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Cipó (1935) e Paulo Afonso (1948): Duas cidades novas no semi-árido baiano

Date post: 17-Jan-2023
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Cipó (1935) e Paulo Afonso (1948): Duas cidades novas no semi-árido baiano Resumo No segundo quartel do século XX, o semi-árido baiano presenciou o surgimento de duas cidades planejadas, distantes 208 quilômetros entre si e implantadas em um intervalo de apenas 13 anos. Embora possuam diversas características que as diferenciam – contexto político, esfera governamental responsável pelo planejamento e implantação da cidade, linguagem arquitetônica adotada nas edificações projetadas e, principalmente, finalidade da criação da cidade –, Cipó e Paulo Afonso se aproximam em diversos outros aspectos: a influência do ideário das cidades- jardim, perceptível no traçado viário, na lógica da ocupação do solo e na presença marcante da vegetação no espaço urbano, e a profusão de equipamentos públicos instalados concomitantemente ao início do processo de urbanização, garantindo a estas cidades uma infra- estrutura que as grandes cidades do interior baiano ainda não possuíam à época. Baseado em pesquisa bibliográfica, iconográfica e documental em arquivos públicos e privados, bem como em pesquisas de campo e levantamentos fotográficos atualizados, este artigo pretende promover uma análise do processo de planejamento, ocupação e transformação destas duas cidades novas do semi-árido baiano e discutir as relações entre arquitetura e desenho urbano, memória coletiva e imagem urbana, segregação espacial e identidade cultural nelas estabelecidas.
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Cipó (1935) e Paulo Afonso (1948):

Duas cidades novas no semi-árido baiano

Resumo

No segundo quartel do século XX, o semi-árido baiano presenciou o surgimento de duas cidades

planejadas, distantes 208 quilômetros entre si e implantadas em um intervalo de apenas 13 anos.

Embora possuam diversas características que as diferenciam – contexto político, esfera

governamental responsável pelo planejamento e implantação da cidade, linguagem arquitetônica

adotada nas edificações projetadas e, principalmente, finalidade da criação da cidade –, Cipó e

Paulo Afonso se aproximam em diversos outros aspectos: a influência do ideário das cidades-

jardim, perceptível no traçado viário, na lógica da ocupação do solo e na presença marcante da

vegetação no espaço urbano, e a profusão de equipamentos públicos instalados

concomitantemente ao início do processo de urbanização, garantindo a estas cidades uma infra-

estrutura que as grandes cidades do interior baiano ainda não possuíam à época.

Baseado em pesquisa bibliográfica, iconográfica e documental em arquivos públicos e privados,

bem como em pesquisas de campo e levantamentos fotográficos atualizados, este artigo pretende

promover uma análise do processo de planejamento, ocupação e transformação destas duas

cidades novas do semi-árido baiano e discutir as relações entre arquitetura e desenho urbano,

memória coletiva e imagem urbana, segregação espacial e identidade cultural nelas

estabelecidas.

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Cipó (1935) e Paulo Afonso (1948):

Duas cidades novas no semi-árido baiano

No segundo quartel do século XX, o semi-árido baiano presenciou o surgimento de duas cidades

planejadas, distantes 208 quilômetros entre si e implantadas em um intervalo de apenas 13 anos.

Embora possuam diversas características que as diferenciam – contexto político, esfera

governamental responsável pelo planejamento e implantação da cidade, linguagem arquitetônica

adotada nas edificações projetadas e, principalmente, finalidade da criação da cidade –, Cipó e

Paulo Afonso se aproximam em diversos outros aspectos: a influência do ideário das cidades-

jardim, perceptível no traçado viário, na lógica da ocupação do solo e na presença marcante da

vegetação no espaço urbano, e a profusão de equipamentos públicos instalados

concomitantemente ao início do processo de urbanização, garantindo a estas cidades uma infra-

estrutura que as grandes cidades do interior baiano ainda não possuíam à época.

Baseado em pesquisa bibliográfica, iconográfica e documental em arquivos públicos e privados,

bem como em pesquisas de campo e levantamentos fotográficos atualizados, este artigo pretende

promover uma análise do processo de planejamento, ocupação e transformação destas duas

cidades novas do semi-árido baiano e discutir as relações entre arquitetura e desenho urbano,

memória coletiva e imagem urbana, segregação espacial e identidade cultural nelas

estabelecidas.

A Estância Hidromineral de Cipó

A construção da Estância Hidromineral de Cipó, ente criado por decreto estadual em 1935,

baseia-se na confiança depositada por Juracy Magalhães no potencial das águas termais de Cipó

como gerador de riquezas para o Estado da Bahia. Conhecidas pelas autoridades governamentais

desde o século XVIII, as águas curativas do Itapicurú adquirem notoriedade a partir de 1929,

quando o médico baiano Genésio Salles passa a explorá-las através da Empreza Balneária do

Cipó.

Um plano de desenvolvimento do interior, cujo teor carece de estudos mais aprofundados, foi

capitaneado por Juracy Magalhães durante sua interventoria e governo (1931-1937), promovendo

um amplo desenvolvimento da malha viária e patrocinando a construção de equipamentos

públicos, redes de abastecimento e saneamento de água e de iluminação pública, no intuito de

aproximar e urbanizar as cidades do interior e de modificar o quadro predominantemente rural que

dominava a Bahia de então. Essa era uma maneira de o Estado marcar sua presença e exercer

controle sobre o território, reprimindo a ação de grupos de cangaceiros, fazendo aliança com os

coronéis e conquistando militantes para a campanha eleitoral de 1934.

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Apesar de algumas ações pontuais que a precederam, a instituição da primeira estância

hidromineral da Bahia, em 1935, faz com que o recém-criado município de Cipó passe a ser

administrado e tenha a sua construção financiada diretamente pelo Estado, o que conduz às

obras de urbanização e construção de edifícios e equipamentos públicos na cidade.

O Engenheiro Civil Oscar Caetano da Silva1, o primeiro prefeito indicado pelo governador, é o

autor do Plano de Expansão e Melhoramentos da Vila Balneária do Cipó e quem o coloca em

prática, conduzindo os trabalhos de abertura e pavimentação de vias e praças, abastecimento de

água, iluminação pública e construção dos primeiros edifícios públicos, norteadores do

crescimento da nova cidade.

Até o final dos anos 1920, o povoado de Cipó configurava-se espacialmente por uma praça

retangular com um barracão central em torno do qual eram realizadas as tradicionais feiras

semanais. Além da praça, poucas ruas sugeridas pelos alinhamentos irregulares das casas

estendiam-se lentamente e outras casas e barracos pontuavam aleatoriamente o território.

Figuras 1 e 2 – Configuração do povoado de Cipó: à esquerda, c. 1927; à direita, c. 1933 (digitalizado sobre

planta da cidade e com base em fotografias).

Figuras 3 e 4 – Fotografias da Praça da Feira com barracão central e capela, 1927 (fontes: Arquivo

Theodoro Sampaio e Acervo de Evandro Góes).

1 Oscar Caetano da Silva (1902-1987) nasceu em Salvador e diplomou-se pela Escola Politécnica da Bahia em 1926. Foi professor da Escola Politécnica e da Escola de Belas Artes da Bahia e funcionário da Secretaria de Viação e Obras Públicas, tendo sido “prefeito técnico de Cipó” entre 1935 e 1938 (SILVA, 1972).

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Este panorama começa a ser modificado a partir de 1929, com a organização do Balneário, a

demolicao da antiga igreja e a construção do Radium Hotel e do Teatro pelo concessionário.

Sobre aquele território, Oscar Caetano traçou o plano urbanístico, buscando transformar a

espacialidade da pequena vila e dar-lhe novos usos e qualidades.

A implantação do plano trouxe mudanças para a população nativa. A vida na vila - que se

desenvolvia em torno da tradicional feira semanal - ia sendo modificada a partir de decisões

externas: desapropriações e abertura de ruas eram assimiladas tendo em vista os benefícios

trazidos pela urbanização. Contudo, manifestações de apoio à nova administração eram

freqüentes em cartas e telegramas dirigidos ao governador e em ações públicas de

agradecimento com festejos e queima de fogos.

É certo que a construção da estância interessava ao Estado e modificava a participação dos

antigos moradores na nova cidade. A tendência era de que estes se tornassem espectadores dos

acontecimentos que ali se desenvolveriam, tendo sido reduzida a sua representação política e

iniciada a sua transferência para zonas mais afastadas do antigo centro.

Como aconteceu com as cidades balneárias européias, em que os equipamentos voltados para a

atividade termal ocupam lugar de destaque – geralmente em torno de parques e jardins centrais –,

foi prevista nos desenhos iniciais uma ocupação em torno dos jardins da Praça Juracy Magalhães,

no local da antiga feira, onde já estavam situados o Balneário e dois hotéis.

No centro da estância, os hotéis e cassinos predominariam com os edifícios dos existentes Hotel

Thermal e Radium Hotel; do “Hotel-Casino”, que seria construído em 1939 pelos proprietários do

Palace Hotel de Salvador; e do Hotel Balneário (atual Grande Hotel de Cipó). Nas suas

proximidades, o Balneário Genésio Salles; o Hotel Paiva; o Teatro construído para a diversão dos

hóspedes da Empreza Balneária; a nova Igreja de Nossa Senhora da Saúde e mais um hotel –

cuja construção não foi terminada – dividem espaço com algumas residências e hotéis familiares.

Figura 5 – Estância Hidromineral de Cipó: Perspectiva do Projeto – 1935 (fonte: GOVERNO DO ESTADO

DA BAHIA, 1937, p.125).

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O traçado das vias é adaptado à topografia suave que se desenvolve a partir da margem direita

do rio Itapicurú, onde estão as nascentes termais de Cipó. A Parkway proposta é uma avenida

arborizada, de traçado sinuoso e paralelo ao curso do rio, que segue pelo talvegue do terreno

permitindo a coleta dos esgotos para serem lançados à jusante do centro urbano e atravessa toda

a cidade de oeste a leste. Observa-se que o leito da Parkway é contraponto para o traçado

retilíneo que se orienta nas direções NE-SW e NW-SE, dominado pela Avenida D. Pedro II,

continuação da Estrada de Rodagem, que parte da entrada da cidade em direção aos jardins da

Praça Juracy Magalhães.

O tratamento dos espaços públicos com ajardinamento de praças, criação de bosques verdes e

arborização de ruas; a previsão de recuos e alinhamentos das construções com jardins internos

aos lotes residenciais e os edifícios públicos conformando espaços fechados fazem prevalecer, no

conjunto, uma visão estético-viária com ênfase na vegetação como instrumento de amenização do

clima e composição paisagística.

Alguns conceitos do ideário de cidade-jardim, que estão presentes em projetos para cidades

balneárias brasileiras, são facilmente identificáveis no plano de Oscar Caetano como a

delimitação da área urbanizada, a adaptação à topografia, a adoção da parkway arborizada

cruzando a cidade e interligando bosques, o controle dos recuos e alinhamentos de modo a

conferir espaços ajardinados entre as construções.

No caso específico das estâncias hidrominerais, a criação de um ambiente climático que favorece

e complementa a hidroterapia, assim como a sociabilidade que se desenvolve por meio de

passeios, prática de esportes, saraus, jogos, etc., determinam a predominância de certos

equipamentos em áreas centrais, o que diferencia seus planos urbanísticos daqueles elaborados

para cidades com outras especificidades, como cidades operárias e cidades industriais, por

exemplo.

Figura 6 – Cipó – Estância Hidro-Mineral - Plano de Expansão e Melhoramentos, 1935 (fonte: PREFEITURA

MUNICIPAL DE CIPÓ, 1942, p. 18).

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Figura 7 – Vista da cidade de Cipó desde o Grande Hotel, final dos anos 40 (fonte: Acervo de Evandro

Góes).

Figura 8 – Vista Aérea do núcleo central de Cipó, c. 1977 (fonte: Acervo de Evandro Góes).

Foram poucas as construções não residenciais erguidas em Cipó antes da criação oficial da

estância, estando estas sempre associadas às práticas termais. Com a consolidação do

empreendimento liderado pelo Estado, essas construções seriam reformadas e modificariam suas

características, a fim de se harmonizarem com a estética impressa pelos edifícios públicos que

iam sendo construídos.

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Desde o início da urbanização da estância, a arquitetura dos edifícios públicos indicou uma

unidade estética identificada com a produção realizada pelo Governo do Estado, na capital e no

interior, após a Revolução de 30. Estes edifícios públicos e equipamentos, conjugados com os

serviços de urbanização, desempenharam importante função na implantação do plano urbanístico

da nova cidade.

Figuras 9 e 10 – Balneário do Cipó após ampliação realizada em 1937 e em 2006 (fontes: Acervo de

Evandro Góes e fotografia do autor).

Figuras 11 e 12 – Radium Hotel: à esquerda, construção de 1933 com cassino anexo; à direita após reforma

e ampliação de 1937 (fonte: Acervo de Evandro Góes).

As construções públicas, além de serem implantadas de acordo com as suas necessidades

programáticas dentro do processo gradativo de transformação do espaço, cumprem a função de

expandir o território para os novos limites previstos.

A Usina Diesel-Elétrica (1935) é um edifício destinado ao abrigo e manutenção de um gerador de

energia que foi responsável pela iluminação pública durante 15 anos. Mesmo com pequenas

dimensões, possui localização destacada, devido à importância da sua função naquela época em

que poucas cidades do Estado possuíam iluminação elétrica, sendo o primeiro edifício construído

pela prefeitura após a criação da Estância.

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Figura 13 – Usina Diesel-Elétrica, atual depósito da prefeitura (fotografia do autor, 2008).

O segundo edifício público construído foi o Prédio Escolar (1936). Localizado no centro do Plano,

contribui para a expansão do núcleo urbano. A sua arquitetura está contextualizada com a

produção realizada pelo Governo Estadual, assim como com edifícios construídos à mesma época

em outras cidades brasileiras, a exemplo de Goiânia, que, devido à escassez de recursos, fazia

expressar a monumentalidade e modernidade pretendidas para os edifícios estatais na simetria,

presença de colunas marcando o acesso principal e na simplicidade e economia de ornamentos.

Figuras 14 e 15 – Prédio Escolar: à esquerda, vista do exterior na década de 30; à direita, vista de dentro do

lote, em 2006 (fontes: Acervo de Evandro Góes e fotografia do autor).

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Figuras 16 e 17 – Quartel, Delegacia de Polícia e Cadeia Pública. À esquerda, na década de 40; à direita,

em 2006 (fontes: Acervo de Evandro Góes e fotografia do autor).

Na seqüência, o edifício do Quartel de Polícia (1938) surge como um dos mais importantes no

conjunto urbano, não apenas pela arquitetura, mas também pela localização significativa na

expansão leste e pela implantação sobre a encosta do rio que lhe serve de fosso, sugerindo

posição estratégica de defesa. Nesse edifício de grande massa, frisos em alto relevo acentuam a

horizontalidade e solidez, características das edificações militares.

Os anos 40 consolidam a urbanização e o crescimento da estância, com a construção de mais

edifícios públicos. Nesse período, construções particulares, como residências e hotéis

particulares, também se disseminam.

Figuras 18 e 19 – Exemplares de construções residenciais com dois e um pavimento (fotografias do autor,

2006).

Estas construções menores se inserem no plano urbanístico atendendo aos alinhamentos e

recuos e à exigência de ajardinamento e arborização nas áreas livres dos lotes, contribuindo de

maneira significativa para a formação das áreas verdes urbanas previstas no desenho de Oscar

Caetano.

De modo geral são construções térreas, muitas delas pertencentes a moradores da capital, e em

estilos variados, ora com frontões, ora com beirais. Algumas, de proprietários mais abastados,

possuem dois pavimentos, como a da Família Andrade, construída em estilo Normando.

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Nesse período, o Art Déco continuou presente nas construções públicas importantes, a exemplo

da Usina Elétrica do Bairro Santos Dumont (1949) e da Prefeitura Municipal (1949-50), mas o

Estilo Missões também se fez presente nos edifícios públicos e equipamentos de Cipó, assim

como na Capital e em outras cidades baianas no período. Edifícios importantes na cidade, a

exemplo do Hotel Paiva (1943), do Posto de Puericultura (1949) e do Mercado Municipal (1949),

contribuem para o registro da coexistência de estilos.

Figuras 20 e 21 - Hotel Balneário (Paiva) em “Estilo Missões”, de autoria de Helenauro Soares Sampaio.

Desenho e fotografia da fachada (fontes: SECRETARIA..., 1943; Acervo de Evandro Góes).

Figuras 22 e 23 - Mercado Municipal e Posto de Puericultura de Cipó, inaugurados em 1950 (fonte: Acervo

Accioly Vieira de Andrade).

Figuras 24 e 25 - Prefeitura Municipal de Cipó e Usina Diesel-Elétrica do Bairro Santos Dumont, 1950 (fonte:

Acervo Accioly Vieira de Andrade).

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As construções comerciais e/ou residenciais das famílias nativas transferidas do antigo centro

para o entorno da Praça do Mercado são geminadas e possuem platibandas com contornos

geométricos e frisos em relevo, característicos do estilo Art Déco em sua vertente popular. Foram

construídas de modo a conformar um espaço cercado e estilisticamente uniforme em torno do

Mercado Municipal.

Figuras 26 e 27 – Praça do Mercado com casario de uso misto na década de 40 (fonte: Acervo Accioly

Vieira de Andrade) e em 2006 (fotografia do autor).

No entanto, o maior e mais emblemático edifício construído em Cipó é, sem dúvida, o Grande

Hotel – também chamado Hotel-Balneário e Hotel-Cassino. Contrariando o planejamento da

prefeitura, mas atendendo “à notável repercussão no turismo nacional” (DEPARTAMENTO...,

1942) trazida pela construção da rodovia Bahia-Alagoas, o Governo do Estado lança, em 1942, a

pedra fundamental para a construção2 de “um moderníssimo hotel de luxo, dotado de condições

técnicas sem precedentes no País apenas comparáveis ao que existe de melhor no gênero nas

estâncias Européias do Mediterrâneo” (PREFEITURA..., 1942 p.15).

Devido à sua implantação, localização e dimensões, o edifício interfere significativamente na

paisagem urbana, reforçando o caráter monumental do traçado da Av. D. Pedro II e modificando a

escala da Praça Juracy Magalhães, à sua frente.

Era o maior hotel existente na Bahia à época, com cerca de 11.000,00 m2 de área construída

distribuídos em nove pavimentos – sendo seis acima do nível de acesso frontal – e contando com

instalações de refrigeração do ar, 90 apartamentos [...], piscina de água termal, ginásio, terraços-jardins de recreio e descanso, salas de refeição e recreio especiais para creanças, garages para carros de hospedes, quartos e salões para choffeurs e empregados, etc. (PREFEITURA..., 1942, p.15).

Formalmente, a predominante composição de grandes massas remete às construções em

concreto armado que se difundiram no início dos anos 30, mas é uma construção difícil de ser

caracterizada. Observa-se a utilização de elementos do repertório modernista como os terraços-

2 Com projeto e construção da Christiani & Nielsen, empresa responsável pela construção, entre as décadas de 30 e 40, de grande parte da malha rodoviária da Bahia e de importantes edifícios modernos, como o Elevador Lacerda (1929), o Armazém-Sede do Instituto do Cacau da Bahia (1933-36), o Instituto Normal da Bahia (1936-39), dentre outros.

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jardim e os pilotis, mas esses são disfarçados em pilastras na composição da fachada frontal. A

escassez de ornamentos e a presença de elementos como a escadaria e marquise do acesso,

assim como elementos decorativos no interior do edifício – a exemplo dos guarda-corpos –

remetem à arquitetura Art Déco.

Figura 28 – Grande Hotel de Cipó: fachada voltada para a Praça Juracy Magalhães (fonte: Arquivo da

Construtora Christiani & Nielsen)

Figura 29 – Grande Hotel de Cipó: Fachada Posterior vista da Av. de Contorno, c. 1950. (fonte: Acervo

Accioly de Andrade)

Figura 30 – Grande Hotel de Cipó: escadaria e marquise de acesso e salão do restaurante (fonte: Arquivo

da Construtora Christiani & Nielsen).

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O arrefecimento das práticas terapêuticas termais frente ao desenvolvimento dos medicamentos

alopáticos certamente foi responsável pela diminuição do número de banhistas que procuravam

as águas de Cipó para fins medicinais. Entretanto, esta não era a única e talvez já não fosse a

principal motivação da afluência de turistas ao lugar em meados dos anos 40.

A sociabilidade proporcionada pela Empreza Balneária aos seus hóspedes – pessoas de camadas

sociais mais favorecidas que se reuniam na prática de esportes, nos passeios, jantares, saraus e

bailes realizados nas instalações do concessionário durante as estações, a partir de 1929 –

tornava a estância de Cipó cada vez mais freqüentada por uma elite ávida por desfrutar o contato

com a natureza em períodos de descanso (ESTÂNCIA..., 1933).

A inauguração tardia do Grande Hotel de Cipó, em 1952, estendeu por mais de uma década a

afluência do público selecionado - agora hóspedes de um concessionário que promovia a

sociabilidade baseada nos jogos de azar, a despeito desta atividade estar proibida no país desde

1946. Naturalmente, a população nativa não participava dessa diversão, sendo, contudo,

beneficiada com os investimentos em infra-estrutura promovidos pelo Estado.

Após a encampação do Balneário e o fechamento do Grande Hotel e de seu Cassino nos anos 60,

a cidade entrou em declínio econômico, aparentando situação de abandono (PEIXOTO, 1971). Na

década de 1970, os prefeitos deixaram de ser técnicos indicados pelo governo e passaram a ser

eleitos indiretamente pela Câmara de Vereadores.

Em 1982, numa tentativa da estatal Bahiatursa de promover o turismo no interior do Estado, o

Grande Hotel foi reformado, tendo a sua capacidade reduzida à metade. A criação de leitos com

alguma qualidade na cidade não foi suficiente para garantir o afluxo de turistas, levando o hotel –

àquela altura classificado com três estrelas e administrado pela Rede Tropical de Hotéis – a ser

fechado novamente em 1989 (MARBACK NETO, 1991, p. 50).

Com a autonomia restaurada, embora sem recursos, o município realizou algumas obras na

década de 80 na intenção de promover o turismo. Entretanto, as nascentes termais que deram

origem à estância não foram privilegiadas nem tampouco foram recuperados os edifícios com

importância no processo de formação da cidade. Ao contrário, o Hotel Thermal foi demolido, ao

tempo em que o Balneário e o Radium Hotel eram abandonados e descaracterizados.

O Grande Hotel, que se encontra atualmente sob responsabilidade da prefeitura, permanece uma

construção ociosa e decadente. Especula-se que deva ser transformado em instituição de ensino,

talvez ligado ao ramo da hotelaria, mas não há uma iniciativa determinada. A população e os

governantes locais ainda crêem no retorno do turismo dos tempos áureos e apostam no hotel e na

liberação dos cassinos como uma possível reviravolta.

Os equipamentos que servem à população e que, por isso, continuaram integrados ao cotidiano,

como o Prédio Escolar, o Quartel de Polícia, o Mercado Municipal, a Agência de Correios, o

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Açougue Municipal, o Posto de Puericultura e a Prefeitura Municipal, são os que menos foram

descaracterizados, apesar de reformas realizadas sem o devido critério.

Figura 31 – Vista desde o Grande Hotel. Destaca-se a arborização das vias e do interior do lotes (fotografia

do autor, 2006).

Paulo Afonso, “a Cidade da CHESF”

Pouco mais de uma década após iniciar-se a implantação do plano de Oscar Caetano para a

Estância Hidromineral de Cipó, tem início o processo de urbanização da Fazenda Forquilha,

localizada às margens do Rio São Francisco, cerca de 200 km ao norte daquela estância.

A ocupação do Vale do rio São Francisco foi, no Governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951),

uma prioridade nacional e, além de “povoar melhor as suas margens, torná-las economicamente

estáveis, elevar o padrão de vida de suas populações, implantar uma civilização ribeirinha que

seja uma síntese, uma transição entre as civilizações que se constroem no Nordeste e no Centro

do país”, as ações empreendidas no período tinham como objetivo transformar as zonas

banhadas pelo rio São Francisco em um “vale de possibilidades e promissão” através da “melhor

distribuição de suas águas”, da “utilização de seu potencial hidroelétrico”, do “fomento da indústria

e da agricultura” e do “desenvolvimento da irrigação” (REVISTA..., 1949, pp. 285-286).

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O marco inicial da exploração do potencial energético do rio São Francisco foi o Decreto-Lei

Federal nº 8.031, de 3 de outubro de 1945, que autorizou a organização da Companhia Hidro

Elétrica do São Francisco (CHESF), visando instalar uma usina hidroelétrica na cachoeira de

Paulo Afonso, no município baiano de Glória, com o objetivo de “fornecer energia em uma área

abrangida por uma circunferência de 450 km de raio, com centro em Paulo Afonso”.

Somente após quase três anos, em 15 de março de 1948, a CHESF foi finalmente constituída.

Para atingir seus objetivos, foi necessário

construir-se um ACAMPAMENTO que é uma verdadeira cidade capaz de abrigar não só as suas instalações de serviço [...] como também os seus 1.500 servidores e suas famílias [...] e lhes proporcionar o ambiente social adequado (grupo escolar, escola Senai, igreja, farmácia, banco, hospital, posto de puericultura, restaurante, clube recreativo, campos de esporte, cemitério, correios e telégrafos, mercado, estação de tratamento dágua, iluminação elétrica, telefones, arborização, etc.). É bem de ver que sem a construção da cidade de Paulo Afonso não seria possível executar obra tão complexa e pesada em uma época em que os operários especialisados escasseiam até em países europeus e nos próprios Estados Unidos. (CIA. HIDRO-ELÉTRICA DO SÃO FRANCISCO, 1952, p. 65).

A “cidade da CHESF” foi projetada a partir de 1948 pela Diretoria Técnica da companhia, dirigida

pelo engenheiro paulistano Octávio Marcondes Ferraz, formado pelo Instituto de Engenharia

Eletrotécnica de Grenoble, na França, concomitantemente à organização do canteiro de obras

para a construção das usinas hidroelétricas. A implantação do acampamento e a construção dos

seus principais edifícios ocorreram de forma tão rápida que já em 1949 algumas edificações

importantes, como a Escola Adozindo Magalhães de Oliveira, já estavam erguidas, embora a

primeira usina hidroelétrica só viesse a ser inaugurada em 1955.

Paralelamente, em 15 de dezembro de 1948, foi criada a Comissão do Vale do São Francisco

(C.V.S.F.), que promoveu a elaboração, sob a direção do Eng. Paulo Peltier de Queiroz, de um

“plano técnico [...] ainda inédito no país, pela magnitude e complexidade dos problemas que

coordena – que deverá ser executado num período de 15 anos” (REVISTA..., 1949, p. 287).

Thales de Azevedo chamava a atenção, já em 1950, para a dimensão das obras que estavam

sendo realizadas no semi-árido baiano:

Pouca gente tem notícia exata da grande obra de engenharia hidro-elétrica que se está levando a cabo em Paulo Afonso [...]. Sou tentado a dizer que, tanto quanto a poderosa central elétrica, tem direito à admiração do povo brasileiro a experiência social que é a organização de Forquilha, do povoado em que a C.H.E.S.F. reuniu os seus técnicos, funcionários administrativos e operários. Tudo ali se previu no sentido de tornar possível o trabalho em boas condições de conforto, de higiene, de bem estar, de segurança em meio à agrestia, à agressividade, a durezas excepcionais do deserto que é aquele trecho das margens bahiana e alagoana do São Francisco (AZEVEDO, 1950, p. 15).

Azevedo chama a atenção para dois aspectos – um arquitetônico, outro paisagístico – da “Cidade

da CHESF”:

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Forquilha é o tipo da comunidade planejada em todos os detalhes e posta em execução com minucioso cuidado. A primeira coisa que ali chama a atenção do visitante é o interessante, ainda que discutível, estilo arquitetônico de gosto moderno aplicado a cada um dos 200 edifícios para habitações, aos clubes para funcionários e operários, à igreja, ao mercado, ao restaurante, à escola, estilo em que se combinam elementos próprios do áspero meio tropical, como a pedra, a areia, diversas espécies de cactus, de árvores e flores típicas da catinga nordestina, com o concreto, o ferro, a madeira, o tijolo trazido doutras regiões. A pequenina estação do aeroporto local é, nesse particular, uma curiosa amostra a contrastar com os efeitos grandiosos obtidos no conjunto da praça central do bairro General Dutra com o clube para funcionários, a torre de elevação dágua e a residência dos diretores gerais, dispostos por sua vez em torno a um lindo jardim, composto de ‘cabeças de frade’, tufos de ‘onze horas’ brancas e lilazes, umbuzeiros ocnosos, mandacarus e xique-xiques ao lado de bougainvilles, zínias e vistosas bananeiras de jardim. (loc. cit.)

Apesar de se referir ao “estilo arquitetônico de gosto moderno”, a análise das edificações que

compunham pioneiramente o acampamento da CHESF nos permite concluir que Paulo Afonso se

construiu predominantemente através de uma arquitetura caracterizada pelos materiais e

elementos construtivos ligados à tradição colonial e ao contexto local. As casas padronizadas

construídas no Bairro General Dutra – reservado aos engenheiros e chefes de repartições – e na

Vila Alves de Souza – bairro que abrigava os funcionários menos graduados –, de “arquitetura

muito sugestiva”, nas palavras de Thales de Azevedo, se caracterizam pela cobertura em duas

águas com telhas cerâmicas, arrematados por lambrequins de madeira, e pelo revestimento em

pedra escura na base da construção, nos pilares e em outros detalhes.

Figuras 32 e 33 – Residências na Vila Alves de Souza (à esq.) e no Bairro General Dutra (à dir.) (fotografia do autor, 2010).

Este padrão construtivo, que se vincula à arquitetura neocolonial ainda bastante difundida no

Brasil nos anos 1940, pode ser encontrado também, ainda que com variações, nos edifícios mais

importantes da cidade, como a Igreja de São Francisco (1949), as três escolas – Murilo Braga,

Alves de Souza e Adozindo Magalhães de Oliveira –, o COPA (Clube Operário de Paulo Afonso,

1950), o CPA (Clube Paulo Afonso, 1950), o Posto de Puericultura (1953), o Restaurante, a Casa

de Hóspedes (1951) e a Casa da Diretoria. Ele é encontrado ainda em algumas edificações

localizadas no Complexo de Usinas da CHESF, ainda que neste caso se constituam, em sua

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maioria, em híbridos que conciliam o revestimento em pedra nos pilares com cobertura em telhas

de fibrocimento e, em alguns casos, com vigas de concreto com balanços.

Figuras 34 e 35 – Igreja de São Francisco (à esq.) e Clube Operário de Paulo Afonso (à dir.) (fotografias do autor, 2010).

Figura 36 – Clube Paulo Afonso (fotografia do autor, 2010)

Figura 37 – Antiga Escola Murilo Braga, atual Colégio Estadual Carlina Barbosa de Deus (fotografia do autor, 2010).

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Figura 38 – Igreja de São Francisco (à esq.) e Clube Operário de Paulo Afonso (à dir.) (fotografias do autor,

2010).

Figura 39 – Casa da Diretoria (fotografia do autor, 2010).

Na verdade, poucas são as construções erguidas em Paulo Afonso neste primeiro momento que

se vinculam explicitamente à arquitetura moderna, diferentemente do que faz supor Thales de

Azevedo. Três delas se destacam, todas localizadas fora da “cidade da CHESF” e todas erguidas

não pela companhia, mas pelo Governo do Estado ou pelo Governo Federal.

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A primeira delas é o Posto Médico, construído pelo Governo do Estado e que em 1951 já estava

pronto, com todo um léxico moderno que inclui telhado borboleta, brise-soleils e elementos

circulares vazados. O mesmo ocorre com o edifício projetado em 1947 por Diógenes Rebouças, o

mais importante arauto da arquitetura moderna na Bahia, para abrigar o Hospital Estadual de

Paulo Afonso. Concluído mais de dez anos depois e já abrigando um uso absolutamente distinto –

Quartel do Exército –, este edifício se caracteriza pelos pavilhões com telhados borboleta

delimitando um grande pátio central.

Figura 40 – Posto Médico na Rua das Flores em 1951 (fonte: PREFEITURA..., 1998).

Figura 41 – Quartel do Exército de Paulo Afonso (fonte: Acervo do Memorial da CHESF).

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Entretanto, o principal edifício da cidade a adotar uma linguagem francamente moderna é o Hotel

de Paulo Afonso. Projetado por Rebouças entre 1948 e 1949, a pedido de Rodrigo Mello Franco

de Andrade, diretor-geral da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN), que

por sua vez recebera solicitação direta da Presidência da República para contribuir no processo

de infraestruturação da região, o hotel foi considerado por Lúcio Costa “uma das melhores obras

de arquitetura que existem no Brasil” e arrancou elogios de Oscar Niemeyer e dos colegas do

DPHAN do Rio de Janeiro, como Alcides da Rocha Miranda, Renato Soeiro e José de Souza Reis.

Às qualidades eminentemente volumétricas e espaciais do edifício, alia-se uma magnífica

implantação, no alto de um cânion do rio São Francisco, em frente às cachoeiras que, nos anos

seguintes, seriam antropizadas com a implantação das usinas hidroelétricas.

Figura 42 – Vista aérea do Hotel Paulo Afonso em construção (fonte: Acervo do Memorial da CHESF).

Figura 43 – Vista das fachadas oeste e sul do Hotel Paulo Afonso (fotografia realizada pelo autor, 2010).

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Figura 44 – Vista interna do saguão do Hotel Paulo Afonso, com as rampas de acesso aos pavimentos superiores que abrigam os apartamentos (fotografia realizada pelo autor, 2010).

Figura 45 – Vista do Hotel Paulo Afonso em construção sobre o cânion do Rio São Francisco (fonte: Arquivo da Superintendência Estadual do IPHAN na Bahia).

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A cidade planejada pela CHESF, com a qualidade de vida propiciada pela infraestrutura

implantada pela companhia e pelos altos salários recebidos pelos seus moradores, resultou no

surgimento de uma outra ocupação nos seus arredores, que em tudo se diferenciava da

padronização arquitetônica e da paisagem pouco adensada e arborizada de Forquilha: a Vila

Potí3, “a enorme favela que ao lado se vem desenvolvendo, com uma rapidez espantosa, sob a

influência da escassez de habitações no acampamento e das possibilidades de emprego e

comércio criados no local pelas obras e pelo dinheiro em circulação”, como observa Thales de

Azevedo:

Essa boom town, que ali surgiu há pouco mais de um ano com barracas feitas de sacos de cimento e hoje é um aglomerado heterogêneo de ranchos de palha, de pano, de zinco, de táboa e casas de sopapo, de adôbo e uma quinta parte de tijolo, forma em relação a Forquilha um contraste com todas as características duma situação experimental, criada para estudo de estruturas e relações sociais em desenvolvimento. (AZEVEDO, op. cit., p. 16).

Figura 46 – Vista aérea em 1956, com a Escola Adozindo Magalhães em primeiro plano, a Vila Operária na parte central da imagem e a Vila Poti à direita (fonte:JUCÁ, 1982).

Assim como ocorreria – em outra escala – no Planalto Central brasileiro durante a construção de

Brasília, a afluência de milhares de trabalhadores não foi acompanhada da necessária produção

de moradia, e o excedente terminou por se abrigar nos arredores da cidade planejada pela

CHESF. O crescimento populacional foi tão rápido que, já em 1958 a “cidade da CHESF” e a Vila

Poti possuíam juntas 25.000 habitantes, resultando na emancipação do Município de Paulo

Afonso.

3 O nome Vila Poti decorre da utilização de sacos cimento daquela marca na construção das suas casas (JUCÁ, 1982, p. 272)

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O símbolo físico desta segregação espacial era o muro que separava as duas comunidades,

erguido pelo então Diretor Administrativo da CHESF, Afrânio de Carvalho.

Figura 47 – Muro e guarita de acesso às instalações da CHESF (fonte:JUCÁ, 1982).

A segregação espacial não existia somente entre a “cidade da CHESF” e a Vila Poti, mas também

– em menor escala – dentro da própria cidade planejada e amuralhada. Além de possuírem

residências-tipo diferentes e abrigarem os funcionários da CHESF de estratos sociais

diferenciados, a Vila Alves do Souza e o bairro General Dutra possuíam clubes e hospedarias

diferenciados.

Mesmo hoje, passados muitos anos da eliminação do muro que separava a “cidade da CHESF”

de Vila Poti, mesmo com a descaracterização de boa parte das casas originalmente padronizadas

do bairro General Dutra e da Vila Alves de Souza e com o processo de adensamento e

verticalização da Vila Poti, ainda é notável a diferença entre essas duas ocupações. Onde a área

correspondente à antiga Vila Poti apresenta um traçado urbano desordenado além de uma

ocupação quase total dos terrenos e de raríssimas áreas verdes, a área planejada e implantada

pela CHESF apresenta um traçado radioconcêntrico e vegetação nativa abundante, seja nas

praças e canteiros, seja nas áreas não edificadas dos amplos lotes, resultando na criação de um

microclima que ameniza a elevada temperatura local.

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Figura 48 – Vista aérea da “Cidade da CHESF” no final da década de 1940, com seu traçado radioconcêntrico (fonte: PREFEITURA..., 1998)

Figura 49 – Vista de uma das ruas do Bairro General Dutra em Paulo Afonso (fotografia do autor, 2010)

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Um outro aspecto particular do processo de implantação da CHESF que possui conseqüências

significativas ainda hoje é o papel que a companhia assumiu na região ao praticamente substituir

o Estado em suas outras instâncias. Como observa Jucá, “ao se instalar a obra de Paulo Afonso

com o objetivo precípuo de gerar e vender energia, a CHESF passou a desempenhar um papel

paralelo de cunho social: dar emprego e assistência social a uma imensa região do país” (JUCÁ,

1982, p. 66):

As responsabilidades assumidas [pela CHESF] nos seus primórdios resultaram num progresso e numa ação civilizadora ilusória para os que moram até hoje na cidade de Paulo Afonso. Faltou-lhe a implantação de uma infra-estrutura social e econômica própria, que decisivamente não era responsabilidade da CHESF, mas dos poderes competentes. Paulo Afonso é, hoje, uma cidade que gravita, qual um satélite, em torno da obra de Paulo Afonso que, algum dia, como obra, chegará ao fim, permanecendo apenas o trabalho de operação. (loc. cit.).

Os equipamentos, serviços e infraestrutura implantados pela CHESF atendiam não só aos

funcionários da CHESF como também à população da Vila do Poti e, em alguns casos, como no

do Hospital Nair Alves de Souza, a diversos municípios vizinhos. Ao longo dos anos, as escolas

foram sendo transferidas para a Secretaria Estadual de Educação. O hospital, contudo,

permanece sendo administrado pela CHESF e a notícia recente da sua estadualização provocou

grande polêmica entre a população beneficiada, por acreditar que esta transferência fatalmente

resultaria na queda da qualidade do atendimento.

Alguns dos edifícios construídos nos primeiros anos da CHESF ainda mantêm o uso original,

como é o caso dos dois clubes, da Igreja de São Francisco, da Escola Murilo Braga, da Casa de

Hóspedes, da Casa da Diretoria e do Hospital. Outros tiveram seu uso alterado e, em muitos

casos, isso resultou em transformações físicas que quase sempre significaram a sua

descaracterização, como é o caso do hangar de aeronaves, construído em 1959 e que há alguns

anos foi transformado em um centro cultural.

Figura 50 – Antigo Hangar de Aeronaves da CHESF, atual Centro Cultural de Paulo Afonso (fotografia do autor, 2010)

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Em outros casos, a mudança de uso não provocou grandes alterações arquitetônicas, como é o

caso da Escola Adozindo Magalhães de Oliveira, que passou a abrigar o campus da Universidade

do Estado da Bahia (UNEB) em Paulo Afonso, ou do Ginásio Paulo Afonso (1951), que acabava

de ser transformado em uma sede do Instituto Federal da Bahia (IFBA). Há ainda os edifícios que

se encontram abandonados e em processo avançado de arruinamento, como o Hotel Paulo

Afonso, o Posto Médico e o Restaurante da CHESF.

Figura 51 – Antiga Escola Adozindo Magalhães de Oliveira, atual Campus da UNEB em Paulo Afonso (fotografia do autor, 2010)

Figura 52 – Antigo Ginásio Paulo Afonso, atual Campus da IFBA em Paulo Afonso (fotografia do autor, 2010)

Considerações finais

Embora a CHESF continue tendo um papel fundamental na dinâmica econômica de Paulo Afonso

e a segregação espacial não seja tão significativa quanto nos tempos em que o muro separava a

“cidade da CHESF” da Vila Poti, a história de segregação e a situação de dependência econômica

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de uma companhia estatal cujo destino é, cada dia mais, incerto4 provocam discussões sobre a

identidade de Paulo Afonso na atualidade que em muito se assemelham ao que ocorreu em Cipó

desde a decadência do turismo termal e de lazer como principal atividade econômica, quando o

Estado retirou-se da administração direta da estância. No caso de Cipó, a gigantesca ruína em

que está se tornando o Grande Hotel principal da cidade não permite à população esquecer-se do

seu passado glorioso, sendo recorrente entre os cipoenses o saudosismo pelos tempos em que

famílias abastadas do Nordeste passavam temporadas aproveitando as águas termais e

desfrutando do ambiente proporcionado pela urbanização diferenciada. Embora o abandono e a

decadência em Paulo Afonso sejam menos graves do que em Cipó, limitando-se a construções

pontuais espalhadas pela cidade, parece ser irreversível o processo de transferência da gestão

dos equipamentos urbanos para o Município e o Governo do Estado, com a progressiva limitação

da CHESF àquelas atividades para as quais foi criada – produção e venda de energia

hidroelétrica. Paulo Afonso tem ainda, com relação a Cipó, a vantagem de se constituir em um

importante centro regional de comércio e serviços, e a presença de universidades, de um hospital

regional e de outros equipamentos deste porte a coloca em uma posição de vantagem frente aos

desafios atuais.

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4 A notícia da iminente transferência da CHESF para a Eletrobrás provocou uma grande polêmica, e alguns setores da população acreditam que a conseqüência direta será o “desmantelamento” da CHESF ou, pelo menos, a perda de sua identidade.

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