Date post: | 07-Jan-2023 |
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2. A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE AS PESSOAS COM
DEFICIÊNCIA
É fato que a realidade das pessoas com deficiência no
Brasil nunca foi fácil. Várias são as justificativas que o
Estado alega com o objetivo de se eximir da
responsabilidade que possui em relação a este grupo
vulnerável de pessoas. A bem da verdade, é que muitos
fecham os olhos para as pessoas com deficiência, as quais,
por consequência, se sentem assim, invisíveis.
A realidade das pessoas com deficiência no Brasil
ainda é, hoje, um dos maiores desafios para o Estado. Sabe-
se que as leis que deveriam garantir os direitos e o bem
estar dessas pessoas ainda não são aplicadas de forma
adequada e, constata-se, então, a dificuldade que tem o
poder público em colocar em prática as belas propostas
dessa legislação vigente em nosso País.
Em constante superação, o cidadão com deficiência não
descansa. Desde o momento em que vem ao mundo, este
indivíduo tenta provar a todos que é um cidadão capaz, seja
de estudar, de trabalhar ou, simplesmente, de entender as
questões que o envolvem. Fazer com que os “normais”
enxerguem a pessoa com deficiência como seu igual traz à
sociedade uma reflexão muito complexa sobre a inversão do
papel dos atores sociais, o que dificulta a inserção dessa
pessoa no meio em que vive. Ora, o que deveria ser de
responsabilidade do Estado passa a ser visto como uma
batalha que travam as pessoas com deficiência com a
sociedade para que esta os reconheça como diferentes e não
como desiguais.
Assim, a pessoa com deficiência auditiva, que traz,
por exemplo, uma deficiência invisível aos olhos, se
sentiria parte da sociedade, na qual convivem pessoas
diferentes, porém, com os mesmos direitos diante da Lei. O
papel do Estado é justamente o de dar a essas pessoas os
instrumentos necessários para que elas possam conviver com
sua deficiência e aceitá-la da melhor forma possível.
O Brasil, apesar de ter demorado anos para enfrentar a
obrigação que tinha para com as pessoas com deficiência,
vem criando legislações, aderindo a Convenções que visam
garantir os direitos desse grupo, conforme veremos mais
adiante de forma mais detalhada. Ocorre que, apesar dos
esforços, estes não tem se mostrado suficientes para
efetivar tais direitos, e, ainda, a grande necessidade de
se buscar mecanismos compensatórios para a efetivação
desses dispositivos está muito aquém do que se espera para
atingir resultados concretos.
Na esfera Constitucional, o primeiro documento que
abordou os direitos dos deficientes foi durante a vigência
da Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional n°12
de 17 de outubro de 1978 (BRASIL, 2004). Entretanto, os
direitos constantes nesta Emenda não foram incorporados ao
texto constitucional, uma vez que a mesma ficou apenas
“juntada” ao final da Constituição, sem manter qualquer
conexão com os demais direitos e, consequentemente, sem a
devida importância.
Os direitos da pessoa com deficiência começaram a ser
delineados com a promulgação da Constituição Brasileira de
1988. Nesta, o constituinte previu mecanismos que visassem
incluir o cidadão com deficiência na sociedade, tais como
vagas reservadas para deficientes, o benefício de um
salário mínimo caso a pessoa com deficiência seja carente,
dentre outros.
Contudo, apesar das garantias inovadoras, muitas delas
dependiam de leis que demoraram anos para serem criadas. Um
exemplo foi o direito à acessibilidade, que só se efetivou
com o advento da Lei n° 10.098 de 2000, ou seja, doze anos
depois da CF/88.
Em 25 de agosto de 2009, foi criado o Decreto n°
6.949/09, que dentre os demais decretos, é o único que tem
força de Emenda Constitucional, tendo sido aprovado pelo
Congresso Nacional, conforme o art. 84, inciso IV, da
Constituição, por meio do Decreto Legislativo n° 186, de 9
de julho de 2008, conforme o procedimento do § 3º do art.
5º da Constituição, a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo,
assinados em Nova York, em 30 de março de 2007.
Vale ressaltar o trecho de um artigo produzido por
Sérgio Coutinho para a Revista Jurídica Consulex que diz
que:
A referida Convenção foi produto de lutas demovimentos sociais de todo o Ocidente. Assim,
reflete diretamente as necessidades das pessoas comdeficiência. É bem diferente da perspectiva queadotara o Congresso Nacional brasileiro, que tentoupromulgar um Estatuto do Deficiente no ano passado.Não poderiam ter sucesso, uma vez que o estatutonão correspondia aos apelos dos movimentos sociais,cuja pressão impediu a votação. Até então, erapreciso lidar com cerca de 200 leis, com normas porvezes fragmentadas. Nem mesmo unidade terminológicaexistia. Falava-se em “portador de deficiência”,“portador de necessidades especiais”, “deficiente”,entre outros termos. A Convenção padronizou oconceito para “pessoa com deficiência”. É assim queencontra em seu art. 1°: [...]” (SÉRGIO COUTINHO.REVISTA JURÍDICA CONSULEX, 2008, p. 56).
E o Art. 1º demonstra o seu propósito com a criação da
Convenção:
Artigo 1 Propósito O propósito da presenteConvenção é promover, proteger e assegurar oexercício pleno e equitativo de todos os direitoshumanos e liberdades fundamentais por todas aspessoas com deficiência e promover o respeito pelasua dignidade inerente. (DECRETO Nº 6.949/2009)
Analisando o artigo, vê-se a necessidade do
reconhecimento de direitos das pessoas com deficiência,
assegurando assim a dignidade da pessoa humana. Ainda sob o
manto de tal preceito constitucional, percebe-se que o
legislador teve o cuidado de salientar os direitos
fundamentais basilares inerentes à lei – a liberdade, a
justiça e a paz no mundo, que vem, aliás, sendo discutidos
há décadas pelas Nações Unidas, direitos estes
imprescindíveis para a garantia destes, à igualdade da
pessoa com necessidades especiais e inerentes a todo ser
humano.
Contudo a Convenção não se preocupou apenas em
conceituar terminologicamente o que vem a ser “deficiente”
e tão somente seu propósito. Em seu Art. 2º a mesma esmiúça
as definições para termos conceituais do que seria
comunicação, adaptação razoável, dentre outros conceitos.
Logo, verifica-se que a Convenção teve o cuidado de
não deixar por conta da jurisprudência ou da doutrina
definir terminologicamente o que vem a ser deficiência
dentro de seu conceito ideológico, evidencia-se no texto a
preocupação com os parâmetros de acessibilidade do
deficiente e sua inserção na sociedade.
Esses termos merecem nossa atenção, uma vez que serão
encontrados com frequência no texto do Decreto. Por
exemplo, no item 2 do art. 14, a exigência de adaptação
razoável se refere a pessoas com deficiência que não podem
ser vistas com tratamento degradante, caso esta venha e ser
presa. A convenção faz alusão à discriminação em seu âmbito
penal, em que se verifica a necessidade de se salvaguardar
os direitos preservados ao deficiente, visto que o mesmo
necessita de um tratamento especial, dependendo de sua
deficiência.
O ordenamento jurídico agindo de forma coerente, no
que tange aos direitos humanos e com base na ótica das
nações civilizadas, optou por definir como crime a
discriminação contra a pessoa deficiente. No entanto, em se
tratando de discriminação, o Decreto deixa claro através de
seus artigos o significado de “discriminar” em razão da
deficiência, define ainda que só não será crime se a
diferenciação for em benefício da pessoa com deficiência, o
que não implica dizer que o deficiente seja obrigado a
aceitar tal benefício.
O Decreto n° 6.949/07, em seu preâmbulo traz consigo a
relevância dos princípios e diretrizes de políticas estão
contidos no Programa de Ação Mundial para as Pessoas
Deficientes e nas Normas sobre a Equiparação de
Oportunidades para Pessoas com Deficiência. Nota-se a
preocupação da Convenção com a inclusão do deficiente, de
fato e de direito e não apenas as que decorrem do texto
constitucional. É aí que se reconhece a importância de se
trazer questões relativas à deficiência, tendo uma melhor
precisão através de estudos e fundamentos, para se
encontrar formas adequadas com o intuito de favorecer a
inclusão do deficiente em toda sua amplitude na sociedade
em que vivemos. Ou seja, utilizar como base o princípio da
isonomia, que consiste em tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades
(ARISTÓTELES), reconhecendo com isto a diversidade das
pessoas que deixam de ser deficientes dentro de uma
concepção negativa de limitação, mas passam a ser
consideradas como pessoas diferentes, seja em seu ambiente
social, educacional, cultural e laboral, tendo assegurados
os diversos direitos pertinentes ao ser humano. A Convenção
frisa tal ponto na alínea “f” de seu preâmbulo:
Reconhecendo a importância dos princípios e dasdiretrizes de política, contidos no Programa deAção Mundial para as Pessoas Deficientes e nasNormas sobre a Equiparação de Oportunidades para
Pessoas com Deficiência, para influenciar apromoção, a formulação e a avaliação de políticas,planos, programas e ações em níveis nacional,regional e internacional para possibilitar maiorigualdade de oportunidades para pessoas comdeficiência. (DECRETO Nº 6.949/2009)
Não há dúvidas de que o Decreto n° 6.949/09 através de
sua efetivação denota a necessidade de se avaliar questões
relativas à deficiência no âmbito das preocupações sociais,
sobretudo no que diz respeito a estratégias relevantes para
um desenvolvimento sustentável que venham respaldar as
políticas públicas para a efetivação da legislação em
vigor, por meio de promoções, formulações e, sem perder o
foco principal que consiste em avaliar a aplicabilidade
dessas políticas, dos planos, dos programas e das ações a
nível nacional, regional e internacional, possibilitando
consequentemente uma maior igualdade de oportunidades para
as pessoas com deficiência.
Vale salientar que a maioria das pessoas com
deficiência vive em condições de pobreza, obrigada a lidar
com adversidades sociais e impactos negativos que esta
situação de precariedade causa ao desenvolvimento e
emancipação da pessoa deficiente, enfrentando barreiras de
toda ordem, seja no meio social, onde ainda é vista como
incapaz e vê-se aí a violação de seus direitos humanos em
uma esfera mundial, seja no seio de sua própria família que
não dispõe dos recursos adequados para sua integração na
sociedade. Sem falar no fato que a pessoa deficiente também
tem o direito de participar das decisões relativas a
programas políticos, sobretudo sobre assuntos que lhe estão
diretamente relacionados, oportunidade que na maioria das
vezes lhe é negada.
A Convenção reconhece a afirmação dos direitos humanos
e da liberdade fundamental para se ter a participação do
deficiente nos diversos âmbitos da sociedade atual,
resultando no fortalecimento de seu pleno pertencimento
social. Este é um significativo avanço do desenvolvimento
humano, social e econômico para um país, chegando com isto
a erradicação da pobreza, visto que, a pessoa convicta de
sua aceitação em seu meio social, torna a pessoa deficiente
autônoma e independente para tomar decisões e fazer suas
próprias escolhas.
Considerando que o direito a acessibilidade ao
trabalho e ao emprego tornou-se muito mais amplo e
detalhado após a Convenção, evidencia-se, atualmente, uma
nova leitura na legislação trabalhista após a convenção
brasileira.
Uma vez que, a ausência de acessibilidade é vista
neste dispositivo legal como uma forma de discriminação, é
punível na forma da lei, sendo condenável do ponto de vista
moral e ético.
Ainda tomando como base a acessibilidade, cada Estado
Parte é obrigado a promover a inclusão dos deficientes em
bases iguais com as demais pessoas, bem como disponibilizar
acesso a todas as oportunidades existentes para a população
em geral.
Não se pode avaliar o ser humano num total e sim em
sua diversidade. É nesse sentido que se ressalta a evolução
conceitual de deficiência do que resulta um olhar
diferenciado em relação às pessoas com necessidades
especiais e uma melhor apreciação das barreiras que elas
enfrentam e que são oriundas da falta de atitude e
adequação ambiental.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo é, até então, o
único Decreto brasileiro com força de Emenda
Constitucional, uma vez que se submeteu ao procedimento
previsto na Emenda Constitucional n. 45 de 2004 que
instituiu o §3° do Art. 5° da CF/88.
Segundo dados do censo demográfico do IBGE de 2000, há
uma estimativa de 24,5 milhões de brasileiros e brasileiras
com deficiência, neste sentido, a Convenção é um grande
desafio, vencido, para garantir o direito das pessoas com
deficiência, no qual foram redigidos cinquenta artigos que
tratam dos direitos civis, políticos, econômicos, culturais
e sociais, todos revestidos com o que se faz necessário e
indispensável para a emancipação desses cidadãos.
Assim, após muita luta e discussão conseguiu se
efetivar uma lei que abrangesse as necessidades do
deficiente, o amparo de seus direitos, seja no âmbito da
saúde, educação, lazer, cultura, trabalho entre outros
direitos descritos no art. 5º da CF e seus incisos.
4.1 . Ações Afirmativas
Sabe-se que a criação das ações afirmativas deu-se
através de um longo processo histórico. Não raro ficarmos
assustados quando ouvimos falar das atrocidades que líderes
do nosso passado foram capazes de praticar por causa de
posturas preconceituosas em detrimento da diversidade como
algo que deveria enriquecer a convivência social por meio
das diferenças. Ocorre que, antigamente, essa diversidade
inferia conceitos de desigualdade e era uma forma de
enxergar o outro como menor em direitos e em dignidade.
Na verdade, durante muitos anos da nossa história, a
dignidade da pessoa humana foi violada de tal maneira, que
passou a ser mero objeto de aspirações políticas e
religiosas de governantes que ficavam acobertados pela
soberania estatal.
Dirley da Cunha Júnior observa que:
A dignidade da pessoa humana assume relevo comovalor supremo de toda sociedade para o qual sereconduzem todos os direitos fundamentais da pessoahumana. É uma “qualidade intrínseca” e distintivade cada ser humano que o faz merecedor do mesmorespeito e consideração por parte do Estado e dacomunidade, implicando, neste sentido, um complexode direitos e deveres fundamentais que assegurem apessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunhodegradante e desumano, como venham a lhe garantiras condições existenciais mínimas para uma vidasaudável, além de propiciar e promover suaparticipação ativa e co-responsável nos destinos daprópria existência e da vida em comunhão com osdemais seres humanos. (CURSO DE DIREITOCONSTITUCIONAL, 2011, p.527)
De acordo com o autor em questão, o nível de
desenvolvimento de um país é medido pela expansão dos
direitos fundamentais e como a dignidade da pessoa humana é
um dos princípios elencados no rol dos direitos
fundamentais, esta também se torna um parâmetro avaliador
para o desenvolvimento de um país. No que concerne a
dignidade da pessoa humana, está previsto no artigo 1°,
inciso III da CR, que consagra o valor da proteção ao ser
humano contra tudo o que lhe possa levar ao desapreço.
A dignidade é o pressuposto de sua própria condição,
portanto, qualifica a pessoa em uma categoria acima de
qualquer questionamento, e justamente por esta razão, mesmo
nos casos peculiares, como os deficientes auditivos, não se
pode falar em exclusão.
Levando em consideração o referencial da dignidade da
pessoa humana, este é um elemento fundamental da vida, uma
forma de poder-dever, no qual todos os cidadãos, ao mesmo
tempo, possuem deveres em relação aos demais e à
organização política legisladora. Neste sentido, sabe-se
que o ser humano é digno e autônomo, independentemente de
sua deficiência, devendo ser conferido a ele a prerrogativa
de “ser” e “estar” no mundo sem que sofra qualquer
discriminação, devem ser aqui entendidos os direitos do
titular de direitos fundamentais em face do Estado a que
este o proteja contra intervenções de terceiros. (TEORIA
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, 2011)
Trata-se de um atributo que todos possuem,
independentemente de qualquer requisito ou condição, seja
ele referente à nacionalidade, sexo, religião, posição
social, etc. Respeita-se então a premissa de que a
dignidade é um bem indisponível e de valor constitucional
supremo e cujo fundamento nada mais é do que o próprio
homem.
Neste contexto, juntamente com outras iniciativas, a
Declaração Universal dos Diretos Humanos de 1948 trouxe a
necessidade do reconhecimento do direito de igualdade entre
os homens. No entanto, isto não era suficiente. Não
bastaria para tentar apagar os anos de sofrimento tão
somente a garantia deste direito. A sociedade já se
encontrava em débito.
Havia pessoas, como estes grupos, que sofreram por
causa de um processo histórico no qual foram obrigados a
observar e a aceitar o aniquilamento de seus direitos, bem
como de cidadãos, que por sua própria natureza, eram
socialmente vulneráveis como é o caso dos deficientes e que
precisavam de atenção especial.
Assim, percebeu-se a necessidade da criação de
estratégias promocionais, capazes de compensar e acelerar
este processo de igualdade, as chamadas ações afirmativas,
que visam, sobretudo, o direto à igualdade: “Todos são
iguais perante a lei.” Este é o conceito tradicional que
temos do que seja igualdade formal. No entanto, para
entendermos melhor o que seria a igualdade é necessário
analisá-la sobre seu aspecto formal e material.
Explica Flavia Piovesan (2011, p. 252):
Destacam-se, assim, três vertentes no que tange àconcepção da igualdade: a) igualdade formal,reduzida à formula “todos são iguais perante a lei”(que ao seu tempo foi crucial para abolição de
privilégios) b) igualdade material, correspondenteao ideal de justiça social e distributiva(igualdade orientada pelo critério socioeconômico)c) a igualdade material, correspondente ao ideal dejustiça enquanto reconhecimento de identidades(igualdade orientada pelos critérios gênero,orientação sexual, idade, raça, etnia e outros).
Desta forma, o Estado tem que garantir através de
medidas capazes de combater as desigualdades
socioeconômicas a redistribuição da economia. Deve, também,
o Estado, propor meios efetivos que visem o combate das
injustiças culturais, bem como a eliminação das concepções
discriminatórias e do preconceito. (PIOVESAN, 2011)
Para Boaventura de Souza Santos:
[...] temos o direito a ser iguais quando a nossadiferença nos inferioriza; e temos o direito a serdiferentes quando a nossa igualdade nosdescaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdadeque reconheça as diferenças e de uma diferença quenão produza, alimente ou reproduza asdesigualdades. (SANTOS apud PIOVESAN, 2011, p. 253)
Nota-se que a igualdade material dá concretude à
concepção de igualdade formal, uma vez que a primeira é o
resultado da segunda. Assim, a igualdade material analisa
as diferenças, bem como os mecanismos que visam afirmar a
igualdade e aceitação desta diversidade.
Neste sentido:
[...] as pessoas portadoras de deficiência têm osmesmos direitos humanos e liberdades fundamentaisque outras pessoas e que estes direitos, inclusiveo de não serem submetidas à discriminação com basena deficiência, emanam da dignidade e da igualdadeque são inerentes a qualquer ser humano. (Fragmento
da Convenção da Guatemala, apud FAVERO, 2004,p.35).
A inclusão de pessoas com deficiência, desta forma,
pressupõe iniciativas do Estado que possibilitem o
exercício do direito que elas possuem à acessibilidade.
No que se refere às ações afirmativas para as pessoas
com deficiência, esse tipo de política vem sendo também um
meio através do qual se tenta compensar a desvantagem que
as pessoas com deficiência possuem no âmbito social. Para
tanto, a CF/88 em seu Art. 37, VIII, garante de forma
expressa a reserva de vagas para deficientes públicos na
Administração Pública.
Nossos tribunais já firmaram entendimento no seguinte
sentido:
Ementa: Sendo o art. 37, VII, da CF, norma deeficácia contida, surgiu o art. 5º, § 2º, do novelEstatuto dos Servidores Públicos Federais, a todaevidência, para regulamentar o citado dispositivoconstitucional, a fim de lhe proporcionar aplenitude eficacial.[...] . Dentro dessesparâmetros, fica o administrador com plenaliberdade para regular o acesso dos deficientesaprovados no concurso para provimento de cargospúblicos, não cabendo prevalecer diante da garantiaconstitucional, o alijamento do deficiente por nãoter logrado classificação, muito menos por recusaro decisum afrontado que não tenha a normaconstitucional sido regulamentada pelo dispositivoda lei ordinária, tão-só, por considerar não terela definido critérios suficientes. Recurso providocom a concessão da segurança, a fim de que sejaoferecida à recorrente vaga, dentro do percentualque for fixado para os deficientes, obedecida,entre os deficientes aprovados, a ordem declassificação se for o caso. (RMS 3.113-6/DF, 6ªT., 06.12.1994, cujo Relator foi o Min. PedroAcioli)
Apesar da Lei n° 8.112/90 que garante o direito destas
pessoas em ingressarem na Administração Pública, o que se
nota é a falta de fiscalização e de instrumentos capazes de
garantir a aplicação do princípio da acessibilidade à
pessoa com deficiência em concursos públicos. Este fato
ocorre, por exemplo, com a pessoa com deficiência auditiva
que necessita de uma prova em LIBRAS para poder concorrer
em igualdade de condições com os demais candidatos, como é
estipulado pela Recomendação n° 001, de 15 de julho de 2010
do Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência, o que não
ocorre.
3. A APLICABILIDADE DAS LEIS E A REALIDADE DO SURDO NO
BRASIL
Existem grandes avanços legislativos no Brasil que
visam garantir os direitos à educação, à saúde e à
informação do deficiente auditivo. Podemos fazer referência
a algumas leis mais recentes que tratam acerca do
reconhecimento de LIBRAS como meio legal de comunicação,
bem como sobre os mecanismos a serem realizados para a
efetivação e garantia destes direitos.
A Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, por exemplo,
reconhece a LIBRAS como sistema linguístico em seu Art. 1°,
§ único:
Entende-se como Língua Brasileira de Sinais –Libras a forma de comunicação e expressão, em que osistema linguístico de natureza visual-motora, comestrutura gramatical própria, constitui um sistemalinguístico de transmissão de ideias e fatos,oriundos de comunidades de pessoas surdas doBrasil.
O parágrafo segundo deste mesmo artigo também impõe o
dever ao poder público em geral em garantir formas
institucionalizadas de apoio ao uso e à difusão da LIBRAS.
Posteriormente, mais precisamente em 22 de dezembro de
2005, foi criado o Decreto n° 5.626 com o intuito de
regulamentar a Lei nº 10.436/02. Este decreto trouxe vários
deveres aos órgãos públicos, bem como aos entes
fornecedores de serviços públicos. Dentre eles, podemos
destacar a obrigatoriedade da LIBRAS ser inserida como
disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de
professores para o exercício do magistério, em nível médio
e superior, a prioridade dos surdos na seleção para
formação de docentes em LIBRAS, o dever dos entes federais
em garantir, de forma obrigatória, o acesso à comunicação,
à informação e à educação nos processos seletivos, nas
atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em
todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a
educação infantil até a superior, assim como diversas
outras medidas que devem ser observadas pelos órgãos da
Administração Pública Estadual, Municipal e do Distrito
Federal, direta e indireta.
Além de todas estas imposições regidas pelo Decreto n°
5.626/05, vale ressaltar o disposto no art. 26 que trata do
apoio ao uso e difusão da LIBRAS nos seguintes termos:
Art. 26. A partir de um ano da publicação desteDecreto, o Poder Público, as empresasconcessionárias de serviços públicos e os órgãos daadministração pública federal, direta e indiretadevem garantir às pessoas surdas o tratamentodiferenciado, por meio do uso e difusão de LIBRAS eda tradução e interpretação de Libras - LínguaPortuguesa, realizados por servidores e empregadoscapacitados para essa função, bem como o acesso àstecnologias de informação, conforme prevê o Decretono 5.296, de 2004.§ 1o As instituições de que trata o caput devemdispor de, pelo menos, cinco por cento deservidores, funcionários e empregados capacitadospara o uso e interpretação da Libras. (GRIFO NOSSO)
Ao analisar este artigo percebe-se que o legislador
visou garantir o direito fundamental de qualquer cidadão
que é o direito à informação e à comunicação. Merece
destaque este artigo porque, como veremos posteriormente,
no resultado de nossa pesquisa de campo, quando o surdo é
questionado acerca das dificuldades que enfrenta no seu
cotidiano esta é a que aparece, sem exceção, em todas as
respostas como sua principal preocupação.
Porém, constata-se que, apesar da normatização que
progride cada vez mais, não existem instrumentos eficazes
de fiscalização para se efetivar a aplicação das políticas
públicas, o que inevitavelmente gera o descumprimento
dessas obrigações. Assim, é comum uma pessoa com
deficiência auditiva se dirigir a um local como, por
exemplo, ao aeroporto e não ter qualquer atendimento
diferenciado, tendo que usar de toda a sua capacidade
perceptiva para tentar entender o que lhe é dito e, por sua
vez, tentar se comunicar, situação esta que não pode ser
enxergada com tanta normalidade, pelo menos não poderia
mais ocorrer nos tempos em que vivemos.
Como bem salienta a autora Flávia Piovesan (2009,
p.361,362):
Na opinião das entidades representativas dosdireitos das pessoas com deficiência, a falta deimplementação deve-se ao abismo entre as propostasde governo e sua execução, seja por motivospolíticos, seja pela ausência de capacitação esensibilidade dos agentes estatais incumbidos deexecutá-la. Além da ausência de implementação,outros problemas foram indicados pelas associações:a lentidão na regulamentação das leis; odescumprimento das decisões judiciais; a omissão enegligência com relação às pessoas com deficiência;e o jogo de “empurra-empurra” de responsabilidadeentre a União, os Estados e os Municípios. [...] omaior devedor para a causa das pessoas comdeficiência é o Estado, na medida que não cumprecom as atribuições que lhe são devidas e que nãoexerce seu poder de fiscalização.
A pesquisa de campo em questão foi justamente
elaborada com o intuito de entender melhor a realidade das
pessoas com deficiência auditiva. Entrevistamos dez pessoas
surdas de diferentes idades que responderam a perguntas que
trataram, em linhas gerais, sobre as dificuldades que
enfrentam no seu dia-a-dia, bem como sobre o acesso a
serviços públicos básicos como educação e saúde, assim como
suas perspectivas no mercado de trabalho.
Desta forma, para poder visualizar o resultado dessa
pesquisa, foi desenvolvido um gráfico que representa em
níveis percentuais o número de surdos entrevistados que têm
acesso aos direitos acima mencionados.
Quadro 1 – Os direitos fundamentais do surdo:
Fonte: Dados da pesquisa (2012)
Ao analisarmos este gráfico percebemos que a maior
dificuldade da pessoa com deficiência auditiva é o acesso à
informação, dentre as dez pessoas que responderam às
perguntas todas foram unânimes em afirmar que possuem muita
dificuldade de comunicação nas escolas, nas faculdades e
que a falta de intérprete de LIBRAS nesses ambientes torna
a compreensão ainda mais difícil. Aduzem que a ausência de
intérpretes também ocorre nos hospitais e lugares que
prestam serviço ao público e que, por isso, não conseguem
se comunicar com as pessoas, causando assim um isolamento
prejudicial ao exercício da cidadania pela pessoa surda.
Das nove pessoas que afirmaram terem acesso à
educação, cinco terminaram o ensino superior e quatro
concluíram o ensino médio, mas todas alegaram a falta de
intérprete de LIBRAS e a dificuldade à informação nas
escolas e universidades, informando ainda que estudaram,
com muitas dificuldades, pois nem as aulas de português têm
metodologia diferenciada para surdos. Ou seja, a educação
bilíngue é inexistente inviabilizando sobremaneira a
efetivação da escola inclusiva no Brasil. Sabe-se que o
governo discute o papel das escolas especializadas na
sociedade e tem a intenção de inserir as pessoas surdas em
escolas da rede pública de ensino. Pergunta-se, então, como
enfrentar esse desafio se essas escolas não estão
preparadas para receber o aluno surdo.
Dentre as pessoas surdas entrevistadas, três delas
trabalham: uma trabalha da Universidade Federal do Pará
como professora de LIBRAS, outra é assistente de
administração e a terceira é oficial de justiça. Comentaram
também que têm muita dificuldade para encontrar emprego
pelo fato de as empresas discriminarem os surdos, uma vez
que não sabem como se comunicar com as pessoas surdas.
Com relação aos surdos que afirmam ter acesso à saúde,
todas disseram não conseguir se comunicar com os médicos,
tendo que escrever, fazer gestos para serem compreendidas.
É pertinente observar, nesse contexto, a afirmação de uma
das pessoas que participou dessa pesquisa de campo quando
diz que os surdos necessitam de acompanhamento psicológico,
pois se sentem muito sós e acabam adquirindo um quadro de
depressão acentuado.
As respostas escritas das pessoas surdas entrevistadas
revelaram que quase todas apresentam bastante deficiência
na língua portuguesa escrita, ou seja, oito delas têm
bastante dificuldade para escrever, a ponto de não se
compreender com clareza o sentido do texto escrito, como
podemos observar em algumas respostas transcritas abaixo:
Quadro n° 1: Perguntas e respostas – Questionário
PERGUNTAS RESPOSTASQuais dificuldades você encontra
quando postula a uma vaga de
emprego?
“Pouco difícil emprego. Efazer concurso aprovação emesma difícil comunicaçãofuncionários, eu tentarpessoas aprender libras efalar devagar ou escrever”
Em termos gerais, fale comovocê se sente enquanto cidadãosurdo, bem como quais asdificuldades mais comuns quevocê encontra na sua vida, noseu dia-dia.
“os surdo ficando invejar pq eutavamta inteligente ai agora tofraco? pq os surdos emclamandocomigo ai eutavoa odiava todos.por isso surdos invejar,difildade.”
Fonte: Dados de pesquisas.
A realidade dos surdos foi bem retratada por um dos
entrevistados que domina muito bem a língua portuguesa e
fez uma observação que, embora triste, é de relevante
importância para este trabalho:
Vc terá mais exito se as suas perguntas foremfilmadas em libras os surdos tem vergonha de
responder o questionário pq sabem que não dominambem a lingua portuguesa e isso é um trauma muitogrande muitos preferem viver a margem dasociedade ouvinte e se confinar a nichos onde soconvivem surdos com identidades e culturasproprias, é incrivel como eles dominam atecnologia a seu favor se vc filmar vao responderde modo filmado com atraves de suas webcans.A lingua portuguesa ou na expressão deles“português” é simbolo de opressao e fracasso paraeles.1
Constatamos, diante dessa realidade, a necessidade
latente de se estabelecer mecanismos de efetivação das
leis já existentes no Brasil e aplicar, assim, as
políticas públicas para a inserção2 do surdo na sociedade,
permitindo com que as pessoas surdas possam ter acesso à
saúde, à educação e ao exercício de uma vida digna, único
caminho para dar–lhe a dignidade a qual tem direito, como
qualquer cidadão brasileiro. Afinal, não há mais espaço
para tanto desamparo nos dias de hoje.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da realização deste estudo, notou-se que a
problemática da falta de aplicabilidade das políticas
públicas para a inserção do surdo na sociedade brasileira
não se encontra na regulamentação e nem no reconhecimento
normativo das garantias dos direitos das pessoas com1 Informação transcrita na integra, prestada por um dos entrevistadoscorrespondente a pesquisa efetuada, preservado o anonimato;2O surdo não é sequer excluído porque nunca foi incluído, simplesmente é esquecido.
deficiência auditiva e, sim, na ausência de instrumentos
que possam dar efetividade a estes dispositivos.
Mediante a tais frustrações, o cidadão deficiente foi
lutando cada vez mais pelo seu espaço na sociedade, sempre
em busca da efetivação dos seus direitos.
Muito se fala nos direitos e garantias fundamentais
dos surdos, haja vista que estes nem sempre são efetivados
de fato. O que ocorre é que não basta apenas elaborar leis
perfeitas atribuindo-lhes força constitucional, se estas
não são utilizadas. Neste sentido, há a necessidade da
presença do Estado para garantir e viabilizar o direito
dos surdos na sociedade, entretanto, percebe-se que, cada
vez mais, este se afasta de sua responsabilidade para com
essa minoria.
Vale ressaltar a grande importância da inserção e do
acesso, do surdo, à comunicação com pessoas em uma
sociedade de ouvintes. Ademais o fato de o direito à
informação se constituir em uma garantia constitucional,
implica dizer que trata-se de um direito imprescindível
para o exercício de uma vida digna ao pleno exercício da
cidadania.
Assim, seria inaceitável permanecer inerte diante de
latentes casos discriminatórios contra o surdo na
sociedade. Na tentativa de efetivar sua inclusão, houve a
implantação de novas leis, decretos e emendas
constitucionais que ratificaram os direitos do surdo, tais
como o Decreto 6949/09 e o Decreto 5626/05 que foram
vistos neste trabalho. No entanto, esses avanços
legislativos não foram suficientes para garantir a tutela
efetiva dos direitos dos surdos, estes ainda encontram-se
desamparados.
Neste sentido, todas as pessoas surdas entrevistadas
deram sugestões de meios que facilitariam o seu dia-a-dia,
como, por exemplo, a imprescindibilidade de intérprete de
LIBRAS nas escolas, nos locais públicos, nas
universidades, a adesão sistemática à legenda nos
programas de televisão, a efetivação da escola bilíngue
para surdos com a infraestrutura adequada para uma
educação de qualidade, bem como a criação de cotas.
A nação cumpriu seu papel republicano ao reconhecer a
LIBRAS como meio legal de comunicação e expressão de mais
de oito milhões de surdos brasileiros, mas esse
reconhecimento só atingirá seu fim democrático se as
políticas brasileiras da educação nacional encontrarem
mecanismos para aplicar as leis de forma concreta,
inserindo a LIBRAS no currículo das escolas públicas,
dentro da perspectiva de uma educação bilíngue, retirando
assim os surdos do isolamento linguístico no qual se
encontra sua grande maioria. Caso contrário, não é
possível vislumbrar a possibilidade de um cidadão surdo
exercer seus direitos com plenitude, lutar pelas suas
causas, ser ouvido e se inserir de fato e de direito na
sociedade.