Date post: | 06-Mar-2023 |
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MÁQUINA DE [FOTO]GRAFIA: CAPTURANDO IMAGENS
NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS
Brendo Vasconcellos de Faria
UFF – PPG ESTUDOS DE LITERATURA
Niterói, março de 2021
BRENDO VASCONCELLOS DE FARIA
MÁQUINA DE [FOTO]GRAFIA: CAPTURANDO IMAGENS
NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Estudos de Literatura, Instituto de Letras da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre.
Linha de Pesquisa: Literatura, Teoria e Crítica. Área de Concentração: Literatura Portuguesa e Africanas de Língua
Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª Ida Maria Santos Ferreira Alves
UFF – Universidade Federal Fluminense
Instituto de Letras
Niterói, março de 2021
MÁQUINA DE [FOTO]GRAFIA: CAPTURANDO IMAGENS
NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Estudos de Literatura, Instituto de Letras da Universidade Federal
Fluminense, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre.
Linha de Pesquisa: Literatura, Teoria e Crítica. Área de Concentração: Literatura Portuguesa e Africanas de Língua
Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª Ida Maria Santos Ferreira Alves
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ida Maria Santos Ferreira Alves (Orientadora – UFF)
__________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Mônica Genelhu Fagundes
Universidade Federal do Rio de Janeiro
__________________________________________________________ Prof.º Dr. º Pascoal Farinaccio
Universidade Federal Fluminense
SUPLENTES
_______________________________________________________ Prof.º Dr. º Luís Claudio de Sant’anna Maffei
Universidade Federal Fluminense
_________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria José Cardoso Lemos
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
AGRADECIMENTOS
Primeiramente aos meus guias, protetores e queridos Orixás que me acompanharam
durante todo o percurso desta dissertação, possibilitando caminhos abertos, sabedoria,
dedicação e um porto seguro, fundamentais para que eu prosseguisse, mesmo em momentos
de instabilidade.
À minha mãe, Adriana Vasconcellos de Faria, que dedicou toda a sua vida para que
seus filhos alçassem voos cada vez mais altos. Seus esforços, seu apoio e seu incentivo
fizeram deste percurso o pontapé inicial para o meu desenvolvimento acadêmico. Muito
obrigado, mãe, por ser meu espelho profissional e afetivo.
À minha orientadora prof.ª Dr.ª Ida Alves, a quem eu tive a satisfação de acompanhar
desde a IC até aqui. Em suas aulas, conheci a obra de Luís Quintais, e com suas orientações,
consegui adentrar e reconhecer esse novo mundo de fotogramas líricos. Muito obrigado
pelas conversas, pelos conselhos, pela paciência, pelo acolhimento e por acreditar nesta
pesquisa.
À querida prof.ª Dr.ª Maria Cristina Firmino Santos, do Departamento de Linguística
e Literaturas da Universidade de Évora, quem me acolheu durante meu intercâmbio em
Portugal. Agradeço especialmente pelo carinho com que me recebeu na Universidade de
Évora; por ter me dado de presente o livro A noite imóvel (2017), que me acompanhou
durante o intercâmbio e se tornou objeto de estudo nesta dissertação; e pelos riquíssimos
diálogos crítico-literários os quais tive a satisfação de acompanhar e de participar.
A todos os professores que tive, desde o Ensino Fundamental ao Ensino Superior.
Acredito no poder transformador da educação porque durante esses anos assisti a aulas que
me motivaram a buscar o conhecimento. Em particular, à minha grande inspiradora, a
professora Iara Bastos, cuja paixão pela literatura e pela educação fizeram despertar, em
mim durante o ensino médio, o verdadeiro prazer do texto; ao prof. º Dr. º Silvio Renato
Jorge, por quem fui belissimamente apresentado à Literatura Portuguesa, suas aulas foram
como viagens nessa outra terra; à prof.ª Dr.ª Diana Irene Klinger, com quem reconheci a
teoria literária, em suas consegui reencontrar a potência da literatura.
Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pela
bolsa de estudos e auxílio financeiro que possibilitou a dedicação ao programa de Pós-
graduação em Estudos de Literatura.
Por fim, a todos os meus amigos e familiares que contribuíram, direta ou
indiretamente, para a realização desta dissertação. Sem essa rede de suporte, não teria sido a
mesma gratificante jornada. O meu sincero agradecimento.
RESUMO
Esta dissertação propõe-se a analisar a interseção entre a produção poética e a produção
fotográfica do poeta português contemporâneo, Luís Quintais, desenvolvendo tanto uma
abordagem analítica das imagens poéticas criadas em seus poemas, como também das
imagens líricas produzidas através da sua câmera fotográfica, baseado numa teoria do ver
que perpassa ambas as textualidades. Nesse sentido, no primeiro momento, observa-se a
presença de um olhar meditativo e antropológico da voz poética, que resgata e descreve em
"fotogramas líricos" traços da memória, da violência e da ausência que marcam a condição
contemporânea; no segundo momento, objetiva-se demonstrar que a fotografia tornou-se
cada vez mais um suporte lírico para o poeta, que passou a produzir livros de poesia em que
as fotografias aparecem, também, como um objeto poético que põe em observação
fragmentos do mundo contemporâneo, realçando a melancolia, o luto e o fim através da
contemplação de marcas e contrastes da passagem do tempo.
Palavras-chave: Poesia contemporânea portuguesa, Luís Quintais; imagem poética;
fotografia; ruínas.
ABSTRACT
This dissertation aims at analyzing the intersection between the poetic production and the
photographic production of the contemporary Portuguese poet, Luís Quintais, developing
both an analytic approach of the poetic images created in his poems, as well as the lyrical
images produced through his photographic camera, based on a theory of seeing that runs
through both textualities. Therefore, at first we intend to observe the presence of a
meditative and anthropological eye at the poetic voice, which rescues and describes in
"lyrical frames" traces of memory, violence and absence that mark the contemporary
condition; while in the second moment we aim to demonstrate that photography has
increasingly become a lyrical support for the poet, who started to produce books of poetry in
which the photographs also appear as a poetic object that put fragments of the world under
observation contemporary, highlighting melancholy, mourning and the end through the
contemplation of marks and contrasts of the passage of time.
Keywords: Portuguese contemparaty poetry, Luís Quintais; poetic image; photography;
ruins.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Staircase ................................................................................................................ 28
Figura 2 - Sem título ............................................................................................................... 32
Figura 3 - Ideograma Mu, que significa “vazio”. ................................................................... 38
Figura 4 - São Jerônimo – Óleo sobre madeira de carvalho. 59,5 x 48,5 cm ......................... 65
Figura 5 - Untitled («Motion-Sound Landscape») ................................................................. 73
Figura 6 - Achilles Mourns Patroclus .................................................................................... 80
Figura 7 - Thetis Goes to Hephaestus for New Armor ........................................................... 81
Figura 8 - Priam Begs for the Body of Hector ........................................................................ 85
Figura 9 - Death of Bold Dancer ............................................................................................ 91
Figura 10 - Achilles Rejoins the Fight .................................................................................... 92
Figura 11 - About Buildings ................................................................................................... 98
Figura 12 - Budapeste, Setembro de 2016 ............................................................................ 102
Figura 13 - Food for thought ................................................................................................ 109
Figura 14 – Upload ............................................................................................................... 113
Figura 15 - E o Outono será sempre a estação .................................................................... 119
Figura 16 – Staircase ............................................................................................................ 130
Figura 17 – Staircase ............................................................................................................ 138
Figura 18 - Sem título ........................................................................................................... 148
Figura 19 - Sem título ........................................................................................................... 154
Figura 20 - Sem título / You taught men to break branches ................................................. 157
Figura 21 - Sem título / Tanto a beleza eu contemplei ......................................................... 161
Figura 22 - Sem título ........................................................................................................... 167
Figura 23 - Sem título ........................................................................................................... 194
Figura 24 - Sem título ........................................................................................................... 195
Figura 25 - Sem título ........................................................................................................... 196
Figura 26 - Sem título ........................................................................................................... 197
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 14
2. [FOTO]GRAFIA: A PROCURA DA IMAGEM ............................................................ 26
2.1 Brincava com uma lupa: a poesia atravessada pelo olhar........................................ 26
2.2 A imagem poética ........................................................................................................ 39
2.3 Pelas janelas as palavras: as formas de percepção ..................................................... 59
2.4 Um dia eternidade ou Algo permanece: grafar o tempo e a história ........................... 75
3. FOTOGRAMA: A FOTOGRAFIA COMO OBJETO POÉTICO ................................... 94
3.1 Observar, enquadrar, capturar: a fotografia também como objeto poético.............. 94
3.2 Uma figuração da luz ............................................................................................. 110
3.3 Persigo os fragmentos: ao constante encontro da fotografia .................................... 144
4. CONCLUSÃO .............................................................................................................. 169
5. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 174
5.1 Fontes primárias ..................................................................................................... 174
5.2 De outros poetas ..................................................................................................... 175
5.3 Fontes teórico-críticas ............................................................................................ 176
ANEXO I – POEMA DE CAMILO PESSANHA ............................................................... 184
ANEXO II – POEMAS DE WALLACE STEVENS ........................................................... 186
ANEXO III - CANTO LIII, OS CANTOS, POUND. TRAD. TRADUÇÃO DE JOSÉ LINO
GRÜNEWALD (2006) ......................................................................................................... 190
ANEXO IV – PEQUENO DOSSIÊ DE FOTOGRAFIAS DE QUINTAIS SOBRE O
JAPÃO .................................................................................................................................. 193
Eu sou aquele que longamente
Observa e escuta.
Procuro uma imagem,
Um resíduo da experiência.
Procuro um exemplo.
Uma figuração da luz.
Uma voz mistura-se
Com o rumor das acácias.
Um sinal de trânsito esplende
A rubra ruína. –
Voz, vento, ferrugem.
Luís Quintais
14
1. INTRODUÇÃO
Essa proposta de dissertação nasceu durante o meu período de intercâmbio, pelo
processo de Mobilidade Internacional da Universidade Federal Fluminense para a
Universidade de Évora, Portugal, como um desdobramento da minha pesquisa de Iniciação
Científica no âmbito do projeto UFF / CNPq: "Geografias da Emoção: Paisagens em
Movimento na Poesia Portuguesa pós-70", de minha orientadora, Prof.ª Ida Alves, no período
de 2016 a 2017. Durante esse tempo em terras lusitanas, fui acompanhado pelo livro A noite
imóvel (2017) do poeta português contemporâneo Luís Quintais, uma das obras poéticas em
análise nesta dissertação, que recebi de presente da Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Firmino Santos,
professora do departamento de literatura da Universidade de Évora. Nesse livro, pude
perceber poemas que teorizam o “ver”. Isso em função de o eu lírico estar em posição de
observador de cenas e a compor imagens poéticas que descrevem, a partir de um
enquadramento escolhido, objetos, ações, figuras sobre os quais propõe uma reflexão lírica e
fortemente antropológica. Como um fotógrafo, o poeta fixa em palavras um fragmento do
tempo-espaço que se transforma em imagem poética. Nessa espécie de fotograma lírico, vê-se
uma vontade de discutir a condição do homem, da linguagem e da imagem frente à vida
contemporânea, ao espaço urbano à sua volta e ao tempo presente, destacando como todas as
coisas são submetidas a indubitáveis mutações.
À medida que lia Quintais, por isso, sentia-me inquietado pelas imagens poéticas e
fotográficas – pois nesse período conheci a outra face do poeta que também é fotógrafo
amador – com as quais me deparava. Isso me fez buscar compreender como e por que essas
imagens tinham, em mim, esse efeito de incentivo à reflexão crítica. Encontrei, então, nos
textos de Didi-Huberman questionamentos e análises que apontam possíveis motivos para
uma imagem ser uma ferramenta de impulso à análise crítica. Com a leitura do ensaísta, pude
perceber que, no processo de olhar o mundo, o indivíduo, frente ao que contempla,
experimenta um duplo processo de observação: aquilo que vejo também me olha. Isso ocorre
porque, como podemos compreender na teoria da imagem pensada por Didi-Huberman, no
olhar atento a um objeto estético, por exemplo, o observador é capaz de perceber além da
figuração de algo, outra coisa ainda que, nesse olhar, o atinge. Esse fato decorreria,
principalmente, de uma “espécie de esvaziamento” experimentado pela observação, já que
15
essa imagem dá a ver não só o que está facilmente perceptível no campo do visível, como
também o que falta a ela: a imagem também representa uma ausência.
A imagem, desse modo, ao mesmo tempo que marca a presença de um elemento
concreto (um objeto, uma cena, uma pessoa etc.), marca também a sua ausência: não estamos
diante desse elemento de fato, mas de um rastro, de um vestígio dele. Em função desse duplo
movimento de representação, ocorre, para Didi-Huberman, uma sensação de perda por meio
da qual somos levados à percepção e ao resgate de percepções coletivas sobre o que vemos –
e que também nos observa novamente. Isso pode ser mais facilmente compreendido a partir
da observação de um álbum fotográfico. As imagens fotográficas ali presentes, por exemplo,
são fragmentos de um tempo-espaço real passado, a fixarem memórias do que não
gostaríamos de perder em imagens atemporais. Quando, tempos depois, nos colocamos diante
dessas fotografias, elas têm a potência de nos afetar: nós não somos mais aquelas pessoas
presentes naquelas cenas, mas essas cenas guardam vestígios visíveis e invisíveis desse um
tempo-espaço real passado. Envelhecemos, amadurecemos, nossa fisionomia não se manteve
igual, e, diante da imagem, somos levados a resgatar essas experiências coletivas e subjetivas.
Uma imagem guarda muitas memórias pelas quais, no ato de observação, também somos
inquietados. No entanto, o que na composição da imagem tem a potência de afetar o
observador? Como decorre esse processo de inquietação pela observação? Como a linguagem
e a percepção do artista se articulam durante a captura de imagens que inquietam?
Esses questionamentos me levaram a buscar em Didi-Huberman (2010), Jacques
Rancière (2012), Gaston Bachelard (1957), Roland Barthes (1981) e Michel Collot (2013),
algumas reflexões sobre a relação entre imagem, linguagem, mensagem e espaço, de modo
que pudesse compreender como os elementos constituintes de uma imagem – literária ou
fotográfica – podem incentivar o espectador a experimentar sensações subjetivas pela
observação. Ao passo que, em Vilém Flusser (2008), Susan Sontag (2004), Boris Kossoy
(2001) e Walter Benjamin (1928), consegui encontrar análises sobre a relação entre a
fotografia, a poesia e a ruína; a definição e a explicação de processos e técnicas da criação de
imagens poéticas pela linguagem literária e pela linguagem fotográfica; bem como reflexões
sobre as experiências subjetivas da contemplação. Minha proposta, com base nesses estudos, é
evidenciar como Quintais cria fotogramas líricos – pela linguagem poética e pelas câmeras
fotográficas – encenado e teorizando o ato de ver. A partir dessa perspectiva teórico-crítica,
selecionei dois livros do poeta português nos quais percebo um forte diálogo entre a
linguagem poética, a linguagem fotográfica e a visualidade como objeto poético. O primeiro
16
deles é o livro A noite imóvel (2017), em que Luís Quintais usa artifícios linguístico-visuais
em seus versos que descrevem imagens poéticas e põem o ato de ver em performance. O
segundo trata-se de um livro cujo gênero textual se encontra em suspensão, uma vez que é
composto de pequenos fragmentos reflexivos e Polaroides. Em Deus é um lugar ameaçado
(2018), Quintais mais uma vez põe o ato de ver em performance mediante recursos estético-
visuais que colocam em evidência os limites da imagem, da linguagem, da representação e da
percepção. Organizo, em função disso, minha análise em dois momentos: 1) uma análise da
poética de Quintais atravessada por um olhar fotográfico; e 2) uma análise da produção
fotográfica do poeta atravessada pelo seu olhar lírico. Examinar e discutir essas travessias
será o cerne de minha dissertação de mestrado. Com isso, proponho uma reflexão sobre a
produção poética (constante) em diálogo com a fotográfica (intermitente), nas quais vejo
técnicas semelhantes de construção imagética, seja no plano estético/de conteúdo, seja no
plano formal/de estrutura.
No primeiro momento, buscarei abordar alguns aspectos sobre a imagem poética,
através da análise da produção lírica de Quintais presente no livro de poesia A noite imóvel
(2017). Para isso, são necessárias algumas ponderações acerca do conceito de imagem e de
suas implicações formais e estéticas. Em sua obra poética, observa-se uma constante escrita
sobre o “ver”, em que pelas palavras fixam-se imagens. Nesse processo, frequentemente o eu
lírico está em posição de observador de uma cena a qual descreve, colocando-a em exposição
para um outro espectador: o leitor-observador. Consequentemente, procurarei mostrar como o
poeta tensiona a linguagem verbal de modo a criar imagens poéticas que recortam e fixam
fragmentos do mundo contemporâneo. Nosso primeiro passo, então, será compreender a
importância da imagem e da percepção visual para o processo de leitura de A noite imóvel
(2017), tendo em vista que o livro é um convite à contemplação e à análise de imagens foto-
grafadas e postas em exibição ao leitor-observador.
Foi necessário, nesse sentido, voltar a Didi-Huberman (2010) que propõe uma reflexão
acerca do ato de observação de uma imagem, destacando a experiência subjetiva decorrente
desse processo. Sua análise sugere que essa “experiência visual” afeta o observador, porque:
a) as imagens são dialéticas; e b) o ato de observação nos leva a uma experiência do vazio.
Em função disso, Didi-Huberman percebe que, diante da imagem, há duas possíveis respostas
do observador: 1) ele pode buscar perceber além do vazio experimentado através da imagem,
ou 2) ele terá uma reação tautológica, ou seja, não pretenderá ver nada além daquilo que é
visto. Didi-Huberman compreende a imagem como um objeto em tensão, que nos permite,
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pelo ato de observação, experiências subjetivas que podem afetar a nossa forma de percepção
visual. O ato de ver, nesse contexto, é afastado do pragmatismo – não se trata de uma
máquina de visualização e reconhecimento automáticos, mas, sim, de uma experiência que
afeta, incomoda, proporcionando ao sujeito novas percepções visuais. Nesta dissertação,
aproximo a reflexão acerca do ato de ver e suas experiências, analisados por Didi-Hubeman,
às imagens poéticas descritas nos poemas de Luís Quintais presentes no livro A noite imóvel
(2017). Busco perceber como a voz lírica, por meio da composição de imagens dialéticas
marcadas por ruínas, destroços e fragmentos urbanos, visa atingir o leitor de modo a
transformar o(s) seu(s) modo(s) de percepção não só da imagem grafada no poema como
também do mundo à sua volta. A partir de uma poética que põe em cena o ver, pretendo
perceber como, em A noite imóvel (2017), o poeta cria imagens poéticas por meio de
alegorias visuais que discutem a condição humana frente a ruínas, aos restos e aos vestígios
dessa condição.
Em Rancière (2012), também me deparei com reflexões sobre a composição da
imagem artística, seja ela representativa ou não. Em seu estudo, encontrei uma relação entre
linguagem escrita e a criação de imagens estéticas. O ensaísta destaca que a palavra faz ver
duplamente, já que ela depende 1) da abstração de imagens do mundo em símbolos e
vocábulos linguísticos; e 2) da compreensão de que o significado abstraído pela palavra
ocorre por uma tradução do símbolo linguístico em imagem cognitiva. A partir disso,
proponho um diálogo entre a criação de imagens nas artes visuais, pela grafia de imagens em
gravuras, pinturas e fotografias etc. com a criação de imagens na literatura, pela grafia de
imagens por palavras nos processos descritivos e narrativos – [foto]grafia. Isso porque a
linguagem poética é capaz de transformar as palavras – e seus significados – em cenas de
escrita uma vez que o artista pode, num movimento semioclástico, deslocar sentidos e, por
isso, criar novas relações e experiências poético-visuais. Assim, é possível o sujeito autor –
aquele que tem domínio sob as palavras – trabalhar com a escrita de modo a subordiná-la a
procedimentos estéticos e literários próprios de acordo com seu filtro cultural. Essa
capacidade de a literatura transformar palavras em imagens é uma reflexão sobre a forma de
composição das imagens poéticas e o seu processo de criação: construção de metáforas,
deslocamento de significados, quebra sintática pelos versos etc., pois essas técnicas da escrita
poética são mecanismos de construção de imagens únicas. É por meio dessa potência da
linguagem que Quintais cria fotogramas líricos mediante a voz de um sujeito lírico
frequentemente em posição de observador de uma cena, descrevendo-a lentamente e em
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detalhe. Esse uso ecfrástico é, nos poemas de Quintais, um modo muito constante de
converter a língua em as imagens poéticas dotadas de uma antropologia contemporânea. Mas
para quê criá-las? Como elas afetam o leitor de um poema? Em Quintais, tento perceber a
importância desse mecanismo estético para integrar poemas em que há uma reflexão social, e
por vezes política, da condição humana, em que são postos em crítica a percepção visual e a
textualidade, destacando efeitos relacionais que tencionam a linguagem, a percepção e a
imagem.
Recorro, então, ao filósofo Flusser (2002) que também se deteve ao estudo das
imagens. Em sua análise, Flusser desenvolve uma linha de raciocínio que percorre desde a
observação das primeiras imagens produzidas manualmente (um retorno à arte rupestre feita
pela civilização pré-histórica antes do advento da escrita) à observação das imagens
produzidas tecnicamente através de mecanismos analógicos (como a caixa preta e as câmeras
fotográficas digitais). Nesse estudo, Flusser destaca que essas imagens (diacronicamente) são
um produto – esboço – da tentativa humana de representar as coisas do mundo, funcionando
como um sistema iconográfico capaz de fixar em imagens a manifestação da imaginação do
homem. As imagens, nesse contexto, dão a ver formas à abstração presente no imaginário
comum, proporcionando modos de reconstruir a nossa percepção das coisas do mundo. A
partir dessa reflexão inicial, Flusser irá pensar as imagens a partir da sua capacidade de
abstração do imaginário, organizando-as em dois tipos: as imagens tradicionais e as imagens
técnicas (as quais retomaremos mais adiante). Nas imagens foto-grafadas de Quintais,
notamos que os objetos em cena – constantemente em estado ruinoso – carregam um caráter
alegórico e antropológico. Ao escolher o enquadramento, o foco e a cena, a voz poética
reproduz um fragmento da vida contemporânea, normalmente em ruínas, e nos convida
lentamente a (re)descobrir, também, a sua natureza histórica e antropológica. Contemplar
atentamente esses fotogramas líricos é uma forma de refletir sobre o mundo e seus restos,
sobre a natureza da condição humana, fragilizada, passiva e submissa à passagem natural do
tempo. Na contemplação atenta às ruínas, somos convidados a experimentar a ausência e uma
sensação de vazio que estimulam o resgate memorialístico de algo que seja capaz de
preencher esses vazios expostos pelos limites da frase-imagem. Em Quintais, observaremos
como as imagens poéticas figuram-se como alegorias que ressignificam poeticamente a nossa
percepção do tema em foco no fotograma lírico.
Acerca desse caráter alegórico das imagens poéticas de Quintais, encontramos um
diálogo possível entre a noção de fim e os objetos que compõem as cenas foto-grafadas nos
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seus versos. A natureza e o espaço urbano constantemente são representados a partir de um
enquadramento que coloca em questão seus aspectos ruinosos. Através da escolha desse
aspecto como tema da imagem, o poeta me fez recordar as concepções benjaminianas sobre a
“categoria do tempo”. Benjamin, em seu livro Origem do Drama Barroco Alemão [1928]
(1984), faz uma análise das ruínas presentes na história da humanidade – seja na arquitetura
seja nas artes – classificando-as como uma alegoria porque funcionam como um mecanismo
alegórico de constituição de sentido como produto da associação entre a natureza das coisas, a
sua história e seu estado de abandono e degradação. Em sua análise, é possível perceber que a
noção de alegoria é explicada a partir de um processo criativo de associação subjetiva entre o
significado de uma palavra (o signo linguístico – a abstração gramatical de imagens do
mundo), e as coisas existentes concreta e fisicamente no mundo real. Em uma alegoria, então,
ocorre a intensificação da subjetividade latente do mundo histórico a partir da percepção e
interpretação de imagens que esteticamente realçam o seu caráter cultural, histórico e
subjetivo. As ruínas, nesse contexto, aparecem como um recurso estético que tenciona a nossa
percepção do mundo, já que colocam em xeque que tudo na vida está condicionado ao fim, ao
mesmo tempo em que realçam que esse mesmo fim deixará sempre traços – ou lacunas no
espaço – que marcam simultaneamente a presença e a ausência, vestígios da história e da
memória. Os aspectos ruinosos dos elementos constituintes das imagens líricas de Quintais,
por isso, transformam-se em mecanismo alegórico que proporciona novos meios de percepção
e interpretação da noção de passagem do tempo, da condição das coisas frente à passagem do
tempo e da proximidade do fim.
No segundo momento, procurarei mostrar como há um produtivo diálogo entre a
fotografia e o olhar lírico de Quintais, estabelecendo uma relação entre o olhar poético que
atravessa e deixa marcas no olhar fotográfico. Para isso, detenho-me na contemplação de
fotografias do poeta que foram publicadas em sua plataforma Flickr1 e das Polaroides que
foram reproduzidas no seu livro Deus é um lugar ameaçado (2018). Noto uma forte
semelhança entre os seus processos de criação de imagens tanto pela linguagem poética
quanto pela linguagem fotográfica, uma vez que há a presença de temas comuns que
funcionam como uma espécie de filtro cultural que perpassa essas imagens: meditar sobre
uma antropologia, destacar os limites da linguagem e os limites da percepção visual. Com a
câmera fotográfica, o poeta cria fotografias que funcionam, também, como objeto poético:
elas evidenciam o seu filtro cultural e tendem a pôr em cena suas obsessões líricas como as
1 Disponível pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/
20
noções de tempo, de espaço e de mundo. Quintais desenvolve, assim, uma espécie de
fotograma lírico – tanto nas fotografias do flickr como nas Polaroides de Deus é um lugar
ameaçado (2018) – que se abrem ao observador em diversas possibilidades de compreensão e
resgate de crenças, vivências, paisagens e identidades perdidas num momento passado e
revividas sempre incompletamente por meio delas.
Seguindo essa linha de raciocínio, encontrei, em Barthes (1981), uma relação possível
entre a poesia e a fotografia. Em ambas as produções, devido à capacidade de fixar imagens, o
semiólogo percebe mecanismos que transformam a linguagem, captam o instante e recortam o
real. Isso porque o uso ecfrástico da linguagem é capaz de fixar imagens que, como na
fotografia, são capazes de produzir studium e punctum, levando o espectador, em função dos
elementos linguístico-visuais constituintes da imagem, a um estado de reflexão e meditação, o
qual tende a modificar a forma como aquele interpreta e experimenta a realidade objetiva.
Com essa perspectiva, é possível compreender que a fotografia se configura como um
mecanismo artístico de captura de fragmentos do instante real, que conjuga a realidade com o
efeito de real. Este, para Barthes, é fator fundamental para que o espectador possa ser guiado a
experimentar e a vivenciar a realidade objetiva, seu passado, presente e futuro. As imagens,
com isso, incorporam o instante passado real, e como pegada mortuária, nos colocam diante
de um rastro daquilo que já não está mais à nossa frente no momento presente. Nesse
contexto, ao propor um recorte do real, na fotografia, o enquadramento e a manipulação da
imagem transformam-se, então, num mecanismo que recorta e tensiona a nossa percepção da
realidade.
Essa dupla realidade proporcionada pela fotografia é uma das características próprias
do processo fotográfico que o configura como um ato de aquisição, por possuir controle do
objeto fotografado. Nessa perspectiva, a partir do momento em que o fotógrafo decide uma
realidade a ser fotografada, ele passa a possuir um fragmento do tempo-espaço. Com isso, a
imagem fotográfica transforma-se em um mecanismo que transpõe as barreiras da mera
representação mimética de um objeto concreto da realidade, haja vista que, ao propor a
fixação, em imagem, de um fragmento do tempo passado, a fotografia pode ser vista como
uma arte que lança mão de uma dialética da imagem. Dialética essa responsável pela fricção
da linguagem visual, que dá a ver não somente o que se encontra visivelmente perceptível na
cena fotografada, mas também aquilo que reside nos limites da linguagem visual e que
somente é acessado através da subjetividade do observador. A imagem fotográfica é uma
forma possível de resgate, análise e reflexão da condição humana, já que promove
21
experiências subjetivas pela aproximação entre o visível e o invisível, o dizível e o
experimentado, a presença e a ausência.
Essa compreensão me fez procurar, ainda, em Sontag (2004), uma possível potência
antropológica das imagens fotográficas. Segundo seus estudos sobre a história da fotografia, a
técnica fotográfica é um mecanismo de registro material da cena em observação, pelo qual o
artista deixa marcas subjetivas, como uma realidade oculta oriunda dos processos técnicos de
fixação de imagens por câmeras fotográficas, do enquadramento e da cena a ser fotografada,
de tratamento e das edições aplicados à fotografia. Nesse cenário, a máquina pode ser
compreendida como extensão do filtro do fotógrafo, pelo qual é intencionalmente selecionada
uma cena composta por objetos delimitados pelo campo de visão do artista e pelo
enquadramento da câmera. São talhadas, como resultado, pequenas nuances imperceptíveis:
um vestígio de algo que não se percebe pelo horizonte da fotografia. A ensaísta entende,
ainda, que a técnica fotográfica é um mecanismo de composição artística que produz uma
obra que não só representa uma realidade tal qual ela foi – dotada de mimetismo e fidelidade
ao real objetivo –, como também tem a potência de destacar o fragmento do tempo-espaço
fotografado, dando margem ao espectador, interlocutor da mensagem fotográfica, para
analisar, refletir e reinterpretar a imagem em exposição e observação. Ao propor um recorte
do real, o olhar fotográfico, o enquadramento e a manipulação da imagem convertem-se num
mecanismo linguístico que fragmenta a continuidade do tempo-espaço e distribui seus
fragmentos em um dossiê interminável da percepção visual das coisas do mundo.
Na produção fotográfica escolhida de Quintais, viso perceber como esse recorte do
real promove uma expressão artística que põe em contemplação e meditação fragmentos da
condição das coisas no mundo. Suas fotografias são dotadas de caráter artístico, pois a cena
fotografada pode instigar, em seu leitor-observador, diversas formas subjetivas de percepção
da realidade [re]apresentada na imagem. O poeta-fotógrafo procura por cenas em que o tema
fotográfico é realçado pela análise de objetos em estado ruinoso e de abandono em contraste
com uma natureza viva e sobrevivente. Nesse contexto, são fixados na imagem também
estilos próprios do artista, possibilitados, sobretudo, pelo emprego dos recursos de edição
estético-visual dessas imagens.
Em decorrência disso, busquei em Boris Kossoy (2001), um fotógrafo, pesquisador,
historiador e professor brasileiro, a reflexão necessária para compreender as impressões
subjetivas deixadas pelos fotógrafos em suas imagens. Com a leitura de seu estudo, entende-
se que a interpretação de um tema fotográfico está diretamente ligada aos interesses e às
22
preocupações estéticas do fotógrafo. Isso porque o ensaísta estabelece um conjunto de
princípios fundamentais que trazem luz para uma compreensão acerca da natureza e da
técnica da fotografia. O fotógrafo brasileiro, então, traça uma cartografia e uma genealogia da
fotografia, a partir de uma percepção da natureza fotográfica como um recorte e um registro
documental e expressivo, da própria autonomia e da própria realidade – uma possível segunda
realidade – projetadas através dos vestígios visuais das intensões estético-culturais do artista.
Sendo assim, os elementos que fazem parte de uma composição fotográfica – espaço, o
cenário e os objetos em primeiro e segundo plano – associados às escolhas estético-visuais do
artista – enquadramento, luminosidade, angulação e edição final – foram arquitetados e
articulados segundo uma necessidade subjetiva do fotógrafo. A fotografia, com isso, cria uma
outra realidade a partir de um recorte visual do real como consequência da subjetividade e do
olhar artístico que transita do fotógrafo para a imagem. Nesse sentido, toda fotografia irá
mostrar ao observador uma realidade subordinada ao filtro cultural do fotógrafo, este que, nas
produções tanto fotográficas como poéticas de Quintais, fica evidente através da percepção
antropológica, meditativa e contemplativa sobre as coisas do mundo contemporâneo
impressas pelo poeta-fotógrafo em suas imagens. Nas suas fotografias, destaco ainda que seu
filtro cultural seleciona de um cenário banal da vida urbana – que muitas vezes poderia nem
ser percebido em meio à correria cotidiana da vida contemporânea – elementos que são
delimitados pelo seu próprio “horizonte interno” da paisagem urbana acessado pelo seu
campo de visão, em detrimento e em exclusão de todos os outros elementos que compõem o
“horizonte externo” dessa mesma paisagem. O seu filtro cultural destarte promove um recorte
ainda mais intenso da realidade fragmentada pela nossa percepção do mundo circundante.
Esse rastro cultural do fotógrafo me estimulou a buscar pela compreensão da relação
entre o homem e o espaço, uma vez que constantemente as fotografias de Quintais têm como
tema objetos em ruínas presentes no espaço urbano comum. Em Michel Collot (2013), as
noções de paisagem revelam que há uma interação subjetiva entre o homem e as cenas
presentes no espaço. Isso quer dizer que a percepção visual de uma paisagem é delimitada por
dois fatores básicos horizonte externo, circunscrição espacial da paisagem até um ponto onde
nada mais se torna visível, e o horizonte interno, um recorte visual do espaço delimitado pelo
campo de visão do espectador. Ocorre, nesse contexto, que as lentes da câmera se tonam um
possível terceiro recorte do espaço, devido à fragmentação subjetiva determinada tanto pelas
capacitações técnicas do aparelho fotográfico como – e senão principalmente – pelo filtro
cultural do artista que seleciona a cena de acordo com suas obsessões líricas. À vista disso, o
23
nosso processo de compreensão do que vemos no espaço reage sensivelmente no nosso corpo
a partir de estímulos sensoriais de familiaridade. Olhar, compreender e interpretar é um
processo cognitivo que depende dos conhecimentos – históricos, empíricos, culturais, sociais,
acadêmicos, subjetivos etc. – intrínsecos ao observador.
Essa concepção subjetiva do que vemos no espaço, por isso, também pode ser
associada à técnica de fixação de imagens por câmeras fotográficas. Para decifrar e
compreender a mensagem transmitida pela imagem fotográfica, é necessário que o observador
se atente não só aos objetos da cena, mas também às técnicas de manipulação dessa imagem.
Nelas são deixadas marcas que guiam o nosso olhar para coisas selecionadas pelo filtro
cultural do artista e que, desse modo, carregam, para ele, um valor simbólico e estético. Essa
é uma das faces ocultas dos objetos no espaço que, para Collot (2013), é alcançada pela nossa
capacidade interpretativa dos seus sentidos simbólicos. De modo semelhante ocorre na técnica
fotográfica, porquanto a apreensão do recorte promovido pela câmera fotográfica dos objetos
no espaço estará igualmente subordinada e atravessada pelas marcas da história e do tempo,
deixadas tanto no mundo real quanto na fração subjetiva capturada pelo artista desse mundo
real. Assim, a porção de região que a fotografia dá a ver não é jamais considerada como
absolutamente isolada, há lacunas e vazios que devem ser preenchidos pela contemplação do
observador. Silenciosa e invisivelmente, a imagem conversa com o observador. É o que
veremos através das fotografias de Quintais, onde seu filtro cultural, nesse sentido, faz que o
leitor-observador experimente através da experiência visual sensível das ruínas do espaço
urbano, dos vazios do mundo contemporâneo, das limitações da linguagem e da
representação, um momento de reflexão crítica. É como compreender os objetos fotográficos
como ruídos simbólicos da relação transubjetiva entre o homem e o espaço.
Bachelard (1957), por conseguinte, é invocado neste estudo como uma abordagem
teórica para compreender que entre o sujeito e o espaço há inter-relações sensoriais subjetivas
que condicionam o modo como um ele vê, sente, experimenta e [re]age ao espaço lírico criado
por imagens poéticas. Para o ensaísta, uma imagem poética funciona mais do que simples um
eco – uma cópia – de um objeto do real espaço, ela é variacional e subordinada às sensações e
memórias afetivas – positivas e negativas – que fazem parte da história do homem que
vivencia um espaço comum à sua volta. Se na física toda ação gera uma reação contrária de
maior ou menor intensidade, no espaço – a casa, a escola, o bairro, a rua, a cidade etc. – as
ações vivenciadas pelo indivíduo também deixam marcas subjetivas na memória, e, portanto,
na história pessoal que é resgatada, como numa viagem de retorno à casa de infância, pela
24
observação do espaço e das alterações nele talhadas pelo tempo. Nessa perspectiva, as
imagens poéticas levam o leitor a [re]vivenciar experiências subjetivas, inquietando-o para
[re]encontrar, no valor simbólico do espaço, a natureza das coisas. Acerca desse valor
simbólico do espaço, Bachelard debruça-se sobre o estudo da fenomenologia, porque ela é
uma ferramenta que traduz a percepção transubjetiva das imagens arquitetônicas apresentadas
na literatura. Isso porque o ensaísta desenvolve uma teoria psicoemocional sobre os homens e
as formas de afeto e sensibilidade estabelecidas entre eles e o espaço que os cercam. Na
literatura, por sua vez, pode-se chegar a uma reflexão sobre afetos no espaço, pois as relações
vivenciadas nesse espaço vivido determinam o vínculo afetivo criado com esse espaço vivido.
Na fotografia, então, ao fixar uma imagem de determinado espaço, o fotógrafo põe em cena
essas marcas subjetivas talhadas pela relação entre o homem e o espaço ao longo do tempo.
Ao perceber essas marcas, o leitor-observador, tal como frente às imagens poéticas, é guiado
a uma viagem interna pela memória, pelo tempo e pelas sensações afetivas impulsionadas
pelo horizonte interno das câmeras fotográficas como recorte do filtro cultural do artista.
Em função dessas abordagens teóricas aqui articuladas, vamos observar os elementos
composicionais do espaço poético representado nas fotografias de Deus é um lugar ameaçado
(2018). Nessas imagens, veremos a fixação do tempo – a intersecção entre um passado, um
presente e um futuro. E veremos como essa apreensão das marcas deixadas pela passagem do
tempo nos objetos do espaço fotografados por Quintais – que por vezes podem passar
despercebidas pelo olhar desatento – podem ferir o observador com um golpe certeiro. Em
Deus é um lugar ameaçado (2018), as Polaroides2 grafam pequenos fragmentos do espaço
que fazem o observador refletir sobre o que ele vê e o que ele não vê. Observar atentamente
essas imagens é compreender a forma como o espaço fotografado conversa com o observador,
convidando-o a perceber e acessar informações sensoriais, históricas e memoriais que se
fundiram e se ocultam nos vazios do limite da representação visual.
Por fim, optei por acrescentar uma seção extra composta por algumas imagens que são
resgatadas – pela linguagem lírica ou pela linguagem fotográfica – nos fotogramas líricos de
Quintais. Essa escolha deu-se porque seja na poesia, seja na fotografia, em algumas de suas
imagens poéticas são evocados elementos visuais que fazem alusão a outros artistas ou a
outras obras literárias ou plásticas. Senti, à vista disso, a necessidade de mostrar alguns dos
ecos imagéticos que aparecem quase que imperceptivelmente nos limiares da linguagem
2 Algumas das Polaroides presentes no livro serão reproduzidas e analisadas ao longo deste trabalho.
25
lírico-visual de Quintais, como Homero, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa e Wallace
Stevens.
Deixo em anexo, portanto, um poema de Camilo Pessanha [Imagens que passais pela
retina], com o qual proponho um breve diálogo com uma imagem poética de Quintais. A voz
de Pessanha ecoa pela citação indireta – uma apropriação discursiva – num verso de Quintais,
retornando a uma percepção das transformações das coisas durante a passagem do tempo e
das marcas deixadas por esse processo – no estado das coisas no mundo – também anunciadas
pelo eu lírico de Quintais. Além disso, seguem alguns poemas de Wallace Stevens, poeta
norte-americano cuja obra é um lugar de leitura e de retorno para pensar o papel do artista e
da linguagem no processo de criação literária, teorizado pela percepção visual nas imagens de
Quintais.
Há também em anexo um poema de uma das grandes vozes do modernismo norte-
americano, o grande poeta, músico e crítico literário Ezra Weston Loomis Pound. Tal como a
obra poética de Pound realça os limiares da representação pela linguagem visual e pela
linguagem poética, os poemas e as fotografias de Quintais propõem uma observação daquilo
que aparece e desaparece pela insuficiência da linguagem. Esse poema que reproduzo
integralmente encontra-se em uma das Polaroides de Deus é um lugar ameaçado (2018) que
analisaremos ao longo desta dissertação. Na fotografia, no entanto, vemos apenas trechos do
poema citado.
Por fim, encontram-se em anexo as fotografias de Quintais que compõem um breve
dossiê fotográfico do Japão, como uma meditação sobre a importância da imagem na cultura
japonesa. O ensaio, que também se encontra disponível no blog do poeta, realça como a
tradição oriental, como as ações de contemplação e meditação, são evocadas pelo poeta que
visa propor, a partir de seus fotogramas líricos, condições para a contemplação das ruínas do
mundo contemporâneo, das ruínas da linguagem e da representação; e para a meditação sobre
o que se vê e o que se experimenta sensivelmente por essas imagens. É válido ressaltar, ainda,
que essas fotografias do Japão foram retiradas durante uma viagem de Quintais ao país que
deu origem ao livro Regressarás a leveza do ver: uma viagem ao Japão (2020) também
composto por fotografias e fragmentos de reflexões poéticas, publicado pela Huggly Books.
26
2. [FOTO]GRAFIA: A PROCURA DA IMAGEM
Um vestígio contempla-te gaze em apodrecido rosto, frágil substância deslocada película a película, lâmina a lâmina, pétala a pétala.
Luís Quintais
2.1 Brincava com uma lupa: a poesia atravessada pelo olhar
A noite imóvel (2017) é um dos livros de poesia de Luís Quintais3 no qual podemos
observar uma relação direta entre poesia e fotografia. Lançado em 2017, nesse livro
observamos a presença de objetos, práticas e temas que são comuns às suas obras anteriores,
em especial a construção de uma poética capaz de produzir a aproximação entre a escrita e a
observação, propondo uma espécie de teoria sobre o próprio ato de ver e (d)escrever aquilo
que vemos através da linguagem poética. O livro é formado por um longo poema em prosa
introdutório, precedido de uma fotografia, duas epígrafes retiradas de poemas de Wallace
Stevens (“Night and the imagination being one.” e “We say God and the imagination are
one...”) e do caractere mu (無). Além disso, o objeto-livro em questão é organizado em 7
seções: “A noite imóvel”, com 56 poemas, alguns formados de verso único e dispostos de
modo contínuo; “Escombro”, com 10 poemas; “Wunderkammer”, com 24 poemas, incluindo
uma prosa poética, que destaca ruínas e fragmentos do mundo; “Ílion” com 8 poemas que
fazem referência direta a imagens e cenas descritas na Ilíada (séc. VIII a.C.) de Homero; “O
príncipe da imaginação” com 7 poemas nos quais a voz lírica busca resgatar, através de
imagens poéticas que destacam a passagem do tempo e memórias subjetivas; “Uma vida” com
3 Antropólogo, professor, poeta, crítico, ensaísta e fotógrafo amador, Luís Quintais nasceu em 1968 em Angola,
mas cresceu e viveu em Lisboa, licenciando-se em Antropologia Social no ISCTE. Em 1995, foi para Coimbra,
onde se encontra como professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Como poeta,
teve sua primeira obra A Imprecisa Melancolia (1995), publicada em 1995, com o qual arrecadou o Prémio Aula
de Poesia de Barcelona. Após esse primeiro momento, continua publicando livros de poesia: Umbria (1999);
Lamento (1999); Verso antigo (2001); Angst (2002); Duelo (2004); Mais espesso que a água, (2008); Poemas
(2008); Riscava a palavra dor no quadro negro (2010); Poesia revisitada (2011); Depois da música, (2013); O
vidro (2014); Arrancar penas a um canto de cisne (2015); A noite imóvel (2017); e Agon (2018) Como fotógrafo,
prefere “espaços urbanos, ou restos deles, arquitecturas em declínio, ruínas, decadências e pó”, nos quais
consegue encontrar suas “particulares obsessões e declinações como escritor”. Em 2018, publicou o livro Deus é
um lugar ameaçado (2018), no qual conjuga fotografias e textos reflexivos em prosa. Seu mais recente trabalho,
Regressarás à leveza do ver: uma viagem no Japão (2020), corresponde a uma série de textos que se cruzam a
imagens fotografadas durante sua viagem a esse país.
27
42 poemas, pelos quais a voz poética põe em observação fragmentos da vida e da história do
mundo, e, por fim, a seção “Um planeta de acidente” com 26 poemas. Somando, por fim, um
total de 174 poemas, de variadas extensões, em verso e em prosa. Nos poemas desse livro,
encontramos uma voz lírica que, a partir da utilização da linguagem verbal, cria imagens por
vezes miméticas à realidade, por vezes plenamente metafóricas, que visam propor uma
reflexão mais profunda em especial sobre a condição humana e sobre a vida cotidiana. Nessas
imagens poéticas – um retrato arruinado da vida contemporânea –, o poeta constantemente
destaca elementos banais diários, com ênfase normalmente no espaço urbano, focalizando
seus aspectos decadentes. Somos levados a contemplar, tal como o eu lírico, um fotograma
composto por esses restos da contemporaneidade. Nesse livro, por isso, há uma forte
correlação entre a poesia e um possível olhar fotográfico.
Quintais, além de antropólogo por profissão e pensador lírico por autodefinição, é
fotógrafo amador. O poeta começou a fotografar especialmente porque muitos de seus textos
poéticos, críticos e ensaísticos são sobre o ato de ver. Em 2018, com o livro Deus é um lugar
ameaçado (2018), composto de fotografias e textos meditativos, Quintais publica seu
primeiro livro em que conjuga imagens – fotografadas – e o lirismo atravessado pelo seu olhar
antropológico – com meditações poéticas sobre o ver –, numa obra que discute limites da
percepção, inclusive o da própria categoria de gênero: é um livro de poesia ou de fotografias?
Em suas imagens fotográficas (disponíveis digitalmente ou reproduzidas nas páginas de seus
livros), somos confrontados com objetos que indicam para nós alguma ausência. Edificações,
objetos do dia a dia e a natureza – frequentemente fotografados em decadência ou abandono –
são imagens comuns no enquadramento e na cena escolhidos como forma de pensar a
fragilidade, a violência e a morte nos rastros da contemporaneidade. Em seu blog, declara que
gosta de fotografar “espaços urbanos, ou restos deles, arquiteturas em declínio, ruínas,
decadências e pó”.4 Seu olhar atento, capta imagens dialéticas que dão a ver o visível – o que
vemos, o que conhecemos –, e o invisível – o que não vemos, o que não conhecemos.
O poeta, desse modo, compreende as imagens fotográficas como um lugar de arquivo:
há na fotografia a interseção entre o tempo, a história e a memória, uma vez que as fotografias
são traços, rastros, indícios de algo. Como observador e fotógrafo amador, por isso, interessa-
4 Esse trecho foi extraído da seção “Por si mesmo”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o próprio apresenta-
se ao seu leitor, destacando um pouco de sua história, de suas obsessões líricas e fotográficas e de sua biografia.
Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/
28
se por fotografias em que repara seus “particulares obsessões e declinações como escritor”.5
Na fotografia Staircase6, (que segue abaixo – Figura 1) por Quintais, podemos perceber, a
partir dos elementos existentes na composição da cena, uma aproximação com os elementos
presentes na produção poética, ecos de suas obsessões como escritor: há objetos em ruínas,
em fragmentos, em desintegração, destacando a vulnerabilidade das coisas frente à ação
humana e natural:
Figura 1 – Staircase7
Fonte: Luís Quintais (2008)
Nessa fotografia (Figura 1), nosso olhar é guiado a percorrer visualmente a estrutura
física de uma escada, um objeto tão comum no nosso dia a dia, sob um novo ângulo: a
decadência. Abandonada em meio à rua e à natureza, a escada está em estado de corrosão. Há
marcas em sua estrutura da ação do tempo, os degraus estão desgastados e com pedaços
corroídos pela ferrugem que avança pela tintura branca. Há a presença de elementos da
natureza que crescem e sobrevivem nessa ruína: vemos como a grama e a vegetação que
circundam essa escada ganham força sobre esse objeto deixado à margem e inerte. O que
vemos no conjunto da imagem são apenas frações de edificações urbanas que nos olham
novamente através dos rastros de uma vida – os passos dados para chegar e partir que são
5 Esse trecho foi extraído da seção “Por si mesmo”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o próprio apresenta-
se ao seu leitor, destacando um pouco de sua história, de suas obsessões líricas e fotográficas e de sua biografia.
Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/ 6 Staircase faz parte de uma sequência de fotografias de uma escada em decomposição, disponível no perfil de
Quintais na plataforma Flickr. Nessas fotografias, somos levados a observar por diversos ângulos esse objeto
comum nas edificações urbanas, que agora inerte, se desintegra em meio a uma natureza que cresce e sobrevive
de suas ruínas. 7 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr ,
disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/,quanto em seu blog, disponível pelo
link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/ e em perfil na rede social Instagram.
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resgatados a partir da contemplação desse objeto abandonado. Por meio desse aspecto
decadente, o poeta-fotógrafo consegue intensificar a compreensão perceptiva e a recuperação
subjetiva de memórias externas à cena, mas internas ao observador. Ela – a fotografia – dá a
ver dialeticamente duas realidades possíveis: o visível, os objetos presentes na imagem
fixados pela câmera fotográfica, e o invisível, uma alegoria oculta que atravessa os objetos
fotografados e a memória subjetiva do observador. É o que destaca George Simmel sobre a
importância estética e antropológica das ruínas como objeto artístico:
A ruína produz a forma presente de uma vida passada, não segundo seu
conteúdo ou seu resto, mas segundo o seu passado como tal. [...] O passado
com seus destinos e suas transformações é aqui reunido no ponto de seu
presente esteticamente visível. Aqui, como diante da ruína, nessa enorme
intensificação e realização da forma-presente no passado, atuam energias tão
profundas e concentradas de nossa alma que a nítida separação entre intuição
e pensamento se torna totalmente insuficiente. (SIMMEL, 2016, p. 101)
Nas fotografias de Quintais, então, os objetos em ruínas têm valor antropológico.
Carregam consigo um passado, um presente e um futuro humano que são projetados em crise
pelas lentes da câmera fotográfica. Ao escolher o enquadramento, o foco e a cena, o
fotógrafo-lírico destaca um fragmento da vida contemporânea em ruínas e nos convida a
percorrer e [re]conhecer progressivamente, também, a sua história. Observar atentamente
esses objetos é refletir sobre o mundo e seus restos, é [re]conhecer a natureza da condição
humana e dos objetos construídos pelos homens, frágil frente à passagem do tempo. No olhar
atento às ruínas, o observador, ainda, é guiado a experimentar a ausência. E por essa sensação
de vazio é estimulado a resgatar, da memória, algo fora da imagem que preencha esses vazios
provocados por ela. Não raro, na produção poética de Quintais também somos confrontados
por essas inquietações linguístico-visuais. A voz lírica, como o olhar fotográfico, foto-grafa
frequentemente imagens em ruínas. Seja no plano estético, seja no plano do conteúdo, o leitor
é convidado a observar uma imagem poética que instiga uma meditação sobre o tempo e sobre
como todas as coisas são frágeis e efêmeras frente a sua inevitável passagem. São essas
aproximações entre a produção poética e a produção fotográfica de Quintais que evidenciam
sua verdadeira obsessão lírica por resistência aos vazios da contemporaneidade. Sob esse
aspecto, como aponta Meire Gonçalves:
A poesia de Quintais reflete a relação estabelecida entre a linguagem e o
preenchimento dos vazios nascidos na modernidade. Refere-se a uma
30
impossibilidade da linguagem conseguir preencher e dizer o mundo, e é
justamente fazendo um retorno a ela mesma pela atividade poética que se é
possível dizer algo, tentando, assim, preencher tais lacunas e espaços.
(GONÇALVES, 2017, p. 6094)
Gonçalves, nesse fragmento, discute um ponto-chave da poesia de Quintais: a forma
como, pela linguagem, a voz poética tenta compreender os vazios da vida contemporânea.
Isso acontece sobretudo porque sua poesia é atravessada por um movimento dialético – e por
vezes metalinguístico – pelo qual a voz poética descreve uma cena em observação a fim de,
pela linguagem poética, [re]constituir o olhar. Acerca disso, é importante destacar que, diante
de uma imagem, como observa Didi-Huberman (2013), podemos ser influenciados a buscar
além dos elementos que fazem parte dessa composição visual, uma vez que a imagem revela
uma ausência. E à linguagem, portanto, cabe a função de tentar reconstruir essas lacunas e
esses vazios experimentados pelo olhar inquietado. Os versos quebrados, a sintaxe
segmentada e o ritmo lento dos versos são alguns dos procedimentos técnicos utilizados no
processo de escrita poética de Quintais como mecanismos líricos que refletem o mundo
contemporâneo em decadência que as imagens do poema dão a ver, atravessadas pela
melancolia.
Numa espécie de fotograma lírico, o poeta sinaliza resquícios de um olhar analítico e
antropológico pelo qual põe em tensão a vida urbana contemporânea, experimentada em
fragmentos: o contato humano dá lugar à presença apenas virtual; o tempo marca-se pelo
trabalho constante e afastamento das relações interpessoais; a percepção do mundo é
subordinada à correria cotidiana. Não há tempo ou lugar para a flânerie, a lentidão ou o
contato afetivo. Quintais, frente a isso, proporciona a criação de imagens que destacam a
incapacidade de a linguagem poética preencher as lacunas subjetivas talhadas pela descrição,
ao passo que demandam do leitor um movimento de resistência e contrário à aceleração da
vida contemporânea para meditação e contemplação sobre a natureza da linguagem, a
natureza do tempo e a natureza da memória. Deyse Moreira reflete sobre essas características
constantes da linguagem poética de Quintais:
Assinalados de cinza e permeados por uma presença imprecisa da
melancolia, os versos de Luís Quintais nos apresentam um mundo tecido de
imagens fragmentadas, quotidiano opaco cujo espaço e tempo são
interrompidos por vazios. Mas que vazios são esses? Estas páginas, oriundas
dessa questão, em seu buscar respostas, depararam-se com outra dúvida:
afinal, por que muitas das poéticas atuais, das quais a poesia de Luís
Quintais faz parte, dão protagonismo à palavra, pincelando nos versos uma
31
reflexão sobre a linguagem poética e a sua (in)utilidade e poder de
resistência face à sociedade do seu tempo? Assim, quando lemos a poesia de
Luís Quintais, observamos que a função metalinguística é fundamental para
compreender, em seus poemas, o sentimento de vazio que, por sua vez,
levam-nos a uma reflexão sobre a linguagem, a memória e a história.
(MOREIRA, 2013, p.170)
Deyse Moreira destaca como a poética de Quintais é tecida por frações do espaço
cotidiano, revelando como o poeta, por meio de uma linguagem segmentada, consegue
capturar uma imagem que leva seu leitor a uma experiência do vazio decorrente não só do ato
de observação da imagem, como também da reflexão sobre o objeto que vê. Em função disso,
somos confrontados com poemas que põem em discussão a imagem e a linguagem utilizada
em seu processo de composição, o que, para Moreira, configura-se como ferramenta
fundamental para compreender a sensação de vazio nos poemas de Quintais. Isso acontece
porque, em seus versos, vemos a forma como a linguagem é trabalhada de modo a promover
uma discussão acerca da sua própria utilização poética e estética, já que recursos estéticos –
como a segmentação e a disposição visual dos versos – são frequentemente utilizados pelo
poeta no processo de criação lírica para dar ênfase na ausência e nos vazios descritos
ocultamente na imagem.
Essas questões podem ser encontradas já nas primeiras páginas do livro. Na folha de
rosto de A noite imóvel (2017), há uma imagem fotográfica (Figura 2). Num jogo de luz e
sombras, a imagem fotografada é formada por uma mesa e a sombra de alguém que a observa
e a fotografa. Nesse processo representativo, através dessa fotografia inicial, o poeta abre sua
obra com uma meditação metafísica sobre a natureza do real, sobre a natureza da linguagem e
sobre a natureza do ato de ver. Essas reflexões apresentam-se constantemente nas imagens
poéticas presentes nos poemas, pelas quais somos direcionados pela voz poética a
experimentar três inquietações frequentes: 1) a imagem poética destaca um fragmento do real
e por isso dá a ver o tempo; 2) a imagem poética dá a ver duas realidades e, pela sua
interpretação, promove a aproximação entre o que está circunscrito na imagem e aquilo que é
inerente a leitor; 3) a imagem poética compõe-se como uma cena de escrita, na qual o ato de
observar é constantemente encenado.
Na fotografia (Figura 2), a imagem dá a ver o tempo porque revela fragmentos de uma
cena do real. A mesa, o objeto concreto reproduzido pela lente da câmera, são a marca de algo
no tempo. Quando observada pelo leitor, ele é interpelado por elementos ocultos a ela,
movimento que o instiga a experimentar uma sensação de ausência: o leitor-observador – em
32
seu tempo presente de leitura – não está diante do objeto (mesa), tal como o fotógrafo estava –
em seu tempo presente que se torna passado a partir da fixação da imagem. A sombra do
fotógrafo, encontrada no centro da mesa, marca que, após a observação, houve a necessidade
de, por meio da linguagem fotográfica, transcrever o olhar para reconstituí-lo. Por fim, a
imagem fotografada ainda aponta uma teoria do ver. Esse múltiplo movimento proposto pela
presença – que sobrevive na fotografia – do observador dá indícios de que, no ato de ver,
somos interpelados pelo que vemos e, assim, aquilo que vemos nos olha e nos observa
também atentamente.
Figura 2 - Sem título8
Fonte: Luís Quintais (2008)
Em função disso, essa imagem (Figura 2) abre-se a nós, convidando-nos a observar
atentamente fragmentos que transpõem, ao olhar fotográfico, indícios de um lirismo comum à
linguagem poética e à composição de imagens foto-grafadas por Luís Quintais. Essa
característica da linguagem poética de Quintais é, também, discutida por Ida Alves, que
observa o modo como a sua poesia abre-se para o mundo, colocando em tensão a nossa
própria percepção sobre a imagem poética e o real:
8 Fotografia, por Luís Quintais, sem título que se encontra reproduzida na contracapa do livro A noite imóvel
(2017).
33
Essa abertura ao mundo revela a distância que há entre o poema e o real,
entre as palavras e as coisas, porque a linguagem poética é uma tensão
contínua entre o desejo de uma proximidade absoluta e a sua
impossibilidade. A ambição ontológica move a poesia e motiva que ela
esteja ligada irremediavelmente à melancolia e à decepção, pois a linguagem
poética tem consciência de que todo dizer é uma ilusão. O horizonte último
do poema será então o silêncio, como lugar de origem onde está o indizível e
o invisível. Mas, como num círculo, é também a partir daí, dessa origem, que
o poema se lança para inscrever esse silêncio na linguagem. (ALVES, 2008,
s/p)
O que se percebe em Quintais, a partir desse fragmento, é como a voz poética cria
imagens que, frente às ruínas da contemporaneidade, foto-grafam rastros da vida cotidiana
para pensar a condição humana, sua linguagem e o ato poético. Pelo ato de contemplar rastros
da vida urbana, vemos como a voz lírica busca também proporcionar uma reflexão acerca da
[in]capacidade de, pela poesia, resistirmos. A linguagem poética, nos seus versos, demonstra,
então a melancolia, uma resposta à ilusão do discurso que pensa ser capaz de reconstruir as
coisas. Por isso, em sua poética a palavra cria imagens que revelam a tensão entre o visível e
o não visível, entre o real e a percepção dele. É, portanto, também pela escrita, que notamos
em Quintais uma performance da percepção visual e da textualidade, destacando como a
língua pode promover cenas de escrita capazes de alterar o modo como percebemos,
compreendemos e observamos o que está à nossa volta. A esse respeito, considera Rosa Maria
Martelo:
[...] as cenas de escrita nunca são inocentes. Muito pelo contrário, elas
indicam sempre uma poética e também uma ética da escrita. Com efeito, a
questão de onde e como se escreve não é inócua nem destituída de sentido,
sobretudo quando o ato de escrita é tematizado num poema. Faz parte da
dimensão meta-reflexiva da poesia de tradição moderna a apropriação das
cenas de escrita como um dos tópicos através dos quais a poesia se dobra
sobre si mesma e a si mesma se mostra, pensa e analisa. (MARTELO, 2010.
p. 322)
Martelo levanta um ponto importante e comum à poesia contemporânea: as cenas de
escrita. O poeta, ao escrever um poema, escreve também uma cena, marcada por imagens e
figuras em performance. Numa cena de escrita, o leitor é levado a acompanhar a
dramatização do ato de escrever porque o poeta utiliza mecanismos linguísticos e poéticos,
com a criação de cenografias. Em Quintais, é possível observar cenas de escrita sobre a
produção de imagens. Isso acontece, intencionalmente, uma vez que a voz poética, como nos
poemas de A noite imóvel (2017), está em constante performance sobre o ver: a voz descreve
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imagens que dão a ver. Performance esta que se desdobra das imagens poéticas presentes nos
poemas às imagens perigráficas da obra – como a fotografia na folha de rosto, as epigrafes e a
presença de um ideograma, elementos da perigrafia do livro que também abrem nosso olhar à
meditação sobre o ver. Nesse movimento de abertura temática do livro, Quintais nos coloca
diante de duas epígrafes retiradas de Wallace Stevens, poeta norte-americano, – sobre o qual
falaremos mais à diante – quem Quintais tem como obsessão lírica devido aos temas que põe
em questão nas suas obras poéticas. Ambas as epígrafes, que se encontram entre a fotografia
que inicia o livro (Figura 2), o ideograma mu (Figura 3) e o longo poema em prosa “[Entras
num espaço devoluto]”, dialogam com a proposta lírico-visual do livro, já que, durante o
processo de escrita, frequentemente encontramos artifícios estéticos que ressignificam e
transformam sentidos e imagens tradicionais.
Na primeira epígrafe, por exemplo, “Nigth and the imagination being one” (Noite e
imaginação são una – tradução nossa) Stevens põe em tensão duas palavras night – “noite”
em inglês – e imagination – “imaginação” em inglês –, cujos significados, mesmo distintos,
transformam-se uno através das possibilidades de escrita. Nesse verso, observamos a
associação entre essas duas palavras como um instrumento discursivo que rompe a natureza
original da linguagem nomeativa (que dá nome para representar linguisticamente as coisas do
mundo). Isso, ainda, é retificado pela segunda epígrafe: “We say God and the imagination are
one…” (Dizemos Deus e a imaginação é uma – tradução nossa). Nesse outro verso, Stevens
promove o deslocamento do significado prévio da palavra Deus. A palavra, a partir disso,
deixa de ser um símbolo linguístico representativo de uma noção conceitual coletiva. Isso é
possível porque, na escrita poética, a ressignificação da palavra tem a potência transcender a
própria natureza comunicativa da linguagem, pois o poeta fraciona a palavra em imagens
poéticas dotadas de múltiplas possibilidades interpretativas e perceptivas pelo leitor. Desse
modo, a escrita poética funciona como um feixe de luz que atravessa um prisma e se dispersa
em múltiplos fragmentos luminosos que formam uma imagem semelhante ao arco-íris.
Associados os dois fragmentos de Stevens, nesse sentido, vemos que a imaginação é um
dispositivo estético por meio do qual o poeta transcende a linguagem ao transformá-la em
imagem poética. É o que destaca Paz (1996):
a imagem faz com que as palavras percam a sua mobilidade e
intermutabilidade. Os vocábulos se tornam insubstituíveis, irreparáveis.
Deixam de ser instrumentos. A linguagem deixa de ser um utensílio. O
retorno da linguagem à natureza original, que parecia ser o fim último da
imagem, é apenas o passo preliminar para uma operação ainda mais radical:
35
a linguagem tocada pela poesia, cessa imediatamente de ser linguagem. Ou
seja: conjunto de signos móveis e significantes. O poema transcende a
linguagem. (PAZ, 1996, p. 48)
As palavras de Paz revelam que a criação de imagens poéticas através das palavras
escolhidas pelo escritor faz que o poema transcenda a linguagem. Isso é possível porque em
uma imagem poética o leitor é levado, primeiramente, ao retorno do significado original das
palavras em uso cotidiano, ou seja, fora do espaço poético. Assim, ao falar Deus, como
destacam os versos de Stevens, somos guiados pela nossa imaginação a rememorar o conceito
dicionário dessa palavra, que será ressignificado através da composição linguístico-poética de
imagens que fogem à palavra em seu estado de denotativo, e os signos linguísticos, imóveis,
no poema ganham mobilidade pela imaginação. De dentro para fora, a imagem poética abre-
se para o leitor, rompendo uma ideia de referencialidade. E nesse movimento de saída do
poema para a subjetividade do leitor, por sua vez, a linguagem poética “cessa imediatamente
de ser linguagem” (PAZ, 1996, p. 48). Essa é uma das impotências postas em reflexão na obra
de Quintais, haja vista que, na tentativa de completar a ausência, a linguagem poética torna-
se, também, ausência. Ela nos aproxima do nosso desejo, ao passo que reafirma a nossa
impossibilidade de alcançá-lo. A escolha das epígrafes, então, revela um movimento comum à
sua própria estética encontrada em A noite imóvel (2017), um olhar para esses vazios do
mundo contemporâneo que a linguagem não consegue preencher, mas que pela contemplação
e imaginação pode completar essa ausência.
No texto inicial de A noite imóvel (2017), “[Entras num espaço devoluto.]”, escrito em
prosa e que se encontra entre a fotografia – Figura 2 – e o ideograma (sobre o qual falaremos
mais adiante) – Figura 3 –, a voz lírica apresenta e projeta imagens que serão recorrentes nos
poemas reunidos neste livro. Nele, vemos uma voz poética que caminha para dentro de um
espaço abandonado composto por estruturas de uma antiga edificação em estado decadente. À
medida que a voz lírica entra nesse “espaço devoluto. Uma antiga fábrica de têxteis. Uma
ruína. Um objeto que apodrece na paisagem” (QUINTAIS, 2017, p.11), também somos
provocados a percorrer – lado a lado com ela – essa poética que se abre para nossa leitura.
Como ela, vamos nos deparar com imagens segmentadas, lacunas, vazios, um jogo visual de
aparecer e desaparecer.
Por entre a cortina vegetal, passas. O recinto que se abre perante ti (de lajes
furadas, limos, carretos abandonados, o que não reivindica usos já, mas que
denuncia uma cronologia de gestos hábeis, precisos, porém de arqueologia
36
improvável), o recinto que se abre perante ti esclarece-te das zonas de luz e
das zonas de sombra, do que respira humidade e do que arde ao sol da
manhã. Levanta a cabeça. Olha para cima, aí onde a ausência de telhas
descreve uma quadrícula de barrotes, e sobre essa quadrícula, eis o azul
profundo do céu. Não pares. Escuta o teu corpo. Avança para esse interior,
esse lado escuro que te espera em diante, e nesse lado escuro, o cheiro a
limos, densas formas, um silêncio entrecortado por deslizamentos súbitos de
madeiras, água e de novo a luz, adiante, mais adiante, esperando-te como um
braço decepado que invadisse a noz de medo e de clausura que te envolve.
(QUINTAIS, 2017, p. 11-12)
Sua obra poética, assim como esse espaço em ruínas, inquieta. Essa inquietação é fruto
da relação descrita entre a voz lírica e a percepção do espaço, no qual ele será confrontado
com a presença de seu próprio fantasma. Aqui, somos apresentados a outra questão
interessante sobre nas imagens poéticas e fotográficas de Quintais: por meio delas somos
conduzidos ao processo mnemônico de resgate das nossas memórias individuais e coletivas.
Pela voz poética, somos provocados a percorrer lado a lado esse caminho para dentro dessa
antiga fábrica têxtil e onde nos encontrarmos com imagens fragmentadas, vazios, objetos que
se decompõem e se arruínam, – um reflexo arruinado de nós mesmos? Num percorrer que nos
faz meditar sobre a condição humana, sobre uma antropologia poética, sobre a percepção de
mundo e das transformações das coisas submetidas ao tempo. Esse fotograma lírico,
composto for brechas e furos, desdobra-se, então, num processo de reflexão e autorreflexão.
Isso porque, mesmo ao se deparar com o cenário ruinoso, seu olhar busca, dentre os destroços,
algo que o preencha. Nessa antiga fábrica têxtil, sobressaltam feixes de luz, permitindo o
esclarecimento da imagem: a luz entra em cena e clareia a visão, dando-lhe ver as formas do
espaço. Do mesmo modo funciona a poética de Quintais, seus versos descrevem imagens que
se apagam e se focalizam, que clareiam e dão a ver. E a partir desse processo de observação,
as cenas que nos olham estimulam, pela sensação de esvaziamento, a recordação de questões
esquecidas com o tempo. Não é um caminho fácil, mas seguimos – leitor e sujeito poético:
O acesso é difícil. Faz-se por buracos, desabamentos. Uma porta do lado da
estrada que serpenteia junto ao rio em direcção ao hospital psiquiátrico, ao
alto, é o acesso mais óbvio. A porta está umas vezes fechada, outras aberta. É
impossível encontrar um padrão, uma regularidade nessa alternância. Não
sabes sequer quem fecha a porta, quem a abre. Preferes não saber. Preferes não
te encontrar com esse fantasma, afinal alguém bem real, alguém de trato
difícil, desafiador, incorruptível, lançado assim para o canto. Não antecipas o
fantasma. Sabes que o encontrarás adiante, ou suspeitarás de sua existência
algures no mesmo espaço que tu. (QUINTAIS, 2017, p.11)
37
Durante esse percurso poético e fotográfico de Quintais, ficamos expostos a cenas em
que a voz poética nos conduz ao encontro de nós mesmos: aqui nos encontraremos com
nossos próprios fantasmas e seremos convidados a resgatar o passado no presente. São versos
que descrevem imagens que ora se apagam e ora focalizam, que põem em sombra ou
clareiam, do mesmo modo em que dão a ver, mas ocultam a visão. Tratam-se, então, de
fotogramas líricos, compostos de imagens que resgatam a memória através da experiência da
ausência provocada pela ruína. E a partir desse processo de observação, as cenas que nos
olham estimulam, pela sensação de esvaziamento, a recordação de questões esquecidas com o
tempo. As imagens fragmentadas descritas nos poemas de Quintais, nesse sentido, podem ser
compreendidas como mecanismo de construção reflexiva e autorreflexiva. Vê-se, também,
como a voz poética é inquietada por meio da imagem observada, uma vez que esta tende a
resgatar situações esquecidas na memória de seu observador. Nesse sentido, a imagem é uma
experiência do vazio porque ela representa um objeto real passado, ao qual o observador só
tem acesso por meio da memória. Quintais, desse modo, escreve cenas que incomodam uma
vez que a imagem composta por destroços destaca, pela forma e pelo conteúdo, a imobilidade,
a espera, o tédio, o vazio e a melancolia aos quais somos – e sempre seremos – submetidos no
mundo contemporâneo:
O medo que te quer vencer aqui, neste lugar. Que lugar? Sobes o lance de
escadas próximo. Frio. E ao cimo das escadas deparas-te com o estreito
corredor que dá para uma sala onde a luz explode através das portadas
abertas de par em par. Essa luz intensa, essa luz deflagrante é já uma
promessa de cegueira, o casulo onde a noite se esconde. A noite servir-te-á
de pretexto para tudo o que vieres a dizer. Aí ficarás, suspenso de tempo e memória. (QUINTAIS, 2017, p.12-13)
Por isso, a imagem poética é uma forma de levar o leitor a receber estímulos
subjetivos, como a experiência dos vazios. Durante a descrição desse espaço, sentimos como
a voz poética se sente frente a essa imagem de um espaço que ora se vê, ora se apaga, ora se
encontra livre, ora há inúmeros obstáculos, porque a construção urbana encontra-se
abandonada ao tempo. Visualizar esses pequenos aspectos que nos remetem à passagem
temporal nos leva a um movimento interior de meditação. Pela voz poética, Quintais age
como um mestre zen e nos entrega um enigma a ser contemplado, meditado, em busca da
transcendência da nossa percepção sobre a natureza do tempo, da linguagem, da memória e da
nossa própria condição humana. Isso acontece em seus versos, sobretudo, por meio da
apresentação de cenas em decadência da vida contemporânea, como a apresentada pelo
38
espaço devoluto da antiga fábrica de têxtil nesse primeiro texto em prosa. Dessa forma, a
imagem poética deixa de ser um recurso meramente linguístico e transcende os limites da
representação; ela faz parte de um projeto estético-literário de Quintais que busca
constantemente influenciar o leitor a se inserir em um momento de reflexão profunda.
É interessante, ainda, perceber o diálogo proposto entre esse momento de busca
autorreflexiva apresentado pela imagem do poema em prosa com outra imagem presente na
perigrafia de A noite imóvel (2017). Trata-se, enfim, do ideograma mu (無) – Figura 3. Esse
ideograma funciona como um alerta ao leitor, já que o caractere japonês mu carrega uma forte
relação com o processo meditativo da cultura oriental. Ele é uma palavra-chave para a
meditação budista, funcionando como uma das principais respostas aos koans9 meditativos:
mu significa “vazio”. Existem dois grandes livros meditativos, compostos por koans:
Mumonkan (O Portal Sem Portão) (1246) e Hekiganroku (Inscrições do Penhasco Azul)
(1125). Seus koans, normalmente, são precedidos por breves narrativas que contextualizam o
tema a ser meditado pelo discípulo, bem como alguns comentários do mestre que buscam
estimular cada vez mais esse processo. Esses koans, na cultura budista, são mecanismos de
elevação do processo meditativo, uma vez que funcionam como um enigma – uma pergunta –
feita pelo mestre aos seus discípulos individualmente para dar início à meditação. Aos
discípulos, então, cabe à função de desconectar-se do mundo e conectar-se consigo,
contemplando lentamente o koan recebido em busca da resposta para seu mestre.
Figura 3 - Ideograma Mu, que significa “vazio”.
Fonte: Luís Quintais (2017)
9 Koan é um enigma meditativo da cultura Zen. Na literatura, é explicado que um koan é dado por um Mestre
Zen ao seu discípulo, para que ele possa entrar em estado de meditação em busca de uma resposta para o enigma
presente no koan. Essa resposta é levada ao mestre que avalia a conclusão do discípulo; sendo ela satisfatória, ele
recebe outro koan mais complexo e assim ocorre sucessivamente.
39
Depois desse processo, quando o discípulo chega a uma resposta, compreendida pelo
mestre como satisfatória, ele recebe um novo koan, com um grau de dificuldade maior, e
assim ocorre sucessivamente de acordo com o avanço no desenvolvimento da reflexão. E a
cada koan respondido satisfatoriamente, o discípulo recebe outro de seu mestre com um nível
de complexidade cada vez maior. O koan mais comum corresponde ao mu, o koan de abertura
do livro do século XIII Mumonkan (1246) – traduzido em português pelo professor Gentil
Saraiva Jr. como O Portal Sem Porta: Koans Zen (2013) – pelo mestre zen chinês Wumen
Huikai. Esse mesmo koan, mu (無) presente em A noite imóvel (2017), também dá início ao
processo meditativo e contemplativo proposto pelo mestre zen Quintais. Em Mumonkan
(1246), o mestre zen Wumen Huikai descreve uma parábola em que um monge pergunta a
Joshu, seu discípulo, “O cachorro tem a natureza búdica?”, e ele responde: “mu”. Mas e,
então, o que Joshu quis dizer? Sua resposta revela que a compreensão do koan não é possível
de ser alcançada através da razão. Essa resposta, no entanto, resgata ainda uma reflexão mais
profunda, mu, que significa “nada”, “vazio”, aponta então que a natureza de Buda é o próprio
vazio.
À vista disso, é possível traçar um diálogo produtivo entre os elementos poético-
visuais que compõem A noite imóvel (2017) e os temas que serão desenvolvidos pelos
fotogramas líricos dessa obra. A voz poética de Quintais, tal como um mestre zen, convida
seus leitores, a cada poema, a iniciar uma meditação. Trata-se, ainda, de uma meditação sobre
os vazios do mundo contemporâneo atravessada pelo olhar crítico sobre as suas ruínas e os
seus restos que evidenciam o estado de tensão em que as coisas se encontram.
2.2 A imagem poética
A noite imóvel (2017), então, é um livro de poesia que promove um diálogo entre o olhar
fotográfico – ontológico – e o olhar lírico de Luís Quintais. Seus poemas – ora em prosa, ora
em versos, ora em fragmentos – desenvolvem-se através de imagens poéticas descritas e
apresentadas ao leitor, guiando-o a um processo lírico-visual de resgate da experiência
contemplativa. A partir dessas imagens poéticas, o poeta desenvolve uma cena de escrita por
meio da qual põe em discussão a natureza dessa composição imagética. Nesse sentido, é
preciso observar o que se entende por imagem, para aplicar essa relação ao olhar poético-
fotográfico de Luís Quintais.
40
Flusser, em Filosofia da caixa preta (2002), deteve-se ao estudo e à análise das
imagens produzidas diacronicamente pelo homem. O ensaísta, nesse livro, percorre uma
historiografia da imagem desde a observação das primeiras imagens produzidas pela mão
humana – a arte rupestre feita pela civilização pré-histórica e anterior ao advento da escrita –
passando pelas imagens verbais – construídas através do advento dos signos linguísticos e da
significação –, até a observação das imagens fixadas através de mecanismos e ferramentas
analógicos – como a caixa preta e as atuais câmeras fotográficas digitais. Flusser percebe que
nessa historiografia das imagens, elas sempre foram criadas pelos homens como uma
manifestação da nossa constante tentativa de representar visualmente a realidade e a
imaginação. Desse modo, essas imagens (como na arte rupestre – cuja função principal era
proporcionar uma comunicação visual anterior até mesmo à própria linguagem verbal, por
exemplo) realçam uma necessidade humana de representar visualmente não apenas as coisas
do mundo exterior – aquilo que vemos num espaço determinado pelo nosso campo de visão –
mas também as coisas do mundo interior – aquilo que se constrói no imaginário individual e
coletivo. Em suas palavras: “as imagens são, portanto, resultado do esforço de abstrair duas
das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do
plano” (FLUSSER, 2002, p. 7).
Com a difusão da linguagem verbal e, consequentemente, com o desenvolvimento de
um sistema de escrita, o ensaísta notou que as palavras se tornaram um outro mecanismo
humano para a criação de imagens capazes de condensar informações que antes eram
representadas por conjuntos e sequências de ícones, símbolos e desenhos. A arte, nesse
contexto, passa a utilizar mecanismos também linguísticos para a formação de imagens
artísticas – seja pela linguagem visual, como nas artes plásticas, seja pela linguagem poética,
como na literatura. Com isso, através da convenção da escrita, foi possível transformar em
imagem verbal elementos concretos (as coisas do mundo) e abstratos (os conceitos do
mundo), proporcionando novos modos de reconstruir artística e poeticamente a nossa
percepção do mundo. Após essa reflexão, Flusser irá se lançar ao estudo dos mecanismos de
produção dessas imagens, que podem ser manuais ou técnicos, e organizará essas imagens em
dois tipos: as imagens tradicionais e as imagens técnicas (as quais retomaremos mais
adiante).
Como imagens tradicionais, o ensaísta compreende aquelas produzidas no momento
pré-histórico, ou seja, as imagens rupestres que são anteriores a escrita. Flusser percebe,
então, que nessas primeiras formas arcaicas de produção de imagens, o homem pré-histórico,
41
por ainda não ter o conhecimento da língua escrita, utiliza de modo mais intenso a sua
capacidade imaginativa para representar aquilo que não consegue nomear. Nesse momento, o
homem pré-histórico somente detém as imagens rupestres como mecanismo de comunicação,
cabendo, então, a elas a função de codificar – como fez a linguagem verbal posteriormente –
as coisas presentes tanto no mundo como na imaginação humana. A essa capacidade de
transposição do imaginário para o visual, Flusser irá nomear de scanning, porque “o traçado
do scanning segue a estrutura da imagem, mas também os impulsos no íntimo do observador.
O significado decifrado por este método será, pois, resultado da síntese entre duas
“intencionalidades”: a do emissor e a do receptor” (FLUSSER, 2002, p. 7-8).
Com o advento da escrita, no entanto, Flusser percebe que as imagens anteriormente
produzidas mediante a experiência imaginativa, agora passaram a ser [re]produzidas pela
linguagem verbal – esse novo mecanismo de abstração das coisas do mundo e as coisas do
imaginário pelas palavras. Isso promove, ainda, um movimento de superação das imagens
tradicionais já que a escrita demanda uma capacidade maior de decodificação (leitura) dessas
imagens. Isso acontece principalmente porque, pela escrita conceitual, ocorre a criação de um
objeto verbal e imagético, que comporta linearmente, dentro dos limites linguísticos da
palavra, conceitos, noções e imagens do mundo real e do mundo imaginário. Desse modo,
pela linguagem escrita, é possível condensar muitas informações em imagens verbais que
demandam de um leitor conhecimentos linguísticos, históricos, coletivos e subjetivos para que
seja capaz de decifrar e codificar essas imagens. E por isso:
a escrita funda-se sobre a nova capacidade de codificar planos em retas e
abstrair todas as dimensões, com exceção de uma: a da conceituação, que
permite codificar textos e decifrá-los. Isso mostra que o pensamento
conceitual é mais abstrato que o pensamento imaginativo, pois preserva
apenas uma das dimensões do espaço-tempo. (FLUSSER, 2002, p. 10).
Essa é a capacidade de superabstração da imagem poética, uma vez que, pela
utilização poética dos signos linguísticos, o escritor consegue propor a ressignificação de
imagens e conceitos cristalizados no imaginário comum. Esse emprego visual da palavra pode
ser encontrado teorizado no poema “Deus e noite” de Quintais. Nele, o poeta evoca uma
imagem criada pelo poeta norte-americano Wallace Stevens – uma voz que constantemente
ecoa em textos do nosso poeta português – para pôr em cena o processo de criação poética.
Isso é feito pela ressignificação proposta pela associação entre as palavras “Deus” e “noite”,
por Stevens, na imagem resgatada por Quintais em seus versos. Num percurso
42
metalinguístico, o poema apresenta e explica ao leitor os processos de criação do próprio
poema, de utilização da língua e de construção de imagens e significados com a linguagem
poética. Nele, então, encontraremos uma performance da escrita conceitual que dá a ver a
abstração da linguagem:
DEUS E NOITE
Na mesma cadeia associativa, Wallace Stevens colocou Deus e noite. Eu esclareço os propósitos de tal voragem. Deus e noite desfazem-se semioclasticamente. O vazio é um colapso dessa forma.
(QUINTAIS, 2017, p. 35)
Primeiramente, o poema, que inicia a segunda seção do livro, “Escombro”, é
construído a partir da explicação de uma imagem poética anteriormente construída por
Wallace Stevens e já anunciada pelas epígrafes escolhidas do mesmo poeta que iniciam o
livro A noite imóvel (2017). Mas antes de tudo, Stevens é um poeta norte-americano que
produziu uma das mais notáveis obras poéticas da literatura norte-americana, marcada
principalmente por uma estética metafísica, que conjuga a imaginação e a realidade. Como
poeta moderno, resgata o poder da linguagem poética ao descrever o mundo. Sendo assim, em
sua obra poética, o poema torna-se um lugar de desdobramento desse mundo, e à linguagem
poética cabe resgatá-lo através de mecanismos linguístico-visuais. Esses aspectos fazem de
sua obra um lugar de retorno para Quintais, pois, em suas palavras:
Wallace Stevens, mestre da meditação lírica, é, a seu modo, um poeta que
faz da poesia uma arte prática. Dessa prática, tudo o que temos hoje é este
vestígio cuja compreensão está fora de toda e qualquer vontade
monumentalizadora ou entronizadora. Vestígio de uma metafísica secular em
que a loquacidade da poesia, embora incomensurável com o poema,
encontra, porém, o seu prodigioso eco nele. (QUINTAIS, 2014, s/p.)11
As palavras de Quintais revelam a importância da obra de Stevens como um lugar de
meditação – e retorno – para o poeta. Em sua obra, somos confrontados com uma ética
poética que põe em xeque os limites entre o real e o imaginário, numa tentativa frequente de
produzir uma tensão sobre a linguagem poética que dá a ver esses limites. Em função disso, a
43
voz poética está em constante performance da linguagem, pela qual resgata imagens que
sugerem uma teoria sobre o fazer poético, no qual “o poema é o vestígio de um deslocamento
no interior da meta-processualidade [...], momento em que a imaginação parece sobrepor-se à
realidade” (QUINTAIS, 2014, s/p.)10; e a poesia torna-se “o princípio cosmológico (mas
também o princípio fenomenológico já que estamos perante um aspecto da experiência
humana) sem qual o poema não seria possível” (QUINTAIS, 2014, s/p.).11 Nesse sentido, na
sua explicação sobre a imagem proposta pela linguagem poética de Stevens, ecoa uma teoria
meta-processual encontrada também em Stevens. Pela linguagem poética, a voz lírica de
Quintais busca – meta-processualmente – explicar o processo de criação da imagem poética
proposta por Stevens ao colocar, na mesma cadeia associativa, as palavras Deus e noite.
Dessa forma, como nas epígrafes escolhidas de Stevens são indiciados – “Nigth and the
imagination being one” (Noite e imaginação são uno – tradução nossa) e “We say God and
the imagination are one…” (Dizemos Deus e a imaginação é uma – tradução nossa) – através
da linguagem poética, o poeta pode, num movimento semioclástico, deslocar sentidos e, por
isso, criar novas associações e imagens. Assim, é possível que o sujeito autor – aquele que
tem domínio sob as palavras – trabalhe com a escrita de modo a subordiná-la a procedimentos
estéticos e literários próprios que ressignificam o sentido denotativo das palavras em novos
outros múltiplos sentidos. Desse modo, o substantivo próprio Deus e o substantivo comum
noite podem aparecer em uma mesma cadeia associativa, que semioclasticamente desfaz –
desconstrói, quebra, rompe e fragmenta – o conceito a priori desses signos.
Semioclastia, termo que aparece primeiramente no prefácio do livro Mitologias (1957)
de Barthes, refere-se a um modo de (re)pensar o estudo semiológico. Para o ensaísta, “não
haverá denúncia sem um instrumento de análise preciso; só haverá semiologia se esta
finalmente se assumir como uma semioclastia” (BARTHES, 2009, p. 6). Com essas palavras,
Barthes realça a necessidade de se analisar, para além do signo linguístico, ou seja, devemos
também perceber atentamente a sua destruição no processo de escrita literária. Seguindo essa
linha de pensamento, o texto – estrutura macrotextual – passa a ser compreendido como uma
espécie de quebra-cabeça dividido em pequenas peças – estrutura microtextual – que podem
10 Esse trecho foi extraído da postagem “Uma metafísica secular”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o
poeta faz uma breve descrição da importância da obra do poeta norte-americano Wallace Stevens para o seu
contexto literário. Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2014/10/02/uma-metafisica-
secular/ 11 Esse trecho foi extraído da postagem “Uma metafísica secular”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o
poeta faz uma breve descrição da importância da obra do poeta norte-americano Wallace Stevens para o seu
contexto literário. Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2014/10/02/uma-metafisica-
secular/
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ser deslocadas pelo sujeito – escritor – e realocadas em novos encaixes a fim de produzir
novos sentidos e significados. Assim, as pequenas peças do texto – como num jogo de quebra
cabeças – podem ser movimentadas pelo artista, que passa a ter o poder de as deslocar de
lugar para encaixá-las em outras para a criação de novos sentidos. Nesse processo de
reencaixe, no entanto, é possível que se fixem pequenas marcas deixadas pelo movimento do
artista que insinuam esse deslocamento: haverá a impureza no encaixe. Como é analisado pelo
ensaísta:
Funcionalmente, a conotação, gerando por princípio o duplo sentido, altera a
pureza da comunicação: é um ‘ruído’, voluntário, cuidadosamente elaborado,
introduzido no diálogo fictício entre o autor e o leitor, enfim, uma
contracomunicação (a Literatura é uma cacografia intencional). Estruturalmente, a existência de dois sistemas considerados diferentes -
conotação e denotação – permite o texto funcionar como um jogo, pois cada
sistema reenvia para o outro, de acordo com a necessidade de criar uma certa
ilusão. (BARTHES, 2009, p. 43)
Com base nesse excerto, podemos inferir que, na linguagem poética, a nomeação é
uma ferramenta linguística que, ao promover novos sentidos, corrompe a pureza da
comunicação, a partir de um processo semioclasta de destruição do signo. Em decorrência
disso, cabe à semiologia vestir-se de semioclastia, e, então, debruçar-se sob o estudo dessas
impurezas da linguagem no processo de construção textual. Essa é a explicação – metapoética
– também oferecida pela voz lírica em “Deus e noite”, que desmonta e reconstrói a imagem
poética criada por Stevens pela sua linguagem poética, destacando uma teoria semioclasta
intrínseca à arte poética. Nessa forma de composição lírica, então, a linguagem poética desfaz
o signo, revelando novas possibilidades de significado, criando uma frase-imagem, ou
fotograma lírico, no qual o sujeito autor tem domínio de seu objeto de trabalho – a palavra – e
dela [re]constrói semiolasticamente novas frases-imagens.
Em função disso, retomamos Flusser que destaca que a difusão da escrita como
mecanismo de produção de imagens transforma o modo como o leitor compreende e percebe
a imagem observada através da leitura das palavras. Isso acontece porque, durante o processo
de leitura e compreensão, o leitor está sujeito não só à recordação dos conceitos intrínsecos à
imagem escrita (sua significação), como também ao entendimento do uso proposto pelo artista
ao compor imagens a partir desses signos linguísticos. Com isso, é preciso modificar a forma
como se decodifica imagens, porque antes, como imagens tradicionais, liam-se
representações visuais do mundo de forma cíclica; agora, com a escrita, têm-se representações
45
visuais do mundo que demandam de normas lógicas e racionais – a partir de um princípio de
percepção linear: início, meio e fim. A imagem textual, por fim, distancia-se do papel inicial
dessas imagens tradicionais: um mecanismo visual que dava a ver a abstração das coisas do
mundo e das coisas imaginárias. Isso decorre, como destaca Flusser, de a linguagem escrita
ser uma forma de fragmentar essas imagens tradicionais em conceitos, deixando de ser uma
tentativa de representar o real para ser uma forma de conceitualizá-lo ou explicá-lo. Assim,
como explica o poeta Quintais, na composição dos versos de Stevens, as palavras “Deus e
noite desfazem-se semioclasticamente” (QUINTAIS, 2017, p. 35). Por conseguinte, a
linguagem poética tende reconstruir sentidos do real e do imaginário, ao passo que o artista
tem a potência de deslocar os significados imóveis fixados nas palavras como imitação e
representação das coisas reais.
E não seria essa também uma questão já levantada por Platão? De acordo com sua
lógica sobre o Mundo das Ideias, vivemos sob o regime da imitação (no Mundo Sensível) e o
que entendemos como real é na verdade uma cópia – imagem – do real existente somente do
Mundo das Ideias. Seguindo esse pensamento, a linguagem literária promoveria exatamente o
que Flusser entende como uma escrita conceitual, pela qual as palavras (os signos)
funcionariam, como em Platão, como uma dupla cópia e representação (no mundo sensível)
de traços do real (presente somente no mundo das ideias). Daí, portanto, um ponto importante
– e comum – à poética de Quintais, a linguagem poética, quando se torna um mecanismo de
representação do mundo, o faz através de imagens – fotocopiadas – pelas palavras do poeta.
Tais imagens, no entanto, por serem produzidas pela linguagem verbal, revelam ainda uma
tensão decorrente de seu processo de construção (escrita) levando o leitor a experimentar uma
sensação de ausência nessas imagens: elas são apenas traços do real. Nas imagens textuais
criadas por Quintais, como no poema “Deus e noite”, somos confrontados com essa tensão no
que se refere aos vazios (visíveis e não visíveis) experimentados através da linguagem
poética. E nesse processo semioclasta, como destacaria Barthes, restarão, ainda, evidências,
restos e fissuras – ou o “colapso dessa forma” (QUINTAIS, 2017, p. 35) – na escrita poética
que inquietam o receptor.
Quadro semelhante é visto em outro poema “Chris Marker”:
CHRIS MARKER
Pediam uma fotografia sua, Enviava-lhes a de um gato.
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Por que nos escondemos nesse rosto? Animal somos, sombra sem delicadeza, movimento de antecipação e caça.
A melhor arte esconde-se em atributos sem nome. Assinamos a nossa felina ausência deste mundo sobre-exposto.
Imagens demasiadas, excessivas, transparentes, de náusea iluminadas já, por que não vos fixais?
(QUINTAIS, 2017, p. 73)
Chris Marker, personagem-título do poema, foi um cineasta, fotógrafo, escritor e
artista multimídia francês. O poema, então, é tecido como uma forma de resgatar e
homenagear esse artista que tinha um hábito muito curioso: não dava entrevista e recusava-se
a ser fotografado, enviando sempre a foto de um gato como se fosse uma foto sua. A primeira
estrofe é dedicada à apresentação dessa anedota do artista francês, “Pediam uma fotografia
sua, / Enviava-lhes a de um gato” (QUINTAIS, 2017, p. 73), de modo a, nas linhas seguintes,
refletir acerca da imagem, do homem por detrás da foto e de sua existência no mundo
contemporâneo. Nesse sentido, na estrofe seguinte, somos defrontados com uma indagação:
“Por que nos escondemos / nesse rosto?” (QUINTAIS, 2017, p. 73). Vemos uma tentativa de
estabelecer uma reflexão crítica que rompe os limites da anedota e pode ser transportada à
sociedade contemporânea. Com o advento da internet, observou-se uma crescente utilização
de figuras representativas no mundo virtual. Hoje, vivemos sob o regime da imagem. Tudo à
nossa volta gira em torno de imagens. Ícones em telefones, perfis nas redes sociais, fotos do
Instagram e Facebook, páginas e mais páginas online destinadas à publicação, reação e
compartilhamento de imagens. Estas que são muitas vezes supereditadas e superprogramadas
para esconder todas as imperfeições e passar uma imagem esteticamente perfeita, que esconde
e mascara todos e quaisquer defeitos. Por que nos escondemos nesses filtros, nesses outros
rostos que não os nossos?
Voltemos a Flusser, o ensaísta em O Universo das Imagens Técnicas (2008) aponta
que a sociedade vive orientada pelas imagens técnicas. Isso decorre principalmente do
advento da fotografia, a partir da invenção do darregueótipo, em 1839, pelo artista Louis
47
Jacques Mandé Daguerre, que possibilitou uma maior e menos complexa produção de
imagens fotográficas mais realistas, as quais traziam maior familiaridade e fidedignidade com
o real. Isso porque o processo fotográfico, por meio do daguerreótipo, passou a ser mediado
pelo primeiro dispositivo mecânico fotográfico determinante para a criação de imagens que
funcionam como uma espécie de recorte do real. O fotógrafo conseguia, então, produzir
imagens técnicas, através de um dispositivo mecânico que captura uma imagem mimética da
cena real observada, enquadrada e composta pelo fotógrafo. Flusser destaca ainda que, na era
contemporânea, o processo histórico de evolução e o progresso técnico-científico intensificou
a presença desses objetos fotográficos no dia a dia porque as “fotografias são onipresentes:
coladas em álbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritórios,
afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas,
camisetas” (FLUSSER, 2002, p. 37).
Há, portanto, um fascínio pelas imagens técnicas, que se encontram presentes em
todas as partes decorrente de uma popularização dos dispositivos fotográficos. Acerca disso, é
valido recordar a fabricante de câmeras fotográficas, Kodak (1888) que se destinou a
popularizar a obtenção de câmeras fotográficas com a venda de câmeras de utilização prática,
fácil e acessível à população – haja vista seu primeiro slogan “Você aperta o botão, a gente
faz o resto”. Isso demonstra, no entanto, que as imagens técnicas se tornaram uma forma pós-
histórica de representar o significado das coisas: “Por certo, o artigo que a fotografia ilustra
no jornal consiste em conceitos que significam as causas e os efeitos de tal guerra. Porém o
artigo é lido em função da fotografia, como que através dela. Não é o artigo que “explica” a
fotografia, mas é a fotografia que “ilustra” o artigo” (FLUSSER, 2002, p. 55).
Mas por que o fascínio pela fotografia a ponto de as imagens técnicas guiarem toda
uma sociedade? Flusser explica que por detrás do aparelho fotográfico existe, na verdade, um
programa, fruto de uma superabstração científica da linguagem, capaz de transcodificar cenas
em fotografias, com o intuito de resgatar a relação entre o real e o imaginário na experiência
de dar a ver o mundo pelas antigas imagens tradicionais. Houve a criação e a popularização
das câmeras fotográficas (hardware) – as quais operam sob o regime de um programa
(software) – que difundiu uma forma prática e mais livre – porém programada – de capturar
cenas mais fiéis ao real – bem semelhantes às imagens tradicionais. Como aponta o ensaísta,
houve, pela perpetuação e pelo avanço do sistema linguístico como mecanismo de conceituar
as coisas do mundo, uma perda da experiência do real e da imaginação decorrente da
produção de imagens tradicionais. As imagens, nesse sentido, ao mesmo tempo em que têm o
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propósito de representar o mundo acabam por propor um movimento contrário, porque se
interpõem entre o homem e o mundo à sua volta. Em suas palavras:
O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a
viver o mundo em função de imagens. Cessa de decifrar as cenas da imagem
como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado
como um conjunto de cenas. Esta inversão da função das imagens é a
idolatria. Para o idólatra - o homem que vive magicamente -, a realidade
reflecte imagens. Podemos observar hoje, de que forma se processa a
magicização da vida: as imagens técnicas, actualmente omnipresentes,
ilustram a inversão da função imagética e remagicizam a vida. (FLUSSER,
1998, p. 29)
Surge, nesse contexto, o que Flusser irá chamar de idolatria12, ou seja, a imagem não
mais representa o real, uma vez que foi tão abstraída pela linguagem que simboliza apenas
conceitos desse real. Sendo assim, a linguagem visual, que deveria ser um mecanismo de
aproximação entre o homem e as coisas do mundo real, passa a funcionar como um tapume
que separa o homem versus realidade. As imagens, então, passam a reproduzir e realçarem
fragmentos da vida, como um recorte e enquadramento ilusório de uma cena real,
condensando em imagem poética um mundo de filtros, edições e teatralização da vida. Desse
modo, pela imagem fotográfica, como encenado já nos primeiros versos de “Chris Marker”:
“Pediam uma fotografia sua, / Enviava-lhes a de um gato” (QUINTAIS, 2017, p. 73), pode-
se propor uma figura que se interpõe, entre o homem e o mundo, transformando-se em um
filtro imaginário do real, uma superabstração da realidade. E foi exatamente essa abstração
máxima, intensificada por meio de programas e códigos inseridos ao longo do
desenvolvimento tecnológico das câmeras fotográficas, que possibilitou a criação de uma
linguagem tão técnica, científica e abstrata capaz de produzir fotografias que são, na verdade,
“imagens de conceitos, são conceitos transcodificados em cenas” (FLUSSER, 2002, p. 32).
Com isso, um fotógrafo – profissional ou amador – consegue criar cenas ilusórias a partir da
fixação de cópias de cenas reais vivenciadas por ele. Pela operação da caixa preta, portanto,
ressoa a experimentação entre o real e o imaginário na busca por representar
fotograficamente a cena real observada.
Por conseguinte, vive-se numa sociedade guiada por imagens técnicas que se tornaram
tão populares a ponto de serem tão superprogramadas que começaram a esconder a imagem
real. Ângulos, jogo de luz e sombra, curva de cores, programas de edição são extensões das
12 Idolatria, para Flusser, é a “incapacidade de decifrar os significados da ideia, não obstante a capacidade de lê-
la, portanto, adoração da imagem” (FLUSSER, 2002, p. 77-78).
49
lentes digitais utilizados para reprogramar a imagem fotografada. Em efeito negativo, arte de
criar imagens, mais uma vez, afasta-se do real a passo de escondê-lo: “melhor arte esconde-se
/ em atributos sem nome” (QUINTAIS, 2017, p. 73). Palavra e imagem, fundem-se à reflexão
sobre a [de]composição do mundo em imagens fragmentadas que escondem, tapam e simulam
o real num jogo de programação. Aqui, na voz lírica ecoa a reflexão sobre a utilização de
imagens programadas, esperadas e aceitas pelo programador (fotógrafo) e que se utiliza de um
programa (câmera). Para Chris Marker, essa imagem era a de um gato. Capaz de inquietar
aqueles que se encontram diante dela, pois rompe – através de uma espécie de estranhamento
– com a expectativa criada porque se sobrepõe à imagem real. Assim como denuncia a atitude
de Chris Marker aludida por Quintais: na sociedade das imagens técnicas estamos
subordinados a imagens formadas de fragmentos do real que se compõem, sobre-põem-se e
sobre-expõem-se num jogo de presença e ausência: “Assinamos a nossa felina / ausência deste
mundo / sobre-exposto” (QUINTAIS, 2017, p. 73).
Esse contexto leva o eu lírico à indagação do último verso “por que não vos fixais?”
(QUINTAIS, 2017, p. 73). Isso porque, em um mundo marcado pela fragmentação imagética,
a opção pela não fixação de sua imagem inquieta. Aqui, dialeticamente, a voz poética nos leva
a um raciocínio acerca do papel da imagem técnica na sociedade contemporânea. Pelo
processo de escrita, somos confrontados com imagens técnicas que realçam a constante
sobreposição de imagens a que somos submetidos cotidianamente e que simulam a nossa
própria identidade. A foto do gato simula a identidade do artista aos que lhe pedem uma
fotografia sua. As imagens supereditadas vinculadas às redes sociais simulam uma identidade
visual desejada e, por vezes, inalcançável por ter sido tão programada que superabstrai o real.
No regime de imagens que se auto-sobre-põem, qual imagem é o seu simulacro? Em que
parte da imagem encontra-se o verdadeiro eu? Em meio a “imagens demasiadas, excessivas, /
transparentes, de náusea / iluminadas já, / por que não vos fixais?” (QUINTAIS, 2017, p. 73).
Aqui volto a recordar da voz de Flusser: “Imagens têm o propósito de representar o mundo.
Mas, ao fazê-lo, interpõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do
mundo, mas passam a ser biombos” (FLUSSER, 2002, p. 9).
Nesse momento, também somos levados a recordar Camilo Pessanha. No soneto 19,
[“Imagens que passais pela retina”], encontrado no livro Clepsidra (1920), a palavra, que dá
título ao livro de Pessanha, provém do grego kleps (verbo “kleptô” = roubar, enganar) + udra
(nome “udor” = água), e nomeia um antigo relógio egípcio, que funcionava à base de água e
azeite. O tempo, nesse artefato, era medido de modo semelhante a uma ampulheta, em que a
50
passagem da areia (ou o líquido que compõe a clepsidra) de uma ponta à outra equivale à
passagem temporal. Desse modo, tal qual nesse artefato, os poemas reunidos no livro de
Pessanha trabalham com a metáfora do tempo e da água na busca por evidenciar as
transformações e a brevidade da existência humana em função de um movimento constante do
tempo. Isso é desenvolvido no poema de Pessanha por meio de pergunta feita pela voz poética
nos primeiros versos do soneto 19: “Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque
não vos fixais?” (PESSANHA, 1995, p. 57). Com essa interrogação, Pessanha propõe
também uma discussão sobre a transitoriedade da imagem, uma vez que, para seu eu lírico ela
é fluida e constantemente submetida a transformações e, por isso, não consegue ser fixada em
uma imagem única. Isso é fruto, principalmente, do processo de formação das imagens, que
decorre de uma relação óptica chamada de refração da luz. Durante esse processo,
dependemos da passagem de luz pela nossa retina para que uma imagem possa, então, ser
formada. Isso, por sua vez, como apontam Santos e Leal, releva que
essas imagens, enquanto forma de apreensão da realidade, são reflexos de
dados espaciais; enquanto fluir e impossibilidade de retê-las são tempo. Daí
a temporalização do espaço/espacialização em metáforas que nos conduzem
à estinfalização da água de que falam Bachelard e Durand. (SANTOS,
Gilda; LEAL, Izabela, 2007 p.36)
De fato, nesse poema, a água revela a angústia da voz lírica, é por meio dela que se
desenvolve a reflexão e a percepção da fragilidade das coisas em função do tempo. Assim
como a água, que passa num movimento contínuo sem possibilidade de retorno (já nos dizia
aquele ditado popular não se banha na mesma água do rio duas vezes...), é a imagem. Esta,
por sua vez, é problematizada no poema porque o passar do tempo impede que a imagem seja
fixada na retina, sendo, portanto, passageira e efêmera. Nesse momento, a água da fonte que
transcorre no cenário torna-se uma alegoria que realça a estinfalização13 da água como uma
forma de experimentar a melancolia, decorrente principalmente da sensação de perda. Sendo
assim, Pessanha coloca seu leitor diante de uma cena que realça a onipotência humana frente
13 “O próprio Bachelard, na sua notável análise, abandona o seu princípio elementar de classificação – que não
era mais que um pretexto - para fazer valer axiomas classificadores mais subjetivos. Ao lado do riso da água
clara e alegre das fontes, sabe dar lugar a uma inquietante “estinfalizaçào” da água. Esse complexo formou-se no
contato com a técnica da embarcação mortuária ou, então, o medo da água tem uma origem arqueológica bem
determinada, vindo do tempo em que os nossos primitivos antepassados associavam os atoleiros dos pântanos à
sombra funesta das florestas? [...] Bachelard, retomando o excelente estudo de Maria Bonaparte, mostrou que o
mare tenebrum tinha tido o seu poeta desesperado em Edgar Poe. A cor “de tinta”, nele, encontra-se ligada a
uma água mortuária, toda embebida pelos terrores da noite, pejada de todo o folclore do medo que estudamos até
aqui” (DURAND, 2002, p. 96).
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às transformações inevitáveis às quais tudo está submetido com a inexorável passagem do
tempo. Essa imagem poética, por isso, é resgatada nos versos de Quintais, uma vez que ela
apresenta os traços que a passagem temporal deixa na aparência e na superfície das coisas do
mundo. Desse modo, o leitor é posto de frente a uma encenação da brevidade do tempo, que
demonstra, ainda, a incapacidade de reter a materialidade e de integrar-se a ela: “- Porque ides
sem mim, não me levais?” (PESSANHA, 1995, p. 57). Essa outra interrogação, encontrada na
estrofe seguinte, aponta a onipotência do eu poético que não mais consegue se entender pleno
e uno, porque as imagens que não foram retidas formam fragmentos do sujeito lírico, do qual
há apenas restos, sobras e ruínas: “Fica sequer, sombra das minhas mãos, / Flexão casual de
meus dedos incertos, / - Estranha sombra em movimentos vãos” (PESSANHA, 1995, p. 57).
Nos dois poemas, então, somos guiados pela voz lírica à reflexão da transitoriedade
de qualquer imagem. Quintais resgata a pergunta de Pessanha para promover uma crítica
contemporânea à sobreposição de imagens, que se misturam e se transformam, ocasionando a
criação de outras imagens. Pessanha, por sua vez, realça que as transformações são naturais,
decorrentes da ação temporal. À medida que o tempo passa, as coisas estão sujeitas à
metamorfose e, por essa razão, as imagens não conseguem ser retidas pelo observador, elas
são ilusórias, fragmentos e vestígios. Ambas as imagens poéticas revelam um eu poético
desconstituído pela transição do tempo e do espaço, e, em vista disso, encaminham-no a uma
experiência de dor e ausência. E, a nós, resta a reflexão: porque não vos fixais?
Reflexão semelhante pode ser evidenciada pelo poema “Ecografia #3”, de Quintais,
em que a voz lírica descreve uma imagem que se transforma e se reconfigura, abrindo-se em
outra imagem:
ECOGRAFIA #3
É uma imagem do tempo desenhando-se, flor, floração, fértil sombra, alma.
Ecos desfiam o perfil de Amélia, os ombros, dedos, olhos, encéfalo, pétalas, sépalas, sonhos.
(QUINTAIS, 2017, p. 100)
52
Descreve-se uma ecografia. A voz lírica que anuncia essa imagem ao seu leitor está
vendo uma fotografia fetal, uma imagem privilegiada do bebê ainda em formação dentro do
ventre materno, produzida por exame de ultrassom durante o acompanhamento pré-natal.
Nesse tipo de exame, inclusive, é muito comum que seja impressa uma fotografia do feto
antes mesmo de seu nascimento, que é entregue aos pais. Por isso, como a própria voz revela
essa imagem: “é uma imagem do tempo desenhando-se” (QUINTAIS, 2017, p. 100). Através
desse pequeno fotograma da criança ainda em estado embrionário, somos capazes de projetar
nossos sonhos e desejos sobre o que e como esse pequeno indivíduo um dia será após o seu
nascimento. A voz poética, um possível pai, encontra-se à frente de uma ecografia de sua
filha, Amélia, que será descrita ao longo do poema. Dessa imagem prematura, ele construirá
uma associação entre o corpinho do bebê que se desdobrará em variados tempos (seja durante
o próprio período de gestação, seja após o seu nascimento e enquanto estiver em
desenvolvimento) como a maturação de uma flor, que se transforma e se desenvolve no ciclo
natural da vida. Com a linguagem, a voz lírica transfigura e fixa em imagem poética
fragmentos do tempo presente e futuro dessa criança em formação, e somos guiados a
visualizar essa imagem do tempo que se desenvolve de acordo com o ciclo de vida de uma
planta.
Trata-se, portanto, de uma imagem que se movimenta e se constrói conforme os
pensamentos, sonhos e projeções deste indivíduo que vê, privilegiadamente, uma prematura
imagem de sua filha, “desenhando-se, flor, floração, / fértil sombra, alma” (QUINTAIS, 2017,
p. 100). E como fixar uma imagem do tempo que se movimenta conforme a imaginação dessa
voz senão pela movimentação também da linguagem? O que poderia se tornar uma descrição
estática de uma ecografia, toma forma de flor, transita e floresce, se transforma em sombra e
depois em alma. Pela linguagem poética, então, o leitor é lentamente guiado pela voz lírica
que descreve uma imagem que dá a ver o tempo: de flor à alma, de vida a sonhos e, num
movimento ecfrástico somos colocados diante de uma recomposição da passagem do tempo.
Por causa disso, a imagem poética na primeira estrofe revela-se num momento energético,
porque através da sua visualização, ela instiga o observador a refletir sobre uma ontologia
intrínseca à imagem: a ecografia do feto suspende a noção de tempo (passado, presente e
futuro) e impulsiona a imaginação (os sonhos e as projeções daqueles que desejam esse feto).
Como destaca Didi-Huberman (2013):
Uma imagem, toda imagem, resulta dos movimentos provisoriamente
sedimentados ou cristalizados nela. Esses movimentos a atravessam de fora a
53
fora, e cada qual tem uma trajetória – histórica, antropológica que parte de
longe e continua além dela. Eles nos obrigam a pensá-la como um momento
energético ou dinâmico ainda que ele seja específico em sua estrutura.
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 33-34)
Após seu momento energético na primeira estrofe, a imagem poética inscreve-se num
momento de descobrimento, no qual os elementos descritos mostram-se apenas como indícios
do que poderá ser um dia a imagem observada. A partir disso, a voz lírica nos faz recordar a
reflexão sobre tempo já anunciada na primeira estrofe: tudo é subordinado à ação temporal,
que movimenta e transforma todas as coisas. Tendo isso em mente, a relação entre as imagens
poéticas dos versos e o título dado ao poema torna-se ainda mais visual: a voz lírica se
encontra diante de uma imagem obtida através de uma ecografia descreve os traços que
desenham o perfil feminino, Amélia, também, em movimentação, desfiando-se em imagens
poéticas. De uma fotografia privilegiada de uma vida que ainda não nasceu, a vos poética
foto-grafa pela linguagem poética as transformações às quais essa vida será submetida.
Nesse sentido, de Amélia, existem apenas ecos que ressoam seu retrato fragmentado
ainda em processo de construção: “os ombros, / dedos, olhos, encéfalo, / pétalas, sépalas, /
sonhos” (QUINTAIS, 2017, p. 100). O prefixo eco – seja do grego oíkos, que significa casa,
habitação, que reúne elementos pertencentes a um mesmo campo semântico, numa noção de
familiaridade, seja do latim echo, que destaca a relação de eco, ressonância, repetição – no
título do poema, o vocábulo ecografia já carrega, então, essa figura de familiaridade que
amadurece com o tempo. De elementos naturais, como as pétalas, a elementos corporais,
como o dedo, esse eu lírico descreve a transformação a que esse perfil de Amélia será
submetido com o tempo seja durante gestação, seja após o seu nascimento para o mundo.
Suas características se modificarão com o seu crescimento, seja durante a gestação, seja após
o seu nascimento e desenvolvimento. Nessa cena de escrita, Quintais dá indícios de uma
poética altamente reflexiva que teoriza não só o olhar, mas também a natureza da percepção
do tempo. E como recordar é trazer de volta ao coração, recordo, eu, ainda, de Camões
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo
o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades” (CAMÕES, 1977, p.
45). A voz poética do Camões ecoa na voz poética de Quintais, através de uma lírica
filosófica das transformações e das novas qualidades sempre tomadas pelas coisas do mundo.
É um movimento que se pode também perceber no poema “Lixeiras e bancos”:
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LIXEIRAS E BANCOS
A liberdade, ninguém a quer.
Olhar para a luz de frente, procurar o ponto mais escuro que se assemelha a um leque, a uma floresta negociando sombras.
O lixo e o dinheiro são a única estação onde se pára e se contempla a história desfigurada.
Alguém acaba de morrer e no seu cérebro corre um arranjo de virtudes e acidentes.
Crepita a manhã sobre lixeiras e bancos.
(QUINTAIS, 2017, p. 39)
O poema é iniciado com uma afirmação que se desdobra, nos versos seguintes, numa
composição imagética: “A liberdade, ninguém a quer” (QUINTAIS, 2017, p. 39). Nesse
sentido, ao dizer que a liberdade, na verdade, não é desejada, o poeta propõe uma análise
político-social acerca das coisas que nos dão uma falsa sensação de liberdade, ao passo que
nos aprisionam num ciclo de degradação. A voz lírica, então, chama atenção para uma
experiência linguístico-visual obscura: olhar para a luz à frente, a procurar por um ponto de
escuridão, este que se [trans]figura em leque e em floresta. Isso acontece através da
transformação de palavras – e de seus significados – em cenas de escrita em que a observação
do mundo é o foco, mas um mundo aprisionado ao capital que determina o destino de todas as
coisas. Nas duas primeiras estrofes desse poema, vemos como o poeta – metaprocessualmente
– transforma as palavras e os versos em imagem a partir de procedimentos da escrita poética
que assemelham o poema a um procedimento contemplativo de cenas do mundo
contemporâneo. Os vocábulos luz, escuro, leque, floresta e sombras, à vista disso, passam
linguística e poeticamente a figurar um reflexo das marcas de decadência mundo pelo olhar
do poeta. Os versos de Quintais assemelham-se a frases-imagens¸ nas quais há uma subversão
da lógica natural dos sentidos, propondo a visualização de uma unidade de sentido nova,
como se percebe na segunda estrofe do poema, ao “olhar para a luz de frente” (QUINTAIS,
2017, p. 39) e “ procurar o ponto mais escuro” (QUINTAIS, 2017, p. 39) dessa cena em
análise, a voz lírica vê e descreve, na verdade, algo “que se assemelha / a um leque, / a uma
floresta negociando sombras” (QUINTAIS, 2017, p. 39). A frase dá a ver por meio da
55
linguagem poética o dizível e o não dizível, o real e o imaginário, o caos e seus
desdobramentos durante a observação do mundo. De acordo com Rancière, a frase-imagem é
uma potência de tensão entre o visual e a linguagem, entre o dizível e o foto-grafado:
frase imagem não é o dizível, a imagem não é o visível. Por frase-imagem
entendo a união das duas funções a serem definidas esteticamente, isto é,
pela maneira como elas desfazem a relação representativa do texto com a
imagem. No esquema representativo, a parte que cabia ao texto era o
encadeamento ideal das ações, a parte da imagem, a de um suplemento de
presença que lhe conferia carne e consistência. A frase-imagem subverte a
lógica. A função da frase-imagem ainda é a de encadeamento. Mas, a partir
daí, a frase encadeia somente enquanto ela é aquilo que dá carne. E essa
carne ou essa consistência, de modo paradoxal, é a da grande passividade
das coisas sem razão. A imagem tornou-se potência ativa e disruptiva do
salto, da transformação de regime entre duas ordens sensoriais. A frase-
imagem é a união dessas duas funções. É a unidade que desdobra a força
caótica da grande parataxe em potência frástica de continuidade e potência
imageadora de ruptura. Como frase, acolhe a potência paratáxica rejeitando a
explosão esquizofrênica. Como imagem rejeita com sua força disruptiva o
grande senso da repetição indiferente ou a grande embriaguez comunal dos
corpos. A frase-imagem retém a potência da grande parataxe e não deixa que
ela se perca na esquizofrenia ou no consenso. (RANCIÈRE, 2012, p. 56-57)
Essa frase-imagem inicial dá lugar à reflexão antropológica. Isso porque a criação de
imagem poéticas a partir de uma “potência frástica de continuidade” (RANCIÈRE, 2012, p.
56-57) e de uma “potência imageadora de ruptura” (RANCIÈRE, 2012, p. 56-57) da
linguagem poética confere ao texto lírico uma forma de representação crítica das imagens do
mundo. Desse modo, o poeta passa a desenvolver em seus versos uma imagem que visa
refletir sobre a dependência humana por capital em detrimento da percepção individual e
coletiva das mazelas do mundo. Por isso, a linguagem poética seria um recurso que dá a ver
um retrato crítico-social na poesia de Quintais, uma vez que ela organiza logica e
dialeticamente o olhar ontológico do poeta sobre o mundo, enquanto revela ao leitor as
impressões e as meditações dessa voz sobre a cena que vê. Como aponta Andrade (2017),
ainda que o contexto social em que uma obra literária foi escrita, deva ser considerado,
necessariamente, como o ponto inicial de análise crítica da obra, é necessário levar em
consideração a relação entre o olhar crítico do artista sobre o mundo impresso nas linhas de
um texto. Segue o excerto:
Apesar do contexto social não poder ser considerado como o ponto de
partida para a produção literária, não podemos negar que o poeta é um ser
sensível ao mundo em que vive e as experiências vivenciadas por ele e pela
56
humanidade, o que lhe permite trazer para aquilo que produz as suas
impressões sobre os fatos ocorridos na sociedade e a realidade que o
circunda, e é nesse sentido que Fonseca (2001, p. 202) afirma que “Embora
não se recuse a importância do conhecimento da técnica e da constituição
formal, para o poeta, o conteúdo de sua obra resulta do contato com o mundo
e a natureza, do conhecimento de si mesmo e dos outros”. (ANDRADE,
2017, p. 19)
Nesse contexto, antropólogo por formação acadêmica, Quintais dimensiona seu olhar
crítico do mundo a seus poemas. Através disso, a voz lírica em “Lixeiras e bancos” questiona
que o homem, hoje, está subordinado ao dinheiro. A sociedade contemporânea é regida pelo
capital. O sistema econômico capitalista vigente (marcado pela circulação contínua de capital
pela compra e venda de objetos de consumo) transforma a força de trabalho em forma de
adquirir capital, uma vez que este determina o poder de compra de mercadorias. Em função
disso, a sociedade é levada a naturalizar um processo contínuo de “mercantilização” das
coisas, já que tudo hoje pode se tornar um objeto de consumo cujo principal objetivo é a
venda para a aquisição – e o acúmulo – de capital como poder de compra. É nesse cenário,
então, que o homem contemporâneo passa a trabalhar compulsória e descontroladamente
numa busca frequente por poder de compra para consolidar sua posição ativa no ciclo
econômico.
Tal contexto econômico, no entanto, para além de diversas desigualdades sociais
geradas pela marginalização decorrente do status adquirido socialmente pelo poder de
compra, leva, ainda, para um outro cenário distópico. À medida que todas as coisas podem ser
entendidas como um objeto mercadológico, paradoxalmente todas essas coisas se tornam
também substituíveis e descartáveis. O sistema econômico é cruel e molda as relações de
trabalho – empregado (que vende sua força de trabalho para produzir um objeto de consumo)
e empregador (dono da empresa que vende o objeto produzido pelo empregado) – numa busca
contínua de lucro máximo. Ou seja, quanto mais se vende, mais se recebe capital. Sendo
assim, o mercado oferece ao seu consumidor diversos produtos variáveis em preço e
qualidade e que competem pela preferência do consumidor. Tais produtos, entretanto, tendem
a possuir uma vida útil e são descartados quando não cumprem mais a sua função. Das
embalagens descartáveis que conservam alimentos às carcaças de aparelhos tecnológicos, o
homem contemporâneo vive rodeado de lixo gerado pelo dinheiro. É o que observa a voz
poética de “Lixeiras e bancos”, em meio ao ritmo constante da esteira de produção da vida
capitalista: “o lixo e o dinheiro são a única estação / onde se pára e se contempla / a história
desconfigurada” (QUINTAIS, 2017, p. 39). A imagem poética, a partir disso, revela traços da
57
vida contemporânea através da observação e descrição de elementos antilíricos que compõem
a vida contemporânea. E ao poeta, nesse ponto, cabe a função de organizar, numa experiência
lírico-visual, uma reflexão desses trapos sociais como reflexo da sociedade.
Seria isso, talvez, um resquício de um poeta-trapeiro de Baudelaire que caminhava
pela cidade moderna e nela reparava os objetos antilíricos? Walter Benjamin em Paris,
capital do século XIX (1985) refletiu sobre as transformações urbanas sofridas pela
modernização das cidades, em especial Paris na segunda metade do século XIX. Seu estudo
toma como matéria as imagens poéticas desenvolvidas pelo poeta francês Baudelaire que
destaca dessa cidade boêmia uma figura sorrateira que perambulava pelas ruas: o trapeiro.
Este, por sua vez, torna-se uma metáfora para o poeta nos textos de Baudelaire que associa o
caminhar contemplativo desse personagem da Paris moderna com a arte – dessacralizada – do
fazer poético. Por isso, a imagem desse indivíduo (o trapeiro) – que anda solitário pelas ruas
da cidade e encontra no lixo dessa cidade seu “fazer heroico” – é transformada liricamente no
poeta – que procura nessa cidade seu assunto poético, seja na luminosidade seja na escuridão,
seja no erudito seja no vulgar, seja no luxo seja no lixo. Como destaca Benjamin:
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu
assunto heroico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um
tipo vulgar. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou a Baudelaire
tão assiduamente. Um ano antes de O Vinho dos Trapeiros apareceu uma
descrição em prosa dessa figura: 'Aqui temos um homem – ele tem de
recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande
jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu,
é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum
da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um
avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da
deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis'. Essa
descrição é apenas uma dilatada metáfora do comportamento do poeta
segundo o sentimento de Baudelaire. Trapeiro ou poeta – a escória diz
respeito a ambos; solitários, ambos realizam seu negócio nas horas em que
os burgueses se entregam ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos.
Nadar fala do andar abrupto de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela
cidade à cata de rimas; deve ser também o passo do trapeiro que, a todo
instante, se detém no caminho para recolher o lixo em que tropeça.
(BENJAMIN, 1995, p. 78-79)
Somos, nesse sentido, levados a retornar à estrofe inicial: “A liberdade, ninguém a
quer” (QUINTAIS, 2017, p. 39). O poeta-trapeiro de Quintais, ao realçar esses fragmentos da
sociedade, destaca também a nossa dependência deles. Em meio à história desconfigurada, a
luz que se transforma em sombra revela que o homem contemporâneo, que vive subordinado
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ao capital, e enxerga este – e somente este – como mecanismo de transformação pessoal, tem
uma visão turva sobre as coisas do mundo. A partir disso, entretanto, como em um despertar
de consciência, a linguagem poética transforma-se em resistência: cabe a ela a função de
desembaçar a visão. É nesse sentido que a frase imagem se torna uma ferramenta de análise
social, quando o eu poético volta seu olhar para uma nova cena, “alguém acaba de morrer e no
seu cérebro” (QUINTAIS, 2017, p. 39), essa imagem reflete a vulnerabilidade do homem
nesse mundo capitalista. O movimento do mundo é constante e contínuo, e quando nos
tornaremos livres desse movimento que nos envolve e nos rege? O caos de virtudes e
acidentes divide a tela do poema com a melancolia, mostrando que a liberdade é encontrada
pela libertação da mente através da linguagem poética.
Muda-se, então, a cena no poema: o eu lírico conduz seu leitor a ver o levantar de uma
manhã que recobre uma cena urbana de lixeiras e bancos. O final deste poema é a anunciação
de que existe um ciclo da vida que é contínuo e inevitável. Nesta cenografia do tempo, o ciclo
do poema termina, mas o ciclo da vida continua. As imagens enunciadas pela linguagem
poética agora ecoarão na memória, acessada através da observação de cenas. Como no poema,
após cada fim de dia (frenético, acelerado, competitivo e capitalista), “crepita a manhã sobre
lixeiras e bancos” (QUINTAIS, 2017, p. 39). Num movimento metaprocessual, a imagem
poética evidencia camadas de um mundo que se edifica numa dimensão contrária ao mundo
real, sobrepondo-se a ela em muitos fragmentos espaço-temporais. Através da representação
desses fragmentos do mundo, essa imagem põe em xeque os segredos, ela reflete a violência
persente nesse mundo, ela dá a ver as estranhezas desse mundo. É o que reflete Rancière:
[...] trata-se de fazer um mundo por trás de outro: o conflito distante por trás
do home; dos homeless expulsos pela renovação urbana por trás dos
edifícios novos e dos antigos emblemas da cidade; o ouro da exploração por
trás das retóricas da comunidade ou das sublimidades da arte; a comunidade
do capital por trás das separações em domínios; e a guerra das classes por
trás de toda comunidade. Trata-se de organizar um choque, de pôr em cena
uma estranheza do familiar, para fazer parecer outra ordem de medida que só
se descobre pela violência de um conflito. A potência da frase-imagem que
junta heterogêneos, então, é aquela da distância e do choque que revelam o
segredo de um mundo, isto é, o outro mundo no qual a lei se impõe por trás
das aparências anódinas ou gloriosas. (RANCIÈRE, 2012, p. 56-57)
Até aqui, portanto, vimos como ecfrasticamente a voz lírica cria imagens poéticas que
ora se assemelham à realidade objetiva ora destoam dela, evidenciando marcas da passagem
do tempo. Com isso, os fragmentos e as ruínas são objetos que se fazem presentes
59
constantemente nessas imagens poéticas, haja vista que por meio deles a voz pretende guiar o
leitor à reflexão e à meditação sobre a condição das coisas frente à passagem do tempo. Daí,
então, a necessidade de analisar, também, o modo com o leitor (observador) percebe e
experimenta as imagens com as quais é confrontado pela voz lírica.
2.3 Pelas janelas as palavras: as formas de percepção
Como discutido, na poética de Luís Quintais, encontramos uma escrita do ver, que põe
em evidência, pela voz lírica e pela linguagem, um retrato fragmentado – e, por vezes,
decadente – de cenas ou objetos do mundo. Nesse cenário, somos motivados pelo eu lírico a
visualizar imagens que representam rastros do mundo real e que, por isso, evocam um estado
de reflexão decorrentes dessa experiência visual. Com isso, é possível fazer uma analogia
entre as imagens poéticas nas obras de Luís Quintais e as imagens artísticas sobre as quais
Didi-Huberman refletiu em seu estudo. A obra O que vemos, o que nos olha (1982) de Didi-
Huberman desenvolve-se a partir de uma reflexão sobre o ato de ver, relatando que, por meio
dessa ação, o observador é levado a uma experiência visual subjetiva, oriunda de uma
inquietação promovida pela imagem observada. Nesse cenário, ele propõe que tal processo
ocorre uma vez que as imagens, assim como problematizadas por Benjamin [1928] (1984),
quando são dialéticas, têm a potência de afetar o receptor. Além disso, Didi-Huberman
destaca que, por meio da observação de imagens, somos levados a experimentar o vazio,
decorrente de a figura vista ser um rastro de elemento concreto em um mundo objetivo. Nesse
sentido, uma imagem, como mecanismo de representação, carrega em si uma imagem
dialética: ela é a representação de um objeto real – não o objeto em si – e, por conseguinte,
resgata do observador a memória deste objeto real.
Nessa perspectiva, quando se trata de poesia, resta à linguagem poética compor
imagens que possam funcionar como elemento de transformação – e por vezes de resistência
– quando estimulam as nossas experiências subjetivas num processo de busca por algo capaz
de preencher os vazios do mundo por elas representados. Para Rancière, “é nesse sentido que
a arte é feita de imagens, seja ela figurativa ou não, quer reconheçamos ou não a forma de
personagens e espetáculos identificáveis. As imagens da arte são operações que produzem
uma distância, uma dessemelhança” (RANCIÈRE, 2012, p. 15). Com isso, através da
linguagem, a poética de Quintais pode atuar sobre a contemplação de imagens, destacando o
60
papel e a importância das imagens poéticas para afastar a nossa percepção do pragmatismo.
Rancière aponta, ainda, que “palavras descrevem o que o olho poderia ver ou expressam o que
jamais verá, esclarecem ou obscurecem propositalmente uma ideia” (RANCIÈRE, 2012, p.
15) e em função disso, as imagens poéticas “propõem uma significação a ser compreendida ou
a subtraem. Um movimento de câmera antecipa um espetáculo e descobre outro, um pianista
inicia uma frase musical “atrás” de uma tela escura” (RANCIÈRE, 2012, p. 15).
Por conta disso, entendemos que a linguagem poética, no ato de criação de imagens,
funciona como um mecanismo que recorta de uma cena observada elementos visuais que são
abstraídos pela linguagem a serem percebidos pelo leitor. Isso é possível uma vez que o
produtor da imagem (seja ela uma imagem tradicional, seja ela textual, seja ela técnica)
imprime involuntariamente uma névoa cultural sobre o objeto – ou cena – real observada ao
reproduzi-la artisticamente. Névoa esta que poderia ser compreendida como as técnicas de
escrita poética – metáforas, figuras de linguagem, disposição visual dos versos e estrofes etc.
– bem como as técnicas de fixação de imagens plásticas – como na pintura e na fotografia –,
mecanismos que fazem a composição visual revelar ao espectador não só aquilo que se
encontra circunscrito na imagem, mas também uma fenomenologia e simbologia intrínseca às
coisas foto-grafadas.
Em virtude disso, como destaca Flusser, a criação de uma imagem é submetida a um
processo de abstração pela observação, imaginação e reprodução. Assim, na linguagem
poética “os textos são uma série de conceitos, ábacos, colares. Os fios que ordenam os
conceitos (por exemplo a sintaxe, as regras matemáticas e lógicas) são frutos de convenção.
Os textos representam cenas imaginadas assim como as cenas representam a circunstância
palpável” (FLUSSER, 2008, p. 14). Seguindo essa linha de raciocínio, o que vemos na poesia
de Quintais é a produção de imagens poéticas que recortam subjetivamente, a partir das
intenções reflexivas do poeta, uma cena a ser posta em exposição através da linguagem
poética. Cabe então compreender na poesia de Quintais como as imagens poéticas
promoveriam uma inquietação sobre a forma como o leitor percebe o mundo à sua volta.
Em busca dessa resposta, é importante entender que as imagens poéticas de Quintais
transitam entre o visível e o não visível, o dizível e o não dizível. A voz poética
constantemente descreve imagens que evocam do observador uma sensação de ausência, seja
pelo recorte da cena promovido, seja pela incapacidade de a linguagem dar conta de
representar todas as coisas, seja pela intenção fragmentária do próprio artista. Essa sensação
de esvaziamento, por sua vez, instiga o espectador a procurar por algo que preencha esses
61
vazios, pela memória, pela história e pelas sensações subjetivas. A partir disso, a observação
de uma imagem poética estimula o leitor a preencher o que há por detrás dela. Cenas em
fragmentos e objetos em ruínas realçam, seja pela descrição ecfrástica, seja pela criação de
metáforas, que as palavras grafam imagens que tensionam a percepção visual ao produzir
involuntariamente um resgate memorialístico de narrativas, sentimentos ou objetos de afeto.
Por isso, aqui percebemos que a voz poética de Quintais se encontra constantemente
teorizando o ver em uma performance lírica, uma vez que somos constantemente estimulados
não somente a pensar sobre a imagem e seus processos de composição, mas também a
experimentar imagem através da percepção subjetiva. Com base nisso, como destaca
Rancière:
Primeiramente, as imagens da arte, enquanto tais, são dessemelhanças. Em
segundo lugar, a imagem não é exclusividade do visível. Há um visível que
não produz imagem, há imagens que estão todas em palavras. Mas o regime
mais comum da imagem é aquele que põe em cena uma relação do dizível
com o visível, uma relação que joga ao mesmo tempo com sua analogia e
sua dessemelhança. Essa relação não exige de forma alguma que os dois
termos estejam materialmente presentes. O visível se deixa dispor em tropos
significativos, a palavra exibe uma visibilidade que pode cegar.
(RANCIÈRE, 2012, p. 15-16)
Tendo em vista essa virtude dialética da imagem poética, proponho a associação entre
as imagens presentes nos poemas de Quintais e a possibilidade de elas funcionarem como um
mecanismo de reflexão individual e coletiva. Isso porque as imagens poéticas produzidas pelo
poeta produzem uma leitura crítica não só de si – imagem – como também da relação entre ela
e o mundo. É o que se pode notar com a leitura do poema “Fotografia”, que promove, como
num movimento de ida e volta ao tempo passado, uma [re]leitura crítica sobre a condição das
coisas no tempo presente.
FOTOGRAFIA
É uma imagem de uma parede e as vulgares sombras de fim de tarde.
Nada faz pressentir outro sortilégio, a cor que a eternidade tem, uma hesitação que faz abolir a descrença.
Tudo é descrença, aqui.
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Porém, polimórfica, a natureza desdobra o pensamento sobre o ecrã dessa parede. O realismo é destruído.
(QUINTAIS, 2017, p. 61)
Na primeira estrofe do poema, o eu lírico apresenta ao leitor aquilo que observa.
Diante dele, encontra-se uma imagem, talvez uma fotografia. Nela, estão presentes uma
parede e sombras vulgares de um fim de tarde. À primeira vista, trata-se de uma imagem
insignificante, que representa mimeticamente uma cena da realidade objetiva: “É uma
imagem / de uma parede e as vulgares sombras / de fim de tarde” (QUINTAIS, 2017, p. 61).
No entanto, a observação atenta desse sujeito lírico faz que, dessa imagem vulgar de um fim
de tarde, ele perceba uma sensação de distanciamento. A parede ali presente está distante da
realidade objetiva, o fim de tarde ali fixado já não existe mais – as imagens são apenas
indícios de um espaço-tempo perdido e distante no espectro do passado, que evocam a perda,
o silêncio e a ausência. A imagem guia à melancolia, à perda, e o leitor encontra-se diante de
uma imagem que se assemelha a uma natureza morta. Em “Fotografia”, o leitor é exposto, já
na primeira estrofe pela voz poética, à observação de objetos comuns ao cotidiano, cujo
aspecto vulgar procura alcançar uma visão mais profunda sobre a efemeridade das coisas no
mundo. Isso em virtude de, assim como as pinturas de natureza morta, as imagens poéticas
revelarem não só um lado bom do mundo através dos objetos que a compõem, como também
provocarem uma reflexão sobre as noções de finitude, numa espécie de alegoria sobre a
morte, afinal, “tudo é descrença, aqui” (QUINTAIS, 2017, p. 61).
Sendo assim, os fotogramas líricos de Quintais compõem-se por meio de alegorias nas
quais os objetos que fazem parte da cena são reproduzidos semelhantes à natureza morta.
Acerca disso, recordo da reflexão de benjaminiana sobre a “categoria do tempo”, já que os
objetos artísticos das imagens poéticas de Quintais realçam a fragilidade das coisas. Em
Origem do Drama Barroco Alemão [1928] (1984), o ensaísta alemão aponta que uma
alegoria funciona como um mecanismo de constituição de sentido uma vez que ela é produto
da associação entre a natureza e a história. Nessa reflexão, Benjamin destaca que o sentido de
uma alegoria é resultado de uma relação subjetiva entre signo (a palavra) e coisa (objeto real
no mundo), a qual intensifica a subjetividade latente do mundo histórico. A partir disso, uma
alegoria tende a mudar o sentido original das coisas ao passo que promove a reflexão sobre a
transitoriedade das coisas. Daí, portanto, a importância das ruínas no processo de construção
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alegórica, ou seja, este símbolo (a ruína) funciona como um estereótipo, mas quando
representado em uma alegoria pode transformar-se em um mecanismo poético-visual que
impulsiona outras formas de perceber a história que talha inevitavelmente marcas visíveis e
invisíveis sobre todas as coisas. É o que destaca:
Quando, com o drama barroco, a história penetra no palco, ela o faz
enquanto escrita. A palavra história está gravada, com caracteres de
transitoriedade, no rosto da natureza. A fisionomia alegórica da natureza
história, posta no palco pelo drama, só está verdadeiramente presente como
ruína. Como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob
essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de
inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As
alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das
coisas. (BENJAMIN, 1984, p. 200)
A partir desse excerto, é possível entender o papel da melancolia no processo de
criação alegórica. Isso porque a imagem, quando representa algo que se encontra
fragmentado, em decadência ou ruína, realça desses aspectos a sua incompletude, levando o
leitor-observador a experimentar novamente a sensação de perda sob um rememorado objeto
de afeto. Nos versos do poema “Fotografia”, a voz lírica percebe que dessa imagem de uma
parede e as sombras de um fim de tarde “nada faz pressentir / outro sortilégio, a cor que a
eternidade tem” (QUINTAIS, 2017, p. 61). A projeção das sombras nessa parede, associadas
à cor do fim de tarde impressa na imagem que a voz poética vê e descreve vulgarmente ao
leitor, passa a configurar, como em uma ruína, traços de um passado histórico [re]vivenciado
através da observação e da memória. É válido destacar, ainda, que para Benjamin a história é
marcada pela violência, a qual só é acessada pela experiência melancólica, por isso, as
sombras e a cor impressas pelo observador da imagem levam a “uma hesitação que faz abolir
a descrença” (QUINTAIS, 2017, p. 61). A partir da linguagem poética, nesse contexto,
Quintais constrói uma imagem marcada por uma experiência da melancolia: “nada faz
pressentir / outro sortilégio a cor que a eternidade tem,” (QUINTAIS, 2017, p. 61). A imagem
e as cores de um entardecer perdidos no tempo evocam no eu lírico uma sensação de vazio.
Essa potência de afeto da imagem poética, transmitida à imagem grafada, reflete que
diante dela, o observador vê, na verdade, uma representação visual que marca uma evidência
histórica e memorialística de algo naquele espaço. Há na imagem dialética, portanto, sombras
que estimulam no seu observador, num movimento melancólico, uma experiência do vazio.
Em situação semelhante, o eu poético de “Fotografia”, ao observar a imagem na parede
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precisa descrevê-la para compreender a experiência do vazio pela observação dessa imagem
que o leva a um estado de descrença: “Tudo é descrença, aqui.” (QUINTAIS, 2017, p. 61). É
o que ocorre, por exemplo, na alegoria do anjo de Klee14 pela qual Benjamin destaca a
contemplação do passado através da imagem do anjo. Em sua análise da imagem, o ensaísta
revela indícios de uma postura melancólica através da própria figura do anjo que se encontra
horrorizado com o que vê, estático e em aparência assustadora. Ou seja, em estado de
melancolia. De fato, a teoria benjaminiana sustenta a ideia de que uma imagem poética, ao
propor uma imagem em ruínas, sugere a contemplação de uma natureza morta dotada de
alegorias que fazem o leitor meditar sobre a sua condição e sua fragilidade frente à inevitável
passagem do tempo; que chega para tudo e para todos e sempre deixará marcas visuais e
subjetivas.
Em “Fotografia”, a voz poética descreve uma cena composta por objetos, da qual o
olhar crítico promove um recorte e mostra apenas partes. Essas partes articuladas formam
uma imagem que revela indícios de algo para além da representação: aí está o visível e o
invisível. Desse modo, a imagem poética e imagem fotográfica, nessas primeiras estrofes,
fundem-se e dissipam-se em testemunho do real passado na terceira estrofe: “porém,
polimórfica, a natureza / desdobra o pensamento / sobre o ecrã dessa parede” (QUINTAIS,
2017, p. 61). Isso faz que a imagem poética se abra para o leitor dando a ver o visível –
percebido na composição da imagem – e o não visível – uma historicidade talhada nessa
imagem do fim de tarde na parede. Por isso, essa imagem poética pode ser percebida como
um elemento duplo que descreve não só uma mera figuração de uma cena, mas também uma
cena real do passado – um fim de tarde vivido pelo observador e já perdido no tempo.
Seguindo esse raciocínio, os objetos descritos no poema (a parede e as sombras o fim de
tarde) transformam-se em alegoria para destacar a efemeridade das coisas do mundo. Pelos
recortes promovidos pelo olhar reflexivo da voz poética que seleciona partes da cena para
compor uma imagem poética, portanto, o poeta leva seu leitor a ver além das palavras, e a
imagem, enfim, revela sua outra história.
Com base nisso, como aponta Rancière (2012):
14 “[h]á um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de
algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da
história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a
nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do
paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso” (BENJAMIN, 2005, p. 87).
65
Primeiramente, a palavra faz ver, pela narração e pela descrição, um visível
não presente. Em segundo lugar, ela dá a ver o que não pertence ao visível,
reforçando, atenuando ou dissimulando a expressão de uma ideia, fazendo
experimentar uma força ou a contensão de um sentimento. Essa dupla função
da imagem supõe uma função ordem de relações estáveis entre o visível e o
invisível, por exemplo, entre um sentimento e os tropos da linguagem que o
expressam, mas também os traços de expressão pelos quais a mão do
desenhista traduz aquele e transpõe estes. (RANCIÈRE, 2012, p. 21)
Nesse momento, lembro-me de uma pintura renascentista, o quadro de São Jerônimo
(Figura 4) do pintor Albrecht Dürer, ao qual Didi-Huberman também faz referência no livro
Ser Crânio: lugar, contato, pensamento, escultura (2016). O quadro, como destaca o ensaísta,
faz alusão a dois conceitos presentes nas pinturas de natureza morta: vanitas e memento mori.
Por meio desses conceitos, os artistas promoviam, através da criação de imagens que
representavam objetos cotidianos, uma reflexão sobre a fragilidade das coisas.
Figura 4 - São Jerônimo – Óleo sobre madeira de carvalho. 59,5 x 48,5 cm15
Fonte: Albrecht Dürer (1521)
Com a pintura que faz referência à natureza morta (Figura 4), como destaca Didi-
Huberman, Dürer reflete sobre a efemeridade do conhecimento. A caveira, ao lado da imagem
de São Jerônimo – que dedicou sua vida ao desenvolvimento intelectual – destaca que tudo
15 A reprodução pode ser encontrada pelo link:
https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jer%C3%B3nimo_(Albrecht_D%C3%BCrer)
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está submetido ao fim, à morte, assim como o homem e o conhecimento. Assim, diante de
uma natureza morta, o observador é levado a experimentar a descrença, uma vez que ela o põe
diante da ausência. De modo semelhante, observar a imagem inerte de “uma parede e as
vulgares sombras / de um fim de tarde” (QUINTAIS, 2017, p. 61) faz o eu poético refletir
sobre a fragilidade das coisas frente à passagem do tempo. Se aquela imagem é a
representação de um momento passado, o que vemos no poema é o que restou desse
momento. O que temos são vestígios de uma experiência, de uma percepção que se perdeu, o
que resta na história, com isso, são apenas fragmentos que nos remetem ao vazio.
Tal como na natureza morta, Quintais revela uma imagem composta por elementos da
vida em estado de decadência. É por meio da percepção da ênfase nesse estado aparente que a
voz lírica é capaz de refletir sobre o mundo à sua volta. Essa imagem inerte na parede gera
uma reflexão pela qual “polimórfica, a natureza” (QUINTAIS, 2017, p. 61) que era antes
observada passa a se desdobrar em “pensamento / sobre o ecrã dessa parede” (QUINTAIS,
2017, p. 61). Eis, pois, a potência transformadora e inquietadora da imagem poética: de
imagem imóvel marcada pela descrença e pela morte, a natureza que compõe a cena
fotografada observada transmuta-se, desdobrando o pensamento do observador. Diante dessas
imagens opera-se uma relação dialética em que a angústia e a melancolia abrem nossos olhos
a novas percepções do mundo: “é a angústia de olhar o fundo – o lugar – do que me olha, a
angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade de não saber) o que vem a ser meu
próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio,
de se abrir” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38). Enquanto isso, a voz lírica percebe que “O
realismo é destruído” (QUINTAIS, 2017, p. 61). Mas a que realismo se refere? Ao da
fotografia ou ao do mundo à sua volta? Ambas as imagens descritas – a fotografia observada
pelo eu lírico e a sua écfrase apresentada nos versos do poema – funcionam
ambivalentemente como mecanismos de alteração da percepção do real.
Em outro poema do livro A noite imóvel (2017), imagem semelhante é percebida:
MANHÃ
É cedo, demasiado cedo, escutas o clamor das horas, o breve tempo, a longa margem que assiste ao teu desaparecer.
Bebes o café e estranhas o poder de orvalho e cansaço
67
que há na manhã.
(QUINTAIS, 2017, p. 57)
No poema, notamos como o eu lírico descreve, na primeira estrofe, uma cena. Essa
cena é composta por um personagem e suas ações, no que se apresenta como uma manhã. Ao
decorrer da leitura, o poema, no entanto, é compreendido como um espelho: o eu lírico
observa uma cena de si mesmo. Distante da cena, ele se põe como observador e nosso olhar é
redirecionado a visualizá-lo: o eu lírico, agora personagem, escutando o clamor das horas,
assistindo a essa mesma cena: ela assiste ao teu desaparecer. “É cedo, demasiado cedo,
escutas / o clamor das horas, / o breve tempo [...] (QUINTAIS, 2017, p. 57). Com essa
imagem inicial, a voz poética põe em cena um personagem lírico que entra em autorreflexão
através da observação de uma cena da natureza ao amanhecer. Durante esse momento do dia,
observam-se transformações naturais decorrentes do movimento próprio da terra que faz a
noite tornar-se dia. Essa voz poética, então, contempla essas mudanças que ocorrem com a
chegada da luz, ou seja, o desaparecer da noite. Tal imagem, no entanto, é ponto de partida
para que a voz lírica entre em estado meditativo sobre a sua própria mudança, que chegará
inevitavelmente com o passar do tempo. Isso ocorre porque a imagem vista pelo eu lírico é a
mesma que o observa de volta, num movimento que o leva à inquietação subjetiva. Por isso, a
utilização do pronome possessivo de 2ª pessoa (teu) no verso “que assiste ao teu desaparecer”
(QUINTAIS, 2017, p. 57), que indica esse movimento duplo de observação da imagem
discutido por Didi-Huberman “porque procede como um momento de despertar, porque
fulgura o chamado na memória do sonho, e dissolve o sonho num projeto da razão plástica”
(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 192).
Nos dois últimos versos da primeira estrofe do poema, nesse contexto, anuncia-se um
jogo dialético da imagem. Isso porque os objetos que compõem a cena e são descritos se
abrem para nós – eu lírico e leitor – como uma espécie de encontro entre o aí e o aqui, já que
o eu poético, antes observador, se torna objeto de observação pela [...] a longa margem / que
assiste ao teu desaparecer” (QUINTAIS, 2017, p. 57). Desse modo, a imagem poética
tensiona o leitor uma vez que a mudança de foco na cena representada gera estranhamento: a
voz poética antes observava uma paisagem “É cedo, demasiado cedo, escutas/ o clamor das
horas, / o breve tempo” (QUINTAIS, 2017, p. 57); mas agora é a paisagem que assiste uma
cena de si: “escutas [...] a longa margem / que assiste ao teu desaparecer” (QUINTAIS, 2017,
p. 57). Percebe-se, nessa dupla experiência poético-visual, que a imagem poética proposta por
68
Quintais mais uma vez tende a dialogar com a estética do que seria uma Natureza Morta, já
que a cena criada destaca uma composição de um cenário comum que, no entanto, aloja uma
inquietação sobre esse objeto banal observado. Se nos quadros Still-Life os objetos do
cotidiano eram representados inertes, com cores e tons melancólicos e ligados à imagem de
fim, não é difícil perceber que a natureza descrita pela voz poética carrega, também, esse
aspecto melancólico. Nessa perspectiva, a imagem poética do amanhecer, tecida no poema
“Manhã”, funciona tal qual as imagens criadas a partir de objetos estáticos, tirados do natural,
passa a ser uma alegoria que dá forma a uma nova percepção.
Ao longo do século XVII, como já discutimos anteriormente, ascendeu esse novo
gênero artístico que acabaria por redefinir a forma como interpretamos uma imagem, o Still-
Life, ou Natureza Morta. Os grandes pintores desse movimento, como destaca o crítico
Norbert Schneider (1990), desenvolviam, pelas artes plásticas, alegorias acerca da
transitoriedade, fragilidade e passividade das coisas que sempre têm um fim. Para isso, os
elementos que compunham as pinturas eram apresentados de forma imóvel, de modo a
destacar uma reflexão sobre a concepção de tempo. Passado, presente e futuro são ideais em
suspensão na natureza morta. Além disso, nessa composição estética, os objetos inertes
representados são subordinados a esquemas de cores e iluminação que criam uma aura
meditativa sobre esses objetos, abrindo-se para nós em reflexão não apenas sobre a natureza
das coisas, mas também de seu fim, como numa performance viva de uma cena inerte. Assim,
surge um princípio interessante e comuns às naturezas mortas, o conceito de vanitas. Este,
por sua vez, é representado nas pinturas de natureza morta a partir de elementos que fazem
alusão à ideia de fim (memento mori) que ressoa como uma advertência sobre a
transitoriedade da vida humana. É o que explica Kossovicth (2010):
A vanitas é simplesmente significada pelos elementos pintados, abstraindo a
zona de indeterminação da mancha; o “fim” é uma alegoria de nível
superior, pois a própria representação deve ser antes desvendada.
Coordenando lugar, ponto de vista, parte/todo, Holbein distingue dois níveis
de representação e significação: o primeiro, evidente, em seu frontalidade, é
simples como representação do significado vanitas; o segundo, evidente em
sua lateralidade, representa outro significado, que a anamorfose desnuda,
“fim”. A alegoria do fim não se acrescenta a da vaidade: construída como
alegoria de alegoria, interpreta a primeira; é significado de significado e não
como mera figuração de objetos simbólicos. (KOSSOVICTH, 2010, p.185)
É o que se percebe, também, pela voz poética de “Manhã” na última estrofe do poema.
Nesses versos, vemos como a imagem do amanhecer transforma o modo de percepção do eu
69
lírico que a observa, uma vez que ele é levado a reflexões mais profundas, como sobre o
“poder / de orvalho e cansaço / que há na manhã” (QUINTAIS, 2017, p. 57). O orvalho é um
fenômeno físico que ocorre na madrugada que anuncia a manhã, quando o sol passa a trazer
calor que se opõe à temperatura fria da noite. A partir disso, a umidade do ar é precipitada por
condensação e se formam pequenas gotas de água na superfície das coisas que estão ao
tempo. Das transformações a que as coisas do mundo são submetidas frente à passagem do
tempo, restam apenas traços que indicam essa mudança. São marcas que revelam essa
história. Vanitas e memento mori, – ou a lembrança de que você irá morrer – ecoa nos versos
de Quintais como uma advertência ao leitor: olhar o mundo é perceber nos seus fragmentos o
reflexo de que a condição humana também se transforma e também experimenta a finitude. A
imagem poética, com isso, cumpre papel fundamental nesse processo tendo em vista que se
volta àquele que a observa a fim de promover um espaço de contemplação meditativa que
sensibiliza a forma como o espectador olha, imagina e percebe o mundo através das suas
sensações.
Em outro poema, “Anfiteatro”, o que se observa é uma voz lírica que compõe
inúmeras e fragmentadas imagens que buscam refletir, por meio dessa fragmentação, uma
experiência sobre a violência. Aqui, enxergaremos, tal qual a voz poética enxerga a realidade
à sua frente: pelo medo, pela indiferença e pela melancolia gerados por uma experiência
contemplativa em fragmentos.
ANFITEATRO
Todas as formas de violência são indesculpáveis, disse, e as sombras tombaram sobre a mesa.
Assim é indesculpável a mudez em que rostos se fecham. Um som vinha antecipar o sentido. A história alucina-se,
disse e algo cedeu nas sombras tombadas. Eu anotei, e o olhar, o meu, derrapou no vidro do anfiteatro, procurou a transparência. Mas era Inverno, Inverno também ali, Inverno sempre, e os plátanos
do outro lado, ali estando, tão indiferentes, de uma beleza de cinza, um anátema, uma contemplação rasurada.
(QUINTAIS, 2017, p. 75)
70
O título do poema, “Anfiteatro”, situa o leitor no espaço. A voz lírica encontra-se num
anfiteatro assistindo a uma cena, e, do palco um personagem diz “Todas as formas de
violência são indesculpáveis /, disse [...]” (QUINTAIS, 2017, p. 75). Observador atento, o
olhar do eu lírico – que possivelmente está sentado em uma das cadeiras frente ao tablado do
anfiteatro – volta-se ao redor desse espaço, descrevendo o efeito visual e de luz utilizado na
iluminação do cenário que, por sua vez, dá ênfase às palavras proferidas por esse personagem
em cena poética: [...] e as sombras tombaram sobre a mesa” (QUINTAIS, 2017, p. 75). Como
num recorte violento, que segue o ritmo e a temática anunciados pela voz em meio ao
anfiteatro, agora o leitor é direcionado a ver uma disposição de sombras que tombam sobre a
mesa – primeiro objeto concreto descrito que compõe o cenário do poema. Temos nesses
versos uma enunciação fragmentada, em que o eu lírico anuncia-se como um espectador que,
ao mesmo tempo em que assiste a uma performance em um anfiteatro, faz anotações poéticas
e meditativas sobre o que vê e o que decorre nesse espaço do anfiteatro e fora dele. É
interessante perceber, ainda, como a disposição sintática dos períodos nessa primeira estrofe,
e que se mantém ao longo do poema, dialoga diretamente com a ato de ver performado pela
voz poética nas palavras do poema, pois à medida que o eu lírico movimenta seu olhar sobre
um acontecimento no espaço, o poeta recorta também o discurso e fragmenta a cena descrita
pela linguagem poética.
Em consequência disso, as estrofes seguintes seguem esse ritmo de corte do espaço
ditado pelas ações neste espaço, mudança e movimento, que se assemelha ao processo de
escrita criativa em que se encontra o eu poético. Por isso, da descrição da cena, agora o poema
dá lugar à reflexão do próprio eu lírico sobre o que ele vê ao olhar para os lados e perceber a
reação das outras pessoas à cena: “Assim é indesculpável a mudez em que rostos se fecham”
(QUINTAIS, 2017, p. 75). Vemos, então, a posição de observador crítico em que se encontra
eu poético: ao passo que ele constrói seu poema, faz da performance e das reações objeto de
sua escrita. Trata-se, nesse sentido, de um poema que põe em evidência, também, uma
metaprocessualidade poética. Assim, o poeta entra também em cena e acompanha as ações
nesse espaço, colocando-se também em performance. Em decorrência disso, mais uma vez os
versos e a linha de raciocínio do poema são fragmentados pelo eu lírico, e agora, o leitor é
levado a experimentar outra sensação porque “um som vinha antecipar o sentido”
(QUINTAIS, 2017, p. 75). Volta-se ao anfiteatro, e a voz antes em cena ecoa novamente: “a
história alucina-se” (QUINTAIS, 2017, p. 75), uma experiência sonora que é transformada em
experiência visual, uma vez que após a sua fala o eu poético-observador é novamente
71
redirecionado ao palco, à mesa e ao personagem que fala, cena da qual “algo cedeu nas
sombras tombadas” (QUINTAIS, 2017, p. 75).
Nesse momento, percebemos que o eu poético também é passível de ser inquietado
pelos acontecimentos da cena visualizada. Da mesma forma como os rostos dos outros
espectadores foram emudecidos pela violência em performance, o eu lírico-observador reage
ao que cede no tablado do anfiteatro sobre as sombras na mesa, fato que o leva a redirecionar
sua atenção ao seu objeto de anotação – o próprio poema em fase de construção: “eu anotei, e
o olhar, o meu, derrapou no vidro” (QUINTAIS, 2017, p. 75). Seguindo esse movimento, ele
move sua cabeça e muda seu campo de visão que para – segmentando mais uma vez o fluxo já
incontínuo do poema – e derrapa no vidro. A partir desse fato, o poema em fase de criação
muda seu objeto de análise e a violência em drama, então, dá espaço à alegoria do fim. Isso
porque a imagem agora observada trata-se de uma imagem opaca, turva e sem muita nitidez.
O eu lírico – observador e também poeta em momento de criação – depara-se com um vidro
embaçado por causa do inverno: “do anfiteatro, procurou a transparência. Mas era Inverno, /
Inverno também ali, Inverno sempre, e os plátanos” (QUINTAIS, 2017, p. 75).
É inverno, estação do ano associada à ideia de fim (e por que não à melancolia?), uma
vez que as espécies de plantas entram em estado de dormência, já que necessitam poupar a
energia adquirida através da fraca incidência de calor e luz solar no seu processo de
fotossíntese nessa estação do ano. É nesse período, por exemplo, que se vê não só árvores sem
folhas – que caíram durante o outono, a estação anterior – e com aspecto mais frágil, como
também a constante presença de um tom acinzentado que recobre as paisagens em especial
nos países do Norte, que tendem a ser mais frios e chuvosos durante o inverno. O frio, o
cinza, a chuva, são elementos diretamente associados à própria disposição humana, que, pela
fraca incidência de calor (assim como as plantas), sofre biologicamente pela fraqueza,
indisposição e desestímulo, frutos do baixo metabolismo. O inverno afeta, também, as
relações humanas, que se tornam mais distantes, mais tristes e, por sua vez, mais
melancólicas. É esse inverno que também é posto em evidência através dessa imagem poética,
ao passo que o poema em fase de construção janela turva e embaçada para dar forma a uma
outra imagem – externa ao anfiteatro, ao palco, à performance e ao poema.
Da imagem inicial à imagem final (os plátanos no inverno), o poema é desenvolvido
através de uma observação contínua do movimento das coisas em cena. Enquanto a sua
estrutura formal (seus versos e estrofes), corroboram a encenação desse ato de ver. Isso
porque os versos curtos e segmentados são um recurso estético que evidencia não só um
72
processo contínuo de observação de ações simultâneas que ocorrem durante a cena, como
também a própria fragmentação e segmentação do texto literário, que põem em performance
essa sobreposição imagética simultânea. É também a partir deles que o poeta cria uma
sensação de quebra de fluxo de pensamento, seguida das inúmeras interrupções que ocorrem
nos versos, que dão voz ao discurso do artista em cena e às reflexões subjetivas do próprio eu
lírico-poeta que observa a cena e as reações que ela provoca em seu público. Nesses mesmos
versos curtos e segmentados pelas interrupções, o poeta ainda lança mão do recurso estilístico
do cavalgamento (ou enjambement em francês), que se refere à separação dos termos
sintáticos da oração em versos distintos do poema, em discordância à ordem sintática. Essa
quebra do fluxo sintático, assim como as inversões (hipérbatos), são recursos literários que
promovem maior movimento ao texto.
Todos esses recursos, que vão da escolha do objeto poético (a cena no anfiteatro) ao
objeto final (o poema), são, ainda, mecanismos que colocam em evidência o próprio papel de
escritor, uma vez que está em cena, também, o poeta – performado pelo eu lírico que ao
mesmo tempo em que assiste à dramatização escreve seu poema sobre o que vê. Não é à toa, à
vista disso, que o poema tenha ganhado forma anteriormente em 2014 no blog do poeta
acompanhado de uma fotografia. Como vimos, é frequente que os poemas de Quintais sejam
publicados, antes de compilados em livros, no blog que o poeta possui e alimenta
continuamente com textos críticos, ensaios, poemas, reflexões, enfim. Esse suporte digital é
uma ferramenta que possibilita um maior diálogo entre a figura do poeta, como também um
ser leitor, e seus leitores. Esse espaço, ao qual aqui retornaremos com frequência, evidencia
marcas, obsessões, visões e pensamentos do poeta que reaparecem (como fantasmas – ou
memórias) comuns à produção artística de Quintais.
É o caso do poema “Anfiteatro” que, em sua primeira publicação feita online, vem
acompanhado de uma fotografia sem título do artista norte-americano Ralph Eugene
Meatyard, mas que deu uma legenda “Motion-Sound Landscape” (1966) (movimento do som
– tradução nossa). Nela, ficamos expostos a um composição visual que procura fixar
contrastes, a imobilidade e o movimento, o silêncio e o som, a calmaria e o caos. Percorrer
essa imagem é experimentar duplamente a inquietação encenada pelos versos do poema
através de um outro suporte poético-visual capaz de intensificar e ressignificar a mensagem
transmitida e a nossa forma de percepção dela. Associadas – imagem poética e fotografia –
nos convidam a olhar de novo, com calma e mais atentamente uma performance metafísica do
ato e ver e da prática de [d]escrever:
73
Figura 5 - Untitled («Motion-Sound Landscape»)16
Fonte: Ralph Eugene Meatyard (1966)
A fotografia (Figura 5) é do artista Ralph Eugene Meatyard (1925 – 1972), um dos
mais famosos fotógrafos norte-americanos. Profundamente conectado com a Filosofia Zen
(tema sobre o qual já fizemos um breve estudo) e pelo ritmo Jazz, vemos nessa fotografia uma
percepção estética específica do artista que destaca elementos que sugerem uma contemplação
e uma experiência sentimental entre o observador e o espaço. Constantemente, fazem parte de
sua composição fotográfica cenas influenciadas pelo grotesco, como os espaços abandonados,
naturezas em decadência, bonecos, máscaras e pessoas que impulsionam uma experiência do
obscuro e da melancolia. É o que se pode observar na Figura 5. Como sugerido pelo subtítulo,
em inglês Motion-Sound Landscape, ao qual aqui propomos como tradução: o movimento do
som – a imagem fotografada visa representar visualmente o movimento do som – através das
ondas sonoras – quanto tocam a paisagem. Para isso, o artista escolhe como composição
poética uma árvore seca e sem folhas – que está em primeiro plano – acompanhada de uma
construção aparentemente de madeira – semelhante a um celeiro, muito comum nas áreas
rurais dos Estados Unidos.
Somado ao cenário influenciado pelo grotesco, observamos técnicas de edição de
imagem pelo próprio fotógrafo Ralph Eugene Meatyard que realçam não só um teor
melancólico promovido pela imagem, como no uso da escala de cores em preto e branco para
16 Fotografia disponível no blog do poeta associada ao poema “Anfiteatro” pelo link:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/2014/12/15/anfiteatro/
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fotografar o celeiro e a árvore seca. Além das cores, observamos uma ilusão de movimento,
provocada pelo uso de uma técnica fotográfica semelhante ao zooming, que consiste num
movimento de abertura e fechamento do zoom das lentes das câmeras manuais. Esse
movimento, seguido do aperto do botão de captura da máquina promove um efeito visual de
movimento na imagem, como se houvesse uma sobreposição de imagens sombreadas que
capturaram a movimentação manual do zoom. Essa mesma ilusão de movimento alcançado
manualmente pode hoje ser obtida por programas e aplicativos digitais de edição de imagens,
que possuem ferramentas e filtros que duplicam e sobrepõem os objetos que compõem a
imagem fotografada, simulando uma espécie de movimentação. Esses mecanismos, por sua
vez, foram utilizados pelo artista para representar visualmente as ondas sonoras que refletem
nos objetos que foram fotografados (a árvore e o celeiro) à medida que o som percorre a
paisagem.
Em uma resenha crítica sobre o trabalho e a obra de Meatyard, o jornalista David
Cory, da revista norte-americana de fotografia F-STOP – a fotography magazine, destaca um
trecho do livro Ralph Eugene Meatyard da crítica e curadora de fotografia britânica Judith
Keller (2002) sobre a estética de Meatyard. Segue o trecho:
Meatyard procurava continuamente por uma arte não objetiva que seria
poesia sem palavras, música espontânea sem som. As imagens "Motion-
Sound" de seus últimos anos trouxeram a paixão de Mea Courts pela música
e, paradoxalmente, o silêncio do Zen Budismo juntos na fotografia. Ao criar
a série, ele focou a câmera em uma cena natural (ou uma que continha uma
arquitetura rural simples) e então a moveu ligeiramente. O resultado dessa
ação é uma imagem que sugere som enquanto abstrai formas naturais.
(KELLER, 2002, p. 122) 17
Nesse excerto, Keller destaca como a técnica de movimento com a câmera adotada,
associada aos elementos que formam a composição da imagem fotografada por Meatyard,
revela uma influência direta da música e do movimento Zen na produção do ensaio Motion-
Sound (ou movimento do som). Isso porque ele escolhe como foco dessa fotografia uma cena
17 “Meatyard searched continually for a non-objective art that would be wordless poetry, spontaneous music
without sound. The ‘Motion-Sound’ pictures of his later years brought Meatyard’s passion for music and,
paradoxically, the silence of Zen Buddhism together in photography. In creating the series, he focused the
camera on a natural scene (or one containing plain rural architecture) and then moved it slightly. The result of
this action is an image that suggests sound while abstracting natural forms” (KELLER, 2002, p. 122). Esse trecho foi encontrado digitalmente, através do texto crítico do jornalista David Cory publicado em 2013 na
página da revista de fotografia norte-americana F-STOP - a fotography magazine, disponível pelo link
http://www.fstopmagazine.com/blog/2013/08/ralph-eugene-meatyard-by-david-
cory/#:~:text=Meatyard%20searched%20continually%20for%20a%20non-
objective%20art%20that,the%20silence%20of%20Zen%20Buddhism%20together%20in%20photography.
75
natural e rural (a árvore e o celeiro), como metáfora visual para a tranquilidade, o equilíbrio e
o silêncio, estados de espírito alcançados pela meditação, recorrente no movimento Zen
budista. Para além disso, ela também destaca que paradoxalmente o silêncio e o equilíbrio
sugeridos pela imagem são postos em confronto através da técnica de movimentação manual
da câmera, gerando um simulacro imagético do próprio movimento do som da música ao
percorrer a paisagem. É a partir da noção de movimento, então, que a fotografia de Meatyard
foi escolhida para acompanhar o poema “Anfiteatro” em sua primeira publicação no blog do
poeta Quintais. A partir da associação entre o movimento gerado pelas técnicas de produção
dessa fotografia com o movimento de corte e sobreposição de fragmentos de ações que
ocorrem, por vezes, simultaneamente no espaço, propõe-se uma performance da observação.
2.4 Um dia eternidade ou Algo permanece: grafar o tempo e a história
Com o diálogo proposto entre poemas de Quintais e as fotografias até então aqui
reproduzidas e estudadas, identificamos uma relação muito forte entre o ato de ver e seus
poemas. Seja por meio do recurso da descrição, seja pelo deslocamento sintático-semântico,
seja pelo uso de metáforas, constantemente encontramos em seus poemas uma voz lírica em
estado de contemplação de uma cena que é transfigurada em crítica e arte. Em posição de
observador, seja de uma cena da vida urbana, seja de uma fotografia seja de uma pintura
numa parede, há uma performance do ato de ver, o que nos leva a dizer que Quintais
desenvolve cenas de escrita, guiando, por meio da linguagem, o leitor a uma experiência
visual semelhante à vivenciada pela voz do poema. Em vista desses aspectos, encontramos
também uma aproximação entre o ato de fotografar – captar imagens por uma máquina – e o
ato de escrita literária na estética de Quintais – grafar em imagens poéticas cenas sobre
mundo que o circunda – na estética de Quintais. Sobre esse aspecto, discorre Alves:
Há em seus livros inúmeras referências à captação de imagens e com isso
desenvolve-se de forma assistemática uma espécie de teorização da imagem
poética, na tentativa de compreender o gesto estético, repetidamente
humano. A produção de fotografias alia-se à produção poética e poema e
foto se igualam por vezes como gestos falhados na tentativa de deter algo
que escapa. Esse algo que pode receber a nomeação de beleza pode vir
paradoxalmente do que está à margem, desprezado, destruído. Trata-se da
permanência de algo, de um sentido que somente o olhar humano sobre as
coisas pode produzir ou compreender. [...] Deter, registrar, marcar, escrever,
76
fotografar, gestos de criação que podem fazer-ver algo captado pelo olhar
vigilante, lento, atento, mas sempre em risco de perda. (ALVES, 2017, p. 11)
Pela linguagem poética, como explicado por Alves, Quintais promove uma forma de
teorizar a captação de imagens nas quais se pode perceber indícios de uma consciência crítica
sobre a natureza das coisas, própria do poeta. Seus poemas, nesse sentido, são desenvolvidos
a partir de uma voz lírica que insiste e tenta reproduzir, através da escrita, uma imagem
poética daquilo que os olhos enxergam no espaço contemporâneo. As palavras passam a
funcionar como um mecanismo técnico para deter imagens, semelhante aos procedimentos do
desenho, da pintura e da fotografia, porque elas dão a ver, como os traços do desenhista, as
pinceladas do pintor e as impressões da câmera fotográfica, algo que se pretende capturar. A
partir disso, o poema passa a ser compreendido como um espaço meditativo sobre uma teoria
da imagem, haja vista que a voz poética pode conduzir o leitor não só a visualizar as imagens
descritas nos versos, como também a refletir sobre aquilo que o enquadramento escolhido
revela ocultamente. A produção poética de Quintais, então, constantemente se aproxima dessa
tentativa insistente que o homem tem de fixar em imagens algo que escapa ao olhar, mas que
se pretende resgatar através da linguagem representativa.
Desse modo, há um diálogo possível entre a escrita poética e o olhar fotográfico do
artista, porque em seus versos encontramos frequentemente uma tentativa de captar, marcar,
escrever, foto-grafar imagens, em que “poema e foto se igualam por vezes como gestos
falhados na tentativa de deter algo que escapa” (ALVES, 2017, p. 11). As palavras do poema
traduzem verbalmente a experiência visual desse eu lírico-observador, o qual busca fixar,
mesmo que pela representação de objetos que estão à margem, que foram abandonados ou
encontram-se danificados, esse algo que escapa. Poética e ontologicamente, Quintais
consegue, a partir de uma técnica de escrita em que o ato de ver entra em cena, compilar
“gestos de criação” (ALVES, 2017, p. 11) poéticos que dão a ver, numa restante vigília,
imagens que descrevem lenta e atentamente a percepção de algo “sempre em risco de perda”
(ALVES, 2017, p. 11). Essas imagens poéticas, então, quando vistas por um olhar crítico e
atento – semelhante ao eu lírico dos versos de Quintais –, afetam o leitor de modo a incentivá-
lo a resgatar subjetivamente algo que preencha os vazios intensificados pela incapacidade de
reter, pela linguagem, o que se vê, o que se percebe e o que se sente frente à cena em
observação. Desse modo, os poemas abrem-se ao leitor em inúmeras formas de percepção e
compreensão sobre a cena descrita pelos versos, ao passo que ele se depara com objetos,
ações, estados e características que põem em tensão a concepção de real e imaginário. Para
77
isso, ainda, a composição poético-visual composta põe em foco peças comuns ao cenário
urbano, constantemente marcadas por algo em aspecto decadente, que, por sua vez,
promovem o resgate de histórias e memórias comuns e subjetivas ao leitor. Essa é a potência
da imagem poética de Quintais, que se abre ao leitor-observador em variáveis experiências
poéticas subjetivas.
Como destaca Bachelard [1957] (1993), a imagem poética funciona mais do que um
eco de um objeto perdido no passado real, ela é variacional e, por isso, “o objeto pode
sucessivamente mudar de sentido e de aspecto conforme a chama poética que o atinge, o
consome ou o poupa” (BACHELARD, 1993, p. 9). Em Quintais, por sua vez, como podemos
observar, os objetos que fazem parte da composição da imagem poética descrita em seus
poemas mudam de sentido e aspecto à medida que são consumidos pela chama poética. Isso
acontece, sobretudo, porque as imagens criadas são mais do que uma mera representação
objetiva da realidade, elas são um retrato visceral da impotência e da fragilidade do homem.
Elas retratam a natureza do fim, anunciando que todas as coisas estão submetidas a ele. Elas
retratam o tempo, destacando sua passagem através das marcas que ela deixa na superfície das
coisas. Elas retratam a violência, por meio das marcas que ela deixa sobre as coisas vividas
dia a dia. Essas imagens poéticas de Quintais, como vimos até então, não só têm o poder de
fixar a representação de uma cena da vida social, como também têm a potência de deter
poeticamente cenas e sensações. Mas, para além disso, elas se tornam uma possibilidade de
analisar microscopicamente a nossa própria condição no mundo e a nossa história. Isso revela
que a potência de uma imagem não está em ela ser uma forma de tentar representar e reter
algo que está em risco de perda, mas sim um mecanismo que anima, afeta e transforma o
leitor através dessa experiência poético-visual. A imagem artística, nesse sentido, é capaz de
pôr em suspensão o sentido de real, pois ela, afastando-se de seu caráter meramente
representativo e de associação a um objeto da realidade objetiva, é transformada
fenomenologicamente pela reação do espectador frente à imagem observada. Em função disso,
cabe à linguagem poética tentar destacar a dualidade existente entre o sujeito e objeto pelos
mecanismos linguístico-poéticos o que, para Bachelard, “põe a língua em estado de alerta,
saindo da linha ordinária da linguagem pragmática” (BACHELARD, 1984, p. 190). A
imagem poética, portando, leva a experiências subjetivas pela aproximação entre o visível e o
invisível, o mostrado e o sentido. As imagens poéticas de Quintais, então, são entendidas e
discutidas como mecanismo – e ao mesmo tempo processo – pelo qual o sujeito inquieto sai
da percepção objetiva de si para encontrar uma experiência visual transformadora que o levará
78
a um novo encontro de si mesmo. Esse aspecto da poesia de Quintais também é apontado por
Alves:
A poesia de Quintais é problemática e não nos dá nenhum alívio, incomoda,
provoca, é altamente resistente a qualquer ideia ou pretensão de salvação.
Como o próprio poeta diz em seu site, num poema aí publicado: “Vivemos
no medo. Ele é a nossa casa. / De nós exige um desvelo permanente. // Num
combate corpo a corpo / lutamos com as paredes da casa”. (ALVES, 2017, p.
11-12)
Em função dessa perspectiva, nos detemos à apresentação da forma de composição e
enquadramento escolhidos para as cenas de escrita na poética de Luís Quintais. Destacaremos
os elementos que fazem parte da composição imagética, demostrando como eles são
apresentados – aspecto visual, estado e fragmento – na busca por fixar a memória e a história
que escapam. Como pode ser visto no poema “Armas desenhadas por deuses”18, no qual
encontraremos cenas de escritas em que o ato de é encenado em que, o eu lírico descreve
ecfrasticamente a figura que observa para promover uma reflexão sobre o que vê e como se
percebe a imagem.
ARMAS DESENHADAS POR DEUSES
Armas desenhadas por deuses apodrecem num vale de sombra e cimento, entre duas estradas de infrequente circulação. No seu brilho, hoje baço, devolvido é o reflexo de um rosto, a ectoplásmica matéria de um corpo cego: Pátroclo agoniza sob essa película.
(QUINTAIS, 2017, p. 88)
Publicado originalmente em seu blog com o título “Reflexo”, o poema “Armas
desenhadas por deuses” promove uma reflexão sobre o ato de observação de uma imagem.
Em seus primeiros versos, nota-se que o eu poético encontra-se em posição de observador de
um espaço que pode ser compreendido inicialmente como um “vale”. De seu ponto de vista, o
18 Esse poema e os seguintes integram a parte “Ílion”, do livro A noite imóvel (2017), de Quintais.
79
enquadramento escolhido da cena é composto por armas e duas estradas. Somos direcionados
a nos aproximar do objeto observado, focalizando elementos que antes passariam
despercebidos a um olhar desatento. Ao longo da leitura, a imagem inicial das estradas que
formam um vale é transformada, e somos levados a compreender que o eu lírico observa o
escudo de Aquiles, emprestado a Pátroclo na grande narrativa épica de Homero, a Ilíada (séc.
VIII a.C.). São armas de guerra que, mesmo desenhadas, jazem em decomposição. “Armas
desenhadas por deuses / apodrecem num vale” (QUINTAIS, 2017, p. 88). O vale, feito de
sombras e cimentos, é a representação urbana de uma estrada que, diferentemente do que se
espera, é pouco utilizada, “entre duas estradas / de infrequente circulação” (QUINTAIS, 2017,
p. 88). Aqui se reencontra a memória literária da inutilidade dessas armas projetadas pelos
deuses nas grandes epopeias – que por vezes não foram capazes de salvar os guerreiros heróis,
como o escudo de Aquiles –, e a inutilidade de objetos abandonados à ação do tempo.
Ao longo do poema, no entanto, a imagem em observação se altera. Notamos que, na
verdade, o eu lírico encontra-se diante de uma outra imagem, uma imagem artística: ele
observa uma representação da morte de Pátroclo, personagem da grande épica grega Ilíada
(séc. VIII a.C.). As armas desenhadas por deuses que apodrecem são na verdade reflexos de
uma experiência visual da observação de uma pintura da artista norte-americana Jane Morris
Pack. Resgatadas da memória, a imagem remete aos objetos, às armaduras – feitas por deuses
nas grandes obras épicas que não foram eficazes na proteção da vida dos heróis. Pátroclo,
morto em batalha, foi vencido utilizando a armadura de Aquiles. No poema “Armas
desenhadas por deuses”, o eu lírico descreve ecfrasticamente uma cena observada que faz
alusão à cena da Ilíada (séc. VIII a.C.). Ele está diante da pintura Achilles Mourns Patroclus19
por Jane Morris Pack. No quadro de Pack e no poema de Quintais, por sua vez, temos a
imortalização em imagens de um objeto literário que existe apenas através das imagens
poéticas que o descrevem. O vale, as armas, o escudo são ainda marcas da dor, da violência e
da guerra.
Nascida nos Estados Unidos, Jane Morris Pack é uma artista plástica que há cerca de
25 anos é professora do Aegean Center for the Fine Arts, em Paros na Grécia. Suas obras
sofrem muita influência da arte renascentista e grega, as quais a artista considera como
19 A pintura Achilles Mourns Patroclus, por Jane Morris Pack, encontra-se associada ao poema “Armas
desenhadas por deuses” em sua primeira publicação, sob o título “Reflexo” no blog do poeta Luís Quintais,
disponível diretamente pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/04/10/reflexo/.
80
pináculos20 da expressão artística, já que essas estéticas proporcionaram um grande avanço na
representação visual da figura corpórea humana. Por isso, o Renascimento e a arte Grega
tornam-se lugares comuns em suas telas, seja pela técnica escolhida para criar as imagens seja
pelo conteúdo cultural representado a partir da composição imagética das telas. Em 2011,
Jane Morris Pack compôs uma série de ilustrações que remontam visualmente algumas cenas
descritas na obra épica Ilíada (séc. VIII a.C.), sendo, ao todo, uma sequência de 36 telas em
que a artista majoritariamente trabalha com a técnica de monótipos, ou seja, uma técnica de
fazer gravuras através de um mecanismo de impressão. Essa exposição nasce de experiências
subjetivas da artista21 que, ao observar cenas da Grécia contemporânea, resgatava
memorialisticamente elementos mitológicos e as narrativas presentes na história artístico-
literária do país. Com as narrativas da Ilíada (séc. VIII a.C.), Pack destaca que consegue
entrar em contato com histórias das paixões humanas, que revelam a honra, o amor, os
perigos e os conflitos da guerra, ao passo que também demonstram que a melhor preparação
para as batalhas (as melhores armas, as melhores armaduras e a melhor estratégia) não
conseguem reparar o amor e as vidas perdidas em combate. Segue a pintura:
Figura 6 - Achilles Mourns Patroclus22
Fonte: Jane Morris Pack (2011)
20 Pináculo é o nome dado pela arquitetura para o ponto mais alto de uma determinada construção, edifício ou
torre. O pináculo é constituído por um remate decorativo feito normalmente em alvenaria e colocado no cume
dessa estrutura. 21 Em seu site, disponível pelo link http://www.janepack.net/, Jane Morris Pack faz uma breve apresentação de
seu trabalho e de sua biografia, de onde foram retiradas as informações aqui apresentadas. Além disso, sua
página online apresenta uma seleção de obras plásticas da artista, onde se pode encontrar a exposição “Iliad”
(2011) junto com uma breve explicação técnica, artística e subjetiva desse trabalho nas palavras da própria
artista. 22 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:
http://www.janepack.net/illiad.
81
À vista disso, não é difícil analisar por que Quintais associa as telas da artista a seus
poemas, especialmente em seu blog pessoal onde alguns poemas que compõem a seção
“Ílion” de A noite imóvel (2017) foram primeiramente publicados. Nessas primeiras
publicações virtuais, Quintais promove um diálogo entre artes na busca por resgatar
subjetivamente as narrativas da Ilíada (séc. VIII a.C.) para uma reflexão sobre a natureza da
condição humana e a(s) forma(s) de violência a que estamos submetidos na vida
contemporânea. Em suas imagens poéticas, Quintais destaca e resgata fragmentos históricos
clássicos, associando-os a imagens poéticas da contemporaneidade, criando um diálogo entre
o passado, o presente – e por vezes o futuro. Ficção e realidade, então, unem-se em
linguagens artísticas e formas de expressão distintas que dão a ver ecfrasticamente a história
por trás delas como um mecanismo de analisar as coisas também no mundo. Mais adiante,
veremos outras imagens de Jane Morris Pack que serviram de inspiração para o trabalho
poético de Quintais. Por hora, no entanto, é válido destacar a Figura 7, Thetis Goes to
Hephaestus for New Armor, uma das pinturas da amostra “Iliad” de Pack que busca, assim
como no poema de Quintais, revelar ao leitor uma figura existente apenas nos versos da obra
épica e que não foi suficiente para salvar a vida de Aquiles durante a guerra:
Figura 7 - Thetis Goes to Hephaestus for New Armor23
Fonte: Jane Morris Pack (2011)
23 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:
http://www.janepack.net/illiad.
82
Trata-se do momento em que Tetis, mãe de Aquiles, solicita ao Deus Hefesto uma
nova armadura que substitua a de seu filho. Armadura esta que faz parte de um objeto de
guerra muito importante para a narrativa épica, mas que somente existe através da descrição
esfrástica escrita por Homero. Trata-se do escudo de Aquiles, descrito no livro XVIII da
Ilíada (séc. VIII a.C.), nos versos 478-608 e considerada a primeira écfrase da literatura.
Tanto o poema de Quintais, como a ilustração Thetis Goes to Hephaestus for New Armor
abordam imageticamente a importância desse elemento que faz parte da primeira écfrase da
literatura. Essa imagem, por mais que não tenha sido associada diretamente ao poema
“Reflexo” no blog nem à sua republicação como “Armas desenhadas por deuses” em A noite
imóvel (2017), pode ser resgatada através da écfrase proposta pelo olhar de Quintais mediado
pelas experiências subjetivas impressas aos quadros de Jane Morris Pack. Nas linhas desse
poema também percorremos outras linhas poético-visuais.
Outro poema que compõe a série em homenagem à Ilíada (séc. VIII a.C.) em A noite
imóvel (2017) é o poema “Algo permanece”. Nele, mais uma vez, observamos a presença de
um eu observador que promove uma descrição ecfrástica de um objeto que vê atentamente.
Por meio dessa imagem poética, entretanto, o poema abre-se para uma reflexão mais profunda
sobre a melancolia e a perda:
ALGO PERMANECE
Algo permanece sem recorte, um bloco de matéria densa, uma estrela morta de luz inescapável.
Príamo chora esse filho, continuará a chorá-lo. A noite imóvel gira no eixo de plasma e dor que continuamos a agitar.
(QUINTAIS, 2017, p. 89)
O poema é mais um em referência à Ilíada (séc. VIII a.C.), fazendo parte da a quarta
seção, “Ílion”, das sete que compõem o livro A noite imóvel (2017). Neste momento, o poeta
faz uma seleção de oito poemas que fazem referência direta a passagens da Ilíada (séc. VIII
a.C.). Um ponto interessante sobre essa parte do livro é que as imagens poéticas apresentadas
se revelam, na verdade, como versões de cenas do texto clássico através da visão do eu
83
poético. Isso é anunciado ao leitor já pela epígrafe que abre a leitura: “Into the terrifying anti-
rowld of the wonuded” (tradução livre: no terrível antimundo dos feridos), um verso retirado
do livro Memorial: a version of Homer’s Iliad (2012), da poeta contemporânea britânica
Alice Oswald. Nesse livro, a poeta constrói uma nova versão da história original na qual é
possível experimentar a leitura através tanto da experiência verbal (pela leitura das palavras)
como pela experiência sonora (através da sonoridade e musicalidade que ressoam pela leitura
em voz alta). Outro ponto interessante sobre a obra escolhida para anunciar a seção é que ela
funciona como uma espécie de lamento.
“Memorial” é uma palavra da língua inglesa que nomeia uma ação ou um objeto cuja
função é fazer recordar aqueles que partiram. Normalmente, um memorial pode ser um objeto
artístico-urbanístico, como o Memorial dos Judeus mortos na Europa – em alemão Denkmal
für die ermordeten Juden Europas –, uma construção feita em Berlim, na Alemanha, em
homenagem à morte de todos os judeus durante o terrível período do holocausto na Segunda
Grande Guerra Mundial. Mas, além disso, um memorial pode ter também uma performance
oral em homenagem àqueles que morreram, seja por meio de uma reunião, seja por meio de
um rito religioso. Independentemente de seu suporte, todo memorial é também uma forma de
lamento, ou seja, uma forma de recordar e chorar (ou como declara a também palavra inglesa
grief – que significa vivenciar a mágoa, a tristeza e a melancolia decorrentes da morte de
alguém). Um memorial é um resquício do objeto de afeto perdido através do qual somos
interpelados frequentemente pela ausência. “Ílion”, em A noite imóvel (2017), também é um
memorial. Nos poemas escolhidos, Quintais destaca cenas que rememoram os feridos e os
mortos na guerra de Troia. A voz lírica em seus versos lamenta a dor e a perda.
É o que se anuncia em “Algo permanece”. O título do poema revela uma relação
paradoxal existente no sentimento de perda. O luto, por exemplo, corresponde a uma
experiência subjetiva da perda pela qual o indivíduo tende a se apegar àquilo que o faz
recordar do objeto de afeto perdido. Sendo assim, ele é levado a [re]vivenciar a perda através
da experiência da dor pelo objeto de afeto ausente, mas também da constante recordação de
sua presença associada a um outro objeto. É preencher a sua falta pelas marcas que sublimam
a sua presença. Sendo assim, quando em luto (grief), algo permanece apesar da perda.
Permanecem as memórias, que são utilizadas como forma de recuperar as vivências passadas.
Permanece a dor, que constantemente volta a alimentar a ferida da perda. Permanecem os
memorials que se tornam espaços para a catarse da perda. Por isso, o poema é iniciado com a
apresentação de um objeto sem nomeação, cuja função estará diretamente associada ao luto da
84
perda. A voz lírica, portanto, encontra-se diante de uma imagem densa que permanece apesar
de algo já ter alcançado seu fim.
Do objeto de afeto perdido, o eu lírico descreve uma imagem poética que resta, como
uma ruína, evidenciando o sentimento de fim. Trata-se, com isso, de uma matéria densa, de
uma estrela morta, de uma luz inescapável, os quais são elementos que resistem, que
permanecem. A imagem, nesse sentido, como discutido por Didi-Huberman, é capaz de, pela
ausência, guiar o observador a uma experiência visual subjetiva e transformadora. Do que se
vê, “algo permanece / sem recorte,” (QUINTAIS, 2017, p. 89) e o eu lírico, por isso, é guiado
a perceber além de “um bloco de matéria densa” (QUINTAIS, 2017, p. 89): a imagem olhada,
ao olhá-lo de volta, revela a ele “uma estrela morta / de luz inescapável” (QUINTAIS, 2017,
p. 89). Algo sobrevive, mas o quê? Estaria ele diante de um memorial?
Na estrofe seguinte, por sua vez, o eu poético revela o tema de seu lamento. O objeto
de afeto perdido é Heitor, filho de Príamo, rei de Troia, morto em combate por Aquiles.
Heitor, como é descrito na Ilíada (séc. VIII a.C.), é morto em combate por Aquiles e seu
corpo é amarrado à carruagem e arrastado pelas ruas de Troia até o túmulo de Pátroclo. Esse,
portanto, torna-se o último ato infame decorrente da ira de Aquiles narrada pela voz de
Homero. Nos versos que compõem o canto XXII, a narrativa poética dá espaço, então, para
uma reflexão sobre a condição humana dos heróis, dos quais a morte evoca a comoção e o
pesar daqueles que sobrevivem apesar da perda do ser. Príamo, pai de Heitor e rei de Troia, é
descrito em desespero, ao passo que apela pelo corpo morto e difamado de seu filho; os
Troianos aparecem em dor pela perda de um de seus maiores e mais valentes guerreiros; de
Hécuba, mãe de Heitor, são destacadas as lamentações pela morte de seu filho; e Andrómaea,
esposa de Heitor, é descrita em desconsolo ao saber da morte de seu marido. O eu poético,
imerso nesse contexto de dor, descreve-se frente a uma imagem onde se pode ver
representado Príamo que chora e implora pela morte de seu filho: “Príamo chora esse filho, /
continuará a chorá-lo” (QUINTAIS, 2017, p. 89).
De modo semelhante ao poema “Armas desenhadas por Deuses”, analisado
anteriormente, há uma possível relação entre a imagem poética em observação pelo eu poético
do poema e as grafias da exposição de 2011 da artista plástica Jane Morris Pack. Dessa vez,
no entanto, o poema faz uma referência indireta à obra, esta sendo apenas citada através de
elementos que fazem parte da descrição ecfrástica do objeto em observação pelo eu poético.
O bloco de matéria densa que permanece é o próprio quadro Priam Begs for the Body of
Hector (Figura 8), criado pela artista, cuja técnica de produção de imagens por monótipos
85
proporciona a impressão uma escala de preto branco, dotada de dramaticidade que dá ênfase
ao luto e à dor de um pai, Príamo, que implora pelo corpo de seu filho difamado depois da
morte. Interessante pontuar, ainda, que essa é a última ilustração do ensaio Iliad da artista, que
termina exatamente com a recordação do último ato infame da ira de Aquiles sobre os
troianos. Assim, o ensaio artístico de Jane Morris Pack também acaba por proporcionar um
espaço artístico em que se pode não só reencontrar a narrativa da Ilíada (séc. VIII a.C.), mas
também resgatar e experimentar as sensações de luto e dor talhadas pela linguagem poética de
Homero e transfiguradas em traços, sombras e grafias por Jane Morris Pack.
Figura 8 - Priam Begs for the Body of Hector24
Fonte: Jane Morris Pack (2011)
Diante dessa imagem de Príamo que chora a morte de seu filho, o que sobrevive?
Sobrevive o fantasma desse corpo morto. Sobrevive a história desse herói. Sobrevive a dor de
um pai ao perder seu filho para a guerra. Sobrevive a memória, grafada em imagem.
Sobrevive a narrativa épica evocada e transformada em novas experiências artístico-visuais. O
quadro e o poema, nesse sentido, operam como um memorial, pelo qual há a possibilidade
não só de lamentar – vivenciando as sensações e as experiências do grief – como também de
24 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:
http://www.janepack.net/illiad.
86
preservar a imagem e a importância histórica dessa imagem poética. O poema e o quadro são
mecanismos gráficos capazes de deter, registrar, marcar, escrever, fotografar algo que
escapa. E, assim, fazer que a memória sobreviva em meio à noite que, apesar de todo o caos,
gira imóvel em seu eixo continuamente sem sessar. “A noite imóvel gira / no eixo de plasma e
dor / que continuamos a agitar” (QUINTAIS, 2017, p. 89).
Em outros dois poemas dessa seção, que também foram publicados originalmente em
seu blog pessoal, a voz poética de Quintais resgata um outro momento da Ilíada (séc. VIII
a.C.). Nessas imagens poéticas resgatadas pelos versos, encontramos ecos das vozes e
representações de acontecimentos importantes da épica clássica, como o momento em que o
cavalo Xanto, o cavalo de Aquiles, recebe durante o caminho de volta ao campo de batalha o
dom da fala pela deusa Juno e responde a uma pergunta retórica feita por Aquiles, dando-lhe
uma metáfora como um presságio de sua morte:
UM CAVALO FALA
Cf. Ilíada, XIX, v. 404-18
Um cavalo fala,
profetiza a morte
de Aquiles.
Depois o dom da fala
escapa-lhe, e o mundo
arrasta-se,
de ira e desespero
contaminado.
Ao instante
entre a fala
do animal
e a mudez
irremovível,
chamamos-lhe
um dia eternidade.
(QUINTAIS, 2017, p. 90)
APÓS A FALA DO CAVALO XANTO
Cf. Ilíada, XIX, v. 400-20
Após a fala do cavalo Xanto,
ficámos face ao emudecido recorte
da densa natureza, horizonte
87
infigurável, por todos os sítios
sitiando-nos. Disso não haverá
remissão e o silêncio
dos actos
de morte repetida
deixará em nós
a ferida
da palavra
visitada e visitada
e visitada
outra vez.
(QUINTAIS, 2017, p. 91)
Um ponto a se considerar, antes de tudo, é a observação do título dado ao Primeiro dos
dois poemas. “Um cavalo fala” foi publicado previamente em seu blog, em junho de 2013,
sob o título de “Um dia eternidade”, frase que compõe o último verso desse poema tanto na
versão em blog como na versão do livro A noite imóvel (2017) aqui reproduzida. Essa relação
entre as partes do texto – a que podemos chamar de texto circuito, uma vez que consiste numa
ligação semântica entre o início e o fim do texto através da repetição de uma estrutura
sintático – semântica – confere à obra uma noção circular, a qual corrobora a discussão que
será desenvolvida pela reflexão sobre o princípio de fim que rege todas as coisas. Em sua
versão impressa, publicada em 2017 no livro A noite imóvel (2017), o poeta, entretanto altera
o título de “Um dia eternidade” para “Um cavalo fala”. Essa alteração do título, apesar de
promover a quebra da ligação semântica entre o título e o poema (a que chamamos de texto
circuito), foi fundamental para que haja uma relação de continuidade que liga este poema ao
seguinte pela ordem do livro. Isso ocorre porque ambos resgatam o momento místico da
profecia da morte de Aquiles pelo cavalo Xanto, descrito na Ilíada (séc. VIII a.C.).
Outro ponto importante para a análise do poema “Um cavalo fala” se refere à
utilização do recurso da epígrafe para introduzir ao leitor o contexto temático do poema. “Um
cavalo fala” é iniciado com a designação do canto e dos versos aos quais a voz lírica fará
referência ao longo do poema. Trata-se do canto XIX e dos versos 404 – 18. Estes que, por
sua vez, correspondem ao momento em que Homero descreve que o cavalo Xanto responde
misteriosamente a um pedido retórico de Aquiles para que ele não o deixe morrer durante as
batalhas que ainda estão por vir. O contexto desse pedido, expresso pela epígrafe do poema,
demonstra a necessidade de retornar à imagem poética da tradição literária na Ilíada (séc. VIII
a.C.), a fim de acompanhar a ordem lógica dos versos e compreender plenamente a mensagem
poética proposta por Quintais. Como comentamos anteriormente, a parte “Ílion” do livro A
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noite imóvel (2017) atua como uma espécie de releitura da obra original, a narrativa épica de
Homero, da qual o poeta resgata imagens ontológicas deixadas pela violência dos combates
na guerra de Troia. No início deste tópico, observamos o poema “Armas desenhadas por
Deuses”, no qual Quintais recorda a figura do Escudo de Aquiles, arma incapaz de salvá-lo da
própria morte.
Em “Um cavalo fala”, por sua vez, a voz lírica está imersa no momento da partida de
Aquiles do campo de batalha, momento em que o herói épico se reuniu com o exército dos
gregos após receber da ninfa do mar a armadura que Pátroclo utilizava em seu momento de
morte, incluindo seu escudo. Por isso, ainda em lamentação pela morte de Pátroclo, Aquiles
se despede dos soldados gregos e parte em direção à guerra, fazendo um pedido especial a seu
cavalo, Xanto, que este não lhe permita padecer como seu amigo. Xanto, entretanto, por ser
um cavalo e não ter o dom da fala, recebe de Juno esse poder para que ele possa dar a Aquiles
o presságio de sua morte. Toda essa explicação sobre a narrativa grega é necessária para
compreender a imagem poética que será revelada pela voz lírica nos primeiros versos do
poema: “Um cavalo fala, / profetiza a morte / de Aquiles” (QUINTAIS, 2017, p. 90). Segue,
também, a sua profecia:
“Salvo esta vez serás, fogoso Aquiles;
Mas perto a Parca tens, sem nossa culpa,
Sim de um nume e do fado. Se a Pátroclo
Os Teucros despojaram, por inércia
Não foi dos teus corcéis; foi na vanguarda
Prostrado pelo filho de Latona,
Para Heitor gloriar-se. A ligeireza
De Zéfiro no curso igualaremos,
Que se diz mais veloz; contudo é força
Por um deus e um varão domado seres.”
(HOMERO, 2008 p.345)
Esse é um momento muito importante da narrativa da Ilíada (séc. VIII a.C.). A
resposta mística de Xanto, um cavalo, poderia ter feito que Aquiles escolhesse fugir da guerra
já que fora avisado que seria morto após conseguir derrotar Heitor. Porém, bravamente, o
herói decide que irá prosseguir com a sua viagem em busca de uma vitória – impossível – no
final, mesmo sabendo que o destino já deixara profetizado que nesse mesmo campo de batalha
Aquiles encontraria a sua própria morte. Esse momento, para além disso, dá ênfase no caráter
humano do herói Aquiles, aproximando-o, como era costumeiro na arte Clássica, de
89
características comuns à população greco-romana. Em busca de promover catarse – uma
forma artística de levar o público de uma determinada obra a vivenciar, corporalmente (como
pelo riso e pelo choro) e emocionalmente (como pela felicidade, angústia e melancolia) os
fatos que acontecem com os personagens – os autores procuravam enfatizar que seus heróis
também possuíam fraquezas. Essa experiência empática (colocar-se no lugar do herói e sentir
a dor que ele sente porque ela se aproxima da sua) faz que o espectador chegue a um
momento de expurgo e limpeza de alma. Isso porque sua vida em terra, como todo mortal,
está fadada ao fim e à morte; a sua existência e sobrevivência são frágeis frente aos desafios
de enfrentar, em guerra, habilidosos guerreiros troianos. Nesse contexto, apesar de sua
bravura ao enfrentá-los, o próprio Aquiles – que constantemente vivencia o fim de seus
companheiros de batalha – é levado a encontrar o seu próprio fim. A sua história, apesar de
tudo, terá o mesmo destino: a morte na luta por uma ideologia que defende. A profecia de
Xanto, no mais, é acompanhada da resposta de Aquiles, que se volta ao cavalo declarando que
a morte simboliza a força e que continuará seu destino, apesar de encaminhar-se para a morte,
porque precisa saciar sua sede por combates e vingança. Segue:
A morte, Xanto, Me vaticinas? Isso não te quadra. Força é morrer, eu sei, de Ftia longe E de meus pais queridos; mas aos Troas Hei-de saciar a sede de combates.
(HOMERO, 2008, p. 345)
Voltemos, agora ao poema de Quintais. Através da voz poética em “Um cavalo fala”,
vemos uma tentativa de fixar em imagem poética um momento da narrativa de Aquiles que o
define paradoxalmente como herói e mortal. Pelas palavras do poema, a voz lírica retém algo
que poderia ser facilmente perdido na história, eternizando a sua importância. Por
conseguinte, nas duas estrofes seguintes, os versos detêm-se na composição do momento após
a fala do cavalo, que rapidamente após dar a Aquiles o aviso de sua morte cala-se eternamente
e volta à sua missão de acompanhar o herói durante os caminhos do mundo já contaminado
pela dor da perda e pela violência da guerra: “Depois o dom da fala / escapa-lhe, e o mundo /
arrasta-se, / de ira e desespero contaminado” (QUINTAIS, 2017, p. 90). Nessa linha de
pensamento, o poema busca eternizar em imagem poética a natureza humana de Aquiles,
dando ênfase no fato de que, até mesmo os grandes heróis, tornam-se frágeis às armas letais
90
em batalha: “ao instante / entre a fala / do animal / e a mudez / irremovível, / chamámos-lhe /
um dia eternidade” (QUINTAIS, 2017, p. 90).
Paradoxalmente, a morte de Aquiles também o eterniza na história. Por ser um grande
herói épico, a narrativa épica torna-se um mecanismo literário de testemunho de sua memória,
uma vez que seus versos não só descrevem os acontecimentos históricos e conhecimentos
mitológicos, geográficos e filosóficos, como também propagam e perpetuam essas
informações no tempo e na memória. Seus feitos, suas vitórias e, por fim, sua derrota, em
decorrência da importância conferida à história pela Ilíada (séc. VIII a.C.), ainda hoje são
fixados em arte poética e artes plásticas, que pela intertextualidade tomam sua história como
lugar de retorno. Sendo assim, o que se configura, através dessas imagens revisitadas da
narrativa épica, são lugares artísticos onde o público pode experimentar de novo e mais
atentamente as sensações e as vivências da história, da arte e da humanidade.
Mais um desses diálogos interartes ocorre com outros quadros de Jane Pack, como
Death of Bold Dancer, (Figura 9) que acompanha o poema “Um cavalo fala” no blog de
Quintais. Diferentemente dos outros quadros do ensaio de Pack escolhidos pelo poeta – e
vistos até aqui – para acompanhar a publicação de seus poemas, não há uma relação direta
entre a imagem poética descrita pela voz lírica e a imagem grafada pela artista, uma vez que
as imagens retêm momentos diferentes da narrativa. Esse fato, ainda, torna-se comum à
estética de Quintais, uma vez que as vozes que ecoam em seus poemas aparecem, por vezes,
ocultadas nos limites da linguagem poética. Em consequência disso, enquanto o poema
descreve o momento em que o cavalo Xanto avisa Aquiles de sua morte, o quadro dramatiza e
eterniza a morte de Pegasus por Sarpédon, cantada no canto XV da Ilíada (séc. VIII a.C.).
Pelos traços fortes, acompanhados do sombreamento intenso e da escala de cores opaca, o
quadro de Pack destaca a violência presente nesse momento da narrativa. Sarpédon era um
dos bravos guerreiros troianos, que decide enfrentar Pátroclo durante uma das batalhas da
guerra de Troia, luta essa que antecipa a morte de Pátroclo por Heitor. Sarpédon, ao sacar sua
lança em direção ao carro de Pátroclo para feri-lo, é impedido por Zeus, que faz o seu golpe
tomar outra direção e acertar o cavalo de seu inimigo, Pegasus. Essa é a imagem poética
descrita pelas palavras de Homero que foi transfigurada em imagem gráfica pelas mãos de
Pack:
91
Figura 9 - Death of Bold Dancer25
Fonte: Jane Morris Pack (2011)
O poema seguinte a “Um cavalo fala” dá continuidade temática e cronológica à fala do
cavalo e à reação de Aquiles. Vemos, também, a presença de uma epígrafe que, como no
poema anterior, resgata os versos de Homero sobre os quais o eu lírico procura criar uma nova
imagem poética, tratam-se dos versos 400-20 do canto XIX da Ilíada (séc. VIII a.C.). A partir
deles, o sujeito poético de Quintais descreve uma cartografia das reações humanas ao
momento em que Aquiles, mesmo avisado de seu triste fim se continuasse a batalhar, decide
bravamente enfrentar seu destino: “Após a fala do cavalo Xanto, / ficámos face ao emudecido
recorte / da densa natureza, horizonte / infigurável, por todos os sítios / sitiando-nos”
(QUINTAIS, 2017, p. 91). Após a fala do Cavalo Xanto, ficamos diante do anúncio
emudecido da fragilidade do homem, herói e guerreiro. Ficamos diante da insistente
recordação de que tudo está sujeito ao fim. E o que resta após o fim? Resta a história. Resta a
memória. Resta a arte que constantemente se dispõe a revisitar esse passado e reverberar a sua
importância.
Também publicado em seu blog, o poema “Após a fala do cavalo Xanto” vem
associado ao quadro Achilles Rejoins the Fight, também do ensaio da artista plástica Jane
Morris Pack sobre a Ilíada (séc. VIII a.C.). No quadro, Pack transforma a imagem poética
descrita por Homero na Ilíada (séc. VIII a.C.) em experiência visual, porque através do
25 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:
http://www.janepack.net/illiad.
92
quadro, o observador é colocado diante do momento em que Aquiles, o grande herói da
narrativa da guerra de Troia, regressa à luta:
Figura 10 - Achilles Rejoins the Fight26
Fonte: Jane Morris Pack (2011)
Do mesmo modo faz a voz poética de Quintais, uma vez que o poema nos coloca,
também, diante de uma imagem que resgata essas passagens e fragmentos da história da
Ilíada (séc. VIII a.C.): “Disso não haverá / remissão e o silêncio / dos actos / de morte
repetida” (QUINTAIS, 2017, p. 91). Quintais, por sua vez, ressignifica essa cena cantada
primeiramente por Homero, com a linguagem poética, e revisitada por Jane Morris Pack, a
partir dos traços fortes da técnica gráfica dos monótipos. Em ambas as expressões artísticas,
seja a ilustração de Pack, seja o poema de Quintais, observamos como a grafia de imagens
também é uma forma de reter e fixar um momento da história. A linguagem poética do poeta
Quintais e a técnica de grafia da artista plástica Jane Morris Pack atuam como uma espécie de
fotograma lírico que captura subjetivamente – através do olhar do artista – um fragmento da
narrativa, transformando-o em imagem poética. A partir dessas imagens, somos capazes de
revisitar o passado literário e refletir sobre as formas de violência, sobre a condição humana e
obre a inevitabilidade do fim. A partir dessas imagens, somos capazes de revisitar essas
imagens de dor da literatura clássica e vivenciar, como nos momentos revisitados pelos
26 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:
http://www.janepack.net/illiad.
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fotogramas líricos, os atos de violência, a sensação de perda e a dor da partida: “deixará em
nós / a ferida / da palavra / visitada e visitada / e visitada / outra vez” (QUINTAIS, 2017, p.
91).
94
3. FOTOGRAMA: A FOTOGRAFIA COMO OBJETO POÉTICO
Só tu conseguias ver o movimento que vai do ser à
aparência. Só tu conseguias ver o movimento que faz de um
Deus uma frágil criatura disposta a morrer. Afinal, cada um
de nós se dispôs à morte. Cada um de nós é tão frágil como
uma criatura que se expõe. Vejo criaturas expostas nos
meus passeios pela cidade. Elas estão no intervalo que vai
do ser à aparência, aquilo a que alguns chamam de
sacrifício. Quando caminho pela geografia que o teu olhar
preencheu, reparo na gravidade dos que persistem em
habitar um espaço que tem por referente a morte. "Todas as
imagens têm por referente a morte", escreveste. Eu caminho
e reescrevo o adágio. Olho. Olho outra vez. Ver. Ali. Luís Quintais
3.1 Observar, enquadrar, capturar: a fotografia também como objeto poético
Nos poemas estudados de Quintais neste trabalho, encontramos um produtivo e crescente
diálogo entre sua a arte poética e a arte fotográfica. Vimos como o poeta escreve e descreve
imagens fotografadas pela linguagem poética, como uma tentativa de transpor o ver para as
cenas do poema. Vimos, também, que em decorrência de sua poesia propor uma teoria do ver
através da linguagem poética, Quintais começou a se aproximar mais da arte fotográfica e
passou, também, a fotografar. Nessas fotografias de Quintais, como analisaremos neste
capítulo, o poeta imprime traços de duas obsessões líricas, como cenas comuns do espaço
urbano, objetos ou construções em estado de decadência, os limites representativos da
linguagem bem como as experiências de ausência e melancolia. Perceberemos, portanto, uma
crescente aproximação entre as imagens foto-grafadas pela linguagem poética de Quintais e
as imagens fotografadas pelas lentes de sua câmera. Cabe, por conseguinte, explorar mais
atentamente essas contínuas produções fotográficas, em busca de evidenciar o lirismo
presente nessas obras poético-fotográficas num mundo marcado pelas imagens técnicas.
De fato, sabe-se que a fotografia, desde a sua primeira produção, a partir da técnica
físico-química do físico francês Joseph Nicéphore Niépce (1826), que conseguiu fixar uma
imagem ainda muito rudimentar da vista de sua janela (a fotografia View from the Window at
95
Le Gras)27, e, posteriormente, com a técnica fotográfica francês Louis Jacques Mandé
Daguerre (1837), o daguerreótipo28, que conseguia capturar uma imagem através da
exposição à luz solar,29 provoca discussões acerca do seu lugar no contexto artístico. As
críticas à produção fotográfica baseavam-se, principalmente, numa reação ao processo de
captura versus criação da imagem, já que, diferentemente da pintura e do desenho, por
exemplo, a técnica para a fixar imagens com câmeras fotográficas depende, principalmente,
do conhecimento do sujeito para operar a máquina fotográfica. Afinal, manusear o pincel ou o
lápis pelo papel como uma extensão do corpo, da subjetividade, do olhar e da criatividade do
autor é ainda uma forma romântica de compreender o ato de criação artística. E o programa
que possibilita a captura de uma imagem pela câmera fotográfica é limitado a uma
representação ainda mimética e técnica do real. Ao fotógrafo, devido às evoluções
tecnológicas da caixa preta, cabe a simples função de apertar o botão de captura, e a máquina
reproduz tecnologicamente a cena para a qual a lente estava apontada. O ato de fotografar, em
função disso, popularizou-se a ponto de fotografias circularem incessantemente no cotidiano
contemporâneo. Nesse sentido, é importante refletir: haveria, ainda, lirismo na fotografia?
Como aponta Schaeffer:
27 View from the Window at Le Gras (1826) foi a primeira imagem fotografada através de um mecanismo físico-
químico, ligado ao processo de litogravura. Esse estilo de fixação de imagens ocorre mediante a criação de
marcas feitas por lápis gorduroso sobre uma matriz de pedra calcária que imprimem uma imagem no papel. A
base técnica desse processo está na repulsão que ocorre no contrato o entre água e o material gorduroso. Neste
processo, diferentemente de outras formas de gravura, como na xilogravura, a fixação imagética dá-se de modo
plano, por isso, o desenho é formado através do acúmulo de gordura na superfície do papel. As imagens
proporcionadas, no entanto, detêm de poucos detalhes e são, por vezes, limitadas quanto à percepção exata da
realidade objetiva à qual fazem referência. Com base nesse processo, Niépce iniciou inúmeros testes e
experiências com luz, placas de metal e reações físico-químicas, com os quais conseguiu promover a primeira
captura de uma fotografia, a obra View from the Window at Le Gras, a qual, ainda que produzida mediante um
processo rudimentar, representa a imagem observada pela janela do quarto do inventor, na cidade de Saint-Loup-
de-Varennes, na França. 28 Em 1837, o pintor francês, Louis Jacques Mandé Daguerre, inventou o daguerreótipo, que foi o primeiro
equipamento fotográfico comercializado, composto por uma placa de cobre, que é revestida com prata e, em
seguida, polida e sensibilizada por vapores de iodo. Depois de exposta na câmera escura, a imagem é revelada
por vapores de mercúrio e fixada por uma solução salina. Nesse processo, o pinto foi capaz de fixar uma imagem
única e positiva. 29
Tomamos como ponto de partida para essa análise não só a primeira produção fotográfica por Niépce, em
1826, mas em especial as fotografias retiradas a partir do desenvolvimento do daguerreótipo, em 1839 por
Daguerre. Essa máquina fotográfica ainda rudimentar proporcionou uma maior e menos complexa técnica de
produção de imagens fotográficas mais realistas, as quais traziam maior familiaridade e fidedignidade com o
real, em oposição às imagens capturadas por Niépce, as quais não eram compostas com tamanha riqueza de
detalhes em virtude de o processo de obtenção da imagem e as técnicas de captura ainda eram muito
rudimentares. Com isso, o processo fotográfico ganha um novo status dentro da sociedade da época, tendo em
vista que, a partir desse momento, haveria uma crescente popularização dessa nova técnica de produzir imagens,
que seria considerada como uma industrialização massiva das artes plásticas.
96
Do ponto de vista da arte dos museus, a fotografia é, sem contestação, uma arte
impura no sentido em que muito frequentemente sua prática é inscrita em
finalidades pragmáticas: reportagem, fotografia de moda ou publicidade,
documentação etc. Donde o questionamento da argumentação que define este
número de La recherche photographique: “Talvez a fotografia quase não chegue a
ultrapassar os domínios da ação, do trabalho, da comunicação, ou da família.”
(SCHAEFFER, 1996, s/p.)30
As palavras de Schaeffer revelam essa preocupação histórica comum sobre a
fotografia: a sua finalidade artística. O programa responsável pela transformação da
luminosidade em imagem através das lentes da câmera é capaz, apenas, de reproduzir
mimeticamente o fragmento do real alcançado por elas. Essa proximidade com o real, por sua
vez, associou o ato fotográfico a práticas documentais, sendo, por isso, as fotografias muitas
vezes utilizadas como uma forma de testemunhar e registrar histórias. Associado a isso, o
barateamento e a simplificação das câmeras fotográficas intensificaram o processo de
naturalização das fotografias em nosso cotidiano. Dos retratos de família no final do século
XIX à popularização das selfies no século XXI, o ato de fotografar tornou-se cada vez mais
pragmático, e as fotografias digitais têm realçado essa problemática.
Nas redes sociais, popularizadas pela internet, frequentemente entramos em contato
com imagens efêmeras. Nelas, os usuários fixam momentos, sensações e histórias passageiras
que acompanham o ritmo acelerado do fluxo contínuo de informações digitais. Nessas
fotografias, criam-se, também, narrativas que idealizam um real inalcançável exposto
incessantemente aos seguidores dos perfis do Instagram. Uma convivência que, por sua vez,
tem um efeito negativo: ela potencializa um processo de esvaziamento da imagem fotográfica
devido à intensa massificação da fotografia. Uma fotografia da mesa bem-posta para o café da
manhã. Outra focalizando a xícara acompanhada de uma mensagem de “bom-dia”. E ainda
mais uma outra revelando uma felicidade inventada ao acordar numa manhã de segunda-feira.
É a arte fotográfica utilizada como ferramenta de reportar e documentar corriqueiramente a
vida no século XXI, e expô-la ao público observador incessantemente. Esse mesmo
pragmatismo, não obstante, não apaga completamente a capacidade de as fotografias, ainda,
se revelarem poéticas.
Como explica o fotógrafo Ângelo Dimitre Gomes Guedes:
30
Este texto foi originalmente publicado no periódico francês La recherche photographique nº 18, de maio de
1995 e traduzido por Flávia Cesarino Costa, disponível em: http://www.uel.br/pos/fotografia/wp-
content/uploads/downs-uteis-sobre-a-arte-fotografica.pdf acesso em 25/01/2020
97
A fotografia, de fato, consagra-se também como uma maneira de expressar-
se artisticamente, e a arte passa a expressar-se fotograficamente. A constante
troca de valores entre a fotografia e a arte impulsiona novas possibilidades
para o futuro de nossa sociedade e suas manifestações culturais. Seja um
traço de uma realidade (indício de existência do referente) ou uma realidade
em si mesma, a percepção desse novo cenário artístico ocorre de maneira
distinta em cada espectador. O âmbito artístico pós-arte moderna (e isso
inclui a fotografia) proporciona uma intensa trama de realidade e ilusão.
(GUEDES, 2011, p. 208)
Guedes nos mostra que à arte fotográfica, além da documentação, cabe uma função
subjetiva, uma vez que a fotografia se revela como uma forma de expressão artística já que a
imagem fotografada possibilita também a construção de uma forma subjetiva de percepção da
realidade impressa na imagem. Em decorrência disso, o fato de arte fotográfica ser capaz de
realçar traços de uma realidade objetiva, que são notados, principalmente, pelos indícios
imagéticos que sugerem a existência de um referente, afeta o espectador. Isso, ainda, sugere
que existe uma reação empírica e experimentalista entre a fotografia e cada um de seus
espectadores que receberá e interpretará de forma distinta a mensagem transmitida pela
imagem e seus componentes semióticos. No cenário artístico pós-Arte Moderna, portanto, a
imagem fotografada impulsiona maneiras de percepção dos objetos que compõem a cena
fotografada, seja da mesa de café da manhã nas fotos do Instragram seja nas fotografias
artísticas do fotógrafos amadores, como o nosso poeta-fotógrafo, Luís Quintais. Através de
uma fotografia somos levados a ativar a memória de algo passado, e uma imagem fotográfica
tem a potência de tocar sensivelmente quem a vê.
Nas fotografias de Quintais, por exemplo, somos guiados a olhar novamente e mais
atentamente os restos produzidos nos espaços humanos. O poeta-fotógrafo busca cenas em
que possa pôr em foco e análise objetos criados pelo homem, em estado ruinoso e de
abandono. E através da composição, da iluminação e do enquadramento, a sua fotografia
possibilita uma outra forma de interpretar esses objetos em cena, sobretudo pelo viés da
melancolia e da ausência. Desse modo, da arquitetura em ruínas a objetos comuns do dia a dia
descartados, observamos Quintais fotografar elementos do cotidiano como um suporte de
emoção frente ao que foi, ao que existiu, ao que teve uso por mãos humanas. Frente às suas
fotografias, o espectador tem uma certa experiência lutuosa. É o que se pode perceber na
fotografia About Buildings:
98
Figura 11 - About Buildings31
Fonte: Luís Quintais (2008)
Essa fotografia faz parte de um ensaio fotográfico com o mesmo nome. Nesse ensaio,
Quintais procurou, numa casa abandonada e em ruína, enquadramentos, cenas e composições
que pudessem revelar uma ideia de fim. Na Figura 11, estamos diante de um fragmento de
uma escada de interiores antiga; ao fundo percebemos marcas do desgaste e do tempo nas
paredes brancas escurecidas e manchadas; e à frente vemos a estrutura de uma janela
quebrada, sem o vidro, que foi deslocada e deixada de qualquer forma sobre essa escada, ou
seja, distante da parede onde deveria estar, sem função: ela não mais se abre para uma outra
paisagem, para algum horizonte possível. Por meio dela, vemos o vazio. A desfocagem, a
edição de cores e a luminosidade esmaecida projetadas sobre a fotografia, sobretudo, realçam
essa sensação de esvaziamento, uma vez que a cena é vista de modo turvo, como se fosse
preciso resgatar de um lugar longínquo na memória a figuração do que se observa. Acessar a
fotografia, como olhar por essa janela sobreposta (quase como uma peça de arte
intencionalmente colocada e posicionada de acordo com uma perspectiva subjetiva e artística)
na escada é encontrar-se com a ausência.
É uma imagem que resgata o que esses objetos um dia já foram. É uma imagem que ao
mesmo tempo demostra que todas as coisas estão subordinadas ao fim. A escada na qual um
dia passavam pessoas, quem sabe até uma família, já não é mais utilizada. A janela por onde
31 About buildings é uma das fotografias do ensaio homônimo de Quintais disponível na plataforma Flickr.
Nessas fotografias, vemos a reprodução, por diversos ângulos, fragmentos da arquitetura em decomposição e
ruínas.
99
se observava a vida lá fora agora se encontra deixada inerte e inútil em qualquer espaço
interno, sem serventia. Ou estaria ela, como os objetos que compõem a cena fotografada,
intencionalmente projeta sobre a escada como parte [des]integrante desse espaço interno que
se abre de dentro para fora em reflexões subjetivas? Seria, talvez, esse espaço fragmentado
uma construção? Estaria o poeta-fotógrafo, na verdade, presente em um lugar que ainda está a
ser criado? A forma física dos objetos, como a janela sem vidros, também poderia revelar uma
geometria anterior das coisas, como se a imagem fotografada e o espaço em ruínas se
[des]construíssem simultaneamente ao olhar do observador. Sendo assim, a imagem se torna
uma fissura, visto que se abre ao leitor-observador em múltiplas possibilidades
[re]interpretativas.
O espectador, desse modo, é interpelado pelos elementos semióticos da fotografia e a
partir disso é capaz de interpretar a mensagem por ela transmitida. Nesse contexto, como uma
natureza morta, a fotografia promove uma reflexão sobre a decadência das coisas e funciona
como uma alegoria da morte, deixando de ser apenas uma simples fotocópia da realidade
objetiva, passando a ser compreendida pelo espectador como uma forma de “emanação do
passado real” 32. Mas para além disso, ela suspende a categoria de tempo e revela-se para nós
também como um paradoxo entre o passado e o presente, entre a morte e a vida, entre o fim e
a sobrevivência. Essa capacidade de suspender a noção de tempo, encarnando o passado no
momento presente de observação, é uma das dualidades encontradas na reflexão barthesiana
sobre o procedimento e a linguagem fotográfica em A câmara clara (1980). Em suas palavras:
Diríamos que a Fotografia sempre traz consigo seu referente, ambos atingidos pela
mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento [...].
a Fotografia pertence a essa classe de objetos folhados cujas duas folhas não
podem ser separadas sem destruí-los: a vidraça e a paisagem, e por que não: o Bem
e o Mal, o desejo e o seu objeto: dualidades que podemos conceber, mas não
perceber (eu ainda não sabia, que dessa teimosia do Referente em estar sempre
presente, iria surgir a essência que eu buscava. (BARTHES, 2015, p.15)
Para o semiólogo, a capacidade de a fotografia se relacionar com o instante real e, por
sua vez, ratificá-lo ocorre devido à presença de um operador da câmera que viu o referente
fotográfico no momento da captura. Na fotografia, com isso, há a união entre o observador
(fotógrafo) e o referente observado (cena fotografada), o que Barthes chamará de noema:
32 A fotografia como “emanação do passado real” é uma reflexão barthesiana desenvolvida, sobretudo, na obra A
câmara clara (1984). Nessa reflexão, Barthes explica a relação entre a memória e a fotografia, argumentando
sobre a potência fotográfica em documentar e fixar o tempo passado em uma imagem atemporal.
100
“isso-foi”. Em About Buildings, por exemplo, Luís Quintais coloca o seu observador diante
de uma cena real presenciada por ele e capturada em imagem fotográfica. O referente
retratado na imagem, por sua vez, realmente existiu: o espaço interno de uma construção,
composto por uma escada e a estrutura da janela, é real e pertence a um espaço físico
concreto, não ficcional. Por isso, essa fotografia carrega em si na sua mais pura essência
representativa a ratificação da cena observada, escolhida e fotografada. Esse referente
fotográfico, para além disso, é composto por pequenos detalhes que, quando percebidos,
fazem que o sujeito reencontre, como Barthes na Fotografia do Jardim de Inverno33, 34com o
seu passado, uma vez que é na fotografia que se reencontram rastros, traços e a emanação do
real passado através da presença do referente.
A arte fotográfica é também capaz de transformar a imagem em memória, ao mesmo
tempo que faz transportar da imagem uma memória. Na arte fotográfica ocorre o choque
fotográfico, ou seja, uma reação do espectador àquilo que sutilmente chama a sua atenção e
o interpela. Isso é provocado principalmente por detalhes projetados pelo fotógrafo na
composição da cena que são capazes de fazer que, da imagem fotográfica em exposição, o
observador seja incentivado a um movimento reflexivo que sai da fotografia e encontra o
espectador. Em About Buildings (Figura 11), Luiz Quintais escolheu objetos que, por estarem
em destroços e em ruína, chamam a atenção do leitor atento. Isso ocorre não só pelo fato de
estarem ali e terem sido capturados em imagem por alguém, mas também porque esses
objetos nessa composição visual podem guiar o seu novo espectador para fora da imagem e,
com isso, induzi-lo a explorar o que de fato ocorreu no passado através da cena retratada
através da sua própria imaginação. Consequentemente, a fotografia de Quintais carrega um
valor alegórico que ressignifica a relação entre o sujeito e o espaço à sua volta porque somos
33
Trecho em que Barthes descreve a Fotografia do Jardim de Inverno em A Câmera Clara: “A fotografia era
muito antiga. Cartonada, os cantos machucados, de um sépia empalidecido, mal deixavam ver duas crianças de
pé, formando grupo, na extremidade de uma pequena ponte de madeira em um Jardim de Inverno com teto de
vidro. Minha mãe tinha na ocasião cinco anos (1898), seu irmão tinha sete. Ele apoiava as costas na balaustrada
da ponte, sobre a qual estendera o braço; ela, mais distante, menor, mantinha-se de frente; sentia-se que o
fotógrafo lhe havia dito: ‘Um pouco para frente, para que a gente possa te ver’; ela unira as mãos, uma
segurando a outra por um dedo, como com frequência fazem as crianças, num gesto desajeitado. O irmão e a
irmã, unidos entre si, eu o sabia, pela desunião dos pais, que se divorciariam pouco tempo depois, tinham posado
lado a lado, sozinhos, no espaço aberto entre as folhagens e palmas da estufa (tratava-se da casa em que minha
mãe tinha nascido, em Chennevières-sur-Marne)” (BARTHES, 2015, p. 61). 34 A Fotografia do Jardim de Inverno é uma imagem descrita por Barthes em A Câmera Clara (1980) que,
paradoxalmente, não aparece reproduzida no livro tal como as outras fotografias mencionadas que são
reproduzidas. Isso é um fato curioso, porque essa fotografia dá origem ao noema “isso-foi” da fotografia porque
nela Barthes vê sua mãe, com 5 anos, ao lado do irmão dela, com 7 anos, e passa a refletir sobre como a imagem
fotográfica configura-se como uma emanação do real passado, mas que se torna inalcançável no presente. Desse
modo, a partir da descrição da fotografia inexistente no livro e das conseguintes análises sobre a reação
provocada no observador de uma fotografia, Barthes percebe que à fotografia cabe ainda uma experiência de
ausência e de luto.
101
postos frente a frente com a memória e a história desse espaço abandonado que,
possivelmente, em algum tempo anterior ao da fotografia, fora habitado, trazendo vida a um
espaço agora marcado pelo vazio.
Nesse sentido, não é a escada e a posição da janela mal-sobreposta sobre ela que
punge na fotografia. O ponto da imagem que toca o observador, e que poderia passar
despercebido se ele não olhar com atenção, é exatamente o estado em que se encontram esses
objetos. É a partir da percepção desses detalhes que Quintais induz o seu observador à
reflexão sobre a condição das coisas diante da passagem do tempo. Quebrada, suja, mal-
posicionada sobre a escada, o que, num momento passado teve uma vida útil com base nas
necessidades do homem, no momento da foto revelam ao observador que tudo na vida tem um
prazo de expiração. O olhar crítico do poeta-fotógrafo consegue captar pelas lentes das
câmeras e imprimir na fotografia uma ontologia do espaço, que dá a ver exatamente o seu
definhamento ao longo da história. A habitação, a morada, a presença familiar dá espaço à
ausência, à solidão e à melancolia. O que vemos, desse modo, é uma ressignificação das
naturezas mortas em fotogramas líricos, que não mais põem em exibição objetos inanimados,
como frutas, louças, flores, livros, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, porcelanas, dentre
outros objetos cuja imobilidade, luminosidade e paleta de cores influenciavam à reflexão
sobre a morte. O que faz – belissimamente – Quintais é buscar no ceio da vida contemporânea
marcas do abandono e do tempo naquilo que é familiar, conhecido e, por vezes, esquecido
frente ao ritmo cada vez mais acelerado da vida contemporânea.
Outro foto-poema de Quintais que remete a uma experiência poética da passagem do
tempo através da imagem é a fotografia Budapeste, Setembro de 2016. De fragmentos
internos da arquitetura de uma residência abandonada, observados em About Buildings, a
fotografia Budapeste, Setembro de 2016 tem como composição, agora, um espaço urbano. O
lugar é a cidade de Budapeste, capital da Hungria. No entanto, Quintais seleciona apenas um
fragmento de uma rua da cidade como objeto foto-poético. Na composição da imagem, vemos
ao fundo uma paisagem histórica da cidade nomeada pelo título, Budapeste, evidenciando
dois prédios antigos e sua arquitetura histórica. No foco da imagem, por outro lado,
encontramos um elemento que, a princípio, se incorpora naturalmente à paisagem urbana
devido à frequência com que o vemos: trata-se do semáforo acoplado a um poste enferrujado
pela ação do tempo. É uma imagem que dá a ver contrastes de formas e de tempos que
[co]existem na cidade e resistem no tempo. É uma imagem onde o passado, impresso pela
102
arquitetura histórica, se choca com o presente, impresso pela modernização urbanística. É
uma imagem onde o passa resiste e o presente se desfaz.
Figura 12 - Budapeste, Setembro de 201635
Fonte: Luís Quintais (2016)
Budapeste, por si só, é uma cidade historicamente marcada por contrastes. Deambular
pela cidade atual é ir ao encontro de outras três grandes cidades históricas da Hungria que
fazem parte da sua construção cultural, arquitetônica e sociológica. São elas: Obuda, a cidade
mais antiga e fundada sobre um acampamento celta pelos Romanos e reconquistada pelos
nativos no século XIII, os quais a dividiram em duas outras cidades: Buda (que ficou
reconhecida como capital do país em 1361) e Peste (que caiu aos domínios dos Turcos em
1526). Três grandes cidades que se reúnem novamente num espaço unificado em 1873 após a
instauração do então Império Áustria-Hungria. Percorrer Budapeste, desse modo, é uma
forma de reencontrar a história através da arquitetura que preserva, por consequência,
inúmeros estilos arquitetônicos que remontam do período Romano à contemporaneidade.
35 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,
disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/
103
Renascimento, Gótico, Romantismo, Barroco, Romance, Art Nouveau e traços da arquitetura
oriental fazem parte da paisagem comum à cidade.
E o choque provocado pela fotografia Budapeste, Setembro de 2016 encontra-se
exatamente na percepção desses contrates históricos que ultrapassam seu tempo. Essa reflexão
já é anunciada pelo próprio poeta-fotógrafo com a decisão de, no título da obra, nomear e
datar o espaço e o tempo. Essa decisão, associada ao referente fotográfico, primeiramente,
ratifica a presença desses objetos arquitetônicos fotografados concretamente num espaço
referencial e referenciado. Relacionar, então, essa escolha às construções arquitetônicas que
fazem parte da composição da imagem é compreender que se trata de uma imagem de
camadas de tempo, assim como o sinal de trânsito, que marca passagem de tempo de espera,
tempo de prosseguir. O observador, a partir disso, fica diante de uma cena fotografada e pode
compreender não só os elementos visuais que a compõem, mas também ir além da mera
compreensão visual e encontrar o ponto de intersecção entre o que a imagem mostra e o que a
imagem evoca subjetivamente ao seu examinador.
Compreender, portanto, a mensagem fotográfica é não só decodificar os signos
visuais presentes na sua composição, mas também, e principalmente, encontrar na imagem
aquilo que me faz pensar fora dela. É encontrar o detalhe que punge para além daquilo que
intencionalmente o fotógrafo escolheu para compor a imagem. É perceber a cor escurecida
dos cantos do prédio que demostra a ação do tempo, da natureza e do homem. É também
perceber a imobilidade e a força da arquitetura histórica que resiste ainda na era
contemporânea. É visualizar, além disso, as marcas de ferrugem e de desgaste no poste, traços
da sua decomposição. É entender, para além disso, que a história – plano de fundo da imagem
– ainda resiste, enquanto no poste foram deixadas marcas físicas da passagem do tempo.
Essas reflexões através da observação de uma fotografia só são possíveis uma vez que a
técnica fotográfica produz uma obra composta por Studium e Punctum, como explica Barthes
na já referida obra A Câmara Clara (1980) acerca da constituição e da estrutura semiológica
da fotografia que podem tocar sensivelmente o observador.
Primeiramente, é o studium que determinará a minha reação cultural ao observar uma
fotografia. De acordo com Barthes, o Studium, nome derivado do verbo latino studare –
correspondente ao estudo do mundo e de tudo aquilo que não tem pungência – refere-se a
tudo aquilo que está circunscrito na fotografia, ou seja, aos elementos pertencentes à imagem
que a foto vem nos comunicar. Estes, por sua vez, são revelados intencionalmente pelo
fotógrafo e fazem parte da composição visual da imagem, do enquadramento e do foco
104
escolhidos por ele. É o studium que possibilita o juízo de valor “gosto” e “não gosto” de uma
determinada fotografia. Para o semiólogo:
reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em
harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las,
discuti-las em mim mesmo, pois a cultura (como que tem a ver o studium) é um
contrato feito entre os criados e os consumidores. O studium é uma espécie de
educação do (saber e polidez) que me permite encontrar o Operador, viver os
intentos que fundam e animam suas práticas, mas vive-las de certo modo contrário,
segundo meu querer de Spectator. Isso ocorre um pouco como se eu tivesse a ler na
Fotografia os mitos do Fotógrafo, fraternizando com eles, sem acreditar
inteiramente neles. Esses mitos visam diretamente (é pra isso que serve o mito)
reconciliar a Fotografia e a sociedade (é necessário? – Pois bem, é; a Foto é
perigosa), dotando-a de funções, que são para o Fotógrafo outros álibis. Essas
funções são: informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade. E eu,
Spectator, eu as reconheço com mais ou menos prazer: nelas invisto meu studium
(que jamais é meu gozo ou minha dor). (BARTHES, 2015, p. 31)
Nesse contexto, o studium está diretamente ligado à forma como percebemos e
interpretamos culturalmente uma foto. Isso, mediante todo o nosso conhecimento prévio de
vida e também de mundo, gerando interesses racionais de análise e reflexão. Como proposto
pelo semiólogo, é pelo studium que o observador consegue se conectar com o Operador, uma
vez que o referente fotográfico confirma a sua presença e o seu olhar no momento da captura
da imagem. Assim, a fotografia, como emanação do real passado, revela insistentemente ao
observador a presença do referente fotográfico e do Operador. Mas a conexão promovida
entre o Spectator e o Operador dá-se não só pela confirmação dessas presenças, já que o
studium também é um fator que permite que o observador e o fotógrafo comunguem
culturalmente a fotografia, através da vivência subjetiva do Spectator e das práticas
intencionais do fotógrafo impressas na foto. Isso, entretanto, está condicionado ao gosto
subjetivo do Spectator, traços culturais de sua identidade. O pensamento semiótico
barthesiano aponta a necessidade de “sentir aquilo que está posto diante dos olhos. Pura
poética da imagem; puro deleite dos sentidos. Olhos que buscam ir ver as imagens alhures.
Fora dessa condição de simples superfície de imagética” (FONTANARI, 2015, p. 69).
Os objetos constituintes da fotografia, nessa perspectiva, como em Budapeste,
Setembro de 2016: os dois prédios antigos, o poste e o semáforo, devido ao studium, revelam
ao espectador práticas e obsessões líricas comuns ao fotógrafo. E não só isso, possibilitam ao
seu interlocutor o juízo de valor “gosto” e “não gosto” culturalmente do que vejo. Em Luís
Quintais, nosso caso em análise, ficamos diante de arquiteturas, espaços urbanos, ruínas e
105
objetos em estado degradado, os quais interferem na forma como, primeiramente, nos
sentimos em relação à imagem observada. E é a partir do studium que nos aproximamos ou
nos distanciamos emocionalmente dessa fotografia, porque “é pelo studium que me interesso
por muitas fotografias, quer as receba como testemunhos políticos, quer as aprecia como bons
quadros históricos: pois é culturalmente (essa conotação está presente no studium), que
participo das figuras, das caras, dos gestos, dos cenários, das ações” (BARTHES, 2015, p. 27-
29). Afinal, é pelo studium que posso me interrogar: o que me interessa nessa foto?
A resposta para essa interrogação está na percepção de que os detalhes sutis impressos
pelo fotógrafo na cena fotografada pungem a nossa atenção e nos ferem, desdobrando a
imagem, como uma surpresa para nós, seus espectadores. Esses detalhes sutis que nos ferem
na imagem tratam-se, por conseguinte, do Punctum. A noção de punctum, derivado do verbo
latino pungere, que sugere noções como “picar”, “furar”, “perfurar”, é compreendida, por
Barthes, como a forma como uma imagem fotográfica afeta diretamente o observador. Para o
semiólogo, as fotografias têm a potência de nos tocar “[…] mais vivamente do que por seu
interesse geral, por um pormenor que vem me prender, me cativar, me acordar, me
surpreender, de maneira bastante enigmática” (BARTHES, 2015, p. 42). Nesse sentido, a
noção de punctum está atrelada a um elemento que está fixado na imagem, mas que, fora da
compreensão cultural, fere e fascina o espectador de modo que a imagem se abre para uma
nova percepção de mundo através dos efeitos subjetivos sentidos pelo espectador quando
tocado por esse detalhe sutil quase despercebido aos olhos desatentos. Esse elemento
atravessa a imobilidade da imagem fotográfica, como uma flecha certeira acertando o seu
interlocutor. Como destaca Barthes:
O segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Dessa vez, não sou eu
quem vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do
studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Em
latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por
um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que
remete também à ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato,
como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis;
essas marcas, essas feridas são precisamente pontos. Esse segundo elemento que
vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada,
pequeno buraco, pequena manca, pequeno corte – e também lance de dados. O
punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas me mortifica, me
fere). (BARTHES, 2015, p. 31).
O punctum, dessa forma, é composto por detalhes dentro da imagem, elementos sutis
“[...] como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (BARTHES,
106
2015, p. 89). Esses detalhes fazem parte integrante da composição da imagem, no entanto, não
são percebidos facilmente pelo observador. O Spectator precisa olhar atentamente a imagem
até ser tocado por algum fragmento imagético que abre seu campo perceptivo. Elementos
esses que normalmente não foram intencionalmente projetados na imagem pelo fotógrafo,
mas que simplesmente estão ali e, por causa disso, forçam a nossa atenção. Esses hábeis
componentes fotográficos, em Budapeste, Setembro de 2016, têm a capacidade de abrir a foto
para um novo e amplo campo de comunicação e interpretação, uma vez que eles são capazes
de provocar um pequeno abalo proustiano36 ao passo que a imagem dá a ver o mundo real
através de uma experiência sensível do tempo. A partir do momento em que percebo o
punctum em Budapeste, Setembro de 2016, sou capaz de inferir e reencontrar a história do
referente fotográfico através do movimento interno e subjetivo da memória involuntária. Sou
capaz de visualizar além dos objetos arquitetônicos e de resgatar internamente sentimentos e
recordações pessoais que são evocados pelo punctum. Esse processo íntimo é fundamental
para a compreensão da mensagem fotográfica, uma vez que, assim como destaca Barthes, a
fotografia pode ser compreendida como um suporte de emoção. É, destarte, compreender que
da imagem fotografada há a emanação de um passado nela presente, e que reverbera a
experiência do passado no presente.
Uma composição poético-visual semelhante à Budapeste, Setembro de 2016, que
promove uma meditação sobre a percepção do tempo, da memória e da história pode ser
encontrada no poema “A arte da memória”. Nesse poema, há um eu poético frente a uma cena
composta por objetos cotidianos abandonados, cujo aspecto punge o observador, guiando-o a
uma viagem memorialística através dos objetos que compõem a cena foto-grafada em busca
de marcas de si mesmo deixadas no espaço e nos objetos pela passagem do tempo:
A ARTE DA MEMÓRIA
Um mapa está sobre a mesa. Encontro também aí um livro.
O mapa está semi-apagado, a espaços largos entre inscrições
36 Entendo aqui por abalo proustiano a reação que ocorre após a percepção do detalhe da fotografia dotado de
punctum. Isso porque, para Barthes, a partir do momento em que a fotografia fere o Spectator pode ocorrer com
ele uma experiência semelhante ao episódio das madeleine descrito em No caminho de Swann, o primeiro
volume de Em Busca do Tempo Perdido (1913). Nessa cena do livro, o narrador personagem come uma
madeleine, uma espécie de bolinho típico francês, mergulhada no chá e quando sente o gosto dessa combinação,
a sensação gustativa provoca involuntariamente uma recordação de uma cena do seu passado. Esse processo de
resgate memorialístico decorrente de uma experiência sensível ficou conhecido como memória involuntária.
107
encontramos terras sem nome, incógnitas, sinais de manchas e descuidos.
O livro está queimado, carbonizado. O livro é uma sombra de cinza que se desmancha ao toque.
A mesa era do meu pai, mas o mapa e o livro são apenas indícios do que obscuramente fui.
(QUINTAIS, 2017 p. 119)
Na primeira estrofe do poema, o eu poético descreve uma cena do espaço em que se
encontra, colocando-se em posição de observador de alguns objetos dispostos nesse espaço.
Desse espaço ainda não nomeado, ele seleciona apenas um fragmento: “Um mapa está sobre a
mesa. / Encontro também aí um livro” (QUINTAIS, 2017 p. 119). Do enquadramento
escolhido da cena, então, somos também estimulados a visualizar uma mesa, um mapa e um
livro. Como um fotógrafo que manipula o zoom de sua câmera fotográfica para dar ênfase e
foco, pela aproximação, em determinados componentes visuais, seu olhar aproxima-se dos
objetos dando a ver aspectos do seu estado aparente que antes passariam despercebidos a um
olhar desatento. Por esse processo foto-gráfico, a voz poética consegue capturar as
características temporais da configuração da cena: o mapa está em processo de degradação:
“O mapa está semi-apagado [...]” (QUINTAIS, 2017 p. 119); e não só há manchas antigas
deixadas pelo manuseio do mapa ao longo do tempo, mas também há lacunas entre as
palavras que foram deixadas pela decomposição da matéria de escrita: “[...] a espaços / largos
entre inscrições encontramos terras sem nome, / incógnitas, sinais de manchas e descuidos”
(QUINTAIS, 2017 p. 119).
O livro é outro corpo também em destruição. Na estrofe seguinte, olhar crítico do eu
poético volta-se para a descrição desse outro corpo decadente que se encontra sobre a mesma
mesa que o mapa semi-apagado, e releva ao leitor um objeto incinerado: “O livro está
queimado / carbonizado [...]” (QUINTAIS, 2017 p. 119). O que se vê, então, é mais uma
matéria inaproveitável. O livro queimado já não dá a ver o texto nele antes fixado. O livro
queimado já não tem mais utilidade, é uma matéria arruinada capaz de desfazer-se a um
simples toque: “[...] O livro / é uma sombra de cinza / que se desmancha ao toque”
(QUINTAIS, 2017 p. 119). Sobre os objetos que compõem o enquadramento, nota-se que eles
representam uma espécie de cena de natureza morta. Fragmentada e desgastada, a matéria,
108
nesse contexto, assemelha-se ao processo de resgate memorialístico – o qual se realiza
mediante a busca de lacunas perdidas na relação tempo-espaço – da imagem correspondente à
identidade passada do eu lírico.
Esse pedaço da paisagem escolhido e descrito pelo observador, cujo aspecto é
representado por presenças e ausências, revela, desse modo, a inutilidade desse mapa, dessa
mesa, desse livro que foram abandonados nesse espaço e não, há muito tempo, não são mais
utilizados. Com essa aproximação entre um passado vivo e um presente morto, poema chega à
imagem final. Na última estrofe, o eu lírico resgata a mesa apresentada no primeiro verso,
acrescentando à imagem inicial uma nova informação: “A mesa era do meu pai,”
(QUINTAIS, 2017 p. 119). Essa informação revela ao leitor que existe uma relação e uma
história entre o sujeito e a cena anterior ao momento da observação. Relação essa que é
atravessada por afetos e familiaridade, capaz de [re]produzir nesse sujeito o resgate e a análise
dessa – sua – história. Por isso, “[...] o mapa / e o livro são apenas indícios / do que
obscuramente fui” (QUINTAIS, 2017 p. 119). Pelos vestígios do abandono e pelos vazios da
linguagem, a imagem poética se mostra como um caminho para alcançar uma análise
meditativa também sobre a identidade do sujeito poético. Nota-se, em função disso, ao final
do poema, a síntese da dupla composição imagética produzida no poema: os corpos em ruínas
“são apenas indícios do que obscuramente” (QUINTAIS, 2017 p. 119) foi o eu poético. A
imagem foto-grafada, dessa forma, carrega, impressos pelo tempo, vestígios ocultos. Esses
vestígios, por sua vez, dão a ver entre espaços em branco, manchas de uso e cinzas do tempo a
história do próprio sujeito, que remonta o passado na tentativa – inútil – de preencher esses
vazios.
Agora em outra fotografia, Food for thought (Figura 13), vemos uma cena composta
por objetos numa disposição semelhante ao poema “A arte da memória”. Do espaço em que
se encontra, o poeta-fotógrafo também seleciona objetos cotidianos que, no entanto, não se
encontram em estado decadente. Pelo enquadramento escolhido para a fotografia Food for
thought, vemos que o poeta-fotógrafo escolheu um fragmento do que poderia ser
compreendido como um escritório. O que se vê, então, são fragmentos de objetos que nos
fazem pensar em sua importância temática para o artista.
Desse espaço, encontram-se presentes na fotografia uma escrivaninha, com livros
empilhados e no topo um chapéu, ao lado, conseguimos vislumbrar o interruptor de um
abajur, uma sacola de plástico, uma garrafa (possivelmente de água), uma parte de uma
impressora com fotografias em cima. Na parede encontram-se um álbum da banda de rock
109
norte-americana U2 encostado e um fragmento de algum quadro pendurado. Os objetos da
composição da imagem remontam a um ambiente de criação, em que o artista exerce seu
papel criativo de escrita. Seria o escritório do nosso poeta-fotógrafo? Seriam esses os livros
que lia no período em que fotografou? Seria este o álbum de músicas que o acompanha em
sua jornada criativa? De quem seria o chapéu? Seria uma alusão ao ilustre poeta Fernando
Pessoa? Talvez o enquadramento seja uma metáfora para a arca deixada por Pessoa? Seriam
esses indícios de suas obsessões líricas?
Figura 13 - Food for thought37
Fonte: Luís Quintais (2008)
Essas inquietações fazem que a fotografia seja entendida, também, como um suporte
poético para expressão das obsessões líricas constantes na obra de Quintais. Nessa expressão
artística, é conferida ao poeta-fotógrafo a potência de escolher, do mundo real objetivo, um
fragmento visual que também toca o observador. O operador da câmera fotográfica, tal qual o
poeta, cria imagens através de fragmentos, traços, indícios, restos e ruínas, já que a potência
frástica da linguagem fotográfica dá a ver lentamente pelos objetos que compõem a fotografia
37 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,
disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/
110
uma cena em tensão para motivar o leitor-observador a alcançar uma reflexão ontológica obre
a imagem foto-grafada, pelas lentes das câmeras como pelo versos dos poemas. Dessa forma,
na fotografia – como outro suporte poético-visual – a linguagem fotográfica potencializa essa
experiência ontológica da imagem poética, como no fotograma lírico “A arte da memória”,
pois os objetos que compõem semioticamente a mensagem fotográfica, em Food for thought,
possibilitam ao leitor-espectador uma imagem dotada de studium e punctum. Não é à toa,
então, que Quintais tenha se aproximado da arte fotográfica e tenha utilizado cada vez mais
constantemente a fotografia como objeto poético.
3.2 Uma figuração da luz
Como vimos em momentos anteriores desta dissertação, quando aproximamos a
técnica de escrita poética de Quintais do ato de fotografar imagens pelas palavras, Luís
Quintais também é fotógrafo, ainda que de modo amador, porque seus poemas e ensaios
constantemente abordam a temática do ver. Através da linguagem poética, como discutimos
anteriormente, o poeta cria fotogramas líricos nos quais põe em cena o que vemos, o que não
vemos, o que conhecemos e reconhecemos facilmente, mas também aquilo que não
conhecemos e que está fora do nosso campo de cognição. Em suas imagens poéticas, vimos
que a linguagem funciona como um mecanismo descritivo que fixa traços, restos, fragmentos
da vida urbana contemporânea. São, por isso, imagens poéticas com uma potência
antropológica porque dão a ver a condição do homem contemporâneo a partir das suas
inquietações. Dessa forma, essas imagens foto-grafadas são colocadas em observação pela
voz lírica, que nos guia lentamente pelos versos a uma reflexão sobre a linguagem e a sua
impossibilidade de dizer, sozinha, o mundo; sobre a ausência e a melancolia, estados de
espírito associados à noção de fim; sobre o tempo e as marcas involuntárias que sua passagem
deixa em todas as coisas do mundo. E dessas imagens poéticas, o poeta resgata memórias,
testemunhos, sentimentos e experiências subjetivas no leitor-observador que lentamente
deixa-se guiar pela contemplação das imagens poéticas a ele reveladas.
A produção fotográfica de Quintais, nesse sentido, como destaca o professor Maffei,
“me tenta a procurar a poesia para além dessas imagens, para além desses versos” (MAFFEI,
2017, p. 9). Isso porque, pela linguagem poética, Quintais consegue, tal como em suas
fotografias, criar imagens que colocam em evidência os limites do visível, do reconhecimento
e da percepção. Com sua câmera fotográfica, o poeta-fotógrafo cria uma experiência
111
contemplativa por meio de indícios, sombras, ruínas de objetos, construções e paisagens. E,
pela fotografia, estende a sua dimensão reflexiva ao transportar a literatura para a fotografia, e
a fotografia para a literatura. Dessa forma, ao incluir de forma constante e crescente imagens
fotográficas em seus livros de poesia, seja na perigrafia, como vimos aqui em A noite imóvel
(2017) com a fotografia (Figura 2), seja no corpo do livro como texto poético, como veremos
no próximo capítulo com o livro Deus é um lugar ameaçado (2018), Quintais, também,
entende a fotografia como um objeto poético capaz de revelar as fissuras líricas da
antropologia contemporânea. Em função disso, é necessário aprender a ler a poesia em suas
imagens fotografadas.
Para isso, primeiramente, é necessário destacar que toda fotografia declara um
testemunho. As imagens fotografadas podem ser entendidas como uma prova de que
determinada coisa aconteceu, já que a presença do referente fotográfico (o fotógrafo que
capturou a imagem do tempo) confirma o noema – isto é – da fotografia, como explica
Barthes (1980). Nesse sentido, o resultado da passagem da luz através das lentes da câmera
fotográfica e do clique do fotógrafo é uma imagem verossimilhante ao que de fato observa o
fotógrafo no mundo objetivo durante o momento em que escolheu o fragmento que fará parte
da composição de sua obra. O enquadramento escolhido, a posição dos objetos da composição
e o ângulo projetado são alguns dos procedimentos e elementos invisíveis à imagem
fotográfica que marcam a presença do fotógrafo e, principalmente, do seu olhar sobre a cena.
Enquanto a câmera fotográfica, que reproduz mecânica e mimeticamente a cena escolhida,
torna-se um mecanismo poético pelo qual Quintais consegue captar fragmentos do mundo e
motivar uma experiência subjetiva frente o espaço, o tempo, o imaginário e a ausência.
Ela [a câmera fotográfica] é como uma extensão da escrita do poeta. E nessa
experiência visual, o observador é convidado a contemplar uma imagem que não somente dá a
ver a passagem do tempo, mas também resgata constantemente o tempo passado, já que, como
aponta Sontag, a fotografia é, ainda, capaz de deixar um vestígio, algo como uma “pegada ou
máscara mortuária” (SONTAG, 2004, p. 170). Segundo suas reflexões sobre o processo
fotográfico, a foto configura-se como um mecanismo de registro – testemunho – material de
seu tema, revelando, também, uma realidade oculta à reproduzida pela câmera e que é
consequência direta das condições de produção (luz, tempo, clima, etc.) dos processos de
tratamento (edição fotográfica anterior ou posterior à captura da imagem) e dos avanços
referentes à técnica fotográfica (modernização das câmeras e desenvolvimento de novos
112
procedimentos estéticos). Nesse cenário, a máquina fotográfica, como uma extensão da
perspectiva do fotógrafo, tende a nos revelar a realidade duplamente porque
Tudo o que o programa de realismo da fotografia de fato implica é a crença
de que a realidade está oculta. E, estando oculta, é algo que deve ser
desvelado. Tudo o que a câmera registra é um desvelamento — quer se trate
de algo imperceptível, partes fugazes de um movimento, uma ordem de
coisas que a visão natural é incapaz de perceber ou uma ‘realidade realçada’
(expressão de Moholy-Nagy38), quer se trate apenas de um modo elíptico de
ver. (SONTAG, 2004, p. 137)
À vista disso, a fotografia passa a representar uma nova forma lírica de registrar a
realidade, não só como um mero sistema mecânico de reprodução mimética da realidade
objetiva, mas também como um suporte técnico cujas condições de produção imagética e a
perspectiva subjetiva do artista são impressas inevitavelmente à imagem, colocando-se como
um tapume que encobre essa cena real fotografada. Dessa forma, o que a fotografia, de fato,
nos revela é a necessidade constante de desvelar o que foi encoberto. Um movimento de
procura pelo que está circunscrito no enquadramento da cena e pelo que foi oculto pela
linguagem fotográfica, aquilo que foge à nossa visão superficial.
Esses são alguns aspectos da imagem fotográfica que são impressos na teoria do ver
que perpassa também a produção fotográfica de Luís Quintais e que podem ser observados na
fotografia Upload (Figura 14). Upload é uma das 4 fotografias que compõem o ensaio
fotográfico homônimo de Quintais publicado na sua página flickr. Numa primeira observação,
o título em inglês, associado à composição imagética da fotografia, chama atenção. Upload é
uma palavra de Língua Inglesa, normalmente utilizada como um termo técnico da linguagem
das tecnologias de informação, que tem como significado semântico “enviar um arquivo de
um espaço digital para outro”. Sua tradução, por sua vez, está associada ao verbo “subir” já
que o vocábulo em inglês “upload” pode ser dividido em dois morfemas: “up”, cuja tradução
é “para cima” e “load” cuja tradução é “carregar”. Logo, “upload” é o ato de “subir” (ou
carregar para cima) um determinado arquivo virtual em uma plataforma digital. Nesse
contexto, por exemplo, quando vamos enviar um arquivo que está salvo no nosso computador
38 Lászlo Moholy-Nagy foi um designer, fotógrafo e pintor húngaro do século XX, conhecido por ter lecionado,
entre os anos 1922 e 1930, na escola Staatliches Bauhaus, comummente conhecida como Bauhaus, uma
importantíssima escola de artes alemã que potencializou o movimento Modernista no design e na arquitetura.
Escreveu o livro Pintura, Fotografia, Filme - Painting, Photography, Film (1924) –, o oitavo livro da coleção
Livros da Bauhaus, no qual propõe um diálogo entre a fotografia e a pintura. Em seus estudos, aponta que a
fotografia é como um mecanismo de reflexão sobre o fenômeno visual da exposição à luz.
113
para outra plataforma digital (um pendrive ou outros sistemas digitais de armazenamento de
informação; outro computador; ou uma plataforma virtual – como sites e e-mails) estamos
fazendo um upload – envio – dessa informação. Esse é, então, um processo pelo qual criamos,
ainda, uma cópia da informação ou do arquivo no novo suporte. Através de um upload
criamos e deixamos um rastro virtual de um arquivo. E não seria esse, também, um dos papéis
da fotografia?
Figura 14 – Upload39
Fonte: Luís Quintais (2016)
O olhar e a percepção do poeta-fotógrafo são impressos em imagem fotográfica
através da câmera, e, do enquadramento escolhido, conseguimos ver uma cópia daquilo que
foi propositalmente escolhido pelo artista para contemplarmos. Esse caráter metalinguístico é
observado, também, na fotografia Upoload, cujas sombras que compõem a imagem são
rastros da presença real do objeto fotografado. São elas: 1) uma que marca a silhueta humana
– seria um homem ou uma mulher? Seria o fotógrafo? Seria o próprio poeta-fotógrafo? 2)
outra que marca um objeto comum ao cotidiano, uma escada. Desses objetos e perfis
39 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,
disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/
114
desenhados pelas sombras, somos guiados a resgatar outros elementos que se encontram
invisíveis no campo de observação: da sombra humana, buscamos a figura do autor da
imagem; da sombra inanimada, recordamos da escada e, pelo ângulo que se encontram os
raios luminosos e a direção das sombras, pensamos, ainda, sendo uma escada, a pessoa vai
subir, está descendo, indo de um espaço a outro? É possível subir? É possível efetuar o
upload?
Na fotografia Upload, com isso, observamos uma performance do ver, em que a
imagem fotografada é responsável pela [re]criação de uma dupla realidade na qual a primeira
corresponde a uma representação do tema pelas técnicas de fixação de imagem (luminosidade,
enquadramento, angulação, foco, edição...), enquanto a segunda, mais oculta, refere-se à
história interna da foto como fragmento da realidade referente a uma cena real e concreta,
somente acessível através da contemplação da fotografia. A fotografia, por isso, como nos
poemas de Quintais, revela-se, também, como um objeto lírico documental, histórico,
antropológico e metalinguístico. Dessa forma, a imagem capturada representa não só um
determinado tema (aquilo que ela dá a ver na cena), mas também põe em xeque as noções de
tempo, presença e ausência, a serem interpretados e analisados pelo seu espectador de maneira
fiel e precisa ou pelas intenções particulares do fotógrafo. Ler as fotografias de Quintais é
mais do que redefinir a natureza das coisas, porque a técnica fotográfica, como aponta Sontag,
é um mecanismo de fragmentação, fixação, exposição, contemplação e análise da realidade
em peças e possibilidades diversas:
As fotos fazem mais do que redefinir a natureza da experiência comum
(gente, coisas, fatos, tudo o que vemos — embora de forma diferente e, não
raro, desatenta — com a visão natural) e acrescentar uma vasta quantidade
de materiais que nunca chegamos a ver. A realidade como tal é redefinida —
como uma peça para exposição, como um registro para ser examinado, como
um alvo para ser vigiado. A exploração e a duplicação fotográficas do
mundo fragmentam continuidades e distribuem os pedaços em um dossiê
interminável, propiciando dessa forma possibilidades de controle que não
poderiam sequer ser sonhadas sob o anterior sistema de registro de
informações: a escrita. (SONTAG, 1933, p. 87)
Sontag, nesse excerto, entende que a técnica fotográfica é um mecanismo de
composição artística que produz uma peça visual que está subordinada a diversas
possibilidades de percepção e interpretação por parte do observador. Isso decorre,
principalmente, da relação existente entre a técnica fotográfica e a captação de frames fiéis a
115
uma cena real do passado, processo pelo qual a cena é fixada em uma imagem fotográfica
imóvel e permanente. Desse modo, ao fotografar qualquer imagem, o fotógrafo – amador ou
profissional –, não só recorta e compacta o tempo passado em imagem, ele é capaz, ainda, de
acrescentar elementos que fogem ao campo de visão e que são percebidos apenas através da
contemplação e reflexão. E a imagem fotografada, com isso, passa não só a redefinir a
realidade apresentada ao observador por um determinado ponto de vista, porque as técnicas
impressas à fotografia final e as possibilidades de modificação e edição adicionam elementos
à composição. A realidade, a imagem e a fotografia, por sua vez, estão submetidas a
mecanismos de controle que proporcionam inúmeras formas de manipulação por parte do
artista que cria “um dossiê interminável” (SONTAG, 1933, p. 87), “um registro a ser
analisado” (SONTAG, 1933, p. 87) de modo interminável.
Upload, nesse contexto, mesmo sendo uma forma de fragmentação do real, é uma
forma de prolongá-lo, avaliá-lo e [re]interpretá-lo continuamente. As sombras da composição
imagética reescrevem o real em imagem. E por isso, conforme aponta Dubois, através da
fotografia “a imagem não pode representar o real empírico (cuja existência é, aliás, recolocada
em questão pelo pressuposto sustentado por tal concepção: não haveria realidade fora dos
discursos que falam dela), mas apenas uma espécie de realidade interna transcendente”
(DUBOIS, 2001, p. 53). Esse recorte do real, por causa das impressões deixadas pelas marcas
do olhar fotográfico, transforma-se, então, num mecanismo linguístico que fragmenta e
pulsiona a realidade, porque “a câmera empurra para adiante as fronteiras do real” (SONTAG,
2008, p. 138). E a mensagem fotográfica não é mais subordinada apenas à expressão do autor
e à sua interpretação do momento na hora do clique. Através da exposição e da contemplação
de Upload, o espectador é levado a um movimento de reconfiguração da sua relação com a
realidade encenada pela fotografia: sombras, fotógrafo, escada, chão e raios luminosos.
Agora, ele tem, também, o poder de participação e manipulação da cena fotografada, uma vez
que nesse fotograma lírico o Spectator é afetado e ferido pelos elementos da composição que
metalinguística e referencialmente se movimentam de dentro para fora da imagem revelando
o que se vê e o que não se vê, o que se conhece e o que não se conhece, o passado e o
presente, o real e o imaginário.
A hipótese é também evidenciada no poema “Fantasmas”. Nele, podemos perceber
como as estrofes atuam como recorte e enquadramento de cenas comentadas e descritas pelo
sujeito lírico. Nesse processo de fragmentação poético-visual – bem semelhante, inclusive, à
técnica cinematográfica de mudança de enquadramento, porque cada estrofe atua como um
116
fotograma, onde ocorre uma espécie de troca entre percepções do observador frente a cena – a
voz poética aparece visualizando uma cena de uma figura humana, de uma rua e de uma casa,
mas que põem em tensão a ação (presente?) no espaço:
FANTASMAS
Teremos
de lutar
pela simples
respiração.
De noite nada virá.
Uma figura humana
atravessa a estrada
frente à casa
onde nasci.
Reparo nela,
no seu caminhar
de onde nada
se mede, de onde nada
tem mensuração.
Sou eu, opaco, que atravesso
a rua da infância?
Depois da guerra, fugimos
todos, mobília abandonada,
ficaram-nos as roupas
do corpo, e na alma
fantasmas.
Não voltei a essa casa,
a essa rua,
a essa janela.
(QUINTAIS, 2017 p. 115-116)
Primeiramente, é importante apontar que “Fantasmas” é o terceiro poema da seção
“Uma vida” do livro A noite imóvel (2017) de Luís Quintais. Nessa seção poética, os poemas
abordam uma temática central comum: acessar a memória a partir da observação de uma cena
opaca, tal como é a nossa própria memória – frágil, fraca e repleta de lapsos. Isso é refletido já
na epígrafe escolhida para essa seção, um fragmento da música Orpheus (1987) do cantor e
compositor inglês, David Sylvian: “I wrestle with an outlook on life / That shifts between
darkness and shadowy light” (tradução nossa: eu luto com uma perspectiva de vida que muda
entre a escuridão e a luz sombria). Em “Uma vida”, nesse sentido, o leitor é motivado a
acompanhar um sujeito poético que irá percorrer esse caminho entre a luz e a sombra da sua
117
memória. Na primeira estrofe do poema “Fantasmas”, por isso, o sujeito parece fazer um
alerta a seu leitor: “Teremos / de lutar / pela simples / respiração” (QUINTAIS, 2017 p. 115).
O verbo “lutar” declara ao seu interlocutor que será preciso entrar em alguma forma de
batalha para que se possa conquistar algo, como a “simples respiração”, o objeto de desejo
dessa luta poética. A respiração, nesse sentido, parece ser algo que se encontrará em falta.
Mas quando? No tempo futuro? No tempo presente da leitura do poema? Ou no tempo
presente da observação da imagem apresentada na estrofe seguinte? Nesse primeiro fragmento
poético, ficamos diante de um alerta sobre um futuro possível, que por sua vez, como aponta o
título do poema, nos colocará diante de nossos próprios fantasmas. Ao longo da leitura, essa
questão transporta-se para uma imagem poética descrita em observação pelo sujeito lírico:
“Uma figura humana / atravessa a estrada / frente à casa / onde nasci” (QUINTAIS, 2017 p.
115).
Diante dessa figura humana que caminha por uma rua conhecida em frente à sua
antiga casa, o sujeito lírico é motivado emocionalmente a voltar à sua própria memória do
passado para resgatar os fragmentos de um tempo passado perdidos e resgatados pela
familiaridade e afetividade representadas pelos objetos que formam a imagem da cena
observada. Nesse estado de melancolia, por sua vez, o sujeito é levado a debruçar sobre si em
função de uma reação à perda de um objeto de afeto, causando uma “ruptura do eu” pela qual
uma das partes destaca-se e volta-se para a outra, julgando-a de forma crítica. É o que
demonstra Freud (1917) sobre o estado de melancolia: “[...]detenhamo-nos um pouco no
conceito que a perturbação do melancólico oferece a respeito da constituição do ego humano.
Vemos nele que uma parte do ego se coloca contra a outra, julgando-a criticamente, e, por
assim dizer, toma-a como seu objeto” (FREUD, 2011, p. 280).
Nesse ato de caminhar do sujeito pela rua de sua antiga casa, o eu lírico se depara com
uma fissura no espaço-tempo, que faz duas realidades – o seu presente e o seu passado –
atravessarem, junto desse indivíduo, a rua de sua antiga casa. Isso acontece porque ele decide
reparar nela, “no seu caminhar” (QUINTAIS, 2017 p. 115). Desse ato de observação, por sua
vez, ele é remetido, primeiramente, ao nada: “no seu caminhar / de onde nada / se mede, de
onde nada / tem mensuração” (QUINTAIS, 2017 p. 115). Esse esvaziamento é decorrência
dos contrastes entre a familiaridade do espaço e o não [re]conhecimento da identidade desse
sujeito. Por isso, o eu lírico motiva-se a buscar por algo que preencha esse esvaziamento,
encontrando, portanto, numa longínqua recordação de sua infância, a sua própria imagem
refletida no caminhar desse outro eu, antes desconhecido, por esse espaço sempre familiar. A
118
pergunta, na estrofe seguinte, descreve a tentativa de recuperar esse algo que escapa à
imagem, mas que poderia ser acessado através da memória de um objeto de afeto perdido com
o tempo. Sua reação é expressa em uma pergunta: “Sou eu, opaco, que atravesso / a rua da
infância?” (QUINTAIS, 2017 p. 116). Em função disso, percebe-se que o eu poético se
encontra fragmentado e opaco, buscando no tecido da sua própria memória recompor a sua
própria identidade nessa fissura do espaço-tempo.
Espaço este que é marcado por uma separação violenta. O sujeito poético, que vivia
em sua infância essa casa com a sua família, foi obrigado por conta da guerra, a fugir desse
espaço familiar para um outro espaço desconhecido: “Depois da guerra, fugimos / todos,
mobília abandonada,” (QUINTAIS, 2017 p. 116). Essa experiência de dor e de perda leva o
indivíduo a um estado que, semelhante ao luto, desencadeia uma sensação de melancolia
capaz de fissurar seu ego. Ao enxergar a si mesmo nessa figura humana que caminha por um
espaço do qual as memórias são efêmeras. Conforme afirma Didi-Huberman “A imagem é
pouca coisa: resto ou fissura (flêure). Um acidente do tempo que a torna momentaneamente
visível ou legível” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 87); e dessa rua, dessa casa e dessa história
ficaram-nos as roupas / do corpo, e na alma / fantasmas” (QUINTAIS, 2017 p. 116).
No final do poema, então, tem-se a constatação final: “Não voltei a essa casa, / a essa
rua, / a essa janela” (QUINTAIS, 2017 p. 116). Com esses versos, o sujeito poético fecha a
sua reflexão, revelando ao leitor que, apesar da familiaridade, o espaço é paradoxalmente
desconhecido. O que se lembra é circunstancial e poderia estar subordinado a intervenções da
imaginação. O objeto perdido, nesse contexto, mostra-se como a própria infância que foi
violentamente fragmentada pela presença da guerra. Como consequência dessa relação
dialética com o espaço, o luto promovido é decorrente da perda da casa, da rua e da janela,
objetos de afeto aos quais o eu poético não tem mais acesso, a não ser pela memória
imagética. A figura foto-grafada, portanto, tem a potência de resistência, pois ela é capaz de
resgatar, do tempo passado, uma recordação – mesmo que fragmentada, mesmo que de difícil
acesso e, ainda, mesmo que atravessada pelo imaginário – desse tempo já perdido, dessa
fissura, dessa janela.
Já em outra fotografia de Quintais, o observador é convidado a contemplar uma cena
natural que, quase invisivelmente, acontece em um espaço urbano, mas que também põem em
tensão o fim e o que resta (ou sobrevive) dele:
119
Figura 15 - E o Outono será sempre a estação40
Fonte: Luís Quintais (2016)
Na fotografia E o Outono será sempre a estação, o artista nos convida, mais uma vez,
a observar o tempo. No entanto, diferente das suas fotografias e das imagens poéticas
contempladas nesta dissertação anteriormente, o tempo, nesta fotografia, é evocado através de
um tema natural. Em vez de buscar reproduzir um objeto urbano em ruína, o poeta fotógrafo
decide por reparar na natureza comum à sua volta. Na Figura 15, por isso, vemos de uma
espécie de árvore muito comum em Portugal, cujas folhas sempre caem quando chega o
Outono: tratam-se dos Plátanos, que já apareceram em uma das imagens poéticas descritas no
poema “Anfiteatro”, analisado neste trabalho – “Inverno também ali, Inverno sempre, e os
plátanos / do outro lado, ali estando, tão indiferentes, / de uma beleza de cinza, um anátema, /
uma contemplação rasurada” (QUINTAIS, 2017, p. 75). De modo semelhante, a natureza é
evocada pelo artista – tanto no poema como na fotografia – de modo a mostrar ao leitor-
observador uma imagem que põe em tensão o tempo e a resistência. Isso acontece em
decorrência da escolha das folhas dos plátanos caídas ao chão, cuja aparência – cor e formas –
são indícios que denunciam a passagem temporal. O amarelado das folhas, conjugado ao seu
aspecto podre, rasgado e amassado no chão, dá ênfase nesse aspecto decadente dessa natureza
que se degrada, seca e apodrece.
40 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,
disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/
120
Essas características visuais representam poeticamente a noção de fim, um tema
recorrente à escrita literária de Quintais, que é projetado nessa produção fotográfica como
uma espécie de filtro comum entre as suas duas formas de expressão artística. Nesse sentido,
nessa fotografia, podemos observar o modo como o poeta fixa em imagens um movimento
natural das coisas que passam constantemente por transformações ao longo do tempo.
Paradoxalmente, ainda, essa mesma imagem que remete ao fim e à morte dessa folhagem,
evoca também a recordação de que a perda da folhagem, usual no Outono, é apenas um
recurso biológico para que as plantas sobrevivam ao período mais intenso que se aproxima, o
Inverno. Desse modo, mesmo que as plantas pareçam mortas, elas estão vivias e resistindo às
temperaturas mais baixas e às condições adversas. A imagem, nesse contexto, carrega um si
um movimento próprio que transporta da experiência visual uma percepção reflexiva sobre a
cena observada em que a percepção desses elementos – visíveis e invisíveis – toca seu
observador.
As quatro estações do ano apresentam características geográficas e biológicas bem
definidas, que são percebidas através da observação das mudanças que ocorrem no aspecto
físico e visual da vegetação, na temperatura e, inclusive, no comportamento dos animais. Por
meio da contemplação dessas transformações, somos capazes de perceber o ciclo natural da
vida através da passagem temporal: início, meio e fim. A primeira estação do ano no
Hemisfério Norte, a Primavera, é o período natural de nascimento da flora. Nesse momento
costuma ocorrer o aumento da temperatura e o crescimento da folhagem das plantas,
preparando-se para a sua maturação. Ela, por sua vez, é sucedida pelo Verão, a estação do ano
marcada pela maturidade da flora terrestre. Durante esse período, somos levados a
experimentar temperaturas mais altas. Após esse período, entramos no Outono, a estação do
ano visualizada pela fotografia E o Outono será sempre a estação. Ela é marcada, por
exemplo, por um momento de transição em que ocorre a queda da temperatura, o
amarelamento e a queda da folhagem, indicando a proximidade da estação seguinte, o
Inverno. Este, por último, é percebido como um momento de fim. Nessa época, devido à
queda drástica das temperaturas, é comum observamos a migração de animais e uma
transformação intensa na aparência da flora terrestre, que se encontra completamente sem
folhagem para poupar energia durante esse tempo. Perceber essas transformações é perceber o
ciclo natural ao qual todas as coisas estão submetidas. Observar as marcas visuais dessas
transformações é experimentar visualmente a passagem do tempo. Fotografar essas
transformações é, intencionalmente, dar ênfase à condição das coisas que estarão sempre
121
subordinadas à passagem temporal. Acerca dessa atuação intencional do fotógrafo em
escolher fotografar fragmentos reais do mundo, Boris Kossoy (1971) afirma:
A eleição de um aspecto determinado – isto é, selecionado do real com seu
respectivo tratamento estético –, a preocupação na organização visual dos
detalhes que compõem o assunto, bem como a exploração dos recursos
oferecidos pela tecnologia: todos são fatores que influirão decisivamente no
resultado final e configuram a atuação do fotógrafo enquanto filtro cultural.
O registro visual documenta, por outro lado, a própria atitude do fotógrafo
diante da realidade; seu estado de espírito e sua ideologia acabam
transparecendo em suas imagens, particularmente naquelas que realiza para
si mesmo enquanto forma de expressão pessoal. (KOSSOY, 1941, p. 43)
Kossoy, nesse fragmento, destaca que toda a fotografia se torna um testemunho do
olhar estético do artista. Isso, no entanto, não decorre somente do mimetismo fotográfico que,
como vimos anteriormente, confirma a presença do referente fotográfico na imagem; o
testemunho é também compreendido pelas marcas pessoais que o artista insere nos temas de
suas fotografias. Para ensaísta, uma fotografia sempre será atravessada por uma realidade
objetiva e pela percepção subjetiva do artista, já que os elementos selecionados para a
composição da imagem – que fazem parte do mundo real objetivo – são escolhidos e
organizados de acordo com a intensão comunicativa do fotógrafo. A partir disso, o processo
fotográfico desenvolve-se através de coordenadas circunstanciais que revelam um binômio
documentação versus criação. Isso acontece, primeiramente, porque o princípio mimético da
fotografia reforça o noema barthesiano isso foi da fotografia, desse modo, a imagem passa a
ser uma forma de documentar uma cena real do passado.
Mas para além disso, em segundo plano, a forma como essa cena real de um momento
e de um tempo passado foi fotografada e é apresentada ao observador acaba por funcionar
como um “filtro cultural” do artista. Nesse contexto, são fixados na imagem não só
representações miméticas de objetos concretos do mundo, mas também técnicas e estilos
próprios do artista, possibilitados, sobretudo, pelo emprego dos recursos tecnológicos, sejam
os recursos mecânicos embutidos na própria câmera fotográfica sejam os recursos virtuais de
edição fotográfica. Assim, observar uma fotografia é observar o mundo através de um
fragmento subjetivo em que a estética do artista é determinante para a composição do sentido
geral da informação visual.
Em decorrência disso, podemos inferir que a compreensão do tema da fotografia está
diretamente ligada aos interesses e às preocupações estéticas do artista. Os objetos que
122
compõem a cena fotografada foram arquitetados e organizados em um determinado ângulo,
enquadramento e foco de acordo com as necessidades plásticas e estéticas do fotógrafo. Esse
fragmento intencional da realidade capturado em imagem, portanto, constitui uma
teatralização, fruto da subjetividade e da percepção de mundo do artista, que, em Quintais, são
atravessadas pelo olhar ontológico do poeta-fotógrafo frente às coisas do mundo, que são
transportadas para a fotografia. A mensagem fotográfica passa a ser mediada não só pela
disposição dos objetos na cena, mas principalmente pela consciência de que as técnicas
utilizadas – angulação, enquadramento, luminosidade, práticas de edição etc. – influenciam na
maneira como cada observador irá ver, ler e apreender as informações visuais. Nesse sentido,
toda fotografia irá mostrar ao observador uma realidade subordinada ao “filtro cultural” do
fotógrafo à medida que o “talento e o intelecto influirão no produto final desde o momento da
seleção do fragmento até a sua materialização iconográfica” (KOSSOY, 1941, p. 50). Filtro
este que, nas produções tanto fotográficas como poéticas de Quintais, fica evidente através do
seu olhar antropológico, meditativo e contemplativo sobre os objetos e a cena observados, que
influencia seu leitor-observador, em conjunto, a analisar calmamente a condição das coisas.
Essa relação poético-fotográfica também pode ser encontrada por meio da leitura do
poema “Linguagem e recolhimento”. Nele, o sujeito poético foto-grafa um fragmento de um
espaço interno, que possui uma cadeira. Através dessa descrição, ele irá propor a visualização,
através das palavras do poema, de uma cena a ser analisada. A leitura, então, nos coloca frente
a frente com uma encenação do ver que possibilita uma reflexão mais profunda não só acerca
da imagem, mas também da linguagem utilizada para tentar fixar a cena em poesia.
LINGUAGEM E RECOLHIMENTO
A sala tem uma cadeira e a cadeira antecipa a espera. Alguém se sentará aí, esperando a imóvel noite. O seu olhar profundo sob as máscaras que roubará ao rosto, película a película, pele a pele.
Tanta coisa dependerá dessa intransparente notícia da realidade
123
declinada e mortal, dessa mudez da linguagem e recolhimento.
(QUINTAIS, 2017, p. 118)
O primeiro verso do poema contém a apresentação de um cenário onde se encontra a
voz lírica em posição de espectador: “A sala tem uma cadeira” (QUINTAIS, 2017, p. 118).
Trata-se de um ambiente interno, do qual a voz lírica seleciona um fragmento do que se
encontra no seu campo de visão e reflexão: “a cadeira antecipa / a espera” (QUINTAIS, 2017,
p. 118). A partir desse verso, o leitor é guiado a visualizar essa cena descrita de uma cadeira
vazia dentro de uma sala vazia à espera de algo que preencha essa espera e essa ausência. Os
versos seguintes, por sua vez, descrevem essa tentativa de esse espectador completar essa
lacuna espaço-visual com a imaginação. Para isso, vemos a firmação de que “alguém se
sentará aí, / esperando / a imóvel noite” (QUINTAIS, 2017, p. 118), redirecionando o leitor a
pensar sobre uma nova cena: a cadeira, antes vazia, encontrar-se-á, num momento futuro,
ocupada por alguém que esperará e observará uma noite imóvel.
Nessa primeira estrofe, encontramos uma imagem poética que busca discutir o modo
como, inertes, vivenciamos as transformações das coisas, já que os objetos descritos realçam
que tudo vivencia passivamente as mudanças. Interessante notar, ainda, como essa imagem se
desdobra ao leitor, uma vez que a noite pode ser adjetivada como imóvel em função da
monotonia do tempo-espaço em associação à continua vigília daquele personagem que
aguardará e contemplará o seu imóvel movimento. Afinal, durante esse período é comum que
as pessoas se recolham em suas casas para descansar e se preparar para o próximo dia. Tem-
se, desse modo, uma imobilidade temporal perceptível durante a noite. Essa passividade é
transposta para os objetos que compõem a cena futura evocada pelo sujeito poético, uma vez
que a cadeira espera passivamente ser ocupada; aquele que irá se sentar nela observará,
também passivamente, a passagem da noite, que em algum momento futuro se transformará
em dia. “O seu olhar será profundo” (QUINTAIS, 2017, p. 118) como quem observa uma
encenação do tempo e vê, atentamente, as suas máscaras se transformando, “película a
película, / pele a pele” (QUINTAIS, 2017, p. 118).
Surgem, dessa forma, algumas inquietações sobre a nossa percepção das mudanças
inevitáveis das coisas do mundo. Como nós percebemos a transformação das coisas?
Aguardamos passivamente a mudança? Fazemos dela um mecanismo de reflexão crítica?
Vivenciamos cada passar das horas que transforma a noite em dia? A imagem inicial,
124
portanto, funciona como mecanismo de dupla reflexão crítica em que a imagem promove a
crítica de si mesma e da nossa percepção de mundo. Buscamos, a partir disso, encontrar algo
que responda às inquietações provocadas pela imagem, ainda que numa realidade atravessada
pelo imaginário e pelas sensações.
Na estrofe seguinte, ainda, a imagem gerada pela composição lírica transfigura-se
numa reflexão acerca das [im]possibilidades. Cadeira, noite e ocupante esperam, do vazio,
algo. As ações escolhidas pelos personagens da imagem e pelo observador determinarão os
acontecimentos e o foco subsequentes na cena visualizada. Por isso, “tanta coisa dependerá /
dessa intransparente / notícia / da realidade / declinada e mortal” (QUINTAIS, 2017, p. 118).
Tudo encenado no poema depende de algo exterior que poderá alterar não somente aquilo que
se vê, mas também aquilo que se percebe sobre o que vê. O poema, nesse sentido, volta-se a si
mesmo para provocar uma meditação sobre a impossibilidade de a linguagem poética dar
conta de suprir essas inquietações. Isso porque caso semelhante ocorre com a linguagem: as
palavras, imóveis em seu sentido e estado dicionário, esperam a ação do autor para
transformarem-se em sentido, imagem e poesia. O poema, com isso, dialoga com a mensagem
passada pelo seu título “Linguagem e recolhimento” uma vez que a práxis poética é posta em
reflexão. Na linguagem poética, tal como todas as coisas do mundo estão subordinadas a
transformações, a língua é submetida a procedimentos linguísticos e estéticos, por parte do
artista, para construção de sentido – e novos sentidos: a linguagem reúne as experiências da
observação na tentativa – por vezes inútil – de representar aquilo que somente se [re]encontra
pela imaginação. Em Quintais, isso é exposto ao leitor através da escrita ecfrástica que cria
imagens poéticas que, como em “Linguagem e recolhimento”, revelam uma realidade oculta à
imagem “dessa mudez / da linguagem e recolhimento” (QUINTAIS, 2017, p. 118). A imagem
foto-grafada no poema, nesse sentido, irá revelar ao leitor traços do “filtro cultural” do poeta-
fotógrafo, como na fotografia E o Outono será sempre a estação, à medida que percebemos
não só a encenação do ver através de uma escrita que dá a ver uma imagem do mundo, mas
também se volta para um estudo antropológico, meditativo e contemplativo da linguagem, do
tempo e do homem.
Já na fotografia E o Outono será sempre a estação, as folhas imóveis, sem vida e
caídas no chão, trazem, também, à tona outras inquietações líricas importantes para práxis
poético-fotográfica de Quintais. Delas, resgatamos traços da melancolia, da morte e da
resistência como parte do “filtro cultural” que é projetado pela escolha do tema, dos objetos,
do ângulo, do enquadramento e das técnicas de edição por Quintais, por meio dos quais,
125
afinal, somos convidados a ver o mundo através dos olhos do poeta-fotógrafo. Ao analisar
atentamente a fotografia em questão, podemos visualizar uma sobreposição espacial que
conjuga a natureza [morta] com o espaço urbano. Em meio às folhas caídas e em
decomposição, percebemos que a natureza, nesse fragmento imagético, permanece e
sobrevive apesar das condições adversas – o clima (o Outono) e o espaço (resquício do espaço
urbano quando notamos a presença ínfima de um pedaço de cimento ou concreto que faz parte
do meio-fio da calçada e da via urbana).
Essa escolha nos mostra que, em meio à cidade, o poeta busca na natureza evidências
dessa violenta passagem do tempo, mas também uma alegoria para a sobrevivência. Isso é,
ainda, ratificado pelo título dado pelo artista à imagem, porque a folhagem caída que se
encontra fotografada é uma das marcas visuais da chegada da temporada do Outono, uma das
quatro estações que sempre anuncia à proximidade do tempo do Inverno, do fim das coisas,
mas também de sua renovação e renascimento após sobreviver esse período intenso. E assim
como os aspectos decadentes das ruínas deixam a ver a ação do tempo, as folhas secas e
caídas são a marca da sua passagem inevitável que se propaga e ainda acometerá todas as
coisas do mundo. Mas o outono será sempre a estação da transição, da transmutação, da
passagem da vida para a imobilidade. E o Outono será sempre igual em suas marcas que
insistem em anunciar a chegada de algo.
Indício semelhante de uma imagem de resistência frente ao tempo aparece no poema
“Futuro". Na primeira estrofe desse poema, a voz poética começa uma descrição exasperada
de uma imagem que parece ser de uma cidade em tensão, um reflexo da vida contemporânea
marcada pela aceleração que delimita a forma como o sujeito percebe, programa e age em
coletividade. Entretanto, na segunda estrofe essa imagem transforma-se numa outra forma de
perceber e sentir a passagem do tempo que anunciará algo. Será algo que chega? Será algo
permanece? Será algo que resiste? Dentre essas antecipações poéticas, notaremos como o
sujeito lírico de Quintais, nesse poema, compõe uma foto-grafia crítica da própria natureza do
tempo:
FUTURO
Uma cidade de volumes enlouquecidos pela exasperação das imagens que gravitam já na matéria do ar.
126
Dureza de antecipações com que o canto mais motivado pela sombra declinará o meu medo desse futuro onde caminharem só.
(QUINTAIS. 2017 p. 161)
O que se nota a partir de uma primeira leitura desse poema, mais uma vez, é o modo
como o poeta Luís Quintais utiliza o recurso estético da foto-grafia para compor a descrição
de uma determinada cena vista pelo eu lírico. Dessa cena fotografada, o que ele vê é,
aparentemente, é o enquadramento escolhido de “uma cidade de volumes” (QUINTAIS. 2017
p. 161). Mas esse mesmo recorte da aparente paisagem urbana o leva a perceber um
movimento intrínseco ao ambiente que se olha, porque os volumes que compõem essa cidade
encontram-se “enlouquecidos pela exasperação / das imagens que gravitam já / na matéria do
ar” (QUINTAIS. 2017 p. 161). O olhar atento desse sujeito poético, então, parece (semelhante
ao movimento enlouquecido dessas imagens que gravitam no ar, desfoca) deixar a descrição
mimética do espaço, dando margem à percepção do movimento enlouquecido da cidade. A
descrição subjetiva desse fragmento imagético de um possível espaço urbano contribui para a
configuração de um ambiente pautado pela melancolia e solidão frente à multidão.
Tudo ao seu redor é movimento, é excesso, é rapidez. Todas as coisas estão
subordinadas à percepção de uma passagem do tempo cada vez mais veloz, devido,
principalmente, à sobreposição de ações simultâneas em excesso, o que se coloca como um
desafio à desaceleração do homem, já que no espaço urbano contemporâneo a aceleração
contínua do ritmo da vida não permite que haja espaço para a calma, para a pausa e para a
tranquilidade. Desse modo, contemplar o espaço urbano em seu estado de tensão e movimento
instiga, paradoxalmente, esse sujeito à desaceleração frente ao mundo – como se, para
compreender o ambiente à sua volta, o sujeito poético fosse levado a uma viagem interior de
redescobrimento de si e de suas memórias. Desacelerar e contemplar são verbos que, ligados à
situação descrita, tornam-se necessários, no entanto, impraticáveis devido à constante
velocidade, à rapidez e à instantaneidade às quais a vida e o contato humano são submetidos.
Por isso, a arte contemporânea, sobretudo, a arte poética e fotográfica de Quintais, deixa-se
levar pelas diferentes experiências cotidianas de um mundo frágil, pela vivência de momentos
efêmeros, de sensações de solidão de cada um apesar de estarem em constante contato com o
outro. É neste cenário de tensão descrito no poema que o eu lírico formula uma hipótese
acerca do futuro, propondo, ao final uma reflexão mais profunda e complexa sobre a nossa
127
percepção do que é desconhecido e ainda está por vir. Isso porque, como anuncia o título,
“Futuro”, por meio desse poema, o eu lírico voltar-se-á também para uma reflexão sobre esse
tempo que se aguarda.
Chegamos, então, à última estrofe do poema, o desabrochar de uma reflexão sobre a
natureza do tempo que teve sua origem no processo contemplativo de uma imagem descrita
na primeira estrofe. “Dureza de antecipações / com que o canto mais motivado / pela sombra
declinará o meu medo / desse futuro / onde caminharem só” (QUINTAIS. 2017 p. 161). Com
esses versos, o sujeito poético volta-se à cena inicial das matérias que gravitam no ar dessa
cidade revelando que, do enquadramento escolhido, ele recebe estímulos subjetivos que o
fazem parar e reparar nos pequenos pontos de fricção desses volumes onde ficam evidentes
indícios do movimento do homem e do tempo. Essa imagem poética é uma tentativa de reter a
dureza das antecipações do que ainda está por vir. Mas para além disso, ela também revela
que apesar do medo antecipado desse futuro, há um “canto mais motivado pela sombra”
(QUINTAIS. 2017 p. 161) que será capaz de auxiliar esse sujeito a resistir e superar o seu
fado de caminhar sozinho no futuro. Isso porque o sujeito poético, através da observação,
encontra – ou reencontra – a possibilidade de uma nova perspectiva sobre o seu próprio
futuro. Mas é através da linguagem poética que ele consegue transmitir a opacidade da cena
enlouquecida “pela exasperação / das imagens que gravitam já / na matéria do ar”
(QUINTAIS. 2017 p. 161). Imagem e linguagem, nesse poema, fundem-se à medida que os
versos do poema passam a tentar descrever algo.
Outro ensaio fotográfico muito interessante de Quintais sobre ruínas e fim é Staircase.
A palavra de língua inglesa staircase, título do ensaio, significa escadaria e está relacionada
diretamente às 24 fotografias que compõem a obra. Nelas, o poeta-fotógrafo seleciona 24
fragmentos e ângulos diferentes de uma velha escada de um antigo armazém de
eletrodomésticos. Com essas fotografias, o poeta-fotógrafo nos coloca diante de ângulos da
estrutura física de uma escada que se encontra abandonada perto de um antigo armazém e de
uma estrada. Desse objeto comum o artista busca enfatizar e focalizar seus aspectos ruinosos
que se encontram no mesmo plano que uma natureza viva que cresce ao redor das ruínas da
escadaria em degradação, uma paisagem com valor poético. Acerca do valor poético do
espaço, Bachelard, em A poética do espaço (1993), promove uma reflexão poética sobre a
realidade e a percepção dela através da relação entre o indivíduo e os espaços físicos das
edificações arquitetônicas, em especial pela figura da casa. Por meio da leitura dessa obra,
vemos como o ensaísta desenvolve uma teoria psicoemocional sobre os homens e as formas
128
de afeto e sensibilidade estabelecidas entre eles e o espaço que os cerca. Para isso, Bachelard
debruça-se, primeiramente, sobre as imagens poéticas, apontando que estas são subordinadas
a uma transubjetividade porque são capazes de tocar o leitor-observador profundamente em
diversas consciências. Em suas palavras: “Só a fenomenologia — isto é, a consideração do
início da imagem numa consciência individual — pode ajudar-nos a reconstituir a
subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da
imagem” (BACHELARD, 1993, p. 3, grifos do original).
A fenomenologia, por isso, é compreendida como uma ferramenta que impulsiona a
percepção transubjetiva das imagens arquitetônicas apresentadas na literatura, pelas quais
pode-se chegar a uma “fenomenologia da imaginação”. Seguindo essa análise, um “espaço
feliz” são todos os pequenos espaços íntimos aos indivíduos, ou seja, aqueles em que o
homem faz sua morada e vivencia suas experiências individuais e familiares. Desse modo, “o
espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e
à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com
todas as parcialidades da imaginação” (BACHELARD, 1993, p. 19). As interações
estabelecidas dentro de um espaço vivido num determinado espaço de tempo são
determinantes para que o homem crie um vínculo afetivo com esse espaço vivido, vínculo este
atravessado por uma relação afetiva de ninho. Nesse sentido, como observa Bachelard, o
tempo também é um dos elementos que atravessam a relação e a percepção do homem e do
espaço vivido porque o espaço é capaz de reter marcas do tempo:
Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens
em seu papel dominante. Por vezes acreditamos conhecer-nos o tempo, ao
passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da
estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio
passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer “suspender” o voo do
tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a
função do espaço [...]. Aqui o espaço é tudo, pois o tempo já não anima a
memória. A memória – coisa estranha! – não registra a duração concreta, a
duração no sentido bergsoniano. Não podemos reviver as durações abolidas.
Só podemos pensá-las, pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de
qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos
fósseis de duração concretizados por longas permanências. (BACHELARD,
1993, p. 28-29)
Em sua poética do espaço, portanto, no espaço fixado pelas imagens poéticas são
constantemente percebidas marcas do tempo. Isso porque a noção linear da passagem de
tempo é percebida visualmente através de pequenas marcas que esse movimento temporal
129
deixa no ambiente e na paisagem. Esse mesmo movimento linear do tempo não permite que
haja o retorno ao passado, somente podemos acessá-lo por meio de nossas memórias afetivas.
Para que uma imagem poética do espaço possa, então, pungir seu leitor-observador é
necessário que haja elementos visuais que promovam um movimento introspectivo de
reflexão transubjetiva da imagem. Por isso, ao grafar uma imagem do espaço, o artista põe
em evidência essas marcas do tempo no espaço, ou seja, os indícios materiais que fixam no
espaço vestígios visíveis da ação do tempo sobre as coisas do mundo. Ao perceber essas
marcas do tempo deixadas no espaço, o leitor-observador é levado a um movimento interno
de resgate de memórias individuais e coletivas adquiridas no espaço vivido. Ao fotografar a
arquitetura em ruínas, nesse sentido, Quintais aproxima sua produção fotográfica das imagens
poéticas do espaço. Nas fotografias que compõem o ensaio Staircase de Quintais, por
exemplo, a escadaria em estado de degradação tem valor antropológico. Ela carrega
fenomenologicamente marcas da passagem do tempo deixadas pelo desgaste da estrutura
arquitetônica da escada do antigo armazém de eletrodomésticos e pela presença da natureza –
viva – que se alimenta, se desenvolve e cresce em meio a sua ruína. Nessas imagens poéticas,
como veremos adiante, foram fixados um passado, um presente e um futuro, projetados pela
escolha do tema, do enquadramento e dos objetos que compõem a cena fotografada. Observar
atentamente as imagens desse ensaio é, também, refletir sobre o mundo e seus restos, é
compreender a forma como o espaço fotografado conversa com o observador, convidando-o a
perceber que “como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário” (BENJAMIN,
1984, p. 200). Ao observar atentamente essas imagens, somos interpelados por elas, que nos
convidam a viajar internamente em nossa memória e a resgatar nossas experiências
transubjetivas através das marcas deixadas pela passagem do tempo no espaço e impressas
pelo artista.
Vejamos algumas dessas fotografias. Destaco, primeiramente a fotografia que abre o
ensaio fotográfico Staircase. Trata-se da fotografia, abaixo – Figura 16 –, em que podemos
observar, no centro da imagem, uma placa fixada em uma estrutura possivelmente de metal
com as seguintes informações: “ARMAZÉM DE ELECTRODOMÉSTIDOS”, “PONTE DE
EIRAS” e “ADEMIA”. Para além do texto verbal, vemos também um fragmento metálico em
que a placa se encontra pregada e algumas marcas de desgaste e de decomposição. É
interessante perceber que, diferentemente das outras 23 fotografias de Staircase, a primeira
imagem do ensaio não tem como tema a escada.
130
Figura 16 – Staircase41
Fonte: Luís Quintais (2008)
O que vemos, então, é apenas um pequeno fragmento da paisagem observada pelo
poeta-fotógrafo, da qual o artista escolheu pôr em foco a placa quebrada que nomeia o espaço
em que ele se encontra. Ponte de Eiras fica em Portugal, mas especificamente na cidade de
Coimbra, que curiosamente é a cidade em que Quintais vive e trabalha, como professor de
Antropologia na Universidade de Coimbra. Trata-se, portanto, de um espaço urbano
reconhecido e comum ao artista. No entanto, dentre todos os cenários de influência histórica e
turística que compõem a paisagem da cidade portuguesa, como a arquitetura da Universidade
de Coimbra, a Biblioteca Joanina ou as ruínas de Conímbriga, por exemplo, o filtro cultural
do olhar fotográfico de Quintais seleciona um cenário banal que muitas vezes poderia passar
despercebido por olhares desatentos no movimento natural da vida. Nesse sentido, a imagem
capturada pelas lentes das câmeras do artista focaliza um delimitado objeto temático como
“horizonte interno” da paisagem, excluindo outros elementos que compõem o “horizonte
externo” dessa mesma paisagem.
Como observa Collot (2012), a percepção visual de uma paisagem é delimitada por
dois fatores básicos: 1) o indivíduo e 2) a condição de relevo da paisagem. Com base nisso, o
ensaísta define duas formas de manifestação visual da paisagem: o “horizonte externo” de
uma paisagem, que seria uma circunscrição espacial da paisagem em uma linha até um
determinado ponto em que nada mais se torna visível, ou seja, é todo um determinado
41 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,
disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/
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enquadramento de uma paisagem que qualquer olhar consegue observar até que não se
consiga ver geograficamente mais nada. E o “horizonte interno” da paisagem, que
corresponde a um campo espaço-visual delimitado do “horizonte externo” da paisagem por
um ponto de vista individual, sendo, então, um fragmento determinado pelo campo de visão e
observação subjetivo do espectador no espaço. Ocorre ainda, na fotografia inicial de
Staircase, que as lentes da câmera se tonam uma possível terceira manifestação da paisagem
uma vez que, do “horizonte interno” percebido pelo fotógrafo, a câmera fotográfica promove
outro recorte delimitado pelas capacitações técnicas do aparelho.
Nesse terceiro recorte visual da paisagem há, ademais, a presença de fragmentos de
objetos em estado de ruinoso. O poeta-fotógrafo recorta – do que poderia ser o muro de um
antigo armazém de electrodomésticos em Pontes de Eiras, Coimbra – o objeto que nomeia o
espaço, possibilitando ao observador da imagem o resgate e o preenchimento das lacunas do
espaço que esse recorte fotográfico promoveu. Com isso, “diante de uma foto, a consciência
não toma necessariamente a via nostálgica da lembrança (quantas fotografias estão fora do
tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente no mundo, a via da certeza: a
essência da Fotografia consiste em ratificar o que ela representa” (BARTHES, 2015, p.72).
Em Staircase a fotografia inicial, por isso, não procura necessariamente gerar um movimento
subjetivo e memorialístico no observador, mas ratificar a sua presença ao passo que recorta e
nomeia o recorte da paisagem obtido pela imagem técnica. Ao ratificar a sua presença, no
entanto, o observador é guiado a uma reflexão mais oculta devido à presença de marcas de
danificação e decomposição no objeto fotografado. Perceber essas marcas de um estado de
desgaste na paisagem faz que o tema fotográfico se abra e se desdobre, revelando, então, uma
face oculta desse objeto.
Para Collot, “todo objeto percebido no espaço comporta uma face oculta, que, se
escapa ao olhar, não deixa de ser levada em conta pela inteligência perceptiva para determinar
o sentido próprio do objeto” (COLLOT, 2012, p.15). Isso quer dizer que, no processo de olhar
e compreender cognitivamente o objeto presente no espaço, primeiramente, nosso corpo
estabelece uma relação de familiaridade com esse objeto. Isso acontece durante o processo
biológico de visão humana, pelo qual o sistema óptico humano fotografa uma imagem da
realidade através da recepção dos raios luminosos, enquanto o nosso sistema nervoso
intercepta e carrega essa informação visual e luminosa para ser decodificada em nosso cérebro
a partir de concepções individuais e coletivas adquiridas ao longo de nossa formação humana.
Em função disso, “se eu me atenho à parte desta mesa que se oferece neste instante ao meu
132
olhar, perceberei um pedaço de madeira, uma prancha. É na medida em que eu relaciono esse
aspecto do objeto a seu “outro lado”, no momento oculto para mim, que o identifico como
“mesa”.” (COLLOT, 2012, p.15) Essa percepção visual, no entanto, também estará
subordinada e atravessada pelo vazio, este que, por sua vez, faz que sujeito procure, através
das reações sensoriais estimuladas pela paisagem em cena, preencher pela percepção aquilo
que falta à imagem. Como destaca Collot:
Do mesmo modo o “pedaço” / de região que dá a ver a paisagem não é
jamais considerado como absolutamente isolado; eu o percebo precisamente
como “parte” de uma região mais vasta que me compete descobrir, viajando,
ou recolhendo o testemunho de outros/ outras pessoas. Isso porque as falhas
no visível são também o que articula o campo visual do sujeito com o de
outros sujeitos: o que é invisível para mim em determinado instante é o que
um outro, no mesmo momento, pode ver. A estrutura do horizonte da
paisagem revela que ele não é uma pura criação de meu espírito, pertence
tanto aos outros quanto a mim, é o lugar de uma conivência. Ela lhe dá a
espessura do real e o religa ao conjunto do mundo. Enfim, essa limitação do
espaço visível contribui para assegurar a unidade da paisagem. Justamente
porque não se dá a ver por completo, a paisagem se constitui como
totalidade coerente; ela forma um “todo” apreensível “de um só golpe de
vista”, porque é fragmentária. (COLLOT, 2012, p.15)
O “pedaço da região” que a fotografia Staircase dá a ver somente é percebido como
uma parte de um antigo armazém de electrodomésticos em Pontes de Eiras, Coimbra, porque
essa imagem carrega em si testemunhos visuais que ratificam essa percepção. Mas, para além
da observação espacial, há na imagem elementos que evocam sensações como a melancolia.
Isso ocorre, principalmente, porque o azulejo quebrado da placa mostra ao observador que
esse objeto já não passa por manutenção humana há algum tempo. Além disso, há a presença
de musgo, uma natureza que se deposita, cresce e se alimenta dos detritos fixados no muro de
metal com o passar do tempo. O espaço da paisagem é apresentado ao observador, conquanto,
como um fotograma lírico no qual podemos observar temas comuns à prática literária de
Quintais. E o enquadramento da paisagem obtido pelo olhar antropológico de Quintais,
portanto, aproxima-se não só de uma manifestação estética, mas também de uma
manifestação lírica. Como propõe Collot, perceber a paisagem é, semelhante ao que analisa
Bachelard (1993), compreender que entre o indivíduo e o espaço há relações sensoriais que
direcionam a forma como este indivíduo vê, sente, experimenta e interpreta
transubjetivamente o espaço poético:
133
E por não ser a visão da paisagem apenas estética, mas também lírica, é que
o homem investe, em sua relação com o espaço, nas grandes direções
significativas de sua existência. A busca ou a escolha de paisagens
privilegiadas são uma forma de procurar o eu. Toda preferência sensível
remete a escolhas de existência, como o demonstram, entre outros estudos, a
psicanálise existencial de Sartre e o inventário de formas e matérias
realizado por Bachelard. A noção de paisagem também pode ser utilizada
pela crítica temática para designar o conjunto de escolhas sensoriais, capazes
de revelar fortes atitudes existenciais de um autor, “as coordenadas pessoais
de uma estadia”, o “registro pessoal do desejável e do indesejável”.
(COLLOT, 2012, p. 22-23)
É por isso, portanto, que o ensaio fotográfico Staircase carrega traços de um filtro
cultural – e por que não lírico? – do poeta Luís Quintais. O “horizonte interno” escolhido para
compor a cena fotografada na imagem de abertura do ensaio revela, também, ao observador
elementos líricos que serão observados nas outras fotografias que compõem Staircase. Tais
elementos, que tomam forma através das ruínas e das marcas do tempo deixadas sobre objetos
na paisagem, incentivam o observador a experimentar a imagem do espaço a partir do recorte
crítico dessa paisagem proposto pelo olhar meditativo do poeta-fotógrafo. Este que observa,
analisa, seleciona e fragmenta um horizonte interno tomando como tema fotográfico um
determinado objeto do espaço cuja função é transmitir ao observador um conjunto de escolhas
estéticas e sensoriais inerentes a sua prática poética, como “coordenadas pessoais de uma
estadia” ou “registro pessoal do desejável e do indesejável” (COLLOT, 2012, p. 23). Por isso,
como veremos na próxima fotografia desse ensaio, os ângulos e os enquadramentos da
escadaria – outros “horizontes internos” recortados pela câmera fotográfica de Quintais – são
indícios de uma lírica que dá a ver o mundo sob um viés meditativo e antropológico das
ruínas da paisagem. Tal como pelas palavras de seu poema, o poeta, nessa fotografia, fixa
imagens do espaço que convidam o leitor-observador a transitar por essa escada em ruínas, a
descobrir nela uma realidade oculta e transportar essa autorreflexão para a forma como
experimenta e observa, também, a natureza das coisas no mundo.
Esse modo ontológico de ver, sentir, pensar, escrever e foto-grafar poeticamente o
mundo pode ser visualizado no poema “A casa”. Nele, semelhante às fotografias de About
buildings e Staircase, o olhar crítico de Quintais seleciona da paisagem urbana uma
edificação humana para discutir não apenas sobre a nossa percepção do espaço, mas também
sobre os desafios à linguagem poética na tentativa de representar aquilo que se vê. Esse é um
dos aspectos comuns à sua produção lírica, sobre a qual, em resposta a uma das perguntas da
entrevista à Deyse dos Santos Moreira para a revista Abril – NEPA/UFF (2012), o poeta
134
Quintais discorre. A pesquisadora procura exatamente compreender a dimensão do recurso da
descrição na construção de imagens em seus poemas associado à temática da ausência. Em
sua concepção, os versos do poeta conseguem desfazer uma possível contradição entre a
tentativa de descrever algo e a presença de vazios, porque “os traços do descrever, que
deveriam situar-nos nos espaços do poema, ao invés de reforçar os contornos, dissipam
quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para instigar a imaginação”
(MOREIRA, 2012, p. 207). A partir dessa reflexão da pesquisadora, o poeta aponta que sua
obra é desenvolvida a partir de uma “dimensão desconstrutiva e destrutiva”, e que seus textos,
através da percepção visual, tendem à discussão sobre a linguagem e sua “incapacidade de
dizer o mundo”. Segue sua resposta:
Talvez em um certo sentido, porque aquilo que escrevo tem uma dimensão
desconstrutiva, destrutiva, como se procuras se justamente mostrar esse
avesso. Eu gosto de uma definição do que é desconstrução que é dada por
um filósofo e antropólogo francês chamado Bruno Latour, que diz que a
desconstrução é uma forma de destruição em câmera lenta. Aquilo que eu
escrevo tem muito a ver com uma reflexão sobre o papel e a natureza da
linguagem e sobre a opacidade da linguagem, sobre a impossibilidade de ela
em dizer o mundo e, nesse sentido, justamente, a impossibilidade de
preencher o vazio, a ausência. A ideia de que o sentido é contingente,
instável, algo que nós tentamos agarrar, sabendo que não podemos de todo
agarrar, essa é sem dúvida uma das ideias que move o poema. A ideia de que
o poema serve para preencher de alguma forma a ausência, o vazio, sendo,
porém um trabalho sobre a linguagem que nunca está fechado, que existe em
processo. Nesse sentido, aquilo que escrevo é muito reflexivo. A
reflexividade é uma das modalidades mais sublinhadas ao longo do meu
percurso. Trata-se da poesia enquanto música do pensamento. Como um
registo que poderia ser definido como uma meditação lírica[...].42
(QUINTAIS, 2012, p. 207)
Essa é a meditação lírica sobre a natureza representativa da linguagem em
performance pela linguagem poética no poema “A casa”. Nesse poema, é possível
acompanhar tanto pela organização sintática dos versos, como pela escolha lexical o caráter
desconstrutivo da linguagem poética para Quintais:
42 Resposta dada à pergunta: O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é
frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse
sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa
contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,
ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para
instigar a imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu
avesso? feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o
que fazer? para a revista Abril.
135
A CASA
A casa não é o mundo.
Reparte a tristeza. E reparte a alma, escuridão necessária.
A casa não é o mundo. Reparte a máquina quebrada, sem alento já. Reparte a tristeza. E reparte a alma, forma das formas.
A casa não é o mundo.
Uma ferida sem primeira causa, sem origem, génese, arqueologia.
A casa não é o mundo.
Inscrevível hominiforma ferida, aleijada palavra.
(QUINTAIS, 2017, p. 71)
Na primeira estrofe desse poema, composta por apenas um verso, a voz poética diz
uma imagem a partir do recurso estilístico da metáfora: “A casa não é o mundo” (QUINTAIS,
2017, p. 71). O verbo de ligação “ser”, no presente do indicativo, declara um estado aparente
do sujeito verbal “casa”. Nessa afirmação, por sua vez, há uma desconstrução da ideia de que
o espaço residencial – onde o homem estabelece sua morada – seria o mundo. É interessante
observar, nessa construção metafórica, que o sujeito verbal expresso pelo vocábulo “casa”
está associado a um predicativo do sujeito expresso pelo vocábulo “mundo”, numa relação de
contrastes, afirmada pelo advérbio de negação “não” que ressignifica a mensagem declarada
pelo verbo. Mas antes de tudo, o que seria a “casa” e o que seria o “mundo”? A casa é um
espaço mais intimista. Ela pertence a um sujeito e à sua família, que coexistem nesse recorte
geográfico da cidade, “porque a casa é nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o
nosso primeiro universo. Um cosmos em toda a acepção do termo” (BACHELARD, 1993, p.
25). Em contrapartida, o mundo é o macrocosmo, onde se encontram todas as coisas,
inclusive essa casa a que se refere a voz poética, esse pequeno recorte particular de um espaço
coletivo dividido no mundo.
Por isso, na segunda estrofe do poema, formada agora por dois versos, vemos um
movimento de escrita poética que fragmenta a tentativa de descrever essa imagem da casa.
Isso porque, o poeta lança mão do recurso estilístico do enjambement em francês, que é
136
separação dos termos sintáticos da oração em diferentes versos do texto poético,
diferentemente do que se espera o falante e a gramática com a ordem direta dos elementos
sintáticos. No primeiro verso, ele diz: “Reparte a tristeza. E reparte” (QUINTAIS, 2017, p.
71), terminando esse verso com uma oração incompleta porque o complemento verbal se
encontra no verso seguinte “a alma, escuridão necessária” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Essa
quebra do fluxo sintático está associada, ainda, ao uso da elipse de sujeito presente nos verbos
dessa estrofe, ambos os sujeitos do verbo “repartir”, flexionado na terceira pessoa do singular,
se encontram expressos somente na primeira estrofe – “a casa” – sendo apenas percebido pelo
conhecimento das regras de concordância e coesão. Ambos os mecanismos linguístico-
literários corroboram o tema expresso pela imagem poética da casa, transfigurando essa
experiência visual e reflexiva em experiência linguístico representativa do recorte. Os versos
curtos, as separações sintáticas e o ritmo fragmentado da leitura promovem um movimento ao
texto de recorte semelhante ao que ocorre com a percepção desse espaço particular. E à
linguagem poética cabe a função de tentar reter em palavras, versos e imagens poéticas essas
experiências do vazio.
É o que se vê na estrofe seguinte, em que a voz poética se volta, mais uma vez, à
metáfora apresentada no início do poema, pondo em foco os desafios experimentados nesse
espaço fragmentado. Para isso, ela recorre à anáfora pela repetição do verso “A casa não é o
mundo” (QUINTAIS, 2017, p. 71) na busca por resgatar e fixar essa imagem apresentada
anteriormente. Vemos também o uso do recorte da ordem direta dos termos sintáticos da
oração em versos distintos: “Reparte a máquina quebrada, / sem alento já. / Reparte a tristeza.
E reparte / a alma, forma das formas” (QUINTAIS, 2017, p. 71), que sustenta a hipótese de
que a sujeito poético busca, através da linguagem, deter aspectos e sensações de esvaziamento
adquiridas pela contemplação dos recortes desse espaço. Além disso, os próprios versos desse
sujeito expressam que, do espaço da casa, é percebida também uma face oculta, que escapa ao
olhar e evoca a necessidade de detê-la pela escrita poética para mantê-la constantemente
presente. Isso quer dizer que “o poema serve para preencher de alguma forma a ausência, o
vazio, sendo, porém um trabalho sobre a linguagem que nunca está fechado, que existe em
processo” (QUINTAIS, 2012, p. 207).43 Assim, a casa “reparte a máquina quebrada, / sem
43 Resposta dada à pergunta: “O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é
frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse
sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa
contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,
ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para instigar a
imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu avesso?”
137
alento já” (QUINTAIS, 2017, p. 71), ela [a casa] também “reparte a tristeza. E reparte / a
alma, forma das formas” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Ela [a casa] não é o mundo, ela:
[...] é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as
lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação
é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos
diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes
excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta as
contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem
seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu
e das tempestades da vida. É corpo e é alma. E o primeiro mundo do ser
humano. Antes de ser “jogado no mundo”, como o professam as metafísicas
apressadas, o home é colocado no berço da casa. E sempre, nos devaneios,
ela é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado
esse fato, esse simples dato, na medida em que ele é um valor, um grande
valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. O ser é imediatamente um
valor. A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço
da casa. (BACHELARD, 1993, p. 26).
Esse aspecto arqueológico e afetivo sobre a percepção do espaço da casa pelo sujeito
observador, a que se refere Bachelard, está expresso também nos versos de Quintais, já que o
sujeito poético ao meditar sobre a casa diz que ela [a casa] é “uma ferida sem primeira causa, /
sem origem, génese, arqueologia” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Nesses versos, é possível
visualizar o que Bachelard chama de devaneio. Isso porque, através da observação desse
espaço, o sujeito poético é conduzido a integrar e coordenar seus pensamentos, sensações,
lembranças e reflexões. É nesse devaneio que o sujeito poético reencontra o seu passado, o
seu presente e o seu futuro nesse espaço familiar da casa. É, também, pelo devaneio que esse
sujeito poético é estimulado a reencontrar feridas atemporais. E nesse estado de devaneio, no
poema, o sujeito poético repete, mais uma vez a afirmação: “A casa não é o mundo”
(QUINTAIS, 2017, p. 71), exatamente porque ela [a casa] é o seu berço particular do mundo.
Ela é um recorte individual desse mundo atravessado por experiências antropológicas
impressas pelas vivências pelo sujeito ao longo do tempo e de sua morada. E pela linguagem,
talvez, esse sujeito pode ser capaz de traduzir e reter essa experiência em imagem poética,
uma “inscrevível hominiforma / ferida, aleijada palavra” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Sendo
assim, o poema “A casa” retrata alguns aspectos comuns tanto à sua produção poética tanto à
sua produção fotográfica em relação à performance de uma poética do espaço. Nos versos
desse poema, vimos como a imagem da casa, uma edificação humana, é posta em exposição
feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o que
fazer? para a revista Abril.
138
em busca de algo que escapa a simples observação desse espaço. Em função disso, a
linguagem poética surge como um recurso lírico pelo qual o sujeito poderia acessar e
preencher mais dinamicamente essa ausência.
Voltemos às fotografias. Tal como pelas palavras em seus poemas, o poeta-fotógrafo
retém um fragmento visual do espaço urbano, que convida o leitor-observador a transitar por
espaço, a descobrir uma realidade oculta à imagem do espaço urbano e dar início ao devaneio:
Figura 17 – Staircase44
Fonte: Luís Quintais (2008)
Antes de tudo, essa fotografia – como a maioria das que compõem Staircase – tem
como tema fotográfico uma escadaria. As escadarias são objetos arquitetônicos que carregam
uma importância não só estrutural como também simbólica. Como destaca Silva & Calado
(2005), as escadarias promovem a ligação e a comunicação de níveis e planos diferentes de
uma construção arquitetônica. Seguindo esse princípio, a arquitetura compreende como andar
um nível da planta que é projetado acima ou abaixo do piso de um edifício, ou seja, acima ou
abaixo do rés do chão. O rés do chão, por sua vez, é que se compreende como pavimento, o
plano de piso de uma obra cuja função é sustentar a estrutura do edifício. Se entendemos,
então, que todas as edificações seguem como primeiro nível o rés do chão, a função objetiva
de uma escadaria, de fato, torna-se possibilitar a ligação e a comunicação entre os planos
distintos de uma construção, viabilizando, com isso, a movimentação humana nesse espaço.
44 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,
disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/
139
Ao passar por uma escadaria, o sujeito torna-se capaz de transitar entre os espaços físicos de
uma edificação com mais de um andar, seja ele subterrâneo, como os porões, seja ele acima
do rés do chão.
Essa mesma possibilidade de movimentação – ascendente ou descendente – confere às
escadarias uma noção simbólica (e por que não poética?). A partir dos séculos XV e XVI na
época dos castelos, por exemplo, a inserção de escadarias no espaço interior das edificações
para a ligação de seus níveis estava intimamente associada à afirmação de uma posição social.
Durante esse período, era comum que o indivíduo que possuísse moradas compostas por
grandes escadarias que ligavam o hall de entrada aos andares superiores, como os salões
nobres, demostrassem através desse objeto arquitetônico sua posição social de prestigio dentre
os demais integrantes da sociedade. Ter uma grandiosa e belíssima escada foi, durante muito
tempo, um símbolo de ascensão social. Sendo, inclusive, esse direcionamento ascendente das
escadas associado à fenomenologia do espaço por Bachelard, ao perceber que o sujeito reage
transubjetivamente à observação dos espaços com os quais há alguma relação de
familiaridade, como a casa que é o berço desse sujeito no mundo, onde pode haver a presença
de escadas que ligam os andares. Esse movimento, por sua vez, somado às experiências
vividas e adquiridas nesses espaços, faz que o objeto escada traga de volta ao observador
memórias e histórias:
A escada que vai até o porão, descemo-la sempre. É a sua descida que
fixamos em nossas lembranças, é a descida que caracteriza o seu onirismo. A
escada que sobe ao quarto, nós a subimos ou a descemos. É uma via mais
banal. É familiar. O menino de doze anos faz escalas de subida, ensaiando
lances de três e de quatro degraus, tentando lances de cinco, mas gostando
mais de subir de quatro em quatro. Subir uma escada de quatro degraus, que
felicidade para os músculos! Enfim, a escada do sótão mais abrupta, mais gasta, nós a subimos sempre.
Há o sinal de subida para a mais tranquila. Quando volto a sonhar nos sótãos
de outrora, não desço mais. (BACHELARD, 1993, p. 46)
O olhar antropológico de Quintais, no entanto, põe em foco na fotografia Staircase
esse mesmo objeto de movimentação, a escada, porém, agora, vemos uma escada que se
encontra em estado de desuso, desinteresse e desprezo. A degradação da escada na Figura 17
se choca com a fenomenologia da escada da casa, usada para alcançar andares diferentes seja
pelo movimento de ascender, seja pelo movimento de descender, apontada por Bachelard.
Isso acontece já que essa escada fotografada por Quintais se encontra em estado de
140
decadência, abandono e inutilidade, portanto, sua função de auxiliar um sujeito a chegar a
espaços não pode mais ser executada. Na Figura 17 – o que vemos, desse modo, é a
desconstrução desse antigo símbolo de poder e status socioeconômico das casas ricas e dos
palácios, esse objeto familiar e fenomenológico, descrito por Bachelard, porque o que se vê,
agora, é uma escada de metal, um mobiliário urbano, uma espécie de passarela em ruínas.
Através do seu estado de abandono e decomposição, essa fotografia dá ênfase exatamente a
essa noção de perda, vazio e ausência, uma vez que o desgaste também revela a sua não
serventia, a sua inutilidade para o homem.
O objeto selecionado do espaço que compõe o horizonte interno do poeta-fotógrafo, à
vista disso, em vez de chamar atenção pela sua grandiosidade e beleza, interessa em
decorrência da coexistência harmônica de elementos contrastantes. Vemos, no foco da
fotografia, uma antiga escadaria de metal deixada perto de uma via urbana – provavelmente
próxima ao antigo armazém de electrodomésticos em Ponte de Eiras, Coimbra. Em segundo
plano, percebemos também a presença de pedaços quebrados dessa escadaria amontoados e
sobrepostos irregularmente. Com o olhar mais atento e analítico, notamos que há ainda
pequenas marcas deixadas sobre os escombros da escadaria, há pequenos pedaços do
esqueleto da escada sem lascas de tinta, marcas de ferrugem em suas extremidades e os seus
degraus estão desgastados. Além disso, observamos a presença da grama que cresceu entre os
escombros da escadaria e sobrevive por entre a [des]construção humana. Esse objeto
decadente, portanto, chama o olhar do observador a uma experiência reflexiva sobre o
abandono, a perda de função ou utilidade, a ausência do humano nele, mas também sobre o
que sobrevive apesar disso.
No tema fotográfico, o Spectator, dessa forma, percebe a morte pelo esqueleto
abandonado da escada, mas também a vida pela natureza que cria morada em suas ruínas.
Somos convidados, também, a pensar sobre as concepções de poder porque ao invés de buscar
por uma escada clássica na arquitetura, na literatura e nas artes plásticas, que eram símbolo de
um lugar aurático, agora é visto na paisagem fotografada pelo poeta-fotógrafo um objeto em
detritos. Do passado ao presente, da serventia à inutilidade, do uso ao abandono, da morte à
vida, a fotografia de Quintais realça que todas as coisas no mundo vão terminar, mas que
desse mesmo fim haverá algo que sobrevive desses destroços. E o poeta-fotógrafo seleciona
intencionalmente esses objetos fotográficos porque através da observação deles somos
capazes de – tal como pelas suas imagens foto-grafadas pela linguagem poética – transpor a
imagem em análise crítica da natureza das coisas, das relações e das interações no mundo. O
141
fotograma lírico de Quintais, por isso, funciona como uma espécie de escadaria que liga o
observador a sensações transubjetivas e, e a imagem fotografada convida o leitor, como pelas
palavras dos poemas, a alcançar esse algo. Como descreve Bachelard:
As palavras — eu o imagino frequentemente — são pequenas casas com
porão e sótão. O sentido comum reside no nível do solo, sempre perto do
"comércio exterior", no mesmo nível de outrem, este alguém que passa e que
nunca é um sonhador. Subir a escada na casa da palavra é, de degrau em
degrau, abstrair. Descer ao porão é sonhar, é perder-se nos distantes
corredores de uma etimologia incerta, é procurar nas palavras tesouros
inatingíveis. Subir e descer, nas próprias palavras, é a vida do poeta. Subir
muito alto, descer muito baixo; é permitido ao poeta unir o terrestre ao aéreo.
Só o filósofo será condenado por seus semelhantes a viver sempre no rés-do-
chão? (BACHELARD, 1993, p. 155)
As palavras do poeta, nesse sentido, permitem ao leitor alcançar algo que escapa
através da leitura do poema. Semelhante à escada, elas [as palavras do poema] têm a função
de auxiliá-lo a movimentar-se pelas imagens poéticas e seguir a reflexão propostas pela voz
lírica. Elas também funcionam como uma tentativa de abstrair e representar as experiências
transobjetivas do observador do espaço urbano presente em versos. De modo análogo, ocorre
com a câmera fotográfica. Em Staircase, apesar de a escada estar abandonada e sem vida útil
num espaço familiar, ela também funciona poeticamente como um mecanismo de reflexão. A
proposta de Quintais, ao fotografar objetos e edificações humanas em estado decadência no
espaço urbano, é também movimentar o leitor-observador, como pelas palavras do poema,
por esses objetos ora sem finalidade, ora abandonados, ora em estado de ruínas em busca de
uma análise poético-visual e ontologia evocada pelo seu horizonte interno impresso nas cenas
capturas. A fotografia, então, acaba por jogar com os limites representativos da linguagem, e a
escada, que se encontra em primeiro plano na imagem, dá a ver não só o objeto, mas também
uma realidade oculta a ele.
Essa dialética da imagem pode ser identificada no poema “Subo as escadas, terceiro
andar”, no qual o poeta resgata a imagem de uma escada, que se transforma visual e
sensivelmente à medida que o sujeito poético a observa e a descreve ao mesmo tempo em que
compõe os versos. Nesse visualizar, ainda, a potência fenomenológica da imagem poética,
porque “pelos poemas, talvez mais que pelas lembranças, chegamos ao fundo poético do
espaço das casas” (BACHELARD, 1993, p. 26):
SUBO AS ESCADAS, TERCEIRO ANDAR
142
Subo as escadas, terceiro andar. Assemelham-se a teclados os lances de degraus.
Pianos pretos, de causas mortais. São mortais os pianos. Consentem o luto e a espera, o silêncio, o oco, a espera.
(QUINTAIS, 2017, p. 117)
“Subo as escadas, terceiro andar” é um poema relativamente curto, composto por duas
estrofes e sete versos. No entanto, o que se nota com a leitura, na verdade, é a potência com
que os versos se transformam de linguagem em experiência poético-visual. Isso é possível
visto que o sujeito lírico, já no primeiro verso, que dá título ao poema, descreve uma cena em
movimento: “Subo as escadas, terceiro andar” (QUINTAIS, 2017, p. 117). O leitor é
motivado através desse verso a compor em sua imaginação a imagem de um sujeito que sobe
as escadas internas de uma edificação e chega, finalmente, ao terceiro andar dessa edificação.
Além disso, do mesmo modo como esse sujeito se movimenta nessa escada, o poema também
se movimenta, já que, à medida que a voz poética sobe essa escada, os seus degraus e seus
lances transfiguram-se pela sua experiência subjetiva com esse espaço. Sendo assim, a
descrição da imagem poética também se transforma, porque “Assemelham-se a teclados / os
lances de degraus” (QUINTAIS, 2017, p. 117). Através desses versos finais da primeira
estrofe do poema, a voz lírica anuncia a transição imagética que será apresentada ao leitor na
estrofe seguinte. Nesse processo, o leitor passa a modificar em sua imaginação a cena descrita
inicialmente de um sujeito subindo uma escada até o terceiro andar, uma vez que os lances de
degraus dessa escada se tornam teclas de um piano.
Na segunda estrofe de “Subo as escadas, terceiro andar”, encontram-se, então, sujeito
poético e leitor à frente de uma cena integrada por “pianos pretos, de causas mortais”
(QUINTAIS, 2017, p. 117) que substituem os lances de degraus da escada. Essa
transformação descrita pela linguagem poética demostra-se como um mecanismo lírico
encontrado por esse sujeito para deter em imagens poéticas aquilo que sente frente a esse
espaço. A linguagem poética, desse modo, é uma forma de materializar os sonhos, as
memórias e a imaginação, uma imaginação dinâmica que impulsiona o significado dos signos
linguísticos a se movimentarem entre a etimologia e a percepção, entre o real e o imaginário,
entre o que vê e o que se sente. É por isso que os versos seguintes são reflexos das sensações
regatadas por esse sujeito que observa esse espaço: “São mortais os pianos. / Consentem o
143
luto e a espera, / o silêncio, o oco, a espera” (QUINTAIS, 2017, p. 117). A escada, que se
transmuta em piano, é, ainda, um indício da história, da ausência, do luto, do silêncio e da
espera. Ela é o reflexo de que entre o indivíduo e esse espaço há relações sensoriais que
definem como ele experimenta e interpreta a escada desse ambiente partir da sua própria
história.
Nesse contexto, ao grafar a imagem da escada, o poeta-fotógrafo põe em cena uma
tentativa de reter pela linguagem poética. Isso num movimento ascendente ou descendente
que segue pelos versos do poema, como o sujeito poético que sobe – ou desce – as escadas do
terceiro andar à procura de algo que foge à visão, porque “o poema serve para preencher de
alguma forma a ausência, o vazio, sendo, porém um trabalho sobre a linguagem que nunca
está fechado, que existe em processo” (QUINTAIS, 2012, p. 207).45 Tal como nas fotografias,
pelas palavras do poema, o poeta, fixa imagens que convidam o leitor-observador vivenciar
essa movimentação de ascensão e descensão pelos degraus da reflexão poética. Transitar por
essas escadas – ora desprezadas, ora esquecidas, ora reconhecidas – é procurar por marcas do
tempo no espaço, os indícios materiais que fixam vestígios visíveis da história no espaço.
Quintais, nesse sentido, propõe ao seu leitor-observador fotogramas líricos que realçam a
importância da contemplação. Ao mesmo tempo, ele põe em tensão a cena representada a esse
leitor-observador já que a linguagem – seja a poética seja fotográfica – ainda é incapaz de dar
conta da potência de abstração das sensações humanas. Dessa forma, o que vemos na
produção lírica-visual de Quintais é também, um constante esforço humano em agarrar algo
que é instável, porque se encontra em nosso lado mais íntimo e subjetivo, “mesmo sabendo
que não podemos de todo agarrar” (QUINTAIS, 2012, p. 207).46
45 Resposta dada à pergunta: “O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é
frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse
sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa
contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,
ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para instigar a
imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu avesso?”
feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o que
fazer? para a revista Abril. 46 Resposta dada à pergunta: O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é
frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse
sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa
contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,
ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para
instigar a imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu
avesso? feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o
que fazer? para a revista Abril.
144
3.3 Persigo os fragmentos: ao constante encontro da fotografia
Nos momentos anteriores desta dissertação, analisamos como o nosso poeta português
contemporâneo, Luís Quintais, utiliza imagens como técnica e estética para a produção de
textos poéticos. Com a linguagem literária, ele cria ecfrasticamente imagens poéticas que
funcionam como fotografias antropológicas do mundo postas em exibição e análise para seu
público leitor. Esse constante recurso literário de produção de imagens poéticas, como vimos,
promoveu uma crescente aproximação entre a prática literária de Quintais e uma recente
prática fotográfica. Isso devido à percepção da presença de uma teoria do ver que atravessa a
sua estética literária, a qual o estimulou a buscar nas câmeras fotográficas mecanismos de
transpor visualmente esse olhar lírico sobre o mundo. Em suas fotografias, por isso, os
objetos que fazem parte da composição da cena são apresentados ao observador de modo
semelhante ao que ocorre em seus poemas, uma vez que seu olhar lírico promove o recorte e
a fixação de imagens que dão a ver fragmentos alegóricos da vida humana no espaço urbano
contemporâneo. O seu filtro cultural, nesse sentido, destaca os contrastes e os vazios do
mundo, fazendo que o leitor-observador experimente através da visualização de ruínas do
espaço urbano um devaneio poético.
Sendo, então, a fotografia uma extensão do olhar lírico de Quintais, não raro, imagens
fotográficas tornaram-se, também, parte integrante de seus livros de poesia. Primeiramente,
vimos como fotografias ou imagens plásticas foram introduzidas através da linguagem
poética, ou seja, por um recurso de citação ecfrástica que leva o leitor a resgatar
memorialisticamente a composição visual das cenas descritas, como se observasse uma
imagem foto-grafada pela linguagem verbal. Em A noite imóvel (2017), observamos alguns
poemas que foto-grafam imagens. Nesse mesmo livro, nos encontramos, também, com outras
imagens que foram acrescentadas durante a organização e a edição, fazendo parte da
perigrafia da obra, como uma espécie de advertência visual ao leitor sobre os temas – e
consequentemente sobre as imagens poéticas – aos quais ele será apresentado ao longo do
percurso da leitura. Essa aproximação constante, por sua vez, fez que o poeta começasse a
utilizar fotografias como corpo poético de seus textos, por isso, a fotografia vem se tonando,
também, um objeto poético nas obras literárias de Quintais. Em seus mais recentes livros de
ensaios e poesia, por exemplo, é possível passar pelas páginas e observar não só poemas
meditativos criados através da linguagem verbal, mas também poemas construídos a partir de
fotografias ou de sequências fotográficas. Não se trata, no entanto, de um processo de
145
colagem ou de sobreposição de fotografias e texto verbal, mas de uma progressão temática e
estética feita pela associação – e por muitas vezes dissociação – de textos verbais que dão a
ver seguidos – ou acompanhados – de fotografias que intensificam essa experiência
transubjetiva das imagens observadas que faz pensar “a biografia através de indícios,
sombras, ruínas; a mesma vontade de interrogar a fragilidade, a violência, a memória e a
morte” (QUINTAIS, 2019, s/p.).47
Neste tópico, destarte, proponho um breve caminho de leitura de um dos livros em que
Quintais conjuga textos meditativos e fotografias. O livro é Deus é um lugar ameaçado
(2018) pela editora Huggly Books. A editora não é uma empresa convencional, porque se
trata de um projeto editorial singular que busca fazer a organização e a publicação de livros de
fotografia personalizáveis pelo público leitor. Seus livros não são vistos como um objeto
inerte, comprado para ser lido, depois guardado ou exposto em uma prateleira à espera de uma
nova leitura; mas sim como um objeto vivo, passível a interações subjetivas com o leitor, que
sempre deixará também suas marcas subjetivas na obra. Para a Huggly Books, o leitor é
também co-criador de sentidos e, por isso, pode escrever e modificar como quiser a
aparência, a forma e o conteúdo da obra adquirida. A editora, por exemplo, abre ainda a
possibilidade de que os leitores, após a compra do livro, enviem imagens fotográficas das
modificações feitas por eles. Transformações essas que viabilizam a materialização de livros
únicos. Não é à toa, então, que os Huggly Books sejam impressos numa tiragem bem reduzida
e limitada a 100 exemplares, afinal eles criam a possibilidade de se materializarem em 100
outras obras absolutamente distintas, de acordo com a intervenção e intenção de cada um dos
seus leitores co-criadores, que também escrevem, desenham, pintam ou fazem até colagens
em suas páginas. Huggly Books, portanto, é um projeto editorial artístico que compreende o
livro como um espaço de desconstrução e reconstrução de sentidos através do filtro cultural
de seus leitores, mediado pelo filtro cultural de seus autores. É uma forma reflexiva e
interativa de perceber o objeto livro.
Deus é um lugar ameaçado (2018), em virtude disso, é um livro editorialmente
pensado e projetado para que o leitor interaja com a obra. Isso acontece, principalmente,
porque o objeto livro é composto por doze textos em prosa – ainda não chamaremos de
poemas em prosa porque falaremos mais adiante sobre os limites entre prosa e poesia – e por
cinquenta fotografias, ora em sequência, ora acompanhadas de um texto verbal, ora isoladas.
47 Trecho retirado da seção “Por si mesmo” do blog do poeta Luís Quintais, disponível em:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/bio/
146
Outro fato editorialmente interessante que corrobora essa inter-relação entre leitor e obra é o
fato de, na primeira tiragem desse livro, algumas palavras dos textos verbais terem sido
grafadas em escala de cinza em contraste com as outras que se encontram no padrão de fonte
na cor preta. Cria-se, com isso, uma impressão de que essas palavras no texto passam por um
movimento de ir e vir, aparecer e desaparecer. Nas últimas tiragens, no entanto, todas as
palavras do texto verbal são escritas já em tom de cinza, o que não só dá a ilusão de leveza,
como também simula o acesso às memórias que se encontram esmaecidas na história do
tempo-espaço, como se houvesse uma cortina de véu que separasse o homem em seu presente
daquilo que se vivenciou em seu passado. Um movimento muito semelhante com o das
memórias, que são acessadas através da nossa consciência ora por completo, ora repletas de
lacunas devido à distância temporal a que se encontram do momento presente de
rememoração. Assim o leitor é chamado para experimentar, junto com o movimento da
leitura, metaprocessualmente o texto e as sensações por ele afloradas. Movimento semelhante,
ainda, ocorre com o processo humano de observação, fixação e compreensão de quaisquer
imagens no mundo, já que a visão é subordinada à intensidade de luz: a pouca incidência
luminosa faz que as imagens desapareçam da nossa visão, enquanto muita intensidade faz que
não consigamos distinguir o que vemos. Todas essas escolhas editoriais, dessa forma, fazem
de Deus é um lugar ameaçado (2018) um livro sobre a experiência visual: das palavras, das
imagens poéticas e das fotografias, por vezes diferentes do que ele fazia em termos de objetos
estragados, já que, como veremos adiante, o poeta-fotógrafo passa a fotografar também
detalhes da natureza, como ramos de uma árvore, por exemplo.
Essa estética editorial, ademais, dialoga direta e indiretamente com os temas
fotográficos escolhidos por Quintais, os quais por vezes levam o leitor-observador a
mergulhar no tempo passado e a resgatar experiências individuais e coletivas pela observação
das cenas em exposição. Nesse livro, buscamos observar e percorrer os limites da abstração
das imagens poéticas através da visualização e comparação entre os textos verbais e os temas
fotográficos que o compõem. É um livro que evidencia uma constante teorização do ato de
ver que é colocado em performance durante a obra, seja pela voz que fala nos textos em prosa,
seja pelas imagens fotográficas que realçam, do horizonte interno do espaço, vestígios do
tempo. Isso, pois o poeta-fotógrafo põe em evidência – pela linguagem poética e pela
linguagem visual – vestígios de um mundo marcado pela perda, pela ausência, pela
melancolia e pelo luto. É um livro que demanda do leitor-observador certa sensibilidade
visual e interpretativa uma vez que os limites da imagem – escrita e fotografada – são postos
147
em suspensão para dar a ver, dos restos do mundo, contrates entre a sobrevivência e o fim, o
resgate e a perda, o encontro e o desencontro, a presença e a ausência. É um livro, portanto, de
contrastes imagéticos e editoriais, que fazem do objeto-livro um lugar para se pensar os
limites da criação e representação. Pelas palavras do próprio poeta-fotógrafo:
Deus é um lugar ameaçado é um livro de fotografia? Um livro de poesia?
Um ensaio? Uma ficção? Talvez a palavra ficção seja a mais correcta. Uma
ficção que se organiza em torno de um conjunto de imagens Polaroid para
reflectir sobre o lugar da poesia e da linguagem num mundo em perda. Uma
ficção e um conjunto de imagens que ponderam comentar o mundo como
vestígio ou sinal de algo que, talvez, tenha desaparecido. Um vestígio da
linguagem, da possibilidade de representação, em suma, da possibilidade de
invenção. (QUINTAIS, 2019, s/p.).48
Neste excerto, o poeta evidencia uma problemática que envolve a classificação de seu
livro devido à multiplicidade de funções, objetivos e composição editorial da obra. Em virtude
disso, a escolha pela presença dos textos em prosa aproxima o livro de uma obra do gênero
ensaístico, pela qual a voz do artista orienta o leitor através de uma coleção de reflexões e
meditações sobre o ato de ver. No mesmo plano, a escolha de inserir Polaroides e sequências
temáticas de Polaroides nas páginas de seu livro coloca a obra em paralelo ao livro de
fotografias. No entanto, o próprio Quintais destaca que esse impasse quanto à classificação do
gênero da obra pode ser resolvido pela escolha do termo “ficção”. O termo “ficção” tem como
origem a declinação fictione do verbo latino fictio cujo valor semântico está associado aos
nossos verbos fingir, modelar e inventar. Na literatura, o gênero “ficção” com base nisso,
refere-se às obras literárias em prosa ou em poesia cujos temas foram criados através da
imaginação do autor e do seu olhar subjetivo sobre a realidade. Nas ficções literárias, cria-se,
por exemplo, uma outra dimensão da realidade dotada de faz-de-conta, de simulação e
fingimento. Um fragmento ficcional da realidade em que o Poeta – responsável por esse novo
espaço – torna-se, como já disse belissimamente o grande Pessoa, “um fingidor”. Um fingidor
já que ele “finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”
(PESSOA, 1960, p. 97-98). Como um poeta fingidor, portanto, Quintais organiza uma obra
ficcional que recorta, a partir de um conjunto de Polaroides e de fragmentos reflexivos em
48 Nota de Luís Quintais sobre o livro Deus é um lugar ameaçado (2018) utilizada no círculo de palestras Os
Limites da representação da palavra: Ciclo de oficinas de observação e representação, Esfera CAPC.
Estúdio CAPC, Coimbra, em janeiro de 2019 no exemplar online de divulgação da conferência sobre a obra
poético-fotográfica de Quintais. Disponível em: http://capc.com.pt/site/index.php/pt/deus-e-um-lugar-ameacado/
148
prosa, uma fração da realidade e a põe em exposição através da relação entre a poesia,
linguagem e o mundo.
Nessa realidade ficcional de Deus é um lugar ameaçado (2018), vamos observar
como os limites da linguagem – verbal e visual – tornam-se mecanismos estéticos para
evidenciar vestígios deixados no espaço urbano de algo que foi perdido. Além disso, veremos
como o filtro cultural do olhar do poeta-fotógrafo realça, ainda, com vestígios da linguagem,
vestígios da possibilidade de representação e vestígios da sua – como criador – possibilidade
de invenção, as impressões e as sensações de luto e melancolia vivenciadas num mundo em
perda. O leitor é recebido no livro, primeiramente, com uma fotografia. A primeira Polaroid,
assim como as demais presentes na obra, não tem título, fato que abre o leque de
possibilidades e impressões obtidas pelo leitor ao observar essas imagens sem um
direcionamento especificado pelo artista. Vejamos abaixo:
Figura 18 - Sem título49
Fonte: Luís Quintais (2018)
49 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
149
Essa Polaroid, por sua vez, é acompanhada de dois fragmentos em prosa que
problematizam algumas questões evocadas pela imagem inicial como uma provocação acerca
do que também estará problematizado ao longo da obra. Desse modo, o leitor-observador é
guiado pelos próprios objetos que compõem a cena a refletir sobre o que vê, em paralelo às
meditações do sujeito poético sobre essa imagem, que tentam ampliar o horizonte dessa
fotografia de modo a dar a ver o que se encontra oculto sobre o véu da linguagem
representativa. O que vemos na fotografia são elementos composicionais que fazem parte do
ambiente natural. O enquadramento é um recorte poético feito pela câmera fotográfica do
horizonte interno do artista nesse espaço, pelo qual ele coloca em amostra fragmentos de
diferentes tipos de folhagens.
Alguns aspectos estéticos dessa fotografia inicial chamam atenção do observador à
temática comum que perpassará a obra. O primeiro deles consiste na apresentação visual das
fotografias que compõem o livro, todas as fotografias estão diagramadas como uma Polaroid.
As Polaroides foram uma invenção do físico norte-americano Edwin Robert Land em 1948,
como uma tentativa de responder à pergunta de sua filha sobre o porquê de não se poder,
àquela época, ver a foto logo após o momento de captura da imagem. O físico, que trabalhava
em sua empresa – a POLAROID CORPORATION, fundada em 1937 – desenvolvia uma
espécie de plástico capaz de polarizar a luz, a mesma tecnologia polarizada utilizada para
fazer lentes de óculos, de binóculos, de microscópios etc. Com base em seu trabalho com essa
tecnologia polarizada, ele desenvolveu um processo de fixação instantânea de imagens em
uma pequena chapa de papel polarizado através do transporte de sais de prata em dez
segundos após a captura. A partir disso, foi lançada ao público, em 1948, a primeira câmera
fotográfica instantânea a Land Model 95. Essa câmera portátil era capaz de produzir fotos
instantâneas, sem a necessidade de retirar negativo do aparelho, em apenas 60 segundos. Esse
fato popularizou, entre os fotógrafos amadores e os profissionais, a compra e a utilização de
Polaroides tanto para registrar momentos banais, como para produzir ensaios fotográficos
diferenciados.
Um dos artistas que usaram a Polaroid como mecanismo de criação artístico-
fotográfica foi o paisagista e fotógrafo Ansel Adams, que era reconhecido pelo seu trabalho
fotográfico com imagens em preto e branco. Ele, inclusive, se tornou consultor da empresa
POLAROID CORPORTION e criou um ensaio com imagens do Parque Nacional de
Yosemite, na Califórnia, em 1968, com um modelo especial e mais profissional, presenteado
por Edwin Robert Land, que possibilitava a produção de negativos, diferentemente das
150
câmeras amadoras da Polaroid. Além dele, o artista plástico Andy Warhol compôs um belo
ensaio feito a partir de retratos de celebridades, como Dolly Parton, Arnold Schwarzenegger,
John Lennon e Mick Jagger, capturados com o modelo de câmera instantânea, Big Shot, uma
câmera simples e de plástico produzida pela Polaroid, mundialmente reconhecido. Nessas
obras, a simplicidade e a instantaneidade do processo fotográfico proporcionado pela câmera
Polaroid realçam uma expressividade conquistada por uma espécie de acidente fotográfico.
Isso é possível porque a câmera Polaroid reproduz em apenas 60 segundos uma imagem
pronta da cena que foi fotografada e que não poderá mais ser modificada ou editada pelo
fotógrafo. Dessa forma, formam-se imagens únicas que fragmentam e fixam o instante real,
deixando marcas particulares do olhar criativo dos fotógrafos sobre a cena em observação.
Como discute Sontag, por exemplo, é comum encontrarmos artistas que optam por técnicas
ou câmeras com mecanismos mais tradicionais – ou mecânicos – devido à sofisticação das
câmeras:
[...] à medida que as câmeras se tornam cada vez mais sofisticadas, mais
automatizadas, mais acuradas, alguns fotógrafos sentem-se tentados a
desarmar-se ou a sugerir que não estão de fato armados, e preferem
submeter-se aos limites impostos por uma tecnologia de câmera pré-moderna
– acredita-se que um mecanismo mais tosco, menos poderoso, produza
resultados mais interessantes ou expressivos, deixe mais espaço para o
acidente criativo. (SONTAG, 2004, p. 140)
Assim ocorre nas Polaroides de Deus é um lugar ameaçado (2018), por Luís Quintais,
como vemos na Figura 18. O resultado fotográfico obtido com a reprodução imagética da
natureza pelas Polaroides destaca, por exemplo, o papel – e o olhar – do artista durante o
acidente criativo. Nessa cena, somos convidados a adentrar num momento reflexivo acerca da
imagem, que nos revela a necessidade de parar, contemplar e meditar sobre o que vemos. A
escolha de representar o tema natural através de uma imagem preto e branca dialoga com a
proposta do livro de contemplar os fragmentos imagéticos através de outros olhos. A escala de
preto e branco resgata também a memória e as experiências das primeiras fotografias, que
tradicionalmente eram reproduzidas sem coloração. A natureza estática denuncia a suspensão
de uma noção de movimento do tempo e promove a sensação de melancolia. Tudo isso
alcançado graças à instantaneidade das Polaroides e do processo mecânico de fixação e
impressão de imagens – tais como nas placas da caixa preta de Daguerre – que abrem espaço
para o acidente criativo.
151
Um dos textos reflexivos sobre a imagem que acompanha a Figura 18 em Deus é um
lugar ameaçado (2018) explica, exatamente, essa importância estética da escolha das Polaroid
na composição do livro. Trata-se do segundo fragmento verbal do livro, no qual podemos
encontrar algumas das questões que motivaram o processo de criação da obra e, sobretudo, a
sua escolha estética. Nas palavras do sujeito poético, que se misturam a uma outra voz citada
ao longo do texto:
Escreveste há muito tempo que as Polaroid são ícones. E adiante escreveste:
“Fazem-me lembrar os egípcios da Bacia de Fayum a pintarem rostos em
painéis que depois colocavam em múmias, a preencherem o vazio da morte
com a altivez e a serenidade de biografias anónimas. Retratos, todos eles
meus onde a dor é a função de uma distância. Melhor seria dizer que se trata
de uma interpelação à natureza do vestígio.” Responder-te-ia, hoje, se
pudesse, que, ao debruçar-me sobre estas imagens, vejo-te a exercer um
trabalho de fuga. Uma dúvida ensombrava-te, uma hesitação grave que
haveria de condenar-te à mais pura melancolia. Reúno as tuas Polaroid.
Reconheço que só há traição no ver, mesmo no ver mais atento e demorado.
Que estarás sempre só neste país acidentalmente delimitado pela luz. Assim
é este livro. O relatório da solidão. (QUINTAIS, 2018, s/p.)50
Esse texto em prosa, tal como vimos na produção poética de Quintais, tem a potência
de [co]mover o leitor. [Co]move, primeiramente, porque faz parte de um conjunto de
fragmentos – ora contínuos, ora descontínuos – que compõem essa obra. [Co]move, também,
porque ao se aproximar da fotografia inicial – talvez para traduzi-la, talvez para explicá-la –
vemos ainda a incompletude da linguagem representativa. E [co]move, além disso, porque
através das palavras ficamos diante de outras imagens poéticas que por sua vez reverberam a
potência meditativa dessas imagens que levam à necessidade de escrever – ou ainda descrever
– o que se vê para apreender o que se sente. E a linguagem poética dialoga muito bem com
esse movimento reflexivo e de resgate de memórias anteriores à observação da imagem, que é
encenado em Deus é um lugar ameaçado (2018) pela voz meditativa e pelos fragmentos
fotográficos. O sujeito poético, já nos primeiros períodos dessa representação poética do seu
próprio pensamento, resgata uma voz anterior que já escrevera sobre a habilidade iconográfica
das Polaroides pelos recursos da citação indireta e direta:
Escreveste há muito tempo que as Polaroid são ícones. E adiante escreveste:
"Fazem-me lembrar os egípcios da Bacia de Fayum a pintarem rostos em
50 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
152
painéis que depois colocavam em múmias, a preencherem o vazio da morte
com a altivez e a serenidade de biografias anónimas. Retratos, todos eles
meus onde a dor é a função de uma distância. Melhor seria dizer que se trata
de uma interpelação à natureza do vestígio. (QUINTAIS, 2018, s/p.) 51
Essa voz não nomeada mistura-se com o discurso poético, num constante diálogo
metaprocessual pelo qual o sujeito lírico discorre sobre o projeto editorial do livro Deus é um
lugar ameaçado (2018). Isso acontece já que esse sujeito se volta a essa voz citada,
transformando-a em interlocutor, como se houvesse de fato uma conversa entre essa tradição
teórica e o criador do livro: “Responder-te-ia, hoje, se pudesse, que, ao debruçar-me sobre
estas imagens, vejo-te a exercer um trabalho de fuga. Uma dúvida ensombrava-te, uma
hesitação grave que haveria de condenar-te à mais pura melancolia. Reúno as tuas Polaroid”
(QUINTAIS, 2018, s/p.).52As Polaroid, como objeto poético de Quintais, carregam em si essa
alegoria do vazio, da melancolia e da morte. Elas são uma captura instantânea de algo na
tentativa [in]constante de fazer esse algo permanecer. Mas ao mesmo tempo elas também
capturam vestígios da ausência. Elas são uma forma de preencher o vazio encenada pelo
sujeito poético no projeto editorial de Deus é um lugar ameaçado (2018) pelas Polaroides e
pelos fragmentos poéticos, que constantemente retorna a essas fotografias trazendo novas
inquietações: “Reconheço que só há traição no ver, mesmo no ver mais atento e demorado.
Que estarás sempre só neste país acidentalmente delimitado pela luz” (QUINTAIS, 2018,
s/p.).53 Pelas páginas do livro, então, estaremos diante de fotogramas líricos que encenam a si
próprios, num jogo metalinguístico onde as fotografias são acompanhadas por meditações
sobre o ato de ver, num progressivo diagnóstico da ausência: “Assim é este livro. O relatório
da solidão” (QUINTAIS, 2018, s/p.). 54
“Assim é o livro: sabe que ver é trair, que a imagem não assegura a permanência de
nada, que a morte é definitiva, e só a solidão certa; mas resta-lhe este gesto desesperado —
reunir imagens. Eis o resgate possível.” (EIRAS, 2019, p. 228), diz Pedro Eiras sobre esse
caráter metaprocessual de Deus é um lugar ameaçado (2018) em sua resenha para a revista
Abril NEPA/UFF. O crítico – e também poeta – observa que existe uma travessia comum
entre as Polaroides e os textos em prosa desse livro porque ora a continuidade temática dessas
imagens dialoga com as reflexões poéticas presentes nos trechos verbais; ora essas reflexões
poéticas propõem-se a explicar, com a linguagem verbal, o que se vê e o que se percebe
51 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 52 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 53 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 54 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
153
dessas fotografias a partir do resgate de outras reflexões sobre o ato de ver. “Lugares
ameaçados, obscuridade e medo da sombra, fragilidade de Deus, espectralidade,
fantasmagoria, devir — como dar conta destas ínfimas experiências, no limiar do
impercetível? Decerto por isso não se pode, nunca, acabar de descrever este livro” (EIRAS,
2019, p. 229). Dessa forma, é como se a linguagem poética fosse um recurso utilizado por
esse sujeito para preencher aquilo que a fotografia não consegue representar. Não obstante,
essa mesma linguagem poética é posta em tensão conquanto também não consegue dar conta
de todas as abstrações movimentadas pela imobilidade da imagem fotográfica:
Este texto sobre ruínas encena-se a si próprio como uma ruína que,
misteriosamente, continua a falar (mas nunca dirá tudo; a incompletude é-lhe
necessária, é ela que o constitui como ruína, e uma ruína não pode ter uma
voz inteira). O que importa agora é pensar que a leitura do livro é
determinada por este incipit, que a visão das imagens parte da leitura destas
linhas, e estas linhas falam de perda. (EIRAS, 2019, p. 227-228)
Em outra Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018), o tema do fim é evocado
pela cena formada por objetos que resgatam a memória da morte na cena fotografada. Trata-se
da Figura 19, que segue abaixo, pela qual nossos olhos são motivados a contemplar a captura
de uma cena que dá a ver, como realidade oculta à imagem fixada pelas lentes da câmera,
recordações da morte. O que vemos? São pequenos retângulos com algumas inscrições, são na
verdade, um grande conjunto de lápides funerárias expostas como em uma vitrine à espera da
observação dos olhares passageiros que caminham pela rua. O que sentimos? A proximidade
do fim, o reencontro com o passado já esquecido, a memória mais longínqua de algo já
perdido. É uma imagem que diz muito, no entanto, que nunca dirá tudo. Ela é um recorte
subjetivo e proposital de algo na inútil tentativa de fazê-lo permanente, haja vista que “a
incompletude é-lhe necessária, é ela que o constitui como ruína, e uma ruína não pode ter uma
voz inteira” (EIRAS, 2019, p. 227-228).
Vejamos, portanto, a Polaroid:
154
Figura 19 - Sem título55
Fonte: Luís Quintais (2018)
Uma lápide, como as fotografadas por Luís Quintais na Figura 19, é um marcador,
geralmente feito de pedra, colocado sobre uma sepultura. Na maioria dos casos, ela contém o
nome do falecido, a data de nascimento e a data de falecimento inscritos, junto com uma
mensagem pessoal ou oração – comumente conhecida como epitáfio –, mas pode também
conter alguma peça de arte funerária, como os detalhes em relevo de pedra que se pode
observar na fotografia. As lápides, como os memoriais aqui já discutidos, também funcionam
como um lugar onde se pode vivenciar o luto porque as lápides representam, naquele espaço
do túmulo, uma imagem do que foi durante a vida o sujeito ali sepultado. As lápides são um
ponto de interseção entre a presença e a ausência, entre a vida e a morte, entre o esquecimento
e a lembrança. Em virtude disso, nós, observadores, quando diante dessa fotografia das
lápides, permitimo-nos vivenciar também o vazio refletido por elas ou permitimo-nos apenas
à percepção superficial, vendo somente aquilo que a constitui. Ou seja, essa imagem de
objetos que procuram eternizar algo que já se foi pode comover quem a vê, levando às
experiências de luto e melancolia, quando se permite resgatar algo do passado subjetivo e da
55 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
155
história individual e coletiva. Acerca disso, Didi-Huberman, ao observar a fotografia da lousa
funerária do abade Isarn56 afirma:
Por um lado, há aquilo que vejo do túmulo, ou seja, a evidência de um
volume, em geral, uma massa de pedra, mais ou menos geométrica, mais ou
menos figurativa, mais ou menos coberta de inscrições: uma massa de pedra
trabalhada seja como for, tirando de sua face o mundo dos objetos talhados
ou modelados, o mundo da arte e do artefato real. Por outro lado, há aquilo,
que direi novamente, que me olha: e o que me olha em tal situação não tem
mais nada de evidente, uma vez que se trata ao contrário de uma espécie de
esvaziamento. Um esvaziamento que de modo nenhum concerne mais ao
mundo do artefato ou do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim,
diz respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino do corpo
semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus movimentos,
esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que, no entanto, me
olha – num certo sentido inelutável de perda [...] (DIDI-HUBERMAN, 2010,
p. 37)
O ensaísta destaca, nesse contexto, que, pelo ato de observação de uma imagem,
somos levados a experiências visuais subjetivas. Quando diante de um túmulo, de uma urna
funerária, de uma lápide ou até mesmo de um memorial, a imagem ali presente (seja com
inscrições, artes fúnebres, fotografias ou símbolos talhados nesse objeto dialético) suscita de
nós a rememoração do que aqueles sujeitos ali representados foram para a nossa própria
história ou para a história coletiva: a recordação de alguém que antes, como nós estava vivo,
porém agora apodrece e se decompõe. Sua história é alcançada e perpetuada por esse objeto
que ali representa essa interseção temporal, ou até mesmo um ponto cego do fim. A imagem
do túmulo, portanto, é capaz de inquietar, fazendo que o seu observador consiga chegar a um
estado reflexivo se ele se permitir enxergar além da imagem. Caso contrário, a experiência
visual é perdida e somos levados a uma percepção superficial da imagem: ela é o que é. assim
como “diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na angústia – a saber, esse “modo
fundamental do sentimento de toda situação”, essa “revelação privilegiada do ser-aí”, de que
falava Heidegger...” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38), fotografia capturada pelo horizonte
crítico de Quintais opera uma relação dialética em que a presença versus a ausência abre
nossos olhos a novas percepções do mundo: “é a angústia de olhar o fundo – o lugar – do que
me olha, a angústia de ser lançado à questão de saber ( na verdade de não saber) o que vem a
56Em O que vemos, o que nos olha (2010), Didi-Huberman, através da análise da fotografia da lousa funerária do
abade Isarn, da segunda metade do século XI, busca uma reflexão acerca da sensação de esvaziamento
provocada por essa imagem. Para isso, ele aponta como esse objeto – uma lousa funerária – marca a evidência
desse homem naquele espaço. No entanto, ocorre que esse objeto é, na verdade, um simulacro, pois o homem (o
abade Isarn) está morto. Há, portanto, restos que resgatam do seu observador a imagem, a história e a existência
desse homem.
156
ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer
ao vazio, de se abrir” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38).
Nessa perspectiva, a fotografia de Quintais problematiza algumas questões
importantes para contemplação poética de Deus é um lugar ameaçado (2018). A primeira
delas se refere ao tema em cena: diante dessa imagem também ficamos diante da morte.
Somos convidados a reencontrar aqueles que já partiram em nossas vidas e dos quais
guardamos alguma memória afetiva. Somos convidados, também, a reencontrar a morte
daqueles nomeados pelas lápides, porque elas são o ponto de intersecção entre a sua morte
(ausência) no mundo e a sua vida (presença) na história. É o que questiona, também, Eiras:
“Poderá a fotografia realizar esse «resgate da morte», ou apenas dá testemunho do
esquecimento?” (EIRAS, 2019, p. 228). Somos convidados, ainda, a encontrar a nossa própria
morte e a enfrentar os nossos medos desse obscuro e desconhecido caminho pós-vida – afinal
não são todos que conseguem re-ditar a sua história como Brás Cubas, o nosso ilustre defunto
autor de Machado de Assis, cuja narrativa também rompe com os parâmetros de fim: como
pode, depois de morto, virar autor de autobiografria? Isso revela que, por trás dessa
fotografia das lápides, haverá sempre uma outra história atravessada por outras muitas
histórias acessadas através da meditação e da contemplação dessa alegoria do fim.
Em função disso, uma outra temática importante evocada por essa fotografia é a
ausência. O que vemos na imagem é só um fragmento, escolhido intencionalmente pelo olhar
ontológico de Quintais, mas, o que há para além desse objeto fúnebre não consegue ser
capturado pelas lentes das câmeras fotográficas. A capacidade mimética do aparelho
fotográfico ainda não consegue completar as lacunas deixadas pelo recorte feito com
enquadramento da lente da câmera e do olhar do artista. Sendo assim, é necessário algo para
que esse esvaziamento provocado pela Polaroid seja completado. E recordo, novamente, de
Eiras: “Poderá a fotografia realizar esse «resgate da morte», ou apenas dá testemunho do
esquecimento?” (EIRAS, 2019, p. 228). As repostas veem em passagens meditativas em que a
linguagem poética é o recurso representativo utilizado para tentar realizar e fixar esses
resgates da morte.
Em outra Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018), o tema da memória é
evocado pelos objetos que compõem a cena fotografada. Nessa imagem, Figura 20, a seguir,
nossos olhos são convocados a contemplar uma composição visual que dá a ver uma
mensagem oculta que se escreve pela associação dos elementos visuais da cena. O que vemos?
Em segundo plano na imagem, encontra-se um cenário composto por um livro, um fragmento
157
de um texto verbal e caracteres de uma língua oriental. No canto esquerdo da imagem, porém
em primeiro plano na composição, há uma fotografia sobreposta aos versos do texto. O que
percebemos pela associação destes vestígios visuais? O homem da fotografia deve ser alguém
de importância subjetiva para o artista, sua biografia deverá ser resgatada pelo
reconhecimento da face jovem. O fragmento textual nas páginas do livro são fragmentos de
um poema de língua inglesa que vem acompanhado de três ideogramas, cujos significados
devem conversar semanticamente com as imagens do fragmento poético. Contemplemos,
portanto, a imagem poética fotografada – anteriormente publicada na sua plataforma flickr sob
o título de “You taught men to break branches”.
Figura 20 - Sem título / You taught men to break branches57
Fonte: Luís Quintais (2018)
A imagem, nesse quadro, conversa diretamente com o observador não só pela
linguagem visual, mas também pela necessidade de um resgate interior às memórias de quem
a observa e decifra a mensagem poético-visual. Ela apresenta ao observador objetos que
podem ser facilmente percebidos pela visão, mas também elementos, histórias, memórias e
testemunhos que se encontram escondidos nas lacunas visuais da imagem. A imagem, nessa
perspectiva, por ser um recorte visual proposto pelo olhar do artista, também passa a ser uma
composição visual parcial uma vez que não é possível – dentro do enquadramento escolhido –
57 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
158
mostrar além dos limites desse horizonte de visão pré-determinado pelo artista e
proporcionado pelas lentes da câmera. Sendo assim, a imagem sempre será formada, também,
por lacunas que devem ser preenchidas com a observação e meditação do leitor. Nesse
movimento de reação à observação da imagem, o tema da imagem possibilita uma viagem à
memória. Isso porque o homem retratado na imagem é, na verdade, o grande poeta, músico e
crítico literário norte-americano Ezra Weston Loomis Pound, uma das maiores personalidades
poéticas do movimento modernista do início do século XX. Curiosamente, tal como nosso
poeta-fotógrafo, Pound busca com seus poemas destacar a potência lírica da construção de
imagens poéticas. Essa procura pelo limiar poético da imagem fez que o poeta norte-
americano participasse de movimentos da estética modernista, como o movimento Imagismo
– do qual Pound era o principal representante – e do Vorticismo. Nas suas obras, vemos uma
grande aproximação da linguagem poética com a linguagem visual, seja pela construção de
frases-imagens, seja pela referência ou citação de imagens artísticas em seus versos, seja pelo
diálogo entre a escrita ocidental e a grafia imagética das línguas orientais.
Além do resgate memorial da biografia do homem fotografado, vemos que o
fragmento poético pertence ao “Canto LIII” (anexo V – que se encontra no seu grande livro
de poesia Os Cantos (1962), o documento principal da obra de Ezra Pound, uma épica
moderna com 120 cantos, interminável, porque o poeta não conseguiu chegar ao seu fim em
vida. Por fim, outro elemento visual que chama atenção do observador são os ideogramas que
se encontram associados ao poema de Pound. A presença deles é um dos princípios
organizadores dessa obra, uma vez que a organização visual dos poemas em si – disposição
espacial e escolha tipográfica das letras – aproxima-os visualmente da forma dos ideogramas.
Essa escolha estética revela, no mais, o filtro cultural que atravessa a obra de Pound, como
um leitmotiv da percepção imagética que o insere como uma das grandes vozes do
Modernismo norte-americano. Sobre essa fronteira visual entre a forma dos poemas e a forma
de ideogramas explorada pela escrita de Pound, Haroldo de Campos destaca que essa estética:
elimina as cortinas de fumaça do silogismo: permite acesso direto ao objeto.
Duas ou mais palavras, dois ou mais blocos de idéias, postos em presença
simultânea, criticando-se reciprocamente, precipitam um jogo de relações
com uma intensidade e uma imediatidade que o discurso lógico não seria
capaz sequer de evocar. (CAMPOS, 1993, p. 144)
A opção por uma escrita que simula, como destaca Campos, um método ideogrâmico
tornou-se um recurso estilístico fundamental para a poética de Pound, pois, com essa grafia
159
imagética, o poeta é capaz de condensar em uma só imagem um conjunto de palavras,
sugestões e até metáforas. Ela, por sua vez, é um mecanismo que reúne liricamente
fragmentos, traços e vestígios de uma tradição poética, recorrentemente revisitada pelos
versos do poeta norte-americano. Nesse contexto, ao ler a obra Os Cantos (1962), o leitor é
instigado pela voz lírica a revisitar através da observação das imagens poéticas de seus versos
imagens históricas e literárias que fazem parte de uma cartografia da tradição literária
reapresentada em fragmentos visuais. Com isso, é possível perceber um entrelace visual que
conecta os fragmentos poético-visuais que compõem os 120 cantos da obra de Pound.
A utilização de ideograma em seus livros de poesia também aparece como um recurso
estético-visual nas obras poéticas de Luís Quintais. Como discutimos no primeiro capítulo
desta dissertação, o caractere Wu (無 – Figura 3) aparece na contracapa de seu livro de poesia
A noite imóvel (2017), também como um mecanismo de apresentação e conexão poético-
visual entre as partes da obra e os temas que serão apresentados aos leitores e experimentados
através da observação dos fotogramas líricos desenhados pela linguagem poética. A cultura
oriental, assim como para Pound, apresenta-se como lugar comum e de revisitação na
produção lírica de Quintais. Seu interesse pela cultura oriental, em especial pela japonesa, dá-
se, por isso, pela potência poético-visual das imagens e da iconografia para as artes plásticas
japonesas. Em suas palavras: “Suspeito que é no Japão que estiveram, talvez ainda estejam, os
mais importantes artistas visuais” (QUINTAIS, 2018, s/p.).58 Em dezembro de 2020, por
exemplo, o poeta português publicou um livro de ensaios e fotografias – Regressarás à leveza
do ver: uma viagem no Japão (2020) em colaboração com a fotógrafa Susana Paiva, também
pela editora Huggly Books. O projeto faz parte, assim como a publicação de Deus é um lugar
ameaçado (2018), de uma edição especial e limitada que propõe um diálogo entre a
linguagem visual e a linguagem poética. Regressarás à leveza do ver: uma viagem no Japão
(2020) começou a ser pensado após a viagem que Quintais fez para o Japão e de suas
fotografias retiradas para documentar esse momento – algumas destas fotografias se
encontram no seu blog em um dossiê visual do Japão (reproduzido integralmente no Anexo
IV desta dissertação). As imagens poéticas do novo livro, por sua vez, buscam propor uma
reflexão sobre imagens do espaço – natural e urbano do Japão – como uma forma de
representação e cruzamento entre a arte, cultura e sociedade numa visão antropológica. Nas
palavras do poeta sobre Regressarás à leveza do ver: uma viagem no Japão (2020):
58 Este fragmento se encontra na seção “Por si mesmo” do blog do poeta Luís Quintais. Disponível em:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/bio/
160
Fotografia e literatura enlaçam-se para produzir um dos objectos mais
extraordinários que saiu, em parte, das minhas mãos. E em parte porque o
labor aqui posto é também da Suzana Paiva, admirável artista e amiga leal. O
livro representa para mim o culminar de muitas das minhas preocupações
mais antigas: os limites da representação num mundo exangue, a
possibilidade de redenção num mundo sem redenção, o regresso, talvez
impossível, ao paraíso, o vazio e as visões do vazio, a poesia e a morte, a dor
e o esquecimento. Tanto do que sou está aqui nesta viagem ao Japão, sempre
sonhada, literalmente sonhada, ou não habitasse em Kyoto nos meus sonhos
antigos e recentes. (QUINTAIS, 2020, s/p.)59
Esses aspectos do filtro cultural do nosso poeta fotógrafo, como os representados no
excerto acima, ficam à mostra na fotografia de Deus é um lugar ameaçado (2018) – Figura
20. Através dela, então, o observador é guiado a compreender não somente a importância da
poética de Pound, como também a influência visual da iconografia oriental para o pensamento
e a forma de observação dos limites entre a palavra e a imagem na obra de Quintais. Isso
porque a composição visual da fotografia mostra ao leitor a presença de fragmentos
imagéticos que trazem em si uma história para além da imagem. Assim como na visualidade
proposta por Pound como recurso estético-visual, Quintais busca com seus poemas – grafados
pela linguagem literária ou pelas lentes de suas Polaroides – instigar o leitor-observador a
compreender o que há para além das lacunas deixadas pelo enquadramento visual e pela
fragmentação linguística. A fotografia – Figura 20 – é um exemplo de um recorte visual da
tradição literária revisitada pelo filtro cultural de Quintais. Filtro este que também está
presente nas imagens poéticas dos poemas de A noite imóvel (2017), analisados no capítulo
anterior, que propõem recortes visuais do mundo que põem em contemplação cenas das ruínas
do espaço contemporâneo. Pela imagem, então, o poeta é capaz de condensar alegorias,
reflexões, memórias e referências em experiências de contemplação transubjetivas.
Já em outra Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018) – Figura 21, a seguir, –
nosso olhar é direcionado para a visualização de um objeto que, na verdade, não está presente
na imagem. O que vemos, à primeira vista, é apenas um traço, um vestígio, uma marca, uma
sombra de algo que não está presente no enquadramento da fotografia, mas que se encontra no
horizonte interno do artista nesse espaço. O objeto da fotografia, nesse sentido, tem a função
de resgatar cognitivamente no observador a sua figura, fazendo que a imagem superficial e
estática dessa paisagem provoque o observador para completá-la através da sua própria
imaginação. É uma imagem que propõe uma reflexão visual sobre aquilo que se vê e aquilo
59 O trecho foi retirado da apresentação de Luís Quintais de seu novo livro, Regressarás à leveza do ver: uma
viagem no Japão (2020), escrita em seu blog. Disponível em:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/2020/12/28/regressaras-a-leveza-do-ver-uma-viagem-no-japao/
161
que não se vê no espaço. É uma imagem sobre o que aparece e desaparece no enquadramento
da fotografia. É uma imagem sobre a presença e a ausência. É, portanto, uma imagem que
realça os limites da representação visual ao passo que tenta captar, pela experiência visual, as
sensações de luto e melancolia.
Figura 21 - Sem título / Tanto a beleza eu contemplei60
Fonte: Luís Quintais (2018)
No início deste tópico, comentamos sobre a proposta de Deus é um lugar ameaçado
(2018) quanto à percepção do visível e do invisível. O livro aposta em uma estética visual que
põe em xeque os limites do olhar, a partir da escala de cores diferenciada nos textos verbais –
que faz um jogo de fade in e fade out, ou seja, de aparecer e desaparecer das palavras do livro
que ora estão escritas em cor preta – reafirmando a sua presença no corpo do texto – ora estão
escritas em escala de cinza – recurso que dificulta o reconhecimento imediato dos vocábulos e
simula a sensação de baixa visibilidade, como ocorre em lugares dominados por uma densa
cortina de neblina. As imagens poéticas descritas verbalmente, por isso, criam uma ficção do
olhar porque denunciam pela percepção visual sinais e vestígios de algo que talvez tenha
desaparecido na imagem, sobretudo pela compreensão da condição das coisas frente a
passagem natural do tempo. Essa mesma característica poético-visual é transposta para as
fotografias do livro, já que o enquadramento, o recorte e o foco escolhidos pelo artista para
60 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
162
formar a fotografia também fixam resquícios visuais da presença de objetos que não estão
necessariamente circunscritos no espaço da imagem. Ficamos, dessa forma, diante de imagens
circunstanciais, que seccionam a realidade e colocam em evidência as fissuras nesse processo
de cortar a realidade. Esse aspecto faz que, a partir da contemplação das imagens foto-
grafadas de Deus é um lugar ameaçado (2018), como na Figura 21, percebamos rastros,
lacunas e ausências talhados pela linguagem, pelas inúmeras possibilidades de representação
e, ainda, pelo processo criativo do artista.
A Figura 21 – que fora publicada na plataforma flickr do poeta com o título de Tanto a
beleza eu contemplei – fixa uma imagem que destaca a base do processo criativo de um
fotógrafo: fixar uma imagem que represente algo do mundo real. No primeiro plano da
imagem, no entanto, vemos apenas sombras de algo, que pela forma somos remetidos à noção
de uma árvore. Em segundo plano, vemos uma natureza viva e presente, a partir da gramínea
que se encontra abaixo na imagem. Além disso, conseguimos ver a existência de um muro,
uma construção humana em meio à vida natural que divide o mesmo espaço. As sombras se
estendem do alto da imagem ao solo, como se essa forma natural estivesse visivelmente
presente. No entanto, temos acesso apenas a vestígios de sua existência no mundo real.
Mundo real este que é evocado pela imagem através do nosso imaginário, uma vez que dentro
do enquadramento escolhido só temos acesso a sombras da verdade.
Na antiguidade clássica, ao discorrer sobre o processo de mimesis e a sua relação com
a realidade, o filósofo Platão desenvolve a alegoria da caverna para exemplificar sua teoria
sobre o real, o imaginário e às formas de acesso ao conhecimento. Segundo o pensador, a
realidade existe somente no mundo das ideias, inalcançável no nosso mundo físico. Isso
porque as imagens e os objetos existentes no nosso mundo físico – o qual ele viria a chamar
de mundo das coisas – são, na verdade, meras representações, ou seja, cópias da forma real
que existe apenas em conceito em outra dimensão espaço-temporal – no que ele viria a
chamar de mundo sensível. Esse é o princípio básico da alegoria da caverna, explicada no
livro A República (1975) através do diálogo de dois personagens, Sócrates e Glauco. Durante
uma conversa, Sócrates, o mestre, pede para que seu discípulo, Glauco, imaginar uma espécie
de caverna em que homens vivessem aprisionados desde o princípio de sua existência. Eles
nasceram prisioneiros, acorrentados pelos braços de fronte para uma parede paralela. Essa
caverna delimita o conhecimento socioespacial do lugar em que eles se encontram, bem como
a parede paralela determina o campo visão ao qual eles têm acesso. Nesse horizonte interno
dos prisioneiros, a parede paralela funciona como uma espécie de tela por onde eles observam
163
projeções turvas de movimentos, formas humanas e de objetos que são projetadas por uma
chama que existe atrás deles. Desse modo, o que esses prisioneiros veem são apenas sombras
das imagens reais, cópias distorcidas do que existe fora dessa caverna. Continuando o diálogo,
Sócrates fala a Glauco que certo dia um desses indivíduos aprisionados alcançou a liberdade e
conseguiu sair da caverna. Fora dela, ele teve o primeiro contato com a luz do Sol, que no
primeiro momento o incomoda e ofusca a sua visão. Após um tempo de exposição, seus olhos
acostumam-se à luminosidade e ele se torna capaz de distinguir as formas e as imagens das
coisas presentes nesse outro mundo fora da caverna. Nesse momento, ele percebe que durante
toda a sua existência aprisionado na caverna teve contato apenas com fragmentos e ruídos, e
descobriu que o mundo era muito maior do que julgava.
As sombras também são uma alegoria na fotografia Tanto a beleza eu contemplei de
Quintais. Tal como Platão desenvolve ecfrasticamente uma imagem alegórica para discutir
sobre a percepção do real e a natureza do conhecimento, o poeta-fotógrafo cria pela
linguagem fotográfica uma alegoria para refletirmos sobre o nosso conhecimento sobre a
realidade. O enquadramento escolhido por Quintais põe em cena a observação de um objeto
que só é reconhecido através da compreensão dos vestígios da sua forma no espaço. Isso
porque no centro da imagem só conseguimos ter acesso à reprodução das sombras de um
objeto presente num instante e num espaço de tempo em que fotógrafo capturou sua imagem.
Pelo fragmento espacial e pela luminosidade da imagem, pressupõe-se que existe, fora do
enquadramento, uma árvore concreta que se posiciona atrás do muro e se expande para cima.
No entanto, a visão do observador encontra-se aprisionada aos limites da fotografia, que não
conseguem dar conta de representar todo o contexto existente no horizonte externo da
paisagem. O que vemos, portanto, são vestígios projetados da realidade pelo artista dotados de
uma ausência. Cabe, então, ao leitor-observador chegar a interpretações subjetivas sobre as
lacunas visuais que vê, buscando dentro de si mesmo algo fora da imagem fotográfica que
preencha a sensação de esvaziamento da imagem. Dentro da caverna de Quintais – a imagem
poética – o observador – prisioneiro do filtro cultural do poeta – tem acesso apenas a uma
fração visual manipulada da realidade – as sombras projetadas no muro. A Polaroid Tanto a
beleza contemplei, reproduzida novamente no livro Deus é um lugar ameaçado (2018),
antecede uma outra passagem meditativa bem interessante acerca da tensão provocada em
uma determinada imagem pelo jogo de sombras nela presente, seja de modo acidental – como
observado na Figura 21, seja de modo proposital, como nas grandes pinturas Barrocas e nas
naturezas mortas, em que a presença de sombras tem caráter estético e dramático. Através do
164
recurso da citação, vemos como o sujeito poético caminha pelos pensamentos de outra voz
para construir uma reflexão sobre aquilo que vê impresso nas Polaroides. Entre o claro e o
escuro, a luz e a sombra, a linguagem verbal e a linguagem fotográfica colocam em xeque os
próprios limites do pensamento:
Há muitos anos, eras tu um filósofo à procura de uma reverberação que
afrontasse as pretensões espúrias do conhecimento. Escrevias: “São sempre
os limites do pensamento, os limites de um país de cartografia imprecisa, o
que me interessa. Aí está a minha biografia.” Entre os B. ficaste. O que havia
que despertasse a tua atenção nesse país de gente orgulhosa e, porém,
amável? Uma teoria sobre a sombra e a intimidade. Um lugar de perigo no
interior de cada um. “Repara”, escrevias, "as crianças aqui são repreendias
quando pisam ou saltam sobre as sombras de outros. O que diz a sombra de
tão obscuro? Ela é uma função da natureza ameaçada de Deus. Deus é frágil.
Deus é um lugar ameaçado pela própria ignorância ou negligência dos
humanos. Ele é a sombra que caminha a nosso lado quando o verão sobre a
terra torna aguda a luz que recorta a sua presença em cada movimento
depositando-se no pó. E nós transportamos Deus como quem transporta a
pele”. (QUINTAIS, 2018, s/p.) 61
O que se nota primeiramente nesse trecho é a escolha lexical que o aproxima de um
diálogo. O sujeito poético parece, então, estar iniciando uma conversa com um possível
interlocutor que não é nomeado no texto, apenas caracterizado como um filósofo. Somos
colocados diante de uma encenação onde dois personagens parecem dialogar sobre algo: o ato
de ver. Esse interlocutor, no entanto, é apenas evocado no poema, aparecendo por meio de
três recursos sintáticos principais, o primeiro deles é pelo uso do pronome pessoal do caso
reto de segunda pessoa, como em: “Há muitos anos atrás, eras tu um filósofo à procura de
uma reverberação que afrontasse as pretensões espúrias do conhecimento” (QUINTAIS,
2018, s/p.).62 Além disso, vemos também o uso da silepse, uma figura de linguagem que se
caracteriza pela omissão de um determinado referente através das flexões número-pessoais do
verbo. Esses recursos têm valor significativo para a proposta poética de Deus é um lugar
ameaçado (2018) porque deixa apenas um rastro da presença deste outro no discurso, uma
vez que a substituição e a omissão, em “escrevias” e “tua”, por exemplo, são formas de
promover uma coesão a partir dos limites representativos da linguagem poética. O outro
recurso interessante para sublinhar a presença desse interlocutor é pela citação direta. Há, ao
longo do fragmento, períodos delimitados pelo uso das aspas, o que corresponde a uma
espécie de colagem, porque dá a liberdade de um artista tomar posse da fala de um outro,
61 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 62 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
165
recortando-a do texto original e colando-a entre as linhas de seu próprio texto. Dessa forma,
o sujeito poético traz falas do seu interlocutor para o seu próprio discurso, simulando a sua
dala. Cito: “Escrevias: “São sempre os limites do pensamento, os limites de um país de
cartografia imprecisa, o que me interessa. Aí está a minha biografia.”.” (QUINTAIS, 2018,
s/p.).63 Nessa performance discursiva, nesse sentido, o leitor é exposto a mecanismos
linguísticos que dão a ver rastros da utilização da linguagem. São rastros, para além disso, da
presença de alguém cuja voz é simulada pelo sujeito poético enquanto se movimenta pelo seu
próprio pensamento.
Nessa dupla reflexão, assombrada por essa outra voz, vemos o desenrolar de uma
meditação sobre a fragilidade. Isso acontece já que as imagens encenadas, enquanto se
desenvolve o pensamento do sujeito poético, atravessado pelo pensamento de seu interlocutor,
dão a ver pequenos fragmentos – senão fricções – onde os limites entram em cena como
protagonistas. Vemos os limites do discurso. Vemos os limites impostos pela linguagem que
simula o diálogo entre dois sujeitos com pensamentos atravessados. O filósofo – interlocutor
não nomeado, porém citado – que há anos procurava por “uma reverberação que afrontasse as
pretensões espúrias do conhecimento” (QUINTAIS, 2018, s/p.)64 encontra nos limites do
pensamento a sua própria biografia. E atento, o sujeito poético percorre pelas palavras
citadas, inquietado pela fala: “O que havia que despertasse a tua atenção nesse país de gente
orgulhosa e, porém, amável?” (QUINTAIS, 2018, s/p.).65 Comovido pela imagem de um “país
de gente orgulhosa e, porém, amável” (QUINTAIS, 2018, s/p.)66, uma realidade oculta às
Polaroides impressas no livro, mas interna ao filósofo e interlocutor:
“Repara”, escrevias, "as crianças aqui são repreendias quando pisam ou
saltam sobre as sombras de outros. O que diz a sombra de tão obscuro? Ela é
uma função da natureza ameaçada de Deus. Deus é frágil. Deus é um lugar
ameaçado pela própria ignorância ou negligência dos humanos. Ele é a
sombra que caminha a nosso lado quando o verão sobre a terra torna aguda a
luz que recorta a sua presença em cada movimento depositando-se no pó. E
nós transportamos Deus como quem transporta a pele”. (QUINTAIS, 2018,
s/p.) 67
63 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 64 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 65 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 66 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 67 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
166
Eles, sujeito poético e filósofo-interlocutor, reparam juntos nessa cena em que crianças
“são repreendidas quando saltam sobre as sombras de outros” (QUINTAIS, 2018, s/p.).68
Dela, o olhar sobressalta a imagem da sombra em detrimento das ações que ocorrem,
revelando um enigma sobre a sombra. Essa forma projetada a partir do bloqueio aos raios
luminosos com um corpo sólido é, também, um limite. Esse mesmo limite transforma-se
numa “teoria sobre a sombra e a intimidade. Um lugar de perigo no interior de cada um”
(QUINTAIS, 2018, s/p.).69 As sombras são reflexos obscuros do que poderiam ser. Elas dão a
ver uma cópia oculta de um corpo concreto e real. Elas são uma extensão sem luz desse corpo
concreto real. Elas sempre existem, mas só estarão visíveis quando “o verão sobre a terra
torna aguda a luz que recorta a sua presença em cada movimento depositando-se no pó”
(QUINTAIS, 2018, s/p.).70 Tal como a sombra é um lugar ameaçado pela presença e pela
ausência, Deus também o é, frágil e impotente, uma natureza que nós transportamos, “como
quem transporta a pele” (QUINTAIS, 2018, s/p.).71
Retornemos às Polaroides, “porque começa agora uma inquietante multiplicação de
níveis e reproduções” (EIRAS, 2019, p. 228). A fotografia – Figura 22 – de Quintais, como
última Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018) e como última fotografia em análise
neste trabalho, condensa imageticamente algumas questões levantadas ao longo desta
dissertação. Nessa fotografia, vemos que a técnica fotográfica torna-se matéria poética da
própria técnica fotográfica na produção de fotogramas líricos pelo nosso poeta-fotógrafo.
Pela Polaroid também somos remetidos a uma teoria da imagem, já que ela realça pequenas
marcas de um processo de apresentação de imagens a um público observador. O objeto
presente em cena – um antigo aparelho de reprodução de rolos de filme das antigas salas de
projeção de cinema – entra em diálogo com o espaço em que se encontra, porque no segundo
plano da fotografia notamos a presença de um pequeno buraco quadrado por onde passam os
raios luminosos que transformam frações de instantes fixadas em imagem em movimento de
filme. Que se abra, a imagem, para nós:
68 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 69 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 70 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 71 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
167
Figura 22 - Sem título72
Fonte: Luís Quintais (2018)
Num primeiro momento, a cena capturada chama atenção pela sensibilidade temporal,
uma vez que a luminosidade e a paleta de cores conversam com o objeto em exposição
tematicamente por fazem parecer – ou simular pelo conjunto imagético – que a fotografia foi
feita num tempo passado. Olhamos para essa imagem – imóvel no nosso momento presente –,
mas ela se movimenta e nos faz lembrar de um momento passado. Esses aspectos percebidos
na imagem geram, dessa maneira, uma movimentação subjetiva que transcende a pura visão
dos elementos fixados pela Polaroid. Ao fixar essa imagem, desse modo, Quintais consegue
condensar diversas informações transversais à representação visual, as quais, por sua vez,
podem levar à meditação sobre o movimento do tempo e as técnicas humanas de simulação,
por imagens fotográficas – das cenas, dos movimentos e dos sons do mundo. Como destaca
Collot, “talvez seja por isso que, na história de nossa civilização, o desenvolvimento da
paisagem foi frequentemente acompanhado pelo do indivíduo” (COLLOT, 2019, p.11). Ao
fazer uma viagem diacrônica pela história das imagens, desde as suas primeiras manifestações
na arte rupestre – as imagens tradicionais e anteriores à escrita, como destaca Flusser (2008)
– até as atuais imagens produzidas por mecanismos digitais – como as mais modernas
câmeras fotográficas – percebemos uma constante necessidade humana de foto-grafar e
documentar suas experiências no mundo.
72 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.
168
Nas artes plásticas e na literatura, fixar imagens capturadas da realidade, por exemplo,
representam, o que classifica Collot como uma “emergência de um espaço antropocêntrico”
(COLLOT, 2019, p.11), haja vista que as intenções estético-visuais do artista com essas
imagens dão ênfase em um caráter simbólico e egocêntrico inerentes à sua – e também à
nossa – própria percepção afetiva do espaço. Em suas palavras: “as primeiras representações
picturais da paisagem, a aparição da palavra nas línguas europeias, datam do século XVI, e
são contemporâneas da emergência de um espaço antropocêntrico. É o Romantismo que, com
sua teoria da paisagem como “estado de alma”, enfatizará o aspecto subjetivo, parcial,
egocêntrico de nossa experiência do espaço” (COLLOT, 2019, p.11). Nesse sentido, a poética
do espaço é fruto das relações sensíveis acessadas pela percepção visual do espaço e de
pequenas marcas que são esculpidas historicamente pelas nossas interações no espaço
comum. O que, para Collot, será evidenciado através da fenomenologia do espaço porque “ela
mostrará que essa solidariedade entre paisagem percebida e sujeito perceptivo envolve duplo
sentido: enquanto horizonte, a paisagem se confunde com o campo visual daquele que olha,
mas ao mesmo tempo toda consciência sendo consciência de ..., o sujeito se confunde com seu
horizonte e se define como ser-no-mundo” (COLLOT, 2019, p.11).
Pela fenomenologia, destarte, podemos compreender a importância dos objetos e desse
espaço para o filtro cultural de Quintais nessa fotografia da Figura 22. A antiga sala de
projeção de cinema pode ser lida, alegoricamente, como o espaço de produção e de criação de
fotogramas líricos. A antiga máquina de projeção de rolos cinematográficos pode, ainda, ser
metonimicamente percebida como a própria representação do artista que projeta imagens a
serem contempladas por um público observador. A película cinematográfica, por sua vez, é
abstração da obra literária – neste caso, uma alegoria visual que resgata as outras imagens
foto-grafadas na cartografia foto-poética de Deus é um lugar ameaçado (2018). Essa película,
assim como a ficção de Quintais sobre o ato de ver, é composta por fotogramas, pequenas
imagens fixadas que aparecem e desaparecem, segundo um movimento subjetivo de reflexão
sobre os próprios limites visíveis da linguagem poética e da linguagem fotográfica. Sendo
assim, na realidade ficcional de Deus é um lugar ameaçado (2018), nos deparamos com uma
voz condutora, que projeta imagens pela linguagem poética e pela linguagem visual que
guiam o leitor-observador por meditações e reverberações memorialísticas. Vemos, através
da disposição dos fotogramas líricos e da [des]associação entre eles e as reflexões poéticas em
prosa o desenrolar do pensamento na constante tentativa de fixar e representar algo que
escapa.
169
4. CONCLUSÃO
Nesta dissertação, portanto, percorremos alguns caminhos de leitura através da
percepção visual das imagens poéticas foto-grafadas pelo olhar antropológico do poeta-
fotógrafo contemporâneo português Luís Quintais. Em seu livro A noite imóvel (2017),
pudemos observar técnicas semelhantes às da fotografia como método de composição lírica.
Isso foi constatado em seus poemas que se desenvolvem por meio da criação de imagens
poéticas descritas e apresentadas ao leitor, guiando-o a um processo lírico-visual de resgate da
experiência contemplativa. Análogo ao fotógrafo, o sujeito poético demarca um
enquadramento do cenário que vê, pondo em focalização um objeto ou cena sobre os quais se
gera uma reflexão poética. Isso acorre pelo uso estético da linguagem poética, que
ecfrasticamente descreve pela voz lírica frases-imagens que ora se assemelham à realidade
objetiva ora destoam dela, evidenciando marcas da passagem do tempo. Pela linguagem
poética, Quintais promove a grafia de imagens nas quais se pode perceber a consciência da
condição precária das coisas. Seus poemas, nesse sentido, são desenvolvidos através de uma
voz lírica que constantemente se encontra na posição de observador que descreve, nos versos
do poema, a cena da vida contemporânea constantemente acompanhada de uma meditação
sobre o ver e a percepção subjetiva do que se vê. Percebemos e discutimos, pelos poemas
escolhidos de A noite imóvel (2017), uma escrita do ver, que põe em evidência, pela voz lírica
e pela linguagem, imagens fragmentadas ou de fragmentos. Nessas imagens poéticas, somos
motivados pelo eu lírico a visualizar rastros do mundo real que evocam um estado de reflexão
decorrentes dessa experiência visual.
A noite imóvel (2017), então, é um livro de poesia que promove um diálogo entre o
olhar poético – antropológico – e olhar fotográfico. Vimos, com isso, a tentativa de
estabelecer meios de contemplação da efêmera relação entre o homem e o tempo, sendo
aquele agente direto das transformações socioespaciais responsáveis pela alteração do modo
de percepção deste. Em suas imagens poéticas, o poeta destaca elementos cotidianos, com
ênfase sempre no espaço urbano, focalizando seus aspectos ruinosos. E por meio da
observação atenta dos espaços descritos nos versos de seus poemas, proporciona ao leitor,
pela poesia, um meio de visão que potencializa a forma como ele percebe a sua relação com
os espectros do tempo e do espaço. Compreendemos, por isso, seus poemas como fotogramas
líricos composto por esses restos da contemporaneidade que nos levam à reflexão da
170
identidade, através de indícios e sombras; e à interrogação da memória, da violência, da
melancolia.
Acompanhamos, além disso, um sujeito poético que, a partir de recursos estéticos da
linguagem verbal, cria imagens por vezes miméticas, por vezes metafóricas que visam propor
uma reflexão mais profunda em especial sobre a condição humana e da vida a sua volta. Isso
decorre do desenvolvimento de cenas de escrita pelas quais se põe em xeque a natureza dessa
composição imagética, os limites da linguagem e da representação, o real e o que percebemos
pela observação de fragmentos dele. Com isso, os fragmentos e as ruínas são objetos que se
fazem presentes constantemente nessas imagens poéticas, as quais, quando são observadas por
um olhar crítico, instigam uma de espécie autorreflexão e resgate memorialístico, decorrentes
de uma experiência dos vazios induzida pelo ato de ver. Desse modo, o poema abre-se
dialeticamente ao leitor que se depara com objetos que põem em suspensão a concepção de
tempo e de real, enquanto essas imagens foto-grafadas são colocadas em observação pela voz
lírica, que nos guia lentamente pelos versos a uma meditação sobre a linguagem e a sua
impossibilidade de dizer, sozinha, o mundo; sobre a ausência e a melancolia, estados de
espírito associados à noção de fim; sobre o tempo e as marcas involuntárias que sua passagem
deixa em todas as coisas do mundo. E dessas imagens poéticas, o poeta resgata memórias,
testemunhos, sentimentos e experiências subjetivas no leitor-observador que se deixa guiar
lentamente pela contemplação das imagens poéticas a ele reveladas.
Nesse percurso poético e fotográfico de Quintais, percebemos, além disso, uma
crescente aproximação entre as imagens foto-grafadas pela linguagem poética de Quintais e
as imagens fotografadas pelas lentes de sua câmera. O poeta-fotógrafo nos expõe a cenas em
que a voz poética e as câmeras fotográficas nos conduzem a um espaço visual em que nos
encontraremos com nossos próprios fantasmas e resgataremos o nosso próprio passado
individual ou coletivo nas cenas do presente foto-grafado. Em função de sua poesia propor
uma teoria do ver, por isso, o poeta se aproximou da fotografia e passou a transpor seu olhar
poético em fotografias poéticas que revelam e carregam traços de suas obsessões líricas,
como as ruínas, a memória e a melancolia. Através dessa associação, visualizamos a
semelhança entre processo de criação de imagens poéticas e de imagens fotográficas, uma vez
que ele cria imagens foto-grafadas dialéticas: as quais, devido às marcas invisíveis deixadas
pelos limites da linguagem representativa, guardam em si vestígios da transformação da
condição das coisas no tempo-espaço.
171
Com esse processo de observação, as fotografias nos olham novamente e estimulam,
pela sensação de vazio, o resgate de experiências subjetivas que preencham essas lacunas. O
poeta-fotógrafo busca por cenas em que possa pôr em foco e análise objetos criados pelo
homem, em estado ruinoso e de abandono, sob o seu próprio filtro cultural. E através das
técnicas de fixação de imagem, como a composição, a iluminação, a angulação e o
enquadramento, por exemplo, as suas fotografias possibilitam ao leitor-observador uma outra
forma de interpretar esses objetos em cena, sobretudo pelo viés da presença e da ausência. O
olhar e a percepção do poeta-fotógrafo são impressos em imagem fotográfica através da
câmera, e, do enquadramento escolhido, conseguimos ver uma cópia daquilo que foi
propositalmente escolhido pelo artista para contemplarmos. Por isso, esses objetos que
compõem a cena fotografada foram arquitetados e organizados em um determinado ângulo,
enquadramento e foco, de acordo com as necessidades estéticas e filosóficas do poeta-
fotógrafo. Esse fragmento intencional da realidade capturado em imagem, portanto, constrói
uma teatralização fruto da subjetividade e da percepção artística do mundo que é transportada
para a fotografia.
Essas reflexões fazem que a fotografia seja entendida, também, como um suporte
poético para expressão das obsessões líricas constantes na obra de Quintais. Nas suas
fotografias, como observamos, somos guiados a olhar novamente e mais atentamente os
resquícios do mundo contemporâneo. Da arquitetura em ruínas a objetos comuns do dia a dia
descartados, por exemplo, observamos Quintais foto-grafar cenas como suporte de uma
experiência de luto. Na arte fotográfica, por conseguinte, Quintais promove um choque
fotográfico, ou seja, uma provocação potencializada por detalhes projetados na composição
da cena que são capazes de retirar o espectador da imobilidade da imagem fotográfica e levá-
lo ao encontro da emanação real por ela incorporada. Nessa expressão artística, é conferido ao
poeta-fotógrafo a potência de escolher, do mundo real objetivo, um fragmento visual que
também toca o observador. Com isso, as ruínas, o desgaste e a degradação da matéria
funcionam como técnica de produção de melancolia, esta que tende a funcionar como um
processo de auto-observação que leva o sujeito a debruçar sobre si como forma de reação a
uma experiência de um objeto de afeto. Nosso poeta-fotógrafo coloca o seu observador diante
de uma cena real presenciada por ele e capturada em imagem fotográfica.
Nas fotografias de Quintais, então, os objetos em ruínas têm caráter antropológico.
Carregam consigo um passado, um presente e um futuro que são projetados em tensão pelas
lentes da sua câmera fotográfica. No livro Deus é um lugar ameaçado (2018) pela editora
172
Huggly Books, percebemos como as Polaroides fotografadas sob o filtro cultural de Quintais
destacam fragmentos comuns do espaço e de objetos da vida contemporânea e nos convida
lentamente a (re)conhecer, também, a sua história para além dessa composição visual.
Notamos como as escolhas estético-editoriais dialogam direta e indiretamente com os temas
fotográficos escolhidos por Quintais. Na obra, a linguagem poética e a linguagem visual são
colocadas em xeque de modo a destacar os limites da representação e da percepção. O ato de
ver, dessa forma, entra em performance não só para discutir sobre aquilo que se vê na
fotografia, mas também aquilo que se experimenta pela percepção de sensações, memórias,
histórias e sentimentos escondidos nos limites da linguagem. Estes, por sua vez, são
intencionalmente projetados na imagem pelo artista para que o leitor-observador mergulhe no
tempo passado e resgate experiências individuais e coletivas pela observação das cenas em
exposição. Como um poeta fingidor, Quintais organiza uma obra ficcional que recorta, a
partir de conjuntos de fotografias e de imagens poéticas, uma fração da realidade e a põe em
exposição através da relação entre a poesia, imagem, linguagem, representação, realidade e
espaço.
Observar atentamente esses objetos e o espaço presente nas Polaroides de Deus é um
lugar ameaçado (2018) é refletir sobre o mundo e seus restos, é (re)conhecer a natureza da
condição humana, frágil frente à passagem do tempo, é perceber aquilo que escapa à
linguagem representativa. Nessa ficção sobre o ver, Quintais se propõe a estabelecer um olhar
atento às ruínas, que guia o leitor-observador a experimentar a ausência. Isso porque ele
proporciona ao leitor imagens capazes de reconfigurar os modos de experimentação da sua
relação com os espectros do tempo e do espaço mediados sobre a incapacidade de a
linguagem representar todos os simbolismos da imagem. Seja no plano estético, seja no plano
do conteúdo, o leitor-observador é exposto a uma imagem poética que instiga a meditação
sobre o tempo e sobre como todas as coisas são frágeis e efêmeras frente à violenta passagem
do tempo que sempre deixará marcas visíveis ou invisíveis na superfície de todas as coisas. A
fotografia, assim, apresenta ao observador não somente elementos que podem ser facilmente
vistos, já que aparecem reproduzidos pela câmera fotográfica, mas também inquietações
invisíveis alcançadas através da observação atenta dos detalhes impressos pelo olhar
ontológico do fotógrafo e pelo mecanismo de sua câmera.
Essa é a potência da produção fotográfica de Quintais que evidencia sua verdadeira
obsessão lírica por resistência aos vazios da contemporaneidade, vazios que nas imagens
fotográficas, tal como na poesia, influenciam o leitor-observador a buscar dentro de si algo
173
que não esteja presente na imagem, mas que consiga preencher essa sensação de
esvaziamento. Em função disso, as imagens foto-grafadas por Quintais, representam não só a
emanação do fragmento espaço-tempo, mas também uma fragmentação do eu poético que
tenta estabelecer mecanismos de análise sobre o ato de ver; sobre a percepção subjetiva;
sobre o caráter simbólico do espaço e dos objetos nos fotogramas líricos; sobre limites da
representação, sobre as transformações inevitáveis com a passagem do tempo; sobre a
natureza e a condição humana no mundo contemporâneo.
174
5. BIBLIOGRAFIA
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http://www.janepack.net/illiad.
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na plataforma virtual Flickr , disponíveis pelo link:
https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/, quanto em seu blog, disponível pelo link:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/.
Blog:
O blog do poeta pode ser encontrado pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/.
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185
[Imagens que passais pela retina]
Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, porque não vos fixais? Que passais como a água cristalina Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncais, E o vago medo angustioso domina, - Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos? - O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão casual de meus dedos incertos, - Estranha sombra em movimentos vãos.
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INVECTIVA CONTRA OS CISNES
A alma, ó gansos, voa para lá dos parques
E muito para lá das discórdias do vento. Uma chuva brônzea do sol descendo assinala
A morte do verão, que neste tempo persiste Como alguém que rabisca um apático testamento
De garatujas douradas e páfias caricaturas, Legando as vossas penas brancas à lua
E ofertando os vossos delicados movimentos ao ar. Vejam, já nas longas paradas
Os corvos ungem as estátuas com seus excrementos. E a alma, ó gansos, sendo solitária, voa
Para lá das vossas indiferentes carruagens, para os céus.
*
NAS CAROLINAS
Os lilases murcham nas Carolinas.
Já as borboletas adejam sobre os camarotes.
Já os recém-nascidos interpretam o amor
Nas vozes das mães. Mãe intemporal,
Como é que teus galantinos mamilos
De uma vez verteram mel? O pinheiro adoça o meu corpo
A íris branca embeleza-me.
[Poemas retirados de Wallace Stevens, Collected Poems, Londres e Boston, Faber and Faber,
1990 [1955], pp. 4-5; originalmente publicados em Harmonium, 1923]73
*
OS VERMES AOS PORTÕES DO PARAÍSO74
Da tumba, trazemos Badrulbadur, Em nossos ventres, sua carruagem. Eis um olho. E eis aqui, um por um, Os cílios desse olho e a alva pálpebra. Eis a face em que a pálpebra descia, E aqui, dedo após dedo, eis a mão, O gênio dessa face. Eis os lábios, Eis o fardo do corpo, mais os pés. . . . . . . . . . . . Da tumba trazemos Badrulbadur
73 Esses poemas foram retirados do blog do poeta Luís Quintais, podendo ser acessados pelo link:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/03/11/dois-poemas-de-wallace-stevens/ 74 Essa tradução foi feita por Paulo Henriques Brito e pode ser encontrada, junto de sua versão original, pelo
link: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/seis-poemas-de-wallace-stevens/
188
*
CANÇÃO75
Há coisas esplêndidas acontecendo No mundo, Coelhinho. Há uma donzela, Mais doce que o som do salgueiro, Mais suave que água rasa Correndo sobre seixos. No domingo, Ela veste um casaco longo, Com doze botões. Conta isso à tua mãe.
*
O CÉU CONCEBIDO COMO UM TÚMULO76
Que me dizeis, intérpretes, dos que No túmulo do céu andam à noite, Fantasmas negros da comédia finda? Creem, talvez, que vagarão pra sempre No frio, no escuro, com lanternas altas, Libertos da morte, a buscar sem trégua O que quer que busquem? Ou a lembrança Do enterro, portão da espiritual Chegada ao nada, é antevisão diária Daquela noite única e abissal Em que as hostes não mais caminharão, Nem mais lanternas riscarão a treva? Gritai essa pergunta aos céus, que a ouçam Os sombrios comediantes, e a respondam Do seu longínquo e gélido Élysée.
*
TATUAGEM77
A luz lembra uma aranha.
75 Essa tradução foi feita por Paulo Henriques Brito e pode ser encontrada, junto de sua versão original, pelo
link: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/seis-poemas-de-wallace-stevens/ 76 Esses poemas foram retirados do blog do poeta Luís Quintais, podendo ser acessados pelo link:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/03/11/dois-poemas-de-wallace-stevens/ 77 Esses poemas foram retirados do blog do poeta Luís Quintais, podendo ser acessados pelo link:
https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/03/11/dois-poemas-de-wallace-stevens/
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Caminha sobre a água. Caminha pelas margens da neve. Penetra sob as tuas pálpebras E espalha ali suas teias – Duas teias.
As teias de teus olhos Estão atadas À carne e aos ossos teus Como a um caibro ou capim.
Há filamentos de teus olhos Na superfície da água E nas margens da neve.
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Yeou ensinou os homens a quebrar galhos Seu Gin montou o palco e ensinou permutas,
ensinou o enlaçar das cordas Fou Hi ensinou os homens a plantar cevada
2837 ante Christum e eles sabem ainda onde está sua tumba pelo alto cipreste entre os sólidos muros. os CINCO grãos, disse Chin Nong, que são
trigo, arroz, milho, gros blé e ervilhas e fez um arado que se usa há cinco mil anos Mudou então sua corte para Kio-feou-hien lançou o mercado ao meio-dia ‘traga o que não temos aqui’, escreveu um herbário Souan yen liqüidou quinze tigres
extraiu sinais de pistas de pássaros Hoang Ti inventou o fabrico de tijolos e sua mulher iniciou o trabalho com os bichos-da-seda
dinheiro havia nos tempos de Hoang Ti. Ele mediu o comprimento de Syrinx
dos tubos para fazer o entoar para canção Vinte e seis (isso era) onze ante Christum
teve quatro mulheres e 25 machos de sua feitura Seu túmulo fica hoje em Kiao-Chan Ti Ko pôs seus mestres a adequar palavras para a música deles
está enterrado em Tung Kieou Isto foi no século vinte e cinco a.C.
YAO semelhante ao sol e à chuva viu qual estrela está no solstício viu qual estrela assinala o meio do verão YU, guia de águas,
a terra negra é fértil, a seda silvestre ainda vem de Shang Ammassi, para as províncias,
deixe seus homens pagarem dízimos em espécie. ‘A província de Siu-tcheou a pagar com terra de cores cinco Plumas de faisão das montanhas de Yu-chan Yu-chan a pagar sicômoros
desta madeira são feitos os alaúdes Ressonantes pedras do rio Se-choui e erva que é chamada Tsing-mo’ ou m©li, Chun para o espírito de Chang Ti, do céu movendo o sol e estrelas
que vos vers expriment vos intentions, et que la musique conforme
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Figura 23 - Sem título78
Fonte: Luís Quintais (2019)
78 Essas fotografias foram retiradas do blog do poeta Luís Quintais, na publicação 物の哀れ, Mono-no-aware,
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Figura 24 - Sem título79
Fonte: Luís Quintais (2019)
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Figura 25 - Sem título80
Fonte: Luís Quintais (2019)
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Figura 26 - Sem título81
Fonte: Luís Quintais (2019)
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