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CAPTURANDO IMAGENS NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS ...

Date post: 06-Mar-2023
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MÁQUINA DE [FOTO]GRAFIA: CAPTURANDO IMAGENS NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS Brendo Vasconcellos de Faria UFF PPG ESTUDOS DE LITERATURA Niterói, março de 2021
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MÁQUINA DE [FOTO]GRAFIA: CAPTURANDO IMAGENS

NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS

Brendo Vasconcellos de Faria

UFF – PPG ESTUDOS DE LITERATURA

Niterói, março de 2021

BRENDO VASCONCELLOS DE FARIA

MÁQUINA DE [FOTO]GRAFIA: CAPTURANDO IMAGENS

NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Estudos de Literatura, Instituto de Letras da Universidade Federal

Fluminense, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre.

Linha de Pesquisa: Literatura, Teoria e Crítica. Área de Concentração: Literatura Portuguesa e Africanas de Língua

Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª Ida Maria Santos Ferreira Alves

UFF – Universidade Federal Fluminense

Instituto de Letras

Niterói, março de 2021

MÁQUINA DE [FOTO]GRAFIA: CAPTURANDO IMAGENS

NA POÉTICA DE LUÍS QUINTAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Estudos de Literatura, Instituto de Letras da Universidade Federal

Fluminense, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre.

Linha de Pesquisa: Literatura, Teoria e Crítica. Área de Concentração: Literatura Portuguesa e Africanas de Língua

Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª Ida Maria Santos Ferreira Alves

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ida Maria Santos Ferreira Alves (Orientadora – UFF)

__________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Mônica Genelhu Fagundes

Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________________________ Prof.º Dr. º Pascoal Farinaccio

Universidade Federal Fluminense

SUPLENTES

_______________________________________________________ Prof.º Dr. º Luís Claudio de Sant’anna Maffei

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria José Cardoso Lemos

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

AGRADECIMENTOS

Primeiramente aos meus guias, protetores e queridos Orixás que me acompanharam

durante todo o percurso desta dissertação, possibilitando caminhos abertos, sabedoria,

dedicação e um porto seguro, fundamentais para que eu prosseguisse, mesmo em momentos

de instabilidade.

À minha mãe, Adriana Vasconcellos de Faria, que dedicou toda a sua vida para que

seus filhos alçassem voos cada vez mais altos. Seus esforços, seu apoio e seu incentivo

fizeram deste percurso o pontapé inicial para o meu desenvolvimento acadêmico. Muito

obrigado, mãe, por ser meu espelho profissional e afetivo.

À minha orientadora prof.ª Dr.ª Ida Alves, a quem eu tive a satisfação de acompanhar

desde a IC até aqui. Em suas aulas, conheci a obra de Luís Quintais, e com suas orientações,

consegui adentrar e reconhecer esse novo mundo de fotogramas líricos. Muito obrigado

pelas conversas, pelos conselhos, pela paciência, pelo acolhimento e por acreditar nesta

pesquisa.

À querida prof.ª Dr.ª Maria Cristina Firmino Santos, do Departamento de Linguística

e Literaturas da Universidade de Évora, quem me acolheu durante meu intercâmbio em

Portugal. Agradeço especialmente pelo carinho com que me recebeu na Universidade de

Évora; por ter me dado de presente o livro A noite imóvel (2017), que me acompanhou

durante o intercâmbio e se tornou objeto de estudo nesta dissertação; e pelos riquíssimos

diálogos crítico-literários os quais tive a satisfação de acompanhar e de participar.

A todos os professores que tive, desde o Ensino Fundamental ao Ensino Superior.

Acredito no poder transformador da educação porque durante esses anos assisti a aulas que

me motivaram a buscar o conhecimento. Em particular, à minha grande inspiradora, a

professora Iara Bastos, cuja paixão pela literatura e pela educação fizeram despertar, em

mim durante o ensino médio, o verdadeiro prazer do texto; ao prof. º Dr. º Silvio Renato

Jorge, por quem fui belissimamente apresentado à Literatura Portuguesa, suas aulas foram

como viagens nessa outra terra; à prof.ª Dr.ª Diana Irene Klinger, com quem reconheci a

teoria literária, em suas consegui reencontrar a potência da literatura.

Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pela

bolsa de estudos e auxílio financeiro que possibilitou a dedicação ao programa de Pós-

graduação em Estudos de Literatura.

Por fim, a todos os meus amigos e familiares que contribuíram, direta ou

indiretamente, para a realização desta dissertação. Sem essa rede de suporte, não teria sido a

mesma gratificante jornada. O meu sincero agradecimento.

RESUMO

Esta dissertação propõe-se a analisar a interseção entre a produção poética e a produção

fotográfica do poeta português contemporâneo, Luís Quintais, desenvolvendo tanto uma

abordagem analítica das imagens poéticas criadas em seus poemas, como também das

imagens líricas produzidas através da sua câmera fotográfica, baseado numa teoria do ver

que perpassa ambas as textualidades. Nesse sentido, no primeiro momento, observa-se a

presença de um olhar meditativo e antropológico da voz poética, que resgata e descreve em

"fotogramas líricos" traços da memória, da violência e da ausência que marcam a condição

contemporânea; no segundo momento, objetiva-se demonstrar que a fotografia tornou-se

cada vez mais um suporte lírico para o poeta, que passou a produzir livros de poesia em que

as fotografias aparecem, também, como um objeto poético que põe em observação

fragmentos do mundo contemporâneo, realçando a melancolia, o luto e o fim através da

contemplação de marcas e contrastes da passagem do tempo.

Palavras-chave: Poesia contemporânea portuguesa, Luís Quintais; imagem poética;

fotografia; ruínas.

ABSTRACT

This dissertation aims at analyzing the intersection between the poetic production and the

photographic production of the contemporary Portuguese poet, Luís Quintais, developing

both an analytic approach of the poetic images created in his poems, as well as the lyrical

images produced through his photographic camera, based on a theory of seeing that runs

through both textualities. Therefore, at first we intend to observe the presence of a

meditative and anthropological eye at the poetic voice, which rescues and describes in

"lyrical frames" traces of memory, violence and absence that mark the contemporary

condition; while in the second moment we aim to demonstrate that photography has

increasingly become a lyrical support for the poet, who started to produce books of poetry in

which the photographs also appear as a poetic object that put fragments of the world under

observation contemporary, highlighting melancholy, mourning and the end through the

contemplation of marks and contrasts of the passage of time.

Keywords: Portuguese contemparaty poetry, Luís Quintais; poetic image; photography;

ruins.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Staircase ................................................................................................................ 28

Figura 2 - Sem título ............................................................................................................... 32

Figura 3 - Ideograma Mu, que significa “vazio”. ................................................................... 38

Figura 4 - São Jerônimo – Óleo sobre madeira de carvalho. 59,5 x 48,5 cm ......................... 65

Figura 5 - Untitled («Motion-Sound Landscape») ................................................................. 73

Figura 6 - Achilles Mourns Patroclus .................................................................................... 80

Figura 7 - Thetis Goes to Hephaestus for New Armor ........................................................... 81

Figura 8 - Priam Begs for the Body of Hector ........................................................................ 85

Figura 9 - Death of Bold Dancer ............................................................................................ 91

Figura 10 - Achilles Rejoins the Fight .................................................................................... 92

Figura 11 - About Buildings ................................................................................................... 98

Figura 12 - Budapeste, Setembro de 2016 ............................................................................ 102

Figura 13 - Food for thought ................................................................................................ 109

Figura 14 – Upload ............................................................................................................... 113

Figura 15 - E o Outono será sempre a estação .................................................................... 119

Figura 16 – Staircase ............................................................................................................ 130

Figura 17 – Staircase ............................................................................................................ 138

Figura 18 - Sem título ........................................................................................................... 148

Figura 19 - Sem título ........................................................................................................... 154

Figura 20 - Sem título / You taught men to break branches ................................................. 157

Figura 21 - Sem título / Tanto a beleza eu contemplei ......................................................... 161

Figura 22 - Sem título ........................................................................................................... 167

Figura 23 - Sem título ........................................................................................................... 194

Figura 24 - Sem título ........................................................................................................... 195

Figura 25 - Sem título ........................................................................................................... 196

Figura 26 - Sem título ........................................................................................................... 197

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 14

2. [FOTO]GRAFIA: A PROCURA DA IMAGEM ............................................................ 26

2.1 Brincava com uma lupa: a poesia atravessada pelo olhar........................................ 26

2.2 A imagem poética ........................................................................................................ 39

2.3 Pelas janelas as palavras: as formas de percepção ..................................................... 59

2.4 Um dia eternidade ou Algo permanece: grafar o tempo e a história ........................... 75

3. FOTOGRAMA: A FOTOGRAFIA COMO OBJETO POÉTICO ................................... 94

3.1 Observar, enquadrar, capturar: a fotografia também como objeto poético.............. 94

3.2 Uma figuração da luz ............................................................................................. 110

3.3 Persigo os fragmentos: ao constante encontro da fotografia .................................... 144

4. CONCLUSÃO .............................................................................................................. 169

5. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 174

5.1 Fontes primárias ..................................................................................................... 174

5.2 De outros poetas ..................................................................................................... 175

5.3 Fontes teórico-críticas ............................................................................................ 176

ANEXO I – POEMA DE CAMILO PESSANHA ............................................................... 184

ANEXO II – POEMAS DE WALLACE STEVENS ........................................................... 186

ANEXO III - CANTO LIII, OS CANTOS, POUND. TRAD. TRADUÇÃO DE JOSÉ LINO

GRÜNEWALD (2006) ......................................................................................................... 190

ANEXO IV – PEQUENO DOSSIÊ DE FOTOGRAFIAS DE QUINTAIS SOBRE O

JAPÃO .................................................................................................................................. 193

Eu sou aquele que longamente

Observa e escuta.

Procuro uma imagem,

Um resíduo da experiência.

Procuro um exemplo.

Uma figuração da luz.

Uma voz mistura-se

Com o rumor das acácias.

Um sinal de trânsito esplende

A rubra ruína. –

Voz, vento, ferrugem.

Luís Quintais

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1. INTRODUÇÃO

Essa proposta de dissertação nasceu durante o meu período de intercâmbio, pelo

processo de Mobilidade Internacional da Universidade Federal Fluminense para a

Universidade de Évora, Portugal, como um desdobramento da minha pesquisa de Iniciação

Científica no âmbito do projeto UFF / CNPq: "Geografias da Emoção: Paisagens em

Movimento na Poesia Portuguesa pós-70", de minha orientadora, Prof.ª Ida Alves, no período

de 2016 a 2017. Durante esse tempo em terras lusitanas, fui acompanhado pelo livro A noite

imóvel (2017) do poeta português contemporâneo Luís Quintais, uma das obras poéticas em

análise nesta dissertação, que recebi de presente da Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Firmino Santos,

professora do departamento de literatura da Universidade de Évora. Nesse livro, pude

perceber poemas que teorizam o “ver”. Isso em função de o eu lírico estar em posição de

observador de cenas e a compor imagens poéticas que descrevem, a partir de um

enquadramento escolhido, objetos, ações, figuras sobre os quais propõe uma reflexão lírica e

fortemente antropológica. Como um fotógrafo, o poeta fixa em palavras um fragmento do

tempo-espaço que se transforma em imagem poética. Nessa espécie de fotograma lírico, vê-se

uma vontade de discutir a condição do homem, da linguagem e da imagem frente à vida

contemporânea, ao espaço urbano à sua volta e ao tempo presente, destacando como todas as

coisas são submetidas a indubitáveis mutações.

À medida que lia Quintais, por isso, sentia-me inquietado pelas imagens poéticas e

fotográficas – pois nesse período conheci a outra face do poeta que também é fotógrafo

amador – com as quais me deparava. Isso me fez buscar compreender como e por que essas

imagens tinham, em mim, esse efeito de incentivo à reflexão crítica. Encontrei, então, nos

textos de Didi-Huberman questionamentos e análises que apontam possíveis motivos para

uma imagem ser uma ferramenta de impulso à análise crítica. Com a leitura do ensaísta, pude

perceber que, no processo de olhar o mundo, o indivíduo, frente ao que contempla,

experimenta um duplo processo de observação: aquilo que vejo também me olha. Isso ocorre

porque, como podemos compreender na teoria da imagem pensada por Didi-Huberman, no

olhar atento a um objeto estético, por exemplo, o observador é capaz de perceber além da

figuração de algo, outra coisa ainda que, nesse olhar, o atinge. Esse fato decorreria,

principalmente, de uma “espécie de esvaziamento” experimentado pela observação, já que

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essa imagem dá a ver não só o que está facilmente perceptível no campo do visível, como

também o que falta a ela: a imagem também representa uma ausência.

A imagem, desse modo, ao mesmo tempo que marca a presença de um elemento

concreto (um objeto, uma cena, uma pessoa etc.), marca também a sua ausência: não estamos

diante desse elemento de fato, mas de um rastro, de um vestígio dele. Em função desse duplo

movimento de representação, ocorre, para Didi-Huberman, uma sensação de perda por meio

da qual somos levados à percepção e ao resgate de percepções coletivas sobre o que vemos –

e que também nos observa novamente. Isso pode ser mais facilmente compreendido a partir

da observação de um álbum fotográfico. As imagens fotográficas ali presentes, por exemplo,

são fragmentos de um tempo-espaço real passado, a fixarem memórias do que não

gostaríamos de perder em imagens atemporais. Quando, tempos depois, nos colocamos diante

dessas fotografias, elas têm a potência de nos afetar: nós não somos mais aquelas pessoas

presentes naquelas cenas, mas essas cenas guardam vestígios visíveis e invisíveis desse um

tempo-espaço real passado. Envelhecemos, amadurecemos, nossa fisionomia não se manteve

igual, e, diante da imagem, somos levados a resgatar essas experiências coletivas e subjetivas.

Uma imagem guarda muitas memórias pelas quais, no ato de observação, também somos

inquietados. No entanto, o que na composição da imagem tem a potência de afetar o

observador? Como decorre esse processo de inquietação pela observação? Como a linguagem

e a percepção do artista se articulam durante a captura de imagens que inquietam?

Esses questionamentos me levaram a buscar em Didi-Huberman (2010), Jacques

Rancière (2012), Gaston Bachelard (1957), Roland Barthes (1981) e Michel Collot (2013),

algumas reflexões sobre a relação entre imagem, linguagem, mensagem e espaço, de modo

que pudesse compreender como os elementos constituintes de uma imagem – literária ou

fotográfica – podem incentivar o espectador a experimentar sensações subjetivas pela

observação. Ao passo que, em Vilém Flusser (2008), Susan Sontag (2004), Boris Kossoy

(2001) e Walter Benjamin (1928), consegui encontrar análises sobre a relação entre a

fotografia, a poesia e a ruína; a definição e a explicação de processos e técnicas da criação de

imagens poéticas pela linguagem literária e pela linguagem fotográfica; bem como reflexões

sobre as experiências subjetivas da contemplação. Minha proposta, com base nesses estudos, é

evidenciar como Quintais cria fotogramas líricos – pela linguagem poética e pelas câmeras

fotográficas – encenado e teorizando o ato de ver. A partir dessa perspectiva teórico-crítica,

selecionei dois livros do poeta português nos quais percebo um forte diálogo entre a

linguagem poética, a linguagem fotográfica e a visualidade como objeto poético. O primeiro

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deles é o livro A noite imóvel (2017), em que Luís Quintais usa artifícios linguístico-visuais

em seus versos que descrevem imagens poéticas e põem o ato de ver em performance. O

segundo trata-se de um livro cujo gênero textual se encontra em suspensão, uma vez que é

composto de pequenos fragmentos reflexivos e Polaroides. Em Deus é um lugar ameaçado

(2018), Quintais mais uma vez põe o ato de ver em performance mediante recursos estético-

visuais que colocam em evidência os limites da imagem, da linguagem, da representação e da

percepção. Organizo, em função disso, minha análise em dois momentos: 1) uma análise da

poética de Quintais atravessada por um olhar fotográfico; e 2) uma análise da produção

fotográfica do poeta atravessada pelo seu olhar lírico. Examinar e discutir essas travessias

será o cerne de minha dissertação de mestrado. Com isso, proponho uma reflexão sobre a

produção poética (constante) em diálogo com a fotográfica (intermitente), nas quais vejo

técnicas semelhantes de construção imagética, seja no plano estético/de conteúdo, seja no

plano formal/de estrutura.

No primeiro momento, buscarei abordar alguns aspectos sobre a imagem poética,

através da análise da produção lírica de Quintais presente no livro de poesia A noite imóvel

(2017). Para isso, são necessárias algumas ponderações acerca do conceito de imagem e de

suas implicações formais e estéticas. Em sua obra poética, observa-se uma constante escrita

sobre o “ver”, em que pelas palavras fixam-se imagens. Nesse processo, frequentemente o eu

lírico está em posição de observador de uma cena a qual descreve, colocando-a em exposição

para um outro espectador: o leitor-observador. Consequentemente, procurarei mostrar como o

poeta tensiona a linguagem verbal de modo a criar imagens poéticas que recortam e fixam

fragmentos do mundo contemporâneo. Nosso primeiro passo, então, será compreender a

importância da imagem e da percepção visual para o processo de leitura de A noite imóvel

(2017), tendo em vista que o livro é um convite à contemplação e à análise de imagens foto-

grafadas e postas em exibição ao leitor-observador.

Foi necessário, nesse sentido, voltar a Didi-Huberman (2010) que propõe uma reflexão

acerca do ato de observação de uma imagem, destacando a experiência subjetiva decorrente

desse processo. Sua análise sugere que essa “experiência visual” afeta o observador, porque:

a) as imagens são dialéticas; e b) o ato de observação nos leva a uma experiência do vazio.

Em função disso, Didi-Huberman percebe que, diante da imagem, há duas possíveis respostas

do observador: 1) ele pode buscar perceber além do vazio experimentado através da imagem,

ou 2) ele terá uma reação tautológica, ou seja, não pretenderá ver nada além daquilo que é

visto. Didi-Huberman compreende a imagem como um objeto em tensão, que nos permite,

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pelo ato de observação, experiências subjetivas que podem afetar a nossa forma de percepção

visual. O ato de ver, nesse contexto, é afastado do pragmatismo – não se trata de uma

máquina de visualização e reconhecimento automáticos, mas, sim, de uma experiência que

afeta, incomoda, proporcionando ao sujeito novas percepções visuais. Nesta dissertação,

aproximo a reflexão acerca do ato de ver e suas experiências, analisados por Didi-Hubeman,

às imagens poéticas descritas nos poemas de Luís Quintais presentes no livro A noite imóvel

(2017). Busco perceber como a voz lírica, por meio da composição de imagens dialéticas

marcadas por ruínas, destroços e fragmentos urbanos, visa atingir o leitor de modo a

transformar o(s) seu(s) modo(s) de percepção não só da imagem grafada no poema como

também do mundo à sua volta. A partir de uma poética que põe em cena o ver, pretendo

perceber como, em A noite imóvel (2017), o poeta cria imagens poéticas por meio de

alegorias visuais que discutem a condição humana frente a ruínas, aos restos e aos vestígios

dessa condição.

Em Rancière (2012), também me deparei com reflexões sobre a composição da

imagem artística, seja ela representativa ou não. Em seu estudo, encontrei uma relação entre

linguagem escrita e a criação de imagens estéticas. O ensaísta destaca que a palavra faz ver

duplamente, já que ela depende 1) da abstração de imagens do mundo em símbolos e

vocábulos linguísticos; e 2) da compreensão de que o significado abstraído pela palavra

ocorre por uma tradução do símbolo linguístico em imagem cognitiva. A partir disso,

proponho um diálogo entre a criação de imagens nas artes visuais, pela grafia de imagens em

gravuras, pinturas e fotografias etc. com a criação de imagens na literatura, pela grafia de

imagens por palavras nos processos descritivos e narrativos – [foto]grafia. Isso porque a

linguagem poética é capaz de transformar as palavras – e seus significados – em cenas de

escrita uma vez que o artista pode, num movimento semioclástico, deslocar sentidos e, por

isso, criar novas relações e experiências poético-visuais. Assim, é possível o sujeito autor –

aquele que tem domínio sob as palavras – trabalhar com a escrita de modo a subordiná-la a

procedimentos estéticos e literários próprios de acordo com seu filtro cultural. Essa

capacidade de a literatura transformar palavras em imagens é uma reflexão sobre a forma de

composição das imagens poéticas e o seu processo de criação: construção de metáforas,

deslocamento de significados, quebra sintática pelos versos etc., pois essas técnicas da escrita

poética são mecanismos de construção de imagens únicas. É por meio dessa potência da

linguagem que Quintais cria fotogramas líricos mediante a voz de um sujeito lírico

frequentemente em posição de observador de uma cena, descrevendo-a lentamente e em

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detalhe. Esse uso ecfrástico é, nos poemas de Quintais, um modo muito constante de

converter a língua em as imagens poéticas dotadas de uma antropologia contemporânea. Mas

para quê criá-las? Como elas afetam o leitor de um poema? Em Quintais, tento perceber a

importância desse mecanismo estético para integrar poemas em que há uma reflexão social, e

por vezes política, da condição humana, em que são postos em crítica a percepção visual e a

textualidade, destacando efeitos relacionais que tencionam a linguagem, a percepção e a

imagem.

Recorro, então, ao filósofo Flusser (2002) que também se deteve ao estudo das

imagens. Em sua análise, Flusser desenvolve uma linha de raciocínio que percorre desde a

observação das primeiras imagens produzidas manualmente (um retorno à arte rupestre feita

pela civilização pré-histórica antes do advento da escrita) à observação das imagens

produzidas tecnicamente através de mecanismos analógicos (como a caixa preta e as câmeras

fotográficas digitais). Nesse estudo, Flusser destaca que essas imagens (diacronicamente) são

um produto – esboço – da tentativa humana de representar as coisas do mundo, funcionando

como um sistema iconográfico capaz de fixar em imagens a manifestação da imaginação do

homem. As imagens, nesse contexto, dão a ver formas à abstração presente no imaginário

comum, proporcionando modos de reconstruir a nossa percepção das coisas do mundo. A

partir dessa reflexão inicial, Flusser irá pensar as imagens a partir da sua capacidade de

abstração do imaginário, organizando-as em dois tipos: as imagens tradicionais e as imagens

técnicas (as quais retomaremos mais adiante). Nas imagens foto-grafadas de Quintais,

notamos que os objetos em cena – constantemente em estado ruinoso – carregam um caráter

alegórico e antropológico. Ao escolher o enquadramento, o foco e a cena, a voz poética

reproduz um fragmento da vida contemporânea, normalmente em ruínas, e nos convida

lentamente a (re)descobrir, também, a sua natureza histórica e antropológica. Contemplar

atentamente esses fotogramas líricos é uma forma de refletir sobre o mundo e seus restos,

sobre a natureza da condição humana, fragilizada, passiva e submissa à passagem natural do

tempo. Na contemplação atenta às ruínas, somos convidados a experimentar a ausência e uma

sensação de vazio que estimulam o resgate memorialístico de algo que seja capaz de

preencher esses vazios expostos pelos limites da frase-imagem. Em Quintais, observaremos

como as imagens poéticas figuram-se como alegorias que ressignificam poeticamente a nossa

percepção do tema em foco no fotograma lírico.

Acerca desse caráter alegórico das imagens poéticas de Quintais, encontramos um

diálogo possível entre a noção de fim e os objetos que compõem as cenas foto-grafadas nos

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seus versos. A natureza e o espaço urbano constantemente são representados a partir de um

enquadramento que coloca em questão seus aspectos ruinosos. Através da escolha desse

aspecto como tema da imagem, o poeta me fez recordar as concepções benjaminianas sobre a

“categoria do tempo”. Benjamin, em seu livro Origem do Drama Barroco Alemão [1928]

(1984), faz uma análise das ruínas presentes na história da humanidade – seja na arquitetura

seja nas artes – classificando-as como uma alegoria porque funcionam como um mecanismo

alegórico de constituição de sentido como produto da associação entre a natureza das coisas, a

sua história e seu estado de abandono e degradação. Em sua análise, é possível perceber que a

noção de alegoria é explicada a partir de um processo criativo de associação subjetiva entre o

significado de uma palavra (o signo linguístico – a abstração gramatical de imagens do

mundo), e as coisas existentes concreta e fisicamente no mundo real. Em uma alegoria, então,

ocorre a intensificação da subjetividade latente do mundo histórico a partir da percepção e

interpretação de imagens que esteticamente realçam o seu caráter cultural, histórico e

subjetivo. As ruínas, nesse contexto, aparecem como um recurso estético que tenciona a nossa

percepção do mundo, já que colocam em xeque que tudo na vida está condicionado ao fim, ao

mesmo tempo em que realçam que esse mesmo fim deixará sempre traços – ou lacunas no

espaço – que marcam simultaneamente a presença e a ausência, vestígios da história e da

memória. Os aspectos ruinosos dos elementos constituintes das imagens líricas de Quintais,

por isso, transformam-se em mecanismo alegórico que proporciona novos meios de percepção

e interpretação da noção de passagem do tempo, da condição das coisas frente à passagem do

tempo e da proximidade do fim.

No segundo momento, procurarei mostrar como há um produtivo diálogo entre a

fotografia e o olhar lírico de Quintais, estabelecendo uma relação entre o olhar poético que

atravessa e deixa marcas no olhar fotográfico. Para isso, detenho-me na contemplação de

fotografias do poeta que foram publicadas em sua plataforma Flickr1 e das Polaroides que

foram reproduzidas no seu livro Deus é um lugar ameaçado (2018). Noto uma forte

semelhança entre os seus processos de criação de imagens tanto pela linguagem poética

quanto pela linguagem fotográfica, uma vez que há a presença de temas comuns que

funcionam como uma espécie de filtro cultural que perpassa essas imagens: meditar sobre

uma antropologia, destacar os limites da linguagem e os limites da percepção visual. Com a

câmera fotográfica, o poeta cria fotografias que funcionam, também, como objeto poético:

elas evidenciam o seu filtro cultural e tendem a pôr em cena suas obsessões líricas como as

1 Disponível pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/

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noções de tempo, de espaço e de mundo. Quintais desenvolve, assim, uma espécie de

fotograma lírico – tanto nas fotografias do flickr como nas Polaroides de Deus é um lugar

ameaçado (2018) – que se abrem ao observador em diversas possibilidades de compreensão e

resgate de crenças, vivências, paisagens e identidades perdidas num momento passado e

revividas sempre incompletamente por meio delas.

Seguindo essa linha de raciocínio, encontrei, em Barthes (1981), uma relação possível

entre a poesia e a fotografia. Em ambas as produções, devido à capacidade de fixar imagens, o

semiólogo percebe mecanismos que transformam a linguagem, captam o instante e recortam o

real. Isso porque o uso ecfrástico da linguagem é capaz de fixar imagens que, como na

fotografia, são capazes de produzir studium e punctum, levando o espectador, em função dos

elementos linguístico-visuais constituintes da imagem, a um estado de reflexão e meditação, o

qual tende a modificar a forma como aquele interpreta e experimenta a realidade objetiva.

Com essa perspectiva, é possível compreender que a fotografia se configura como um

mecanismo artístico de captura de fragmentos do instante real, que conjuga a realidade com o

efeito de real. Este, para Barthes, é fator fundamental para que o espectador possa ser guiado a

experimentar e a vivenciar a realidade objetiva, seu passado, presente e futuro. As imagens,

com isso, incorporam o instante passado real, e como pegada mortuária, nos colocam diante

de um rastro daquilo que já não está mais à nossa frente no momento presente. Nesse

contexto, ao propor um recorte do real, na fotografia, o enquadramento e a manipulação da

imagem transformam-se, então, num mecanismo que recorta e tensiona a nossa percepção da

realidade.

Essa dupla realidade proporcionada pela fotografia é uma das características próprias

do processo fotográfico que o configura como um ato de aquisição, por possuir controle do

objeto fotografado. Nessa perspectiva, a partir do momento em que o fotógrafo decide uma

realidade a ser fotografada, ele passa a possuir um fragmento do tempo-espaço. Com isso, a

imagem fotográfica transforma-se em um mecanismo que transpõe as barreiras da mera

representação mimética de um objeto concreto da realidade, haja vista que, ao propor a

fixação, em imagem, de um fragmento do tempo passado, a fotografia pode ser vista como

uma arte que lança mão de uma dialética da imagem. Dialética essa responsável pela fricção

da linguagem visual, que dá a ver não somente o que se encontra visivelmente perceptível na

cena fotografada, mas também aquilo que reside nos limites da linguagem visual e que

somente é acessado através da subjetividade do observador. A imagem fotográfica é uma

forma possível de resgate, análise e reflexão da condição humana, já que promove

21

experiências subjetivas pela aproximação entre o visível e o invisível, o dizível e o

experimentado, a presença e a ausência.

Essa compreensão me fez procurar, ainda, em Sontag (2004), uma possível potência

antropológica das imagens fotográficas. Segundo seus estudos sobre a história da fotografia, a

técnica fotográfica é um mecanismo de registro material da cena em observação, pelo qual o

artista deixa marcas subjetivas, como uma realidade oculta oriunda dos processos técnicos de

fixação de imagens por câmeras fotográficas, do enquadramento e da cena a ser fotografada,

de tratamento e das edições aplicados à fotografia. Nesse cenário, a máquina pode ser

compreendida como extensão do filtro do fotógrafo, pelo qual é intencionalmente selecionada

uma cena composta por objetos delimitados pelo campo de visão do artista e pelo

enquadramento da câmera. São talhadas, como resultado, pequenas nuances imperceptíveis:

um vestígio de algo que não se percebe pelo horizonte da fotografia. A ensaísta entende,

ainda, que a técnica fotográfica é um mecanismo de composição artística que produz uma

obra que não só representa uma realidade tal qual ela foi – dotada de mimetismo e fidelidade

ao real objetivo –, como também tem a potência de destacar o fragmento do tempo-espaço

fotografado, dando margem ao espectador, interlocutor da mensagem fotográfica, para

analisar, refletir e reinterpretar a imagem em exposição e observação. Ao propor um recorte

do real, o olhar fotográfico, o enquadramento e a manipulação da imagem convertem-se num

mecanismo linguístico que fragmenta a continuidade do tempo-espaço e distribui seus

fragmentos em um dossiê interminável da percepção visual das coisas do mundo.

Na produção fotográfica escolhida de Quintais, viso perceber como esse recorte do

real promove uma expressão artística que põe em contemplação e meditação fragmentos da

condição das coisas no mundo. Suas fotografias são dotadas de caráter artístico, pois a cena

fotografada pode instigar, em seu leitor-observador, diversas formas subjetivas de percepção

da realidade [re]apresentada na imagem. O poeta-fotógrafo procura por cenas em que o tema

fotográfico é realçado pela análise de objetos em estado ruinoso e de abandono em contraste

com uma natureza viva e sobrevivente. Nesse contexto, são fixados na imagem também

estilos próprios do artista, possibilitados, sobretudo, pelo emprego dos recursos de edição

estético-visual dessas imagens.

Em decorrência disso, busquei em Boris Kossoy (2001), um fotógrafo, pesquisador,

historiador e professor brasileiro, a reflexão necessária para compreender as impressões

subjetivas deixadas pelos fotógrafos em suas imagens. Com a leitura de seu estudo, entende-

se que a interpretação de um tema fotográfico está diretamente ligada aos interesses e às

22

preocupações estéticas do fotógrafo. Isso porque o ensaísta estabelece um conjunto de

princípios fundamentais que trazem luz para uma compreensão acerca da natureza e da

técnica da fotografia. O fotógrafo brasileiro, então, traça uma cartografia e uma genealogia da

fotografia, a partir de uma percepção da natureza fotográfica como um recorte e um registro

documental e expressivo, da própria autonomia e da própria realidade – uma possível segunda

realidade – projetadas através dos vestígios visuais das intensões estético-culturais do artista.

Sendo assim, os elementos que fazem parte de uma composição fotográfica – espaço, o

cenário e os objetos em primeiro e segundo plano – associados às escolhas estético-visuais do

artista – enquadramento, luminosidade, angulação e edição final – foram arquitetados e

articulados segundo uma necessidade subjetiva do fotógrafo. A fotografia, com isso, cria uma

outra realidade a partir de um recorte visual do real como consequência da subjetividade e do

olhar artístico que transita do fotógrafo para a imagem. Nesse sentido, toda fotografia irá

mostrar ao observador uma realidade subordinada ao filtro cultural do fotógrafo, este que, nas

produções tanto fotográficas como poéticas de Quintais, fica evidente através da percepção

antropológica, meditativa e contemplativa sobre as coisas do mundo contemporâneo

impressas pelo poeta-fotógrafo em suas imagens. Nas suas fotografias, destaco ainda que seu

filtro cultural seleciona de um cenário banal da vida urbana – que muitas vezes poderia nem

ser percebido em meio à correria cotidiana da vida contemporânea – elementos que são

delimitados pelo seu próprio “horizonte interno” da paisagem urbana acessado pelo seu

campo de visão, em detrimento e em exclusão de todos os outros elementos que compõem o

“horizonte externo” dessa mesma paisagem. O seu filtro cultural destarte promove um recorte

ainda mais intenso da realidade fragmentada pela nossa percepção do mundo circundante.

Esse rastro cultural do fotógrafo me estimulou a buscar pela compreensão da relação

entre o homem e o espaço, uma vez que constantemente as fotografias de Quintais têm como

tema objetos em ruínas presentes no espaço urbano comum. Em Michel Collot (2013), as

noções de paisagem revelam que há uma interação subjetiva entre o homem e as cenas

presentes no espaço. Isso quer dizer que a percepção visual de uma paisagem é delimitada por

dois fatores básicos horizonte externo, circunscrição espacial da paisagem até um ponto onde

nada mais se torna visível, e o horizonte interno, um recorte visual do espaço delimitado pelo

campo de visão do espectador. Ocorre, nesse contexto, que as lentes da câmera se tonam um

possível terceiro recorte do espaço, devido à fragmentação subjetiva determinada tanto pelas

capacitações técnicas do aparelho fotográfico como – e senão principalmente – pelo filtro

cultural do artista que seleciona a cena de acordo com suas obsessões líricas. À vista disso, o

23

nosso processo de compreensão do que vemos no espaço reage sensivelmente no nosso corpo

a partir de estímulos sensoriais de familiaridade. Olhar, compreender e interpretar é um

processo cognitivo que depende dos conhecimentos – históricos, empíricos, culturais, sociais,

acadêmicos, subjetivos etc. – intrínsecos ao observador.

Essa concepção subjetiva do que vemos no espaço, por isso, também pode ser

associada à técnica de fixação de imagens por câmeras fotográficas. Para decifrar e

compreender a mensagem transmitida pela imagem fotográfica, é necessário que o observador

se atente não só aos objetos da cena, mas também às técnicas de manipulação dessa imagem.

Nelas são deixadas marcas que guiam o nosso olhar para coisas selecionadas pelo filtro

cultural do artista e que, desse modo, carregam, para ele, um valor simbólico e estético. Essa

é uma das faces ocultas dos objetos no espaço que, para Collot (2013), é alcançada pela nossa

capacidade interpretativa dos seus sentidos simbólicos. De modo semelhante ocorre na técnica

fotográfica, porquanto a apreensão do recorte promovido pela câmera fotográfica dos objetos

no espaço estará igualmente subordinada e atravessada pelas marcas da história e do tempo,

deixadas tanto no mundo real quanto na fração subjetiva capturada pelo artista desse mundo

real. Assim, a porção de região que a fotografia dá a ver não é jamais considerada como

absolutamente isolada, há lacunas e vazios que devem ser preenchidos pela contemplação do

observador. Silenciosa e invisivelmente, a imagem conversa com o observador. É o que

veremos através das fotografias de Quintais, onde seu filtro cultural, nesse sentido, faz que o

leitor-observador experimente através da experiência visual sensível das ruínas do espaço

urbano, dos vazios do mundo contemporâneo, das limitações da linguagem e da

representação, um momento de reflexão crítica. É como compreender os objetos fotográficos

como ruídos simbólicos da relação transubjetiva entre o homem e o espaço.

Bachelard (1957), por conseguinte, é invocado neste estudo como uma abordagem

teórica para compreender que entre o sujeito e o espaço há inter-relações sensoriais subjetivas

que condicionam o modo como um ele vê, sente, experimenta e [re]age ao espaço lírico criado

por imagens poéticas. Para o ensaísta, uma imagem poética funciona mais do que simples um

eco – uma cópia – de um objeto do real espaço, ela é variacional e subordinada às sensações e

memórias afetivas – positivas e negativas – que fazem parte da história do homem que

vivencia um espaço comum à sua volta. Se na física toda ação gera uma reação contrária de

maior ou menor intensidade, no espaço – a casa, a escola, o bairro, a rua, a cidade etc. – as

ações vivenciadas pelo indivíduo também deixam marcas subjetivas na memória, e, portanto,

na história pessoal que é resgatada, como numa viagem de retorno à casa de infância, pela

24

observação do espaço e das alterações nele talhadas pelo tempo. Nessa perspectiva, as

imagens poéticas levam o leitor a [re]vivenciar experiências subjetivas, inquietando-o para

[re]encontrar, no valor simbólico do espaço, a natureza das coisas. Acerca desse valor

simbólico do espaço, Bachelard debruça-se sobre o estudo da fenomenologia, porque ela é

uma ferramenta que traduz a percepção transubjetiva das imagens arquitetônicas apresentadas

na literatura. Isso porque o ensaísta desenvolve uma teoria psicoemocional sobre os homens e

as formas de afeto e sensibilidade estabelecidas entre eles e o espaço que os cercam. Na

literatura, por sua vez, pode-se chegar a uma reflexão sobre afetos no espaço, pois as relações

vivenciadas nesse espaço vivido determinam o vínculo afetivo criado com esse espaço vivido.

Na fotografia, então, ao fixar uma imagem de determinado espaço, o fotógrafo põe em cena

essas marcas subjetivas talhadas pela relação entre o homem e o espaço ao longo do tempo.

Ao perceber essas marcas, o leitor-observador, tal como frente às imagens poéticas, é guiado

a uma viagem interna pela memória, pelo tempo e pelas sensações afetivas impulsionadas

pelo horizonte interno das câmeras fotográficas como recorte do filtro cultural do artista.

Em função dessas abordagens teóricas aqui articuladas, vamos observar os elementos

composicionais do espaço poético representado nas fotografias de Deus é um lugar ameaçado

(2018). Nessas imagens, veremos a fixação do tempo – a intersecção entre um passado, um

presente e um futuro. E veremos como essa apreensão das marcas deixadas pela passagem do

tempo nos objetos do espaço fotografados por Quintais – que por vezes podem passar

despercebidas pelo olhar desatento – podem ferir o observador com um golpe certeiro. Em

Deus é um lugar ameaçado (2018), as Polaroides2 grafam pequenos fragmentos do espaço

que fazem o observador refletir sobre o que ele vê e o que ele não vê. Observar atentamente

essas imagens é compreender a forma como o espaço fotografado conversa com o observador,

convidando-o a perceber e acessar informações sensoriais, históricas e memoriais que se

fundiram e se ocultam nos vazios do limite da representação visual.

Por fim, optei por acrescentar uma seção extra composta por algumas imagens que são

resgatadas – pela linguagem lírica ou pela linguagem fotográfica – nos fotogramas líricos de

Quintais. Essa escolha deu-se porque seja na poesia, seja na fotografia, em algumas de suas

imagens poéticas são evocados elementos visuais que fazem alusão a outros artistas ou a

outras obras literárias ou plásticas. Senti, à vista disso, a necessidade de mostrar alguns dos

ecos imagéticos que aparecem quase que imperceptivelmente nos limiares da linguagem

2 Algumas das Polaroides presentes no livro serão reproduzidas e analisadas ao longo deste trabalho.

25

lírico-visual de Quintais, como Homero, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa e Wallace

Stevens.

Deixo em anexo, portanto, um poema de Camilo Pessanha [Imagens que passais pela

retina], com o qual proponho um breve diálogo com uma imagem poética de Quintais. A voz

de Pessanha ecoa pela citação indireta – uma apropriação discursiva – num verso de Quintais,

retornando a uma percepção das transformações das coisas durante a passagem do tempo e

das marcas deixadas por esse processo – no estado das coisas no mundo – também anunciadas

pelo eu lírico de Quintais. Além disso, seguem alguns poemas de Wallace Stevens, poeta

norte-americano cuja obra é um lugar de leitura e de retorno para pensar o papel do artista e

da linguagem no processo de criação literária, teorizado pela percepção visual nas imagens de

Quintais.

Há também em anexo um poema de uma das grandes vozes do modernismo norte-

americano, o grande poeta, músico e crítico literário Ezra Weston Loomis Pound. Tal como a

obra poética de Pound realça os limiares da representação pela linguagem visual e pela

linguagem poética, os poemas e as fotografias de Quintais propõem uma observação daquilo

que aparece e desaparece pela insuficiência da linguagem. Esse poema que reproduzo

integralmente encontra-se em uma das Polaroides de Deus é um lugar ameaçado (2018) que

analisaremos ao longo desta dissertação. Na fotografia, no entanto, vemos apenas trechos do

poema citado.

Por fim, encontram-se em anexo as fotografias de Quintais que compõem um breve

dossiê fotográfico do Japão, como uma meditação sobre a importância da imagem na cultura

japonesa. O ensaio, que também se encontra disponível no blog do poeta, realça como a

tradição oriental, como as ações de contemplação e meditação, são evocadas pelo poeta que

visa propor, a partir de seus fotogramas líricos, condições para a contemplação das ruínas do

mundo contemporâneo, das ruínas da linguagem e da representação; e para a meditação sobre

o que se vê e o que se experimenta sensivelmente por essas imagens. É válido ressaltar, ainda,

que essas fotografias do Japão foram retiradas durante uma viagem de Quintais ao país que

deu origem ao livro Regressarás a leveza do ver: uma viagem ao Japão (2020) também

composto por fotografias e fragmentos de reflexões poéticas, publicado pela Huggly Books.

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2. [FOTO]GRAFIA: A PROCURA DA IMAGEM

Um vestígio contempla-te gaze em apodrecido rosto, frágil substância deslocada película a película, lâmina a lâmina, pétala a pétala.

Luís Quintais

2.1 Brincava com uma lupa: a poesia atravessada pelo olhar

A noite imóvel (2017) é um dos livros de poesia de Luís Quintais3 no qual podemos

observar uma relação direta entre poesia e fotografia. Lançado em 2017, nesse livro

observamos a presença de objetos, práticas e temas que são comuns às suas obras anteriores,

em especial a construção de uma poética capaz de produzir a aproximação entre a escrita e a

observação, propondo uma espécie de teoria sobre o próprio ato de ver e (d)escrever aquilo

que vemos através da linguagem poética. O livro é formado por um longo poema em prosa

introdutório, precedido de uma fotografia, duas epígrafes retiradas de poemas de Wallace

Stevens (“Night and the imagination being one.” e “We say God and the imagination are

one...”) e do caractere mu (無). Além disso, o objeto-livro em questão é organizado em 7

seções: “A noite imóvel”, com 56 poemas, alguns formados de verso único e dispostos de

modo contínuo; “Escombro”, com 10 poemas; “Wunderkammer”, com 24 poemas, incluindo

uma prosa poética, que destaca ruínas e fragmentos do mundo; “Ílion” com 8 poemas que

fazem referência direta a imagens e cenas descritas na Ilíada (séc. VIII a.C.) de Homero; “O

príncipe da imaginação” com 7 poemas nos quais a voz lírica busca resgatar, através de

imagens poéticas que destacam a passagem do tempo e memórias subjetivas; “Uma vida” com

3 Antropólogo, professor, poeta, crítico, ensaísta e fotógrafo amador, Luís Quintais nasceu em 1968 em Angola,

mas cresceu e viveu em Lisboa, licenciando-se em Antropologia Social no ISCTE. Em 1995, foi para Coimbra,

onde se encontra como professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Como poeta,

teve sua primeira obra A Imprecisa Melancolia (1995), publicada em 1995, com o qual arrecadou o Prémio Aula

de Poesia de Barcelona. Após esse primeiro momento, continua publicando livros de poesia: Umbria (1999);

Lamento (1999); Verso antigo (2001); Angst (2002); Duelo (2004); Mais espesso que a água, (2008); Poemas

(2008); Riscava a palavra dor no quadro negro (2010); Poesia revisitada (2011); Depois da música, (2013); O

vidro (2014); Arrancar penas a um canto de cisne (2015); A noite imóvel (2017); e Agon (2018) Como fotógrafo,

prefere “espaços urbanos, ou restos deles, arquitecturas em declínio, ruínas, decadências e pó”, nos quais

consegue encontrar suas “particulares obsessões e declinações como escritor”. Em 2018, publicou o livro Deus é

um lugar ameaçado (2018), no qual conjuga fotografias e textos reflexivos em prosa. Seu mais recente trabalho,

Regressarás à leveza do ver: uma viagem no Japão (2020), corresponde a uma série de textos que se cruzam a

imagens fotografadas durante sua viagem a esse país.

27

42 poemas, pelos quais a voz poética põe em observação fragmentos da vida e da história do

mundo, e, por fim, a seção “Um planeta de acidente” com 26 poemas. Somando, por fim, um

total de 174 poemas, de variadas extensões, em verso e em prosa. Nos poemas desse livro,

encontramos uma voz lírica que, a partir da utilização da linguagem verbal, cria imagens por

vezes miméticas à realidade, por vezes plenamente metafóricas, que visam propor uma

reflexão mais profunda em especial sobre a condição humana e sobre a vida cotidiana. Nessas

imagens poéticas – um retrato arruinado da vida contemporânea –, o poeta constantemente

destaca elementos banais diários, com ênfase normalmente no espaço urbano, focalizando

seus aspectos decadentes. Somos levados a contemplar, tal como o eu lírico, um fotograma

composto por esses restos da contemporaneidade. Nesse livro, por isso, há uma forte

correlação entre a poesia e um possível olhar fotográfico.

Quintais, além de antropólogo por profissão e pensador lírico por autodefinição, é

fotógrafo amador. O poeta começou a fotografar especialmente porque muitos de seus textos

poéticos, críticos e ensaísticos são sobre o ato de ver. Em 2018, com o livro Deus é um lugar

ameaçado (2018), composto de fotografias e textos meditativos, Quintais publica seu

primeiro livro em que conjuga imagens – fotografadas – e o lirismo atravessado pelo seu olhar

antropológico – com meditações poéticas sobre o ver –, numa obra que discute limites da

percepção, inclusive o da própria categoria de gênero: é um livro de poesia ou de fotografias?

Em suas imagens fotográficas (disponíveis digitalmente ou reproduzidas nas páginas de seus

livros), somos confrontados com objetos que indicam para nós alguma ausência. Edificações,

objetos do dia a dia e a natureza – frequentemente fotografados em decadência ou abandono –

são imagens comuns no enquadramento e na cena escolhidos como forma de pensar a

fragilidade, a violência e a morte nos rastros da contemporaneidade. Em seu blog, declara que

gosta de fotografar “espaços urbanos, ou restos deles, arquiteturas em declínio, ruínas,

decadências e pó”.4 Seu olhar atento, capta imagens dialéticas que dão a ver o visível – o que

vemos, o que conhecemos –, e o invisível – o que não vemos, o que não conhecemos.

O poeta, desse modo, compreende as imagens fotográficas como um lugar de arquivo:

há na fotografia a interseção entre o tempo, a história e a memória, uma vez que as fotografias

são traços, rastros, indícios de algo. Como observador e fotógrafo amador, por isso, interessa-

4 Esse trecho foi extraído da seção “Por si mesmo”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o próprio apresenta-

se ao seu leitor, destacando um pouco de sua história, de suas obsessões líricas e fotográficas e de sua biografia.

Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/

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se por fotografias em que repara seus “particulares obsessões e declinações como escritor”.5

Na fotografia Staircase6, (que segue abaixo – Figura 1) por Quintais, podemos perceber, a

partir dos elementos existentes na composição da cena, uma aproximação com os elementos

presentes na produção poética, ecos de suas obsessões como escritor: há objetos em ruínas,

em fragmentos, em desintegração, destacando a vulnerabilidade das coisas frente à ação

humana e natural:

Figura 1 – Staircase7

Fonte: Luís Quintais (2008)

Nessa fotografia (Figura 1), nosso olhar é guiado a percorrer visualmente a estrutura

física de uma escada, um objeto tão comum no nosso dia a dia, sob um novo ângulo: a

decadência. Abandonada em meio à rua e à natureza, a escada está em estado de corrosão. Há

marcas em sua estrutura da ação do tempo, os degraus estão desgastados e com pedaços

corroídos pela ferrugem que avança pela tintura branca. Há a presença de elementos da

natureza que crescem e sobrevivem nessa ruína: vemos como a grama e a vegetação que

circundam essa escada ganham força sobre esse objeto deixado à margem e inerte. O que

vemos no conjunto da imagem são apenas frações de edificações urbanas que nos olham

novamente através dos rastros de uma vida – os passos dados para chegar e partir que são

5 Esse trecho foi extraído da seção “Por si mesmo”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o próprio apresenta-

se ao seu leitor, destacando um pouco de sua história, de suas obsessões líricas e fotográficas e de sua biografia.

Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/ 6 Staircase faz parte de uma sequência de fotografias de uma escada em decomposição, disponível no perfil de

Quintais na plataforma Flickr. Nessas fotografias, somos levados a observar por diversos ângulos esse objeto

comum nas edificações urbanas, que agora inerte, se desintegra em meio a uma natureza que cresce e sobrevive

de suas ruínas. 7 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr ,

disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/,quanto em seu blog, disponível pelo

link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/ e em perfil na rede social Instagram.

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resgatados a partir da contemplação desse objeto abandonado. Por meio desse aspecto

decadente, o poeta-fotógrafo consegue intensificar a compreensão perceptiva e a recuperação

subjetiva de memórias externas à cena, mas internas ao observador. Ela – a fotografia – dá a

ver dialeticamente duas realidades possíveis: o visível, os objetos presentes na imagem

fixados pela câmera fotográfica, e o invisível, uma alegoria oculta que atravessa os objetos

fotografados e a memória subjetiva do observador. É o que destaca George Simmel sobre a

importância estética e antropológica das ruínas como objeto artístico:

A ruína produz a forma presente de uma vida passada, não segundo seu

conteúdo ou seu resto, mas segundo o seu passado como tal. [...] O passado

com seus destinos e suas transformações é aqui reunido no ponto de seu

presente esteticamente visível. Aqui, como diante da ruína, nessa enorme

intensificação e realização da forma-presente no passado, atuam energias tão

profundas e concentradas de nossa alma que a nítida separação entre intuição

e pensamento se torna totalmente insuficiente. (SIMMEL, 2016, p. 101)

Nas fotografias de Quintais, então, os objetos em ruínas têm valor antropológico.

Carregam consigo um passado, um presente e um futuro humano que são projetados em crise

pelas lentes da câmera fotográfica. Ao escolher o enquadramento, o foco e a cena, o

fotógrafo-lírico destaca um fragmento da vida contemporânea em ruínas e nos convida a

percorrer e [re]conhecer progressivamente, também, a sua história. Observar atentamente

esses objetos é refletir sobre o mundo e seus restos, é [re]conhecer a natureza da condição

humana e dos objetos construídos pelos homens, frágil frente à passagem do tempo. No olhar

atento às ruínas, o observador, ainda, é guiado a experimentar a ausência. E por essa sensação

de vazio é estimulado a resgatar, da memória, algo fora da imagem que preencha esses vazios

provocados por ela. Não raro, na produção poética de Quintais também somos confrontados

por essas inquietações linguístico-visuais. A voz lírica, como o olhar fotográfico, foto-grafa

frequentemente imagens em ruínas. Seja no plano estético, seja no plano do conteúdo, o leitor

é convidado a observar uma imagem poética que instiga uma meditação sobre o tempo e sobre

como todas as coisas são frágeis e efêmeras frente a sua inevitável passagem. São essas

aproximações entre a produção poética e a produção fotográfica de Quintais que evidenciam

sua verdadeira obsessão lírica por resistência aos vazios da contemporaneidade. Sob esse

aspecto, como aponta Meire Gonçalves:

A poesia de Quintais reflete a relação estabelecida entre a linguagem e o

preenchimento dos vazios nascidos na modernidade. Refere-se a uma

30

impossibilidade da linguagem conseguir preencher e dizer o mundo, e é

justamente fazendo um retorno a ela mesma pela atividade poética que se é

possível dizer algo, tentando, assim, preencher tais lacunas e espaços.

(GONÇALVES, 2017, p. 6094)

Gonçalves, nesse fragmento, discute um ponto-chave da poesia de Quintais: a forma

como, pela linguagem, a voz poética tenta compreender os vazios da vida contemporânea.

Isso acontece sobretudo porque sua poesia é atravessada por um movimento dialético – e por

vezes metalinguístico – pelo qual a voz poética descreve uma cena em observação a fim de,

pela linguagem poética, [re]constituir o olhar. Acerca disso, é importante destacar que, diante

de uma imagem, como observa Didi-Huberman (2013), podemos ser influenciados a buscar

além dos elementos que fazem parte dessa composição visual, uma vez que a imagem revela

uma ausência. E à linguagem, portanto, cabe a função de tentar reconstruir essas lacunas e

esses vazios experimentados pelo olhar inquietado. Os versos quebrados, a sintaxe

segmentada e o ritmo lento dos versos são alguns dos procedimentos técnicos utilizados no

processo de escrita poética de Quintais como mecanismos líricos que refletem o mundo

contemporâneo em decadência que as imagens do poema dão a ver, atravessadas pela

melancolia.

Numa espécie de fotograma lírico, o poeta sinaliza resquícios de um olhar analítico e

antropológico pelo qual põe em tensão a vida urbana contemporânea, experimentada em

fragmentos: o contato humano dá lugar à presença apenas virtual; o tempo marca-se pelo

trabalho constante e afastamento das relações interpessoais; a percepção do mundo é

subordinada à correria cotidiana. Não há tempo ou lugar para a flânerie, a lentidão ou o

contato afetivo. Quintais, frente a isso, proporciona a criação de imagens que destacam a

incapacidade de a linguagem poética preencher as lacunas subjetivas talhadas pela descrição,

ao passo que demandam do leitor um movimento de resistência e contrário à aceleração da

vida contemporânea para meditação e contemplação sobre a natureza da linguagem, a

natureza do tempo e a natureza da memória. Deyse Moreira reflete sobre essas características

constantes da linguagem poética de Quintais:

Assinalados de cinza e permeados por uma presença imprecisa da

melancolia, os versos de Luís Quintais nos apresentam um mundo tecido de

imagens fragmentadas, quotidiano opaco cujo espaço e tempo são

interrompidos por vazios. Mas que vazios são esses? Estas páginas, oriundas

dessa questão, em seu buscar respostas, depararam-se com outra dúvida:

afinal, por que muitas das poéticas atuais, das quais a poesia de Luís

Quintais faz parte, dão protagonismo à palavra, pincelando nos versos uma

31

reflexão sobre a linguagem poética e a sua (in)utilidade e poder de

resistência face à sociedade do seu tempo? Assim, quando lemos a poesia de

Luís Quintais, observamos que a função metalinguística é fundamental para

compreender, em seus poemas, o sentimento de vazio que, por sua vez,

levam-nos a uma reflexão sobre a linguagem, a memória e a história.

(MOREIRA, 2013, p.170)

Deyse Moreira destaca como a poética de Quintais é tecida por frações do espaço

cotidiano, revelando como o poeta, por meio de uma linguagem segmentada, consegue

capturar uma imagem que leva seu leitor a uma experiência do vazio decorrente não só do ato

de observação da imagem, como também da reflexão sobre o objeto que vê. Em função disso,

somos confrontados com poemas que põem em discussão a imagem e a linguagem utilizada

em seu processo de composição, o que, para Moreira, configura-se como ferramenta

fundamental para compreender a sensação de vazio nos poemas de Quintais. Isso acontece

porque, em seus versos, vemos a forma como a linguagem é trabalhada de modo a promover

uma discussão acerca da sua própria utilização poética e estética, já que recursos estéticos –

como a segmentação e a disposição visual dos versos – são frequentemente utilizados pelo

poeta no processo de criação lírica para dar ênfase na ausência e nos vazios descritos

ocultamente na imagem.

Essas questões podem ser encontradas já nas primeiras páginas do livro. Na folha de

rosto de A noite imóvel (2017), há uma imagem fotográfica (Figura 2). Num jogo de luz e

sombras, a imagem fotografada é formada por uma mesa e a sombra de alguém que a observa

e a fotografa. Nesse processo representativo, através dessa fotografia inicial, o poeta abre sua

obra com uma meditação metafísica sobre a natureza do real, sobre a natureza da linguagem e

sobre a natureza do ato de ver. Essas reflexões apresentam-se constantemente nas imagens

poéticas presentes nos poemas, pelas quais somos direcionados pela voz poética a

experimentar três inquietações frequentes: 1) a imagem poética destaca um fragmento do real

e por isso dá a ver o tempo; 2) a imagem poética dá a ver duas realidades e, pela sua

interpretação, promove a aproximação entre o que está circunscrito na imagem e aquilo que é

inerente a leitor; 3) a imagem poética compõe-se como uma cena de escrita, na qual o ato de

observar é constantemente encenado.

Na fotografia (Figura 2), a imagem dá a ver o tempo porque revela fragmentos de uma

cena do real. A mesa, o objeto concreto reproduzido pela lente da câmera, são a marca de algo

no tempo. Quando observada pelo leitor, ele é interpelado por elementos ocultos a ela,

movimento que o instiga a experimentar uma sensação de ausência: o leitor-observador – em

32

seu tempo presente de leitura – não está diante do objeto (mesa), tal como o fotógrafo estava –

em seu tempo presente que se torna passado a partir da fixação da imagem. A sombra do

fotógrafo, encontrada no centro da mesa, marca que, após a observação, houve a necessidade

de, por meio da linguagem fotográfica, transcrever o olhar para reconstituí-lo. Por fim, a

imagem fotografada ainda aponta uma teoria do ver. Esse múltiplo movimento proposto pela

presença – que sobrevive na fotografia – do observador dá indícios de que, no ato de ver,

somos interpelados pelo que vemos e, assim, aquilo que vemos nos olha e nos observa

também atentamente.

Figura 2 - Sem título8

Fonte: Luís Quintais (2008)

Em função disso, essa imagem (Figura 2) abre-se a nós, convidando-nos a observar

atentamente fragmentos que transpõem, ao olhar fotográfico, indícios de um lirismo comum à

linguagem poética e à composição de imagens foto-grafadas por Luís Quintais. Essa

característica da linguagem poética de Quintais é, também, discutida por Ida Alves, que

observa o modo como a sua poesia abre-se para o mundo, colocando em tensão a nossa

própria percepção sobre a imagem poética e o real:

8 Fotografia, por Luís Quintais, sem título que se encontra reproduzida na contracapa do livro A noite imóvel

(2017).

33

Essa abertura ao mundo revela a distância que há entre o poema e o real,

entre as palavras e as coisas, porque a linguagem poética é uma tensão

contínua entre o desejo de uma proximidade absoluta e a sua

impossibilidade. A ambição ontológica move a poesia e motiva que ela

esteja ligada irremediavelmente à melancolia e à decepção, pois a linguagem

poética tem consciência de que todo dizer é uma ilusão. O horizonte último

do poema será então o silêncio, como lugar de origem onde está o indizível e

o invisível. Mas, como num círculo, é também a partir daí, dessa origem, que

o poema se lança para inscrever esse silêncio na linguagem. (ALVES, 2008,

s/p)

O que se percebe em Quintais, a partir desse fragmento, é como a voz poética cria

imagens que, frente às ruínas da contemporaneidade, foto-grafam rastros da vida cotidiana

para pensar a condição humana, sua linguagem e o ato poético. Pelo ato de contemplar rastros

da vida urbana, vemos como a voz lírica busca também proporcionar uma reflexão acerca da

[in]capacidade de, pela poesia, resistirmos. A linguagem poética, nos seus versos, demonstra,

então a melancolia, uma resposta à ilusão do discurso que pensa ser capaz de reconstruir as

coisas. Por isso, em sua poética a palavra cria imagens que revelam a tensão entre o visível e

o não visível, entre o real e a percepção dele. É, portanto, também pela escrita, que notamos

em Quintais uma performance da percepção visual e da textualidade, destacando como a

língua pode promover cenas de escrita capazes de alterar o modo como percebemos,

compreendemos e observamos o que está à nossa volta. A esse respeito, considera Rosa Maria

Martelo:

[...] as cenas de escrita nunca são inocentes. Muito pelo contrário, elas

indicam sempre uma poética e também uma ética da escrita. Com efeito, a

questão de onde e como se escreve não é inócua nem destituída de sentido,

sobretudo quando o ato de escrita é tematizado num poema. Faz parte da

dimensão meta-reflexiva da poesia de tradição moderna a apropriação das

cenas de escrita como um dos tópicos através dos quais a poesia se dobra

sobre si mesma e a si mesma se mostra, pensa e analisa. (MARTELO, 2010.

p. 322)

Martelo levanta um ponto importante e comum à poesia contemporânea: as cenas de

escrita. O poeta, ao escrever um poema, escreve também uma cena, marcada por imagens e

figuras em performance. Numa cena de escrita, o leitor é levado a acompanhar a

dramatização do ato de escrever porque o poeta utiliza mecanismos linguísticos e poéticos,

com a criação de cenografias. Em Quintais, é possível observar cenas de escrita sobre a

produção de imagens. Isso acontece, intencionalmente, uma vez que a voz poética, como nos

poemas de A noite imóvel (2017), está em constante performance sobre o ver: a voz descreve

34

imagens que dão a ver. Performance esta que se desdobra das imagens poéticas presentes nos

poemas às imagens perigráficas da obra – como a fotografia na folha de rosto, as epigrafes e a

presença de um ideograma, elementos da perigrafia do livro que também abrem nosso olhar à

meditação sobre o ver. Nesse movimento de abertura temática do livro, Quintais nos coloca

diante de duas epígrafes retiradas de Wallace Stevens, poeta norte-americano, – sobre o qual

falaremos mais à diante – quem Quintais tem como obsessão lírica devido aos temas que põe

em questão nas suas obras poéticas. Ambas as epígrafes, que se encontram entre a fotografia

que inicia o livro (Figura 2), o ideograma mu (Figura 3) e o longo poema em prosa “[Entras

num espaço devoluto]”, dialogam com a proposta lírico-visual do livro, já que, durante o

processo de escrita, frequentemente encontramos artifícios estéticos que ressignificam e

transformam sentidos e imagens tradicionais.

Na primeira epígrafe, por exemplo, “Nigth and the imagination being one” (Noite e

imaginação são una – tradução nossa) Stevens põe em tensão duas palavras night – “noite”

em inglês – e imagination – “imaginação” em inglês –, cujos significados, mesmo distintos,

transformam-se uno através das possibilidades de escrita. Nesse verso, observamos a

associação entre essas duas palavras como um instrumento discursivo que rompe a natureza

original da linguagem nomeativa (que dá nome para representar linguisticamente as coisas do

mundo). Isso, ainda, é retificado pela segunda epígrafe: “We say God and the imagination are

one…” (Dizemos Deus e a imaginação é uma – tradução nossa). Nesse outro verso, Stevens

promove o deslocamento do significado prévio da palavra Deus. A palavra, a partir disso,

deixa de ser um símbolo linguístico representativo de uma noção conceitual coletiva. Isso é

possível porque, na escrita poética, a ressignificação da palavra tem a potência transcender a

própria natureza comunicativa da linguagem, pois o poeta fraciona a palavra em imagens

poéticas dotadas de múltiplas possibilidades interpretativas e perceptivas pelo leitor. Desse

modo, a escrita poética funciona como um feixe de luz que atravessa um prisma e se dispersa

em múltiplos fragmentos luminosos que formam uma imagem semelhante ao arco-íris.

Associados os dois fragmentos de Stevens, nesse sentido, vemos que a imaginação é um

dispositivo estético por meio do qual o poeta transcende a linguagem ao transformá-la em

imagem poética. É o que destaca Paz (1996):

a imagem faz com que as palavras percam a sua mobilidade e

intermutabilidade. Os vocábulos se tornam insubstituíveis, irreparáveis.

Deixam de ser instrumentos. A linguagem deixa de ser um utensílio. O

retorno da linguagem à natureza original, que parecia ser o fim último da

imagem, é apenas o passo preliminar para uma operação ainda mais radical:

35

a linguagem tocada pela poesia, cessa imediatamente de ser linguagem. Ou

seja: conjunto de signos móveis e significantes. O poema transcende a

linguagem. (PAZ, 1996, p. 48)

As palavras de Paz revelam que a criação de imagens poéticas através das palavras

escolhidas pelo escritor faz que o poema transcenda a linguagem. Isso é possível porque em

uma imagem poética o leitor é levado, primeiramente, ao retorno do significado original das

palavras em uso cotidiano, ou seja, fora do espaço poético. Assim, ao falar Deus, como

destacam os versos de Stevens, somos guiados pela nossa imaginação a rememorar o conceito

dicionário dessa palavra, que será ressignificado através da composição linguístico-poética de

imagens que fogem à palavra em seu estado de denotativo, e os signos linguísticos, imóveis,

no poema ganham mobilidade pela imaginação. De dentro para fora, a imagem poética abre-

se para o leitor, rompendo uma ideia de referencialidade. E nesse movimento de saída do

poema para a subjetividade do leitor, por sua vez, a linguagem poética “cessa imediatamente

de ser linguagem” (PAZ, 1996, p. 48). Essa é uma das impotências postas em reflexão na obra

de Quintais, haja vista que, na tentativa de completar a ausência, a linguagem poética torna-

se, também, ausência. Ela nos aproxima do nosso desejo, ao passo que reafirma a nossa

impossibilidade de alcançá-lo. A escolha das epígrafes, então, revela um movimento comum à

sua própria estética encontrada em A noite imóvel (2017), um olhar para esses vazios do

mundo contemporâneo que a linguagem não consegue preencher, mas que pela contemplação

e imaginação pode completar essa ausência.

No texto inicial de A noite imóvel (2017), “[Entras num espaço devoluto.]”, escrito em

prosa e que se encontra entre a fotografia – Figura 2 – e o ideograma (sobre o qual falaremos

mais adiante) – Figura 3 –, a voz lírica apresenta e projeta imagens que serão recorrentes nos

poemas reunidos neste livro. Nele, vemos uma voz poética que caminha para dentro de um

espaço abandonado composto por estruturas de uma antiga edificação em estado decadente. À

medida que a voz lírica entra nesse “espaço devoluto. Uma antiga fábrica de têxteis. Uma

ruína. Um objeto que apodrece na paisagem” (QUINTAIS, 2017, p.11), também somos

provocados a percorrer – lado a lado com ela – essa poética que se abre para nossa leitura.

Como ela, vamos nos deparar com imagens segmentadas, lacunas, vazios, um jogo visual de

aparecer e desaparecer.

Por entre a cortina vegetal, passas. O recinto que se abre perante ti (de lajes

furadas, limos, carretos abandonados, o que não reivindica usos já, mas que

denuncia uma cronologia de gestos hábeis, precisos, porém de arqueologia

36

improvável), o recinto que se abre perante ti esclarece-te das zonas de luz e

das zonas de sombra, do que respira humidade e do que arde ao sol da

manhã. Levanta a cabeça. Olha para cima, aí onde a ausência de telhas

descreve uma quadrícula de barrotes, e sobre essa quadrícula, eis o azul

profundo do céu. Não pares. Escuta o teu corpo. Avança para esse interior,

esse lado escuro que te espera em diante, e nesse lado escuro, o cheiro a

limos, densas formas, um silêncio entrecortado por deslizamentos súbitos de

madeiras, água e de novo a luz, adiante, mais adiante, esperando-te como um

braço decepado que invadisse a noz de medo e de clausura que te envolve.

(QUINTAIS, 2017, p. 11-12)

Sua obra poética, assim como esse espaço em ruínas, inquieta. Essa inquietação é fruto

da relação descrita entre a voz lírica e a percepção do espaço, no qual ele será confrontado

com a presença de seu próprio fantasma. Aqui, somos apresentados a outra questão

interessante sobre nas imagens poéticas e fotográficas de Quintais: por meio delas somos

conduzidos ao processo mnemônico de resgate das nossas memórias individuais e coletivas.

Pela voz poética, somos provocados a percorrer lado a lado esse caminho para dentro dessa

antiga fábrica têxtil e onde nos encontrarmos com imagens fragmentadas, vazios, objetos que

se decompõem e se arruínam, – um reflexo arruinado de nós mesmos? Num percorrer que nos

faz meditar sobre a condição humana, sobre uma antropologia poética, sobre a percepção de

mundo e das transformações das coisas submetidas ao tempo. Esse fotograma lírico,

composto for brechas e furos, desdobra-se, então, num processo de reflexão e autorreflexão.

Isso porque, mesmo ao se deparar com o cenário ruinoso, seu olhar busca, dentre os destroços,

algo que o preencha. Nessa antiga fábrica têxtil, sobressaltam feixes de luz, permitindo o

esclarecimento da imagem: a luz entra em cena e clareia a visão, dando-lhe ver as formas do

espaço. Do mesmo modo funciona a poética de Quintais, seus versos descrevem imagens que

se apagam e se focalizam, que clareiam e dão a ver. E a partir desse processo de observação,

as cenas que nos olham estimulam, pela sensação de esvaziamento, a recordação de questões

esquecidas com o tempo. Não é um caminho fácil, mas seguimos – leitor e sujeito poético:

O acesso é difícil. Faz-se por buracos, desabamentos. Uma porta do lado da

estrada que serpenteia junto ao rio em direcção ao hospital psiquiátrico, ao

alto, é o acesso mais óbvio. A porta está umas vezes fechada, outras aberta. É

impossível encontrar um padrão, uma regularidade nessa alternância. Não

sabes sequer quem fecha a porta, quem a abre. Preferes não saber. Preferes não

te encontrar com esse fantasma, afinal alguém bem real, alguém de trato

difícil, desafiador, incorruptível, lançado assim para o canto. Não antecipas o

fantasma. Sabes que o encontrarás adiante, ou suspeitarás de sua existência

algures no mesmo espaço que tu. (QUINTAIS, 2017, p.11)

37

Durante esse percurso poético e fotográfico de Quintais, ficamos expostos a cenas em

que a voz poética nos conduz ao encontro de nós mesmos: aqui nos encontraremos com

nossos próprios fantasmas e seremos convidados a resgatar o passado no presente. São versos

que descrevem imagens que ora se apagam e ora focalizam, que põem em sombra ou

clareiam, do mesmo modo em que dão a ver, mas ocultam a visão. Tratam-se, então, de

fotogramas líricos, compostos de imagens que resgatam a memória através da experiência da

ausência provocada pela ruína. E a partir desse processo de observação, as cenas que nos

olham estimulam, pela sensação de esvaziamento, a recordação de questões esquecidas com o

tempo. As imagens fragmentadas descritas nos poemas de Quintais, nesse sentido, podem ser

compreendidas como mecanismo de construção reflexiva e autorreflexiva. Vê-se, também,

como a voz poética é inquietada por meio da imagem observada, uma vez que esta tende a

resgatar situações esquecidas na memória de seu observador. Nesse sentido, a imagem é uma

experiência do vazio porque ela representa um objeto real passado, ao qual o observador só

tem acesso por meio da memória. Quintais, desse modo, escreve cenas que incomodam uma

vez que a imagem composta por destroços destaca, pela forma e pelo conteúdo, a imobilidade,

a espera, o tédio, o vazio e a melancolia aos quais somos – e sempre seremos – submetidos no

mundo contemporâneo:

O medo que te quer vencer aqui, neste lugar. Que lugar? Sobes o lance de

escadas próximo. Frio. E ao cimo das escadas deparas-te com o estreito

corredor que dá para uma sala onde a luz explode através das portadas

abertas de par em par. Essa luz intensa, essa luz deflagrante é já uma

promessa de cegueira, o casulo onde a noite se esconde. A noite servir-te-á

de pretexto para tudo o que vieres a dizer. Aí ficarás, suspenso de tempo e memória. (QUINTAIS, 2017, p.12-13)

Por isso, a imagem poética é uma forma de levar o leitor a receber estímulos

subjetivos, como a experiência dos vazios. Durante a descrição desse espaço, sentimos como

a voz poética se sente frente a essa imagem de um espaço que ora se vê, ora se apaga, ora se

encontra livre, ora há inúmeros obstáculos, porque a construção urbana encontra-se

abandonada ao tempo. Visualizar esses pequenos aspectos que nos remetem à passagem

temporal nos leva a um movimento interior de meditação. Pela voz poética, Quintais age

como um mestre zen e nos entrega um enigma a ser contemplado, meditado, em busca da

transcendência da nossa percepção sobre a natureza do tempo, da linguagem, da memória e da

nossa própria condição humana. Isso acontece em seus versos, sobretudo, por meio da

apresentação de cenas em decadência da vida contemporânea, como a apresentada pelo

38

espaço devoluto da antiga fábrica de têxtil nesse primeiro texto em prosa. Dessa forma, a

imagem poética deixa de ser um recurso meramente linguístico e transcende os limites da

representação; ela faz parte de um projeto estético-literário de Quintais que busca

constantemente influenciar o leitor a se inserir em um momento de reflexão profunda.

É interessante, ainda, perceber o diálogo proposto entre esse momento de busca

autorreflexiva apresentado pela imagem do poema em prosa com outra imagem presente na

perigrafia de A noite imóvel (2017). Trata-se, enfim, do ideograma mu (無) – Figura 3. Esse

ideograma funciona como um alerta ao leitor, já que o caractere japonês mu carrega uma forte

relação com o processo meditativo da cultura oriental. Ele é uma palavra-chave para a

meditação budista, funcionando como uma das principais respostas aos koans9 meditativos:

mu significa “vazio”. Existem dois grandes livros meditativos, compostos por koans:

Mumonkan (O Portal Sem Portão) (1246) e Hekiganroku (Inscrições do Penhasco Azul)

(1125). Seus koans, normalmente, são precedidos por breves narrativas que contextualizam o

tema a ser meditado pelo discípulo, bem como alguns comentários do mestre que buscam

estimular cada vez mais esse processo. Esses koans, na cultura budista, são mecanismos de

elevação do processo meditativo, uma vez que funcionam como um enigma – uma pergunta –

feita pelo mestre aos seus discípulos individualmente para dar início à meditação. Aos

discípulos, então, cabe à função de desconectar-se do mundo e conectar-se consigo,

contemplando lentamente o koan recebido em busca da resposta para seu mestre.

Figura 3 - Ideograma Mu, que significa “vazio”.

Fonte: Luís Quintais (2017)

9 Koan é um enigma meditativo da cultura Zen. Na literatura, é explicado que um koan é dado por um Mestre

Zen ao seu discípulo, para que ele possa entrar em estado de meditação em busca de uma resposta para o enigma

presente no koan. Essa resposta é levada ao mestre que avalia a conclusão do discípulo; sendo ela satisfatória, ele

recebe outro koan mais complexo e assim ocorre sucessivamente.

39

Depois desse processo, quando o discípulo chega a uma resposta, compreendida pelo

mestre como satisfatória, ele recebe um novo koan, com um grau de dificuldade maior, e

assim ocorre sucessivamente de acordo com o avanço no desenvolvimento da reflexão. E a

cada koan respondido satisfatoriamente, o discípulo recebe outro de seu mestre com um nível

de complexidade cada vez maior. O koan mais comum corresponde ao mu, o koan de abertura

do livro do século XIII Mumonkan (1246) – traduzido em português pelo professor Gentil

Saraiva Jr. como O Portal Sem Porta: Koans Zen (2013) – pelo mestre zen chinês Wumen

Huikai. Esse mesmo koan, mu (無) presente em A noite imóvel (2017), também dá início ao

processo meditativo e contemplativo proposto pelo mestre zen Quintais. Em Mumonkan

(1246), o mestre zen Wumen Huikai descreve uma parábola em que um monge pergunta a

Joshu, seu discípulo, “O cachorro tem a natureza búdica?”, e ele responde: “mu”. Mas e,

então, o que Joshu quis dizer? Sua resposta revela que a compreensão do koan não é possível

de ser alcançada através da razão. Essa resposta, no entanto, resgata ainda uma reflexão mais

profunda, mu, que significa “nada”, “vazio”, aponta então que a natureza de Buda é o próprio

vazio.

À vista disso, é possível traçar um diálogo produtivo entre os elementos poético-

visuais que compõem A noite imóvel (2017) e os temas que serão desenvolvidos pelos

fotogramas líricos dessa obra. A voz poética de Quintais, tal como um mestre zen, convida

seus leitores, a cada poema, a iniciar uma meditação. Trata-se, ainda, de uma meditação sobre

os vazios do mundo contemporâneo atravessada pelo olhar crítico sobre as suas ruínas e os

seus restos que evidenciam o estado de tensão em que as coisas se encontram.

2.2 A imagem poética

A noite imóvel (2017), então, é um livro de poesia que promove um diálogo entre o olhar

fotográfico – ontológico – e o olhar lírico de Luís Quintais. Seus poemas – ora em prosa, ora

em versos, ora em fragmentos – desenvolvem-se através de imagens poéticas descritas e

apresentadas ao leitor, guiando-o a um processo lírico-visual de resgate da experiência

contemplativa. A partir dessas imagens poéticas, o poeta desenvolve uma cena de escrita por

meio da qual põe em discussão a natureza dessa composição imagética. Nesse sentido, é

preciso observar o que se entende por imagem, para aplicar essa relação ao olhar poético-

fotográfico de Luís Quintais.

40

Flusser, em Filosofia da caixa preta (2002), deteve-se ao estudo e à análise das

imagens produzidas diacronicamente pelo homem. O ensaísta, nesse livro, percorre uma

historiografia da imagem desde a observação das primeiras imagens produzidas pela mão

humana – a arte rupestre feita pela civilização pré-histórica e anterior ao advento da escrita –

passando pelas imagens verbais – construídas através do advento dos signos linguísticos e da

significação –, até a observação das imagens fixadas através de mecanismos e ferramentas

analógicos – como a caixa preta e as atuais câmeras fotográficas digitais. Flusser percebe que

nessa historiografia das imagens, elas sempre foram criadas pelos homens como uma

manifestação da nossa constante tentativa de representar visualmente a realidade e a

imaginação. Desse modo, essas imagens (como na arte rupestre – cuja função principal era

proporcionar uma comunicação visual anterior até mesmo à própria linguagem verbal, por

exemplo) realçam uma necessidade humana de representar visualmente não apenas as coisas

do mundo exterior – aquilo que vemos num espaço determinado pelo nosso campo de visão –

mas também as coisas do mundo interior – aquilo que se constrói no imaginário individual e

coletivo. Em suas palavras: “as imagens são, portanto, resultado do esforço de abstrair duas

das quatro dimensões de espaço-tempo, para que se conservem apenas as dimensões do

plano” (FLUSSER, 2002, p. 7).

Com a difusão da linguagem verbal e, consequentemente, com o desenvolvimento de

um sistema de escrita, o ensaísta notou que as palavras se tornaram um outro mecanismo

humano para a criação de imagens capazes de condensar informações que antes eram

representadas por conjuntos e sequências de ícones, símbolos e desenhos. A arte, nesse

contexto, passa a utilizar mecanismos também linguísticos para a formação de imagens

artísticas – seja pela linguagem visual, como nas artes plásticas, seja pela linguagem poética,

como na literatura. Com isso, através da convenção da escrita, foi possível transformar em

imagem verbal elementos concretos (as coisas do mundo) e abstratos (os conceitos do

mundo), proporcionando novos modos de reconstruir artística e poeticamente a nossa

percepção do mundo. Após essa reflexão, Flusser irá se lançar ao estudo dos mecanismos de

produção dessas imagens, que podem ser manuais ou técnicos, e organizará essas imagens em

dois tipos: as imagens tradicionais e as imagens técnicas (as quais retomaremos mais

adiante).

Como imagens tradicionais, o ensaísta compreende aquelas produzidas no momento

pré-histórico, ou seja, as imagens rupestres que são anteriores a escrita. Flusser percebe,

então, que nessas primeiras formas arcaicas de produção de imagens, o homem pré-histórico,

41

por ainda não ter o conhecimento da língua escrita, utiliza de modo mais intenso a sua

capacidade imaginativa para representar aquilo que não consegue nomear. Nesse momento, o

homem pré-histórico somente detém as imagens rupestres como mecanismo de comunicação,

cabendo, então, a elas a função de codificar – como fez a linguagem verbal posteriormente –

as coisas presentes tanto no mundo como na imaginação humana. A essa capacidade de

transposição do imaginário para o visual, Flusser irá nomear de scanning, porque “o traçado

do scanning segue a estrutura da imagem, mas também os impulsos no íntimo do observador.

O significado decifrado por este método será, pois, resultado da síntese entre duas

“intencionalidades”: a do emissor e a do receptor” (FLUSSER, 2002, p. 7-8).

Com o advento da escrita, no entanto, Flusser percebe que as imagens anteriormente

produzidas mediante a experiência imaginativa, agora passaram a ser [re]produzidas pela

linguagem verbal – esse novo mecanismo de abstração das coisas do mundo e as coisas do

imaginário pelas palavras. Isso promove, ainda, um movimento de superação das imagens

tradicionais já que a escrita demanda uma capacidade maior de decodificação (leitura) dessas

imagens. Isso acontece principalmente porque, pela escrita conceitual, ocorre a criação de um

objeto verbal e imagético, que comporta linearmente, dentro dos limites linguísticos da

palavra, conceitos, noções e imagens do mundo real e do mundo imaginário. Desse modo,

pela linguagem escrita, é possível condensar muitas informações em imagens verbais que

demandam de um leitor conhecimentos linguísticos, históricos, coletivos e subjetivos para que

seja capaz de decifrar e codificar essas imagens. E por isso:

a escrita funda-se sobre a nova capacidade de codificar planos em retas e

abstrair todas as dimensões, com exceção de uma: a da conceituação, que

permite codificar textos e decifrá-los. Isso mostra que o pensamento

conceitual é mais abstrato que o pensamento imaginativo, pois preserva

apenas uma das dimensões do espaço-tempo. (FLUSSER, 2002, p. 10).

Essa é a capacidade de superabstração da imagem poética, uma vez que, pela

utilização poética dos signos linguísticos, o escritor consegue propor a ressignificação de

imagens e conceitos cristalizados no imaginário comum. Esse emprego visual da palavra pode

ser encontrado teorizado no poema “Deus e noite” de Quintais. Nele, o poeta evoca uma

imagem criada pelo poeta norte-americano Wallace Stevens – uma voz que constantemente

ecoa em textos do nosso poeta português – para pôr em cena o processo de criação poética.

Isso é feito pela ressignificação proposta pela associação entre as palavras “Deus” e “noite”,

por Stevens, na imagem resgatada por Quintais em seus versos. Num percurso

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metalinguístico, o poema apresenta e explica ao leitor os processos de criação do próprio

poema, de utilização da língua e de construção de imagens e significados com a linguagem

poética. Nele, então, encontraremos uma performance da escrita conceitual que dá a ver a

abstração da linguagem:

DEUS E NOITE

Na mesma cadeia associativa, Wallace Stevens colocou Deus e noite. Eu esclareço os propósitos de tal voragem. Deus e noite desfazem-se semioclasticamente. O vazio é um colapso dessa forma.

(QUINTAIS, 2017, p. 35)

Primeiramente, o poema, que inicia a segunda seção do livro, “Escombro”, é

construído a partir da explicação de uma imagem poética anteriormente construída por

Wallace Stevens e já anunciada pelas epígrafes escolhidas do mesmo poeta que iniciam o

livro A noite imóvel (2017). Mas antes de tudo, Stevens é um poeta norte-americano que

produziu uma das mais notáveis obras poéticas da literatura norte-americana, marcada

principalmente por uma estética metafísica, que conjuga a imaginação e a realidade. Como

poeta moderno, resgata o poder da linguagem poética ao descrever o mundo. Sendo assim, em

sua obra poética, o poema torna-se um lugar de desdobramento desse mundo, e à linguagem

poética cabe resgatá-lo através de mecanismos linguístico-visuais. Esses aspectos fazem de

sua obra um lugar de retorno para Quintais, pois, em suas palavras:

Wallace Stevens, mestre da meditação lírica, é, a seu modo, um poeta que

faz da poesia uma arte prática. Dessa prática, tudo o que temos hoje é este

vestígio cuja compreensão está fora de toda e qualquer vontade

monumentalizadora ou entronizadora. Vestígio de uma metafísica secular em

que a loquacidade da poesia, embora incomensurável com o poema,

encontra, porém, o seu prodigioso eco nele. (QUINTAIS, 2014, s/p.)11

As palavras de Quintais revelam a importância da obra de Stevens como um lugar de

meditação – e retorno – para o poeta. Em sua obra, somos confrontados com uma ética

poética que põe em xeque os limites entre o real e o imaginário, numa tentativa frequente de

produzir uma tensão sobre a linguagem poética que dá a ver esses limites. Em função disso, a

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voz poética está em constante performance da linguagem, pela qual resgata imagens que

sugerem uma teoria sobre o fazer poético, no qual “o poema é o vestígio de um deslocamento

no interior da meta-processualidade [...], momento em que a imaginação parece sobrepor-se à

realidade” (QUINTAIS, 2014, s/p.)10; e a poesia torna-se “o princípio cosmológico (mas

também o princípio fenomenológico já que estamos perante um aspecto da experiência

humana) sem qual o poema não seria possível” (QUINTAIS, 2014, s/p.).11 Nesse sentido, na

sua explicação sobre a imagem proposta pela linguagem poética de Stevens, ecoa uma teoria

meta-processual encontrada também em Stevens. Pela linguagem poética, a voz lírica de

Quintais busca – meta-processualmente – explicar o processo de criação da imagem poética

proposta por Stevens ao colocar, na mesma cadeia associativa, as palavras Deus e noite.

Dessa forma, como nas epígrafes escolhidas de Stevens são indiciados – “Nigth and the

imagination being one” (Noite e imaginação são uno – tradução nossa) e “We say God and

the imagination are one…” (Dizemos Deus e a imaginação é uma – tradução nossa) – através

da linguagem poética, o poeta pode, num movimento semioclástico, deslocar sentidos e, por

isso, criar novas associações e imagens. Assim, é possível que o sujeito autor – aquele que

tem domínio sob as palavras – trabalhe com a escrita de modo a subordiná-la a procedimentos

estéticos e literários próprios que ressignificam o sentido denotativo das palavras em novos

outros múltiplos sentidos. Desse modo, o substantivo próprio Deus e o substantivo comum

noite podem aparecer em uma mesma cadeia associativa, que semioclasticamente desfaz –

desconstrói, quebra, rompe e fragmenta – o conceito a priori desses signos.

Semioclastia, termo que aparece primeiramente no prefácio do livro Mitologias (1957)

de Barthes, refere-se a um modo de (re)pensar o estudo semiológico. Para o ensaísta, “não

haverá denúncia sem um instrumento de análise preciso; só haverá semiologia se esta

finalmente se assumir como uma semioclastia” (BARTHES, 2009, p. 6). Com essas palavras,

Barthes realça a necessidade de se analisar, para além do signo linguístico, ou seja, devemos

também perceber atentamente a sua destruição no processo de escrita literária. Seguindo essa

linha de pensamento, o texto – estrutura macrotextual – passa a ser compreendido como uma

espécie de quebra-cabeça dividido em pequenas peças – estrutura microtextual – que podem

10 Esse trecho foi extraído da postagem “Uma metafísica secular”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o

poeta faz uma breve descrição da importância da obra do poeta norte-americano Wallace Stevens para o seu

contexto literário. Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2014/10/02/uma-metafisica-

secular/ 11 Esse trecho foi extraído da postagem “Uma metafísica secular”, do blog do poeta Luís Quintais, na qual o

poeta faz uma breve descrição da importância da obra do poeta norte-americano Wallace Stevens para o seu

contexto literário. Disponível pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2014/10/02/uma-metafisica-

secular/

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ser deslocadas pelo sujeito – escritor – e realocadas em novos encaixes a fim de produzir

novos sentidos e significados. Assim, as pequenas peças do texto – como num jogo de quebra

cabeças – podem ser movimentadas pelo artista, que passa a ter o poder de as deslocar de

lugar para encaixá-las em outras para a criação de novos sentidos. Nesse processo de

reencaixe, no entanto, é possível que se fixem pequenas marcas deixadas pelo movimento do

artista que insinuam esse deslocamento: haverá a impureza no encaixe. Como é analisado pelo

ensaísta:

Funcionalmente, a conotação, gerando por princípio o duplo sentido, altera a

pureza da comunicação: é um ‘ruído’, voluntário, cuidadosamente elaborado,

introduzido no diálogo fictício entre o autor e o leitor, enfim, uma

contracomunicação (a Literatura é uma cacografia intencional). Estruturalmente, a existência de dois sistemas considerados diferentes -

conotação e denotação – permite o texto funcionar como um jogo, pois cada

sistema reenvia para o outro, de acordo com a necessidade de criar uma certa

ilusão. (BARTHES, 2009, p. 43)

Com base nesse excerto, podemos inferir que, na linguagem poética, a nomeação é

uma ferramenta linguística que, ao promover novos sentidos, corrompe a pureza da

comunicação, a partir de um processo semioclasta de destruição do signo. Em decorrência

disso, cabe à semiologia vestir-se de semioclastia, e, então, debruçar-se sob o estudo dessas

impurezas da linguagem no processo de construção textual. Essa é a explicação – metapoética

– também oferecida pela voz lírica em “Deus e noite”, que desmonta e reconstrói a imagem

poética criada por Stevens pela sua linguagem poética, destacando uma teoria semioclasta

intrínseca à arte poética. Nessa forma de composição lírica, então, a linguagem poética desfaz

o signo, revelando novas possibilidades de significado, criando uma frase-imagem, ou

fotograma lírico, no qual o sujeito autor tem domínio de seu objeto de trabalho – a palavra – e

dela [re]constrói semiolasticamente novas frases-imagens.

Em função disso, retomamos Flusser que destaca que a difusão da escrita como

mecanismo de produção de imagens transforma o modo como o leitor compreende e percebe

a imagem observada através da leitura das palavras. Isso acontece porque, durante o processo

de leitura e compreensão, o leitor está sujeito não só à recordação dos conceitos intrínsecos à

imagem escrita (sua significação), como também ao entendimento do uso proposto pelo artista

ao compor imagens a partir desses signos linguísticos. Com isso, é preciso modificar a forma

como se decodifica imagens, porque antes, como imagens tradicionais, liam-se

representações visuais do mundo de forma cíclica; agora, com a escrita, têm-se representações

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visuais do mundo que demandam de normas lógicas e racionais – a partir de um princípio de

percepção linear: início, meio e fim. A imagem textual, por fim, distancia-se do papel inicial

dessas imagens tradicionais: um mecanismo visual que dava a ver a abstração das coisas do

mundo e das coisas imaginárias. Isso decorre, como destaca Flusser, de a linguagem escrita

ser uma forma de fragmentar essas imagens tradicionais em conceitos, deixando de ser uma

tentativa de representar o real para ser uma forma de conceitualizá-lo ou explicá-lo. Assim,

como explica o poeta Quintais, na composição dos versos de Stevens, as palavras “Deus e

noite desfazem-se semioclasticamente” (QUINTAIS, 2017, p. 35). Por conseguinte, a

linguagem poética tende reconstruir sentidos do real e do imaginário, ao passo que o artista

tem a potência de deslocar os significados imóveis fixados nas palavras como imitação e

representação das coisas reais.

E não seria essa também uma questão já levantada por Platão? De acordo com sua

lógica sobre o Mundo das Ideias, vivemos sob o regime da imitação (no Mundo Sensível) e o

que entendemos como real é na verdade uma cópia – imagem – do real existente somente do

Mundo das Ideias. Seguindo esse pensamento, a linguagem literária promoveria exatamente o

que Flusser entende como uma escrita conceitual, pela qual as palavras (os signos)

funcionariam, como em Platão, como uma dupla cópia e representação (no mundo sensível)

de traços do real (presente somente no mundo das ideias). Daí, portanto, um ponto importante

– e comum – à poética de Quintais, a linguagem poética, quando se torna um mecanismo de

representação do mundo, o faz através de imagens – fotocopiadas – pelas palavras do poeta.

Tais imagens, no entanto, por serem produzidas pela linguagem verbal, revelam ainda uma

tensão decorrente de seu processo de construção (escrita) levando o leitor a experimentar uma

sensação de ausência nessas imagens: elas são apenas traços do real. Nas imagens textuais

criadas por Quintais, como no poema “Deus e noite”, somos confrontados com essa tensão no

que se refere aos vazios (visíveis e não visíveis) experimentados através da linguagem

poética. E nesse processo semioclasta, como destacaria Barthes, restarão, ainda, evidências,

restos e fissuras – ou o “colapso dessa forma” (QUINTAIS, 2017, p. 35) – na escrita poética

que inquietam o receptor.

Quadro semelhante é visto em outro poema “Chris Marker”:

CHRIS MARKER

Pediam uma fotografia sua, Enviava-lhes a de um gato.

46

Por que nos escondemos nesse rosto? Animal somos, sombra sem delicadeza, movimento de antecipação e caça.

A melhor arte esconde-se em atributos sem nome. Assinamos a nossa felina ausência deste mundo sobre-exposto.

Imagens demasiadas, excessivas, transparentes, de náusea iluminadas já, por que não vos fixais?

(QUINTAIS, 2017, p. 73)

Chris Marker, personagem-título do poema, foi um cineasta, fotógrafo, escritor e

artista multimídia francês. O poema, então, é tecido como uma forma de resgatar e

homenagear esse artista que tinha um hábito muito curioso: não dava entrevista e recusava-se

a ser fotografado, enviando sempre a foto de um gato como se fosse uma foto sua. A primeira

estrofe é dedicada à apresentação dessa anedota do artista francês, “Pediam uma fotografia

sua, / Enviava-lhes a de um gato” (QUINTAIS, 2017, p. 73), de modo a, nas linhas seguintes,

refletir acerca da imagem, do homem por detrás da foto e de sua existência no mundo

contemporâneo. Nesse sentido, na estrofe seguinte, somos defrontados com uma indagação:

“Por que nos escondemos / nesse rosto?” (QUINTAIS, 2017, p. 73). Vemos uma tentativa de

estabelecer uma reflexão crítica que rompe os limites da anedota e pode ser transportada à

sociedade contemporânea. Com o advento da internet, observou-se uma crescente utilização

de figuras representativas no mundo virtual. Hoje, vivemos sob o regime da imagem. Tudo à

nossa volta gira em torno de imagens. Ícones em telefones, perfis nas redes sociais, fotos do

Instagram e Facebook, páginas e mais páginas online destinadas à publicação, reação e

compartilhamento de imagens. Estas que são muitas vezes supereditadas e superprogramadas

para esconder todas as imperfeições e passar uma imagem esteticamente perfeita, que esconde

e mascara todos e quaisquer defeitos. Por que nos escondemos nesses filtros, nesses outros

rostos que não os nossos?

Voltemos a Flusser, o ensaísta em O Universo das Imagens Técnicas (2008) aponta

que a sociedade vive orientada pelas imagens técnicas. Isso decorre principalmente do

advento da fotografia, a partir da invenção do darregueótipo, em 1839, pelo artista Louis

47

Jacques Mandé Daguerre, que possibilitou uma maior e menos complexa produção de

imagens fotográficas mais realistas, as quais traziam maior familiaridade e fidedignidade com

o real. Isso porque o processo fotográfico, por meio do daguerreótipo, passou a ser mediado

pelo primeiro dispositivo mecânico fotográfico determinante para a criação de imagens que

funcionam como uma espécie de recorte do real. O fotógrafo conseguia, então, produzir

imagens técnicas, através de um dispositivo mecânico que captura uma imagem mimética da

cena real observada, enquadrada e composta pelo fotógrafo. Flusser destaca ainda que, na era

contemporânea, o processo histórico de evolução e o progresso técnico-científico intensificou

a presença desses objetos fotográficos no dia a dia porque as “fotografias são onipresentes:

coladas em álbuns, reproduzidas em jornais, expostas em vitrines, paredes de escritórios,

afixadas contra muros sob forma de cartazes, impressas em livros, latas de conservas,

camisetas” (FLUSSER, 2002, p. 37).

Há, portanto, um fascínio pelas imagens técnicas, que se encontram presentes em

todas as partes decorrente de uma popularização dos dispositivos fotográficos. Acerca disso, é

valido recordar a fabricante de câmeras fotográficas, Kodak (1888) que se destinou a

popularizar a obtenção de câmeras fotográficas com a venda de câmeras de utilização prática,

fácil e acessível à população – haja vista seu primeiro slogan “Você aperta o botão, a gente

faz o resto”. Isso demonstra, no entanto, que as imagens técnicas se tornaram uma forma pós-

histórica de representar o significado das coisas: “Por certo, o artigo que a fotografia ilustra

no jornal consiste em conceitos que significam as causas e os efeitos de tal guerra. Porém o

artigo é lido em função da fotografia, como que através dela. Não é o artigo que “explica” a

fotografia, mas é a fotografia que “ilustra” o artigo” (FLUSSER, 2002, p. 55).

Mas por que o fascínio pela fotografia a ponto de as imagens técnicas guiarem toda

uma sociedade? Flusser explica que por detrás do aparelho fotográfico existe, na verdade, um

programa, fruto de uma superabstração científica da linguagem, capaz de transcodificar cenas

em fotografias, com o intuito de resgatar a relação entre o real e o imaginário na experiência

de dar a ver o mundo pelas antigas imagens tradicionais. Houve a criação e a popularização

das câmeras fotográficas (hardware) – as quais operam sob o regime de um programa

(software) – que difundiu uma forma prática e mais livre – porém programada – de capturar

cenas mais fiéis ao real – bem semelhantes às imagens tradicionais. Como aponta o ensaísta,

houve, pela perpetuação e pelo avanço do sistema linguístico como mecanismo de conceituar

as coisas do mundo, uma perda da experiência do real e da imaginação decorrente da

produção de imagens tradicionais. As imagens, nesse sentido, ao mesmo tempo em que têm o

48

propósito de representar o mundo acabam por propor um movimento contrário, porque se

interpõem entre o homem e o mundo à sua volta. Em suas palavras:

O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a

viver o mundo em função de imagens. Cessa de decifrar as cenas da imagem

como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado

como um conjunto de cenas. Esta inversão da função das imagens é a

idolatria. Para o idólatra - o homem que vive magicamente -, a realidade

reflecte imagens. Podemos observar hoje, de que forma se processa a

magicização da vida: as imagens técnicas, actualmente omnipresentes,

ilustram a inversão da função imagética e remagicizam a vida. (FLUSSER,

1998, p. 29)

Surge, nesse contexto, o que Flusser irá chamar de idolatria12, ou seja, a imagem não

mais representa o real, uma vez que foi tão abstraída pela linguagem que simboliza apenas

conceitos desse real. Sendo assim, a linguagem visual, que deveria ser um mecanismo de

aproximação entre o homem e as coisas do mundo real, passa a funcionar como um tapume

que separa o homem versus realidade. As imagens, então, passam a reproduzir e realçarem

fragmentos da vida, como um recorte e enquadramento ilusório de uma cena real,

condensando em imagem poética um mundo de filtros, edições e teatralização da vida. Desse

modo, pela imagem fotográfica, como encenado já nos primeiros versos de “Chris Marker”:

“Pediam uma fotografia sua, / Enviava-lhes a de um gato” (QUINTAIS, 2017, p. 73), pode-

se propor uma figura que se interpõe, entre o homem e o mundo, transformando-se em um

filtro imaginário do real, uma superabstração da realidade. E foi exatamente essa abstração

máxima, intensificada por meio de programas e códigos inseridos ao longo do

desenvolvimento tecnológico das câmeras fotográficas, que possibilitou a criação de uma

linguagem tão técnica, científica e abstrata capaz de produzir fotografias que são, na verdade,

“imagens de conceitos, são conceitos transcodificados em cenas” (FLUSSER, 2002, p. 32).

Com isso, um fotógrafo – profissional ou amador – consegue criar cenas ilusórias a partir da

fixação de cópias de cenas reais vivenciadas por ele. Pela operação da caixa preta, portanto,

ressoa a experimentação entre o real e o imaginário na busca por representar

fotograficamente a cena real observada.

Por conseguinte, vive-se numa sociedade guiada por imagens técnicas que se tornaram

tão populares a ponto de serem tão superprogramadas que começaram a esconder a imagem

real. Ângulos, jogo de luz e sombra, curva de cores, programas de edição são extensões das

12 Idolatria, para Flusser, é a “incapacidade de decifrar os significados da ideia, não obstante a capacidade de lê-

la, portanto, adoração da imagem” (FLUSSER, 2002, p. 77-78).

49

lentes digitais utilizados para reprogramar a imagem fotografada. Em efeito negativo, arte de

criar imagens, mais uma vez, afasta-se do real a passo de escondê-lo: “melhor arte esconde-se

/ em atributos sem nome” (QUINTAIS, 2017, p. 73). Palavra e imagem, fundem-se à reflexão

sobre a [de]composição do mundo em imagens fragmentadas que escondem, tapam e simulam

o real num jogo de programação. Aqui, na voz lírica ecoa a reflexão sobre a utilização de

imagens programadas, esperadas e aceitas pelo programador (fotógrafo) e que se utiliza de um

programa (câmera). Para Chris Marker, essa imagem era a de um gato. Capaz de inquietar

aqueles que se encontram diante dela, pois rompe – através de uma espécie de estranhamento

– com a expectativa criada porque se sobrepõe à imagem real. Assim como denuncia a atitude

de Chris Marker aludida por Quintais: na sociedade das imagens técnicas estamos

subordinados a imagens formadas de fragmentos do real que se compõem, sobre-põem-se e

sobre-expõem-se num jogo de presença e ausência: “Assinamos a nossa felina / ausência deste

mundo / sobre-exposto” (QUINTAIS, 2017, p. 73).

Esse contexto leva o eu lírico à indagação do último verso “por que não vos fixais?”

(QUINTAIS, 2017, p. 73). Isso porque, em um mundo marcado pela fragmentação imagética,

a opção pela não fixação de sua imagem inquieta. Aqui, dialeticamente, a voz poética nos leva

a um raciocínio acerca do papel da imagem técnica na sociedade contemporânea. Pelo

processo de escrita, somos confrontados com imagens técnicas que realçam a constante

sobreposição de imagens a que somos submetidos cotidianamente e que simulam a nossa

própria identidade. A foto do gato simula a identidade do artista aos que lhe pedem uma

fotografia sua. As imagens supereditadas vinculadas às redes sociais simulam uma identidade

visual desejada e, por vezes, inalcançável por ter sido tão programada que superabstrai o real.

No regime de imagens que se auto-sobre-põem, qual imagem é o seu simulacro? Em que

parte da imagem encontra-se o verdadeiro eu? Em meio a “imagens demasiadas, excessivas, /

transparentes, de náusea / iluminadas já, / por que não vos fixais?” (QUINTAIS, 2017, p. 73).

Aqui volto a recordar da voz de Flusser: “Imagens têm o propósito de representar o mundo.

Mas, ao fazê-lo, interpõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do

mundo, mas passam a ser biombos” (FLUSSER, 2002, p. 9).

Nesse momento, também somos levados a recordar Camilo Pessanha. No soneto 19,

[“Imagens que passais pela retina”], encontrado no livro Clepsidra (1920), a palavra, que dá

título ao livro de Pessanha, provém do grego kleps (verbo “kleptô” = roubar, enganar) + udra

(nome “udor” = água), e nomeia um antigo relógio egípcio, que funcionava à base de água e

azeite. O tempo, nesse artefato, era medido de modo semelhante a uma ampulheta, em que a

50

passagem da areia (ou o líquido que compõe a clepsidra) de uma ponta à outra equivale à

passagem temporal. Desse modo, tal qual nesse artefato, os poemas reunidos no livro de

Pessanha trabalham com a metáfora do tempo e da água na busca por evidenciar as

transformações e a brevidade da existência humana em função de um movimento constante do

tempo. Isso é desenvolvido no poema de Pessanha por meio de pergunta feita pela voz poética

nos primeiros versos do soneto 19: “Imagens que passais pela retina / Dos meus olhos, porque

não vos fixais?” (PESSANHA, 1995, p. 57). Com essa interrogação, Pessanha propõe

também uma discussão sobre a transitoriedade da imagem, uma vez que, para seu eu lírico ela

é fluida e constantemente submetida a transformações e, por isso, não consegue ser fixada em

uma imagem única. Isso é fruto, principalmente, do processo de formação das imagens, que

decorre de uma relação óptica chamada de refração da luz. Durante esse processo,

dependemos da passagem de luz pela nossa retina para que uma imagem possa, então, ser

formada. Isso, por sua vez, como apontam Santos e Leal, releva que

essas imagens, enquanto forma de apreensão da realidade, são reflexos de

dados espaciais; enquanto fluir e impossibilidade de retê-las são tempo. Daí

a temporalização do espaço/espacialização em metáforas que nos conduzem

à estinfalização da água de que falam Bachelard e Durand. (SANTOS,

Gilda; LEAL, Izabela, 2007 p.36)

De fato, nesse poema, a água revela a angústia da voz lírica, é por meio dela que se

desenvolve a reflexão e a percepção da fragilidade das coisas em função do tempo. Assim

como a água, que passa num movimento contínuo sem possibilidade de retorno (já nos dizia

aquele ditado popular não se banha na mesma água do rio duas vezes...), é a imagem. Esta,

por sua vez, é problematizada no poema porque o passar do tempo impede que a imagem seja

fixada na retina, sendo, portanto, passageira e efêmera. Nesse momento, a água da fonte que

transcorre no cenário torna-se uma alegoria que realça a estinfalização13 da água como uma

forma de experimentar a melancolia, decorrente principalmente da sensação de perda. Sendo

assim, Pessanha coloca seu leitor diante de uma cena que realça a onipotência humana frente

13 “O próprio Bachelard, na sua notável análise, abandona o seu princípio elementar de classificação – que não

era mais que um pretexto - para fazer valer axiomas classificadores mais subjetivos. Ao lado do riso da água

clara e alegre das fontes, sabe dar lugar a uma inquietante “estinfalizaçào” da água. Esse complexo formou-se no

contato com a técnica da embarcação mortuária ou, então, o medo da água tem uma origem arqueológica bem

determinada, vindo do tempo em que os nossos primitivos antepassados associavam os atoleiros dos pântanos à

sombra funesta das florestas? [...] Bachelard, retomando o excelente estudo de Maria Bonaparte, mostrou que o

mare tenebrum tinha tido o seu poeta desesperado em Edgar Poe. A cor “de tinta”, nele, encontra-se ligada a

uma água mortuária, toda embebida pelos terrores da noite, pejada de todo o folclore do medo que estudamos até

aqui” (DURAND, 2002, p. 96).

51

às transformações inevitáveis às quais tudo está submetido com a inexorável passagem do

tempo. Essa imagem poética, por isso, é resgatada nos versos de Quintais, uma vez que ela

apresenta os traços que a passagem temporal deixa na aparência e na superfície das coisas do

mundo. Desse modo, o leitor é posto de frente a uma encenação da brevidade do tempo, que

demonstra, ainda, a incapacidade de reter a materialidade e de integrar-se a ela: “- Porque ides

sem mim, não me levais?” (PESSANHA, 1995, p. 57). Essa outra interrogação, encontrada na

estrofe seguinte, aponta a onipotência do eu poético que não mais consegue se entender pleno

e uno, porque as imagens que não foram retidas formam fragmentos do sujeito lírico, do qual

há apenas restos, sobras e ruínas: “Fica sequer, sombra das minhas mãos, / Flexão casual de

meus dedos incertos, / - Estranha sombra em movimentos vãos” (PESSANHA, 1995, p. 57).

Nos dois poemas, então, somos guiados pela voz lírica à reflexão da transitoriedade

de qualquer imagem. Quintais resgata a pergunta de Pessanha para promover uma crítica

contemporânea à sobreposição de imagens, que se misturam e se transformam, ocasionando a

criação de outras imagens. Pessanha, por sua vez, realça que as transformações são naturais,

decorrentes da ação temporal. À medida que o tempo passa, as coisas estão sujeitas à

metamorfose e, por essa razão, as imagens não conseguem ser retidas pelo observador, elas

são ilusórias, fragmentos e vestígios. Ambas as imagens poéticas revelam um eu poético

desconstituído pela transição do tempo e do espaço, e, em vista disso, encaminham-no a uma

experiência de dor e ausência. E, a nós, resta a reflexão: porque não vos fixais?

Reflexão semelhante pode ser evidenciada pelo poema “Ecografia #3”, de Quintais,

em que a voz lírica descreve uma imagem que se transforma e se reconfigura, abrindo-se em

outra imagem:

ECOGRAFIA #3

É uma imagem do tempo desenhando-se, flor, floração, fértil sombra, alma.

Ecos desfiam o perfil de Amélia, os ombros, dedos, olhos, encéfalo, pétalas, sépalas, sonhos.

(QUINTAIS, 2017, p. 100)

52

Descreve-se uma ecografia. A voz lírica que anuncia essa imagem ao seu leitor está

vendo uma fotografia fetal, uma imagem privilegiada do bebê ainda em formação dentro do

ventre materno, produzida por exame de ultrassom durante o acompanhamento pré-natal.

Nesse tipo de exame, inclusive, é muito comum que seja impressa uma fotografia do feto

antes mesmo de seu nascimento, que é entregue aos pais. Por isso, como a própria voz revela

essa imagem: “é uma imagem do tempo desenhando-se” (QUINTAIS, 2017, p. 100). Através

desse pequeno fotograma da criança ainda em estado embrionário, somos capazes de projetar

nossos sonhos e desejos sobre o que e como esse pequeno indivíduo um dia será após o seu

nascimento. A voz poética, um possível pai, encontra-se à frente de uma ecografia de sua

filha, Amélia, que será descrita ao longo do poema. Dessa imagem prematura, ele construirá

uma associação entre o corpinho do bebê que se desdobrará em variados tempos (seja durante

o próprio período de gestação, seja após o seu nascimento e enquanto estiver em

desenvolvimento) como a maturação de uma flor, que se transforma e se desenvolve no ciclo

natural da vida. Com a linguagem, a voz lírica transfigura e fixa em imagem poética

fragmentos do tempo presente e futuro dessa criança em formação, e somos guiados a

visualizar essa imagem do tempo que se desenvolve de acordo com o ciclo de vida de uma

planta.

Trata-se, portanto, de uma imagem que se movimenta e se constrói conforme os

pensamentos, sonhos e projeções deste indivíduo que vê, privilegiadamente, uma prematura

imagem de sua filha, “desenhando-se, flor, floração, / fértil sombra, alma” (QUINTAIS, 2017,

p. 100). E como fixar uma imagem do tempo que se movimenta conforme a imaginação dessa

voz senão pela movimentação também da linguagem? O que poderia se tornar uma descrição

estática de uma ecografia, toma forma de flor, transita e floresce, se transforma em sombra e

depois em alma. Pela linguagem poética, então, o leitor é lentamente guiado pela voz lírica

que descreve uma imagem que dá a ver o tempo: de flor à alma, de vida a sonhos e, num

movimento ecfrástico somos colocados diante de uma recomposição da passagem do tempo.

Por causa disso, a imagem poética na primeira estrofe revela-se num momento energético,

porque através da sua visualização, ela instiga o observador a refletir sobre uma ontologia

intrínseca à imagem: a ecografia do feto suspende a noção de tempo (passado, presente e

futuro) e impulsiona a imaginação (os sonhos e as projeções daqueles que desejam esse feto).

Como destaca Didi-Huberman (2013):

Uma imagem, toda imagem, resulta dos movimentos provisoriamente

sedimentados ou cristalizados nela. Esses movimentos a atravessam de fora a

53

fora, e cada qual tem uma trajetória – histórica, antropológica que parte de

longe e continua além dela. Eles nos obrigam a pensá-la como um momento

energético ou dinâmico ainda que ele seja específico em sua estrutura.

(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 33-34)

Após seu momento energético na primeira estrofe, a imagem poética inscreve-se num

momento de descobrimento, no qual os elementos descritos mostram-se apenas como indícios

do que poderá ser um dia a imagem observada. A partir disso, a voz lírica nos faz recordar a

reflexão sobre tempo já anunciada na primeira estrofe: tudo é subordinado à ação temporal,

que movimenta e transforma todas as coisas. Tendo isso em mente, a relação entre as imagens

poéticas dos versos e o título dado ao poema torna-se ainda mais visual: a voz lírica se

encontra diante de uma imagem obtida através de uma ecografia descreve os traços que

desenham o perfil feminino, Amélia, também, em movimentação, desfiando-se em imagens

poéticas. De uma fotografia privilegiada de uma vida que ainda não nasceu, a vos poética

foto-grafa pela linguagem poética as transformações às quais essa vida será submetida.

Nesse sentido, de Amélia, existem apenas ecos que ressoam seu retrato fragmentado

ainda em processo de construção: “os ombros, / dedos, olhos, encéfalo, / pétalas, sépalas, /

sonhos” (QUINTAIS, 2017, p. 100). O prefixo eco – seja do grego oíkos, que significa casa,

habitação, que reúne elementos pertencentes a um mesmo campo semântico, numa noção de

familiaridade, seja do latim echo, que destaca a relação de eco, ressonância, repetição – no

título do poema, o vocábulo ecografia já carrega, então, essa figura de familiaridade que

amadurece com o tempo. De elementos naturais, como as pétalas, a elementos corporais,

como o dedo, esse eu lírico descreve a transformação a que esse perfil de Amélia será

submetido com o tempo seja durante gestação, seja após o seu nascimento para o mundo.

Suas características se modificarão com o seu crescimento, seja durante a gestação, seja após

o seu nascimento e desenvolvimento. Nessa cena de escrita, Quintais dá indícios de uma

poética altamente reflexiva que teoriza não só o olhar, mas também a natureza da percepção

do tempo. E como recordar é trazer de volta ao coração, recordo, eu, ainda, de Camões

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo

o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades” (CAMÕES, 1977, p.

45). A voz poética do Camões ecoa na voz poética de Quintais, através de uma lírica

filosófica das transformações e das novas qualidades sempre tomadas pelas coisas do mundo.

É um movimento que se pode também perceber no poema “Lixeiras e bancos”:

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LIXEIRAS E BANCOS

A liberdade, ninguém a quer.

Olhar para a luz de frente, procurar o ponto mais escuro que se assemelha a um leque, a uma floresta negociando sombras.

O lixo e o dinheiro são a única estação onde se pára e se contempla a história desfigurada.

Alguém acaba de morrer e no seu cérebro corre um arranjo de virtudes e acidentes.

Crepita a manhã sobre lixeiras e bancos.

(QUINTAIS, 2017, p. 39)

O poema é iniciado com uma afirmação que se desdobra, nos versos seguintes, numa

composição imagética: “A liberdade, ninguém a quer” (QUINTAIS, 2017, p. 39). Nesse

sentido, ao dizer que a liberdade, na verdade, não é desejada, o poeta propõe uma análise

político-social acerca das coisas que nos dão uma falsa sensação de liberdade, ao passo que

nos aprisionam num ciclo de degradação. A voz lírica, então, chama atenção para uma

experiência linguístico-visual obscura: olhar para a luz à frente, a procurar por um ponto de

escuridão, este que se [trans]figura em leque e em floresta. Isso acontece através da

transformação de palavras – e de seus significados – em cenas de escrita em que a observação

do mundo é o foco, mas um mundo aprisionado ao capital que determina o destino de todas as

coisas. Nas duas primeiras estrofes desse poema, vemos como o poeta – metaprocessualmente

– transforma as palavras e os versos em imagem a partir de procedimentos da escrita poética

que assemelham o poema a um procedimento contemplativo de cenas do mundo

contemporâneo. Os vocábulos luz, escuro, leque, floresta e sombras, à vista disso, passam

linguística e poeticamente a figurar um reflexo das marcas de decadência mundo pelo olhar

do poeta. Os versos de Quintais assemelham-se a frases-imagens¸ nas quais há uma subversão

da lógica natural dos sentidos, propondo a visualização de uma unidade de sentido nova,

como se percebe na segunda estrofe do poema, ao “olhar para a luz de frente” (QUINTAIS,

2017, p. 39) e “ procurar o ponto mais escuro” (QUINTAIS, 2017, p. 39) dessa cena em

análise, a voz lírica vê e descreve, na verdade, algo “que se assemelha / a um leque, / a uma

floresta negociando sombras” (QUINTAIS, 2017, p. 39). A frase dá a ver por meio da

55

linguagem poética o dizível e o não dizível, o real e o imaginário, o caos e seus

desdobramentos durante a observação do mundo. De acordo com Rancière, a frase-imagem é

uma potência de tensão entre o visual e a linguagem, entre o dizível e o foto-grafado:

frase imagem não é o dizível, a imagem não é o visível. Por frase-imagem

entendo a união das duas funções a serem definidas esteticamente, isto é,

pela maneira como elas desfazem a relação representativa do texto com a

imagem. No esquema representativo, a parte que cabia ao texto era o

encadeamento ideal das ações, a parte da imagem, a de um suplemento de

presença que lhe conferia carne e consistência. A frase-imagem subverte a

lógica. A função da frase-imagem ainda é a de encadeamento. Mas, a partir

daí, a frase encadeia somente enquanto ela é aquilo que dá carne. E essa

carne ou essa consistência, de modo paradoxal, é a da grande passividade

das coisas sem razão. A imagem tornou-se potência ativa e disruptiva do

salto, da transformação de regime entre duas ordens sensoriais. A frase-

imagem é a união dessas duas funções. É a unidade que desdobra a força

caótica da grande parataxe em potência frástica de continuidade e potência

imageadora de ruptura. Como frase, acolhe a potência paratáxica rejeitando a

explosão esquizofrênica. Como imagem rejeita com sua força disruptiva o

grande senso da repetição indiferente ou a grande embriaguez comunal dos

corpos. A frase-imagem retém a potência da grande parataxe e não deixa que

ela se perca na esquizofrenia ou no consenso. (RANCIÈRE, 2012, p. 56-57)

Essa frase-imagem inicial dá lugar à reflexão antropológica. Isso porque a criação de

imagem poéticas a partir de uma “potência frástica de continuidade” (RANCIÈRE, 2012, p.

56-57) e de uma “potência imageadora de ruptura” (RANCIÈRE, 2012, p. 56-57) da

linguagem poética confere ao texto lírico uma forma de representação crítica das imagens do

mundo. Desse modo, o poeta passa a desenvolver em seus versos uma imagem que visa

refletir sobre a dependência humana por capital em detrimento da percepção individual e

coletiva das mazelas do mundo. Por isso, a linguagem poética seria um recurso que dá a ver

um retrato crítico-social na poesia de Quintais, uma vez que ela organiza logica e

dialeticamente o olhar ontológico do poeta sobre o mundo, enquanto revela ao leitor as

impressões e as meditações dessa voz sobre a cena que vê. Como aponta Andrade (2017),

ainda que o contexto social em que uma obra literária foi escrita, deva ser considerado,

necessariamente, como o ponto inicial de análise crítica da obra, é necessário levar em

consideração a relação entre o olhar crítico do artista sobre o mundo impresso nas linhas de

um texto. Segue o excerto:

Apesar do contexto social não poder ser considerado como o ponto de

partida para a produção literária, não podemos negar que o poeta é um ser

sensível ao mundo em que vive e as experiências vivenciadas por ele e pela

56

humanidade, o que lhe permite trazer para aquilo que produz as suas

impressões sobre os fatos ocorridos na sociedade e a realidade que o

circunda, e é nesse sentido que Fonseca (2001, p. 202) afirma que “Embora

não se recuse a importância do conhecimento da técnica e da constituição

formal, para o poeta, o conteúdo de sua obra resulta do contato com o mundo

e a natureza, do conhecimento de si mesmo e dos outros”. (ANDRADE,

2017, p. 19)

Nesse contexto, antropólogo por formação acadêmica, Quintais dimensiona seu olhar

crítico do mundo a seus poemas. Através disso, a voz lírica em “Lixeiras e bancos” questiona

que o homem, hoje, está subordinado ao dinheiro. A sociedade contemporânea é regida pelo

capital. O sistema econômico capitalista vigente (marcado pela circulação contínua de capital

pela compra e venda de objetos de consumo) transforma a força de trabalho em forma de

adquirir capital, uma vez que este determina o poder de compra de mercadorias. Em função

disso, a sociedade é levada a naturalizar um processo contínuo de “mercantilização” das

coisas, já que tudo hoje pode se tornar um objeto de consumo cujo principal objetivo é a

venda para a aquisição – e o acúmulo – de capital como poder de compra. É nesse cenário,

então, que o homem contemporâneo passa a trabalhar compulsória e descontroladamente

numa busca frequente por poder de compra para consolidar sua posição ativa no ciclo

econômico.

Tal contexto econômico, no entanto, para além de diversas desigualdades sociais

geradas pela marginalização decorrente do status adquirido socialmente pelo poder de

compra, leva, ainda, para um outro cenário distópico. À medida que todas as coisas podem ser

entendidas como um objeto mercadológico, paradoxalmente todas essas coisas se tornam

também substituíveis e descartáveis. O sistema econômico é cruel e molda as relações de

trabalho – empregado (que vende sua força de trabalho para produzir um objeto de consumo)

e empregador (dono da empresa que vende o objeto produzido pelo empregado) – numa busca

contínua de lucro máximo. Ou seja, quanto mais se vende, mais se recebe capital. Sendo

assim, o mercado oferece ao seu consumidor diversos produtos variáveis em preço e

qualidade e que competem pela preferência do consumidor. Tais produtos, entretanto, tendem

a possuir uma vida útil e são descartados quando não cumprem mais a sua função. Das

embalagens descartáveis que conservam alimentos às carcaças de aparelhos tecnológicos, o

homem contemporâneo vive rodeado de lixo gerado pelo dinheiro. É o que observa a voz

poética de “Lixeiras e bancos”, em meio ao ritmo constante da esteira de produção da vida

capitalista: “o lixo e o dinheiro são a única estação / onde se pára e se contempla / a história

desconfigurada” (QUINTAIS, 2017, p. 39). A imagem poética, a partir disso, revela traços da

57

vida contemporânea através da observação e descrição de elementos antilíricos que compõem

a vida contemporânea. E ao poeta, nesse ponto, cabe a função de organizar, numa experiência

lírico-visual, uma reflexão desses trapos sociais como reflexo da sociedade.

Seria isso, talvez, um resquício de um poeta-trapeiro de Baudelaire que caminhava

pela cidade moderna e nela reparava os objetos antilíricos? Walter Benjamin em Paris,

capital do século XIX (1985) refletiu sobre as transformações urbanas sofridas pela

modernização das cidades, em especial Paris na segunda metade do século XIX. Seu estudo

toma como matéria as imagens poéticas desenvolvidas pelo poeta francês Baudelaire que

destaca dessa cidade boêmia uma figura sorrateira que perambulava pelas ruas: o trapeiro.

Este, por sua vez, torna-se uma metáfora para o poeta nos textos de Baudelaire que associa o

caminhar contemplativo desse personagem da Paris moderna com a arte – dessacralizada – do

fazer poético. Por isso, a imagem desse indivíduo (o trapeiro) – que anda solitário pelas ruas

da cidade e encontra no lixo dessa cidade seu “fazer heroico” – é transformada liricamente no

poeta – que procura nessa cidade seu assunto poético, seja na luminosidade seja na escuridão,

seja no erudito seja no vulgar, seja no luxo seja no lixo. Como destaca Benjamin:

Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu

assunto heroico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um

tipo vulgar. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou a Baudelaire

tão assiduamente. Um ano antes de O Vinho dos Trapeiros apareceu uma

descrição em prosa dessa figura: 'Aqui temos um homem – ele tem de

recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande

jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu,

é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum

da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um

avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da

deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis'. Essa

descrição é apenas uma dilatada metáfora do comportamento do poeta

segundo o sentimento de Baudelaire. Trapeiro ou poeta – a escória diz

respeito a ambos; solitários, ambos realizam seu negócio nas horas em que

os burgueses se entregam ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos.

Nadar fala do andar abrupto de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela

cidade à cata de rimas; deve ser também o passo do trapeiro que, a todo

instante, se detém no caminho para recolher o lixo em que tropeça.

(BENJAMIN, 1995, p. 78-79)

Somos, nesse sentido, levados a retornar à estrofe inicial: “A liberdade, ninguém a

quer” (QUINTAIS, 2017, p. 39). O poeta-trapeiro de Quintais, ao realçar esses fragmentos da

sociedade, destaca também a nossa dependência deles. Em meio à história desconfigurada, a

luz que se transforma em sombra revela que o homem contemporâneo, que vive subordinado

58

ao capital, e enxerga este – e somente este – como mecanismo de transformação pessoal, tem

uma visão turva sobre as coisas do mundo. A partir disso, entretanto, como em um despertar

de consciência, a linguagem poética transforma-se em resistência: cabe a ela a função de

desembaçar a visão. É nesse sentido que a frase imagem se torna uma ferramenta de análise

social, quando o eu poético volta seu olhar para uma nova cena, “alguém acaba de morrer e no

seu cérebro” (QUINTAIS, 2017, p. 39), essa imagem reflete a vulnerabilidade do homem

nesse mundo capitalista. O movimento do mundo é constante e contínuo, e quando nos

tornaremos livres desse movimento que nos envolve e nos rege? O caos de virtudes e

acidentes divide a tela do poema com a melancolia, mostrando que a liberdade é encontrada

pela libertação da mente através da linguagem poética.

Muda-se, então, a cena no poema: o eu lírico conduz seu leitor a ver o levantar de uma

manhã que recobre uma cena urbana de lixeiras e bancos. O final deste poema é a anunciação

de que existe um ciclo da vida que é contínuo e inevitável. Nesta cenografia do tempo, o ciclo

do poema termina, mas o ciclo da vida continua. As imagens enunciadas pela linguagem

poética agora ecoarão na memória, acessada através da observação de cenas. Como no poema,

após cada fim de dia (frenético, acelerado, competitivo e capitalista), “crepita a manhã sobre

lixeiras e bancos” (QUINTAIS, 2017, p. 39). Num movimento metaprocessual, a imagem

poética evidencia camadas de um mundo que se edifica numa dimensão contrária ao mundo

real, sobrepondo-se a ela em muitos fragmentos espaço-temporais. Através da representação

desses fragmentos do mundo, essa imagem põe em xeque os segredos, ela reflete a violência

persente nesse mundo, ela dá a ver as estranhezas desse mundo. É o que reflete Rancière:

[...] trata-se de fazer um mundo por trás de outro: o conflito distante por trás

do home; dos homeless expulsos pela renovação urbana por trás dos

edifícios novos e dos antigos emblemas da cidade; o ouro da exploração por

trás das retóricas da comunidade ou das sublimidades da arte; a comunidade

do capital por trás das separações em domínios; e a guerra das classes por

trás de toda comunidade. Trata-se de organizar um choque, de pôr em cena

uma estranheza do familiar, para fazer parecer outra ordem de medida que só

se descobre pela violência de um conflito. A potência da frase-imagem que

junta heterogêneos, então, é aquela da distância e do choque que revelam o

segredo de um mundo, isto é, o outro mundo no qual a lei se impõe por trás

das aparências anódinas ou gloriosas. (RANCIÈRE, 2012, p. 56-57)

Até aqui, portanto, vimos como ecfrasticamente a voz lírica cria imagens poéticas que

ora se assemelham à realidade objetiva ora destoam dela, evidenciando marcas da passagem

do tempo. Com isso, os fragmentos e as ruínas são objetos que se fazem presentes

59

constantemente nessas imagens poéticas, haja vista que por meio deles a voz pretende guiar o

leitor à reflexão e à meditação sobre a condição das coisas frente à passagem do tempo. Daí,

então, a necessidade de analisar, também, o modo com o leitor (observador) percebe e

experimenta as imagens com as quais é confrontado pela voz lírica.

2.3 Pelas janelas as palavras: as formas de percepção

Como discutido, na poética de Luís Quintais, encontramos uma escrita do ver, que põe

em evidência, pela voz lírica e pela linguagem, um retrato fragmentado – e, por vezes,

decadente – de cenas ou objetos do mundo. Nesse cenário, somos motivados pelo eu lírico a

visualizar imagens que representam rastros do mundo real e que, por isso, evocam um estado

de reflexão decorrentes dessa experiência visual. Com isso, é possível fazer uma analogia

entre as imagens poéticas nas obras de Luís Quintais e as imagens artísticas sobre as quais

Didi-Huberman refletiu em seu estudo. A obra O que vemos, o que nos olha (1982) de Didi-

Huberman desenvolve-se a partir de uma reflexão sobre o ato de ver, relatando que, por meio

dessa ação, o observador é levado a uma experiência visual subjetiva, oriunda de uma

inquietação promovida pela imagem observada. Nesse cenário, ele propõe que tal processo

ocorre uma vez que as imagens, assim como problematizadas por Benjamin [1928] (1984),

quando são dialéticas, têm a potência de afetar o receptor. Além disso, Didi-Huberman

destaca que, por meio da observação de imagens, somos levados a experimentar o vazio,

decorrente de a figura vista ser um rastro de elemento concreto em um mundo objetivo. Nesse

sentido, uma imagem, como mecanismo de representação, carrega em si uma imagem

dialética: ela é a representação de um objeto real – não o objeto em si – e, por conseguinte,

resgata do observador a memória deste objeto real.

Nessa perspectiva, quando se trata de poesia, resta à linguagem poética compor

imagens que possam funcionar como elemento de transformação – e por vezes de resistência

– quando estimulam as nossas experiências subjetivas num processo de busca por algo capaz

de preencher os vazios do mundo por elas representados. Para Rancière, “é nesse sentido que

a arte é feita de imagens, seja ela figurativa ou não, quer reconheçamos ou não a forma de

personagens e espetáculos identificáveis. As imagens da arte são operações que produzem

uma distância, uma dessemelhança” (RANCIÈRE, 2012, p. 15). Com isso, através da

linguagem, a poética de Quintais pode atuar sobre a contemplação de imagens, destacando o

60

papel e a importância das imagens poéticas para afastar a nossa percepção do pragmatismo.

Rancière aponta, ainda, que “palavras descrevem o que o olho poderia ver ou expressam o que

jamais verá, esclarecem ou obscurecem propositalmente uma ideia” (RANCIÈRE, 2012, p.

15) e em função disso, as imagens poéticas “propõem uma significação a ser compreendida ou

a subtraem. Um movimento de câmera antecipa um espetáculo e descobre outro, um pianista

inicia uma frase musical “atrás” de uma tela escura” (RANCIÈRE, 2012, p. 15).

Por conta disso, entendemos que a linguagem poética, no ato de criação de imagens,

funciona como um mecanismo que recorta de uma cena observada elementos visuais que são

abstraídos pela linguagem a serem percebidos pelo leitor. Isso é possível uma vez que o

produtor da imagem (seja ela uma imagem tradicional, seja ela textual, seja ela técnica)

imprime involuntariamente uma névoa cultural sobre o objeto – ou cena – real observada ao

reproduzi-la artisticamente. Névoa esta que poderia ser compreendida como as técnicas de

escrita poética – metáforas, figuras de linguagem, disposição visual dos versos e estrofes etc.

– bem como as técnicas de fixação de imagens plásticas – como na pintura e na fotografia –,

mecanismos que fazem a composição visual revelar ao espectador não só aquilo que se

encontra circunscrito na imagem, mas também uma fenomenologia e simbologia intrínseca às

coisas foto-grafadas.

Em virtude disso, como destaca Flusser, a criação de uma imagem é submetida a um

processo de abstração pela observação, imaginação e reprodução. Assim, na linguagem

poética “os textos são uma série de conceitos, ábacos, colares. Os fios que ordenam os

conceitos (por exemplo a sintaxe, as regras matemáticas e lógicas) são frutos de convenção.

Os textos representam cenas imaginadas assim como as cenas representam a circunstância

palpável” (FLUSSER, 2008, p. 14). Seguindo essa linha de raciocínio, o que vemos na poesia

de Quintais é a produção de imagens poéticas que recortam subjetivamente, a partir das

intenções reflexivas do poeta, uma cena a ser posta em exposição através da linguagem

poética. Cabe então compreender na poesia de Quintais como as imagens poéticas

promoveriam uma inquietação sobre a forma como o leitor percebe o mundo à sua volta.

Em busca dessa resposta, é importante entender que as imagens poéticas de Quintais

transitam entre o visível e o não visível, o dizível e o não dizível. A voz poética

constantemente descreve imagens que evocam do observador uma sensação de ausência, seja

pelo recorte da cena promovido, seja pela incapacidade de a linguagem dar conta de

representar todas as coisas, seja pela intenção fragmentária do próprio artista. Essa sensação

de esvaziamento, por sua vez, instiga o espectador a procurar por algo que preencha esses

61

vazios, pela memória, pela história e pelas sensações subjetivas. A partir disso, a observação

de uma imagem poética estimula o leitor a preencher o que há por detrás dela. Cenas em

fragmentos e objetos em ruínas realçam, seja pela descrição ecfrástica, seja pela criação de

metáforas, que as palavras grafam imagens que tensionam a percepção visual ao produzir

involuntariamente um resgate memorialístico de narrativas, sentimentos ou objetos de afeto.

Por isso, aqui percebemos que a voz poética de Quintais se encontra constantemente

teorizando o ver em uma performance lírica, uma vez que somos constantemente estimulados

não somente a pensar sobre a imagem e seus processos de composição, mas também a

experimentar imagem através da percepção subjetiva. Com base nisso, como destaca

Rancière:

Primeiramente, as imagens da arte, enquanto tais, são dessemelhanças. Em

segundo lugar, a imagem não é exclusividade do visível. Há um visível que

não produz imagem, há imagens que estão todas em palavras. Mas o regime

mais comum da imagem é aquele que põe em cena uma relação do dizível

com o visível, uma relação que joga ao mesmo tempo com sua analogia e

sua dessemelhança. Essa relação não exige de forma alguma que os dois

termos estejam materialmente presentes. O visível se deixa dispor em tropos

significativos, a palavra exibe uma visibilidade que pode cegar.

(RANCIÈRE, 2012, p. 15-16)

Tendo em vista essa virtude dialética da imagem poética, proponho a associação entre

as imagens presentes nos poemas de Quintais e a possibilidade de elas funcionarem como um

mecanismo de reflexão individual e coletiva. Isso porque as imagens poéticas produzidas pelo

poeta produzem uma leitura crítica não só de si – imagem – como também da relação entre ela

e o mundo. É o que se pode notar com a leitura do poema “Fotografia”, que promove, como

num movimento de ida e volta ao tempo passado, uma [re]leitura crítica sobre a condição das

coisas no tempo presente.

FOTOGRAFIA

É uma imagem de uma parede e as vulgares sombras de fim de tarde.

Nada faz pressentir outro sortilégio, a cor que a eternidade tem, uma hesitação que faz abolir a descrença.

Tudo é descrença, aqui.

62

Porém, polimórfica, a natureza desdobra o pensamento sobre o ecrã dessa parede. O realismo é destruído.

(QUINTAIS, 2017, p. 61)

Na primeira estrofe do poema, o eu lírico apresenta ao leitor aquilo que observa.

Diante dele, encontra-se uma imagem, talvez uma fotografia. Nela, estão presentes uma

parede e sombras vulgares de um fim de tarde. À primeira vista, trata-se de uma imagem

insignificante, que representa mimeticamente uma cena da realidade objetiva: “É uma

imagem / de uma parede e as vulgares sombras / de fim de tarde” (QUINTAIS, 2017, p. 61).

No entanto, a observação atenta desse sujeito lírico faz que, dessa imagem vulgar de um fim

de tarde, ele perceba uma sensação de distanciamento. A parede ali presente está distante da

realidade objetiva, o fim de tarde ali fixado já não existe mais – as imagens são apenas

indícios de um espaço-tempo perdido e distante no espectro do passado, que evocam a perda,

o silêncio e a ausência. A imagem guia à melancolia, à perda, e o leitor encontra-se diante de

uma imagem que se assemelha a uma natureza morta. Em “Fotografia”, o leitor é exposto, já

na primeira estrofe pela voz poética, à observação de objetos comuns ao cotidiano, cujo

aspecto vulgar procura alcançar uma visão mais profunda sobre a efemeridade das coisas no

mundo. Isso em virtude de, assim como as pinturas de natureza morta, as imagens poéticas

revelarem não só um lado bom do mundo através dos objetos que a compõem, como também

provocarem uma reflexão sobre as noções de finitude, numa espécie de alegoria sobre a

morte, afinal, “tudo é descrença, aqui” (QUINTAIS, 2017, p. 61).

Sendo assim, os fotogramas líricos de Quintais compõem-se por meio de alegorias nas

quais os objetos que fazem parte da cena são reproduzidos semelhantes à natureza morta.

Acerca disso, recordo da reflexão de benjaminiana sobre a “categoria do tempo”, já que os

objetos artísticos das imagens poéticas de Quintais realçam a fragilidade das coisas. Em

Origem do Drama Barroco Alemão [1928] (1984), o ensaísta alemão aponta que uma

alegoria funciona como um mecanismo de constituição de sentido uma vez que ela é produto

da associação entre a natureza e a história. Nessa reflexão, Benjamin destaca que o sentido de

uma alegoria é resultado de uma relação subjetiva entre signo (a palavra) e coisa (objeto real

no mundo), a qual intensifica a subjetividade latente do mundo histórico. A partir disso, uma

alegoria tende a mudar o sentido original das coisas ao passo que promove a reflexão sobre a

transitoriedade das coisas. Daí, portanto, a importância das ruínas no processo de construção

63

alegórica, ou seja, este símbolo (a ruína) funciona como um estereótipo, mas quando

representado em uma alegoria pode transformar-se em um mecanismo poético-visual que

impulsiona outras formas de perceber a história que talha inevitavelmente marcas visíveis e

invisíveis sobre todas as coisas. É o que destaca:

Quando, com o drama barroco, a história penetra no palco, ela o faz

enquanto escrita. A palavra história está gravada, com caracteres de

transitoriedade, no rosto da natureza. A fisionomia alegórica da natureza

história, posta no palco pelo drama, só está verdadeiramente presente como

ruína. Como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob

essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de

inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As

alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das

coisas. (BENJAMIN, 1984, p. 200)

A partir desse excerto, é possível entender o papel da melancolia no processo de

criação alegórica. Isso porque a imagem, quando representa algo que se encontra

fragmentado, em decadência ou ruína, realça desses aspectos a sua incompletude, levando o

leitor-observador a experimentar novamente a sensação de perda sob um rememorado objeto

de afeto. Nos versos do poema “Fotografia”, a voz lírica percebe que dessa imagem de uma

parede e as sombras de um fim de tarde “nada faz pressentir / outro sortilégio, a cor que a

eternidade tem” (QUINTAIS, 2017, p. 61). A projeção das sombras nessa parede, associadas

à cor do fim de tarde impressa na imagem que a voz poética vê e descreve vulgarmente ao

leitor, passa a configurar, como em uma ruína, traços de um passado histórico [re]vivenciado

através da observação e da memória. É válido destacar, ainda, que para Benjamin a história é

marcada pela violência, a qual só é acessada pela experiência melancólica, por isso, as

sombras e a cor impressas pelo observador da imagem levam a “uma hesitação que faz abolir

a descrença” (QUINTAIS, 2017, p. 61). A partir da linguagem poética, nesse contexto,

Quintais constrói uma imagem marcada por uma experiência da melancolia: “nada faz

pressentir / outro sortilégio a cor que a eternidade tem,” (QUINTAIS, 2017, p. 61). A imagem

e as cores de um entardecer perdidos no tempo evocam no eu lírico uma sensação de vazio.

Essa potência de afeto da imagem poética, transmitida à imagem grafada, reflete que

diante dela, o observador vê, na verdade, uma representação visual que marca uma evidência

histórica e memorialística de algo naquele espaço. Há na imagem dialética, portanto, sombras

que estimulam no seu observador, num movimento melancólico, uma experiência do vazio.

Em situação semelhante, o eu poético de “Fotografia”, ao observar a imagem na parede

64

precisa descrevê-la para compreender a experiência do vazio pela observação dessa imagem

que o leva a um estado de descrença: “Tudo é descrença, aqui.” (QUINTAIS, 2017, p. 61). É

o que ocorre, por exemplo, na alegoria do anjo de Klee14 pela qual Benjamin destaca a

contemplação do passado através da imagem do anjo. Em sua análise da imagem, o ensaísta

revela indícios de uma postura melancólica através da própria figura do anjo que se encontra

horrorizado com o que vê, estático e em aparência assustadora. Ou seja, em estado de

melancolia. De fato, a teoria benjaminiana sustenta a ideia de que uma imagem poética, ao

propor uma imagem em ruínas, sugere a contemplação de uma natureza morta dotada de

alegorias que fazem o leitor meditar sobre a sua condição e sua fragilidade frente à inevitável

passagem do tempo; que chega para tudo e para todos e sempre deixará marcas visuais e

subjetivas.

Em “Fotografia”, a voz poética descreve uma cena composta por objetos, da qual o

olhar crítico promove um recorte e mostra apenas partes. Essas partes articuladas formam

uma imagem que revela indícios de algo para além da representação: aí está o visível e o

invisível. Desse modo, a imagem poética e imagem fotográfica, nessas primeiras estrofes,

fundem-se e dissipam-se em testemunho do real passado na terceira estrofe: “porém,

polimórfica, a natureza / desdobra o pensamento / sobre o ecrã dessa parede” (QUINTAIS,

2017, p. 61). Isso faz que a imagem poética se abra para o leitor dando a ver o visível –

percebido na composição da imagem – e o não visível – uma historicidade talhada nessa

imagem do fim de tarde na parede. Por isso, essa imagem poética pode ser percebida como

um elemento duplo que descreve não só uma mera figuração de uma cena, mas também uma

cena real do passado – um fim de tarde vivido pelo observador e já perdido no tempo.

Seguindo esse raciocínio, os objetos descritos no poema (a parede e as sombras o fim de

tarde) transformam-se em alegoria para destacar a efemeridade das coisas do mundo. Pelos

recortes promovidos pelo olhar reflexivo da voz poética que seleciona partes da cena para

compor uma imagem poética, portanto, o poeta leva seu leitor a ver além das palavras, e a

imagem, enfim, revela sua outra história.

Com base nisso, como aponta Rancière (2012):

14 “[h]á um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de

algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da

história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de

acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a

nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do

paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele

irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa

tempestade é o que chamamos progresso” (BENJAMIN, 2005, p. 87).

65

Primeiramente, a palavra faz ver, pela narração e pela descrição, um visível

não presente. Em segundo lugar, ela dá a ver o que não pertence ao visível,

reforçando, atenuando ou dissimulando a expressão de uma ideia, fazendo

experimentar uma força ou a contensão de um sentimento. Essa dupla função

da imagem supõe uma função ordem de relações estáveis entre o visível e o

invisível, por exemplo, entre um sentimento e os tropos da linguagem que o

expressam, mas também os traços de expressão pelos quais a mão do

desenhista traduz aquele e transpõe estes. (RANCIÈRE, 2012, p. 21)

Nesse momento, lembro-me de uma pintura renascentista, o quadro de São Jerônimo

(Figura 4) do pintor Albrecht Dürer, ao qual Didi-Huberman também faz referência no livro

Ser Crânio: lugar, contato, pensamento, escultura (2016). O quadro, como destaca o ensaísta,

faz alusão a dois conceitos presentes nas pinturas de natureza morta: vanitas e memento mori.

Por meio desses conceitos, os artistas promoviam, através da criação de imagens que

representavam objetos cotidianos, uma reflexão sobre a fragilidade das coisas.

Figura 4 - São Jerônimo – Óleo sobre madeira de carvalho. 59,5 x 48,5 cm15

Fonte: Albrecht Dürer (1521)

Com a pintura que faz referência à natureza morta (Figura 4), como destaca Didi-

Huberman, Dürer reflete sobre a efemeridade do conhecimento. A caveira, ao lado da imagem

de São Jerônimo – que dedicou sua vida ao desenvolvimento intelectual – destaca que tudo

15 A reprodução pode ser encontrada pelo link:

https://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jer%C3%B3nimo_(Albrecht_D%C3%BCrer)

66

está submetido ao fim, à morte, assim como o homem e o conhecimento. Assim, diante de

uma natureza morta, o observador é levado a experimentar a descrença, uma vez que ela o põe

diante da ausência. De modo semelhante, observar a imagem inerte de “uma parede e as

vulgares sombras / de um fim de tarde” (QUINTAIS, 2017, p. 61) faz o eu poético refletir

sobre a fragilidade das coisas frente à passagem do tempo. Se aquela imagem é a

representação de um momento passado, o que vemos no poema é o que restou desse

momento. O que temos são vestígios de uma experiência, de uma percepção que se perdeu, o

que resta na história, com isso, são apenas fragmentos que nos remetem ao vazio.

Tal como na natureza morta, Quintais revela uma imagem composta por elementos da

vida em estado de decadência. É por meio da percepção da ênfase nesse estado aparente que a

voz lírica é capaz de refletir sobre o mundo à sua volta. Essa imagem inerte na parede gera

uma reflexão pela qual “polimórfica, a natureza” (QUINTAIS, 2017, p. 61) que era antes

observada passa a se desdobrar em “pensamento / sobre o ecrã dessa parede” (QUINTAIS,

2017, p. 61). Eis, pois, a potência transformadora e inquietadora da imagem poética: de

imagem imóvel marcada pela descrença e pela morte, a natureza que compõe a cena

fotografada observada transmuta-se, desdobrando o pensamento do observador. Diante dessas

imagens opera-se uma relação dialética em que a angústia e a melancolia abrem nossos olhos

a novas percepções do mundo: “é a angústia de olhar o fundo – o lugar – do que me olha, a

angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade de não saber) o que vem a ser meu

próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio,

de se abrir” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38). Enquanto isso, a voz lírica percebe que “O

realismo é destruído” (QUINTAIS, 2017, p. 61). Mas a que realismo se refere? Ao da

fotografia ou ao do mundo à sua volta? Ambas as imagens descritas – a fotografia observada

pelo eu lírico e a sua écfrase apresentada nos versos do poema – funcionam

ambivalentemente como mecanismos de alteração da percepção do real.

Em outro poema do livro A noite imóvel (2017), imagem semelhante é percebida:

MANHÃ

É cedo, demasiado cedo, escutas o clamor das horas, o breve tempo, a longa margem que assiste ao teu desaparecer.

Bebes o café e estranhas o poder de orvalho e cansaço

67

que há na manhã.

(QUINTAIS, 2017, p. 57)

No poema, notamos como o eu lírico descreve, na primeira estrofe, uma cena. Essa

cena é composta por um personagem e suas ações, no que se apresenta como uma manhã. Ao

decorrer da leitura, o poema, no entanto, é compreendido como um espelho: o eu lírico

observa uma cena de si mesmo. Distante da cena, ele se põe como observador e nosso olhar é

redirecionado a visualizá-lo: o eu lírico, agora personagem, escutando o clamor das horas,

assistindo a essa mesma cena: ela assiste ao teu desaparecer. “É cedo, demasiado cedo,

escutas / o clamor das horas, / o breve tempo [...] (QUINTAIS, 2017, p. 57). Com essa

imagem inicial, a voz poética põe em cena um personagem lírico que entra em autorreflexão

através da observação de uma cena da natureza ao amanhecer. Durante esse momento do dia,

observam-se transformações naturais decorrentes do movimento próprio da terra que faz a

noite tornar-se dia. Essa voz poética, então, contempla essas mudanças que ocorrem com a

chegada da luz, ou seja, o desaparecer da noite. Tal imagem, no entanto, é ponto de partida

para que a voz lírica entre em estado meditativo sobre a sua própria mudança, que chegará

inevitavelmente com o passar do tempo. Isso ocorre porque a imagem vista pelo eu lírico é a

mesma que o observa de volta, num movimento que o leva à inquietação subjetiva. Por isso, a

utilização do pronome possessivo de 2ª pessoa (teu) no verso “que assiste ao teu desaparecer”

(QUINTAIS, 2017, p. 57), que indica esse movimento duplo de observação da imagem

discutido por Didi-Huberman “porque procede como um momento de despertar, porque

fulgura o chamado na memória do sonho, e dissolve o sonho num projeto da razão plástica”

(DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 192).

Nos dois últimos versos da primeira estrofe do poema, nesse contexto, anuncia-se um

jogo dialético da imagem. Isso porque os objetos que compõem a cena e são descritos se

abrem para nós – eu lírico e leitor – como uma espécie de encontro entre o aí e o aqui, já que

o eu poético, antes observador, se torna objeto de observação pela [...] a longa margem / que

assiste ao teu desaparecer” (QUINTAIS, 2017, p. 57). Desse modo, a imagem poética

tensiona o leitor uma vez que a mudança de foco na cena representada gera estranhamento: a

voz poética antes observava uma paisagem “É cedo, demasiado cedo, escutas/ o clamor das

horas, / o breve tempo” (QUINTAIS, 2017, p. 57); mas agora é a paisagem que assiste uma

cena de si: “escutas [...] a longa margem / que assiste ao teu desaparecer” (QUINTAIS, 2017,

p. 57). Percebe-se, nessa dupla experiência poético-visual, que a imagem poética proposta por

68

Quintais mais uma vez tende a dialogar com a estética do que seria uma Natureza Morta, já

que a cena criada destaca uma composição de um cenário comum que, no entanto, aloja uma

inquietação sobre esse objeto banal observado. Se nos quadros Still-Life os objetos do

cotidiano eram representados inertes, com cores e tons melancólicos e ligados à imagem de

fim, não é difícil perceber que a natureza descrita pela voz poética carrega, também, esse

aspecto melancólico. Nessa perspectiva, a imagem poética do amanhecer, tecida no poema

“Manhã”, funciona tal qual as imagens criadas a partir de objetos estáticos, tirados do natural,

passa a ser uma alegoria que dá forma a uma nova percepção.

Ao longo do século XVII, como já discutimos anteriormente, ascendeu esse novo

gênero artístico que acabaria por redefinir a forma como interpretamos uma imagem, o Still-

Life, ou Natureza Morta. Os grandes pintores desse movimento, como destaca o crítico

Norbert Schneider (1990), desenvolviam, pelas artes plásticas, alegorias acerca da

transitoriedade, fragilidade e passividade das coisas que sempre têm um fim. Para isso, os

elementos que compunham as pinturas eram apresentados de forma imóvel, de modo a

destacar uma reflexão sobre a concepção de tempo. Passado, presente e futuro são ideais em

suspensão na natureza morta. Além disso, nessa composição estética, os objetos inertes

representados são subordinados a esquemas de cores e iluminação que criam uma aura

meditativa sobre esses objetos, abrindo-se para nós em reflexão não apenas sobre a natureza

das coisas, mas também de seu fim, como numa performance viva de uma cena inerte. Assim,

surge um princípio interessante e comuns às naturezas mortas, o conceito de vanitas. Este,

por sua vez, é representado nas pinturas de natureza morta a partir de elementos que fazem

alusão à ideia de fim (memento mori) que ressoa como uma advertência sobre a

transitoriedade da vida humana. É o que explica Kossovicth (2010):

A vanitas é simplesmente significada pelos elementos pintados, abstraindo a

zona de indeterminação da mancha; o “fim” é uma alegoria de nível

superior, pois a própria representação deve ser antes desvendada.

Coordenando lugar, ponto de vista, parte/todo, Holbein distingue dois níveis

de representação e significação: o primeiro, evidente, em seu frontalidade, é

simples como representação do significado vanitas; o segundo, evidente em

sua lateralidade, representa outro significado, que a anamorfose desnuda,

“fim”. A alegoria do fim não se acrescenta a da vaidade: construída como

alegoria de alegoria, interpreta a primeira; é significado de significado e não

como mera figuração de objetos simbólicos. (KOSSOVICTH, 2010, p.185)

É o que se percebe, também, pela voz poética de “Manhã” na última estrofe do poema.

Nesses versos, vemos como a imagem do amanhecer transforma o modo de percepção do eu

69

lírico que a observa, uma vez que ele é levado a reflexões mais profundas, como sobre o

“poder / de orvalho e cansaço / que há na manhã” (QUINTAIS, 2017, p. 57). O orvalho é um

fenômeno físico que ocorre na madrugada que anuncia a manhã, quando o sol passa a trazer

calor que se opõe à temperatura fria da noite. A partir disso, a umidade do ar é precipitada por

condensação e se formam pequenas gotas de água na superfície das coisas que estão ao

tempo. Das transformações a que as coisas do mundo são submetidas frente à passagem do

tempo, restam apenas traços que indicam essa mudança. São marcas que revelam essa

história. Vanitas e memento mori, – ou a lembrança de que você irá morrer – ecoa nos versos

de Quintais como uma advertência ao leitor: olhar o mundo é perceber nos seus fragmentos o

reflexo de que a condição humana também se transforma e também experimenta a finitude. A

imagem poética, com isso, cumpre papel fundamental nesse processo tendo em vista que se

volta àquele que a observa a fim de promover um espaço de contemplação meditativa que

sensibiliza a forma como o espectador olha, imagina e percebe o mundo através das suas

sensações.

Em outro poema, “Anfiteatro”, o que se observa é uma voz lírica que compõe

inúmeras e fragmentadas imagens que buscam refletir, por meio dessa fragmentação, uma

experiência sobre a violência. Aqui, enxergaremos, tal qual a voz poética enxerga a realidade

à sua frente: pelo medo, pela indiferença e pela melancolia gerados por uma experiência

contemplativa em fragmentos.

ANFITEATRO

Todas as formas de violência são indesculpáveis, disse, e as sombras tombaram sobre a mesa.

Assim é indesculpável a mudez em que rostos se fecham. Um som vinha antecipar o sentido. A história alucina-se,

disse e algo cedeu nas sombras tombadas. Eu anotei, e o olhar, o meu, derrapou no vidro do anfiteatro, procurou a transparência. Mas era Inverno, Inverno também ali, Inverno sempre, e os plátanos

do outro lado, ali estando, tão indiferentes, de uma beleza de cinza, um anátema, uma contemplação rasurada.

(QUINTAIS, 2017, p. 75)

70

O título do poema, “Anfiteatro”, situa o leitor no espaço. A voz lírica encontra-se num

anfiteatro assistindo a uma cena, e, do palco um personagem diz “Todas as formas de

violência são indesculpáveis /, disse [...]” (QUINTAIS, 2017, p. 75). Observador atento, o

olhar do eu lírico – que possivelmente está sentado em uma das cadeiras frente ao tablado do

anfiteatro – volta-se ao redor desse espaço, descrevendo o efeito visual e de luz utilizado na

iluminação do cenário que, por sua vez, dá ênfase às palavras proferidas por esse personagem

em cena poética: [...] e as sombras tombaram sobre a mesa” (QUINTAIS, 2017, p. 75). Como

num recorte violento, que segue o ritmo e a temática anunciados pela voz em meio ao

anfiteatro, agora o leitor é direcionado a ver uma disposição de sombras que tombam sobre a

mesa – primeiro objeto concreto descrito que compõe o cenário do poema. Temos nesses

versos uma enunciação fragmentada, em que o eu lírico anuncia-se como um espectador que,

ao mesmo tempo em que assiste a uma performance em um anfiteatro, faz anotações poéticas

e meditativas sobre o que vê e o que decorre nesse espaço do anfiteatro e fora dele. É

interessante perceber, ainda, como a disposição sintática dos períodos nessa primeira estrofe,

e que se mantém ao longo do poema, dialoga diretamente com a ato de ver performado pela

voz poética nas palavras do poema, pois à medida que o eu lírico movimenta seu olhar sobre

um acontecimento no espaço, o poeta recorta também o discurso e fragmenta a cena descrita

pela linguagem poética.

Em consequência disso, as estrofes seguintes seguem esse ritmo de corte do espaço

ditado pelas ações neste espaço, mudança e movimento, que se assemelha ao processo de

escrita criativa em que se encontra o eu poético. Por isso, da descrição da cena, agora o poema

dá lugar à reflexão do próprio eu lírico sobre o que ele vê ao olhar para os lados e perceber a

reação das outras pessoas à cena: “Assim é indesculpável a mudez em que rostos se fecham”

(QUINTAIS, 2017, p. 75). Vemos, então, a posição de observador crítico em que se encontra

eu poético: ao passo que ele constrói seu poema, faz da performance e das reações objeto de

sua escrita. Trata-se, nesse sentido, de um poema que põe em evidência, também, uma

metaprocessualidade poética. Assim, o poeta entra também em cena e acompanha as ações

nesse espaço, colocando-se também em performance. Em decorrência disso, mais uma vez os

versos e a linha de raciocínio do poema são fragmentados pelo eu lírico, e agora, o leitor é

levado a experimentar outra sensação porque “um som vinha antecipar o sentido”

(QUINTAIS, 2017, p. 75). Volta-se ao anfiteatro, e a voz antes em cena ecoa novamente: “a

história alucina-se” (QUINTAIS, 2017, p. 75), uma experiência sonora que é transformada em

experiência visual, uma vez que após a sua fala o eu poético-observador é novamente

71

redirecionado ao palco, à mesa e ao personagem que fala, cena da qual “algo cedeu nas

sombras tombadas” (QUINTAIS, 2017, p. 75).

Nesse momento, percebemos que o eu poético também é passível de ser inquietado

pelos acontecimentos da cena visualizada. Da mesma forma como os rostos dos outros

espectadores foram emudecidos pela violência em performance, o eu lírico-observador reage

ao que cede no tablado do anfiteatro sobre as sombras na mesa, fato que o leva a redirecionar

sua atenção ao seu objeto de anotação – o próprio poema em fase de construção: “eu anotei, e

o olhar, o meu, derrapou no vidro” (QUINTAIS, 2017, p. 75). Seguindo esse movimento, ele

move sua cabeça e muda seu campo de visão que para – segmentando mais uma vez o fluxo já

incontínuo do poema – e derrapa no vidro. A partir desse fato, o poema em fase de criação

muda seu objeto de análise e a violência em drama, então, dá espaço à alegoria do fim. Isso

porque a imagem agora observada trata-se de uma imagem opaca, turva e sem muita nitidez.

O eu lírico – observador e também poeta em momento de criação – depara-se com um vidro

embaçado por causa do inverno: “do anfiteatro, procurou a transparência. Mas era Inverno, /

Inverno também ali, Inverno sempre, e os plátanos” (QUINTAIS, 2017, p. 75).

É inverno, estação do ano associada à ideia de fim (e por que não à melancolia?), uma

vez que as espécies de plantas entram em estado de dormência, já que necessitam poupar a

energia adquirida através da fraca incidência de calor e luz solar no seu processo de

fotossíntese nessa estação do ano. É nesse período, por exemplo, que se vê não só árvores sem

folhas – que caíram durante o outono, a estação anterior – e com aspecto mais frágil, como

também a constante presença de um tom acinzentado que recobre as paisagens em especial

nos países do Norte, que tendem a ser mais frios e chuvosos durante o inverno. O frio, o

cinza, a chuva, são elementos diretamente associados à própria disposição humana, que, pela

fraca incidência de calor (assim como as plantas), sofre biologicamente pela fraqueza,

indisposição e desestímulo, frutos do baixo metabolismo. O inverno afeta, também, as

relações humanas, que se tornam mais distantes, mais tristes e, por sua vez, mais

melancólicas. É esse inverno que também é posto em evidência através dessa imagem poética,

ao passo que o poema em fase de construção janela turva e embaçada para dar forma a uma

outra imagem – externa ao anfiteatro, ao palco, à performance e ao poema.

Da imagem inicial à imagem final (os plátanos no inverno), o poema é desenvolvido

através de uma observação contínua do movimento das coisas em cena. Enquanto a sua

estrutura formal (seus versos e estrofes), corroboram a encenação desse ato de ver. Isso

porque os versos curtos e segmentados são um recurso estético que evidencia não só um

72

processo contínuo de observação de ações simultâneas que ocorrem durante a cena, como

também a própria fragmentação e segmentação do texto literário, que põem em performance

essa sobreposição imagética simultânea. É também a partir deles que o poeta cria uma

sensação de quebra de fluxo de pensamento, seguida das inúmeras interrupções que ocorrem

nos versos, que dão voz ao discurso do artista em cena e às reflexões subjetivas do próprio eu

lírico-poeta que observa a cena e as reações que ela provoca em seu público. Nesses mesmos

versos curtos e segmentados pelas interrupções, o poeta ainda lança mão do recurso estilístico

do cavalgamento (ou enjambement em francês), que se refere à separação dos termos

sintáticos da oração em versos distintos do poema, em discordância à ordem sintática. Essa

quebra do fluxo sintático, assim como as inversões (hipérbatos), são recursos literários que

promovem maior movimento ao texto.

Todos esses recursos, que vão da escolha do objeto poético (a cena no anfiteatro) ao

objeto final (o poema), são, ainda, mecanismos que colocam em evidência o próprio papel de

escritor, uma vez que está em cena, também, o poeta – performado pelo eu lírico que ao

mesmo tempo em que assiste à dramatização escreve seu poema sobre o que vê. Não é à toa, à

vista disso, que o poema tenha ganhado forma anteriormente em 2014 no blog do poeta

acompanhado de uma fotografia. Como vimos, é frequente que os poemas de Quintais sejam

publicados, antes de compilados em livros, no blog que o poeta possui e alimenta

continuamente com textos críticos, ensaios, poemas, reflexões, enfim. Esse suporte digital é

uma ferramenta que possibilita um maior diálogo entre a figura do poeta, como também um

ser leitor, e seus leitores. Esse espaço, ao qual aqui retornaremos com frequência, evidencia

marcas, obsessões, visões e pensamentos do poeta que reaparecem (como fantasmas – ou

memórias) comuns à produção artística de Quintais.

É o caso do poema “Anfiteatro” que, em sua primeira publicação feita online, vem

acompanhado de uma fotografia sem título do artista norte-americano Ralph Eugene

Meatyard, mas que deu uma legenda “Motion-Sound Landscape” (1966) (movimento do som

– tradução nossa). Nela, ficamos expostos a um composição visual que procura fixar

contrastes, a imobilidade e o movimento, o silêncio e o som, a calmaria e o caos. Percorrer

essa imagem é experimentar duplamente a inquietação encenada pelos versos do poema

através de um outro suporte poético-visual capaz de intensificar e ressignificar a mensagem

transmitida e a nossa forma de percepção dela. Associadas – imagem poética e fotografia –

nos convidam a olhar de novo, com calma e mais atentamente uma performance metafísica do

ato e ver e da prática de [d]escrever:

73

Figura 5 - Untitled («Motion-Sound Landscape»)16

Fonte: Ralph Eugene Meatyard (1966)

A fotografia (Figura 5) é do artista Ralph Eugene Meatyard (1925 – 1972), um dos

mais famosos fotógrafos norte-americanos. Profundamente conectado com a Filosofia Zen

(tema sobre o qual já fizemos um breve estudo) e pelo ritmo Jazz, vemos nessa fotografia uma

percepção estética específica do artista que destaca elementos que sugerem uma contemplação

e uma experiência sentimental entre o observador e o espaço. Constantemente, fazem parte de

sua composição fotográfica cenas influenciadas pelo grotesco, como os espaços abandonados,

naturezas em decadência, bonecos, máscaras e pessoas que impulsionam uma experiência do

obscuro e da melancolia. É o que se pode observar na Figura 5. Como sugerido pelo subtítulo,

em inglês Motion-Sound Landscape, ao qual aqui propomos como tradução: o movimento do

som – a imagem fotografada visa representar visualmente o movimento do som – através das

ondas sonoras – quanto tocam a paisagem. Para isso, o artista escolhe como composição

poética uma árvore seca e sem folhas – que está em primeiro plano – acompanhada de uma

construção aparentemente de madeira – semelhante a um celeiro, muito comum nas áreas

rurais dos Estados Unidos.

Somado ao cenário influenciado pelo grotesco, observamos técnicas de edição de

imagem pelo próprio fotógrafo Ralph Eugene Meatyard que realçam não só um teor

melancólico promovido pela imagem, como no uso da escala de cores em preto e branco para

16 Fotografia disponível no blog do poeta associada ao poema “Anfiteatro” pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/2014/12/15/anfiteatro/

74

fotografar o celeiro e a árvore seca. Além das cores, observamos uma ilusão de movimento,

provocada pelo uso de uma técnica fotográfica semelhante ao zooming, que consiste num

movimento de abertura e fechamento do zoom das lentes das câmeras manuais. Esse

movimento, seguido do aperto do botão de captura da máquina promove um efeito visual de

movimento na imagem, como se houvesse uma sobreposição de imagens sombreadas que

capturaram a movimentação manual do zoom. Essa mesma ilusão de movimento alcançado

manualmente pode hoje ser obtida por programas e aplicativos digitais de edição de imagens,

que possuem ferramentas e filtros que duplicam e sobrepõem os objetos que compõem a

imagem fotografada, simulando uma espécie de movimentação. Esses mecanismos, por sua

vez, foram utilizados pelo artista para representar visualmente as ondas sonoras que refletem

nos objetos que foram fotografados (a árvore e o celeiro) à medida que o som percorre a

paisagem.

Em uma resenha crítica sobre o trabalho e a obra de Meatyard, o jornalista David

Cory, da revista norte-americana de fotografia F-STOP – a fotography magazine, destaca um

trecho do livro Ralph Eugene Meatyard da crítica e curadora de fotografia britânica Judith

Keller (2002) sobre a estética de Meatyard. Segue o trecho:

Meatyard procurava continuamente por uma arte não objetiva que seria

poesia sem palavras, música espontânea sem som. As imagens "Motion-

Sound" de seus últimos anos trouxeram a paixão de Mea Courts pela música

e, paradoxalmente, o silêncio do Zen Budismo juntos na fotografia. Ao criar

a série, ele focou a câmera em uma cena natural (ou uma que continha uma

arquitetura rural simples) e então a moveu ligeiramente. O resultado dessa

ação é uma imagem que sugere som enquanto abstrai formas naturais.

(KELLER, 2002, p. 122) 17

Nesse excerto, Keller destaca como a técnica de movimento com a câmera adotada,

associada aos elementos que formam a composição da imagem fotografada por Meatyard,

revela uma influência direta da música e do movimento Zen na produção do ensaio Motion-

Sound (ou movimento do som). Isso porque ele escolhe como foco dessa fotografia uma cena

17 “Meatyard searched continually for a non-objective art that would be wordless poetry, spontaneous music

without sound. The ‘Motion-Sound’ pictures of his later years brought Meatyard’s passion for music and,

paradoxically, the silence of Zen Buddhism together in photography. In creating the series, he focused the

camera on a natural scene (or one containing plain rural architecture) and then moved it slightly. The result of

this action is an image that suggests sound while abstracting natural forms” (KELLER, 2002, p. 122). Esse trecho foi encontrado digitalmente, através do texto crítico do jornalista David Cory publicado em 2013 na

página da revista de fotografia norte-americana F-STOP - a fotography magazine, disponível pelo link

http://www.fstopmagazine.com/blog/2013/08/ralph-eugene-meatyard-by-david-

cory/#:~:text=Meatyard%20searched%20continually%20for%20a%20non-

objective%20art%20that,the%20silence%20of%20Zen%20Buddhism%20together%20in%20photography.

75

natural e rural (a árvore e o celeiro), como metáfora visual para a tranquilidade, o equilíbrio e

o silêncio, estados de espírito alcançados pela meditação, recorrente no movimento Zen

budista. Para além disso, ela também destaca que paradoxalmente o silêncio e o equilíbrio

sugeridos pela imagem são postos em confronto através da técnica de movimentação manual

da câmera, gerando um simulacro imagético do próprio movimento do som da música ao

percorrer a paisagem. É a partir da noção de movimento, então, que a fotografia de Meatyard

foi escolhida para acompanhar o poema “Anfiteatro” em sua primeira publicação no blog do

poeta Quintais. A partir da associação entre o movimento gerado pelas técnicas de produção

dessa fotografia com o movimento de corte e sobreposição de fragmentos de ações que

ocorrem, por vezes, simultaneamente no espaço, propõe-se uma performance da observação.

2.4 Um dia eternidade ou Algo permanece: grafar o tempo e a história

Com o diálogo proposto entre poemas de Quintais e as fotografias até então aqui

reproduzidas e estudadas, identificamos uma relação muito forte entre o ato de ver e seus

poemas. Seja por meio do recurso da descrição, seja pelo deslocamento sintático-semântico,

seja pelo uso de metáforas, constantemente encontramos em seus poemas uma voz lírica em

estado de contemplação de uma cena que é transfigurada em crítica e arte. Em posição de

observador, seja de uma cena da vida urbana, seja de uma fotografia seja de uma pintura

numa parede, há uma performance do ato de ver, o que nos leva a dizer que Quintais

desenvolve cenas de escrita, guiando, por meio da linguagem, o leitor a uma experiência

visual semelhante à vivenciada pela voz do poema. Em vista desses aspectos, encontramos

também uma aproximação entre o ato de fotografar – captar imagens por uma máquina – e o

ato de escrita literária na estética de Quintais – grafar em imagens poéticas cenas sobre

mundo que o circunda – na estética de Quintais. Sobre esse aspecto, discorre Alves:

Há em seus livros inúmeras referências à captação de imagens e com isso

desenvolve-se de forma assistemática uma espécie de teorização da imagem

poética, na tentativa de compreender o gesto estético, repetidamente

humano. A produção de fotografias alia-se à produção poética e poema e

foto se igualam por vezes como gestos falhados na tentativa de deter algo

que escapa. Esse algo que pode receber a nomeação de beleza pode vir

paradoxalmente do que está à margem, desprezado, destruído. Trata-se da

permanência de algo, de um sentido que somente o olhar humano sobre as

coisas pode produzir ou compreender. [...] Deter, registrar, marcar, escrever,

76

fotografar, gestos de criação que podem fazer-ver algo captado pelo olhar

vigilante, lento, atento, mas sempre em risco de perda. (ALVES, 2017, p. 11)

Pela linguagem poética, como explicado por Alves, Quintais promove uma forma de

teorizar a captação de imagens nas quais se pode perceber indícios de uma consciência crítica

sobre a natureza das coisas, própria do poeta. Seus poemas, nesse sentido, são desenvolvidos

a partir de uma voz lírica que insiste e tenta reproduzir, através da escrita, uma imagem

poética daquilo que os olhos enxergam no espaço contemporâneo. As palavras passam a

funcionar como um mecanismo técnico para deter imagens, semelhante aos procedimentos do

desenho, da pintura e da fotografia, porque elas dão a ver, como os traços do desenhista, as

pinceladas do pintor e as impressões da câmera fotográfica, algo que se pretende capturar. A

partir disso, o poema passa a ser compreendido como um espaço meditativo sobre uma teoria

da imagem, haja vista que a voz poética pode conduzir o leitor não só a visualizar as imagens

descritas nos versos, como também a refletir sobre aquilo que o enquadramento escolhido

revela ocultamente. A produção poética de Quintais, então, constantemente se aproxima dessa

tentativa insistente que o homem tem de fixar em imagens algo que escapa ao olhar, mas que

se pretende resgatar através da linguagem representativa.

Desse modo, há um diálogo possível entre a escrita poética e o olhar fotográfico do

artista, porque em seus versos encontramos frequentemente uma tentativa de captar, marcar,

escrever, foto-grafar imagens, em que “poema e foto se igualam por vezes como gestos

falhados na tentativa de deter algo que escapa” (ALVES, 2017, p. 11). As palavras do poema

traduzem verbalmente a experiência visual desse eu lírico-observador, o qual busca fixar,

mesmo que pela representação de objetos que estão à margem, que foram abandonados ou

encontram-se danificados, esse algo que escapa. Poética e ontologicamente, Quintais

consegue, a partir de uma técnica de escrita em que o ato de ver entra em cena, compilar

“gestos de criação” (ALVES, 2017, p. 11) poéticos que dão a ver, numa restante vigília,

imagens que descrevem lenta e atentamente a percepção de algo “sempre em risco de perda”

(ALVES, 2017, p. 11). Essas imagens poéticas, então, quando vistas por um olhar crítico e

atento – semelhante ao eu lírico dos versos de Quintais –, afetam o leitor de modo a incentivá-

lo a resgatar subjetivamente algo que preencha os vazios intensificados pela incapacidade de

reter, pela linguagem, o que se vê, o que se percebe e o que se sente frente à cena em

observação. Desse modo, os poemas abrem-se ao leitor em inúmeras formas de percepção e

compreensão sobre a cena descrita pelos versos, ao passo que ele se depara com objetos,

ações, estados e características que põem em tensão a concepção de real e imaginário. Para

77

isso, ainda, a composição poético-visual composta põe em foco peças comuns ao cenário

urbano, constantemente marcadas por algo em aspecto decadente, que, por sua vez,

promovem o resgate de histórias e memórias comuns e subjetivas ao leitor. Essa é a potência

da imagem poética de Quintais, que se abre ao leitor-observador em variáveis experiências

poéticas subjetivas.

Como destaca Bachelard [1957] (1993), a imagem poética funciona mais do que um

eco de um objeto perdido no passado real, ela é variacional e, por isso, “o objeto pode

sucessivamente mudar de sentido e de aspecto conforme a chama poética que o atinge, o

consome ou o poupa” (BACHELARD, 1993, p. 9). Em Quintais, por sua vez, como podemos

observar, os objetos que fazem parte da composição da imagem poética descrita em seus

poemas mudam de sentido e aspecto à medida que são consumidos pela chama poética. Isso

acontece, sobretudo, porque as imagens criadas são mais do que uma mera representação

objetiva da realidade, elas são um retrato visceral da impotência e da fragilidade do homem.

Elas retratam a natureza do fim, anunciando que todas as coisas estão submetidas a ele. Elas

retratam o tempo, destacando sua passagem através das marcas que ela deixa na superfície das

coisas. Elas retratam a violência, por meio das marcas que ela deixa sobre as coisas vividas

dia a dia. Essas imagens poéticas de Quintais, como vimos até então, não só têm o poder de

fixar a representação de uma cena da vida social, como também têm a potência de deter

poeticamente cenas e sensações. Mas, para além disso, elas se tornam uma possibilidade de

analisar microscopicamente a nossa própria condição no mundo e a nossa história. Isso revela

que a potência de uma imagem não está em ela ser uma forma de tentar representar e reter

algo que está em risco de perda, mas sim um mecanismo que anima, afeta e transforma o

leitor através dessa experiência poético-visual. A imagem artística, nesse sentido, é capaz de

pôr em suspensão o sentido de real, pois ela, afastando-se de seu caráter meramente

representativo e de associação a um objeto da realidade objetiva, é transformada

fenomenologicamente pela reação do espectador frente à imagem observada. Em função disso,

cabe à linguagem poética tentar destacar a dualidade existente entre o sujeito e objeto pelos

mecanismos linguístico-poéticos o que, para Bachelard, “põe a língua em estado de alerta,

saindo da linha ordinária da linguagem pragmática” (BACHELARD, 1984, p. 190). A

imagem poética, portando, leva a experiências subjetivas pela aproximação entre o visível e o

invisível, o mostrado e o sentido. As imagens poéticas de Quintais, então, são entendidas e

discutidas como mecanismo – e ao mesmo tempo processo – pelo qual o sujeito inquieto sai

da percepção objetiva de si para encontrar uma experiência visual transformadora que o levará

78

a um novo encontro de si mesmo. Esse aspecto da poesia de Quintais também é apontado por

Alves:

A poesia de Quintais é problemática e não nos dá nenhum alívio, incomoda,

provoca, é altamente resistente a qualquer ideia ou pretensão de salvação.

Como o próprio poeta diz em seu site, num poema aí publicado: “Vivemos

no medo. Ele é a nossa casa. / De nós exige um desvelo permanente. // Num

combate corpo a corpo / lutamos com as paredes da casa”. (ALVES, 2017, p.

11-12)

Em função dessa perspectiva, nos detemos à apresentação da forma de composição e

enquadramento escolhidos para as cenas de escrita na poética de Luís Quintais. Destacaremos

os elementos que fazem parte da composição imagética, demostrando como eles são

apresentados – aspecto visual, estado e fragmento – na busca por fixar a memória e a história

que escapam. Como pode ser visto no poema “Armas desenhadas por deuses”18, no qual

encontraremos cenas de escritas em que o ato de é encenado em que, o eu lírico descreve

ecfrasticamente a figura que observa para promover uma reflexão sobre o que vê e como se

percebe a imagem.

ARMAS DESENHADAS POR DEUSES

Armas desenhadas por deuses apodrecem num vale de sombra e cimento, entre duas estradas de infrequente circulação. No seu brilho, hoje baço, devolvido é o reflexo de um rosto, a ectoplásmica matéria de um corpo cego: Pátroclo agoniza sob essa película.

(QUINTAIS, 2017, p. 88)

Publicado originalmente em seu blog com o título “Reflexo”, o poema “Armas

desenhadas por deuses” promove uma reflexão sobre o ato de observação de uma imagem.

Em seus primeiros versos, nota-se que o eu poético encontra-se em posição de observador de

um espaço que pode ser compreendido inicialmente como um “vale”. De seu ponto de vista, o

18 Esse poema e os seguintes integram a parte “Ílion”, do livro A noite imóvel (2017), de Quintais.

79

enquadramento escolhido da cena é composto por armas e duas estradas. Somos direcionados

a nos aproximar do objeto observado, focalizando elementos que antes passariam

despercebidos a um olhar desatento. Ao longo da leitura, a imagem inicial das estradas que

formam um vale é transformada, e somos levados a compreender que o eu lírico observa o

escudo de Aquiles, emprestado a Pátroclo na grande narrativa épica de Homero, a Ilíada (séc.

VIII a.C.). São armas de guerra que, mesmo desenhadas, jazem em decomposição. “Armas

desenhadas por deuses / apodrecem num vale” (QUINTAIS, 2017, p. 88). O vale, feito de

sombras e cimentos, é a representação urbana de uma estrada que, diferentemente do que se

espera, é pouco utilizada, “entre duas estradas / de infrequente circulação” (QUINTAIS, 2017,

p. 88). Aqui se reencontra a memória literária da inutilidade dessas armas projetadas pelos

deuses nas grandes epopeias – que por vezes não foram capazes de salvar os guerreiros heróis,

como o escudo de Aquiles –, e a inutilidade de objetos abandonados à ação do tempo.

Ao longo do poema, no entanto, a imagem em observação se altera. Notamos que, na

verdade, o eu lírico encontra-se diante de uma outra imagem, uma imagem artística: ele

observa uma representação da morte de Pátroclo, personagem da grande épica grega Ilíada

(séc. VIII a.C.). As armas desenhadas por deuses que apodrecem são na verdade reflexos de

uma experiência visual da observação de uma pintura da artista norte-americana Jane Morris

Pack. Resgatadas da memória, a imagem remete aos objetos, às armaduras – feitas por deuses

nas grandes obras épicas que não foram eficazes na proteção da vida dos heróis. Pátroclo,

morto em batalha, foi vencido utilizando a armadura de Aquiles. No poema “Armas

desenhadas por deuses”, o eu lírico descreve ecfrasticamente uma cena observada que faz

alusão à cena da Ilíada (séc. VIII a.C.). Ele está diante da pintura Achilles Mourns Patroclus19

por Jane Morris Pack. No quadro de Pack e no poema de Quintais, por sua vez, temos a

imortalização em imagens de um objeto literário que existe apenas através das imagens

poéticas que o descrevem. O vale, as armas, o escudo são ainda marcas da dor, da violência e

da guerra.

Nascida nos Estados Unidos, Jane Morris Pack é uma artista plástica que há cerca de

25 anos é professora do Aegean Center for the Fine Arts, em Paros na Grécia. Suas obras

sofrem muita influência da arte renascentista e grega, as quais a artista considera como

19 A pintura Achilles Mourns Patroclus, por Jane Morris Pack, encontra-se associada ao poema “Armas

desenhadas por deuses” em sua primeira publicação, sob o título “Reflexo” no blog do poeta Luís Quintais,

disponível diretamente pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/04/10/reflexo/.

80

pináculos20 da expressão artística, já que essas estéticas proporcionaram um grande avanço na

representação visual da figura corpórea humana. Por isso, o Renascimento e a arte Grega

tornam-se lugares comuns em suas telas, seja pela técnica escolhida para criar as imagens seja

pelo conteúdo cultural representado a partir da composição imagética das telas. Em 2011,

Jane Morris Pack compôs uma série de ilustrações que remontam visualmente algumas cenas

descritas na obra épica Ilíada (séc. VIII a.C.), sendo, ao todo, uma sequência de 36 telas em

que a artista majoritariamente trabalha com a técnica de monótipos, ou seja, uma técnica de

fazer gravuras através de um mecanismo de impressão. Essa exposição nasce de experiências

subjetivas da artista21 que, ao observar cenas da Grécia contemporânea, resgatava

memorialisticamente elementos mitológicos e as narrativas presentes na história artístico-

literária do país. Com as narrativas da Ilíada (séc. VIII a.C.), Pack destaca que consegue

entrar em contato com histórias das paixões humanas, que revelam a honra, o amor, os

perigos e os conflitos da guerra, ao passo que também demonstram que a melhor preparação

para as batalhas (as melhores armas, as melhores armaduras e a melhor estratégia) não

conseguem reparar o amor e as vidas perdidas em combate. Segue a pintura:

Figura 6 - Achilles Mourns Patroclus22

Fonte: Jane Morris Pack (2011)

20 Pináculo é o nome dado pela arquitetura para o ponto mais alto de uma determinada construção, edifício ou

torre. O pináculo é constituído por um remate decorativo feito normalmente em alvenaria e colocado no cume

dessa estrutura. 21 Em seu site, disponível pelo link http://www.janepack.net/, Jane Morris Pack faz uma breve apresentação de

seu trabalho e de sua biografia, de onde foram retiradas as informações aqui apresentadas. Além disso, sua

página online apresenta uma seleção de obras plásticas da artista, onde se pode encontrar a exposição “Iliad”

(2011) junto com uma breve explicação técnica, artística e subjetiva desse trabalho nas palavras da própria

artista. 22 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:

http://www.janepack.net/illiad.

81

À vista disso, não é difícil analisar por que Quintais associa as telas da artista a seus

poemas, especialmente em seu blog pessoal onde alguns poemas que compõem a seção

“Ílion” de A noite imóvel (2017) foram primeiramente publicados. Nessas primeiras

publicações virtuais, Quintais promove um diálogo entre artes na busca por resgatar

subjetivamente as narrativas da Ilíada (séc. VIII a.C.) para uma reflexão sobre a natureza da

condição humana e a(s) forma(s) de violência a que estamos submetidos na vida

contemporânea. Em suas imagens poéticas, Quintais destaca e resgata fragmentos históricos

clássicos, associando-os a imagens poéticas da contemporaneidade, criando um diálogo entre

o passado, o presente – e por vezes o futuro. Ficção e realidade, então, unem-se em

linguagens artísticas e formas de expressão distintas que dão a ver ecfrasticamente a história

por trás delas como um mecanismo de analisar as coisas também no mundo. Mais adiante,

veremos outras imagens de Jane Morris Pack que serviram de inspiração para o trabalho

poético de Quintais. Por hora, no entanto, é válido destacar a Figura 7, Thetis Goes to

Hephaestus for New Armor, uma das pinturas da amostra “Iliad” de Pack que busca, assim

como no poema de Quintais, revelar ao leitor uma figura existente apenas nos versos da obra

épica e que não foi suficiente para salvar a vida de Aquiles durante a guerra:

Figura 7 - Thetis Goes to Hephaestus for New Armor23

Fonte: Jane Morris Pack (2011)

23 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:

http://www.janepack.net/illiad.

82

Trata-se do momento em que Tetis, mãe de Aquiles, solicita ao Deus Hefesto uma

nova armadura que substitua a de seu filho. Armadura esta que faz parte de um objeto de

guerra muito importante para a narrativa épica, mas que somente existe através da descrição

esfrástica escrita por Homero. Trata-se do escudo de Aquiles, descrito no livro XVIII da

Ilíada (séc. VIII a.C.), nos versos 478-608 e considerada a primeira écfrase da literatura.

Tanto o poema de Quintais, como a ilustração Thetis Goes to Hephaestus for New Armor

abordam imageticamente a importância desse elemento que faz parte da primeira écfrase da

literatura. Essa imagem, por mais que não tenha sido associada diretamente ao poema

“Reflexo” no blog nem à sua republicação como “Armas desenhadas por deuses” em A noite

imóvel (2017), pode ser resgatada através da écfrase proposta pelo olhar de Quintais mediado

pelas experiências subjetivas impressas aos quadros de Jane Morris Pack. Nas linhas desse

poema também percorremos outras linhas poético-visuais.

Outro poema que compõe a série em homenagem à Ilíada (séc. VIII a.C.) em A noite

imóvel (2017) é o poema “Algo permanece”. Nele, mais uma vez, observamos a presença de

um eu observador que promove uma descrição ecfrástica de um objeto que vê atentamente.

Por meio dessa imagem poética, entretanto, o poema abre-se para uma reflexão mais profunda

sobre a melancolia e a perda:

ALGO PERMANECE

Algo permanece sem recorte, um bloco de matéria densa, uma estrela morta de luz inescapável.

Príamo chora esse filho, continuará a chorá-lo. A noite imóvel gira no eixo de plasma e dor que continuamos a agitar.

(QUINTAIS, 2017, p. 89)

O poema é mais um em referência à Ilíada (séc. VIII a.C.), fazendo parte da a quarta

seção, “Ílion”, das sete que compõem o livro A noite imóvel (2017). Neste momento, o poeta

faz uma seleção de oito poemas que fazem referência direta a passagens da Ilíada (séc. VIII

a.C.). Um ponto interessante sobre essa parte do livro é que as imagens poéticas apresentadas

se revelam, na verdade, como versões de cenas do texto clássico através da visão do eu

83

poético. Isso é anunciado ao leitor já pela epígrafe que abre a leitura: “Into the terrifying anti-

rowld of the wonuded” (tradução livre: no terrível antimundo dos feridos), um verso retirado

do livro Memorial: a version of Homer’s Iliad (2012), da poeta contemporânea britânica

Alice Oswald. Nesse livro, a poeta constrói uma nova versão da história original na qual é

possível experimentar a leitura através tanto da experiência verbal (pela leitura das palavras)

como pela experiência sonora (através da sonoridade e musicalidade que ressoam pela leitura

em voz alta). Outro ponto interessante sobre a obra escolhida para anunciar a seção é que ela

funciona como uma espécie de lamento.

“Memorial” é uma palavra da língua inglesa que nomeia uma ação ou um objeto cuja

função é fazer recordar aqueles que partiram. Normalmente, um memorial pode ser um objeto

artístico-urbanístico, como o Memorial dos Judeus mortos na Europa – em alemão Denkmal

für die ermordeten Juden Europas –, uma construção feita em Berlim, na Alemanha, em

homenagem à morte de todos os judeus durante o terrível período do holocausto na Segunda

Grande Guerra Mundial. Mas, além disso, um memorial pode ter também uma performance

oral em homenagem àqueles que morreram, seja por meio de uma reunião, seja por meio de

um rito religioso. Independentemente de seu suporte, todo memorial é também uma forma de

lamento, ou seja, uma forma de recordar e chorar (ou como declara a também palavra inglesa

grief – que significa vivenciar a mágoa, a tristeza e a melancolia decorrentes da morte de

alguém). Um memorial é um resquício do objeto de afeto perdido através do qual somos

interpelados frequentemente pela ausência. “Ílion”, em A noite imóvel (2017), também é um

memorial. Nos poemas escolhidos, Quintais destaca cenas que rememoram os feridos e os

mortos na guerra de Troia. A voz lírica em seus versos lamenta a dor e a perda.

É o que se anuncia em “Algo permanece”. O título do poema revela uma relação

paradoxal existente no sentimento de perda. O luto, por exemplo, corresponde a uma

experiência subjetiva da perda pela qual o indivíduo tende a se apegar àquilo que o faz

recordar do objeto de afeto perdido. Sendo assim, ele é levado a [re]vivenciar a perda através

da experiência da dor pelo objeto de afeto ausente, mas também da constante recordação de

sua presença associada a um outro objeto. É preencher a sua falta pelas marcas que sublimam

a sua presença. Sendo assim, quando em luto (grief), algo permanece apesar da perda.

Permanecem as memórias, que são utilizadas como forma de recuperar as vivências passadas.

Permanece a dor, que constantemente volta a alimentar a ferida da perda. Permanecem os

memorials que se tornam espaços para a catarse da perda. Por isso, o poema é iniciado com a

apresentação de um objeto sem nomeação, cuja função estará diretamente associada ao luto da

84

perda. A voz lírica, portanto, encontra-se diante de uma imagem densa que permanece apesar

de algo já ter alcançado seu fim.

Do objeto de afeto perdido, o eu lírico descreve uma imagem poética que resta, como

uma ruína, evidenciando o sentimento de fim. Trata-se, com isso, de uma matéria densa, de

uma estrela morta, de uma luz inescapável, os quais são elementos que resistem, que

permanecem. A imagem, nesse sentido, como discutido por Didi-Huberman, é capaz de, pela

ausência, guiar o observador a uma experiência visual subjetiva e transformadora. Do que se

vê, “algo permanece / sem recorte,” (QUINTAIS, 2017, p. 89) e o eu lírico, por isso, é guiado

a perceber além de “um bloco de matéria densa” (QUINTAIS, 2017, p. 89): a imagem olhada,

ao olhá-lo de volta, revela a ele “uma estrela morta / de luz inescapável” (QUINTAIS, 2017,

p. 89). Algo sobrevive, mas o quê? Estaria ele diante de um memorial?

Na estrofe seguinte, por sua vez, o eu poético revela o tema de seu lamento. O objeto

de afeto perdido é Heitor, filho de Príamo, rei de Troia, morto em combate por Aquiles.

Heitor, como é descrito na Ilíada (séc. VIII a.C.), é morto em combate por Aquiles e seu

corpo é amarrado à carruagem e arrastado pelas ruas de Troia até o túmulo de Pátroclo. Esse,

portanto, torna-se o último ato infame decorrente da ira de Aquiles narrada pela voz de

Homero. Nos versos que compõem o canto XXII, a narrativa poética dá espaço, então, para

uma reflexão sobre a condição humana dos heróis, dos quais a morte evoca a comoção e o

pesar daqueles que sobrevivem apesar da perda do ser. Príamo, pai de Heitor e rei de Troia, é

descrito em desespero, ao passo que apela pelo corpo morto e difamado de seu filho; os

Troianos aparecem em dor pela perda de um de seus maiores e mais valentes guerreiros; de

Hécuba, mãe de Heitor, são destacadas as lamentações pela morte de seu filho; e Andrómaea,

esposa de Heitor, é descrita em desconsolo ao saber da morte de seu marido. O eu poético,

imerso nesse contexto de dor, descreve-se frente a uma imagem onde se pode ver

representado Príamo que chora e implora pela morte de seu filho: “Príamo chora esse filho, /

continuará a chorá-lo” (QUINTAIS, 2017, p. 89).

De modo semelhante ao poema “Armas desenhadas por Deuses”, analisado

anteriormente, há uma possível relação entre a imagem poética em observação pelo eu poético

do poema e as grafias da exposição de 2011 da artista plástica Jane Morris Pack. Dessa vez,

no entanto, o poema faz uma referência indireta à obra, esta sendo apenas citada através de

elementos que fazem parte da descrição ecfrástica do objeto em observação pelo eu poético.

O bloco de matéria densa que permanece é o próprio quadro Priam Begs for the Body of

Hector (Figura 8), criado pela artista, cuja técnica de produção de imagens por monótipos

85

proporciona a impressão uma escala de preto branco, dotada de dramaticidade que dá ênfase

ao luto e à dor de um pai, Príamo, que implora pelo corpo de seu filho difamado depois da

morte. Interessante pontuar, ainda, que essa é a última ilustração do ensaio Iliad da artista, que

termina exatamente com a recordação do último ato infame da ira de Aquiles sobre os

troianos. Assim, o ensaio artístico de Jane Morris Pack também acaba por proporcionar um

espaço artístico em que se pode não só reencontrar a narrativa da Ilíada (séc. VIII a.C.), mas

também resgatar e experimentar as sensações de luto e dor talhadas pela linguagem poética de

Homero e transfiguradas em traços, sombras e grafias por Jane Morris Pack.

Figura 8 - Priam Begs for the Body of Hector24

Fonte: Jane Morris Pack (2011)

Diante dessa imagem de Príamo que chora a morte de seu filho, o que sobrevive?

Sobrevive o fantasma desse corpo morto. Sobrevive a história desse herói. Sobrevive a dor de

um pai ao perder seu filho para a guerra. Sobrevive a memória, grafada em imagem.

Sobrevive a narrativa épica evocada e transformada em novas experiências artístico-visuais. O

quadro e o poema, nesse sentido, operam como um memorial, pelo qual há a possibilidade

não só de lamentar – vivenciando as sensações e as experiências do grief – como também de

24 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:

http://www.janepack.net/illiad.

86

preservar a imagem e a importância histórica dessa imagem poética. O poema e o quadro são

mecanismos gráficos capazes de deter, registrar, marcar, escrever, fotografar algo que

escapa. E, assim, fazer que a memória sobreviva em meio à noite que, apesar de todo o caos,

gira imóvel em seu eixo continuamente sem sessar. “A noite imóvel gira / no eixo de plasma e

dor / que continuamos a agitar” (QUINTAIS, 2017, p. 89).

Em outros dois poemas dessa seção, que também foram publicados originalmente em

seu blog pessoal, a voz poética de Quintais resgata um outro momento da Ilíada (séc. VIII

a.C.). Nessas imagens poéticas resgatadas pelos versos, encontramos ecos das vozes e

representações de acontecimentos importantes da épica clássica, como o momento em que o

cavalo Xanto, o cavalo de Aquiles, recebe durante o caminho de volta ao campo de batalha o

dom da fala pela deusa Juno e responde a uma pergunta retórica feita por Aquiles, dando-lhe

uma metáfora como um presságio de sua morte:

UM CAVALO FALA

Cf. Ilíada, XIX, v. 404-18

Um cavalo fala,

profetiza a morte

de Aquiles.

Depois o dom da fala

escapa-lhe, e o mundo

arrasta-se,

de ira e desespero

contaminado.

Ao instante

entre a fala

do animal

e a mudez

irremovível,

chamamos-lhe

um dia eternidade.

(QUINTAIS, 2017, p. 90)

APÓS A FALA DO CAVALO XANTO

Cf. Ilíada, XIX, v. 400-20

Após a fala do cavalo Xanto,

ficámos face ao emudecido recorte

da densa natureza, horizonte

87

infigurável, por todos os sítios

sitiando-nos. Disso não haverá

remissão e o silêncio

dos actos

de morte repetida

deixará em nós

a ferida

da palavra

visitada e visitada

e visitada

outra vez.

(QUINTAIS, 2017, p. 91)

Um ponto a se considerar, antes de tudo, é a observação do título dado ao Primeiro dos

dois poemas. “Um cavalo fala” foi publicado previamente em seu blog, em junho de 2013,

sob o título de “Um dia eternidade”, frase que compõe o último verso desse poema tanto na

versão em blog como na versão do livro A noite imóvel (2017) aqui reproduzida. Essa relação

entre as partes do texto – a que podemos chamar de texto circuito, uma vez que consiste numa

ligação semântica entre o início e o fim do texto através da repetição de uma estrutura

sintático – semântica – confere à obra uma noção circular, a qual corrobora a discussão que

será desenvolvida pela reflexão sobre o princípio de fim que rege todas as coisas. Em sua

versão impressa, publicada em 2017 no livro A noite imóvel (2017), o poeta, entretanto altera

o título de “Um dia eternidade” para “Um cavalo fala”. Essa alteração do título, apesar de

promover a quebra da ligação semântica entre o título e o poema (a que chamamos de texto

circuito), foi fundamental para que haja uma relação de continuidade que liga este poema ao

seguinte pela ordem do livro. Isso ocorre porque ambos resgatam o momento místico da

profecia da morte de Aquiles pelo cavalo Xanto, descrito na Ilíada (séc. VIII a.C.).

Outro ponto importante para a análise do poema “Um cavalo fala” se refere à

utilização do recurso da epígrafe para introduzir ao leitor o contexto temático do poema. “Um

cavalo fala” é iniciado com a designação do canto e dos versos aos quais a voz lírica fará

referência ao longo do poema. Trata-se do canto XIX e dos versos 404 – 18. Estes que, por

sua vez, correspondem ao momento em que Homero descreve que o cavalo Xanto responde

misteriosamente a um pedido retórico de Aquiles para que ele não o deixe morrer durante as

batalhas que ainda estão por vir. O contexto desse pedido, expresso pela epígrafe do poema,

demonstra a necessidade de retornar à imagem poética da tradição literária na Ilíada (séc. VIII

a.C.), a fim de acompanhar a ordem lógica dos versos e compreender plenamente a mensagem

poética proposta por Quintais. Como comentamos anteriormente, a parte “Ílion” do livro A

88

noite imóvel (2017) atua como uma espécie de releitura da obra original, a narrativa épica de

Homero, da qual o poeta resgata imagens ontológicas deixadas pela violência dos combates

na guerra de Troia. No início deste tópico, observamos o poema “Armas desenhadas por

Deuses”, no qual Quintais recorda a figura do Escudo de Aquiles, arma incapaz de salvá-lo da

própria morte.

Em “Um cavalo fala”, por sua vez, a voz lírica está imersa no momento da partida de

Aquiles do campo de batalha, momento em que o herói épico se reuniu com o exército dos

gregos após receber da ninfa do mar a armadura que Pátroclo utilizava em seu momento de

morte, incluindo seu escudo. Por isso, ainda em lamentação pela morte de Pátroclo, Aquiles

se despede dos soldados gregos e parte em direção à guerra, fazendo um pedido especial a seu

cavalo, Xanto, que este não lhe permita padecer como seu amigo. Xanto, entretanto, por ser

um cavalo e não ter o dom da fala, recebe de Juno esse poder para que ele possa dar a Aquiles

o presságio de sua morte. Toda essa explicação sobre a narrativa grega é necessária para

compreender a imagem poética que será revelada pela voz lírica nos primeiros versos do

poema: “Um cavalo fala, / profetiza a morte / de Aquiles” (QUINTAIS, 2017, p. 90). Segue,

também, a sua profecia:

“Salvo esta vez serás, fogoso Aquiles;

Mas perto a Parca tens, sem nossa culpa,

Sim de um nume e do fado. Se a Pátroclo

Os Teucros despojaram, por inércia

Não foi dos teus corcéis; foi na vanguarda

Prostrado pelo filho de Latona,

Para Heitor gloriar-se. A ligeireza

De Zéfiro no curso igualaremos,

Que se diz mais veloz; contudo é força

Por um deus e um varão domado seres.”

(HOMERO, 2008 p.345)

Esse é um momento muito importante da narrativa da Ilíada (séc. VIII a.C.). A

resposta mística de Xanto, um cavalo, poderia ter feito que Aquiles escolhesse fugir da guerra

já que fora avisado que seria morto após conseguir derrotar Heitor. Porém, bravamente, o

herói decide que irá prosseguir com a sua viagem em busca de uma vitória – impossível – no

final, mesmo sabendo que o destino já deixara profetizado que nesse mesmo campo de batalha

Aquiles encontraria a sua própria morte. Esse momento, para além disso, dá ênfase no caráter

humano do herói Aquiles, aproximando-o, como era costumeiro na arte Clássica, de

89

características comuns à população greco-romana. Em busca de promover catarse – uma

forma artística de levar o público de uma determinada obra a vivenciar, corporalmente (como

pelo riso e pelo choro) e emocionalmente (como pela felicidade, angústia e melancolia) os

fatos que acontecem com os personagens – os autores procuravam enfatizar que seus heróis

também possuíam fraquezas. Essa experiência empática (colocar-se no lugar do herói e sentir

a dor que ele sente porque ela se aproxima da sua) faz que o espectador chegue a um

momento de expurgo e limpeza de alma. Isso porque sua vida em terra, como todo mortal,

está fadada ao fim e à morte; a sua existência e sobrevivência são frágeis frente aos desafios

de enfrentar, em guerra, habilidosos guerreiros troianos. Nesse contexto, apesar de sua

bravura ao enfrentá-los, o próprio Aquiles – que constantemente vivencia o fim de seus

companheiros de batalha – é levado a encontrar o seu próprio fim. A sua história, apesar de

tudo, terá o mesmo destino: a morte na luta por uma ideologia que defende. A profecia de

Xanto, no mais, é acompanhada da resposta de Aquiles, que se volta ao cavalo declarando que

a morte simboliza a força e que continuará seu destino, apesar de encaminhar-se para a morte,

porque precisa saciar sua sede por combates e vingança. Segue:

A morte, Xanto, Me vaticinas? Isso não te quadra. Força é morrer, eu sei, de Ftia longe E de meus pais queridos; mas aos Troas Hei-de saciar a sede de combates.

(HOMERO, 2008, p. 345)

Voltemos, agora ao poema de Quintais. Através da voz poética em “Um cavalo fala”,

vemos uma tentativa de fixar em imagem poética um momento da narrativa de Aquiles que o

define paradoxalmente como herói e mortal. Pelas palavras do poema, a voz lírica retém algo

que poderia ser facilmente perdido na história, eternizando a sua importância. Por

conseguinte, nas duas estrofes seguintes, os versos detêm-se na composição do momento após

a fala do cavalo, que rapidamente após dar a Aquiles o aviso de sua morte cala-se eternamente

e volta à sua missão de acompanhar o herói durante os caminhos do mundo já contaminado

pela dor da perda e pela violência da guerra: “Depois o dom da fala / escapa-lhe, e o mundo /

arrasta-se, / de ira e desespero contaminado” (QUINTAIS, 2017, p. 90). Nessa linha de

pensamento, o poema busca eternizar em imagem poética a natureza humana de Aquiles,

dando ênfase no fato de que, até mesmo os grandes heróis, tornam-se frágeis às armas letais

90

em batalha: “ao instante / entre a fala / do animal / e a mudez / irremovível, / chamámos-lhe /

um dia eternidade” (QUINTAIS, 2017, p. 90).

Paradoxalmente, a morte de Aquiles também o eterniza na história. Por ser um grande

herói épico, a narrativa épica torna-se um mecanismo literário de testemunho de sua memória,

uma vez que seus versos não só descrevem os acontecimentos históricos e conhecimentos

mitológicos, geográficos e filosóficos, como também propagam e perpetuam essas

informações no tempo e na memória. Seus feitos, suas vitórias e, por fim, sua derrota, em

decorrência da importância conferida à história pela Ilíada (séc. VIII a.C.), ainda hoje são

fixados em arte poética e artes plásticas, que pela intertextualidade tomam sua história como

lugar de retorno. Sendo assim, o que se configura, através dessas imagens revisitadas da

narrativa épica, são lugares artísticos onde o público pode experimentar de novo e mais

atentamente as sensações e as vivências da história, da arte e da humanidade.

Mais um desses diálogos interartes ocorre com outros quadros de Jane Pack, como

Death of Bold Dancer, (Figura 9) que acompanha o poema “Um cavalo fala” no blog de

Quintais. Diferentemente dos outros quadros do ensaio de Pack escolhidos pelo poeta – e

vistos até aqui – para acompanhar a publicação de seus poemas, não há uma relação direta

entre a imagem poética descrita pela voz lírica e a imagem grafada pela artista, uma vez que

as imagens retêm momentos diferentes da narrativa. Esse fato, ainda, torna-se comum à

estética de Quintais, uma vez que as vozes que ecoam em seus poemas aparecem, por vezes,

ocultadas nos limites da linguagem poética. Em consequência disso, enquanto o poema

descreve o momento em que o cavalo Xanto avisa Aquiles de sua morte, o quadro dramatiza e

eterniza a morte de Pegasus por Sarpédon, cantada no canto XV da Ilíada (séc. VIII a.C.).

Pelos traços fortes, acompanhados do sombreamento intenso e da escala de cores opaca, o

quadro de Pack destaca a violência presente nesse momento da narrativa. Sarpédon era um

dos bravos guerreiros troianos, que decide enfrentar Pátroclo durante uma das batalhas da

guerra de Troia, luta essa que antecipa a morte de Pátroclo por Heitor. Sarpédon, ao sacar sua

lança em direção ao carro de Pátroclo para feri-lo, é impedido por Zeus, que faz o seu golpe

tomar outra direção e acertar o cavalo de seu inimigo, Pegasus. Essa é a imagem poética

descrita pelas palavras de Homero que foi transfigurada em imagem gráfica pelas mãos de

Pack:

91

Figura 9 - Death of Bold Dancer25

Fonte: Jane Morris Pack (2011)

O poema seguinte a “Um cavalo fala” dá continuidade temática e cronológica à fala do

cavalo e à reação de Aquiles. Vemos, também, a presença de uma epígrafe que, como no

poema anterior, resgata os versos de Homero sobre os quais o eu lírico procura criar uma nova

imagem poética, tratam-se dos versos 400-20 do canto XIX da Ilíada (séc. VIII a.C.). A partir

deles, o sujeito poético de Quintais descreve uma cartografia das reações humanas ao

momento em que Aquiles, mesmo avisado de seu triste fim se continuasse a batalhar, decide

bravamente enfrentar seu destino: “Após a fala do cavalo Xanto, / ficámos face ao emudecido

recorte / da densa natureza, horizonte / infigurável, por todos os sítios / sitiando-nos”

(QUINTAIS, 2017, p. 91). Após a fala do Cavalo Xanto, ficamos diante do anúncio

emudecido da fragilidade do homem, herói e guerreiro. Ficamos diante da insistente

recordação de que tudo está sujeito ao fim. E o que resta após o fim? Resta a história. Resta a

memória. Resta a arte que constantemente se dispõe a revisitar esse passado e reverberar a sua

importância.

Também publicado em seu blog, o poema “Após a fala do cavalo Xanto” vem

associado ao quadro Achilles Rejoins the Fight, também do ensaio da artista plástica Jane

Morris Pack sobre a Ilíada (séc. VIII a.C.). No quadro, Pack transforma a imagem poética

descrita por Homero na Ilíada (séc. VIII a.C.) em experiência visual, porque através do

25 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:

http://www.janepack.net/illiad.

92

quadro, o observador é colocado diante do momento em que Aquiles, o grande herói da

narrativa da guerra de Troia, regressa à luta:

Figura 10 - Achilles Rejoins the Fight26

Fonte: Jane Morris Pack (2011)

Do mesmo modo faz a voz poética de Quintais, uma vez que o poema nos coloca,

também, diante de uma imagem que resgata essas passagens e fragmentos da história da

Ilíada (séc. VIII a.C.): “Disso não haverá / remissão e o silêncio / dos actos / de morte

repetida” (QUINTAIS, 2017, p. 91). Quintais, por sua vez, ressignifica essa cena cantada

primeiramente por Homero, com a linguagem poética, e revisitada por Jane Morris Pack, a

partir dos traços fortes da técnica gráfica dos monótipos. Em ambas as expressões artísticas,

seja a ilustração de Pack, seja o poema de Quintais, observamos como a grafia de imagens

também é uma forma de reter e fixar um momento da história. A linguagem poética do poeta

Quintais e a técnica de grafia da artista plástica Jane Morris Pack atuam como uma espécie de

fotograma lírico que captura subjetivamente – através do olhar do artista – um fragmento da

narrativa, transformando-o em imagem poética. A partir dessas imagens, somos capazes de

revisitar o passado literário e refletir sobre as formas de violência, sobre a condição humana e

obre a inevitabilidade do fim. A partir dessas imagens, somos capazes de revisitar essas

imagens de dor da literatura clássica e vivenciar, como nos momentos revisitados pelos

26 A série “Iliad” de ilustrações feita por Jane Morris Pack pode ser encontrada pelo link:

http://www.janepack.net/illiad.

93

fotogramas líricos, os atos de violência, a sensação de perda e a dor da partida: “deixará em

nós / a ferida / da palavra / visitada e visitada / e visitada / outra vez” (QUINTAIS, 2017, p.

91).

94

3. FOTOGRAMA: A FOTOGRAFIA COMO OBJETO POÉTICO

Só tu conseguias ver o movimento que vai do ser à

aparência. Só tu conseguias ver o movimento que faz de um

Deus uma frágil criatura disposta a morrer. Afinal, cada um

de nós se dispôs à morte. Cada um de nós é tão frágil como

uma criatura que se expõe. Vejo criaturas expostas nos

meus passeios pela cidade. Elas estão no intervalo que vai

do ser à aparência, aquilo a que alguns chamam de

sacrifício. Quando caminho pela geografia que o teu olhar

preencheu, reparo na gravidade dos que persistem em

habitar um espaço que tem por referente a morte. "Todas as

imagens têm por referente a morte", escreveste. Eu caminho

e reescrevo o adágio. Olho. Olho outra vez. Ver. Ali. Luís Quintais

3.1 Observar, enquadrar, capturar: a fotografia também como objeto poético

Nos poemas estudados de Quintais neste trabalho, encontramos um produtivo e crescente

diálogo entre sua a arte poética e a arte fotográfica. Vimos como o poeta escreve e descreve

imagens fotografadas pela linguagem poética, como uma tentativa de transpor o ver para as

cenas do poema. Vimos, também, que em decorrência de sua poesia propor uma teoria do ver

através da linguagem poética, Quintais começou a se aproximar mais da arte fotográfica e

passou, também, a fotografar. Nessas fotografias de Quintais, como analisaremos neste

capítulo, o poeta imprime traços de duas obsessões líricas, como cenas comuns do espaço

urbano, objetos ou construções em estado de decadência, os limites representativos da

linguagem bem como as experiências de ausência e melancolia. Perceberemos, portanto, uma

crescente aproximação entre as imagens foto-grafadas pela linguagem poética de Quintais e

as imagens fotografadas pelas lentes de sua câmera. Cabe, por conseguinte, explorar mais

atentamente essas contínuas produções fotográficas, em busca de evidenciar o lirismo

presente nessas obras poético-fotográficas num mundo marcado pelas imagens técnicas.

De fato, sabe-se que a fotografia, desde a sua primeira produção, a partir da técnica

físico-química do físico francês Joseph Nicéphore Niépce (1826), que conseguiu fixar uma

imagem ainda muito rudimentar da vista de sua janela (a fotografia View from the Window at

95

Le Gras)27, e, posteriormente, com a técnica fotográfica francês Louis Jacques Mandé

Daguerre (1837), o daguerreótipo28, que conseguia capturar uma imagem através da

exposição à luz solar,29 provoca discussões acerca do seu lugar no contexto artístico. As

críticas à produção fotográfica baseavam-se, principalmente, numa reação ao processo de

captura versus criação da imagem, já que, diferentemente da pintura e do desenho, por

exemplo, a técnica para a fixar imagens com câmeras fotográficas depende, principalmente,

do conhecimento do sujeito para operar a máquina fotográfica. Afinal, manusear o pincel ou o

lápis pelo papel como uma extensão do corpo, da subjetividade, do olhar e da criatividade do

autor é ainda uma forma romântica de compreender o ato de criação artística. E o programa

que possibilita a captura de uma imagem pela câmera fotográfica é limitado a uma

representação ainda mimética e técnica do real. Ao fotógrafo, devido às evoluções

tecnológicas da caixa preta, cabe a simples função de apertar o botão de captura, e a máquina

reproduz tecnologicamente a cena para a qual a lente estava apontada. O ato de fotografar, em

função disso, popularizou-se a ponto de fotografias circularem incessantemente no cotidiano

contemporâneo. Nesse sentido, é importante refletir: haveria, ainda, lirismo na fotografia?

Como aponta Schaeffer:

27 View from the Window at Le Gras (1826) foi a primeira imagem fotografada através de um mecanismo físico-

químico, ligado ao processo de litogravura. Esse estilo de fixação de imagens ocorre mediante a criação de

marcas feitas por lápis gorduroso sobre uma matriz de pedra calcária que imprimem uma imagem no papel. A

base técnica desse processo está na repulsão que ocorre no contrato o entre água e o material gorduroso. Neste

processo, diferentemente de outras formas de gravura, como na xilogravura, a fixação imagética dá-se de modo

plano, por isso, o desenho é formado através do acúmulo de gordura na superfície do papel. As imagens

proporcionadas, no entanto, detêm de poucos detalhes e são, por vezes, limitadas quanto à percepção exata da

realidade objetiva à qual fazem referência. Com base nesse processo, Niépce iniciou inúmeros testes e

experiências com luz, placas de metal e reações físico-químicas, com os quais conseguiu promover a primeira

captura de uma fotografia, a obra View from the Window at Le Gras, a qual, ainda que produzida mediante um

processo rudimentar, representa a imagem observada pela janela do quarto do inventor, na cidade de Saint-Loup-

de-Varennes, na França. 28 Em 1837, o pintor francês, Louis Jacques Mandé Daguerre, inventou o daguerreótipo, que foi o primeiro

equipamento fotográfico comercializado, composto por uma placa de cobre, que é revestida com prata e, em

seguida, polida e sensibilizada por vapores de iodo. Depois de exposta na câmera escura, a imagem é revelada

por vapores de mercúrio e fixada por uma solução salina. Nesse processo, o pinto foi capaz de fixar uma imagem

única e positiva. 29

Tomamos como ponto de partida para essa análise não só a primeira produção fotográfica por Niépce, em

1826, mas em especial as fotografias retiradas a partir do desenvolvimento do daguerreótipo, em 1839 por

Daguerre. Essa máquina fotográfica ainda rudimentar proporcionou uma maior e menos complexa técnica de

produção de imagens fotográficas mais realistas, as quais traziam maior familiaridade e fidedignidade com o

real, em oposição às imagens capturadas por Niépce, as quais não eram compostas com tamanha riqueza de

detalhes em virtude de o processo de obtenção da imagem e as técnicas de captura ainda eram muito

rudimentares. Com isso, o processo fotográfico ganha um novo status dentro da sociedade da época, tendo em

vista que, a partir desse momento, haveria uma crescente popularização dessa nova técnica de produzir imagens,

que seria considerada como uma industrialização massiva das artes plásticas.

96

Do ponto de vista da arte dos museus, a fotografia é, sem contestação, uma arte

impura no sentido em que muito frequentemente sua prática é inscrita em

finalidades pragmáticas: reportagem, fotografia de moda ou publicidade,

documentação etc. Donde o questionamento da argumentação que define este

número de La recherche photographique: “Talvez a fotografia quase não chegue a

ultrapassar os domínios da ação, do trabalho, da comunicação, ou da família.”

(SCHAEFFER, 1996, s/p.)30

As palavras de Schaeffer revelam essa preocupação histórica comum sobre a

fotografia: a sua finalidade artística. O programa responsável pela transformação da

luminosidade em imagem através das lentes da câmera é capaz, apenas, de reproduzir

mimeticamente o fragmento do real alcançado por elas. Essa proximidade com o real, por sua

vez, associou o ato fotográfico a práticas documentais, sendo, por isso, as fotografias muitas

vezes utilizadas como uma forma de testemunhar e registrar histórias. Associado a isso, o

barateamento e a simplificação das câmeras fotográficas intensificaram o processo de

naturalização das fotografias em nosso cotidiano. Dos retratos de família no final do século

XIX à popularização das selfies no século XXI, o ato de fotografar tornou-se cada vez mais

pragmático, e as fotografias digitais têm realçado essa problemática.

Nas redes sociais, popularizadas pela internet, frequentemente entramos em contato

com imagens efêmeras. Nelas, os usuários fixam momentos, sensações e histórias passageiras

que acompanham o ritmo acelerado do fluxo contínuo de informações digitais. Nessas

fotografias, criam-se, também, narrativas que idealizam um real inalcançável exposto

incessantemente aos seguidores dos perfis do Instagram. Uma convivência que, por sua vez,

tem um efeito negativo: ela potencializa um processo de esvaziamento da imagem fotográfica

devido à intensa massificação da fotografia. Uma fotografia da mesa bem-posta para o café da

manhã. Outra focalizando a xícara acompanhada de uma mensagem de “bom-dia”. E ainda

mais uma outra revelando uma felicidade inventada ao acordar numa manhã de segunda-feira.

É a arte fotográfica utilizada como ferramenta de reportar e documentar corriqueiramente a

vida no século XXI, e expô-la ao público observador incessantemente. Esse mesmo

pragmatismo, não obstante, não apaga completamente a capacidade de as fotografias, ainda,

se revelarem poéticas.

Como explica o fotógrafo Ângelo Dimitre Gomes Guedes:

30

Este texto foi originalmente publicado no periódico francês La recherche photographique nº 18, de maio de

1995 e traduzido por Flávia Cesarino Costa, disponível em: http://www.uel.br/pos/fotografia/wp-

content/uploads/downs-uteis-sobre-a-arte-fotografica.pdf acesso em 25/01/2020

97

A fotografia, de fato, consagra-se também como uma maneira de expressar-

se artisticamente, e a arte passa a expressar-se fotograficamente. A constante

troca de valores entre a fotografia e a arte impulsiona novas possibilidades

para o futuro de nossa sociedade e suas manifestações culturais. Seja um

traço de uma realidade (indício de existência do referente) ou uma realidade

em si mesma, a percepção desse novo cenário artístico ocorre de maneira

distinta em cada espectador. O âmbito artístico pós-arte moderna (e isso

inclui a fotografia) proporciona uma intensa trama de realidade e ilusão.

(GUEDES, 2011, p. 208)

Guedes nos mostra que à arte fotográfica, além da documentação, cabe uma função

subjetiva, uma vez que a fotografia se revela como uma forma de expressão artística já que a

imagem fotografada possibilita também a construção de uma forma subjetiva de percepção da

realidade impressa na imagem. Em decorrência disso, o fato de arte fotográfica ser capaz de

realçar traços de uma realidade objetiva, que são notados, principalmente, pelos indícios

imagéticos que sugerem a existência de um referente, afeta o espectador. Isso, ainda, sugere

que existe uma reação empírica e experimentalista entre a fotografia e cada um de seus

espectadores que receberá e interpretará de forma distinta a mensagem transmitida pela

imagem e seus componentes semióticos. No cenário artístico pós-Arte Moderna, portanto, a

imagem fotografada impulsiona maneiras de percepção dos objetos que compõem a cena

fotografada, seja da mesa de café da manhã nas fotos do Instragram seja nas fotografias

artísticas do fotógrafos amadores, como o nosso poeta-fotógrafo, Luís Quintais. Através de

uma fotografia somos levados a ativar a memória de algo passado, e uma imagem fotográfica

tem a potência de tocar sensivelmente quem a vê.

Nas fotografias de Quintais, por exemplo, somos guiados a olhar novamente e mais

atentamente os restos produzidos nos espaços humanos. O poeta-fotógrafo busca cenas em

que possa pôr em foco e análise objetos criados pelo homem, em estado ruinoso e de

abandono. E através da composição, da iluminação e do enquadramento, a sua fotografia

possibilita uma outra forma de interpretar esses objetos em cena, sobretudo pelo viés da

melancolia e da ausência. Desse modo, da arquitetura em ruínas a objetos comuns do dia a dia

descartados, observamos Quintais fotografar elementos do cotidiano como um suporte de

emoção frente ao que foi, ao que existiu, ao que teve uso por mãos humanas. Frente às suas

fotografias, o espectador tem uma certa experiência lutuosa. É o que se pode perceber na

fotografia About Buildings:

98

Figura 11 - About Buildings31

Fonte: Luís Quintais (2008)

Essa fotografia faz parte de um ensaio fotográfico com o mesmo nome. Nesse ensaio,

Quintais procurou, numa casa abandonada e em ruína, enquadramentos, cenas e composições

que pudessem revelar uma ideia de fim. Na Figura 11, estamos diante de um fragmento de

uma escada de interiores antiga; ao fundo percebemos marcas do desgaste e do tempo nas

paredes brancas escurecidas e manchadas; e à frente vemos a estrutura de uma janela

quebrada, sem o vidro, que foi deslocada e deixada de qualquer forma sobre essa escada, ou

seja, distante da parede onde deveria estar, sem função: ela não mais se abre para uma outra

paisagem, para algum horizonte possível. Por meio dela, vemos o vazio. A desfocagem, a

edição de cores e a luminosidade esmaecida projetadas sobre a fotografia, sobretudo, realçam

essa sensação de esvaziamento, uma vez que a cena é vista de modo turvo, como se fosse

preciso resgatar de um lugar longínquo na memória a figuração do que se observa. Acessar a

fotografia, como olhar por essa janela sobreposta (quase como uma peça de arte

intencionalmente colocada e posicionada de acordo com uma perspectiva subjetiva e artística)

na escada é encontrar-se com a ausência.

É uma imagem que resgata o que esses objetos um dia já foram. É uma imagem que ao

mesmo tempo demostra que todas as coisas estão subordinadas ao fim. A escada na qual um

dia passavam pessoas, quem sabe até uma família, já não é mais utilizada. A janela por onde

31 About buildings é uma das fotografias do ensaio homônimo de Quintais disponível na plataforma Flickr.

Nessas fotografias, vemos a reprodução, por diversos ângulos, fragmentos da arquitetura em decomposição e

ruínas.

99

se observava a vida lá fora agora se encontra deixada inerte e inútil em qualquer espaço

interno, sem serventia. Ou estaria ela, como os objetos que compõem a cena fotografada,

intencionalmente projeta sobre a escada como parte [des]integrante desse espaço interno que

se abre de dentro para fora em reflexões subjetivas? Seria, talvez, esse espaço fragmentado

uma construção? Estaria o poeta-fotógrafo, na verdade, presente em um lugar que ainda está a

ser criado? A forma física dos objetos, como a janela sem vidros, também poderia revelar uma

geometria anterior das coisas, como se a imagem fotografada e o espaço em ruínas se

[des]construíssem simultaneamente ao olhar do observador. Sendo assim, a imagem se torna

uma fissura, visto que se abre ao leitor-observador em múltiplas possibilidades

[re]interpretativas.

O espectador, desse modo, é interpelado pelos elementos semióticos da fotografia e a

partir disso é capaz de interpretar a mensagem por ela transmitida. Nesse contexto, como uma

natureza morta, a fotografia promove uma reflexão sobre a decadência das coisas e funciona

como uma alegoria da morte, deixando de ser apenas uma simples fotocópia da realidade

objetiva, passando a ser compreendida pelo espectador como uma forma de “emanação do

passado real” 32. Mas para além disso, ela suspende a categoria de tempo e revela-se para nós

também como um paradoxo entre o passado e o presente, entre a morte e a vida, entre o fim e

a sobrevivência. Essa capacidade de suspender a noção de tempo, encarnando o passado no

momento presente de observação, é uma das dualidades encontradas na reflexão barthesiana

sobre o procedimento e a linguagem fotográfica em A câmara clara (1980). Em suas palavras:

Diríamos que a Fotografia sempre traz consigo seu referente, ambos atingidos pela

mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento [...].

a Fotografia pertence a essa classe de objetos folhados cujas duas folhas não

podem ser separadas sem destruí-los: a vidraça e a paisagem, e por que não: o Bem

e o Mal, o desejo e o seu objeto: dualidades que podemos conceber, mas não

perceber (eu ainda não sabia, que dessa teimosia do Referente em estar sempre

presente, iria surgir a essência que eu buscava. (BARTHES, 2015, p.15)

Para o semiólogo, a capacidade de a fotografia se relacionar com o instante real e, por

sua vez, ratificá-lo ocorre devido à presença de um operador da câmera que viu o referente

fotográfico no momento da captura. Na fotografia, com isso, há a união entre o observador

(fotógrafo) e o referente observado (cena fotografada), o que Barthes chamará de noema:

32 A fotografia como “emanação do passado real” é uma reflexão barthesiana desenvolvida, sobretudo, na obra A

câmara clara (1984). Nessa reflexão, Barthes explica a relação entre a memória e a fotografia, argumentando

sobre a potência fotográfica em documentar e fixar o tempo passado em uma imagem atemporal.

100

“isso-foi”. Em About Buildings, por exemplo, Luís Quintais coloca o seu observador diante

de uma cena real presenciada por ele e capturada em imagem fotográfica. O referente

retratado na imagem, por sua vez, realmente existiu: o espaço interno de uma construção,

composto por uma escada e a estrutura da janela, é real e pertence a um espaço físico

concreto, não ficcional. Por isso, essa fotografia carrega em si na sua mais pura essência

representativa a ratificação da cena observada, escolhida e fotografada. Esse referente

fotográfico, para além disso, é composto por pequenos detalhes que, quando percebidos,

fazem que o sujeito reencontre, como Barthes na Fotografia do Jardim de Inverno33, 34com o

seu passado, uma vez que é na fotografia que se reencontram rastros, traços e a emanação do

real passado através da presença do referente.

A arte fotográfica é também capaz de transformar a imagem em memória, ao mesmo

tempo que faz transportar da imagem uma memória. Na arte fotográfica ocorre o choque

fotográfico, ou seja, uma reação do espectador àquilo que sutilmente chama a sua atenção e

o interpela. Isso é provocado principalmente por detalhes projetados pelo fotógrafo na

composição da cena que são capazes de fazer que, da imagem fotográfica em exposição, o

observador seja incentivado a um movimento reflexivo que sai da fotografia e encontra o

espectador. Em About Buildings (Figura 11), Luiz Quintais escolheu objetos que, por estarem

em destroços e em ruína, chamam a atenção do leitor atento. Isso ocorre não só pelo fato de

estarem ali e terem sido capturados em imagem por alguém, mas também porque esses

objetos nessa composição visual podem guiar o seu novo espectador para fora da imagem e,

com isso, induzi-lo a explorar o que de fato ocorreu no passado através da cena retratada

através da sua própria imaginação. Consequentemente, a fotografia de Quintais carrega um

valor alegórico que ressignifica a relação entre o sujeito e o espaço à sua volta porque somos

33

Trecho em que Barthes descreve a Fotografia do Jardim de Inverno em A Câmera Clara: “A fotografia era

muito antiga. Cartonada, os cantos machucados, de um sépia empalidecido, mal deixavam ver duas crianças de

pé, formando grupo, na extremidade de uma pequena ponte de madeira em um Jardim de Inverno com teto de

vidro. Minha mãe tinha na ocasião cinco anos (1898), seu irmão tinha sete. Ele apoiava as costas na balaustrada

da ponte, sobre a qual estendera o braço; ela, mais distante, menor, mantinha-se de frente; sentia-se que o

fotógrafo lhe havia dito: ‘Um pouco para frente, para que a gente possa te ver’; ela unira as mãos, uma

segurando a outra por um dedo, como com frequência fazem as crianças, num gesto desajeitado. O irmão e a

irmã, unidos entre si, eu o sabia, pela desunião dos pais, que se divorciariam pouco tempo depois, tinham posado

lado a lado, sozinhos, no espaço aberto entre as folhagens e palmas da estufa (tratava-se da casa em que minha

mãe tinha nascido, em Chennevières-sur-Marne)” (BARTHES, 2015, p. 61). 34 A Fotografia do Jardim de Inverno é uma imagem descrita por Barthes em A Câmera Clara (1980) que,

paradoxalmente, não aparece reproduzida no livro tal como as outras fotografias mencionadas que são

reproduzidas. Isso é um fato curioso, porque essa fotografia dá origem ao noema “isso-foi” da fotografia porque

nela Barthes vê sua mãe, com 5 anos, ao lado do irmão dela, com 7 anos, e passa a refletir sobre como a imagem

fotográfica configura-se como uma emanação do real passado, mas que se torna inalcançável no presente. Desse

modo, a partir da descrição da fotografia inexistente no livro e das conseguintes análises sobre a reação

provocada no observador de uma fotografia, Barthes percebe que à fotografia cabe ainda uma experiência de

ausência e de luto.

101

postos frente a frente com a memória e a história desse espaço abandonado que,

possivelmente, em algum tempo anterior ao da fotografia, fora habitado, trazendo vida a um

espaço agora marcado pelo vazio.

Nesse sentido, não é a escada e a posição da janela mal-sobreposta sobre ela que

punge na fotografia. O ponto da imagem que toca o observador, e que poderia passar

despercebido se ele não olhar com atenção, é exatamente o estado em que se encontram esses

objetos. É a partir da percepção desses detalhes que Quintais induz o seu observador à

reflexão sobre a condição das coisas diante da passagem do tempo. Quebrada, suja, mal-

posicionada sobre a escada, o que, num momento passado teve uma vida útil com base nas

necessidades do homem, no momento da foto revelam ao observador que tudo na vida tem um

prazo de expiração. O olhar crítico do poeta-fotógrafo consegue captar pelas lentes das

câmeras e imprimir na fotografia uma ontologia do espaço, que dá a ver exatamente o seu

definhamento ao longo da história. A habitação, a morada, a presença familiar dá espaço à

ausência, à solidão e à melancolia. O que vemos, desse modo, é uma ressignificação das

naturezas mortas em fotogramas líricos, que não mais põem em exibição objetos inanimados,

como frutas, louças, flores, livros, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, porcelanas, dentre

outros objetos cuja imobilidade, luminosidade e paleta de cores influenciavam à reflexão

sobre a morte. O que faz – belissimamente – Quintais é buscar no ceio da vida contemporânea

marcas do abandono e do tempo naquilo que é familiar, conhecido e, por vezes, esquecido

frente ao ritmo cada vez mais acelerado da vida contemporânea.

Outro foto-poema de Quintais que remete a uma experiência poética da passagem do

tempo através da imagem é a fotografia Budapeste, Setembro de 2016. De fragmentos

internos da arquitetura de uma residência abandonada, observados em About Buildings, a

fotografia Budapeste, Setembro de 2016 tem como composição, agora, um espaço urbano. O

lugar é a cidade de Budapeste, capital da Hungria. No entanto, Quintais seleciona apenas um

fragmento de uma rua da cidade como objeto foto-poético. Na composição da imagem, vemos

ao fundo uma paisagem histórica da cidade nomeada pelo título, Budapeste, evidenciando

dois prédios antigos e sua arquitetura histórica. No foco da imagem, por outro lado,

encontramos um elemento que, a princípio, se incorpora naturalmente à paisagem urbana

devido à frequência com que o vemos: trata-se do semáforo acoplado a um poste enferrujado

pela ação do tempo. É uma imagem que dá a ver contrastes de formas e de tempos que

[co]existem na cidade e resistem no tempo. É uma imagem onde o passado, impresso pela

102

arquitetura histórica, se choca com o presente, impresso pela modernização urbanística. É

uma imagem onde o passa resiste e o presente se desfaz.

Figura 12 - Budapeste, Setembro de 201635

Fonte: Luís Quintais (2016)

Budapeste, por si só, é uma cidade historicamente marcada por contrastes. Deambular

pela cidade atual é ir ao encontro de outras três grandes cidades históricas da Hungria que

fazem parte da sua construção cultural, arquitetônica e sociológica. São elas: Obuda, a cidade

mais antiga e fundada sobre um acampamento celta pelos Romanos e reconquistada pelos

nativos no século XIII, os quais a dividiram em duas outras cidades: Buda (que ficou

reconhecida como capital do país em 1361) e Peste (que caiu aos domínios dos Turcos em

1526). Três grandes cidades que se reúnem novamente num espaço unificado em 1873 após a

instauração do então Império Áustria-Hungria. Percorrer Budapeste, desse modo, é uma

forma de reencontrar a história através da arquitetura que preserva, por consequência,

inúmeros estilos arquitetônicos que remontam do período Romano à contemporaneidade.

35 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,

disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/

103

Renascimento, Gótico, Romantismo, Barroco, Romance, Art Nouveau e traços da arquitetura

oriental fazem parte da paisagem comum à cidade.

E o choque provocado pela fotografia Budapeste, Setembro de 2016 encontra-se

exatamente na percepção desses contrates históricos que ultrapassam seu tempo. Essa reflexão

já é anunciada pelo próprio poeta-fotógrafo com a decisão de, no título da obra, nomear e

datar o espaço e o tempo. Essa decisão, associada ao referente fotográfico, primeiramente,

ratifica a presença desses objetos arquitetônicos fotografados concretamente num espaço

referencial e referenciado. Relacionar, então, essa escolha às construções arquitetônicas que

fazem parte da composição da imagem é compreender que se trata de uma imagem de

camadas de tempo, assim como o sinal de trânsito, que marca passagem de tempo de espera,

tempo de prosseguir. O observador, a partir disso, fica diante de uma cena fotografada e pode

compreender não só os elementos visuais que a compõem, mas também ir além da mera

compreensão visual e encontrar o ponto de intersecção entre o que a imagem mostra e o que a

imagem evoca subjetivamente ao seu examinador.

Compreender, portanto, a mensagem fotográfica é não só decodificar os signos

visuais presentes na sua composição, mas também, e principalmente, encontrar na imagem

aquilo que me faz pensar fora dela. É encontrar o detalhe que punge para além daquilo que

intencionalmente o fotógrafo escolheu para compor a imagem. É perceber a cor escurecida

dos cantos do prédio que demostra a ação do tempo, da natureza e do homem. É também

perceber a imobilidade e a força da arquitetura histórica que resiste ainda na era

contemporânea. É visualizar, além disso, as marcas de ferrugem e de desgaste no poste, traços

da sua decomposição. É entender, para além disso, que a história – plano de fundo da imagem

– ainda resiste, enquanto no poste foram deixadas marcas físicas da passagem do tempo.

Essas reflexões através da observação de uma fotografia só são possíveis uma vez que a

técnica fotográfica produz uma obra composta por Studium e Punctum, como explica Barthes

na já referida obra A Câmara Clara (1980) acerca da constituição e da estrutura semiológica

da fotografia que podem tocar sensivelmente o observador.

Primeiramente, é o studium que determinará a minha reação cultural ao observar uma

fotografia. De acordo com Barthes, o Studium, nome derivado do verbo latino studare –

correspondente ao estudo do mundo e de tudo aquilo que não tem pungência – refere-se a

tudo aquilo que está circunscrito na fotografia, ou seja, aos elementos pertencentes à imagem

que a foto vem nos comunicar. Estes, por sua vez, são revelados intencionalmente pelo

fotógrafo e fazem parte da composição visual da imagem, do enquadramento e do foco

104

escolhidos por ele. É o studium que possibilita o juízo de valor “gosto” e “não gosto” de uma

determinada fotografia. Para o semiólogo:

reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em

harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las, mas sempre compreendê-las,

discuti-las em mim mesmo, pois a cultura (como que tem a ver o studium) é um

contrato feito entre os criados e os consumidores. O studium é uma espécie de

educação do (saber e polidez) que me permite encontrar o Operador, viver os

intentos que fundam e animam suas práticas, mas vive-las de certo modo contrário,

segundo meu querer de Spectator. Isso ocorre um pouco como se eu tivesse a ler na

Fotografia os mitos do Fotógrafo, fraternizando com eles, sem acreditar

inteiramente neles. Esses mitos visam diretamente (é pra isso que serve o mito)

reconciliar a Fotografia e a sociedade (é necessário? – Pois bem, é; a Foto é

perigosa), dotando-a de funções, que são para o Fotógrafo outros álibis. Essas

funções são: informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade. E eu,

Spectator, eu as reconheço com mais ou menos prazer: nelas invisto meu studium

(que jamais é meu gozo ou minha dor). (BARTHES, 2015, p. 31)

Nesse contexto, o studium está diretamente ligado à forma como percebemos e

interpretamos culturalmente uma foto. Isso, mediante todo o nosso conhecimento prévio de

vida e também de mundo, gerando interesses racionais de análise e reflexão. Como proposto

pelo semiólogo, é pelo studium que o observador consegue se conectar com o Operador, uma

vez que o referente fotográfico confirma a sua presença e o seu olhar no momento da captura

da imagem. Assim, a fotografia, como emanação do real passado, revela insistentemente ao

observador a presença do referente fotográfico e do Operador. Mas a conexão promovida

entre o Spectator e o Operador dá-se não só pela confirmação dessas presenças, já que o

studium também é um fator que permite que o observador e o fotógrafo comunguem

culturalmente a fotografia, através da vivência subjetiva do Spectator e das práticas

intencionais do fotógrafo impressas na foto. Isso, entretanto, está condicionado ao gosto

subjetivo do Spectator, traços culturais de sua identidade. O pensamento semiótico

barthesiano aponta a necessidade de “sentir aquilo que está posto diante dos olhos. Pura

poética da imagem; puro deleite dos sentidos. Olhos que buscam ir ver as imagens alhures.

Fora dessa condição de simples superfície de imagética” (FONTANARI, 2015, p. 69).

Os objetos constituintes da fotografia, nessa perspectiva, como em Budapeste,

Setembro de 2016: os dois prédios antigos, o poste e o semáforo, devido ao studium, revelam

ao espectador práticas e obsessões líricas comuns ao fotógrafo. E não só isso, possibilitam ao

seu interlocutor o juízo de valor “gosto” e “não gosto” culturalmente do que vejo. Em Luís

Quintais, nosso caso em análise, ficamos diante de arquiteturas, espaços urbanos, ruínas e

105

objetos em estado degradado, os quais interferem na forma como, primeiramente, nos

sentimos em relação à imagem observada. E é a partir do studium que nos aproximamos ou

nos distanciamos emocionalmente dessa fotografia, porque “é pelo studium que me interesso

por muitas fotografias, quer as receba como testemunhos políticos, quer as aprecia como bons

quadros históricos: pois é culturalmente (essa conotação está presente no studium), que

participo das figuras, das caras, dos gestos, dos cenários, das ações” (BARTHES, 2015, p. 27-

29). Afinal, é pelo studium que posso me interrogar: o que me interessa nessa foto?

A resposta para essa interrogação está na percepção de que os detalhes sutis impressos

pelo fotógrafo na cena fotografada pungem a nossa atenção e nos ferem, desdobrando a

imagem, como uma surpresa para nós, seus espectadores. Esses detalhes sutis que nos ferem

na imagem tratam-se, por conseguinte, do Punctum. A noção de punctum, derivado do verbo

latino pungere, que sugere noções como “picar”, “furar”, “perfurar”, é compreendida, por

Barthes, como a forma como uma imagem fotográfica afeta diretamente o observador. Para o

semiólogo, as fotografias têm a potência de nos tocar “[…] mais vivamente do que por seu

interesse geral, por um pormenor que vem me prender, me cativar, me acordar, me

surpreender, de maneira bastante enigmática” (BARTHES, 2015, p. 42). Nesse sentido, a

noção de punctum está atrelada a um elemento que está fixado na imagem, mas que, fora da

compreensão cultural, fere e fascina o espectador de modo que a imagem se abre para uma

nova percepção de mundo através dos efeitos subjetivos sentidos pelo espectador quando

tocado por esse detalhe sutil quase despercebido aos olhos desatentos. Esse elemento

atravessa a imobilidade da imagem fotográfica, como uma flecha certeira acertando o seu

interlocutor. Como destaca Barthes:

O segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Dessa vez, não sou eu

quem vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do

studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Em

latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por

um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que

remete também à ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato,

como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis;

essas marcas, essas feridas são precisamente pontos. Esse segundo elemento que

vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada,

pequeno buraco, pequena manca, pequeno corte – e também lance de dados. O

punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas me mortifica, me

fere). (BARTHES, 2015, p. 31).

O punctum, dessa forma, é composto por detalhes dentro da imagem, elementos sutis

“[...] como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (BARTHES,

106

2015, p. 89). Esses detalhes fazem parte integrante da composição da imagem, no entanto, não

são percebidos facilmente pelo observador. O Spectator precisa olhar atentamente a imagem

até ser tocado por algum fragmento imagético que abre seu campo perceptivo. Elementos

esses que normalmente não foram intencionalmente projetados na imagem pelo fotógrafo,

mas que simplesmente estão ali e, por causa disso, forçam a nossa atenção. Esses hábeis

componentes fotográficos, em Budapeste, Setembro de 2016, têm a capacidade de abrir a foto

para um novo e amplo campo de comunicação e interpretação, uma vez que eles são capazes

de provocar um pequeno abalo proustiano36 ao passo que a imagem dá a ver o mundo real

através de uma experiência sensível do tempo. A partir do momento em que percebo o

punctum em Budapeste, Setembro de 2016, sou capaz de inferir e reencontrar a história do

referente fotográfico através do movimento interno e subjetivo da memória involuntária. Sou

capaz de visualizar além dos objetos arquitetônicos e de resgatar internamente sentimentos e

recordações pessoais que são evocados pelo punctum. Esse processo íntimo é fundamental

para a compreensão da mensagem fotográfica, uma vez que, assim como destaca Barthes, a

fotografia pode ser compreendida como um suporte de emoção. É, destarte, compreender que

da imagem fotografada há a emanação de um passado nela presente, e que reverbera a

experiência do passado no presente.

Uma composição poético-visual semelhante à Budapeste, Setembro de 2016, que

promove uma meditação sobre a percepção do tempo, da memória e da história pode ser

encontrada no poema “A arte da memória”. Nesse poema, há um eu poético frente a uma cena

composta por objetos cotidianos abandonados, cujo aspecto punge o observador, guiando-o a

uma viagem memorialística através dos objetos que compõem a cena foto-grafada em busca

de marcas de si mesmo deixadas no espaço e nos objetos pela passagem do tempo:

A ARTE DA MEMÓRIA

Um mapa está sobre a mesa. Encontro também aí um livro.

O mapa está semi-apagado, a espaços largos entre inscrições

36 Entendo aqui por abalo proustiano a reação que ocorre após a percepção do detalhe da fotografia dotado de

punctum. Isso porque, para Barthes, a partir do momento em que a fotografia fere o Spectator pode ocorrer com

ele uma experiência semelhante ao episódio das madeleine descrito em No caminho de Swann, o primeiro

volume de Em Busca do Tempo Perdido (1913). Nessa cena do livro, o narrador personagem come uma

madeleine, uma espécie de bolinho típico francês, mergulhada no chá e quando sente o gosto dessa combinação,

a sensação gustativa provoca involuntariamente uma recordação de uma cena do seu passado. Esse processo de

resgate memorialístico decorrente de uma experiência sensível ficou conhecido como memória involuntária.

107

encontramos terras sem nome, incógnitas, sinais de manchas e descuidos.

O livro está queimado, carbonizado. O livro é uma sombra de cinza que se desmancha ao toque.

A mesa era do meu pai, mas o mapa e o livro são apenas indícios do que obscuramente fui.

(QUINTAIS, 2017 p. 119)

Na primeira estrofe do poema, o eu poético descreve uma cena do espaço em que se

encontra, colocando-se em posição de observador de alguns objetos dispostos nesse espaço.

Desse espaço ainda não nomeado, ele seleciona apenas um fragmento: “Um mapa está sobre a

mesa. / Encontro também aí um livro” (QUINTAIS, 2017 p. 119). Do enquadramento

escolhido da cena, então, somos também estimulados a visualizar uma mesa, um mapa e um

livro. Como um fotógrafo que manipula o zoom de sua câmera fotográfica para dar ênfase e

foco, pela aproximação, em determinados componentes visuais, seu olhar aproxima-se dos

objetos dando a ver aspectos do seu estado aparente que antes passariam despercebidos a um

olhar desatento. Por esse processo foto-gráfico, a voz poética consegue capturar as

características temporais da configuração da cena: o mapa está em processo de degradação:

“O mapa está semi-apagado [...]” (QUINTAIS, 2017 p. 119); e não só há manchas antigas

deixadas pelo manuseio do mapa ao longo do tempo, mas também há lacunas entre as

palavras que foram deixadas pela decomposição da matéria de escrita: “[...] a espaços / largos

entre inscrições encontramos terras sem nome, / incógnitas, sinais de manchas e descuidos”

(QUINTAIS, 2017 p. 119).

O livro é outro corpo também em destruição. Na estrofe seguinte, olhar crítico do eu

poético volta-se para a descrição desse outro corpo decadente que se encontra sobre a mesma

mesa que o mapa semi-apagado, e releva ao leitor um objeto incinerado: “O livro está

queimado / carbonizado [...]” (QUINTAIS, 2017 p. 119). O que se vê, então, é mais uma

matéria inaproveitável. O livro queimado já não dá a ver o texto nele antes fixado. O livro

queimado já não tem mais utilidade, é uma matéria arruinada capaz de desfazer-se a um

simples toque: “[...] O livro / é uma sombra de cinza / que se desmancha ao toque”

(QUINTAIS, 2017 p. 119). Sobre os objetos que compõem o enquadramento, nota-se que eles

representam uma espécie de cena de natureza morta. Fragmentada e desgastada, a matéria,

108

nesse contexto, assemelha-se ao processo de resgate memorialístico – o qual se realiza

mediante a busca de lacunas perdidas na relação tempo-espaço – da imagem correspondente à

identidade passada do eu lírico.

Esse pedaço da paisagem escolhido e descrito pelo observador, cujo aspecto é

representado por presenças e ausências, revela, desse modo, a inutilidade desse mapa, dessa

mesa, desse livro que foram abandonados nesse espaço e não, há muito tempo, não são mais

utilizados. Com essa aproximação entre um passado vivo e um presente morto, poema chega à

imagem final. Na última estrofe, o eu lírico resgata a mesa apresentada no primeiro verso,

acrescentando à imagem inicial uma nova informação: “A mesa era do meu pai,”

(QUINTAIS, 2017 p. 119). Essa informação revela ao leitor que existe uma relação e uma

história entre o sujeito e a cena anterior ao momento da observação. Relação essa que é

atravessada por afetos e familiaridade, capaz de [re]produzir nesse sujeito o resgate e a análise

dessa – sua – história. Por isso, “[...] o mapa / e o livro são apenas indícios / do que

obscuramente fui” (QUINTAIS, 2017 p. 119). Pelos vestígios do abandono e pelos vazios da

linguagem, a imagem poética se mostra como um caminho para alcançar uma análise

meditativa também sobre a identidade do sujeito poético. Nota-se, em função disso, ao final

do poema, a síntese da dupla composição imagética produzida no poema: os corpos em ruínas

“são apenas indícios do que obscuramente” (QUINTAIS, 2017 p. 119) foi o eu poético. A

imagem foto-grafada, dessa forma, carrega, impressos pelo tempo, vestígios ocultos. Esses

vestígios, por sua vez, dão a ver entre espaços em branco, manchas de uso e cinzas do tempo a

história do próprio sujeito, que remonta o passado na tentativa – inútil – de preencher esses

vazios.

Agora em outra fotografia, Food for thought (Figura 13), vemos uma cena composta

por objetos numa disposição semelhante ao poema “A arte da memória”. Do espaço em que

se encontra, o poeta-fotógrafo também seleciona objetos cotidianos que, no entanto, não se

encontram em estado decadente. Pelo enquadramento escolhido para a fotografia Food for

thought, vemos que o poeta-fotógrafo escolheu um fragmento do que poderia ser

compreendido como um escritório. O que se vê, então, são fragmentos de objetos que nos

fazem pensar em sua importância temática para o artista.

Desse espaço, encontram-se presentes na fotografia uma escrivaninha, com livros

empilhados e no topo um chapéu, ao lado, conseguimos vislumbrar o interruptor de um

abajur, uma sacola de plástico, uma garrafa (possivelmente de água), uma parte de uma

impressora com fotografias em cima. Na parede encontram-se um álbum da banda de rock

109

norte-americana U2 encostado e um fragmento de algum quadro pendurado. Os objetos da

composição da imagem remontam a um ambiente de criação, em que o artista exerce seu

papel criativo de escrita. Seria o escritório do nosso poeta-fotógrafo? Seriam esses os livros

que lia no período em que fotografou? Seria este o álbum de músicas que o acompanha em

sua jornada criativa? De quem seria o chapéu? Seria uma alusão ao ilustre poeta Fernando

Pessoa? Talvez o enquadramento seja uma metáfora para a arca deixada por Pessoa? Seriam

esses indícios de suas obsessões líricas?

Figura 13 - Food for thought37

Fonte: Luís Quintais (2008)

Essas inquietações fazem que a fotografia seja entendida, também, como um suporte

poético para expressão das obsessões líricas constantes na obra de Quintais. Nessa expressão

artística, é conferida ao poeta-fotógrafo a potência de escolher, do mundo real objetivo, um

fragmento visual que também toca o observador. O operador da câmera fotográfica, tal qual o

poeta, cria imagens através de fragmentos, traços, indícios, restos e ruínas, já que a potência

frástica da linguagem fotográfica dá a ver lentamente pelos objetos que compõem a fotografia

37 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,

disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/

110

uma cena em tensão para motivar o leitor-observador a alcançar uma reflexão ontológica obre

a imagem foto-grafada, pelas lentes das câmeras como pelo versos dos poemas. Dessa forma,

na fotografia – como outro suporte poético-visual – a linguagem fotográfica potencializa essa

experiência ontológica da imagem poética, como no fotograma lírico “A arte da memória”,

pois os objetos que compõem semioticamente a mensagem fotográfica, em Food for thought,

possibilitam ao leitor-espectador uma imagem dotada de studium e punctum. Não é à toa,

então, que Quintais tenha se aproximado da arte fotográfica e tenha utilizado cada vez mais

constantemente a fotografia como objeto poético.

3.2 Uma figuração da luz

Como vimos em momentos anteriores desta dissertação, quando aproximamos a

técnica de escrita poética de Quintais do ato de fotografar imagens pelas palavras, Luís

Quintais também é fotógrafo, ainda que de modo amador, porque seus poemas e ensaios

constantemente abordam a temática do ver. Através da linguagem poética, como discutimos

anteriormente, o poeta cria fotogramas líricos nos quais põe em cena o que vemos, o que não

vemos, o que conhecemos e reconhecemos facilmente, mas também aquilo que não

conhecemos e que está fora do nosso campo de cognição. Em suas imagens poéticas, vimos

que a linguagem funciona como um mecanismo descritivo que fixa traços, restos, fragmentos

da vida urbana contemporânea. São, por isso, imagens poéticas com uma potência

antropológica porque dão a ver a condição do homem contemporâneo a partir das suas

inquietações. Dessa forma, essas imagens foto-grafadas são colocadas em observação pela

voz lírica, que nos guia lentamente pelos versos a uma reflexão sobre a linguagem e a sua

impossibilidade de dizer, sozinha, o mundo; sobre a ausência e a melancolia, estados de

espírito associados à noção de fim; sobre o tempo e as marcas involuntárias que sua passagem

deixa em todas as coisas do mundo. E dessas imagens poéticas, o poeta resgata memórias,

testemunhos, sentimentos e experiências subjetivas no leitor-observador que lentamente

deixa-se guiar pela contemplação das imagens poéticas a ele reveladas.

A produção fotográfica de Quintais, nesse sentido, como destaca o professor Maffei,

“me tenta a procurar a poesia para além dessas imagens, para além desses versos” (MAFFEI,

2017, p. 9). Isso porque, pela linguagem poética, Quintais consegue, tal como em suas

fotografias, criar imagens que colocam em evidência os limites do visível, do reconhecimento

e da percepção. Com sua câmera fotográfica, o poeta-fotógrafo cria uma experiência

111

contemplativa por meio de indícios, sombras, ruínas de objetos, construções e paisagens. E,

pela fotografia, estende a sua dimensão reflexiva ao transportar a literatura para a fotografia, e

a fotografia para a literatura. Dessa forma, ao incluir de forma constante e crescente imagens

fotográficas em seus livros de poesia, seja na perigrafia, como vimos aqui em A noite imóvel

(2017) com a fotografia (Figura 2), seja no corpo do livro como texto poético, como veremos

no próximo capítulo com o livro Deus é um lugar ameaçado (2018), Quintais, também,

entende a fotografia como um objeto poético capaz de revelar as fissuras líricas da

antropologia contemporânea. Em função disso, é necessário aprender a ler a poesia em suas

imagens fotografadas.

Para isso, primeiramente, é necessário destacar que toda fotografia declara um

testemunho. As imagens fotografadas podem ser entendidas como uma prova de que

determinada coisa aconteceu, já que a presença do referente fotográfico (o fotógrafo que

capturou a imagem do tempo) confirma o noema – isto é – da fotografia, como explica

Barthes (1980). Nesse sentido, o resultado da passagem da luz através das lentes da câmera

fotográfica e do clique do fotógrafo é uma imagem verossimilhante ao que de fato observa o

fotógrafo no mundo objetivo durante o momento em que escolheu o fragmento que fará parte

da composição de sua obra. O enquadramento escolhido, a posição dos objetos da composição

e o ângulo projetado são alguns dos procedimentos e elementos invisíveis à imagem

fotográfica que marcam a presença do fotógrafo e, principalmente, do seu olhar sobre a cena.

Enquanto a câmera fotográfica, que reproduz mecânica e mimeticamente a cena escolhida,

torna-se um mecanismo poético pelo qual Quintais consegue captar fragmentos do mundo e

motivar uma experiência subjetiva frente o espaço, o tempo, o imaginário e a ausência.

Ela [a câmera fotográfica] é como uma extensão da escrita do poeta. E nessa

experiência visual, o observador é convidado a contemplar uma imagem que não somente dá a

ver a passagem do tempo, mas também resgata constantemente o tempo passado, já que, como

aponta Sontag, a fotografia é, ainda, capaz de deixar um vestígio, algo como uma “pegada ou

máscara mortuária” (SONTAG, 2004, p. 170). Segundo suas reflexões sobre o processo

fotográfico, a foto configura-se como um mecanismo de registro – testemunho – material de

seu tema, revelando, também, uma realidade oculta à reproduzida pela câmera e que é

consequência direta das condições de produção (luz, tempo, clima, etc.) dos processos de

tratamento (edição fotográfica anterior ou posterior à captura da imagem) e dos avanços

referentes à técnica fotográfica (modernização das câmeras e desenvolvimento de novos

112

procedimentos estéticos). Nesse cenário, a máquina fotográfica, como uma extensão da

perspectiva do fotógrafo, tende a nos revelar a realidade duplamente porque

Tudo o que o programa de realismo da fotografia de fato implica é a crença

de que a realidade está oculta. E, estando oculta, é algo que deve ser

desvelado. Tudo o que a câmera registra é um desvelamento — quer se trate

de algo imperceptível, partes fugazes de um movimento, uma ordem de

coisas que a visão natural é incapaz de perceber ou uma ‘realidade realçada’

(expressão de Moholy-Nagy38), quer se trate apenas de um modo elíptico de

ver. (SONTAG, 2004, p. 137)

À vista disso, a fotografia passa a representar uma nova forma lírica de registrar a

realidade, não só como um mero sistema mecânico de reprodução mimética da realidade

objetiva, mas também como um suporte técnico cujas condições de produção imagética e a

perspectiva subjetiva do artista são impressas inevitavelmente à imagem, colocando-se como

um tapume que encobre essa cena real fotografada. Dessa forma, o que a fotografia, de fato,

nos revela é a necessidade constante de desvelar o que foi encoberto. Um movimento de

procura pelo que está circunscrito no enquadramento da cena e pelo que foi oculto pela

linguagem fotográfica, aquilo que foge à nossa visão superficial.

Esses são alguns aspectos da imagem fotográfica que são impressos na teoria do ver

que perpassa também a produção fotográfica de Luís Quintais e que podem ser observados na

fotografia Upload (Figura 14). Upload é uma das 4 fotografias que compõem o ensaio

fotográfico homônimo de Quintais publicado na sua página flickr. Numa primeira observação,

o título em inglês, associado à composição imagética da fotografia, chama atenção. Upload é

uma palavra de Língua Inglesa, normalmente utilizada como um termo técnico da linguagem

das tecnologias de informação, que tem como significado semântico “enviar um arquivo de

um espaço digital para outro”. Sua tradução, por sua vez, está associada ao verbo “subir” já

que o vocábulo em inglês “upload” pode ser dividido em dois morfemas: “up”, cuja tradução

é “para cima” e “load” cuja tradução é “carregar”. Logo, “upload” é o ato de “subir” (ou

carregar para cima) um determinado arquivo virtual em uma plataforma digital. Nesse

contexto, por exemplo, quando vamos enviar um arquivo que está salvo no nosso computador

38 Lászlo Moholy-Nagy foi um designer, fotógrafo e pintor húngaro do século XX, conhecido por ter lecionado,

entre os anos 1922 e 1930, na escola Staatliches Bauhaus, comummente conhecida como Bauhaus, uma

importantíssima escola de artes alemã que potencializou o movimento Modernista no design e na arquitetura.

Escreveu o livro Pintura, Fotografia, Filme - Painting, Photography, Film (1924) –, o oitavo livro da coleção

Livros da Bauhaus, no qual propõe um diálogo entre a fotografia e a pintura. Em seus estudos, aponta que a

fotografia é como um mecanismo de reflexão sobre o fenômeno visual da exposição à luz.

113

para outra plataforma digital (um pendrive ou outros sistemas digitais de armazenamento de

informação; outro computador; ou uma plataforma virtual – como sites e e-mails) estamos

fazendo um upload – envio – dessa informação. Esse é, então, um processo pelo qual criamos,

ainda, uma cópia da informação ou do arquivo no novo suporte. Através de um upload

criamos e deixamos um rastro virtual de um arquivo. E não seria esse, também, um dos papéis

da fotografia?

Figura 14 – Upload39

Fonte: Luís Quintais (2016)

O olhar e a percepção do poeta-fotógrafo são impressos em imagem fotográfica

através da câmera, e, do enquadramento escolhido, conseguimos ver uma cópia daquilo que

foi propositalmente escolhido pelo artista para contemplarmos. Esse caráter metalinguístico é

observado, também, na fotografia Upoload, cujas sombras que compõem a imagem são

rastros da presença real do objeto fotografado. São elas: 1) uma que marca a silhueta humana

– seria um homem ou uma mulher? Seria o fotógrafo? Seria o próprio poeta-fotógrafo? 2)

outra que marca um objeto comum ao cotidiano, uma escada. Desses objetos e perfis

39 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,

disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/

114

desenhados pelas sombras, somos guiados a resgatar outros elementos que se encontram

invisíveis no campo de observação: da sombra humana, buscamos a figura do autor da

imagem; da sombra inanimada, recordamos da escada e, pelo ângulo que se encontram os

raios luminosos e a direção das sombras, pensamos, ainda, sendo uma escada, a pessoa vai

subir, está descendo, indo de um espaço a outro? É possível subir? É possível efetuar o

upload?

Na fotografia Upload, com isso, observamos uma performance do ver, em que a

imagem fotografada é responsável pela [re]criação de uma dupla realidade na qual a primeira

corresponde a uma representação do tema pelas técnicas de fixação de imagem (luminosidade,

enquadramento, angulação, foco, edição...), enquanto a segunda, mais oculta, refere-se à

história interna da foto como fragmento da realidade referente a uma cena real e concreta,

somente acessível através da contemplação da fotografia. A fotografia, por isso, como nos

poemas de Quintais, revela-se, também, como um objeto lírico documental, histórico,

antropológico e metalinguístico. Dessa forma, a imagem capturada representa não só um

determinado tema (aquilo que ela dá a ver na cena), mas também põe em xeque as noções de

tempo, presença e ausência, a serem interpretados e analisados pelo seu espectador de maneira

fiel e precisa ou pelas intenções particulares do fotógrafo. Ler as fotografias de Quintais é

mais do que redefinir a natureza das coisas, porque a técnica fotográfica, como aponta Sontag,

é um mecanismo de fragmentação, fixação, exposição, contemplação e análise da realidade

em peças e possibilidades diversas:

As fotos fazem mais do que redefinir a natureza da experiência comum

(gente, coisas, fatos, tudo o que vemos — embora de forma diferente e, não

raro, desatenta — com a visão natural) e acrescentar uma vasta quantidade

de materiais que nunca chegamos a ver. A realidade como tal é redefinida —

como uma peça para exposição, como um registro para ser examinado, como

um alvo para ser vigiado. A exploração e a duplicação fotográficas do

mundo fragmentam continuidades e distribuem os pedaços em um dossiê

interminável, propiciando dessa forma possibilidades de controle que não

poderiam sequer ser sonhadas sob o anterior sistema de registro de

informações: a escrita. (SONTAG, 1933, p. 87)

Sontag, nesse excerto, entende que a técnica fotográfica é um mecanismo de

composição artística que produz uma peça visual que está subordinada a diversas

possibilidades de percepção e interpretação por parte do observador. Isso decorre,

principalmente, da relação existente entre a técnica fotográfica e a captação de frames fiéis a

115

uma cena real do passado, processo pelo qual a cena é fixada em uma imagem fotográfica

imóvel e permanente. Desse modo, ao fotografar qualquer imagem, o fotógrafo – amador ou

profissional –, não só recorta e compacta o tempo passado em imagem, ele é capaz, ainda, de

acrescentar elementos que fogem ao campo de visão e que são percebidos apenas através da

contemplação e reflexão. E a imagem fotografada, com isso, passa não só a redefinir a

realidade apresentada ao observador por um determinado ponto de vista, porque as técnicas

impressas à fotografia final e as possibilidades de modificação e edição adicionam elementos

à composição. A realidade, a imagem e a fotografia, por sua vez, estão submetidas a

mecanismos de controle que proporcionam inúmeras formas de manipulação por parte do

artista que cria “um dossiê interminável” (SONTAG, 1933, p. 87), “um registro a ser

analisado” (SONTAG, 1933, p. 87) de modo interminável.

Upload, nesse contexto, mesmo sendo uma forma de fragmentação do real, é uma

forma de prolongá-lo, avaliá-lo e [re]interpretá-lo continuamente. As sombras da composição

imagética reescrevem o real em imagem. E por isso, conforme aponta Dubois, através da

fotografia “a imagem não pode representar o real empírico (cuja existência é, aliás, recolocada

em questão pelo pressuposto sustentado por tal concepção: não haveria realidade fora dos

discursos que falam dela), mas apenas uma espécie de realidade interna transcendente”

(DUBOIS, 2001, p. 53). Esse recorte do real, por causa das impressões deixadas pelas marcas

do olhar fotográfico, transforma-se, então, num mecanismo linguístico que fragmenta e

pulsiona a realidade, porque “a câmera empurra para adiante as fronteiras do real” (SONTAG,

2008, p. 138). E a mensagem fotográfica não é mais subordinada apenas à expressão do autor

e à sua interpretação do momento na hora do clique. Através da exposição e da contemplação

de Upload, o espectador é levado a um movimento de reconfiguração da sua relação com a

realidade encenada pela fotografia: sombras, fotógrafo, escada, chão e raios luminosos.

Agora, ele tem, também, o poder de participação e manipulação da cena fotografada, uma vez

que nesse fotograma lírico o Spectator é afetado e ferido pelos elementos da composição que

metalinguística e referencialmente se movimentam de dentro para fora da imagem revelando

o que se vê e o que não se vê, o que se conhece e o que não se conhece, o passado e o

presente, o real e o imaginário.

A hipótese é também evidenciada no poema “Fantasmas”. Nele, podemos perceber

como as estrofes atuam como recorte e enquadramento de cenas comentadas e descritas pelo

sujeito lírico. Nesse processo de fragmentação poético-visual – bem semelhante, inclusive, à

técnica cinematográfica de mudança de enquadramento, porque cada estrofe atua como um

116

fotograma, onde ocorre uma espécie de troca entre percepções do observador frente a cena – a

voz poética aparece visualizando uma cena de uma figura humana, de uma rua e de uma casa,

mas que põem em tensão a ação (presente?) no espaço:

FANTASMAS

Teremos

de lutar

pela simples

respiração.

De noite nada virá.

Uma figura humana

atravessa a estrada

frente à casa

onde nasci.

Reparo nela,

no seu caminhar

de onde nada

se mede, de onde nada

tem mensuração.

Sou eu, opaco, que atravesso

a rua da infância?

Depois da guerra, fugimos

todos, mobília abandonada,

ficaram-nos as roupas

do corpo, e na alma

fantasmas.

Não voltei a essa casa,

a essa rua,

a essa janela.

(QUINTAIS, 2017 p. 115-116)

Primeiramente, é importante apontar que “Fantasmas” é o terceiro poema da seção

“Uma vida” do livro A noite imóvel (2017) de Luís Quintais. Nessa seção poética, os poemas

abordam uma temática central comum: acessar a memória a partir da observação de uma cena

opaca, tal como é a nossa própria memória – frágil, fraca e repleta de lapsos. Isso é refletido já

na epígrafe escolhida para essa seção, um fragmento da música Orpheus (1987) do cantor e

compositor inglês, David Sylvian: “I wrestle with an outlook on life / That shifts between

darkness and shadowy light” (tradução nossa: eu luto com uma perspectiva de vida que muda

entre a escuridão e a luz sombria). Em “Uma vida”, nesse sentido, o leitor é motivado a

acompanhar um sujeito poético que irá percorrer esse caminho entre a luz e a sombra da sua

117

memória. Na primeira estrofe do poema “Fantasmas”, por isso, o sujeito parece fazer um

alerta a seu leitor: “Teremos / de lutar / pela simples / respiração” (QUINTAIS, 2017 p. 115).

O verbo “lutar” declara ao seu interlocutor que será preciso entrar em alguma forma de

batalha para que se possa conquistar algo, como a “simples respiração”, o objeto de desejo

dessa luta poética. A respiração, nesse sentido, parece ser algo que se encontrará em falta.

Mas quando? No tempo futuro? No tempo presente da leitura do poema? Ou no tempo

presente da observação da imagem apresentada na estrofe seguinte? Nesse primeiro fragmento

poético, ficamos diante de um alerta sobre um futuro possível, que por sua vez, como aponta o

título do poema, nos colocará diante de nossos próprios fantasmas. Ao longo da leitura, essa

questão transporta-se para uma imagem poética descrita em observação pelo sujeito lírico:

“Uma figura humana / atravessa a estrada / frente à casa / onde nasci” (QUINTAIS, 2017 p.

115).

Diante dessa figura humana que caminha por uma rua conhecida em frente à sua

antiga casa, o sujeito lírico é motivado emocionalmente a voltar à sua própria memória do

passado para resgatar os fragmentos de um tempo passado perdidos e resgatados pela

familiaridade e afetividade representadas pelos objetos que formam a imagem da cena

observada. Nesse estado de melancolia, por sua vez, o sujeito é levado a debruçar sobre si em

função de uma reação à perda de um objeto de afeto, causando uma “ruptura do eu” pela qual

uma das partes destaca-se e volta-se para a outra, julgando-a de forma crítica. É o que

demonstra Freud (1917) sobre o estado de melancolia: “[...]detenhamo-nos um pouco no

conceito que a perturbação do melancólico oferece a respeito da constituição do ego humano.

Vemos nele que uma parte do ego se coloca contra a outra, julgando-a criticamente, e, por

assim dizer, toma-a como seu objeto” (FREUD, 2011, p. 280).

Nesse ato de caminhar do sujeito pela rua de sua antiga casa, o eu lírico se depara com

uma fissura no espaço-tempo, que faz duas realidades – o seu presente e o seu passado –

atravessarem, junto desse indivíduo, a rua de sua antiga casa. Isso acontece porque ele decide

reparar nela, “no seu caminhar” (QUINTAIS, 2017 p. 115). Desse ato de observação, por sua

vez, ele é remetido, primeiramente, ao nada: “no seu caminhar / de onde nada / se mede, de

onde nada / tem mensuração” (QUINTAIS, 2017 p. 115). Esse esvaziamento é decorrência

dos contrastes entre a familiaridade do espaço e o não [re]conhecimento da identidade desse

sujeito. Por isso, o eu lírico motiva-se a buscar por algo que preencha esse esvaziamento,

encontrando, portanto, numa longínqua recordação de sua infância, a sua própria imagem

refletida no caminhar desse outro eu, antes desconhecido, por esse espaço sempre familiar. A

118

pergunta, na estrofe seguinte, descreve a tentativa de recuperar esse algo que escapa à

imagem, mas que poderia ser acessado através da memória de um objeto de afeto perdido com

o tempo. Sua reação é expressa em uma pergunta: “Sou eu, opaco, que atravesso / a rua da

infância?” (QUINTAIS, 2017 p. 116). Em função disso, percebe-se que o eu poético se

encontra fragmentado e opaco, buscando no tecido da sua própria memória recompor a sua

própria identidade nessa fissura do espaço-tempo.

Espaço este que é marcado por uma separação violenta. O sujeito poético, que vivia

em sua infância essa casa com a sua família, foi obrigado por conta da guerra, a fugir desse

espaço familiar para um outro espaço desconhecido: “Depois da guerra, fugimos / todos,

mobília abandonada,” (QUINTAIS, 2017 p. 116). Essa experiência de dor e de perda leva o

indivíduo a um estado que, semelhante ao luto, desencadeia uma sensação de melancolia

capaz de fissurar seu ego. Ao enxergar a si mesmo nessa figura humana que caminha por um

espaço do qual as memórias são efêmeras. Conforme afirma Didi-Huberman “A imagem é

pouca coisa: resto ou fissura (flêure). Um acidente do tempo que a torna momentaneamente

visível ou legível” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 87); e dessa rua, dessa casa e dessa história

ficaram-nos as roupas / do corpo, e na alma / fantasmas” (QUINTAIS, 2017 p. 116).

No final do poema, então, tem-se a constatação final: “Não voltei a essa casa, / a essa

rua, / a essa janela” (QUINTAIS, 2017 p. 116). Com esses versos, o sujeito poético fecha a

sua reflexão, revelando ao leitor que, apesar da familiaridade, o espaço é paradoxalmente

desconhecido. O que se lembra é circunstancial e poderia estar subordinado a intervenções da

imaginação. O objeto perdido, nesse contexto, mostra-se como a própria infância que foi

violentamente fragmentada pela presença da guerra. Como consequência dessa relação

dialética com o espaço, o luto promovido é decorrente da perda da casa, da rua e da janela,

objetos de afeto aos quais o eu poético não tem mais acesso, a não ser pela memória

imagética. A figura foto-grafada, portanto, tem a potência de resistência, pois ela é capaz de

resgatar, do tempo passado, uma recordação – mesmo que fragmentada, mesmo que de difícil

acesso e, ainda, mesmo que atravessada pelo imaginário – desse tempo já perdido, dessa

fissura, dessa janela.

Já em outra fotografia de Quintais, o observador é convidado a contemplar uma cena

natural que, quase invisivelmente, acontece em um espaço urbano, mas que também põem em

tensão o fim e o que resta (ou sobrevive) dele:

119

Figura 15 - E o Outono será sempre a estação40

Fonte: Luís Quintais (2016)

Na fotografia E o Outono será sempre a estação, o artista nos convida, mais uma vez,

a observar o tempo. No entanto, diferente das suas fotografias e das imagens poéticas

contempladas nesta dissertação anteriormente, o tempo, nesta fotografia, é evocado através de

um tema natural. Em vez de buscar reproduzir um objeto urbano em ruína, o poeta fotógrafo

decide por reparar na natureza comum à sua volta. Na Figura 15, por isso, vemos de uma

espécie de árvore muito comum em Portugal, cujas folhas sempre caem quando chega o

Outono: tratam-se dos Plátanos, que já apareceram em uma das imagens poéticas descritas no

poema “Anfiteatro”, analisado neste trabalho – “Inverno também ali, Inverno sempre, e os

plátanos / do outro lado, ali estando, tão indiferentes, / de uma beleza de cinza, um anátema, /

uma contemplação rasurada” (QUINTAIS, 2017, p. 75). De modo semelhante, a natureza é

evocada pelo artista – tanto no poema como na fotografia – de modo a mostrar ao leitor-

observador uma imagem que põe em tensão o tempo e a resistência. Isso acontece em

decorrência da escolha das folhas dos plátanos caídas ao chão, cuja aparência – cor e formas –

são indícios que denunciam a passagem temporal. O amarelado das folhas, conjugado ao seu

aspecto podre, rasgado e amassado no chão, dá ênfase nesse aspecto decadente dessa natureza

que se degrada, seca e apodrece.

40 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,

disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/

120

Essas características visuais representam poeticamente a noção de fim, um tema

recorrente à escrita literária de Quintais, que é projetado nessa produção fotográfica como

uma espécie de filtro comum entre as suas duas formas de expressão artística. Nesse sentido,

nessa fotografia, podemos observar o modo como o poeta fixa em imagens um movimento

natural das coisas que passam constantemente por transformações ao longo do tempo.

Paradoxalmente, ainda, essa mesma imagem que remete ao fim e à morte dessa folhagem,

evoca também a recordação de que a perda da folhagem, usual no Outono, é apenas um

recurso biológico para que as plantas sobrevivam ao período mais intenso que se aproxima, o

Inverno. Desse modo, mesmo que as plantas pareçam mortas, elas estão vivias e resistindo às

temperaturas mais baixas e às condições adversas. A imagem, nesse contexto, carrega um si

um movimento próprio que transporta da experiência visual uma percepção reflexiva sobre a

cena observada em que a percepção desses elementos – visíveis e invisíveis – toca seu

observador.

As quatro estações do ano apresentam características geográficas e biológicas bem

definidas, que são percebidas através da observação das mudanças que ocorrem no aspecto

físico e visual da vegetação, na temperatura e, inclusive, no comportamento dos animais. Por

meio da contemplação dessas transformações, somos capazes de perceber o ciclo natural da

vida através da passagem temporal: início, meio e fim. A primeira estação do ano no

Hemisfério Norte, a Primavera, é o período natural de nascimento da flora. Nesse momento

costuma ocorrer o aumento da temperatura e o crescimento da folhagem das plantas,

preparando-se para a sua maturação. Ela, por sua vez, é sucedida pelo Verão, a estação do ano

marcada pela maturidade da flora terrestre. Durante esse período, somos levados a

experimentar temperaturas mais altas. Após esse período, entramos no Outono, a estação do

ano visualizada pela fotografia E o Outono será sempre a estação. Ela é marcada, por

exemplo, por um momento de transição em que ocorre a queda da temperatura, o

amarelamento e a queda da folhagem, indicando a proximidade da estação seguinte, o

Inverno. Este, por último, é percebido como um momento de fim. Nessa época, devido à

queda drástica das temperaturas, é comum observamos a migração de animais e uma

transformação intensa na aparência da flora terrestre, que se encontra completamente sem

folhagem para poupar energia durante esse tempo. Perceber essas transformações é perceber o

ciclo natural ao qual todas as coisas estão submetidas. Observar as marcas visuais dessas

transformações é experimentar visualmente a passagem do tempo. Fotografar essas

transformações é, intencionalmente, dar ênfase à condição das coisas que estarão sempre

121

subordinadas à passagem temporal. Acerca dessa atuação intencional do fotógrafo em

escolher fotografar fragmentos reais do mundo, Boris Kossoy (1971) afirma:

A eleição de um aspecto determinado – isto é, selecionado do real com seu

respectivo tratamento estético –, a preocupação na organização visual dos

detalhes que compõem o assunto, bem como a exploração dos recursos

oferecidos pela tecnologia: todos são fatores que influirão decisivamente no

resultado final e configuram a atuação do fotógrafo enquanto filtro cultural.

O registro visual documenta, por outro lado, a própria atitude do fotógrafo

diante da realidade; seu estado de espírito e sua ideologia acabam

transparecendo em suas imagens, particularmente naquelas que realiza para

si mesmo enquanto forma de expressão pessoal. (KOSSOY, 1941, p. 43)

Kossoy, nesse fragmento, destaca que toda a fotografia se torna um testemunho do

olhar estético do artista. Isso, no entanto, não decorre somente do mimetismo fotográfico que,

como vimos anteriormente, confirma a presença do referente fotográfico na imagem; o

testemunho é também compreendido pelas marcas pessoais que o artista insere nos temas de

suas fotografias. Para ensaísta, uma fotografia sempre será atravessada por uma realidade

objetiva e pela percepção subjetiva do artista, já que os elementos selecionados para a

composição da imagem – que fazem parte do mundo real objetivo – são escolhidos e

organizados de acordo com a intensão comunicativa do fotógrafo. A partir disso, o processo

fotográfico desenvolve-se através de coordenadas circunstanciais que revelam um binômio

documentação versus criação. Isso acontece, primeiramente, porque o princípio mimético da

fotografia reforça o noema barthesiano isso foi da fotografia, desse modo, a imagem passa a

ser uma forma de documentar uma cena real do passado.

Mas para além disso, em segundo plano, a forma como essa cena real de um momento

e de um tempo passado foi fotografada e é apresentada ao observador acaba por funcionar

como um “filtro cultural” do artista. Nesse contexto, são fixados na imagem não só

representações miméticas de objetos concretos do mundo, mas também técnicas e estilos

próprios do artista, possibilitados, sobretudo, pelo emprego dos recursos tecnológicos, sejam

os recursos mecânicos embutidos na própria câmera fotográfica sejam os recursos virtuais de

edição fotográfica. Assim, observar uma fotografia é observar o mundo através de um

fragmento subjetivo em que a estética do artista é determinante para a composição do sentido

geral da informação visual.

Em decorrência disso, podemos inferir que a compreensão do tema da fotografia está

diretamente ligada aos interesses e às preocupações estéticas do artista. Os objetos que

122

compõem a cena fotografada foram arquitetados e organizados em um determinado ângulo,

enquadramento e foco de acordo com as necessidades plásticas e estéticas do fotógrafo. Esse

fragmento intencional da realidade capturado em imagem, portanto, constitui uma

teatralização, fruto da subjetividade e da percepção de mundo do artista, que, em Quintais, são

atravessadas pelo olhar ontológico do poeta-fotógrafo frente às coisas do mundo, que são

transportadas para a fotografia. A mensagem fotográfica passa a ser mediada não só pela

disposição dos objetos na cena, mas principalmente pela consciência de que as técnicas

utilizadas – angulação, enquadramento, luminosidade, práticas de edição etc. – influenciam na

maneira como cada observador irá ver, ler e apreender as informações visuais. Nesse sentido,

toda fotografia irá mostrar ao observador uma realidade subordinada ao “filtro cultural” do

fotógrafo à medida que o “talento e o intelecto influirão no produto final desde o momento da

seleção do fragmento até a sua materialização iconográfica” (KOSSOY, 1941, p. 50). Filtro

este que, nas produções tanto fotográficas como poéticas de Quintais, fica evidente através do

seu olhar antropológico, meditativo e contemplativo sobre os objetos e a cena observados, que

influencia seu leitor-observador, em conjunto, a analisar calmamente a condição das coisas.

Essa relação poético-fotográfica também pode ser encontrada por meio da leitura do

poema “Linguagem e recolhimento”. Nele, o sujeito poético foto-grafa um fragmento de um

espaço interno, que possui uma cadeira. Através dessa descrição, ele irá propor a visualização,

através das palavras do poema, de uma cena a ser analisada. A leitura, então, nos coloca frente

a frente com uma encenação do ver que possibilita uma reflexão mais profunda não só acerca

da imagem, mas também da linguagem utilizada para tentar fixar a cena em poesia.

LINGUAGEM E RECOLHIMENTO

A sala tem uma cadeira e a cadeira antecipa a espera. Alguém se sentará aí, esperando a imóvel noite. O seu olhar profundo sob as máscaras que roubará ao rosto, película a película, pele a pele.

Tanta coisa dependerá dessa intransparente notícia da realidade

123

declinada e mortal, dessa mudez da linguagem e recolhimento.

(QUINTAIS, 2017, p. 118)

O primeiro verso do poema contém a apresentação de um cenário onde se encontra a

voz lírica em posição de espectador: “A sala tem uma cadeira” (QUINTAIS, 2017, p. 118).

Trata-se de um ambiente interno, do qual a voz lírica seleciona um fragmento do que se

encontra no seu campo de visão e reflexão: “a cadeira antecipa / a espera” (QUINTAIS, 2017,

p. 118). A partir desse verso, o leitor é guiado a visualizar essa cena descrita de uma cadeira

vazia dentro de uma sala vazia à espera de algo que preencha essa espera e essa ausência. Os

versos seguintes, por sua vez, descrevem essa tentativa de esse espectador completar essa

lacuna espaço-visual com a imaginação. Para isso, vemos a firmação de que “alguém se

sentará aí, / esperando / a imóvel noite” (QUINTAIS, 2017, p. 118), redirecionando o leitor a

pensar sobre uma nova cena: a cadeira, antes vazia, encontrar-se-á, num momento futuro,

ocupada por alguém que esperará e observará uma noite imóvel.

Nessa primeira estrofe, encontramos uma imagem poética que busca discutir o modo

como, inertes, vivenciamos as transformações das coisas, já que os objetos descritos realçam

que tudo vivencia passivamente as mudanças. Interessante notar, ainda, como essa imagem se

desdobra ao leitor, uma vez que a noite pode ser adjetivada como imóvel em função da

monotonia do tempo-espaço em associação à continua vigília daquele personagem que

aguardará e contemplará o seu imóvel movimento. Afinal, durante esse período é comum que

as pessoas se recolham em suas casas para descansar e se preparar para o próximo dia. Tem-

se, desse modo, uma imobilidade temporal perceptível durante a noite. Essa passividade é

transposta para os objetos que compõem a cena futura evocada pelo sujeito poético, uma vez

que a cadeira espera passivamente ser ocupada; aquele que irá se sentar nela observará,

também passivamente, a passagem da noite, que em algum momento futuro se transformará

em dia. “O seu olhar será profundo” (QUINTAIS, 2017, p. 118) como quem observa uma

encenação do tempo e vê, atentamente, as suas máscaras se transformando, “película a

película, / pele a pele” (QUINTAIS, 2017, p. 118).

Surgem, dessa forma, algumas inquietações sobre a nossa percepção das mudanças

inevitáveis das coisas do mundo. Como nós percebemos a transformação das coisas?

Aguardamos passivamente a mudança? Fazemos dela um mecanismo de reflexão crítica?

Vivenciamos cada passar das horas que transforma a noite em dia? A imagem inicial,

124

portanto, funciona como mecanismo de dupla reflexão crítica em que a imagem promove a

crítica de si mesma e da nossa percepção de mundo. Buscamos, a partir disso, encontrar algo

que responda às inquietações provocadas pela imagem, ainda que numa realidade atravessada

pelo imaginário e pelas sensações.

Na estrofe seguinte, ainda, a imagem gerada pela composição lírica transfigura-se

numa reflexão acerca das [im]possibilidades. Cadeira, noite e ocupante esperam, do vazio,

algo. As ações escolhidas pelos personagens da imagem e pelo observador determinarão os

acontecimentos e o foco subsequentes na cena visualizada. Por isso, “tanta coisa dependerá /

dessa intransparente / notícia / da realidade / declinada e mortal” (QUINTAIS, 2017, p. 118).

Tudo encenado no poema depende de algo exterior que poderá alterar não somente aquilo que

se vê, mas também aquilo que se percebe sobre o que vê. O poema, nesse sentido, volta-se a si

mesmo para provocar uma meditação sobre a impossibilidade de a linguagem poética dar

conta de suprir essas inquietações. Isso porque caso semelhante ocorre com a linguagem: as

palavras, imóveis em seu sentido e estado dicionário, esperam a ação do autor para

transformarem-se em sentido, imagem e poesia. O poema, com isso, dialoga com a mensagem

passada pelo seu título “Linguagem e recolhimento” uma vez que a práxis poética é posta em

reflexão. Na linguagem poética, tal como todas as coisas do mundo estão subordinadas a

transformações, a língua é submetida a procedimentos linguísticos e estéticos, por parte do

artista, para construção de sentido – e novos sentidos: a linguagem reúne as experiências da

observação na tentativa – por vezes inútil – de representar aquilo que somente se [re]encontra

pela imaginação. Em Quintais, isso é exposto ao leitor através da escrita ecfrástica que cria

imagens poéticas que, como em “Linguagem e recolhimento”, revelam uma realidade oculta à

imagem “dessa mudez / da linguagem e recolhimento” (QUINTAIS, 2017, p. 118). A imagem

foto-grafada no poema, nesse sentido, irá revelar ao leitor traços do “filtro cultural” do poeta-

fotógrafo, como na fotografia E o Outono será sempre a estação, à medida que percebemos

não só a encenação do ver através de uma escrita que dá a ver uma imagem do mundo, mas

também se volta para um estudo antropológico, meditativo e contemplativo da linguagem, do

tempo e do homem.

Já na fotografia E o Outono será sempre a estação, as folhas imóveis, sem vida e

caídas no chão, trazem, também, à tona outras inquietações líricas importantes para práxis

poético-fotográfica de Quintais. Delas, resgatamos traços da melancolia, da morte e da

resistência como parte do “filtro cultural” que é projetado pela escolha do tema, dos objetos,

do ângulo, do enquadramento e das técnicas de edição por Quintais, por meio dos quais,

125

afinal, somos convidados a ver o mundo através dos olhos do poeta-fotógrafo. Ao analisar

atentamente a fotografia em questão, podemos visualizar uma sobreposição espacial que

conjuga a natureza [morta] com o espaço urbano. Em meio às folhas caídas e em

decomposição, percebemos que a natureza, nesse fragmento imagético, permanece e

sobrevive apesar das condições adversas – o clima (o Outono) e o espaço (resquício do espaço

urbano quando notamos a presença ínfima de um pedaço de cimento ou concreto que faz parte

do meio-fio da calçada e da via urbana).

Essa escolha nos mostra que, em meio à cidade, o poeta busca na natureza evidências

dessa violenta passagem do tempo, mas também uma alegoria para a sobrevivência. Isso é,

ainda, ratificado pelo título dado pelo artista à imagem, porque a folhagem caída que se

encontra fotografada é uma das marcas visuais da chegada da temporada do Outono, uma das

quatro estações que sempre anuncia à proximidade do tempo do Inverno, do fim das coisas,

mas também de sua renovação e renascimento após sobreviver esse período intenso. E assim

como os aspectos decadentes das ruínas deixam a ver a ação do tempo, as folhas secas e

caídas são a marca da sua passagem inevitável que se propaga e ainda acometerá todas as

coisas do mundo. Mas o outono será sempre a estação da transição, da transmutação, da

passagem da vida para a imobilidade. E o Outono será sempre igual em suas marcas que

insistem em anunciar a chegada de algo.

Indício semelhante de uma imagem de resistência frente ao tempo aparece no poema

“Futuro". Na primeira estrofe desse poema, a voz poética começa uma descrição exasperada

de uma imagem que parece ser de uma cidade em tensão, um reflexo da vida contemporânea

marcada pela aceleração que delimita a forma como o sujeito percebe, programa e age em

coletividade. Entretanto, na segunda estrofe essa imagem transforma-se numa outra forma de

perceber e sentir a passagem do tempo que anunciará algo. Será algo que chega? Será algo

permanece? Será algo que resiste? Dentre essas antecipações poéticas, notaremos como o

sujeito lírico de Quintais, nesse poema, compõe uma foto-grafia crítica da própria natureza do

tempo:

FUTURO

Uma cidade de volumes enlouquecidos pela exasperação das imagens que gravitam já na matéria do ar.

126

Dureza de antecipações com que o canto mais motivado pela sombra declinará o meu medo desse futuro onde caminharem só.

(QUINTAIS. 2017 p. 161)

O que se nota a partir de uma primeira leitura desse poema, mais uma vez, é o modo

como o poeta Luís Quintais utiliza o recurso estético da foto-grafia para compor a descrição

de uma determinada cena vista pelo eu lírico. Dessa cena fotografada, o que ele vê é,

aparentemente, é o enquadramento escolhido de “uma cidade de volumes” (QUINTAIS. 2017

p. 161). Mas esse mesmo recorte da aparente paisagem urbana o leva a perceber um

movimento intrínseco ao ambiente que se olha, porque os volumes que compõem essa cidade

encontram-se “enlouquecidos pela exasperação / das imagens que gravitam já / na matéria do

ar” (QUINTAIS. 2017 p. 161). O olhar atento desse sujeito poético, então, parece (semelhante

ao movimento enlouquecido dessas imagens que gravitam no ar, desfoca) deixar a descrição

mimética do espaço, dando margem à percepção do movimento enlouquecido da cidade. A

descrição subjetiva desse fragmento imagético de um possível espaço urbano contribui para a

configuração de um ambiente pautado pela melancolia e solidão frente à multidão.

Tudo ao seu redor é movimento, é excesso, é rapidez. Todas as coisas estão

subordinadas à percepção de uma passagem do tempo cada vez mais veloz, devido,

principalmente, à sobreposição de ações simultâneas em excesso, o que se coloca como um

desafio à desaceleração do homem, já que no espaço urbano contemporâneo a aceleração

contínua do ritmo da vida não permite que haja espaço para a calma, para a pausa e para a

tranquilidade. Desse modo, contemplar o espaço urbano em seu estado de tensão e movimento

instiga, paradoxalmente, esse sujeito à desaceleração frente ao mundo – como se, para

compreender o ambiente à sua volta, o sujeito poético fosse levado a uma viagem interior de

redescobrimento de si e de suas memórias. Desacelerar e contemplar são verbos que, ligados à

situação descrita, tornam-se necessários, no entanto, impraticáveis devido à constante

velocidade, à rapidez e à instantaneidade às quais a vida e o contato humano são submetidos.

Por isso, a arte contemporânea, sobretudo, a arte poética e fotográfica de Quintais, deixa-se

levar pelas diferentes experiências cotidianas de um mundo frágil, pela vivência de momentos

efêmeros, de sensações de solidão de cada um apesar de estarem em constante contato com o

outro. É neste cenário de tensão descrito no poema que o eu lírico formula uma hipótese

acerca do futuro, propondo, ao final uma reflexão mais profunda e complexa sobre a nossa

127

percepção do que é desconhecido e ainda está por vir. Isso porque, como anuncia o título,

“Futuro”, por meio desse poema, o eu lírico voltar-se-á também para uma reflexão sobre esse

tempo que se aguarda.

Chegamos, então, à última estrofe do poema, o desabrochar de uma reflexão sobre a

natureza do tempo que teve sua origem no processo contemplativo de uma imagem descrita

na primeira estrofe. “Dureza de antecipações / com que o canto mais motivado / pela sombra

declinará o meu medo / desse futuro / onde caminharem só” (QUINTAIS. 2017 p. 161). Com

esses versos, o sujeito poético volta-se à cena inicial das matérias que gravitam no ar dessa

cidade revelando que, do enquadramento escolhido, ele recebe estímulos subjetivos que o

fazem parar e reparar nos pequenos pontos de fricção desses volumes onde ficam evidentes

indícios do movimento do homem e do tempo. Essa imagem poética é uma tentativa de reter a

dureza das antecipações do que ainda está por vir. Mas para além disso, ela também revela

que apesar do medo antecipado desse futuro, há um “canto mais motivado pela sombra”

(QUINTAIS. 2017 p. 161) que será capaz de auxiliar esse sujeito a resistir e superar o seu

fado de caminhar sozinho no futuro. Isso porque o sujeito poético, através da observação,

encontra – ou reencontra – a possibilidade de uma nova perspectiva sobre o seu próprio

futuro. Mas é através da linguagem poética que ele consegue transmitir a opacidade da cena

enlouquecida “pela exasperação / das imagens que gravitam já / na matéria do ar”

(QUINTAIS. 2017 p. 161). Imagem e linguagem, nesse poema, fundem-se à medida que os

versos do poema passam a tentar descrever algo.

Outro ensaio fotográfico muito interessante de Quintais sobre ruínas e fim é Staircase.

A palavra de língua inglesa staircase, título do ensaio, significa escadaria e está relacionada

diretamente às 24 fotografias que compõem a obra. Nelas, o poeta-fotógrafo seleciona 24

fragmentos e ângulos diferentes de uma velha escada de um antigo armazém de

eletrodomésticos. Com essas fotografias, o poeta-fotógrafo nos coloca diante de ângulos da

estrutura física de uma escada que se encontra abandonada perto de um antigo armazém e de

uma estrada. Desse objeto comum o artista busca enfatizar e focalizar seus aspectos ruinosos

que se encontram no mesmo plano que uma natureza viva que cresce ao redor das ruínas da

escadaria em degradação, uma paisagem com valor poético. Acerca do valor poético do

espaço, Bachelard, em A poética do espaço (1993), promove uma reflexão poética sobre a

realidade e a percepção dela através da relação entre o indivíduo e os espaços físicos das

edificações arquitetônicas, em especial pela figura da casa. Por meio da leitura dessa obra,

vemos como o ensaísta desenvolve uma teoria psicoemocional sobre os homens e as formas

128

de afeto e sensibilidade estabelecidas entre eles e o espaço que os cerca. Para isso, Bachelard

debruça-se, primeiramente, sobre as imagens poéticas, apontando que estas são subordinadas

a uma transubjetividade porque são capazes de tocar o leitor-observador profundamente em

diversas consciências. Em suas palavras: “Só a fenomenologia — isto é, a consideração do

início da imagem numa consciência individual — pode ajudar-nos a reconstituir a

subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da

imagem” (BACHELARD, 1993, p. 3, grifos do original).

A fenomenologia, por isso, é compreendida como uma ferramenta que impulsiona a

percepção transubjetiva das imagens arquitetônicas apresentadas na literatura, pelas quais

pode-se chegar a uma “fenomenologia da imaginação”. Seguindo essa análise, um “espaço

feliz” são todos os pequenos espaços íntimos aos indivíduos, ou seja, aqueles em que o

homem faz sua morada e vivencia suas experiências individuais e familiares. Desse modo, “o

espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue à mensuração e

à reflexão do geômetra. É um espaço vivido. E vivido não em sua positividade, mas com

todas as parcialidades da imaginação” (BACHELARD, 1993, p. 19). As interações

estabelecidas dentro de um espaço vivido num determinado espaço de tempo são

determinantes para que o homem crie um vínculo afetivo com esse espaço vivido, vínculo este

atravessado por uma relação afetiva de ninho. Nesse sentido, como observa Bachelard, o

tempo também é um dos elementos que atravessam a relação e a percepção do homem e do

espaço vivido porque o espaço é capaz de reter marcas do tempo:

Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário mantém os personagens

em seu papel dominante. Por vezes acreditamos conhecer-nos o tempo, ao

passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da

estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo; que no próprio

passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer “suspender” o voo do

tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a

função do espaço [...]. Aqui o espaço é tudo, pois o tempo já não anima a

memória. A memória – coisa estranha! – não registra a duração concreta, a

duração no sentido bergsoniano. Não podemos reviver as durações abolidas.

Só podemos pensá-las, pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de

qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos

fósseis de duração concretizados por longas permanências. (BACHELARD,

1993, p. 28-29)

Em sua poética do espaço, portanto, no espaço fixado pelas imagens poéticas são

constantemente percebidas marcas do tempo. Isso porque a noção linear da passagem de

tempo é percebida visualmente através de pequenas marcas que esse movimento temporal

129

deixa no ambiente e na paisagem. Esse mesmo movimento linear do tempo não permite que

haja o retorno ao passado, somente podemos acessá-lo por meio de nossas memórias afetivas.

Para que uma imagem poética do espaço possa, então, pungir seu leitor-observador é

necessário que haja elementos visuais que promovam um movimento introspectivo de

reflexão transubjetiva da imagem. Por isso, ao grafar uma imagem do espaço, o artista põe

em evidência essas marcas do tempo no espaço, ou seja, os indícios materiais que fixam no

espaço vestígios visíveis da ação do tempo sobre as coisas do mundo. Ao perceber essas

marcas do tempo deixadas no espaço, o leitor-observador é levado a um movimento interno

de resgate de memórias individuais e coletivas adquiridas no espaço vivido. Ao fotografar a

arquitetura em ruínas, nesse sentido, Quintais aproxima sua produção fotográfica das imagens

poéticas do espaço. Nas fotografias que compõem o ensaio Staircase de Quintais, por

exemplo, a escadaria em estado de degradação tem valor antropológico. Ela carrega

fenomenologicamente marcas da passagem do tempo deixadas pelo desgaste da estrutura

arquitetônica da escada do antigo armazém de eletrodomésticos e pela presença da natureza –

viva – que se alimenta, se desenvolve e cresce em meio a sua ruína. Nessas imagens poéticas,

como veremos adiante, foram fixados um passado, um presente e um futuro, projetados pela

escolha do tema, do enquadramento e dos objetos que compõem a cena fotografada. Observar

atentamente as imagens desse ensaio é, também, refletir sobre o mundo e seus restos, é

compreender a forma como o espaço fotografado conversa com o observador, convidando-o a

perceber que “como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário” (BENJAMIN,

1984, p. 200). Ao observar atentamente essas imagens, somos interpelados por elas, que nos

convidam a viajar internamente em nossa memória e a resgatar nossas experiências

transubjetivas através das marcas deixadas pela passagem do tempo no espaço e impressas

pelo artista.

Vejamos algumas dessas fotografias. Destaco, primeiramente a fotografia que abre o

ensaio fotográfico Staircase. Trata-se da fotografia, abaixo – Figura 16 –, em que podemos

observar, no centro da imagem, uma placa fixada em uma estrutura possivelmente de metal

com as seguintes informações: “ARMAZÉM DE ELECTRODOMÉSTIDOS”, “PONTE DE

EIRAS” e “ADEMIA”. Para além do texto verbal, vemos também um fragmento metálico em

que a placa se encontra pregada e algumas marcas de desgaste e de decomposição. É

interessante perceber que, diferentemente das outras 23 fotografias de Staircase, a primeira

imagem do ensaio não tem como tema a escada.

130

Figura 16 – Staircase41

Fonte: Luís Quintais (2008)

O que vemos, então, é apenas um pequeno fragmento da paisagem observada pelo

poeta-fotógrafo, da qual o artista escolheu pôr em foco a placa quebrada que nomeia o espaço

em que ele se encontra. Ponte de Eiras fica em Portugal, mas especificamente na cidade de

Coimbra, que curiosamente é a cidade em que Quintais vive e trabalha, como professor de

Antropologia na Universidade de Coimbra. Trata-se, portanto, de um espaço urbano

reconhecido e comum ao artista. No entanto, dentre todos os cenários de influência histórica e

turística que compõem a paisagem da cidade portuguesa, como a arquitetura da Universidade

de Coimbra, a Biblioteca Joanina ou as ruínas de Conímbriga, por exemplo, o filtro cultural

do olhar fotográfico de Quintais seleciona um cenário banal que muitas vezes poderia passar

despercebido por olhares desatentos no movimento natural da vida. Nesse sentido, a imagem

capturada pelas lentes das câmeras do artista focaliza um delimitado objeto temático como

“horizonte interno” da paisagem, excluindo outros elementos que compõem o “horizonte

externo” dessa mesma paisagem.

Como observa Collot (2012), a percepção visual de uma paisagem é delimitada por

dois fatores básicos: 1) o indivíduo e 2) a condição de relevo da paisagem. Com base nisso, o

ensaísta define duas formas de manifestação visual da paisagem: o “horizonte externo” de

uma paisagem, que seria uma circunscrição espacial da paisagem em uma linha até um

determinado ponto em que nada mais se torna visível, ou seja, é todo um determinado

41 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,

disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/

131

enquadramento de uma paisagem que qualquer olhar consegue observar até que não se

consiga ver geograficamente mais nada. E o “horizonte interno” da paisagem, que

corresponde a um campo espaço-visual delimitado do “horizonte externo” da paisagem por

um ponto de vista individual, sendo, então, um fragmento determinado pelo campo de visão e

observação subjetivo do espectador no espaço. Ocorre ainda, na fotografia inicial de

Staircase, que as lentes da câmera se tonam uma possível terceira manifestação da paisagem

uma vez que, do “horizonte interno” percebido pelo fotógrafo, a câmera fotográfica promove

outro recorte delimitado pelas capacitações técnicas do aparelho.

Nesse terceiro recorte visual da paisagem há, ademais, a presença de fragmentos de

objetos em estado de ruinoso. O poeta-fotógrafo recorta – do que poderia ser o muro de um

antigo armazém de electrodomésticos em Pontes de Eiras, Coimbra – o objeto que nomeia o

espaço, possibilitando ao observador da imagem o resgate e o preenchimento das lacunas do

espaço que esse recorte fotográfico promoveu. Com isso, “diante de uma foto, a consciência

não toma necessariamente a via nostálgica da lembrança (quantas fotografias estão fora do

tempo individual), mas, sem relação a qualquer foto existente no mundo, a via da certeza: a

essência da Fotografia consiste em ratificar o que ela representa” (BARTHES, 2015, p.72).

Em Staircase a fotografia inicial, por isso, não procura necessariamente gerar um movimento

subjetivo e memorialístico no observador, mas ratificar a sua presença ao passo que recorta e

nomeia o recorte da paisagem obtido pela imagem técnica. Ao ratificar a sua presença, no

entanto, o observador é guiado a uma reflexão mais oculta devido à presença de marcas de

danificação e decomposição no objeto fotografado. Perceber essas marcas de um estado de

desgaste na paisagem faz que o tema fotográfico se abra e se desdobre, revelando, então, uma

face oculta desse objeto.

Para Collot, “todo objeto percebido no espaço comporta uma face oculta, que, se

escapa ao olhar, não deixa de ser levada em conta pela inteligência perceptiva para determinar

o sentido próprio do objeto” (COLLOT, 2012, p.15). Isso quer dizer que, no processo de olhar

e compreender cognitivamente o objeto presente no espaço, primeiramente, nosso corpo

estabelece uma relação de familiaridade com esse objeto. Isso acontece durante o processo

biológico de visão humana, pelo qual o sistema óptico humano fotografa uma imagem da

realidade através da recepção dos raios luminosos, enquanto o nosso sistema nervoso

intercepta e carrega essa informação visual e luminosa para ser decodificada em nosso cérebro

a partir de concepções individuais e coletivas adquiridas ao longo de nossa formação humana.

Em função disso, “se eu me atenho à parte desta mesa que se oferece neste instante ao meu

132

olhar, perceberei um pedaço de madeira, uma prancha. É na medida em que eu relaciono esse

aspecto do objeto a seu “outro lado”, no momento oculto para mim, que o identifico como

“mesa”.” (COLLOT, 2012, p.15) Essa percepção visual, no entanto, também estará

subordinada e atravessada pelo vazio, este que, por sua vez, faz que sujeito procure, através

das reações sensoriais estimuladas pela paisagem em cena, preencher pela percepção aquilo

que falta à imagem. Como destaca Collot:

Do mesmo modo o “pedaço” / de região que dá a ver a paisagem não é

jamais considerado como absolutamente isolado; eu o percebo precisamente

como “parte” de uma região mais vasta que me compete descobrir, viajando,

ou recolhendo o testemunho de outros/ outras pessoas. Isso porque as falhas

no visível são também o que articula o campo visual do sujeito com o de

outros sujeitos: o que é invisível para mim em determinado instante é o que

um outro, no mesmo momento, pode ver. A estrutura do horizonte da

paisagem revela que ele não é uma pura criação de meu espírito, pertence

tanto aos outros quanto a mim, é o lugar de uma conivência. Ela lhe dá a

espessura do real e o religa ao conjunto do mundo. Enfim, essa limitação do

espaço visível contribui para assegurar a unidade da paisagem. Justamente

porque não se dá a ver por completo, a paisagem se constitui como

totalidade coerente; ela forma um “todo” apreensível “de um só golpe de

vista”, porque é fragmentária. (COLLOT, 2012, p.15)

O “pedaço da região” que a fotografia Staircase dá a ver somente é percebido como

uma parte de um antigo armazém de electrodomésticos em Pontes de Eiras, Coimbra, porque

essa imagem carrega em si testemunhos visuais que ratificam essa percepção. Mas, para além

da observação espacial, há na imagem elementos que evocam sensações como a melancolia.

Isso ocorre, principalmente, porque o azulejo quebrado da placa mostra ao observador que

esse objeto já não passa por manutenção humana há algum tempo. Além disso, há a presença

de musgo, uma natureza que se deposita, cresce e se alimenta dos detritos fixados no muro de

metal com o passar do tempo. O espaço da paisagem é apresentado ao observador, conquanto,

como um fotograma lírico no qual podemos observar temas comuns à prática literária de

Quintais. E o enquadramento da paisagem obtido pelo olhar antropológico de Quintais,

portanto, aproxima-se não só de uma manifestação estética, mas também de uma

manifestação lírica. Como propõe Collot, perceber a paisagem é, semelhante ao que analisa

Bachelard (1993), compreender que entre o indivíduo e o espaço há relações sensoriais que

direcionam a forma como este indivíduo vê, sente, experimenta e interpreta

transubjetivamente o espaço poético:

133

E por não ser a visão da paisagem apenas estética, mas também lírica, é que

o homem investe, em sua relação com o espaço, nas grandes direções

significativas de sua existência. A busca ou a escolha de paisagens

privilegiadas são uma forma de procurar o eu. Toda preferência sensível

remete a escolhas de existência, como o demonstram, entre outros estudos, a

psicanálise existencial de Sartre e o inventário de formas e matérias

realizado por Bachelard. A noção de paisagem também pode ser utilizada

pela crítica temática para designar o conjunto de escolhas sensoriais, capazes

de revelar fortes atitudes existenciais de um autor, “as coordenadas pessoais

de uma estadia”, o “registro pessoal do desejável e do indesejável”.

(COLLOT, 2012, p. 22-23)

É por isso, portanto, que o ensaio fotográfico Staircase carrega traços de um filtro

cultural – e por que não lírico? – do poeta Luís Quintais. O “horizonte interno” escolhido para

compor a cena fotografada na imagem de abertura do ensaio revela, também, ao observador

elementos líricos que serão observados nas outras fotografias que compõem Staircase. Tais

elementos, que tomam forma através das ruínas e das marcas do tempo deixadas sobre objetos

na paisagem, incentivam o observador a experimentar a imagem do espaço a partir do recorte

crítico dessa paisagem proposto pelo olhar meditativo do poeta-fotógrafo. Este que observa,

analisa, seleciona e fragmenta um horizonte interno tomando como tema fotográfico um

determinado objeto do espaço cuja função é transmitir ao observador um conjunto de escolhas

estéticas e sensoriais inerentes a sua prática poética, como “coordenadas pessoais de uma

estadia” ou “registro pessoal do desejável e do indesejável” (COLLOT, 2012, p. 23). Por isso,

como veremos na próxima fotografia desse ensaio, os ângulos e os enquadramentos da

escadaria – outros “horizontes internos” recortados pela câmera fotográfica de Quintais – são

indícios de uma lírica que dá a ver o mundo sob um viés meditativo e antropológico das

ruínas da paisagem. Tal como pelas palavras de seu poema, o poeta, nessa fotografia, fixa

imagens do espaço que convidam o leitor-observador a transitar por essa escada em ruínas, a

descobrir nela uma realidade oculta e transportar essa autorreflexão para a forma como

experimenta e observa, também, a natureza das coisas no mundo.

Esse modo ontológico de ver, sentir, pensar, escrever e foto-grafar poeticamente o

mundo pode ser visualizado no poema “A casa”. Nele, semelhante às fotografias de About

buildings e Staircase, o olhar crítico de Quintais seleciona da paisagem urbana uma

edificação humana para discutir não apenas sobre a nossa percepção do espaço, mas também

sobre os desafios à linguagem poética na tentativa de representar aquilo que se vê. Esse é um

dos aspectos comuns à sua produção lírica, sobre a qual, em resposta a uma das perguntas da

entrevista à Deyse dos Santos Moreira para a revista Abril – NEPA/UFF (2012), o poeta

134

Quintais discorre. A pesquisadora procura exatamente compreender a dimensão do recurso da

descrição na construção de imagens em seus poemas associado à temática da ausência. Em

sua concepção, os versos do poeta conseguem desfazer uma possível contradição entre a

tentativa de descrever algo e a presença de vazios, porque “os traços do descrever, que

deveriam situar-nos nos espaços do poema, ao invés de reforçar os contornos, dissipam

quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para instigar a imaginação”

(MOREIRA, 2012, p. 207). A partir dessa reflexão da pesquisadora, o poeta aponta que sua

obra é desenvolvida a partir de uma “dimensão desconstrutiva e destrutiva”, e que seus textos,

através da percepção visual, tendem à discussão sobre a linguagem e sua “incapacidade de

dizer o mundo”. Segue sua resposta:

Talvez em um certo sentido, porque aquilo que escrevo tem uma dimensão

desconstrutiva, destrutiva, como se procuras se justamente mostrar esse

avesso. Eu gosto de uma definição do que é desconstrução que é dada por

um filósofo e antropólogo francês chamado Bruno Latour, que diz que a

desconstrução é uma forma de destruição em câmera lenta. Aquilo que eu

escrevo tem muito a ver com uma reflexão sobre o papel e a natureza da

linguagem e sobre a opacidade da linguagem, sobre a impossibilidade de ela

em dizer o mundo e, nesse sentido, justamente, a impossibilidade de

preencher o vazio, a ausência. A ideia de que o sentido é contingente,

instável, algo que nós tentamos agarrar, sabendo que não podemos de todo

agarrar, essa é sem dúvida uma das ideias que move o poema. A ideia de que

o poema serve para preencher de alguma forma a ausência, o vazio, sendo,

porém um trabalho sobre a linguagem que nunca está fechado, que existe em

processo. Nesse sentido, aquilo que escrevo é muito reflexivo. A

reflexividade é uma das modalidades mais sublinhadas ao longo do meu

percurso. Trata-se da poesia enquanto música do pensamento. Como um

registo que poderia ser definido como uma meditação lírica[...].42

(QUINTAIS, 2012, p. 207)

Essa é a meditação lírica sobre a natureza representativa da linguagem em

performance pela linguagem poética no poema “A casa”. Nesse poema, é possível

acompanhar tanto pela organização sintática dos versos, como pela escolha lexical o caráter

desconstrutivo da linguagem poética para Quintais:

42 Resposta dada à pergunta: O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é

frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse

sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa

contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,

ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para

instigar a imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu

avesso? feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o

que fazer? para a revista Abril.

135

A CASA

A casa não é o mundo.

Reparte a tristeza. E reparte a alma, escuridão necessária.

A casa não é o mundo. Reparte a máquina quebrada, sem alento já. Reparte a tristeza. E reparte a alma, forma das formas.

A casa não é o mundo.

Uma ferida sem primeira causa, sem origem, génese, arqueologia.

A casa não é o mundo.

Inscrevível hominiforma ferida, aleijada palavra.

(QUINTAIS, 2017, p. 71)

Na primeira estrofe desse poema, composta por apenas um verso, a voz poética diz

uma imagem a partir do recurso estilístico da metáfora: “A casa não é o mundo” (QUINTAIS,

2017, p. 71). O verbo de ligação “ser”, no presente do indicativo, declara um estado aparente

do sujeito verbal “casa”. Nessa afirmação, por sua vez, há uma desconstrução da ideia de que

o espaço residencial – onde o homem estabelece sua morada – seria o mundo. É interessante

observar, nessa construção metafórica, que o sujeito verbal expresso pelo vocábulo “casa”

está associado a um predicativo do sujeito expresso pelo vocábulo “mundo”, numa relação de

contrastes, afirmada pelo advérbio de negação “não” que ressignifica a mensagem declarada

pelo verbo. Mas antes de tudo, o que seria a “casa” e o que seria o “mundo”? A casa é um

espaço mais intimista. Ela pertence a um sujeito e à sua família, que coexistem nesse recorte

geográfico da cidade, “porque a casa é nosso canto no mundo. Ela é, como se diz amiúde, o

nosso primeiro universo. Um cosmos em toda a acepção do termo” (BACHELARD, 1993, p.

25). Em contrapartida, o mundo é o macrocosmo, onde se encontram todas as coisas,

inclusive essa casa a que se refere a voz poética, esse pequeno recorte particular de um espaço

coletivo dividido no mundo.

Por isso, na segunda estrofe do poema, formada agora por dois versos, vemos um

movimento de escrita poética que fragmenta a tentativa de descrever essa imagem da casa.

Isso porque, o poeta lança mão do recurso estilístico do enjambement em francês, que é

136

separação dos termos sintáticos da oração em diferentes versos do texto poético,

diferentemente do que se espera o falante e a gramática com a ordem direta dos elementos

sintáticos. No primeiro verso, ele diz: “Reparte a tristeza. E reparte” (QUINTAIS, 2017, p.

71), terminando esse verso com uma oração incompleta porque o complemento verbal se

encontra no verso seguinte “a alma, escuridão necessária” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Essa

quebra do fluxo sintático está associada, ainda, ao uso da elipse de sujeito presente nos verbos

dessa estrofe, ambos os sujeitos do verbo “repartir”, flexionado na terceira pessoa do singular,

se encontram expressos somente na primeira estrofe – “a casa” – sendo apenas percebido pelo

conhecimento das regras de concordância e coesão. Ambos os mecanismos linguístico-

literários corroboram o tema expresso pela imagem poética da casa, transfigurando essa

experiência visual e reflexiva em experiência linguístico representativa do recorte. Os versos

curtos, as separações sintáticas e o ritmo fragmentado da leitura promovem um movimento ao

texto de recorte semelhante ao que ocorre com a percepção desse espaço particular. E à

linguagem poética cabe a função de tentar reter em palavras, versos e imagens poéticas essas

experiências do vazio.

É o que se vê na estrofe seguinte, em que a voz poética se volta, mais uma vez, à

metáfora apresentada no início do poema, pondo em foco os desafios experimentados nesse

espaço fragmentado. Para isso, ela recorre à anáfora pela repetição do verso “A casa não é o

mundo” (QUINTAIS, 2017, p. 71) na busca por resgatar e fixar essa imagem apresentada

anteriormente. Vemos também o uso do recorte da ordem direta dos termos sintáticos da

oração em versos distintos: “Reparte a máquina quebrada, / sem alento já. / Reparte a tristeza.

E reparte / a alma, forma das formas” (QUINTAIS, 2017, p. 71), que sustenta a hipótese de

que a sujeito poético busca, através da linguagem, deter aspectos e sensações de esvaziamento

adquiridas pela contemplação dos recortes desse espaço. Além disso, os próprios versos desse

sujeito expressam que, do espaço da casa, é percebida também uma face oculta, que escapa ao

olhar e evoca a necessidade de detê-la pela escrita poética para mantê-la constantemente

presente. Isso quer dizer que “o poema serve para preencher de alguma forma a ausência, o

vazio, sendo, porém um trabalho sobre a linguagem que nunca está fechado, que existe em

processo” (QUINTAIS, 2012, p. 207).43 Assim, a casa “reparte a máquina quebrada, / sem

43 Resposta dada à pergunta: “O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é

frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse

sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa

contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,

ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para instigar a

imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu avesso?”

137

alento já” (QUINTAIS, 2017, p. 71), ela [a casa] também “reparte a tristeza. E reparte / a

alma, forma das formas” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Ela [a casa] não é o mundo, ela:

[...] é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as

lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação

é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos

diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes

excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta as

contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem

seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu

e das tempestades da vida. É corpo e é alma. E o primeiro mundo do ser

humano. Antes de ser “jogado no mundo”, como o professam as metafísicas

apressadas, o home é colocado no berço da casa. E sempre, nos devaneios,

ela é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado

esse fato, esse simples dato, na medida em que ele é um valor, um grande

valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. O ser é imediatamente um

valor. A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço

da casa. (BACHELARD, 1993, p. 26).

Esse aspecto arqueológico e afetivo sobre a percepção do espaço da casa pelo sujeito

observador, a que se refere Bachelard, está expresso também nos versos de Quintais, já que o

sujeito poético ao meditar sobre a casa diz que ela [a casa] é “uma ferida sem primeira causa, /

sem origem, génese, arqueologia” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Nesses versos, é possível

visualizar o que Bachelard chama de devaneio. Isso porque, através da observação desse

espaço, o sujeito poético é conduzido a integrar e coordenar seus pensamentos, sensações,

lembranças e reflexões. É nesse devaneio que o sujeito poético reencontra o seu passado, o

seu presente e o seu futuro nesse espaço familiar da casa. É, também, pelo devaneio que esse

sujeito poético é estimulado a reencontrar feridas atemporais. E nesse estado de devaneio, no

poema, o sujeito poético repete, mais uma vez a afirmação: “A casa não é o mundo”

(QUINTAIS, 2017, p. 71), exatamente porque ela [a casa] é o seu berço particular do mundo.

Ela é um recorte individual desse mundo atravessado por experiências antropológicas

impressas pelas vivências pelo sujeito ao longo do tempo e de sua morada. E pela linguagem,

talvez, esse sujeito pode ser capaz de traduzir e reter essa experiência em imagem poética,

uma “inscrevível hominiforma / ferida, aleijada palavra” (QUINTAIS, 2017, p. 71). Sendo

assim, o poema “A casa” retrata alguns aspectos comuns tanto à sua produção poética tanto à

sua produção fotográfica em relação à performance de uma poética do espaço. Nos versos

desse poema, vimos como a imagem da casa, uma edificação humana, é posta em exposição

feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o que

fazer? para a revista Abril.

138

em busca de algo que escapa a simples observação desse espaço. Em função disso, a

linguagem poética surge como um recurso lírico pelo qual o sujeito poderia acessar e

preencher mais dinamicamente essa ausência.

Voltemos às fotografias. Tal como pelas palavras em seus poemas, o poeta-fotógrafo

retém um fragmento visual do espaço urbano, que convida o leitor-observador a transitar por

espaço, a descobrir uma realidade oculta à imagem do espaço urbano e dar início ao devaneio:

Figura 17 – Staircase44

Fonte: Luís Quintais (2008)

Antes de tudo, essa fotografia – como a maioria das que compõem Staircase – tem

como tema fotográfico uma escadaria. As escadarias são objetos arquitetônicos que carregam

uma importância não só estrutural como também simbólica. Como destaca Silva & Calado

(2005), as escadarias promovem a ligação e a comunicação de níveis e planos diferentes de

uma construção arquitetônica. Seguindo esse princípio, a arquitetura compreende como andar

um nível da planta que é projetado acima ou abaixo do piso de um edifício, ou seja, acima ou

abaixo do rés do chão. O rés do chão, por sua vez, é que se compreende como pavimento, o

plano de piso de uma obra cuja função é sustentar a estrutura do edifício. Se entendemos,

então, que todas as edificações seguem como primeiro nível o rés do chão, a função objetiva

de uma escadaria, de fato, torna-se possibilitar a ligação e a comunicação entre os planos

distintos de uma construção, viabilizando, com isso, a movimentação humana nesse espaço.

44 As fotografias de Luís Quintais podem ser encontradas tanto em sua página na plataforma virtual Flickr,

disponíveis pelo link: https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/

139

Ao passar por uma escadaria, o sujeito torna-se capaz de transitar entre os espaços físicos de

uma edificação com mais de um andar, seja ele subterrâneo, como os porões, seja ele acima

do rés do chão.

Essa mesma possibilidade de movimentação – ascendente ou descendente – confere às

escadarias uma noção simbólica (e por que não poética?). A partir dos séculos XV e XVI na

época dos castelos, por exemplo, a inserção de escadarias no espaço interior das edificações

para a ligação de seus níveis estava intimamente associada à afirmação de uma posição social.

Durante esse período, era comum que o indivíduo que possuísse moradas compostas por

grandes escadarias que ligavam o hall de entrada aos andares superiores, como os salões

nobres, demostrassem através desse objeto arquitetônico sua posição social de prestigio dentre

os demais integrantes da sociedade. Ter uma grandiosa e belíssima escada foi, durante muito

tempo, um símbolo de ascensão social. Sendo, inclusive, esse direcionamento ascendente das

escadas associado à fenomenologia do espaço por Bachelard, ao perceber que o sujeito reage

transubjetivamente à observação dos espaços com os quais há alguma relação de

familiaridade, como a casa que é o berço desse sujeito no mundo, onde pode haver a presença

de escadas que ligam os andares. Esse movimento, por sua vez, somado às experiências

vividas e adquiridas nesses espaços, faz que o objeto escada traga de volta ao observador

memórias e histórias:

A escada que vai até o porão, descemo-la sempre. É a sua descida que

fixamos em nossas lembranças, é a descida que caracteriza o seu onirismo. A

escada que sobe ao quarto, nós a subimos ou a descemos. É uma via mais

banal. É familiar. O menino de doze anos faz escalas de subida, ensaiando

lances de três e de quatro degraus, tentando lances de cinco, mas gostando

mais de subir de quatro em quatro. Subir uma escada de quatro degraus, que

felicidade para os músculos! Enfim, a escada do sótão mais abrupta, mais gasta, nós a subimos sempre.

Há o sinal de subida para a mais tranquila. Quando volto a sonhar nos sótãos

de outrora, não desço mais. (BACHELARD, 1993, p. 46)

O olhar antropológico de Quintais, no entanto, põe em foco na fotografia Staircase

esse mesmo objeto de movimentação, a escada, porém, agora, vemos uma escada que se

encontra em estado de desuso, desinteresse e desprezo. A degradação da escada na Figura 17

se choca com a fenomenologia da escada da casa, usada para alcançar andares diferentes seja

pelo movimento de ascender, seja pelo movimento de descender, apontada por Bachelard.

Isso acontece já que essa escada fotografada por Quintais se encontra em estado de

140

decadência, abandono e inutilidade, portanto, sua função de auxiliar um sujeito a chegar a

espaços não pode mais ser executada. Na Figura 17 – o que vemos, desse modo, é a

desconstrução desse antigo símbolo de poder e status socioeconômico das casas ricas e dos

palácios, esse objeto familiar e fenomenológico, descrito por Bachelard, porque o que se vê,

agora, é uma escada de metal, um mobiliário urbano, uma espécie de passarela em ruínas.

Através do seu estado de abandono e decomposição, essa fotografia dá ênfase exatamente a

essa noção de perda, vazio e ausência, uma vez que o desgaste também revela a sua não

serventia, a sua inutilidade para o homem.

O objeto selecionado do espaço que compõe o horizonte interno do poeta-fotógrafo, à

vista disso, em vez de chamar atenção pela sua grandiosidade e beleza, interessa em

decorrência da coexistência harmônica de elementos contrastantes. Vemos, no foco da

fotografia, uma antiga escadaria de metal deixada perto de uma via urbana – provavelmente

próxima ao antigo armazém de electrodomésticos em Ponte de Eiras, Coimbra. Em segundo

plano, percebemos também a presença de pedaços quebrados dessa escadaria amontoados e

sobrepostos irregularmente. Com o olhar mais atento e analítico, notamos que há ainda

pequenas marcas deixadas sobre os escombros da escadaria, há pequenos pedaços do

esqueleto da escada sem lascas de tinta, marcas de ferrugem em suas extremidades e os seus

degraus estão desgastados. Além disso, observamos a presença da grama que cresceu entre os

escombros da escadaria e sobrevive por entre a [des]construção humana. Esse objeto

decadente, portanto, chama o olhar do observador a uma experiência reflexiva sobre o

abandono, a perda de função ou utilidade, a ausência do humano nele, mas também sobre o

que sobrevive apesar disso.

No tema fotográfico, o Spectator, dessa forma, percebe a morte pelo esqueleto

abandonado da escada, mas também a vida pela natureza que cria morada em suas ruínas.

Somos convidados, também, a pensar sobre as concepções de poder porque ao invés de buscar

por uma escada clássica na arquitetura, na literatura e nas artes plásticas, que eram símbolo de

um lugar aurático, agora é visto na paisagem fotografada pelo poeta-fotógrafo um objeto em

detritos. Do passado ao presente, da serventia à inutilidade, do uso ao abandono, da morte à

vida, a fotografia de Quintais realça que todas as coisas no mundo vão terminar, mas que

desse mesmo fim haverá algo que sobrevive desses destroços. E o poeta-fotógrafo seleciona

intencionalmente esses objetos fotográficos porque através da observação deles somos

capazes de – tal como pelas suas imagens foto-grafadas pela linguagem poética – transpor a

imagem em análise crítica da natureza das coisas, das relações e das interações no mundo. O

141

fotograma lírico de Quintais, por isso, funciona como uma espécie de escadaria que liga o

observador a sensações transubjetivas e, e a imagem fotografada convida o leitor, como pelas

palavras dos poemas, a alcançar esse algo. Como descreve Bachelard:

As palavras — eu o imagino frequentemente — são pequenas casas com

porão e sótão. O sentido comum reside no nível do solo, sempre perto do

"comércio exterior", no mesmo nível de outrem, este alguém que passa e que

nunca é um sonhador. Subir a escada na casa da palavra é, de degrau em

degrau, abstrair. Descer ao porão é sonhar, é perder-se nos distantes

corredores de uma etimologia incerta, é procurar nas palavras tesouros

inatingíveis. Subir e descer, nas próprias palavras, é a vida do poeta. Subir

muito alto, descer muito baixo; é permitido ao poeta unir o terrestre ao aéreo.

Só o filósofo será condenado por seus semelhantes a viver sempre no rés-do-

chão? (BACHELARD, 1993, p. 155)

As palavras do poeta, nesse sentido, permitem ao leitor alcançar algo que escapa

através da leitura do poema. Semelhante à escada, elas [as palavras do poema] têm a função

de auxiliá-lo a movimentar-se pelas imagens poéticas e seguir a reflexão propostas pela voz

lírica. Elas também funcionam como uma tentativa de abstrair e representar as experiências

transobjetivas do observador do espaço urbano presente em versos. De modo análogo, ocorre

com a câmera fotográfica. Em Staircase, apesar de a escada estar abandonada e sem vida útil

num espaço familiar, ela também funciona poeticamente como um mecanismo de reflexão. A

proposta de Quintais, ao fotografar objetos e edificações humanas em estado decadência no

espaço urbano, é também movimentar o leitor-observador, como pelas palavras do poema,

por esses objetos ora sem finalidade, ora abandonados, ora em estado de ruínas em busca de

uma análise poético-visual e ontologia evocada pelo seu horizonte interno impresso nas cenas

capturas. A fotografia, então, acaba por jogar com os limites representativos da linguagem, e a

escada, que se encontra em primeiro plano na imagem, dá a ver não só o objeto, mas também

uma realidade oculta a ele.

Essa dialética da imagem pode ser identificada no poema “Subo as escadas, terceiro

andar”, no qual o poeta resgata a imagem de uma escada, que se transforma visual e

sensivelmente à medida que o sujeito poético a observa e a descreve ao mesmo tempo em que

compõe os versos. Nesse visualizar, ainda, a potência fenomenológica da imagem poética,

porque “pelos poemas, talvez mais que pelas lembranças, chegamos ao fundo poético do

espaço das casas” (BACHELARD, 1993, p. 26):

SUBO AS ESCADAS, TERCEIRO ANDAR

142

Subo as escadas, terceiro andar. Assemelham-se a teclados os lances de degraus.

Pianos pretos, de causas mortais. São mortais os pianos. Consentem o luto e a espera, o silêncio, o oco, a espera.

(QUINTAIS, 2017, p. 117)

“Subo as escadas, terceiro andar” é um poema relativamente curto, composto por duas

estrofes e sete versos. No entanto, o que se nota com a leitura, na verdade, é a potência com

que os versos se transformam de linguagem em experiência poético-visual. Isso é possível

visto que o sujeito lírico, já no primeiro verso, que dá título ao poema, descreve uma cena em

movimento: “Subo as escadas, terceiro andar” (QUINTAIS, 2017, p. 117). O leitor é

motivado através desse verso a compor em sua imaginação a imagem de um sujeito que sobe

as escadas internas de uma edificação e chega, finalmente, ao terceiro andar dessa edificação.

Além disso, do mesmo modo como esse sujeito se movimenta nessa escada, o poema também

se movimenta, já que, à medida que a voz poética sobe essa escada, os seus degraus e seus

lances transfiguram-se pela sua experiência subjetiva com esse espaço. Sendo assim, a

descrição da imagem poética também se transforma, porque “Assemelham-se a teclados / os

lances de degraus” (QUINTAIS, 2017, p. 117). Através desses versos finais da primeira

estrofe do poema, a voz lírica anuncia a transição imagética que será apresentada ao leitor na

estrofe seguinte. Nesse processo, o leitor passa a modificar em sua imaginação a cena descrita

inicialmente de um sujeito subindo uma escada até o terceiro andar, uma vez que os lances de

degraus dessa escada se tornam teclas de um piano.

Na segunda estrofe de “Subo as escadas, terceiro andar”, encontram-se, então, sujeito

poético e leitor à frente de uma cena integrada por “pianos pretos, de causas mortais”

(QUINTAIS, 2017, p. 117) que substituem os lances de degraus da escada. Essa

transformação descrita pela linguagem poética demostra-se como um mecanismo lírico

encontrado por esse sujeito para deter em imagens poéticas aquilo que sente frente a esse

espaço. A linguagem poética, desse modo, é uma forma de materializar os sonhos, as

memórias e a imaginação, uma imaginação dinâmica que impulsiona o significado dos signos

linguísticos a se movimentarem entre a etimologia e a percepção, entre o real e o imaginário,

entre o que vê e o que se sente. É por isso que os versos seguintes são reflexos das sensações

regatadas por esse sujeito que observa esse espaço: “São mortais os pianos. / Consentem o

143

luto e a espera, / o silêncio, o oco, a espera” (QUINTAIS, 2017, p. 117). A escada, que se

transmuta em piano, é, ainda, um indício da história, da ausência, do luto, do silêncio e da

espera. Ela é o reflexo de que entre o indivíduo e esse espaço há relações sensoriais que

definem como ele experimenta e interpreta a escada desse ambiente partir da sua própria

história.

Nesse contexto, ao grafar a imagem da escada, o poeta-fotógrafo põe em cena uma

tentativa de reter pela linguagem poética. Isso num movimento ascendente ou descendente

que segue pelos versos do poema, como o sujeito poético que sobe – ou desce – as escadas do

terceiro andar à procura de algo que foge à visão, porque “o poema serve para preencher de

alguma forma a ausência, o vazio, sendo, porém um trabalho sobre a linguagem que nunca

está fechado, que existe em processo” (QUINTAIS, 2012, p. 207).45 Tal como nas fotografias,

pelas palavras do poema, o poeta, fixa imagens que convidam o leitor-observador vivenciar

essa movimentação de ascensão e descensão pelos degraus da reflexão poética. Transitar por

essas escadas – ora desprezadas, ora esquecidas, ora reconhecidas – é procurar por marcas do

tempo no espaço, os indícios materiais que fixam vestígios visíveis da história no espaço.

Quintais, nesse sentido, propõe ao seu leitor-observador fotogramas líricos que realçam a

importância da contemplação. Ao mesmo tempo, ele põe em tensão a cena representada a esse

leitor-observador já que a linguagem – seja a poética seja fotográfica – ainda é incapaz de dar

conta da potência de abstração das sensações humanas. Dessa forma, o que vemos na

produção lírica-visual de Quintais é também, um constante esforço humano em agarrar algo

que é instável, porque se encontra em nosso lado mais íntimo e subjetivo, “mesmo sabendo

que não podemos de todo agarrar” (QUINTAIS, 2012, p. 207).46

45 Resposta dada à pergunta: “O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é

frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse

sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa

contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,

ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para instigar a

imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu avesso?”

feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o que

fazer? para a revista Abril. 46 Resposta dada à pergunta: O recurso da descrição na construção das imagens em seus poemas é

frequentemente apontado pela crítica. Por outro lado, está bem presente neles a temática da ausência. Nesse

sentido, poderia ser contraditório o recurso da descrição tecer uma temática de vazios. Parece-me que essa

contradição se desfaz na medida em que os traços do descrever, que deveriam situar-nos nos espaços do poema,

ao invés de reforçar os contornos, dissipam quaisquer realces, dando-nos uma ilusão de apreensão para

instigar a imaginação. Você partilha dessa ideia de que o ato de descrever em seus poemas se concretiza em seu

avesso? feita por Deyse dos Santos Moreira ao poeta Luís Quintais na entrevista O mundo já acabou, e agora o

que fazer? para a revista Abril.

144

3.3 Persigo os fragmentos: ao constante encontro da fotografia

Nos momentos anteriores desta dissertação, analisamos como o nosso poeta português

contemporâneo, Luís Quintais, utiliza imagens como técnica e estética para a produção de

textos poéticos. Com a linguagem literária, ele cria ecfrasticamente imagens poéticas que

funcionam como fotografias antropológicas do mundo postas em exibição e análise para seu

público leitor. Esse constante recurso literário de produção de imagens poéticas, como vimos,

promoveu uma crescente aproximação entre a prática literária de Quintais e uma recente

prática fotográfica. Isso devido à percepção da presença de uma teoria do ver que atravessa a

sua estética literária, a qual o estimulou a buscar nas câmeras fotográficas mecanismos de

transpor visualmente esse olhar lírico sobre o mundo. Em suas fotografias, por isso, os

objetos que fazem parte da composição da cena são apresentados ao observador de modo

semelhante ao que ocorre em seus poemas, uma vez que seu olhar lírico promove o recorte e

a fixação de imagens que dão a ver fragmentos alegóricos da vida humana no espaço urbano

contemporâneo. O seu filtro cultural, nesse sentido, destaca os contrastes e os vazios do

mundo, fazendo que o leitor-observador experimente através da visualização de ruínas do

espaço urbano um devaneio poético.

Sendo, então, a fotografia uma extensão do olhar lírico de Quintais, não raro, imagens

fotográficas tornaram-se, também, parte integrante de seus livros de poesia. Primeiramente,

vimos como fotografias ou imagens plásticas foram introduzidas através da linguagem

poética, ou seja, por um recurso de citação ecfrástica que leva o leitor a resgatar

memorialisticamente a composição visual das cenas descritas, como se observasse uma

imagem foto-grafada pela linguagem verbal. Em A noite imóvel (2017), observamos alguns

poemas que foto-grafam imagens. Nesse mesmo livro, nos encontramos, também, com outras

imagens que foram acrescentadas durante a organização e a edição, fazendo parte da

perigrafia da obra, como uma espécie de advertência visual ao leitor sobre os temas – e

consequentemente sobre as imagens poéticas – aos quais ele será apresentado ao longo do

percurso da leitura. Essa aproximação constante, por sua vez, fez que o poeta começasse a

utilizar fotografias como corpo poético de seus textos, por isso, a fotografia vem se tonando,

também, um objeto poético nas obras literárias de Quintais. Em seus mais recentes livros de

ensaios e poesia, por exemplo, é possível passar pelas páginas e observar não só poemas

meditativos criados através da linguagem verbal, mas também poemas construídos a partir de

fotografias ou de sequências fotográficas. Não se trata, no entanto, de um processo de

145

colagem ou de sobreposição de fotografias e texto verbal, mas de uma progressão temática e

estética feita pela associação – e por muitas vezes dissociação – de textos verbais que dão a

ver seguidos – ou acompanhados – de fotografias que intensificam essa experiência

transubjetiva das imagens observadas que faz pensar “a biografia através de indícios,

sombras, ruínas; a mesma vontade de interrogar a fragilidade, a violência, a memória e a

morte” (QUINTAIS, 2019, s/p.).47

Neste tópico, destarte, proponho um breve caminho de leitura de um dos livros em que

Quintais conjuga textos meditativos e fotografias. O livro é Deus é um lugar ameaçado

(2018) pela editora Huggly Books. A editora não é uma empresa convencional, porque se

trata de um projeto editorial singular que busca fazer a organização e a publicação de livros de

fotografia personalizáveis pelo público leitor. Seus livros não são vistos como um objeto

inerte, comprado para ser lido, depois guardado ou exposto em uma prateleira à espera de uma

nova leitura; mas sim como um objeto vivo, passível a interações subjetivas com o leitor, que

sempre deixará também suas marcas subjetivas na obra. Para a Huggly Books, o leitor é

também co-criador de sentidos e, por isso, pode escrever e modificar como quiser a

aparência, a forma e o conteúdo da obra adquirida. A editora, por exemplo, abre ainda a

possibilidade de que os leitores, após a compra do livro, enviem imagens fotográficas das

modificações feitas por eles. Transformações essas que viabilizam a materialização de livros

únicos. Não é à toa, então, que os Huggly Books sejam impressos numa tiragem bem reduzida

e limitada a 100 exemplares, afinal eles criam a possibilidade de se materializarem em 100

outras obras absolutamente distintas, de acordo com a intervenção e intenção de cada um dos

seus leitores co-criadores, que também escrevem, desenham, pintam ou fazem até colagens

em suas páginas. Huggly Books, portanto, é um projeto editorial artístico que compreende o

livro como um espaço de desconstrução e reconstrução de sentidos através do filtro cultural

de seus leitores, mediado pelo filtro cultural de seus autores. É uma forma reflexiva e

interativa de perceber o objeto livro.

Deus é um lugar ameaçado (2018), em virtude disso, é um livro editorialmente

pensado e projetado para que o leitor interaja com a obra. Isso acontece, principalmente,

porque o objeto livro é composto por doze textos em prosa – ainda não chamaremos de

poemas em prosa porque falaremos mais adiante sobre os limites entre prosa e poesia – e por

cinquenta fotografias, ora em sequência, ora acompanhadas de um texto verbal, ora isoladas.

47 Trecho retirado da seção “Por si mesmo” do blog do poeta Luís Quintais, disponível em:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/bio/

146

Outro fato editorialmente interessante que corrobora essa inter-relação entre leitor e obra é o

fato de, na primeira tiragem desse livro, algumas palavras dos textos verbais terem sido

grafadas em escala de cinza em contraste com as outras que se encontram no padrão de fonte

na cor preta. Cria-se, com isso, uma impressão de que essas palavras no texto passam por um

movimento de ir e vir, aparecer e desaparecer. Nas últimas tiragens, no entanto, todas as

palavras do texto verbal são escritas já em tom de cinza, o que não só dá a ilusão de leveza,

como também simula o acesso às memórias que se encontram esmaecidas na história do

tempo-espaço, como se houvesse uma cortina de véu que separasse o homem em seu presente

daquilo que se vivenciou em seu passado. Um movimento muito semelhante com o das

memórias, que são acessadas através da nossa consciência ora por completo, ora repletas de

lacunas devido à distância temporal a que se encontram do momento presente de

rememoração. Assim o leitor é chamado para experimentar, junto com o movimento da

leitura, metaprocessualmente o texto e as sensações por ele afloradas. Movimento semelhante,

ainda, ocorre com o processo humano de observação, fixação e compreensão de quaisquer

imagens no mundo, já que a visão é subordinada à intensidade de luz: a pouca incidência

luminosa faz que as imagens desapareçam da nossa visão, enquanto muita intensidade faz que

não consigamos distinguir o que vemos. Todas essas escolhas editoriais, dessa forma, fazem

de Deus é um lugar ameaçado (2018) um livro sobre a experiência visual: das palavras, das

imagens poéticas e das fotografias, por vezes diferentes do que ele fazia em termos de objetos

estragados, já que, como veremos adiante, o poeta-fotógrafo passa a fotografar também

detalhes da natureza, como ramos de uma árvore, por exemplo.

Essa estética editorial, ademais, dialoga direta e indiretamente com os temas

fotográficos escolhidos por Quintais, os quais por vezes levam o leitor-observador a

mergulhar no tempo passado e a resgatar experiências individuais e coletivas pela observação

das cenas em exposição. Nesse livro, buscamos observar e percorrer os limites da abstração

das imagens poéticas através da visualização e comparação entre os textos verbais e os temas

fotográficos que o compõem. É um livro que evidencia uma constante teorização do ato de

ver que é colocado em performance durante a obra, seja pela voz que fala nos textos em prosa,

seja pelas imagens fotográficas que realçam, do horizonte interno do espaço, vestígios do

tempo. Isso, pois o poeta-fotógrafo põe em evidência – pela linguagem poética e pela

linguagem visual – vestígios de um mundo marcado pela perda, pela ausência, pela

melancolia e pelo luto. É um livro que demanda do leitor-observador certa sensibilidade

visual e interpretativa uma vez que os limites da imagem – escrita e fotografada – são postos

147

em suspensão para dar a ver, dos restos do mundo, contrates entre a sobrevivência e o fim, o

resgate e a perda, o encontro e o desencontro, a presença e a ausência. É um livro, portanto, de

contrastes imagéticos e editoriais, que fazem do objeto-livro um lugar para se pensar os

limites da criação e representação. Pelas palavras do próprio poeta-fotógrafo:

Deus é um lugar ameaçado é um livro de fotografia? Um livro de poesia?

Um ensaio? Uma ficção? Talvez a palavra ficção seja a mais correcta. Uma

ficção que se organiza em torno de um conjunto de imagens Polaroid para

reflectir sobre o lugar da poesia e da linguagem num mundo em perda. Uma

ficção e um conjunto de imagens que ponderam comentar o mundo como

vestígio ou sinal de algo que, talvez, tenha desaparecido. Um vestígio da

linguagem, da possibilidade de representação, em suma, da possibilidade de

invenção. (QUINTAIS, 2019, s/p.).48

Neste excerto, o poeta evidencia uma problemática que envolve a classificação de seu

livro devido à multiplicidade de funções, objetivos e composição editorial da obra. Em virtude

disso, a escolha pela presença dos textos em prosa aproxima o livro de uma obra do gênero

ensaístico, pela qual a voz do artista orienta o leitor através de uma coleção de reflexões e

meditações sobre o ato de ver. No mesmo plano, a escolha de inserir Polaroides e sequências

temáticas de Polaroides nas páginas de seu livro coloca a obra em paralelo ao livro de

fotografias. No entanto, o próprio Quintais destaca que esse impasse quanto à classificação do

gênero da obra pode ser resolvido pela escolha do termo “ficção”. O termo “ficção” tem como

origem a declinação fictione do verbo latino fictio cujo valor semântico está associado aos

nossos verbos fingir, modelar e inventar. Na literatura, o gênero “ficção” com base nisso,

refere-se às obras literárias em prosa ou em poesia cujos temas foram criados através da

imaginação do autor e do seu olhar subjetivo sobre a realidade. Nas ficções literárias, cria-se,

por exemplo, uma outra dimensão da realidade dotada de faz-de-conta, de simulação e

fingimento. Um fragmento ficcional da realidade em que o Poeta – responsável por esse novo

espaço – torna-se, como já disse belissimamente o grande Pessoa, “um fingidor”. Um fingidor

já que ele “finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”

(PESSOA, 1960, p. 97-98). Como um poeta fingidor, portanto, Quintais organiza uma obra

ficcional que recorta, a partir de um conjunto de Polaroides e de fragmentos reflexivos em

48 Nota de Luís Quintais sobre o livro Deus é um lugar ameaçado (2018) utilizada no círculo de palestras Os

Limites da representação da palavra: Ciclo de oficinas de observação e representação, Esfera CAPC.

Estúdio CAPC, Coimbra, em janeiro de 2019 no exemplar online de divulgação da conferência sobre a obra

poético-fotográfica de Quintais. Disponível em: http://capc.com.pt/site/index.php/pt/deus-e-um-lugar-ameacado/

148

prosa, uma fração da realidade e a põe em exposição através da relação entre a poesia,

linguagem e o mundo.

Nessa realidade ficcional de Deus é um lugar ameaçado (2018), vamos observar

como os limites da linguagem – verbal e visual – tornam-se mecanismos estéticos para

evidenciar vestígios deixados no espaço urbano de algo que foi perdido. Além disso, veremos

como o filtro cultural do olhar do poeta-fotógrafo realça, ainda, com vestígios da linguagem,

vestígios da possibilidade de representação e vestígios da sua – como criador – possibilidade

de invenção, as impressões e as sensações de luto e melancolia vivenciadas num mundo em

perda. O leitor é recebido no livro, primeiramente, com uma fotografia. A primeira Polaroid,

assim como as demais presentes na obra, não tem título, fato que abre o leque de

possibilidades e impressões obtidas pelo leitor ao observar essas imagens sem um

direcionamento especificado pelo artista. Vejamos abaixo:

Figura 18 - Sem título49

Fonte: Luís Quintais (2018)

49 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

149

Essa Polaroid, por sua vez, é acompanhada de dois fragmentos em prosa que

problematizam algumas questões evocadas pela imagem inicial como uma provocação acerca

do que também estará problematizado ao longo da obra. Desse modo, o leitor-observador é

guiado pelos próprios objetos que compõem a cena a refletir sobre o que vê, em paralelo às

meditações do sujeito poético sobre essa imagem, que tentam ampliar o horizonte dessa

fotografia de modo a dar a ver o que se encontra oculto sobre o véu da linguagem

representativa. O que vemos na fotografia são elementos composicionais que fazem parte do

ambiente natural. O enquadramento é um recorte poético feito pela câmera fotográfica do

horizonte interno do artista nesse espaço, pelo qual ele coloca em amostra fragmentos de

diferentes tipos de folhagens.

Alguns aspectos estéticos dessa fotografia inicial chamam atenção do observador à

temática comum que perpassará a obra. O primeiro deles consiste na apresentação visual das

fotografias que compõem o livro, todas as fotografias estão diagramadas como uma Polaroid.

As Polaroides foram uma invenção do físico norte-americano Edwin Robert Land em 1948,

como uma tentativa de responder à pergunta de sua filha sobre o porquê de não se poder,

àquela época, ver a foto logo após o momento de captura da imagem. O físico, que trabalhava

em sua empresa – a POLAROID CORPORATION, fundada em 1937 – desenvolvia uma

espécie de plástico capaz de polarizar a luz, a mesma tecnologia polarizada utilizada para

fazer lentes de óculos, de binóculos, de microscópios etc. Com base em seu trabalho com essa

tecnologia polarizada, ele desenvolveu um processo de fixação instantânea de imagens em

uma pequena chapa de papel polarizado através do transporte de sais de prata em dez

segundos após a captura. A partir disso, foi lançada ao público, em 1948, a primeira câmera

fotográfica instantânea a Land Model 95. Essa câmera portátil era capaz de produzir fotos

instantâneas, sem a necessidade de retirar negativo do aparelho, em apenas 60 segundos. Esse

fato popularizou, entre os fotógrafos amadores e os profissionais, a compra e a utilização de

Polaroides tanto para registrar momentos banais, como para produzir ensaios fotográficos

diferenciados.

Um dos artistas que usaram a Polaroid como mecanismo de criação artístico-

fotográfica foi o paisagista e fotógrafo Ansel Adams, que era reconhecido pelo seu trabalho

fotográfico com imagens em preto e branco. Ele, inclusive, se tornou consultor da empresa

POLAROID CORPORTION e criou um ensaio com imagens do Parque Nacional de

Yosemite, na Califórnia, em 1968, com um modelo especial e mais profissional, presenteado

por Edwin Robert Land, que possibilitava a produção de negativos, diferentemente das

150

câmeras amadoras da Polaroid. Além dele, o artista plástico Andy Warhol compôs um belo

ensaio feito a partir de retratos de celebridades, como Dolly Parton, Arnold Schwarzenegger,

John Lennon e Mick Jagger, capturados com o modelo de câmera instantânea, Big Shot, uma

câmera simples e de plástico produzida pela Polaroid, mundialmente reconhecido. Nessas

obras, a simplicidade e a instantaneidade do processo fotográfico proporcionado pela câmera

Polaroid realçam uma expressividade conquistada por uma espécie de acidente fotográfico.

Isso é possível porque a câmera Polaroid reproduz em apenas 60 segundos uma imagem

pronta da cena que foi fotografada e que não poderá mais ser modificada ou editada pelo

fotógrafo. Dessa forma, formam-se imagens únicas que fragmentam e fixam o instante real,

deixando marcas particulares do olhar criativo dos fotógrafos sobre a cena em observação.

Como discute Sontag, por exemplo, é comum encontrarmos artistas que optam por técnicas

ou câmeras com mecanismos mais tradicionais – ou mecânicos – devido à sofisticação das

câmeras:

[...] à medida que as câmeras se tornam cada vez mais sofisticadas, mais

automatizadas, mais acuradas, alguns fotógrafos sentem-se tentados a

desarmar-se ou a sugerir que não estão de fato armados, e preferem

submeter-se aos limites impostos por uma tecnologia de câmera pré-moderna

– acredita-se que um mecanismo mais tosco, menos poderoso, produza

resultados mais interessantes ou expressivos, deixe mais espaço para o

acidente criativo. (SONTAG, 2004, p. 140)

Assim ocorre nas Polaroides de Deus é um lugar ameaçado (2018), por Luís Quintais,

como vemos na Figura 18. O resultado fotográfico obtido com a reprodução imagética da

natureza pelas Polaroides destaca, por exemplo, o papel – e o olhar – do artista durante o

acidente criativo. Nessa cena, somos convidados a adentrar num momento reflexivo acerca da

imagem, que nos revela a necessidade de parar, contemplar e meditar sobre o que vemos. A

escolha de representar o tema natural através de uma imagem preto e branca dialoga com a

proposta do livro de contemplar os fragmentos imagéticos através de outros olhos. A escala de

preto e branco resgata também a memória e as experiências das primeiras fotografias, que

tradicionalmente eram reproduzidas sem coloração. A natureza estática denuncia a suspensão

de uma noção de movimento do tempo e promove a sensação de melancolia. Tudo isso

alcançado graças à instantaneidade das Polaroides e do processo mecânico de fixação e

impressão de imagens – tais como nas placas da caixa preta de Daguerre – que abrem espaço

para o acidente criativo.

151

Um dos textos reflexivos sobre a imagem que acompanha a Figura 18 em Deus é um

lugar ameaçado (2018) explica, exatamente, essa importância estética da escolha das Polaroid

na composição do livro. Trata-se do segundo fragmento verbal do livro, no qual podemos

encontrar algumas das questões que motivaram o processo de criação da obra e, sobretudo, a

sua escolha estética. Nas palavras do sujeito poético, que se misturam a uma outra voz citada

ao longo do texto:

Escreveste há muito tempo que as Polaroid são ícones. E adiante escreveste:

“Fazem-me lembrar os egípcios da Bacia de Fayum a pintarem rostos em

painéis que depois colocavam em múmias, a preencherem o vazio da morte

com a altivez e a serenidade de biografias anónimas. Retratos, todos eles

meus onde a dor é a função de uma distância. Melhor seria dizer que se trata

de uma interpelação à natureza do vestígio.” Responder-te-ia, hoje, se

pudesse, que, ao debruçar-me sobre estas imagens, vejo-te a exercer um

trabalho de fuga. Uma dúvida ensombrava-te, uma hesitação grave que

haveria de condenar-te à mais pura melancolia. Reúno as tuas Polaroid.

Reconheço que só há traição no ver, mesmo no ver mais atento e demorado.

Que estarás sempre só neste país acidentalmente delimitado pela luz. Assim

é este livro. O relatório da solidão. (QUINTAIS, 2018, s/p.)50

Esse texto em prosa, tal como vimos na produção poética de Quintais, tem a potência

de [co]mover o leitor. [Co]move, primeiramente, porque faz parte de um conjunto de

fragmentos – ora contínuos, ora descontínuos – que compõem essa obra. [Co]move, também,

porque ao se aproximar da fotografia inicial – talvez para traduzi-la, talvez para explicá-la –

vemos ainda a incompletude da linguagem representativa. E [co]move, além disso, porque

através das palavras ficamos diante de outras imagens poéticas que por sua vez reverberam a

potência meditativa dessas imagens que levam à necessidade de escrever – ou ainda descrever

– o que se vê para apreender o que se sente. E a linguagem poética dialoga muito bem com

esse movimento reflexivo e de resgate de memórias anteriores à observação da imagem, que é

encenado em Deus é um lugar ameaçado (2018) pela voz meditativa e pelos fragmentos

fotográficos. O sujeito poético, já nos primeiros períodos dessa representação poética do seu

próprio pensamento, resgata uma voz anterior que já escrevera sobre a habilidade iconográfica

das Polaroides pelos recursos da citação indireta e direta:

Escreveste há muito tempo que as Polaroid são ícones. E adiante escreveste:

"Fazem-me lembrar os egípcios da Bacia de Fayum a pintarem rostos em

50 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

152

painéis que depois colocavam em múmias, a preencherem o vazio da morte

com a altivez e a serenidade de biografias anónimas. Retratos, todos eles

meus onde a dor é a função de uma distância. Melhor seria dizer que se trata

de uma interpelação à natureza do vestígio. (QUINTAIS, 2018, s/p.) 51

Essa voz não nomeada mistura-se com o discurso poético, num constante diálogo

metaprocessual pelo qual o sujeito lírico discorre sobre o projeto editorial do livro Deus é um

lugar ameaçado (2018). Isso acontece já que esse sujeito se volta a essa voz citada,

transformando-a em interlocutor, como se houvesse de fato uma conversa entre essa tradição

teórica e o criador do livro: “Responder-te-ia, hoje, se pudesse, que, ao debruçar-me sobre

estas imagens, vejo-te a exercer um trabalho de fuga. Uma dúvida ensombrava-te, uma

hesitação grave que haveria de condenar-te à mais pura melancolia. Reúno as tuas Polaroid”

(QUINTAIS, 2018, s/p.).52As Polaroid, como objeto poético de Quintais, carregam em si essa

alegoria do vazio, da melancolia e da morte. Elas são uma captura instantânea de algo na

tentativa [in]constante de fazer esse algo permanecer. Mas ao mesmo tempo elas também

capturam vestígios da ausência. Elas são uma forma de preencher o vazio encenada pelo

sujeito poético no projeto editorial de Deus é um lugar ameaçado (2018) pelas Polaroides e

pelos fragmentos poéticos, que constantemente retorna a essas fotografias trazendo novas

inquietações: “Reconheço que só há traição no ver, mesmo no ver mais atento e demorado.

Que estarás sempre só neste país acidentalmente delimitado pela luz” (QUINTAIS, 2018,

s/p.).53 Pelas páginas do livro, então, estaremos diante de fotogramas líricos que encenam a si

próprios, num jogo metalinguístico onde as fotografias são acompanhadas por meditações

sobre o ato de ver, num progressivo diagnóstico da ausência: “Assim é este livro. O relatório

da solidão” (QUINTAIS, 2018, s/p.). 54

“Assim é o livro: sabe que ver é trair, que a imagem não assegura a permanência de

nada, que a morte é definitiva, e só a solidão certa; mas resta-lhe este gesto desesperado —

reunir imagens. Eis o resgate possível.” (EIRAS, 2019, p. 228), diz Pedro Eiras sobre esse

caráter metaprocessual de Deus é um lugar ameaçado (2018) em sua resenha para a revista

Abril NEPA/UFF. O crítico – e também poeta – observa que existe uma travessia comum

entre as Polaroides e os textos em prosa desse livro porque ora a continuidade temática dessas

imagens dialoga com as reflexões poéticas presentes nos trechos verbais; ora essas reflexões

poéticas propõem-se a explicar, com a linguagem verbal, o que se vê e o que se percebe

51 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 52 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 53 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 54 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

153

dessas fotografias a partir do resgate de outras reflexões sobre o ato de ver. “Lugares

ameaçados, obscuridade e medo da sombra, fragilidade de Deus, espectralidade,

fantasmagoria, devir — como dar conta destas ínfimas experiências, no limiar do

impercetível? Decerto por isso não se pode, nunca, acabar de descrever este livro” (EIRAS,

2019, p. 229). Dessa forma, é como se a linguagem poética fosse um recurso utilizado por

esse sujeito para preencher aquilo que a fotografia não consegue representar. Não obstante,

essa mesma linguagem poética é posta em tensão conquanto também não consegue dar conta

de todas as abstrações movimentadas pela imobilidade da imagem fotográfica:

Este texto sobre ruínas encena-se a si próprio como uma ruína que,

misteriosamente, continua a falar (mas nunca dirá tudo; a incompletude é-lhe

necessária, é ela que o constitui como ruína, e uma ruína não pode ter uma

voz inteira). O que importa agora é pensar que a leitura do livro é

determinada por este incipit, que a visão das imagens parte da leitura destas

linhas, e estas linhas falam de perda. (EIRAS, 2019, p. 227-228)

Em outra Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018), o tema do fim é evocado

pela cena formada por objetos que resgatam a memória da morte na cena fotografada. Trata-se

da Figura 19, que segue abaixo, pela qual nossos olhos são motivados a contemplar a captura

de uma cena que dá a ver, como realidade oculta à imagem fixada pelas lentes da câmera,

recordações da morte. O que vemos? São pequenos retângulos com algumas inscrições, são na

verdade, um grande conjunto de lápides funerárias expostas como em uma vitrine à espera da

observação dos olhares passageiros que caminham pela rua. O que sentimos? A proximidade

do fim, o reencontro com o passado já esquecido, a memória mais longínqua de algo já

perdido. É uma imagem que diz muito, no entanto, que nunca dirá tudo. Ela é um recorte

subjetivo e proposital de algo na inútil tentativa de fazê-lo permanente, haja vista que “a

incompletude é-lhe necessária, é ela que o constitui como ruína, e uma ruína não pode ter uma

voz inteira” (EIRAS, 2019, p. 227-228).

Vejamos, portanto, a Polaroid:

154

Figura 19 - Sem título55

Fonte: Luís Quintais (2018)

Uma lápide, como as fotografadas por Luís Quintais na Figura 19, é um marcador,

geralmente feito de pedra, colocado sobre uma sepultura. Na maioria dos casos, ela contém o

nome do falecido, a data de nascimento e a data de falecimento inscritos, junto com uma

mensagem pessoal ou oração – comumente conhecida como epitáfio –, mas pode também

conter alguma peça de arte funerária, como os detalhes em relevo de pedra que se pode

observar na fotografia. As lápides, como os memoriais aqui já discutidos, também funcionam

como um lugar onde se pode vivenciar o luto porque as lápides representam, naquele espaço

do túmulo, uma imagem do que foi durante a vida o sujeito ali sepultado. As lápides são um

ponto de interseção entre a presença e a ausência, entre a vida e a morte, entre o esquecimento

e a lembrança. Em virtude disso, nós, observadores, quando diante dessa fotografia das

lápides, permitimo-nos vivenciar também o vazio refletido por elas ou permitimo-nos apenas

à percepção superficial, vendo somente aquilo que a constitui. Ou seja, essa imagem de

objetos que procuram eternizar algo que já se foi pode comover quem a vê, levando às

experiências de luto e melancolia, quando se permite resgatar algo do passado subjetivo e da

55 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

155

história individual e coletiva. Acerca disso, Didi-Huberman, ao observar a fotografia da lousa

funerária do abade Isarn56 afirma:

Por um lado, há aquilo que vejo do túmulo, ou seja, a evidência de um

volume, em geral, uma massa de pedra, mais ou menos geométrica, mais ou

menos figurativa, mais ou menos coberta de inscrições: uma massa de pedra

trabalhada seja como for, tirando de sua face o mundo dos objetos talhados

ou modelados, o mundo da arte e do artefato real. Por outro lado, há aquilo,

que direi novamente, que me olha: e o que me olha em tal situação não tem

mais nada de evidente, uma vez que se trata ao contrário de uma espécie de

esvaziamento. Um esvaziamento que de modo nenhum concerne mais ao

mundo do artefato ou do simulacro, um esvaziamento que aí, diante de mim,

diz respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino do corpo

semelhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus movimentos,

esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que, no entanto, me

olha – num certo sentido inelutável de perda [...] (DIDI-HUBERMAN, 2010,

p. 37)

O ensaísta destaca, nesse contexto, que, pelo ato de observação de uma imagem,

somos levados a experiências visuais subjetivas. Quando diante de um túmulo, de uma urna

funerária, de uma lápide ou até mesmo de um memorial, a imagem ali presente (seja com

inscrições, artes fúnebres, fotografias ou símbolos talhados nesse objeto dialético) suscita de

nós a rememoração do que aqueles sujeitos ali representados foram para a nossa própria

história ou para a história coletiva: a recordação de alguém que antes, como nós estava vivo,

porém agora apodrece e se decompõe. Sua história é alcançada e perpetuada por esse objeto

que ali representa essa interseção temporal, ou até mesmo um ponto cego do fim. A imagem

do túmulo, portanto, é capaz de inquietar, fazendo que o seu observador consiga chegar a um

estado reflexivo se ele se permitir enxergar além da imagem. Caso contrário, a experiência

visual é perdida e somos levados a uma percepção superficial da imagem: ela é o que é. assim

como “diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na angústia – a saber, esse “modo

fundamental do sentimento de toda situação”, essa “revelação privilegiada do ser-aí”, de que

falava Heidegger...” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38), fotografia capturada pelo horizonte

crítico de Quintais opera uma relação dialética em que a presença versus a ausência abre

nossos olhos a novas percepções do mundo: “é a angústia de olhar o fundo – o lugar – do que

me olha, a angústia de ser lançado à questão de saber ( na verdade de não saber) o que vem a

56Em O que vemos, o que nos olha (2010), Didi-Huberman, através da análise da fotografia da lousa funerária do

abade Isarn, da segunda metade do século XI, busca uma reflexão acerca da sensação de esvaziamento

provocada por essa imagem. Para isso, ele aponta como esse objeto – uma lousa funerária – marca a evidência

desse homem naquele espaço. No entanto, ocorre que esse objeto é, na verdade, um simulacro, pois o homem (o

abade Isarn) está morto. Há, portanto, restos que resgatam do seu observador a imagem, a história e a existência

desse homem.

156

ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer

ao vazio, de se abrir” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 38).

Nessa perspectiva, a fotografia de Quintais problematiza algumas questões

importantes para contemplação poética de Deus é um lugar ameaçado (2018). A primeira

delas se refere ao tema em cena: diante dessa imagem também ficamos diante da morte.

Somos convidados a reencontrar aqueles que já partiram em nossas vidas e dos quais

guardamos alguma memória afetiva. Somos convidados, também, a reencontrar a morte

daqueles nomeados pelas lápides, porque elas são o ponto de intersecção entre a sua morte

(ausência) no mundo e a sua vida (presença) na história. É o que questiona, também, Eiras:

“Poderá a fotografia realizar esse «resgate da morte», ou apenas dá testemunho do

esquecimento?” (EIRAS, 2019, p. 228). Somos convidados, ainda, a encontrar a nossa própria

morte e a enfrentar os nossos medos desse obscuro e desconhecido caminho pós-vida – afinal

não são todos que conseguem re-ditar a sua história como Brás Cubas, o nosso ilustre defunto

autor de Machado de Assis, cuja narrativa também rompe com os parâmetros de fim: como

pode, depois de morto, virar autor de autobiografria? Isso revela que, por trás dessa

fotografia das lápides, haverá sempre uma outra história atravessada por outras muitas

histórias acessadas através da meditação e da contemplação dessa alegoria do fim.

Em função disso, uma outra temática importante evocada por essa fotografia é a

ausência. O que vemos na imagem é só um fragmento, escolhido intencionalmente pelo olhar

ontológico de Quintais, mas, o que há para além desse objeto fúnebre não consegue ser

capturado pelas lentes das câmeras fotográficas. A capacidade mimética do aparelho

fotográfico ainda não consegue completar as lacunas deixadas pelo recorte feito com

enquadramento da lente da câmera e do olhar do artista. Sendo assim, é necessário algo para

que esse esvaziamento provocado pela Polaroid seja completado. E recordo, novamente, de

Eiras: “Poderá a fotografia realizar esse «resgate da morte», ou apenas dá testemunho do

esquecimento?” (EIRAS, 2019, p. 228). As repostas veem em passagens meditativas em que a

linguagem poética é o recurso representativo utilizado para tentar realizar e fixar esses

resgates da morte.

Em outra Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018), o tema da memória é

evocado pelos objetos que compõem a cena fotografada. Nessa imagem, Figura 20, a seguir,

nossos olhos são convocados a contemplar uma composição visual que dá a ver uma

mensagem oculta que se escreve pela associação dos elementos visuais da cena. O que vemos?

Em segundo plano na imagem, encontra-se um cenário composto por um livro, um fragmento

157

de um texto verbal e caracteres de uma língua oriental. No canto esquerdo da imagem, porém

em primeiro plano na composição, há uma fotografia sobreposta aos versos do texto. O que

percebemos pela associação destes vestígios visuais? O homem da fotografia deve ser alguém

de importância subjetiva para o artista, sua biografia deverá ser resgatada pelo

reconhecimento da face jovem. O fragmento textual nas páginas do livro são fragmentos de

um poema de língua inglesa que vem acompanhado de três ideogramas, cujos significados

devem conversar semanticamente com as imagens do fragmento poético. Contemplemos,

portanto, a imagem poética fotografada – anteriormente publicada na sua plataforma flickr sob

o título de “You taught men to break branches”.

Figura 20 - Sem título / You taught men to break branches57

Fonte: Luís Quintais (2018)

A imagem, nesse quadro, conversa diretamente com o observador não só pela

linguagem visual, mas também pela necessidade de um resgate interior às memórias de quem

a observa e decifra a mensagem poético-visual. Ela apresenta ao observador objetos que

podem ser facilmente percebidos pela visão, mas também elementos, histórias, memórias e

testemunhos que se encontram escondidos nas lacunas visuais da imagem. A imagem, nessa

perspectiva, por ser um recorte visual proposto pelo olhar do artista, também passa a ser uma

composição visual parcial uma vez que não é possível – dentro do enquadramento escolhido –

57 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

158

mostrar além dos limites desse horizonte de visão pré-determinado pelo artista e

proporcionado pelas lentes da câmera. Sendo assim, a imagem sempre será formada, também,

por lacunas que devem ser preenchidas com a observação e meditação do leitor. Nesse

movimento de reação à observação da imagem, o tema da imagem possibilita uma viagem à

memória. Isso porque o homem retratado na imagem é, na verdade, o grande poeta, músico e

crítico literário norte-americano Ezra Weston Loomis Pound, uma das maiores personalidades

poéticas do movimento modernista do início do século XX. Curiosamente, tal como nosso

poeta-fotógrafo, Pound busca com seus poemas destacar a potência lírica da construção de

imagens poéticas. Essa procura pelo limiar poético da imagem fez que o poeta norte-

americano participasse de movimentos da estética modernista, como o movimento Imagismo

– do qual Pound era o principal representante – e do Vorticismo. Nas suas obras, vemos uma

grande aproximação da linguagem poética com a linguagem visual, seja pela construção de

frases-imagens, seja pela referência ou citação de imagens artísticas em seus versos, seja pelo

diálogo entre a escrita ocidental e a grafia imagética das línguas orientais.

Além do resgate memorial da biografia do homem fotografado, vemos que o

fragmento poético pertence ao “Canto LIII” (anexo V – que se encontra no seu grande livro

de poesia Os Cantos (1962), o documento principal da obra de Ezra Pound, uma épica

moderna com 120 cantos, interminável, porque o poeta não conseguiu chegar ao seu fim em

vida. Por fim, outro elemento visual que chama atenção do observador são os ideogramas que

se encontram associados ao poema de Pound. A presença deles é um dos princípios

organizadores dessa obra, uma vez que a organização visual dos poemas em si – disposição

espacial e escolha tipográfica das letras – aproxima-os visualmente da forma dos ideogramas.

Essa escolha estética revela, no mais, o filtro cultural que atravessa a obra de Pound, como

um leitmotiv da percepção imagética que o insere como uma das grandes vozes do

Modernismo norte-americano. Sobre essa fronteira visual entre a forma dos poemas e a forma

de ideogramas explorada pela escrita de Pound, Haroldo de Campos destaca que essa estética:

elimina as cortinas de fumaça do silogismo: permite acesso direto ao objeto.

Duas ou mais palavras, dois ou mais blocos de idéias, postos em presença

simultânea, criticando-se reciprocamente, precipitam um jogo de relações

com uma intensidade e uma imediatidade que o discurso lógico não seria

capaz sequer de evocar. (CAMPOS, 1993, p. 144)

A opção por uma escrita que simula, como destaca Campos, um método ideogrâmico

tornou-se um recurso estilístico fundamental para a poética de Pound, pois, com essa grafia

159

imagética, o poeta é capaz de condensar em uma só imagem um conjunto de palavras,

sugestões e até metáforas. Ela, por sua vez, é um mecanismo que reúne liricamente

fragmentos, traços e vestígios de uma tradição poética, recorrentemente revisitada pelos

versos do poeta norte-americano. Nesse contexto, ao ler a obra Os Cantos (1962), o leitor é

instigado pela voz lírica a revisitar através da observação das imagens poéticas de seus versos

imagens históricas e literárias que fazem parte de uma cartografia da tradição literária

reapresentada em fragmentos visuais. Com isso, é possível perceber um entrelace visual que

conecta os fragmentos poético-visuais que compõem os 120 cantos da obra de Pound.

A utilização de ideograma em seus livros de poesia também aparece como um recurso

estético-visual nas obras poéticas de Luís Quintais. Como discutimos no primeiro capítulo

desta dissertação, o caractere Wu (無 – Figura 3) aparece na contracapa de seu livro de poesia

A noite imóvel (2017), também como um mecanismo de apresentação e conexão poético-

visual entre as partes da obra e os temas que serão apresentados aos leitores e experimentados

através da observação dos fotogramas líricos desenhados pela linguagem poética. A cultura

oriental, assim como para Pound, apresenta-se como lugar comum e de revisitação na

produção lírica de Quintais. Seu interesse pela cultura oriental, em especial pela japonesa, dá-

se, por isso, pela potência poético-visual das imagens e da iconografia para as artes plásticas

japonesas. Em suas palavras: “Suspeito que é no Japão que estiveram, talvez ainda estejam, os

mais importantes artistas visuais” (QUINTAIS, 2018, s/p.).58 Em dezembro de 2020, por

exemplo, o poeta português publicou um livro de ensaios e fotografias – Regressarás à leveza

do ver: uma viagem no Japão (2020) em colaboração com a fotógrafa Susana Paiva, também

pela editora Huggly Books. O projeto faz parte, assim como a publicação de Deus é um lugar

ameaçado (2018), de uma edição especial e limitada que propõe um diálogo entre a

linguagem visual e a linguagem poética. Regressarás à leveza do ver: uma viagem no Japão

(2020) começou a ser pensado após a viagem que Quintais fez para o Japão e de suas

fotografias retiradas para documentar esse momento – algumas destas fotografias se

encontram no seu blog em um dossiê visual do Japão (reproduzido integralmente no Anexo

IV desta dissertação). As imagens poéticas do novo livro, por sua vez, buscam propor uma

reflexão sobre imagens do espaço – natural e urbano do Japão – como uma forma de

representação e cruzamento entre a arte, cultura e sociedade numa visão antropológica. Nas

palavras do poeta sobre Regressarás à leveza do ver: uma viagem no Japão (2020):

58 Este fragmento se encontra na seção “Por si mesmo” do blog do poeta Luís Quintais. Disponível em:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/bio/

160

Fotografia e literatura enlaçam-se para produzir um dos objectos mais

extraordinários que saiu, em parte, das minhas mãos. E em parte porque o

labor aqui posto é também da Suzana Paiva, admirável artista e amiga leal. O

livro representa para mim o culminar de muitas das minhas preocupações

mais antigas: os limites da representação num mundo exangue, a

possibilidade de redenção num mundo sem redenção, o regresso, talvez

impossível, ao paraíso, o vazio e as visões do vazio, a poesia e a morte, a dor

e o esquecimento. Tanto do que sou está aqui nesta viagem ao Japão, sempre

sonhada, literalmente sonhada, ou não habitasse em Kyoto nos meus sonhos

antigos e recentes. (QUINTAIS, 2020, s/p.)59

Esses aspectos do filtro cultural do nosso poeta fotógrafo, como os representados no

excerto acima, ficam à mostra na fotografia de Deus é um lugar ameaçado (2018) – Figura

20. Através dela, então, o observador é guiado a compreender não somente a importância da

poética de Pound, como também a influência visual da iconografia oriental para o pensamento

e a forma de observação dos limites entre a palavra e a imagem na obra de Quintais. Isso

porque a composição visual da fotografia mostra ao leitor a presença de fragmentos

imagéticos que trazem em si uma história para além da imagem. Assim como na visualidade

proposta por Pound como recurso estético-visual, Quintais busca com seus poemas – grafados

pela linguagem literária ou pelas lentes de suas Polaroides – instigar o leitor-observador a

compreender o que há para além das lacunas deixadas pelo enquadramento visual e pela

fragmentação linguística. A fotografia – Figura 20 – é um exemplo de um recorte visual da

tradição literária revisitada pelo filtro cultural de Quintais. Filtro este que também está

presente nas imagens poéticas dos poemas de A noite imóvel (2017), analisados no capítulo

anterior, que propõem recortes visuais do mundo que põem em contemplação cenas das ruínas

do espaço contemporâneo. Pela imagem, então, o poeta é capaz de condensar alegorias,

reflexões, memórias e referências em experiências de contemplação transubjetivas.

Já em outra Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018) – Figura 21, a seguir, –

nosso olhar é direcionado para a visualização de um objeto que, na verdade, não está presente

na imagem. O que vemos, à primeira vista, é apenas um traço, um vestígio, uma marca, uma

sombra de algo que não está presente no enquadramento da fotografia, mas que se encontra no

horizonte interno do artista nesse espaço. O objeto da fotografia, nesse sentido, tem a função

de resgatar cognitivamente no observador a sua figura, fazendo que a imagem superficial e

estática dessa paisagem provoque o observador para completá-la através da sua própria

imaginação. É uma imagem que propõe uma reflexão visual sobre aquilo que se vê e aquilo

59 O trecho foi retirado da apresentação de Luís Quintais de seu novo livro, Regressarás à leveza do ver: uma

viagem no Japão (2020), escrita em seu blog. Disponível em:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/2020/12/28/regressaras-a-leveza-do-ver-uma-viagem-no-japao/

161

que não se vê no espaço. É uma imagem sobre o que aparece e desaparece no enquadramento

da fotografia. É uma imagem sobre a presença e a ausência. É, portanto, uma imagem que

realça os limites da representação visual ao passo que tenta captar, pela experiência visual, as

sensações de luto e melancolia.

Figura 21 - Sem título / Tanto a beleza eu contemplei60

Fonte: Luís Quintais (2018)

No início deste tópico, comentamos sobre a proposta de Deus é um lugar ameaçado

(2018) quanto à percepção do visível e do invisível. O livro aposta em uma estética visual que

põe em xeque os limites do olhar, a partir da escala de cores diferenciada nos textos verbais –

que faz um jogo de fade in e fade out, ou seja, de aparecer e desaparecer das palavras do livro

que ora estão escritas em cor preta – reafirmando a sua presença no corpo do texto – ora estão

escritas em escala de cinza – recurso que dificulta o reconhecimento imediato dos vocábulos e

simula a sensação de baixa visibilidade, como ocorre em lugares dominados por uma densa

cortina de neblina. As imagens poéticas descritas verbalmente, por isso, criam uma ficção do

olhar porque denunciam pela percepção visual sinais e vestígios de algo que talvez tenha

desaparecido na imagem, sobretudo pela compreensão da condição das coisas frente a

passagem natural do tempo. Essa mesma característica poético-visual é transposta para as

fotografias do livro, já que o enquadramento, o recorte e o foco escolhidos pelo artista para

60 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

162

formar a fotografia também fixam resquícios visuais da presença de objetos que não estão

necessariamente circunscritos no espaço da imagem. Ficamos, dessa forma, diante de imagens

circunstanciais, que seccionam a realidade e colocam em evidência as fissuras nesse processo

de cortar a realidade. Esse aspecto faz que, a partir da contemplação das imagens foto-

grafadas de Deus é um lugar ameaçado (2018), como na Figura 21, percebamos rastros,

lacunas e ausências talhados pela linguagem, pelas inúmeras possibilidades de representação

e, ainda, pelo processo criativo do artista.

A Figura 21 – que fora publicada na plataforma flickr do poeta com o título de Tanto a

beleza eu contemplei – fixa uma imagem que destaca a base do processo criativo de um

fotógrafo: fixar uma imagem que represente algo do mundo real. No primeiro plano da

imagem, no entanto, vemos apenas sombras de algo, que pela forma somos remetidos à noção

de uma árvore. Em segundo plano, vemos uma natureza viva e presente, a partir da gramínea

que se encontra abaixo na imagem. Além disso, conseguimos ver a existência de um muro,

uma construção humana em meio à vida natural que divide o mesmo espaço. As sombras se

estendem do alto da imagem ao solo, como se essa forma natural estivesse visivelmente

presente. No entanto, temos acesso apenas a vestígios de sua existência no mundo real.

Mundo real este que é evocado pela imagem através do nosso imaginário, uma vez que dentro

do enquadramento escolhido só temos acesso a sombras da verdade.

Na antiguidade clássica, ao discorrer sobre o processo de mimesis e a sua relação com

a realidade, o filósofo Platão desenvolve a alegoria da caverna para exemplificar sua teoria

sobre o real, o imaginário e às formas de acesso ao conhecimento. Segundo o pensador, a

realidade existe somente no mundo das ideias, inalcançável no nosso mundo físico. Isso

porque as imagens e os objetos existentes no nosso mundo físico – o qual ele viria a chamar

de mundo das coisas – são, na verdade, meras representações, ou seja, cópias da forma real

que existe apenas em conceito em outra dimensão espaço-temporal – no que ele viria a

chamar de mundo sensível. Esse é o princípio básico da alegoria da caverna, explicada no

livro A República (1975) através do diálogo de dois personagens, Sócrates e Glauco. Durante

uma conversa, Sócrates, o mestre, pede para que seu discípulo, Glauco, imaginar uma espécie

de caverna em que homens vivessem aprisionados desde o princípio de sua existência. Eles

nasceram prisioneiros, acorrentados pelos braços de fronte para uma parede paralela. Essa

caverna delimita o conhecimento socioespacial do lugar em que eles se encontram, bem como

a parede paralela determina o campo visão ao qual eles têm acesso. Nesse horizonte interno

dos prisioneiros, a parede paralela funciona como uma espécie de tela por onde eles observam

163

projeções turvas de movimentos, formas humanas e de objetos que são projetadas por uma

chama que existe atrás deles. Desse modo, o que esses prisioneiros veem são apenas sombras

das imagens reais, cópias distorcidas do que existe fora dessa caverna. Continuando o diálogo,

Sócrates fala a Glauco que certo dia um desses indivíduos aprisionados alcançou a liberdade e

conseguiu sair da caverna. Fora dela, ele teve o primeiro contato com a luz do Sol, que no

primeiro momento o incomoda e ofusca a sua visão. Após um tempo de exposição, seus olhos

acostumam-se à luminosidade e ele se torna capaz de distinguir as formas e as imagens das

coisas presentes nesse outro mundo fora da caverna. Nesse momento, ele percebe que durante

toda a sua existência aprisionado na caverna teve contato apenas com fragmentos e ruídos, e

descobriu que o mundo era muito maior do que julgava.

As sombras também são uma alegoria na fotografia Tanto a beleza eu contemplei de

Quintais. Tal como Platão desenvolve ecfrasticamente uma imagem alegórica para discutir

sobre a percepção do real e a natureza do conhecimento, o poeta-fotógrafo cria pela

linguagem fotográfica uma alegoria para refletirmos sobre o nosso conhecimento sobre a

realidade. O enquadramento escolhido por Quintais põe em cena a observação de um objeto

que só é reconhecido através da compreensão dos vestígios da sua forma no espaço. Isso

porque no centro da imagem só conseguimos ter acesso à reprodução das sombras de um

objeto presente num instante e num espaço de tempo em que fotógrafo capturou sua imagem.

Pelo fragmento espacial e pela luminosidade da imagem, pressupõe-se que existe, fora do

enquadramento, uma árvore concreta que se posiciona atrás do muro e se expande para cima.

No entanto, a visão do observador encontra-se aprisionada aos limites da fotografia, que não

conseguem dar conta de representar todo o contexto existente no horizonte externo da

paisagem. O que vemos, portanto, são vestígios projetados da realidade pelo artista dotados de

uma ausência. Cabe, então, ao leitor-observador chegar a interpretações subjetivas sobre as

lacunas visuais que vê, buscando dentro de si mesmo algo fora da imagem fotográfica que

preencha a sensação de esvaziamento da imagem. Dentro da caverna de Quintais – a imagem

poética – o observador – prisioneiro do filtro cultural do poeta – tem acesso apenas a uma

fração visual manipulada da realidade – as sombras projetadas no muro. A Polaroid Tanto a

beleza contemplei, reproduzida novamente no livro Deus é um lugar ameaçado (2018),

antecede uma outra passagem meditativa bem interessante acerca da tensão provocada em

uma determinada imagem pelo jogo de sombras nela presente, seja de modo acidental – como

observado na Figura 21, seja de modo proposital, como nas grandes pinturas Barrocas e nas

naturezas mortas, em que a presença de sombras tem caráter estético e dramático. Através do

164

recurso da citação, vemos como o sujeito poético caminha pelos pensamentos de outra voz

para construir uma reflexão sobre aquilo que vê impresso nas Polaroides. Entre o claro e o

escuro, a luz e a sombra, a linguagem verbal e a linguagem fotográfica colocam em xeque os

próprios limites do pensamento:

Há muitos anos, eras tu um filósofo à procura de uma reverberação que

afrontasse as pretensões espúrias do conhecimento. Escrevias: “São sempre

os limites do pensamento, os limites de um país de cartografia imprecisa, o

que me interessa. Aí está a minha biografia.” Entre os B. ficaste. O que havia

que despertasse a tua atenção nesse país de gente orgulhosa e, porém,

amável? Uma teoria sobre a sombra e a intimidade. Um lugar de perigo no

interior de cada um. “Repara”, escrevias, "as crianças aqui são repreendias

quando pisam ou saltam sobre as sombras de outros. O que diz a sombra de

tão obscuro? Ela é uma função da natureza ameaçada de Deus. Deus é frágil.

Deus é um lugar ameaçado pela própria ignorância ou negligência dos

humanos. Ele é a sombra que caminha a nosso lado quando o verão sobre a

terra torna aguda a luz que recorta a sua presença em cada movimento

depositando-se no pó. E nós transportamos Deus como quem transporta a

pele”. (QUINTAIS, 2018, s/p.) 61

O que se nota primeiramente nesse trecho é a escolha lexical que o aproxima de um

diálogo. O sujeito poético parece, então, estar iniciando uma conversa com um possível

interlocutor que não é nomeado no texto, apenas caracterizado como um filósofo. Somos

colocados diante de uma encenação onde dois personagens parecem dialogar sobre algo: o ato

de ver. Esse interlocutor, no entanto, é apenas evocado no poema, aparecendo por meio de

três recursos sintáticos principais, o primeiro deles é pelo uso do pronome pessoal do caso

reto de segunda pessoa, como em: “Há muitos anos atrás, eras tu um filósofo à procura de

uma reverberação que afrontasse as pretensões espúrias do conhecimento” (QUINTAIS,

2018, s/p.).62 Além disso, vemos também o uso da silepse, uma figura de linguagem que se

caracteriza pela omissão de um determinado referente através das flexões número-pessoais do

verbo. Esses recursos têm valor significativo para a proposta poética de Deus é um lugar

ameaçado (2018) porque deixa apenas um rastro da presença deste outro no discurso, uma

vez que a substituição e a omissão, em “escrevias” e “tua”, por exemplo, são formas de

promover uma coesão a partir dos limites representativos da linguagem poética. O outro

recurso interessante para sublinhar a presença desse interlocutor é pela citação direta. Há, ao

longo do fragmento, períodos delimitados pelo uso das aspas, o que corresponde a uma

espécie de colagem, porque dá a liberdade de um artista tomar posse da fala de um outro,

61 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 62 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

165

recortando-a do texto original e colando-a entre as linhas de seu próprio texto. Dessa forma,

o sujeito poético traz falas do seu interlocutor para o seu próprio discurso, simulando a sua

dala. Cito: “Escrevias: “São sempre os limites do pensamento, os limites de um país de

cartografia imprecisa, o que me interessa. Aí está a minha biografia.”.” (QUINTAIS, 2018,

s/p.).63 Nessa performance discursiva, nesse sentido, o leitor é exposto a mecanismos

linguísticos que dão a ver rastros da utilização da linguagem. São rastros, para além disso, da

presença de alguém cuja voz é simulada pelo sujeito poético enquanto se movimenta pelo seu

próprio pensamento.

Nessa dupla reflexão, assombrada por essa outra voz, vemos o desenrolar de uma

meditação sobre a fragilidade. Isso acontece já que as imagens encenadas, enquanto se

desenvolve o pensamento do sujeito poético, atravessado pelo pensamento de seu interlocutor,

dão a ver pequenos fragmentos – senão fricções – onde os limites entram em cena como

protagonistas. Vemos os limites do discurso. Vemos os limites impostos pela linguagem que

simula o diálogo entre dois sujeitos com pensamentos atravessados. O filósofo – interlocutor

não nomeado, porém citado – que há anos procurava por “uma reverberação que afrontasse as

pretensões espúrias do conhecimento” (QUINTAIS, 2018, s/p.)64 encontra nos limites do

pensamento a sua própria biografia. E atento, o sujeito poético percorre pelas palavras

citadas, inquietado pela fala: “O que havia que despertasse a tua atenção nesse país de gente

orgulhosa e, porém, amável?” (QUINTAIS, 2018, s/p.).65 Comovido pela imagem de um “país

de gente orgulhosa e, porém, amável” (QUINTAIS, 2018, s/p.)66, uma realidade oculta às

Polaroides impressas no livro, mas interna ao filósofo e interlocutor:

“Repara”, escrevias, "as crianças aqui são repreendias quando pisam ou

saltam sobre as sombras de outros. O que diz a sombra de tão obscuro? Ela é

uma função da natureza ameaçada de Deus. Deus é frágil. Deus é um lugar

ameaçado pela própria ignorância ou negligência dos humanos. Ele é a

sombra que caminha a nosso lado quando o verão sobre a terra torna aguda a

luz que recorta a sua presença em cada movimento depositando-se no pó. E

nós transportamos Deus como quem transporta a pele”. (QUINTAIS, 2018,

s/p.) 67

63 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 64 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 65 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 66 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 67 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

166

Eles, sujeito poético e filósofo-interlocutor, reparam juntos nessa cena em que crianças

“são repreendidas quando saltam sobre as sombras de outros” (QUINTAIS, 2018, s/p.).68

Dela, o olhar sobressalta a imagem da sombra em detrimento das ações que ocorrem,

revelando um enigma sobre a sombra. Essa forma projetada a partir do bloqueio aos raios

luminosos com um corpo sólido é, também, um limite. Esse mesmo limite transforma-se

numa “teoria sobre a sombra e a intimidade. Um lugar de perigo no interior de cada um”

(QUINTAIS, 2018, s/p.).69 As sombras são reflexos obscuros do que poderiam ser. Elas dão a

ver uma cópia oculta de um corpo concreto e real. Elas são uma extensão sem luz desse corpo

concreto real. Elas sempre existem, mas só estarão visíveis quando “o verão sobre a terra

torna aguda a luz que recorta a sua presença em cada movimento depositando-se no pó”

(QUINTAIS, 2018, s/p.).70 Tal como a sombra é um lugar ameaçado pela presença e pela

ausência, Deus também o é, frágil e impotente, uma natureza que nós transportamos, “como

quem transporta a pele” (QUINTAIS, 2018, s/p.).71

Retornemos às Polaroides, “porque começa agora uma inquietante multiplicação de

níveis e reproduções” (EIRAS, 2019, p. 228). A fotografia – Figura 22 – de Quintais, como

última Polaroid de Deus é um lugar ameaçado (2018) e como última fotografia em análise

neste trabalho, condensa imageticamente algumas questões levantadas ao longo desta

dissertação. Nessa fotografia, vemos que a técnica fotográfica torna-se matéria poética da

própria técnica fotográfica na produção de fotogramas líricos pelo nosso poeta-fotógrafo.

Pela Polaroid também somos remetidos a uma teoria da imagem, já que ela realça pequenas

marcas de um processo de apresentação de imagens a um público observador. O objeto

presente em cena – um antigo aparelho de reprodução de rolos de filme das antigas salas de

projeção de cinema – entra em diálogo com o espaço em que se encontra, porque no segundo

plano da fotografia notamos a presença de um pequeno buraco quadrado por onde passam os

raios luminosos que transformam frações de instantes fixadas em imagem em movimento de

filme. Que se abra, a imagem, para nós:

68 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 69 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 70 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas. 71 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

167

Figura 22 - Sem título72

Fonte: Luís Quintais (2018)

Num primeiro momento, a cena capturada chama atenção pela sensibilidade temporal,

uma vez que a luminosidade e a paleta de cores conversam com o objeto em exposição

tematicamente por fazem parecer – ou simular pelo conjunto imagético – que a fotografia foi

feita num tempo passado. Olhamos para essa imagem – imóvel no nosso momento presente –,

mas ela se movimenta e nos faz lembrar de um momento passado. Esses aspectos percebidos

na imagem geram, dessa maneira, uma movimentação subjetiva que transcende a pura visão

dos elementos fixados pela Polaroid. Ao fixar essa imagem, desse modo, Quintais consegue

condensar diversas informações transversais à representação visual, as quais, por sua vez,

podem levar à meditação sobre o movimento do tempo e as técnicas humanas de simulação,

por imagens fotográficas – das cenas, dos movimentos e dos sons do mundo. Como destaca

Collot, “talvez seja por isso que, na história de nossa civilização, o desenvolvimento da

paisagem foi frequentemente acompanhado pelo do indivíduo” (COLLOT, 2019, p.11). Ao

fazer uma viagem diacrônica pela história das imagens, desde as suas primeiras manifestações

na arte rupestre – as imagens tradicionais e anteriores à escrita, como destaca Flusser (2008)

– até as atuais imagens produzidas por mecanismos digitais – como as mais modernas

câmeras fotográficas – percebemos uma constante necessidade humana de foto-grafar e

documentar suas experiências no mundo.

72 Na edição original do livro Deus é um lugar ameaçado (2018), não há indicação de páginas.

168

Nas artes plásticas e na literatura, fixar imagens capturadas da realidade, por exemplo,

representam, o que classifica Collot como uma “emergência de um espaço antropocêntrico”

(COLLOT, 2019, p.11), haja vista que as intenções estético-visuais do artista com essas

imagens dão ênfase em um caráter simbólico e egocêntrico inerentes à sua – e também à

nossa – própria percepção afetiva do espaço. Em suas palavras: “as primeiras representações

picturais da paisagem, a aparição da palavra nas línguas europeias, datam do século XVI, e

são contemporâneas da emergência de um espaço antropocêntrico. É o Romantismo que, com

sua teoria da paisagem como “estado de alma”, enfatizará o aspecto subjetivo, parcial,

egocêntrico de nossa experiência do espaço” (COLLOT, 2019, p.11). Nesse sentido, a poética

do espaço é fruto das relações sensíveis acessadas pela percepção visual do espaço e de

pequenas marcas que são esculpidas historicamente pelas nossas interações no espaço

comum. O que, para Collot, será evidenciado através da fenomenologia do espaço porque “ela

mostrará que essa solidariedade entre paisagem percebida e sujeito perceptivo envolve duplo

sentido: enquanto horizonte, a paisagem se confunde com o campo visual daquele que olha,

mas ao mesmo tempo toda consciência sendo consciência de ..., o sujeito se confunde com seu

horizonte e se define como ser-no-mundo” (COLLOT, 2019, p.11).

Pela fenomenologia, destarte, podemos compreender a importância dos objetos e desse

espaço para o filtro cultural de Quintais nessa fotografia da Figura 22. A antiga sala de

projeção de cinema pode ser lida, alegoricamente, como o espaço de produção e de criação de

fotogramas líricos. A antiga máquina de projeção de rolos cinematográficos pode, ainda, ser

metonimicamente percebida como a própria representação do artista que projeta imagens a

serem contempladas por um público observador. A película cinematográfica, por sua vez, é

abstração da obra literária – neste caso, uma alegoria visual que resgata as outras imagens

foto-grafadas na cartografia foto-poética de Deus é um lugar ameaçado (2018). Essa película,

assim como a ficção de Quintais sobre o ato de ver, é composta por fotogramas, pequenas

imagens fixadas que aparecem e desaparecem, segundo um movimento subjetivo de reflexão

sobre os próprios limites visíveis da linguagem poética e da linguagem fotográfica. Sendo

assim, na realidade ficcional de Deus é um lugar ameaçado (2018), nos deparamos com uma

voz condutora, que projeta imagens pela linguagem poética e pela linguagem visual que

guiam o leitor-observador por meditações e reverberações memorialísticas. Vemos, através

da disposição dos fotogramas líricos e da [des]associação entre eles e as reflexões poéticas em

prosa o desenrolar do pensamento na constante tentativa de fixar e representar algo que

escapa.

169

4. CONCLUSÃO

Nesta dissertação, portanto, percorremos alguns caminhos de leitura através da

percepção visual das imagens poéticas foto-grafadas pelo olhar antropológico do poeta-

fotógrafo contemporâneo português Luís Quintais. Em seu livro A noite imóvel (2017),

pudemos observar técnicas semelhantes às da fotografia como método de composição lírica.

Isso foi constatado em seus poemas que se desenvolvem por meio da criação de imagens

poéticas descritas e apresentadas ao leitor, guiando-o a um processo lírico-visual de resgate da

experiência contemplativa. Análogo ao fotógrafo, o sujeito poético demarca um

enquadramento do cenário que vê, pondo em focalização um objeto ou cena sobre os quais se

gera uma reflexão poética. Isso acorre pelo uso estético da linguagem poética, que

ecfrasticamente descreve pela voz lírica frases-imagens que ora se assemelham à realidade

objetiva ora destoam dela, evidenciando marcas da passagem do tempo. Pela linguagem

poética, Quintais promove a grafia de imagens nas quais se pode perceber a consciência da

condição precária das coisas. Seus poemas, nesse sentido, são desenvolvidos através de uma

voz lírica que constantemente se encontra na posição de observador que descreve, nos versos

do poema, a cena da vida contemporânea constantemente acompanhada de uma meditação

sobre o ver e a percepção subjetiva do que se vê. Percebemos e discutimos, pelos poemas

escolhidos de A noite imóvel (2017), uma escrita do ver, que põe em evidência, pela voz lírica

e pela linguagem, imagens fragmentadas ou de fragmentos. Nessas imagens poéticas, somos

motivados pelo eu lírico a visualizar rastros do mundo real que evocam um estado de reflexão

decorrentes dessa experiência visual.

A noite imóvel (2017), então, é um livro de poesia que promove um diálogo entre o

olhar poético – antropológico – e olhar fotográfico. Vimos, com isso, a tentativa de

estabelecer meios de contemplação da efêmera relação entre o homem e o tempo, sendo

aquele agente direto das transformações socioespaciais responsáveis pela alteração do modo

de percepção deste. Em suas imagens poéticas, o poeta destaca elementos cotidianos, com

ênfase sempre no espaço urbano, focalizando seus aspectos ruinosos. E por meio da

observação atenta dos espaços descritos nos versos de seus poemas, proporciona ao leitor,

pela poesia, um meio de visão que potencializa a forma como ele percebe a sua relação com

os espectros do tempo e do espaço. Compreendemos, por isso, seus poemas como fotogramas

líricos composto por esses restos da contemporaneidade que nos levam à reflexão da

170

identidade, através de indícios e sombras; e à interrogação da memória, da violência, da

melancolia.

Acompanhamos, além disso, um sujeito poético que, a partir de recursos estéticos da

linguagem verbal, cria imagens por vezes miméticas, por vezes metafóricas que visam propor

uma reflexão mais profunda em especial sobre a condição humana e da vida a sua volta. Isso

decorre do desenvolvimento de cenas de escrita pelas quais se põe em xeque a natureza dessa

composição imagética, os limites da linguagem e da representação, o real e o que percebemos

pela observação de fragmentos dele. Com isso, os fragmentos e as ruínas são objetos que se

fazem presentes constantemente nessas imagens poéticas, as quais, quando são observadas por

um olhar crítico, instigam uma de espécie autorreflexão e resgate memorialístico, decorrentes

de uma experiência dos vazios induzida pelo ato de ver. Desse modo, o poema abre-se

dialeticamente ao leitor que se depara com objetos que põem em suspensão a concepção de

tempo e de real, enquanto essas imagens foto-grafadas são colocadas em observação pela voz

lírica, que nos guia lentamente pelos versos a uma meditação sobre a linguagem e a sua

impossibilidade de dizer, sozinha, o mundo; sobre a ausência e a melancolia, estados de

espírito associados à noção de fim; sobre o tempo e as marcas involuntárias que sua passagem

deixa em todas as coisas do mundo. E dessas imagens poéticas, o poeta resgata memórias,

testemunhos, sentimentos e experiências subjetivas no leitor-observador que se deixa guiar

lentamente pela contemplação das imagens poéticas a ele reveladas.

Nesse percurso poético e fotográfico de Quintais, percebemos, além disso, uma

crescente aproximação entre as imagens foto-grafadas pela linguagem poética de Quintais e

as imagens fotografadas pelas lentes de sua câmera. O poeta-fotógrafo nos expõe a cenas em

que a voz poética e as câmeras fotográficas nos conduzem a um espaço visual em que nos

encontraremos com nossos próprios fantasmas e resgataremos o nosso próprio passado

individual ou coletivo nas cenas do presente foto-grafado. Em função de sua poesia propor

uma teoria do ver, por isso, o poeta se aproximou da fotografia e passou a transpor seu olhar

poético em fotografias poéticas que revelam e carregam traços de suas obsessões líricas,

como as ruínas, a memória e a melancolia. Através dessa associação, visualizamos a

semelhança entre processo de criação de imagens poéticas e de imagens fotográficas, uma vez

que ele cria imagens foto-grafadas dialéticas: as quais, devido às marcas invisíveis deixadas

pelos limites da linguagem representativa, guardam em si vestígios da transformação da

condição das coisas no tempo-espaço.

171

Com esse processo de observação, as fotografias nos olham novamente e estimulam,

pela sensação de vazio, o resgate de experiências subjetivas que preencham essas lacunas. O

poeta-fotógrafo busca por cenas em que possa pôr em foco e análise objetos criados pelo

homem, em estado ruinoso e de abandono, sob o seu próprio filtro cultural. E através das

técnicas de fixação de imagem, como a composição, a iluminação, a angulação e o

enquadramento, por exemplo, as suas fotografias possibilitam ao leitor-observador uma outra

forma de interpretar esses objetos em cena, sobretudo pelo viés da presença e da ausência. O

olhar e a percepção do poeta-fotógrafo são impressos em imagem fotográfica através da

câmera, e, do enquadramento escolhido, conseguimos ver uma cópia daquilo que foi

propositalmente escolhido pelo artista para contemplarmos. Por isso, esses objetos que

compõem a cena fotografada foram arquitetados e organizados em um determinado ângulo,

enquadramento e foco, de acordo com as necessidades estéticas e filosóficas do poeta-

fotógrafo. Esse fragmento intencional da realidade capturado em imagem, portanto, constrói

uma teatralização fruto da subjetividade e da percepção artística do mundo que é transportada

para a fotografia.

Essas reflexões fazem que a fotografia seja entendida, também, como um suporte

poético para expressão das obsessões líricas constantes na obra de Quintais. Nas suas

fotografias, como observamos, somos guiados a olhar novamente e mais atentamente os

resquícios do mundo contemporâneo. Da arquitetura em ruínas a objetos comuns do dia a dia

descartados, por exemplo, observamos Quintais foto-grafar cenas como suporte de uma

experiência de luto. Na arte fotográfica, por conseguinte, Quintais promove um choque

fotográfico, ou seja, uma provocação potencializada por detalhes projetados na composição

da cena que são capazes de retirar o espectador da imobilidade da imagem fotográfica e levá-

lo ao encontro da emanação real por ela incorporada. Nessa expressão artística, é conferido ao

poeta-fotógrafo a potência de escolher, do mundo real objetivo, um fragmento visual que

também toca o observador. Com isso, as ruínas, o desgaste e a degradação da matéria

funcionam como técnica de produção de melancolia, esta que tende a funcionar como um

processo de auto-observação que leva o sujeito a debruçar sobre si como forma de reação a

uma experiência de um objeto de afeto. Nosso poeta-fotógrafo coloca o seu observador diante

de uma cena real presenciada por ele e capturada em imagem fotográfica.

Nas fotografias de Quintais, então, os objetos em ruínas têm caráter antropológico.

Carregam consigo um passado, um presente e um futuro que são projetados em tensão pelas

lentes da sua câmera fotográfica. No livro Deus é um lugar ameaçado (2018) pela editora

172

Huggly Books, percebemos como as Polaroides fotografadas sob o filtro cultural de Quintais

destacam fragmentos comuns do espaço e de objetos da vida contemporânea e nos convida

lentamente a (re)conhecer, também, a sua história para além dessa composição visual.

Notamos como as escolhas estético-editoriais dialogam direta e indiretamente com os temas

fotográficos escolhidos por Quintais. Na obra, a linguagem poética e a linguagem visual são

colocadas em xeque de modo a destacar os limites da representação e da percepção. O ato de

ver, dessa forma, entra em performance não só para discutir sobre aquilo que se vê na

fotografia, mas também aquilo que se experimenta pela percepção de sensações, memórias,

histórias e sentimentos escondidos nos limites da linguagem. Estes, por sua vez, são

intencionalmente projetados na imagem pelo artista para que o leitor-observador mergulhe no

tempo passado e resgate experiências individuais e coletivas pela observação das cenas em

exposição. Como um poeta fingidor, Quintais organiza uma obra ficcional que recorta, a

partir de conjuntos de fotografias e de imagens poéticas, uma fração da realidade e a põe em

exposição através da relação entre a poesia, imagem, linguagem, representação, realidade e

espaço.

Observar atentamente esses objetos e o espaço presente nas Polaroides de Deus é um

lugar ameaçado (2018) é refletir sobre o mundo e seus restos, é (re)conhecer a natureza da

condição humana, frágil frente à passagem do tempo, é perceber aquilo que escapa à

linguagem representativa. Nessa ficção sobre o ver, Quintais se propõe a estabelecer um olhar

atento às ruínas, que guia o leitor-observador a experimentar a ausência. Isso porque ele

proporciona ao leitor imagens capazes de reconfigurar os modos de experimentação da sua

relação com os espectros do tempo e do espaço mediados sobre a incapacidade de a

linguagem representar todos os simbolismos da imagem. Seja no plano estético, seja no plano

do conteúdo, o leitor-observador é exposto a uma imagem poética que instiga a meditação

sobre o tempo e sobre como todas as coisas são frágeis e efêmeras frente à violenta passagem

do tempo que sempre deixará marcas visíveis ou invisíveis na superfície de todas as coisas. A

fotografia, assim, apresenta ao observador não somente elementos que podem ser facilmente

vistos, já que aparecem reproduzidos pela câmera fotográfica, mas também inquietações

invisíveis alcançadas através da observação atenta dos detalhes impressos pelo olhar

ontológico do fotógrafo e pelo mecanismo de sua câmera.

Essa é a potência da produção fotográfica de Quintais que evidencia sua verdadeira

obsessão lírica por resistência aos vazios da contemporaneidade, vazios que nas imagens

fotográficas, tal como na poesia, influenciam o leitor-observador a buscar dentro de si algo

173

que não esteja presente na imagem, mas que consiga preencher essa sensação de

esvaziamento. Em função disso, as imagens foto-grafadas por Quintais, representam não só a

emanação do fragmento espaço-tempo, mas também uma fragmentação do eu poético que

tenta estabelecer mecanismos de análise sobre o ato de ver; sobre a percepção subjetiva;

sobre o caráter simbólico do espaço e dos objetos nos fotogramas líricos; sobre limites da

representação, sobre as transformações inevitáveis com a passagem do tempo; sobre a

natureza e a condição humana no mundo contemporâneo.

174

5. BIBLIOGRAFIA

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http://www.janepack.net/illiad.

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na plataforma virtual Flickr , disponíveis pelo link:

https://www.flickr.com/photos/125107565@N07/, quanto em seu blog, disponível pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/.

Blog:

O blog do poeta pode ser encontrado pelo link: https://luisquintaisweb.wordpress.com/.

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184

ANEXO I – POEMA DE CAMILO PESSANHA

185

[Imagens que passais pela retina]

Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, porque não vos fixais? Que passais como a água cristalina Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncais, E o vago medo angustioso domina, - Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos? - O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão casual de meus dedos incertos, - Estranha sombra em movimentos vãos.

186

ANEXO II – POEMAS DE WALLACE STEVENS

187

INVECTIVA CONTRA OS CISNES

A alma, ó gansos, voa para lá dos parques

E muito para lá das discórdias do vento. Uma chuva brônzea do sol descendo assinala

A morte do verão, que neste tempo persiste Como alguém que rabisca um apático testamento

De garatujas douradas e páfias caricaturas, Legando as vossas penas brancas à lua

E ofertando os vossos delicados movimentos ao ar. Vejam, já nas longas paradas

Os corvos ungem as estátuas com seus excrementos. E a alma, ó gansos, sendo solitária, voa

Para lá das vossas indiferentes carruagens, para os céus.

*

NAS CAROLINAS

Os lilases murcham nas Carolinas.

Já as borboletas adejam sobre os camarotes.

Já os recém-nascidos interpretam o amor

Nas vozes das mães. Mãe intemporal,

Como é que teus galantinos mamilos

De uma vez verteram mel? O pinheiro adoça o meu corpo

A íris branca embeleza-me.

[Poemas retirados de Wallace Stevens, Collected Poems, Londres e Boston, Faber and Faber,

1990 [1955], pp. 4-5; originalmente publicados em Harmonium, 1923]73

*

OS VERMES AOS PORTÕES DO PARAÍSO74

Da tumba, trazemos Badrulbadur, Em nossos ventres, sua carruagem. Eis um olho. E eis aqui, um por um, Os cílios desse olho e a alva pálpebra. Eis a face em que a pálpebra descia, E aqui, dedo após dedo, eis a mão, O gênio dessa face. Eis os lábios, Eis o fardo do corpo, mais os pés. . . . . . . . . . . . Da tumba trazemos Badrulbadur

73 Esses poemas foram retirados do blog do poeta Luís Quintais, podendo ser acessados pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/03/11/dois-poemas-de-wallace-stevens/ 74 Essa tradução foi feita por Paulo Henriques Brito e pode ser encontrada, junto de sua versão original, pelo

link: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/seis-poemas-de-wallace-stevens/

188

*

CANÇÃO75

Há coisas esplêndidas acontecendo No mundo, Coelhinho. Há uma donzela, Mais doce que o som do salgueiro, Mais suave que água rasa Correndo sobre seixos. No domingo, Ela veste um casaco longo, Com doze botões. Conta isso à tua mãe.

*

O CÉU CONCEBIDO COMO UM TÚMULO76

Que me dizeis, intérpretes, dos que No túmulo do céu andam à noite, Fantasmas negros da comédia finda? Creem, talvez, que vagarão pra sempre No frio, no escuro, com lanternas altas, Libertos da morte, a buscar sem trégua O que quer que busquem? Ou a lembrança Do enterro, portão da espiritual Chegada ao nada, é antevisão diária Daquela noite única e abissal Em que as hostes não mais caminharão, Nem mais lanternas riscarão a treva? Gritai essa pergunta aos céus, que a ouçam Os sombrios comediantes, e a respondam Do seu longínquo e gélido Élysée.

*

TATUAGEM77

A luz lembra uma aranha.

75 Essa tradução foi feita por Paulo Henriques Brito e pode ser encontrada, junto de sua versão original, pelo

link: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/seis-poemas-de-wallace-stevens/ 76 Esses poemas foram retirados do blog do poeta Luís Quintais, podendo ser acessados pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/03/11/dois-poemas-de-wallace-stevens/ 77 Esses poemas foram retirados do blog do poeta Luís Quintais, podendo ser acessados pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/03/11/dois-poemas-de-wallace-stevens/

189

Caminha sobre a água. Caminha pelas margens da neve. Penetra sob as tuas pálpebras E espalha ali suas teias – Duas teias.

As teias de teus olhos Estão atadas À carne e aos ossos teus Como a um caibro ou capim.

Há filamentos de teus olhos Na superfície da água E nas margens da neve.

190

ANEXO III - CANTO LIII, OS CANTOS, POUND. TRAD. TRADUÇÃO DE JOSÉ

LINO GRÜNEWALD (2006)

191

Yeou ensinou os homens a quebrar galhos Seu Gin montou o palco e ensinou permutas,

ensinou o enlaçar das cordas Fou Hi ensinou os homens a plantar cevada

2837 ante Christum e eles sabem ainda onde está sua tumba pelo alto cipreste entre os sólidos muros. os CINCO grãos, disse Chin Nong, que são

trigo, arroz, milho, gros blé e ervilhas e fez um arado que se usa há cinco mil anos Mudou então sua corte para Kio-feou-hien lançou o mercado ao meio-dia ‘traga o que não temos aqui’, escreveu um herbário Souan yen liqüidou quinze tigres

extraiu sinais de pistas de pássaros Hoang Ti inventou o fabrico de tijolos e sua mulher iniciou o trabalho com os bichos-da-seda

dinheiro havia nos tempos de Hoang Ti. Ele mediu o comprimento de Syrinx

dos tubos para fazer o entoar para canção Vinte e seis (isso era) onze ante Christum

teve quatro mulheres e 25 machos de sua feitura Seu túmulo fica hoje em Kiao-Chan Ti Ko pôs seus mestres a adequar palavras para a música deles

está enterrado em Tung Kieou Isto foi no século vinte e cinco a.C.

YAO semelhante ao sol e à chuva viu qual estrela está no solstício viu qual estrela assinala o meio do verão YU, guia de águas,

a terra negra é fértil, a seda silvestre ainda vem de Shang Ammassi, para as províncias,

deixe seus homens pagarem dízimos em espécie. ‘A província de Siu-tcheou a pagar com terra de cores cinco Plumas de faisão das montanhas de Yu-chan Yu-chan a pagar sicômoros

desta madeira são feitos os alaúdes Ressonantes pedras do rio Se-choui e erva que é chamada Tsing-mo’ ou m©li, Chun para o espírito de Chang Ti, do céu movendo o sol e estrelas

que vos vers expriment vos intentions, et que la musique conforme

192

YAO

CHUN

YU

KAO-YAO

193

ANEXO IV – PEQUENO DOSSIÊ DE FOTOGRAFIAS DE QUINTAIS SOBRE O

JAPÃO

194

物の哀れ, Mono-no-aware:

Figura 23 - Sem título78

Fonte: Luís Quintais (2019)

78 Essas fotografias foram retiradas do blog do poeta Luís Quintais, na publicação 物の哀れ, Mono-no-aware,

podendo ser acessada pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/portfolio/%e7%89%a9%e3%81%ae%e5%93%80%e3%82%8c-mono-no-

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195

Figura 24 - Sem título79

Fonte: Luís Quintais (2019)

79 Essas fotografias foram retiradas do blog do poeta Luís Quintais, na publicação 物の哀れ, Mono-no-aware,

podendo ser acessada pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/portfolio/%e7%89%a9%e3%81%ae%e5%93%80%e3%82%8c-mono-no-

aware/

196

Figura 25 - Sem título80

Fonte: Luís Quintais (2019)

80 Essas fotografias foram retiradas do blog do poeta Luís Quintais, na publicação 物の哀れ, Mono-no-aware,

podendo ser acessada pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/portfolio/%e7%89%a9%e3%81%ae%e5%93%80%e3%82%8c-mono-no-

aware/

197

Figura 26 - Sem título81

Fonte: Luís Quintais (2019)

81 Essas fotografias foram retiradas do blog do poeta Luís Quintais, na publicação 物の哀れ, Mono-no-aware,

podendo ser acessada pelo link:

https://luisquintaisweb.wordpress.com/portfolio/%e7%89%a9%e3%81%ae%e5%93%80%e3%82%8c-mono-no-

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