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Alunos e Professores da EJA

Date post: 14-Mar-2023
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1 ALUNOS E PROFESSORES DA EJA Sonia Carbonell Quem são os alunos da Educação de Jovens e Adultos? Na Educação de Jovens e Adultos encontramos indivíduos das mais diversas origens. Mesmo apresentando uma certa homogeneidade do ponto de vista sócio- econômico, eles configuram um grupo culturalmente heterogêneo, pessoas em que se estampam as mais ricas matizes da nossa brasilidade. Dentro de uma mesma sala convivem alunos de diferentes idades e etnias, em múltiplas combinações fisionômicas, homens e mulheres com belezas peculiares, não só nas aparências, mas também nos costumes, nos modos de ser, nas experiências de vida, nos traços culturais, nas preferências culinárias ou musicais; enfim, na EJA é onde se avizinha gente do centro com gente da periferia, gente do litoral com gente do sertão, compondo belos quadros da pluralidade cultural do nosso país. A heterogeneidade presente no conjunto de alunos, no entanto, aponta para a singularidade de cada um. A cada experiência vivida corresponde um indivíduo absolutamente único, a cada enfrentamento de problemas na vida familiar ou no trabalho decorre um saber idiossincrático, um modo de ver e de se relacionar com o mundo inteiramente pessoal. Para efeitos de classificação, separamos os estudantes da EJA em dois grupos: os adultos maduros e os jovens adultos. Cada agrupamento, apesar de ser totalmente heterogêneo em seu interior, apresenta características próprias que o diferenciam do outro. 1. OS ADULTOS MADUROS Esse conjunto é constituído por pessoas mais experientes, em média acima dos trinta anos. A maioria já tem filhos, muitos têm netos. Os adultos maduros transitam pelo mercado de trabalho e, apesar das crises econômicas brasileiras, muitos deles hoje desempenham profissões consolidadas. Os adultos maduros permaneceram afastados da sala de aula há mais tempo que os jovens. Grande parte deles viveu sua infância em zonas rurais empobrecidas, onde
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ALUNOS E PROFESSORES DA EJA

Sonia Carbonell

Quem são os alunos da Educação de Jovens e Adultos?

Na Educação de Jovens e Adultos encontramos indivíduos das mais diversas

origens. Mesmo apresentando uma certa homogeneidade do ponto de vista sócio-

econômico, eles configuram um grupo culturalmente heterogêneo, pessoas em que se

estampam as mais ricas matizes da nossa brasilidade.

Dentro de uma mesma sala convivem alunos de diferentes idades e etnias, em

múltiplas combinações fisionômicas, homens e mulheres com belezas peculiares, não só

nas aparências, mas também nos costumes, nos modos de ser, nas experiências de vida,

nos traços culturais, nas preferências culinárias ou musicais; enfim, na EJA é onde se

avizinha gente do centro com gente da periferia, gente do litoral com gente do sertão,

compondo belos quadros da pluralidade cultural do nosso país.

A heterogeneidade presente no conjunto de alunos, no entanto, aponta para a

singularidade de cada um. A cada experiência vivida corresponde um indivíduo

absolutamente único, a cada enfrentamento de problemas na vida familiar ou no

trabalho decorre um saber idiossincrático, um modo de ver e de se relacionar com o

mundo inteiramente pessoal.

Para efeitos de classificação, separamos os estudantes da EJA em dois grupos: os

adultos maduros e os jovens adultos. Cada agrupamento, apesar de ser totalmente

heterogêneo em seu interior, apresenta características próprias que o diferenciam do

outro.

1. OS ADULTOS MADUROS

Esse conjunto é constituído por pessoas mais experientes, em média acima dos

trinta anos. A maioria já tem filhos, muitos têm netos. Os adultos maduros transitam

pelo mercado de trabalho e, apesar das crises econômicas brasileiras, muitos deles hoje

desempenham profissões consolidadas.

Os adultos maduros permaneceram afastados da sala de aula há mais tempo que

os jovens. Grande parte deles viveu sua infância em zonas rurais empobrecidas, onde

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não eram raros os prédios escolares improvisados, onde o trabalho na roça se impunha

precocemente como necessidade vital e a vida impingia uma série de dificuldades a

quem estudasse. Os depoimentos a seguir, elucidam alguns desses reveses:

A minha primeira escola foi o Mobral, pois, na minha infância,

trabalhava na roça com meu pai e meus dois irmãos. Longe da

nossa casa morava Dona Severina, professora do Mobral, que

lecionava na sua própria casa através do rádio. Ela, mais outros

voluntários, imploravam aos pais que deixassem os filhos serem

alfabetizados. O caminho até a casa dela era longo e escuro de

meter medo. (...) Mesmo assim eu gostava de ir à escola, porque a

professora nos oferecia coalhada. A luz da casa da professora era

com lamparina de querosene.

Francinete

A escola tinha duas salas, e uma sala era usada para aula e a outra

como cozinha, ou seja, onde se fazia a merenda. O momento que eu

adorava era a hora da merenda porque, no verão, nem sempre tinha

o que comer em casa. Então, ia para a escola pensando na merenda.

(...) Fiquei por muito tempo estudando nessa escola e não saía da

segunda série porque, quando chegava o inverno, parava de estudar

e ia trabalhar na roça.

Edileide

Uma boa parte desses alunos ainda carrega uma imagem da escola construída e

referenciada em sua passagem anterior por ela. Geralmente, essas representações

correspondem a um modelo tradicional de sala de aula, ou seja, um lugar onde

predominam aulas expositivas, com pontos copiados da lousa, em que o professor é o

único detentor do saber e transmite conteúdos que são recebidos passivamente pelos

estudantes. Às vezes, os mais velhos se mostram resistentes a uma concepção educativa

que os coloca como protagonistas do processo pedagógico, que espera deles práticas

ativas de aprendizagem.

Os alunos maduros geralmente demonstram um grande interesse pelo

conhecimento escolar e reservam um afeto reverencial ao professor. Nas aulas, cultivam

um clima de solidariedade, de ajuda mútua e apreço pelas situações de aprendizagem,

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refletindo os esforços que fazem para se manterem aprumados depois de longas

jornadas de trabalho.

2. OS JOVENS ADULTOS

Os jovens adultos que estudam na EJA, por sua vez, têm idades acima dos

dezesseis anos. A grande maioria deles trabalha, ou já executou algum tipo de labor, e

não são raros os que já constituíram família. Com um ritmo de aprendizagem

geralmente mais rápido do que o aluno maduro, o jovem revela também maior traquejo

com os procedimentos escolares. Muitos sofreram exclusão recente da escola regular.

Grande parte revela uma baixa auto-estima, alguns apresentam atitudes de indisciplina.

Suas representações da escola são fruto dessas passagens pelos cursos regulares, muitas

vezes traduzidas por lembranças de salas de aula lotadas e ruidosas.

Mauro, dezenove anos, motoboy, expõe como descobriu a importância da

escolarização:

Quando eu era criança, não suportava a escola e achava que ali eu

não aprenderia nada; estava perdendo tempo... Mas, vejo, hoje, que

estava muito enganado e aprendi que se tivesse freqüentado a

escola não teria que sofrer tanto agora: trabalhar e estudar não é

fácil.

O meu professor da primeira série era muito legal e sempre nos

advertia dizendo: “Estude, pois um dia vocês vão precisar!” Mas

aqueles avisos não passavam pelas nossas cabeças. Num lugar

onde só tinha roça, no meio do mato?! Então, eu me perguntava:

“Pra quê estudo neste lugar se a única vez que usamos a escrita é

pra assinar o nome, na época de eleição?”

(...) Estou na EJA há algum tempo, não aprendi tudo o que gostaria,

principalmente o Português correto, mas, se tudo der certo, um dia,

meus filhos terão orgulho de seu pai que, com todas as dificuldades,

conseguiu completar os estudos, embora tendo que interrompê-los

várias vezes.

Atualmente, os jovens, e mesmo os adolescentes, constituem presença marcante

nos cursos de EJA. Expulsos do sistema regular, eles migram para a Educação de

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Jovens e Adultos compondo grupos sociais que valorizam sobremaneira o convívio no

espaço escolar, tornando a sociabilidade uma questão central em sua escolarização.

Muitas vezes, privados de outros espaços de convivência social, esses moços e moças

esperam encontrar na escola não só um lugar para encontros entre os seus pares, como

também um território para práticas e manifestações culturais, das quais as diversas

juventudes brasileiras são representantes.

3. OS SIGNIFICADOS DA ESCOLARIZAÇÃO

Tanto para o jovem, quanto para o mais experiente, uma forte razão para a

procura pela educação formal é a busca por um reconhecimento social. Para esses

sujeitos, o letramento constitui um valor e dominar o conhecimento veiculado pela

escola torna-se uma forma de sentir-se incluído socialmente.

Com bastante freqüência, esses estudantes manifestam uma consideração

elevada pela instituição escola. As palavras de Maria Lima, estudante da EJA,

confirmam isto:

As atividades oferecidas pela escola são objetivas e servem para

nos mostrar o mundo que existe e que às vezes nem nos damos

conta de que ele existe. Como por exemplo, o mundo da arte, da

música, da escrita, da natureza, da felicidade e muitos outros que

passamos a conhecer por meio da escola. (...) A escola é como uma

mãe, que ensina o filho o caminho por onde ele deve andar para

obter bons resultados, conquistas, realizações e ser feliz.

A volta à escola não representa um processo fácil para o sujeito. Consiste, quase

sempre, em uma decisão que demora em ser tomada, pois exige grande abertura interna,

uma transformação radical nas relações familiares e profissionais, demanda na

reestruturação do dia-a-dia, enfim, trata-se de um projeto de vida.

Segundo a Proposta Curricular para Jovens e Adultos (MEC 2002, p. 95): “o que

está em questão é a ampliação das possibilidades de participação social de um grupo de

cidadãos cuja cidadania encontra-se comprometida. O trabalhador adulto, não sendo

uma criança, não volta para a escola para ‘retomar uma trajetória escolar interrompida’,

mas para reconstruir uma trajetória escolar em busca de conhecimentos significativos

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nessa sua etapa da vida, em condições diferentes das existentes no momento em que ele

interrompeu seus estudos.”

É preciso reconhecer que esses estudantes despendem um esforço grande para

retomar e manter os estudos, para conseguir concentrar-se em uma sala de aula após

longas jornadas de trabalho. Muitos desistem e retornam várias vezes ao longo desse

processo.

Edmilson, baiano, de origem rural, relata porque retomou os estudos depois de

adulto:

Depois de alguns anos, mudei para São Paulo à procura de

melhores condições de vida, pois na minha cidade a situação era

precária. Assim que cheguei comecei a trabalhar e só depois de

passados dez anos fora da escola foi que resolvi voltar a estudar,

pois percebi que a tecnologia a cada dia que passa atualiza-se muito

mais e com muita rapidez, e o mercado de trabalho exige cada vez

mais melhor qualificação. Foi difícil voltar para a escola, pois tive que

‘brigar’ com meus patrões para reduzirem uma hora de trabalho. No

entanto, consegui com muita luta e garra.

Outro fator que contribui significativamente para a volta aos estudos é,

inegavelmente, aquele relacionado à obtenção de uma melhor inserção no mercado de

trabalho. No Brasil globalizado a escolarização tem aumentada a sua importância ao

exigir um trabalhador que disponha de conhecimentos tecnológicos e científicos, que

seja criativo, que saiba comunicar-se, enfim, que tenha competências para sobreviver à

complexidade dos processos de produção e à vulnerabilidade do mercado de trabalho.

Adriano e Hercílio voltaram a estudar porque sentiram necessidade de

atualização:

Parei de estudar para trabalhar e sustentar-me, mas senti muita

dificuldade de entendimento do mundo no dia-a-dia. E por isso

retornei aos estudos.

Adriano

(...) Fiquei quase trinta anos sem sentar-me em um banco escolar. O

que praticamente obrigou-me a retomar os estudos foram as

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dificuldades que o homem atual enfrenta para conseguir uma melhor

colocação no mercado de trabalho.

Hercílio

A presença de jovens, adultos e idosos numa mesma sala de aula conforma um

cenário fértil para as situações de ensino e aprendizagem. A diversidade de gerações, de

experiências de vida, de valores, de tradições culturais, de maneiras de falar, de visões

de mundo, são aspectos que se somam e podem gerar estratégias fecundas, se forem

trabalhados positivamente, se as diferenças não forem transformadas em desigualdades,

pelo professor de EJA.

Quem é o Professor de Jovens e Adultos?

Pintor nenhum jamais conseguiu

pintar o brilho do olhar

de quem gosta de ensinar

a quem deseja aprender.

Hamilton (aluno de EJA)

Os educadores de jovens e adultos, assim como os educandos, conformam

múltiplas maneiras de ser e reúnem uma grande diversidade de histórias de vida. Para

muitos, trabalhar na EJA faz parte de um compromisso ideológico com as camadas

excluídas da população, concebem a educação como um caminho para a inclusão social

e afirmação da dignidade dessas pessoas. Para outros, dar aulas na EJA é uma maneira

de completar seu salário, geralmente cumprem nessa modalidade um terceiro turno de

trabalho.

O que é importante destacar é que esses professores guardam semelhanças com

os seus alunos no que tange às origens sócio-culturais. Nas inúmeras escolas públicas

espalhadas pelo Brasil, grande parte dos educadores e educadoras tem sua procedência

nas classes populares, alguns são migrantes de zonas rurais, transportam raízes

sertanejas e tradições rurais em suas biografias, assim como os alunos e as alunas.

A professora Diva, por exemplo, identifica-se bastante com as histórias de vida

de seus alunos jovens e adultos:

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Quando eles falam da vida deles, tem coisas que lembram o que eu

já passei na minha vida, só que de jeito ou de outro eu consegui, eu

tive ajuda, eu tive oportunidade e eles não.

A fala da professora reforça que, embora a sua origem se assemelhe com a de

seus alunos, as oportunidades de vida, de educação e, principalmente, de trabalho os

tenha conduzido a posições sociais diferenciadas.

Desse modo, uma particularidade da Educação de Jovens e Adultos é o fato de

que ambos os seus sujeitos encontram-se inseridos no mundo do trabalho, muito embora

os seus ofícios apresentem distinções. Os estudantes geralmente exercem trabalhos

manuais, atuando majoritariamente no campo da informalidade. Já a atividade dos

professores, tradicionalmente, recebe mais prestígio, porque exercem o chamado

trabalho intelectual.

No Brasil, tradicionalmente, as classes dominantes cultivam desprezo pelo

trabalho manual. Ao longo da história, com a divisão social do trabalho entre

trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais emergiram das elites os pensadores e

intelectuais; em conseqüência, os outros homens, que “não pensavam e só sabiam

fazer”, passaram a se relacionar de maneira passiva e receptiva com as idéias criadas

pelos primeiros.

As raízes dessa dualidade estrutural estão vinculadas à diferença entre os valores

atribuídos ao trabalho intelectual e ao trabalho manual, que se faz presente desde os

primórdios do nosso colonialismo e correspondem às formas de dominação vigente. A

depreciação do trabalho manual e a supremacia do trabalho intelectual é o que garantem

a acumulação do capital, na medida em que desvalorizam a força de trabalho.

Até o advento da Globalização, a produção manual não requeria escolarização,

por isso o ingresso à escola pelo povo era considerado irrelevante. Essa concepção

garantiu historicamente a exclusividade do acesso à educação para a camada mais rica

da população brasileira.

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A ESPECIFICIDADE DO TRABALHO DO PROFESSOR DE JOVENS E

ADULTOS

Quem forma se forma e re-forma ao formar e

quem é formado forma-se e forma ao ser formado.

Paulo Freire

A evidência de que tanto o educador quanto o aluno sejam trabalhadores,

imprime uma sólida unidade entre trabalho e educação à EJA, mais forte do que em

qualquer outro segmento educativo. Pois bem, se os sujeitos da Educação de Jovens e

Adultos são ambos trabalhadores, existe uma paridade de condições entre aluno e

professor. Esta constatação reafirma um importante paradigma da EJA: ela trata de uma

educação entre iguais e o diálogo é elemento central no processo educativo.

A relação trabalhador educa trabalhador aponta para o diálogo como opção

ontológica e antropológica e não apenas como estratégia didática. A partir do diálogo é

que educador e educando se constituem como pessoas que ensinam e aprendem juntas.

Isto significa que ao invés do educador perguntar-se: “o que é que vou ensinar?”, ele se

pergunta: “o que é que vamos aprender juntos?” (Hurtado, 2007, p. 43).

Na perspectiva dialógica, segundo Paulo Freire (1996), todos os sujeitos são

portadores de uma inteligência cultural, que o autor associa ao “saber de experiência

feito”, ou seja, todos os homens e mulheres desenvolvem habilidades, capacidades e

conhecimentos para fazer coisas em determinados contextos culturais. Uma pessoa pode

ser capaz de escrever muito bem textos acadêmicos, mas ser incapaz de escrever

poesias. Um pedreiro pode ser perfeitamente capaz de fazer operações matemáticas para

calcular a construção de uma parede e ser incapaz de realizar estes mesmos cálculos em

contextos escolares nos quais não se sinta competente.

A noção de inteligência cultural supera as ideias de inteligência acadêmica e

prática. A educação dialógica, portanto, legitima a inteligência cultural. Ou seja, por

meio do diálogo os sujeitos podem transferir seus conhecimentos e destrezas de um

âmbito a outro, desde que haja confiança mútua na capacidade de fazê-lo e estejam

asseguradas as condições que permitam esta transferência. Assim é que, por exemplo,

uma pessoa não alfabetizada, mas com habilidades de comunicação oral desenvolvidas

em suas práticas sociais, pode transferir estas habilidades para os contextos de

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aprendizagem formais, na escola, desde que o ambiente escolar permita com que ela se

sinta capaz e não desvalorizada por ser analfabeta.

Uma relação igualitária e dialógica entre educador e educando implica também

na revisão do conceito de autoridade. Sabemos que o processo educativo organiza-se

sobre o auspício da autoridade, pois ele pressupõe que existam no grupo pessoas que

possam ajudar outras a crescer. Esta ideia está na origem latina da palavra autoridade:

auctoritas é derivada do verbo romano augere, que significa aumentar, fazer crescer.

Este é o verdadeiro sentido da autoridade do professor: a sua tarefa é a de aumentar para

fazer ver as nuanças, para revelar o oculto, é a de apontar um caminho de crescimento.

Nesse sentido, ser professor é ser um “aumentador”, é gostar de mostrar o

mundo, de desvelar o humano. Faz parte do exercício da autoridade docente tomar

decisões, propor atividades, organizar tarefas, cobrar a produção individual e coletiva

dos estudantes. Porém a autoridade, quando se deteriora, passa a representar

autoritarismo, passa a ser exercício do poder que, automaticamente, impõe obediência

cega. Infelizmente, numa sociedade autoritária como a nossa, as diferenças, ao invés de

enriquecerem o processo educativo, acabam por reforçar uma posição de superioridade

no educador e de inferioridade no aluno, numa relação de comando e obediência. Por

tudo isto é que a posição de autoridade do educador de EJA não lhe outorga qualquer

tipo de conduta autoritária.

Em um depoimento de Marco, professor de Matemática para jovens e adultos,

verificamos, na forma como conduz as suas aulas, que o ensino e a aprendizagem são

gestados por meio do diálogo, o que possibilita ao aluno assumir um papel de

protagonista no processo educativo:

Um exemplo é quando vamos resolver uma equação: temos vários

caminhos, não há um procedimento único, determinado previamente.

Aí, na aula, a gente começa a discutir essa variabilidade: fulano

resolveu desse jeito, mas outro aluno acha que aquele caminho é

muito complicado: “eu penso desse outro jeito”. Nós vamos

analisando os caminhos, mas dentro das regras estabelecidas pela

linguagem. O importante é o aluno perceber que mesmo dentro de

um contexto, onde as coisas já estão dadas, ele consegue fazer o

percurso dele. Se você for pensar, num certo sentido, as coisas na

vida dele já estão meio dadas: o cara vive dentro de uma estrutura

onde tem lá um patrão (...), onde ele não tem autonomia nenhuma de

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fazer um caminho próprio. Ha muitos alunos que nem conseguem

falar, porque têm medo de se expor, de dizer alguma bobagem (...).

Para eles não existe a possibilidade do diálogo: mandam fazer e eles

executam (Alvares, 2010, p. 52).

O professor Marco enfatiza que a sua ação pedagógica ocorre no sentido

de facilitar a transferência dos saberes da vida para a ciência, que o seu ofício é

realmente o de “aumentador”:

Ensinar Matemática não é passar do que o aluno sabe para o que

ele não sabe: é ampliar o que ele já sabe. Por exemplo: apresentar

os números negativos, o conjunto dos números negativos. Esse é um

campo de exploração muito novo para o aluno, porque ele nunca

representou, enfim, nunca operou dentro desse conjunto. Mas o cara

faz a compra na venda, deixa a conta pra pagar no mês que vem,

pede emprestado... Ele já conhece algumas relações. A idéia é partir

dessas coisas e problematizar (Alvares, 2010, p. 51).

Marco elucida também as razões que levam um professor a acolher os

conhecimentos prévios dos seus alunos jovens e adultos:

A aprendizagem só ocorre quando você abre espaço para o aluno se

apresentar e expressar o que ele conhece. Esse encontro com o

aluno só é feliz, saudável quando você consegue deixar os alunos à

vontade para poderem se colocar e não tentar elevar o nível da

conversa, no sentido: “vamos ver o próximo capítulo do livro”. (...) Na

verdade, o que interessa é como você insere o aluno na discussão.

(...) A gente já trabalha com um cara que é excluído de “n”

situações, se você excluir ele da aula também, não sobra nada

(grifos nossos) (Alvares, 2010, p. 51).

Situações de confronto entre os conhecimentos do educador e os do educando

são típicas nas salas de aula de EJA, territórios onde cotidianamente saberes populares

se encontram e desencontram com saberes eruditos. Mas os conhecimentos prévios de

um aluno jovem ou adulto remetem a inúmeras espécies de saber, a uma travessia longa

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de percepções e indagações adquiridas ao longo de sua história de vida. A diversidade

cultural brasileira espraia uma multiplicidade de saberes com características regionais,

muitos deles ligados à arte ou ao artesanato, conhecimentos oriundos de usos e

costumes dos diversos grupos sociais que se espalham pelo país. Promover a interface e

valorizar esses conhecimentos prévios, dentro das salas de aula da EJA, por meio do

diálogo igualitário, é uma maneira de subsidiar favoravelmente a construção do saber

escolar.

Outro exemplo é Fernando, professor de Ciências da EJA, na cidade de São

Paulo. Durante sua pesquisa de doutorado, ele foi a campo, no interior do nordeste

brasileiro, conhecer de perto cidades e vilarejos onde seus alunos viveram a infância.

Em uma passagem de sua tese, esse professor se encanta com a extraordinária riqueza

do conhecimento que o sertanejo detém sobre o meio em que vive, ao mesmo tempo em

que reconhece o seu próprio desconhecimento com relação à atividade que observara:

Houve uma noite em que acompanhei Vanúzio, mais o irmão e o

cunhado desse aluno, à coleta do mel de abelhas silvestres. Minha

participação em nada contribuiu com os termos práticos da tarefa.

Apenas observei os detalhes de um fazer até então inédito para mim: a

observação das colméias, o toque com uma vara para aferir aquela que

pudesse ser mais profícua, o fogo para espantar os insetos dos favos e,

finalmente sua tomada em mãos. Caso tivesse me sido dada aquela

tarefa, eu deixaria de entregar feita a lição. Por outro lado, sei o que

dizer quando alunos que muito mel já retiraram em suas vidas,

perguntam sobre a organização social das colméias. (Frochtengarten,

2009, p.115)

Fernando conclui o episódio revelando o quanto aprendeu com conhecimentos

populares tradicionais:

O doce do mel extraído revelou que o conceito de animal social não

fizera falta a meus companheiros. Aquele seu labor estava fundado em

saberes transmitidos por outros membros de sua família e fortemente

apoiados sobre dados sensíveis. Quanto a mim, retirado a um canto,

era um conhecedor das funções da abelha rainha, dos zangões e das

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operárias. Enfim, daquilo que não víamos e tampouco contribuía para o

específico afazer (Frochtengarten, 2009, p.115).

O educador precisa assumir que os conhecimentos prévios dos alunos,

construídos no contexto da experiência, não representam apenas um trampolim para o

atingimento de conhecimentos letrados. Esses conhecimentos são em si mesmos

conhecimentos válidos. Sua legitimidade não ocorre apenas por meio da identificação

das atividades do dia-a-dia mas, fundamentalmente, pela compreensão da sua

historicidade, pelo entendimento de como esses saberes balizam e articulam as práticas

sociais dos sujeitos.

A estrutura vertical que tradicionalmente rege o processo de escolarização não

pode encontrar lugar para se perpetuar na EJA. O fato de o professor ser mais letrado do

que o aluno não deveria, de forma alguma, cunhar uma hierarquia de valores aos

diferentes conhecimentos que insurgem da relação pedagógica, reforçando a

desigualdade cultural e a exclusão social que esses alunos sofrem diariamente.

É fundamental mencionar, ainda. uma última particularidade do trabalho do

professor de EJA: a sua ação pedagógica destina-se a indivíduos maduros e ensinar

adultos é bastante distinto de ensinar crianças. O tempo de vida do educando faz a

diferença, pois, fundada na experiência, a fonte da aprendizagem é a extensão do

próprio viver. O educador tece a sua prática levando em conta as experiências de seus

alunos, seus modos de pensamento, seus costumes, seus valores, seus desejos, aspectos

vivos e presentes nas salas de aulas.

Marcelo, por exemplo, é professor de Arte para jovens e adultos, e também para

crianças. Ele descreve bem qual é o território de atuação do educador de adultos:

O adulto vem para a sala de aula com o caráter já formado, com a

personalidade e uma concepção de mundo prontas, o que lhe dá

instrumentos para compor, para tecer a teia da experiência artística, em

sua complexidade. Em uma sala de aula da EJA, a heterogeneidade é

tanta que não há como generalizar, é necessário ler cada aluno dentro

de sua singularidade: idade, condição sócio-econômica, profissão,

origem, suas práticas culturais. A ação do professor é apontar, reforçar

para o aluno que ele é capaz de desenvolver um trabalho artístico e de

crescer com isso. Com o adulto, o professor trabalha numa área de

bloqueio, para soltar a ação do fazer arte, para que ele expresse sua

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formação, sua experiência de vida. O adulto tem muito mais dificuldade

com as técnicas, mas maior facilidade de compreensão.

Marcelo distingue claramente a via por onde caminha a atuação do educador de

crianças:

Para a criança, o sentido é o contrário: tirá-la do egocentrismo e ajudá-

la a exteriorizar seu conteúdo interno, a socializar sua expressão. A

criança sabe que possui um universo. Ela esgota muito facilmente seu

conteúdo expressivo. (...) Com crianças, pode-se explorar infinitas

técnicas, que todas elas serão férteis.

A ação pedagógica de um professor, portanto, se diferencia substancialmente

quando dirigida a crianças e quando dirigida a adultos. No entanto, sabemos que a

grande maioria dos educadores de EJA trabalha em dois períodos, ou seja, leciona tanto

para crianças quanto para adultos. Observa-se, com freqüência o uso equivocado da

mesma abordagem metodológica para os dois públicos.

A especificidade do ofício do professor de jovens e adultos é ajudar o aluno a

acessar um conhecimento que se revela como um eco da própria experiência, que o

sujeito vê desdobrar-se para testemunhar a experiência humana universal. Dessa forma,

o educador respeita e valoriza a vida vivida do educando, resgatando a importância de

sua biografia, afirmando sua identidade, assegurando, enfim, o acolhimento necessário à

sua volta e permanência na escola (Alvares, 2010, p. 40).

Ser educador de jovens e adultos é saborear simultaneamente o crescimento de

seus alunos e o seu próprio crescimento, é ser transmissor de uma herança universal, é

ajudar mulheres e homens a se apropriarem de um legado que lhes pertence por direito.

Bibliografia

ALVARES, Sonia Carbonell. Educação Estética para Jovens e Adultos: a beleza no

ensinar e no aprender. São Paulo: Editora Cortez, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17º ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do

oprimido. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1994. 245 p.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa/

Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996. – (Coleção leitura).

FROCHTENGARTEN, Fernando. Caminhando sobre fronteiras: o papel da educação

na vida de adultos migrantes. São Paulo: Summus, 2009.

HURTADO, Carlos Nuñez (org.). Diálogos Freire-Morin. México: CREFAL, 2007.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Educação de jovens e adultos:

proposta curricular para o segundo segmento do Ensino Fundamental. Brasília: MEC,

2002.


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