pessoas certas

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que apadrinhariam a candidatura, além de possuir os cabedais necessários para a compra do cargo. Métodos esses que, hoje em dia, só podem ser classifi cados como corrupção e suborno. Muitos ofícios eram arrematados em leilão, o que, teoricamente, poderia denotar uma política preocupada pela solvência econômica dos proprietários, pensando no benefício fi scal da coroa. Mas, não deixa de ser interessante observar como é que em Recife se manipulava esta política. O resultado do leilão dos ofícios que se fazia em Lisboa não era garantia imediata do exercício do ofício no Brasil. Uma vez transposto o oceano, a Câmara Municipal tinha também algo a dizer nessa matéria, e não era estranho que o arremate de um ofício realizado em Lisboa por determinado indivíduo fosse preterida em Recife, por outro de menor quantia, mas que tinha a seu favor argumento muito mais poderoso: o arrematador mais modesto ser protegido dos vereadores da Câmara. Como exemplo, um arrematador ‘lesado’ recorreu ao Tribunal da Relação da Bahia, que lhe deu ganho de causa, mas o fato é que a Câmara do Recife não acatou a decisão do tribunal, por considerar que os laços que a uniam ao segundo indivíduo eram argumento sufi ciente para justifi car a preferência6.

Essa dinâmica que afetava o arremate dos ofícios pode parecer um sintoma de fraqueza do poder central. Entretanto, ela assume outros contornos se analisada do ponto de vista da lógica da tradição. Com base na própria linguagem das fontes, compreendemos que aqueles que arrematavam um ofício, faziam-no dentro da idéia da prestação de serviço. João de Oliveira Gouvim arrematou, em 1751, o ofício de escrivão do Crime e Cível, Judicial, Notas e Juízo de Fora de Olinda. Pela leitura do documento sabemos que isto está classifi cado na categoria das mercês, pelo que o monarca lhe faz mercê da serventia do ofício. Em troca, João Gouvim entregou ao tesoureiro da Casa da Moeda, trezentos mil réis, que “off erece de donativo” à Real Fazenda de Sua Majestade. Teoricamente, isto não é uma compra, uma vez que os atores explicitam que se trata de uma oferta para o bem comum (Real Fazenda). Por outro lado, é bom salientar que se este tipo de transação fosse classifi cado como venda, poria imediatamente em xeque uma das principais funções da monarquia: a distribuição dos dons, neste caso, a distribuição dos ofícios 7.

6 - IANTT – Manuscritos do Brasil, livro 35, cap. 13.

7 - AHU – Manuscritos avulsos de Pernambuco, cx. 72, doc. 6077. Ver a análise que deste tema faz Antó-

nio HESPANHA. “Les autres raisons de la politique. L´economie de la grâce.” In: J.F. SCHAUB. Recherches sur

l´histoire de l´Etat dans le monde ibérique (Xvème-Xxème siècles). Paris: Presses de l´Ecole Normale Supérieure,

pp.67-86

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Lembro aqui a idéia de Perry Anderson, de que a compra dos ofícios remete à “caricatura monetarizada de um feudo” 8. Seguindo as tradições feudais, se antes se punham os exércitos a serviço do senhor, agora põem-se os cabedais. Aquilo que hoje classifi camos como abusos e corrupção, nem sempre foi entendido assim. O paradigma que orientava a classifi cação era o bem comum, e muitas vezes os ‘abusos’ eram considerados direitos dos que os praticavam, o que fi nalmente redundava no bem da respublica, porque fortalecia a posição da aristocracia. Os ‘abusos’ poderiam ser interpretados como ressarcimento pelos serviços prestados. Portanto, dependia muito de quem os praticava e em que condições. No século XVIII, em Pernambuco, embora sejam as instituições do centro a dar a última palavra sobre a participação da aristocracia local nas instâncias do poder, o fato é que ela continua dominando um determinado espaço e se apropria do vocabulário fornecido pelo próprio centro para legitimar o exercício do seu poder local.

Exemplo do que acabo de dizer é a maneira como Francisco do Rego Barros se benefi ciou do ofício de provedor da Fazenda e como o exerceu, com direito à formação de uma corte de ofi ciais subalternos que davam ainda maior dimensão à rede de solidariedades, fi delidades e serviço a seu dispor. O ofício já tinha sido praticamente patrimonializado pela família, e apesar da forma pouco ´racional` com que tratava a coisa pública, o centro permitia que o ofício permanecesse na família. Aliás, Francisco era irmão de João do Rego Barros, que se casou com herdeiras dos maiores donos de engenho da região, de cujas uniões nasceram dois futuros provedores da Real Fazenda. Francisco e João eram fi lhos de Francisco do Rego Barros, conhecido como o primeiro coronel do sertão, dono de dois dos maiores engenhos da região e presidente da Câmara de Olinda 9. Não é difícil imaginar até onde se estendia o poder da família e como a provedoria era importante dentro das suas estratégias econômicas e sociais. Este tipo de trajetória, tão comum no Antigo Regime, é muitas vezes analisado, sublinhando-se excessivamente os objetivos de ascensão do grupo familiar, o que leva à conclusão de que a luta pelo controle dos ofícios estava muito longe das motivações do bem comum. Na realidade, cremos que a coisa era bem mais complexa. Dentro daquela cultura política, a liderança dos Rego Barros, por si só, já garantia o bem comum. Assim, o fato de que eles almejassem a ascensão social por meio dos ofícios não estava em contradição com o bem comum. Para completar o panorama, dentro dessa cultura,

8 - Perry ANDERSON. Linhagens do Estado Absolutista. Porto: Ed. Afrontamento, 1984, p.35.

9 - Francisco Pereira da COSTA. Anais Pernambucanos. Recife: Fundarpe, t. IV, p.119.

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compreende-se que os Rego Barros não se sentissem presos pelo dever à fi gura de um Estado despersonalizado, mas sim, à fi gura concreta de um soberano a quem deviam fi delidade 10.

Seguindo a proposta de Jean-Claude Waquet para analisar o problema da ‘corrupção’, compreendemos que, se de um lado são perceptíveis os danos que a atitude dos Rego Barros causaria às engrenagens de um Estado racional, por outro, também é evidente que para ambos os lados esta ‘corrupção’ do sistema permitia que ao nível local a aristocracia pudesse se utilizar das estruturas desse mesmo Estado para manter o seu status quo 11. Ao pensar que os Rego Barros infringiam a lei e que deveriam sofrer um processo punitivo, esquecemos que estamos em uma época em que o campo da política, que tem no exercício da justiça sua principal área de atuação, norteia-se pela máxima do Digesto: a cada um o que lhe é de direito. Uma fi losofi a que entronca perfeitamente com a concepção de uma sociedade assentada na hierarquia e no privilégio. Assim se explica uma engenharia social calcada nos privilégios das ordens superiores e um sistema estamental orgânico, perfeitamente justifi cado à luz da moral e da religião da época. Dentro dessa visão de mundo, até mesmo a ‘corrupção’ poderia justifi car-se. Perdura a concepção pela qual o monarca desempenha o papel de executor da justiça distributiva que outorga doações em troca da fi delidade demonstrada, esperando-se que atue com a máxima generosidade. Isto não impede que seja precisamente no âmbito dessa faceta do poder, a da compensação, que se possa comprovar documentalmente o crescimento do autoritarismo régio, ou, paradoxalmente, uma atitude laxista que compreende e fecha os olhos à ‘corrupção’.

A luta pelos ofícios e pelas jurisdições transforma o serviço ao Estado no palco onde se desenrola a competição pela proeminência. Os benefícios feudais que outrora eram patrimonializados são agora substituídos pelos ofícios que vão passando de pai para fi lho, com as bênçãos do monarca. Por mais que as leis estabeleçam o controle do Estado sobre o sistema e que se desenvolvam técnicas administrativas inovadoras, elas revelam-se inócuas diante de uma cultura que olha para o rei como a fonte dos privilégios e das mercês. O próprio monarca é também presa das exigências de seus aristocratas e burocratas, pois sem eles é impossível tomar conta do

10 - Sobre este particular é interessante a comparação com a América Espanhola. Ver Horst PIETSCHMANN.

“Corrupción en las Índias Españolas. Revisión de un debate en la historiografía sobre Hispanoamérica Colonial”.

In: Instituciones y corrupción en la Historia. Valladolid : Inst. Univ. de Historia Simancas, 1998, pp. 33-52.

11 - Jean-Claude WAQUET. De la corruption. Morale et pouvoir à Florence aux XVII ème et XVIII ème siècles.

Paris: Fayard, 1984, p.32.

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império e, o que é mais importante, sem eles a própria monarquia perde o sentido 12.

A lógica da distribuição dos ofícios é orientada pela expectativa dos serviços que se hão de prestar, mas também sobre aqueles que já se prestaram, o que ajuda a explicar o ´à vontade` com que a maior parte se apropria dos benefícios que advêm do seu exercício. As relações entre o poder central e os poderes locais são uma das facetas desse jogo, no qual se prevêem as trocas e os compromissos, mas também a patrimonialização do poder, o que nem sempre era visto como usurpação da jurisdição da coroa.

No que respeita ao peso da administração real na confi guração do poder local, comprovamos como essa estrutura terminou por potencializar as dinâmicas clientelares e as lealdades pessoais. Entretanto, insistimos em que essas redes clientelares não podem ser analisadas a partir da lógica estatal-burocrática racional, o que as reduziria a um sistema corrupto. As instituições administrativas eram um arcabouço que contribuía para dar consistência às redes de caráter pessoal que uniam os diversos níveis de poder e sobre os quais se apoiava o governo da monarquia.

No universo das disputas, a jurisdição constituía não só um meio formal de poder político, mas era também, ao nível local, um dos principais pontos de apoio institucional das redes clientelares da aristocracia. As lutas das facções locais pelo controle do poder levavam os habitantes a procurar, conforme a situação, a proteção de um dos bandos ou da coroa. O recurso a um tribunal real podia servir de meio de pressão de uma facção contra a outra a fi m de obrigar a uma repartição diferente de favores, equilibrando as relações de dom e contra-dom locais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de redes é hoje amplamente utilizado pela História, sobretudo como desdobramento da microhistória. No que se refere à Idade Média e à Idade Moderna ibéricas recorre-se cada vez mais a essa abordagem por considerá-la instrumento de análise privilegiado para explicar as lógicas discursivas e as práticas sociais das sociedades tradicionais. A análise das redes sociais revelou-se especialmente interessante para estudar família e parentela,  mobilização e movimentos sociais, mundo das elites, cultura política,

12 - Isto também parece claro para quem estuda a América Espanhola. Ver Joseph PÉREZ. “El Estado Moderno

y la Corrupción”. In: Instituciones y corrupción en la Historia. Valladolid: Inst. Univ. de Historia Simancas, 1998,

pp. 11-129.

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constituição e governo dos impérios... Essa abordagem propicia ao historiador a possibilidade de propor análises de longa duração, como no caso da junção do medievo ibérico com a América colonial.

Parece-me haver uma profunda relação entre serviço-benefício e as redes sociais no mundo ibérico. No âmbito da política, tal relação é uma chave privilegiada para entender como se constituem as instituições, ou seja, com que lógica elas vão ganhando forma e se afi ançando ao longo do tempo. Portanto, a principal questão que quero deixar é se, realmente, do ponto de vista da interpretação do passado político da sociedade ibérica, o historiador deve permanecer ancorado às defi nições da ciência política, que a classifi ca como um “modelo paroquial” e/ou “modelo de sujeição” 13, ou ancorado às defi nições da sociologia weberiana que a vê como um modelo tradicional14. O problema, evidentemente, é que se trata de classifi cações que têm como ponto de partida outra realidade, o modelo cívico/participativo e o modelo do estado racional burocrático, e transforma-se tal realidade em padrão de medida para julgar as realidades políticas do passado, que acabam sentenciadas como imperfeitas, corruptas, inferiores. Esta interpretação, por ser evolucionista e de sofrer do “pecado das origens”, é anacrônica. É fundamental entender que as instituições e as autoridades públicas medievais ibéricas e da conquista do Brasil não sabiam que deveriam pensar e se comportar de acordo com um paradigma racional burocrático que só viria a nascer depois do século XVIII.

13 - G. ALMOND.; S. VERBA. Th e civic culture. Princeton: Princeton Univ. Press, 1963; IDEM. Th e civic culture

revisited. Boston: Little & Brown, 1980.

14 - Max WEBER. “Os três tipos puros de dominação legítima”. In: Metodologia das Ciências Sociais, vol.2. São

Paulo;Campinas: Ed. Cortez; Ed. UNICAMP, 1992.

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11- DOS CONCELHOS MEDIEVAIS ÀS VILAS COLONIAIS: O PODER

CAMARÁRIO NO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA.

Fábio Kühn*

Costuma-se dizer – para o bem ou para o mal - que os portugueses não inventaram nada de muito novo ao sul do Equador, tratando de reproduzir no contexto colonial, em suas linhas gerais, o funcionamento da administração metropolitana. É bem verdade que as formas administrativas poderiam ser muito variadas, consoante o tipo de inserção lusa nos territórios conquistados1, mas alguns elementos apontam para a recriação no Império português de práticas muito antigas. Práticas estas que remontam ao período medieval, quando foram constituídos os primeiros concelhos em Portugal. Conforme Mattoso, estes concelhos caracterizavam-se pela sua capacidade deliberativa, cuja autonomia se exprimia “pelo direito de eleger seus magistrados, de criar um direito próprio (mesmo que se lhe chame ‘costume’), de estabelecer o regime fi scal e o regime judicial e de organizar as suas forças militares”.2

UM TRANSPLANTE ADMINISTRATIVO: DOS CONCELHOS ÀS VILAS

Características que reproduziram-se durante a Idade Moderna, pois como observou Nuno Monteiro, “a municipalização do espaço político local constitui uma das heranças medievais mais relevantes” durante o Antigo Regime.3 De fato, no que se tratava dos poderes concelhios, os modelos do Reino foram incorporados ao cotidiano da América lusa desde muito cedo (notadamente com a criação das capitanias hereditárias). Assim, a partir da década de 1530, foram

* Depto. de História e PPG de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Gradu-

ação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

1 - António Manuel HESPANHA. “Estruturas político-administrativas do Império português”. In: Outro mundo

novo vimos. Lisboa: CNCDP, 2001.

2 - José MATTOSO. Identifi cação de um país – Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). Lisboa: Editorial

Estampa, 1985, p. 337.

3 - Nuno G. MONTEIRO. “A sociedade local e seus protagonistas”. In: César OLIVEIRA (dir.) História dos

Municípios e do Poder local. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 30.

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criadas as primeiras vilas coloniais, com seus respectivos ofi ciais camarários, ainda que subordinados ao donatário das capitanias.4 Em meados do século XVI seria estruturado o Governo Geral, que signifi caria em tese um maior controle por parte da Metrópole no processo de criação dos novos núcleos urbanos, muito embora algumas capitanias de jurisdição privada tenham sobrevivido até o século XVIII. Na América portuguesa, a medida que surgiam as povoações e estabeleciam-se seus foros de vila, os principais das terras passavam a disputar o controle da Câmara, que além de permitir tomar as rédeas da administração local, possibilitava ainda a comunicação direta com o centro político da monarquia. Conforme notou Luis Weckmann, ao referir-se aos funcionários coloniais da América lusa, “todos eles continuaram no Brasil os modos e costumes que haviam sido iniciados em Portugal medieval por uma monarquia originalmente feudal, porém cada vez mais centralizadora e absolutista”.5

Mesmo que levemos em conta a contribuição da historiografi a que vem questionando a forma tradicional de caracterização do absolutismo monárquico em Portugal, isso não invalida a tese da reprodução das formas administrativas reinóis em solo americano, pois elas seriam perfeitamente adaptadas às lógicas de uma sociedade de Antigo Regime nos trópicos. Assim, como assinalou Maria Filomena Coelho, “se olharmos os primeiros séculos da formação do Brasil através da lente feudal, desfaz-se a visão ‘esquizofrênica’ de um poder central que titubeia entre a modernidade econômica e o arcaísmo mental”, caracterizando-se “uma monarquia que compreende a particularidade de dominar um Império com pouca uniformidade”.6

A dinâmica da negociação entre o centro imperial e as periferias envolvia certamente a prática de concessões, mas igualmente compunha-se de elementos confl ituais. Nestes momentos de confl ito, as Câmaras apareciam como instâncias de intermediação imprescindíveis no universo político colonial. Daí a importância do domínio destas instituições pela “nobreza política”, na medida em que “não apenas as principais famílias da vila, cidade ou região

4 - Na carta de doação da capitania de Pernambuco a Duarte Coelho (1534), consta que o donatário “poderá per

sy e per seu ovidor estar à enliçam dos juízes e ofi ciaes alympar e apurar as pautas e pasar cartas de comfi rmaçam

aos ditos juízes e ofi ciaes”. Cf. Doações e forais das capitanias do Brasil, 1534-1536. Lisboa: Instituto dos Arquivos

Nacionais/Torre do Tombo, 1999, p. 12.

5 - Luis WECKMANN. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 246.

6 - Maria Filomena COELHO. A Justiça d’além mar – Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (século XVIII).

Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2009, p. 167.

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eram representadas na câmara, mas ainda que a câmara advogava, articulava e protegia os interesses das elites locais”, como anotou Russel-Wood.7 Ao se referir às câmaras ultramarinas, Charles Boxer questionou se estas instituições de poder local seriam exemplos de “oligarquias autoperpetuadoras”, como aquelas que dominaram alguns dos cabildos na América Espanhola.8 Segundo o autor, as Câmaras eram uma forma de representação e refúgio para todas as classes da sociedade portuguesa, particularmente para as elites locais. Representação na medida em que o exercício do poder político local dava vazão às reivindicações das comunidades ou de setores mais privilegiados. Mas também de refúgio, visto que os conselhos eram espaços de resistência às imposições do poder central.9

Estudos mais recentes tendem a destacar a importância destas instituições do poder local, evidenciando a centralidade dos cargos camarários não apenas enquanto espaço de distinção e hierarquização dos colonos, mas principalmente enquanto espaço de negociação com a Coroa. Em função disso, ser membro da Câmara transformava os ocupantes destes cargos em “cidadãos”, habilitados a participar do governo político do Império. Conforme Bicalho, “a ocupação de cargos na administração concelhia constituíra-se, portanto, na principal via de exercício da cidadania no Antigo Regime português. (...) Os cidadãos eram os responsáveis pela res publica que, traduzida por ‘coisa pública’, articulava-se à governança da comunidade”.10 Outros autores, como Nuno Monteiro, vão mais longe ainda, ao afi rmar que “talvez seja mais adequado pensar o espaço político colonial como uma constelação de poderes, (...) na qual as elites locais brasileiras se exprimiam politicamente, sobretudo por intermédio das câmaras municipais”. Esta leitura do Império como um “sistema de poderes” ressalta a “centralidade do centro” e não a centralização como fundamento básico da administração portuguesa, segundo o qual a comunicação política quase universal com a Corte era o “pressuposto decisivo da fl exibilidade do sistema”.11

7 - A. J. R. RUSSEL-WOOD. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”. Revista Brasileira de

História. Vol. 18 nº 36, 1998, p. 208.

8 - C. R. BOXER. Portuguese Society in the Tropics – Th e Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda.

1510-1800. Madison and Milwaukee, Th e University of Wisconsin Press, 1965, p. 4.

9 - C. R. BOXER. O Império Marítimo Português. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 286. Na verdade, este autor afi r-

mou que “de maneiras diferentes, a Câmara e a Misericórdia forneceram uma forma de representação e de

refúgio para todas as classes da sociedade portuguesa”.

10 - Maria Fernanda BICALHO. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: João FRAGOSO; Maria

Fernanda BICALHO; Maria de Fátima GOUVÊA (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial

portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 204-205.

11 - Nuno Gonçalo MONTEIRO. “Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os vice-

-reis e governadores gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII”. In: João FRAGOSO; Maria Fernanda

BICALHO; Maria de Fátima GOUVÊA (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa

(séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 283.

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Por fi m, um aspecto a ser considerado em perspectiva comparada é o âmbito geográfi co das vilas coloniais, muito mais amplo do que aquele das suas congêneres metropolitanas. Diante da imensidão do território brasileiro, a expansão urbana foi relativamente modesta. No século XVII, até o fi nal da União Ibérica, Portugal havia criado na América lusa apenas 36 núcleos urbanos, enquanto que nos territórios da América espanhola estes eram 330 na mesma altura (1630). De fato, até 1822, foram criadas somente 208 vilas e 13 cidades em todo o território da colônia americana, sendo a maioria delas constituídas após o fi nal do governo de Dom João V (1750).12 Este é um número muito inferior em relação às vilas existentes no Reino, onde a rede concelhia já estava plenamente consolidada desde o início do século XVI, atingindo 762 municípios em 1527-1532, para depois crescer muito lentamente durante três séculos até chegar a 816 conselhos ao fi nal do Antigo Regime (1826).13

O PODER LOCAL NO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA

Sendo região de povoamento tardio, ocorrido somente no século XVIII, o poder local no sul da América Portuguesa somente foi organizado com a criação da Câmara do Rio Grande de São Pedro, que funcionou na vila de Rio Grande (1751-1763), no arraial de Viamão (1763-1773) e em Porto Alegre (1773-1810). A conjuntura na qual isso ocorreu, correspondeu a um período no qual se verifi cou o processo fi nal de transição de uma monarquia de tipo corporativa (com relativa autonomia dos poderes locais) para uma do tipo absolutista, com todas as implicações resultantes, em especial a emergência de uma nova “razão de Estado” e o decorrente aumento da centralização política.14 Neste sentido, para compreender adequadamente as relações estabelecidas entre o centro e a periferia no Império português, deve-se levar em conta que “as vilas refl etiam uma resposta régia a uma situação resultante de um povoamento anterior e espontâneo, promovido por colonos individualmente, e cujo crescimento até determinado ponto fazia com que a Coroa julgasse necessário prover a organização de um governo municipal”. A principal intenção da Coroa seria favorecer a estabilidade administrativa, social e econômica destas localidades.

12 - Pedro PUNTONI. “Como coração no meio do corpo: Salvador, capital do Estado do Brasil”. Laura de Mello e

SOUZA; Júnia F. FURTADO; Maria F. BICALHO (orgs.) O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 383

13 - Nuno Gonçalo MONTEIRO. “A sociedade local...”, p. 40.

14 - Martha ABREU, Rachel SOIHET e Rebeca GONTIJO (orgs.) Cultura política e leituras do passado - historio-

grafi a e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 131-154.

161

Por isso, durante a segunda metade do século XVIII intensifi cou-se o povoamento na América Portuguesa, tendo sido criadas 95 novas vilas entre 1750 e 1808, “justamente como forma privilegiada pela Coroa para enquadrar politicamente a população e atenuar os confl itos, mais freqüentes em zonas periféricas, onde não existia qualquer tipo de autoridade reconhecida pelo rei”.15

Naquela conjuntura se fez sentir de maneira mais incisiva a atuação da Coroa no sentido de cercear a autonomia das Câmaras do Império. A partir dos fi nais do século XVII e durante o século seguinte, o poder monárquico passou a interferir cada vez mais diretamente nos conselhos municipais. Uma das primeiras medidas foi uma alteração nos procedimentos eleitorais das câmaras, que nas vilas principais passaram a ter seus ofi ciais designados pelas autoridades régias. Além desta intervenção, teriam aumentado o número de ouvidores, possibilitando uma prática correcional mais freqüente, que visava enquadrar justamente os conselhos municipais. Outra medida foi a criação do cargo de “juiz de fora”, um ofi cial letrado, com formação universitária e que passou a presidir as câmaras das vilas mais importantes, em substituição aos juízes ordinários. Todas estas medidas signifi cavam essencialmente a mesma coisa: um aumento da interferência dos “poderes do centro” no poder local.16

Entender o funcionamento do poder local em uma pequena povoação ultramarina e periférica que nada tinha da riqueza ou importância política de cidades como Salvador, Olinda ou o Rio de Janeiro, nos parece fundamental para compreender a própria conquista e colonização portuguesa na região meridional da América, que garantiu a expansão do Império lusitano até as margens do Rio da Prata. Durante toda a primeira metade do século XVIII o território do atual Rio Grande do Sul não conheceu a presença da instituição típica da representação do poder local no Império português, qual seja, uma Câmara municipal. Desde a criação da vila de Laguna em 1714, todo o território meridional estava sujeito às “justiças” emanadas do pequeno burgo catarinense. Teoricamente, os moradores de Rio Grande – fortaleza militar e núcleo populacional fundado em 1737 - também deviam estar submetidos à jurisdição da Câmara lagunense. Todavia, as contendas entre os comandantes militares do Rio Grande e os ofi ciais de Laguna foram bastante

15 - A. J. R. RUSSEL-WOOD. Centro e periferias. p. 217; Francisco BETHENCOURT. “As Câmaras e as Miseri-

córdias”. In: Francisco BETHENCOURT; Kirti CHAUDHURI (dirs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa:

Temas & Debates, 1998, vol. 3, p. 276.

16 - Dauril ALDEN. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley; Los Angeles: University of California Press,

1968, pp. 423-424; Maria F. BICALHO. Op. cit. pp. 199-200.

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comuns, o que leva a pensar que a criação de uma Câmara em Rio Grande tenha sido uma decorrência destes confl itos jurisdicionais, que envolviam impedimentos na “execução das justiças”.17

De fato, parece que houve alguma resistência à criação de uma vila no presídio sulino, já que a provisão régia datada de 17 de julho de 1747 determinava a imediata instalação de uma Câmara, o que somente aconteceu mais de três anos depois, em dezembro de 1751. Uma explicação para esta demora pode estar no peso político dos oponentes. Um adversário da criação da vila era ninguém menos do que por Gomes Freire de Andrada, governador do Rio de Janeiro. Respondendo a uma consulta do Conselho Ultramarino, ele procurou dissuadir a Coroa da pretensão, afi rmando que “a maior parte de que se forma o presídio do Rio Grande de São Pedro são as tropas de sua guarnição que se tem povoado, mas os moradores paisanos vivem muitos nas estâncias ou sesmarias, em que se estabeleceram, que ser ou não ser vila aquele estabelecimento pouco aumenta o bem público e o serviço de V.M.”. Todavia aos conselheiros pareceu ser conveniente a criação da vila, devido à “grande distância em que o Rio Grande de São Pedro fi ca da vila de Laguna”. A primeira vila sul-riograndense somente foi instalada sob os auspícios do novo ouvidor da comarca de Santa Catarina, criada no fi nal de 1749.18

A atuação da primeira Câmara estabelecida em Rio Grande sucedeu ao longo de pouco mais de uma década (1752-1763), até que a invasão espanhola transferisse o poder local para Viamão. Temos pouca informação a respeito deste período inicial, especialmente devido ao fato de não terem sobrevivido as atas da Câmara em função da ocupação militar castelhana da vila em 1763. Se em Rio Grande o conselho ainda se reunia regularmente, com a ocupação espanhola, os ofi ciais foram obrigados a transferir-se, devido às contingências da guerra, para a freguesia de Viamão (criada pelo bispo do Rio de Janeiro em 1747), onde existia um pequeno arraial que passou a ser a sede do poder local no Continente do Rio Grande.19

Instalada em Viamão, percebe-se a emergência de uma forte defesa das prerrogativas da Câmara, o que levou a novos confl itos jurisdicionais, especialmente com os ouvidores da comarca, cuja sede fi cava na ilha de Santa Catarina. Um dos casos mais graves aconteceu nos anos de 1767/1768, quando o então ouvidor Duarte

17 - Carta do Ouvidor da comarca de Paranaguá ao Conselho Ultramarino, 24.07.1745. Documentos Históricos,

vol. 94, p. 123.

18 - Márcia Eckert MIRANDA. Continente de São Pedro: administração pública no período colonial. Porto Alegre:

CORAG, 2000, p. 55; Documentos Históricos, vol. 94, pp. 130-131.

19 - A conjuntura internacional que permitiu a ocupação militar espanhola no Rio Grande está relacionada às

vicissitudes da Guerra dos Sete Anos (1756-1762), que levou ao retorno das hostilidades entre as Coroas ibéricas.

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de Almeida Sampaio teve a sua correição suspensa em função de uma articulação que envolveu a Câmara, o provedor da Fazenda e o governador da capitania. Revoltado com o fato, que tomou como uma afronta á sua jurisdição, o ouvidor escreveu uma longa carta ao vice-rei Conde de Azambuja, onde relatou os sucessos que tiveram como conseqüência a sua retirada do Continente do Rio Grande.20 Para tanto, historiou ao vice-rei uma sucessão de irregularidades, que tiveram início já em 1763, quando tentou pela primeira vez fazer correição na remota capitania meridional. Naquele ano, fora desaconselhado pelo governador Inácio Elói Madureira, que alegou que a região “era fronteira e existiam guerras entre o nosso Reino e o de Castela”. De fato, naquele mesmo ano a única vila existente seria ocupada militarmente pelos espanhóis, o que inviabilizou qualquer tentativa de fi scalização.

Transferida a Câmara para a “Aldeia de Viamão”, notou o ouvidor que “continuaram aqueles juízes ordinários no exercício de seus ofícios e continuariam ainda hoje se os deixassem”. Conforme a denúncia, os ofi ciais camarários estavam mancomunados com o antigo escrivão da Câmara, Inácio Osório Vieira, que tinha sido nomeado em 1765, como provedor da Fazenda pelo governador José Custódio de Sá e Faria. Segundo o ouvidor, continuou “sempre o dito Inácio Osório sendo o cabeça de toda aquela parcialidade, fazendo com que dela, fossem sempre conservados os juizes, para eles os dirigir”. O mais grave eram as irregularidades nas quais o “bando” estava envolvido, pois era preciso “prover sobre as arrecadações dos bens dos ausentes e dos órfãos de que me fi zeram várias queixas e registros, assim como sobre as mesmas Justiças, por eles terem perdido na invasão do Rio Grande os Livros, em que existiam os Provimentos das correições, tanto meus, como de meu antecessor”.

Em setembro de 1767, o ouvidor Sampaio solicitava à Câmara “aposentadoria em sua chegada”, mas diante do seu afã investigativo, logo ele seria visto como persona non grata pelos poderosos locais. Segundo o magistrado, “se resolveu o dito Governador impedir-me não só a referida Correição, mas todo o exercício da minha Jurisdição naqueles Continentes”, escrevendo à Câmara “ordenando-lhe me não obedecesse”. Revoltado com a desobediência dos ofi ciais camarários e do governador, ele achou mais conveniente retirar-se “instantaneamente” do Continente, certamente em função das ameaças que deve ter sofrido. Sem entender os motivos que teriam levado à sua suspensão pelo vice-rei, o ouvidor desabafou, dizendo

20 - ANRJ. Fundo Vice-reinado, cx. 749, pct. 3. Carta do Ouvidor de Santa Catarina Duarte de Almeida Sampaio

para o Vice-rei Conde de Azambuja. Desterro, s/d [1768].

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que “persuado-me que nenhuma daquelas Representações, foram feitas pelo dito Governador com Zelo do Serviço de Deus, e de El Rei, só sim para comprazer com aquela parcialidade de que é Cabeça o dito Escrivão Ignácio Osório Vieira, [...] por não querer este, que fossem vistos os seus procedimentos, e os dos seus serventuários, por ele determinados, naqueles tempos, e as faltas dos inventários tantos dos órfãos, como dos ausentes”. Por fi m, informava ainda que “o mesmo Inácio Osório Vieira é devedor aos Órfãos, que tirou do Cofre no Rio Grande três mil cruzados, além dos juros; o Juiz dos Órfãos que ali elegeram, e daquela mesma parcialidade Domingos de Lima Veiga, deve aos mesmos Órfãos (...), mais de quatro mil cruzados”. Assim, justamente por tentar combater tais desvios, o ouvidor teve sua correição impedida, numa demonstração de força do poder local, ainda que em articulação com as autoridades régias. Antes de estranhar tais envolvimentos, deve ser lembrado que a construção de redes de relações pessoais sobre uma base local eram um dos principais recursos utilizados pelos representantes da Coroa para assegurar o funcionamento das estruturas formais da autoridade imperial.21

Outro confl ito grave aconteceu no ano de 1772, quando os cidadãos expressaram ao governador interino Antônio Veiga de Andrade, através de uma representação, o seu desconforto com a situação militar do Rio Grande, ainda sob ocupação castelhana. Quando vice-rei Marquês do Lavradio fi cou sabendo do teor da petição, chamou os ofi ciais de rebeldes e perturbadores da paz pública, acusando-os de crime de conspiração por estarem agindo em concerto, além de criticar a leniência do governador. Enfurecido, o vice-rei determinou que os cinco signatários da petição fossem enviados presos ao Rio de Janeiro para receberem uma exemplar punição. Mais tarde, Lavradio esfriou os ânimos e perdoou os “rebeldes”, determinando ao governador Veiga de Andrade que usasse de “toda vigilância possível” para evitar novas situações similares.22 Como decorrência desta rebeldia (entre outros fatores, tais como sua posição estratégica), em 1773 o vice-rei determinaria a transferência da Câmara de Viamão para Porto Alegre, que seria assim a nova capital. Com o translado defi nitivo do poder político local para a nova freguesia portuária, a Câmara ali se fi xaria pelos próximos anos, até que no período joanino fossem criadas as novas

21 - Z. MOUTOUKIAS. “Réseaux personnels et autorité coloniale: les négociants de Buenos Aires au XVIIIe

siècle”. Annales ESC, junho/outubro, nº 4 e 5, 1992, pp. 889-915.

22 - Dauril ALDEN. Op. cit. p. 426. Sobre este episódio, ver também Adriano COMISSOLI. Os homens bons e a

Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, pp. 55-56.

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vilas. Cabe lembrar que, na prática, a Câmara sediada no antigo Porto dos Casais tratava-se da única corporação municipal existente no Rio Grande de São Pedro, o que lhe conferia poderes muito amplos, com jurisdição sobre todo o território lusitano do Continente.

Para concluir, resta dizer que no início do século XIX, o sul da América portuguesa vivia uma situação insólita do ponto de vista da administração local, pois continuava existindo (até 1810) somente uma única vila na capitania do Rio Grande; no entanto, esta vila não era sede da Câmara, que permaneceu estabelecida em Porto Alegre, uma simples freguesia... Os governadores pediam solução para este estado de coisas, mas não eram atendidos: em 1791, Rafael Pinto Bandeira, ponderava ao ministro Martinho de Melo e Castro que, além de Rio Grande, “era bom [...] Porto Alegre ser uma vila e Rio Pardo, outra”. Anos depois, em 1803, o governador Paulo Gama escrevia ao Visconde de Anadia, propondo a criação de quatro novas vilas, proposta que seria atendida pela Coroa somente no fi nal daquela década.23

Esta timidez da Coroa portuguesa na constituição de novos municípios no Continente do Rio Grande teve sua contrapartida eclesiástica na criação de diversas freguesias, tendo sido eretas dezesseis paróquias entre 1737 e 1779. Depois deste surto de povoamento, novas freguesias seriam criadas a partir de 1810, justamente no período joanino. Somente depois da chegada da família real ao Brasil é que a Metrópole “interiorizada” passou a prestar maior atenção às necessidades administrativas do Rio Grande de São Pedro. 24 Já no fi nal de 1807 o Rio Grande de São Pedro seria elevado à categoria de capitania-geral, tendo sido nomeado Dom Diogo de Souza como primeiro governador e capitão-general. No período compreendido entre 1811 e 1822, mais cinco Câmaras foram constituídas: Rio Grande, Rio Pardo, Porto Alegre, Santo Antônio e Cachoeira. Na verdade, parece que houve mesmo uma certa resistência da Coroa em reforçar os poderes concelhios no Sul, numa região de fronteira ainda indefi nida (o mesmo vale para a praça da Colônia do Sacramento, que jamais foi vila). Assim, a maioria das medidas tendentes a criar uma estrutura administrativa mais apropriada se deu no período joanino (1808-1821), quando passou a prevalecer uma nova orientação política, onde a fronteira meridional passaria a ter uma importância crescente para o Império luso-brasileiro e seus renovados intentos expansionistas na região platina.

23 - AHU-RS, Cx. 3, doc. 252 e Cx. 7, doc. 487.

24 - Maria Odila Leite da Silva DIAS. “A interiorização da metrópole”. In: IDEM. A interiorização da metrópole e

outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005, pp. 7-37.

RELIGIOSIDADE COLONIAL

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12- CRISTANDADE MEDIEVAL E CRISTANDADE COLONIAL:

PERMANÊNCIAS E RUPTURAS.

Francisco José Silva Gomes*

A Cristandade Colonial no Brasil é uma herança medieval, transplantada de Portugal, remodelada e resignifi cada na situação colonial. Não se entende aqui Cristandade como sinônimo de Cristianismo. Enquanto o Cristianismo se refere a um sistema religioso específi co, a Cristandade signifi ca um sistema de relações da Igreja e do Estado numa determinada sociedade.

A relação bipolar Igreja e Estado só se torna signifi cante se se leva em conta a Sociedade como um terceiro elemento mais abrangente. A relação bipolar serve, outrossim, de mediação à relação tridimensional e está nela contida. As relações estruturais da Igreja e do Estado medeiam assim a relação de cada uma destas instituições com a Sociedade.

A Cristandade iniciou tardiamente na História do Cristianismo. No Império Romano, em particular, iniciou com a Pax Ecclesiae, no século IV, por ocasião da “conciliação constantiniana”. O sistema de Cristandade apresentou várias modalidades no decorrer da História do Cristianismo e da Igreja. As modalidades que podem ser denominadas de “constantinianas” apresentam certos traços constantes, aqueles da Cristandade que se constituiu, no século IV, no “Império cristão”. Estas modalidades perduraram até as revoluções liberais, até o advento do capitalismo.

Nelas, a Cristandade apresenta-se como um sistema único de poder e de legitimação da Igreja e do Estado. Neste sistema, o Estado assegura à Igreja uma presença privilegiada na sociedade. A Igreja, por sua vez, assegura ao Estado e aos grupos sociais dominantes a legitimação da sua dominação.

Uma Cristandade “constantiniana” apresenta as características seguintes: um regime de união da Igreja e do Estado; uma religião ofi cial que busca a unanimidade religiosa; um código religioso de base, considerado o único admitido, mas diferentemente apropriado pelo clero e os leigos, pelos letrados e os iletrados, pelos diversos grupos sociais. Uma situação histórica “constantiniana” aumenta

1

* Professor Associado de História Medieval do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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geralmente o poder institucional da Igreja, já que ao seu peso específi co, o religioso, acrescenta-lhe um peso político-ideológico e econômico. Não se deve descartar a possibilidade, numa Cristandade “constantiniana”, de movimentos de contralegitimação da ordem vigente, baseados porém num capital religioso comum.

Na Cristandade Medieval, a Igreja detinha um quase monopólio sobre a produção dos bens simbólicos. Os clérigos tendiam, até certo ponto, a monopolizar o papel de intelectuais. As representações, os discursos e as práticas que os intelectuais elaboravam e veiculavam, permitiam ao sistema obter o consenso social. Para tanto, a Igreja criou uma extensa rede clerical e paroquial. Havia, é óbvio, outros tipos de intelectual como, por exemplo, os líderes de certos movimentos milenaristas de protesto social ou de certas correntes religiosas consideradas, pela Igreja, como heréticas.

Nesta modalidade de Cristandade, a religião cristã tendia a ser uma religião de unanimidade mas com caráter polivalente. A religião fornecia, simultaneamente, a ideologia e as normas sociais. A ideologia religiosa explicava e justifi cava as relações sociais. A religião agia, outrossim, sobre as normas de conduta (numa ética), fornecia as motivações para a ação e forjava a esperança mobilizadora (numa utopia).

Além de polivalente, a religião era também multifuncional. Religião de unanimidade, o cristianismo provocava, contudo, diferentes expectativas nos diversos grupos sociais. Max Weber afi rma que, se por um lado, os grupos dominantes buscam na religião a confi rmação da sua posição social, por outro, os grupos dominados encontram na religião a compensação para a sua situação presente, na esperança de uma salvação futura. Temos, pois, a função integradora e de coesão social da religião. A esperança, todavia, apresenta um caráter ambivalente: tanto pode ser fonte de resignação e conformismo, quanto pode constituir uma utopia mobilizadora de conotações religiosas. Temos, pois, a função de protesto social da religião. Não se pode, evidentemente, restringir as funções da religião, na Cristandade Medieval, somente a estas duas dimensões.

A Cristandade Medieval propiciava, com efeito, situações de conformismo que um consenso social homogeneizador e normatizador gerava. A religião sacralizava o poder, as autoridades, a ordem vigente. A ideologia tinha um caráter eminentemente religioso. Assim sendo, as práticas sociais eram vistas não como uma imposição, mas como atos voluntários ou como deveres morais e religiosos. Neste universo mental, a ordem natural e a

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ordem social eram percebidas como equivalentes e garantidas pela ordem sobrenatural (divina) e as relações sociais acabavam, na consciência dos agentes sociais, naturalizadas e sobrenaturalizadas simultaneamente.1

A Cristandade Medieval conheceu uma séria crise, no século XIV e XV, a qual recebeu uma dupla resposta: a da Reforma católica e a da Reforma protestante. Ambas ocorreram no contexto do surgimento, na Europa, de uma pluralidade de Estados soberanos e do Antigo Regime. A Cristandade tridentina permitiu a reelaboração do ideal “constantiniano” de Cristandade no interior de cada Estado católico numa Europa fragmentada numa pluralidade de Estados católicos e protestantes segundo o princípio: cuius regio, illius est religio.

Nos Estados católicos, no contexto da Cristandade tridentina, os confl itos da Igreja e do Estado ocorreram em torno do aparelho eclesiástico no interior de cada Estado. A Santa Sé teve de enfrentar as ingerências de Estados soberanos com monarcas absolutos de direito divino e que adotaram uma política jurisdicionalista com relação aos aparelhos eclesiásticos. No entanto, os aparelhos religiosos propriamente ditos permaneceram assunto da exclusividade da Igreja.2

Entre permanências e rupturas, continuidades e descontinuidades, o sistema de Cristandade Medieval foi redefi nido como uma Cristandade tridentina no âmbito da “longa duração” de uma Cristandade “constantiniana”.

A questão historiográfi ca da “longa duração” foi muito debatida na historiografi a brasileira a propósito do sentido da colonização: esta teria sido medieval ou moderna? Na medievalística, Jacques Le Goff lançou a questão da “longa Idade Média”. Para este historiador, o conceito de modernidade aplicado à Idade Moderna (séculos XVI a XVIII) dever ser descartado. O Renascimento não constituiu uma ruptura no século XVI. A Idade Média conheceu sucessivos renascimentos: o carolíngio, o do século XII, o dos séculos XIV e XV. Em vez de opor “medieval a renascentista” ou “medieval a moderno”, trata-se antes de dar conta das continuidades e descontinuidades na “longa Idade Média” que perdurou até o advento do capitalismo, até a ideia moderna da História na linha de um Reinhart Koselleck. Esta perspectiva foi adotada por Jerôme Baschet em sua obra “A civilização feudal. Do ano Mil à Colonização da América”. Nela, a

1 - Francisco GOMES. “A Igreja e o poder: representações e discursos.” In: Maria Eurydice RIBEIRO (org.). A

vida na Idade Média. Brasília: UnB, 1997, pp. 33-38.

2 - IDEM, p. 53-54.

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Colonização é perspectivada na “longa Idade Média”.3 Esta questão historiográfi ca demandaria extensas considerações que não cabem aqui.

Passo a tratar da política jurisdicionalista do Estado absolutista. Segui nesta temática a conceituação de Giacomo Martina, jesuíta que foi docente de História da Igreja na Pontifícia Universidade Gregoriana. Na sua obra, em quatro volumes, intitulada “La Chiesa nell’età dell’Assolutismo, del Liberalismo, del Totalitarismo”, Martina desenvolveu uma refl exão sobre o jurisdicionalismo de Estado em matéria eclesiástica. Para este autor, o jurisdicionalismo realizou-se historicamente de dois modos diversos: no Antigo Regime, com a fi nalidade teórica de defender a Igreja e a religião, consideradas pelo Estado indispensáveis à sociedade e à monarquia; na época liberal, com a fi nalidade de defender o Estado das ingerências e perigos que a Igreja constituía para a sociedade civil. Enquanto na primeira fase, o jurisdicionalismo foi confessional, na segunda fase, foi aconfessional.4

No Reino de Portugal, os confl itos do poder temporal e do poder espiritual remontam aos reinados da dinastia de Borgonha desde a sua fundação no século XII. Com a dinastia de Avis, cresceram as tendências jurisdicionalistas do Estado.

O jurisdicionalismo confessional esteve sempre presente na Cristandade Colonial no Brasil. Aos inacianos coube a tarefa de defender, em todo o Império português, as prerrogativas da Santa Sé. A partir de 1690/1700, quando se deu a arrancada da mineração nas Gerais, o Brasil tornou-se a principal colônia no Império. Em 1750, o Tratado de Madrid reconhecia a Portugal a posse deste quase continente que é o Brasil. Com a morte de D. João V, ascendia ao trono D. José I. O Antigo Regime foi então reforçado em todo o Império com as reformas implementadas pelo Marquês de Pombal. A política jurisdicionalista foi mais rigidamente acentuada com as doutrinas do Regalismo. Para eliminar, do Império, o principal obstáculo ao Regalismo, foi decretada, em 1759, a expulsão dos jesuítas. Afastados os inacianos, o Marquês aproveitou para proceder à reforma da Universidade de Coimbra que recebeu novos Estatutos em 1772. A “viradeira”, com a ascensão ao trono de D. Maria I, em 1777, em nada modifi cou a política regalista do Estado, levando o clero a habituar-se, como fato natural, às doutrinas jurisdicionalistas

3 - Jerôme BASCHET. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, pp.

44-45.

4 - Giacomo MARTINA. La Chiesa nell’età dell’ assolutismo, del liberalismo, del totalitarismo. Brescia: Morcellia-

na, 1980, vol. III, pp. 47-48.

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e regalistas que lhe eram ensinadas em Coimbra e nos seminários. Foi o caso, por exemplo, do ensino no Seminário de Olinda, criado, em 1799, pelo bispo D. José Joaquim de Azeredo Coutinho.5

Passo agora a outra herança medieval na Cristandade Colonial. Trata-se do patrocinium e da “Igreja privada”. Os poderosos, quer os aristocratas, quer os reis e imperadores, detinham frequentemente o patrocinium sobre igrejas, paróquias, mosteiros que eles dotavam e consideravam como “Igrejas privadas”. Esta tutela dos leigos sobre as instituições eclesiásticas ia desde o Papado até as paróquias, passando pelos bispados, os cabidos, as abadias, os mosteiros. Os poderosos “deste mundo” aproveitavam o seu papel de patronos das “Igrejas privadas” para tutelarem e/ou se apropriarem dos bens eclesiásticos e para designarem os seus “eleitos” para os cargos eclesiásticos tanto do clero secular, quanto do regular. Os abusos foram tais que provocaram reações como as reformas monásticas dos séculos X a XII e as reformas papais, iniciadas com a Reforma gregoriana no século XI.

O Papado percebeu a tutela dos leigos como uma mundanização, como uma escravização da Igreja. Daí a sua luta pela libertas Ecclesiae. Mas esta tinha de ser complementada com uma reforma na e da Igreja. Tratava-se, neste caso, de lutar contra os pecados e as misérias dos cristãos, clero e leigos: uma reforma na Igreja. Mas era opinião corrente que a reforma na Igreja só se viabilizaria com mudanças necessárias nas instituições eclesiásticas: a reforma da Igreja. Assim sendo, esta última passou a ser considerada condição sine qua non para haver reforma na Igreja. A reforma gregoriana, a partir do século XI, operou a síntese destas duas dimensões de reforma, implementada esta com dois processos concomitantes: o de clericalização e o de romanização. O primeiro reforçava o já tradicional monopólio clerical na Igreja. O segundo preconizava o monopólio jurisdicional da Igreja romana e do Papado sobre as Igrejas particulares.6

Nos séculos XIV e XV, a Coroa em Portugal foi-se apropriando do aparelho eclesiástico, de sua direção e controle. E isto graças ao jurisdicionalismo e ao Padroado. Há uma certa homologia entre o exercício do patrocinium na Cristandade Medieval e o regime de Padroado na Cristandade Colonial. Ocorrem, contudo, duas grandes diferenças. O Padroado consistia num conjunto de concessões feitas à Coroa pela Santa Sé. Mas a Coroa foi-se apropriando do Padroado,

5 - Tarcísio BEAL. “As raízes do regalismo brasileiro”. Revista de Cultura Vozes, vol. 71, abr. 1977, n. 3, pp. 37-50.

6 - Francisco GOMES. Op. cit., pp. 47-51.

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transformando-o em direito régio num contexto de uma política jurisdicionalista cada vez mais rígida.

Os papas dos séculos XV e XVI não puderam ou não quiseram arcar com o ônus para implantar instituições eclesiásticas nas terras descobertas, nem tampouco com o das atividades missionárias. Concederam, então, o Padroado à Coroa portuguesa. Em que consistiu afi nal o Padroado? Eram direitos concedidos pela Santa Sé aos reis de Portugal em bulas sucessivas: o ius patronatus et praesentandi dos benefícios maiores e menores; a organização dos objetivos e meios da Missão; a subsistência do clero; a construção e a manutenção dos edifícios de culto. O Patronus régio era, simultaneamente, em Portugal, o Grão-Mestre da Ordem de Cristo. Enquanto administrador da Ordem no temporal e no espiritual, o rei tinha a plenitude do vicariato de Tomar, sede da Ordem. Este vicariato era um territorium nullius dioecesis e dele dependiam as colônias portuguesas.

As concessões do Padroado, entendidas pela Coroa como direito régio, tornaram o aparelho eclesiástico de certo modo um instumentum regni. Por isso, a Coroa criou, em 1532, a Mesa de Consciência e Ordens. Esta decidia a criação de dioceses e paróquias, a instalação de Ordens Religiosas, a fundação de mosteiros e conventos, a nomeação para os benefícios maiores e menores, deixando tão-somente à Santa Sé a confi rmação dos bispos. Todas as comunicações diretas com Roma foram difi cultadas, quer as visitas ad limina, quer a circulação dos documentos pontifícios no Império. Alguns agentes eclesiásticos eram remunerados pela Folha Eclesiástica. Podiam também postular subvenções, dotações, em suma favores reais. A Santa Sé concedeu à Coroa o direito de perceber, no Brasil, os dízimos e a Bula de Cruzada como uma forma de compensação pelas despesas efetuadas com a gestão do aparelho eclesiástico e com as atividades missionárias.7

O Padroado, como direito régio, foi reforçado com as reformas pombalinas e as doutrinas regalistas do século XVIII. Após 1822, o Padroado foi incorporado ao Império brasileiro. O Padroado só veio a ser abolido com o decreto de Separação da Igreja e do Estado em 1890. As características do Padroado no século XIX e outras questões a ele referentes não cabem nos objetivos desta comunicação.

Entre as muitas outras permanências da Cristandade Medieval na Cristandade Colonial, vou tratar ainda de mais uma delas, a saber: a

7 - Francisco GOMES. Le projet de néochrétienté dans le diocèse de Rio de Janeiro de 1869 à 1915. Tese de Dou-

torado, Toulouse, 1991, Tomo I, pp. 38 e 66-68.

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relação da clericalização e do catolicismo prescrito com o catolicismo vivido de matriz leiga. Na Cristandade Colonial, o catolicismo foi a única religião efetivamente admitida. Em virtude do Padroado, a Coroa exercia um grande controle sobre o poder eclesiástico sem que jamais tivesse exercido o poder religioso. A religião católica não era unicamente a religião do Estado, mas igualmente a religião dos súditos.

Na Cristandade Colonial, juntamente com a Cristandade foi também transplantado e resignifi cado o catolicismo tradicional português. Tratava-se do catolicismo permeado pelas representações e práticas religiosas que dependiam muito pouco da intervenção direta das autoridades eclesiásticas. Esta dimensão do catolicismo tradicional constituía-se numa autoprodução religiosa, fruto de um trabalho anônimo e coletivo de leigos, iletrados, de certos grupos sociais. Distinguia-se, com efeito, da produção religiosa dos especialistas, dos clérigos, a qual era destinada ao conjunto da sociedade.

Não havia oposições absolutas e excludentes entre estas duas dimensões do catolicismo tradicional português. Na verdade, o conjunto das representações e das práticas religiosas autoproduzidas não estavam cortadas, de maneira absoluta, da produção dos especialistas. Eram dimensões complementares e dialéticas, elaboradas a partir de um mesmo código religioso de base. A autoprodução religiosa incorporava elementos do catolicismo prescrito e tentava não se afastar dos seus signifi cantes, dando-lhes, contudo, outros signifi cados. Assim sendo, o mesmo código religioso de base era diferentemente interpretado e apropriado pelo catolicismo vivido. Num Brasil de tradições portuguesas, africanas e indígenas, elementos provenientes de outros sistemas religiosos eram redefi nidos no interior do código religioso cristão, e eram tolerados tão-somente dentro de certos limites aceitáveis para a religião prescrita.8

O Regalismo pombalino, no século XVIII, reforçou o jurisdicionalismo de Estado. O clero e os fi éis fi caram então virtualmente submetidos ao poder jurisdicional do Estado nos assuntos eclesiásticos e distanciados, consequentemente, da Santa Sé. No entanto, foi neste período pós 1759 que o episcopado tentou, de uma maneira mais intensa, implantar a Reforma tridentina no Brasil. A falta de clero secular e de clero regular, este último controlado por medidas restritivas da Coroa, retardou mais uma vez a generalização deste movimento reformador na Cristandade Colonial.

8 - IDEM, pp. 55-57; Francisco GOMES. “A Igreja e o poder...”, pp. 36-37.

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Na mesma época, manifestou-se um pujante catolicismo tradicional que conheceu então uma importante fase de expansão com suas múltiplas apropriações e variedades regionais. O catolicismo vivido e nas mãos de lideranças leigas estava organizado em torno de santuários, capelas, ermidas de beira de estrada, Irmandades e Confrarias. Estas duas últimas eram lugares de devoção e caridade, de solidariedade e convivialidade. Este catolicismo tradicional de matriz leiga atingia toda a população: livres, alforriados e escravos; brancos, pardos e negros; indivíduos de tradição portuguesa, africana e indígena; letrados e iletrados; clero e leigos.9

Tratei tão-somente de algumas permanências e rupturas da herança medieval no âmbito da Cristandade Colonial. Outras tantas teria de analisar, mas os limites desta comunicação o não permite.

9 - Francisco GOMES. Quatro séculos de Cristandade no Brasil. Comunicação apresentada no Seminário Inter-

nacional de História das Religiões da ABHR, junho de 2001, Recife, pp. 3-4 (no prelo).

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13- A MISSÃO JESUÍTA PARA O BRASIL NA ESTRATÉGIA IMPERIAL DE

D. JOÃO III.

João Marinho dos Santos*

A 7 de Abril de 1541, Mestre Francisco Xavier, com dois padres e um irmão jesuítas, está a embarcar em Lisboa na frota em que ia por Governador do “Estado da Índia“ Martim Afonso de Sousa. No primeiro dia do ano seguinte, escreve, da ilha de Moçambique, ao seu Superior, Mestre Inácio de Loiola, e informa com entusiasmo: «El Señor Gobernador me tiene dicho que tiene esperanza muy grande en Dios nuestro Señor que adonde nos ha-de mandar, se han de convertir muchos cristianos»1.

A 1 de Fevereiro de 1549, sai, também de Lisboa, o P.e Manuel da Nóbrega, juntamente com dois Padres e três Irmãos da Companhia de Jesus na frota em que ia o primeiro Governador do Brasil, Tomé de Sousa. De Pernambuco, a 11 de Agosto de 1551, informará o seu Provincial em Portugal, Pe Simão Rodrigues: «O Governador determina de ir cedo a correr esta costa [do Brasil] e eu irei com ele, e dos Padres que Vossa Reverência mandar, levarei alguns comigo, para deixar as Capitanias providas. El-Rei Nosso Senhor escreveu ao Governador que lhe escrevesse se havia já Padres [da Companhia] em todas [as Capitanias]...»2.

A que se devia o interesse (leia-se a necessidade) da Coroa /Estado de Portugal solicitar a presença missionária dos Inacianos em algumas parcelas do seu Império Ultramarino? Vamos procurar responder através da invocação de outros acontecimentos temporalmente próximos daqueles.

Em 1538, mais propriamente no dia 8 de Maio, os reis de Portugal e de Fez, por meio dos seus procuradores, celebram, em Arzila (Marrocos), um tratado de paz válido por onze anos3. Ao aperto político-militar de D. João III (como iremos explicitar) associava-se idêntica situação da parte do monarca de Fez, já que os designados Xarifes do Suz (uma região no sul de Marrocos e onde principiara um movimento proselitista muçulmano, fundamentalista e * Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Academia Portuguesa de História.

1 - Selectae Indiarum Epistolae nunc primum editae. Florentiae: Ex. Typographia S.S. Conceptione, 1887, p. 5.

2 - Cartas do Brasil e mais escritos do Pe Manuel da Nóbrega (opera omnia. Ed. Serafi m LEITE, S.I..: Coimbra:

Por Ordem da Universidade, 1955, p. 88.

3 - Capitolação das pazes d’el rey de Fez com el Rey noso senhor. In: Robert RICARD.. Les Sources Inédites de

l’Histoire du Maroc, 1.º série , Portugal. Paris: Paul Gauthner, 1984, tome III, pp. 158-165.

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xenófobo) pretendiam unifi car, na pessoa de um deles, os reinos e senhorios Marroquinos. Mais propriamente, Mulay Ahmed el A‘redj já se intitulava rei de Marraquexe e, militarmente, ia progredindo para Norte, com prejuízo das posições territoriais dos Reis de Fez e de Portugal. Compreendia-se, portanto, claramente, a necessidade do referido tratado de não agressão mútua. Mas, havia outras preocupações, e até maiores, do lado português. Explicitemo-las.

Nesse ano de 1538, os turcos otomanos estavam a desencadear feroz ataque à fortaleza portuguesa de Diu, postada à entrada do Golfo de Cambaia, no Oceano Índico, pondo em risco o controle da rica região do Guzurate por parte dos lusos. Era, enfi m, uma consequência lógica da amplifi cação do poderio regional dos otomanos, quer pela via do Mar Vermelho (nesse mesmo ano de 1538, haviam tomado a estratégica cidade de Adem), quer pelos caminhos terrestres e fl uviais que davam acesso ao Golfo Pérsico (Bagdade caíra em 1534), até então controlados pelos turcomanos, sobretudo durante a governação do Xaha ou Xeque Ismael. Com o fi lho deste, Tahmasp, os portugueses continuavam a manter razoáveis relações político-diplomáticas, mas a fragilidade militar dos turcomanos, perante a concorrência otomana, deixava mais desprotegida a fortaleza portuguesa de Ormuz, com repercussões, como se disse, no controle do Guzurate. Assim, em 1546, os otomanos apoderar-se-ão de Bassorá, enquanto Ormuz logrará resistir, mas Diu voltará a sofrer novo e terrível cerco.

Eis, portanto, alguns sinais mais visíveis da convulsão político-militar que sacudirá o Império Português entre 1538-1552, sem esquecer a sua progressiva asfi xia económico-fi nanceira, já que os juros da dívida pública não pararão de crescer nas praças da Flandres e da Itália, a ponto da pimenta da Índia, mesmo com o reforço dos direitos do açúcar da Madeira, do pastel dos Açores e dos escravos da “Guiné”, fi car longe de cobrir o defi cit. Que fazer?

A 12 de Março de 1541, a fortaleza portuguesa de Santa Cruz do Cabo de Guer será praticamente oferecida aos mouros do Norte de África, seguindo-se as perdas (em parte voluntárias) de Azamor e Safi m. Porém, Portugal continuará territorialmente presente em Marrocos até 1769, ano da queda da fortaleza de Mazagão. Contudo (insista-se), no plano geo-estratégico, D. João III teve de sacrifi car o domínio parcial do Norte de África, para preservar outros espaços vitais do Império e valorizá-los até. Concretizemos o sufi ciente.

Em Novembro de 1540, D. João III dá instruções ao seu novo embaixador em França que divulgue, ofi cialmente (como resultado do incremento da pirataria e do corso), que do Brasil «[…] não se

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traga nem hum pao [brasil] sem a minha licença de que me pagão direitos aquelles a que a dou para o trazerem, e, se isto não fora, elle não valeria nada em França nem em Portugal […]»4. Eis um indicador da preocupação da Coroa/Estado português em valorizar, ao máximo, as receitas públicas, lançando mão, inclusive, do vulgar pau-brasil, ao procurar convertê-lo em monopólio ou exclusivo real e colocá-lo ao abrigo dos assaltos de piratas e corsários. Ainda não chegara a hora da afi rmação do açúcar brasileiro, embora fosse já promissora a sua rentabilidade nos mercados europeus, capaz (como se veio a verifi car lá para fi nais do século XVI) de se equiparar ou até ultrapassar, em valor fi nanceiro e à escala da Fazenda Pública portuguesa, os réditos das especiarias do Índico.

Mas, que reacções de outra natureza revelou o Poder Central português, perante as graves e intensas ameaças que atingiam o corpo e a alma do seu Império Ultramarino, em praticamente todos os domínios da realidade? Antes de respondermos, façamos algumas considerações de cariz sociológico.

Em qualquer sociedade e mais ainda nas “sociedades plurais” (considerando a sua diversidade étnica e cultural), a integração social é fundamental, podendo fazer-se ou por consenso (em torno de valores centrais, comummente aceites) ou por coerção (no caso de persistir um perigoso dissenso). É verdade que a coerção ou a coação física pode chegar para manter aparentemente unida a sociedade plural, mas apenas durante algum tempo. Nunca por períodos longos, até por falta ou desgaste de recursos físicos e fi nanceiros. Impõe-se, sempre, portanto, a vantagem de adoptar o consenso em torno de valores tradicionais e inovadores, susceptíveis de serem minimamente aceites.

Esclareça-se, ainda e a propósito, na esteira da interpretação de Edward Shils (Centro e Periferia, Lisboa – Difel, em tradução portuguesa), que nas sociedades plurais há, por regra, uma cultura consensual (dominante) e uma ou mais culturas dissensuais, que fragilizam o todo social, mas que também o podem enriquecer. Nestas circunstâncias, o Poder que insiste em gerir, permanentemente, em exclusão social é um Poder ameaçado, sobretudo tratando-se de franjas importantes da sociedade. Foi o caso dos regimes escravocratas, designadamente o do Brasil colonial.

Ainda outra observação com aplicação no Império Português e, explicitamente, no Brasil: não foi só a religião que concorreu, de forma mais pacífi ca, para a integração das sociedades plurais.

4 - Instruções para D. Francisco de Noronha, B.N.L., cód. 886.

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Também o direito, a aculturação, o funcionamento do mercado (interno e externo), o carisma dos governantes, ou a língua ao serviço do Império foram factores importantes de uma relativa coesão social. Mas, vamos procurar relevar, agora, o papel fundamental da religião.

Conhecedor da importância dos princípios de integração social que acabamos de enunciar e consciente de que as armas para suster um Império não eram só as bélicas, D. João III, além da adopção de outras medidas (como o recurso à Inquisição), decidiu solicitar, em 1538 (e já vimos como este ano foi denso em acontecimentos político-militares), através do Dr. Diogo de Gouveia (ex-Reitor da Universidade de Paris e Principal do Colégio de Santa Bárbara na mesma cidade), a presença em Portugal dos auto-designados “Clérigos reformados”, para lhes confi ar a tarefa do revigoramento da evangelização. Como é sabido, em 1539, os “clérigos reformados”, com Inácio de Loyola à cabeça, constituíram-se em “Companhia” ou ordem meio-regular e meio-secular e, em 1540, saem, de Roma para Portugal, os primeiros jesuítas em que se destacarão Francisco Xavier e Simão Rodrigues.

O primeiro partirá, de Lisboa para a “Índia”, como se disse, em 1541 e o segundo encarregar-se-á de fundar o Colégio de Coimbra, viveiro de jesuítas, entre os quais registamos Manuel da Nóbrega e os seus companheiros de 1549.

Quanto ao que se esperava da Companhia, penso que este excerto de uma carta do Infante D. Luís (irmão do rei D. João III), para o Vice-rei da Índia, suscita uma imagem impressiva e inequívoca: «Sua Alteza vos manda este anno [1555] doze padres da Companhia de Jesus que são para converter o mundo e certo que os deveis mais de estimar que muita gente de guerra…»5.

À pólvora das armas para reforçar o Império deveria associar-se, portanto, a força da palavra e a pedagogia do exemplo dos que, clérigos ou leigos, tinham por missão anunciar aos pagãos ou gentios, mas também aos judeus e aos “mouros” (embora estes fossem praticamente inconversíveis), a mensagem do Evangelho. Por outras palavras, a integração social, através da conversão ou da reconversão religiosa, segundo o modelo jesuíta, deveria ser um fenómeno total, em qualquer sociedade e, mais ainda, nas sociedades plurais. Recordemos, a este propósito, as preocupações de Manuel da Nóbrega em carta, para o ex-governador do Brasil Tomé de Sousa, datada de 5 de Julho de 1559: «Des que nesta terra [Brasil] estou, que

5 - Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente – Insulíndia, vol. 6, Lisboa, 1988,

p. 22.

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vim com Vossa Mercê, dous desejos me atormentarão sempre : hum, de ver os christãos destas partes reformados em bons costumes, e que fossem boa semente transplantada nestas partes que desse cheiro de bom exemplo; e outro, ver disposição ao gentio para se lhe poder pregar a palavra de Deus, e eles fazerem-se capazes da graça e entrarem na Igreja de Deus […]. Porque pera isso fuy com meus Irmãos mandado a esta terra, e esta foy a yntenção de nosso Rey [D. João III], tam christianissimo que a estas partes nos mandou»6.

Que entraves ou pecados difi cultavam a correcta integração social dos colonos? A prática da poliginia (vulgarmente com as escravas índias), o mau exemplo religioso que davam, mas, sobretudo, o «odio geral que os christãos tem ao gentio […]», já que «louvão e aprovão o comerem-se huns a outros, e já se achou christão mastigar carne humana pera dar com isso bom [mau] exemplo ao gentio […]. Deste mesmo odio que se tem ao gentio, nasce não lhe chamarem senão cãis e tratarem-nos como cãis […]»7. Enfi m, o Missionário condenava, veementemente, a antropofagia como ritual das guerras inter-tribais e, mais ainda, os que acicatavam essas mesmas guerras para gerarem escravaria no quadro da economia mercantil do Brasil.

Defi nidos os objectivos da missionação jesuíta, em particular quanto à necessidade de reformar espiritualmente os colonos ou “cristãos”, a estratégia escolhida por Nóbrega foi, fundamentalmente, solicitar a ida de um bispo, ou seja, estabelecer, no Brasil, o aparelho eclesiástico completo. Por sua vez, o gentio deveria ser «sujeito e metido no jugo da obediência dos christãos», justifi cando deste modo a medida: é que, « […] se o deixão em sua liberdade e vontade, como hé gente brutal, não se faz nada com eles, como por experiencia vimos todo este tempo que com ele tratamos com muyto trabalho, sem dele tiráremos mais fructo que poucas almas ynnocentes que aos ceos mandamos»8. Por outras palavras e se bem interpretamos, no plano estratégico de Nóbrega a integração social dos índios pela via coerciva era, num primeiro passo, inevitável, ainda que orientada por princípios de humanidade, de respeito e de aculturação. Esclareça-se não haver nesta posição nada de novo, já que, durante a Idade Média Europeia e até quase fi nais da Moderna, a evangelização pressupõe a conquista e esta subentende a evangelização.

Para lograr uma missionação sólida dos gentios, Nóbrega será um fervoroso adepto do ensino dos «meninos da terra» em escolas e colégios (com refl exos no teor das Constituições da Companhia de

6 - Cartas do Brasil e mais escritos do P.e Manuel da Nóbrega, pp. 316-360.

7 - Ibidem, pp.316-360.

8 - Ibidem, pp.316-360.

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Jesus, de 1558) e, quando possível, enquadrados ou aculturados por meninos provenientes do Colégio dos Órfãos de Lisboa. Por tal, e contra a vontade do Bispo Mestre Pedro Fernandes, chegado pelo S. João de 1552, manterá a designada “Confraria dos Meninos de Jesus”, com a qual esperava fazer muito fruto catequético junto dos índios. Concretizemos um pouco mais. Em carta, para D. João III, com data de 14 de Setembro de 1551, Nóbrega informara que «Ho sertão está cheeo de fi lhos de christãos grandes e pequenos, machos e fêmeas, com viverem e se criarem nos costumes do gentio…». Para os catequizar, a eles e aos meninos índios, era necessário adoptar uma estratégia de aculturação, que funcionasse nos dois sentidos, porque, como observará Nóbrega, «a semelhança hé cousa de amor». Concretamente, preconizará: « Se nos abraçarmos com alguns custumes deste gentio, os quais [costumes] não são contra nossa fee catholica, nem são ritos dedicados a ídolos, como hé cantar cantigas de Nosso Senhor em sua lingoa pello seu toom e tanger seus instrumentos de musica que elles [usam] em suas festas quando matam contrairos e quando andão bêbados […], e passeando e batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir alguma coisa e dizê-lo com muita efi cácia; e assi tosquiarem os meninos […]», certamente daria grande fruto9.

Sobretudo, por não terem com que os alimentar e vestir, os representantes da Companhia de Jesus no Brasil tiveram que optar, à semelhança do que era feito na missionação Oriental, por seleccionarem os fi lhos «dos grandes e principais», destinando os mais capazes à ordenação sacerdotal ou à sua utilização como “línguas” (intérpretes).

Esclareça-se que esta última função, ou seja, a de intérprete, principalmente em acto de confi ssão, será inaceitável para o bispo D. Pedro Fernandes, naturalmente por atentar contra o princípio do sigilo confessional. Registe-se, a propósito, que, quando possuído por dúvidas do âmbito dos Direito Canónico e Civil, Manuel da Nóbrega não hesitava em expô-las aos Superiores do Colégio de Coimbra. Nem outra atitude seria de esperar, porque o que distinguia a missão jesuíta era a preocupação do rigor, a observância da qualidade, a fuga à vulgarização ou à massifi cação, a cedência ao facilitismo, muito embora a gente da Companhia procurasse encontrar uma metodologia efi caz, ou seja, adequada à cultura dos conversos e buscasse os mediadores ajustados. Exemplifi cando, é sabido que Nóbrega quis servir-se, na sua acção catequética, de João Ramalho

9 - Carta de fi nais de Agosto de 1552, para Simão Rodrigues, Op. cit., pp. 138-146.

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e dos seus fi lhos nascidos de mulheres índias, ou que fez guerra aos clérigos que então exerciam o seu múnus no Brasil, «porque lhes somos contrários a seus maus costumes e não podem sofrer que digamos as missas de graça, em detrimento do seu interesse»10.

Mas, não vamos particularizar mais o modelo da missão dos Inacianos, até porque é matéria sufi cientemente conhecida. Frisamos, porém, que se trata de um modelo, ou seja, de práticas com validade em todo o terreno social em que a Companhia pretendia desenvolver a evangelização. Exemplifi quemos:

No Oriente, tal como no Brasil, os meninos que se destacavam pela inteligência e que integravam as elites locais eram os escolhidos para servirem de intérpretes (“línguas” ) aos Padres. Por exemplo, em Coulão e no ano de 1547, um Pedro Luis, fi lho de um brâmane, fez-se cristão com a idade de 15 anos e, depois de ter frequentado o colégio jesuíta de Goa e de ter servido de “língua” a Padres nas suas várias missões, pediu para entrar na Companhia, «por ser cousa nova e não acostumada e começar-se em mim» a ordenação sacerdotal de gentios11. Aliás, já em carta redigida, de Goa a 20 de Novembro de 1545, Juan de Beyra informava o reitor do Colégio de Coimbra: «En este colégio llamado casa de Santa Fe hay bien sesenta mozos de diversas genraciones, que son de nueve lenguas diferentes y muy apartadas unas de las outras; los más dellos leen y escriben nuestro vulgar [o português] tambien saben leer y escribir suas lenguas ; algunos entienden razonable [el] latim…»12.

Nóbrega leu, possivelmente, esta e outras cartas anualmente redigidas pelos seus confrades e reteve (ao menos, através de conversas) a experiência dos seus irmãos jesuítas empenhados na missionação da “India”. Por outras palavras, através das cartas ânua também se foi forjando a apurando o modelo catequético dos Inacianos, como resultado do que se ia experimentando nas suas muitas e diversas missões.

Para terminar, voltemos à macro-história, relevando alguns princípios estruturais da Expansão Ultramarina Portuguesa e algumas adequações conjunturais, de natureza política e geo-estratégica, que se traduziram, designadamente, na secundarização da importância económica do Norte de África (Marrocos), a partir, sobretudo, dos anos 30 de Quinhentos, em benefício da “Índia” das especiarias e do Brasil do açúcar, do algodão e do tabaco. Ao imprescindível, mas desgastante, poder das armas, associou-se,

10 - Carta para Simão Rodrigues, de 21 de Agosto de 1551, Op. cit., pp. 86-90.

11 - Selectae Indiarum Epistolae…, pp 193-195.

12 - Ibidem, pp. 7-9.

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então, a intervenção mais activa e decisiva da religião cristã, da divulgação do português (sem minimizar, antes pelo contrário, outras “línguas de cultura”), da vantagem do uso do direito escrito, da busca de costumes similares que favorecessem a aculturação, da complementaridade dos comércios regionais e da sua integração na “economia-mundo europeia”, da relevância dos agentes laicos e sagrados que fossem portadores de carisma, da unicidade bipolar do poder temporal e do poder espiritual…

A propósito, e porque (em meu entender) ajustada à realidade do Império Ultramarino Português (em particular à do Brasil Colonial), releve-se o contributo da religião cristã para o favorecimento do processo civilizacional à escala do orbe, citando Norbert Elias: «La antitesis decisiva en la que se expresa la autoconsciencia occidental durante la Edad Media es la antitesis entre cristianismo y paganismo o, dicho com mayor exactitud la antitesis entre el cristianismo romano – latino de una parte y el paganismo y la herejia de la otra (comprendiendo aqui a la cristiandad griega-oriental»13. Foi escudado na importância desta «antítese decisiva», a do cristianismo versus paganismo, que, modestamente, decidi apresentar esta comunicação no “V Encontro Luso-Brasileiro de História Medieval”.

13 - Processo de la Civilización. Investigaciones Sociogenéticas e Psicogenéticas, trad. castelhana, México – Ma-

drid: Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 99.

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14- EM DEFESA DA VIRTUDE E EM BUSCA DO MARTÍRIO: JESUÍTAS EM MISSÃO

NO GUAIRÁ (SÉCULO XVII).

Eliane Cristina Deckmann Fleck*

O fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola1, imprimiu

à escolha dos membros da Companhia e ao ingresso de jovens nos

colégios um cuidado todo especial. Para isso, as Constituições (1558)

alongam-se na determinação de quem podia e quem não podia ser

jesuíta. Segundo Loyola, somente seriam admitidos aqueles “cuja

vida, por longas e cuidadosas provas, for bem conhecida e aprovada

pelo Superior Geral”2. Na verdade, o intento de Inácio de Loyola

era o de admitir pessoas capazes de reproduzir a sua experiência

pessoal e de se identifi car com sua concepção de prática apostólica,

condições que considerava essenciais para a dilatação do Evangelho

para maior glória de Deus3.

Ele acreditava, ainda, que todos os dons humanos que pudes sem

ser válidos para este fi m, tinham de ser aproveitados, uma vez que

o “homem foi criado para bendizer, fazer reverência e servir a Deus

Nosso Senhor e, mediante isso, salvar sua alma”4. Para alcançar a

salvação da alma, os valores sensíveis e voluntários deveriam ser

dominados e o “chamamento de Cristo Rei, que [...] convoca ao

combate contra as potências de Satanás, sob o estandarte da Cruz”

deveria ser aceito5.

A VOCAÇÃO DE SERVIR: A COMPANHIA DE JESUS

A vocação de servir, idealizada por Loyola, foi transformada, então, na idéia de missão, que passou a moldar indiscutivelmente o

*Curso de Graduação em História e PPG de História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

1 - Inácio de Loyola nasceu em uma família espanhola nobre em 1491. Fez carreira militar, interrompida no

cerco de Pamplona, em 1521. Após uma peregrinação para Roma e Jerusalém, empreendeu estudos em Barce-

lona, Alcalá e Salamanca, fi nalizando-os em Paris, onde, juntamente com outros companheiros, fez os votos da

Companhia em 1534, tendo-a dirigido até sua morte em 1556.

2 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus. Lisboa, 1975, p. 175

3 - As dores torturantes sentidas por Inácio de Loyola, em decorrência dos ferimentos sofridos no cerco de Pamplo-

na, são referidas como motivadoras de suas meditações e resoluções espirituais durante a convalescença, fornecendo

um modelo de conduta pautada pela paciência e fé devota que fi caria regulamentado nas Constituições da Ordem.

4 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus... Op.cit., p. 34.

5 - William BANGERT. História da Companhia de Jesus. São Paulo: Editora Loyola, 1985, p. 20.

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pensamento e a prática da Companhia de Jesus. Destacando o caráter apostólico que Inácio pretendia imprimir, fi cou estabelecido que “[…] o fi m desta Companhia é não somente ocupar-se da salvação e perfeição das almas próprias com a graça divina, mas também com a mesma, procurar intensamente, ajudar à salvação e perfeição dos próximos”6.

As Constituições esclarecem que aqueles que pretendiam entrar na Companhia, “antes de começar a viver sob a obediência numa das suas residências ou colégios, devem distribuir todos os bens materiais que possuem e dispor de todos os que esperem vir a ter...”7, e ainda que “se quiser seguir a Companhia, há de comer, beber, vestir-se e dormir duma maneira própria de pobres”8. Deveria também estar “pronto[s] e decidido[s] a aceitar e sofrer pacientemente, com a graça de Deus, todas as injúrias, escárnios e opróbrios que andam associados às insígnias de Cristo Nosso Senhor...”9. Ao defi nir as condições de ingresso de um postulante a membro da Companhia, Loyola estabeleceu que, embora a enfermidade do corpo devesse incitar a prática de “cosas espirituales”, estes não deixassem de obedecer “con la misma humildad a los médicos corporales y enfermeros, para que gobiernen su cuerpo; pues los primeros procuran su entera salud spiritual, y los segundos toda su salud corporal”10.

As Constituições tratam também dos procedimentos a serem adotados nas Casas de provação – locais onde aqueles que almejavam ingressar na Ordem deveriam passar um tempo, geralmente, dois anos. Nelas, o futuro jesuíta deveria passar por um período de mortifi cação, desligando-se do mundo (glórias, honrarias, pompas e estima pessoal), através da realização de seis experiências principais, as quais consistiam de: 1) realização dos Exercícios Espirituais, no período de um mês; 2) servir em hospitais, também pelo período de um mês; 3) peregrinar por outro mês sem dinheiro, vivendo de esmolas e 4) depois de ter ingressado na Casa, exercitar-se com inteira diligência e cuidado em diversos ofícios baixos e humildes; 5) ensinar a doutrina cristã a crianças ou a outras pessoas rudes em público ou em particular e 6) já estando provado, procederia predicando, confessando ou realizando qualquer outro trabalho dentro da Companhia.

6 - Inácio de LOYOLA. Op. cit, 1975, p. 307.

7 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., pp. 46-47.

8 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., p. 55.

9 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., p. 62. Na biografi a de Inácio de Loyola

escrita por Pedro Ribadeneyra (1594), sua vida é apresentada como aquela que atualiza o exercício cristão primi-

tivo de misericórdia e paciência, face ao sofrimento, como um espelho para o devotamento à salvação da alma.

Os males do corpo são tomados, nessa perspectiva, como oportunidade para a conversão e a cura da alma.

10 - I. IPARRAGUIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,

1952, p. 388.

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A relação entre virtude e humildade aparece claramente na orientação quanto à execução de ofícios considerados baixos, o que está relacionado com o treinamento da obediência, tão bem expresso nos números 84 e 284 das Constituições, que prevêem: “Y no solamente en la exterior execución de lo que manda, obedezcan y prontamente con la fortaleza y humildad debida,sine xcusaciones y murmuraciones, aunque se manden cosas difíciles y según la sensualidad repugnantes”11. A obediência é, assim, entendida como o comportamento máximo de abnegação de si, constituindo-se, em grande medida, na forma para “unir los repartidos con su cabeza entre si” [...] “Así que la caridad y en general toda bondad y virtudes con que se proceda conforme al spíritu [...] y por consiguiente todo menosprecio de las cosas temporales en las cuales suele ordenarse el amor propio, enemigo principal desta unión y bien universal”12.

O espírito da Companhia pode ser, portanto, assim defi nido: “Todos sean personas que se han desnudado del amor con propósitos de servir a Dios, su Criador Senõr, y sus prójimos en perpetua pobreza, castidad y obediencia”13. A fi m de que os pretendentes a efetivarem-se na Ordem não descuidassem de tal matéria, as Constituições orientavam que existissem pregações constantes nas Casas de Provação: “alguna hora después de comer […] tratando a menudo de lo que toca a la abnegación de si mismos y de las virtudes y toda perfección” e que “algunas veces entre año todos ruegen al Superior les mande dar penitencias por la falta de observar las reglas”14. No geral, as mortifi cações deveriam ser realizadas para que o jesuíta mais se assemelhasse a Cristo e aos pobres, para maior abnegação e proveito espiritual. Para tanto, as Constituições orientavam inclusive comedimento no comer, beber, calçar e dormir, a exemplo dos primeiros inacianos.

Partidário da concepção tomista de que o conhecimento penetrava no intelecto pela via dos sentidos, Inácio de Loyola recomendava: “Todos tengan especial cuidado en guardar con mucha diligencia las puertas de sus sentidos, en especial los ojos y oídos y la lengua, de todo desorden”15. O domínio dos sentidos pelo intelecto – a mortifi cação das paixões – deveria expressar-se nos mínimos detalhes: na maneira de falar, de andar, de olhar, devendo “guardarse de todo tocamento indecente y de la divagación de los ojos y ansí de todos los otros sentidos; también refrenar la lengua […] conciértense bien las vestiduras, ni descubran cosa no honesta”16.

11 - I. IPARRAGUIRRE, Obras completas de San Ignacio de Loyola… Op. cit., p. 435.

12 - I. IPARRAGUIRRE, Obras completas de San Ignacio de Loyola… Op. cit., p. 525.

13 - I. IPARRAGIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 579.

14 - I. IPARRAGIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 434.

15 - I. IPARRAGIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola…, Op.cit., pp. 427-428.

16 - I. IPARRAGUIRRE. Obras Completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 614.

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Para que se evitasse todo e qualquer perigo para a alma, as Constituições orientavam um cuidado especial em relação às mulheres, consideradas fonte latente de pecado, e que lhes fosse difi cultado o acesso aos recintos dos jesuítas: “por la honestidad y decencia, es bien que las mujeres no entren en las Casas ni colegios, sino solamente en las iglesias”17. Na verdade, o prazer maior deveria estar na busca da vontade divina, através do ideal de despojamento total de si, quer dizer, da vivência da santidade no apostolado. Seriam os momentos de maior sofrimento humano que possibilitariam aos missionários exercerem toda a sua caridade mediante penitências internas ou externas. As primeiras se referem à dor que o penitente deveria sentir pelos pecados cometidos, acompanhada do propósito de não mais cometê-los; já as externas se davam quando houvesse o emprego de asperidades ao corpo – castigos à carne – ou privações no comer e no dormir.

Quanto à autofl agelação, esta era entendida como “castigar la carne, es saber, dándole dolor sensible, el cual se da trayendo cilicios o sogas o barras de hierro sobre las carnes, fl agelándose o llagándose”18. Havia, contudo, a orientação para que essas asperezas fossem utilizadas comedidamente a fi m de não debilitar as forças corporais. Essas penitências, segundo Loyola, deveriam servir para “buscar y hallar la voluntad divina en la disposición de su vida para la salud del alma”19, que poderia também ser obtida através do martírio, isto é, da busca pela imitação de Cristo.

Nas correspondências jesuíticas que analisamos há uma relação direta entre a prática dos Exercícios Espirituais e a preparação para o martírio dos missionários diante de situações como os ataques dos bandeirantes às reduções, e que se pode verifi car na necrologia do Padre Diego de Alfaro – inserida na Carta Ânua de 1637-1639 – e que registra que ele “se retiró a la soledad para recobrar las fuerzas físicas y espirituales, haciendo los Santos Ejercícios. Allí gozava las delicias del amor a Jesús y se preparaba a su cercana y gloriosa muerte”20. Neste mesmo sentido é que o Padre Tomás de Ureña percebe o martírio de Roque González, numa carta remetida por ele a Nicolás Durán, em 20 de novembro de 1628: “Oh, que feliz vida y muerte. No se puede desear cosa más grande que en medio de los trabajos apostólicos y después de haber sufrido tanto dar la sangre

17 - I. IPARRAGUIRRE. Obras Completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 431.

18 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., p. 26.

19 - DHA - Documentos para la História Argentina. Tomo XIX. Buenos Aires: Talleres Jacobo Peuser S.A., 1924,

p. 9.

20 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639). Buenos Aires: FECIC,

1984, p. 149.

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por la Verdad que anunciamos y ofrecer nuestra vida a aquel el cual dio la suya primero por nosotros”21. A descrição feita pelo Padre Zurbano na Ânua de 1637-1639 parece confi rmar esta percepção: “Tiene tal celo que no me parece exageración cuando afi rmo que ellos buscan la salud de la almas con tanto fervor como si se tratara de salvar su propia alma”22.

Os jesuítas, em função de seu ideal salvacionista – para si e para os outros – ansiavam pelo martírio pessoal, a maior glória que se poderia almejar, daí o registro de situações como a do Padre Roque Gonzalez que saía a predicar “como quien no temia la muerte, ya ofrecida la vida por atraer a Dios Nuestro Señor a esta desamparada gente”23. A Província Jesuítica do Paraguai será para muitos o local para encontrá-lo, como se constata na solicitação feita pelo padre Martín Urtasún que, segundo Diego de Torres Bollo – o primeiro Provincial – “Quiso entrar en la Compañía por el deseo de hacerse mártir […] Su antigo deseo de hacerse mártir le hizo pedir la provincia del Paraguay, convencido de que allí más seguramente podía conseguir el anhelado martírio”24.

SOBRE O CENÁRIO DOS MARTÍRIOS E DA CURA D’ALMAS

Em 1593, ano em que a Província Jesuítica do Paraguai é desmembrada da Província do Peru, chegaram ao Paraguai quatro padres e dois irmãos coadjutores. A extensão da Província e as difi culdades encontradas para o sustento dos missionários forçaram a retirada de todos os padres do Paraguai e Tucumã, permanecendo apenas um padre em Assunção. O padre Diego de Torres Bollo foi então enviado à Espanha em 1601, tendo retornado ao Peru em 1607, na condição de Provincial da nova Província criada pelo Superior Geral. Para discutir as diretrizes básicas da ação a ser adotada pela Companhia na nova Província, o Pe.Torres Bollo organizou no ano seguinte a Primeira Congregação Provincial, na qual foram defi nidas as primeiras Instruções aos missionários25.

21 - DHA - Documentos para la Historia Argentina. Tomo XX. Buenos Aires: Talleres Jacobo Peuser S.A., 1924, p. 379.

22 - Ernesto MAEDER, (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639).... Op.cit., p. 30.

23 - DHA - Documentos para la Historia Argentina .... Op. cit., p. 163.

24 - DHA - Documentos para la Historia Argentina.... Op. cit., p. 454-455.

25 - A primeira Instrução datada de 1609 teve como destinatários os padres José Cataldino e Simão Maceta,

missionários enviados ao Guairá. A segunda, de 1610, foi dirigida a todos os missionários jesuítas que atuavam

entre os indígenas do Guairá, do Paraná e entre os Guaicuru.

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Da 1ª Instrução, destacamos o segundo artigo que refere os cuidados que os missionários deveriam ter com a sua própria saúde, ressaltando que os mesmos deveriam acreditar na justiça e bondade divinas e confi ar na proteção dos santos e anjos:

“Cuidarão Vossas Reverências de sua saúde e cada um pela de seu companheiro; e guardarão a devida prudência nos jejuns, vigílias e penitências, bem como em abraçar e acometer os perigos, sem faltar, contudo em que for necessário na confi ança que devem ter na Bondade divina e paternal Providência, e na intercessão da Soberana Virgem e dos Anjos da Guarda […]”26.

Na 2ª Instrução do Pe. Torres para todos os Missionários do Guairá, Paraná e dos Guaicurus há recomendações que reforçam a crença na intercessão divina:

“E que, enquanto mais cuidarmos de nossa perfeição, tanto mais nos faremos instrumentos aptos de alcançarmos a de nossos próximos, a sua salvação e a conversão dos índios, sendo que esta a havemos de negociar (conseguir) principalmente com orações contínuas, com sacrifícios e penitências”27.

O desamparo, o apego às orações e o enaltecimento do martírio fi cam evidenciados na Carta Ânua de 1613: “o padre Baltazar faleceu muito jovem depois de apenas seis anos de Companhia e três como missionário entre os índios. Sucumbiu aos calores excessivos da terra, que lhe causaram uma febre grave e disenteria. Sofreu sua enfermidade com edifi cante paciência. Tão extrema era sua penúria que não havia nem uma crosta de pão para lhe ser oferecida como alento [...] tanto que se pode dizer – com razão – que sua morte foi semelhante a de São Francisco Xavier.”28

A vinculação entre penúria – sobretudo aquela decorrente da falta de alimentos – e martírio fi ca evidente numa outra passagem, da Ânua de 1614, em que o missionário relata que “nos encontramos ambos muito fracos e para reparo e regalo não havia outras comidas, que milho cozido ou tostado, batatas, brotos e algumas ervas sem sal, e entreolhando-nos um ao outro, rezamos e louvamos a Nosso Senhor que nos dava ocasião para padecer algo por seu amor.”29. Já

26 - Arthur RABUSKE S.J. “A Carta Magna das Reduções Jesuíticas Guaranis”. Estudos Leopoldenses (São Leopol-

do), vol. 14 nº 47, 1978, p. 23.

27 - Arthur RABUSKE, “A Carta Magna das Reduções Jesuíticas Guaranis”.... Op.cit., p. 30.

28 - DHA - Documentos para la Historia Argentina.... Op.cit., p. 464.

29 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 57.

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na Ânua de 1637-1639, encontramos menção a um padre que para manter-se afastado do pecado:

“maltrató su cuerpo de una manera increíble, comendo por muchos años sólo mendrugos de pan ya casi mohoso, yndo rara vez y sólo por mandato de los Superiores a la mesa común. A esto añadió crueles austeridades corporales [para guardar la castidad con la perfección exigida por el Instituto de la Compañía], tanto que resultó en su espalda derecha una grande llaga gangrenosa, a la cual curaba a veces con una teja muy caliente, o con fi erro candente, rehusando cualquier otro remedio, estando ya maduro para el cielo por sus virtudes”30.

Nem sempre o sofrimento – encarado com “edifi cante paciência” e fé – resultava em “morte ditosa” ou martírio, como se depreende deste registro que refere a cura do missionário por intercessão divina:

“Caiu enfermo o Padre Mateo, por causa dos muitos sofrimentos. Que remedio lhe poderia proporcionar? Que alivio? Lhe fi z uma comidinha bem leve, preparando-lhe uma sopinha com um pouco de farinha das hóstias – por certo, um banquete exquisito! Com o favor de Dios se compôs prontamente”31.

A preocupação com o restabelecimento dos missionários adoentados fi ca atestada na Carta Ânua de 1635-1637, na qual o Padre Diego Boroa informa que em face da “enfermidade do Pe. Graciano [...] se lhe fi zeram muitos e grandes remédios com todo cuidado [contudo] não foram bastantes para que não viesse a falecer”32.

Muitas das doenças que acometiam os missionários decorriam do seu envolvimento com os indígenas adoentados, pois “recorriam as casas dos enfermos, tanto para levar os consolos espirituais, como para ver se estavam bem assistidos, procurando que não lhes faltasse o alimento conveniente ao seu estado e para administrar as medicinas possíveis e, às vezes, também atuavam como médicos e enfermeiros, manejando a lanceta por suas próprias mãos”33. A Carta Ânua – referente ao período de 1635 a 1637 – informa que o Padre Ho Blas Gutierres “[…] havia aprendido, lido e experimentado

30 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639). ... Op.cit., p. 49.

31 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 382.

32 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 467-469.

33 - Pablo HERNÁNDEZ, S.J.. Organización Social de las Doctrinas Guaraníes de la Compañía de Jesús. Barcelo-

na: Gustavo Gili Editores, 1913, p. 16.

192

medicamentos, para poder acudir os enfermos e necessitados […] sendo juntamte. médico e enfermeiro […]”34.

A avaliação das condições de saúde dos indígenas orientava o cotidiano dos missionários, como se depreende destes relatos: “e mesmo sendo um só, recorre todas as casas do povoado para verifi car se há algum enfermo [e continua] temos feito algumas saídas rio acima para ver se podíamos ajudar alguns doentes, não sem muito trabalho, caminhando por montes e arroios […]”35.

Na Ânua de 1626, O Pe. Nicolas Mastrillo Duran reforçaria o envolvimento dos missionários em atividades, “[…] que consistem, não somente em cuidar das almas dos indios senão também (e não com pouco trabalho) de seus corpos e de tudo o que pertence à indústria, trato e policía humana”36. A dedicação incondicional dos missionários pode ser constatada nestes registros que selecionamos:

“O Pe. Marcial de Lorenzana – mesmo estando doente – saiu de casa para acudir a todos os indígenas adoentados, apesar de todos os incômodos, porque os da terra não queriam tratar com outro37.

Acudia a todos o Pe. Graciano […] sendo necessário algumas vezes fi car muito próximo do enfermo pa poder ouví-lo […] sem temer o perigo e nem o contágio da peste […] continuou o padre com esta prática […] o que fez com que tempos depois se sentisse mal e com febre […]”38.

Esta dedicação incondicional em “atender aos apestados” incorria, muitas vezes, na “morte ditosa” dos missionários, que mesmo enfermos – e suportando dores e febres – acudiam a todos com “admirável paciencia”, provocando “grande sentimento entre os da casa com seu exemplo”; “[…] morreu dois anos e oito meses depois de haver entrado na Companhia […] durante seus últimos meses de noviciado exerceu o ofício de enfermeiro, […] contraiu uma enfermidade e exercendo sua atividade morreu […]”39; “Hº Blas Gutierrez [...] acudindo aos enfermos com caridade, veio a morrer aos 72 anos de idade e 22 de Companhia, exercendo a atividade de enfermeiro”40.

34 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 472 – 474.

35 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 266, 289.

36 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp.264 – 265.

37 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 426.

38 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 476 – 479.

39 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 460.

40 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 469.

193

A estes registros que dão conta do intenso envolvimento dos missionários com enfermos – e que, em determinadas situações, provocava sofrimento e, inclusive, a morte –, se somam alguns em que os jesuítas ressaltam sua imunidade ao contágio:

“Uma terrível epidemia se abateu sobre a cidade, causando grandes estragos […] também abateu a todos os sacerdotes, menos aos da Companhia, para que pudessem assistir aos moribundos. Não fi zeram somente isto, pois repartiram medicamentos para os enfermos e esmolas aos pobres”41.

Essa percepção, mais do que justifi car a prática da medicina pelos jesuítas na ausência de outros capacitados para fazê-lo – “tratando-se de misericórdia para com os pobres quando não existisse médico ou cirurgião”42–, parece apontar para uma outra crença: a da predestinação da Companhia de Jesus para o exercício do apostolado entre os indígenas.

O IMAGINÁRIO CRISTÃO A SERVIÇO DA CATEQUESE E A CORREÇÃO DAS CONDUTAS MORAIS DOS INDÍGENAS

Nas cartas Ânuas que analisamos chamam a atenção os recorrentes registros de visões e de sonhos vinculados tanto às “mortes sonhadas” e às “ressurreições aparentes”, quanto às “curas milagrosas” e à boa morte, das quais resultava, quase sempre, a alteração das condutas dos indígenas nas reduções. É inegável que os sonhos relatados evocaram nos missionários a sua formação teológica – orientada, em grande medida, para experiências meditativas místico-sensoriais – o que permitiu uma aproximação entre linguagens e sua interpretação/tradução43.

Se na sociedade guarani, o prestígio e o poder de um profeta guarani decorriam do valor atribuído a sua capacidade de sonhar e de verbalizar os sonhos44, nas reduções jesuítico-guaranis, essa

41 - D. H. A., Tomo XX …. Op. cit., p. 523.

42 - Carlos LEONHARDT. “Los Jesuítas y la Medicina en el Rio de la Plata”. Estudios (Buenos Aires), n. 57. 1937,

p. 103.

43 - Contribuem para isso, o treinamento e a formação teológica dos jesuítas, em especial, a prática dos Exercí-

cios Espirituais que induziam o praticante das meditações a experimentar visões e sensações que materializavam

o céu e o inferno.

44 - De acordo com Bartomeu MELIÀ. El Guaraní – Conquistado y Reducido. Asunción: Universidad Católica,

1986, p. 158: “la religión guaraní aparece sacramentalizada en el canto y en la danza, bajo la inspiración chamáni-

ca […]”. Ao xamã cabia a exteriorização dos sonhos e das visões que tinham, em grande medida, função premo-

nitória. Suas técnicas curativas também incluíam viagens imaginárias ou alucinatórias que tinham “la fi nalidade

de rescatar el alma del paciente o de interceder por ella” (Alfredo VARAH. La construcción guarani de la realidad.

Asunción: Universidad Católica, 1984, p. 103 – 104).

194

capacidade continuou sendo valorizada, como se pode constatar neste registro que dá conta da pregação que uma mulher faz após sua aparente ressurreição:

“Ia chamando essa boa mulher a todos os do povoado, a homens e mulheres, exortando-os ao amor e caridade e dizendo-lhes que sempre assistissem à missa, fi zessem boas obras, dessem toda esmola possível aos pobres e cumprissem os preceitos de Deus. Falava-lhes maravilhosamente bem da fealdade do pecado, da formosura da virtude, do horror do inferno, do temor do Juízo, bem como da conta exata que Deus pede e da beleza da glória”45.

O Pe. Montoya, autor do registro, refere o ocorrido como “espetáculo de suma devoção”, pois “uma moça […], presentemente feita pregadora e apóstola de sua gente […] esteve falando durante dez horas: o que me provocou não pouca admiração, a saber, o vê-la de contínuo pregando e anunciando o Reino de Deus”46.

Aspecto recorrente nos registros sobre estas “ressurreições” – e que assegura a prática tradicional – é a solenidade que revestia o momento da verbalização e da divulgação do sonho sonhado. O registro que selecionamos encontra-se na Ânua referente aos anos de 1641 a 1643, e ressalta a receptividade dos indígenas à “nueva predicadora”.

“Entre os muitos que morreram nesta redução desta peste está uma indígena [que] foi atingida de forma fulminante pela enfermidade, de sorte que morreu em oito horas. Decorrido algum tempo, a indígena voltou a si. Acudiram os congregantes e também aqueles que não faziam parte da congregação para ouvir o que dizia a nova predicadora, que produziu tão grande efeito e comoção entre seus ouvintes, que a partir de então se enchia todos os dias a igreja, como se fossem dias de festa e aumentaram as confi ssões como se fosse tempo de jubileu”47.

Em outro registro fi ca atestada a compreensão do missionário de que os sonhos desempenhavam papel fundamental num processo de exame de consciência e purifi cação espiritual pela confi ssão dos pecados:

45 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985, p. 151.

46 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 156.

47 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1641-1644). Resistência: Instituto de

Investigaciones Geohistóricas, 1996, p. 86.

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“Uma índia de má vida fugia sempre da confi ssão. Deus teve misericórdia dela. Viu ela em sonho, como depois contou, a um menino muito bonito que a conduziu através de uns precipícios até um poço muito profundo e terrível de onde saíam tristes gemidos e horríveis gritos. Viu ali a uns monstros negros, que dançavam em meio à espessa fumaça e ao fogo que se encontrava nestes abismos. Então disse o menino à indígena: É aqui que te jogarão, caso não te arrependas de teus pecados tão sujos e caso não venhas a te confessar. Desapareceu o menino e a índia despertou. Ao amanhecer se apressou para ir à igreja, contou ao padre o que havia visto e com grande dor de alma, confessou seus pecados”48.

O inferno “experimentado” em sonho por esta indígena, ao ser, primeiramente, relatado e, posteriormente, registrado pelo missionário, nos leva a refl etir sobre o medo que ela deve ter sentido de experimentá-lo concretamente49. Nos relatos dos missionários, a ameaça do inferno e do assédio por demônios levava, na maioria das vezes, a resultados surpreendentes em termos de conversão.

Há, ainda, o registro que refere uma moça que, dada como morta havia três horas, “deu sinais de estar com vida”. Ao relatar sua experiência ao padre, descreve a visão de “uma tropa de demônios muito feios” que teriam vindo ao seu encontro “munidos de uma espécie de garfos” com que queriam prendê-la, “mas um Anjo de grande formosura” a teria defendido e “com uma espada de fogo pôs em fuga os demônios”50. A moça continua, dizendo que “Esse Anjo guiou-me ao inferno, para que visse o fogo espantoso, que os condenados padecem. [...] Ali cheguei a ouvir, grandes uivos de cães, bramidos de touros e silvos de serpentes, que davam aos demônios [...]”51.

48 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639). ... Op.cit., p. 96.

49 - Os Exercícios Espirituais recomendam: “É muito conveniente que nós entremos no Inferno e sintamos em

nossos mesmos sentidos o que nele padecem os réprobos”; “Verei com a vista da imaginação como a cratera de

um vulcão, aquela imensa caverna de muitos mil quilômetros de diâmetro, e mergulhadas naquele oceano de

fogo as almas dos condenados como em corpos ígneos num número incalculável de todas as raças e classes da

sociedade, e no mais profundo daquele mar-morto o Dragão infernal cercado da sua Guarda negra, composta

de anjos rebeldes e dos mais abomináveis pecadores da terra”; “Ouvirei com os ouvidos da imaginação prantos,

alaridos, vozes, blasfêmias contra Cristo Nosso Senhor, contra a Virgem e contra os Santos. […] O Inferno é

a região do pranto”; “Quanto melhor é chorar neste mundo os nossos pecados, e sofrer os males da vida com

resignação na vontade de Deus, a fi m de evitarmos um choro eterno e sem mérito”; “Sentirei pelo olfato, fumo,

enxofre, exalações de coisas imundas e pútridas”; “Aplicando o meu tato ao fogo do Inferno, procurarei ter a

sensação das chamas que abrasam as almas”; “É um fogo que não mata, mas conserva viva a vítima, porque no

Inferno não há mais redenção. Procurarão a morte, mas a morte fugirá deles”. (Apud Alexandrino, MONTEIRO.

Exercícios de Santo Inácio de Loyola. Petrópolis: Vozes, 1950, pp. 71-78). Diante dos procedimentos envolvidos

neste Exercício Espiritual de Meditação compreende-se a mística que envolvia a atuação dos missionários na

Província do Paraguai, bem como os refl exos da mesma sobre os indígenas.

50 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 154.

51 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 154.

196

Contrastando com as descrições dos demônios e do inferno, as dos santos, dos anjos e do céu, presentes nos relatos das experiências oníricas ou visionárias registradas pelos missionários, procuram sempre transmitir a idéia de tranqüilidade, beleza e harmonia, em situações que envolviam a absolvição dos pecados, o alcance da cura ou a garantia da boa morte, como nestas passagens extraídas da “Conquista Espiritual” do Padre Antônio Ruiz de Montoya:

“Chegando a meia noite, viram eles que a defunta dava sinais de vida, pois se movia [...]. Logo que deixei esta vida, fui levada ao inferno, onde vi um fogo horrendo, que arde e não dá luz, e causa grande temor. Nele vi alguns dos que morreram, mas tinham estado em nossa companhia e a quem todos conhecíamos. Padecem eles muitas dores. Logo mais me levaram para o céu, onde vi Nossa Mãe, sendo ela tão formosa, resplandecente e linda, tão adorada e servida de todos os bem-aventurados, e achando-se em sua companhia inumeráveis Santos belíssimos e brilhantes [...]. Lá é tudo formosura, beleza e riqueza [...]”52.

Com relação à aparição de santos aos indígenas, destacamos esta passagem em que o missionário não descuida de relacionar a visão/o sonho com a admissão de culpa, a confi ssão e o arrependimento:

“Certa mulher desejava sua admissão, mas, fazendo o exame de sua consciência, para purifi cá-la com uma confi ssão geral [...] ela adormeceu e, em sonhos, pareceu-lhe ver a Virgem e ouvir que a admoestava quanto a certos pecados. [...], Despertou com isso e achou que a advertência fora correta. Arrependida, alegre e grata à Virgem, confessou as suas culpas”53.

Em vários registros se observa a insistência em associar fi guras iluminadas e suaves às visões e sonhos tidos por indígenas já convertidos e com conduta exemplar:

“Estávamos dedicando, em Loreto, um novo templo à Virgem Soberana, em dia que vinha a ser uma de suas festas. Na noite anterior, à claridade do luar, estavam mais de 60 pessoas celebrando com alegria a festa quando todos viram que da velha igreja, situada em frente da nova, saíam três fi guras vestidas duma roupagem

52 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 151.

53 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 178.

197

celeste, branca como a neve e reluzente como prata polida. Seus rostos pareciam três sóis, apresentando as cabeleiras como de fi bras de ouro, caídas sobre os ombros. [...]. A gente fi cou absorta, mirando e contemplando sua formosura e linda disposição de corpos [...], Alguns meninos, ali presentes, tiveram o seu amor tão ardente que, vazios de todo o medo e cheios de simplicidade, com caminho fraternal achegavam-se a elas [...]”54.

Os relatos sobre o céu, com a presença de anjos e de Deus, e a informação dada pelos ressuscitados de que os indígenas convertidos já falecidos nele se encontravam, gozando de grande glória vinham ao encontro dos comportamentos que os missionários pretendiam introduzir e/ou manter entre os indígenas nas reduções55.

“Dali […] levou-me o Anjo à visão da glória dos bem-aventurados. Vi o próprio Deus num assento e trono formosíssimo, rodeado de infi nitos bem-aventurados. [...]. Era um ser que resplandecia infi nitamente mais do que o fogo, mas não queima [...]. Pude conhecer ali muitíssima gente destas reduções e, entre ela, os três padres que morreram no Guairá, tendo grande glória. [...]. Padre, não te canses a ensinar o caminho do céu [...]. Oh, se não cometessem pecado! Oh, se amassem a Deus de todo o coração! Oh, se cumprissem a todos os seus mandamentos! Como haveriam de estar contentes na hora da morte!”56.

A adoção pelos indígenas das recomendações feitas pelos ressuscitados fi ca comprovada nas ações que se seguiam e que foram registradas pelos não menos impressionados missionários: “de noite, viam-se pelas ruas disciplinantes, e mesmo à porta da igreja açoitavam-se ou fl agelavam-se não poucos. Foi, em suma, um grande estímulo para todos, principalmente para os congregados [...]”57. Mais do que comprovar a construção de um discurso que atribui aconversão dos guaranis à dedicação e à habilidade dos missionários,

54 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual. ... Op.cit., p. 75.

55 - Ainda em relação a estas visões que condenam comportamentos e enfatizam outros, deve-se ressaltar a sig-

nifi cativa infl uência das concepções dos missionários jesuítas em relação à morte e ao pecado: “Antes da morte

pode-se sair do pecado, superar os maus hábitos, reparar as desordens, pagar dívidas […] chegado o momento

da morte, acabou tudo […] Os desregramentos causados pelos pecados provêm de não considerarmos pratica-

mente a nossa vida como uma preparação para a eternidade […] A morte nos ensina expressamente […] que só

tem valor a virtude […] A vida que levamos indicará o lugar que havemos de ocupar. Vida conforme os manda-

mentos, direita! Vida contrária aos mandamentos, esquerda!”. (Apud Alexandrino, MONTEIRO. Exercícios de

Santo Inácio de Loyola…. Op. cit., pp. 101–105)

56 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 154.

57 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 156. Para os jesuítas, o espírito se encon-

trava preso dentro do corpo, daí a necessidade de controlar e restringir a ação física, os sentidos, os desejos e as

vontades, a fi m de que a alma se desenvolvesse da forma considerada a mais adequada.

198

acreditamos que estes relatos atestam a conformação de uma peculiar sensibilidade religiosa nas reduções jesuítico-guaranis, na medida em que determinadas práticas e funções sociais tradicionais guaranis foram ressignifi cadas, como se pode constatar nos sonhos e na importância dada àquele que sabia divulgá-los e interpretá-los.

SOBRE MARTÍRIOS, FUNERAIS, APÓSTOLOS E SANTOS: A MEMÓRIA A SERVIÇO DA ORDEM

É importante destacar que para os membros da Companhia de Jesus, a memória “se confi gurava enquanto uma das exigências institucionais para ‘ajuda das almas’. As Constituições da Companhia de Jesus exigiam do candidato à Companhia que além das faculdades da inteligência e da vontade fosse incluída a memória como ‘a capacidade de aprender e fi delidade para reter o que se aprende’. [...] Ademais, ao referir o uso da memória por um padre jesuíta no século XVI, deve-se considerar que o cristianismo, assim como o judaísmo, fundamenta-se na memória e na recordação [...]”58. Além disso, como bem lembrado por Fernando Torres Londoño, “A Companhia de Jesus nasceu e se estendeu, no século XVI, a quatro continentes sob o domínio da escrita. No momento em que a primeira dúzia de ‘companheiros’ se colocou a serviço do papa, compreendeu-se que a dispersão poderia ameaçar sua união e para se manterem unidos em Jesus Cristo nasceu o Instituto”59.

Para a fi nalidade desta conferência, destaco uma produção do padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya60 – supostamente de 1617 – intitulada Relación (manuscrita) sobre el Apóstolo Santo Tomás, que viria a ser transcrita, em 1755, pelo Padre Lozano, em sua obra Historia de la Compañía de Jesus en la Província del Paraguay. Nela encontramos a seguinte informação: “Conservam os bárbaros tão fresca a memória de São Tomé e de seus prodígios, como se eles mesmos o tivessem visto e conhecido. Os índios traziam defuntospara que os missionários os restituíssem a vida, porque assim diziam havia feito Pay Zumé para provar que era a Palavra de Deus que ele predicava”61.

58 - Socorro de Fátima Pacífico VILAR. A Invenção de uma escrita: Anchieta, os Jesuítas e suas Histó-

rias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 176.

59 - Fernando Torres LONDOÑO.” Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI”. Revis-

ta Brasileira de História (São Paulo), v. 22 nº 43, 2002, p. 13.

60 - Montoya nasceu a 13 de junho de 1585, na cidade de Lima, Peru. Orfão de pai e mãe, ele chegou a freqüentar

a Real Escuela de San Martin. Adolescente, abandonaria os estudos, dedicando-se à vida cortesã. Estimulado pelo

Padre Gonzalo Suarez entraria no noviciado em 1606, após onze meses de estudos preparatórios. É ordenado padre

pelo Bispo Trejo y Sanabria, em Santiago Del Estero, em 02 de março de 1611. Em setembro do mesmo ano, chega-

ria a Assunção, onde esperou seis meses para seguir até o Guairá, onde daria início à atividade apostólica.

61 - Pedro LOZANO. História de la Compañía de Jesús de la Província del Paraguay. Madrid: Imprenta de la

Viuda de Manuel Fernandez, 1755, p. 719.

199

Dez anos depois, Montoya voltaria a fazer referência a São Tomé em uma carta que integraria a Décima Segunda Carta Ânua que seria assinada pelo Provincial da Província Jesuítica do Paraguai, Padre Nicolás Mastrilli Durán:

[...] a princípio dei pouco crédito a uma profecia que me contavam os índios: a de que o Santo havia profetizado a nossa vinda a estas partes. Como isto foi ouvido em distintas nações e tão distantes umas das outras, de maneira alguma pode haver suspeita de haverem se comunicado os índios entre si a ponto de concordar em tantos aspectos e não haver discrepâncias. Me parece oportuno aqui referir-la porque a ouvi de novo entre os índios desta nação. Tem eles por tradição – que se tem passado de pais para fi lhos – que em tempos futuros chegariam a suas terras uns padres que lhes ensinariam a Palavra de Deus, os juntariam e grandes povoados, lhes fariam viver em ordem e observando os princípios cristãos, ensinando-lhes a amar uns aos outros e orientando-os a não terem mais de uma mulher. Recordam eles aquilo que ouviram de seus avós sobre as promessas feitas por Santo Sumé ou Tomé”62.

Esta menção – feita por Montoya – à necessidade de constantemente renovarem a memória da tradição mítica parece ter sido seguida à risca pelos missionários jesuítas, empenhados numa conversão que se fez com pegadas, promessas e curas. À página 101 de sua obra Conquista Espiritual, o padre Montoya63 faria uma curiosa recomendação, antevendo, de certa forma, a importância que os historiadores dariam ao mito de São Tomé: “Com isso concluí o assunto relativo à cruz, aos rastros e vestígios que existem no ocidente quanto ao glorioso Apóstolo. Voltar-me-ei agora às minhas reduções e faço-o desejoso de que alguém (um dia) tome este rascunho, para tratar desta história com (mais) fundamento.”

Mais do que ver atendido o desejo de que – com mais fundamento – os seus rascunhos sobre São Tomé fossem retomados, Antônio Ruiz de Montoya foi – ele próprio – alvo de uma memória, após seu falecimento em 1652. Na Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai, referente aos anos de 1659-1662, encontramos os seguinte relato do Provincial Andrés de Rada:

62 - MCA - Manuscritos da Coleção de Angelis. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951, tomo I, p. 274.

63 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 101.

200

“[…] pois se cobriram as tampas do ataúde do apostólico Padre Antonio Ruiz de Montoya de um copioso suor que parecia indicar os grandes sofrimentos e humilhações pelas quais tiveram que passar os nossos padres junto à missão entre os calchaquís, ocasião em que foram vergonhosamente e injustamente expulsos de sua morada. Os primeiros da Província do Guairá convertidos pelo padre Antônio Ruiz de Montoya foram precisamente os habitantes do povoado de Loreto. Por isto, eles guardam os restos daquele padre em sua Igreja, como um tesouro de inestimável preço. A memória daquele Padre encontra tanta veneração entre eles, que a ele fazem pedidos e promessas com bons resultados. Assim que havendo esta crença bem fundada, três enfermos do povoado, já desenganados, recobraram a saúde por intercessão do padre Antônio”64(grifo nosso).

De acordo com Carlos Teschauer, a vida de Montoya foi repleta de “atos de heróica virtude” marcados pelo uso de cilícios, jejum, penitências e disciplinas para conservar a pureza da alma e do corpo e vencer a lascívia, tendo tido como divisa de seu apostolado: “Ou padecer ou morrer”. Falecido em Lima, em abril de 1652, teve seu pedido atendido - de que queria repousar entre os índios que tanto havia amado e defendido. Trasladado ao Paraguai em imponente cortejo, o trajeto constitui-se em verdadeira apoteose. Sua fama de santidade era tão grande que “fue necesario defenderlo y enterrarlo a prisa porque no lo acabaran de desnudar y cortarle los dedos y baellos para relíquias”65. Segundo Carlos Teschauer, ao ser aberta a sepultura, após meses de seu falecimento, constatou-se que o corpo estava consumido, restando intactos e brancos os dois pés, como se tivessem acabado de ser enterrados. Após esta revelação surpreendente, difundiu-se a fama de milagreiro.

Estes relatos nos revelam que em torno de Montoya, assim como já ocorrido com São Tomé, funda-se uma memória que se assenta sobre promessas de cura e de restituição à vida daqueles que a ele foram enviados. Ao ser acionada por missionários e indígenas, a memória de Montoya parece evocar uma retomada metafórica do mito de São Tomé e da busca pelo martírio e explicar o muito papel e a muita tinta já utilizados para justifi car a atuação da Companhia de Jesus na América66.

64 - Carlos LEONHARDT. Cartas ânuas de la Compañía de Jesús .... Op. cit., p. 28.

65 - Efraim CARDOZO. Historiografi a Paraguaya. México: Instituto Panamericano de Geografi a e Historia,

1959, p. 231.

66 - Eduardo Viveiros de CASTRO (A inconstância da alma selvagem e outros ensaios antropológicos. São Pau-

lo: Cosac&Naify, 2002) afi rma que os empréstimos cristãos revelam a propensão da sociedade indígena de “se ver

como Outro”, isto é, de assimilar os signos de alteridade. Já Serge GRUZINSKI (A Colonização do Imaginário.

Sociedades Indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003, p. 305) defende que a apropriação dos símbolos cristãos representava uma incorporação sem que a

estrutura simbólica indígenas fosse desfeita.

201

15- PELO MANTO DA MISERICÓRDIA: AS OBRAS DAS SANTAS CASAS

NO BRASIL COLONIAL.

Véra Lucia Maciel Barroso*

Reportar-se à Idade Média é possibilidade de recortar cenários que remetem a signos identitários de um tempo de longa duração, aqui demarcados pela evocação da pobreza, da religiosidade e da caridade. Estas três marcas atravessam espaços europeus, chegando a Portugal, onde traços da modernidade prematuramente se instalaram.

No espaço português, sobretudo entre os séculos XIV e XV, manifestou-se uma grande depressão, como também em outras partes da Europa, que, desde o século XI, já vinha atravessando sérios reveses. Os sintomas de penúria eram visíveis pela desorganização social e econômica, que − alastrada pelas pestes e epidemias, além das perdas agrárias, impostas pelo despovoamento rural, causado pela expansão ultramarina − gerou a proliferação de marginais nas cidades lusitanas. Com populações abandonando o campo e a ocorrência de surtos de fome, seguiram-se confl itos, com intensa movimentação popular, emergindo os “vadios” e “vagabundos” que passaram a viver na mendicidade1. Entretanto, a ameaça maior se fazia sentir no restante da Europa, onde o feudalismo se esvaía em crise, forçando os indivíduos a uma vida mais errante e sem rumo. Já em Portugal, onde para alguns historiadores a estrutura social não era, de fato, feudal2, a precocidade da formação do estado monárquico orientou um poder central mais forte3, que

* Faculdade Porto-Alegrense: FAPA; Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre.

1 - O Império Colonial foi o “ergástulo dos deliquentes”, segundo o historiador português Costa Lobo, (cf. Laura

de Mello e SOUZA. Desclassifi cados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.

57.): “[...] as conquistas marítimas tiveram um papel muito importante na absorção dos mendigos e vagabundos

da metrópole, muitas vezes recrutados à força para fazerem serviço militar nas possessões de além mar”.

2 - Não há unanimidade na historiografi a, quanto ao modo de produção em Portugal durante a Idade Média.

Embora o feudalismo português tivesse começado a organizar-se, não chegou a completar-se, como refere Edu-

ardo França, quando fala em “feudalismo frustro”. Ver Eduardo de Oliveira FRANÇA. Apud, Ricardo MARA-

NHÃO e outros. Brasil História: Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1982, vol. 1, p. 44.

3 - Posição compartilhada por Moreno: “Quebrados os vínculos sociais numa Europa em que o feudalismo se apresenta agonizante, tornam-se os homens mais livres de praticarem um modo de existência errante. Já em Portugal, a situação apresenta-se mais esbatida, no período em questão, em virtude de o poder central ser mais forte e a vontade do rei se fazer sentir com um peso muito mais signifi cativo. Ver Humberto BAQUERO MO-RENO. Marginalidade e confl itos sociais nos séculos XIV e XV: estudos de História. Lisboa: Presença, 1985, pp. 26-27. O mesmo autor, em outra obra, chama a atenção: “Em Portugal, os reis usufruíam de uma autoridade incontestada que se pautava por uma extrema fi rmeza.” Ver Humberto BAQUERO MORENO. “O princípio da época moderna”. In: José TENGARRINHA (Org.). História de Portugal. 2. ed., rev. ampl.. Bauru: EDUSC; São Paulo: UNESP; Lisboa: Instituto Camões, 2001, p. 77.

202

buscou frear os desvalidos, com o socorro dirigido pela realeza, sobretudo através da criação da Santa Casa de Misericórdia4.

A historiografi a brasileira sobre a época colonial, e mesmo a historiografi a portuguesa no trato da sua história social, ainda não dimensionaram, com largueza e alcance devidos, a importância daquela instituição pia, criada em 1498, no ano da descoberta do caminho marítimo para as Índias5. Ambos os acontecimentos teceram uma fase nova para Portugal, inaugurando teias do tempo Moderno, para o país que iniciava a formação de seu império intercontinental. Papel proeminente nesse processo histórico, indiscutivelmente foi desempenhado pelas Misericórdias. Elas sinalizam a presença e a marca portuguesa onde se inscreveram, indicadas pela geografi a das Santas Casas, espalhadas em cidades do Extremo Oriente ao Ocidente, com destaque na América6.

Tratar de Santa Casa é, sem dúvida, dar foco a uma persistência medieval lusa, em terras brasileiras, de todos os quadrantes de seu espaço continental, evidente no tempo presente. A estrutura assistencial desenvolvida na Baixa Idade Média é uma das permanências legadas à modernidade, sobretudo o modelo de assistência praticado em Portugal. Ele associou a caridade de caráter religioso ao poder monárquico, sinal e evidência da nova confi guração sociopolítica que se desenhou a contar do século XVI.

CRISE SOCIAL E FILANTROPIA EM PORTUGAL: A CRIAÇÃO DA MISERICÓRDIA

Haveis de saber que nesta terra e em todos os mais lugares de cristãos há uma companhia de homens muito honrados, que têm cargo de amparar toda a gente necessitada, assim aos naturais cristãos como aos que novamente se convertem.

Esta companhia de homens portugueses se chama Misericórdia; é coisa de admiração ver o serviço que estes bons homens fazem a Deus Nosso Senhor em favorecer a todos os necessitados”. (Carta de São Francisco Xavier a Santo Ignácio de Loyola, Goa, 28 de setembro de 1542). (Grifo nosso).

4 - Na Idade Média, a assistência era articulada por três atores: a Igreja, as Irmandades laicas e as autoridades municipais. Destaque deve ser dado à atuação das muitas confrarias e irmandades leigas no período. 5 - Todavia, chama atenção o crescente interesse de estudo sobre o papel das Santas Casas, no Brasil e em Portu-gal. Por consequência, a historiografi a vem sendo enriquecida, com o destaque dado ao papel das Misericórdias na formação cultural brasileira, bem como na consolidação do vasto império colonial português.6 - A bordo das naus da empresa marítima portuguesa, seguiram “homens bons” que fundaram Misericórdias, desde o Brasil até África, Índia, China, Filipinas e Japão. A Santa Casa espalhou-se e tornou-se uma marca da colonização portuguesa.

203

Até a Baixa Idade Média, cabiam à Igreja os encargos sociais. Afi nal, ela era a única instituição de estrutura sólida, concebida como centro prioritário de refúgio dos acometidos pelos males materiais e espirituais. Ela hegemonizou esse cenário, até que a crise lhe impôs a perda do monopólio e da centralização das formas de pensamento e interpretação da realidade. Assim, outro tempo se mostrou, com o crescimento da iniciativa laica da caridade, que passou a ser promovida por novos agentes sociais, como a realeza e alguns setores da emergente burguesia.

Diante das vicissitudes que Portugal atravessava na Baixa Idade Média europeia, sobretudo os monarcas e segmentos da sociedade portuguesa acabaram por cultivar uma consciência de solidariedade e de assistência social, que resultou na criação de instituições empenhadas na prática da piedade e da fi lantropia.

Inicialmente foram instaladas as albergarias ou hospedarias, e até mesmo esmolarias reais, à beira das estradas na rota dos peregrinos. Sustentadas pela Coroa, ou por mosteiros ou ordens religiosas, muitas delas tinham espécies de hospitais anexos, os quais poderiam ser considerados sementes das futuras Santas Casas de Misericórdia.

A palavra misericórdia, de origem latina – miserere e cordis – signifi ca doar seu coração a outrem. Em realidade, “dar amor aos carentes” passou a indicar o seu sentido, fi rmado na ideia de compaixão e piedade, que traduzem a caridade. Eis as fi nalidades da Misericórdia: piedade e caridade. E, na Idade Média, a principal fonte de caridade era a Igreja, que a praticava como um dever moral. Ao largo ou junto às casas monásticas foram feitas à semelhança de hospitais, enfermarias para os próprios doentes, como também pousadas para os viajantes. Assim, a capela e seu entorno foram, no conceito medieval, o lócus da prática da caridade, ligada com a fé e a esperança, duas virtudes cristãs.

As obras de Misericórdia, citadas no Evangelho de São Mateus (cap. 25, versículos 35 a 40) como dever espiritual dos cristãos, foram disseminadas pelas ordens religiosas, na conjuntura da crise europeia. Às populações divulgaram-se as sete obras espirituais e as sete obras corporais, que atravessaram os oceanos com a expansão marítima, durante os séculos XV e XVI, espalhando-se a pregação pia pelos continentes. São elas:

* Sete obras espirituais: 1) ensinar os ignorantes; 2) dar bom conselho; 3) punir os transgressores com compreensão; 4) consolar os infelizes; 5) perdoar as injúrias recebidas; 6) suportar as defi ciências do próximo; 7) orar a Deus pelos vivos e pelos mortos.

204

* Sete obras corporais: 1) resgatar cativos e visitar prisioneiros; 2) tratar dos doentes; 3) vestir os nus; 4) alimentar os famintos; 5) dar de beber aos sedentos; 6) abrigar os viajantes e os pobres; 7) sepultar os mortos7.

À luz do cristianismo, tais obras assumidas por fi éis “em compromisso” iriam socorrer os irmãos em estado de atribulações e misérias, para melhorar a ordem temporal.

A esse respeito, Caio Boschi, historiador de Minas Gerais, estudioso no assunto, destaca:

“A Baixa Idade Média presenciou o desabrochar (das) sociedades fraternais. [...] Gênero de agremiação voltada para o exercício da caridade para com o próximo, as Misericórdias cuidavam dos doentes desassistidos, de defuntos carentes de recursos, de presos e de condenados. As inseguranças e incertezas do homem medieval levaram-no a unir-se em associações voluntárias.

Enquanto as corporações de ofício atendiam aos interesses profi ssionais de seus integrantes, as irmandades, e de modo especial as Misericórdias, encarregavam-se dos encargos assistenciais e espirituais”8.

Em Portugal, esses encargos se solidifi caram com a prática da solidariedade e do amor cristãos ao próximo, especialmente no atendimento aos carentes, sinalizando a criação da primeira Irmandade da Confraria de Nossa Senhora da Misericórdia, em Lisboa. Sua patronesse foi a Rainha Leonor de Lencastre, viúva de D. João II e irmã de D. Manoel, “o rei Venturoso”, que deu total apoio à ideia por ela proposta. Contou com a assessoria de seu confessor, Frei Miguel de Contreiras e de alguns irmãos leigos. No dia 15 de agosto de 1498, a cerimônia ocorreu na Catedral da Sé da capital portuguesa, em capela anexa, então conhecida como de Nossa Senhora da Terra Solta (por ser a capela de pavimento térreo) ou Nossa Senhora da Piedade9.

7 - A. J. R. RUSSEL-WOOD. Fidalgos e fi lantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia (1550-1755). Brasília:

Ed. da UnB, 1981, p. 15. No Compromisso de Lisboa, de 1516, constam, em sumário, as listas das obras de cari-

dade a serem praticadas por todos os irmãos.

8 - Caio César BOSCHI. O clero e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São

Paulo: Ática, 1986, p. 13.

9 - Alguns autores defendem a tese de que o Hospital de Santa Maria Nova, de Florença/Itália, teria sido o mo-

delo para a Santa Casa de Lisboa e de que seu estatuto ajudara, em parte, na defi nição da Misericórdia da capital

portuguesa.

205

Efetivamente, Lisboa se via assolada por muitos enfermos, famintos, esfarrapados, órfãos e viúvas que vagavam pela rua. A mendicidade era degradante em todo o país. Mas a capital estava em situação pior. Esse é o cenário que moveu a “Princesa Perfeita” à criação da Santa Casa.

Ao projeto da rainha, além do irmão rei, aderiram o alto clero, a nobreza e a burguesia, ganhando grande e notável prestígio os que integravam as Irmandades das Misericórdias.

Com o beneplácito do Estado e de seus privilégios, a sede da Misericórdia de Lisboa, mandada edifi car por D. Manoel, ganhou grandeza e relevância real; sua conclusão deu-se em 1534.

Tratava-se efetivamente de ação do Estado frente à necessidade de regulamentar a estrutura caritativa vigente, que se mostrava incapaz, diante das difi culdades da sociedade lusa. Nessa direção, através das Ordenações Afonsinas, e depois com as Manuelinas, se encaminhou o fortalecimento das irmandades leigas sobre as eclesiásticas.

A Misericórdia tomou como seu símbolo identitário a imagem da Virgem Maria com seu manto maternal aberto, representando a proteção aos poderes terrenos (reis, rainhas, príncipes, etc.) e aos poderes espirituais (papas, cardeais, bispos, clérigos ou membros de ordens religiosas). Por extensão, a proteção estendia-se a todos os necessitados: crianças abandonadas, pobres, doentes, presos, velhos, loucos e outros. Esta representação passou a ser a marca encontrada nos compromissos, azulejos, telas, bandeiras, estandartes e brasões que cada Misericórdia mostrava.

Pela Idade Média, a iconografi a do véu, ligada à exortação e prática da proteção misericordiosa vai confundir-se com uma que lhe é sinônima, a do manto, que se invocara fora do cristianismo e, mais particularmente do culto mariano. [...] A apropriação desta invocação do pano protetor percorre toda vivência medieva, entre cistercienses, dominicanos, franciscanos, carmelitas, cartuxos, trinitários, Ordens Terceiras e confrarias laicas, [...]10.

Os fundos de sustentação das Santas Casas eram obtidos a partir da caridade privada e de legados pios, o que veio a transformar

10 - Santa Casa de Misericórdia de Aveiro. Disponível em: http://www.scmaveiro.pt/PageGen.aspx?WMCM_Pa-

ginaId=102 (acesso em 03/06/2010). No começo do século XV, devido à peste, multidões aterrorizadas, sentindo

a necessidade da proteção sobrenatural, lembraram-se de recorrer à proteção da virgem Maria. A partir daí

surgiram os primeiros quadros de Nossa Senhora a acolher as fl echas pestilentas, com o seu manto, pessoas de

todas as classes sociais, desde o papa e o imperador aos mais humildes, pois do contágio não escapava ninguém.

Essa representação mostra que a virgem Maria protegia as pessoas das várias esferas sociais, sem exceção, consi-

derando a todos como irmãos, dentro do espírito de fraternidade que presidia a criação das irmandades. Assim,

impulsionados pela fé, a imagem da Virgem Maria do Manto Protetor, ou Virgem da Misericórdia, se difundiu

por toda a Europa, vindo a ser o signo da Misericórdia de Lisboa.

206

muitas delas em fonte de crédito, especialmente no mundo colonial, carente de recursos da metrópole.

A Irmandade de Lisboa, inicialmente constituída por cem irmãos, passou a atuar junto aos pobres, presos e doentes. Além de socorrer os que necessitavam de amparo, dava-lhes roupas, alimentos e medicamentos. Foi então feita a centralização dos hospitais e a criação de outros. Em 1485, D. Leonor já fundara o Hospital de Caldas. E seu marido, o Príncipe Perfeito, através de bula papal, teve a permissão para agregar os 43 hospitais de Lisboa e arredores, mandando edifi car o Hospital Real de Todos os Santos. Sua construção foi iniciada em 1492 e concluída em 1502. Tinha por fi m concentrar todos os hospitais e hospícios da capital. Constituiu-se como um estabelecimento hospitalar modelo e o mais antigo hospital termal de que se tinha notícia então − sem dúvida, uma expressão efetiva da profunda reforma da assistência pública em Portugal, a que a população denominou de “Santas Casas”. Elas vinham responder a necessidades da conjuntura que impunham agir frente à exclusão social no país, que se mostrava evidente e ameaçadora, como destaca Magalhães Basto:

“Viam-se continuamente, arrastando-se pelos adros das igrejas ou sob os arcos do Rossio, dezenas de enfermos no mais triste abandono, e muita gente morria sem qualquer consolação corporal ou espiritual. Numerosíssimos mendigos, pavorosos de andrajos, aleijões e chagas, percorriam as ruas, rezando ladainhas: à hora da distribuição das esmolas do caldo e do pão, encontravam-se reunidos à portaria dos conventos verdadeiras assembleias gerais de miséria. Os mortos que o mar ou o Tejo lançavam às praias fi cavam empestando o ar, por não ter quem tivesse obrigação de lhes dar sepultura; e os cadáveres dos suplicados na forca de Santa Bárbara, não eram dali removidos – o tempo, os abutres e os cães encarregavam-se de os destruir”11.

Laima Mesgravis, em seu clássico estudo sobre a Misericórdia do Rio de Janeiro, chama a atenção para o objetivo da criação da Santa Casa. Diz ela:

“Criada com o objetivo de prover assistência aos necessitados, a ‘Misericórdia’, instituição tipicamente portuguesa de assistência e caridade, atendia aos pobres e doentes, os presos, os alienados, os

11 - A. de Magalhães BASTO. História da Santa Casa de Misericórdia do Porto. Porto: Santa Casa da Misericórdia

do Porto, 1934, p. 4.

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órfãos desamparados, os inválidos, as viúvas pobres e os mortos sem caixão, predominando a prática de recolher contribuições dos mais afortunados para dar assistência aos pobres e desvalidos, exceto os escravos. A esses, cabia o cuidado dos seus donos”12.

Paralelamente, como as suas seguidoras, a Irmandade de Lisboa também promovia ações de caráter religioso: junto a grupos de oração, nas celebrações de missas e procissões, nas cerimônias dos enterros, no acompanhamento de condenados à morte ou nos atos de penitência.

O Compromisso (estatuto ou regulamento) originário da Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo rei D. Manuel e confi rmado pelo Papa Alexandre VI, foi reproduzido, e serviu de matriz para a rápida criação de Misericórdias por todo o território do reino e do além-mar.

Resultado dos interesses da política econômica e social da Coroa portuguesa, e das necessidades das populações em difi culdades, ainda no mesmo ano, multiplicaram-se fi liais da Misericórdia lisboeta pelo território lusitano − tanto continental quanto insular. Quando D. Leonor faleceu, em 1524, as cidades e muitas das vilas de Portugal possuíam, pelo menos, uma Santa Casa de Misericórdia, somando-se 6113, todas elas regulamentadas pelo Compromisso de Lisboa.

Nessa altura, o Império Português se estendera, pelos mares, ao oriente e ao ocidente. A tendência centralizadora da Coroa articulou o interesse comercial com a expansão das Misericórdias, que constituíram como que um esteio do processo colonizador, quer nas Índias, na Ásia ou na América. De fato, as Santas Casas transformaram-se em um dos maiores símbolos de poder do período colonial. É interessante observar que, em alguns lugares, elas chegaram antes da instalação da estrutura administrativa.

No Brasil, com o processo colonizador inaugurou-se, sem demora, a sua primeira Misericórdia, que, somada a outras, sucessivamente foram confi gurando um cenário de assistência, aos povoadores que chegavam à Terra de Santa Cruz.

Na historiografi a alusiva às Misericórdias do Brasil, a palavra de consenso é a de que o fi dalgo Brás Cubas (neto de Nuno Rodrigues, fundador e mantenedor da Santa Casa do Porto/Portugal), criou a

12 - Laima MESGRAVIS. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599-1884): contribuição ao estudo da

assistência social no Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1974, p. 13.

13 - Yara Aun KHOURY (Coord.). Guia dos Arquivos das Santas Casas de Misericórdia do Brasil (fundadas entre

1500 e 1900). São Paulo: Imprensa Ofi cial; PUCSP/CEDIC/FAPESP, 2004, vol. 1, p. 10.

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primeira delas, em Santos/São Paulo, no ano de 1543, cujo hospital foi chamado de Todos os Santos, inspirado no de Lisboa. Há autores que indicam ser a de Olinda/Pernambuco, anterior, com fundação em 153914. Em sequência foram instaladas as Misericórdias em Salvador/BA (1549); Vitória/ES (1545, para alguns autores; para outros, 1551-1606); São Paulo/SP (1560 ou 1599-1603); Ilhéus/BA (1564 – desaparecida); Rio de Janeiro/RJ (1567 ou 1582, por José de Anchieta); João Pessoa/PB (1585 ou 1602-1618); Itamaracá/PE (1611); Belém/PA (1619 ou 1650-1687); São Luiz/MA (1622 ou 1657); Ouro Preto/MG (1730); Santo Amaro/SP (1778); São João Del Rei/MG (1783); Florianópolis/SC (1789) e Campos/RJ (1792). A de Porto Alegre/RS foi criada, já no século XIX, em 19 de outubro de 1803,15 dois anos após a incorporação defi nitiva do Rio Grande do Sul, ao Brasil, através do Tratado de Badajós, assinado por Portugal e Espanha, depois de mais de século de confrontos militares de fronteira, no mediterrâneo do Prata.

E a orientação traçada no Compromisso de Lisboa é a que vai ser dada a todas as Misericórdias que foram fundadas no Império Português. Depois, pouco a pouco, cada uma foi tomando rumo próprio, a partir das condições locais.

A análise da atuação destas Santas Casas permite verifi car o proeminente papel que elas exerceram na formação da sociedade brasileira, constituindo-se em peça fulcral de sua trajetória. Impõe-se agora verifi car traços balizadores de seu signifi cado e importância, desde o século XVI.

AS MISERICÓRDIAS: O “CIMENTO SOCIAL” NA COLÔNIA

Temos em Portugal uma instituição que nos honra que tem sido louvada, invejada por todos os povos, que é a melhor instituição que eu conheço, que nasceu com a monarquia ou antes veio à luz na sua virilidade e robustez, que a acompanhou por todas as partes do mundo, que a seguiu aos mais remotos confi ns do globo, onde ela foi levar a cruz e a civilização, o evangelho e o comércio, a liberdade e as suas colônias. Em nenhum país da terra há instituição fi lantrópica superior, nem igual! Nenhuma nação teve ainda reis ou leis que fi zessem de iguais instituições

14 - Yara Aun KHOURY (Coord.). Guia dos Arquivos das Santas Casas de Misericórdia do Brasil (fundadas entre

1500 e 1900). São Paulo: Imprensa Ofi cial; PUCSP/CEDIC/FAPESP, 2004, vol. 1, p. 10.

15 - Sobre sua trajetória, ver Sérgio da Costa FRANCO; Ivo STIGGER. Santa Casa 200 anos: caridade e ciência:

crônica histórica da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da ISCMPA, 2003. Para a San-

ta Casa de Porto Alegre há três datas signifi cativas de sua formação: 1803 (criação da Santa Casa); 1814 (criação

da Irmandade) e 1826 (inauguração do 1º hospital).

209

uma condição social tão genérica, tão uniforme, e por consequência tão “fácil de vigiar e fi scalizar” (Almeida Garret, em discurso proferido na Câmara dos Pares em 10 de fevereiro de 1854). (grifo nosso).

Insiste-se que o modelo assistencial português inserido no cotidiano de suas colônias tem na Santa Casa de Misericórdia o seu expoente máximo. Ela foi, até o século XIX, instituição fundamental na manutenção do Império colonial português. É o que afi rma Boxer:

“Entre as instituições que foram características do império marítimo português e que ajudaram a manter unidas as suas diferentes colônias contavam-se o Senado da Câmara e as irmandades de caridade e confrarias laicas, a mais importante das quais era a Santa Casa de Misericórdia. A Câmara e a Misericórdia podem ser descritas, apenas com um ligeiro exagero, como os pilares gêmeos da sociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau”16.

O autor, na mesma obra, ainda acrescenta que as Misericórdias cumpriram o papel de refúgio de todas as classes sociais, tornando possível a construção de uma identidade portuguesa, ao ligar os indivíduos e grupos diversos através de territórios distantes e dispersos entre si.

É reconhecido também que as confrarias desempenharam um papel de acomodação da sociedade colonial, como se lê na obra O Império Luso-Brasileiro (1620-1750):

“Manifestação de fé, posição defensiva, face à autorização da Igreja, refúgio na vida e segurança face à morte, gosto da ostentação e prova manifesta de uma posição social, as confrarias foram tudo isso ao mesmo tempo. [...] Para a Igreja, serviram para o desenvolvimento do culto e para seu apoio material, permitindo sempre certa unidade espiritual, estas associações foram o refl exo da diversidade social e cultural dos brasileiros. Para o Estado, mostrando-se o melhor e mais seguro meio de conservar a tranqüilidade e a subordinação necessárias. Para os fi éis, a entrada numa confraria evitava a marginalização e garantia, depois da morte, um lugar na eternidade. Para os negros, enfi m, fazer parte de uma confraria, era um penhor de proteção e de defesa face os rigores da escravatura. [...] Fazer parte

16 - C. R. BOXER. O império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 198. p. 263. O autor, na mesma

obra, ainda acrescenta que as Misericórdias cumpriram o papel de refúgio de todas as classes sociais, tornando

possível a construção de uma identidade portuguesa, ao ligar os indivíduos e grupos diversos através de territó-

rios distantes e dispersos entre si.

210

de uma confraria era sinal de honorabilidade estreita dos confrades para enfrentar a vida e o além [...]”17.

Laurinda Abreu, estudiosa portuguesa do papel das Misericórdias,

também chama a atenção sobre o signifi cado das Santas Casas para o Império Colonial Português:

“No ultramar, as Misericórdias foram instituições fundamentais como instâncias de garantia do sistema de assistência pública, instrumentos moralizadores das comunidades, núcleos de poder e, portanto, estruturas homogeneizadoras de um império espacialmente descontínuo e com especifi cidades tão diversas como as que se refl etem nos modelos institucionais e administrativos adotados”18.

Ampliando o entendimento sobre o tema, Isabel dos Guimarães de Sá indica três vetores que balizaram a instalação das Misericórdias, a saber:

“[...] a (sua) formação seguiu os tempos de implantação das comunidades portuguesas nas áreas de expansão, ou seja, a criação das Santas Casas pressupunha a formação de vilas coloniais estruturadas e variava de acordo com as diferentes confi gurações do Império ao longo do século XVI ao XVIII. Em segundo lugar, a instalação das Misericórdias nos territórios administrados pelos portugueses em consequência da expansão ultramarina foi simultânea à difusão das Misericórdias na Metrópole. Nesse sentido, não formaram um sistema testado no Reino e, em seguida, exportado para as colônias. A sua difusão se alastrou de forma simultânea. Em terceiro, registra-se que a cronologia da implantação das Misericórdias seja difícil de precisar com rigor porque não há documentação de apoio fi cando impraticável a defi nição de datas precisas”19.

Uma vez instalada a Santa Casa, o passo seguinte seria defi nir os responsáveis por sua direção. À medida que a Irmandade constituía fortuna e prestígio, a primitiva sala de oração e sede da confraria dava lugar ao seu edifício, destacando-se junto à praça central, próximo da Câmara e do Pelourinho, local privilegiado que demarcava a condição social e política do espaço urbano da vila ou da cidade.

17 - Joel SERRÃO; A. H. DE Oliveira MARQUES (Dir.). Nova História da expansão portuguesa: o império luso-

-brasileiro (1620-1750). Lisboa: Estampa, 1991, vol. 7, pp. 397-398, 402.

18 - Laurinda ABREU. Apud Jovanka Cavalcanti SCOCUGLIA; Marieta Dantas TAVARES. “História e memória

da Igreja da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba”. Patrimônio: lazer & Turismo. V. 6, n. 8, 2009, p. 14. Dispo-

nível em: <www.unisantos.br/pos/revistapatrimonio> (acesso em 03/06/2010).

19 - Jovanka Cavalcanti SCOCUGLIA; Marieta Dantas TAVARES. História e memória da Igreja da Santa Casa

de Misericórdia da Paraíba. Art. cit., p. 12. Efetivamente, as datas de criação das Santas Casas, em Portugal, no

Brasil e em outros lugares do Império Colonial Português, não são precisas, nem há consenso entre os autores,

confundindo-se, muitas vezes, a data da criação da Irmandade com a da criação do Hospital.

211

No Brasil, as Santas Casas atuaram com amplos poderes: políticos, religiosos e administrativos. Ao cumprirem a sua missão compromissal, cuidando da assistência aos pobres e desamparados, articularam e resguardaram a manutenção e o equilíbrio do sistema colonial. Em outras palavras, elas representavam uma espécie de amortecedor das tensões sociais na colônia, e também de instrumento moralizador das comunidades. Através da atuação da rede de Misericórdias, se afi rmou uma lógica unifi cadora do espaço continental do Brasil, ao homogeneizar o tecido social.20 Aliás, Foucault orienta essa refl exão no sentido de verifi car a disciplina como um mecanismo de controle social, cabível ao papel exercido pelas Santas Casas nos lugares onde elas foram instaladas. Diz ele:

“A disciplina não pode se identifi car com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos [...] E pode fi car a cargo seja de instituições especializadas [...], seja de instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fi m determinado”21.

Aqui estão os hospitais, em essência os das Santas Casas, com suas enfermarias de alienados – os loucos, as casas da roda dos expostos, as vigílias aos presos sob os cuidados das Misericórdias, e todos os desamparados, que na colônia deviam se integrar na formação de uma sociedade disciplinar.

Mas também, por outro lado, a historiografi a é consensual ao destacar que as Misericórdias foram o contraponto diante dos abusos da estrutura ofi cial, bem como um braço forte de representação do paternalismo monárquico cristão português. A sua importância foi tão substantiva a ponto de ser observada a sua localização, levando em conta a importância estratégica das vilas, dentro dos objetivos da colonização portuguesa.22 E é interessante observar que as Irmandades foram criadas, a maioria delas, em vilas e cidades, impulsionadas por orientação régia. Ou seja, as Misericórdias acompanhavam a fundação das cidades. E, sem demora, as elites locais e a Câmara se

20 - Esta é a tônica do trabalho de Laurinda Abreu, da Universidade de Évora, Portugal, ao abordar sobre o papel

das Misericórdias na formação do Império Português. Ver Laurinda ABREU. O papel das Misericórdias dos ‘lu-

gares de além-mar’ na formação do Império Português. História, Ciência, Saúde (Manguinhos), V. 8, n. 3, 2001,

p. 591-611.

21 - Michel FOUCAULT. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 8 ed.. Petrópolis: Vozes, 199, p. 189.

22 - As Misericórdias de maior poder no Brasil, a do Rio de Janeiro e a da Bahia, foram os principais centros do

projeto colonizador português.

212

agregavam para a sua instalação e o estabelecimento de condições de funcionamento, para o que Arno e Maria José Wehling chamam a atenção:

“[...] os cargos administrativos das Misericórdias eram ocupados por pessoas de projeção social, além de serem muito disputados. Exigia-se para a sua investidura a apuração de “pureza de sangue”, pela qual eram excluídos aqueles que tivessem ascendentes judeus ou mouros até determinada geração”23.

E adiante os autores, ao destacarem o papel das Santas Casas na colônia, retomam a origem social dos seus dirigentes, chamando a atenção de que a tendência foi permitir a entrada como membros da entidade apenas a “nobres” ou àqueles que dessa condição se aproximassem, pela riqueza ou pelo prestígio social. Eles enfatizam:

“Na Colônia, as Misericórdias tiveram infl uência efetiva e ampla. Além de manter diversos hospitais, fi cavam responsáveis pelo serviço funerário – sem distinção de condição social –, pela alimentação e vestuário dos presos, pelo sustento ou auxílio a viúvas, órfãos, velhos e indigentes e pelo recebimento de crianças enjeitadas em sua “roda dos expostos”. Os recursos eram inteiramente privados e se originavam de subsídios de sócios ricos e legados testamentários. Esta situação fez com que, para aumentar seus rendimentos e movimentar o capital, as Misericórdias muitas vezes atuassem como entidades fi nanceiras, emprestando dinheiro a juros, sobretudo no século XVIII. A ausência de bancos no Brasil, como em Portugal, e a necessidade de crédito fi zeram com que os empréstimos das Misericórdias – embora às vezes proibidos – fossem muito procurados, embora nem sempre bem administrados”24.

Efetivamente, a Misericórdia foi, durante a fase colonial, um espaço de poder, status e fi dalguia, que organizava a administração da caridade nas cidades e vilas.

E os irmãos da Misericórdia eram os representantes da comunidade que tinham a condição econômico-fi nanceira de efetivamente fazer o atendimento das necessidades do serviço de Deus e atender as motivações da Coroa portuguesa. Era praxe colocar pessoas infl uentes, os “homens bons”, à frente da administração das Santas Casas. Pessoas abastadas do meio rural ou comerciantes do

23 - Arno WEHLING; Maria José C. de WEHLING. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

l994, p. 264.

24 - Idem, pp. 264-265.

213

meio urbano vinham a ser também as que compunham o quadro de doadores, os que promoviam os legados pios. Transformaram-se em beneméritos a serviço dos pobres e refrigério dos doentes. Assim, civis, militares e eclesiásticos foram seus provedores. Não poucos mordomos eram generais. Para além de serem homens de virtude, prudência e autoridade, deviam ter reputação. A eles cabia acudir com o “manto de amparo material” a todos que necessitavam de socorro em suas vicissitudes. O que é notório na política benefi cente praticada pelas Misericórdias é a fi sionomia do cristianismo medieval que promovia a caridade em troca do perdão dos pecados e, por consequência, a salvação dos que ajudavam os pobres. Nesse escopo, é evidente o ideário da lógica conservadora do projeto colonizador, em que a pobreza cumpriu diferentes papéis, seja político, social ou também religioso.

Sobre a formação dessa elite fi lantrópica no Brasil, o brasilianista Russell-Wood tem um estudo interessante, referência na historiografi a do tema. Chama atenção para o fato de que a renda da Misericórdia provinha sobretudo da caridade privada e de legados em forma de bens alienáveis. Ao estudar com afi nco a Santa Casa de Salvador, o mesmo autor pontua sua posição proeminente:

“Entre seus membros estavam os mais eloquentes cidadãos da Bahia. Por tradição, o Provedor era pessoa de posição social e fi nanceira sufi ciente para defender a irmandade contra a crítica e a intervenção por parte do conselho municipal, do arcebispo ou até mesmo do vice-rei. A participação no corpo de guardiães era aguerridamente disputada. Os nomes dos irmãos representavam um ‘Quem é quem’ não apenas na aristocracia rural e dos principais funcionários públicos, mas também dos mais importantes artesãos. [...] a irmandade era verdadeiramente representativa da sociedade baiana e da ideologia colonial”25.

E nas suas conclusões acerca da fi dalguia e da fi lantropia relacionadas com a história das várias Misericórdias espalhadas pelos lugares onde elas se instalaram, ele é enfático: a trajetória das Santas Casas esclarece as condições econômicas e sociais das respectivas comunidades que a sediaram.26 Isso signifi ca dizer que, sob a proteção real, a Santa Casa foi o espaço em que os mais abastados, exerceram sua caridade, assegurando assim, em nome do rei, a ordem colonial. Ao seu lado estavam as Câmaras Municipais.

25 - A. J. R. RUSSEL-WOOD,. Op. cit., 1981, p. 275.

26 - Idem, pp. 274-275.

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Leila Rocha afi rma que a Coroa, ao conceder à nobreza prerrogativas para a administração da Misericórdia, estava transferindo à fi dalguia a responsabilidade pelo fi nanciamento do exercício da assistência pública, que ela não tinha meios para prover.27 Ela reforça essa tese:

“Na maioria das vezes, essa elite econômica confundia-se com o poder político colonial e, portanto, independentemente da região a que pertencia a Santa Casa, nas provedorias revesavam-se, constantemente, capitães-mores, vice-reis, governadores, ministros de Estado, dignatários da Igreja e outros expoentes de destaque na economia colonial. Essa associação entre o poder econômico e a administração da Santa Casa atendia, principalmente, ao interesse da Coroa que, à distância e sem incorrer em gasto algum, transferia o ônus da assistência social às elites do mundo colonial”28.

Mas é interessante observar que tanto Mesgravis como Russell-Wood entendem que “ainda que fossem um dos pilares do Império Colonial Português, as Misericórdias também representavam uma contrapartida à exploração colonial.29

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da Misericórdia se confunde com a da consolidação da monarquia portuguesa, constituindo-se em pilar da estrutura, da largueza e do fortalecimento do seu Império Colonial. Através de suas Irmandades, acomodaram-se interesses das elites locais onde estiveram presentes.

As Santas Casas, no Brasil, fi zeram assistência pública sem ônus para o erário, disciplinaram mazelas sociais, incluíram degredados e pobres envergonhados, promoveram a inclusão da elite a favor dos excluídos e aliviaram almas de caridosos fi dalgos. Assim, ao assistir e articular os diferentes extratos da sociedade brasileira, elas constituíram-se em instrumento mantenedor da ordem colonial.

A assistência hospitalar que as Misericórdias prestavam foi, em muitos lugares, a única oferecida no Império Português, e por isso seu papel foi singular entre as irmandades, sobretudo no Brasil colonial.

27 - Leila ROCHA. Caridade e poder: a irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Campinas (1871-1888).

Dissertação de mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinhas, 2005, p. 18.

28 - IDEM, p. 30.

29 - IDEM, p. 21.b.

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É o que se pode observar com a assistência dada aos expostos, por exemplo. Ela desempenhava duplo papel: situava as crianças e jovens sem família no projeto colonizador e, de outro lado, tirava da Coroa o ônus de sustentação e proteção material dessas crianças.

A abrangência de sua atuação no tocante ao controle social, na dispersa sociedade colonial, ao cuidar da pobreza, submetida à Coroa portuguesa, a Santa Casa de Misericórdia, foi no Brasil um verdadeiro esteio da colonização e representante legítima e efi caz do poder e dos interesses da metrópole. Conjugou as necessidades de colonização, em que comércio e evangelização andaram juntos, sustentados por alianças com as elites locais. Promovendo a caridade, “como irmãos”, desoneraram a Coroa do custo da preservação da ordem − aliás, necessária para o sucesso da consecução do projeto colonizador.

Sob o manto da Misericórdia, uma rede de solidariedade se implementou, favorecendo a unidade territorial, e, através das obras de inserção social, acomodou tensões, organizando os espaços e as comunidades por onde irradiou a sua atuação no Brasil. E, no tempo presente, são visíveis as cidades que se fi zeram protegidas pelo manto protetor das Santas Casas.

Enfi m, costurar reminiscências das Misericórdias em Portugal e no seu Império Colonial, sobretudo no Brasil, é ressignifi cá-las como experiência histórica do medievo lusitano. Na sua colônia americana elas deitaram raízes, cumprindo papel signifi cativo de alicerce na conformação da futura nação e estado nacional brasileiro.

ISBN 978-85-62077-07-4

9 788562 077074


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