Sociedade Brasileira de Cirurgia Refrativa (SBCR)
“Tratado Brasileiro de Catarata e Cirurgia Refrativa”
Esta obra tem por finalidade ser um livro de referência em
Oftalmologia e objetiva expor um panorama detalhado dos mais
importantes temas relacionados à catarata e cirurgia
refrativa. O público-alvo será formado por oftalmologistas e médicos de
outras especialidades com interface na Oftalmologia.
Editado por
Armando S. Crema Renato Ambrósio Junior
Presidente da SBCLL Presidente da SBCR
Os Limites da Visão Humana
Autores
Profa. Dra. Marcia Reis Guimaraes 1,2
Profa. Dra. Caroline Alencar 1,2
Prof. Dr. Ricardo Guimaraes 1,2,3
(1) Laboratório de Pesquisa Aplicada à Neurovisão – Holhos-UFMG
(2) Hospital de Olhos Dr. Ricardo Guimarães
(3) Email – [email protected]
Introdução
Uma abordagem sobre os limites da visão humana envolve o estudo dos
olhos e da forma como a imagem é capturada e convertida em experiência
visual. Na compreensão dos processos envolvidos confluem contribuições de
varias áreas da ciência, como óptica, fotoquímica, bioquímica, biologia celular e
molecular, psicofísica, neurobiologia, psicologia e biologia evolutiva. De cada
uma delas, obtemos informações sobre o trabalho visual, seus alcances e
limites. Porém, agrupar essas informações, de modo a discutir e apresentar a
real dimensão de seu alcance, não é tarefa simples.
Os seres humanos são essencialmente visuais e tem uma história
evolutiva que se apoiou a esse sentido para sobrevivência. Por serem dotados
de um sistema duplex de visão, humanos tem grande capacidade de
adaptação às variações de iluminação, mesmo as geradas a distancias
estelares. Em um adulto com os olhos abertos, 66,5% de toda atividade
cerebral é voltada para o processamento visual. Estima-se que a cada segundo
são gerados 3 bilhões de impulsos nervosos no Sistema Nervoso Central e 2
bilhões deles são visuais (1,2). Tamanha importância ilustra o impacto do
sentido visual para o ser humano e a responsabilidade da oftalmologia como a
área medica responsável por ela.
Os novos conceitos e inter-relações da oftalmologia e neurociências
poderão ser úteis para o encaminhamento correto e precoce dos casos, que
apesar de refração normal, apresentam queixas visuais. Esses casos são
suspeitos de déficits na eficiência do processamento visual. Essa nova
abordagem, amplia o campo de trabalho e a efetividade profissional do
oftalmologista nesses casos, nos quais quanto mais precoces as intervenções,
melhores serão as respostas.
O sucesso da oftalmologia do século XXI depende da nossa habilidade
em compreender e saber quantificar as diferentes habilidades visuais e seus
limites, para que possamos planejar intervenções que maximizem o sistema
visual de cada paciente, aplicando todos os recursos tecnológicos, genéticos e
neurobiológicos disponíveis, de acordo com seu potencial e objetivos
individuais.
A abordagem dos limites da visão humana pode ser coberta em 3 áreas,
que são interdependentes pelo efeito cumulativo sobre o desempenho visual
final: (i) limites ópticos, (II) limites impostos pelo Mosaico de Fotorreceptores,
(iii) limites neurais.
(i) Limites Ópticos
Avanços consideráveis na compreensão das propriedades ópticas do
olho humano foram feitos pelo oftalmologista sueco Allvar Gullstrand, em 1908,
que criou um modelo esquemático do olho. Nele são consideradas as
propriedades físicas da córnea e do cristalino, detalhando localização e
qualidade da formação da imagem. Este modelo teórico facilita a compreensão
sobre o nível de interação da luz com os dois elementos ópticos principais, que
são a córnea e o cristalino, sem ignorar a importância do filme lacrimal.
Cerca de 2/3 da refração total do olho ocorre na interface ar/córnea (1)
Na córnea, o diferencial no índice refracional é bem maior do que na passagem
pelas demais estruturas intraoculares. O 1/3 da refração restante está no
cristalino. A resultante destes processos refracionais é a convergência dos
raios de luz no eixo óptico visual.
Por definição, um olho opticamente normal, ou emétrope, tem os feixes
de luz refletidos de um objeto em um “ponto do infinito” focalizados na retina,
ou seja, o sistema córneo-cristalino esta ajustado para que os raios paralelos
que o atravessam incidam exatamente sobre a retina. O olho humano tem
ajustes específicos para lidar com objetos mais próximos, “aquém do infinito”;
promovendo alterações entre os centros (eixo óptico) das superfícies refrativas.
Caso o poder refracional do sistema córnea + cristalino permanecesse fixo,
haveria a formação de um foco borrado do objeto pelos raios divergentes
atingindo a retina. É necessário que ocorram ajustes neste sistema envolvendo
a córnea, o cristalino ou ambos (1 3).
Um indivíduo, com olhos opticamente normais, contará com uma
extrema competência em sua dinâmica de ajuste focal e nitidez, em suas
atividades da vida diária, sem nenhum esforço adicional. Graças à rapidez com
que este fenômeno ocorre, nem mesmo o borramento temporário será
detectado, por se tratar de reflexos involuntários, desencadeados
automaticamente quando ocorre perda na nitidez do foco (1, 2, 4,5).
A habilidade da óptica ocular em proporcionar boa focalização na retina
pode ser demonstrada graficamente por curvas de transferência modular ou
MTF (modulation transfer function), ou função de transferência de modulação
de um objeto para uma imagem, em relação à frequência espacial e contraste.
Os estímulos utilizados, para compor a MTF, são estímulos contendo ondas
senoidais com frequências espaciais, que são medidas, convencionalmente,
em ciclos por grau de ângulo visual (cpg). O cpg representa a quantidade de
ciclos (faixa clara + faixa escura) por grau de ângulo visual. Como o grau de
ângulo visual é uma medida que se altera de acordo com a distância, a
distância do olho para o estímulo precisa ser fixa durante essas medidas.
As frequências espaciais baixas (com menos que 2,0 cpg)
correspondem a listras largas, que fornecem informações de formato e traços
mais grosseiros dos objetos; geralmente alterações nessa faixa de frequência
estão relacionadas a alterações na via magnocelular (pós-receptoral). As
frequências espaciais médias (2,0 a 4,0 cpg) correspondem a listras de largura
intermediária, que são processadas tanto pela via magnocelular, como pela via
parvocelular, porém ambas de processamento pós-receptoral.
As frequências espaciais altas (mais que 4,0 cpg) correspondem a listras
mais finas, que fornecem informações de detalhes e também são processadas
em nível pós-receptoral, pela via parvocelular. Porém, ao contrário do que
ocorre para as frequências baixas e médias, o desempenho na detecção das
frequências espaciais altas pode ser limitado pela presença de baixa acuidade
visual decorrente de alterações ópticas (4,6). As frequências espaciais, de 18,0
a 22,0 cpg e às vezes até 32,0 cpg, equivalem aos espaços angulares da
Tabela de Acuidade Visual de Snellen; Valores entre 20/20 e 20/16 na Tabela
ETDRS, sob 100% de contraste e fonte de luz monocromática, representam a
maior resolução espacial que o sistema visual humano consegue processar (1,
2, 4, 5,6).
Estudos psicofísicos avaliando a sensibilidade ao contraste, para
estímulos acromáticos com frequências espaciais acima de 60 cpg, não
mostram ganhos relevantes no desempenho final, indicando um esgotamento
na capacidade de resolução da fóvea humana que passa a processar faixas
superpostas de diferentes frequências como se fossem idênticas ou
somatórias.
Outro componente muito importante neste ajuste é o ajuste do diâmetro
pupilar, que, para variações de luminância de ordem menor, ate fator 8, como
ocorre na vida diária ao dirigir em tuneis, entrando e saindo de lojas, etc.,
assegura nossa capacidade de adaptação. Dependendo da luminância
ambiental, o diâmetro pupilar é ajustado, permitindo a entrada maior ou menor
de raios luminosos, afetando a qualidade ou nitidez do foco final (5,7). As
respostas adaptativas imediatas da íris, que causam contração ou dilatação da
pupila, entre 2,5 a 6,0 em miose ou midríase, ocorrem em 1 décimo de
segundo. A variação neste diâmetro regula a luz que atinge a retina por um
fator de 6/2,5 (1 2,7).
Isto significa que dois objetos localizados em profundidades diferentes,
no mesmo campo visual, serão mais nitidamente detectados quanto menor for
o diâmetro pupilar (miose). Este fato é bem conhecido por fotógrafos
profissionais, que sempre optam por menores aberturas em suas lentes,
quando querem maximizar o foco para objetos em diferentes distancias.
Aberrações Cromáticas
É impossível discorrer sobre o potencial visual humano e suas
limitações, ignorando o efeito das aberrações cromáticas no desempenho das
atividades da vida diária. As aberrações cromáticas podem ser axiais e
transversas. As axiais referem-se às diferenças no foco cromático ao longo do
eixo óptico. A luz azul, por ter comprimento de onda curto, tem o foco mais
próximo à córnea e ao cristalino, em comparação com a luz vermelha, que
possui comprimento de onda longo. Assim, numa faixa espectral mais ampla,
apenas um destes extremos estará em foco na retina. A diferença cromática
total estimada é relativamente constante em humanos, atingindo a ordem de
2,0 dioptrias prismáticas. Já as aberrações cromáticas transversas consideram
a relação do deslocamento transversal cromático da imagem pela retina. É
menos impactante do que a axial, pelo fato da fóvea e a pupila estarem bem
alinhadas, reduzindo o efeito do desnível entre os comprimentos de onda
curtos e o foco no eixo monocromático.
Transpondo estas considerações para a vida cotidiana, quando estamos
expostos a ondas policromáticas, evidencia-se a importância de uma análise da
visão funcional na clinica ambulatorial e cirúrgica, onde estas distorções podem
ser avaliadas em testes mais refinados de discriminação cromática (14,19).
Testes de Sensibilidade ao Contraste (mais detalhados na sessão Função de
Sensibilidade ao Contraste) para estímulos cromáticos, com várias frequências
espaciais, permitem uma compreensão mais aprofundada da aberração
cromática na qualidade final da imagem.
Ainda que não existam tecnologias disponíveis para acessar o impacto
das aberrações policromáticas em pupilas maiores expostos a luminâncias
variadas, é possível prever os potenciais benefícios de intervenções
customizadas, pela análise das curvas de sensibilidade ao contraste, feitas
conforme procedimento descrito neste capítulo, no subitem: Função de
Sensibilidade ao Contraste (5, 6, 16,22).
Outras limitações progressivas no desempenho visual em adultos se
relacionam à perda de sensibilidade aos comprimentos de onda da luz azul,
observados à medida que a pigmentação do cristalino aumenta, o que pode
causar impactos de até 40% na visão de cores. Esta perda prejudica, tal como
ocorre na tritanopia, a distinção entre tonalidades de azul-verde, que são
usadas em códigos de medicamentos, por exemplo, além da segurança para
dirigir sob luminância mesópica e escotópica (24). Em atividades da vida diária,
ocorrem ajustes contínuos durante a exposição a faixa espectral visível e,
portanto, policromática. Na clínica, é desconcertante nos depararmos com
pacientes mais jovens, nos quais a variação do diâmetro pupilar é mais ampla,
se queixando de perda de qualidade visual diurna ou noturna, quando as
medidas de acuidade visual estão aparentemente ideais (16,20,22).
(ii) Limites Impostos pelo Mosaico de Fotorreceptores
Outro fator crítico sobre a visão é a disposição do mosaico retiniano.
Trata-se, principalmente, da densidade e disposição dos fotorreceptores, que
são os responsáveis pela fototransdução; captação do estímulo luminoso físico
(dualidade onda eletromagnética e partícula), e conversão em estímulo
biológico. Estes impulsos neurais retinianos sofrerão ação modulatória de
células horizontais e amácrimas. Ná macula, há uma alta densidade de cones,
com baixo espaçamento entre eles. Esses cones tem uma linha direta entre as
células bipolares e ganglionares, com baixo grau de convergência, chegando,
na fóvea, a uma razão de 1:1. Assim, a imagem macular é mais nítida e possui
uma resolução espacial maior, principalmente na região da fóvea. Como
antecipado pelo fisiologista e filosofo alemão Hermann Von Helmholtz, nossa
habilidade em separar duas imagens pontuais requer no mínimo um ponto não
estimulado entre ambas (8). Esta afirmação revelou-se verdadeira não só para
humanos, mas também para mamíferos em geral, uma vez que a constituição
biológica coincide com os limites de resolução de dois pontos impostos pelas
leis da física para a formação de imagens.
Estudos anatômicos e comportamentais estimaram o espaçamento
limite para que dois estímulos pontuais fossem percebidos individualmente, em
etapas pos-receptorais (9,10). A frequência de aquisição se relaciona com o
espaçamento entre as fileiras de cones, o que na visão humana, é da ordem de
0,51 minutos de arco, ou 59 cpg. Este limite indica o padrão máximo de
detalhamento perceptível pelo mosaico de cones na retina humana e é
conhecido como Limite de Nyquist, tendo sido descrito pelo físico americano
Harry Nyquist (11,12).
Por definição, um indivíduo com acuidade visual normal é capaz de
detectar um ângulo mínimo de resolução espacial equivalente a 1,0 minuto de
arco, quando visto monocularmente. Esta medida é realizada, usualmente, por
meio da Tabela de Snellen, que foi desenvolvida pelo oftalmologista holandês
Hermann Snellen, ao final do século XIX. A visão 20-20 (ou 6/6) equivale à
medida alcançada, onde o numerador, é a distancia testada de 20 pés (ou 6
metros), dividida pela distancia na qual a letra subentende o valor de 1,0
minuto de arco (denominador).
Como estabelecido por Nyquist, acima de 0,51 minutos de arco ou 20/10
aproximadamente, ocorre a perda gradual na resolução e nitidez da imagem
que se deteriora, passando a ser percebida como grumos ou manchas de
padrão zebrado, interpretados como resultado da estimulação de cones
parafoveais, cujo espaçamento é mais amplo (12,13,14). Existem casos em
que a resolução espacial se apresenta acima do limite de Nyquist, graças a
densidade foveal muito acima da media, inclusive, há registros de densidade
acima de 240.000 cones por mm2, estando os valores usuais na faixa entre
120.000 a 150.000 cones por mm2.
Outro conceito importante para compreensão dos fatores que limitam a
resolução espacial é o conceito de fontes pontuais de luz, que criam imagens
pontuais retinianas, e são levemente borradas pelas distorções ópticas
inerentes às leis da física que regem a formação de imagens. Por isto, a
habilidade visual humana máxima em distinguir dois pontos de luz está limitada
pela extensão de borramento produzido por eles, os “point spread function” ou
psf. Estes psfs tem que estar suficientemente distantes para que sejam
fisicamente identificáveis (2 5,6).
Sistemas visuais: retina duplex
O bastonete é o fotorreceptor do sistema escotópico, cuja função é
captar estímulos na faixa de cinza. Sua faixa de absorção espectral é ampla
(380 a 650 nm), com sensibilidade máxima para 500 nanômetros, coincidindo,
portanto, com o máximo de absorção espectral sob luz noturna. Embora sejam
muito mais numerosos, em uma proporção de 20:1 em relação aos cones, os
bastonetes são mais espaçados e possuem um alto grau de convergência, ou
seja, é preciso a estimulação de vários bastonetes para que uma célula
ganglionar seja estimulada, o que impossibilita a resolução espacial necessária
para visão de detalhes (2,3).
Os cones são os fotorreceptores que compõem o sistema fotópico.
Existem 3 tipos de cones, cada qual com seu pico de absorção/sensibilidade
compondo a faixa espectral visível humana. Os que tem pico de sensibilidade à
luz na faixa dos 419 nm (cones S, azuis); 531 nm (cones M, verdes) e 559 nm
(cones L, vermelhos). A maioria dos cones é verde ou vermelho, enquanto que
apenas 8% são azuis.
A densidade da rede que integra a comunicação entre os fotoreceptores
e as células ganglionares varia segundo a localização. Na retina central é tão
densa e especifica que possibilita a conexão individualizada entre um cone e
uma célula ganglionar através de uma única célula bipolar, o que possibilita
uma altíssima resolução espacial, ao contrário do que ocorre na retina
periférica. O nível de processamento é mais intenso na fóvea decrescendo
progressivamente na periferia (Figura 1, excentricidade retiniana) permitindo
que o cérebro visual processe “computacionalmente” um grande número de
informações e detalhes oriundos de uma pequena área retiniana. A divisão de
trabalho entre esses dois sistemas independentes assegura um balanceamento
perfeito entre a detecção de detalhes na retina central e a visão em baixa luz
pela retina periférica, assegurando a função visual sob uma vasta gama de
demandas sensoriais e de sobrevivência (2, 10, 12,14).
Figura 1: Esquema representativo da Excentricidade Retiniana (Gentilmente cedido por Christina Joselevitch).
A retina humana funciona como um processador duplex, com o um
sistema escotópico para condições de baixa luminosidade (a noite); e o sistema
fotópico para condições de alta luminosidade durante o dia (2,3,7). Existe ainda
uma faixa intermediaria de luminosidade, na qual os dois sistemas estão
operantes simultaneamente, a faixa mesópica (14,15).
Muitos casos de intolerância pós-operatória, ainda hoje, atribuídos a
fatores ocupacionais e “falta de motivação pessoal”, podem estar no grupo de
alterações que não são corrigidas somente com cirurgia refrativa. Reabilitações
cirúrgicas mais sofisticadas exigem um aperfeiçoamento nos fatores ópticos
relacionados à correção refracional, que são influenciados pela ametropia
residual, reserva acomodativa, ajuste pupilar mesópico-escotópico e
processamento pós-receptoral (16 17,18).
Ainda hoje somos constrangidos a lidar com pacientes poli queixosos e
altamente insatisfeitos, que apresentam 20/20 e J1 nos exames ambulatoriais e
quadros clinico-funcionais, cujas causas não dominamos, mas que,
provavelmente, tem seus fundamentos no processamento visual cortical
(20,22).
(iii) Limites Neurais
A informação visual deixa a retina por meio de 3 grandes vias paralelas
e interdependentes, anatomicamente e fisiologicamente: a via parvocelular,
magnocelular e koniocelular, nomeadas de acordo com o tipo de célula
ganglionar da qual tiveram origem. Essas três vias passam pelo Núcleo
Geniculado Lateral no Tálamo e, em seguida, alcançam áreas distintas do
córtex visual primário (V1). Em V1 ocorrem múltiplas intercomunicações, o que
torna mais difícil distinguir as respostas individuais dos três sistemas, com suas
propriedades fisiológicas interconectadas. De V2 em diante, esses três
sistemas são integrados em dois: o sistema Dorsal, ou “Via Onde”, responsável
pelo processamento de informações referentes à orientação espacial,
movimento e profundidade; e o sistema Ventral, ou “Via O que”, responsável
pelo processamento de cor, de detalhes, faces e etc.
A via Parvocelular (composta por 80% das fibras do nervo óptico), é
formada por axônios retinianos de células ganglionares “pequenas” do tipo
Beta, que possuem campos receptivos pequenos, alta resolução espacial,
baixa resolução temporal e alta latência (resposta relativamente lentas).
Processa toda a informação relativa à cor e ao preto e branco em alto
contraste. A transmissão de seus estímulos para as áreas corticais é feitas de
forma lenta e
A via Magnocelular (composta por 10% das fibras do nervo óptico) é
formada por axônios das células ganglionares “grandes” do tipo Alfa, que
possuem campos receptivos grandes, baixa resolução espacial, alta resolução
temporal e baixa latência (respostas rápidas). Processa toda informação
relacionada ao movimento e ao preto e branco em baixo contraste. Parte das
fibras magnocelulares faz conexão no Colículo Superior e regulam a
oculomotricidade, indispensável para direcionarmos a fóvea para as partes
mais relevantes da cena visual.
A via Koniocelular é a menos conhecida. Acredita-se que esta via é
importante para a intercomunicação dos sistemas parvo e magno. O consenso
é que esta via esteja associada ao processamento de informações do eixo
cromático azul/amarelo (2 3,7).
Função de Sensibilidade ao Contraste
Uma ferramenta importante para avaliação do processamento visual, ou
visão funcional, é a Função de Sensibilidade ao Contraste (Figura 2). Nesse
teste é possível variar a frequência espacial, ou temporal, para medir a
resposta de diferentes canais de neurônios que sintonizados para frequências
espaciais altas e temporais baixas, como é o caso da via parvo; ou canais
sintonizados para frequências espaciais baixas e temporais altas, como a via
magnocelular. Também é possível variar as condições de luminância (fotópica,
mesópica ou escotópica), para identificar respostas de cones, ou de
bastonetes; usar estímulos em coordenadas cartesianas para acessar a
resposta de áreas corticais visuais primárias, como V1, ou em coordenadas
polares para acessar a resposta de áreas corticais visuais superiores, como V2
e V4; ou realizar o teste sobre condições de ofuscamento, comuns, por
exemplo, ao dirigir (3, 5, 7,20).
Figura 2: O eixo y representa os valores de Sensibilidade ao Contraste para as diferentes frequências espaciais (eixo x). As diversas curvas estreitas representam a sensibilidade dos múltiplos canais de neurônios sintonizados para faixas estreitas de frequências espaciais. A curva maior representa a Função de Sensibilidade ao Contraste, que é o envelope composto pela resposta de todos os canais. As fotografias representam a mesma imagem passando por diversos filtros, da esquerda para direita e de cima para baixo: passa-baixa, passa-média e passa-alta, sendo a última imagem o resultado da informação captada por cada canal (Imagem adaptada da original gentilmente cedida por Stereo Optical Company, INC).
Por toda essa complexidade do sistema visual, uma correção cirúrgica
mesmo com a máxima eficácia em termos de correção refracional e eliminação
de aberrações ópticas de 1ª e 2ª ordem, não é sinônimo de excelência visual
funcional (14 16,18).
Como diretora clínica do setor de Neurovisão do Hospital de Olhos Dr.
Ricardo Guimarães, não é raro examinarmos pacientes com alterações visuais
significativas, apesar de acuidade visual de 20/20 e "cover test" normal. As
limitações visuais mais comuns se referem à perda de sensibilidade ao
contraste, comprometimento na percepção de movimentos (processamento
temporal), hipersensibilidade à luz, alterações no padrão oculomotor e na visão
tridimensional. Tais limitações impactam as mais diversas atividades
cotidianas, desde escrita e leitura, deslocamento no ambiente, direção
automotiva, atividades esportivas, até funções cognitivas, como memória e
atenção. Muitos déficits passam despercebidos pelos exames oftalmológicos
focados na Acuidade Visual ou em patologias oculares, e continuam presentes
mesmo após facectomias com implantes multifocais e cirurgias refrativas (15,
20, 21,22).
Considerações Finais
A natureza proporciona, ao sistema visual humano, diferentes
estratégias para distintos objetivos. O grau de sensibilidade visual possibilita
uma extraordinária adaptação, da ordem de 1012, ou seja, trilhões de vezes,
possibilitando a visão nas mais diversas condições a que somos expostos,
desde luz solar direta ao meio dia até a semi-escuridão noturna. O olho
humano adulto atua como um órgão multifuncional, capaz de atender a uma
larga margem de funções. As habilidades visuais sempre foram diferenciais
competitivos para sobrevivência do ser humano. Ao longo da evolução, durante
estes 1,8 milhões de anos, desde que o primeiro humano povoou a Terra, a
visão é o sentido mais importante para nossa espécie (1,7).
Esta variabilidade na espécie humana torna critica uma avaliação mais
personalizada da visão funcional e o acesso a uma tecnologia que analise o
perfil de resposta policromática. O objetivo seria estabelecer os limites
espectrais benéficos a cada paciente, suprimindo eventuais faixas espectrais
hipersensibilizantes, nocivas ou fototóxicas, de acordo com as patologias
presentes ou distúrbios de processamento (22, 24,26), por meio da prescrição
de filtros seletivos individualizados. Semelhante ao procedimento atualmente
adotado, em lentes fotocromáticas e polarizadas, de forma genérica.
Oftalmopediatras e clínicos lidam cada vez mais com quadros de
disfunções visuais com reflexos no desempenho acadêmico e profissional. Na
minha experiência clínica, estes casos são habitualmente encaminhados por
pediatras e neurologistas. Mesmo entre os colegas sem interesse direto pela
área de visão e aprendizagem, os novos conceitos e inter-relações da
oftalmologia e das neurociências poderão ser úteis para o encaminhamento
correto e precoce dos casos suspeitos de déficits na eficiência do
processamento visual. Essa nova abordagem ampliaria o campo de trabalho do
médico e sua efetividade profissional neste grupo de pacientes, nos quais
quanto mais precoces as intervenções, melhores serão as respostas (25,26).
Largos estudos retrospectivos comprovaram uma grande incidência de
déficits funcionais tardios, afetando a visão espacial, binocularidade,
estereopsia, percepção de contrastes, oculomotricidade dinâmica,
processamento temporal e fotofobia em pacientes com visão dita normal pelo
exame oftalmológico de rotina (7).
São justamente a estes déficits subclínicos que se atribuem hoje boa
parte das queixas relatadas em pós-operatórios de facectomias com implantes
mais diferenciados e cirurgias refrativas. A insatisfação crescente impede a real
apreciação do refinamento proporcionado pela qualidade técnica das órteses e
técnicas cirúrgicas utilizadas. Ao mesmo tempo o cirurgião se vê obrigado a
lidar com as limitações pré-existentes não identificadas na propedêutica pré-
operatória inicial, que continuam presentes mesmo após total correção da
ametropia e remoção da opacidade lenticular (27).
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