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Breve Memória do Movimento Estudantil (em construção)

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Sem Título José Eduardo Martins 7 de junho de 2014 1
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Sem Título

José Eduardo Martins

7 de junho de 2014

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A Invasão do CRUSP

Naquele ano de 1979 o movimento dos estudantes da usp caminhavapara lutar pelas suas reconquistas de espaços perdidos em 68. ODiretório central dos estudantes ja havia sido reerguido em 77. Nomeio de 79, ocorreu o congresso de reconstrução da união nacionaldos estudantes em salvador da bahia. Restava ainda a retomadada moradia estudantil para os estudantes de graduação, proibidadesde a expulso dos estudantes em 1968 por tanques do exercito.

Os estudantes anarquistas haviam montado um acampamentoem frente a reitoria da universidade pela retomada do crusp (con-junto residencial da usp). Este acampamento durou umas trêssemanas com os estudantes enfrentando as chuvas de verão. Jáestávamos em novembro (?) de 1979.

Filó, chaveco, espanhol, entre outros, lideravam este acampa-mento. Era tudo meio rasta e meio zen. Pouco parecido comas intervenções ’clean’ das correntes estudantis tradicionais comorefazendo-caminhando e libelu. Esta primeira sustentada pela açãopopular (ap)e pcdob e a última por uma pequena organização clan-destina autodenominada osi (organização socialista internaciona-lista) de linha trotskysta com tutela de um grupo francês cujosdirigentes eram cria direta de leon trotsky. Este era o caso depierre lambert, ainda vivo.

Ao som de muito reggae, os estudantes passavam as noites deverão em volta da fogueira:

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Bem que eu me lembro A gente sentado ali: junto a fo-gueirinha de papel (...) Amigos presos, amigos perdidosassim: Pra nunca mais...

Bob marley traduziria todos os sentimentos envolvidos no acam-pamento melhor que raimundo fagner, gilberto gil ou caetano. (be-atles?)...

Os estudantes invasores vasculharam cada palmo daqueles doisúltimos andares do bloco A.

Talvez por preguiça ou cansaço entrei no primeiro apartamento,imediatamente a direita do último lance de escadas do quinto an-dar. Era um apartamento ampliando. Ocupava o espaço padrão,uma ponta do corredor de circulação e metade da sala de vivênciado andar. Desse modo ele teria um quarto a mais que os demaisapartamentos. Sai e escrevi na porta sete nomes com um pincelatômico: tigre, formiga, baiano, ike, chang, paulinho, gabor. Esseprocedimento servia como uma urinada no portal, demarcando oespaço. Andei pelo Corredor e olhei o apartamento dos outros in-vasores. Várias portas apresentavam marcas de mijadas no portal.

Depois de uma discussão apaixonada no corredor com um grupode anarquistas fanáticos. Caminhei ate a escola politécnica. Laencontrei o grupo de libelus e simpatizantes. Comecamos a conjec-turar sobre o passado e o futuro do crusp. Mixa, um rapaz arre-dondado e vermelho, conhecido como garoto-champanhe, ufanavasobre o crusp ter sido o bercario de inúmeras células comunistas nadécada de 60.

— Por quê vocês acham que “eles” invadiram o crusp? — Diziaalto se referindo aos militares. — É porque aquilo era um celeirode células comunistas. Nós [os troskos] temos que ocupar aquilo dequalquer jeito!

Gabor, baiano e chang eram três estudantes da escola de enge-nharia eletrica. Tratava-se de um úngaro, um japonês e um core-ano, repartidos assim, se se preferir, pelas etnias. Formiga, ike eeu estávamos terminando o primeiro ano de engenharia e formava-

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mos um grupo de origem étnica mineiro-calabriano, zona lestino-portuga e libano-francês-judeu, nesta ordem.

A invasão do crusp deu um certo tom naquele belíssimo anoestudantil de 1979. Ano de muita atividade. Muita greve e mo-bilização, o congresso de reconstrução da une em junho (?) emsalvador da bahia e a invasão do conjunto residencial que estariapara acontecer em novembro.

Isso seria ótimo. Além do que, poderíamos estar mais perto docentro poliesportivo da universidade. Local predileto de todos.

Os prédios do conjunto residencial da usp ocupam a várzeado rio pinheiros no bairro do butantan. Foi concebido dentro doprojeto grandioso da universidade para abrigar os estudantes masnunca foi utilizado como tal ate então. É formado por uma sériede blocos de 5 andares com 9 apartamentos e uma sala de vivên-cia por andar. Os edifícios alinham-se em duas fileiras paralelasque lembram a esplanada dos ministérios de Brasília. Cada apar-tamento ofecere uma área de 50 metros quadrados, divididos emum quarto, uma sala de estudos e um banheiro. Com o evento dosjogos panamericanos de 63, os blocos de moradia foram terminadosapressadamente para alojar os atletas estrangeiros. A urgência daoperação fez com que as divisórias dos apartamentos fossem feitasde lambril de madeira, expondo-as aos riscos de incêndio e outrosproblemas menores, como a possibilidade das paredes externas po-derem ceder a um golpe mais forte, principalmente depois de umtempo de envelhecimento. Com o fim dos jogos panamericanos,os estudantes ocuparam os prédios colocando-os no desempenhode suas funções primordiais. Isso até 1968. Neste fatídico ano, oexército resolveu desalojar o que para eles era um “antro de co-munistas”. De fato, muitas células de partidos clandestinos funci-onariam ali, mas o exagero dos milicos logo se veria. Tanques deguerra foram colocados em colinas próximas aos blocos de moradiae os estudantes foram intimados a esvaziar os prédios sob a ameaçade um canhonaço. Sairam todos! Vários estudantes foram presossendo um deles um japonês, estudante de engenharia, que possuia

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um livro com o suspeitíssimo título de BOMBAS HIDRÁULICAS:“só podia ser terrorista”... imaginou o sargento. Depois desta, amoradia estudantil só seria permitida a estudantes estrangeiros depós-graduação ou algum outro de outros estados brasileiros: “é umpessoal mais pacífico” imaginou o general.

Deste então alguns prédios estavam abandonados à ruína ouocupados por orgãos públicos estranhos a universidade; um delesera o projeto rondom que ocupou o bloco A. Este bloco era o pri-meiro mais próximo do rio Pinheiros. Entre ele e o rio estava locali-zada a raia olímpica, única em toda a capital paulistana. Tinha-seuma belíssima vista dali. Por alguma articulação da burocraciauniversitária, o Projeto Rondom desocupou todo o quinto e sextoandares deste bloco onde estivera instalado. Haver um espaco va-zio, motivou os estudantes de 79 a organizarem o movimento proreabertura do CRUSP, que culminou com o acampamento em frentea reitoria.

A noite no acampamento, os estudantes se divertiam e conver-savam sobre assuntos que rondavam temas da política proletáriamundial. Dormia-se pouco, fumavasse muita maconha e ouvia-semuita reggae (e fazia-se sexo, furtivamente, é claro). A insignia desexo, droga e rock’n rool foi pouco alterada, como era necessário aqualquer jovem naqueles novos anos incríveis. Não sabiam, porqueapesar de estarem na dianteira, os estudantes do acampamento dos“sem-crusp” não dirigiam absolutamente os rumos do movimento.A diretoria do Diretório Central dos Estudantes era ocupada porintegrantes da corrente liberdade e luta (libelu, que é como, joco-samente, a chamavam seus adversários políticos. Uma referênciaao bilu-bilu, tratamento dado às crianças de colo). Os dirigentesda Libelu não haviam dado conta da importância desta singela rei-vindicação dos estudantes mas não demoraram a fazer. No final damanhã de ??/??/1979, na hora do almoço, em frente ao restauranteuniversitário, que ficava entre os blocos do conjunto residencial, foiconvocada uma assembléia estudantil para discutir a retomada damoradia. Uns 500 estudantes de reuniram e, sem muita controvér-

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sia, votaram pela imediata invasão dos quinto e sexto andares dobloco A, deixados vagos pelo projeto rondom. Toda a assembléiase levantou e saiu em passeata pelo corredor que separa as fileirasde blocos rumo ao objeto da invasão.

Para se chegar aos andares de cima, é preciso alçar uma esca-daria de concreto armado de uns 2,5 metros de largura. O prédiotinha elevadores que não funcionavam. Chegando ao quinto e sextoandares, os estudantes foram se esplalhando, visitando os aparta-mentos e fazendo seus planos de ocupação. Os andares haviamsofrido pequenas alterações para adaptá-los aos destinos de um or-gão burocrático. Entretanto, a divisão original ainda poderia serrecuperada. Uma alteração visível estava nos dois primeiros apar-tamentos mais próximos da escada, os de numeração mais baixacomo 501, 502, 601 e 602. Estes haviam incorporado a sala de vi-vência, de tal modo que cada um teria 2 quartos, um a mais queno projeto original.

A invasão do bloco A ocorrera numa sexta-feira(?). No sábadoe domingo seguintes, os estudantes começaram a arrumar a novacasa. Um dos blocos de moradia, o bloco F, tinha assistido a uminício de reforma, que foi abandonado em função das proibiçõesdo governo militar quanto ao alojar estudantes no campus da uni-versidade. Neste bloco várias peças de armários embutidos erammantidas armazenadas, ainda intactas e desmontadas. Quandoperceberam isso, os estudantes passaram a transferir estas peçaspara os apartamentos do bloco A. A burocracia do projeto rondomretirara os antigos armários.

Foi um formigueiro. Estudantes subiam e desciam escadas, emduplas, carregando partes dos armários. Enquanto outros faziam asmontagens em seus apartamentos ou auxiliavam moradores menoschegados ao manejo do martelo e da chave de fenda.

No apartamento 501, o formiga havia providenciado o trans-porte das peças para montar os armários nos dois quartos. Haviatrazido da casa de meus pais duas camas turcas e dois colchões depaina; coisas raras, vindas do sul do minas gerais. Trouxera, tam-

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bém, um chuveiro e uma chave de fusíveis para serem instaladosno banheiro.

Enquanto eram feitas as montagens nos quartos, outros mora-dores cuidavam da ligação do chuveiro. Não havia nenhum pontocom tensão de 220V, necessário à ligação, de modo que um parde fios foi sendo embutido pelo conduíte da fiação e levado até acaixa de distribuição de energia elétrica, que podia ser acessava nocorredor por uma portinhola de meio metro de largura por um dealtura, na divisa dos apartamentos 501 e 502. Coisa excelente parao trabalho de um operário anão.

Depois que todo o serviço de rosquear o chuveiro, instalar achave de segurança e esticar o fio até a caixa de distribuição estavarealizado, faltava alguém para fazer a ligação definitiva em algumlugar na caixa de distribuição. Formiga, ike, paulinho e eu éramosestudandes primeiro-anistas, não tínhamos optado por nenhumaespecilidade das engenharias. Baiano era estudante de eletrônicae gabor estudante de eletrotécnica. Com esses perfis curriculares,quem poderia se habilitar para fazer a ligação, trabalhando numespaço apertado e tendo que executar a tarefa com a rede de distri-buição ainda viva? Isso era tarefa para um engenheiro eletricista,vale dizer: eletrotécnico.

Gabor, descendente de úngaros, era a gozação e a distraçãoem pessoa. Depois de se esgueirar pela portinhola da caixa dedistribuição e reclamar do pouco espaço e da escuridão, finalmentese pôs em ação com a pontas dos fios numa mão e a chave defenda na outra. Nós aguardávamos no corredor, anciosos por podertomar um belo banho quente. Os banheiros do crusp eram bemaconchegantes e exóticos. Como deveriam servir para o uso detrês estudantes, na concepção arquitetônica original, ele tinha trêscompartimentos separados. Num, que ficava no pequeno corredorde entrada, haviam duas pias para a lavagem das louças, já queas roupas poderia ser levadas até a lavanderia central do conjuntoresidencial, onde se encontravam máquinas industriais. No outrocompartimento, fechados por paredes e uma porta, estava o vaso

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sanitário e o velho e bom bide, peça em desuso, lamentavelmente,depois do advento do papel higiênico. Assim, podia-se cagar comabsoluta privacidade. Outro detalhe ali era a acústica, facilidadapelas paredes de chapas de cimento amianto. Essa facilidade melevou a tocar meus primeiros (e únicos) acordes no violão, como único objetivo de poder cantar e cagar naquele banheiro. Aterceira e última peça era o box onde o nosso chuveiro aguardavafrio o serviço no nosso bravo companheiro eletricista.

Todos nos, no corredor, que esperávamos pelo gabor em frentea portinhola da caixa de distribuição vimos quando um relâmpagoreluziu como um flash e um estrondo pulou da portinhola, numabaforada seca. Dava pra ver um esqueleto se iluminado dentro doslambris. Demorou ainda um tempo até que o gabor respondesse aalguma pergunta. Poderia estar morto com uma detonação daque-las. Todos ficaram preocupados e o grupo em frente a portinholacomeçava a aumentar com a chegada de outros moradores assus-tados. E, eis que sai o nosso eletricista trapalhão com um sorrisobonachão no rosto e uma chave de fenda chamuscada na mão. Esseera o melhor gabor... Mas ele havia dado conta do recado. Depoisme deliciei com um banho vaporento naquele velho e excelente lo-renzeti 2200W que havia recuperado, na casa de meus pais.

Os armários ficaram uma beleza. Eram feitos de madeira delei. Cada um deles, tinha três módulos independentes; um paracada estudante. No quarto que ocupava parte da sala de vivência,instalamo-nos gabor, paulinho e eu. No outro, estavam ike, baianoe formiga. O Chang havia deixado um colchonete, mas mudou deidéia sobre se mudar para lá. Para um dos quartos, gabor trou-xera uma cama que se juntou às duas camas turcas e uma mesaescritório, tomada por empréstimo da faculdade de letras, clandes-tinamente instalada em áreas que pertenciam ao projeto originalda moradia estudantil. No outro quarto, uma cama beliche apare-ceu e o Formiga se esmeirava costruíndo uma cama com uma portae outros partes de tábuas de compensado que ele serrava com seuserrote Ramada.

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No corredor, o elevador que estava quebrado no dia da invasão,começava a subir e descer. Alguns estudantes haviam estado nacasa das máquinas e colocaram-no em movimento.

E’ incrivel o que a determinação faz com um bando de jovens.Afinal a rale podia mostrar o seu valor. Mas o conhecimento quecontrói, também desmonta. No sexto andar, uma central telefônica,acondicionada em um armário de aço de dois metros de altura, queabrigava milhares de chaves magnéticas, havia sido depenada peçapor peça, só sobrando a casca. O que iriam fazer com tantos re-lés, ninguém poderia saber. O Spuny, estudante de engenharia deum outro apartamento, havia construído uma chave elétrica, comparte daquela central, para poder abrir e trancar o seu quarto. Foia única coisa útil que se pode ver. Podíamos ter uma central te-lefônica funcionando. Seria o maximo! “CRUSP, BLOCO A, bomdia!... Um momento por favor...”. Mas, é bobagem, aquela centralera já antiquada e a burocracia universitária jamais forneceria as li-nhas telefônicas necessárias para essa operação. Teve bom destinoaquela pôrra de central. Assim como também teve bom destinoum aparelho de ar condicionado, cuja parte de aquecimento foi pa-rar no 501 aquecendo-nos nas noites frias. Faria um frio horrívelnaquela várzea de rio, nas próximas noites de inverno. Naquelesapartamentos com divisórias simples de madeira, o vento leste ui-varia firme nas janelas de vidro, na fachada do edifício de frentepara a raia olímpica.

Da janela do 501 a gente podia ver a noite cair e um boeingpassar razante sobre o trilho do maltratado pinheiros, rumo ao con-gonhas internacional com os seus incaíveis electras da ponte aérea.No outro lado do rio, a marginal alardeava o monótono rush dapaulicéia. A cidade escorria, adensando la pelos lados da pana-mericana onde termina a planura e começa a imensa colina até aheitor penteado e doutor arnaldo, copiando a lentidão do relevoda teodoro. Conforme a geografia ganhava altura, os sobrados setransformavam em edifícios e os edifícios em espigões e torres deteve nos arredores da paulista. Parado ali, todos os matizes das

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horas se apresentavam. O amarelo ofuscante transitava para o la-ranja; do laranja quente ao vermelho fogo, o vermelho para o azulprussiano e, por fim, o manto azul da noite cobria a cidade mil-iluminada. Se não se procurasse uma distração, alguém poderiasentir um frio estranho na espinha da alma, fruto de uma pequenasolidão madura, vinda de pensamentos sobre sampa e aquela calmaque atingia a cidade, depois de um dia maluco de trabalho. “Aquelacalma que atingia a cidade”... Felizmente, naqueles primeiros dias,depois da invasão, teríamos muito o que fazer lá pelos corredoresdo crusp. Era preciso travar uma batalha ocioso contra os anar-quistas espanhóis. Denunciar as traições do partido comunista eengrandecer as brigadas trotskystas, na luta contra o fascismo defranco. Proteger trotsky dos marinheiros de kronstad, etc.. Nãoera fácil. Enquanto essa batalha cheia de paixões ocorria contra oespanhol, até altas horas da madrugada, o spuny circulava enro-lado numa toalha, recentindo aquele cheiro de polvilho antisséticogranada e assoprando com competência a sua flauta de prata trans-versal: “passarinhando”, como dizia. Mais tarde, quando o adian-tado da hora habilitava o sono alheio, a passarinhada se transferiapara a laje de cobertura do edifício com a flauta se misturando aosom rouco-nasal de um fagote, propriedade de um outro músico fe-liz aninhado no bloco A. Invadido, o crusp ressurgiu do seu coma.Perderam os milicos mais uma e a burocracia universitária. Ganha-ram os estudantes mais uma batalha rumo ao poder e o socialismonão real.

Essa onda de invasões começou pelo restaurante universitáiocontra o aumento dos preços das refeições. Ela seguia uma táticacuja máxima se encontrava nas invasões operárias das fábricas, mo-mento em que se ensaia o período do duplo poder que se verificouna história das revoluções francesa e russa. As invasões do restau-rante eram dirigidas pela libelu que, até então conseguira manter osanarquistas como aliados. Algo parecido com a relação que tiveramos bolcheviques até a invasão de kronstad... É estranho de se pen-sar como a moradia estudantil não parecera um “móvel de luta”

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tanto quanto pareceram ser os preços do restaurante. A invasãodo conjunto residencial sob a iniciativa dos estudantes anarquis-tas começaria a criar algum cisma quanto aos troskos. A correnteanarquista tinha sua formação em escolas como a física e a geologia.Um dos filhos do mauríco tragtenberg estudava ali e trazia consigoa influência política do pai. Transformou-se em um dirigente equi-librado dos anarcos e ajudou a fundar a corrente estudantil “novorumo socialista”; ali também estava o espanhol. Na geologia, en-contraríamos o chaveco e na filosofia o filó, entre outros, como ojamil. Porém, ao contrário das lendas, a maioria dos estudantes queocuparam o bloco A era constituída de estudantes-estudantes, purae simplesmente, estudante. Nada mais. Evidentemente, a vida alifaria mais pela formação política daqueles jovens que muitas horasde pregação ideológica. Mas, a maioria, depois, continuou sendogente-gente. Nada mais que isso. Evidentemente muito hímen ro-lou por ali, assim como a marofa e outras drogas. Também algumestudante virou lúmpen, alguns equilibrados enlouqueceram e umou outro macho virou gay. Nada demais. Para alguns a influênciade ter sido gauche na vida nunca mais permitiu a normalidade.O crusp poderia ter sido, como uma bússula desimantada, umabiruta sem vento, a permissão para uma paixão, ou apenas umamoradia. Nada mais que isso. Afinal, éramos todos jovens: maisuma geração em curso. Nada mais... que alguns anos incríveis.

Os Troskos

Tinha balançado por duas horas numa bumba que me arrastoudesde os limites da zona norte até ali, onde começava a zona oeste,na entrada da usp. Algo como vinte quilometros num caminhotortuoso, sangrando vários pontos do bairro da casa verde, lugar dedesportistas como o “galo de ouro”, nosso campeão mundial de pesosmoscas e pena, alcançando o centro velho pela avenida rudge, atéa estátua de duque de caxias. Depois subindo a general olímpio dasilveira, continuação da avenida são joão, para atravessar perdizes,pegar a descida da cardeal arco-verde, cruzar o incerto pinheiros eterminar no rei das batidas.

Depois do ônibus, caminhei até o prédio da escola de engenhariade minas para fazer minha matrícula como calouro da politécnica.

Tentando cortar caminho, atravessei várias parte sobre o gra-mado do campus que estava muito alto. Quando cheguei no localda matrícula, tinha semente de grama grudada por todas as par-tes das minhas roupas. Um grupo de veteranos aplicava o trotenos “bixos” e me alcançou fazendo um estrago danado no meu ca-belo. Fiquei com aquele corte do mou, dos três patetas. Foi umamerda. Depois de enfrentar uma fila interminável para a matrícula,concordei, meio por cagaço, em participar do tradicional pedágioque resultou em ir para os semáforos dos cruzamentos da henriqueshauman com rebouças pedir dinheiro aos motoristas que ali para-vam. Tinha que dividir a “féria” com meus colegas veteranos, que,

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nessa altura, já eram indesejáveis.Com algum dinheiro no bolso, fui até a casa de minha irmã

e terminei o serviço no meu cabelo, fazendo um corte zero comuma lâmina de barbear. A cabeça reluzindo, voltei orgulho ao meurincão na zona norte. Sentia-me vitorioso com todos os sentimentosbons que só a vitória pode proporcionar.

Foi nessa pendenga do trote que conheci o bicho formiga. Nos-sos destinos teriam outras coincidências lá prá frente, quando par-ticipamos da invasão do crusp.

Nas primeiras semanas ficava confinado nas redondezas do pré-dio do biênio da poli, lugar onde estudavam os primeiro-anistas,bixos. Invariávelmente as aulas eram interrompidas pelo ataquedos veteranos que insistiam em cortar o pouco cabelo do calouros,impedindo que eles passassem de algum centímetro. Aos poucosessa arbitrariadade foi fermentando numa revolta que terminounum confronto físico entre os bixos e veteranos. Teve a virtudede por fim aquelas incursões de tesouras. Antes disso, encontraraalgumas vezes o formiga, puto da vida com as tesouras, trazendo,no lugar do cinto das calças uma corrente de aço. Estava prontopara o combate inevitável.

Além daquele tipo de veterano animado com a imbecilidadedo trote, outros costumavam interromper as aulas para dar o quechamavam de “informes”. alegrava-me aquela liberdade com queos estudantes disputavam a autoridade num espaço onde eu ha-via me acostumado a temer a imposição do professor. Eles erammilitantes estudantis. Jovens exercitando um discurso confuso so-bre militares, ditadura e coisas assim. Chegavam em dois gruposbem distindos representados por dois discursos antagônicos. Era oembate de duas correntes que dominavam o movimento estudan-til: refazendo-caminhando e liberdade e luta. Mais conhecidas porseus apelidos: reforma e libelu. Essas coisas me maravilhavam...Havia algum estilo naquela juventude. Na verdade, tudo aquilo foidando um nó na minha cabeça provinciana. Em 1977, assistira àsgrandes mobilizações de rua dos universitários através duma janela

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envidraçada num prédio de escritórios do largo do anchieta. Viaos estudantes correndo e ouvi um refrão indecifrável ecoando pelosedifícios da rua direita, dizendo: “queremos liberdade!”. Não sabiabem que tipo de coisa eles estavam pedindo. Liberdade era umareivindicação confusa. Sabia que eram todos comunistas. As bom-bas de gás explodiam no chão e vários grupos de jovens corriamdesordenados enquanto umas chevrolet veraneio apareciam em dis-parada, fazendo manobras rápidas naquelas ruas estreitas. Sentiameu coração batendo assustado, ali na arquibancada. Uma estanhasinestesia me havia tomado. Achei que deveria estar la embaixo,mas não tinha carteirinha para entrar na festa.

Agora que tinha credencial de estudante, tratei de correr paraonde o cheiro da fumaça fosse mais forte. Quando me dei conta,estava sentado no chão de cimento, no meio de um meio milhar deoutro rapazes ouvindo os discursos desencontrados de uma assem-bléia em frente ao restaurante universitário.

Um estudante de cabelo ‘a la’ novos baianos e chinelas havaian-nas fazia um discurso inflamado dizendo que não podiamos aceitaressa arbitrariedade da coseas. “O aumento do preço do bandejão éum balão de ensaio para implantação do ensino pago na usp”. Erapreciso invadir o restaurante e barrar o aumento! Terminou de fa-lar e foi ovacionado... percebi logo que a coisa ia esquentar. Eramuns caras esquisitos. Pareciam afetadamente maduros, mas eu de-veria ter a mesma idade que a maioria deles. Sentia-me ignorantee provinciano. Um pouco acuado. Outros estudantes interviramcontra e a favor da invasão. Havia uma ordem espontânea quegarantia o funcionamento da reunião. Uma mesa coordenava ostrabalhos e correspondia aos membros do DCE. Esses, do DCE,estavam pela invasão do restaurante contra o aumento. Estavamse saindo muito bem, pela reação da platéia. Ninguém se deu maismal que um tal de fred. Um sujeito de estatura mediana, usandoum capote longo, apesar de estarmos em pleno verão, bem maisvelho que todos e apresentando uma calvice razoável misturada aum sotaque nordestino. Aquele tipo de sotaque que só a intelec-

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tualidade nordestina carrega. Sinistro. realmente, sinistro. Mastinha uma determinação e paciência que só alguém experiente po-deria ostentar... Cara sinistro. Recebeu não só oposição mas vaiaassociada a alguns palavrões. Parecia ser um dos tais “ratos” queouvi falar por ali. Mas não era.

Depois dessa encrenca toda, chegamos a um momento da assem-bléia chamado de “regime de votação”, onde a assistência deveriaexpressar a sua opção por uma das várias propostas, levantando amão. Antes da votação uma série de procedimentos como “ques-tão de encaminhamento” e “questão de ordem” foram interpeladospor alguns estudantes até que se puseram de acôrdo e os braços selevantaram...

Quando percebi, estava com uma concha na mão, servindo feijãonum lugar onde se encontraria uma negra baiana de touca e aven-tal branco, em outros dias. Os estudantes invadiram o restaurante,atravessando a catraca e deixando numa caixa de papelão os ses-senta e seis centavos de cruzeiros, correspondentes ao preço antigoda refeição, não pagando o cruzeiro inteiro que queria a admins-tração da universidade, ”burocracia universitária”, no linguajar daassembléia. Foi um deus nos acuda e no final faltou comida por queos funcionários haviam desaparecido com alguns panelões, saindopelos fundos, instantes antes da invasão. Os comensais foram sim-páticos e tolerantes. Eram cerca de cinco mil, os que passariampor aquelas catracas até o final de um dia normal. Mas nesse dianão haveria jantar... Tudo bem, mais uma pendenga entrava emcurso.

No meio daquela agitação, na cosinha do restaurante, carren-gando um panelão de arroz, encontrei um cara chamado marcãoque era da politécnica, também. Não sabia, mas aquele cara eraum comunista. Na verdade, eu não sabia, aquele pessoal todo eratudo comunista. Havia aprendido com os militares que comunista étudo igual, mas já estava percebendo que haviam nuances. Matizesdiferentes, que não eram muito fáceis de separar.

O restaurante do crusp estava irremediavelmente invadido. Isso

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já era um fato repetido. Atrás do vapor das panelas acabei esque-cendo de que deveria estar com fome e, com as panelas mais sucu-lentas vazias, tive que me contentar com uma bandeja de refeiçãomagra, composta de arroz e feijão.

A comida do crusp não era das piores. Uma tal de bierclause,companhia privada, administrava o restaurante. Em 1977 o ban-dejão já houvera sido invadido. Diziam que a comida era péssima.Pernas de barata fizeram parte do cardápio durante muito tempo.Daquela vez, os invasores encontraram alguns escândalos para alar-dear. Contrastando com a refeição horrível servida aos estudantes,a dispensa do crusp ocultava, em 77, garrafas de vinho francês, con-servas finas e uma delícias etceteras, coisas guardadas para o deleitede alguns. Diziam que a burocracia se refestelava com aquelas bel-dades. É pouco provavel que burocratas se dignassem a colocara bunda em qualquer daquelas bancadas do refeitório. Provavel-mente, o restaurante se obrigava a abastecer a reitoria com umaou outra refeição emergencial numa daquelas manhãs atarefadasdo reitor e comitiva em que não dava nem para ir a algum lugardescente e se fazia uma boquinha por ali mesmo, sob os cuidadosda famigerada bierclause. Mas os dias dessa companhia estavamcontados.

Um ano depois, sob a pressão do diretório central dos estu-dantes, a universidade passaria a responder integralmente pelasatividades do restaurante, foi quando a refeição melhorou e passoua ter mais carisma, nas mãos daquelas negras e mulatas, agora fun-cionárias do estado. Fiz ali a maior parte das refeições da minhavida universitária e, acredito, não passei mal. A comida era meiopesada mas, aquele banzo da cesta, começou a fazer parte do meuorganismo no início das tardes.

Terminada a confusão com aquela fila indiana de comilões, osestudantes se dignaram a lavar os panelões vazios. Panelões právaler: dava pra cozinhar um homem adulto ali, sem ter que esquar-tejar. Nessa atividade meio besta encontrei ali o sujeito marção deantes. Passei também uma esponja com detergente naquelas pane-

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las e tratei de picar minha mula rumo à escola de engenharia ondealguma aula de cálculo me esperava. Mas, minha cabeça estavamuito agitada para poder pensar em qualquer coisa metódica. Fuipara a sede do grêmio politécnico onde a agitação era maior.

A invasão criou uma polêmica entre as correntes estudantis.Partidários de cada uma batiam boca sobre os erros e acertos dainvasão. Fala-se muito sobre os motivos da invasão de 1977 e adiscórdia girava em torno da interpretação do sucesso daquela ini-ciativa remota. Para os dirigentes do dce, as massas estudantisfizeram a invasão por conta do aumento do preço, enquanto os di-rigentes do grêmio sustentavam que o que tinha pegado era a máqualidade da comida. O que dava para entender era que, indepen-dentemente da polêmica, o método em questão era querer ser capazde ler a cabeça das massas e dar um significado consciente a umacoisa inexpressável como um sentimento coletivo. Interpretar os in-dícios e dar-lhe corpo, significado, ação... Parecia algo interessantede se exercitar. Parecia...

Fiquei ali meio zonzo, outra vez com aquele sentimento chatode ser pouco maduro: mal informado, provinciano, pobre, burro etudo o mais. Mas não me abative tanto. Havia notado que estavarecebendo uma atenção interessada para as coisas que arriscavacomentar, como que sendo sondado por aqueles estudantes paraver de que lado da pendenga iria tombar. Eram jovens da classemédia, educados e respeitosos, diferente daquela minha ralé da zonanorte; broncos, bons de bola e mal na escola. Aqui era o inverso:Ninguém sabia jogar além de peteca... mas e daí: também era umperna de pau e tagarelava mais ou menos.

A discussão estava acirrada. Era o tipo de discussão de mouros,interminável. Alguém sempre supunha estar carregando o fubá,rindo do outro atrasado, com um saco de milho nas costas. Comos libelus estavam o marcão, o mesmo da invasão do restaurante,juan, jorge, jean michel e nivaldo. Do lado da refazendo ficavamcelsinho, pedro, luis, jacques e márcio japones. Alguns alunos doprimeiro ano assistiam a confusão mais ou menos flexíveis. Era

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o meu caso e o de joca, paula e guilherme. Joca era um jovemda minha sala de aula. O pai dele fora estudante de engenha-ria civil da escola politécnica la pelos anos 50, contemporâneo domaluf, político corrupto do estado de são paulo. Naquele tempo,contou-me joca, o pai tinha sido militante estudantil e diretor dogrêmio politécnico. Numa das eleiçôes, fora procurado pelo jovemmaluf para pedir-lhe apoio a suas pretenções de ser presidente daentidade estudantil. Maluf, teria lhe dito que deveria seguir umadeterminação de sua mãe que lhe reservara a tarefa de ser políticona vida. O pai de joca recusou o pedido e maluf foi eleito tesou-reiro, numa chapa de direita que venceu as eleiçoes num daquelesanos distantes. Coincidência ou não, o único período em que oslivros de contabilidade haviam desaparecido, foi na gestao do ma-lufinho, ainda aprendiz de feiticeiro. Joca tinha mais dois irmãona escola, todos seguindo os passos do pai. Por conta dessa proxi-midade na sala de aula que comecei a freqüentar a sala do gremio.Por intermédio do joca conheci a paula e o guilherme. Paula foia primeira mulher militante que conheci. Tinha todo o esteriótipode mulher liberada, de botina e blue jeans. Guilherme tinha a carado que se chamava por ali de politípico, exceto seu interesse efê-mero por política estudantil. Ele também tinha um irmão maisvelho, parecido com ele e fazia algum outro curso na engenharia.A refazendo tinha um predomínio grande no movimento poíticoda politécnica. Formava uma grande família entrelaçada de laçosafetivos. Era pai que trazia filho e irmão mais velho arrastando ocaçula. De qualquer forma, devo a essa espécie de cooptação meiocamarada e meio prostituta a minha entrada para a política univer-sitária. Os sentimentos sempre foram o melhor meio de cooptaçãoda juventude universitária e a escola de engenharia favorecia isso.O ambiente da politécnica era desagradável, no geral. Engenhariaé uma carreira muito competitiva e se aprendia desde cedo, ali, ase pisar no outro como forma de ascensão. O meu primeiro dianuma sala de aula foi numa palestra de ”boas vindas” do diretor daescola, um sujeito cujo nome de família era o mesmo que o meu.

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Nossas semelhanças resolviam-se nisso. Lembro-me de uma únicafrase das intermináveis proferidas ali: ”um engenheiro que se formacom média cinco não é um engenheiro, é meio...” Confesso que essaestranha lógica martelou na minha cabeça de uma maneira desa-gradável. Meio engenheiro! Devemos ter por aí uns tantos setevírgula seis décimos de engenheiro construíndo prédios e viadutos.

Dessa conversa com o diretor, fiquei com a sensação de que onegócio não era bem por ali. Tive uma visão nítida do dia daminha formatura. Lá, com a minha toga, recebendo um diplomacom uma mão e um chicote com a outra. ”Vai, Zé, vai ser capataznessa vida”.

Ah! Mas, ainda bem, que isso tudo só veio em pequenas doseslentas e pouco freqüêntes. Devagarinho, o que permitiria sentir osdoces prazeres de ser jovem e cheio de devaneios.

Quando a discussão sobre a invasão do restaurante serenou.Deitei-me num daqueles sofás da sede do grêmio e comecei a son-dar, movendo apenas os músculos dos olhos, todo aquele espaço.Aquilo era uma zona! Moveis esculhambados, latas de tinta pelocaminho e inúmeras frases pichadas nas paredes com os gritos dajuventude. Palavras de ordem e frases proféticas de brecht se so-brepunham no antigo branco das alvenarias. Até quanto ao estadodas paredes haviam controvérsias. A refazendo queria pintar as pa-rede e dar um ar mais suave à sede, enquanto a libelu defendia, econseguia impor, as pichações. De qualquer modo, não havia lugarpara se escrever mais nada na vertical. Todo o horizonte, que nãodivisava as janelas era fraseológico. ”Pelas liberdades democráti-cas!” e ”abaixo a ditadura!” eram as frases que sintetizavam todaa discórdia na cúpula do movimento estudantil. Varrendo com osolhos o que estava ao meu alcance, vi passar o ano de 77 e o gritoque me chegava das ruas do centro velho carregado de medo: ”Que-remos Liberdade! Queremos liberdade!”. Um leve tremor percorreuminha espinha e adormeci. Quando acordei já estava entardecendoe era hora de ir embora.

Adormeci, de novo, balançando na bumba até a zona norte onde

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fui prosear com meus amigos de infância. Ramón era meu melhoramigo, tínhamos a mesma idade e crescemos juntos por aquelasruas. Ele sempre me ouvia curioso, querendo saber das coisas nauniversidade. Eu lhe contava com umas recheadas de exageros queera para impressionar melhor. Infelizmente nossos destinos começa-vam a se separar. Ele tinha se transformado no herdeiro da fábricade móveis do pai, basco osso duro e carcamano. Imigrante que con-quistou a duras penas o direito a ser patrão. Quando pequeno, nosdivertíamos muito no meio das peças de móveis empilhadas pelafábrica. Escorregávamos, com outros amigos, por entre as madei-ras até alcançar nosso esconderijo, onde fumávamos às escondidas.Os operários da fábrica eram nossos camaradas e passávamos ho-ras por ali, jogando conversa fora. Mesmo hoje, o barulho de umaserra elétrica me traz alguma paz.

—————Como represália, a reitoria manteve o restaurante universitário

fechado por vários meses. O balão de ensaio do ensino pago na usp,ficou vazio durante esse tempo. Na escola levavamos as coisas narotina. Entre uma aula e outra, uma discussão sobre os rumos dopaís e o fim da ditadura. Nessas discussões podia-se conhecer me-lhor a história de cada umas das correntes do movimento. A libeluera conhecida como a tendência mais radical. Pregava abertamentepelo fim da ditadura e denunciava as outras correntes como refor-mistas. A maior partes destas outras correntes estavam no interiordo mdb, partido criado pelos militares para fazer o papel da opo-sição consentida, após o decreto de ilegalidade de qualquer outropartido, além da arena e mdb. Arena concentrava os pró-militares.Para a libelu, sustentar o mdb redundava em apoio implícito aosmilitares, era preciso construir um partido operário. Nas eleiçõesde 1977 fizeram uma campanha pelo voto nulo por um partido ope-rário. As forças capazes de levar avante algum projeto desse tipoainda trabalhavam subterrâneas no interior das fábricas do abcpaulista, região de grande concentração de operários metalúrgicos.Nas discussões com os militantes estudantis, ficava se sabendo algo

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sobre a luta armada. Muitos deles faziam parte de organizaçõesque sustentaram as gerrilhas dos anos 60. Os estudantes da refa-zendo mostravam alguma divergência com os da caminhando sobrea necessidade de uma auto-crítica da luta armada de antes. Paraeles não era o momento certo, as massas camponesas nao estavampreparadas para essa ação exemplar, nos moldes da turma de fi-del na sierra maestra. Apesar das aparências na flexibilidade dascorrentes reformistas quanto às maneiras de se atacar a ditaduramilitar, a libelu era completamente avessa a gerrilha. Parecia umacontradição. Várias aspectos eram contrastantes entre os estudan-tes das várias correntes. Na música os reformistas gostavam degeraldo vandre, fagner e músicas de protesto. A libelu preferia ostropicalistas, rita lee, beatles e, especialmente, stones. Preferiamos surrealistas ao realismo socialista da união soviética. Modosde vida, aparentemente diferentes. Os reformistas tinham cabeloscurtos e roupas mais alinhadas. Os libelus usavam um visual meiohippie e mais escrachado (não todos).

Aos poucos os comunistas iam mostrando seus matizes e nãoeram tão tudo a mesma coisa. Nomes como marx, lenin, trotsky,stálin, mao, fidel e che, já podiam ser vistos como farinha de sacosdiferentes. Dependendo de onde você metia a mão, saiam pães dediversos tipos.

Aquela juventude, independente de qual influência política quesofresse, representava uma fatia rara no ambiente da escola. Poresse contraste, passava-se a despresar o estudante médio, metidono seu projeto individual de se formar o mais rápido possível parasair do que, para eles, vísivelmente, era um tormento. No prédioda engenharia elétrica, lugar das mais concorridas vagas de toda apolitécnica, existe, até hoje, um placar que marca regressivamenteo número de dias que faltam para a próxima turma se formar.“Faltam XX dias”. Uma frase garrafar, seca e significativa de todaansiedade e angústia daqueles estudantes. Os anos mais preciososde suas juventudes consumidos numa compulsão dolorosa.

Existia um cisma entre as agremiações da escola. No grêmio se

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reuniam os estudantes de esquerda e a direita se agrupava numasala ao lado, na associação atlética. Não havia nenhuma deferênciaentre os dois lados. Ruminavam uma antipatia correspondida. Aassociação atlética era uma espécie de bonificação aos estudantesreaças para que eles não se metessem nas questões do grêmio. Comodepartamento do grêmio, a atlética estava submetida a este nosestatututos. Não tinha finanças próprias e este era o único vínculoreal estabelecido com a entidade mãe. Uma vez se chegou a pensarem disputar a diretoria da atlética e estabeler ali uma política docorpo mais condizente com os referenciais progressista, resgatandouma visão reichiana de liberação do caráter. Uma coisa como tai-chi, lsd e jogo de peteca prá relaxar. Mas não vingou. Seria umpandemônio romper com o pacto de convivência com a direita.

O grêmio politécnico foi uma entidade milionária. O que fora atônica das agremiações filiadas a une, antes de 68. Era proprietáriode um prédio que abrigava uma casa de estudantes, a cadopô, umagráfica e um cursinho; tudo isso ao lado do antigo prédio da escolapolitécnica na avenida tiradentes. Outros departamentos, além daatlética estavam à disposição dos filiados. Havia um departamentode fotografia, outro de cinema e um grupo de teatro que já haviaretirado da carreira de engenheiro, atores profissionais como carloszara, que levava a vida no cinema e televisão. Mas os tempos deglória dessas atividades já haviam passado. Naqueles tempos, ascoisas andavam meio esvaziadas e aglutinava pouca gente. Mesmoassim, os que se metiam por esses meandros dificilmente saiamengenheiros.

Foi o meu caso e o da esmagadora maioria das pessoas queconheci que fizeram parte da turma de calouros de 1979.

As semanas se repetiam entre chacoalhar na bumba até o bu-tantan, assistir algumas aulas e me reunir com a comissão do pri-meiro ano. Essa comissão era um organismo informal do grêmioresponsável por levar o movimento entre os calouros. Inicialmentefomos nos aglutinando ali, a miúdo: joca, guilherme, paula — queeram supostos “herdeiros” da tradicão de dirigentes da ação popu-

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lar, dominantes no centro estudantil —, eu, ike, formiga, ernesto,paulinho e pacheco. Ike era um jovem de origem judaico-libano-frances. Falava bem o português mas enroscava na pronúncia doserres, o que parecia bem próprio para as suas tradicões lingüísticas.Recusava falar francês com seus compatriotas quando estivesse empresença de algum brasileiro. Essa deferência me chamou a aten-ção: coisa rara no ambiente esnobe da universidade. Formiga, quehavia conhecido por ocasião do trote aos calouros, vinha da perife-ria da zona leste — vila matilde — e além das correntes na cintura,para qualquer emergência, portava um livro de trotsky em baixo dobraço. Nunca tinha ouvido falar de Leon Trotsky, em breve serialeitura obrigatória no nosso círculo mais próximo. Ernesto era umdos raros jovens de origem negra que se avistava na vasta planíciedaquela várzea do pinheiros, tanto quanto o formiga era meio des-confiado quando às intensões de toda aquela gente. Na verdade,era pra se desconfiar já que, mesmo velada, percebia-se uma in-tenção principal para toda aquela prosa entabulada nos arredoresda agremiação. Entretanto, ninguém parecia mais amuado que opaulinho. Falava pouco e tinha sempre um pé atrás, para qualquereventualidade. Tinha passado toda a infância no interior de sãopaulo, lá pela fronteira do mato grosso. Sampa ainda não tinha lhemostrado o seu manto das possibilidades sem precisar pronunciaro sobrenome. Pacheco, o pachequinho, zé pinto — como ele nãogostava de ser chamado — falava aquela fala mole dos nordestinosde aracaju. O pai fora dirigente da união estadual de estudantesde maceió e se sentia mais a vontade dentro dessa história.

Num desses encontros, aparentemente fortuitos, fomos agluti-nando a comissão do primeiro ano e acertamos, tacitamente, atarefa de levar o fuzuê para aquela garotada aninhada na tarefade ir costurando a mão — ou a lápis — o diploma de bacharel-engenheiro. Precisávamos de algum pretestos para metê-los nacausa e concordamos que era um descalabro o prédio do biênionão ter uma sala de vivência para o aconchego dos calouros e pas-samos a discutir como sanar essa grave negligência do diretor da

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escola. Sala de vivência: esse seria o mote da luta!Numa tarde, nos reunimos em audiência com o martins, diretor

da escola, no prédio da escola de engenharia de minas, sede dadiretoria da poli. Era um homem franzino e engruvinhado pelopeso das atividades. Não fosse pelo corpo pouco acostumado aosexercícios físicos, poderia se jurar que era de formação militar. Umtenente-coronel, talvez. Era cordial, enquando os ditames da táticao obrigassem; executar essa manobra custava-lhe muito esforço.Foi com tolerância que ele buscou nos explicar como poderia serum erro nosso pedido pela sala de vivência. Não me lembro dosargumentos. Falou longamente e, acreditando que iríamos desistir,ficou de examinar o pedido.

Saímos dessa reunião fazendo uma avaliação da conversa. Es-tava claro, para todos, que não seríamos atendidos. Isso significaque havíamos escolhido a reivindicação certa. Tivéssemos deferi-mento e perderíamos nosso “móvel de luta”. Uma pendenga estavasendo montada... Aqui não importava se o primeiro ano sentiafalta de uma sala para se acostar. Qualquer reivindicação serviria,desde que mostrasse a face mesquinha do sistema. A arrogância dosmilitares havia contaminado todas as peças encarregadas de movi-mentar as engrenagens sociais. Aquele homenzinho que, se pudesse,daria meio diploma aos jovens que se formassem com média cinco,achava necessário jogar um braço-de-ferro com uns pirralhos, quecarregavam ainda as ferpas do cueiro no cú, em troca de uma salainútil no prédio do biênio. Nós não tínhamos consciência, mas aorigem da questão remontava ao rancor que essa gente carregavacontra as organizações da juventude. Ali não estavam uns pirra-lhos. Havíamos testemunhado um encontro da tradição construídanaquela escola pela existência da agremiação que sempre mediou acisão entre os campos de ação de todos os que passaram por aquelaescola. Martins, quando estudante, certamente odiou os que sereuniram em torno da entidade. Era sua chance de ir a forra comaqueles que o irritaram e tanto aborreceram o seu intermináveltricô de cinco anos e nota dez (será?).

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Conversando, saímos do prédio da minas em direção ao biênio,atravessando o prédio da engenharia civil. De todo o complexo deconstruções que formava as várias sedes dos cursos de engenhariada politécnica, o prédio da engenharia civil era o único que apresen-tava características arquitetônicas, com as preocupações estéticassuperando a funcionalidade. Enquanto cortávamos o corredor cen-tral, uma sucessão de vão quadrados ostentavam jardins e espelhosdágua postados sob o teto e recebendo a luz difusa das clarabóias.Junto às pilastras de concreto aparente e formas prismáticas, tu-bos transparentes serviam para escoar a água da chuva. Nos diasde tempestade, um fluxo de água descia no interior dessas calhastecendo espirais desde a cobertura até desaparecer ao rés do chão.Antes de atingir a saída, passamos ladeando a rampa de acesso àssalas de aula do andar superior, e paramos na cantina para tomarum café da máquina italiana. Nessa altura, já erámos capazes defalar sobre coisas mais amenas e conversamos algumas abobrinhasanimadas. Terminamos lentamente com aquelas xícaras de café enos encaminhamos silenciosos para o prédio do biênio. Fazia umforte calor. Era quase cinco horas da tarde, despedi-me do grupono andar inferior do predio do biênio, retirei minha bolsa na salade armários com uma toalha e o calção de banho e fui para o centropoliesportivo me refrescar na beira da piscina.

O cepê, como era carinhosamente chamado o centro poliespor-tivo, era uma das várias maravilhas abrigadas no campus univer-sitário. Além do parque aquático, tinha diversas quadras para aprática dos mais variados esportes, um ginásio para ginástica olím-pica e uma raía para a prática de remo. Nos meses de calor, aspiscinas ficavam lotadas de estudantes esparramados pelas lajotasde pedra de são thomé que circundavam as três piscinas. Haviaum tanque com trampolins e dez metros de profundidade para osalto ornamental, uma piscina olímpica e uma outra para a recre-ação, formada por três tanques hexagonais acoplados como numfavo de mel. Para se ter permissão de acesso às piscinas, era neces-sário fazer um exame médico tradicional quando, então, era aposto

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um carimbo vermelho na carteira de identificação estudantil. Evi-tando que a umidade apagasse o tal carimbo, os estudantes maisprecavidos, colovam sobre ele uma fita plástica adesiva que tinha acapacidade de fazer uma cópia fiel da marca vermelha. Esta fita ca-rimbada era negociada com os estudantes que nõ haviam passadopelo exame médico. Mesmo assim, peguei umas poucas micosesnaquela área. Atravessando as catracas do balcão de identificação,encontrava-se a aárea do vestiário, com suas excelentes duchas deágua aquecida, jato forte e relaxante. Um espelhinho d’água paralimpar os pés e o buchixo calmo do proseado afetado na beira daspiscinas. Tratei logo de dar um mergulho, me esticar sobre umapedra cálida e distender os músculos.

A cidade universitária era um verdadeiro oásis num sentido ur-bano. Haviam vários lugares encantadores. Dois deles me agrada-vam sobremaneira. Um era o centro esportivo, o que não surpre-enderia ninguém. Mas, havia um certo sitio no alto do morro dabiologia que escondia um jardim oriental onde me sentia melhor.Descobri isso por acaso, numa das andanças nas convalecênciasdo almoço do crusp. Pouca gente, ou quase ninguém, se via porali. Talvez nisso residisse a magia. Além de vários pinheiros exói-ticos com suas placas de identificação revelando algum trabalhometódico de catalogação, uma estufa megulhava abaixo do níveldo terreno abrigando várias samambaias e orquídeas refrescando abrisa que rossava de leve o alto do morro. Costumava caminhar porali, vez ou outra, não para qualquer meditação mas para poder es-tar por entre aquelas árvores no meio do bosque de mata atlânticaque circundava o jardim, pisar o manto de folhas cuneiformes quecobriam o chão, inalar aquela atmosfera rara e ouvir o farvalharcaracterístico dos pinheirais. É não dava prá se queixar...


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