"Decrescimento": uma etnografia de conflitos no capitalismo contemporâneo1
Ana Flávia P. L. Bádue (USP - São Paulo)
Resumo
Este trabalho parte de uma pesquisa etnográfica sobre o movimento de Decrescimento em Lyon, que nasceu nessa cidade no começo dos anos 2000 questionando o crescimento econômico em função da destruição do meio ambiente por ele ocasionada. Produtores de alimentos orgânicos, coletivos de cicloativistas, meios de comunicação alternativos aproximaram-se do debate. Hoje, o decrescimento existe como nebulosa, uma espécie de rede descentrada, sem hierarquias. Defende-se que esta seria a forma pela qual se coloca em xeque o crescimento econômico, o neoliberalismo e o capitalismo já que trata-se de uma maneira de restituir relações sociais para além da esfera econômica. Ao mesmo tempo, não são anuladas os potenciais conflitos, que devem ser geridos e organizados justamente na forma nebulosa, sem que um ponto de vista se sobreponha a outros, mas sem transformar todos em um movimento de decrescimento unívoco. Os militantes dizem que diante dos problemas ambientais de dimensão global, decorrentes da lógica do crescimento econômico, a luta de classes deixa de fazer sentido pois todos os cidadãos estariam igualmente submetidos à tecnocracia - um dos novos alvos da luta. A partir do debate sobre os sentidos da militância e da política, argumento que o tema dos estilos de vida e da organização em “nebulosa” joga luz à questão da configuração dos conflitos no capitalismo contemporâneo, sendo esta a forma ambígua por meio da qual existem, são questionadas e repostas as contradições do capitalismo.
Palavras-chave: decrescimento, mobilizações sociais, capitalismo
"Aquele que crê que o crescimento pode ser infinito num mundo finito é um
louco ou um economista". A frase do economista americano Kenneth Boulding e suas
variações (como "o crescimento infinito num mundo finito é impossível") tornaram-se
referência para aqueles que defendem o decrescimento, termo que designa tanto um
movimento político-ecológico, quanto um princípio de vida, como ainda um conjunto
de teorias sociais, econômicas e políticas. O ponto comum entre as diversas formulações
do decrescimento é a constatação da insustentabilidade ecológica e social do
crescimento econômico que, mensurado por índices de produção de bens e serviços e de
consumo, encontraria seus limites últimos na exploração da natureza, já que um mundo
de recursos naturais finitos parece dar sinais de esgotamento frente a níveis de
crescimento cada vez maiores. A problematização do crescimento econômico é sempre
complementada pela problematização dos padrões de consumo dos países
industrializados do Norte. Opor-se ao crescimento passa, inevitavelmente, por fazer
1 Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.
1
uma crítica feroz ao modelo da sociedade de consumo e à publicidade.
Os pontos de convergência são, contudo, provisórios: não são núcleos ou centros
em torno dos quais se organizam associações e coletivos do decrescimento, mas são
como pontos de contato entre coletividades distintas. A crítica à sociedade do consumo,
por exemplo, pode ser o ponto de partida de certos grupos decrescentes mas ser o ponto
de chegada de outros. Uma pessoa que se diga afeita ao decrescimento define a causa
pela qual se mobiliza mas complementa sua descrição dizendo que, para entender o
decrescimento, é preciso conhecer outros coletivos e/ou associações. Estas seriam mais
do que “pontos de vista” sobre o decrescimento, seriam o decrescimento propriamente
dito. É por isso que se costuma dizer que o decrescimento é uma “nebulosa”2. Não se
trata de um conjunto determinado de conceitos, ou um movimento social organizado; o
decrescimento, no limite, não existe se transcender os coletivos, os grupos e as pessoas
que compõem a nebulosa. Não estamos diante de um coletivo bem definido ou de uma
rede que se forma a partir do problema da sociedade do consumo. Não há nada além (ou
aquém) da rede, e é assim que se constitui o decrescimento. Em outras palavras, existe
algum sentido mínimo compartilhado que faz com que a palavra “decrescimento” faça
parte de um vocabulário específico3, mas há uma recusa de fazer com que a
inteligibilidade do termo seja efeito de sua univocidade.
De acordo com um rapaz engajado há cerca de dez anos no movimento, o
decrescimento se constituiu em meio à retomada das mobilizações sociais do fim dos
anos 1990, sobretudo os movimentos anti-globalização. Naquele momento, os
questionamentos ao neoliberalismo circulavam com força em jornais como no Le
Monde Diplomatique. Paralelamente, a II Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento Humano, em 1992 no Rio de Janeiro, trouxe de volta a
questão ambiental para o debate político e os anos 2000 conheceram uma crescente
mobilização relativa à ecologia4. Estava em curso uma articulação inédita entre críticas
2 Os termos entre aspas referem-se ao vocabulário militante.3 Para ficar mais claro, pensemos em como a palavra decrescimento aparece no Brasil: não a
identificamos com um grupo de pessoas ou um conjunto de ideias. Decrescimento é apenas a palavra que indica o contrário de crescimento, seja econômico, físico, estatístico. Na França, o termo décroissance entrou para o dicionário Petit Larouse em 2009 como "politique préconisant un ralentissement du taux de croissance dans une perspective de développement durable" (Bonal, 2009), mas grande parte dos outros dicionários dão como definição "diminuição".
4 Nos anos 1960 e 70 as questões político-ecológicas eram candentes, mas nas décadas seguintes arrefeceram e voltaram a ter expressão nos anos 2000. Cf. (Dalton, 1994)
2
ao neoliberalismo e questionamentos político-ecológicos, completou o antropólogo –
José Bové é um personagem emblemático desse momento que se tornou referência para
essa articulação ao fazer um desmanche de um McDonald's em agosto de 1999.
Em 2002, foi realizado em Paris um colóquio chamado Refaire le monde, défaire
le developpement sob organização do Le Monde Diplomatique, do projeto MOST da
Unesco e do grupo La ligne d'horizon, uma micro-associação fundada em 1988. A
conferência reverberava as mobilizações anti-globalização, como se pode verificar em
muitas exposições orais. Alain Gresh, jornalista do Le Monde Diplomatique, disse que
tais movimentos abriram a possibilidade de fazer críticas a coisas que antes eram
tomadas como solução, como o desenvolvimento, o neoliberalismo e o progresso. Na
esteira desses debates a Conferência teria dado um passo além ao discutir a viabilidade
de soluções aos problemas levantados em Seattle. Era como se o evento reiterasse as
críticas do movimento anti-globalização, somando a elas o desejo de refazer o mundo
(Gresh, 2002).
Latouche, que logo tornou-se uma sumidade do decrescimento, estava bastante
engajado no evento em defender que o desenvolvimento não seria, em hipótese alguma,
uma solução para os problemas postos pelo neoliberalismo e pela globalização. Muitas
outras falas consistiram em expor dados para defender o argumento de que o
desenvolvimento não trouxera melhorias de fato para as pessoas e para o meio
ambiente. Por essa razão, a solução seria a "descolonização do imaginário" e o
“decrescimento” (Latouche, 2002, p. 22), e não uma transformação ou melhoria do
desenvolvimento (donde as duras críticas ao desenvolvimento sustentável, social,
alternativo, social, humano, local, etc). Naquele momento a palavra decrescimento
nomeou e sistematizou de alguma forma a articulação entre ecologia, política e
economia.
Nesse mesmo ano, Vincent Cheynet, um ex-publicitário que fundou em 1999 a
associação Casseurs de Pub (“Quebradores de Publicidade”), trabalhava na revista
Silence (ambas sediadas Lyon) como voluntário encarregado da editoração. Essa revista
nasceu em 1982, momento em que a ecologia estava em baixa, como constatam tanto
militantes quanto historiadores. O ex-publicitário foi responsável pela organização de
dois dossiês sobre o tema decrescimento5, e em 2003 publicou um livro com artigos que
5 Número 280 de fevereiro de 2002 e 281, de março do mesmo ano.
3
haviam sido publicados na revista6. Autores como Serge Latouche, François Schneider,
Pierre Rhabi, Bruno Clementin e o próprio Cheynet7 escrevem artigos apresentando
temas diversos, como urbanização, transportes, agricultura, ou debates mais abstratos
sobre liberdade, ou sobre a relação entre economia e natureza, para um público mais
amplo. O jornalista Hervé Kempf escreveu um artigo para o jornal Le Monde sobre as
ideias de resistência ao “pensamento monolítico” (Kempf, 2002) apresentadas pela
Silence que mereciam destaque, texto que foi considerado por alguns militantes como
fundamental para a divulgação do decrescimento.
Em 2003, Cheynet organizou o colóquio sobre decrescimento em Lyon, no
Hôtel de Ville, prédio da prefeitura da cidade. Tal colóquio foi responsável por
sistematizar críticas ao crescimento, ao desenvolvimento e à sociedade de consumo
feitas por pessoas distintas em contextos relativamente diversos sob a rubrica do
decrescimento. A sensação dos participantes foi a de encontrar um espaço legítimo para
as críticas que faziam, como se o termo decrescimento tivesse aberto um espaço no
mundo para uma série de discursividades dispersas e desencontradas. "Fundado em
2003 em Lyon, na França, o 'decrescimento' é um movimento que tem acolhido adeptos
nos grupos de altermundialistas, sobretudos ecologistas e decepcionados com a
esquerda" (Thoele, 2005). Como relata Alain Gras: “Eu era anti-progressita, mas agora
sou de maneira legítima. Hoje é legítimo ser anti-progressista”. Serge Latouche dá um
parecer muito semelhante sobre o Colóquio de 2002: “diante do triunfo do
ultraliberlismo e da proclamação arrogante do TINA (“there is no alternative”) de
Margaret Thatcher, o pequeno grupo anti-desenvolvimentista do qual eu fazia parte não
podia mais se contentar com uma crítica teórica quase confidencial” (Duverger, 2011, p.
9).
Em 2005, quando o decrescimento já era um termo que encontrava eco em
várias cidades da França, foi realizada uma marcha, a Marche pour la Décroissance,
organizada também por Cheynet que inseriu o evento na campanha do Casseurs de Pub
contra a Fórmula 1, mas cujo protagonista principal foi François Schneider, conhecido
nesse momento como "mascate" (colporteur) do movimento.
6 Cf. Bernard et al., 2003.7 Quase não havia mulheres entre os especialistas no assunto, embora hoje seja comum a incorporação
do feminismo como pauta do decrescimento. No site do Parti Pour la Décroissance, por exemplo, no setor das eleições legislativas de 2012, está escrito: “O programa dos objecteurs de croissance, apoiado por Paul Ariès, é radicalmente anti-capitalista, anti-produtivista, ecologista, feminista e internacionalista” (“Décroissance-Elections”).
4
Schneider partiu da pequena cidade Luc-en-Diois em julho de 2004,
acompanhado apenas de uma mula chamada Jujube. Em junho chegou a Lyon, de onde
sairia a marcha até a cidade de Magny-Cours, sede do Grande Prêmio da França de
Fórmula 1. O trecho foi percorrido ao longo de um mês, com um número variável de
pessoas em cada parte do trajeto. Na época, foram publicados diversos relatos que
enfatizavam o caráter “concreto” do decrescimento, que consistia em
Simplicidade, frugalidade, solidariedade; marcha, descanso, música, canto, alimentação saudável e natural (ervas e plantas colhidas ao longo do caminho, produção local orgânica, etc), ateliês-debates sobre temas diversos (software livre, mídias alternativas, agricultura biodinâmica, política, técnicas de relaxamento, etc). Tempo para viver, para (re)encontrar uma felicidade simples, para contemplar, para (re)encontrar, construir e renovar relações... Um funcionamento de auto-gestão democrática; cada dia uma ou mais associações com regras simples [se formavam], onde eram tomadas decisões coletivas. Uma autonomia individual, solidariedade simples e compreensão...
Hugues, 2005.
Durante esse período, a organização promoveu debates, discussões,
conferências, festas e noites musicais. O objetivo era envolver grupos locais
(associações e coletivos organizados com atuação nas cidades), como se a marcha fosse
uma forma de colocar em contato grupos e pessoas (já) envolvidas e/ou engajadas de
alguma forma com questões que parecessem afinadas com a proposta dos organizadores
do evento, mais do que um evento para divulgar o decrescimento pelo país. No final,
chegaram cerca de 500 pessoas em Magny-Cours, entre elas personalidades como José
Bové. Enquanto nos dois colóquios o decrescimento era como uma linha que costurava
anti-globalização e questionamentos ecológicos, na marcha, o decrescimento conectava
iniciativas locais (como agricultores orgânicos e biodinâmicos, associações de temas
diversos, etc).
Entre tantos outros, os eventos acima se tornaram referência por criarem e
consolidarem novos sentidos para a palavra “decrescimento” e expandi-los para
diversos horizontes. Até então, essa palavra não fazia sentido como nome de qualquer
mobilização político-ecológica, tal como verificamos hoje na França. Sob a etiqueta
“decrescimento”, conjugaram-se críticas herdeiras do movimento anti-globalização e
questões colocadas pela ecologia política dos anos 1960 e 70 (como a problematização
da sociedade do consumo e a politização de problemas ambientais), bem como grupos,
coletivos, associações e pessoas engajadas de alguma forma com essas questões.
5
Duverger (2011) defende que a sistematização conceitual feita pelas revistas, pelos
colóquios e pelos jornais (em suma, pela produção textual do decrescimento)
possibilitou a identificação de “práticas” de decrescimento entre si e a constituição de
um movimento.
Paralelamente, o decrescimento não apenas reorganizou grupos, pessoas e ideias
já existentes. A própria reorganização deu ensejo à construção de novos coletivos, novas
reflexões e novas ações, como o jornal La Décroissance, criado em 2004 por Cheynet,
ou os diversos grupos locais espalhados pela França, como o Les décroisseurs
berrichons, ou o já extinto Décroissance et Politique. Logo, a história do decrescimento
não é uma apenas a história de criação de confluências, e se considerarmos a forma dos
eventos e dos meios de comunicação responsáveis pela elaboração do decrescimento, já
esteva presente a preocupação de serem eles próprios espaços de debates nos quais
diferentes perspectivas seriam confrontadas. Não se buscava uma definição unívoca ou
exclusiva de decrescimento; ao contrário, é como se a palavra decrescimento fosse
apenas uma mediadora de debates.
A história do decrescimento é muito semelhante à história do movimento anti-
publicidade francês. Yvan Gradis tornou-se uma referência entre os críticos do
consumismo porque foi responsável por criar um jornal que operava como um criador
de vínculos entre associações e pessoas contrárias à publicidade e à sociedade do
consumo (inclusive em nível internacional). Além disso, caracterizou práticas
individuais8 como “anti-publicitárias”, atribuindo um sentido político específico a ações
cujas motivações poderiam ser as mais diversas. Em suma, Gradis conseguiu
"transformar, re-etiquetar esses gestos singulares em ações do repertório anti-
publicitário" (Dubuisson-Quellier & Barrier, 2007, p. 215).
Assim como a cunhagem do decrescimento acarretou em uma reorganização
mais ampla nos meios das mobilizações político-ecológicas, a etiqueta “anti pub” não se
limitou a sistematizar o que já existia. A forma que o movimento anti-publicidade
assumiu dali em diante é muito próxima do que verificamos no decrescimento. A
expressão “anti-publicidade” deu corpo à difusão de repertórios por diversos
movimentos, de modo que a mobilização “anti pub” não se define apenas pela sua
8 Práticas individuais são aquelas realizadas por uma pessoa, independentemente da presença (ou respaldo) de um grupo constituído. Essas práticas podem ser, por exemplo, escrever mensagens em propagandas afixadas na rua ou no metrô, ou arrancar anúncios, sem identificar tais ações com qualquer coletivo, mesmo que a pessoa faça parte de um.
6
motivação política ou por seus métodos de ação. Sua existência está na articulação do
repertório, no mapeamento, sistematização e difusão de práticas. Mais precisamente, a
crítica à publicidade só poderia ser feita através da mobilização, do levantamento, do
estabelecimento de relações e da reorganização de uma série de atividades e grupos. É o
trânsito desses repertórios que define um novo registro de ação contestatária.
A noção de repertório deixou, assim, de fazer parte apenas do vocabulário do
analista para entrar para o centro da existência do analisado, de forma revisitada.
Charles Tilly (2004) usava a palavra “repertório” para indicar um conjunto de
características culturais de longa duração a partir do qual os movimentos se organizam;
agora, a palavra repertório parece indicar uma forma de existência dos movimentos. A
atribuição da etiqueta “anti-publicidade” a uma série de ações não resultou em um
movimento coeso ou engessado, mas sim reorganizou ações pontuais distribuídas por
todo o país e deu margem a novas mobilizações, tal como na nebulosa do
decrescimento.
É como se uma linha tivesse costurado pessoas e coisas que antes eram ligadas a
outras redes (como eram as críticas ao desenvolvimento), resultando tanto no
esgarçamento como no reforço de antigos pontos de conexão entre coletivos, ideias,
conceitos e ações, sem, por fim, fazer dos pedaços uma superfície lisa, homogênea e
inteiriça. A história do decrescimento é marcada por cruzamentos forjados entre temas,
questões, associações, coletivos e iniciativas individuais, sendo os pontos de fusão os
temas da insuficiência da noção de desenvolvimento, do progresso e do crescimento
econômico, bem como dos perigos ambientais e sociais do sobre-consumo.
Simultaneamente, a fusão não conduziu à constituição de um movimentos social único,
de massa, cujo nome fosse “decrescimento”, mas sim a uma espécie de canalização por
onde transitam coisas, pessoas, ideias e práticas, chamada de “nebulosa”.
Assim como o movimento anti-publicidade, o decrescimento é experimentado,
vivenciado no (e analiticamente concebido como) trânsito de pessoas, ideias e ações por
grupos e coletivos diversos. A nebulosa é uma forma de realizar a recusa a um centro
(um núcleo de reflexões, por exemplo) a partir do qual se constrói um movimento
social; o decrescimento é um ponto de chegada, entre outros possíveis, a depender dos
caminhos que percorremos no interior das redes militantes. Isso não quer dizer que uma
nebulosa seja um mosaico harmonioso de pequenos grupos e associações que abordam
7
diferentes aspectos do tema. A questão não é suprimir os conflitos mas transformá-los
em potências criativas, donde os investimentos cada vez maiores em formas de
comunicação “não violenta” que deem espaço para a diversidade9. Os conflitos são
reelaborados no interior de uma nebulosa em termos de diferenças e até de
complementaridade em alguns momentos, sem que seja tratado como um meio que deve
ser superado para se chegar ao decrescimento. É como se o decrescimento estivesse em
cada uma das partes da nebulosa (nos grupos que realizam agricultura orgânica, nos
coletivos anti-publicidade, nos jornais e revistas, etc) e também (sobretudo?) nas
relações entre elas – inclusive relações tensas.
Entre as tensões da nebulosa, as mais expressivas delas dão-se em torno da
personagem de Vincent Cheynet e seu jornal La Décroissance. Ao mesmo tempo em
que este homem teve um papel importante e ainda hoje é reconhecido como um dos
precursores do atual movimento na França, há uma resistência muito grande face a seu
jornal, como uma recusa em conferir-lhe o lugar de centro do decrescimento. O papel
que lhe cabe hoje, na opinião de muitos militantes, é o da crítica e do estranhamento de
coisas que nos parecem naturais; o La Décroissance faz rir pela ironia desfilada nos
textos e nas imagens, que escancaram as ambiguidades do crescimento, do consumo de
massas e da publicidade. Na capa da edição de junho de 2009 o desenho de uma ema
com a cabeça enfiada em um amontoado de produtos que seriam tomados como
necessários em uma sociedade do crescimento (como Coca-Cola, McDonalds,
embalagem de cereais, relógio de pulso, carro, máquina fotográfica, computador, etc)
ilustra a manchete “A recusa da realidade”. Em poucas palavras e com uma imagem, o
jornal quer dizer: tudo aquilo que parece ser nossa felicidade, todas as mercadorias de
aparência agradável são, na verdade, uma forma de aniquilar o pensamento e de
esconder os malefícios que trazem consigo, como a pobreza e a destruição do meio
ambiente.
As páginas no jornal seguem uma estética do choque, como efeito de inversões
inesperadas. Quadrinhos que narram a história de um militante chato, pequenas crônicas
sobre um psicanalista maluco, reportagens sobre a vida ecologicamente incorreta de
9 São inúmeras as técnicas de “não-violência” desenvolvidas para mediar reuniões, plenárias e assembleias. Em pequenos grupos, pode-se usar cartões coloridos (cada cor representa uma reação, como aprovação, dúvida, recusa ou pedido de esclarecimento), objetos que dão voz (quem segura o objeto é que está com a voz; os demais devem esperar que o objeto chegue em suas mãos para falar). Em grandes assembleias, há um leque de sinais com as mãos para evitar que gritos e conversas atrapalhem quem está à frente da plenária.
8
personalidades que se dizem ecologicamente corretas (os chamados écotartufes) são
todas tentativas de subverter até mesmo o subversivo. Na capa do número 86 (fevereiro
de 2012), a manchete “Nós somos 1%, eles são 99%” é acompanhada pelo desenho de
uma mulher remando um pequeno barco com a palavra “Decrescimento” escrita no
casco, em uma maré de carros que vai na direção contrária10.
Em todo número, há uma seção intitulada "As porcarias que não compraremos
esse mês", na qual um pequeno texto desfila os problemas ou as consequências sociais e
ambientais negativas de determinado objeto. Até mesmo aquilo que seria mais
elementar precisa ser questionado, como a bicicleta (meio de transporte por excelência
dos defensores do decrescimento). O banho também foi caricaturado como porcaria
quando um dos jornalistas do La Décroissance começou a fazer esportes antes do
trabalho e, como a sede do jornal não tinha chuveiro, passou a usar um balde para se
lavar todos os dias. Em tom jocoso, a coluna concluía que era possível ter higiene sem
chuveiro ou água corrente e que o banho era contrário ao decrescimento.
Cheynet e o jornal assumem o papel da crítica, da acidez e do questionamento.
Não se medem esforços para criar recursos textuais e imagéticos irônicos nem mesmo
para abordar polêmicas entre o editor chefe e algum outro participante do jornal que lhe
pareça contraditório com o decrescimento11. Ao mesmo tempo, o jornal é muito mal
visto porque muitas pessoas acreditam que a ênfase nas denúncias e nos
questionamentos acabaria reduzindo o projeto de decrescimento à crítica e à censura.
Quem adota essa posição afirma que o decrescimento tal como apresentado pelo La
Décroissance é muito limitado se comparado com uma infinidade de alternativas que
não são contempladas nas páginas da publicação. Em outras palavras, o papel que ele
assume no interior da nebulosa pode acabar, contraditoriamente, colocando-a em
cheque.
Esse tipo de crítica é elaborado por grupos e pessoas que se definem como
libertárias. De seu ponto de vista, o engajamento de Cheynet e seu jornal é pouco
significativa porque não parte da “auto-gestão” e de formas de ação “horizontais”.
Vincent Cheynet, desde o início do La Décroissance, tem uma atuação política
10 A referência é aos slogans das mobilizações contrários às políticas de austeridade na Europa (algo como “somos 99% da população que sofremos com as decisões do 1% que detém o capital e o poder político”).
11 Polêmicas envolvendo Pierre Rhabi e Paul Ariés, nomes muito conhecidos nos meios do decrescimento, foram publicadas nas primeiras páginas (e no caso do último, transformada em uma irônica história em quadrinhos)
9
partidária, antes apoiada por Paul Ariés, cientista político que contribuía com a
publicação. Ambos viam na militância partidária-institucional um dos meio de ação pelo
decrescimento. Os partidos são muito questionados pelos setores da esquerda libertária
em geral, e nos circuitos do decrescimento isso apenas se reforça. Em 2012, o Parti
Pour la Décroissance, que se aproximara de Cheynet para lançar um candidato à
presidência no ano anterior, publicou um artigo em seu site oficial rompendo com o
jornal. As divergências diziam respeito ao modo como Cheynet enfrenta as eleições e a
démarche partidária de modo geral. Segundo o documento, o editor-chefe estava mais
preocupado com iniciativas eleitorais individuais do que com construções coletivas;
além disso, em artigos do La Décroissance criticava os colegas e desrespeitava a
“diversidade” entre objetores de crescimento (Parti Pour la Décroissance, 2012).
Essa crítica traz consigo tons das propostas libertárias de ação política, no
sentido de que é possível fazer política sem recorrer às formas “tradicionais” de
organização coletiva, como os partidos, mediadas por hierarquias, núcleos de poder
centralizado, etc. Por essa razão, Cheynet é pejorativamente considerado favorável a um
“republicanismo legalista” (Bayon et al., 2010) e há até quem diga que ele seria capaz
de chamar a polícia em uma manifestação porque é adepto do legalismo e do Estado, o
que se comprovaria por sua atuação como candidato em eleições e pela participação em
ações de desobediência civil com vistas a mudar a legislação e não subvertê-la.
Consequentemente, quando se diz que o La Décroissance poderia dedicar mais
espaço às ações concretas de decrescimento, o que está em jogo é a própria definição de
ação política. Cheynet e seus companheiros estão (e estiveram) engajados com partidos,
logo o problema não é que eles “apenas falam e não fazem nada”, mas que aquilo que
“fazem” não é considerado interessante porque foge da lógica da auto-gestão e da
horizontalidade12.
Essa tensão desdobra-se em outra, sobre o engajamento pessoal e sobre a
politização da vida cotidiana. A transformação de dimensões da vida cotidiana em
campo de batalha tornou-se uma condição sine qua non das mobilizações político-
ecológicas em geral, e no decrescimento não poderia ser diferente. Mas não há consenso
sobre o papel que esse engajamento deve assumir em um projeto mais geral de
12 A problematização da concepção de política explodiu na França com os movimentos de maio de 1968, quando diversos setores que se diziam de esquerda colocaram em xeque a mediação institucional das mobilizações políticas e sociais, defendendo a autonomia (por oposição à heteronomia operante em movimentos institucionalizados como partidos políticos) Cf. Kitschelt, 1990.
10
transformação social. Entre os escritores que contribuem com o La Décroissance, o
exercício diário de viver de outra maneira é chamado de simplicidade voluntária e, nas
palavras de Paul Ariès (2005), é apenas um dos níveis do decrescimento, o nível da ação
individual. A adesão a uma vida simples seria um requisito mas não esgotaria o
decrescimento, nem se converteria no principal meio para se transformar a sociedade.
Seria como uma dimensão paralela à ação política e à ação coletiva (Ariès, 2005). Já
entre os chamados libertários, há muita discussão sobre a passagem imediata entre o
nível de ação local e transformações globais13, mas há um consenso sobre a centralidade
da vida cotidiana na luta política. O pressuposto é que, por meio de transformações nas
práticas mais imediatas, transforma-se o mundo em que vivemos.
Entre os adeptos do decrescimento, há portanto um consenso de que a vida
cotidiana deve ser problematizada e convertida em arena de ação política; as
divergências dizem respeito à passagem da esfera cotidiana para dimensões mais amplas
de transformação social14. Enquanto para alguns a vida cotidiana é como o locus de
transformações sociais, políticas e ecológicas, para outros, ela é uma das frentes que
deve ser complementada por outras. De qualquer maneira, essas relações que devem ser
estabelecidas e a nebulosa é a forma de fazê-lo, como veremos a seguir.
A pequena mercearia 3 p'tit pois foi inaugurada em março de 2010 a fim de
oferecer aos habitantes de Lyon uma alternativa ao mercado de orgânicos existente. Ali
são vendidos produtos (1) orgânicos, (2) com pouca ou nenhuma embalagem, (3) de
produção local e (4) socialmente justa. Cada produto é avaliado de acordo com as
quatro variáveis e um gráfico com o resultado final é estampado na etiqueta de preço de
todo produto. As notas variam de produto para produto mas jamais o comprador
encontrará algum com as quatro notas baixas, afinal se não são nem orgânicos, nem
locais, nem socialmente justos e com muita embalagem, não há razões para serem
comercializados ali, explica um dos criadores da loja.
A etiqueta sistematiza graficamente as "reivindicações" ou "causas" pelas quais
13 No acampamento de Lyon na ocasião do 15M em 2011, as plenárias das assembleias muitas vezes dividiam-se entre aquelas pessoas que achavam necessário dedicar tempo e recursos materiais na elaboração de textos críticos ao capitalismo e ao sistema financeiro (os marxistas, trostskistas e leninistas se encaixam deste “lado”) e aqueles que defendiam que era mais interessante fazer do acampamento uma forma de organização coletiva auto gerida, descentralizada, horizontal e autônoma.
14 Como veremos adiante, se não se estabelecem quaisquer relações entre ações pessoais ou individuais e preocupações mais gerais, as primeiras não são consideradas politizadas.
11
se mobilizam as pessoas engajadas com o decrescimento: decrescer não é apenas
consumir orgânicos (afinal já há um grande mercado para isso em grandes redes como o
Carrefour!), é preciso comprar produtos que respeitem o meio ambiente de forma geral
e que sejam produzidos e distribuídos de forma socialmente justa, como produtos de
cooperativas e de sistemas de economia solidária. Grande parte dos alimentos – grãos,
queijos, legumes e verduras – é produzida em pequenas cidades próximas de Lyon,
favorecendo tanto deslocamentos menos poluentes quanto a possibilidade de travar
relações sociais entre a equipe da mercearia e os produtores. Isso garantiria, na visão da
equipe e dos consumidores, tanto a "humanização" da produção quanto a segurança de
ter produtos de qualidade e verdadeiramente orgânicos.
O próprio funcionamento da mercearia a diferencia das demais lojas de
orgânicos da cidade. A 3 p'tit pois é uma "cooperativa auto-gerida" na qual os dois
rapazes responsáveis encarregam-se de tudo: desde a procura de fornecedores (que
envolve buscar conhecimento sobre as formas de produção dos produtos) até a
organização do espaço da loja. Até mesmo o meio de pagamento estaria de acordo com
os princípios defendidos pela loja: como a mercearia não funciona para obter lucro, os
preços não são negociados com os produtores e não se aceita cartão de crédito ou débito
como meio de pagamento ("para não dar dinheiro para os bancos", estão de acordo os
consumidores finais).
A 3 p'tit pois surgiu também, como relatou um dos responsáveis pela loja, com o
objetivo de facilitar a vida das pessoas que consomem esse tipo de produtos. Por toda a
França há muitos pontos de venda de cestas de alimentos que funcionam no sistema de
AMAPs (“Associations pour le maintien d'une agriculture paysanne”): associações que
fazem a mediação entre uma rede de produtores locais e consumidores levando kits de
frutas, verduras, legumes, ovos, pães, queijos e geleias para pontos pré-estabelecidos da
cidade (como um cinema de filmes alternativos, ou uma biblioteca) onde os assinantes
pegam semanalmente seus alimentos. O pagamento é semestral e o valor varia de
acordo com a quantidade e o tipo de produtos que se quer. O sistema de assinatura
permitiria um planejamento dos produtores, evitando desperdício e também garantindo
a sustentação da agricultura local. Entretanto, alguns militantes preferem a mercearia
porque, além dos preços mais baixos, se não há possibilidade de estar presente no dia e
na hora marcada para retirar a cesta da AMAP, não se pode adquiri-la em outro
12
momento e nem reaver o dinheiro.
Há uma outra pequena mercearia em Lyon chamada De L'Autre Cotê de la Rue
que funciona seguindo os mesmos princípios da 3 P'tit Pois embora não tenha uma
etiqueta. Não aceita cartão, dá preferência a produtos locais e com pouca embalagem;
cobra os saquinhos para colocar os produtos a granel ou deixa podes de vidro vazios à
disposição dos clientes; acrescenta ao preço dos produtos que chegam diariamente
apenas o valor necessário para a manutenção do espaço e pagamento de funcionários.
Por fim, a semana de trabalho dos responsáveis pelas duas mercearias é menor do que as
35 horas do restante do comércio15.
Os produtos dessas mercearias não são vendidos apenas para consumo próprio.
Assim como essas lojas se constituem como alternativa ao mercado de orgânicos que
cresce cada vez mais na França, alguns bares-restaurantes foram criados com a mesma
finalidade. O Le Court-Circuit e o De l'Autre Côté du Pont são dois espaços que
oferecem refeições no horário do almoço e petiscos e bebidas à noite, preparados com
ingredientes oriundos das duas mercearias. O De l'Autre Côté du Pont é um espaço
escuro, as paredes e as mesas são forradas de posteres de movimentos sociais atuais e
antigos, reportagens de jornal, imagens e fotos de manifestações. Além de oferecer
refeições, petiscos e bebidas, o local funciona ainda em horários extras caso haja
alguma programação especial, como projeção de filmes organizada por alguma
associação, ou um show de alguma banda16.
O nome Le Court-Circuit, o curto circuito em português, é uma forma de
explicar como funciona o bar-restaurante. Além de comprar produtos produzidos no
entorno de Lyon, conseguiu cativar um público do bairro17 e os os funcionários ficaram
amigos dos vizinhos. Além de dar uma opção para os amigos antigos, os cooperados do
Le Court Circuit tinham a finalidade de estabelecer ligações mais profundas com o
bairro. O lugar escolhido para instalar a cooperativa fica ao lado de um terreno que foi
15 Os funcionários são também militantes: optam por trabalhar com “profissões alternativas” (cf. AlteR IniTiativEs !, 2009) , por jornadas reduzidas porque essa é uma forma de realizar a recusa da sociedade do consumo: trabalha-se menos porque não não é preciso ganhar tanto dinheiro para comprar produtos que não são verdadeiramente necessários. Para uma discussão sobre a profissionalização da militância, cf. Ollitrault, 2001.
16 Voltada para a difusão de alternativas sociais, a revista Silence publicou uma matéria sobre um bar-restaurante que funciona da mesma forma em Paris (Colloghan, 2008).
17 Guillotière é um bairro relativamente simples, habitado em grande parte por franceses descendentes de árabes e negros. Os baixos preços dos apartamentos (e a facilidade de locomoção na região) acabam também atraindo estudantes e jovens já formados que se mudam para Lyon para trabalhar
13
parcialmente ocupado pelo Jardin des Amaranthes, um jardim coletivo, gerido por
associações diversas que atuam no local, entre elas a Les Compostiers, uma associação
dedicada à educação ambiental e compostagem urbana. Entre o bar e o jardim, são
colocadas mesinhas e cadeiras coloridas durante o dia e à noite as pessoas ficam dentro
do estabelecimento. As pessoas que frequentam o espaço à noite para ouvir a variada
programação musical e beber cerveja se conhecem, e mesmo quem está chegando pela
primeira vez já cruzou em algum momento com alguém que está no bar. Durante o dia,
algumas voltam para tomar café da manhã e conversar sobre as últimas notícias que
saíram no jornal, ou sentam-se para almoçar o cardápio orgânico.
Um dos cooperados dizia que o bar localizava-se em um dos poucos pontos da
cidade onde se podia conhecer quem mora no entorno, sobretudo pessoas mais pobres e
mais velhas. Para expressar essa "diversidade", o Studio Kobra foi convidado para
pintar a parede externa do Le Court Circuit em abril de 2011. Um arquiteto francês que
viajara a São Paulo a trabalho conheceu o trabalho de grafitti da equipe de Eduardo
Kobra. Como Lyon é uma cidade conhecida pelas pinturas na empena cega, esse
arquiteto e outras pessoas envolvidas com projetos de urbanismo na cidade acharam que
seria interessante trazê-los para produzir um mural no bairro em que o bar se localiza. O
Le Court-Circuit, recém-inaugurado, acatou imediatamente a ideia, ofereceu
hospedagem (nas residências dos cooperados ou de amigos), forneceu o material e o
muro – a parede voltada para o jardim onde ficam as mesas e cadeiras.
No dia da inauguração, Eduardo Kobra e seu companheiro de trabalho Agnaldo
Brito não só estavam satisfeitos com o trabalho mas, também, encantados com o modo
como foram recebidos. Ali tudo era diferente do que estavam acostumados a fazer: não
foram pagos, ficaram hospedados em aparamentos de amigos das pessoas que lhes
convidaram, o bar ofereceu os materiais para pintar e conheceram uma equipe de
profissionais em pintura de muros. Nada ali se parecia com uma situação de trabalho
comum, havia gente disponível o tempo todo para resolver problemas que surgissem e
todos os recebiam bem. "Em São Paulo, a gente fica sozinho pintando em avenidas
grandes, ninguém nem olha para nossa cara", disse Kobra. Ali não só olhavam como
conversavam e festejavam e, até mesmo quando a comunicação verbal era impossível ,
todos pareciam se entender (eles não falavam francês e apenas uma arquiteta que não
estava sempre presente falava português) e o muro ficou pronto em menos de duas
14
semanas. A pintura não foi autorizada pela prefeitura, lembrando ainda os tempos em
que Kobra e seus companheiros pintavam muros clandestinamente. Tudo se passava
como se a realidade tivesse sido suspensa por um momento para os brasileiros. O que
soava a eles como exceção, interrupção do cotidiano, era a concretização de projetos de
vida de muitas das pessoas que acompanharam de perto todo o processo de elaboração e
execução do mural: projetos de estabelecer relações de sociabilidade que extravasem as
relações econômicas e mercantis.
Dessa maneira, a politização do consumo não passa apenas pelo produto
consumido. A escolha por orgânicos, por exemplo, é necessária mas não suficiente na
visão dos militantes do decrescimento. Sem dúvida o consumo é importante, dirão os
militantes do decrescimento: por meio dele incorpora-se a reflexão e o engajamento em
favor de um certo tipo de agricultura (Faucher, 1998); além disso o consumo daria o
tom da produção – consumindo-se menos, as empresas produziriam menos e assim a
sociedade do crescimento seria atingida em seu cerne. Mas é preciso levar em conta
outros fatores para fazer com que o consumo seja potencialmente transformador de
relações sociais, políticas, econômicas e ecológicas.
Estudos sobre “consumo político” deixam de lado essas questões e restringem-se
ao objeto do consumo propriamente dito (Boström et al., 2004). Os “demais” elementos
com os quais nos deparamos são tratados como expressões de “valores extra-
econômicos” mobilizados na hora de escolher os produtos (Stolle et al., 2005). Já as
análises que buscam associar o consumo final com seu processo produtivo dão um
passo além ao mostrar que o consumo envolve também a produção e a distribuição, mas
não conseguem ir adiante porque, assim como os estudos de “consumo político”, estas
defendem que o consumo é politizado quando o consumidor faz suas escolhas por
critérios políticos. Em outras palavras, por mais que levem em consideração todas as
relações sociais envolvidas, só há politização no pólo do consumo, mais precisamente,
no ponto de vista de quem consome.
A socióloga Claire Lamine, por exemplo, define três níveis de engajamento entre
consumidores de produtos orgânicos de AMAPs (Association pour le maintien d'une
agriculture paysanne) na França. Primeiramente, há o engajamento mínimo, quando a
pessoa escolhe os orgânicos por sua qualidade; em segundo lugar, há quem busque um
consumo local e mediado por relações interpessoais entre consumidor e produtor; por os
15
“mais engajados” são aqueles para quem os produtos são ao mesmo tempo uma forma
de se colocar “do lado” dos agricultores e um ato de “consumo cidadão” (Lamine,
2008).
Muitos militantes enfatizavam a insuficiência de aderir a um estilo de vida new
age sem se postular qualquer relação deste com a realidade mais ampla na qual se
insere. A maneira de restituir essas relações, sem ser necessário passar por antigas
instituições totalizantes (como partidos políticos, por exemplo), é a nebulosa, uma rede
descentrada, desterritorializada, que funciona perspectivamente. Ela é a “nova” resposta
para a pergunta: diante da politização dos pequenos gestos, como traduzi-los em
grandes ações? É como se a nebulosa fosse o meio pelo qual amplia-se (novamente) a
noção de política ao realizar a passagem do local para o global.
A querela em torno do jornal expressa uma preocupação a respeito do modo de
formular a passagem do individual para o coletivo por meio da nebulosa. É preciso que
a totalidade seja um produto de relações sociais autonomamente orientadas e não
heteronomamente instituídas. Quando o La Décroissance e Cheynet são chamados de
“legalistas”, estão sendo acusados de operarem no registro da heteronomia através dos
antigos aparatos estatais (como o partido). Isso significa que a nebulosa não é edificada
e mantida por intermédio de instituições ou entidades; cabe apenas às pessoas que a
compõem decidirem sobre seus rumos18. Consequentemente, o indivíduo militante acaba
tendo um papel muito importante na nebulosa do decrescimento já que lhe cabe
estabelecer as conexões que corporificam a totalidade de acordo com as suas
necessidades. Só assim a formação coletiva conseguiria ser autônoma19.
A emergência de uma área de estudos na sociologia dedicada à militância
propriamente dita20 não parece, portanto, ser um exagero, considerando que a militância
tornou-se uma das principais preocupações e tema de reflexões e debates no universo da
mobilização política e social. Em outras palavras, o engajamento militante torna-se o
meio a partir do qual pode-se acessar e compreender analiticamente as mobilizações
sociais contemporâneas porque tornou-se o meio de se edificar as mobilizações
18 Vemos que há aqui uma proximidade muito grande com a discussão sobre imanência e transcendência na antropologia social contemporânea.
19 Há toda uma linhagem composta por intelectuais franceses entre os anos 1950 e 70 em que reconhecemos esse vocabulário e essas reflexões. Muitas vezes, esse autores são evocados como inspirações dos movimentos contemporâneos, como Pierre Clastres, André Gorz e Cornelius Castoriadis.
20 Para uma breve revisão bibliográfica do tema, cf. (Sawicki & Siméant, 2011).
16
políticas. A noção sociológica de multi-militância (Dubuisson-Quellier & Barrier, 2007)
chama a atenção para o fato de que um militante não circula para construir uma
militância coesa, mas que a circulação é o elemento mais importante para a ação
política.
A perspectiva de promover mudanças sociais passa pelas relações que os
militantes traçam em seus caminhos. A articulação entre feminismo, ecologia e crítica à
publicidade não é evidente nem imediata: precisa ser construída dia a dia, cabendo a
cada militante articular conhecimentos, saberes, repertórios de ação, pessoas e
associações. É como se a dimensão “coletiva” ou “social” estivesse na articulação,
podendo ser transformada a partir do momento em que os militantes se reorganizam e
dão outro "tom" a todas essas questões. Consequentemente, é como se qualquer
totalidade fosse perspectiva, uma vez que o global não é algo que pode ser totalmente
controlável e só se realiza e é apreendida por meio dos pontos de vista de indivíduos
autônomos.
O movimento do decrescimento se organiza mobilizando noções, conceitos e
práticas para lidar com os conflitos e com as contradições do capitalismo, como o
consumo de massas, a publicidade, a produção de alimentos envenenados, etc. O modo
como esses problemas são abordados, no esteio dos movimentos anti-globalização21,
atualiza os questionamentos das novas esquerdas herdeiras de Maio de 68 na França e
suas críticas à esquerda marxista tradicional. No pós-guerra, houve todo um
investimento para “superar” o marxismo nos países de capitalismo avançado porque
este teria sido insuficiente para explicar a nova realidade socio-econômica do consumo
de massas e da melhoria das condições de vida generalizadamente. Posta essa “nova
realidade” os movimentos das novas esquerdas tiveram que reorganizar seu aparato
político e conceitual para explicitar quem eram os novos inimigos (a tecnocracia) e
quem eram os novos sujeitos históricos da mudança (daí os “novos” atores, como
estudantes, cientistas engajados, as “minorias”, etc).
21 Nos primeiros Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre o acampamento Intergaláctico tornou-se o espaço mais celebrado do evento: sem orientações preestabelecidas, sem gestão centralizada, sem demarcações territoriais e temporais, qualquer manifestação poderia construir-se, no espaço que encontrasse (ou que negociasse), como quisesse e quando fosse mais interessante do seu ponto de vista. Tamanha foi a repercussão do acampamento que acabou tornando-se mais importante do que as palestras e seções proferidas por figurões no salão nobre. No acampamento estabeleciam-se relações entre pessoas, entre ideias, entre coisas, e por meio dessas relações é que se concretizava o “outro mundo possível” (cf. Di Giovanni, 2008; Loureiro et al., 2002).
17
A organização em rede, por sua vez, também opõe-se às teorias e aos
movimentos sociais que concebem e experimentam o mundo através das contradições
de classe. Contudo, uma vez que defrontam-se com conflitos e com um mundo que
continua cindido, esses movimentos precisam elaborar maneiras de trabalhar com as
divergências sem ser pelo registro das contradições. A aparente extinção das
contradições sociais é recolocada (ou suplementada) em termos rizomáticos (como
sugerem muitos pensadores na filosofia e nas ciências sociais) ou como nebulosa, no
caso do decrescimento.
No polo “oposto”, o capitalismo se reorganizou sob as mesmas diretrizes. Como
apresentam Boltanski & Chiapello (2009), a literatura de gestão empresarial dos anos
1990 é tomada pelo vocabulário da “auto-gestão”, dos “projetos”, do indivíduo gestor
de sua própria vida, da extinção das fronteiras entre público e privado e entre trabalho e
lazer. As relações de trabalho são travestidas de relações de cooperação garantindo por
um lado a “liberdade” para os trabalhadores “investirem” em suas próprias redes e
assegurando, por outro, a descentralização e a impossibilidade de qualquer pessoa
acessar e controlar a totalidade das relações de trabalho. O vocabulário das redes, as
relações descentradas, a recusa em apreender univocamente tais relações, tudo isso é
muito afinado com a forma nebulosa por meio da qual existe um movimento político
ecológico cujo alvo é justamente o capitalismo, o neoliberalismo e o crescimento
econômico.
Frente a essas convergências, não é tão simples tratar o movimento do
decrescimento como uma mobilização de resistência pura e simples. É preciso levar em
conta que, apesar de haver toda uma preocupação em construir “alternativas” às
sociedades de crescimento por meio da formação nebulosa, descentrada e não
hierarquizada dos grupos, coletivos e associações autogeridas, tais alternativas se
erigem no seio das contradições do capitalismo. Consequentemente, fazer uma
etnografia de um movimento como esses exige algo além de transformar as categorias
nativas em ontologia social. Ou seja, é preciso explorar os sentidos na nebulosa de
maneira mais ampla, apontando as ambiguidades de tal projeto político – sendo a
etnografia um instrumento interessante para mapear relações e seus sentidos.
Herbert Marcuse e sua teoria da sociedade unidimensional nos parecem ser
bastante interessantes para refletir sobre as ambiguidades decorrentes das convergências
18
entre o funcionamento do capitalismo e um movimento social que se lhe opõe. Marcuse
diagnosticou, entre as sociedades de capitalismo avançado, um achatamento de todas as
dimensões, como se as contradições tivessem se conciliado. As contradições são
tratadas como “lados opostos” de modo que não mais carregam uma potência
transformadora, como se não houvesse mais espaço para a recusa.
A nebulosa parece ser um modo de organização social (da socidade de
decrescimento) em que pessoas, grupos, pontos de vista, mercadorias, produtos,
relações de produção, relações sociais e natureza, tudo coexiste lado a lado. Os conflitos
que podem existir entre eles aparecem como pontos de uma nebulosa maior, como
constitutivos de um social múltiplo. Podemos dizer, assim, que a ambiguidade de um
movimento como o decrescimento, consiste em ser uma mobilização crítica que parte
das contradições do capitalismo mas cuja forma de existência nega as contradições em
seu interior, transformando-as em redes.
A ambiguidade não aparece na crítica ou na recusa da sociedade de crescimento,
mas nas concretização de propostas de formações sociais alternativas, pois ao
concretizar uma nebulosa, não deixam espaço para o negativo. A diferença de um
movimento como o decrescimento e a literatura de gestão empresarial, por exemplo, ou
qualquer outra dimensão do capitalismo que opera por redes é que o primeiro tem como
ponto de partida justamente da negação, mas não consegue lidar com ela em seu seio.
Já a segunda parte da total supressão da possibilidade de transcendência e transformação
social. Essas ambiguidades, no fundo, são vivenciadas pelos próprios militantes, sendo
os conflitos entre o jornal “muito crítico e pouco propositivo”, de um lado, e as
“propostas pouco politizadas” de outro uma expressão disso.
A etnografia da nebulosa do decrescimento, bem como as questões que
perpassam-na, recortam-na e a definem, tudo isso nos colocou questões que nos
permitiram pensar o “dentro” e o “fora” não em termos de oposição, mas de
contradições que permeiam relações. Procedimentos etnográficos que propõe a
descrever e refletir sobre o capitalismo precisam, assim, ser sensíveis a ambiguidades
como estas que o movimento de decrescimento ilumina para conseguir pensar sobre o
próprio sistema (ou como quer que se queira chamá-lo) e sobre as tensões, resistências
que colocam em questão uma série de elementos que lhe são constitutivos, evitando de
cair apressadamente em ingênuas louvações ou em denúncias.
19
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