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DISSERTAÇÃO - trabalho doméstico x reconhecimento ...

Date post: 29-Jan-2023
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO MESTRADO ACADÊMICO LISANDRA CRISTINA LOPES A LUTA PELO RECONHECIMENTO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL: GÊNERO, RAÇA, CLASSE E COLONIALIDADE FORTALEZA 2021
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO

MESTRADO ACADÊMICO

LISANDRA CRISTINA LOPES

A LUTA PELO RECONHECIMENTO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL: GÊNERO, RAÇA, CLASSE E COLONIALIDADE

FORTALEZA

2021

2

LISANDRA CRISTINA LOPES

A LUTA PELO RECONHECIMENTO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL: GÊNERO, RAÇA, CLASSE E COLONIALIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico. Orientadora: Professora Doutora Juliana Cristine Diniz

FORTALEZA

2021

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca UniversitáriaGerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

L1l LOPES, LISANDRA CRISTINA. A luta pelo reconhecimento do trabalho doméstico no Brasil : gênero, raça, classe e colonialidade. /LISANDRA CRISTINA LOPES. – 2021. 181 f. : il. color.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Fortaleza, 2021. Orientação: Profa. Dra. Juliana Cristine Diniz .

1. Trabalho Doméstico . 2. Mulheres. 3. Reconhecimento. 4. Direitos . 5. Gênero. I. Título. CDD 340

4

LISANDRA CRISTINA LOPES

A LUTA PELO RECONHECIMENTO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL: GÊNERO, RAÇA, CLASSE E COLONIALIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico. Orientadora: Professora Doutora Juliana Cristine Diniz

Aprovada em: ______/_______/________

BANCA EXAMINADORA

____________________________________ Professora Doutora Juliana Cristine Diniz (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

____________________________________ Professora Doutora Ana Virgínia Moreira Gomes (Programa de Pós-graduação em

Direito – Universidade de Fortaleza)

____________________________________ Professora Doutora Geísa Mattos de Araújo Lima (Programa de Pós-graduação em

Sociologia - UFC)

____________________________________

Professor Doutor José Diniz de Moraes (UFRN)

____________________________________

Professora Doutora Patrícia Maeda

5

Para minha mãe, Ditinha.

Para minha filha, Clarice.

Para as trabalhadoras domésticas do

Brasil.

AGRADECIMENTOS

Agradeço inicialmente à vida. Este trabalho foi redigido ao longo da

pandemia de COVID-19, que fez da morte uma presença constante; a morte narrada dos

jornais e retratada nas estatísticas, a morte de pessoas conhecidas, a transformação das

redes sociais em obituários. O medo da morte: a própria, a dos pais idosos, de membros

da família e amigos. O confinamento. Filha pequena em casa, ensino remoto, trabalho

remoto, necessidade de adaptação, acúmulo de tarefas domésticas. Pesquisas revelaram:

a produção científica das mulheres caiu ao longo da pandemia. Elas tiveram que se

desdobrar para se adaptar a esse novo mundo, tão parecido com o antigo, aquele que as

relegava ao espaço privado. Escrevi esta dissertação confinada. Sou imensamente grata

por ter conseguido finalizar. Ela oferece um testemunho da minha sobrevivência. Estou

viva, sobrevivi a 2020 e venho sobrevivendo nestes meses de 2021. Sinto uma dor

profunda por todos os que ficaram para trás. Como escrever sobre trabalho doméstico

sem lembrar que uma das primeiras vítimas fatais da COVID-19 no Brasil foi uma

trabalhadora doméstica? Como esquecer a morte de Miguel, garotinho de cinco anos, que

caiu de um edifício de luxo em Pernambuco enquanto sua mãe, empregada doméstica,

trabalhava durante a pandemia, levando os cães dos patrões para passear?

“Chegou um tempo em que a vida é uma ordem”, disse Drummond. Com

os ombros suportando o mundo, sigo essa ordem, pois a vida se tornou um dos maiores

atos de resistência. É com essa sensação de estar viva, paradoxalmente feliz (por mim) e

extremamente triste pelos outros, que dou forma à pesquisa resultante do mestrado.

Agradeço à Universidade Federal do Ceará, por existir como uma instituição

pública de qualidade.

À minha orientadora, professora doutora Juliana Cristine Diniz, que me

inspirou a persistir com os estudos de gênero, formou o grupo de pesquisa Altera e

fomentou essa pesquisa no âmbito da UFC.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Direito, em especial à

professora Raquel Machado, por sua dedicação à universidade e seu amor ao

conhecimento.

Ao grupo de Pesquisa Ágora - UFC, do qual participei ao longo de quase todo

o mestrado, que me inspirou e instigou a estudar questões relativas à democracia.

7

Ao professor Jawdat Abu-El-Haj, do Programa de Pós-graduação em

sociologia, que me acolheu na disciplina “Estado e classes sociais no Brasil”, junto com

alguns outros estudantes da área jurídica.

Aos servidores da Faculdade de Direito, em especial os da limpeza, que

desenvolvem um trabalho essencial e invisibilizado.

Aos colegas da faculdade, pela convivência e pelas trocas. Foi simplesmente

incrível respirar o ar universitário, sofrer com os fichamentos, rir e conversar. Depois,

compartilhar as angústias e dúvidas tão inerentes ao processo da escrita. Um

agradecimento especial vai para Geórgia Oliveira, pela amizade, pelas dicas teóricas, por

ter me ajudado a definir o tema da pesquisa e por ter estado presente, tirando dúvidas,

doando um pouco do seu tempo, mesmo quando ele estava bem escasso.

Ao Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região, por ter me liberado para

assistir às aulas em Fortaleza nos dois semestres de 2019, acreditando na formação

continuada. Sem esse afastamento eu não teria conseguido; talvez não tivesse nem mesmo

tentado.

Aos meus pais. Meu pai, que só conseguiu cursar uma graduação tardiamente,

com muito esforço, e me apresentou ao direito. Minha mãe, que não conseguiu concluir

seus estudos, e foi a maior incentivadora dos meus. Sempre apostou tudo no poder da

educação. Vi-a inúmeras vezes descrita nos livros das teóricas feministas que tratam do

trabalho monumental que é dedicado pelas mulheres à reprodução social, trabalho nunca

reconhecido. É também por ela que postulo, por meio da presente dissertação, o

reconhecimento do trabalho reprodutivo.

Ao meu marido, Carlos, por estar sempre comigo. Pela compreensão das

ausências físicas, e dos meus desligamentos no período da escrita deste trabalho, quando

eu parecia flutuar em outra dimensão. Pelas viagens a Fortaleza, por ter mudado a sua

rotina para que eu pudesse cursar o mestrado.

À minha irmã Leila Lopes, pelo suporte em Fortaleza, pela acolhida, pelas

visitas!

A Brincalhão e Gatito, testemunhas felinas desta pesquisa.

A Clarice, pela companhia ao longo de todo o ano de 2019, quando foi para

Fortaleza comigo e experimentou uma nova vida. Pela imensa compreensão, do alto dos

seus oito anos, com a frase exaustivamente repetida, inclusive aos domingos: “Hoje

mamãe não pode brincar, porque precisa trabalhar na dissertação”. Pelos aviõezinhos de

8

papel lançados na minha mesa, com recadinhos, impondo necessários momentos de

desconexão. Pelos momentos em que pediu licença e digitou “miau” no meio do meu

texto. Pelas vezes em que chegou e me deu um abraço silencioso. Clarice, meu amor: Tudo que eu faço E acho que talvez seja bonito É só pra você, é só pra isso Pra hoje, pra agora Enquanto posso ouvir Sua risada sonora (Zélia Duncan)

Agradeço por você existir, ser fonte de luz na minha vida e motor de tantas

transformações. Eu disse, em tom de desafio, sob seu olhar incrédulo, que deixaria um

“miau” no meio nesta dissertação. Pois aqui está: Miau pra você!

À minha sobrinha Juju, pelas tardes que passou brincando com Clarice,

tornando menos sentida a minha ausência!

9

A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui – de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação à minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso temporário. Mas seu nome – é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair. (...) Foi quando inesperadamente consegui rememorar seu rosto, mas é claro, como pudera esquecer? Revi o rosto preto e quieto, revi a pele inteiramente opaca que mais parecia um dos seus modos de se calar, as sobrancelhas extremamente bem desenhadas, revi os traços finos e delicados que mal eram divisados no negror apagado da pele. Os traços – descobri sem prazer – eram traços de rainha. E também a postura: o corpo erecto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas. E sua roupa: não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença: sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível – arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível. (LISPECTOR, 2020, p. 38/39)

10

RESUMO

A presente dissertação analisa o percurso do trabalho doméstico no Brasil sob a

perspectiva das lutas por reconhecimento de Axel Honneth. Parte-se da seguinte

pergunta: por que as empregadas domésticas demoraram tanto a alcançar direitos básicos

e por que permanecem, até o momento, sem plena igualdade em relação aos demais

trabalhadores? Ao longo dos capítulos, o trabalho doméstico é identificado com o

cuidado, afirmando-se sua centralidade para a existência humana. São apresentados os

conceitos de divisão sexual e racial do trabalho, produção e reprodução, pobreza de

tempo, além de se revelar a dimensão econômica do cuidado. Realiza-se um estudo sobre

gênero, raça e classe, demonstrando a incidência de tais narrativas sobre o corpo da

trabalhadora e a importância da interseccionalidade enquanto ferramenta analítica. Faz-

se uma análise da regulamentação legislativa do trabalho doméstico, das lutas por

reconhecimento e do grau de proteção jurídica incidente sobre a categoria. A pesquisa é

eminentemente qualitativa. Quanto à finalidade, classifica-se como exploratória e

explicativa. O aporte teórico é interdisciplinar. Foram utilizadas fontes bibliográficas,

documentais, legislativas e jurisprudenciais. Sua importância reside na abordagem

interseccional do trabalho doméstico, que possibilita um olhar abrangente para o instituto,

contribuindo para suprir uma lacuna na literatura jurídica, uma vez que a maior parte da

produção bibliográfica nessa área limita-se a comentar a legislação. As conclusões

apontam no sentido de que o pleno reconhecimento encontra óbices de natureza

estrutural, esbarrando no sexismo, no racismo e na discriminação de classe, e que tais

estruturas não só influenciam o direito do trabalho, como estão presentes em sua própria

constituição. A histórica discriminação jurídica sofrida pelas empregadas domésticas

desafia o caráter social e protetivo atribuído a esse direito, interpelando suas finalidades

e a real abrangência de suas disposições e princípios.

Palavras-chave: Trabalho Doméstico. Mulheres. Reconhecimento. Direitos. Gênero.

Classe. Raça. Interseccionalidade.

11

ABSTRACT

This study analyzes the trajectory of work the housekeepers in Brazil from the perspective of

Axel Honneth's struggles for recognition. It begins with the question: Why did housekeepers

take so long to achieve basic rights and why do they remain, so far, without full equality in

relation to other workers? They are identified with care and there is a centrality to human

existence. The concepts of sexual and racial division of work, production and reproduction,

time poverty are presented, in addition to revealing the economic dimension of care. A study

on gender, race and class is carried out, demonstrating the incidence of such narratives on the

worker's body and the importance of intersectionality as an analytical tool. The work is made

with the legislative regulation of domestic work, the struggles for recognition and the degree of

legal protection applied to the category. The research is eminently qualitative. As for the

purpose, it is classified as exploratory and explanatory. The theoretical contribution is

interdisciplinary. Bibliographic, documental, legislative and jurisprudential sources were used.

Its importance is in the intersectional approach to domestic work, which allows a

comprehensive look at the institute, contributing to fill a gap in the legal literature, since most

bibliographic production in this area is limited just to commenting on the legislation. The

conclusions point to the fact that full recognition encounters structural obstacles, bumping into

sexism, racism and class discrimination, and that such structures not only influence work law,

but are present in its own constitution. The historical legal discrimination suffered by

housekeepers challenges the social and protective nature attributed to this right, questioning its

purposes and the real scope of its provisions and principles.

Keywords: Housekeepers; Rights; Class; Gender; Race; Woman; Intersectionality.

12

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Organograma da teoria do reconhecimento ..............................................................84

13

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CEPAL Comisión Económica para América Latina

CLT Consolidação das Leis do Trabalho

CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

FBPF Federação Brasileira pelo Progresso Feminino

ILO International Labour Organization

ONU Organização Das Nações Unidas

OIT Organização Internacional do Trabalho

PEC Proposta de emenda constitucional

STF Supremo Tribunal Federal

TRT Tribunal Regional do Trabalho

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 16

1.1 Percurso Metodológico.................................................................................. 19

1.2 Referencial Teórico........................................................................................ 21

2 A CENTRALIDADE DO TRABALHO DOMÉSTICO............................... 24

2.1 Um trabalho de cuidado................................................................................ 24

2.2 Uma ética do cuidado?.................................................................................. 31

2.3 Produção, reprodução e divisão sexual do trabalho................................... 34

2.4 Tornando visível o trabalho doméstico........................................................ 40

2.5 Divisão racial do trabalho. Interseccionalidade e consubstancialidade.... 47

2.6 Empregadas Domésticas versus cuidadoras................................................ 53

3 GÊNERO, RAÇA E CLASSE.......................................................................... 55

3.1 O Corpo: sexo e cor........................................................................................ 58

3.2 Representações do corpo: imagens de controle........................................... 60

3.3 Corpo de branco e corpo de preto: o mito da democracia racial.............. 67

3.4 O corpo confinado: quarto de empregada................................................... 70

3.5 O corpo no trabalho: de “mulas do mundo” a androides.......................... 73

3.6. O corpo versus outros corpos: classe, cidadania e invisibilidade............. 76

4 EMPREGADAS DOMÉSTICAS: UMA CATEGORIA EM BUSCA DO

RECONHECIMENTO........................................................................................

80

4.1 A teoria do reconhecimento........................................................................... 81

4.2 Como tudo começou: o trabalho doméstico escravizado como exemplo

primário de reconhecimento denegado..............................................................

85

4.3 A regulamentação do trabalho doméstico até a Constituição: entre a

repressão, o paternalismo e as resistências......................................................

93

4.4 A Constituição de 1988................................................................................. 104

4.5. Trabalho digno e trabalho decente............................................................

4.6 Reconhecimento no plano da solidariedade: da falta de estima social às

lutas e resistências através dos novos espaços discursivos..............................

108

111

15

4.7 Óbices ao reconhecimento............................................................................ 118

4.7.1 Um espaço híbrido...................................................................................... 118

4.7.2 Afetos e ambiguidades................................................................................ 119

4.8 Lutas por reconhecimento jurídico: associações e sindicatos................... 122

5 DIREITO DE AUSÊNCIAS. JURISPRUDÊNCIA DE EXCLUSÕES....... 126

5.1 Uma crítica às ciências.................................................................................. 126

5.2 Crítica ao direito do trabalho....................................................................... 129

5.3 O direito do trabalho e as “desigualdades juridicamente constituídas”

................................................................................................................................

131

5.4 Elas, as empregadas domésticas, vistas pelos doutrinadores..................... 134

5.5 Patroas e empregadas diante de juízes e juízas do trabalho...................... 139

5.6 Jurisprudência de exclusões. Trabalhadoras domésticas entre a aventura

jurídica e a resistência..........................................................................................

142

5.7 Por um direito do trabalho antidiscriminatório e decolonial.................... 149

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 152

REFERÊNCIAS................................................................................................... 155

ANEXO A: Poema Essa negra Fulô, de Jorge de Lima .................................... 175

ANEXO B: Poema Outra negra Fulô, de Oliveira Silveira................................ 179

ANEXO C: Cópia do Acórdão extraído do Jornal do Commercio .................. 180

ANEXO D: Pesquisa realizada em 1963 .............................................................. 182

16

1 INTRODUÇÃO

O trabalho constitui um dos principais mecanismos para marcar a presença

dos seres humanos no mundo e descrever as relações que entre eles se estabelecem. Esse

trabalho é descrito como produtivo, transformador, exercido na esfera pública e apto a

gerar recompensas. Mas, além dele, existe o trabalho doméstico. Ambos se aproximam

no que diz respeito ao sujeito que executa (pessoa humana), no fato de demandarem

atitude, ação ou esforço, e de terem em vista uma certa finalidade. Mas se diferenciam

em sua história, no grau de valorização social e no reconhecimento jurídico, a ponto de

serem alocados em mundos diferentes. O “trabalho”, sem sobrenome, foi objeto de

regulamentações legais, disputas e teorias. O trabalho doméstico foi relegado a uma

condição de “não-trabalho”: não remunerado (e sem expectativa de contraprestação), não

produtivo, repetitivo, restrito à esfera privada, “coisa de mulher”. Feito por amor,

revelando uma dimensão repleta de expectativas e determinismos de gênero. Durante um

certo momento histórico do Brasil, ele foi realizado por escravizados, tornando-se

“sujo”, braçal, adquirindo uma dimensão racial que persistiu mesmo após o fim do

sistema escravista. Atualmente, em sua forma remunerada, constitui ponto de encontro

de marcadores de gênero, raça e classe.

A presente dissertação procura demonstrar a centralidade do trabalho

doméstico para a organização social e o funcionamento do mundo do trabalho produtivo,

e em última instância do próprio sistema democrático. Não é possível falar em igualdade

de gênero sem trazer para a discussão o trabalho doméstico, que estabelece hierarquias e

clivagens não apenas entre homens e mulheres, mas também entre as próprias mulheres.

Não é possível falar em democracia quando a sobrecarga de trabalho que se impõe às

mulheres, em especial as negras e periféricas, subtrai-lhe o tempo e extrai a força dos seus

corpos, tornando quase impossível a participação política. A pesquisa parte da hipótese

de que o trabalho doméstico remunerado não encontra pleno reconhecimento no âmbito

jurídico nem no social, utilizando a teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Com base

nessa teoria, investiga o tratamento jurídico que lhe foi conferido em três frentes: a

legislação, a jurisprudência e a prática da justiça do trabalho. Analisa, ainda, as

representações desse trabalho no imaginário social. Busca-se examinar as múltiplas

dimensões do trabalho doméstico, revisitar a sua história no Brasil e procurar responder

à seguinte pergunta: por que as empregadas domésticas demoraram tanto a obter direitos

17

básicos? Por que, mesmo diante dos princípios da igualdade e da não discriminação,

atualmente consagrados na Constituição, o trabalho doméstico remunerado permanece

sem ser plenamente reconhecido?

Há um recorte espacial quanto à análise, que se limita ao Brasil, embora isso

não impeça a contextualização do tema com dados oriundos de organismos internacionais

e relativos ao contexto global, bem como referências à situação de trabalhadoras

migrantes exercendo serviço doméstico em outros países.

Essa investigação exige um retorno ao passado, às origens do trabalho

doméstico no país, e requer a utilização de ferramentas analíticas capazes de oferecer

perspectivas mais amplas ao estudo, como a interseccionalidade, que conjuga o exame de

opressões de gênero, raça e classe.

A pesquisa faz-se importante para preencher a lacuna existente no

pensamento jurídico, que busca, muitas vezes, examinar institutos e categorias como se

estes constituíssem objetos apartados do mundo, destituídos de contexto. No caso do

serviço doméstico, o tema ainda é pouco discutido na seara jurídica, limitando-se, na

maioria das vezes, a poucas páginas em cursos ou manuais de direito do trabalho, ou ainda

a manuais específicos que se destinam precipuamente ao empregador.

É importante esclarecer, logo na partida, alguns aspectos sobre certas palavras

utilizadas ao longo do texto. Opta-se pela flexão no gênero feminino (trabalhadora,

empregada) , não só em razão da predominância das mulheres na atividade, mas

sobretudo como decorrência da associação entre mulher, trabalho doméstico e

domesticidade. Considera-se que a trabalhadora doméstica é a empregada doméstica

contratada, com vínculo celetista formal ou informal, como também a diarista, que

executa faxina ou algum outro trabalho (a exemplo de lavar e passar roupas) e é

considerada autônoma. Trabalhadora, portanto, é a mulher que executa o trabalho. Já

empregada tem um significado mais restrito, vinculado a um contrato de emprego,

formal ou informal. Na presente dissertação, serão utilizados ambos os termos. Outra

questão relativa à nomenclatura diz respeito à utilização dos vocábulos “trabalho” e

“serviço”. Ambos são de uso corrente, todavia “serviço” costuma ser mais utilizado

quanto se trata de trabalho remunerado. Aqui, essa regra informal será observada, e a

palavra “serviço” será utilizada na hipótese de trabalho remunerado. “Trabalho”, porém,

será usado indistintamente. Uma última observação que se faz necessária diz respeito ao

vocábulo “Doméstica”. Se por um lado ele remete ao ambiente doméstico, residencial,

também traz uma conotação negativa quando se aproxima do sentido de “domesticação”:

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“amansar”, domesticar animais, domesticar escravizados para se tornarem bons criados.

Esta dissertação procura utilizar uma linguagem que respeite a plena humanidade das

trabalhadoras, todavia as expressões “doméstico” e “trabalhadoras domésticas”

encontram-se presentes na lei e em convenções internacionais, sendo, portanto, muito

difícil evitar o seu uso. Já quanto aos termos “escrava” ou “escravo”, foram substituídos

por “escravizado” ou “escravizada”, para evitar a atribuição de uma identidade fixa à

pessoa que foi vítima do sistema escravista.

Feitos tais esclarecimentos gerais, é chegado o momento de apresentar com

maior especificidade a organização do presente estudo, que se encontra dividido em cinco

capítulos, contando com a presente introdução, a qual, segundo normas da Universidade

Federal do Ceará, também é numerada. Os capítulos 2 e 3 possuem uma estrutura mais

narrativa, expondo conceitos e categorias cujo conhecimento se faz necessário para a

abordagem jurídica do tema. A interdisciplinaridade encontra-se presente ao longo de

todo o trabalho, mas neles aparece de modo mais nítido.

No segundo capítulo, o trabalho doméstico é apresentado como sendo

fundamentalmente um trabalho de cuidado. Cuidado com pessoas (crianças, adultos

dependentes, idosos), cuidado com a casa (limpeza, arrumação), cuidado com a

alimentação (fazer compras, preparar refeições). Cuidado como prática, atitude e ação,

incidente tanto sobre corpos quanto sobre ambientes. Afirma-se a centralidade desse

trabalho, que constitui uma dimensão essencial da vida humana e interpela o mundo do

trabalho “produtivo”, masculinizado, bem como interpela a política e a própria

democracia. São abordados conceitos chave, como ética do cuidado, crise do cuidado,

divisão sexual do trabalho, produção e reprodução, uso do tempo, gratuidade, divisão

racial do trabalho e interseccionalidade. São apresentados dados sobre o valor econômico

do cuidado e é introduzida a discussão sobre os desencontros entre serviço doméstico e

cuidado. Por que as empregadas domésticas não se nomeiam cuidadoras? O que

fundamenta a pretensão de inaugurar uma nova categoria, a dos cuidadores?

O terceiro capítulo apresenta uma dimensão narrativa do gênero, da raça e da

classe, mostrando como tais construções operam no corpo da mulher, em especial da

mulher negra, que no passado foi escravizada e atualmente é presença marcante na

categoria das empregadas domésticas. É analisada a materialidade do corpo marcado pela

cor, pelo sexo e por um lugar social. São abordadas as representações do corpo, plasmadas

nas imagens de controle. Examina-se, também, o mito da democracia racial.

19

O quarto capítulo apresenta a teoria do reconhecimento de Axel Honneth, que

fundamenta a premissa de que o serviço doméstico não é reconhecido nos planos do

direito e da solidariedade. A seguir, é traçado o percurso histórico desse serviço no Brasil,

que teve origem com a escravidão. São analisadas as progressivas regulamentações

surgidas ao longo dos séculos XIX e XX, até a Convenção n. 189 da OIT, buscando

sentido tanto para os dispositivos legais quanto para a ausência deles em determinados

períodos. O capítulo analisa, ainda, as lutas por reconhecimento no âmbito dos sindicatos

e associações e no que se considera um novo espaço discursivo: a internet.

No quinto capítulo é elaborada uma crítica à ciência e ao direito do trabalho

em específico, com aportes da teoria feminista e dos estudos decoloniais. São analisados

os manuais e cursos de direito do trabalho, a jurisprudência dos tribunais e as interações

entre patroas, empregadas, juízas e juízes do trabalho na primeira instância.

Nas considerações finais, são relatados os principais achados da pesquisa e

busca-se responder à pergunta que serviu de base à presente dissertação.

1.1 Percurso Metodológico

A pesquisa é eminentemente qualitativa. Quanto à finalidade, classifica-se

como exploratória e explicativa. Foram utilizadas fontes bibliográficas, documentais,

legislativas e jurisprudenciais. No penúltimo capítulo, foram feitas referências a perfis de

redes sociais. Inicialmente, foi procedida a revisão da literatura sobre o assunto, sendo

constatado que há farta produção sobre o tema no âmbito das ciências sociais e da história.

Consultas a bancos virtuais de teses e dissertações revelaram a abordagem do trabalho

doméstico sobretudo em suas dimensões de gênero e raça. Livros e artigos mostraram que

a questão do trabalho feminino é amplamente debatida nessas áreas, ao passo que no

direito essa visão mais abrangente do instituto é relativamente recente, estando mais

presente em trabalhos acadêmicos, muitos ainda sem publicação editorial. Esse contexto

trouxe uma forte necessidade de buscar apoio na interdisciplinaridade, porém procurando

nunca perder de vista que a presente pesquisa desenvolve-se no âmbito de um programa

de mestrado acadêmico em Direito.

Além de livros, artigos e jurisprudência, houve consulta a hemerotecas

digitais, anais do senado e documentos históricos, os quais compõem as fontes

documentais acima referidas.

20

Como afirmam Queiroz e Ferfebaum (2020), há uma tendência para se inserir

capítulos históricos em monografias, dissertações e teses jurídicas, o que os autores

atribuem ao contato dos juristas com os manuais desde a graduação. Muitas vezes, insere-

se um capítulo com a “evolução histórica” de um instituto como se estivesse cumprindo

uma obrigação, e tal capítulo aparece desconectado do texto e da pergunta de pesquisa.

Esse alerta provocou longa reflexão a respeito da necessidade de tratar o serviço

doméstico sob uma perspectiva histórica, no que diz respeito ao retorno às origens

escravocratas e à evolução de sua regulamentação legal. A conclusão foi no sentido de

que a resposta à pergunta de pesquisa exigia tal percurso, uma vez que ele fornece uma

compreensão mais adequada do problema, contextualiza o debate e ilustra ou reforça a

argumentação, observando, assim, os critérios indicados pelos autores acima citados.

O avanço na pesquisa, sobretudo ao tratar da teoria do reconhecimento no

âmbito da solidariedade, que se mostra por meio da estima social, trouxe consigo a

necessidade de olhar para as representações atuais sobre as trabalhadoras domésticas, com

base em artigos científicos, mas também em narrativas surgidas em um espaço

extremamente dinâmico e ao qual o pesquisador precisa estar atento: a internet. Houve,

então, um momento específico no qual foram feitas referências a perfis de redes sociais e

a informações contidas nestas redes; importante salientar que tais informações foram

apresentadas não como verdades científicas, e sim como dados da realidade, aptos a serem

analisados.

No capítulo 05, foram examinados alguns manuais de Direito do Trabalho,

com o objetivo de verificar o espaço conferido ao trabalho doméstico em tais livros, que

são comumente utilizados na graduação. A escolha dos livros observou o critério da

representatividade e da atualidade, excetuando, quanto a esse último item, o “Instituições

de Direito do trabalho”, que embora não seja atual foi trazido à análise por ser um livro

clássico, presente em bibliotecas de universidades e de muitos órgãos públicos. Efetivou-

se, também, uma pesquisa jurisprudencial, com a finalidade de verificar a percepção dos

tribunais quanto aos direitos das trabalhadoras domésticas, valendo-se de um portal de

pesquisa de jurisprudência e de uma compilação de acórdãos da editora Juruá. Na

compilação, foram lidos, no total, 74 acórdãos, provenientes dos seguintes Tribunais

Regionais do Trabalho: 2ª região, 3ª região, 4ª região, 6ª região, 9ª região, 10ª região, 11ª

região, 12ª região, 13ª região, 15ª região, 19ª região, 20ª região, 22ª região, 23ª e 24ª

região. No portal Jusbrasil, foi efetuada a busca com base nas palavras-chave

“doméstica”, “acidente”, “doença” e “insalubridade”.

21

1.2 Referencial Teórico

A tarefa de examinar o trabalho doméstico exige uma multiplicidade de

abordagens que constitui um verdadeiro desafio teórico. Teoria feminista, vista a partir

da metáfora das “ondas”? Feminismo Negro? Estudos decoloniais? Marxismo? Escola

Crítica? Interseccionalidade? Consubstancialidade? Construir argumentos sólidos

seguindo uma linha argumentativa e teórica coerente requer um esforço especial.

A primeira abordagem experimentada foi a do marxismo, até porque falar em

trabalho e não falar em marxismo pode parecer uma aporia. Entretanto, o aporte trazido

por Silvia Federici logo mostrou ser inviável a fidelidade ao marxismo. Federici, em três

obras examinadas – O calibã e a bruxa, O Ponto zero da revolução e O Patriarcado do

Salário - apresenta uma veemente crítica a essas teorias, por haverem desconsiderado o

trabalho doméstico, ignorando a força estruturante da reprodução humana e social para a

própria existência do sistema capitalista. A autora discorda, ainda, da ideia marxista de

que o trabalho assalariado nas fábricas seria a via de libertação das mulheres. Embora

seja Federici quem faz essa crítica mais direta ao marxismo, inúmeras outras teóricas,

ainda que utilizem conceitos advindos das teorias marxianas (e Federici também utiliza),

terminam por revelar indiretamente a sua insuficiência, uma vez que ele de fato não dá

conta de examinar e explicar o trabalho doméstico.

Deste modo, a presente pesquisa fez uso de múltiplos referenciais, no intuito

de oferecer um panorama mais completo. Parte do marxismo, valendo-se de conceitos

advindos dessa teoria, mas não se limita a ele. Guia-se sobretudo pelas teorias feministas.

Mas o guiar-se por “teorias feministas” suscita outra pergunta: de qual feminismo se está

falando? A resposta é: o feminismo negro, e sua principal ferramenta analítica, a

interseccionalidade. Com a interseccionalidade em foco, surge a necessidade de examinar

mais a fundo questões não só de gênero, mas também de raça e classe, e uma das autoras

que guiaram o presente trabalho foi a brasileira Lélia Gonzalez, que com seus escritos

antecipou, ainda sem nomear, a própria interseccionalidade, e discutiu de uma maneira

muito própria a discriminação racial, a colonialidade, o lugar da mulher negra e o mito

da democracia racial no Brasil. Nesse contexto, destaca-se, também, o conceito de

colonialidade, que surge como aporte teórico em alguns dos capítulos.

As questões relativas à raça motivaram, como já afirmado, a busca das origens

do trabalho doméstico no país, e para tanto foram utilizados trabalhos de historiadores,

22

antropólogos e cientistas sociais. Foram visitadas obras clássicas, como Casa Grande &

Senzala, de Gilberto Freyre, que surge em diversas oportunidades, ora utilizada como

fonte para expor uma determinada realidade, ora para ilustrar a construção de ideias

equivocadas sobre o período colonial, salientando que essa crítica a Freyre é feita por

diversos historiadores. Também aparecem no texto autores como Florestan Fernandes e

Darci Ribeiro, tidos como “intérpretes do Brasil”, todavia é afirmada a sua limitação para

tratar de questões atinentes a gênero.

Uma vez selecionadas as bases teóricas para fundamentar os estudos

interseccionais, restava um desafio: afirmar o não reconhecimento jurídico do trabalho

doméstico exigia um fundamento teórico sólido, e não o simples recurso ao conceito

corrente de reconhecimento. O que é um trabalho reconhecido? Por que o trabalho

doméstico não é reconhecido? Com base em que essa afirmação pode ser feita? A essa

altura, a pesquisa se voltou para as teorias do reconhecimento, sendo escolhida a exposta

por Axel Honneth.

O pensamento de Honneth enquadra-se na tradição da escola de Frankfurt,

que se encontra vinculada à Teoria Crítica. Honneth utiliza o modelo hegeliano de

reconhecimento, que se afasta do padrão marxiano da luta por autoafirmação econômica

e do paradigma meramente produtivista, embora seus escritos observem a centralidade

do trabalho e confiram importância, também, à luta por redistribuição (HONNETH,

2011).

A opção por Honneth, além de respeitar uma coerência teórica, em face de

esse autor dialogar com o marxismo, também oferece a oportunidade de cotejar a sua

teoria com as objeções formuladas por Nancy Fraser, teórica feminista. Mas ainda assim

surge um dilema: se a presente dissertação busca dialogar com o feminismo latino-

americano, tendo como uma de suas referências a brasileira Lélia Gonzalez, por que

buscar a teoria de um homem branco, do Norte? Na realidade, a teoria de Honneth oferece

tão somente o suporte para alocar a história do trabalho doméstico no Brasil em um

percurso. Ela organiza as várias etapas e fornece um referencial para essa trilha. É

instrumental. Além disso, o seu ideal de trabalho como atividade emancipadora,

afastando-se de uma concepção meramente economicista, amolda-se às necessidades das

trabalhadoras domésticas, que, embora não constituam propriamente um grupo

identitário, possuem características identitárias e aproximações com movimentos sociais,

em especial o movimento negro.

23

Importante frisar que alguns conceitos e categorias tiveram uma abordagem

apenas descritiva, sendo manifestada a opção por esta ou aquela definição, sem maiores

problematizações, uma vez que o valor de tais conceitos é instrumental, não sendo

cabível, nos limites desta pesquisa, ampliar discussões quanto a eles.

Por fim, uma observação que se faz necessária diz respeito à presença, nas

referências bibliográficas, de alguns manuais e cursos de direito do trabalho, oferecendo

um contraste com as demais fontes. Tais manuais foram utilizados no último capítulo da

dissertação não como fundamento teórico para a pesquisa, e sim para demonstrar como

esses livros, difundidos entre estudantes de graduação e aspirantes a cargos públicos,

inclusive de juiz, ora silenciam quase que completamente sobre o trabalho doméstico, ora

lhes dedicam poucas páginas e tratam o tema como se não houvesse praticamente

nenhuma problematização, naturalizando um lugar de desigualdade e exclusão.

24

2 A CENTRALIDADE DO TRABALHO DOMÉSTICO

2.1 Um trabalho de cuidado

...Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha.

Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.

(JESUS, 2014, p. 81)

Quase todos os dias, Carolina de Jesus acordava cedo, ia buscar água,

preparava alguma refeição para os filhos (se houvesse alimento) e saía para catar papel,

muitas vezes carregando a filha mais nova, Vera Eunice. Aos mais velhos, deixava

diversas recomendações, como a de não sair para a rua. À hora do almoço, retornava e

cozinhava. Quando havia sabão, lavava as roupas. Limpava a sua casa, que era um barraco

na Favela do Canindé, em São Paulo. Preocupava-se com os filhos, em especial o mais

velho, que aos 09 anos lhe rendeu uma intimação para comparecer à delegacia. Mesmo

suportando toda essa carga sozinha, afirmava que não queria nenhum homem morando

consigo, pois enxergava as outras mulheres da favela como “escravas” de seus maridos

(JESUS, 2014). Os diários de Carolina, publicados na década de 1950, constituem um

testemunho do esforço e da solidão de uma mulher em permanente estado de alerta, que

tinha que cuidar sozinha de si mesma e dos filhos, lidando com a pobreza, o racismo e a

invisibilidade. Entre 1950 e 2021 transcorreu mais de meio século, mas a pobreza

continua sendo predominantemente feminina, e a luta cotidiana das mulheres pela sua

sobrevivência e pela sobrevivência de seus filhos permanece, em grande parte, invisível.

Este capítulo traz a perspectiva do trabalho doméstico como um trabalho de

cuidado, e discorre sobre uma de suas atribuições mais marcantes: a invisibilidade. Tal

invisibilidade contrapõe-se à sua importância para o funcionamento da sociedade e do

mundo do trabalho produtivo, aquele desenvolvido em fábricas, lojas, escritórios etc.

Defende-se a centralidade do trabalho doméstico para a análise das relações sociais e

laborais. Tanto em sua forma gratuita quanto remunerada, ele interpela categorias

fundamentais para o debate feminista contemporâneo: encontra conexões com a

estruturação do mercado de trabalho e com os limites e possibilidades do projeto

democrático, uma vez que engendra desigualdades, reproduz hierarquias e modula a

própria participação feminina na política, pois a sobrecarga de trabalho doméstico que se

25

impõe às mulheres lhes subtrai tempo para se dedicar a essa participação (BIROLI,

2018).

O cuidado é uma dimensão essencial da vida humana. Uma criança só se torna

adulta se receber cuidados; na velhice, eles se tornam ainda mais necessários. Entre a

infância e a velhice, ainda que se tenha a sorte de não possuir nenhuma necessidade

especial, há muito trabalho de cuidado indireto na agenda com a casa e a reprodução

social. Sem tal atividade “não poderia haver qualquer cultura, qualquer economia,

qualquer organização política” (FRASER, 2020, p. 262). Trata-se de uma afirmação que

parece banal, mas que é sempre convenientemente “esquecida”, uma vez que tal dimensão

é desvalorizada na mesma proporção da sua importância. Por mais que permaneça

institucionalmente invisível, o cuidado é uma questão permanente que não pode ser

ultrapassada e cuja negação implica não só a perpetuação, mas o aprofundamento de

graves desigualdades, tanto do ponto de vista do prestador quanto de quem necessita dele

(BIROLI, 2018).

Para designar o ato de cuidar, alguns estudos adotam o termo em inglês care,

por ser dificilmente traduzível e polissêmico, podendo significar, simultaneamente,

prática, atitude e disposição moral (ARAÚJO; HIRATA, 2020). Cuidar implica, ao

mesmo tempo, uma atitude e uma ação; cuidar é prestar atenção, estar vigilante em

relação a uma criança, idoso, doente crônico ou pessoa com deficiência. Mas significa

também agir sobre um corpo e sobre o ambiente. O cuidado pode incidir diretamente

sobre a pessoa, como pode, também, atender suas necessidades de alimento, roupa e

ambiente limpo, daí porque cuidar também abrange as tarefas de cozinhar, limpar, lavar,

passar, dentre outros1. A depender da localidade, inclui atividades como caminhar longas

distâncias para buscar água e lenha (LAWSON et al, 2020).

Trata-se de um trabalho de abrangência mundial, que alimenta hierarquias e

vulnerabilidades, inclusive em países do norte, no qual muitas imigrantes encontram

ocupação atualmente. Profundamente ligado à história da escravidão e do colonialismo,

encontra-se até hoje relacionado à servidão (OIT, 2010). Quando remunerado, é fator de

precarização2 e de clivagens entre mulheres; quando gratuito, é um fator determinante na

1 Por isso a distinção entre “cuidado direto” e “cuidado indireto”. 2 A precarização pode ser definida como um processo de avanço da instabilidade, com perda de direitos trabalhistas, baixo assalariamento, fragmentação, intermitência e insegurança (RAMALHO E SANTOS, 2016). No caso das mulheres, um traço marcante da precarização é a informalidade.

26

exploração das mulheres no âmbito do sistema capitalista, integrando um ciclo que as

mantém em desvantagem econômica e vulneráveis à violência doméstica (BIROLI, 2018;

FEDERICI, 2019; FEDERICI, 2021; VÈRGES, 2020). Ou seja, trabalho invisível,

mesmo quando remunerado, marcado por indicadores de gênero, raça, classe e

nacionalidade. É também uma das ocupações com maior risco de violência e assédio

(BIROLI, 2018; CEPAL, 2019; VÈRGES, 2020).

Uma das principais razões para a invisibilidade e a ausência de

reconhecimento é a premissa de que o trabalho doméstico é uma espécie de extensão da

mulher, algo feito naturalmente, em consonância com suas características femininas. É

como se as mulheres fossem seres talhados para a domesticidade e o cuidado. Em razão

disso, Federici (2019) diz que qualquer luta será sempre frustrada se não for estabelecido,

em primeiro lugar, um ponto principal: o trabalho doméstico é trabalho. E embora

constitua uma atividade comum a praticamente todas as mulheres, apresenta repercussões

diversas a depender da classe social, da raça e da nacionalidade.

Há uma profunda relação de dependência entre o trabalho doméstico e os

padrões de organização e desregulamentação das relações de serviço remuneradas, visto

que o tempo de trabalho formal e remunerado impacta diretamente no tempo e nas

condições para o desempenho da tarefa de cuidar e vice-versa (BIROLI, 2018). Não por

acaso as mulheres, que gastam muito tempo no ofício de cuidar, possuem menos

disponibilidade para atividades que demandem jornadas mais longas e/ou inflexíveis,

viagens e outros compromissos. Isso impacta diretamente na sua colocação no mercado

de trabalho e deixa “reservadas” para elas funções com menor remuneração e maior

índice de precarização. A desregulamentação das relações trabalhistas e a consagração

no plano legal de formas de trabalho extremamente precarizadas preconizam um mundo

no qual só possui algum valor “de mercado” quem se disponibiliza por inteiro. Em

consequência, a possibilidade de delegação do trabalho doméstico atua como fator de

limite ao êxito da mulher no campo do trabalho remunerado. Como afirma Flavia Biroli: (...) As relações de trabalho não atendem a uma lógica que incorpore a dependência de outras pessoas em relação às trabalhadoras, os equipamentos públicos são insuficientes e os recursos para compra de serviços no mercado são escassos. (BIROLI, 2018, p. 107)

Como será exposto no capítulo 5, os modelos de contratação contemplam um

trabalhador do sexo masculino, sem responsabilidades familiares, pronto a dispor de

muitas horas por dia. Oculta-se uma verdade: o mundo da vida privada e o mundo do

27

trabalho são conectados e interdependentes, e é preciso haver tempo para ambos

(OLIVEIRA, 2003). Apesar de sua centralidade, o trabalho doméstico permanece sendo

relegado ao âmbito “feminino”, compreendido esse como o domínio das coisas não

importantes, privadas e de interesse restrito.

Uma leitura atenta do tema deveria ensejar a conclusão de que o cuidado é

um direito (CEPAL, 2019), com todas as consequências daí advindas no tocante à

participação do Estado. Todavia, ele se manifesta dessa forma para poucos. Como regra,

o cuidado é simplesmente uma responsabilidade institucionalizada das mulheres

(BIROLI, 2018).

O Estado brasileiro, por meio da Constituição, artigos 205 e 227, promete

solidariedade no cumprimento de funções domésticas, na medida em que assegura às

crianças, ao adolescente e ao jovem o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação3,

ao lazer, dentre outros direitos que se vinculam ao ato de cuidar (BRASIL, 1988). Uma

criança não sobrevive sozinha, sem alguém para vigiá-la, alimentá-la (o que inclui a

compra dos alimentos e o preparo das refeições) e educá-la. E, mesmo que boa parte da

educação seja transferida para a escola, para se fazer presente nesse ambiente a criança

precisa ter sido cuidada previamente.

A Constituição também promete, de acordo com o parágrafo primeiro, inciso

II desse mesmo artigo, programas de prevenção e atendimento especializado para pessoas

portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do

adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho

e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos (BRASIL, 1988).

E ainda, no artigo 230, erige mais uma vez a ideia de solidariedade no amparo a pessoas

idosas, dispondo, no parágrafo primeiro, que os programas de amparo serão executados

preferencialmente nos lares (BRASIL, 1988). O problema é que esse amparo não se

concretiza, uma vez que é das mulheres, em sua maior parte, a atribuição solitária de

cuidar dos idosos da família. Quando a mulher não realiza esse trabalho, ela delega a uma

empregada doméstica. Federici (2019), embora sem fazer referência ao sistema jurídico

brasileiro, elabora uma crítica a essa transferência de procedimentos para o lar ao afirmar

3 Quando o STF se defrontou com a missão de julgar a constitucionalidade ou não do home schooling, por meio do acórdão do Recurso Extraordinário 888.815 (Rio Grande do Sul), restou evidente, nos termos expostos no julgado, a solidariedade entre família e Estado. Da leitura do voto do ministro Ricardo Lewandowski é possível perceber o quanto a missão de educar não é algo simples, que deve permanecer restrita ao âmbito privado, visto que se destina a formar não apenas membros de uma família, e sim cidadãos de uma república. Percebe-se, portanto, que o trabalho de cuidado desempenhado pelas mulheres possui uma nítida função social que é sistematicamente negada.

28

que a preocupação que está no cerne desse processo é exclusivamente financeira, havendo

pouca consideração no que toca às estruturas exigidas para substituir os serviços

oferecidos por hospitais ou outras instituições.

De um modo ou de outro, essa transferência completa do cuidado para o

âmbito das responsabilidades privadas revela precariedades: muitas vezes a família se vê

às voltas com cuidados complexos, para os quais nunca recebeu treinamento, e as

cuidadoras são colocadas diante de serviços que podem envolver situações de

insalubridade sem que a legislação trabalhista brasileira lhes permita o acesso ao

respectivo adicional, que continua sendo um direito negado à categoria dos domésticos

até o momento.

Dado el envejecimiento y la longevidad de la población y el numero creciente de personas que necesitan cuidados a largo prazo, la atencion ambulatoria em los hogares va adquiriendo mayor importancia. Muchas trabajadoras que em otros contextos corresponden a trabajadoras cualificadas del área de la salud o de la enseñanza. Estas responsabildiades incluyen las de administrar fármacos, controlar signos vitales (por ejemplo, la présion arterial y el nível de oxígeno em la sangre ), cuidar la higiene y realizar traslados de personas mayores no autovalentes, entre otras. (CEPAL, 2019, p. 157).

O cuidado com as crianças também continua sendo uma atividade

predominantemente feminina. O nível de concretização do direito à creche, previsto no

art. 7º, inciso XXV, é muito baixo, pois segundo o IBGE, a taxa de escolarização de

crianças na faixa etária de 0 a 1 ano no país é de 14,4% e de 2 a 3 anos, de 55,4%

(BRASIL, 1988; IBGE, 2019).

Assim, em resumo, no Brasil o cuidado se exerce nos lares, de forma privada,

por meio do trabalho de mulheres, muitas vezes gratuito.

A expressão “crise do cuidado” é utilizada para fazer referência às demandas

não atendidas, ou atendidas parcialmente, e fundadas na precarização de quem cuida. São

apontados, como fatores desencadeantes dessa crise, aspectos como envelhecimento da

população, aumento da expectativa de vida4, escassez de mão de obra feminina gratuita

(dado o avanço da mulher no mercado de trabalho), retração neoliberal, com reduções e

cortes em serviços públicos, além das mudanças climáticas, que afetam a dinâmica da

permanência das pessoas.

4 Segundo a ONU, o processo de aumento da expectativa de vida, iniciado no século passado, vem se mantendo constante até o momento. Embora haja muita variação entre os países, a população ganhou 17 anos de vida nos últimos 55 anos. (apud CEPAL, 2019, p. 134).

29

A crise do cuidado se vê implicada com a questão da imigração. Segundo

Araújo e Hirata (2020), atualmente há um grande contingente de mulheres do sul que

migram para países do norte, nos quais passam a trabalhar com serviços de cuidado, ao

mesmo tempo em que deixam de realizar esse serviço em seu país de origem, que era

feito, muitas vezes, de forma gratuita, em prol de idosos e crianças da família. Figuram

no horizonte também as migrações sul/sul, tendo como beneficiários países como Chile

e Argentina. Essa crise, todavia, atinge os indivíduos de formas diferentes, a partir de sua

localização, classe e raça, havendo mesmo a percepção de que, para as mulheres negras,

pobres e periféricas, ela é permanente, uma vez que tais mulheres, como regra, sempre

tiveram que trabalhar fora de casa e encontrar meios de cuidar de sua casa e seus filhos.

Federici (2019) afirma que a globalização fez surgir uma crise de reprodução

social em diversos países, manifestada através de uma nova divisão internacional do

trabalho. Essa nova divisão aproveita-se da força de trabalho das migrantes, oriundas de

países periféricos, para assegurar os serviços de reprodução social e cuidado nas

“metrópoles”. Enquanto isso, na periferia do capitalismo, são os filhos e idosos das

famílias das migrantes que ficam sem assistência.

A nova divisão internacional do trabalho reprodutivo promovida pela globalização depositou uma grande quantidade do trabalho de cuidado sobre os ombros das mulheres imigrantes. Essa mudança foi muito vantajosa para os governos, pois permitiu a eles economizar os bilhões de dólares que, em outro caso, teriam que pagar para oferecer serviços aos idosos. (FEDERICI, 2019, p. 259).

Quando as mulheres do sul ou do interior do país migram, outras mulheres

fazem o serviço de cuidado para as famílias dessas migrantes por meio de nova delegação,

formando assim o que se intitula “cadeia global de cuidado” que nomeia esse movimento

de mulheres de zonas pobres para cidades ou países mais desenvolvidos.

Este fenômeno inclui rotas migratórias dentro dos próprios países da região (das zonas rurais em direção às cidades), entre países da região (por exemplo, mulheres peruanas que migram à Argentina ou Chile, paraguaias que migram à Argentina, nicaraguenses que miram à Costa Rica) e até países fora da região (por exemplo, aos Estados Unidos, Itália e Espanha). Em geral, essas trabalhadoras sofrem com o maior nível de precariedade laboral e vulnerabilidade que os trabalhadores locais, visto que a precariedade do trabalho doméstico se associa também a condição de migrantes, o que as expõe mais frequentemente às situações de discriminação e violência. (ONU MULHERES apud CEPAL, 2020, p. 03)

Nancy Fraser (2020) compreende essa crise do cuidado como um capítulo de

uma crise mais geral que envolve economia, ecologia e política, sendo expressão das

contradições do capitalismo “financeirizado”, de caráter globalizante e neoliberal, que

30

transfere a indústria para regiões nas quais as condições de trabalho são mais

precarizadas, recruta mulheres para o trabalho pago e reduz investimentos sociais e

estatais no bem-estar social.

Expelindo de si o trabalho de cuidado e lançando-o sobre as famílias e as comunidades, ele diminui, simultaneamente, as capacidades de que elas dispõem para desempenhar esse trabalho. O resultado, em meio à desigualdade crescente, é uma organização dualizada da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir, privatizada para quem não o pode – tudo lustrado pelo ideal ainda mais moderno da “família de dois ganhadores de dinheiro”. (FRASER, 2020, p. 268)

A crise do cuidado repercute na própria crise democrática, pois o cuidado

interpela as assimetrias existentes na estruturação do mundo (BIROLI, 2018; FEDERICI,

2019; ARAÚJO; HIRATA, 2020).

Em face de todas as implicações subjacentes ao tema cuidado, Federici (2019)

defende a sua politização, afirmando que qualquer luta contra a discriminação deve

envolver o tema da feminização da pobreza e seu avanço no contexto do capitalismo.

Embora Federici e Flavia Biroli tenham percepções diferentes a respeito dos caminhos a

trilhar, elas compartilham pontos em comum, e a necessidade de politização do cuidado

é um deles. Biroli (2018) também defende a politização do cuidado, com base na sua

influência em questões fundamentais para a democracia, tais como a participação política

das mulheres. Para ela, a privatização do cuidado é parte relevante dos mecanismos que

reproduzem a pobreza e as desigualdades sociais. Uma vez que a dependência biológica

e a vulnerabilidade constituem condições inafastáveis da vida humana, existe uma

demanda de justiça para que a sociedade reconheça que esse trabalho de cuidado reverte

em benefícios para toda sociedade no sentido amplo e que a defesa da igualdade requer a

valorização desse trabalho (BIROLI, 2018).

A centralidade do cuidado é fundamental para abordagem da democracia que ultrapasse a igualdade formal, em direção a uma compreensão alargada dos mecanismos de reprodução de vantagens e desvantagens para indivíduos e grupos sociais. (BIROLI, 2018, p. 89).

No Brasil, Saffioti (1967) já antevia esse debate, afirmando que, uma vez que

os nascimentos e a socialização das novas gerações constituem interesses da própria

sociedade, deveria esta mesma sociedade “pagar” ao menos parte do preço da

maternidade, encontrando soluções para os problemas que essa maternidade engendra

para a vida profissional das mulheres.

31

Em suma, a questão do cuidado encontra-se no centro do debate feminista,

havendo grandes desafios teóricos. Valorizar e visibilizar esse trabalho, e ao mesmo

tempo retirar seu viés de gênero, é tarefa que implica uma equalização da questão das

diferenças entre homens e mulheres e das diferenças de raça e classe entre as próprias

mulheres, visto que família, maternidade e trabalho remunerado podem possuir

significados bem distintos a depender da mulher da qual se fala. Embora o trabalho

doméstico e de cuidado seja realizado pelas mulheres, as condições em que tal trabalho é

desenvolvido difere para mulheres brancas, negras, ricas e pobres, variando também de

acordo com as diferentes partes do mundo. Há uma verdadeira encruzilhada: valorizar o

trabalho doméstico e de cuidado e ao mesmo tempo fazer a crítica da opressão e das

vulnerabilidades que eles produzem para as mulheres (BIROLI, 2018).

2.2 Uma ética do cuidado?

Entre o final dos anos 1970 e a década de 1980, as teóricas Nancy Chorodow,

Carol Gilligan, Jean Betkhe Elshtain e Sara Ruddik desenvolveram uma perspectiva

política e filosófica que deu origem à chamada “Ética do cuidado” (BIROLI, 2018).

Especificamente, a pesquisa de Carol Gilligan - In a Different Voice – Psychological

Theory and Women’s Development - é bastante discutida quando se aborda a questão do

cuidado. Sua obra proporcionou uma inflexão nos estudos sobre desenvolvimento moral.

Ela defendeu uma teoria com uma concepção de maturidade baseada na ética do cuidado.

A autora relata que, ao longos dos anos, todos os estudos mostravam uma disparidade

entre o chamado “desenvolvimento humano” e a experiência das mulheres. A mulher era

enquadrada em rígidos esquemas feitos por homens e era tida sempre como uma figura

desviante. Deste modo, quando ela não correspondia a uma determinada expectativa

psicológica, era dito que havia algo “errado” (GILLIGAN, 1982).

Gilligan (1982) defende que as mulheres não possuem um desenvolvimento

ou um padrão de maturidade “errados”, mas apenas diferente. A suposta fraqueza moral

das mulheres, sua aparente difusão e confusão de julgamento seriam, na realidade,

atribuições da sua força moral, de uma preocupação maior com os outros, com os

relacionamentos e responsabilidades. As mulheres não somente utilizam o contexto de

relacionamento para buscar uma autodefinição, como também avaliam a si mesmas com

base na sua capacidade de cuidar. Os homens, por sua vez, mesmo sendo destinatários do

cuidado, tendem a desvalorizar esse processo e considerar que a preocupação com os

32

relacionamentos é uma fraqueza moral, e não uma força humana. Daí surgem

estereótipos que promovem uma concepção de vida adulta voltada para o trabalho

autônomo, independente, separado da vida “real”, e desvinculada de noções de amor e

cuidado. E assim, habilidades como racionalidade, autonomia e capacidade de decisão

passam a ser tidas como masculinas.

Para Gilligan (1982), as mulheres alteram a lente da observação do

desenvolvimento, focando no apego contínuo como caminho para a maturidade, ao

contrário do caminho masculino, da separação e da realização individual. Ela aponta

evidências de que mulheres interpretam a realidade social de forma diferente dos homens,

e o senso de integridade delas parece se ligar a uma ética do cuidado, de modo que a visão

de si mesmas é uma visão da pessoa em conexões.

Enquanto uma ética da justiça procede da premissa da igualdade – todos devem ser tratados da mesma forma – uma ética do cuidado se baseia na premissa da não violência – ninguém deve ser ferido. (...) Esse diálogo entre justiça e cuidado não apenas fornece uma melhor compreensão da relação entre os sexos, mas também dá origem a um retrato mais abrangente do trabalho adulto e das relações familiares. (GILLIGAN, 1982, p. 174).

Logo se vê que a “ética do cuidado” baseia-se na ideia da diferença de

perspectiva entre homens e mulheres. Não passou despercebido o potencial desse estudo

para fundamentar posições conservadoras que procurassem manter as mulheres em seu

tradicional papel de cuidadoras, embora a própria Gilligan tenha afirmado expressamente

em sua obra que essa “voz diferente” encontrada não guarda relação de essencialidade

com o gênero feminino. Para ela, a associação com as mulheres decorre de uma

observação empírica, mas não é absoluta. Os dois modos de pensamento não implicam

generalizações quanto ao sexo. (GILLIGAN, 1982).

A intenção de Gilligan não foi, portanto, dar lugar a posições fixas de gênero.

Mesmo assim, sua teoria foi amplamente utilizada com essa finalidade. Faludi (2001)

afirma que essas teorias relacionais que apontavam o foco para características como

“pensamento contextual”, “ética do carinho” e outras especificidades culturais das

mulheres (enfim, teorias focadas na diferença) deram origem a um movimento

conservador, com teóricas antifeministas se valendo do argumento da diferença, e até

mesmo advogados de grandes empresas utilizando esse argumento para defendê-las em

33

processos que versavam sobre discriminação contra mulheres5. O livro de Gilligan, em

especial, tornou-se “um dos mais citados e influentes livros feministas dos anos 80, e se

transformou no mais famoso emblema erudito sobre a “diferença” da mulher” (FALUDI,

2001, p. 324). Fora do ambiente acadêmico, foi referenciado em seminários, livros de

autoajuda e revistas:

Até a Vogue invocou o trabalho da estudiosa nas suas considerações sobre as roupas de alta feminilidade: Gilligan, ponderava a revista, “bem que pode ter antecipado as referências da moda da próxima estação”. Na mídia, a Ms. elegeu Gilligan a “Mulher do ano” e o New York Times dedicou-lhe uma capa. (FALUDI, 2001, p. 325).

Assim, a ideia de uma “ética do cuidado” foi utilizada para revalidar posições

de subalternidade feminina. Scott (2019) formula uma crítica a essa teoria, tanto por

haver generalizado conclusões advindas de uma pesquisa feita com uma pequena

amostra, quanto por considerar que nela estão contidas abordagens a-históricas ou mesmo

essencialistas, reforçando o que o movimento feminista procura combater.

Flavia Biroli aponta os riscos da adoção da ideia de uma ética do cuidado ou

de uma voz diferente, com base justamente na distorção e na sua associação a

essencialismos:

Embora Gilligan seja clara na definição da sua posição, esclarecendo que a “voz diferenciada” das mulheres não emerge da condição feminina, mas de experiências decorrentes de sua posição social, essa abordagem tem permitido aproximações entre cuidado e feminilidade. (..). A valorização do cuidado não pode suspender a crítica ao fato de que nas sociedades modernas sua definição como ética diferenciada deriva das condições de subordinação das mulheres. As diferenças remetem ao papel desempenhado, não algum elemento essencial nas identidades. (BIROLI, 2018, p. 76).

Biroli (2018) ressalta expressamente que sua opção é no sentido de não

resgatar valores comunitários nem atribuir qualquer superioridade ética à posição das

mulheres como mães e cuidadoras.

A defesa de uma “ética do cuidado” traz, efetivamente, mais prejuízos do

que benefícios à luta contra a responsabilização institucional e estrutural das mulheres

5 Um desses casos judiciais foi o “Caso Sears”, iniciado em 1979 e julgado entre 1984 e 1985, que consistiu na abertura de um processo criminal por discriminação sexual movido pela Equal Employment Opportunities Commission (EEOC) do governo dos Estados Unidos contra a Sears, Roebuck and Company, empresa varejista que empregava grande quantidade de mulheres. A acusação era no sentido de que os homens eram alocados em setores de maior remuneração, como o de vendas por comissão. A tese da Sears foi que mulheres possuem outros objetivos na vida e outros valores que não estão relacionados à maximização dos ganhos, característica que seria eminentemente masculina. Historiadoras foram convocadas como testemunhas e prevaleceu a tese das diferenças, que resultou em perdas para a acusação e, obviamente, para as trabalhadoras. (PIERUCCI, 1999)

34

pelo trabalho de cuidado. A tese de Gilligan evoca uma mulher universal, como se

houvesse um único “jeito feminino” de ser, com base em alguns achados de pesquisa, e

pode ser utilizada – como efetivamente foi – para construir modelos de cuidado e

maternagem impositivos para as mulheres e liberatórios para os homens. Talvez fosse

mais pertinente buscar-se uma ética da responsabilidade, capaz de impor a

responsabilização institucional de todos, homens e mulheres. Assim, no âmbito desta

pesquisa rejeita-se a ideia de uma ética do cuidado, que contribui somente para reafirmar

diferenças e ratificar posições e papéis sociais.

2.3 Produção, reprodução e divisão sexual do trabalho

Nos anos 70, um fato insólito ocorrido no exército suíço mereceu a primeira página dos jornais de Genebra. Um jovem recruta apresentou-se ao serviço militar levando no colo um bebê de três meses. (...) Apanhadas de surpresa, as autoridades tiveram que se confrontar com o seguinte problema: o jovem declarava ter sido abandonado pela mulher e não contar com nenhuma possibilidade de apoio familiar. As creches suíças, àquela época, não se ocupavam de crianças com menos de seis meses. Foi assim que o exército encontrou-se a braços, literalmente, com um bebê recém-nascido. O fato, que poderia ter sido tratado de maneira anedótica, foi levado a sério pela mídia e serviu como demonstração cabal de que o serviço militar só era possível porque as mulheres se ocupavam das crianças. O efeito pedagógico mais devastador desse episódio foi a coragem que teve o recruta de afirmar que preferia ficar junto do filho do que assumir suas responsabilidades “masculinas” junto ao exército. (OLIVEIRA, 2003, p. 61).

O trecho citado na epígrafe mostra a perplexidade diante de um homem que

quer exercer seu papel de cuidador em detrimento de suas responsabilidades

“masculinas”. Ampliando a afirmação de Oliveira, de que o serviço militar só é possível

porque as mulheres se ocupavam das crianças, pode-se afirmar que qualquer tipo de

trabalho só é possível porque as mulheres se ocupam da reprodução e dos cuidados, por

força da divisão sexual do trabalho.

Compreender como operou e opera, ainda atualmente, a desvalorização do

trabalho doméstico, implica manejar certos conceitos que explicam a lógica da

exploração, tais como divisão sexual do trabalho, trabalho produtivo e reprodutivo.

O trabalho produtivo relaciona-se com um processo de produção que precisa

prosseguir indefinidamente, repetindo com certa periodicidade as fases anteriores. É uma

sequência. A reprodução compreende tanto a renovação da produção, quanto a geração

das condições para que essa mesma produção siga em frente, em um ciclo de renovação

e repetição. (BOTTOMORE, 2001).

35

Segundo Federici (2018; 2019), a reprodução compreende o complexo das

atividades que possibilitam a reconstituição diária da vida e do trabalho. Nessa categoria

está incluída a própria geração de seres humanos, que constitui a base de todo o sistema

político e econômico; e as atividades cotidianas que compõem o universo doméstico e se

encontram atreladas ao cuidado: limpar, lavar, passar, cozinhar etc. Para a autora, “a

imensa quantidade de trabalho doméstico remunerado e não remunerado, realizado por

mulheres dentro de casa, é o que mantém o mundo em movimento” (FEDERICI, 2019,

p.17). A comida não se faz sozinha, as roupas não se lavam sozinhas, e o trabalhador, que

desenvolve suas atividades na indústria, no comércio ou nos serviços, depende desse

trabalho reprodutivo para poder passar suas horas de trabalho fora de casa e, ao retornar,

poder descansar. São atividades, portanto, que fornecem todo o suporte para a vida diária,

sem as quais não seria possível o trabalho remunerado fora de casa.

Nesse contexto, é oportuno destacar a obra de Engels (2019) sobre as origens

da família, da propriedade privada e do Estado. A despeito de imprecisões históricas e

antropológicas6, ele pesquisou a gênese das desigualdades entre homens e mulheres,

situando-a fora da biologia, e tornando visível a exploração da mulher por meio do

trabalho doméstico, bem como as inúmeras restrições ao exercício da sua liberdade. O

autor busca elementos na história e na antropologia, narrando o processo pelo qual o

homem assumiu o comando dentro de casa, num regime autocrático de família

monogâmica e patriarcal, tornando a mulher “escrava do desejo do homem e mero

instrumento de procriação” (ENGELS, 2019, p. 99). Ele expõe a historicidade dessa

dominação e dos interesses econômicos em jogo, comparando o homem ao burguês e a

mulher ao proletariado. Além disso, expõe também a perda da importância do trabalho

doméstico feminino e a dicotomia entre público e privado que fundamentou boa parte da

produção teórica feminista, cujo slogan pregava que “o pessoal é político”: A condução da casa perdeu seu caráter público. Deixou de concernir à sociedade. Tornou-se um serviço privado; a mulher se tornou a serviçal número um, alijada da participação na produção social” (ENGELS, 2019 p. 123)

Dessa forma, o caminho para a libertação das mulheres seria sua integração

ao processo produtivo (ENGELS, 2019), o que implica dizer, como bem assinala Silvia

Federici (2019 e 2021) , que para o marxismo a mulher estava em uma espécie de situação

6 Uma das imprecisões comumente citadas é a ideia de matriarcado como sistema hegemônico no passado (ARAÚJO, 2019)

36

pré-capitalista, fora dos esquemas de funcionamento do capital. Entretanto, ressalvadas

as limitações da própria época em que foi escrito, esse trabalho de Engels desnudou as

principais causas da exploração das mulheres7.

As feministas marxistas tentaram examinar as bases concretas da opressão

das mulheres que vivem sob o sistema capitalista, e com tal propósito passaram a estudar

o trabalho doméstico nesse contexto. Pretendia-se incluir o trabalho doméstico nas

categorias de análise. E embora a tônica principal tenha sido a crítica, muitas utilizaram-

se do arsenal teórico produzido pelo materialismo histórico (ANDRADE, 2015). Outras,

como Federici, optaram por ultrapassar o marxismo, embora sem renunciar a alguns

conceitos e categorias marxianas.

Produção e reprodução atuam conjuntamente para movimentar a vida social,

porém a produção, tomada em seu sentido originário, ocorreria somente no espaço

público, no âmbito da indústria, e a reprodução estaria relegada ao âmbito privado.

Produção e reprodução, assim como o dualismo público x privado, articulam-se com o

conceito de divisão sexual do trabalho.

Segundo Kergoat (2009), a noção de divisão sexual do trabalho foi utilizada

inicialmente por etnólogos, designando uma explicação para a estrutura social da família.

Foram as antropólogas feministas que atribuíram um novo conceito à expressão,

observando que essa divisão era estabelecida com base em uma relação de dominação. O

conceito foi adquirindo a forma de uma categoria de análise. Embora o modo como a

divisão se realiza seja variável em cada sociedade, há características comuns, a exemplo

da destinação dos homens à esfera produtiva, com ocupações de maior valor, seja

econômico, seja social, e das mulheres à esfera reprodutiva. Atuam dois princípios

organizadores: a separação, segundo o qual existem trabalhos de homem e trabalhos de

mulher, e o da hierarquização, que indica que os trabalhos de homem valem mais do que

os de mulher (KERGOAT, 2009).

O ponto de partida para esses estudos foi justamente a consideração do caráter

laboral do trabalho doméstico. Em outras palavras, a afirmação de que trabalho doméstico

é trabalho. Kergoat e Hirata (2007) assinalam que, na França, o conceito se aplica a duas

instâncias: a divisão dos ofícios entre homens e mulheres (esfera pública, ou de mercado),

e a divisão do trabalho doméstico entre os sexos (esfera privada). Essa análise possibilita

7 É preciso cuidado, todavia, para não classificar Engels como “feminista”, em um anacronismo descontextualizado e separado da análise de outras obras, nas quais ele afirma que o trabalho da mulher iria “desagregar” a família e desestruturar o cuidado com as crianças (ANDRADE, 2015)

37

desnudar a sistematicidade das desigualdades e a hierarquização das atividades, mediante

a qual se produz um sistema de gênero, desmistificando a ideia de que a gratuidade era

justificada pela natureza, pelo amor e pelos deveres inerentes à maternidade (KERGOAT;

HIRATA, 2007).

Assim, o trabalho começou a adquirir um novo significado, para abarcar não

só as atribuições desenvolvidas na esfera profissional, mas também aquelas realizadas no

âmbito doméstico. O conceito pretendia articular essas duas esferas, a “profissional” e a

doméstica. Da mesma forma que se buscou desnaturalizar a família e as obrigações

femininas fundamentadas no aspecto biológico, questionou-se também o modelo do

trabalho assalariado, construído sob medida para o trabalho dito “produtivo”, do homem

branco e qualificado. Desse modo, é situado o referencial teórico em uma perspectiva

dinâmica, observando as relações sociais que se estabelecem entre os sexos, por meio das

quais aos homens é designada a esfera produtiva e as funções de maior valor, seja

econômico, seja social, ao passo que as mulheres são relegadas ao âmbito reprodutivo,

estabelecendo-se a premissa de que o trabalho do homem vale mais do que o da mulher.

(KERGOAT; HIRATA, 2007)

É importante ressaltar que essa divisão não é estanque, modificando-se ao

longo do tempo, sendo dependente de condições políticas e sociais, embora sempre

mantenha a hierarquia. Ela também não incide sobre homens e mulheres da mesma forma

e com a mesma intensidade. Ao contrário, opera conjugada com posições de classe e com

o racismo estrutural, de modo que as formas mais acentuadas de exploração recaem sobre

uma determinada categoria de mulheres, e não sobre todas as mulheres, abstratamente

consideradas.

A divisão sexual assume outros contornos quando se tem em vista a

globalização e as migrações de mulheres do sul para o norte, indo ocupar-se de serviços

domésticos em tais países. Por força desse deslocamento, as mulheres do norte

conseguem “terceirizar” os trabalhos domésticos, e assim ganham tempo para uma maior

dedicação à sua carreira. Um dos efeitos é um apaziguamento nas relações entre os sexos,

uma vez que a delegação do serviço doméstico neutraliza os conflitos em torno da divisão

do trabalho, possibilitando assim, que se esqueça ou pelo menos adie-se a reflexão sobre

a condição precária das migrantes. (KERGOAT; HIRATA, 2007).

Nesse contexto, surge o fenômeno da bipolarização do emprego feminino,

que, nos termos indicados por Hirata (2010), divide as mulheres entre aquelas que

possuem acesso a profissões como as de executiva, servidora pública e outras profissões

38

liberais, e do outro lado as que permanecem em ofícios tipicamente femininos, no

trabalho doméstico e de cuidados, na educação infantil e no setor dos serviços, em

atividades que não exigem qualificação específica. A bipolarização revela clivagens entre

as mulheres e perpetua desigualdades e hierarquias no próprio gênero feminino.

Deste modo, no âmbito público, a divisão sexual produz hierarquias entre os

dois gêneros e entre as próprias mulheres. No âmbito residencial, tido como espaço

reprodutivo, articula-se com os limites e as possibilidades profissionais de cada sexo fora

de casa. O tema encontra-se profundamente vinculado à questão do tempo: tempo para se

dedicar a atividades profissionais, tempo para o desenvolvimento intelectual e subjetivo,

tempo para se dedicar a atividades políticas, consolidando a posição de cidadão/cidadã.

Faz-se fundamental, assim, adentrar na questão da pobreza de tempo. Essa

dimensão da pobreza não se resume à sensação de falta de tempo em decorrência da

velocidade do mundo atual, estando fundamentada na percepção de que nem todas as

atividades diárias da vida são monetizáveis, havendo necessidade de um período mínimo

para realizá-las (FERRITO, 2021). Para Abramo e Valenzuela (2016), ela pode ser

calculada com base na soma das horas necessárias para trabalho remunerado, cuidados

pessoais (higiene, alimentação), transporte, trabalhos domésticos e necessidades

fisiológicas básicas. A pobreza se configura quando não se tem tempo suficiente para tais

atividades. E há déficit de tempo em uma residência quando pelo menos um dos seus

integrantes sofre com a pobreza de tempo. Segundo o relatório da CEPAL, em todos os

países com informação disponível, o tempo total de trabalho das mulheres ocupadas

supera o dos homens. E a sobrecarga de trabalho não remunerado imposto às mulheres

constitui obstáculo tanto ao seu ingresso no mercado de trabalho quanto à ocupação de

postos de trabalho mais valorizados (CEPAL, 2019). Assim, é comum as mulheres

sofrerem com a pobreza de tempo, em razão da divisão desigual das tarefas domésticas.

Muitas vezes, a carga horária total de homens e mulheres é parecida, todavia os homens

possuem mais tempo de trabalho remunerado, o que revela maior tempo livre para o

trabalho produtivo, ao passo que elas precisam abrir mão dessa disponibilidade para se

dedicar a trabalhos reprodutivos, o que é indicador de pobreza de tempo (FERRITO,

2021).

Revelam-se impactos também no âmbito do desenvolvimento político: A sustentação de um projeto político coletivo no cotidiano se confronta com as dificuldades do sujeito individual. O que nos parece uma questão sociológica importante é o fato de que, para quem tem carência de tempo, garantir um tempo para participação política já significa uma afirmação como

39

sujeito na construção da resistência à dominação/exploração. (ÁVILA, 2016, p. 144)

Nesse sentido, a pobreza de tempo representa uma grande limitação para as

empregadas domésticas no tocante à participação ativa em sindicatos e associações.

Esse cenário, aliado às desigualdades sociais, gera nova diferenciação na sociedade

brasileira: as mulheres que já são pobres de renda são também pobres de tempo, por não

disporem de serviços públicos, de acesso à tecnologia ou de empregadas

domésticas/faxineiras para auxiliá-las. E são elas que, como empregadas, babás e

faxineiras, reduzem ou eliminam a pobreza de tempo das mulheres das classes média e

alta.

Hirata (2010) expõe quatro modelos de articulação entre vida profissional e

vida familiar: o modelo tradicional, que conta com um homem no papel de provedor e a

mulher nos serviços domésticos; o modelo de conciliação, segundo o qual a mulher possui

uma ocupação também fora de casa e precisa conciliar essa ocupação com o trabalho

doméstico, sem a divisão com o homem; o modelo de parceria, que supõe uma igualdade,

e segundo o qual homens e mulheres possuem ocupações remuneradas e dividem as

tarefas de cuidado e domésticas de um modo geral; o modelo da delegação, segundo o

qual a mulher delega a outras mulheres o trabalho doméstico.

Com a delegação, a mulher “terceiriza” uma atividade cuja responsabilidade,

teoricamente, lhe cabia, repassando suas atribuições domésticas a outra mulher, a

empregada, diarista ou babá (HIRATA, 2004). Ainda que eventualmente a mulher não

figure formalmente como contratante, é dela a responsabilidade de buscar a profissional,

entrevistar e coordenar a execução dos serviços.

Deste modo, os conflitos relativos à divisão das tarefas entre homens e

mulheres são amainados, ao mesmo tempo em que o trabalho de cuidado segue sendo

invisível, pois realizado por pessoas que são consideradas socialmente invisíveis.

A adoção de tal modelo, todavia, não repousa somente em uma decisão

individual; há todo um sistema social que fomenta ou outro tipo de organização. A

chegada das mulheres ao mundo público não foi acompanhada de mudanças consistentes

nos usos e costumes, e as responsabilidades pelo ato de cuidar continuam recaindo sobre

elas, de modo que a vida privada permanece sendo um “ponto cego” nas relações sociais

(OLIVEIRA, 2003). Nesse mesmo sentido, Flavia Biroli (2018) afirma que a isenção do

homem quanto a esse trabalho é coletiva e institucionalizada, de modo que motivações e

escolhas devem ser vistas dentro de uma dinâmica social, ao invés de explicadas em

40

dimensões individuais e sob perspectivas voluntaristas. Embora não existam

impedimentos legais para se buscar outros caminhos, nem o que se possa identificar como

coerção propriamente dita, há uma questão de responsabilização, que atua nos planos

institucional e estrutural. A alocação das responsabilidades por esse trabalho é

institucionalizada e permeia as relações cotidianas (BIROLI, 2018).

Hirata (2004) afirma que, na sociedade brasileira, o modelo de delegação de

cuidados e atividades domésticas superpõe-se ou supera o modelo de conciliação da vida

profissional com a vida familiar. É preciso, todavia, ler com cuidado tal afirmação, uma

vez que, conforme exposto adiante, por meio de dados do IBGE (2020), a delegação

mediante a contratação de empregadas domésticas é acessível a poucas famílias no país,

havendo uma grande massa de mulheres que trabalham fora e chefiam domicílios, tendo

que conciliar tais atividades, embora em algumas situações, com a ajuda de parentes,

filhos mais velhos e da comunidade.

2.4 Tornando visível o trabalho doméstico

Mulher & produto bruto Uma piadinha corrente entre os economistas: empregada doméstica ganha salário e, portanto, contribui com o aumento do produto interno bruto do país. Se cada homem casasse com a sua empregada, o salário deixaria de existir. E o produto bruto ia pro brejo. O machismo tem razões que a economia desaprova”. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, O PASQUIM, 1978, p. 08)

Quando se fala em trabalho doméstico, uma das palavras-chaves manejadas

em muitas pesquisas é “invisibilidade”. A invisibilidade do próprio trabalho, somente

percebido quando não realizado, ou quando realizado de modo deficiente. A

invisibilidade para uma das teorias sociais mais influentes do mundo ocidental (o

marxismo). A invisibilidade do corpo da empregada, que deve se vestir de maneira

“adequada” (que não revele uma “feminilidade” igual ou superior à da patroa, sendo o

uniforme um instrumento para tal fim). A invisibilidade desse mesmo corpo ao transitar

pela casa, sendo-lhe vedado tacitamente o acesso às áreas sociais quando não está

trabalhando nelas. Essa invisibilidade repercutiu por muito tempo nos censos, nas

estatísticas e estudos nos quais o trabalho doméstico não era contabilizado.

O Wages for housework foi um movimento que procurou chamar a atenção

para o trabalho doméstico silenciosamente realizado nos lares por meio da proposta de

pagamento de salário para tais atividades. Silvia Federici participou ativamente, e expôs

41

os seus fundamentos no livro “O ponto zero da revolução” (2019). Segundo os cânones

do Wages..., os salários para o trabalho doméstico seriam pagos pelo Estado, e não pelo

marido. Para Federici (2019), a questão dos salários estaria longe de se resumir ao âmbito

financeiro; ela rejeita a ideia de salário como “um dinheiro a mais” e suscita o caráter

político da questão: o simples fato de se postular salário para tarefas que eram tidas como

atribuições naturais, decorrência do amor, já acarretaria severo impacto nas expectativas

sociais sobre as mulheres. O objetivo final seria “desgenerificar” o trabalho doméstico.

A luta pelo salário seria, então, uma luta contra o papel social e contra a naturalização

dos serviços domésticos como algo ínsito à mulher (FEDERICI, 2019)

Na própria época em que surgiu, o Wages for Housework sofreu inúmeras

críticas. Se, por um lado, a ideia de pagamentos pelo Estado para trabalhos domésticos

pareceria ainda mais sem sentido no mundo de hoje, não se pode negar a verdade da

assertiva de Federici (2019) no sentido de que conseguir um emprego fora de casa nunca

libertou as mulheres do “primeiro emprego”, a luta diária com os afazeres domésticos.

Mesmo quando as mulheres podem pagar por uma empregada, ainda é como se aquele

trabalho fosse delas, como se elas apenas o estivessem delegando, tanto que a contratação

e a supervisão dos serviços, assim como a organização da rotina da casa, permanecem

sendo atribuições tipicamente femininas. Com ou sem empregada doméstica remunerada,

as mulheres não se libertaram da ideia de que trabalho doméstico é trabalho de mulher, o

que se expressa nessas duas vias: as pessoas que delegam são mulheres; as pessoas que o

exercem, ainda que de forma remunerada, também o são. Nesse sentido, possui total

pertinência a afirmação de Pereira e Nicoli (2020) de que o “Wages...” constituiu uma

importante provocação política.

O movimento é um capítulo na grande luta do movimento feminista para

demonstrar que o trabalho doméstico é trabalho, uma vez que sua classificação como

atividade de mero “valor de uso”, sem finalidade lucrativa e sem impactos econômicos,

condicionava o seu reconhecimento. Além de ser posto à margem do motor da sociedade

capitalista (a geração de lucro), esse mesmo trabalho é tido como não especializado, não

sendo necessária nenhuma competência especial ou qualificação para tal fim, haja vista

que as tarefas de cuidar e limpar são tidas historicamente como desdobramentos naturais

da condição feminina. Como afirma Hirata (2004), por competência entende-se uma

miríade de características atribuídas ao masculino, tais como criatividade, autonomia e

capacidades técnicas. Para ela, o reconhecimento do valor dessas qualidades, que devem

ser alçadas à condição de competências profissionais, constitui um dos momentos

42

fundamentais dessa correlação de forças estabelecida entre os gêneros e as classes sociais.

Ela salienta, todavia, que a mercantilização do trabalho doméstico pode levar tanto à

desvalorização quando ao reconhecimento.

Nesse sentido, é interessante ilustrar com o exemplo abaixo:

Muitas mulheres, chefes de família ou não, se engajaram em mutirões de construção para conquistar uma casa própria. O setor da construção civil descobriu que as mulheres eram ótimas azulejistas, realizando acabamentos precisos e trabalhando com asseio. Porém, não foram contratadas ganhando mais do que seus colegas homens por fazerem melhor serviço. Foram contratadas ganhado menos, e a feminização da profissão concorre para a diminuição de sua remuneração. (NOBRE, 2004, p. 62)

Uma das hipóteses suscitadas por essa autora é a de que o trabalho não possui

um valor intrínseco, estando relacionado ao reconhecimento social de quem o faz. A se

confirmar tal hipótese, as mulheres veem-se enredadas em um círculo vicioso, uma vez

que, sempre que conseguirem romper os limites dos nichos tipicamente femininos, todas

as atividades que “tocarem” serão desvalorizadas. Na prática, pode-se observar que o

contrário também acontece: atividades historicamente associadas à condição feminina,

como o ato de cozinhar, tornam-se competência profissional nas mãos de homens, que se

qualificam como “chefs”, e não, cozinheiros.8

Os censos ratificavam esse sistema de invisibilidade, considerando a dona de

casa como economicamente inativa, sem qualquer participação na formação do país e no

seu Produto Interno Bruto (PIB). Para Bruschini (1998), foram dois os elementos que

possibilitaram tornar visível o trabalho feminino: a discussão sobre a inadequação ou

insuficiência do marxismo para analisar e compreender o trabalho feminino; e um alerta

para os equívocos metodológicas nas pesquisas de levantamentos de dados realizadas por

organismos oficiais para coletar informações sobre o trabalho feminino. Os censos

adotavam como referência o trabalho produtivo sob os moldes capitalistas, de modo que

restavam omitidos o trabalho em domicílio remunerado para produção de alimentos e de

roupas, como também o trabalho doméstico. Além disso, utilizava-se o conceito de chefe

de domicílio, sempre associado ao gênero masculino. Além de conter muitos vieses, tanto

nas perguntas quanto na própria abordagem pelos recenseadores, essas pesquisas não

8 O domínio dos homens sobre a cozinha não é fenômeno recente, todavia a eles era destinada a cozinha “especial”, a comida feita para nobres, enquanto as mulheres ficavam com as cozinhas menos requintadas, “triviais “e nas quais não se exigissem competências específicas, ou mesmo a confiança. Da mesma forma, na atualidade a cozinha “lucrativa” é domínio masculino, sendo comum que as mulheres ocupem lugares subalternos, de mera assistência/ajuda. O ambiente costuma ser agressivo, e favorece a prática do assédio, tanto moral quando sexual. (BRIGUGLIO, 2017; PENA; SARAIVA, 2019)

43

analisavam dados secundários. Foi somente nos anos 80 que foram sendo introduzidas

modificações nos questionários do IBGE. A partir dos anos 90, a Pesquisa Nacional por

Amostra de Domicílio (PNAD) sofreu diversas transformações que terminaram

resultando na reconfiguração da própria categoria “trabalho” (BRUSCHINI, 1998).

Atualmente, utiliza-se a expressão “economia do cuidado” para conferir

visibilidade ao trabalho doméstico, ignorado pela economia tradicional. A economia do

cuidado lida com todo trabalho não remunerado, realizado no âmbito das residências,

como também o trabalho de cuidado remunerado desempenhado na esfera do mercado,

abrangendo todo o valor que é gerado pelos serviços e atividades atinentes à existência e

à reprodução das pessoas e da própria vida social. Seu estudo permite que se analisem as

cadeias de cuidado e que se compreendam os fatores que contribuem para diversificar a

estrutura de produção e o crescimento econômico sob uma perspectiva de

sustentabilidade, como também favorece o desenvolvimento de políticas públicas

voltadas à criação de uma sociedade mais justa. (CEPAL, 2019).

Esse reconhecimento foi extremamente importante, mas na prática o trabalho

doméstico segue desvalorizado e a responsabilização institucional por desempenhá-lo

continua sendo das mulheres.

Outro recurso que auxilia na visibilização da atividade é a pesquisa sobre o

uso do tempo. Seu objetivo é descobrir quais as tarefas nas quais as pessoas empregam o

seu tempo em um determinado período, sendo utilizado, geralmente, o dia como

parâmetro. Desse modo, a pesquisa, por meio do uso de metodologias diversas, consegue

traçar “orçamentos de tempo”, muitas vezes com informações sobre as atividades

realizadas e quem se beneficiou delas (RAMOS, 2009). No Brasil não há pesquisa

orientada exclusivamente para tal finalidade, mas a PNAD contínua passou a revelar

alguns dados nesse sentido a partir da década de 2000. Em 2008, foi criado um comitê

técnico de estudos de gênero e uso do tempo (CGUT) para estimular a utilização dessa

perspectiva na produção e na análise das estatísticas do país. (MELO; CONSIDERA; DI

SABBATO, 2016)

Embora não seja objetivo deste trabalho fazer uma comparação rigorosa

quanto ao uso do tempo, é possível, por meio de amostragens básicas, observar como o

uso do tempo em tarefas domésticas sempre foi maior pelas mulheres. Na última pesquisa

divulgada, no ano de 2020, as mulheres ainda despendiam, em média 10 horas a mais do

que os homens em afazeres domésticos (IBGE, 2020).

44

Essa diferença na alocação do tempo implica graves limitações ao exercício

de tarefas remuneradas fora de casa, tolhendo oportunidades e reduzindo ganhos salariais.

Ao mesmo tempo, torna invisível tudo o que cerca o trabalho de cuidado realizado por

mulheres. Em 1970, a economista Ester Boserup publicou estudo tratando sobre a divisão

sexual do trabalho, mostrando como o cálculo do produto nacional ignorava a produção

de subsistência familiar – realizada, em sua maioria, por mulheres. Essa crítica inicial foi

ampliada pelas feministas com a tendência de visibilização do trabalho doméstico. A

partir de então, foram vários estudos estimando o valor do trabalho doméstico (MELO;

CONSIDERA; DI SABBATO, 2016).

Em janeiro de 2020, foi publicado o relatório “Tempo de Cuidar”, da Oxfam

Brasil9, revelando grandes disparidades nas relações de gênero e raça. Um dos destaques

foi a estimativa do trabalho de cuidado não remunerado:

O valor monetário global do trabalho de cuidado não remunerado prestado por mulheres a partir da faixa etária de 15 anos é de U$$ 10,8 trilhões por ano – três vezes maior do que o estimado para todo o setor de tecnologia do mundo. (LAWSON et al, 2020, p. 06)

Essa renda, que pode ter sido subestimada, pois calculada com base apenas

no salário-mínimo, tem seus benefícios revertidos para os mais ricos. Esse mesmo

relatório indica que mulheres e meninas, sobretudo as que vivem em condição de pobreza,

dedicam 12,5 bilhões de horas por dia realizando trabalhos de cuidado gratuito, sem

contar as horas de trabalho com remuneração muito baixa. Essa situação faz parte de um

contexto de grande concentração de renda, encontrando-se no topo um grupo pequeno de

pessoas, composto predominantemente por homens. Se a extrema pobreza é feminina, a

extrema riqueza é masculina: os homens detêm, no mundo, 50% a mais de riqueza do que

as mulheres (LAWSON et al, 2020).

As mulheres desempenham mais de três quartos dos trabalhos de cuidado não

remunerado no mundo inteiro, e dois terços do trabalho remunerado nesse setor. As que

vivem em comunidades rurais e de baixa renda dedicam tempo cinco vezes maior do que

os homens no trabalho de cuidado não remunerado. Ainda segundo esse mesmo relatório,

em todo o mundo, 42% das mulheres em idade ativa encontram-se fora do mercado de

trabalho em razão de suas atividades não remuneradas, ao passo que isso ocorre apenas

9 Organização da sociedade civil criada em 2014, sem fins lucrativos e independente. In: https://www.oxfam.org.br/historia/. Acessado em maio, 2021.

45

com 6% dos homens (LAWSON et al, 2020). Trata-se de um ciclo: as meninas que

precisam realizar o trabalho de cuidado não remunerado apresentam índice de

absenteísmo na escola maior do que as demais, permanecendo com poucas chances de

mobilidade social ao longo da vida, em razão da baixa escolaridade.

A situação muito se agrava com os cortes de serviços públicos, a privatização

de serviços diversos, como educação e saúde, que redundam em mais trabalho para as

mulheres. O envelhecimento da população e as mudanças climáticas delineiam um

cenário de piora. Ainda segundo o relatório da Oxfam Brasil (LAWSON et al, 2020), até

2025, um total de 2,4 bilhões de pessoas no mundo poderão viver em lugar sem água, o

que forçará mulheres e meninas a ter que caminhar cada vez mais para buscá-la.

Quando se trata de trabalho doméstico remunerado, os dados são também

desalentadores. Na América Latina, o Brasil é um dos países que possui a maior

proporção de mulheres ocupadas com o serviço doméstico remunerado. Considerando

América Latina e Caribe, estima-se que existam entre 11 e 18 milhões de pessoas nessa

ocupação, e, dessas, 93% são mulheres. Mais de 77% dessas mulheres trabalham em

condições de informalidade, ao largo de qualquer proteção trabalhista. A Organização

Internacional do Trabalho (OIT) estima que 17,2% das trabalhadoras domésticas são

migrantes. Segundo dados da CEPAL, com base no censo de oito países, 63% dessas

pessoas são afrodescentes. (ONU MULHERES, OIT, CEPAL, 2020).

Segundo o relatório da Oxfam Brasil (LAWSON et al, 2020), apenas 10%

das trabalhadoras domésticas possuem proteção legal na mesma medida dos outros

trabalhadores e somente cerca de metade possui acesso a salário-mínimo. Isso significa

que 90% delas são privadas de benefícios de previdência e assistência social. Para mais

da metade delas, não há previsão de limitação de jornada de trabalho na legislação, o que

foi o caso do Brasil até recentemente. Há ainda o trabalho análogo à condição de

escravidão, estimando-se que anualmente cerca de 8 bilhões deixem de ser pagos a essas

mulheres, que vivem em residências nas quais toda a sua vida é controlada.

O IBGE publicou recentemente um relatório com os destaques da evolução

do mercado de trabalho no Brasil, destacando dados da PNAD contínua de 2012 a 2020,

e os resultados foram os seguintes:

Os trabalhadores domésticos no Brasil, em 2012, compreendiam 6,1 milhões de pessoas e atingiu o menor contingente em 2014, quando havia no País 5,9 milhões de trabalhadores domésticos. Em 2020, contudo, ocorreu a maior

46

retração dessa população, que passou de 6,2 milhões em 2019 para 5,1 milhões de pessoas em 2020: queda de 19,2%.

(...)

Dentre as atividades de serviços, os Serviços domésticos tiveram a segunda maior queda (19,0%) em 2020, perdendo apenas para o grupamento de Alojamento e alimentação. A atividade passou a contar com 5,1 milhões de trabalhadores em 2020, o que representa redução de 1,2 milhão de pessoas em relação a 2019. (IBGE, 2021, p. 5 e 6).

O emprego doméstico é uma ocupação residual, que diminui quando o PIB

do país cresce e aumenta quando cresce a taxa de desemprego, o que denota que se trata

de um nicho para pessoas que não conseguem outras ocupações (DIEESE, 2020). A

atividade é marcada pela informalidade e desproteção. Em 2018, apenas 27% das

empregadas domésticas tinham carteira assinada. O pico de formalização ocorreu em

2015, com o percentual de 31,2%. Entretanto, está havendo retração desde 2016. Além

disso, considerando o total (tanto empregadas quanto autônomas), em 2018 apenas 38,9%

eram contribuintes para a previdência, o que implica a existência de milhões de

trabalhadoras sem qualquer proteção previdenciária, excluídas de benefícios como

auxílio-doença, acidente, salário maternidade e aposentadoria. (DIEESE, 2020).

Enquanto há um grande contingente de trabalhadoras domésticas no país, são

poucas as famílias que as empregam: 19,5% das famílias brasileiras são as contratantes,

sendo a maior parte delas (40,1%) composta por casais com filhos. As pesquisas indicam,

ainda, a permanência de uma maioria de mulheres negras na ocupação. Em 2018, eram

cerca de 6,23 milhões de pessoas, sendo que destas, 457 mil eram homens e 5,77 milhões

eram mulheres (92,7% da categoria). As mulheres negras representam um total de 65%

da categoria. Segundo o perfil atual, predominam mulheres na faixa etária acima de 45

anos (46,5%), o que se deve sobretudo às mudanças da década de 2000, com aumento de

ofertas de emprego no setor de serviços para mulheres mais jovens (DIEESE, 2020). Esse

aumento da faixa etária também é reportado a nível internacional, com um aumento médio

de quase oito anos ao longo de um período de menos de 20 anos (CEPAL, 2019).

As empregadas domésticas também apresentam uma grande participação no

orçamento familiar, sendo que 45% delas são chefes de domicílio:

Entre as trabalhadoras extremamente pobres, 58,1% são chefes de domicílio; entre as pobres, 48,7% são chefes de domicílio; e entre as não pobres, 42,4%, ou seja, há maior participação de mulheres chefes de família em situação de extrema pobreza. Essa condição é ainda mais acentuada entre as domésticas negras, das quais 46% são chefes de seus domicílios, contra 43,1% das não

47

negras. Entre as domésticas negras em situação de extrema pobreza, 59,3% são chefes de domicílio, enquanto entre as não negras extremamente pobreza, 53,7% o são. (DIEESE, 2020, p. 9 e 10)

A remuneração média dessas trabalhadoras é abaixo do salário-mínimo (em

2018, era R$ 102,20 a menos). As diaristas possuem um salário hora mais alto, mas suas

jornadas, no geral, são mais instáveis, o que afeta a remuneração global. E em todas as

atividades a remuneração média das trabalhadoras negras permaneceu inferior à das não

negras (DIEESE, 2020).

2.5 Divisão racial do trabalho, interseccionalidade e consubstancialidade

A abordagem da divisão sexual do trabalho, as diferenças entre trabalho

produtivo e reprodutivo e as pesquisas sobre o uso do tempo são fundamentais para se

obter a compreensão do contexto que permeia o trabalho doméstico. Mas, quando

analisamos o serviço doméstico remunerado, faz-se necessário introduzir novos

conceitos, como a divisão racial do trabalho e a interseccionalidade, sendo fundamental

atentar para o protagonismo do feminismo negro. Autoras como Lélia Gonzalez, bell

hooks, Patricia Hill Collins e Angela Davis produziram material de estudo capaz de

identificar a condição da mulher negra na sociedade, abordando questões omitidas no

âmbito do feminismo tradicional, feito por mulheres brancas.

A divisão racial do trabalho tem origem com o movimento colonizador, que

inicialmente codificou as diferenças entre conquistadores e conquistados por meio da

ideia de raça, e a partir daí estabeleceu lugares hierarquicamente diferenciados para cada

um deles (QUIJANO, 2005). Mesmo com o fim da colonização, persistiu a lógica

colonialista de exploração e desumanização de pessoas, que continuaram a ser vistas

como “o outro”. Se a descolonização foi o movimento histórico de insurgência dos

colonizados contra os impérios, a decolonialidade é a insurgência contra a persistência

dessa lógica colonial e seus efeitos nos campos “materiais, epistêmicos e simbólicos”

(MALDONADO-TORRES, 2019, p. 36).

No Brasil, a divisão racial do trabalho é referida por Clovis Moura e Lélia

Gonzalez para identificar princípios semelhantes aos da divisão sexual (separação e

hierarquia), tendo como marcador o pertencimento étnico-racial. Moura (2019) situa a

construção dessa divisão no período escravocrata, tendo se racionalizado por meio de

teorias “justificadoras” no período pós abolição e perdurado até os dias atuais, refletindo

48

uma estrutura social estratificada de forma rígida: os trabalhos “nobres”, qualificados,

eram exercidos pelos brancos, enquanto o trabalho “sujo”, braçal, era feito pelos negros.

De modo similar, Gonzalez (2020) afirma que essa divisão faz com que, no Brasil, a

população negra ocupe-se predominantemente de posições laborais subalternas. A

mobilidade das pessoas negras, segundo ela, caracteriza-se por ocorrer em termos

individuais, ou seja, são pessoas que, por alguma razão particular, conseguem ascender

socialmente, a exemplo de jogadores de futebol. Assim, não é por acaso que a força de

trabalho negra permanece confinada em atividades que pagam mal e exigem pouca

qualificação, sendo fruto de uma sistemática discriminação.

Articuladas, a divisão sexual e a racial estabelecem nichos, lugares pré-

determinados para homens e mulheres, em especial as mulheres negras. O serviço

doméstico tem subsistido como um nicho para mulheres negras.

Lidar, por exemplo, com a divisão sexual do trabalho sem articulá-la com a correspondente ao nível racial é cair em uma espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizante e branco. Falar de opressão ã mulher latino-americana é falar de uma generalidade que esconde, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito alto por não serem brancas. (GONZALEZ, 2020, p. 142).

Lélia Gonzalez afirma que, no que diz respeito ao período posterior à década

de 1950, houve o fechamento de muitas fábricas têxteis, prejudicando a condição da

mulher negra operária. Embora novas perspectivas tenham sido abertas em setores

burocráticos mais baixos, essas atividades ainda exigiam algum nível de escolaridade,

que tais mulheres não possuíam. Em paralelo, tais profissões exigiam, também, “boa

aparência”10, expressão que, a seu ver, constitui “um código cujo sentido indica que não

há lugar para a mulher negra” (GONZALEZ, 2020, p. 57/58).

Por que será que ela só desempenha atividades que não implicam “lidar com o público”? Ou seja, atividades onde não pode ser vista? Por que os anúncios de emprego falam tanto em “boa aparência”? Por que será que, nas casas das madames, ela só pode ser cozinheira, arrumadeira ou faxineira, e raramente copeira? Por que é “natural” que ela seja a servente nas escolas, supermercados, hospitais etc. e tal? (GONZALEZ, 2020, p. 85).

Essa falta de perspectivas direcionava a mulher negra para o serviço

doméstico, tido muitas vezes como inevitável, de modo que as meninas passavam a ser

treinadas para isso desde cedo (COLLINS, 2019).

10 No terceiro capítulo haverá menção a essa questão da aparência, abordando o sentido da expressão “cara de empregada doméstica”.

49

Gonzalez (2020) aponta uma grande contradição do movimento feminista

brasileiro, uma vez que, quando se denunciava a exploração das empregadas domésticas,

era gerado um intenso mal-estar, sendo visível a existência de um “racismo por omissão”,

com base em visões de mundo eurocêntricas e neocolonialistas.

No caso da empregada doméstica, ela passava por um processo de

internalização da diferença e da suposta inferioridade que seria típica de sua condição.

Além disso, enfrentava a dupla jornada:

Após “adiantar” os serviços caseiros, dirige-se à casa da patroa, onde permanece durante todo o dia. E isso sem contar quando tem de acordar mais cedo (três ou quatro horas da manhã) para enfrentar a fila dos postos de assistência médica pública, para tratar de algum filho doente (...) – (GONZALEZ, 2020, p. 58)

A abordagem da divisão racial do trabalho sob uma perspectiva decolonial é

fundamental, mas necessita ser conjugada com a interseccionalidade (PEREIRA E

VIERA, 2015; AKOTIRENE, 2018), uma vez que a colonialidade não se restringe à

classificação racial, pois “atravessa o controle do acesso ao sexo, a autoridade coletiva, o

trabalho e a subjetividade/intersubjetividade” (LUGONES, 2020, p. 57).

A interseccionalidade constitui uma ferramenta muito importante para o

feminismo negro. Na maioria dos artigos sobre o tema, encontra-se a sua história contada

de forma mais ou menos idêntica: interseccionalidade seria um conceito cunhado por

Kimberle Crenshaw, no âmbito de sua área de atuação (jurídica) para tratar da observação

dos múltiplos cruzamentos entre raça, gênero e classe. Collins e Bilge (2021), todavia,

aprofundam o debate sobre o tema, explicando que as ideias centrais da

interseccionalidade foram elaboradas entre as décadas de 1960 e 1970, havendo várias

obras de intelectuais negras que tratam do assunto, a exemplo de The black woman, de

Toni Cade Bambara e Double Jeopardy: To be black and Female, de Frances Beal. Ainda,

em 1977 foi lançada a Declaração Feminista Negra, escrita pelo Combahee River

Colective (CRC). Além disso, os movimentos sociais vinham lutando incessantemente

pela inclusão em instituições sociais de pessoas que antes eram excluídas. Essa conjunção

de fatores tornou possível a sistematização e o ato de nomear a interseccionalidade, o que

foi feito por Creenshaw, que, segundo Collins, ocupava uma posição ideal para escrever

o artigo tratando sobre o tema, uma vez que conhecia os movimentos sociais dentro e

fora da universidade.

50

Importante registrar que, no Brasil, Lélia Gonzalez já antecipava as ideias do

que viria a se chamar interseccionalidade.

No artigo Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black

Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist

Politics (CRENSHAW, 1989), Kimberle Crenshaw analisa alguns julgamentos para

demonstrar como a experiência das mulheres negras não é percebida pelo judiciário. No

caso de Graffenreid vs. General Motors, a GM foi acusada de não haver contratado

mulheres negras durante certo período, e alegava que não houve discriminação sexual,

porque foram contratadas mulheres (brancas). Não teria havido, também, discriminação

racial, pois havia homens negros trabalhando. A corte afirmou que a ação deveria ser

examinada para ver se era encontrada uma causa para discriminação racial OU

discriminação sexual, mas não uma combinação de ambas. As discriminações foram

examinadas de forma separada e estanque, resultando em vitória da GM. Segundo o

julgado, não há nenhuma proteção especial para a categoria “mulheres negras”.

A autora segue analisando outros casos, e formula a célebre imagem de uma

avenida que possui quatro direções e fluxos. Caso ocorra um acidente, ele pode ser

causado por um veículo que vem em qualquer das direções, e, às vezes, veículos vindos

de todas elas. (CRENSHAW, 1989). Assim, as mulheres negras encontram-se no centro

dessa avenida, podendo sofrer discriminações diferentes daquelas que são

experimentadas por homens negros e mulheres brancas, com efeitos combinados de

práticas que discriminam com base em raça e sexo, de modo que as opressões enfrentadas

por esse grupo são mais amplas do que aquilo que é ofertado pelo discurso sobre a

discriminação.

Para Creenshaw (2012), as discriminações de sexo e de gênero operam em

conjunto, funcionando como limitações ao sucesso de mulheres negras. A

interseccionalidade pode então ser uma ponte entre várias instituições e eventos, e uma

categoria de análise nos discursos a respeito dos direitos humanos. A autora cita como

exemplos a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra

as Mulheres (Cedaw) que se volta ao tema dos direitos humanos das mulheres

(abordagem de gênero) e a Convenção Internacional sobre a Eliminação

de Todas as Formas de Discriminação Racial (abordagem de raça), podendo ser

encontrados, com o apoio da interseccionalidade, mecanismos para que as instituições

operem em conjunto, abordando simultaneamente as duas formas de discriminação. A

51

interseccionalidade torna visível o fato de que existem grupos sobrepostos, e que a mulher

negra está no centro desse grupo (CREENSHAW, 2002; CREENSHAW, 2012).

Para Collins e Bilge (2021), Crenshaw defende a interseccionalidade como

um constructo de justiça social; seu artigo encontra-se atado a um ethos de justiça social,

que pressupõe que fazer análises mais abrangentes dos problemas sociais possibilita que

se pensem e se produzam ações mais eficazes. Lembremos que a análise de Crenshaw se

deu no âmbito jurídico. No caso do trabalho doméstico, podem ser vislumbrados os

benefícios caso tivesse sido utilizada a interseccionaldiade como ferramenta analítica,

tanto no momento da produção legislativa quanto, também, na prática das varas e

tribunais trabalhistas.

Akotirene (2018) entende a interseccionalidade de forma ampla, incluindo

outros marcadores de opressão, tais como a heterossexualidade, e articulando a discussão

com os estudos decoloniais. A autora enfatiza a necessidade de se afastar a visão de uma

hierarquia de opressões e sofrimentos, uma vez que todas as vias dessa estrutura encontra-

se conectadas.

A esta altura, faz-se necessário mencionar outra ferramenta analítica possível,

a consubstancialidade, mobilizada por Danièle Kergoat desde as décadas de 1970-1980.

Seus estudos partem da análise da divisão social de trabalho em três dimensões: classe,

gênero e origem (norte/sul). Ela busca compreender a sociedade com base na ideia de

relações sociais, sempre com perspectivas dinâmicas. As relações sociais, ao contrário

das intersubjetivas, são abstratas e opõem grupos numa disputa; são somente essas

relações que podem originar formas de resistência e apontar caminhos para mudanças.

Para a autora, toda relação social é conflituosa e coextensiva: em seu próprio

desenvolvimento, elas se reproduzem e se coproduzem mutuamente. A coextensividade

aponta para esse dinamismo, essa produção mútua. (KERGOAT, 2010).

Como se vê, a consubstancialidade apresenta diversos pontos de contato com

a interseccionalidade, com a diferença de que, enquanto a interseccionalidade foi

desenvolvida no contexto estadunidense, a consubstancialidade o foi na França. A própria

Kergoat (2010) aponta algumas distinções entre ambos. Ela afirma que, na

interseccionalidade, o cruzamento privilegiado se dá entre raça e gênero, sendo a classe,

muitas vezes, meramente uma citação obrigatória. Ela menciona, ainda, o pensar

“cartográfico”, explícito no artigo de Creenshaw, que pensa as categorias em posições

fixas, dissociadas das relações sociais nas quais foram construídas. Embora reconheça o

mérito do feminismo negro e dos estudos pós-coloniais, no sentido de desnudar a

52

heterogeneidade das mulheres e desconstituir o falso universalismo das teorias, ela

questiona se é suficiente falar sobre esses antagonismos entre as mulheres, quando há a

possibilidade de questionar o próprio gênero, construído de modo diferente de acordo

com as posições de raça e classe:

Colocar o problema nos termos da consubstancialidade das relações sociais permite uma outra abordagem: de acordo com uma configuração dada de relações sociais, o gênero (ou a classe, a raça) será – ou não será – unificador, mas ele não é em si fonte de antagonismo ou solidariedade. Nenhuma relação é em si fonte de antagonismo ou solidariedade. Nenhuma relação social é primordial ou tem prioridade sobre outra. ou seja, não há contradições principais e contradições secundárias. (KERGOAT, 2010, p. 99)

Hirata (2014) menciona o aprofundamento das críticas de Kergoat ao modelo

interseccional no livro Se battre, disent-elles, com base na refutação da multiplicidade de

pontos de entrada (casta, religião, etnia etc.) que pode conduzir à fragmentação das

práticas sociais e dissolução da violência existente nas relações sociais e ainda no

raciocínio em termos de categorias e não de relações sociais. Ela sintetiza as críticas

afirmando que o ponto essencial seria que a interseccionalidade “não parte das relações

sociais fundamentais (sexo, classe, raça) em toda a sua complexidade e dinâmica”

(HIRATA, 2014, p. 65), além de deixar a classe social menos visível.

Não chega a haver, no Brasil, uma disputa entre a prevalência da

interseccionalidade ou da consubstancialidade, sendo a primeira bem mais difundida.

Akotirene (2019) elabora uma forte crítica à consubstancialidade, defendendo o

pioneirismo das mulheres negras. Muitos dos estudos brasileiros sobre trabalho

doméstico e cuidado utilizam referenciais da doutrina estadunidense, em especial do

feminismo negro, no seio do qual se desenvolveu a interseccionalidade. Feministas

negras brasileiras, como Lélia Gonzalez, desenvolveram intercâmbios com as

americanas, a exemplo de Angela Davis. Além disso, a origem do trabalho doméstico no

Brasil encontra-se indissociavelmente ligada à escravidão da população negra, de modo

a explicar uma certa tendência a visibilizar a questão da raça. Em suma, as diferenças

entre o contexto do Brasil e da França, a conexão entre Brasil e África e as aproximações

com a história da escravidão no sul dos Estados Unidos permeiam a escolha teórica da

maioria das brasileiras pela interseccionalidade, escolha à qual esta dissertação se filia.

53

2.6 Empregadas domésticas versus cuidadoras

Como já afirmado, o trabalho doméstico constitui, essencialmente, um

trabalho de cuidado. Ao revés, nem todo trabalho de cuidado é doméstico, pois pode ser

exercido em instituições, como creches e asilos. Há uma disputa entre a categoria de

enfermeiros e cuidadores, no que diz respeito à regulamentação da ocupação, como

também uma questão identitária entre cuidadoras e empregadas domésticas.

Em 2002, a palavra “cuidador” foi inserida na classificação brasileira de

ocupações (CBO), excluindo expressamente os técnicos e auxiliares de enfermagem. O

vocábulo apresenta relações/desmembramentos com cuidador de idosos, cuidador em

saúde, babá e mãe social. Mas o fato de constar como ocupação não significa que a

profissão disponha de um estatuto próprio, pois no Brasil ela ainda não é regulamentada.

Nadya Guimarães Araújo (2020) realizou uma pesquisa com os termos

“cuidador” e “cuidadora” no jornal “O estado de São Paulo”, demonstrando a frequência

do uso de tais palavras entre 1875 e 2019. Ela registra que é no começo dos anos 1990

que o termo aparece relacionado a uma atividade feminina, tornando-se extremamente

presente na década de 2000 para a de 2010, muito relacionado ao cuidado de idosos.

É importante salientar a discrepância temporal entre a existência real da

cuidadora e sua nomeação:

É interessante que o nome “cuidador” se aplique apenas ao serviço de cuidado a dependentes por idade (“cuidadores de idosos”), ou por algum limite ou deficiência (“cuidadores em saúde”). Isso porque o serviço de cuidar de crianças, embora incluído na mesma família ocupacional, é desempenhado por outras profissões que, sendo do cuidado, não denominam seus trabalhadores como cuidadores, mas com “babás” ou “mães sociais”. (ARAÚJO, 2020, p. 79 e 80).

Araújo (2020) também relata a existência de embates em torno da

regulamentação, envolvendo o campo da enfermagem. As enfermeiras procuram

assegurar o lugar já conquistado na categoria de pessoas que cuidam (diferentes dos

médicos, que “curam”). Por outro lado, as cuidadoras buscam se diferenciar das

empregadas domésticas, uma vez que a formalização do seu trabalho, a menos que

estejam em instituições, as insere nessa categoria, que apenas recentemente teve direitos

básicos reconhecidos e que sofre com estigmas sociais. Além disso, elas não se equiparam

aos demais trabalhadores, faltando-lhes, por exemplo, um direito que pode ser de muita

importância no serviço de cuidado: o adicional de insalubridade.

54

Embora possua relação com o acesso a direitos, essa busca por uma

regulamentação própria ultrapassa o aspecto meramente material, revelando uma faceta

identitária, com as cuidadoras procurando se afastar do status do trabalho doméstico, tido

como desqualificado.

Tal desconexão entre a atividade concreta de cuidar e o reconhecimento profissional que lhes cabe como domésticas perpassa e organiza não apenas o seu lugar nas estatísticas oficiais e nas interações da vida cotidiana (inclusive com aquelas que podem dizer-se “cuidadoras”), mas esculpe a própria representação que fazem, para si mesmas, o significado do trabalho desempenhado. Por serem domésticas não lhe era possível ter o reconhecimento como Cuidadoras, e não apenas por que estivessem excluídas da categoria pela estatística oficial. Havia uma disputa identitária em jogo. (ARAÚJO, 2020, p. 113).

Assim, embutida em um novo nome está a busca de uma nova identidade

profissional, apartada das empregadas domésticas e dos estigmas que acompanham o

serviço. Há que se questionar, todavia, se a simples alteração do nome e a busca por um

status diferenciado irá trazer alguma consequência prática ou apenas fragmentar ainda

mais a luta por reconhecimento, dadas as questões estruturantes envolvidas.

55

3 GÊNERO, RAÇA E CLASSE

A rejeição institucionalizada da diferença é uma necessidade absoluta numa economia centrada no lucro que precisa de outsiders ocupando o papel de pessoas descartáveis. Como integrantes de tal economia, todos fomos programados para responder às diferenças humanas que há entre nós com medo e aversão, e a lidar com elas de três maneiras: ignorar e, se não for possível, copiar quando a consideramos dominante ou destruir quando a consideramos subalterna. (LORDE, 2019, p. 142)

Neste capítulo serão examinados conceitos e categorias que remetem à

diferença, fornecem as bases para a classificação de homens e mulheres e lhes designam

oportunidades e papéis sociais em conformidade com tal classificação. Mas a abordagem

não se dará em torno das categorias em si, que serão apenas descritas. O propósito é tratar

de gênero, classe e raça em suas dimensões narrativas incidentes sobre o corpo: o corpo

negro e feminino, que no passado foi marcado, silenciado e forçado a um trabalho

exercido com pele e fluidos: a reprodução, a amamentação, o cuidado com os filhos do

senhor, o trabalho sexual forçado. Também o corpo da trabalhadora doméstica do

presente, exausto, invisível, integrado à fileira de “descartáveis”, explorado sob a ótica

do extrativismo colonial em uma “economia de esgotamento” ancorada historicamente

na escravidão, que perpetua a condição de pessoa supérflua mas paradoxalmente

necessária (VERGÈS, 2020, p. 19 e 20).

As categorias/conceitos em questão são gênero, raça e classe, a tríade que

serve de base à análise interseccional.

Gênero é uma categoria de análise que designa a construção social das

identidades subjetivas de homens e mulheres, rejeitando justificativas biológicas. Ele é

constitutivo das relações sociais com base nas diferenças que se notam entre os sexos; “o

gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 2019, p. 67).

Raça constitui uma construção sociocultural que data da modernidade, uma

vez que antes do século XV não havia essa referência às categorias diversas de seres

humanos, e as divisões encontradas eram mais de matriz religiosa (ALMEIDA, 2018;

COMAS, 1970). A colonização possibilitou uma classificação das pessoas com base em

uma estrutura biológica supostamente distinta, organizada no continente americano em

torno das diferenças de fenótipo de conquistadores e conquistados. A ideia da existência

de raças diferentes – superiores e inferiores – legitimou as relações de dominação que

foram impostas pela colonização. A colonialidade, sobrevivendo à colonização, persistiu

56

nos padrões de produção e controle do saber e no controle do trabalho, bem como de seus

insumos e produtos, de modo que a raça e a divisão (racial) do trabalho reforçam-se

mutuamente (QUIJANO, 2005). Para Lugones (2020, p. 56), a invenção da raça

proporcionou uma “guinada profunda”, um verdadeiro giro, que reorganizou as relações

de superioridade e inferioridade e deu ensejo a novas formas de dominação.

O conceito de classe tem origem marxista, identificando estratificações

sociais, estando relacionado tanto ao tema da mudança histórica quanto à “cisão do

caminho pelo qual a história avançou dialeticamente” (SCOTT, 2019). Trata-se também

de uma categoria de análise, forjada para tentar compreender a realidade experenciada no

mundo dos fatos (MATTOS, 2019).

A alocação em uma determinada classe, o pertencimento de gênero e o

étnico/racial não dão conta, isoladamente, de explicar a exploração e a opressão que

podem sujeitar um indivíduo. O processo é tão dinâmico que se torna praticamente

impossível dizer o que vem primeiro, de modo que se mostra certeira a defesa das

feministas interseccionais da inexistência de hierarquia de opressão.

Trata-se, portanto, de três conceitos que identificam construções sociais,

políticas e econômicas, relacionadas ao plano da cultura e do fazer humano. São

categorias históricas, que o próprio direito ajudou a construir. Entretanto, é sobre o corpo

que o gênero, a raça e a estratificação de classe incidem. As narrativas culturais encontram

nele a sua base material.

Supiot (2016, p. 70) afirma que “ao nosso direito repugna encarar os corpos,

i.e., a dimensão biológica dos sujeitos de direito”. Há, diz o autor, uma repulsa do corpo

do trabalhador no âmbito do pensamento jurídico. Dentre os muitos significados que se

pode atribuir a essa rejeição, uma visão possível é a de que “descer” ao nível do corpo

implica entrar em contato com situações de discriminação ocultadas.

Falar sobre o corpo das mulheres que no passado executaram o trabalho

doméstico no Brasil, e das que o executam na atualidade, é de suma importância. Embora

existam mulheres brancas na atividade, esse trabalho ficou associado, no imaginário, à

mulher negra. Não se trata de perceber “herança” escravocrata, mas sim de ver que as

ideias e os conceitos foram sendo permanentemente atualizados, amoldados às situações

emergentes, porém conservando estruturas de poder. Em outras palavras, é a permanência

da colonialidade do poder, que persiste atualmente, mesmo depois de finda a

colonização.

57

O corpo da escravizada doméstica traz inúmeros indicativos de como é

pensado o corpo atual da empregada doméstica: um corpo de mulher, que pode ser

branco, mas que é, em sua maioria, negro; que sofre a incidência de imagens de controle;

que se vê confinado a espaços específicos: o “quarto de empregada”, a entrada de serviço,

o elevador de serviço; que se movimenta incessantemente para lidar com a limpeza e o

cuidado, despendendo energia em uma atividade que se modifica ao longo do tempo,

mas que não apresenta perspectiva concreta de ser substituída pela tecnologia; e o corpo

invisível, que se vê excluído da dimensão da cidadania.

É importante ressaltar que não há aqui a ideia de retorno a um pensamento

essencialista, e sim a constatação de que, em se tratando de serviço doméstico, é preciso

falar sobre a materialidade do corpo, uma vez que é esse corpo que se debate na jornada

de trabalho. É sobre o corpo e sobre o sexo dessas mulheres que as construções culturais

e as narrativas incidem. Como é pensado o corpo das mulheres que se dedicaram e se

dedicam a esse trabalho? O que fez de uma mulher uma mucama, uma ama de leite ou

cozinheira? O que faz de uma mulher uma empregada doméstica ou faxineira nos dias

de hoje?

O corpo não constitui essência, tampouco destino; todavia, é a localização

primária da pessoa no mundo, sua primeira inscrição perante a realidade (BRAIDOTTI,

1991). Como instância primária, ele é também a base sobre a qual é construída a

identidade, inclusive a identidade que nega aquela que lhe foi atribuída biologicamente.

É no corpo que se inscrevem as estruturas de dominação e submissão. O corpo sente dor;

ele é concreto, pode ser oprimido, preso, violado, escravizado e explorado.

(CALDWELL; LEIGHTON, 2018).

Trata-se, portanto, do corpo não enquanto categoria estanque e/ou critério de

definição de identidades, e sim enquanto matéria, superfície que sofre ações de

disciplinamento e de governo (MENDES, 2006). Campo de intersecção de forças

materiais e simbólicas (BRAIDOTTI, 1991), que se encontra totalmente implicado no

âmbito político e é utilizado com finalidades econômicas. Para tanto, sofre a ação de

diversas tentativas de disciplinamento e moldagem, geralmente com o objetivo de torná-

lo dócil e apto à exploração. Para Foucault (2015, p. 237) “nada é mais material, nada é

mais físico, mais corporal que o exercício do poder ...”

Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; em boa parte, é como força de produção que o corpo é investido de relações de poder e de domínio; mas, em

58

contrapartida, a sua constituição como força de trabalho só é possível se estiver integrado num sistema de sujeição (em que a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se for simultaneamente corpo produtivo e corpo submetido.” (FOUCAULT, 2015, p. 58)

O objetivo deste capítulo, portanto, é aferir como o corpo da mulher que

trabalha no serviço doméstico foi construído pela imaginação social, quais as perspectivas

de interação entre esse corpo e a tecnologia, no âmbito do trabalho, e quais as relações

entre esse corpo e os outros no âmbito da cidadania, com base na sua posição de classe.

3.1. O corpo: sexo e cor

Eu fêmea-matriz Eu força-motriz Eu-mulher Abrigo da semente Moto-contínuo Do mundo. (EVARISTO, 2019, p. 61).

Tanto no âmbito da escravidão quanto no do trabalho livre, as mulheres que

desenvolvem serviços domésticos laboram com o corpo. O corpo se movimenta para

fazer a limpeza, a mulher se abaixa para limpar o chão, movimenta seus braços na

cozinha, utiliza força muscular para ir buscar lenha e água. Enquanto escravizada, vê-se

destituída da posse do seu próprio corpo ao ter que cedê-lo para amamentar e embalar

filhos que não são seus, e, por fim, é violentada sexualmente e compelida a procriar para

atender a interesses econômicos de seus proprietários.

O corpo da mulher que exerceu o trabalho na condição de escravizada era,

muitas vezes, marcado com ferro em brasa, prática comum para identificar um cativo.

Segundo Gomes (2019), os que vieram da África eram marcados já antes de partir, alguns

com quatro sinais distintos: a identificação do comerciante responsável, o selo da coroa

portuguesa, uma cruz, que indicava já ter sido batizado, e outra com o nome do traficante

que estava despachando a “carga”. Chegando ao Brasil, poderiam receber nova marca,

com identificação do seu dono. Os que fugiam estavam sujeitos a receber um F maiúsculo

depois de capturados. Bell hooks, analisando o período escravocrata nos Estados Unidos,

afirma que, depois de marcados, todos ficavam sem nenhuma peça de roupa, o que era

uma espécie de lembrete da sua vulnerabilidade sexual. Ela registra que as pessoas

escravizadas precisavam ser “domadas” para se tornarem produtos vendáveis (HOOKS,

59

2019a). Eles eram submetidos a uma série de humilhações durante o processo de venda,

com exames corporais minuciosos, inclusive das partes íntimas:

“Inteiramente nus, eram pesados, medidos, apalpados, cheirados e observados nos mínimos detalhes. Tinham de correr, pular, esticar braços e pernas, respirar fundo e tossir. (GOMES, 2019, p. 298).

Depois de todo esse processo, não era raro que, ao chegar ao local onde iriam

trabalhar, recebessem castigos corporais “pedagógicos”, para desde logo aprenderem

quem manda (GOMES, 2019). Os homens geralmente iam trabalhar no campo, mas

alguns eram escolhidos para serviços domésticos. As mulheres poderiam ficar no campo

ou no serviço doméstico. Hooks (2019a) afirma que as mulheres negras eram tão

espancadas quanto os homens, mas tinham que suportar ainda os sofrimentos adicionais

relativos à sua vulnerabilidade sexual, sendo vítimas frequentes de estupro, e não só por

parte de homens brancos, mas também negros. Como se não bastasse, além da violência

sexual, tinham que suportar a hostilidade e a raiva das esposas brancas, que não raro se

manifestavam com elevado índice de crueldade (FREYRE, 2006; HOOKS, 2019a).

Adicionalmente, algumas eram tidas como reprodutoras, seus corpos utilizados para

fornecer mais força de trabalho, e seu leite para servir de alimento aos filhos dos senhores

(DEL PRIORE, 2009; COLLINS, 2019; HOOKS, 2019a).

O corpo da mulher escravizada era também um corpo silenciado. Grada

Kilomba (2019) aponta a máscara de metal colocada na boca dos escravos como símbolo

do silêncio imposto pelo colonialismo. Esse silenciamento “material” exercido contra o

corpo repercutiu sobre toda a estrutura de conhecimento, persistindo como silenciamento

epistemológico e como diferenciação entre as narrativas que podem circular e obter algum

tipo de chancela, e as demais, reprimidas e permanecendo sempre à margem.

Esse corpo que já havia enfrentado rituais de humilhação e controle, e que

estava sujeito ao uso exaustivo no trabalho, no sexo, na reprodução e no cuidado dos

filhos dos senhores, era também, frequentemente, comparado/equiparado a animais,

sendo muito comum o recurso a esse tipo de expediente para negar a humanidade e a

subjetividade dessas pessoas, buscando justificar o tratamento degradante que lhes era

conferido. Mulheres negras eram equiparadas a mulas, porcas, e dizia-se que podiam ter

filhos com a mesma facilidade dos animais (COLLINS, 2019). Em anúncios de jornais11

11 Esse modo pejorativo de se referir aos escravizados pode ser conferido por meio da leitura de anúncios de jornais da época: Trocavam-se animais e coisas por escravos: cabras-bicho por cabras-pessoas, canoas por negras, cavalos por molecões. Dentre os anúncios que ilustram esse gênero de comércio, é muito

60

era por vezes difícil saber se a venda ou troca de uma “cabra de bom leite” se referia a

amas de leite ou a animais (FREYRE, 2012, p. 101).

Davis (2016) afirma que a postura dos senhores em relação às mulheres era

baseada na conveniência: em determinado momento, extraíam a sua força de trabalho

muscular, da mesma forma que faziam com os homens; em outro, quando a exploração e

a punição eram peculiares ao corpo feminino, eles as reduziam à condição de fêmeas.

Embora o período da escravidão tenha sido longo e a condição das mulheres

escravizadas tenha variado bastante no decorrer do tempo, em especial no século XIX,

esse uso exauriente do corpo marcou de forma muito negativa a imagem da mulher negra,

tida como devassa, depravada, imoral, permissiva ao sexo, emergindo o estereótipo da

negra como “selvagem sexual”, ao mesmo tempo em que se consolidava uma espécie de

hierarquia sexual (Hooks, 2019a). São esses estereótipos, que funcionam como

justificativas morais para diversos tipos de violência, que serão abordados no próximo

tópico.

3.2 Representações do corpo: imagens de controle

Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor Imagino Irene entrando no céu: - Licença, meu branco E São Pedro bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. (BANDEIRA, 2013).

O poema de Manuel Bandeira ilustra a visão idílica das chamadas “mães

pretas”, focando no reconhecimento da bondade (praticamente uma santidade) da preta

boa, risonha, reverenciando o branco e sendo recompensada em outra vida, no céu, pelos

amorosos e fiéis serviços prestados na terra aos patrões. O mito da mãe preta retrata uma

mulher negra, assexuada, geralmente gorda ou obesa, com uma imagem de bestialidade,

expressivo o seguinte: “[...] uma negra que saiba cozinhar e engomar ou um escravo que sirva para pajem, por uma canoa grande que carrega 1.500 tijolos [...]” (D. P., 4/2/1834). Igualmente expressivo é este outro: “[...] troca-se, fazendo o preço nos seus valores, um negro cozinheiro e socador de açúcar, e para todo o mais serviço, por uma negra que saiba cozinhar e engomar e sem vícios” (D. P., 31/1/1834). E não raras vezes os anúncios de escravos à venda parecem referir-se a simples animais. Em 1830 vendiam-se no Recife “três escravos, hum macho e duas fêmeas, ambas lavadeiras” (D. P., 22/4/1830). Em 1836, desapareceu na mesma cidade, do Sítio do Bebedor, “huma cabra, bonita figura, julga-se já ter parido por estar prenhe”, que não se sabe se era animal ou mulher (D. P., 21/4/1836). (FREYRE, 2012)

61

e que nutria grande amor pelas pessoas brancas. Ela tudo permitia, a todos obedecia,

amava os senhores e reconhecia sua própria inferioridade (HOOKS, 2019 b).

Bel Hooks aponta ainda o mito da mulher negra masculinizada, de grande

força, capaz de suportar trabalho pesado e privações. Esses mitos perduraram e moldaram

a imagem da mulher negra. Seu corpo se tornou “o campo de convergência entre racismo

e sexualidade” (HOOKS, 2019b, p. 129).

Tais mitos foram estudados em profundidade por Patricia Hill Collins (2019),

que sistematizou o conceito de “imagens de controle”, que seriam justificativas

ideológicas para as opressões de raça, gênero e sexualidade. Bueno (2020) as define como

“dimensão ideológica do racismo e do sexismo compreendidos de forma simultânea e

interconectada”. As imagens de controle perpetuam estereótipos e mitos para naturalizar

as injustiças sociais, fazendo com que pareçam inevitáveis e que despontem como fatos

decorrentes de culpa da própria vítima. Por meio do recurso a esses estereótipos, as

mulheres negras permanecem sendo “o outro”. (COLLINS, 2019).

Essas imagens se diferenciam dos meros estereótipos, pois a sua articulação

ocorre por força do poder dos grupos dominantes (BUENO, 2020). Collins listou os mitos

da mammy ou da mãe preta, da matriarca, da mãe negra sustentada pela assistência social

e de Jezebel. A mammy é a “serviçal fiel e obediente” (Collins, 2019, p. 16), a

trabalhadora que se entrega totalmente à família da qual cuida. Ela própria não tem

família, nem aspira a isso, sendo seu único desejo o de servir. É a trabalhadora amada por

todos, sobretudo por “conhecer seu lugar”, ser obediente e diligente.

Gilberto Freyre retratou a “tradução” da mammy, chamada no Brasil de mãe

preta, romantizando sua relação com a família branca:

“Quanto às mães-pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavam-se quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a quem se faziam todas as vontades: os meninos tomavam-lhe a bênção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas de carro. Em dia de festa, quem as visse anchas e enganjentas entre os brancos de casa, havia de supô-las senhoras bem nascidas; nunca ex-escravas vindas da senzala. (FREYRE, 2006, p. 435).

Vê-se muito dessa imagem na idealização das empregadas domésticas que

trabalham anos para a mesma família, criando os filhos dos patrões, dormindo no local

de serviço, sem condições de viver a própria vida. Segundo Collins (2019, p. 142), “a

mammy é a face pública que os brancos esperam que as mulheres negras assumam diante

deles”. Ainda que existam trocas afetivas, o fato é que, mesmo sendo “quase” da família,

62

ela jamais assumiu o status econômico daquela família, que pôde desfrutar do serviço

barato e da dedicação exclusiva da trabalhadora.

A mãe preta foi imortalizada na literatura infantil brasileira por meio da figura

da Tia Nastácia, da obra de Monteiro Lobato. Tia Nastácia é a cozinheira no sítio do Pica-

Pau Amarelo, totalmente devotada às crianças e à matriarca, Dona Benta. Não tem

família, vive no local, é querida por todos, na medida em que cumpre sua função de ser

totalmente subserviente e amorosa, sendo frequentes as passagens nas quais seu intelecto

é “amorosamente” depreciado12. Nos Estados Unidos, a figura da “Tia Jemima” também

ficou famosa, sendo seu rosto usado desde 1893 como símbolo comercial de uma mistura

para fazer panquecas. (LOPES, J. 2020).

Nessas análises das imagens de controle percebe-se a força instrumental da

interseccionalidade. A obra de Monteiro Lobato retrata o sítio do Pica Pau Amarelo como

um local quase que de reinado matriarcal, com a soberana Dona Benta na figura de líder.

Utilizando o mesmo raciocínio da corte de Chicago que julgou o caso Graffenreid vs.

General Motors, referido no primeiro capítulo desta dissertação, Lobato dificilmente

poderia ser acusado de machismo ou discriminação sexual, por exaltar a figura de uma

mulher. Somente quando se analisa a dimensão da raça é que se percebe o papel

subalterno designado à Tia Nastácia, mascarado pela subserviência voluntária e pela

aceitação amorosa dos comentários jocosos e discriminatórios que lhes são dirigidos.

Sales Júnior (2006) chama de “complexo de tia Anastácia” a articulação de

certas caraterísticas da sociedade brasileira, tais como cordialidade, patrimonialismo e

clientelismo, através da qual a trabalhadora negra surge como pessoa “quase da família”,

em um processo de integração subordinada, que valida a presença da mulher negra, desde

que ela mantenha o “pacto de silêncio” que fundamenta essa relação.

Outra figura analisada por Collins é da matriarca, ou a mãe negra “má”,

agressiva, castradora, que não dá aos próprios filhos a atenção que devota aos filhos dos

patrões, o que acarreta sérios problemas na vida da criança, culminando com a possível

criminalidade. Por força desse estereótipo, as mães se tornam culpadas pelo resultado

“desastroso” da conduta dos filhos (COLLINS, 2019).

12 Sobre a depreciação da Tia Nastácia por outros personagens, veja-se: GOUVÊA, Maria Cristina Soares de. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 79-91, jan./abr. 2005. Disponível em https://www.redalyc.org/pdf/298/29831106.pdf. Acesso em 09 de abril de 2020.

63

A terceira imagem de controle é da mãe dependente do Estado, visão que

atualiza a imagem da negra escravizada que atuava como reprodutora. É a mãe passiva,

de elevada fecundidade, que depende da assistência social proporcionada pelo governo e

não transmite aos filhos uma ética do trabalho. Essa imagem ataca mulheres negras

justamente quando elas conseguem acesso a alguns benefícios sociais (COLLINS, 2019).

A autora examina também a imagem da “dama negra”, mulher negra que

ascende socialmente, mas cujo sucesso é atribuído à utilização de ações afirmativas,

“roubando” vagas pertencentes aos brancos (COLLINS, 2019).

A última imagem de controle é a de Jezebel, prostituta ou hooche. Segundo

Collins (2019), a função dessa imagem era justificar os ataques sexuais de homens

brancos às mulheres negras. Por serem portadoras de uma sexualidade insaciável, elas

instigavam os homens à prática do ato sexual.

A romantização do sadismo e da violência praticada contra essas mulheres

encontra-se firmada no imaginário do século XX, com ecos até os nossos dias. Veja-se o

poema “Essa negra fulô”, de Jorge de Lima (1893-1953), considerado um clássico da

poesia brasileira, tendo figurado na coletânea “Os cem melhores poemas brasileiros do

século”. Ele narra, de forma ritmada e romantizada, o momento no qual a “negra fulô”,

uma “negra bonitinha”, mucama, vai sofrer castigos corporais em razão da acusação de

furto de objetos da sinhá. No momento em que ela é despida para ser açoitada, o senhor

magicamente por ela se apaixona, e ao final o eu lírico a acusa de haver “roubado” o

referido senhor13 (LIMA, 2001). A excessiva sexualização do corpo da mulher negra e a

lembrança do passado escravocrata serviram à prática de assédio de patrões e de iniciação

sexual dos filhos destes com as trabalhadoras domésticas.

Sobre a perpetuação das imagens de controle, Collins (2019) afirma que o

modo como as trabalhadoras domésticas eram tratadas nos Estados Unidos refletia sua

objetificação, uma vez que eram compelidas a trabalhar como se fossem animais ou

“mulas do mundo”. A autora faz menção também a rituais de deferência, como chamá-

las de meninas para infantilizar e tratar como um ser humano menos capaz, o que pode

conduzir à invisibilização.

13 É interessante observar que esse poema foi “reescrito” na década de 1990, tendo como protagonista uma outra Fulô (ou, quem sabe, a mesma, porém com atitude diversa). Nele, Fulô decide utilizar seu corpo, único instrumento de que dispunha, para seduzir o senhor e então matá-lo, fugindo, em seguida, com um homem negro com quem estava se relacionando. Por expressarem tão bem esse antagonismo, essa disputa narrativas, ambos os poemas encontram-se no anexo da presente dissertação.

64

Gonzalez (2020) menciona que, no Brasil, as principais imagens da mulher

negra foram a da mulata, doméstica e mãe preta. A mulata concretiza, no carnaval, a

reencenação do mito da democracia racial, quando se transforma em rainha, devorada por

olhares e consagrada. Entretanto, a outra face do endeusamento, ela afirma, ocorre no

cotidiano dessa mesma mulher, nos outros dias de não-carnaval, quando ela se

“transfigura” na empregada doméstica, de modo que mulata e doméstica constituem

atribuições de um mesmo sujeito. E a doméstica representa, justamente, esse contrário,

esse oposto da exaltação.

Diversos registros da naturalização da posição subalterna das empregadas

domésticas podem ser encontrados na imprensa brasileira. Foi realizada uma pesquisa

nos arquivos digitalizados do jornal “O pasquim”, que circulou entre os anos de 1969 e

1991. O critério de busca foi o vocábulo “doméstica”. O referido jornal tornou-se famoso

pelo humor ácido e por suas críticas à ditadura, sendo considerado um veículo de

imprensa de contestação, afinado com movimentos de esquerda. Ao mesmo tempo,

promovia muitas críticas ao feminismo, e a mais forte delas se devia à desconsideração

das empregadas domésticas. Todavia, de forma ambígua, ao mesmo tempo em que

denunciava as condições de vida e trabalho das domésticas, também reproduzia a visão

racista e colonialista sobre essas trabalhadoras. Serão transcritos, a seguir, trechos de

entrevistas com convidados que relatam a iniciação sexual por meio de trabalhadoras

domésticas. Em entrevista na edição de 1972, diz o entrevistado:

Lobo: Com quantos anos você conheceu a primeira francesa? Bororó: A primeira não foi francesa. Você começa sempre pela fase doméstica. A primeira francesa de cada um de nós nunca é francesa. Pra começar, em geral, é sempre uma mulatinha. Lobo: Todo mundo começa na cozinha (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, O pasquim, 1972, edição 00147, p. 04).

Em um determinado momento dessa mesma entrevista, questionado se é

racista, diz o entrevistado: “De jeito nenhum. Adoro crioula” (FUNDAÇÃO

BIBLIOTECA NACIONAL, O pasquim, 1972, edição 00147, p. 04). Em outra edição,

nova entrevista:

“a primeira trepada, evidentemente, foi com a empregada doméstica lá de casa, que, evidentemente, era preta, e foi ela, evidentemente, quem me convidou a ir para uma gafieira. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL , O Pasquim, 1979, edição 00504, p. 10).

Nova referência pode ser encontrada em outra entrevista:

65

“O serrano. Começo da década de cinquenta. Tempos duros. Ou você encarava namoro de aluguel, se virava numa doméstica gonorreica ou tinha que sair na mão contigo mesmo”. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, O Pasquim, 1981, edição 00651, p. 21)

Percebe-se, nesse trecho, a objetificação da empregada doméstica, tratada

como um corpo disponível à falta de opções mais viáveis, sendo notória também sua

associação com a doença sexualmente transmissível, o que sugere sua promiscuidade.

Em edição do ano de 1978, encontra-se a letra de uma música intitulada “A

doméstica”, que mescla elementos de culinária e referências animalescas ao suposto

desejo sexual incitado e cultivado pela empregada:

A DOMÉSTICA De Maluco e Penteado É melhor a empregada ir embora Antes que o mal maior aconteça. Enquanto ela esquenta o jantar eu fico esquentando a cabeça (BIS) Ainda ontem, a patroa foi ao centro, lá no engenho de dentro, pra tirar o mau olhado. Maria Inês caprichou num ensopado Com carne seca e quiabo que eu babo só de lembrar. De sobremesa me deu um papo-de-anjo de fazer qualquer marmanjo gaguejar no beabá. No cafezinho, enquanto lavava o prato, me exibiu lindo retrato de um passeio a Paquetá, No maiô verde - meu Deus, que dirá madura! Eu fiquei com a vista escura Sem poder me levantar. Ai, tanajura Meu pudim de chocolate, Acabo tendo um enfarte Que eu já tô com 36... Maria Inês, essa dezena é da cobra Com um ensopado de abobra Sei que eu me entrego de vez. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL , O Pasquim, 1978, edição 00466, pág. 23).

Os manuais elaborados para donas de casa e noivas, ao longo do século XX,

eram outra fonte de estereótipos:

Que a escrava foi em inúmeras famílias a iniciadora sexual de muito brasileirinho de casta, parece fora de dúvida. (...) A criada de hoje – sucessora da escrava de ontem – prolonga a tradição sexual até nossos dias, embora

66

menos sistematizada, menos frequente e menos conhecida nas comunidades sociais industrializadas. (ALMEIDA, 1969, p. 63).

A autora do livro relata que uma pessoa de sua família estava escandalizada

com o exercício da “dupla função” de uma empregada doméstica, e ela tentava mostrar

que sempre foi assim, evocando "a tradição dos seios fartos e dos braços suntuosos da

mães pretas e as facilidades, o comodismo, a indulgência de respeitáveis famílias que

procuram iniciar sadiamente seus rebentos” (ALMEIDA, 1969, p. 64).

É possível notar, portanto, uma linha de continuidade entre a “dupla função”

desempenhada pela mulher escravizada e pela empregada doméstica, tida como um corpo

disponível para o sexo. Isso repercute no assédio sexual sofrido pela trabalhadora,:

instigado por esse imaginário e pela posição de maior subordinação, o assédio é mais

presente (DIAS, 2008; SILVA; BRASIL, 2020) e mais “direto”, com toques e

abordagens ríspidas14.

Grada Kilomba (2019) traz um exemplo do quão eloquente é o corpo da

mulher negra, ao narrar o que lhe aconteceu quando tinha entre 12 e 13 anos. Gripada,

ela foi ao médico, e, na saída, quando se dirigia à porta, esse médico a chamou de volta e

disse que ele, a esposa e seus dois filhos, de 18 e 21 anos, iriam viajar de férias, e então

perguntou se ela não poderia acompanhá-los, para cozinhar as refeições diárias, limpar a

casa e eventualmente lavar suas roupas.

Nesse cenário, a jovem menina não é vista como uma criança, mas sim como uma servente. O homem transformou nossa relação médico/paciente em uma relação senhor/servente: de paciente eu me tornei servente negra, assim como ele passou de médico a um senhor branco simbólico, uma construção dupla, ambas fora e dentro. Nessas construções binárias a dimensão do poder entre as oposições é duplamente invertida. Não se trata apenas de “paciente negra, médico branco”, ou “paciente mulher, médico homem”. Trata-se de uma relação “paciente mulher negra, médico homem branco” – o duplo poder de um em relação a outra (...). Parece que estamos presas/os em um dilema teórico: é racismo ou sexismo?” (KILOMBA, 2019, p. 93 e 94).

A autora prossegue sua análise invertendo papéis, e questionando se o médico

faria idêntico “convite” a uma menina branca, ou se um médico negro ou mesmo uma

médica negra fariam tal pergunta a uma menina branca.

14 Os acórdãos listados a seguir evidenciam essa abordagem brusca:

1) BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª região. RO 10326-2010-013-09-2. Relator: Marco Antônio Vianna Mansur. Julgado em 06 de junho de 2012.

2) BRASIL, Tribunal Regional do Trabalho da 1ª região. RO 01009589120175010471. Relator Ângelo Galvão Zamorano. Julgado em 22 de maio de 2018.

67

E se a ênfase estava no gênero, então como a esposa, uma mulher como eu, poderia me “possuir” como serva e não ser uma serva ela mesma? Se como mulheres nós somos iguais, como ela poderia se tornar minha sinhá virtual e eu a escrava figurativa? Quanto sua ausência teria um papel ativo na minha servidão? E o que dizer sobre a filha, que é referida na proposta, como ela, sendo mais velha, é protegida como uma criança, enquanto uma menina negra muito mais jovem que ela é explorada como uma adulta? (KILOMBA, 2019. p. 95).

É fato que existem muitas mulheres brancas no serviço doméstico. Mas o

corpo que se movimenta nesse trabalho continua sendo um corpo majoritariamente negro;

a mulher branca participa dessa força de trabalho, mas não carrega a associação direta

com a categoria das domésticas.

Gonzalez (2020) afirma que a mulher negra é vista como um corpo que

trabalha, a faxineira, arrumadeira ou cozinheira, a “mula de carga” do empregador branco.

A outra face, a da mulata, é vista como um corpo que fornece prazer, apto a ser

superexplorado sob o ponto de vista sexual.

Esse corpo continua invisível para as políticas públicas, e seu acesso a

inúmeros lugares é vedado, a não ser que assuma a condição de servente e ingresse

discretamente por alguma entrada de serviço. Mesmo liberado das máscaras de metal, das

marcações com ferro em brasa e dos castigos corporais, é um corpo situado à margem.

Estar na margem, para Hooks (2019b) é fazer parte do todo, mas permanecendo fora do

círculo principal. É conhecer ambos os lugares. É espreitar um mundo no qual pode

trabalhar em atividades subalternas, mas no qual não pode viver. Eventualmente até pode

morar, desde que permaneça circunscrita a certos limites: o elevador de serviço, a entrada

de serviço, o “quarto de empregada”.

3.3. Corpo de branco e corpo de preto: mito da democracia racial

Negros de alma negra se inscrevem Naquilo que escrevem Mas o Brasil nega Negro que não se nega (Minka, 2008, p. 76).

68

O poema de Minka, transcrito na epígrafe deste tópico, traz uma referência

implícita ao “negro de alma branca”15, expressão que se refere ao negro bondoso e

subserviente. O Brasil, ele diz, rejeita o “negro de alma negra”, aquele que se reconhece

em sua negritude. O país nega “o negro que não se nega” porque insiste em considerar

que não há racismo, numa tradição conhecida até hoje como mito da democracia racial.

A colonização criou a raça. A raça impôs determinações ao corpo, mesmo

depois de abolida a colonização. As imagens de controle se impuseram ao corpo das

mulheres negras, e no âmbito coletivo o correspondente a essas imagens foi o mito da

democracia racial.

Para a persistência de um sistema estruturalmente racista como o brasileiro,

era vital que se obtivessem justificativas. Nascimento (2016) afirma que, por séculos, o

sistema escravista desfrutou da fama de ser “benigno”, de caráter humano. Eram

utilizados argumentos como a preexistência de escravidão na própria África, a

inferioridade natural dos africanos, supostamente sentida até por eles próprios, e a

influência da igreja católica, que “humanizava” as relações. Essa ideia de benignidade do

sistema teria sido um mito fundamental para a propagação de outro mito: o da democracia

racial (NASCIMENTO, 2016; SCHWARCZ, 2012).

O Brasil, no fim do século XIX, era apontado como país multiétnico,

colorido, paraíso da miscigenação. Aqui dentro, a miscigenação era encarada como um

caminho para o branqueamento, o que se revela pela análise de documentos e congressos

eugenistas que ocorreram no início do século. As teorias sobre a raça aportaram no país

entre os anos de 1870 e 1930, onde foram muito bem acolhidas. (SCHWARCZ, 1993).

Em 1911, foi realizado o I Congresso Internacional das Raças, e na ocasião o

Diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, apresentou sua tese

que afirmava que os mestiços e os negros despareceriam do país quando viesse o novo

século, de modo que o Brasil seria “contemplado” com o advento do branqueamento.

(SCHWARCZ, 2012). Já em 1929, no I Congresso Brasileiro de Eugenia, o antropólogo

15 Há um campo de estudo sobre a identidade branca, ou simplesmente a branquitude, que no Brasil teve seu início de forma mais sistemática por meio da tese de Maria Aparecida da Silva Bento: “Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e Poder nas Organizações empresariais e no Poder Público”, embora outros autores tenham tratado do tema anteriormente, como Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento (MUNANGA, 2017). Pode-se acrescentar, ainda, a própria Lélia Gonzalez. A branquitude pode ser definida como um lugar social, o mais elevado da hierarquia racial, decorrente do pertencimento étnico racial a uma categoria expressa pela brancura, mas não limitada ao fenótipo. A branquitude confere o poder de classificar os outros e de ser beneficiário de privilégios raciais, tanto materiais quanto simbólicos (CARDOSO e MULLER, 2017).

69

Roquette-Pinto afirmaria que o Brasil seria progressivamente um país mais branco. Ele

defendia a chamada “ciência do melhoramento racial”. (SCHWARCZ, 2012, p. 26).

Importante destacar que a Constituição de 1934 dispunha, em seu artigo 138,

alínea b, que competia à União, estados e municípios “estimular a educação eugênica”

(BRASIL, 1934).

Na década de 1930, “Casa Grande & Senzala” consolidava a imagem do país

como “paraíso racial”, propagando a ideia de uma escravidão “branda”. A Unesco, sob

a influência da obra de Gilberto Freyre, pretendia apresentar o Brasil como modelo de

democracia racial. Financiou, então, estudos sobre o tema na década de 1950. Os

resultados, todavia, não se coadunaram com as expectativas. Alguns autores, tendo como

expoente Florestan Fernandes, ao invés de confirmarem a ideia do paraíso racial,

mostraram que no país havia indicadores claros de racismo e discriminação, embora o

racismo fosse dissimulado. (FERNANDES, 2007; SCHWARCZ, 2012; MOURA, 2019).

Ainda assim, a ideia de democracia racial persistiu. Seu principal trunfo, no

dizer de Abdias Nascimento, é a mulata (NASCIMENTO, 2016). Nesse mesmo sentido,

Gonzalez (2020) afirma que o mito da democracia racial é reencenado com toda a força

no carnaval, na figura da mulata, endeusada ao longo da festa, mas que volta à sua

realidade subalterna, geralmente como empregada doméstica, tão logo cessa o carnaval.

Some-se a isso o suposto caráter “cordial”16 do brasileiro, e surge o cenário

de encobrimento, que leva, como mencionado por Florestan Fernandes, a que o brasileiro

tenha o “preconceito de não ter preconceito”(Fernandes, 2008, p. 155). No ano de 1988,

foi feita em São Paulo uma pesquisa, na qual se chegou ao resultado de que 97% dos

entrevistados disseram não ter preconceito, e 98% afirmaram conhecer pessoas que

tinham preconceito, o que significava que “ninguém nega que exista racismo no Brasil,

mas sua prática é sempre atribuída a outro” (SCHWARZ, 2012, p. 30 e 31).

A sociedade repelia a ideia de que o país fosse racista, enquanto todos os

indicadores econômicos e sociais mostravam a segregação das pessoas negras. Afirmar

que essa segregação existia não significa afirmar que nenhuma pessoa negra conseguisse

obter mobilidade social. É evidente e notório que havia casos de ascensão. E é justamente

16 Segundo Sérgio Buarque de Holanda, são características do homem cordial: a hospitalidade; a generosidade; o emprego do diminutivo para se aproximar de pessoas e objetos; a forma de convívio que tem como base uma “ética de fundo emotivo”, além do “horror às distâncias”. A hospitalidade e a generosidade não devem ser confundidas com indicativos de boas maneiras, sendo muito mais uma “forma natural e viva” do desejo de estabelecer intimidade, (HOLANDA, 2019, p. 177, 178 e 180)

70

nesse movimento que se cria a representação do “negro de alma branca”, que poderia

circular entre a classe mais alta, desde que aceitasse as prescrições morais da classe

dominante (FERNANDES, 2007).

Atualmente, o mito da democracia racial permanece presente, apesar de todas

as estatísticas que mostram a predominância de pessoas negras, em especial mulheres,

em posições subalternas, denotando a existência de estruturas fortes, que impedem os

avanços. Lopes, J (2020) registra a tradução desse mito para o âmbito jurídico na ideia

de que não havia, no país, dispositivos legais racistas, o que não se coaduna com a análise

da legislação que desde o século XIX disciplinou o trabalho doméstico, em especial as

Posturas Municipais, que serão vistas no capítulo 3.

3.4 O corpo confinado: quarto de empregada

“Começaria talvez por arrumar pelo fim do apartamento: o quarto da empregada devia estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis. (...) Mas ao abrir a porta meus olhos se franziram em reverberação e desagrado físico. É que em vez da penumbra confusa que esperara, eu esbarrava na visão de um quarto que era um quadrilátero de branca luz; meus olhos de protegeram franzindo-se. Há cerca de seis meses – o tempo que aquela empregada ficara comigo – eu não entrava ali, e meu espanto vinha de deparar com um quarto inteiramente limpo. Esperara encontrar escuridões, preparara-me para ter que abrir escancaradamente a janela e limpar com ar fresco o escuro mofado. Não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse espoliado de sua função de depósito” (LISPECTOR, 2020, p. 32 e 35-36).

O quarto de empregada é quase um patrimônio brasileiro às avessas. A

história do trabalho doméstico no Brasil é uma continuação do trabalho escravizado, e

nesse sentido o quarto é considerado a “senzala moderna”.

Afirmar a continuidade entre a senzala e o quarto de empregada não é

simplesmente uma frase de efeito; a literatura especializada no campo da arquitetura

mostra que os primeiros “quartos de criada” surgiram no período republicano. Nas casas

menores, eles eram voltados para o quintal. Nas residências da elite, passaram a ser feitas

edículas, construções anexas à casa principal, com quartos e banheiros, em uma

arquitetura que chancelava a segregação dos espaços (CARRANZA, 2005; FORTY,

2007). Além da solução arquitetônica, outra forma de indicar a inferioridade dos criados

era mobiliar o cômodo com camas mais simples, sem ornamentos e de baixo custo:

71

O padrão geral do mobiliário da maioria das dependências de empregados era muito menos confortável. Com frequência, eram mobiliados com refugos e calculados para não dar à criada nenhuma chance de sentir que poderia haver motivo para comparação entre ela e sua patroa. (FORTY, 2007, p. 115).

A rápida urbanização nos grandes centros foi dando início a um processo de

verticalização, despontando no horizonte os edifícios residenciais projetados para as

famílias de classe média, a partir dos anos 1920. Como as famílias não se sentiam atraídas

pelo formato de moradia coletiva, relacionada no imaginário aos cortiços, a solução foi

reproduzir, na medida do possível, a mesma divisão que havia nas casas, nas quais o

acesso de serviço era feito pelo quintal. Surgem então, as entradas e portas de serviço, e

à medida e que os prédios vão sendo dotados de elevador, tem lugar o elevador de serviço.

A metragem dos quartos geralmente é idêntica em todos os apartamentos, independente

do seu tamanho, possibilitando apenas a acomodação de uma cama e alguns armários,

com a agravante de raramente respeitarem o Código de Edificações nos quesitos

ventilação e iluminação (CARRANZA, 2018). Esse pequeno cômodo é construído como

uma anexo da área de serviços, sendo geralmente o menor da casa, feito com material de

qualidade inferior. O banheiro é minúsculo. O cômodo costuma servir também como

depósito, para guardar objetos que não estão sendo utilizados.

As condições de moradia nesse cômodo foram objeto de crítica no Jornal O

Pasquim, edição 00197, de 1973, com Millôr Fernandes comentando o I Congresso

Brasileiro de mulheres militantes na política:

Falo apenas das milhares de mulheres que trabalham num trabalho ainda escravo, nas cozinhas de 2x2 de Copacabana, Botafogo (e bairros semelhantes pelo Brasil afora) e, sustentadas por um salário indigno, vão dormir, depois de 12 a 14 horas de trabalho diário, num quarto-de-empregada em que só é possível mesmo dormir em pé. (...) Exijam, dos jovens arquitetos (todos os que conheço, em teoria são socializantes, mas, na prática, não sei de um que se revele contra as grandes construtoras no tratamento desumano das serventias de empregadas), que não aceitem construir quartos de empregadas com menos de 3 x 3 (...).E é bom eu parar porque, é claro, o problema não cabe numa lauda de papel. Mas cabe a afirmativa, que sempre repito: não respeito nenhum movimento feminino que não cuide, em primeiro lugar, dessas desgraçadas domésticas, até hoje ainda tratadas como caso de polícia. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL , O Pasquim, 1973, edição 00197, p. 03).

Na edição 00169, do ano 1974, esse mesmo jornal traz uma série de pequenas

crônicas sob o título “O quarto de guardar crioula”:

Um quarto de empregada faz-se assim: depois de fixados os espaços dos elevadores, das escadas, das circulações, do living, da sala de jantar, quartos,

72

banheiro social (dois), copa, cozinha, área de serviço, sobra um negocinho mirrado, um quadradinho avaro: o quarto de empregada, um depósito de gente. Mas empregada, ainda, por cima, tem necessidades, são umas ortodoxas do metabolismo e precisam de banheiro. Desloca-se o tanque um pouco para lá. Na planta é tão pequeno que não cabe o nome todo – banheiro de empregada, nem mesmo ban. Emp – e vira WC, essa sofisticada e diabólica expressão. Ambos, WC e depósito, constituem o binômio conhecido como dependência de criados. O WC Para utilizar-se de tal compartimento, é necessário ler a bula que o recinto traz afixado à entrada. Deve-se proceder assim: entra-se, sobe-se na privada (existente no WC para fins metabólicos). Em seguida, a usuária abandona seu posto sobre o vaso e atinge o chão. É importante prever a posição que se quer ocupar, de acordo com as necessidades, antes de entrar no WC. Se é para ficar de costas, deve-se entrar de costas; de lado, de lado; de frente, de frente. Se o objetivo é banho, é fundamental esvaziar antes o recinto que, na esmagadora maioria dos casos (100%), também, é um depósito de bacias, tabua de passar roupa, desentupidor de pia, lata velha, enceradeira, barraca de praia, material de limpeza, garrafas, jornais etc. O banho deve ser tomado com a usuária agachada sobre a tampa do vaso, sendo o “Manual prático Zanine para usar o Water closet”. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL , O Pasquim, 1974, edição 00169, p. 06)

Desde o século passado houve grande redução da quantidade de empregadas

domésticas que residem no local de serviço, de modo que o “quartinho”, embora ainda

conste nas plantas de apartamentos, é mais utilizado como depósito, sendo alvo também

de modificações para se transformar em escritório ou closet (LIMA E TOLEDO, 2020).

Em agosto de 2018 entrou em vigor a lei 13.699/18, que modificou o Estatuto

das Cidades para determinar a exigência de garantia de acessibilidade, conforto e

utilização das dependências internas dos prédios urbanos, incluindo expressamente a

dependência das empregadas, “observados requisitos mínimos de dimensionamento,

ventilação, iluminação, ergonomia, privacidade e qualidade dos materiais empregados”

(BRASIL, 2018).

A recomendação 201 da OIT trouxe disposições no sentido de que tais

cômodos sejam privados e possam ser trancados pela trabalhadora, e que tenham

condições adequadas de iluminação e temperatura, em conformidade com o restante da

casa (GOMES; TORTELL, 2015).

Embora permaneçam, aparentemente, como resquício do passado, a crise

desencadeada pela Covid-19 tem dado ensejo a denúncias de que trabalhadoras

domésticas têm sido pressionadas a permanecer morando na residências, reavivando os

quartinhos (CEPAL, 2020). Não há dados oficiais no Brasil, de modo que somente no

futuro poderá ser avaliada tal situação.

73

3.5 O corpo no trabalho: de “mulas do mundo” a androides

Se no século XIX as trabalhadoras negras eram comparadas a animais, “mulas

do mundo” (COLLINS, 2019), no século XX a desumanização aparece com a

comparação a objetos:

“Empregada nova é tão desconfortável como sapato apertado, um número menor”. (...) “Empregada nova devia usar uma tabuleta “amaciando” como carros novos (KAUFMANN, 1975, p. 35).

Uma empregada doméstica é muito mais útil do que um automóvel. Uma empregada lava, passa, arruma e cozinha: já um automóvel nem mais água ferve no carburador. Não sei se está escrito assim – o livro ficou lá em casa, na minha mesinha de cabeceira – mas esta é uma das boas sacadas que eu me lembro de ter lido no livro do Novaes, “O caso nosso de cada dia”, que foi lançado semana passada e já está na lista. (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL , O Pasquim, 1974, ed. 265) Empregados domésticos não vêm com manual de instrução. (FONSECA, 2005, p. 25).

Mas nada representou melhor o desejo de uma empregada-objeto,

empregada-máquina, do que o desenho animado “The Jetsons”. No episódio n. 0117 desse

desenho, a Sra. Jane decide alugar uma empregada doméstica androide. A primeira que

lhe é apresentada tem aparência mais antiga e trabalhou por último para um velho

professor, só aos finais de semana, e aparentemente é essa possível falta de

disponibilidade para o trabalho em tempo integral que a faz dispensar esse modelo. Logo

a seguir, é apresentada uma androide importada da França, com um corpo sexualizado, a

fala afetada, e com o motor localizado “na parte traseira”, o que faz com que Jane também

a recuse. Por fim, surge Rosey, uma androide já um tanto gasta, com aparência de mulher,

porém gorda e despida de qualquer atrativo físico. O vendedor avisa que ela é caseira,

inculta, mas Rosey logo diz que é esperta, e Jane decide-se por ela, dando início à história

de uma das androides mais famosas do universo dos desenhos animados, a empregada

doméstica engraçada, “quase” da família, outsider por sua própria constituição, que

possui comportamentos que apontam para a existência de autêntico afeto pelos humanos.

Esse episódio é rico em representações sobre a patroa e a empregada doméstica, em

especial as imagens de controle referidas por Patricia Hill Collins (2019), seja na

17 O episódio mencionado pode ser assistido na plataforma de vídeos Youtube. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=hnoEpUrucwE> Acessado em fevereiro de 2021.

74

sexualização da segunda androide, seja no aspecto de mammy atribuído a Rosey

(COUTO, 2015).

O desejo de libertação do trabalho doméstico acompanha o movimento

feminista, não havendo consenso sobre de que modo isso pode ser alcançado. Já o desejo

de libertação da dependência de trabalhadoras domésticas surgiu ainda no período

escravocrata, com o medo da transmissão de doenças e “más-influências”, medo este que

iria antecipar o pensamento eugenista brasileiro do século XX (RONCADOR, 2008).

Além disso, essa categoria paradoxalmente incômoda e necessária foi se tornando

“onerosa” à medida em que foi conquistando direitos mínimos. O desenho animado “The

Jetsons” traduz, então, esse desejo dos patrões através da materialização de um ser que

pode servir sem limitações de horário (e sem fazer jus a qualquer direito trabalhista), sem

vínculos familiares, sem memória, “e, portanto, sem corporeidade social que o faça

assomar como “um”, permanecendo um “outro” inoperante porque inofensivo, invisível

porque a-histórico” (COUTO, 2015, p. 175).

Os androides constituem uma aspiração distante dos lares brasileiros; é o

corpo humano que realiza boa parte dos serviços. Os próprios eletrodomésticos e/ou

eletroportáteis não são acessíveis a todas as famílias, embora seu consumo tenha crescido

muito nas últimas décadas (SILVA, 1988).

A tecnologia doméstica é classificada em três grupos: serviços de

infraestrutura, tais como eletricidade, coleta de lixo, água encanada; eletrodomésticos;

mercadorias, englobando produtos processados ou semiprocessados (SILVA, 1998). A

literatura sobre trabalho doméstico e uso de eletrodomésticos também é relativamente

escassa no Brasil.

O trabalho doméstico sofreu grandes modificações ao longo do tempo, mas

continua a exigir grande movimentação do corpo: varrer, esfregar, passar pano, cortar

alimentos, cozinhar, cuidar de pessoas. Matos (1994) analisa o cotidiano das

trabalhadoras em São Paulo, no período de 1890 a 1930, com rotinas rígidas que incluíam,

além da limpeza diária, tarefas como encerar pisos, vasculhar tetos, bater tapetes, passar

sapólio em metais, lavar cristais e globos de luz. A canalização da água e os fogões a gás

reduziram o trabalho, mas nesse período ocorreram surtos de epidemias18, surgindo novas

18 A pandemia de Covid 19, declarada em 2020, também trouxe diversas normas de higiene que acresceram atividades às tarefas domésticas, tais como o uso intensivo do álcool e a limpeza minuciosa das compras, antes de guardar. A presença das crianças em casa, com aulas remotas, também representou um acréscimo de trabalho.

75

técnicas de higiene, que exigiam lavagem geral das casas e uso de produtos desinfetantes

mais agressivos. A cozinha também requeria muitas horas:

Os serviços na cozinha ocupavam praticamente o dia todo. Preparavam-se refeições completas, com menus bem variados e sobremesas sortidas. Nem bem se finalizava a limpeza da cozinha após o almoço, era hora de servir o lanche da tarde, para o qual as prestimosas criadas preparavam caprichosamente pão, biscoitos e sequilhos.; logo em seguida, já se iniciavam os preparativos para o jantar. (MATOS, 1994, p. 197).

A lavagem das roupas geralmente era terceirizada para lavadoras autônomas,

que cruzavam a cidade carregando pesadas trouxas em direção ao rio, uma vez que não

era permitido subir em bondes com esses pacotes. Elas mesmas fabricavam o sabão e a

goma. (MATOS, 1994).

Embora as atribuições tenham mudado e a tecnologia tenha facilitado o

trabalho doméstico, todas as máquinas inventadas dependem de afazeres prévios e

posteriores: a máquina de lavar roupa requer que antes a roupa seja separada, inserida na

máquina, depois, se for o caso, estendida, passada, dobrada e guardada. A máquina de

lavar louças também implica uma limpeza prévia e o trabalho posterior de guardar. Não

há consenso na literatura sobre o efeito do uso dos aparelhos elétricos sobre o trabalho

doméstico, havendo autores que defendem que houve uma elevação nos padrões de

limpeza, acarretando aumento da necessidade de tempo, e reforço em padrões

conservadores de divisão do trabalho; outros veem essa relação como positiva, com

redução do tempo despendido (MARTINS, 2013). Uma outra vertente considera que a

liberação das mulheres do trabalho doméstico está no setor de serviços, seja privado, seja

socializado (SILVA, 1998; DAVIS, 2016).

Quem defende o caráter conservador dos eletrodomésticos afirma que

enquanto as ocupações masculinas foram mecanizadas, aquelas tipicamente femininas

não são ainda totalmente substituíveis por máquinas. As máquinas, que realizam um

trabalho apenas parcial, terminaram por proporcionar o retorno ao lar de atividades que

antes eram terceirizadas, como a lavagem das roupas (SILVA, 1998). No que diz respeito

ao desenvolvimento e fabricação de eletroportáteis e eletrodomésticos, a maior

preocupação não é com a redução do tempo, tampouco com a mudança do gênero de

quem faz esse serviço. A ideia que guia as inovações é aperfeiçoar o resultado da

atividade designada para aquele equipamento, e não tornar o processo mais rápido ou

mais simples (SILVA, 2010).

76

É possível inferir que a tecnologia tem tido papel conservador no Brasil. Silva

(2010) destaca que os eletrodomésticos, em domicílios de classe média, costumavam ser

utilizados nos finais de semana, quando a empregada estava ausente, ou então, mesmo

que a empregada pudesse utilizar, eram impostas diversas regras pela patroa.

Os modos pelos quais o desempenho das tarefas domésticas cotidianas é facilitado ou dificultado refletem as divisões sociais desiguais. Por exemplo, é tido como certo que a eletricidade não deve ser usada se puder ser substituída pelo trabalho de empregadas, e também é amplamente difundido que as empregadas podem estragar as tecnologias domésticas se forem autorizadas a usá-las. (SILVA, 2010, p. 07).

O acesso a eletrodomésticos e a existência de um lugar para guardá-los é outra

questão que se impõe, sendo que existem mais eletroportáteis em casas do que em

apartamentos (MARTINS, 2013).

Silva (2010) afirma que a contratação de empregadas domésticas tem como

uma de suas consequências impedir o desenvolvimento de novas tecnologias a serem

utilizadas no trabalho doméstico, uma vez que o custo da contratação constitui fator

central para o desenvolvimento dessas tecnologias (e especialmente no Brasil esse custo

é baixo, dado o caráter informal e precário da atividade). A autora argumenta, ainda, que

por mais que o preço das tecnologias tenha diminuído ao longo do tempo, “o custo do

trabalho doméstico não aumentou suficientemente para tornar ativa a substituição das

empregadas pelas máquinas”. (SILVA, 2010, p. 11)

Deste modo, não há, no curto prazo, a perspectiva de substituição do corpo

pela tecnologia no trabalho doméstico. Ao invés de sonhar com “Roseys”, é mais humano

e mais pragmático tornar o serviço doméstico um trabalho decente.

3.6 O corpo versus outros corpos: classe, cidadania e invisibilidade

“Por mais que se divulguem boatos alarmistas, que ondas de pessimismo soem de quando em quando, nós, as donas de casa, estamos protegidas pelo analfabetismo, pela pobreza, pela assistência social deficiente, pela lentidão do progresso industrial. Se assim não fosse, estaríamos com as nossas vidas arruinadas, a nossa segurança doméstica desmoronada” (ALMEIDA, 1969, p. 17).

O trecho acima transcrito consta em um manual para mulheres, trazendo

conselhos e dicas para donas de casa. Nele, a autora mostra-se grata às desigualdades

sociais, pois as diferenças de classe constituem seu escudo contra a insegurança

77

doméstica, materializada na ausência de uma empregada. Este tópico irá analisar tais

diferenças, e um dos “atributos” das classe mais baixas: a invisibilidade.

Embora a noção de classe seja central na teoria marxista, nem Marx nem

Engels chegaram a fazer uma sistematização do seu conceito. A classe se forma como

uma decorrência de desigualdades e estratificações econômicas, sendo a luta de classes a

força motriz da história, atuando em prol do seu movimento dialético (BOTTOMORE,

2001).

As relações de classe se fundamentam na diferenciação, e a partir delas há

uma distribuição desigual de direitos e de poderes sobre os recursos da sociedade e os

seus produtos. Esse acesso diferenciado gera uma desigualdade no recebimento das

recompensas econômicas e sociais. A perspectiva de explicação da classe é relacional, ou

seja, uma classe opera sobre a outra, sendo que a base dessa relação é a exploração. O

pertencimento a uma classe delimita as oportunidades, as possibilidades de trabalho, de

consumo e, em última instância, de vida (SANTOS, 2008). Institutos de pesquisa

costumam estabelecer uma escala com base no uso de letras (classe A, classe B etc.),

delimitando a capacidade de consumo, o que pode ser considerado um reducionismo,

impedindo a compreensão da dinâmica relacional (MATTOS, 2019). Opta-se, nesta

dissertação, pelo uso da expressão “classe trabalhadora”, que revela uma dimensão mais

ampla.

As empregadas domésticas encontram-se em uma posição peculiar: o trabalho

por elas realizado ainda não é, em sua totalidade, considerado um verdadeiro trabalho; e

apesar dos esforços das associações e sindicatos, insiste-se em considerá-la pessoa

“quase” da família. Deste modo, elas são situadas no limbo do “quase”, não sendo

compreendidas como integrantes da classe trabalhadora, não lhes sendo reconhecidos, até

o momento, os mesmos direitos destinados aos demais trabalhadores, resultando em um

trabalho precário, isso quando não totalmente informal.

Santos (2008) realizou estudo de base estatística, utilizando dados da PNAD,

chegando à conclusão de que, entre os segmentos de classe considerados oprimidos, as

mulheres se concentram mais na categoria dos trabalhadores por conta própria precários

e dos empregados domésticos, o que indica a presença maciça e a força precarizante do

serviço doméstico.

O trabalho precário conduz à desigualdade social, e esta, por sua vez, resulta

em um déficit de cidadania e em invisibilidade pública. Cidadania é um conceito

complexo, mas sua presença costuma ser aferida por meio da observação da titularidade

78

e do exercício de direitos civis, políticos e sociais (CARVALHO, 2016). A invisibilidade

possui relação não com a presença ou ausência física, e sim com um sentido social. Um

dos exemplos é o dos nobres e senhores que ficavam despidos diante de seus escravos ou

serviçais, pois era como se eles de fato não estivessem ali. Essa forma ativa de

invisibilizar um indivíduo pode ser sintetizado na expressão “olhar através” (HONNETH,

2011). O olhar perpassa o outro, atravessa-o sem o reconhecer.

Trata-se de uma condição que, de modo geral, aplica-se a pessoas pobres,

sendo muito frequente nos serviços de limpeza em geral. A invisibilidade pública

encontra-se profundamente atrelada à ideia de humilhação social, uma “humilhação

crônica, longamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais” (GONÇALVES FILHO,

1998). Isso implica a exclusão do espaço da intersubjetividade, da iniciativa e da palavra.

Gonçalves Filho define a humilhação como “uma modalidade de angústia disparada pelo

enigma da desigualdade de classes” (GONÇALVES FILHO, 1998, p. 15)

Se esse autor trabalha sobretudo com a questão da classe, por força de sua

filiação teórica ao marxismo, não se pode esquecer que a interseccionalidade desvendou

que a opressão não possui somente uma via; se o pobre sofre com a humilhação social, o

homem pobre e negro a sofre de forma mais intensa, e a mulher negra pobre ainda mais,

estando ela na base da pirâmide social.

Gonçalves Filho (1998) trata ainda da falta de percepção desse sofrimento por

quem é beneficiário dos privilégios, que frequentam com desenvoltura ambientes

públicos nos quais a presença dessas pessoas pobres não conta, a menos que seja na

posição de subalternidade. Com base nesse aporte teórico, o que dizer das entradas e

elevadores de serviço que as empregadas domésticas utilizam? Trata-se de um

mecanismo de exclusão. Tais trabalhadoras não se deslocam carregando materiais nem

sob qualquer condição que justifique o uso do elevador de serviço ou de uma entrada

apartada. A própria dependência de empregada, situada na área de serviço das residências,

é um indicativo da sua ausência de permissão para circular no ambiente, a menos que

esteja em serviço.

Tratando da questão da invisibilidade, Fernando Braga dispõe:

“A invisibilidade pública, desaparecimento intersubjetivo de um homem no meio de outros homens, é expressão pontiaguda de dois fenômenos psicossociais que assumem caráter crônico nas sociedades capitalistas: humilhação social e reificação. O fenômeno da humilhação parece exigir em psicologia social uma dupla abordagem: política e psicológica.

79

A humilhação social apresenta-se como um fenômeno histórico, construído e reconstruído ao longo de muitos séculos, e determinante do cotidiano dos indivíduos das classes pobres. É expressão da desigualdade política, indicando exclusão intersubjetiva de uma classe inteira de homens do âmbito público da iniciativa e da palavra, do âmbito da ação fundadora e do diálogo, do governo da cidade e do governo do trabalho. Constitui, assim, um problema político. A exclusão política fabrica sintomas, infestando o afeto, o raciocínio, a ação e o corpo do homem humilhado. Assume poder nefasto: ao mesmo tempo que molda a subjetividade do indivíduo pobre, caracterizando-o muitas vezes como um ser que não pode criar mas que deve repetir, esvazia-o das condições que lhe possibilitariam transcender uma compreensão imediata e estática da realidade. (BRAGA, 2012, p. 67-68)

É importante salientar que, embora a humilhação social possa atingir os

indivíduos em níveis diferentes, não se trata de mera percepção subjetiva, uma vez que

existe uma situação efetiva e real de rebaixamento, e há um sentimento de que não

possuem direitos (FILHO, 1998).

Dessa forma, a humilhação social decorrente da invisibilidade tem seu

oposto, ou melhor, seu remédio, no reconhecimento. No próximo capítulo serão

analisadas as causas do não reconhecimento do trabalho doméstico nas esferas do direito

e da estima social com base na teoria do reconhecimento de Axel Honneth.

80

4 EMPREGADAS DOMÉSTICAS: UMA CATEGORIA EM BUSCA DO

RECONHECIMENTO

No ano de 1973, o cantor Odair José, conhecido pelo estilo “brega”, ganhava

as paradas e emplacava a música “Deixe essa vergonha de lado”, através da qual

dialogava com uma empregada doméstica que procurava esconder dele a sua condição:

Eu já sei que essa casa onde você diz morar Onde todo dia no portão eu venho lhe esperar Não é a sua casa Eu já sei que o seu quarto fica lá no fundo E se você pudesse fugir desse mundo e nunca mais Voltava Eu já sei que esse garoto que você leva para brincar E que todo dia na escola você vai buscar Não é o seu irmão Ele é filho dessa gente importante E às vezes também é seu por um instante Apenas dentro do seu coração Deixe essa vergonha de lado Pois nada disso tem valor Por você ser uma simples empregada Não vai modificar o meu amor (JOSÉ, Odair, 1973)

A música lhe rendeu a fama de “terror das empregadas domésticas”

(FONSECA, 2015). Involuntariamente, sua canção terminou se transformando no

registro da situação de humilhação social e falta de reconhecimento da categoria, que na

época já se mobilizava, sobretudo junto ao movimento negro, em busca de melhores

condições trabalhistas e sociais.

Neste capítulo, será abordada a ausência de reconhecimento jurídico e social

do serviço doméstico. Faz-se necessário analisar a história do trabalho doméstico no país,

a fim de compreender o contexto no qual surgiram suas primeiras regulamentações. Esse

percurso tornará possível entender por que as empregadas domésticas demoraram tanto

tempo para obter direitos básicos, como a limitação da jornada, e porque até os dias atuais

elas não desfrutam da totalidade dos direitos conferidos aos demais membros da classe

trabalhadora. Também serão objeto de estudo a ambiguidade presente nas relações de

emprego doméstico e as lutas por reconhecimento nas esferas jurídica e social.

81

A premissa de que o serviço doméstico constitui um trabalho não reconhecido

possui seus fundamentos na teoria de Axel Honneth, que trata do reconhecimento como

um parâmetro normativo de justiça.

4.1. A teoria do reconhecimento

Um dos sentidos mais comuns da palavra “reconhecer” é o de recompensar,

agradecer. Para Nunes (2014), reconhecimento é a identificação consciente dos nossos

atributos nos planos cognitivo e afetivo, sendo, em um sentido mais comum, a

significação, a representação que temos perante o outro. O ato de nomear, classificar e

reconhecer revela uma dimensão de poder, pois atua na construção das identidades.

Quando se fala em reconhecer um trabalho, normalmente isso se encontra relacionado à

ideia de admitir a sua importância, agradecer e/ou recompensar. Afirmar que o trabalho

doméstico não é reconhecido significa dizer que sua importância não é admitida e que ele

não é suficientemente recompensado.

Para sistematizar sua teoria, Honneth parte da filosofia de Hegel, embora lhe

dê uma inflexão materialista com as ferramentas fornecidas pela psicologia social.

Honneth se posiciona em sentido diverso em relação a Maquiavel e Hobbes, que definiam

a vida social com base na luta pela autoconservação, adotando o modelo hegeliano de

reinterpretação dessas relações, considerando que essa luta social constitui um

acontecimento ético, e tem como objetivo obter o reconhecimento intersubjetivo das

dimensões da individualidade das pessoas. Em síntese, o reconhecimento ocupa, nessa

teoria, o lugar da autoconservação. Categorias morais como ofensa e rebaixamento

denotam formas de desrespeito ou de recusa do reconhecimento. Essa recusa representa

injustiça não só por dificultar ou impedir o exercício da liberdade de ação dos indivíduos

ou por lhe causar danos, mas também por feri-los numa compreensão positiva de si

mesmos. A denegação de direitos constitui o rebaixamento mais palpável (HONNETH,

2009).

Diversas críticas a essa teoria partiram de Nancy Fraser, identificando nela

uma excessiva psicologização, uma ênfase na estrutura psíquica em detrimento de

instituições e interações sociais, o que poderia conduzir a especializações e sectarismos,

com foco na política identitária. (KAMADA, 2012). Para Fraser, a justiça exige não

apenas o reconhecimento, mas também a redistribuição. Ela propõe uma teoria crítica do

reconhecimento, “que identifique e assuma a defesa somente daquelas versões da política

82

cultural da diferença que possam ser combinadas com a política social da igualdade”.

(FRASER, 2006, p. 231). O debate teórico resultou em um livro escrito por ambos, no

qual são discutidos os pressupostos teóricos do reconhecimento. Em resposta a Fraser,

Honneth afirma que considera muito problemática a restrição de “reconhecimento” às

demandas de minorias culturais, e que a resistência a uma determinada ordem social é

impulsionada pela experiência moral de não receber o que se considera o justo

reconhecimento. Para ele, a própria distinção entre redistribuição e reconhecimento não

se mostra útil, pois dá a impressão de que as demandas por redistribuição econômica

podem ser entendidas como desvinculadas da falta de respeito social (HONNETH, 2006).

A teoria de Honneth oferece um bom suporte para a compreensão do status

do serviço doméstico no Brasil. Rúrion Melo, estudioso da obra do autor, afirma que

uma das principais contribuições dessa teoria é a possibilidade de conduzir um projeto

emancipatório no qual a fundamentação crítico-normativa da teoria da sociedade esteja

ancorada no diagnóstico das relações sociais de dominação (MELO, 2013). Além disso,

é importante destacar que Honneth busca defender um conceito emancipatório de

trabalho, com um caráter mais humano, e advoga que o trabalho esteja, também, no centro

das reflexões críticas, porém desvinculado de uma mentalidade estritamente produtivista

(HONNETH, 2008).

Honneth trabalha com três formas de reconhecimento: o amor, o direito e a

solidariedade. Esse reconhecimento possui relação com uma expectativa recíproca de

comportamento e ação. O amor é analisado sob uma perspectiva psicanalítica, tendo por

base as relações primárias, as ligações emotivas fortes entre as pessoas, tais como as

desenvolvidas pais e filhos, entre um casal e entre amigos. Ele utiliza Winnicott como

um dos principais teóricos para dar base à fundamentação do amor como uma das esferas

do reconhecimento, que teria sua concretização através da dedicação emotiva, sobretudo

da figura materna. O amor, segundo Honneth, daria origem à autoconfiança do indivíduo.

A recusa do amor, que se configura sobretudo com os maus tratos e com os danos à

integridade física, impede que se configure essa primeira forma de reconhecimento

(HONNETH, 2009).

O reconhecimento em sua dimensão jurídica confere imputabilidade moral ao

indivíduo e a condição de membro de igual valor no âmbito de uma comunidade jurídica,

apto a participar da formação discursiva da vontade. Isso ocorre quando as pessoas se

veem diante da possibilidade de reivindicar certas pretensões, e quando podem contar

com a satisfação de tais pretensões de forma legítima (HONNETH, 2009). Reclamar

83

direitos permite que o indivíduo se expresse simbolicamente, e o caráter público dos

direitos possibilita que seu portador pratique uma ação que possa ser visualizada,

percebida pelos demais, e é isso que tornará possível a constituição do autorrespeito, que

seria essa condição de poder se referir a si mesmo de um modo positivo (HONNETH,

2009). O autorrespeito está para a relação jurídica assim como a autoconfiança está para

a relação amorosa.

Honneth cita Joel Feinberg, para quem ter direitos é o que nos capacita a nos

manter como pessoas, a possuir um autorrespeito mínimo, necessário para ser digno do

amor e da estima dos outros. Assim, a dignidade humana pode constituir justamente a

“capacidade reconhecível de afirmar pretensões” (HONNETH, 2009, p. 196).

É importante anotar que, a despeito das críticas sobre uma excessiva

psicologicação da teoria, e sobre a alegada desvinculação entre reconhecimento e

redistribuição, quando se trata do direito como forma de reconhecimento, Honneth deixa

claro que não basta a universalização dos direitos, mas também a universalização do

acesso a eles. É preciso que os direitos possam ser adjudicados aos grupos de maneira

uniforme. E ainda:

Reconhecer-se mutuamente como pessoa de direito significa hoje, nesse aspecto, mais do que podia significar no começo do desenvolvimento do direito moderno: entrementes, um sujeito é respeitado se encontra reconhecimento jurídico não só na capacidade abstrata de poder orientar-se por normais morais, mas também na propriedade concreta de merecer o nível de vida necessário para isso. (HONNETH, 2009, p. 193).

Para o autor, a privação de direitos e a exclusão social constituem formas de

recusa do reconhecimento. Ele considera indissociáveis o reconhecimento e a

redistribuição, sendo perceptível sua preocupação com os direitos sociais. A existência

do autorrespeito é aferida indiretamente, fazendo comparações empíricas com grupos de

pessoas, uma vez que ele só se torna perceptível na forma negativa, ou seja, diante de sua

ausência, salientando que algumas vezes os próprios grupos atingidos debatem

publicamente a privação de certos direitos fundamentais, sob o ponto de vista de um

reconhecimento denegado (HONNETH, 2009). No caso das empregadas domésticas, o

reconhecimento jurídico veio de forma tardia e se mostra, ainda hoje, incompleto, como

será visto a seguir.

Para finalizar a exposição sobre a teoria de Honneth, há uma terceira forma

de reconhecimento, que é a de uma comunidade de valores orientada por concepções de

84

objetivos comuns, chamada de solidariedade. Assim como o direito, a solidariedade é

aqui apresentada como situada no âmbito da vida pública. Um modo de concretizar o

reconhecimento pela via da solidariedade é dispensar estima social aos indivíduos, que

vai despertar neles o sentimento de autoestima.

O modo de reconhecimento da solidariedade, que é a estima social, direciona-

se às propriedades particulares que diferenciam as pessoas. À medida que os objetivos

éticos de uma sociedade se abrem a diversos valores, à medida que uma ordenação

hierárquica e estamental cede seu lugar a uma concorrência horizontal, tanto mais a

estima social irá criar relações simétricas. A estima social aparece, portanto, como a

possibilidade de considerar que seus valores, ou valores de seu grupo, são igualmente

significativos para a práxis comum, criando relações solidárias (HONNETH). Dejours

(2007, p. 34) estabelece um forte nexo entre reconhecimento e sofrimento, e ainda entre

reconhecimento e construção da identidade, identidade que constitui, nas palavras do

autor, “a armadura da saúde mental”.

Para melhor entendimento, a teoria pode ser organizada com base nos

seguintes pilares abaixo (Figura 1):

Figura 1 – Organograma da teoria do reconhecimento

(Fonte: Elaborada pela autora com base na interpretação dos conceitos de Honneth (2009))

Nas sociedades contemporâneas, há uma luta constante no âmbito das

relações de estima social, mediante a qual diversos grupos procuram elevar os valores

associados à sua forma de vida. Os movimentos sociais constituem exemplos dessa luta,

valendo ressaltar que essas relações de estima social associam-se, mesmo que de forma

indireta, com o problema da distribuição de renda, de modo que os confrontos

Reconh

ecim

ento

Amor

Direito

Solidariedade

85

econômicos terminam por pertencer, de forma constitutiva, a essa luta por

reconhecimento (HONNETH, 2009)

Finalmente, a recusa do reconhecimento e a experiência do desrespeito

constituem fontes emotivas e cognitivas para a ocorrência de resistência e de levantes

coletivos. A tese de Honneth procura evidenciar, assim, como diz o próprio título do livro,

a gramática moral dos conflitos sociais, que são conflitos que podem ser entendidos pelo

viés da busca da construção da identidade, da dignidade humana e da preservação da

integridade física (IASINIEWICZ, 2017).

A ausência de reconhecimento do serviço doméstico no Brasil será analisada

tanto sob a perspectiva do direito quanto da solidariedade, uma vez que as duas instâncias

se comunicam em um sistema de retroalimentação e mútua influência.

4.2. Como tudo começou: o trabalho doméstico escravizado como exemplo primário

de reconhecimento denegado

Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende caracterizar. A gente está falando das noções de consciência e de memória. (GONZALEZ, 2020, p. 78)

O reconhecimento jurídico implica, para o indivíduo, ter os mesmos direitos

conferidos aos demais membros da comunidade, de modo a ser considerado pessoa de

igual valor na formação discursiva da vontade. O serviço doméstico ainda não é

totalmente reconhecido no plano jurídico, por inexistir, mesmo no presente, uma plena

igualdade de direitos em relação aos outros trabalhadores. Para compreender esse

processo, é necessário retomar as origens do trabalho doméstico no país, e analisar suas

progressivas regulamentações, buscando sentido, inclusive, para a ausência de

regulamentação em certos períodos. Não se pretende, aqui, senão buscar o fio que liga

passado e presente, de modo limitado, uma vez que este é somente um percurso

necessário, mas não é o tema principal deste trabalho. Além disso, sabe-se que as histórias

contadas serão sempre parciais, pois a riqueza da vida social contrasta com os limites do

didatismo e da tentativa de produzir uma narrativa. “Ligar presente e passado em uma

radical linha direta, tão somente cronológica e evolutiva, é sempre perigoso”, dizem

Marcelo Paixão e Flavio Gomes (PAIXÃO e GOMES, 2012, p. 304). Ainda assim, é

preciso seguir esse fio que teve início no período colonial e vem se desenrolando até os

86

dias presentes, por mais que seja repleto de descontinuidades, lutas, rupturas individuais

e desvios que nem sempre cabem na pesquisa.

No período colonial, possuir pessoas escravizadas era uma forma de ostentar

luxo e riqueza (LIMA, 2021; PRADO JÚNIOR, 2011). Os trabalhadores domésticos no

período escravocrata ocupavam funções bastante diversificadas. Tratava-se de outro

mundo: não havia instalações sanitárias, eletrodomésticos, e o trabalho era bem mais

pesado. Era necessário cortar lenha, alimentar o fogo, buscar água, lavar manualmente

uma grande quantidade de roupa, cuidar do bem-estar dos senhores (o que incluía o

transporte em liteiras, cadeirinhas, redes), amamentar e criar seus filhos, além de realizar

toda uma gama de atividades para manter a casa grande em funcionamento (LIMA, 2021).

Dentre tais tarefas, uma das mais degradantes era a do tigre:

Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça, das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos como tigres. (FREYRE, 2006, p. 550).

Havia uma certa hierarquia entre os cativos. Lima (2021) registra que essa

hierarquia era determinada pelo grau e especialização das tarefas e pelo status de cada

ocupação, havendo também uma distribuição com base na cor da pele: quanto mais

retinta, mais recôndita ficava a pessoa escravizada.

Entre os cativos do serviço interno estavam em posição superior “os mordomos, as governantas, os camareiros e camareiras, as amas secas, as amas de leite e as mucamas”. Em seguida vinham “cozinheiros, cozinheiras, copeiros e copeiras, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, engomadeiras e os que cuidavam da arrumação e limpeza”, chacareiros e tratadores de animais. Entre os dos serviços externos estavam dispostos hierarquicamente os carregadores de cadeirinha, cocheiros ou boleeiros, pajens, “moleques de recado”, depois vinham os compradores, carregadores de água e, no degrau de baixo, os tigres (despejadores de dejetos humanos e águas servidas) (LIMA, 2021, p. 85)

O serviço doméstico começava cedo para as crianças que eram “crias da

casa”, geralmente a partir dos nove anos, mas podendo ser aos cinco/seis anos de idade

(LIMA, 2021). As mulheres ocupavam um lugar especial no trabalho doméstico. Embora

tenham realizado também atividades externas, como lavar roupa e costurar (em especial

as escravizadas que trabalhavam no sistema de ganho ou de aluguel), havia um espaço na

casa grande delimitado em razão do seu gênero: amamentar, cuidar das crianças, fazer

companhia. A tese de Lima (2021) analisou o recorte temporal de 1830 a 1888, e

87

constatou que havia uma divisão sexual do trabalho doméstico escravo, e embora

houvesse muitos homens na função, nela predominaram as mulheres. Além disso, os

homens terminaram tendo oportunidades melhores nesses ofícios, pois para eles exercer

a função de cozinheiro tornava mais fácil o engajamento em atividades comerciais

remuneradas após a abolição (LIMA, 2021)

Dentre as funções domésticas das mulheres, uma das mais emblemáticas é a

da ama de leite, que Freyre considerava ser uma “promoção”:

É natural que essa promoção de indivíduos da senzala à casa grande, para o serviço doméstico mais fino, se fizesse atendendo a qualidades físicas e morais; e não à toa e desleixadamente. A negra ou mulata para dar de mamar a nhonhô, para niná-lo, preparar-lhe a comida e o banho morno, cuidar-lhe da roupa, contar-lhe histórias, às vezes para substituir-lhes a própria mãe – é natural que fosse escolhida dentre as melhores escravas da senzala (FREIRE, 2006, p. 435 e 436.)

Os relatos de Freyre sobre o amor entre amas de leite e “nhonhôs” não se

coadunam com achados de historiadores, que explicitam a situação trágica dessas

mulheres, na maioria das vezes privadas do contato com seu próprio filho ou, quando

lhes era permitido ficar com a criança, tinham que dar prioridade absoluta ao filho de seu

senhor, pois havia uma nítida hierarquia entre ele e o pequeno escravizado (MACHADO,

2012).

Mesmo com toda a romantização construída por Freyre a respeito da doçura

da escravidão, em especial da doméstica, o autor não deixou passar o registro detalhado

das crueldades praticadas contra elas, em especial pelas sinhás, geralmente em razão de

ciúme.

Sinhás-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outros que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. (FREYRE, 2006, p. 421).

A questão de gênero sobressaía no período da escravidão. As mulheres

cativas representavam de 76,19% a 78,89% dos trabalhadores domésticos, considerando

o período de 1830 a 1888. (LIMA, 2021). Os serviços não se desenvolviam todos na casa

grande. Muitos deles eram postos à disposição de terceiros na função de cozinheiros(as),

lavadeiras, passadeiras e amas de leite (COSTA, 2013).

88

É importante salientar que o período escravocrata durou muito tempo, e não

pode ser considerado de forma monolítica. Foram inúmeras as transformações ocorridas,

em especial no século XIX, de modo que existiram diversas formas de viver e de

trabalhar. Durante certo período predominou a visão da chamada “família patriarcal”, tão

bem descrita por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, na qual o patriarca ocupava

espaço central, de onde emanava o poder sobre a esposa, filhos, noras, genros,

escravizados e agregados. Todavia, conforme assentam estudos de historiadores, esse não

era o único modelo, pois existiram arranjos familiares os mais diversos (SBRAVATI,

2008; LIMA, 2021). Del Priore (2009) também registra que havia muitos maridos

ausentes, mulheres chefiando lares e crianças sendo criadas com a ajuda de outras

mulheres, fossem da família, fossem da vizinhança. A autora afirma que a situação das

mulheres de classe baixa era totalmente distinta da descrição desenhada por Freyre.

Ao longo do século XIX também existiam trabalhadores domésticos livres,

com sutis diferenças em relação às condições dos escravizados (RONCADOR, 2008).

Como regra, os contratos ficavam no domínio puramente do privado e da livre negociação

entre as partes, com todas as restrições que a palavra “livre” poderia ter, em se tratando

de negociação entre ricos senhores e trabalhadores pobres. Segundo Carvalho (2016), a

essa população livre faltavam condições para o exercício dos direitos civis, em especial

a educação. Eles dependiam dos grandes proprietários para morar, trabalhar e sobreviver.

Sbravati (2008 ) examinou alguns contratos de locação de serviços, e estes muitas vezes

se davam com ex-escravizados, que tomavam de empréstimo certa quantia dos senhores

para comprar a alforria, e se comprometiam a pagar o valor mediante a prestação de

serviços, sendo que em tais casos era comum a cláusula segundo a qual os locatários

deveriam servir aos locadores como se ainda fossem cativos. Marques (2020) registra

também a existência de um mercado de trabalho para imigrantes pobres vindas de

Portugal, de aldeias do Minho.

Os costumes dessa época geraram uma associação entre trabalho manual e

escravidão19. Gilberto Freyre mostra o surgimento do desprezo pelo trabalho manual

19 Essa mesma relação pode ser encontrada nas crônicas do Padre Carapuceiro (Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama), que circularam entre os anos de 1832 e 1847: “Há sem dúvida entre nós senhores de engenho ativos e laboriosos, que dispõem a tempo e acertadamente do seu serviço, que vão muitas vezes vê-lo e dirigi-lo etc. Mas quantos não há por aí verdadeiros vadios e fiéis retratos de Sardanapalo? Estes deixarão aos feitores a disposição do trabalho, que raramente visitam, e tudo esperam dos míseros escravos, em tanto que suas senhorias jazem ressupinos em uma rede, engrossando a pança, e adelgaçando as pernas. (...) Eu conheço mulherzinha que na linguagem econômica é só consumidora; porque come abundantemente, veste com luxo, e não se emprega no mais pequeno

89

numa curiosa passagem na qual narra a “amizade” dos senhores pelas suas redes, das

quais não se levantavam nem para dar ordens aos escravizados; andavam em redes,

viajavam em redes, sempre carregados, sempre servidos, o que ocorria, também, com

seus descendentes (FREYRE, 2006, p. 518).

Caio Prado Junior refere semelhante característica negativa associada ao

trabalho manual, legada pela escravidão colonial, e sua contrapartida: o estímulo dos

senhores para a ociosidade.

Isto, para as atividades de natureza física, é regra praticamente universal: nenhum homem livre se rebaixa a empregar os músculos no trabalho. (...) Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da colônia a relativa ao trabalho, de generalizada que é, e mantida através do tempo, acabará naturalmente por se integrar na psicologia coletiva como um traço profundo e inerraigável do caráter brasileiro (PRADO JUNIOR, 2001, p. 368 e 369)

Tal desvalorização ingressou com tanta força na cultura brasileira, de tal

modo que Florestan Fernandes afirmou que a escravidão degradou e desvalorizou o

trabalho, trazendo obstáculos à criação de uma classe assalariada, bem como ao

surgimento de um setor de pequena agricultura. (FERNANDES, 2007).

Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil” (2014), também fala sobre

a desvalorização do trabalho manual e do esforço, que ele afirma ser típica do hispânico:

Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação.(...) O certo é que, entre espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre um fruto exótico. Não admira que fossem precárias nessas gentes, as ideias de solidariedade. (HOLANDA, 2014, p. 44 e 45).

Essa característica cultural encontra eco atualmente, explicando, em boa

parte, as diferenças de hierarquia social entre trabalhadores que estão no mesmo nível sob

o aspecto econômico, porém com nítida diferença de status. (PEREIRAS, 2012)

No que diz respeito ao período pós abolição, os trabalhos braçais

permaneceram com as pessoas negras. Especificamente quanto ao trabalho doméstico, a

trabalho. Fica-lhe a quartinha a dez passos de distância, e se tem sede, há de chamar a pretinha para lhe trazer água, porque a senhora está repimpada em um canapé e incomodar-se-ia se se ergresse. O sapato que lhe caia do pé há de ser apanhado pela escrava etc. etc. (...) Aqui finalmente uma não pequena parte da gente livre e da liberta entende que o trabalho só é próprio do escravo, e em consequência despreza-se tudo que é serviço corporal”. (LOPES, 1996, p. 192, 193, 198 e 199)

90

transição do trabalho escravo para o trabalho livre operou-se de forma gradual, mantendo

estruturas de poder e de mando, e conservando condições de subalternidade. Nesse

sentido, é fundamental atentar para a historiografia mais recente, que aponta uma série de

avanços e recuos ao longo do século XIX, com suas múltiplas leis abolicionistas, todas

parciais, e com a concessão de alforrias, que iam tentando reduzir as tensões do

escravismo, ao mesmo tempo em que perpetuavam laços de dependência e dominação,

gerando vínculos de gratidão e dívida pessoal. Se assim foi com os ex-escravizados em

geral, com muito mais razão essa dominação foi mantida no âmbito doméstico. A

libertação gradativa se tornou, assim, um mecanismo que evitava lutas que pudessem

precipitar um fim brusco para a escravidão (LIMA, 2021)

Quando sobreveio a abolição total (em seu sentido formal), estabeleceu-se,

segundo Moura, (2019, p. 89), uma “ponte ideológica” entre a miscigenação (fato

biológico, facilmente aferível) e a democratização, esta um fato sociopolítico, que não

guarda qualquer tipo de afinidade necessária com a miscigenação. Essa ponte criava a

falsa ideia de democracia racial e de existência de boas possibilidades de mobilidade

social, quando na realidade a população negra foi relegada ao abandono e ao preconceito.

Nas palavras do autor, eles eram tidos como “indolentes, cachaceiros, não persistentes

no trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta-se o trabalhador branco como o

modelo de perseverante, honesto...(...)”. (MOURA, 2019, p. 99). Paralelamente,

estabeleceu-se a política de imigração, gerando disputas por trabalho.

Idêntica constatação faz Fernandes (2007), ao afirmar que a miscigenação foi

considerada um índice de integração social e sintoma de fusão e igualdade, quando, na

realidade, todas as investigações antropológicas, sociológicas e históricas indicam que

ela só produz esse efeito quando ocorre em ambiente livre de estratificações sociais, o

que nem de longe foi o caso do Brasil, país no qual a antiga ordem escravista e o sistema

de dominação dos senhores converteram-se justamente em fatores de estratificação.

Assim, o pós abolição perpetuou a divisão racial do trabalho, permanecendo

os brancos com trabalhos qualificados, intelectuais, enquanto o subtrabalho, aquele

braçal, considerado sujo e muito mal remunerado sobrou para os negros livres, da mesma

forma que antes eram desempenhados por escravizados (MOURA, 2019, p. 103). Lélia

Gonzalez também trata da divisão racial do trabalho, através da qual o racismo denota a

sua eficácia estrutural:

Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele (o racismo) é um dos critérios de maior importância na articulação dos

91

mecanismos de recrutamento para a posições na estrutura de classes e no sistema de estratificação social. Desnecessário dizer que a população negra, em termos de capitalismo monopolista, é que vai constituir, em sua grande maioria, a massa marginal crescente. Em termos de capitalismo industrial competitivo (satelitizado pelo setor hegemônico), ela se configura como exército industrial de reserva. (GONZALEZ, 2020, p. 35)

Ao mesmo tempo, construiu-se o discurso de que, se o negro estava nessa

posição, isso se dava unicamente por culpa dele, uma vez que o país vivia um período de

democratização. (MOURA, 2019; FERNANDES, 2007).

Para Florestan Fernandes, a vítima da escravidão tornou-se também vítima da

crise do sistema escravista.

A revolução social da ordem social competitiva iniciou-se e concluiu-se como uma revolução branca. Em razão disso, a supremacia branca nunca foi ameaçada pelo abolicionismo. Ao contrário, foi apenas reorganizada em outros termos, em que a competição teve uma consequência terrível – a exclusão, parcial ou total, do ex-agente de mão de obra escrava e dos libertos do fluxo vital do crescimento econômico e do desenvolvimento social. (FERNANDES, 2007, p. 85 e 86)

Para Florestan, a abolição foi um episódio de uma revolução feita “pelo

branco e para o branco”. O negro foi duplamente espoliado, não tendo recebido nenhum

tipo de indenização, garantia ou assistência, vendo-se depois em situação de competição

com os brancos (migrantes) em ocupações que antes eram repelidas por eles

(FERNANDES, 2007). Também Ribeiro (2015, p. 169) afirma que, no Brasil, “uma

sociedade doentia, de consciência deformada”, o negro é tido como o grande culpado de

sua própria penúria.

E qual a posição da trabalhadora negra nesse contexto? Fernandes (2017)

afirma que a mulher negra teve mais oportunidades de trabalho do que o homem, por estar

“protegida” pela experiência de trabalho nos sobrados e casas grandes. Tal afirmação

encontra várias contestações, uma vez que a vulnerabilidade feminina no mundo do

trabalho sempre foi maior do que a dos homens:

Outro critério a ser considerado como expressão da menor vulnerabilidade masculina nos mundos do trabalho é a proporção deles nos demais ofícios, tendo em vista que na amostra entre 1830-50 eles representaram 82,10% dos trabalhadores na categoria “Outra” Ocupação, enquanto elas, 17,90%. Isso sugere que os homens tinham um leque maior de atividades ocupacionais do que as mulheres, portanto, mais oportunidades laborais para além dos serviços de casa. (LIMA, 2021, P. 124)

92

A escravidão e a liberdade tiveram significados distintos para o homem e para

mulher escravizados. A descrição dos futuros papéis a serem exercidos pelas mulheres

outrora escravizadas era restrita a poucas possibilidades, e uma delas era a de

trabalhadoras domésticas nos domicílios de outras pessoas. (COWLING, 2018).

Apesar da manutenção da dominação colonial, as trabalhadoras domésticas

não se conformaram às tentativas de impor um regime senhorial. Muitas estratégias de

resistência foram utilizadas. Ainda no período escravocrata, essas estratégias iam desde

a dissimulação, a lentidão na realização das tarefas, o uso de ervas para preparar “poções”

e temperos prejudiciais, até a fuga. Entre as libertas, era comum a alta rotatividade nos

trabalhos, com o abandono das casas nas quais sofriam maus tratos, a realização do

trabalho de modo lento e irregular e os furtos. (LIMA, 2021; TELLES, 2013).

Se antes ter vários escravizados domésticos era símbolo de status, no período

pós abolição operou-se uma inversão dessa lógica, com o doméstico sendo apontado

como símbolo de contaminação e ameaça à saúde da família, tanto física quanto moral

(RONCADOR, 2008)

O fim da escravidão intensificou o medo que as elites tinham dos

escravizados:

(...) o antro do cativeiro foi simplesmente substituído no imaginário das elites pelo submundo dos cortiços. A renovação da vida doméstica, ou sua modernização, iniciada no segundo império, mas levada a cabo nos anos da Velha República, contribuiria também para aumentar a desconfiança dos patrões com respeito a seus empregados domésticos. Associados a doenças, sujeira, criminalidades e outros males da classe baixa, o empregado doméstico tornou-se uma espécie de classe incômoda, ou pior, inimiga do projeto de modernização, ou civilização da vida e dos espaços domésticos, idealizado pelas elites da virada do século. Contudo, ainda que temerosos, os patrões não abriam mão de suas criadas. (RONCADOR, 2008, p. 49)

Esse período vai aproximadamente até a década de 1930, quando emerge o

discurso de Gilberto Freyre, que desautoriza o pensamento eugenista, ao mesmo tempo

em que propõe um olhar saudosista ao passado, com uma evocação nostálgica de

símbolos como a da mãe preta (RONCADOR, 2008).

Esse medo pautou diversas normas jurídicas no período pós abolição, todas

com a ideia de conter a “classe incômoda”. A abolição, assim, mostrou-se um processo

inconcluso, fruto de uma lei que não trouxe qualquer modificação estrutural para oferecer

algum lugar aos recém libertos, algum espaço para a construção da vida e da cidadania.

A abolição foi meramente formal. A lógica constituída foi de indenização aos senhores,

e não às pessoas escravizadas. Não houve julgamentos nem condenação do instituto da

93

escravidão. Houve, ao contrário, seu apagamento, por meio da incineração de documentos

efetuada em 1899 por determinação do Ministro das Finanças, Rui Barbosa

(NASCIMENTO, 2016; LOPES, 2020).

Diante desse contexto, nada mais propício do que a fala de Gonzalez, que

iniciou este tópico: é preciso falar de consciência e memória, que constituem uma chave

para a compreensão de problemas estruturais e persistentes.

4.3 A regulamentação até a Constituição: entre a repressão, o paternalismo e as

resistências. Nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país... Hoje o rubro lampejo da aurora Acha irmãos, não tiranos hostis. (BRASIL. Hino da República)

O jargão sobre a memória curta do brasileiro não parece destituído de

fundamento. A abolição ainda não havia completado dois anos quando o Hino da

República falava de um país no qual nem se acreditava que “outrora” tivessem existido

pessoas escravizadas. Esse apagamento, todavia, não conseguiu ocultar a memória da

escravidão nem a persistência de estruturas senhoriais.

Neste tópico, será feita uma retrospectiva da legislação que disciplinou o

trabalho livre até o período anterior à Constituição de 1988. O objetivo não é

simplesmente esboçar o perfil legislativo de um certo período histórico; é mostrar qual o

“espírito” da legislação que passou a reger o trabalho livre, e depois o trabalho doméstico.

A importância desse registro decorre do fato de o serviço doméstico ter sido constituído

juridicamente como um trabalho à parte, tanto que excluído da CLT. Assim, estudá-lo

sob o ponto de vista jurídico implica sempre compará-lo ao trabalho não doméstico,

comparar as leis que disciplinaram ambos os institutos.

O século XIX registrou debates legislativos sobre a regulação do trabalho

livre desde a década de 1830. Não obstante existissem alguns dispositivos nas ordenações

Filipinas, o primeiro regulamento específico a tratar de um contrato dessa espécie foi a

lei de 13 de setembro de 1830 (LAMOUNIER, 1988)20, que trazia rígidas disposições

20 Essa lei não era, ainda, numerada, e oficialmente é chamada apenas “Lei de 13 de setembro de 1830”.

94

para o prestador de serviço que não cumprisse sua obrigação, podendo permanecer preso

até indenizar o contratante: Art. 4º Fóra do caso do artigo precedente, o Juiz de Paz constrangerá ao prestador dos serviços a cumprir o seu dever, castingando-o correccionalmente com prisão, e depois de tres correcções inefficazes, o condemnará a trabalhar em prisão até indemnizar a outra parte. Art. 5º O prestador de serviços, que evadindo-se ao cumprimento do contracto, se ausentar do lugar, será a elle reconduzido preso por deprecada do Juiz de Paz, provando-se na presença deste o contracto, e a infracção. (BRASIL, 1830).

Havia, também, a possibilidade de prisão para o contratante que não pagasse,

mas esta ocorria somente após a condenação, enquanto o prestador de serviço estava

sujeito a prisões “correcionais” antes da condenação.

Nasce o trabalho livre no Brasil, portanto, sob o signo da coerção e de fortes

relações de dominação.

Na sequência, surgiram leis disciplinando contratos com colonos estrangeiros

e locação de serviços na agricultura. Discutia-se a necessidade de um instrumento legal

que se aplicasse aos nacionais, o que se agravou com as sucessivas leis que concediam

parcialmente a liberdade a alguns escravizados, como a lei do ventre livre. A questão se

ligava, também, à preocupação das autoridades à época em coibir a “vadiagem”. Os

projetos apresentados atendiam a um desejo de controle e direcionamento dos

trabalhadores, seja pelos proprietários de escravizados ou pelo governo. Os libertos

continuaram sob a gestão da lei do ventre livre, que os obrigava a permanecer sob

inspeção governamental durante cinco anos, tendo o dever de evitar a “vadiagem”. Já os

ingênuos21, depois de 21 anos seriam regidos pela lei de locação de serviços. À medida

que progridem as expectativas quanto à abolição geral, discute-se a necessidade de leis

para coibir “vagabundagem, mendicidade, parasitismo” e vadiagem. (LAMOUNIER,

1988).

As discussões entre juristas e legisladores eram conduzidas pelo viés de

conservar o controle e a dominação dos senhores, “atualizando” as antigas normas

vigentes na escravidão para o padrão dos trabalhadores livres, mas sem alterar as

estruturas de mando. Lamounier (1988) mostra como as sucessivas tentativas de legislar

ou alterar a legislação vinham a reboque das leis que foram aos poucos erodindo o sistema

21 Segundo Salles (2018, p. 126), os ingênuos eram as pessoas nascidas livres mas que, “por força da lei, poderiam permanecer sob tutela de seus senhores até os 21 anos, se estes assim o desejassem, como ocorreu em 95% dos casos”.

95

escravocrata, como a proibição do tráfico em 1850 e a lei do ventre livre. Havia uma

preocupação com uma transição “prudente”.

Essa regulamentação do trabalho livre iria dar origem, de forma mais visível

no século XX, a uma classe trabalhadora. Se essa regulação legal foi marcada pela

tentativa de manter estruturas de dominação, o caso do serviço doméstico é ainda mais

emblemático, pois eles se viram excluídos, ao longo de muito tempo, de direitos

concedidos à classe trabalhadora, estando alijados, na verdade, da própria integração a

essa categoria, sendo tratados na vida social e no mundo jurídico como uma classe

“especial”.

O serviço doméstico era regido por normas municipais, as chamadas Posturas

Municipais. Já no período pré-abolição, diversos municípios expediram regulamentos de

trabalho doméstico para o trabalhador livre, tornando os contratos mediados pela

secretaria de polícia, prevendo condutas para patrões e empregados, e punições como

multas para empregadores e prisão para trabalhadores. Mas um óbice a essa

regulamentação era a violação da privacidade no âmbito doméstico e da autoridade

pessoal dos patrões (TELLES, 2013).

No pós abolição, as posturas municipais tinham como base os relatórios do

Ministro da justiça, cujo objetivo maior era assegurar a ordem no ambiente das famílias

e coibir a vadiagem. Assim, as empregadas domésticas, comumente chamadas de “criadas

de servir”, eram submetidas a regras rígidas, e a um controle que era realizado por meio

da polícia (RODRIGUES, 2020). Os contratos de trabalho eram assentados perante o

delegado, em livros de inscrição de empregados e livros de certificados (TELLES, 2013).

Os “criados” possuíam uma caderneta na qual constavam registros de sua conduta moral,

trajetória de vida e de trabalho, bem como o motivo de eventuais dispensas. Havia, ainda,

um livro de inscrição do criado e um livro de registro. Existiam criadas que não recebiam

salário, apesar de isso haver sido estipulado na lei, trocando seus serviços apenas por

alimentação e moradia (COSTA, 2013). Em muitos códigos de postura, a trabalhadora

estava sujeita à demissão se ficasse doente ou se saísse à noite sem autorização, sendo

nítida, então, a intenção de controle (LOPES, J. 2020).

A domesticidade e o paternalismo também figuravam como elementos de

controle, e era no serviço doméstico que os senhores conseguiam manter mais forte a sua

ideologia, tanto que o trabalho doméstico prosseguiu sendo regido por uma lógica

escravista, mesmo quando livre. As leis da época já impunham uma série de restrições

sobre os trabalhadores, e os domésticos se submetiam a condições ainda piores, de modo

96

a se poder afirmar que o escravismo foi o paradigma que norteou o serviço doméstico,

mesmo quando livre (LIMA, 2021)

Entretanto, assim como as pessoas escravizadas construíam seus mecanismos

de resistência, também as trabalhadoras livres buscavam se opor aos abusos. Em 09 de

fevereiro de 1890 foi realizado um comício de criadas e criados do Rio de Janeiro,

mobilizando-se contra as leis que regulamentavam os serviços de criados e amas de leite.

Tal mobilização teve como gatilho um edital publicado, exigindo a presença de todos eles

à delegacia de polícia, portando suas cadernetas, sob pena de serem considerados

vagabundos e punidos na forma da lei (COSTA, 2013).

Telles (2013) afirma que esse controle sobre as empregadas domésticas,

apesar de tudo, não foi sistemático nem duradouro, e que elas conseguiam opor

resistências diversas, por meio de mobilidade, ócio e furtos. A autora registra que o jornal

“O comércio de São Paulo”, em abril de 1903, trazia a lume a preocupação com a

identificação dos criados e com as cadernetas, para facilitar a prisão em caso de fuga ou

furto. Em 1914, outro jornal sugeria a aprovação de regulamento dos empregados

domésticos, sobretudo em razão da dificuldade dos patrões para controlá-los e para fazer

frente a questões como o furto.

As sessões legislativas sobre criados domésticos no período anterior e posterior a abolição em São Paulo evidenciam que a transformação das relações de trabalho foi um processo cadenciado pelos embates entre as necessidades dos patrões e as agências dos empregados, que as legislações acompanhavam em diferentes contextos. A relação de forças hierárquicas expressas nas posturas revela o comprometimento do poder legislativo e policial no controle sobre os trabalhadores pobres que agiam na contramão dos interesses dos patrões. (TELLES, 2013, p. 80)

Havia muita alternância entre um trabalho e outro, uma casa e outra, e em São

Paulo, apesar de haver previsão de “justa causa” nas posturas municipais, dificilmente

essas causas eram mencionadas nas cadernetas, pois a recusa dessas trabalhadoras em

permanecer era, em grande parte, decorrência das tentativas de impor disciplina

semelhante à da escravidão. (TELLES, 2013)

Finalmente, com a edição do Código Civil de 1916, a prestação de serviço

doméstico ficou sob sua tutela, capítulo IV, seção II, que dispunha sobre a locação de

serviços. Nos termos do citado código, artigo 1216, “Toda a espécie de serviço ou

trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição.”

(BRASIL, 1916).

97

A retribuição, que ainda não se chamava “salário”, seria objeto de acordo

entre as partes; não havendo acordo, seria fixada por arbitramento, em conformidade com

o costume local, o tempo e a qualidade do serviço, sendo paga depois de terminado o

serviço, salvo existência de alguma convenção em contrário (artigos 1212 e 1219). Havia

prazo limite de quatro anos para o contrato, podendo, porém, ser rescindido mediante

aviso prévio (BRASIL, 1916).

Ao mesmo tempo em que era altamente desvalorizado, o trabalho doméstico

surgia como fonte de renda de muitas brasileiras. Em conformidade com recenseamento

realizado em 1920, na cidade de São Paulo, os brasileiros ocupavam predominantemente

os setores de serviços, sobretudo atividades de correios, telégrafos e telefones, força

pública, administração pública, profissões liberais e serviços domésticos. Havia cerca de

10 mil trabalhadoras nessa função (domésticas), o que fornecia uma ideia tanto da má

distribuição de renda quanto da quantidade de pessoas “excedentes”, visto que o trabalho

doméstico costuma ser tido como uma ocupação residual. (BARBOSA, 2008).

Fausto (1984) afirma que era mais comum acharem-se as empregadas

domésticas em processos criminais do que em processos cíveis. Ele relata que, entre 1880

e 1924, classificando-se as vítimas de crimes sexuais, 41% eram empregadas domésticas

e 19,5% eram mulheres em “serviços domésticos”, que corresponderiam a lavadeiras,

passadeiras, faxineiras e costureiras que não residiam na casa dos patrões. O autor salienta

que, embora as mulheres pobres fossem vítimas mais frequentes desse tipo de crime,

havia ainda uma relação explicativa especial: o abusador quase sempre era patrão ou filho

do patrão. Na maioria dos casos, a defesa se focava na desqualificação da empregada, em

contraste com o perfil “sério e promissor” do acusado. A sociedade considerava normais

as “brincadeiras” dos jovens com as empregadas, e quando se chegava a um processo, a

finalidade maior era proteger os rapazes. Quando o acusado era o patrão, as mulheres

geralmente acobertavam. Os demais empregados se esquivavam, quando não defendia

abertamente o patrão e seus familiares

Era frequente, também, a prisão de lavadeiras, a maioria ex-escravizadas,

acusadas de vagabundagem (TELLES, 2013). Nos anos de 1912, 1915, 1917 e 1920, as

empregadas domésticas perfaziam a incrível porcentagem de 80% das mulheres presas

no decorrer de um mês (SOUZA, 2013) .

Não há uma base de dados unificada para se realizar pesquisa jurisprudencial

em relação a esse período, a fim de aferir a posição do judiciário em relação ao serviço

doméstico e a eventuais demandas judiciais de tais trabalhadoras. Seu acesso à justiça,

98

suas postulações nesses primeiros anos do século XX, tudo isso parecem ser questões

ainda pouco exploradas. Merece destaque, todavia, um acórdão localizado por meio de

pesquisa na hemeroteca digital, nos arquivos do jornal do Commercio do Rio de janeiro,

no qual é reconhecida a prestação de serviços domésticos em detrimento da alegação de

concubinato22. Mais ainda: o acórdão dispõe que todo trabalho lícito, como a da criada,

presume-se remunerado:

Justiça local. Corte de apellação . Terceira câmara Apellaçao cível n. 973

Todo trabalho lícito, como inquestionavelmente o é, o da criada e da enfermeira, se presume remunerado. Não pode o patrão furtar-se à remuneração de serviços dessa natureza, por ter durante o tempo em que fôram os mesmos prestados vivido em concubinato com a empregada, sua doméstica. A acção dos serviçaes para o pagamento dos seus salários prescreve em cinco anos, contados do dia em que o salário fôr exigível, isto é, no caso ocurrente, no fim de cada mês. Vistos etc.: Acordam os juízes da 3ª câmara da corte de Apellação, constituindo a quinta turma julgadora, em dar provimento à apelação, por termo a fl. 89, para, reformando em parte a sentença apelada, condemnar os reos a pagarem à autora, pelo tempo decorrido de 2 de outubro de 1919 a 2 de outubro de 1924, a quantia de 160$000 mensaes, como salários devidos à mesma autora, por serviços de domestica e, por utimo, de enfermeira, prestados a Alceu José Coelho da Rocha, irmão dos reos e do qual estes são os únicos herdeiros. Bem decidiu a referida sentença, considerando os reos obrigados à remuneração de taes serviços, isso por estar provado dos autos a prestação dos mesmos, e por ser principio de direito que nenhum serviço lícito se pode presumir gratuito ou não remunerado. Pouco importa, para o caso, a circunmstancia, também provada nos autos, de ter o de cujus se tornado amante da autora, passando a viver maritalmente com a mesma, até o dia de sua morte, porque, como já decidiu este tribunal, confirmando uma sentença do Dr. Juiz da 7ª pretoria cível (fl. 71), todo trabalho lícito – como inquestionavelmente é de que se trata, criada a enefermeira – se presume remunerado, não podendo o patrão furtar-se a essa remuneração, sob o fundamento de ter vivido com a empregada ou doméstica, durante o tempo em que os serviços foram prestados, pois só a mulher legítima é que, pelo casamento, assume, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família (art. 240 do Código Civil): mas então corre também ao marido a obrigação de, durante toda a existencia da sociedade conjugal, manter a mulher e ampará-la, resguardando-a de necessidades presentes e futuras (art. 233, n. V, do citado código). (...) Rio, 15 de maio de 1930. Saraiva Junior, presidente Sampaio Vianna, relator Fructuoso de Aragão Leopoldo de Lima

(Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. 1930, edição 00137)

22 Uma cópia do documento consta em anexo da presente pesquisa, gentilmente cedida por email enviado ao Centro de Pesquisa Histórica, mediante pagamento de valor módico.

99

Embora o acórdão sedimente o “lugar” da mulher casada, ele possui diversos

elementos que o destacam como um pronunciamento judicial à frente do seu tempo, pois

reconhece, em primeiro lugar, a diferença entre trabalho e “amor’, nos moldes postulados

por autoras feministas contemporâneas como Silvia Federici, e afirma que esse trabalho

presume-se remunerado, ou seja, na visão da corte, já existe um pré-consenso no sentido

de que há um significado econômico-financeiro embutido no serviço doméstico23.

Até o ano de 1923, o serviço doméstico continuou sendo regulado pelo

Código Civil. Em 06 de janeiro de 1923, a lei 4.632 instituiu a carteira de identidade para

os domésticos. Nesse mesmo ano, foi aprovado o Decreto nº 16.107, de 30 de Julho de

1923, que regulamentava a locação dos serviços domésticos, definindo como domésticos:

... os cozinheiros e ajudantes, copeiros, arrumadores, lavadeiras, engomadeira, jardineiros, hortelões, porteiros ou serventes, enceradores, amas secas ou de leite, costureiras, damas de companhia e, de um modo geral, todos quantos se empregam, à soldada, em quaisquer outros serviços de natureza idêntica, em hotéis, restaurantes ou casas de pasto, pensões, bar, escritórios ou consultórios e casas particulares (BRASIL, 1923).

Nesse momento, portanto, a categoria não abrangia somente aqueles que

desenvolviam atividades em ambiente residencial. O que definia o doméstico não era o

local de trabalho, e sim o tipo de atividade. O decreto previa uma série de medidas de

controle, como a obrigação de apresentar a carteira de identificação à delegacia do

respectivo distrito sempre que a trabalhadora deixasse algum emprego, conforme previsto

no artigo 7º. Nessa carteira constavam, além dos dados do contrato, a declaração expressa,

aposta pelo patrão, a respeito da conduta e aptidão profissional (artigo 10, c). Eventual

litígio sobre a recusa para fazer tais anotações seria decidida pelo delegado de polícia, em

conformidade com o artigo 11. O decreto previa, também, no artigo 22, justas causas para

23 Muitos julgados atuais deixam de reconhecer a relação de trabalho quando há uma relação familiar. Existem vários acórdãos que deixam de reconhecer até mesmo o vínculo da esposa do caseiro com o dono da propriedade, mesmo que ela trabalhe em benefício daquele. Por trás da argumentação, percebe-se a ideia de que esse trabalho é desempenhado por uma espécie de “senso de colaboração”, ou ainda como se a mulher fosse mera extensão do marido. Nesse sentido, o acórdão: EMENTA: RELAÇÃO DE EMPREGO. MULHER DE CASEIRO. INEXISTÊNCIA. É bastante comum a esposa auxiliar o marido nas tarefas diárias ou, esporadicamente, em afazeres domésticos, tanto de seu lar como da casa-sede da Fazenda. Pode-se até dizer que é um costume e que a esposa, muitas vezes, o faz por sua própria liberalidade. Para que reste configurado o vínculo empregatício em situação tão peculiar, faz-se necessária produção de prova robusta que demonstre a presença simultânea dos requisitos principais (art. 3º da CLT). Recurso desprovido. (TRT18, RO - 0010085-94.2015.5.18.0001, Rel. GERALDO RODRIGUES DO NASCIMENTO, 1ª TURMA, 04/12/2015)

100

a ruptura do contrato por ambas as partes, e possibilitava a ruptura, mesmo sem causa,

mediante a concessão de aviso prévio (BRASIL, 1923).

É importante destacar que, a essa altura, já se constituía no Brasil um

movimento feminista atuante, que chegou a pautar, sem sucesso, a inclusão das

domésticas na lista de beneficiárias de certos direitos buscados para as “operárias”. Com

o advento da era Vargas, notou-se grande evolução nos direitos trabalhistas em geral, com

regulamentação de férias, reconhecimento de normas coletivas, limitação de jornada, e a

própria instalação de juntas de conciliação e julgamento, que dariam origem à justiça do

trabalho, que obteve pleno funcionamento no ano de 1943. Mas, no que diz respeito às

domésticas, mais uma vez elas foram tidas como alheias à classe trabalhadora.

MARQUES (2020) recupera um pouco dessa história, examinando o debate em torno da

regulamentação do serviço doméstico no âmbito do primeiro governo de Getúlio Vargas.

Para ela, a exclusão de tais trabalhadoras da proteção legal foi uma escolha política,

construída por vários atores, como, evidentemente, os parlamentares, mas também setores

da igreja católica e o próprio movimento feminista, por meio da Federação Brasileira pelo

Progresso Feminino (FBPV), que terminou recuando das posições defendidas no começo

da década de 1930.

Em março de 1931, foi editado o Decreto 19.770, que regulou a sindicalização

das classes operárias e patronais, fazendo constar, em seu artigo 11, a exclusão de quem

prestava serviços domésticos (BRASIL, 1931). Essa exclusão do direito à sindicalização

perdurou por longo tempo.

Em março de 1932, o decreto nº 21.175, instituiu a Carteira de Trabalho para

empregados do comércio e da indústria, tacitamente excluindo trabalhadores domésticos.

Em maio desse mesmo ano, surgiu o Decreto-lei 21.417, regulando “condições do

trabalho das mulheres nos estabelecimentos industriais e comerciais”, sem qualquer

referência às trabalhadoras domésticas (BRASIL, 1932; MARQUES, 2020).

Finalmente, em 1933, Bertha Lutz, feminista atuante no país, incluiu as

domésticas em seu discurso eleitoral, afirmando que o direito de trabalho igual para

salário igual deveria se estender a todas as trabalhadoras. Todavia, na Constituinte de

1934, direitos como o afastamento após o parto alcançavam apenas a operária. O

deputado João Beraldo, próximo a Bertha, questionou a não extensão de tal direito às

101

domésticas, sendo aparentemente24 o autor da emenda que estendia esse benefício a essas

trabalhadoras (BRASIL, 1934; MARQUES, 2020).

Com a Constituição de 1934, foi consagrada a competência da União para

regulamentar as relações de trabalho e foram instituídos muitos direitos sociais. Todavia,

se a Constituição não se referia expressamente à exclusão das domésticas quanto a tais

direitos, a legislação ordinária já o fazia. Da mesma forma, a legislação previdenciária

deixava de fora os trabalhadoras domésticas, que além disso, não eram sindicalizadas, o

que, para Carvalho (2016), era decorrência de uma concepção de política social como

privilégio, e não como direito, pois, se direito fosse, deveria beneficiar a todos.

Em 1936, a lei n. 185 instituía um salário-mínimo sem excluir expressamente

os trabalhadoras domésticos, o que gerou repercussão na imprensa, onde reverberou a

preocupação com o orçamento das famílias (BRASIL, 1936; MARQUES, 2021)

Em fevereiro de 1941, foi editado o Decreto-lei 3.078, de âmbito nacional,

que assegurava a carteira de trabalho ao doméstico e o definia como aquele que, mediante

remuneração, prestava serviço em residências particulares ou em benefício destas. O

contrato deveria ser anotado na carteira, e o Ministério do Trabalho deveria promover os

estudos necessários para a inclusão de tais trabalhadores na previdência. O decreto previa,

ainda no artigo 7º, “a”, que era dever do empregado “prestar obediência” e respeito ao

empregador, além de zelar pelos interesses dele (alínea e). Os serviços de identificação e

de expedição de carteiras profissionais permaneciam a cargo das polícias, nos termos do

artigo 11 (BRASIL, 1941).

Em 1943, desponta a Consolidação das leis do Trabalho, um marco na

história dos direitos sociais no Brasil, e dessa consolidação as empregadas domésticas são

excluídas expressamente, por força do artigo 7, “a” (BRASIL, 1943).

Marques (2021) registra que, a essa altura, as feministas da Federação

Brasileira para o Progresso feminino haviam recuado completamente de sua posição

crítica, chegando ao ponto de a feminista Maria Luiza Bitetencourt afirmar que, para

regular contratos domésticos, os costumes seriam suficientes.

Em 1949, adveio a lei 605, que disciplinava o repouso semanal remunerado,

e dele as trabalhadoras domésticas também foram excluídas expressamente, por força do

artigo 5º, inciso a, revogado apenas por meio da lei 11324/2006. (BRASIL, 1949).

24 Marques atribui a autoria da emenda ao deputado pelo fato de ter sido ele o primeiro signatário. (MARQUES, 2020, pág. 192).

102

Safiotti (1978) registra que, até 1956, os locadores de serviços que

trabalhavam em condomínios sofriam com idêntica privação de direitos, por serem

considerados domésticos, todavia, a lei 2.757/56 passou a distinguir esses trabalhadores,

que foram incorporados à CLT.

Em 1960, os empregados domésticos passaram a ser considerados segurados

facultativos da previdência social, nos termos do artigo 161 da lei 3.807/60 (BRASIL,

1960)

Em 1963 surgiu o projeto de lei 181/63, de autoria do senador Vasconcelos

Torres, que pretendia estender aos domésticos os benefícios previstos na CLT. Por meio

do parecer 843/68 o relator, Sr. Bezerra Neto, opinou pela rejeição. Na justificativa,

alegou que a reparação das injustiças já vem sendo feita ao longo do tempo, por meio da

inclusão desses trabalhadores em regimes de previdência e por força da proteção quanto

a acidentes de trabalho. Argumentou que eles foram excluídos da CLT em razão de não

poderem as famílias arcar com os custos decorrentes de um contrato celetista (SENADO,

1968).

Nesse mesmo ano, novo projeto de lei dispôs sobre a criação do instituto da

empregada doméstica, com a finalidade de educá-la e distribuí-la em agências de

emprego. Para educar, seriam criadas escolas de aprendizagem. Havia previsão de

pagamento de uma taxa pelas empregadas que fossem alocadas em trabalhos, e os patrões

teriam a obrigação de lhes fornecer “tratamento humano”, além de pagar férias e conceder

licença remunerada para tratamento de saúde por até 15 dias. O projeto foi assinado por

Adalgisa Neri, parlamentar integrante dos quadros do PSB (Partido Socialista Brasileiro),

e conhecida por sua atividade como escritora e poeta. (CPDOC, 1968)

Ainda, surgiu o projeto Franco Montoro (836/63) para criar uma fundação de

previdência e assistência para cuidar da proteção a essas trabalhadoras. Para analisar tal

projeto, constituiu-se uma comissão de empregadas, donas de casa e assistentes sociais.

Nas discussões, foi feito o registro de que o empregado doméstico “encontra-se

praticamente à margem de qualquer proteção social, em situação de verdadeiro abandono.

Suas relações de trabalho guiam-se, antes pelos usos e costumes, do que pelas leis”

(CPDOC, 1963).

Importante registrar que, na ocasião, a Casa das Domésticas enviou ao

deputado uma pesquisa feita sob patrocínio da casa e da escola de serviço social da

Universidade Católica de Minas Gerais, que aferia, dentre outras coisas, o quanto as

trabalhadoras sentiam-se valorizadas e úteis para a sociedade. Os resultados foram os

103

seguintes: 85% das domésticas se acham úteis à sociedade; 51% gostam da profissão;

54% se sentem diminuídas nela; 33% acham que a sociedade lhes dá valor; 5% desejam

deixar a profissão; 18% estão satisfeitas com o salário que recebem atualmente; 98%

estão dispostas a lutar para reivindicar seus direitos. No tocante aos empregadores, foi

noticiado que 75% das famílias “ricas”, 95% das de classe média e 54% das de classe

média “inferior” eram favoráveis à proteção previdenciária para domésticas (CPDOC,

1963). Esse documento constitui um registro importante da atuação das empregadas

domésticas na luta por direitos.

Nesse mesmo ano de 1963, a associação das empregadas domésticas de São

Paulo enviou para apreciação parlamentar, especificamente para a câmara dos deputados,

um projeto de lei disciplinando o trabalho doméstico e outro buscando estender-lhes o

FGTS. A jornada é limitada a dez horas diárias, com duas horas de intervalo intrajornada

e com 10 horas de intervalo interjornada. O projeto assegura, também, descanso semanal

remunerado de 24 horas ininterruptas, devendo recair em domingo ao menos uma vez por

mês. Prevê férias remuneradas de 20 dias úteis e 13º salário, chamado de gratificação

anual. Ainda: licença de quatro semanas à gestante, com indenização de um salário caso

ela seja demitida em razão do estado gravídico, possibilidade de formação de associações

profissionais, inclusão como segurados obrigatórios da previdência, com instituição de

seguro obrigatório para os casos de acidentes de trabalho e moléstias profissionais. Na

fundamentação, a associação expõe as dificuldades encontradas pela categoria, incluindo

a falta de limitação do horário, o trabalho sem descanso e sem a possibilidade de se voltar

para outras atividades “que o tornem plenamente humano”. Nesse mesmo documento é

ressaltada a dificuldade do doméstico de obter provas para serem utilizadas na Justiça do

Trabalho ( CPDOC, 1963).

Parecer da Comissão de Constituição e Justiça examinou conjuntamente os

projetos 237/63, 1.477/63, 2.573/65 e 836/63, todos tratando da situação dos empregados

domésticos, separando-os em dois blocos: regulamentação da profissão e extensão da

cobertura previdenciária. Decidiu-se examinar somente o da cobertura previdenciária,

pois havia promessa do executivo de remeter um projeto disciplinando a profissão. E

assim se passaram longos anos sem que o legislativo atendesse aos apelos da categoria

(CPDOC. Parecer, 1963).

Em 1964, foi enviado ao Ministério da justiça um anteprojeto do Código do

Trabalho, que mencionava os empregados domésticos em 16 artigos, mas que

regulamentava a profissão em termos vagos no tocante a horário e concedia férias

104

reduzidas, de no máximo 15 dias consecutivos, além de simplificar bastante os motivos

para rescisão (SAFIOTTI, 1978).

Em 1972, adveio a lei 5.859/72, definindo o trabalhador doméstico como

aquele que prestava serviços de natureza contínua e finalidade não lucrativa a pessoa ou

família, no âmbito residencial destas. A lei trazia direito a férias remuneradas de 20 dias

úteis, ao invés dos 30 dias corridos usuais, e excluía diversos direitos, tais como o FGTS.

Tornou o empregado doméstico segurado obrigatório da previdência (BRASIL, 1972).

Essa primeira lei, mesmo negando vários direitos, suscitou reações negativas

por considerar que se estava concedendo “demais” a essas trabalhadoras. Juristas se

dividiam e demonstravam ceticismo quanto à definição de empregada doméstica.

Discursos anunciando um futuro catastrófico para as trabalhadoras domésticas eram

publicados em alguns jornais, prognosticando redução drástica de postos de trabalho e

aumento de prostituição. Empregadores também reagiam, demonstrando que as

domésticas já auferiam diversos benefícios extras, como moradia e alimentação. Por outro

lado, tais empregadas tinham, já, as suas associações constituídas, as quais professavam

um discurso de inclusão plena das domésticas como efetivas trabalhadoras. Mas a não

inclusão de tais trabalhadoras na CLT era defendida pelo próprio Ministro do Trabalho,

que afirmava que o país não estava preparado para tanto (KOFES, 2011).

4.4 . A Constituição de 1988

O advento da Constituição trouxe novos direitos à categoria, porém ainda de

forma incompleta. A Assembleia Nacional Constituinte foi instaurada em 01.02.1987,

composta por 559 congressistas, dos quais 26 eram mulheres. Não se tratava de uma

bancada politicamente homogênea, havendo mulheres de diversos espectros políticos, a

maioria filiada ao PMDB. O partido dos trabalhadores contava com duas constituintes,

Irma Passoni e Benedita da Silva, com destaque para esta última, que já havia

desenvolvido a função de empregada doméstica. Ela apresentou 92 emendas, das quais

25 foram aprovadas (SOUZA, 2008).

O tema referente às trabalhadoras domésticas foi amplamente debatido na

subcomissão dos direitos dos trabalhadores e servidores públicos, presidida pelo

Deputado Geraldo Campos, do PMDB-DF, a qual, por sua vez, integrava a comissão da

105

ordem social, presidida pelo deputado Edme Tavares, do Partido da Frente Liberal-PB25

(LACERDA et all, 2018; PILLATI, 2019). O anteprojeto, no tópico sobre direitos dos

trabalhadores, dizia respeito a todas as categorias, incluindo as domésticas. Na ocasião, a

representante dessas trabalhadoras, Lenira de Carvalho, entregou à assembleia um

documento – Carta das Trabalhadoras Domésticas aos Parlamentares constituintes -

diretamente a Ulysses Guimarães, presidente da assembleia constituinte. Ela proferiu um

discurso no qual são perceptíveis os anseios de reconhecimento, nos termos dispostos por

Honneth:

É por isso que vimos, hoje, cobrar, como todos os trabalhadores estão cobrando, porque nós, domésticas, também votamos. Trabalhamos e fazemos parte deste País, muito embora não queiram reconhecer o nosso trabalho, porque não rendemos e não produzimos. Mas, estamos conscientes de que produzimos e produzimos muito. E achamos que, numa hora em que há uma Constituinte, uma nova Constituição para fazer, acreditamos, temos a esperança de que vamos fazer parte dessa Constituição. Não acreditamos que façam uma nova Constituição sem que seja reconhecido o direito de 3 milhões de trabalhadores deste País. Se isso acontecer, achamos que, no Brasil, não há nada de democracia, porque deixam milhares de mulheres no esquecimento (LACERDA et all, 2018, p. 95 e 98)

Veja-se como a teoria de Honneth amolda-se ao discurso. A autora utiliza o

termo “reconhecimento”, postulando o direito de ser lembrada como integrante da

formação de vontade na esfera discursiva (“porque nós, domésticas, também votamos”).

Ela reivindica reconhecimento por ter consciência de que produz e de que é um ser capaz

de integrar a sociedade de forma racional e de contribuir para a formação coletiva da

vontade.

A referida carta dispunha:

Exmos.Srs. Deputados Federais e Senadores Constituintes (...) Somos a categoria mais numerosa de mulheres que trabalham neste país, cerca de 1⁄4 (um quarto) da mão-de-obra feminina, segundo os dados do V Congresso Nacional de Empregadas Domésticas, de janeiro de 1985. Fala-se muito que os trabalhadores não produzem lucro, como se lucro fosse algo que se expressasse, apenas e tão somente, em forma monetária. Nós produzimos saúde, limpeza, boa alimentação e segurança para milhões de pessoas. Nós, sem termos acesso à instrução e cultura, em muitos casos, garantimos a educação dos filhos dos patrões. Queremos ser reconhecidos como categoria profissional de trabalhadores domésticos e termos direitos de sindicalização, com autonomia sindical. Reivindicamos o salário-mínimo real, jornada de 40 (quarenta) horas semanais, descanso semanal remunerado, 13o salário, estabilidade após 10 (dez) anos no emprego ou FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e demais direitos trabalhistas consolidados. Extensão, de forma plena, aos trabalhadores domésticos, dos direitos previdenciários consolidados. Proibição da exploração do trabalho do menor

25 Atualmente, o partido se denomina Democratas

106

com pretexto de criação e educação. Que o menor seja respeitado em sua integridade física, moral e mental. Entendemos que toda pessoa que exerce trabalho remunerado e vive desse trabalho é trabalhador e consequentemente, está submetido às leis trabalhistas e previdenciárias consolidadas. Como cidadãs e cidadãos que somos, uma vez que exercemos o direito de cidadania, através do voto direto, queremos nossos direitos assegurados na nova Constituição” (RAMOS, 2018, p. 61).

Importante destacar que o tom da carta, no mesmo sentido do discurso, é de

reivindicação de justiça, e não de compaixão, solidariedade ou “tratamento humanitário”.

Isso se contrapõe justamente ao discurso parlamentar em vigor até então, que se

compadecia da situação das empregadas, mas sempre colocava o atendimento de suas

reivindicações como questões de humanidade, o que, em última análise, seria a concessão

de um favor. É patente, portanto, a recusa do tom paternalista. Merece atenção, também,

o questionamento a respeito da finalidade econômica/lucrativa do trabalho doméstico,

que foi e é objeto de discussão no âmbito do movimento feminista. O tema do trabalho

infantil também foi abordado de maneira incisiva, demonstrando entendimento no sentido

de ser incabível o pretexto de “criar” crianças pobres para usufruir dos seus serviços.

Apesar disso, foram comuns os discursos de parlamentares mencionado as

empregadas como pessoas “quase da família”:

“Como se fosse da família”, portanto, não parece ser exatamente uma escusa às exigências que estavam sendo feitas pelas trabalhadoras domésticas, mas uma espécie de álibi para se desresponsabilizar da condição de vulnerabilidade generalizada a que elas estavam submetidas. Ao argumentar que fazem as mencionadas concessões generosas àquelas que prestam serviço em suas casas, tentam deslocar o debate para uma questão pessoal, desonerando a dimensão de disputa de poder que a permeia. (RAMOS, 2018, p. 75/76)

A constituinte possuía uma comissão de sistematização, responsável por

receber os anteprojetos das comissões temáticas e elaborar o anteprojeto base, ao qual

qualquer constituinte poderia propor emendas. Depois de aprovado preliminarmente o

anteprojeto, ficaria novamente em discussão no plenário por 40 dias, sendo que nos 30

primeiros poderiam ser apresentadas novas emendas, inclusive populares (PILATTI,

2018). Nessa comissão de sistematização, a atuação de parlamentares mais

conservadores apresentou emendas retirando do texto a concessão de direitos às

trabalhadoras domésticas. Numa tentativa de não perder tudo, a deputada Benedita da

Silva negociou a permanência de alguns direitos. (LACERDA et al, 2008)

107

A Constituição, em 1988, estendeu às domésticas mais alguns direitos, porém

elas continuaram compondo uma categoria “especial”, excluída, por exemplo, das

determinações atinentes à jornada. De 34 diretos assegurados à classe trabalhadora,

somente nove foram estendidos, também, às domésticas (BRASIL, 1988).

Após a Constituição, a lei dos domésticos sofreu algumas alterações ao longo

dos anos, tornando facultativa a inclusão da trabalhadora no FGTS (e consequentemente

também o acesso ao seguro-desemprego) e concedendo estabilidade provisória à

empregada gestante.

Em 1991, a categoria foi incluída na Lei n° 8.212/91, sendo-lhes assegurados

diversos benefícios previdenciários.

Por fim, através da Emenda Constitucional 72/2013 foram estendidos outros

direitos, como a limitação da jornada de trabalho, reconhecimento das convenções e

acordos coletivos, dentre muitos outros, mas ainda subsistiram algumas desigualdades,

não havendo previsão para pagamento de adicional de insalubridade, periculosidade e

penosidade, piso salarial proporcional à extensão e complexidade do trabalho, jornada

para turnos de revezamentos (que poderia ser aplicada a cuidadores) e proibição de

distinção quanto a trabalho manual, técnico e intelectual. A Emenda Constitucional teve

grande impacto midiático, sendo chamada, por alguns, de “nova abolição”. Por outro

lado, especulou-se que elevaria os custos para os empregadores e poderia redundar em

demissões e informalidade, sendo ressaltada, também, a dificuldade de fiscalização da

jornada (BRASIL, 1991; BRASIL, 2013).

Em 2015 foi publicada a lei complementar n. 150, de 01.06.2015, que

passou a ser o novo regulamento do serviço doméstico no país. Essa lei pôs fim à

controvérsia judicial da distinção entre empregada e diarista, firmando, de modo

pragmático (dir-se-á, também, aleatório) que só terá vínculo a empregada que trabalhar

na mesma residência por mais de dois dias na semana. Traz disposições sobre horas

extras, adicional noturno, e diversos outros direitos, regulamentando o que fora fixado

na Constituição.

Em fevereiro de 2018, o Brasil ratificou a Convenção 189 da OIT, sobre

trabalho doméstico, aprovada pelo decreto n. 172, de 2017, que dispõe, dentre outros

itens, sobre a proteção aos direitos humanos dos trabalhadores domésticos, liberdade de

associação e liberdade sindical, eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou

obrigatório, erradicação efetiva do trabalho infantil, eliminação de discriminação em

matéria de emprego e ocupação, condições equitativas de emprego, condições de trabalho

108

decentes, respeito à privacidade para aqueles que residem no emprego, informações sobre

as condições de emprego e preferência com contrato escrito, com disposição especial para

o caso dos trabalhadores migrantes, além de garantir inúmeros outros direitos (BRASIL,

2017).

4.5. Trabalho digno e trabalho decente

A organização internacional do Trabalho – OIT tem se dedicado à promoção

do trabalho decente no mundo. Em 2013, a entidade propôs a adoção de uma “agenda do

trabalho decente”, cujo objetivo era fomentar nos países a adoção de políticas públicas

para efetivação do pleno emprego em condições dignas. As principais frentes para se

estabelecer um trabalho decente são a fixação de critérios mínimos, ou padrões no que

diz respeito a remuneração, liberdade de contratação e desenvolvimento das atividades,

segurança, fim do trabalho infantil, promoção de vida digna para o que vivem do trabalho,

incluindo ainda uma agenda de não-discriminação (PRONI, 2013; PRONI e ROCHA,

2010).

Um trabalho decente implica, conforme a proposição da OIT, não apenas ter um emprego de qualidade, mas também a existência de um marco regulatório da atividade laboral e da relação de trabalho. Implica, ademais, gozar de adequados níveis de proteção frente às adversidades (acidentes e enfermidades) e durante a velhice. Implica, ainda, o direito e a possibilidade de representar ou se sentir representado e, desse modo, participar em processos de diálogo social não só́ em nível microeconômico (a empresa) como também em âmbito municipal, estadual e nacional. (PRONI E ROCHA, 2010, p. 14)

O trabalho decente, nos termos dispostos pela OIT, articula-se com o trabalho

digno. Mas o que é um trabalho digno? Tem o mesmo significado de trabalho decente?

Há uma longa discussão sobre o próprio conceito de “dignidade”, não cabendo, nos

limites desta pesquisa, investigações filosóficas profundas sobre o tema, de modo que de

antemão será adotada a concepção de Gosdal (2006), para quem a dignidade é uma

construção histórica, vinculada ao pensamento da modernidade e ao surgimento do

trabalho sob a forma capitalista. Trata-se de uma categoria aberta, de caráter dinâmico,

permanentemente atualizada. (GOSDAL, 2006).

Ainda segundo Gosdal (2006), a dignidade, em conformidade com um

enfoque trabalhista, pode ser entendida a partir da noção de trabalho decente da OIT.

Nesse mesmo sentido, Proni e Rocha (2010) dispõem que a dignidade está no cerne da

agenda de trabalho decente da OIT.

109

Se tanto trabalho decente quanto trabalho digno encontram-se entrelaçados

na agenda da OIT, percebe-se que o trabalho decente está mais assentado em condições

materiais, tais como remuneração, jornada e segurança, enquanto o trabalho digno

encontra-se mais associado à noção de reconhecimento social, a uma comunidade de

valores morais. Assim, a noção de reconhecimento possui um papel importante na

articulação entre as categorias trabalho decente e trabalho digno (ROSENFIELD e

PAULI, 2012).

É possível, pois, inserir o trabalho, simultaneamente, na esfera do direito e da solidariedade social. A noção de reconhecimento é capaz de alçar o trabalho ao ponto de cruzamento entre as noções de cidadania e de dignidade, afeita, como já́ mencionado, à noção de direitos humanos (ROSENFIELD e PAULI, 2012, p. 325)

Com base nesse aporte teórico, surge o questionamento: o trabalho doméstico

é um trabalho decente? É um trabalho digno?

Em 2008 a OIT tomou a decisão de incluir na agenda da 99ª sessão da

Conferência Internacional do Trabalho a elaboração de normas para o trabalho doméstico.

A conferência ocorreu em 2010, e em 2011 a OIT aprovou a Convenção n. 189, em

2011, ratificada pelo Brasil por força do Decreto legislativo 172/2017, e depositada no

escritório da organização no ano de 2018 (ILO, 2018).

A adoção pelo Brasil da Convenção 198 é bastante recente, e há, no geral,

compatibilidade entre seu texto e a legislação brasileira. Todavia, como afirmaram

Gomes e Tortell (2015), há uma grande dissonância prática entre a Convenção e a

realidade brasileira, na qual se vê muita informalidade e a prática do trabalho doméstico

infantil. Outro ponto relevante diz respeito às dificuldades de fiscalização do trabalho

doméstico.

Existe também um grande déficit no quesito saúde e segurança do trabalho.

Para Supiot (2016), o trabalhador, no exercício de suas atividades, arrisca a sua

integridade física, e foi para proteger essa integridade que o direito do trabalho se

constituiu. No caso do serviço doméstico, essa proteção é incompleta e falha. Como

alertam Gomes e Tortell (2015, p. 155), “o trabalho doméstico por ter uma residência

como o local de trabalho é erroneamente visto como uma forma segura de trabalho”.

Existem, todavia, riscos químicos, físicos e por vezes biológicos, e não há qualquer

regulamentação atinente à matéria, com análise dos riscos e meios de eliminá-los.

110

Há uma romantização do cotidiano doméstico, tido como local seguro e isento

de riscos. Entretanto, isso não se coaduna com a realidade, como se vê na conclusão de

pesquisa específica sobre o tema:

Conclui-se que as empregadas domésticas estão expostas a diversos riscos durante suas atividades laborais, tais como: queda, morte, choque elétrico, fraturas, lesões, cortes, problemas posturais, luxações, dermatites de contato, queimaduras, dores de cabeça, estresse, danos à audição, entre outros. Em relação ao perfil destas profissionais, conclui-se que a maior parte encontra-se em uma faixa etária de 40-50 anos, com baixo nível de escolaridade, mais da metade já́ sofreram acidentes de trabalho, uma grande porcentagem delas nunca recebeu treinamentos sobre segurança do trabalho e consideram-se estressadas. De forma a evitar a ocorrência de acidentes recomenda-se que as trabalhadoras passem por um curso de capacitação em saúde e segurança do trabalho, onde possam adquirir conhecimento dos riscos a que estão expostas e o modo de como preveni-los. (BRASIL, 2014).

A naturalização alcança não só o ambiente, como também a própria

atividade, inclusive entre as trabalhadoras.

De um modo geral, as condições materiais para o trabalho decente encontram-

se nas normas, com algumas exceções, conforme visto no tópico anterior. Mas a falta de

políticas públicas e de interesse na concretização dos direitos é um óbice ao atendimento

dos requisitos previstos na norma.

No que diz respeito ao aspecto do reconhecimento vinculado à dignidade,

Lhuilier (2014, p. 16) aponta a existência de uma divisão moral do trabalho que cria um

campo de trabalho que ele denomina de “sujo”. Essa divisão produz uma “escala de

desejabilidade moral e psicológica das profissões e das atividades”. Essa escala valora as

profissões, destacando as privilegiadas das estigmatizadas ou desconhecidas.

Os julgamentos de valor sobre determinado trabalho contaminam também a pessoa que o exerce. E os julgamentos dos outros pesam sobre a própria autoimagem. As profissões que se encontram na parte de baixo da escala moral do trabalho são as que condensam o "trabalho sujo", ou seja, tarefas física ou simbolicamente nojentas, humilhantes, degradantes, tarefas que são sinônimo de transgressão dos valores morais. É o caso, por exemplo, das profissões ligadas ao lixo, à faxina, das profissões ligadas à ordem pública e à repressão, das profissões que lidam com a morte, a loucura, a violência, a velhice, a marginalidade, a deficiência etc. Trata-se de profissões ou tarefas que têm por objeto o negativo psicossocial (Lhuilier, 2009), ou seja, aquilo que é rejeitado e fica nos bastidores. Essa rejeição é sinônimo de clivagem e de projeção a serviço da depuração, das tentativas de eliminar o negativo. (LHUILIER, 2014, p. 16).

O trabalho doméstico encontra-se enquadrado como trabalho “sujo”,

indesejável, o que acarreta a conclusão de que está distante do reconhecimento social e,

via de consequência, da ideia de dignidade que se encontra presente nas normas da OIT.

111

A ausência de reconhecimento no plano da solidariedade será abordada no tópico

seguinte.

4.6 Reconhecimento no plano da solidariedade: da falta de estima social às lutas

e resistências através dos novos espaços discursivos

Portanto, posto de lado, por razões evidentes, o cri-criança, passemos ao cri-criada. Delas podemos falar à vontade porque não são sindicalizadas, nem catalogadas, nem alfabetizadas, fato indiscutivelmente importante para a segurança das patroas. (ALMEIDA, 1969, p. 13). O risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (...) , que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa. (GONZALEZ, 2020, p. 78).

Os trechos acima transcritos ilustram o caminho a percorrer neste tópico,

mostrando inicialmente o discurso que dominava o mercado editorial, proferido pelos

empregadores, a imprensa e a mídia em geral, desqualificando e silenciando empregadas

domésticas.

Ao longo do tempo, tal discurso veio sendo objeto de resistências,

culminando com as trabalhadoras falando por si próprias, denunciando a ausência de

direitos e a falta de reconhecimento, tanto no plano jurídico quanto no da solidariedade.

No momento em que Gonzalez afirma que “o lixo vai falar, e numa boa”, ela se refere a

essa virada, proporcionada sobretudo pelo movimento negro, ensejando condições para o

advento de uma época na qual quem antes era silenciado passa a ter voz.

Desde o século XIX as empregadas eram tidas como integrantes de um grupo

social incapaz de contribuir para a práxis comum por outro meio que não o trabalho

braçal, e costumavam ser consideradas um mal necessário. A seguir, no âmbito de um

processo que pretendia “modernizar” a sociedade e a família, já adentrando no século XX

e perdurando por longos anos, a dona de casa foi chamada a assumir a direção do lar e a

criação dos filhos, sempre com o auxílio de uma trabalhadora doméstica, que ela deveria

instruir e comandar. No século XX foram muitos os manuais para as noivas ou mulheres

casadas, além de crônicas, dicas “femininas” em jornais, com o objetivo de “domar” as

empregadas, que permaneciam sendo um problema na vida da família, ao mesmo tempo

em que eram totalmente necessárias, inclusive porque a mulher moderna não poderia

renunciar a seu papel civilizador em prol da lavagem da louça ou do banheiro

(RONCADOR, 2008).

112

Dentre esses manuais, desponta o de Tania Kaufmann, intitulado “A aventura

de ser dona de casa”:

Ocorreu-nos que nossa experiência de trinta e cinco anos de “luta” com empregadas poderia ser útil às jovens donas-de-casa que se iniciam e àquelas que, mesmo experientes, se defrontam frequentemente com dificuldades domésticas, permanecendo escravizadas ao problema-empregada, sem tempo para viver. Fala-se que a classe de empregadas está em extinção e que brevemente não poderemos contar com seu auxílio, de todo, mas em criança nós já ouvíamos falar disso, que era preciso aprender todas as tarefas domésticas, pois no futuro não haveria mais quem as fizesse, as empregadas iam acabar ( o mundo também sempre esteve para acabar...) No entanto aí estão elas, as empregadas, muitas vezes longe de corresponder ao nosso ideal de eficiência, mas livrando-nos de tarefas extenuantes e monótonas, e permitindo-nos trabalhar em ocupações rendosas, ter mais tempo para cuidar dos filhos, estudar, ler, ajudar o próximo – ou mesmo descansar, que “ninguém é de ferro”... E, a não ser que se modifique a atual estrutura socioeconômica, parece-nos que poderemos contar com o auxílio de empregadas, por muito tempo, ainda. (KAUFMAN, 1975, p. 19 e 20)

A ideia de uma “classe incômoda” aparece nitidamente no texto. A

empregada “escraviza” a patroa com problemas domésticos, sem lhe dar tempo para

viver. Mas ao mesmo tempo ter uma empregada pode proporcionar à patroa tempo para

diversas atividades, dentre as quais ajudar o próximo. A pergunta que se impõe é: quem

seria esse “próximo”? A própria empregada poderia sê-lo?

Kaufman reconhece que a “atual estrutura socioeconômica”, ou seja, a

situação de desigualdade que obriga uns a se sujeitarem a outros, é requisito para que as

trabalhadoras domésticas existam. Em outro manual, Inez Barros de Almeida afirma, de

maneira bem menos sutil, que as donas de casa estão “protegidas” pelo analfabetismo e

pela pobreza, dentre outros males, pois essas são condições que sempre as permitirão

desfrutar de empregadas. Ela assegura que é na relação empregada-patroa que repousa o

“fundamento da família brasileira”, e confessa-se apavorada por situações como a dos

países industrializados, onde “não existem patroas porque não existem empregadas”

(ALMEIDA, 1969, p. 17)

O manual de Kaufmann busca tratar o assunto com “humor”. Ela dá conselhos

sobre o relacionamento, indicando que se deve tratar bem a empregada, elogiar, mas

nunca desenvolver amizade íntima, pois isso irá diminuir a autoridade. Recomenda,

também, a não deixar que ela veja o preço dos produtos que a patroa compra, para não

desenvolver sentimentos de inveja, humilhação ou revolta. E segue fornecendo diversas

113

táticas de manipulação, fazendo jus à ideia inicial do manual, de ajudar as patroas na

“luta” contra a doméstica.

É claro que não vamos esperar gratidão em troca do que fizemos pelo bem da empregada. Fazemo-lo por humanidade, por espírito de solidariedade, por impulso de ajudar, porque é mais compensador ser bom do que ser mau, por simpatia e, finalmente, por conveniência nossa, para conservar a empregada no nosso serviço. (KAUFMANN, 1975, p. 67).

O manual instrumentaliza a “simpatia”, a preocupação, a afetividade e a

relação entre patroa e empregada com o propósito de mantê-la no serviço, enquanto for

conveniente. No capítulo VIII, surge a sempre presente preocupação com o furto,

aconselhando a dona de casa que só faça compras aos poucos, a menos que tenha uma

despensa trancada a chave. Menciona, ainda, a tática utilizada por uma amiga:

Uma médica amiga contou-me que ao admitir uma empregada dizia-lhe, logo de início, que o delegado de Polícia do Distrito era seu primo, sempre disposto a ajudá-la em qualquer embaraço que surgisse...Dizia isso a todas as novas empregadas e, segundo me garantiu, o truque dava ótimo resultado, pois sua conta de perdas & danos estava sempre insignificante. (KAUFMANN, 2015, p. 125).

Como se vê, a polícia continuava sendo um recurso “preventivo” no trato com

a empregada, atualizando o que vinha disposto nas antigas Posturas Municipais.

A fala em tom desqualificador também esteve presente na mídia. Não é objeto

deste trabalho examinar de forma minuciosa as diversas representações que surgem na

mídia em geral mas apenas, por amostragem, fundamentar duas observações:

1) as empregadas domésticas eram faladas, eram objeto de narrativas e

discursos. Eram problematizadas e inferiorizadas. Suportadas em razão da

necessidade. Sempre que elas estavam prestes a obter alguma conquista, o

discurso entre os patrões, que repercutia em jornais e era encampado por

legisladores e pelo próprio governo, dava-se no sentido de que o avanço nos

direitos iria representar diminuição nos postos de trabalho. Além disso, as

trabalhadoras já tinham vários benefícios que não eram estendidos aos demais

empregados, tais como moradia, alimentação, itens de higiene pessoal etc.

Postular direitos era considerado uma ousadia.

2) seu modo de ser e de viver era tido como necessariamente inferior, e a

realização de qualquer ato que momentaneamente as igualasse às patroas (ir

ao salão de beleza, por exemplo) era tido como afronta.

114

Um momento em especial foi bastante marcado por tais discursos: o da

aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n. 72, de 2013, conhecida como “PEC

das domésticas”. Dentre os vários enunciados surgidos nessa época, destaca-se o que

afirmava que o serviço doméstico “não é um trabalho como qualquer outro”, o que

“impediria um processo de universalização das predicações que determinam a

designação trabalho”. (BRASIL, 2013; FONTANA, 2017, p. 128).

Na mesma época, conforme narra Fontana (2017), surgiram reportagens com

a ministra Delaíde Mirante Arantes, integrante do Tribunal Superior do Trabalho, que já

havia exercido a função de empregada doméstica, enquadrando a sua história como um

caso de sucesso e superação, organizada no formato de “trajetória de herói”:

(...) estes processos narrativos projetam imaginariamente um efeito alegórico sobre a figura da trabalhadora doméstica: indistinguem-se os traços singulares dos percursos individuais para significar emblematicamente o caminho da “ascensão social”, com o consequente apagamento da luta política, da organização coletiva, das políticas públicas e dos avanços na universalização dos direitos trabalhistas. (FONTANA, 2017 p. 137)

Segundo Fontana (2017), foi conferido pouco espaço para a fala das

trabalhadoras. Quando elas apareciam, eram “emolduradas" pelas edições das

reportagens.

Nesse mesmo ano, no mês de agosto, a jornalista norte-rio-grandense

Micheline Borges publicou em uma página de rede social um comentário sobre as

médicas cubanas que estavam no Brasil a serviço do programa “Mais médicos”26. Ela

disse que as médicas tinham “cara de empregada doméstica”, e não de médicas. Com base

na “cara”, ela questionou até mesmo se seriam médicas e ainda exclamou: “coitada da

população”. (DINIZ, 2014, p. 85; CESTARI; FONTANA, 2014, p. 168).

O tema “cara de empregada doméstica” merece algumas considerações. A

diferenciação entre patroas e empregadas é uma preocupação antiga, que atravessa

diversos âmbitos, como o do uso do uniforme, a segregação espacial, padrão do

mobiliário das dependências (FORTY, 2007). Qual seria, então, a diferença entre a

“cara” de uma médica e a de uma empregada?

26 O Programa Mais Médicos (PMM) foi criado pelo governo federal, com participação de estados e municípios, com o objetivo de melhorar e ampliar o atendimento dispensado aos usuários pelo Sistema único de Saúde – SUS. Uma das formas de atuação é mediante o envio de profissionais para regiões de escassez ou mesmo ausência de médicos. Médicos cubanos participaram desse programa em razão de acordo internacional entre Brasil e a Organização Pan-Americana da Saúde. (BRASIL. GOVERNO FEDERAL. Programa Mais Médicos. Disponível em: http://maismedicos.gov.br/conheca-programa. Acesso em: 25 jan. 2021)

115

“Cara de empregada doméstico é metáfora de quê? Se retomamos a tradição brasileira de anúncios de emprego que exigem “boa aparência”, denunciada insistentemente pelo movimento de mulheres negras, nos aproximaremos dos sentidos de feias, negros, pobres para as que não se encaixam nesses anúncios que sem explicitar os critérios raciais de seleção para suas vagas resistem a contratação de trabalhadoras negras. Poderíamos também retomar uma outra expressão corrente usada para qualificar certos espaços da cidade - os chamados “lugares de gente bonita”. Se nos perguntamos quem são as pessoas bonitas, novamente veremos o que os critérios para avaliação estética dizem a respeito das posições sociais e raciais. Essa divisão da sociedade e do direito a circular por seus espaços e a ocupar determinados postos de trabalho, que opõe gente bonita, de boa aparência, com postura, capazes, bem formados, bem vestidos a gente feia, burra, sem postura, descabelados, mal vestidos tem raízes profundas na história brasileira, que produziu o discurso de democracia racial, por meio do qual silencia e dissimula a violência das relações de exploração econômica e de exclusão racial e social que dão uma cara ao Brasil. (CESTARI; FONTANA, 2014, p. 176).

Em julho de 2016, todavia, aconteceu um fato que inverteu essa lógica da

empregada doméstica como objeto de narrações. A professora de história e rapper Preta-

Rara criou uma página na rede social Facebook chamada “Eu, empregada doméstica”, na

qual postou um relato de sua experiência nessa atividade e encorajou outras pessoas a

fazê-lo, utilizando aquele mesmo canal. No mesmo dia, a postagem disseminou-se, e ela

passou a receber inúmeros relatos. Surgiram notícias e reportagens sobre a página. Preta-

Rara concedeu entrevistas, inclusive internacionais, proferiu palestras e, em 2019,

publicou parte dos relatos em um livro, pela editora Letramento, que leva o mesmo nome

da página (PRETA-RARA, 2019). O livro tem início com a história de sua avó, depois

de sua mãe e em seguida a da própria Preta-Rara, em um encadeamento repleto de sentido,

mostrando como ela quebrou a corrente que a atava a um destino já seguido por duas

gerações.

Foi realizada uma análise do livro, com base no seguinte percurso:

inicialmente uma leitura completa, para captar o tom das narrativas, identificar

semelhanças e diferenciações. Em seguida, utilizando o dispositivo “kindle”, foi efetuada

uma contagem de palavras que foram vistas com frequência. Essa primeira leitura revelou

que algumas das histórias foram contadas por filhas, filhos e netas de mulheres que

exerceram ou exerciam naquele momento a profissão. Outros relatos foram feitos por

terceiros, pessoas que conheciam empregadas domésticas mas não tinham situação de

parentesco, haviam escutado delas as histórias, ou de alguma forma haviam presenciado

os fatos. Foi identificada a forte presença do vocábulo “humilhação”, e em menor grau

“abuso”. Como principais fontes de humilhação (que podem configurar também, a prática

de crimes e/ou atos ilícitos, passíveis de indenização), foram apontados o racismo, o

116

assédio sexual e as ofensas morais, inclusive com acusações de furtos e/ou utilização de

“testes” de honestidade, como o clássico ato de deixar dinheiro à vista da empregada para

ver se ela se apropriava ou não.

Foi bastante mencionado, também, o trabalho infantil (tanto por filhas/filhos

e netas, quanto em primeira pessoa). A palavra “escrava” foi bastante utilizada. Outra

presença marcante foi a questão alimentar: o não poder se alimentar com a comida da

casa, o ter que se alimentar em horário inadequado, em locais inadequados, porque

somente era permitido fazer refeição depois de todos; o alimentar-se com sobras e/ou

alimentos estragados, as repreensões por ousar comer algo que lhe era vedado, e mesmo

acusações de comer sem que a trabalhadora tivesse praticado tal ato. Outro elemento de

destaque é a marcação de uma posição diferenciada, o desestímulo à formação da

trabalhadora e/ou de seus filhos, sendo considerada uma pretensão infundada, por

exemplo, a de um filho de empregada doméstica cursar uma universidade. O uso do

banheiro também aparece como questão relevante, com a proibição absoluta de utilizar

o da residência. Essa separação era praticada também, muitas vezes, em relação aos

utensílios de cozinha. “Humilhação”, “humilhada” e “humilhando” aparecem 87 vezes

ao longo dos relatos. “Escrava” tem 15 ocorrências, e “escravizada” tem 3. “Lixo” surge

em quatro ocasiões para significar como a pessoa era tratada ou como se sentia.

Atualmente, Preta-Rara segue com perfil em redes sociais, como facebook e

Instagram, denunciando condições abusivas de trabalho e de ofertas de emprego, sendo

um canal aberto para a voz das empregadas domésticas.

Mas elas ainda querem falar mais. Em 2019, o ilustrador Leandro Assis, em

parceria com a escritora Triscila Oliveira, criou a série em quadrinhos “Os Santos”, com

a primeira tirinha publicada no Instagram em 05 de dezembro de 2019, e um dos

destaques da trama é o tratamento humilhante dispensado às empregadas domésticas. O

perfil de Leandro, onde as tirinhas são publicadas, foi ganhando visibilidade, e foi criada

mais uma série, “Confinada”, com a primeira tirinha publicada em 11 de abril de 2020,

tendo seu foco na relação entre Fran, uma rica influenciadora digital, e Ju, sua empregada

doméstica, que fica sozinha com ela ao longo da quarentena decorrente da Covid 19. Esse

primeiro episódio, no dia 14 de maio de 2021, contava com quase cinco mil comentários

de usuários da rede Instagram. Ao longo da história, Fran tenta passar para seu público a

imagem de uma pessoa requintada, que cultiva hábitos saudáveis e transmite mensagens

positivas. Nos bastidores, Ju é tratada com menosprezo e passa por diversas dificuldades.

Ela, todavia, em nenhum momento se mostra passiva ou submissa a seu suposto destino,

117

embora suporte algumas situações adversas e privações. Sua imagem não é a da

empregada doméstica inculta e submissa. Ela se afasta tanto da imagem da “mãe preta”

quanto da “mulata”, figurando como heroína da trama.

Deste modo, atualmente uma boa parte da luta visível pelo reconhecimento

está sendo travada em um novo espaço discursivo, o espaço da internet. Preta-Rara,

Leandro Assis e Triscila constituem exemplos de autores de contra narrativas, que

enfrentam as visões coloniais, racistas e elitistas a respeito das empregadas domésticas,

abrindo espaço para que suas vozes sejam ouvidas.

Nessa luta, o discurso oficial permanece sendo o da segregação, o que pode

ser ilustrado por uma cena de 2020, com o ministro da economia indignado com a

empregada doméstica que viaja para a Disney (LOPES, 2020).

Os riscos dessa disputa que assume ares identitários são bastante discutidos.

Para Fontana (2017), ao contrário do que ocorre no âmbito das entidades associativas e

sindicais, essa luta privilegia a enunciação de uma identidade e a legitimação de um lugar

de fala, em detrimento da busca por igualdade jurídica e da própria dimensão política,

histórica e social das relações. Embora considere que esse seja um movimento necessário

por trazer para o debate as práticas de exploração e humilhação, para Fontana (2017) há

o que ela chama de paradoxo discursivo:

(...) esse é o paradoxo discursivo que atravessa as políticas de reconhecimento, ao transformar relações de classe, gênero e segregação racial em relações morais intersubjetivas entre indivíduos humanos, as lutas pelo reconhecimento podem deslizar inadvertidamente para o apaziguamento do conflito, dadas as condições de produção da formação social brasileira, que ainda suporta simbolicamente os efeitos do mito da democracia racial e das relações cordiais. (FONTANA, 2017, p. 155).

A posição de Fontana, acima transcrita, coaduna-se com muitas das críticas

às teorias do reconhecimento, que parecem trazer implícita uma ameaça de abandono da

arena institucional e das lutas por direitos materiais.

Entretanto, essas lutas no campo moral exercem grande influência sobre o

direito. Há uma relação dialética entre reconhecimento social e jurídico. Ao longo de

muito tempo, as narrativas predominantes foram construídas pelos empregadores, e foram

muito importantes para impedir o reconhecimento jurídico da profissão.

No próximo tópico serão analisados alguns fatores e argumentos discursivos

que atuaram como óbices ao reconhecimento.

118

4.7 . Óbices ao reconhecimento

Os principais obstáculos ao reconhecimento jurídico do trabalho doméstico

foram e permanecem sendo os seguintes:

a) não ser “lucrativo”;

b) ter os recursos para seu pagamento extraídos do orçamento doméstico

(“família não é empresa”);

c) ser realizado por pessoa que se integra (quase) à família, participando de

sua intimidade, gerando relações de afeto ambíguas;

d) ser realizado em um espaço que, além de privado, é residencial.

Todavia, a análise da história do instituto permite-nos identificar o não dito,

que se esconde por trás do caráter afetivo e cordial do discurso:

e) ser um trabalho braçal, socialmente desvalorizado, com uma clara relação

de continuidade da escravidão;

f) ser um trabalho eminentemente feminino, que não implica a existência de

uma formação específica, estando muito associado a um “saber-fazer” que se espera das

mulheres em geral (BLETIÈRE, 2015).

g) ser desempenhado, em sua maioria, por mulheres negras, pobres e

periféricas.

Já foram discutidos, ao longo desta dissertação, aspectos de gênero, classe,

raça, desvalorização do trabalho braçal e valor econômico do trabalho doméstico e de

cuidados, de modo que neste momento serão objeto de análise mais específica a questão

do espaço doméstico, das ambiguidades e afetividades.

4.7.1. Um espaço híbrido

Bletiére (2015, p. 144) pontua que o trabalho doméstico se desenvolve no que

ela chama de “espaço mestiço”, que para o empregador é o lar, e para a trabalhadora é o

local de desenvolvimento de suas atividades laborais. Nesse espaço híbrido, misturam-se

relações de trabalho com relações íntimas, dando ensejo a identificação de novas formas

de reconhecimento, mas também de desrespeito. O fato de o trabalho se desenvolver nesse

ambiente gera duas consequências diversas, mas que constituem, ambas, entraves ao

reconhecimento: a dificuldade de fiscalização e o surgimento de relações de afeto e de

trocas.

119

A fiscalização constitui uma ação indispensável para coibir ilegalidades. No

âmbito do trabalho doméstico, ela se depara com uma aparente impossibilidade, em razão

do disposto na Constituição brasileira, artigo 5º, XI, que assegura a inviolabilidade do

domicílio. Uma primeira saída para esse impasse seria a realização de uma fiscalização

indireta, com envio de notificação para que o empregador compareça em dias e horários

determinados a fim de prestar esclarecimentos. Existem, todavia, situações nas quais

somente uma fiscalização direta poderá ser efetiva, como no caso de trabalho em

condições análogas à escravidão, ou ainda, trabalho infantil (BRASIL, 1988; COSTA e

GOMES, 2016).

Nesses casos, como afirmam Costa e Gomes (2016, p. 09), há necessidade de

sopesar tais valores, com base no princípio da proporcionalidade:

A família ao empregar uma trabalhadora doméstica transforma seu domicílio em um ambiente de trabalho. É esse o ato que justifica a atuação da fiscalização do trabalho. A inviolabilidade do domicílio será respeitada na maior medida possível, considerando-se meios alternativos à fiscalização direta. Porém, em casos extremos, como suspeita de trabalho forçado e trabalho infantil doméstico, faz-se necessária a ação imediata dos AFTS. Nesse contexto, a fiscalização direta no caso do trabalho infantil doméstico aparece como uma medida proporcional. (COSTA e GOMES, 2016, p 10).

A chave para dirimir a questão encontra-se na afirmação, acima transcrita, de

que o empregador transforma a sua residência em local de trabalho no momento da

contratação de uma trabalhadora doméstica. O espaço perde seu caráter meramente

privado. Caso deseje preservar a inviolabilidade absoluta, a solução é não contratar.

4.7.2. Afetos e ambiguidades

Sobre o tema dos afetos, a ambiguidade é uma marca das relações de trabalho

domésticas ainda presente na atualidade. Por um lado, são comuns situações nas quais se

formam laços, todavia tais laços são condicionados e limitados pela hierarquia e pelas

desigualdades entre patroa e empregada (BRITES, 2007). Para Kofes (2001), a

desigualdade se revela principalmente por meio das doações e dos favores que partem da

empregadora em direção à empregada, mas tal desigualdade não impede o surgimento de

embates e eventuais inversões de poder. Ela chama a atenção para o termo “amiga”,

comumente invocado pelas trabalhadoras para se referir às empregadoras com as quais

possuem maior interação, sendo que, em sua pesquisa, não encontrou empregadoras

120

utilizando esse termo. Com “amiga”, as empregadas se referiam a uma maior proximidade

social, tolerância em razão de certas necessidades de sua vida pessoal (exemplo: ter filhos

pequenos e precisar, por vezes, faltar), dando uma ideia de identidade entre mulheres. Às vezes, como já observei, as empregadas também concordam que o cálculo, que muitas patroas fazem, de que o salário real da empregada é de fato muito maior que seu salário nominal, considerando-se “casa, comida, roupas”. Também avaliam o acesso a bens fundamentais que, na nossa sociedade, é restrito a poucos: condições para comprar uma casa, um terreno, material de construção, acesso a atendimento médico mais bem qualificado, empréstimos financeiros, compras à prestação etc. (KOFES, 2001, p. 178)

As “facilidades” advindas dessa amizade, tais como acesso a crédito,

empréstimos pessoais e auxílios os mais diversos, e até mesmo a um tratamento mais

pessoalizado e afetuoso, constituem, muitas vezes, entraves à mobilização da categoria,

que se vê dividida entre as que têm “sorte”(por terem boas patroas) e as desprovidas de

sorte. A essa ideia de amizade corresponderia, do lado dos empregadores, o conceito de

“quase da família”.

A expressão “membro da família’ expressa um mecanismo ideológico fundamental nessa relação, mas não no sentido de que os agentes envolvidos estejam iludidos por um real falso. Talvez nenhuma das parceiras (polares) dessa interação acredite no que afirma essa frase, mas nesse caso não se trata de acreditar ou não. O efeito ideológico dessa afirmação , do ponto de vista da patroa, é que torna possível a aceitação de uma pessoa socialmente estranha dentro de casa, compartilhando o cotidiano da família. Trata-se de uma justificativa, em seus próprios termos, quase como uma estratégia de “efeito adequador”. Essa expressão, no que concerne à empregada, expressa outra estratégia, que é abrir vias de acesso que estruturalmente ainda lhe são fechadas. É justamente contra (e dialogando com) esta afirmação que se colocam as associações profissionais das empregadas domésticas. (KOFES, 2001, p. 179).

É preciso observar todavia, que se essas estratégias oferecem vantagens para

ambas as partes, é porque a sociedade é excludente e extremamente desigual. Se as

trabalhadoras domésticas tivessem acesso facilitado a crédito e a todos os direitos

trabalhistas, e se seu poder de compra fosse maior, tais “favores” perderiam sua razão de

ser.

A “amizade” e os presentes constituem também, muitas vezes, formas de

suprir o reconhecimento ausente nos âmbitos legal e social:

Na esfera do mercado laboral, a oferta de bens materiais é, frequentemente, utilizada como forma de substituição de regalias ou, até mesmo, dos próprios direitos das trabalhadoras. Assim, as “prendas” oferecidas às trabalhadoras domésticas acabam por ser, por vezes, um instrumento a favor do empregador na gestão da relação laboral. Um preço a pagar pela confiança. (BLETIÉRE, p.136)

121

Rodrigues (2020) questiona se utilizar o recurso de a trabalhadora ser “quase

da família” constitui de fato uma concepção ou uma estratégia discursiva, e afirma que

essa cordialidade fornece a regulação para um sentimento de gratidão, que se articula com

o consequente sentimento de dívida. A autora, em sua tese, analisa o discurso de

empregadoras, observando a ambiguidade em diversos momentos, quando ora a

empregada é tratada como “funcionária”, ora como “quase da família”, ora como “braço

direito”. Outra circunstância diga de nota é que a empregada é “incorporada” à família

sem que seja questionada quanto a esse desejo de supostamente pertencer, mas sem

pertencer de fato, inclusive porque ela tem seus próprios familiares, que não são objeto

dessa mesma integração. Pode carecer de repetição por ser óbvio, mas as condições de

vida de quem é “quase da família” são totalmente distintas de um membro efetivo da

família. Isso se encontra muito bem retratado na fala de uma trabalhadora doméstica

sindicalizada, reproduzida a seguir:

Aqui trago, em contraposição ao discurso da trabalhadora como sendo da própria família, o discurso de Lélia, integrante do Sindoméstica. Por várias vezes a ouvi contar às demais trabalhadoras que sempre que sua ex-empregadora lhe dizia que ela era “da família”, Lélia lhe respondia negativamente, afirmando em seguida que ela era da família “x” (dizendo seu próprio sobrenome) e que a empregadora era da família “y” (dizendo o sobrenome desta). Dizia-lhe ainda que se ela não participava das decisões familiares, não estava inclusa no plano de saúde da família nem no plano funerário, se não se alimentava na mesma mesa dos empregadores(as), não poderia ser da família – reiterando que a residência da empregadora se tratava de seu local de trabalho. Lélia contava que muitas vezes, por conta de seu discurso, era chamada de “atrevida” (de forma “divertida”) pela empregadora. Nesse sentido, romper com o “pacto de silêncio”, como diz Sales-Jr, é romper com a “cordialidade racial”, tratando-se de “atrevimento”. (RODRIGUES, 2019, p. 222-223)

Joaze Bernardino-Costa (2007), afirma que o discurso hegemônico, moldado

por autores como Gilberto Freyre, sempre ressaltou a integração e a harmonia, ocultando

desigualdades e iniquidades. Em razão disso, não é surpresa para o autor que as

interpretações acerca das relações entre patroas e empregadas sempre ressaltem a

harmonia entre elas.

A questão da afetividade entre empregadas e patroas é bastante complexa, e

no geral essa aproximação é desejada por ambas, pois umas criam expectativas de

proteção e de ganhos, e outras a expectativa da lealdade. Todavia, na maior parte dos

casos, a afetividade desaparece quando surge a necessidade de colocar a empregada “em

seu devido lugar”, com a patroa reassumindo o seu posto na hierarquia (NUNES 2013).

122

É sobre a luta pelo reconhecimento fora da ambiguidade do “quase da

família” que trata o tópico seguinte, abordando a questão das associações e sindicatos.

4.8 . Lutas por reconhecimento jurídico: associações e sindicatos.

A história do ativismo e da militância das empregadas domésticas é pouco

conhecida. Joaze Bernardino Costa decidiu contar essa história em sua tese de doutorado,

afirmando que seu foco nas empregadas domésticas sindicalizadas baseou-se em três

questões: a transformação que se opera na empregada sindicalizada, pois ela é

ressocializada, em um primeiro momento, em conformidade com os parâmetros de sua

empregadora, e no sindicato adquire novos valores, vendo-se entre iguais; a

sindicalização representa o rompimento do isolamento ao qual elas são submetidas pela

natureza e pelo local de trabalho; o sindicato promove uma reelaboração da relação entre

a trabalhadora e a empregadora, deixando de lado a visão paternalista. (BERNARDINO-

COSTA, 2015)

Existem atualmente cerca de 40 sindicatos de trabalhadoras domésticas no

país. Embora elas tenham começado a se organizar politicamente ainda na década de 30,

foi a partir da década de 60 que o movimento adquiriu contornos nacionais, impulsionado

por discussões suscitadas no âmbito do movimento negro. Em 1936 surgiu a primeira

associação de empregadas domésticas no país, Associação profissional dos domésticos

de Santos, através da liderança de Laudelina de Campos Melo, que já era militante do

movimento negro. Seu objetivo era obter o status jurídico de sindicato, e o grande

questionamento era a igualdade jurídica em relação às outras categorias de trabalhadores.

Em 1937, a associação foi fechada pelo regime estabelecido pelo Estado Novo, reabrindo

somente por ocasião da redemocratização (BERNARDINO-COSTA, 2015).

Em 1944 foi criada em São Paulo a casa de Santa Zita. Sua fundadora era

graduada em Serviço social e havia iniciado, quatro anos antes, uma espécie de prática

político-religiosa junto às domésticas. Em 1951, foi instalada a Congregação de Santa

Zita, que tinha objetivos ao mesmo tempo sociais e religiosos. Na definição de suas

atividades estava o oferecimento de formação profissional, lazer e catequese. A casa

servia também como intermediadora, fornecendo profissionais domésticas às famílias

(KOFES, 2001).

Da mesma forma, outras instituições e até secretarias de promoção social,

como a de Campinas, forneciam cursos e serviam como agências de emprego. Kofes

123

(2001) destaca que foi no curso oferecido pelo Mobral, com alcance em todo o território

brasileiro, que a formação da empregada doméstica apareceu com base contratual,

definida efetivamente como um trabalho.

Na década de 1960, a igreja católica, por meio da juventude operária, realizou

uma conferência nacional, o Primeiro Encontro Nacional de Jovens Empregadas

Domésticas do Rio de Janeiro. No ano seguinte, o Primeiro Congresso Regional, em

Recife, reuniu trabalhadoras também de outros estados. Como resultado dessa atuação da

juventude operária, surgiram associações de trabalhadoras domésticas pelo país

(BERNARDINO-COSTA, 2015). O sindicato das trabalhadoras domésticas do Recife

encontra-se bastante ligado, em suas origens, à Juventude operária católica.

Em maio de 1961, Laudelina, já residente em Campinas, fundou uma

associação de empregadas domésticas na cidade, a Associação Profissional Beneficente

das Empregadas Domésticas de Campinas, que tinha ligações com o movimento negro,

por meio do Teatro Experimental do Negro, tendo realizado diversas atividades culturais,

além da defesa dos interesses gerais das trabalhadoras. A associação foi fechada em 1964,

e a partir daí passou a atuar como uma entidade de caráter beneficente (MAEDA, 2021).

Bernardino-Costa transcreve uma carta anônima recebida por Laudelina, na qual o

subscritor afirma que as empregadas vestem-se melhor do que as patroas, as quais

precisam enfrentar o preço elevado dos alimentos e os baixos salários dos maridos, e

acrescenta:

Apesar dessa comodidade que as mesmas possuem, 90% são vaidosas, desobedientes, faltosas nos horários, humilhando com palavras irreverentes à mártir patroa que, por necessidade as suportam. Hoje, sem mesmo essa objetiva e altruística ideia sua, já elas têm até a petulância de dizer à patroa que lhe dê uma ou duas horas para irem ao cabeleireiro e ao manicure. (BERNARDINO-COSTA, 2015, p. 83 a 85)

A patroa, que para Kauffman era “escrava” da empregada, aqui aparece como

mártir. Percebe-se nesse discurso a indignação do subscritor com a possibilidade de uma

empregada doméstica utilizar seu tempo – que pertence à patroa – para ir a serviços que

lhe são “inadequados”, como cabeleireiro e manicure. O “atrevimento” da trabalhadora

doméstica é um item recorrente na revolta dos patrões.

Laudelina estendeu sua atuação a nível nacional, visitando o presidente da

república e o Ministro do Trabalho para expor as demandas da categoria. A associação,

todavia, teve um período de paralisação, a partir de 1968, retornando em 1979 e

formalizando as atividades em 1983. Após a reabertura, teve grande atuação, inclusive

124

junto à assembleia constituinte. E logo após a promulgação da Constituição, tornou-se

sindicato (BERNARDINO-COSTA, 2015).

Entre os anos de 1968 e 2011 foram realizados dez congressos nacionais de

trabalhadoras domésticas (BERNARDINO-COSTA, 2015; MAEDA, 2021). A partir da

década de 1980 último foram excluídas as reivindicações que tinham por base a

filantropia e o paternalismo, a fim de dar à reunião um caráter mais político, de busca da

construção de uma identidade de trabalhadora. Em tais congressos foram discutidas

questões pertinentes à previdência, aos direitos e condições de trabalho (KOFES, 2011).

Para obstar essa luta, foi criado em São Paulo, por uma advogada, um

sindicato de empregadores domésticos. A fundadora concedeu uma entrevista a um jornal

de Campinas em 30 de abril de 1989, valendo destacar parte desse discurso:

Somos empregadores, e não subalternos delas, das domésticas. Chega de obedecer às imposições das domésticas, fingirmos que não entendemos a arrogância, o despreparo, os abusos de todos os dias. O abandono do serviço, as faltas sem justo motivo, os atrasos diários, os assaltos à geladeira. A vida para nós, mulheres que lutamos nas demais profissões, está duríssima. Nós temos horário, regulamentos a cumprir. Por que somente elas estão com todos os direitos? Não terão deveres também? (KOFES, 2001, p. 345).

A análise revela que sua subscritora considera arrogante qualquer postura que

busque, não uma sobreposição, mas uma posição de igualdade. Assim, se uma empregada

doméstica reivindica seus direitos, é considerada “atrevida”, ingrata. Percebe-se franca

indignação com a pretensão delas a terem direitos; ora, se ela, mulher “que luta nas

demais profissões”, está com dificuldades, como então essas trabalhadoras podem querer

exigir alguma coisa?

Bernardino-Costa (2015) afirma que, até meados da década de 80, a luta das

empregadas era compreendida, inclusive no âmbito da igreja católica, como luta de

classes. Embora articulações envolvendo gênero e raça estivessem presentes, sobretudo

pela associação do quarto de empregada à senzala, a bandeira era a integração à classe

trabalhadora e a equiparação às demais categorias em termos de direitos. Uma meta a ser

alcançada pelas associações era a interação com a CUT. Quanto à integração com o

movimento feminista, consolidou-se na constituinte, quando as feministas encamparam

o projeto de lei das trabalhadoras domésticas. Entre 1985 e 1988 houve grande

mobilização entre elas, com idas frequentes ao congresso. Com a Constituição, muitos

direitos ainda foram deixados de lado, mas elas ganharam o direito à sindicalização.

125

No ano de 1985, houve o V Congresso Nacional das Trabalhadoras

domésticas em Olinda, no qual se elaboraram as principais reivindicações trabalhistas da

categoria. Há registro, também, de passeatas e manifestações públicas (BERNARDINO-

COSTA, 2015).

Um dos pontos comuns às campanhas era o pleito para que as trabalhadoras

morassem em suas próprias casas, e não com as patroas.

Em 1997 foi criada a Fenatrad - Federação Nacional das trabalhadoras

domésticas, que, segundo seu site, é uma associação composta por 22 sindicatos e mais

uma associação. As entidades filiadas à Fenatrad possuem sede nos estados do Acre,

Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba, Paraná, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do

Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. (FENATRAD – Federação

Nacional das trabalhadoras domésticas).

Segundo Bernardino-Costa (2015), a partir de 2001, do oitavo congresso

nacional das trabalhadoras domésticas, a gestão da federação tem buscado

reposicionamento de seus vínculos com os movimentos negro e feminista, embora sem

descuidar do relacionamento com o próprio movimento sindical. Passa a haver, também,

a busca de parcerias com atores internacionais, como a ONU mulheres, rede internacional

de trabalhadoras domésticas (International Domestic Work Network) e a própria

Organização Internacional do Trabalho.

O intuito da apresentação desse percurso histórico da atuação sindical foi

demonstrar que, nos termos prescritos por Axel Honneth, houve, ao longo do tempo, uma

luta por reconhecimento. As dificuldades impostas pela dinâmica da profissão eram

muitas: longas jornadas, baixos salários, isolamento social, ausência de espaços diários

de interlocução, bem como o fato de muitas morarem no próprio local de trabalho, o que

constituía um elemento de limitação à mobilidade. Ainda assim, houve mobilizações,

envios de projetos de lei, congressos, dentre outras ações.

Nesse sentido, o movimento sindical das empregadas domésticas representa

no Brasil um “movimento social de resistência à colonialidade do poder e reexistência

das trabalhadoras domésticas” (BERNARDINO-COSTA, 2015, p. 58), buscando não

somente o reconhecimento jurídico, mas também uma sociedade mais igualitária.

126

5 DIREITO DE AUSÊNCIAS. JURISPRUDÊNCIA DE EXCLUSÕES.

Boaventura de Sousa Santos afirma que não há uma única maneira de

produzir ausências, e sim várias. Ele trabalha com a “sociologia das ausências”, assim

nomeando a investigação que busca mostrar que aquilo que não existe é produzido

ativamente como não existente, como uma alternativa inválida, por ausente. Essa

investigação busca transformar “objetos impossíveis em objetos possíveis”. Dentre as

formas de produzir ausências, estão a classificação social, que naturaliza desigualdades e

hierarquias, e a lógica produtivista, baseada na produção capitalista, que forja a não

existência de muitos trabalhadores (SANTOS, 2010, p. 36). A não existência do trabalho

doméstico se constrói sobretudo com base nessas lógicas. Neste capítulo final, é utilizada

essa sociologia das ausências para falar, por meio da analogia, de um direito de ausências,

um direito alheio à interdisciplinaridade e à reflexão, forjado pela colonialidade do poder

e pelo androcentrismo.

Esse direito de ausências deu origem a uma jurisprudência de exclusões, que

se tornou o testemunho da marginalização dessas trabalhadoras, dispensadas durante a

gravidez, sem direito a estabilidade, trabalhando em jornadas ilimitadas, sem direito a

horas extras, sem prazo para pagamento da rescisão, dentre muitas outras situações.

O ponto de partida será uma crítica feminista epistemológica à própria ciência

e ao conhecimento, expondo os limites da suposta neutralidade acadêmica. A seguir, com

aporte nas teorias decoloniais e na interseccionalidade, será exposta a crítica ao próprio

direito do trabalho, que atua na reprodução de desigualdades. Os fundamentos para essa

crítica serão trazidos por meio da análise de cursos e manuais de direito do trabalho, da

dinâmica de juízes/juízas, empregadas e patroas em audiência, e do exame da

jurisprudência, norteada por determinadas palavras de busca e cortes metodológicos. Por

fim, será revelada a opção por um direito do trabalho de matriz deolonial e

antidiscriminatória como horizonte para o pleno reconhecimento do trabalho doméstico

remunerado.

5.1 Uma crítica às ciências

E é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos

127

outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento. (FOUCAULT, 2013, p. 31).

O feminismo move-se por múltiplos caminhos que se cruzam: a política, a

militância, a arte, a academia. Para Sandra Harding (2019) o primeiro esforço da teoria

feminista foi o de trazer novas interpretações para as categorias de estudos teóricos, com

a finalidade de conferir visibilidade às atividades e às relações sociais das mulheres

dentro das mais diversas tradições intelectuais. No âmbito da pesquisa, uma de suas

principais frentes é a crítica à ciência em geral, que tem o androcentrismo como uma

espécie de “super paradigma”, ou “a soma de todos os gêneros” (CRUZ, 2014, p. 18).

Ciência cartesiana, utilizando em seus estudos os parâmetros e valores masculinos,

pretendendo-se neutra ao considerar o homem como o ser humano universal. E esse

homem remete sempre ao “branco-heterossexual-civilizado-do-Primeiro-Mundo (CRUZ,

2014, p. 19).

A questão de quem faz ciência é também muito relevante. Hubbard (1993, p.

23) afirma que a aprovação dos projetos se dá por “semelhança”, o que significa que

“gente de cabeça parecida, de origens pessoais e acadêmicas equivalentes reúne-se para

decidir se determinado projeto de fabricação de fatos tem suficiente valor para receber

financiamento”. Assim, o grupo dos que fazem ciência (predominantemente masculino

e branco) se perpetua no poder. Essa mesma autora critica o paradigma da própria ciência

natural, afirmando que a grande contribuição das teóricas feministas é a insistência de

que a subjetividade e o contexto não são passíveis de eliminação e precisam ser

reconhecidos.

Uma das coisas mais importantes é frisar o conteúdo e o papel políticos da ciência. A pretensão de que ela é objetiva, apolítica e neutra em termos de valores é profundamente política, porque obscurece o papel político que a ciência e a tecnologia desempenham para manter a atual distribuição de poder na sociedade. Nenhum componente ativo da sociedade – e ciência e tecnologia são isso – pode ser politicamente neutro. (HUBBARD, 1993, p. 33).

No campo das ciências humanas, o pensamento feminista vem se juntar à

crítica do paradigma positivista e da busca de uma objetividade “importada” das ciências

naturais, uma vez que essa objetividade traduz-se na já conhecida hierarquização entre

racionalidade e neutralidade masculinas e a suposta afetividade e parcialidade femininas.

Para Cruz (2014, p. 22), uma das contribuições mais importantes do feminismo para as

ciências sociais foi a construção de categorias como o cotidiano, a vivência e a emoção,

128

fazendo a interpelação entre o público e o privado, e considerando a mulher como sujeito

político.

Delineia-se um novo agente epistêmico, não isolado do mundo, mas inserido no coração dele, não isento e imparcial, mas subjetivo e afirmando sua particularidade. Ao contrário do desligamento do cientista em relação ao seu objeto de conhecimento, o que permitiria produzir um conhecimento neutro, livre de interferências subjetivas, clama-se pelo envolvimento do sujeito com seu objeto. (CRUZ, 2014, p. 23).

Mas a desconstrução desse homem universal não resolve, nem de longe, os

dilemas enfrentados. Sandra Harding reafirma a importância do movimento feminista

para essa desconstrução, mas demonstra que, a cada passo, surge uma nova frente, a

exemplo da “consideração da infinidade de mulheres que vivem em intrincados

complexos históricos de classe, raça e cultura”, advindo daí a necessidade de se eliminar

a “mulher universal”. (HARDING, 2019, p. 96). Nesse sentido, foi o movimento

feminista negro que operou a desconstrução desse novo mito, desse ser feminino

universal, que na realidade dizia respeito à mulher branca, heterossexual e de classe

média/alta.

Bell hooks e Patricia Hill Collins demonstraram como a posição da mulher

negra confere a ela uma perspectiva privilegiada. Hooks tratou da mulher negra como

situada à margem, vivendo em seu mundo, mas frequentando o outro “como empregada

doméstico, zeladora e prostituta” (hooks, 2019b). Collins (2014), por sua vez, destacou

a posição da mulher negra como “outsider within”, termo que não possui correspondente

exato em português, mas que quer significar, também, a participação no mundo dos

brancos, mas sempre sem uma integração completa; é alguém “de fora” que está “por

dentro”. Essa dupla visão possui o potencial de trazer um grande enriquecimento aos

estudos sociológicos, sobretudo por meio da detecção de anomalias não visíveis para

outros estudiosos. Collins não só critica a separação entre pesquisador e objeto, e a

suposta neutralidade decorrente desse sistema, como vai além: propõe utilizar uma

abordagem segundo a qual as intelectuais “aprendam a confiar em suas próprias

biografias pessoais e culturais como fontes significativas de conhecimento” (COLLINS,

2014, p. 123).

De forma semelhante, Foucault afirma que as condições de existência de um

indivíduo não constituem um obstáculo ao conhecimento, sendo justamente através delas

que são formados os próprios sujeitos do conhecimento e as ordens de verdades

(FOUCAULT, 2013, p. 34).

129

A crítica ao conhecimento e à ciência formulada pelas feministas fornece o

aporte teórico e a “coragem epistêmica” para elaborar uma crítica ao próprio direito do

trabalho, crítica esta que não é isenta de ambiguidades, como se verá adiante, mas que se

mostra extremamente necessária.

5.2 . Crítica ao direito do trabalho

Pois as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa-grande. Elas podem possibilitar que os vençamos em seu próprio jogo durante certo tempo, mas nunca permitirão que provoquemos uma mudança autêntica. (LORDE, Audre, p. 137).

A afirmação de Audre Lorde possibilita uma conexão com a ideia de ruptura

epistemológica, de reinvenção dos instrumentos de análise e de mudança das “regras do

jogo”. Quem escreve esse jogo, e para quais jogadores ele se destina? Essas questões são

essenciais para nortear uma análise crítica do direito do trabalho.

Esse ramo do direito é considerado um marco nas conquistas sociais dos

trabalhadores. Ele serve de anteparo à lógica da máxima exploração, oferece proteção à

saúde e confere um mínimo de solidez à vida do trabalhador, seja garantindo estabilidade

em alguns casos, seja assegurando a limitação da jornada, o pagamento das férias e de

verbas rescisórias em caso de dispensa. Também cumpre uma função econômico-social

de redistribuição de renda, que é bastante visível sobretudo em municípios do interior,

quando o pagamento de direitos aos trabalhadores movimenta todo o comércio local. A

Justiça do Trabalho é uma engrenagem que faz circular dinheiro na sociedade e que

minimamente recompõe os danos que as demissões causam aos trabalhadores.

Assim, criticar o direito do trabalho desperta uma grande ambiguidade, pois

em um primeiro momento essa crítica pode tender a se confundir com a crítica

midiatizada, muito comum nas últimas décadas, que surge como instrumento de um

discurso liberal, utilizando, muitas vezes, comparações equivocadas entre o Brasil e

outros países, situando-o como um local de permissividade, de custos trabalhistas

exorbitantes, direitos excessivos, legislação “engessada”. Nesse discurso, a Justiça do

Trabalho aparece como mecanismo de espoliação dos empresários, aqueles que de fato

constroem o país, esses seres explorados pelos maléficos empregados. A extinção da

Justiça do Trabalho está sempre em pauta, com maior ou menor visibilidade.

130

Esse discurso atende a uma lógica muito específica. Como afirma Dejours

(2007), paira sobre o país a ideia de uma constante ameaça de derrocada econômica, numa

conjuntura que muito nos lembra a de uma guerra, estando sempre em perigo a própria

sobrevivência da nação. Para tempos de guerra, medidas extremas. Austeridade e

controle. Ajustes fiscais, redução de direitos. E a exclusão social passa a ser vista com

uma naturalidade cada vez maior, como um mero efeito colateral dessa guerra. Ainda

com Dejours, desvincula-se a pobreza e a exclusão da ideia de injustiça:

Em outras palavras, para muitos cidadãos, há aqui uma clivagem entre sofrimento e injustiça. Essa clivagem é grave. Para os que nela incorrem, o sofrimento é uma adversidade, é claro, mas essa adversidade não reclama necessariamente reação política. Pode justificar compaixão, piedade ou caridade. Não provoca necessariamente indignação, cólera ou apelo à ação coletiva. (DEJOURS, 2007, p. 19).

Trata-se, portanto, de um contexto delicado, mas ainda assim é preciso aceitar

essa ambiguidade e seguir adiante com o propósito não de eliminar o direito do trabalho,

e sim de torná-lo permeável à percepção das sujeições e desigualdades que ele ignora e

até mesmo oculta.

Pereira e Nicoli (2020) afirmam que o direito do trabalho possui “segredos

epistêmicos” muito bem guardados, que não são ensinados aos estudantes nos manuais,

nem são revelados nas sentenças ou nos acórdãos dos tribunais. A revelação desses

segredos passa pela análise de como a colonialidade, a raça, o gênero e a sexualidade

encontram-se no cerne da sua produção e da sua aplicação (PEREIRA; NICOLI, 2020,

p. 514).

Além disso, o direito do trabalho e suas instituições constituem uma resposta

mínima do Estado, quando interpelado pelos trabalhadores, e essa resposta amortece

tensões e atua como elemento de pacificação social. Ele próprio é responsável pela

legitimação dos modelos de Estado e de sociedade posteriores à derrocada dos regimes

absolutistas monárquicos, Estado centrado em uma racionalidade que se põe a serviço da

produção capitalista (ANDRADE, 2012).

Nesse sentido, a colonialidade do poder torna-se central para demonstrar a

persistência de relações que não cessaram com o fim da colonização, e continuam a

produzir seus efeitos nas esferas da economia, da política, do mundo social e da

epistemologia. Esse conceito abre a perspectiva de serem ouvidas as vozes outrora

silenciadas e de serem valoradas linguagens e conhecimentos que foram reprimidos pela

ideia de superioridade do colonizador. (MURADAS E PEREIRA, 2018).

131

Nos termos expostos por Lugones (2020, p. 57), a colonialidade não se refere

apenas à raça, pois “toda forma de controle do sexo, da subjetividade, da autoridade e do

trabalho existe em conexão com a colonialidade”.

Deste modo, decolonialidade e interseccionalidade se complementam, uma

vez que o eixo da colonialidade necessita de uma ferramenta capaz de dar conta também

dos aspectos relativos ao gênero (LUGONES, 2020; PEREIRA e VIEIRA, 2015).

5.3 O direito do trabalho e as “desigualdades juridicamente constituídas”27.

Uma primeira observação a ser feita é a de que o direito do trabalho não é do

trabalho em um sentido amplo: é o direito do emprego, do trabalho regulamentado pela

CLT. Há uma imensa massa de trabalhadores que vivem à margem desse mundo,

sobretudo os que se enquadram na categoria de trabalhadores “por conta própria”, a

maioria de modo muito precário: ambulantes, vendedores de porta de escolas,

universidades e órgãos públicos, feirantes e os muitos vendedores que se acumulam nos

sinais, alguns vendendo balas e carregando uma placa dizendo que querem ser

empresários, e “tudo tem um começo”. Citando Gorz, Andrade (2015, p. 42) menciona

a “autoexploração e a autocomercialização do Eu”.

A verdade é que há muito mais pessoas excluídas do direito do trabalho do

que incluídas. Trata-se de um direito que deveria proteger quem vive da renda

proveniente do seu trabalho, mas que não alcança nem metade desse universo

(ANDRADE, 2012), e que foi construído para um trabalhador muito específico, o que

leva Flávia Pereira e Pedro Nicoli a afirmarem que as normas trabalhistas são dotadas de

cor, classe e sexo (PEREIRA; NICOLI, 2020). Esse trabalhador contemplado pela norma

trabalhista é homem, trabalha em tempo integral e dispõe de uma mulher para realizar

todas as tarefas domésticas (VIEIRA, 2018).

Ao mesmo tempo em que se dirige a esse trabalhador típico, supostamente

universal, o direito do trabalho nega sistematicamente a presença do elemento “gênero”

como categoria de análise. As questões de gênero, raça e classe devem ser tidas como

transversais nas teorias sociais e no direito, visto que elas atravessam os institutos.

Entretanto, no direito do trabalho o gênero só aparece quando são expostas as normas

27 A expressão encontra-se entre aspas porque foi extraída do artigo de Pereira e Nicoli (2020), referenciado ao final desta dissertação.

132

“especiais” de proteção à mulher, de modo que, como em todas as ciências, as mulheres

são tratadas como o desvio do padrão masculino. É preciso, então, despender tempo

pensando em soluções para os “problemas femininos”: maternidade, amamentação etc.,

numa dinâmica segundo a qual as questões relativas à reprodução da vida são tidas como

uma espécie de lapso, entrave ou exceção, ao invés de constituírem elementos

indispensáveis e inseparáveis da organização da vida laboral ( VIEIRA, 2018). Nesse

sentido, é pertinente observar que mesmo essas normas especiais, desviantes, contidas na

CLT, foram feitas para “um certo tipo” de mulher: a mulher branca, heterossexual, no

geral casada, de classe média. Eram normas que vedavam o acesso a diversos tipos de

trabalho, marcando territórios masculinos, e protegiam não propriamente as mulheres, e

sim a “honra” de seus maridos, impedindo-as, por exemplo, de trabalhar à noite (LOPES,

2020).

Quanto às empregadas domésticas, elas constituem as “outsiders within” do

direito do trabalho. Estão dentro e fora ao mesmo tempo. Possuem vínculo empregatício,

mas estão excluídas da CLT. São trabalhadoras subordinadas, mas não são totalmente

equiparadas às demais classes trabalhadoras. Integram um grupo “particular”,

desempenham uma função “específica”. O direito do trabalho não foi feito para elas; suas

principais categorias não pensaram as empregadas domésticas e o serviço por elas

prestado. O trabalho doméstico resulta, assim, no que Pereira e Nicoli (2020, p. 519)

denominam uma “desigualdade juridicamente constituída”.

Existem muitos indícios dessa desigualdade juridicamente constituída. Vieira

(2018) chama a atenção para o fato de que o trabalho doméstico não remunerado é posto

na esfera do direito de família, de modo a enfatizar a separação e a incomunicabilidade

entre tais atividades e o mundo do trabalho “verdadeiro”, reforçando uma ideia que se

encontra fortemente atrelada à desvalorização da categoria das domésticas: a ideia de que

o trabalho doméstico não constitui trabalho, já amplamente debatida no primeiro capítulo

desta dissertação. Além disso, o direito do trabalho reforça a dicotomia entre público e

privado, remunerado e não remunerado, dirigindo-se a um trabalhador abstrato, que

aparentemente não possui nenhum encargo familiar além de assegurar o sustento por meio

do salário, e pode destinar a sua vida ao trabalho.

O próprio conceito de salário foi fundamental para essa separação, constituído

com a pretensão de ser suficiente para sustentar a família, criando a figura do “provedor”.

Como já retratado no capítulo 1, a mulher era tida nos censos como “inativa”. Já o salário

da mulher, quando existente, era considerado um simples “complemento”. A partir dos

133

anos 1980, mesmo com o maior ingresso das mulheres no mercado de trabalho e a

falência prática do “homem provedor”, as diferenças de remuneração persistiram

(VIEIRA, 2018).

Outro conceito que favorece a discriminação das trabalhadoras domésticas é

o da onerosidade, que normalmente é interpretada como sinônimo de expectativa de

contraprestação, ou seja: mesmo que um trabalho seja realizado e não seja pago, ainda

assim a onerosidade estará presente, só que terá havido um descumprimento consistente

nessa ausência de pagamento. No caso do trabalho doméstico, em especial o de cuidado,

feito por uma mulher integrante da família, o direito pressupõe essa ausência de

expectativa de contraprestação, afirmando que ele foi realizado em nome do amor e/ou

da responsabilidade. Segundo Pereira e Nicoli (2020) só se imagina a existência de

onerosidade no caso do trabalho doméstico contratado, terceirizado. Os autores citam

jugado do TRT de Minas Gerais, do ano de 2019, no qual uma senhora ingressa com ação

trabalhista alegando ter sido cuidadora de seu irmão mais velho, que vem a falecer. Tanto

a sentença de primeira instância quanto o acórdão negam o vínculo, sob o argumento de

que há presunção de que a “ajuda” decorreu de relação de parentesco e que não havia

intuito de compor uma relação de emprego. É curioso, aliás, como o julgador elabora

uma presunção de que não havia o intuito de formar vínculo empregatício contrariando a

prova desse intuito, que é o próprio ajuizamento da ação em busca do reconhecimento.

No que diz respeito ao tempo, o direito do trabalho se apropriou de uma noção

meramente quantitativa, quando o tempo do trabalho doméstico possui também

dimensões qualitativas, relacionadas a tarefas e a um estado mental de atenção,

responsabilidade e disponibilidade, estados esses que são contínuos (VIEIRA, 2018).

Importante destacar, como afirmam Pereira e Nicoli (2020), que aquilo que o direito do

trabalho entende como tempo, e como valor, é algo de natureza mercantil e inserido em

uma estrutura sexista. Os autores defendem que o tempo do cuidado não é linear, e é

muito mais do que contínuo: é permanente. “Ou seja, quem cuida se vê permanentemente

atravessada pelo cuidado”(PEREIRA; NICOLI, 2020, p. 524).

Os direitos possuem uma forte carga de instabilidade, e obter alguns, em dado

momento histórico, não significa que a partir daí a situação esteja resolvida e que não

surjam outras demandas ou questões. Assim, se por um lado a delimitação da jornada em

horas foi uma conquista fundamental para a classe trabalhadora no momento histórico em

que foi obtida, por outro lado a crítica feminista ao direito do trabalho convida a

134

reimaginar esse instituto, revolvendo o que constitui um dos seus pilares: o tempo.

Pereira e Nicoli (2020) trazem importantes questionamentos quanto a isso:

Como pensar a partir da experiências de permanência, de mobilização subjetiva, que o cuidado projeta no tempo de vida das cuidadoras? O que fazer, em termos jurídico-trabalhistas, com o fato de que para as mulheres o cuidado é um trabalho mais do que não-eventual, é quase permanente? Isso deve ter alguma relevância para o direito do trabalho? (PEREIRA; NICOLI, 2020, p. 525).

Vieira (2018) adota a concepção de que a melhor forma de equacionar o tema

será adotar jornadas de trabalho menores para todos, tornando possível o desempenho das

responsabilidades familiares compartilhadas. A mesma solução é pensada por Pereira e

Nicoli, ou seja, para eles a solução passa pelo movimento de repensar as jornadas, a fim

de que o tempo de cuidado possa ser incorporado à vida das pessoas.

Andrade (2003) propõe, também, uma “reengenharia do tempo”, com

diversas mudanças no funcionamento de serviços e nas jornadas, a fim de conciliar o

tempo do “privado” com o tempo destinado à esfera pública.

5.4 . Elas, as empregadas domésticas, vistas pelos doutrinadores

Everaldo Gaspar Lopes de Andrade elabora uma crítica à doutrina jurídico-

trabalhista plasmada nos manuais, que deixa de lado qualquer indagação menos óbvia e

reproduz, “há quase cem anos, os mesmos argumentos” (ANDRADE, 2012, p. 38). Se é

certo que os cursos e manuais não constituem fonte da melhor teorização sobre institutos

trabalhistas no geral, quando se trata do trabalho doméstico eles conseguem superar a já

conhecida superficialidade.

Uma primeira observação a ser feita diz respeito ao pequeno espaço dedicado

ao trabalho doméstico nos “manuais” e livros indicados na graduação. Sabe-se que os

manuais procuram fornecer uma visão geral, sem aprofundar discussões. Quando se trata

do trabalho doméstico, isso se mostra ainda mais marcante. Foram examinados, no total,

135

08 livros28, além de um manual escrito por um magistrado29, porém dedicado ao

empregador doméstico, e mais um livro específico sobre “Igualdade de gênero” no âmbito

laboral30. Nos manuais e cursos, além do espaço reduzido, não há qualquer discussão ou

problematização, limitando-se a uma rápida análise dos direitos que são devidos às

empregadas. Já no livro que trata da igualdade de gênero, não há nenhum capítulo ou

tópico sobre as trabalhadoras domésticas; fala-se da mulher “universal”, a trabalhadora

branca, e em nenhum momento há qualquer preocupação com o destino de todo o trabalho

doméstico que ela deixou (ou não) de realizar para estar presente na empresa.

A análise será iniciada pelo livro de Carlos Henrique Bezerra Leite, autor que

faz um grande investimento teórico na questão dos direitos sociais, considerando-os

componentes da dimensão da cidadania. Ele define o próprio direito do trabalho com base

em uma perspectiva de igualdade material, como sendo um ramo que:

“visa à correção das desigualdades sociais e econômicas entre as forças do capital e do trabalho e à efetivação dos valores, princípios e regras que têm por objeto a dignificação da pessoa humana na relação empregatícia, no plano individual e coletivo, com tendência expansionista para alcançar outras relações de trabalho.”(LEITE, p. 108)

Não há em seu livro, todavia, menções expressas à falta de cidadania das

trabalhadoras domésticas em razão da sistemática negação de direitos sociais. Parece

existir uma barreira, um véu de invisibilidade impedindo que se perceba a discriminação

a que estão sujeitas.

Na extensa obra “Instituições de direito do trabalho”, que conta, no total, com

mais de mil e quinhentas páginas, o trabalho doméstico surge no volume II, na parte

destinada ao trabalho em condições especiais, ocupando um parágrafo, menos de meia

página. No parágrafo em questão, os autores trazem os resultados de uma pesquisa do

IPEA a respeito da quantidade de trabalhadoras domésticas no país (com a flexão do

28 Foram eles: GARCIA, Gustavo Filipe. Manual de Direito do Trabalho. São Paulo: Método, 2015. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: saraiva, 2019. NASCIMENTO, Amauri Mascaro; NASCIMENTO, Sandra Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. RESENDE, Ricardo. Direito do Trabalho. 8 ed. São Paulo: Método, 2019. SUSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 20. ed. São Paulo: Ltr, 2002. Atualizada por Arnaldo Sussekind e Lima Teixeira. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18 ed. São Paulo: Ltr, 2018. MARTINS, Sérgio. Pinto. Manual do trabalho doméstico. São Paulo: atlas, 2004. SOUZA JÚNIOR, Antonio Umberto. O novo direito do trabalho doméstico. São Paulo: Saraiva, 2015. 29 FONSECA, José Geraldo. Vá procurar seus direitos! Tudo sobre empregados domésticos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005 30 BARBUGIANI, Luiz Henrique. Igualdade de gênero. O redimensionamento da concepção da igualdade material no âmbito laboral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015

136

gênero: trabalhadoras), quantas estão na informalidade e quantas são chefes de família.

No mais, remete a disciplina do contrato à lei 5.859/72. (SUSSEKIND et al, 2002).

Apesar de ter escrito manuais genéricos, Sérgio Pinto Martins elaborou um

“Manual do trabalho doméstico”, no qual especifica os direitos e conceitos estabelecidos

pela lei. Em nota introdutória, ele afirma que a grande discussão quanto aos direitos dos

domésticos diz respeito à aplicação ou não da CLT, havendo necessidade de um estudo

para esclarecer tal ponto para o empregador e para o próprio empregado (MARTINS,

2004). Mas o que se vê ao longo da obra é que o intuito é meramente técnico, e fornece

subsídios somente ao empregador, sem qualquer intenção de se comunicar com a

trabalhadora, trazendo inclusive modelos de recibos e contratos.

Outro livro frequentemente indicado para estudantes é o Curso de Direito do

Trabalho, do ministro do TST Maurício Godinho Delgado. Nele encontramos, logo no

início, diversas referências à “especificidade” do contrato de trabalho doméstico:

Empregado doméstico é uma modalidade especial da figura jurídica de empregado. Seu tipo legal compõe-se dos mesmos cinco elementos fático-jurídicos característicos de qualquer empregado — embora um desses elementos receba, no tocante à relação empregatícia doméstica, conformação jurídica algo distintiva em face do padrão celetista imperante. Ao lado desses elementos fático-jurídicos gerais (um recebendo conformação especial, repita-se), apresentam-se, na relação de emprego doméstica, também alguns elementos fático-jurídicos especiais, nitidamente próprios a esta relação empregatícia especifica. (DELGADO, 2019, p. 441. Grifos não constantes do original).

Os destaques na citação acima transcrita têm o propósito de mostrar o quanto,

para o autor, o serviço doméstico é diferente, não é um trabalho como qualquer outro.

Para ele, o elemento que recebe conformação especial é a continuidade. E os distintivos

são a finalidade não lucrativa, empregador pessoa física ou família e realização do serviço

no âmbito residencial (DELGADO, 2019, p. 441).

A posição de Delgado quanto à interpretação da expressão “continuidade” foi

muito influente perante a jurisprudência. A continuidade estava presente na lei 5.859/72,

que definia o empregado doméstico como “aquele que presta serviços de natureza

contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas”

(BRASIL, 1972). Mas essa lei não especificava em que consistia essa continuidade.

Uma interpretação possível era a de que o trabalho ao longo de meses ou anos iria

configurá-la, no entanto a doutrina e a jurisprudência estabeleceram que a continuidade

significava o labor em dias seguidos, sem pausa, ou com pausas mínimas. Fixou-se como

137

requisito o trabalho em pelo menos três dias da semana. Estabeleceu-se, assim, a regra de

segundo a qual quem trabalhasse em pelo menos três dias da semana era empregada

doméstica, e quem trabalhasse apenas dois era diarista, independente de haver ou não a

subordinação31. Definiu-se, portanto, que um dos pilares fundamentais do contrato de

emprego, a subordinação, ainda que presente, não seria suficiente para configurar o

vínculo. Muitas instruções processuais se baseavam, então, em procurar saber em

quantos dias a trabalhadora se fazia presente. Importante observar que para os demais

trabalhadores, geralmente bastava a não eventualidade, de modo que a interpretação

conferida à continuidade consistiu em mais um fator de exclusão.

Em 2015, a lei complementar 150 incorporou tal orientação à definição do

empregado doméstico, considerado “aquele que presta serviços de forma contínua,

subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no

âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana” (BRASIL, 2015).

Deste modo, além de não possuir, ainda, todos os direitos adjudicados aos

trabalhadores “normais”, a empregada doméstica possui, em sua própria definição, um

requisito a mais, não previsto para outros trabalhadores.

Prosseguindo na análise dos manuais, passa-se ao livro de Amauri Mascaro

do Nascimento. O autor considera que o trâmite da Emenda Constitucional 72 foi “muito

precitado, desencadeando inúmeros questionamentos e críticas”. Ele assevera que a

emenda “confundiu” o empregador doméstico, “pessoa física e, em sua grande maioria,

de classe média, assalariado ou aposentado”, com uma empresa. Afirma que o trabalho

doméstico não gera lucro e, sendo assim, deve ter tratamento diferenciado. Mostra-se

contrário à limitação da jornada e adicional noturno, visto que o trabalho noturno decorre,

por exemplo, da natureza do trabalho da babá (NASCIMENTO, 2014, p. 2.114). Mas o

mesmo autor não questiona, em nenhum momento, o adicional noturno para o vigia

noturno, que teoricamente também teria o trabalho nesse horário como sendo

“decorrência lógica” da sua atividade. Ele se insurge, também, com a extensão de direitos

atinentes a segurança e saúde, pontuando que o esforço deveria ser para incentivar a

formalização desses empregos e para obter o acesso da categoria aos seus direitos

“enquanto domésticos”, sendo isso suficiente para “dignificar” a profissão

31 Vejam-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos:

1) TST - RR: 2717620125240072, Relator: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento: 25/11/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 04/12/2015;

2) TST - AIRR: 11636220115020482, Relator: Douglas Alencar Rodrigues, Data de Julgamento: 04/02/2015, 7ª Turma, Data de Publicação: 06/02/2015

138

(NASCIMENTO, 2014, p. 2.115). Em suma, para Nascimento, os direitos existentes são

suficientes.

Entre “cursos”, manuais e outros títulos, merece destaque o livro intitulado

“Vá procurar seus direitos! Tudo sobre empregados domésticos”, de 2005, escrito por

José Geraldo da Fonseca, que atuou como magistrado do trabalho. Na abertura, ele

explica que o livro foi escrito para que os amigos deixassem de “encher o saco na fila do

banco 24 horas, no elevador do prédio, no catamarã ou nas festinhas de crianças por causa

das picuinhas de suas empregadas domésticas” (FONSECA, 2005, p. 11). E acrescentou

que é uma obra para “gente simples”, e não para o sujeito de “terno e gravata, anel de

grau, juridiquês fluente”.

Essa nota introdutória traz duas visões acerca das empregadas domésticas:

são pessoas que criam “picuinhas” e são um assunto menor, que não interessa àquele

sujeito masculino (pois de terno e gravata) que utiliza seu juridiquês para tratar de

assuntos do direito. Emprego doméstico é tema prático, menor, cotidiano.

No primeiro capítulo, ao tratar da demissão, o autor desenha um cenário de

caos familiar em razão da ausência da empregada e da atribuição de toda a

responsabilidade pela contratação à esposa. É à esposa que o livro se reporta. É com a

mulher que ele dialoga em linguagem “simples” sobre as empregadas domésticas, numa

curiosa atualização dos manuais para noivas e esposas citados no capítulo 02 desta

dissertação.

O livro ainda “brinca” comparando a empregada doméstica a objetos, e

ratifica a desconfiança generalizada sobre as profissionais:

Domésticas, arquivos de computador e táxis em dia de chuva costumam sumir sem deixar rastro. (FONSECA, 2005, p. 15) (...) Empregados domésticos não vêm com manual de instrução. Alguns se parecem com boneco de ventríloquo: têm cabeça, tronco e membros mas cada parte funciona sem combinar com a outra para que lado vai. Por pouco não perguntam para que serve o fogão. Tem aqueles que parecem secretárias eletrônicas: você liga da rua, ela atende, você deixa o recado. Se o filho liga depois, ele apaga o primeiro. E tem aquele que parece cafeteira elétrica: não serve para mais nada além daquilo (FONSECA, 2005, p. 25).

Torna-se patente a desconsideração da humanidade da trabalhadora,

rebaixada de forma generalizada em seu intelecto, comparada a objetos e tendo seu valor

aferido com base nas finalidades para as quais ela “serve”. O capítulo que se inicia com

esse segundo texto destacado é intitulado “Contrato de experiência – test drive. Ou seja,

139

ele compara um contrato de experiência a um teste feito em veículos, antes de tomar a

decisão da compra. Outra coisa: nunca dê cópia da chave da casa à empregada, especialmente com um mês ou dois de trabalho. se não tiver jeito, deixe a chave com o porteiro ou com a vizinha do lado. A primeira coisa que você tem de fazer depois de dispensar a empregada é chamar o chaveiro da esquina. (FONSECA, 2005, p. 15)

Vê-se aqui a já conhecida associação entre empregada e furtos. O autor cita,

em nota de rodapé, livro escrito por outro magistrado no qual se diz que não há nenhuma

garantia de que o patrão não será furtado por sua empregadas, e que esse crime existiu

“mesmo ao tempo em que as domésticas tiravam carteira profissional nas delegacias de

polícia (FONSECA, 2005, p. 18).

É preciso ressaltar que, embora não seja um livro destinado a acadêmicos, ele

foi escrito por um magistrado trabalhista, e publicado no século XXI, ano 2005.

Atualização dos antigos manuais para noivas e esposas, só que com uma abordagem

jurídica, o livro é uma compilação de estereótipos e discriminações.

Quanto aos cursos e manuais, embora não cheguem a tanto, eles carregam

consigo uma cegueira em relação ao serviço doméstico, contribuindo para a disseminação

de uma cultura jurídica de omissão e discriminação.

5.5 . Patroas e empregadas domésticas diante da juíza e do juiz do trabalho

O Poder Judiciário constitui um local de ritos e formalidades, e o juiz é tido

como uma figura de poder. A Justiça do Trabalho possui uma dinâmica um tanto diferente

das outras esferas, por lidar com um volume diário muito grande de audiências e possuir

ritos processuais, no geral, mais simplificados, sendo que um dos princípios regentes é o

da oralidade. O fato de estar um trabalhador (geralmente desempregado) em um dos

polos também adiciona camadas a essa diferenciação, uma vez que o trabalhador costuma

se vestir de modo menos formal, sobretudo por questões econômicas, e na maioria das

vezes não possui acesso a ambientes de poder e burocracia. Os átrios ou salas de espera

constituem locais quase sempre lotados, nos quais pequenos grupos conversam. Isso

repercute na própria dinâmica do trabalho, na linguagem utilizada pelos juízes e

140

advogados, tanto em suas petições quanto nas audiências. Em suma, a Justiça do

Trabalho se torna uma justiça menos formal32.

Ainda assim, a percepção que as partes têm desse local pode ser muito

diferente. Há poucas pesquisas enfocando essa relação que se estabelece entre os

litigantes e a figura da juíza ou do juiz em audiência. No caso específico de empregadas

domésticas, Fábio de Medina da Silva Gomes realizou uma pesquisa empírica e

interdisciplinar entre novembro de 2013 e agosto de 2014, assistindo a 37 audiências

relativas a litígios domésticos, encontrando exclusivamente mulheres em todas elas, tanto

no polo ativo quanto passivo. O autor discute, em alguns artigos e na sua dissertação de

mestrado, o entrelaçamento das emoções na vivência da relação de trabalho e na Justiça

(GOMES, 2015). Aqui, o enfoque será sobre o sentimento de trabalhadoras e patroas em

relação à Justiça, e a percepção das juízas e dos juízes em relação a tais litígios.

No tocante à dinâmica judicial, Gomes (2015) relata ter presenciado uma

grande quantidade de acordos, sendo que em relação a alguns deles a empregada não

concordava, sendo depois “convencida” pelo advogado, com o apoio do julgador ou

julgadora. Sua percepção foi de que tais acordos geralmente eram em valores mais baixos

em relação a processos de outros tipos.

O autor (2015) destaca a distinção entre cenas e bastidores; a cena ocorria no

interior da sala de audiência e se tornou repetitiva:

As partes, doméstica e patroa, chegavam à sala de audiência, sentavam-se à mesa e não se entreolhavam. Evitavam olhar diretamente nos olhos uma da outra. (...) Entre elas havia um grande silêncio, contrastando, muitas vezes, com muito barulho na sala. Era impressionante ver um olhar conotando tanta frieza. (GOMES, 2015, p. 296 e 297).

Nos bastidores, ele registrou o choro, muitas vezes com o apoio de amigos

e/ou familiares que aguardavam o término da sessão. O sentimento, após a audiência, era

de ruptura, da certeza do fim de uma relação íntima. A maioria das empregadas

entrevistadas relatou algum sentimento de perda em razão de se considerar “parte da

32 Tais constatações são fruto da vivência da pesquisadora, que exerce a profissão de juíza do trabalho desde junho de 2001, tendo, ao longo desse período, trabalhado em diversas varas do interior e da capital dos estados de Pernambuco e Rio Grande do Norte. Tal experiência é trazida à presente pesquisa com a “permissão” de todas as teóricas feministas que criticaram o ideal de total afastamento entre pesquisador e objeto. Cumpre salientar, também, que GOMES (2014, p. 15) chegou a semelhante conclusão em sua pesquisa empírica, apontando que sofreu estranhamento inicial com essa informalidade, ressaltando o aspecto das vestimentas dos advogados e advogadas, o diálogo “menos frio” entre juízes e advogados e uma maior simpatia dos juízes em relação às partes.

141

família”, o que redundava no sentimento de humilhação por estar no judiciário. Uma

das entrevistas afirmou:

Se eu me sentia da família? Lógico. Mas aqui, quando eu sentei naquela cadeira, eu tive a certeza de que não era nada da família. Tinha certeza de que essa ingenuidade acabou quando sentei. (GOMES, 2015, p. 298).

Em relação às patroas que ele conseguiu entrevistar, uma delas proferiu um

relato digno de nota:

Eu me senti muito mal aqui na Justiça, me senti traída, porque eu a tinha como uma amiga. Pior do que o diagnóstico de câncer foi vir aqui. Não era necessário. Não dá pra confiar em ninguém. Em ninguém. (GOMES, 2015, p. 298).

Não obstante a pesquisa tenha sido feita há alguns anos, o tema das

intrincadas amizades entre patroas e empregadas permanece extremamente atual. Essa

pesquisa mostrou como as emoções são trazidas ao judiciário, e como o sentimento de

ser “quase da família” se desdobra em rancor de formas diferentes para trabalhadoras (a

ruptura, a humilhação) e empregadoras (a traição, a perda da confiança).

Além de um local de ruptura, a sala de audiência aparecia como um ambiente

para reviver situações difíceis, de humilhação e rancor, por meio dos depoimentos das

partes e testemunhas. Em relação aos juízes e juízas, ele registrou que muitos lhe

disseram que julgar um processo de domésticas se equiparava a julgar um caso de

divórcio numa vara de família. Sobre a prevalência de emoção ou tecnicidade, uma juíza

lhe respondeu que tudo era emoção, enquanto outra relatou que a relação seria emocional,

mas o julgamento era técnico. (GOMES, 2015).

Sobre a percepção das entrevistadas em relação aos juízes, o autor relata que

algumas mencionaram sensação de desamparo e medo. Em suas conclusões, ele afirma

que “as emoções não são bem recebidas no espaço do judiciário”. (GOMES, 2015, p.

310). Em outro momento, relata que uma entrevistada, empregada, disse ter se sentido

“sozinha” na frente da juíza, e que a representação dela sobre a figura da magistrada era

de uma pessoa dotada de muito poder. Para ele, o judiciário, na visão das empregadas, é

um espaço formal, repleto de símbolos ininteligíveis (GOMES, 2014).

Em síntese, o judiciário surge como um espaço hostil, de simbologias

desconhecidas e de rupturas. Não foram localizadas pesquisas empíricas recentes que

pudessem ensejar comparação com os resultados obtidos por Gomes, e a pandemia de

142

Covid 19, com a suspensão de todos os atos presenciais na Justiça do Trabalho, tornou

impossível a realização de pesquisa específica para a presente dissertação.

O autor afirma ainda:

Uma frase muito repetida entre os juízes do trabalho era “Eu não posso sobrecarregar o empregador doméstico na mesma medida que eu penalizo uma empresa.” Esse discurso ratifica as desigualdades, desmerecendo as tarefas domésticas e justificando os valores pequenos dos acordos entre domésticas e patroas. Nesse caso, mais do que uma desigualdade, uma invisibilidade. No judiciário, quase sempre se opta por acordos, com valores pequenos, se comparados aos de outros trabalhadores. Na verdade, todo trabalho ligado à reprodução carrega a representação de desimportante. (GOMES, 2015b, p. 41)

Esse mesmo autor (GOMES, 2015 b) chama a atenção para uma situação

presenciada: uma juíza teve que modificar sua rotina de audiências porque a empregada

doméstica faltou ao trabalho. Com base nisso, ele traz reflexões a respeito de duas

“feminilidades” detectadas, duas formas de ser mulher, que não são apenas diferentes,

mas também hierárquicas. As empregadas domésticas normalmente são associadas à

pouca formação e à ausência de mérito: vai trabalhar em serviço doméstico quem não

estudou, quem não “venceu na vida”. Já a juíza é tida como figura de autoridade, alguém

que conseguiu alcançar um objetivo e se destacar no âmbito profissional. Uma, entretanto,

depende da outra para poder fazer seu trabalho: a juíza depende da empregada doméstica,

e, no entanto, o trabalho doméstico é invisibilizado.

Percebe-se, então, que as empregadas domésticas quase não possuem espaço

no direito do trabalho, e quando ingressam em juízo para disputar a pequena parte que

lhe cabe carregam consigo todas as representações que incidem sobre a profissão,

havendo a possibilidade de que isso resulte em prejuízos financeiros, como a realização

de acordos em valores mais baixos.

5.6 Jurisprudência de exclusões. Domésticas entre a aventura jurídica e a

resistência

Segundo Queiroz e Feferbaum (2020), pesquisas jurisprudenciais constituem

investigações científicas que devem ser orientadas por uma metodologia e devem se guiar

por perguntas que possam ser respondidas através da análise dos julgados. Nesse sentido,

foi elaborada pesquisa jurisprudencial por meio do portal Jusbrasil e de uma compilação

de acórdãos da editora Juruá do ano de 1997, que reuniu matéria trabalhista com acórdãos

143

de 15 tribunais diferentes33. A justificativa para utilizar esse livro antigo é justamente o

recorte que se deseja analisar: o período anterior à emenda constitucional n. 72/2013 e à

lei n. 11.324/2006, que concedeu estabilidade à gestante empregada doméstica. A busca

teve como finalidade principal verificar qual o tratamento jurídico concedido a pedidos

de horas extras e estabilidade quando não havia previsão expressa na lei, observando se

havia alguma discussão que envolvesse a aplicação do princípio da igualdade ou a

declaração de inconstitucionalidade difusa de lei. Outro foco diz respeito às disputas pela

condição de empregada doméstica quando há alegação de que a trabalhadora é diarista, e

a possibilidade de pagamento de salário inferior ao mínimo legal por força da incidência

de descontos relativos a moradia e alimentação. No que diz respeito ao portal Jusbrasil,

o alvo da busca foi adicional de insalubridade, doença profissional e acidente do trabalho.

Ao longo da pesquisa, defrontou-se com alguns outros temas, que, em

consideração à relevância, também serão aqui expostos

Com base nos acórdãos pesquisados, foi constatado que sempre houve

disputas judiciais a respeito da concessão de certos direitos, negados pela lei, não tendo

existido uma conformação à ideia de exclusão.

A expressão “aventura jurídica” tornou-se uma espécie de bordão utilizado

em peças processuais para designar uma ação ou um pedido específico em relação ao qual

não haja, supostamente, nenhum tipo de base legal. Uma das propostas deste tópico é

discutir a existência de pedidos de direitos que eram expressamente negados pela

lei. Tais pedidos podem ser interpretados como “aventura jurídica” ou como uma

forma de resistência e de tensionamento do sistema judicial, com a finalidade de

tentar provocar alterações e criar teses?

Uma primeira leitura da compilação da editora Juruá, a fim de selecionar os

julgados que seriam citados, revelou a utilização, em quase todos os acórdãos do livro,

de expressões como “inaplicabilidade”, “exclusão”, “indevido”, “indevidas”, “não faz

jus”, “não há previsão legal”. Também a ideia de não extensão (“não se estendem aos

domésticos...”). Uma jurisprudência, portanto, composta por muitas ausências, negativas

e exclusões.

Constatou-se a ocorrência de muitas disputas em torno do vínculo

empregatício e do enquadramento como doméstica ou diarista, e quanto ao

33 A jurisprudência é proveniente dos seguintes Tribunais Regionais do Trabalho: 2ª região, 3ª região, 4ª região, 6ª região, 9ª região, 10ª região, 11ª região, 12ª região, 13ª região, 15ª região, 19ª região, 20ª região, 22ª região, 23ª e 24ª região. Total de acórdãos lidos: 74.

144

enquadramento como doméstico e outras atividades, como trabalhador(a) rural,

recepcionista e vigia. Nota-se uma gradação em busca de maior proteção legal:

trabalhadoras informais, tratadas como diaristas, buscam o reconhecimento do vínculo

como empregadas domésticas. E trabalhadores que realizam atividades que não se

restringem às tradicionais buscam uma reclassificação para excluir a condição de

doméstico.

O tema das horas extras mostrou-se muito presente. Partindo de um acórdão

que citava o nome de José Serson como doutrinador que admitia o pagamento das horas

extras às trabalhadoras domésticas, foi possível localizar um livro escrito por esse autor,

no qual ele defendia que a empregada doméstica fazia jus ao pagamento da diferença das

horas trabalhadas a mais, uma vez que o valor do salário-mínimo era fixado para uma

jornada de 220 horas mensais. Assim, embora ela não tivesse direito ao adicional de horas

extras, poderia receber o pagamento da hora na forma simples, sem o adicional.

(SERSON, 1994).

Essa tese, todavia, não encontrava ressonância nos julgamentos, embora isso

não signifique que não fosse invocada. Em acórdão do TRT da 9ª Região, foi encontrada

seguinte fundamentação:

Nem o parágrafo único do art. 7º da CF/88, nem a Lei 5.859/72, assegura aos trabalhadores domésticos o direito à limitação da jornada laboral. Portanto, data vênia do ilustre José Serson, o salário daquela categoria não se encontra dimensionado para o cumprimento de 220 horas de trabalho mensal, eis que não há restrição legal à duração de sua prestação de serviços. As únicas limitações temporais ao trabalho doméstico são o direito ao repouso semanal remunerado e o direito às férias, o que, de forma alguma, conduz à conclusão a que chegou o respeitável doutrinador. (BRASIL, TRT 9, 1994, p. 59).

No que diz respeito à estabilidade gestante, a posição dos tribunais também

era taxativa. Foram localizados acórdãos nos quais as trabalhadoras postulavam o

benefício alegando que se tratava de direito constitucional, mas a resposta era sempre a

mesma: empregados domésticos estão excluídos.

Tendo-se em conta que a reclamante estava no oitavo mês de gestação, é despiciendo o argumento da reclamada de que ela não lhe comunicou o seu estado gravídico, pois que este se evidenciava. Mas a gravidez da doméstica não lhe assegura estabilidade provisória. (BRASIL, TRT 2, 1994, p. 27).

O trecho em destaque, por sua sequência, deixa bastante nítido o caráter

discriminatório do direito em relação à empregada doméstica. Atesta uma dispensa

145

ocorrida no oitavo mês de gestação (e a alegação da empregadora de que desconhecia tal

fato). Grávida, dispensada em decorrência da gestação, mas sem nenhum amparo legal.

Um tema que não havia sido objeto de pesquisa proposital, mas que, uma vez

localizado, foi trazido para a presente dissertação, em decorrência de sua relevância, foi

a visão da subordinação da trabalhadora doméstica, expressa nesse julgado do TRT da 2ª

região:

A relação empregatícia no âmbito doméstico é pessoal e contínua; torna-se incompatível pela cumulação de reações e comportamentos desagradáveis e contrários aos costumes familiares. Assim, inviabiliza a convivência sobre quem os patrões (marido, mulher, filhos, noras etc.) não exercem autoridade familiar de donos da casa ainda que mais jovens do que o empregado. Não há, pois, que se falar em fato culminante do despedimento por justa causa quando se trata de trabalho doméstico. O fato de a reclamante ser mal-humorada, reagir ao cumprimento dos serviços habituais, responder inadequadamente, ou, às vezes, até o simples fato de dar uma resposta quando não deveria dar, justificam sobejamente a despedida (BRASIL, TRT 2, 1993, P. 35).

Esse acórdão cria um requisito a mais para o contrato de trabalho doméstico:

a subalternidade. Muito mais do que subordinada (conceito já carregado de colonialidade)

a empregada doméstica precisa ser subalterna e silenciosa. A leitura desse acórdão remete

à pergunta formulada por Spivak34 que serviu de título ao seu livro: pode a subalterna

falar? Para o relator, e para os demais desembargadores que ratificaram o voto, a resposta

é negativa: “o simples fato de dar uma resposta quando não deveria dar” pode ser

fundamento para uma dispensa, e não uma dispensa qualquer, e sim por justa causa.

Outro ponto digno de nota é a tese de negativa do vínculo empregatício pelo

empregador sob alegação de ser “pessoa da família”. No caso abaixo transcrito, a sentença

de origem havia julgado improcedentes todos os pedidos, por inexistência de vínculo. O

tribunal, todavia, modificou a decisão:

Entretanto, não prosperam as alegações dos reclamados: em cidade como São Paulo, alguém a colher uma desconhecida em sua residência por não ter onde morar, de início por pouco tempo até que arrumasse emprego, permanecendo aí por dois anos e meio, sem nenhuma atividade sem procurar trabalho, subestima a boa fé alheia. (BRASIL, TRT2, 1993, p. 36).

O relator narra depoimento de uma testemunha no qual é dito que a

reclamante foi acolhida “como se fosse pessoa da família”, e nessa condição realizava

atividades domésticas. Importante ressaltar que houve voto divergente, reconhecendo

legítima a situação da autora como “membro da família”.

34 Spivak, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

146

Em outra situação, pronunciou-se o Tribunal da 12ª região:

Trabalho doméstico. Não ocorrência. A prestação de serviços em decorrência da natural gratidão da demandante, acolhida na infância na residência de seu tio, e do próprio método de educação familiar, dispensado igualmente a própria filha do reclamado, não constitui a relação de emprego de doméstica, porquanto carece de subordinação jurídica. (BRASIL, TRT 12, p. 67).

Em certo ponto do voto, é dito, ainda, que a reclamante executava serviços

domésticos da mesma forma que a filha do reclamado também os executava. Nesse caso,

o tribunal pressupõe a existência de um sentimento de gratidão e de gratuidade dos

serviços domésticos de duas mulheres. Tem-se aqui a naturalização do trabalho

doméstico feito por mulheres e a pressuposição que é realizado por amor. Se o sentimento

de gratidão fosse realmente preponderante, teria a reclamante ajuizado a ação? Perceba-

se que o acórdão “fala” pela trabalhadora, afirmando a existência de um sentimento que

ela mesma nega.

No que diz respeito ao adicional de insalubridade, trabalhadoras domésticas

ingressam com o pedido, mesmo diante da perspectiva forte de negação. Não foi

localizado nenhum julgado concedendo o adicional; ao contrário, em alguns deles a

insalubridade é efetivamente reconhecida, mas ainda assim o pedido é negado:

EMPREGADA DOMÉSTICA. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. Embora o laudo técnico conclua pela existência de condições insalubres na atividade da reclamante, o direito ao respectivo adicional não é extensível à categoria dos empregados domésticos, por força do caput do art. 7º, da Constituição Federal e da exclusão expressa da CLT. (TRT-4 - RO: 01390005320085040016, Data de Julgamento: 24/11/2010, 1a. Turma).

Acórdão do ano de 1993 mostra, em seu relatório, que a reclamante,

empregada doméstica, postulou o pagamento do adicional e não só teve indeferido o

pedido, como também a própria realização de perícia. Diz o acordão, rejeitando o

argumento de afronta à isonomia:

Realmente, a proteção ao trabalhador doméstico, infelizmente, não evoluiu com a mesma rapidez notada em relação ao trabalhador urbano. Com efeito, a lei não confere os empregados domésticos os mesmos direitos dos empregados celetistas (...). Não há que se cogitar de violação ao princípio da igualdade, já que isto implicaria em concluir que o próprio parágrafo único, do art. 7º, da CF/88 é inconstitucional, por não ter incluído em seu rol o inciso XXII do mesmo artigo, o que obviamente é um absurdo. (BRASIL, TRT 4, 1997, p. 49)

Embora o vocábulo “infelizmente” denote certo compadecimento com a

situação da trabalhadora doméstica, percebe-se que o compadecimento ou o sentimento

147

“humanitário” são os únicos ganhos possíveis, visto que a declaração de

inconstitucionalidade de uma lei claramente discriminatória é tida como “um absurdo”.

Outro tema sensível diz respeito à saúde e segurança. A naturalização das

tarefas domésticas (tidas como simples, do tipo que qualquer um pode realizar) cria vieses

de julgamento a ponto de o julgador decidir contra o laudo pericial, com base apenas em

suas convicções pessoais35. A atividade é tida como sendo isenta de riscos ergonômicos36.

No que diz respeito às trabalhadoras que residiam no local, muitos tribunais

possibilitavam o pagamento de salário inferior ao mínimo legal com base na possibilidade

de o empregador descontar o valor a título de alimentação, material de higiene e, em

alguns casos, moradia. Importante verificar que aqui havia uma inversão do discurso

segundo o qual a CLT não se aplica aos domésticos. Tal discurso, fartamente usado para

indeferir direitos, era escamoteado quando se tratava de negar:

(...) Embora as disposições consolidadas sobre a matéria não sejam aplicáveis aos empregados domésticos – eis que seus contratos de trabalho são regidos por lei especial – não lhes é devida a diferença salarial para o mínimo legal quando, além das utilidades fornecidas pelo patrão, recebem, em pecúnia, quantia que percentualmente supera a que seria devida, como salário básico, a qualquer trabalhador. (...)

Quanto a esse aspecto da lide, convém observar que não prospera a objeção da reclamante no que pertine a consideração do salário in natura como parte integrante do salário mínimo, pelo fato de não ter havido ajuste expresso das partes quando da formação do contrato de trabalho, porque “na falta de acordo ou prova sobre condição essencial ao contrato verbal, esta se presume existente, como se tivessem estatuído os interessados, na conformidade dos preceitos jurídicos adequados a sua legitimidade, como estabelece o art. 447 da CLT, que se aplica a espécie, a falta de norma especial específica, por analogia, de acordo com artigo 126 do CPC. (BRASIL, TRT 6, 1996, p. 55).

No acórdão acima transcrito, como visto, a CLT foi utilizada por força de

analogia para indeferir uma pretensão da pare autora.

Entre negativas e exclusões, as trabalhadoras sempre tentaram obter direitos

pela via judicial. Merece destaque, pela excepcionalidade, acórdão do TRT da 13ª região

35 Um exemplo: “Como se vê, o fundamento apresentado pelo laudo de que a doença (bursite/tendinite do ombro direito) teve como fator agravante o trabalho não pode ser aceito, até porque baseado apenas na experiência do perito, uma vez que nem sequer especificou as atividades da autora que possam ter acarretado as lesões. O trabalho executado na reclamada não pode ser considerado um fato certo acelerador da doença, sem a análise do caso concreto, na medida em que as atividades realizadas pela autora (limpar, cozinhar, cuidar de idoso) faz parte do cotidiano doméstico. (TRT2. Processo Nº RO-1002342-64.2016.5.02.0053 Relatora: Bianca Bastos). 36 TRT-11 - RO: 00007333320175110003, Relator: Jose Dantas de Goes, Data de Julgamento: 13/12/2018, 3ª Turma, Data de Publicação: 18/12/2018)

148

que, ao tratar de um pedido relativo a férias, fundamentou com base nos princípios da

igualdade e da não discriminação:

No que pertine a pretensa ilegalidade da concessão de férias proporcionais e dobradas ao empregado doméstico, cumpre proclamar que a lei do empregado doméstico, 5859/72 é conflitante com os princípios fundamentais da lei maior do país, promulgada em 05/10/88, que assegura direitos iguais para todos os trabalhadores. Ora, se as férias estão asseguradas ao empregado doméstico na CF/88, a regra aplicável é a que condiz com a CLT, em toda sua plenitude, porque nesta parte foi a lei do empregado doméstico revogada nas disposições incompatíveis com a CF/ 88. Com efeito, os preceitos constitucionais demonstram a vontade do poder constituinte em excluir da nossa legislação quaisquer normas discriminatórias que não se adequem com o ideal de justiça e ao princípio da igualdade. (...) No direito do trabalho, a principal âncora a sustentar o intérprete é o objetivo social, a promoção da melhoria das condições de vida do trabalhador. Neste compasso, e ao silêncio da lei, é lícito ao aplicador do direito valer-se dos meios integrativos do sistema, consoante prevê o art. oitavo da CLT, preenchendo as lacunas da norma através da analogia, dos princípios gerais do direito e da equidade, conforme o caso. (BRASIL, TRT13, p. 83).

A resposta à pergunta sobre se esses pedidos judiciais de direitos negados pela

lei constituem aventura jurídica ou resistência é, talvez, frustrante, eis que aberta.

Julgadores, principalmente no âmbito da segunda instância, costumam ter perspectivas

muito mais pragmáticas, voltadas à subsunção exata dos pedidos à lei. Há uma tendência

para repetir proposições cristalizadas e naturalizar seus próprios conceitos no momento

de refletir sobre o direito. No geral não há a busca de ferramentas analíticas ou empíricas

para auxiliar nos julgamentos (POSNER, 2021; RODRIGUEZ, 2013). Sob essa

perspectiva, os repetidos pleitos das empregadas domésticas talvez sejam considerados

uma “aventura”. Mas observando por outro prisma, as petições iniciais nesses processos

constituem um pedido de tratamento igual, de aplicação de princípios constitucionais.

Mesmo considerando que tais petições não representem a voz das próprias empregadas,

pois muitas não tinham conhecimento dos seus direitos e buscaram a mediação de um

advogado ou advogada, ainda assim esses processos podem significar a agência de uma

categoria que, ao contrário do que diz o senso comum, não se conformou com a

desigualdade e buscou espaços de manifestação. Nesse sentido, o poder judiciário, ainda

que por meio de um olhar retrospectivo, surge como um espaço de fala para essas

mulheres (parcial e mediada). A resposta a essas demandas, que compõem, em sua

maioria, uma jurisprudência de exclusões, desponta como o retrato de como o direito

pode ratificar desigualdades.

149

5.7 Por um direito do trabalho antidiscriminatório e decolonial

“Hoje, o que se torna inadiável é que a cidadania redescubra as potencialidades democráticas do trabalho”. (ANDRADE, 2012, p. 43)

Ao longo de todo esta pesquisa, foram expostas questões históricas e

estruturais que resultam na desvalorização e na ausência de reconhecimento do serviço

doméstico. Procedeu-se ao exame da legislação, da doutrina, da jurisprudência e da

dinâmica das audiências trabalhistas. Criticou-se o direito do trabalho, por construir e

reproduzir desigualdades. Diante de todas essas constatações, faz-se necessário

questionar: quais os limites do direito para lidar com questões estruturais tão complexas?

Pode o direito emancipar?

Taylisi Leite afirma:

(...) concluímos que jamais haverá verdadeira emancipação das mulheres por meio da positivação de direitos e da tutela estatal, por uma questão lógica de que, estruturalmente, direito e Estados foram projetados para reproduzir um valor masculino. (LEITE, 2020, p. 458).

De fato, a forma assumida pelo direito é masculina. E não só masculina, mas

também branca e eurocêntrica. A doutrina trabalhista que prevalece é a que oculta

sujeições interseccionais resultantes da divisão sexual e racial oriundas da colonização,

que persistem até os dias de hoje em razão do que se denomina colonialidade do saber e

do poder. Uma abordagem diferente, com a ideia de visibilizar e combater essas sujeições,

pode advir de uma crítica ao próprio direito, com base em um pensamento pós-colonial,

que desmistifique o processo de produção de conhecimento, de matriz eurocêntrica, e que

deixe de reproduzir a lógica colonial (MURADAS E PEREIRA, 2018).

Nesse cenário, destaca-se o projeto de um direito antidiscriminatório, que se

insere numa perspectiva decolonial. A prática de um direito antidiscriminatório possui

relação com a ideia de proporcionar a todos os grupos o reconhecimento nas esferas

jurídica e da solidariedade, uma vez que no seu cerne está a consideração de que todos os

indivíduos possuem idêntico valor moral e devem ser considerados aptos e hábeis para a

deliberação e a participação política. A igualdade, um conceito notadamente relacional,

pressupõe a incompatibilidade de certos tipos de hierarquia social com o próprio regime

democrático (MOREIRA, 2020).

150

O direito antidiscriminatório apresenta todo um aporte teórico plenamente

aplicável a direito do trabalho, uma vez que ele não constitui uma disciplina autônoma,

estanque, e sim um estudo que atravessa todos os “Direitos”.

Conforme registra Moreira (2017), há muitos normas jurídicas no país

vedando a discriminação, todavia tais normas utilizam uma linguagem que mostra o

manejo de uma concepção de discriminação intencional e arbitrária. Essas normas

regulam determinados comportamentos que de modo intencional iriam impedir o

exercício de algum direito.

Nesse sentido, Moreira (2020), afirma que legisladores e doutrinadores

entendem a discriminação basicamente em sua manifestação direta, mediante a imposição

a outro de um tratamento de desvantagem com base em um critério que a lei considera

inválido. Assim, faz-se necessário um avanço para detectar as assimetrias estruturais e o

papel do direito na reprodução de tais assimetrias.

A história das trabalhadoras domésticas é uma história de discriminação, que

tem suas bases em sistemas de dominação nos quais racismo, sexismo e desigualdades

se articulam. Essa história desafia o direito do trabalho, interpela seu caráter protetivo e

sua abrangência. Quando Sojouner Truth, mulher negra, proferiu seu célebre discurso em

1852, em Akron, Ohio, suscitou um questionamento que ressoa até hoje no movimento

feminista : “E eu não sou uma mulher?”:

“Olhem pra mim! Olhem para meu braço! [...] Eu lavrei e plantei e juntei os grãos no celeiro e nenhum homem conseguia passar na minha frente – e eu não sou uma mulher? Eu conseguia trabalhar tanto quanto qualquer homem (quando conseguia trabalho), e aguentar o chocote também – e eu não sou uma mulher? Pari cinco crianças e vi a maioria delas ser vendida para a escravidão, e quando chorei meu luto de mãe, ninguém além de Jesus me ouviu – e eu não sou uma mulher?”(HOOKS, 2019, p. 253)

À maneira de Sojouner Truth, as trabalhadoras domésticas continuamente

interpelaram o direito do trabalho, por meio do envio de projetos de lei, de postulações

judiciais e do movimento associativo e sindical, questionando: “E eu não sou uma

trabalhadora?” A categoria, que ainda não obteve reconhecimento pleno, continua sendo

um desafio a esse direito, uma vez que sua situação de marginalidade diz muito sobre os

limites da proteção trabalhista.

Pode o direito emancipá-las? A presente pesquisa não responde a esse

instigante questionamento, mas sugere que a interseccionalidade, a decolonialidade e

a construção de um direito antidiscriminatório podem ser estratégias para se imaginar e

151

se buscar um outro mundo, no qual elas possam redigir novos capítulos da luta por

redistribuição, reconhecimento e justiça social.

152

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente dissertação abordou o longo percurso rumo ao reconhecimento

jurídico e social do serviço doméstico, percurso este que ainda não está completo, uma

vez que persistem diferenças entre a categoria e os demais trabalhadores, tanto sob o

aspecto da concessão legal quanto das condições para efetivação de alguns dos direitos,

sobretudo àqueles relativos à saúde e segurança.

Buscou-se responder à pergunta: por que esse trabalho, que constitui um

mecanismo essencial ao funcionamento da sociedade, é sistematicamente ignorado pelo

legislador e pelos juristas? Por que subsiste o entendimento de que o trabalho doméstico

não é um trabalho “como outro qualquer”?

A investigação teve início com pesquisa bibliográfica, sendo constatada uma

lacuna na literatura jurídica, que avança timidamente em direção a uma análise mais

ampla do instituto. Foi observado que falar sobre serviço doméstico implica falar sobre

trabalho doméstico gratuito e sobre o esforço da teoria feminista para afastá-lo da posição

de “não trabalho”. As estatísticas sobre o serviço doméstico no Brasil indicaram a

necessidade de se investigar a razão da presença predominante de mulheres negras e

periféricas na função, o que induziu a uma pesquisa sobre raça e classe. A teoria do

reconhecimento de Axel Honneth permitiu a fixação de uma base teórica, fornecendo os

pressupostos sobre os quais foram buscados elementos que atestassem o nível de

reconhecimento obtido por esse tipo de serviço.

A hipótese inicial da ausência de reconhecimento foi plenamente confirmada.

As respostas para a pergunta de pesquisa foram no sentido de que diversos fatores

convergiram e convergem até o momento para o não reconhecimento: a persistência da

associação entre mulher e trabalho doméstico; a presunção de que não há intenção de

recebimento de contraprestação, ou em outras palavras, a expectativa de que esse trabalho

seja feito por amor; a histórica exclusão do trabalho doméstico do mundo “produtivo”, e

a ideia de que a reprodução social constitui um tema privado, desconectado da produção

e irrelevante para o interesse público; a persistência da divisão sexual do trabalho; o baixo

ou quase nulo status social do trabalho braçal, historicamente associado à escravidão, e o

enquadramento do serviço doméstico nessa categoria de trabalho braçal e “sujo”; o nexo

de continuidade entre o trabalho doméstico escravizado e o serviço doméstico

remunerado; a divisão racial do trabalho, que reserva para pessoas negras os trabalhos

mais desvalorizados; o colonialismo persistente não só na legislação, mas também nos

153

vieses que moldam a visão de grande parte dos juristas, os quais reproduzem a

naturalização das discriminações e as repassam às novas gerações de estudantes do

direito.

No que diz respeito ao nexo de continuidade entre trabalho escravo e serviço

doméstico, restou evidente o quanto a constituição da categoria de trabalhadoras

domésticas livres buscou preservar sistemas de dominação e mando. Se a classe

trabalhadora brasileira foi se formando em um contexto de tentativa de preservação de

estruturas coloniais, a classe de trabalhadoras domésticas, sempre um passo atrás, sentiu

ainda com mais força os efeitos de um processo de abolição que se deu unicamente no

interesse dos brancos.

O direito e as relações sociais são inseparáveis, e há uma retroalimentação

entre a discriminação jurídica e o sistema de exclusão social, apontando para tais

trabalhadoras lugares pré-determinados de exclusão e humilhação. Constatou-se, todavia,

que nunca houve uma total conformação a esse lugar, ao contrário do que prega o senso

comum. O acesso a fontes documentais revelou a apresentação de projetos de lei, que

jamais foram aprovados, e uma mobilização associativa e sindical que refletiu uma

intensa resistência, ante todas as dificuldades para a militância, impostas pela falta de

condições financeiras, pelo isolamento das trabalhadoras e pela falta de tempo para

participar das atividades políticas, sobretudo em épocas nas quais era grande o número

de residentes no trabalho. Foi identificada, também, uma resistência narrativa, que agora

conta histórias de empregadas domésticas, lhes confere o acesso a espaços de fala e

constrói novas representações, confrontando estereotípicos, imagens de controle e lhes

dando protagonismo.

Ao final, tornou-se necessária uma crítica ao próprio direito do trabalho, sem

fugir da ambiguidade e do desconforto de criticar um direito socialmente relevante, em

diversos aspectos uma grande conquista da classe trabalhadora, mas que por outro lado

possui uma estrutura de pensamento que naturaliza hierarquias e exclusões.

A conclusão da pesquisa é no sentido de que o direito precisa da

interdisciplinaridade para poder observar os institutos com uma visão mais abrangente.

Nesse sentido, ele precisa, também, conhecer e fazer uso de uma ferramenta analítica

muito eficiente, a interseccionalidade. A histórica discriminação das trabalhadoras

domésticas desponta como um desafio a esse direito, pois questiona seu caráter protetivo

e a real abrangência de suas disposições e princípios.

154

Há uma nova geração de juristas atenta a esses temas, produzindo trabalhos

científicos nesse sentido, divulgando por meio da publicação em livros, da discussão em

podcasts e em redes sociais. No que diz respeito ao trabalho doméstico, essa produção é

extremamente necessária. Espera-se que a presente pesquisa possa se juntar a tais

trabalhos, constituindo um material de estudo e reflexão para auxiliar na construção das

transformações que ainda estão por vir, rumo à plena igualdade da categoria.

155

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175

ANEXOS

ANEXO A – Poema de Jorge de Lima: Essa negra fulô. Essa negra fulô

Ora, se deu que chegou

(isso já faz muito tempo)

no bangüê dum meu avô

uma negra bonitinha,

chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

— Vai forrar a minha cama

pentear os meus cabelos,

vem ajudar a tirar

a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!

ficou logo pra mucama

pra vigiar a Sinhá,

pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

176

vem me ajudar, ó Fulô,

vem abanar o meu corpo

que eu estou suada, Fulô!

vem coçar minha coceira,

vem me catar cafuné,

vem balançar minha rede,

vem me contar uma história,

que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa

que vivia num castelo

que possuía um vestido

com os peixinhos do mar.

Entrou na perna dum pato

saiu na perna dum pinto

o Rei-Sinhô me mandou

que vos contasse mais cinco".

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

Vai botar para dormir

esses meninos, Fulô!

"minha mãe me penteou

minha madrasta me enterrou

pelos figos da figueira

que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

177

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá

Chamando a negra Fulô!)

Cadê meu frasco de cheiro

Que teu Sinhô me mandou?

— Ah! Foi você que roubou!

Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra

levar couro do feitor.

A negra tirou a roupa,

O Sinhô disse: Fulô!

(A vista se escureceu

que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

Cadê meu lenço de rendas,

Cadê meu cinto, meu broche,

Cadê o meu terço de ouro

que teu Sinhô me mandou?

Ah! foi você que roubou!

Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar

sozinho a negra Fulô.

178

A negra tirou a saia

e tirou o cabeção,

de dentro dêle pulou

nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

Cadê, cadê teu Sinhô

que Nosso Senhor me mandou?

Ah! Foi você que roubou,

foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

179

ANEXO B – Poema Outra nega Fulô, de Oliveira Silveira.

Outra Nega Fulô

O sinhô foi açoitar

a outra nega Fulô

– ou será que era a mesma?

A nega tirou a saia,

a blusa e se pelou.

O sinhô ficou tarado,

largou o relho e se engraçou.

A nega em vez de deitar

pegou um pau e sampou

nas guampas do sinhô.

– Essa nega Fulô!

Esta nossa Fulô!,

dizia intimamente satisfeito

o velho pai João

pra escândalo do bom Jorge de Lima,

seminegro e cristão.

E a mãe-preta chegou bem cretina

fingindo uma dor no coração.

– Fulô! Fulô! Ó Fulô!

A sinhá burra e besta perguntou

onde é que tava o sinhô

que o diabo lhe mandou.

– Ah, foi você que matou!

– É sim, fui eu que matou –

disse bem longe a Fulô

pro seu nego, que levou

ela pro mato, e com ele

aí sim ela deitou.

Essa nega Fulô!

Esta nossa Fulô!

180

ANEXO C – Cópia do Acórdão extraído do Jornal do Commercio, 1930

181

182

ANEXO D: Cópia da pesquisa de 1963, sobre direitos das empregadas domésticas, com

vistas à aprovação de projeto para incluí-las como seguradas perante a Previdência Social.


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