Date post: | 14-Mar-2023 |
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ALUNOS E PROFESSORES DA EJA
Sonia Carbonell
Quem são os alunos da Educação de Jovens e Adultos?
Na Educação de Jovens e Adultos encontramos indivíduos das mais diversas
origens. Mesmo apresentando uma certa homogeneidade do ponto de vista sócio-
econômico, eles configuram um grupo culturalmente heterogêneo, pessoas em que se
estampam as mais ricas matizes da nossa brasilidade.
Dentro de uma mesma sala convivem alunos de diferentes idades e etnias, em
múltiplas combinações fisionômicas, homens e mulheres com belezas peculiares, não só
nas aparências, mas também nos costumes, nos modos de ser, nas experiências de vida,
nos traços culturais, nas preferências culinárias ou musicais; enfim, na EJA é onde se
avizinha gente do centro com gente da periferia, gente do litoral com gente do sertão,
compondo belos quadros da pluralidade cultural do nosso país.
A heterogeneidade presente no conjunto de alunos, no entanto, aponta para a
singularidade de cada um. A cada experiência vivida corresponde um indivíduo
absolutamente único, a cada enfrentamento de problemas na vida familiar ou no
trabalho decorre um saber idiossincrático, um modo de ver e de se relacionar com o
mundo inteiramente pessoal.
Para efeitos de classificação, separamos os estudantes da EJA em dois grupos: os
adultos maduros e os jovens adultos. Cada agrupamento, apesar de ser totalmente
heterogêneo em seu interior, apresenta características próprias que o diferenciam do
outro.
1. OS ADULTOS MADUROS
Esse conjunto é constituído por pessoas mais experientes, em média acima dos
trinta anos. A maioria já tem filhos, muitos têm netos. Os adultos maduros transitam
pelo mercado de trabalho e, apesar das crises econômicas brasileiras, muitos deles hoje
desempenham profissões consolidadas.
Os adultos maduros permaneceram afastados da sala de aula há mais tempo que
os jovens. Grande parte deles viveu sua infância em zonas rurais empobrecidas, onde
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não eram raros os prédios escolares improvisados, onde o trabalho na roça se impunha
precocemente como necessidade vital e a vida impingia uma série de dificuldades a
quem estudasse. Os depoimentos a seguir, elucidam alguns desses reveses:
A minha primeira escola foi o Mobral, pois, na minha infância,
trabalhava na roça com meu pai e meus dois irmãos. Longe da
nossa casa morava Dona Severina, professora do Mobral, que
lecionava na sua própria casa através do rádio. Ela, mais outros
voluntários, imploravam aos pais que deixassem os filhos serem
alfabetizados. O caminho até a casa dela era longo e escuro de
meter medo. (...) Mesmo assim eu gostava de ir à escola, porque a
professora nos oferecia coalhada. A luz da casa da professora era
com lamparina de querosene.
Francinete
A escola tinha duas salas, e uma sala era usada para aula e a outra
como cozinha, ou seja, onde se fazia a merenda. O momento que eu
adorava era a hora da merenda porque, no verão, nem sempre tinha
o que comer em casa. Então, ia para a escola pensando na merenda.
(...) Fiquei por muito tempo estudando nessa escola e não saía da
segunda série porque, quando chegava o inverno, parava de estudar
e ia trabalhar na roça.
Edileide
Uma boa parte desses alunos ainda carrega uma imagem da escola construída e
referenciada em sua passagem anterior por ela. Geralmente, essas representações
correspondem a um modelo tradicional de sala de aula, ou seja, um lugar onde
predominam aulas expositivas, com pontos copiados da lousa, em que o professor é o
único detentor do saber e transmite conteúdos que são recebidos passivamente pelos
estudantes. Às vezes, os mais velhos se mostram resistentes a uma concepção educativa
que os coloca como protagonistas do processo pedagógico, que espera deles práticas
ativas de aprendizagem.
Os alunos maduros geralmente demonstram um grande interesse pelo
conhecimento escolar e reservam um afeto reverencial ao professor. Nas aulas, cultivam
um clima de solidariedade, de ajuda mútua e apreço pelas situações de aprendizagem,
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refletindo os esforços que fazem para se manterem aprumados depois de longas
jornadas de trabalho.
2. OS JOVENS ADULTOS
Os jovens adultos que estudam na EJA, por sua vez, têm idades acima dos
dezesseis anos. A grande maioria deles trabalha, ou já executou algum tipo de labor, e
não são raros os que já constituíram família. Com um ritmo de aprendizagem
geralmente mais rápido do que o aluno maduro, o jovem revela também maior traquejo
com os procedimentos escolares. Muitos sofreram exclusão recente da escola regular.
Grande parte revela uma baixa auto-estima, alguns apresentam atitudes de indisciplina.
Suas representações da escola são fruto dessas passagens pelos cursos regulares, muitas
vezes traduzidas por lembranças de salas de aula lotadas e ruidosas.
Mauro, dezenove anos, motoboy, expõe como descobriu a importância da
escolarização:
Quando eu era criança, não suportava a escola e achava que ali eu
não aprenderia nada; estava perdendo tempo... Mas, vejo, hoje, que
estava muito enganado e aprendi que se tivesse freqüentado a
escola não teria que sofrer tanto agora: trabalhar e estudar não é
fácil.
O meu professor da primeira série era muito legal e sempre nos
advertia dizendo: “Estude, pois um dia vocês vão precisar!” Mas
aqueles avisos não passavam pelas nossas cabeças. Num lugar
onde só tinha roça, no meio do mato?! Então, eu me perguntava:
“Pra quê estudo neste lugar se a única vez que usamos a escrita é
pra assinar o nome, na época de eleição?”
(...) Estou na EJA há algum tempo, não aprendi tudo o que gostaria,
principalmente o Português correto, mas, se tudo der certo, um dia,
meus filhos terão orgulho de seu pai que, com todas as dificuldades,
conseguiu completar os estudos, embora tendo que interrompê-los
várias vezes.
Atualmente, os jovens, e mesmo os adolescentes, constituem presença marcante
nos cursos de EJA. Expulsos do sistema regular, eles migram para a Educação de
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Jovens e Adultos compondo grupos sociais que valorizam sobremaneira o convívio no
espaço escolar, tornando a sociabilidade uma questão central em sua escolarização.
Muitas vezes, privados de outros espaços de convivência social, esses moços e moças
esperam encontrar na escola não só um lugar para encontros entre os seus pares, como
também um território para práticas e manifestações culturais, das quais as diversas
juventudes brasileiras são representantes.
3. OS SIGNIFICADOS DA ESCOLARIZAÇÃO
Tanto para o jovem, quanto para o mais experiente, uma forte razão para a
procura pela educação formal é a busca por um reconhecimento social. Para esses
sujeitos, o letramento constitui um valor e dominar o conhecimento veiculado pela
escola torna-se uma forma de sentir-se incluído socialmente.
Com bastante freqüência, esses estudantes manifestam uma consideração
elevada pela instituição escola. As palavras de Maria Lima, estudante da EJA,
confirmam isto:
As atividades oferecidas pela escola são objetivas e servem para
nos mostrar o mundo que existe e que às vezes nem nos damos
conta de que ele existe. Como por exemplo, o mundo da arte, da
música, da escrita, da natureza, da felicidade e muitos outros que
passamos a conhecer por meio da escola. (...) A escola é como uma
mãe, que ensina o filho o caminho por onde ele deve andar para
obter bons resultados, conquistas, realizações e ser feliz.
A volta à escola não representa um processo fácil para o sujeito. Consiste, quase
sempre, em uma decisão que demora em ser tomada, pois exige grande abertura interna,
uma transformação radical nas relações familiares e profissionais, demanda na
reestruturação do dia-a-dia, enfim, trata-se de um projeto de vida.
Segundo a Proposta Curricular para Jovens e Adultos (MEC 2002, p. 95): “o que
está em questão é a ampliação das possibilidades de participação social de um grupo de
cidadãos cuja cidadania encontra-se comprometida. O trabalhador adulto, não sendo
uma criança, não volta para a escola para ‘retomar uma trajetória escolar interrompida’,
mas para reconstruir uma trajetória escolar em busca de conhecimentos significativos
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nessa sua etapa da vida, em condições diferentes das existentes no momento em que ele
interrompeu seus estudos.”
É preciso reconhecer que esses estudantes despendem um esforço grande para
retomar e manter os estudos, para conseguir concentrar-se em uma sala de aula após
longas jornadas de trabalho. Muitos desistem e retornam várias vezes ao longo desse
processo.
Edmilson, baiano, de origem rural, relata porque retomou os estudos depois de
adulto:
Depois de alguns anos, mudei para São Paulo à procura de
melhores condições de vida, pois na minha cidade a situação era
precária. Assim que cheguei comecei a trabalhar e só depois de
passados dez anos fora da escola foi que resolvi voltar a estudar,
pois percebi que a tecnologia a cada dia que passa atualiza-se muito
mais e com muita rapidez, e o mercado de trabalho exige cada vez
mais melhor qualificação. Foi difícil voltar para a escola, pois tive que
‘brigar’ com meus patrões para reduzirem uma hora de trabalho. No
entanto, consegui com muita luta e garra.
Outro fator que contribui significativamente para a volta aos estudos é,
inegavelmente, aquele relacionado à obtenção de uma melhor inserção no mercado de
trabalho. No Brasil globalizado a escolarização tem aumentada a sua importância ao
exigir um trabalhador que disponha de conhecimentos tecnológicos e científicos, que
seja criativo, que saiba comunicar-se, enfim, que tenha competências para sobreviver à
complexidade dos processos de produção e à vulnerabilidade do mercado de trabalho.
Adriano e Hercílio voltaram a estudar porque sentiram necessidade de
atualização:
Parei de estudar para trabalhar e sustentar-me, mas senti muita
dificuldade de entendimento do mundo no dia-a-dia. E por isso
retornei aos estudos.
Adriano
(...) Fiquei quase trinta anos sem sentar-me em um banco escolar. O
que praticamente obrigou-me a retomar os estudos foram as
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dificuldades que o homem atual enfrenta para conseguir uma melhor
colocação no mercado de trabalho.
Hercílio
A presença de jovens, adultos e idosos numa mesma sala de aula conforma um
cenário fértil para as situações de ensino e aprendizagem. A diversidade de gerações, de
experiências de vida, de valores, de tradições culturais, de maneiras de falar, de visões
de mundo, são aspectos que se somam e podem gerar estratégias fecundas, se forem
trabalhados positivamente, se as diferenças não forem transformadas em desigualdades,
pelo professor de EJA.
Quem é o Professor de Jovens e Adultos?
Pintor nenhum jamais conseguiu
pintar o brilho do olhar
de quem gosta de ensinar
a quem deseja aprender.
Hamilton (aluno de EJA)
Os educadores de jovens e adultos, assim como os educandos, conformam
múltiplas maneiras de ser e reúnem uma grande diversidade de histórias de vida. Para
muitos, trabalhar na EJA faz parte de um compromisso ideológico com as camadas
excluídas da população, concebem a educação como um caminho para a inclusão social
e afirmação da dignidade dessas pessoas. Para outros, dar aulas na EJA é uma maneira
de completar seu salário, geralmente cumprem nessa modalidade um terceiro turno de
trabalho.
O que é importante destacar é que esses professores guardam semelhanças com
os seus alunos no que tange às origens sócio-culturais. Nas inúmeras escolas públicas
espalhadas pelo Brasil, grande parte dos educadores e educadoras tem sua procedência
nas classes populares, alguns são migrantes de zonas rurais, transportam raízes
sertanejas e tradições rurais em suas biografias, assim como os alunos e as alunas.
A professora Diva, por exemplo, identifica-se bastante com as histórias de vida
de seus alunos jovens e adultos:
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Quando eles falam da vida deles, tem coisas que lembram o que eu
já passei na minha vida, só que de jeito ou de outro eu consegui, eu
tive ajuda, eu tive oportunidade e eles não.
A fala da professora reforça que, embora a sua origem se assemelhe com a de
seus alunos, as oportunidades de vida, de educação e, principalmente, de trabalho os
tenha conduzido a posições sociais diferenciadas.
Desse modo, uma particularidade da Educação de Jovens e Adultos é o fato de
que ambos os seus sujeitos encontram-se inseridos no mundo do trabalho, muito embora
os seus ofícios apresentem distinções. Os estudantes geralmente exercem trabalhos
manuais, atuando majoritariamente no campo da informalidade. Já a atividade dos
professores, tradicionalmente, recebe mais prestígio, porque exercem o chamado
trabalho intelectual.
No Brasil, tradicionalmente, as classes dominantes cultivam desprezo pelo
trabalho manual. Ao longo da história, com a divisão social do trabalho entre
trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais emergiram das elites os pensadores e
intelectuais; em conseqüência, os outros homens, que “não pensavam e só sabiam
fazer”, passaram a se relacionar de maneira passiva e receptiva com as idéias criadas
pelos primeiros.
As raízes dessa dualidade estrutural estão vinculadas à diferença entre os valores
atribuídos ao trabalho intelectual e ao trabalho manual, que se faz presente desde os
primórdios do nosso colonialismo e correspondem às formas de dominação vigente. A
depreciação do trabalho manual e a supremacia do trabalho intelectual é o que garantem
a acumulação do capital, na medida em que desvalorizam a força de trabalho.
Até o advento da Globalização, a produção manual não requeria escolarização,
por isso o ingresso à escola pelo povo era considerado irrelevante. Essa concepção
garantiu historicamente a exclusividade do acesso à educação para a camada mais rica
da população brasileira.
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A ESPECIFICIDADE DO TRABALHO DO PROFESSOR DE JOVENS E
ADULTOS
Quem forma se forma e re-forma ao formar e
quem é formado forma-se e forma ao ser formado.
Paulo Freire
A evidência de que tanto o educador quanto o aluno sejam trabalhadores,
imprime uma sólida unidade entre trabalho e educação à EJA, mais forte do que em
qualquer outro segmento educativo. Pois bem, se os sujeitos da Educação de Jovens e
Adultos são ambos trabalhadores, existe uma paridade de condições entre aluno e
professor. Esta constatação reafirma um importante paradigma da EJA: ela trata de uma
educação entre iguais e o diálogo é elemento central no processo educativo.
A relação trabalhador educa trabalhador aponta para o diálogo como opção
ontológica e antropológica e não apenas como estratégia didática. A partir do diálogo é
que educador e educando se constituem como pessoas que ensinam e aprendem juntas.
Isto significa que ao invés do educador perguntar-se: “o que é que vou ensinar?”, ele se
pergunta: “o que é que vamos aprender juntos?” (Hurtado, 2007, p. 43).
Na perspectiva dialógica, segundo Paulo Freire (1996), todos os sujeitos são
portadores de uma inteligência cultural, que o autor associa ao “saber de experiência
feito”, ou seja, todos os homens e mulheres desenvolvem habilidades, capacidades e
conhecimentos para fazer coisas em determinados contextos culturais. Uma pessoa pode
ser capaz de escrever muito bem textos acadêmicos, mas ser incapaz de escrever
poesias. Um pedreiro pode ser perfeitamente capaz de fazer operações matemáticas para
calcular a construção de uma parede e ser incapaz de realizar estes mesmos cálculos em
contextos escolares nos quais não se sinta competente.
A noção de inteligência cultural supera as ideias de inteligência acadêmica e
prática. A educação dialógica, portanto, legitima a inteligência cultural. Ou seja, por
meio do diálogo os sujeitos podem transferir seus conhecimentos e destrezas de um
âmbito a outro, desde que haja confiança mútua na capacidade de fazê-lo e estejam
asseguradas as condições que permitam esta transferência. Assim é que, por exemplo,
uma pessoa não alfabetizada, mas com habilidades de comunicação oral desenvolvidas
em suas práticas sociais, pode transferir estas habilidades para os contextos de
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aprendizagem formais, na escola, desde que o ambiente escolar permita com que ela se
sinta capaz e não desvalorizada por ser analfabeta.
Uma relação igualitária e dialógica entre educador e educando implica também
na revisão do conceito de autoridade. Sabemos que o processo educativo organiza-se
sobre o auspício da autoridade, pois ele pressupõe que existam no grupo pessoas que
possam ajudar outras a crescer. Esta ideia está na origem latina da palavra autoridade:
auctoritas é derivada do verbo romano augere, que significa aumentar, fazer crescer.
Este é o verdadeiro sentido da autoridade do professor: a sua tarefa é a de aumentar para
fazer ver as nuanças, para revelar o oculto, é a de apontar um caminho de crescimento.
Nesse sentido, ser professor é ser um “aumentador”, é gostar de mostrar o
mundo, de desvelar o humano. Faz parte do exercício da autoridade docente tomar
decisões, propor atividades, organizar tarefas, cobrar a produção individual e coletiva
dos estudantes. Porém a autoridade, quando se deteriora, passa a representar
autoritarismo, passa a ser exercício do poder que, automaticamente, impõe obediência
cega. Infelizmente, numa sociedade autoritária como a nossa, as diferenças, ao invés de
enriquecerem o processo educativo, acabam por reforçar uma posição de superioridade
no educador e de inferioridade no aluno, numa relação de comando e obediência. Por
tudo isto é que a posição de autoridade do educador de EJA não lhe outorga qualquer
tipo de conduta autoritária.
Em um depoimento de Marco, professor de Matemática para jovens e adultos,
verificamos, na forma como conduz as suas aulas, que o ensino e a aprendizagem são
gestados por meio do diálogo, o que possibilita ao aluno assumir um papel de
protagonista no processo educativo:
Um exemplo é quando vamos resolver uma equação: temos vários
caminhos, não há um procedimento único, determinado previamente.
Aí, na aula, a gente começa a discutir essa variabilidade: fulano
resolveu desse jeito, mas outro aluno acha que aquele caminho é
muito complicado: “eu penso desse outro jeito”. Nós vamos
analisando os caminhos, mas dentro das regras estabelecidas pela
linguagem. O importante é o aluno perceber que mesmo dentro de
um contexto, onde as coisas já estão dadas, ele consegue fazer o
percurso dele. Se você for pensar, num certo sentido, as coisas na
vida dele já estão meio dadas: o cara vive dentro de uma estrutura
onde tem lá um patrão (...), onde ele não tem autonomia nenhuma de
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fazer um caminho próprio. Ha muitos alunos que nem conseguem
falar, porque têm medo de se expor, de dizer alguma bobagem (...).
Para eles não existe a possibilidade do diálogo: mandam fazer e eles
executam (Alvares, 2010, p. 52).
O professor Marco enfatiza que a sua ação pedagógica ocorre no sentido
de facilitar a transferência dos saberes da vida para a ciência, que o seu ofício é
realmente o de “aumentador”:
Ensinar Matemática não é passar do que o aluno sabe para o que
ele não sabe: é ampliar o que ele já sabe. Por exemplo: apresentar
os números negativos, o conjunto dos números negativos. Esse é um
campo de exploração muito novo para o aluno, porque ele nunca
representou, enfim, nunca operou dentro desse conjunto. Mas o cara
faz a compra na venda, deixa a conta pra pagar no mês que vem,
pede emprestado... Ele já conhece algumas relações. A idéia é partir
dessas coisas e problematizar (Alvares, 2010, p. 51).
Marco elucida também as razões que levam um professor a acolher os
conhecimentos prévios dos seus alunos jovens e adultos:
A aprendizagem só ocorre quando você abre espaço para o aluno se
apresentar e expressar o que ele conhece. Esse encontro com o
aluno só é feliz, saudável quando você consegue deixar os alunos à
vontade para poderem se colocar e não tentar elevar o nível da
conversa, no sentido: “vamos ver o próximo capítulo do livro”. (...) Na
verdade, o que interessa é como você insere o aluno na discussão.
(...) A gente já trabalha com um cara que é excluído de “n”
situações, se você excluir ele da aula também, não sobra nada
(grifos nossos) (Alvares, 2010, p. 51).
Situações de confronto entre os conhecimentos do educador e os do educando
são típicas nas salas de aula de EJA, territórios onde cotidianamente saberes populares
se encontram e desencontram com saberes eruditos. Mas os conhecimentos prévios de
um aluno jovem ou adulto remetem a inúmeras espécies de saber, a uma travessia longa
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de percepções e indagações adquiridas ao longo de sua história de vida. A diversidade
cultural brasileira espraia uma multiplicidade de saberes com características regionais,
muitos deles ligados à arte ou ao artesanato, conhecimentos oriundos de usos e
costumes dos diversos grupos sociais que se espalham pelo país. Promover a interface e
valorizar esses conhecimentos prévios, dentro das salas de aula da EJA, por meio do
diálogo igualitário, é uma maneira de subsidiar favoravelmente a construção do saber
escolar.
Outro exemplo é Fernando, professor de Ciências da EJA, na cidade de São
Paulo. Durante sua pesquisa de doutorado, ele foi a campo, no interior do nordeste
brasileiro, conhecer de perto cidades e vilarejos onde seus alunos viveram a infância.
Em uma passagem de sua tese, esse professor se encanta com a extraordinária riqueza
do conhecimento que o sertanejo detém sobre o meio em que vive, ao mesmo tempo em
que reconhece o seu próprio desconhecimento com relação à atividade que observara:
Houve uma noite em que acompanhei Vanúzio, mais o irmão e o
cunhado desse aluno, à coleta do mel de abelhas silvestres. Minha
participação em nada contribuiu com os termos práticos da tarefa.
Apenas observei os detalhes de um fazer até então inédito para mim: a
observação das colméias, o toque com uma vara para aferir aquela que
pudesse ser mais profícua, o fogo para espantar os insetos dos favos e,
finalmente sua tomada em mãos. Caso tivesse me sido dada aquela
tarefa, eu deixaria de entregar feita a lição. Por outro lado, sei o que
dizer quando alunos que muito mel já retiraram em suas vidas,
perguntam sobre a organização social das colméias. (Frochtengarten,
2009, p.115)
Fernando conclui o episódio revelando o quanto aprendeu com conhecimentos
populares tradicionais:
O doce do mel extraído revelou que o conceito de animal social não
fizera falta a meus companheiros. Aquele seu labor estava fundado em
saberes transmitidos por outros membros de sua família e fortemente
apoiados sobre dados sensíveis. Quanto a mim, retirado a um canto,
era um conhecedor das funções da abelha rainha, dos zangões e das
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operárias. Enfim, daquilo que não víamos e tampouco contribuía para o
específico afazer (Frochtengarten, 2009, p.115).
O educador precisa assumir que os conhecimentos prévios dos alunos,
construídos no contexto da experiência, não representam apenas um trampolim para o
atingimento de conhecimentos letrados. Esses conhecimentos são em si mesmos
conhecimentos válidos. Sua legitimidade não ocorre apenas por meio da identificação
das atividades do dia-a-dia mas, fundamentalmente, pela compreensão da sua
historicidade, pelo entendimento de como esses saberes balizam e articulam as práticas
sociais dos sujeitos.
A estrutura vertical que tradicionalmente rege o processo de escolarização não
pode encontrar lugar para se perpetuar na EJA. O fato de o professor ser mais letrado do
que o aluno não deveria, de forma alguma, cunhar uma hierarquia de valores aos
diferentes conhecimentos que insurgem da relação pedagógica, reforçando a
desigualdade cultural e a exclusão social que esses alunos sofrem diariamente.
É fundamental mencionar, ainda. uma última particularidade do trabalho do
professor de EJA: a sua ação pedagógica destina-se a indivíduos maduros e ensinar
adultos é bastante distinto de ensinar crianças. O tempo de vida do educando faz a
diferença, pois, fundada na experiência, a fonte da aprendizagem é a extensão do
próprio viver. O educador tece a sua prática levando em conta as experiências de seus
alunos, seus modos de pensamento, seus costumes, seus valores, seus desejos, aspectos
vivos e presentes nas salas de aulas.
Marcelo, por exemplo, é professor de Arte para jovens e adultos, e também para
crianças. Ele descreve bem qual é o território de atuação do educador de adultos:
O adulto vem para a sala de aula com o caráter já formado, com a
personalidade e uma concepção de mundo prontas, o que lhe dá
instrumentos para compor, para tecer a teia da experiência artística, em
sua complexidade. Em uma sala de aula da EJA, a heterogeneidade é
tanta que não há como generalizar, é necessário ler cada aluno dentro
de sua singularidade: idade, condição sócio-econômica, profissão,
origem, suas práticas culturais. A ação do professor é apontar, reforçar
para o aluno que ele é capaz de desenvolver um trabalho artístico e de
crescer com isso. Com o adulto, o professor trabalha numa área de
bloqueio, para soltar a ação do fazer arte, para que ele expresse sua
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formação, sua experiência de vida. O adulto tem muito mais dificuldade
com as técnicas, mas maior facilidade de compreensão.
Marcelo distingue claramente a via por onde caminha a atuação do educador de
crianças:
Para a criança, o sentido é o contrário: tirá-la do egocentrismo e ajudá-
la a exteriorizar seu conteúdo interno, a socializar sua expressão. A
criança sabe que possui um universo. Ela esgota muito facilmente seu
conteúdo expressivo. (...) Com crianças, pode-se explorar infinitas
técnicas, que todas elas serão férteis.
A ação pedagógica de um professor, portanto, se diferencia substancialmente
quando dirigida a crianças e quando dirigida a adultos. No entanto, sabemos que a
grande maioria dos educadores de EJA trabalha em dois períodos, ou seja, leciona tanto
para crianças quanto para adultos. Observa-se, com freqüência o uso equivocado da
mesma abordagem metodológica para os dois públicos.
A especificidade do ofício do professor de jovens e adultos é ajudar o aluno a
acessar um conhecimento que se revela como um eco da própria experiência, que o
sujeito vê desdobrar-se para testemunhar a experiência humana universal. Dessa forma,
o educador respeita e valoriza a vida vivida do educando, resgatando a importância de
sua biografia, afirmando sua identidade, assegurando, enfim, o acolhimento necessário à
sua volta e permanência na escola (Alvares, 2010, p. 40).
Ser educador de jovens e adultos é saborear simultaneamente o crescimento de
seus alunos e o seu próprio crescimento, é ser transmissor de uma herança universal, é
ajudar mulheres e homens a se apropriarem de um legado que lhes pertence por direito.
Bibliografia
ALVARES, Sonia Carbonell. Educação Estética para Jovens e Adultos: a beleza no
ensinar e no aprender. São Paulo: Editora Cortez, 2010.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17º ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do
oprimido. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1994. 245 p.
14
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa/
Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996. – (Coleção leitura).
FROCHTENGARTEN, Fernando. Caminhando sobre fronteiras: o papel da educação
na vida de adultos migrantes. São Paulo: Summus, 2009.
HURTADO, Carlos Nuñez (org.). Diálogos Freire-Morin. México: CREFAL, 2007.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Educação de jovens e adultos:
proposta curricular para o segundo segmento do Ensino Fundamental. Brasília: MEC,
2002.