FACULDADE DE LETRAS
UNIVERSIDADE DO PORTO
Pedro Miguel Meleiro Sobrado
2.º CICLO DE
Heranças clássica e bíblica em
de Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal
Orientador: Professora Doutora Isabel Morujão
Classificação: Ciclo de estudos:
Dissertação:
Pedro Miguel Meleiro Sobrado
ICLO DE ESTUDOS EM ESTUDOS DE TEATRO
Dívida soberana Heranças clássica e bíblica em Desejo Sob os Ulmeiros
Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal
2014
Orientador: Professora Doutora Isabel Morujão
Classificação: Ciclo de estudos: 19
20
Desejo Sob os Ulmeiros,
Eugene O’Neill, e notícia de duas encenações em Portugal
Versão definitiva
Resumo
Em 1924, Eugene O’Neill estreou Desejo Sob os Ulmeiros, folk tragedy que representou o ápex da
primeira fase da sua produção dramática e outorgou ao proclamado fundador da moderna dramaturgia
norte-americana uma estatura internacional. Impugnando a despótica centralidade do argumento
biografista e clínico na interpretação da peça, a presente dissertação pondera as relações intertextuais que
ela estabelece, por um lado, com a tragédia clássica e, por outro, com as narrativas sagradas. Mais do que
um levantamento exaustivo de paralelismos, citações e ressonâncias, procura-se compreender como os
arquétipos clássicos e bíblicos operam no interior do texto o’neilliano e quais as suas consequências, em
termos de expressividade dramática e de sentido. Se o Hipólito de Eurípides se afigura a raiz de Desejo
Sob os Ulmeiros – serve-lhe de eixo e modelo –, a simbólica bíblica manifesta-se rizomaticamente: é
acentrada, plural, dinâmica. Sendo o teatro uma “arte a dois tempos” (Henri Gouhier), que reclama o
devir cénico dos seus textos, a nossa reflexão é complementada pela avaliação da posteridade de Desejo
Sob os Ulmeiros no teatro português, através da análise de encenações de João Lourenço (1990) e, em
especial, de Nuno Cardoso (2011).
Palavras-chave: Eugene O’Neill, Desejo Sob os Ulmeiros, Drama Americano, Tragédia Clássica,
Eurípides, Hipólito, Bíblia, Teatro Português, João Lourenço, Nuno Cardoso
Abstract
In 1924, Eugene O’Neill premiered Desire Under the Elms, a folk tragedy that marked the high point of
the first phase of his dramatical production and conferred international status on the proclaimed founding
father of modern American drama. Challenging the despotic centrality of the biographical and clinical
argument in the interpretation of the play, this dissertation considers its intertextual relations with
classical tragedy, on the one hand, and with sacred narratives, on the other. Not just an exhaustive survey
of parallels, citations and resonances, this work aims to examine how classical and biblical archetypes
operate within O’Neill’s text, and how they effect its dramatic expressiveness and meaning. If Euripides’
Hippolytus seems to lie at the root of Desire Under the Elms – serving as a fulcrum and a model –, the
biblical symbolism operates rhizomatically, being eccentric, plural and dynamic. Understanding theatre as
an “art à deux temps” [art in two steps] (Henri Gouhier) that demands the actual staging of the text, our
reflexion is supplemented by a look at how posterity has treated Desire Under the Elms in the context of
Portuguese theatre. We analyse the staging of the play by João Lourenço (1990) and, particularly, by
Nuno Cardoso (2011).
Keywords: Eugene O’Neill, Desire Under The Elms, American Drama, Greek Tragedy, Euripides,
Hippolytus, Bible, Portuguese Theatre, João Lourenço, Nuno Cardoso
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Índice
Agradecimentos………………………………………………………………………….4
Introdução………………………………………………………………………………..8
1. Uma dramaturgia na primeira pessoa………………………………………………..13
2. Herança clássica
Limiar……………………………………………………………………...……21
2.1. Uma tragédia por escrever…………………………………………………23
2.2. Núpcias de morte…………………………………………………………..27
2.3. Caracteres de uma primitiva escrita………………………………………..36
2.4. The Force behind…………………………………………………………..45
3. Herança bíblica
Limiar…………………………………………………………………………...55
3.1. Pedras de tropeço…………………………………………………………..58
3.2. Trinta moedas, e um prato de lentilhas…………………………………….64
3.3. Máquina de emaranhar paisagens………………………………………….71
4. Notícia de duas encenações em Portugal
4.1. Muito cuidado com o teatro………………………………………………..77
4.2. Ecos do primeiro Desejo – a encenação João Lourenço…………………...82
4.3. O som e a fúria – a encenação de Nuno Cardoso………………………….88
Conclusão……………………………………………………………………………..107
Bibliografia……………………………………………………………………………114
Anexos………………………………………………………………………………...120
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Agradecimentos
À Professora Isabel Morujão, que me demonstrou que uma orientadora pode albergar em si uma
pequena multidão: professora, psicóloga, amiga, cúmplice (quase no sentido criminal!), personal trainer,
sage… Não fossem o seu saber e ânimo (apetece dizer: a sua gaia ciência), a minha errática conduta
académica teria conduzido a nenhures. A nossa demanda pela História de Deus de Gil Vicente deixou de
ser passível de breve sumário numa dissertação de mestrado: partindo dessa pedregosa terra do demo
(“terra que tenho de cardos e de pedras/ que vai desde Sintra até Torres Vedras…”), vimo-nos chegados à
puritana Nova Inglaterra de O’Neill, onde God’s hard, not easy.
Ao Teatro Nacional São João – nas pessoas dos seus Administradores Francisca Carneiro Fernandes,
Salvador Santos e José Matos Silva e do seu Diretor Artístico, Nuno Carinhas –, instituição onde tenho
o privilégio de trabalhar e que pronta e generosamente me apoiou; à Paula Braga e ao ‘seu’ Centro de
Documentação, em cujas estantes encontrei boa parte da minha biblioteca.
À Professora Alexandra Moreira da Silva, pelo desafio que me lançou para cursar este Mestrado de
Estudos de Teatro, arduamente planeado com Paulo Eduardo Carvalho, e por tudo o que com ela – e ele
– aprendi. À Professora Marta Várzeas, pela atenção que dedicou a um trabalho preliminar sobre a
afinidade entre o Desejo o’neilliano e o Hipólito euripidiano, formulando recomendações que, pelo seu
acerto, não pude senão aproveitar. Agradecimento devido também pelos posteriores esclarecimentos
sobre alguns aspetos da cultura clássica.
Ao meu dedicado amigo Nuno Moreira , exemplar investigador desta Casa, no qual estas páginas
encontraram o mais entusiasmado leitor a que poderiam aspirar. Ao Ricardo, que não leu, mas creu –
bem-aventurado!
À Vera San Payo de Lemos, que amavelmente se dispôs a fornecer-me elementos sobre a encenação de
Desejo Sob os Ulmeiros realizada por João Lourenço, e à Joana Grande, do Teatro Aberto, pelo expedito
envio de artigos e imagens. Ao David Antunes, pela pronta cedência das suas traduções de Nevoeiro e
Sede. Ao João Tuna, pelas fotografias que fazem a nossa memória de espectadores.
Ao Nuno Carinhas, que me inventou como ‘dramaturgista’: a sua amizade e confiança valem-me mais
do que um grau académico. Ao João Luís Pereira, colega de carteira nas Edições do TNSJ, o
espectador emancipado que, em boa medida, me iniciou no Teatro.
À Abigail (a minha tão assisada Abbie!), a quem gostaria de devolver o tempo de vida que este curso de
mestrado, ou melhor, que a minha dispersão, indisciplina e vis inertiae criminosamente lhe subtraíram.
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Indicações de leitura
Os passos de Desejo Sob os Ulmeiros transcritos nesta dissertação provêm de uma
tradução de Jorge de Sena, realizada no final da década de 1950 e disponível numa
edição das Publicações Europa-América. Tendo em conta o número de citações,
optamos por não incluir em rodapé qualquer nota, indicando entre parênteses retos o ato
e a cena a que cada uma diz respeito e remetendo para a bibliografia final o crédito
editorial. O mesmo se aplica à tradução do Hipólito, da autoria de Frederico Lourenço.
No que se refere às peças de Eugene O’Neill, nomeamos o título da tradução portuguesa
mais recente ou familiar (sinalizando, na primeira menção, o título original entre
parênteses retos e o ano da sua estreia); nos casos em que as peças não foram traduzidas
para edição ou cena, mencionamos o título original.
A quase totalidade das citações de ensaios, biografias e obras especializadas sobre
Eugene O’Neill e Desejo Sob os Ulmeiros provém de obras publicadas em língua
estrangeira. Optamos por incluir esses passos numa tradução da nossa responsabilidade
(exceto quando indicado), remetendo para rodapé as respetivas referências
bibliográficas.
Em relação às citações bíblicas, privilegiamos, de um modo geral, a versão da Bíblia
Sagrada da Difusora Bíblica (Franciscanos Capuchinhos), publicada pela primeira vez
em 1998. Em alguns casos, por razões estritamente literárias, citamos a tradução da
Bíblia realizada, no século XVII, por João Ferreira d’Almeida, um improvável
protestante português na ilha de Java.
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Introdução
EBEN: Eu sou… o herdeiro.
EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros
“A obra dramática de Eugene O’Neill é a de um herdeiro.”1 Assim inicia Jean-
Pierre Sarrazac o ensaio que dedicou ao dramaturgo norte-americano nascido em 1888 –
o mesmo ano que viu nascer Fernando Pessoa, como lembrou Jorge de Sena2 – e
desaparecido em 1953. A proposição do dramaturgo e ensaísta francês considera
naturalmente o pesado legado familiar de O’Neill, a sua manifesta impossibilidade em
romper o vínculo parental, uma memória da infância impossível de rasurar. Mas Jean-
Pierre Sarrazac não tem apenas em mente aquilo que tem sido explorado ad nauseam
por comentadores e comentadores de comentadores: se é possível classificar Longa
Jornada para a Noite [Long Day’s Journey Into Night, 1956] como a obra de um
herdeiro é porque O’Neill se apropria de um legado que é tão desejado quanto a
herdade – palavra que é sinónima de herança – disputada pelas personagens de Desejo
Sob os Ulmeiros [Desire Under the Elms, 1924]. Referimo-nos aos grandes dramaturgos
da viragem do século, de que a obra desse eterno filho é altamente devedora: Tchékhov,
Ibsen, Strindberg. Particularmente, Strindberg, de quem recebe o método da confissão
dramática. Nota Sarrazac: “Strindberg, cuja encenação conjugal, atravessada por uma
torturante nostalgia de fusão com a mulher – ou com a mãe –, serve de modelo
permanente às peças de O’Neill, funciona para o escritor americano de origem irlandesa
como tutor ou pai.”3
A presente dissertação vasculha a herança de que Eugene O’Neill tomou posse –
aquela porção que o legatário investiu na composição de um drama que, segundo o
parecer unânime da crítica, certifica a maioridade do dramaturgo: Desejo Sob os
1 Jean-Pierre Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, in Théâtres Intimes, Paris,
Actes Sud, 1989, p. 47. 2 Vide Jorge de Sena, “O Testamento de Eugene O’Neill”, in Do Teatro em Portugal, Lisboa, Edições 70,
1989, p. 383. 3 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 47.
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Ulmeiros.4 Este inventário crítico não visa o levantamento dos elementos da tradição
teatral mencionados por Jean-Pierre Sarrazac – a avaliação do legado strindberguiano é
exterior ao âmbito deste trabalho –, mas antes o estudo da apropriação, por parte de
O’Neill, de uma dupla e vasta herança: clássica e bíblica, grega e judaico-cristã.
Realizada, pois, no capítulo inicial, uma breve apreciação do argumento biográfico e
clínico na receção crítica da peça estreada em Novembro de 1924, detemo-nos mais
demoradamente, no segundo capítulo, sobre a ambição primeira do dramaturgo norte-
americano (“recriar o espírito grego foi a meta que fixou para si mesmo”,5 assinalou
Egil Törnqvist); o modo como tal aspiração se cumpre (ou não) em Desejo Sob os
Ulmeiros; as ressonâncias dos mitos de Édipo e Medeia contidas na peça; e, muito
especialmente, a homologia estrutural entre este American classic e o Hipólito de
Eurípides, “o mais trágico dos poetas trágicos”, na célebre definição de Aristóteles.6
Depois de considerada a raiz trágica de Desejo, debruçar-nos-emos, no terceiro
capítulo, sobre o rizoma bíblico7 que se propaga no seu enredo. Mobilizando a
simbólica e a imagística das Escrituras, bem como algumas das suas narrativas (em
particular, a de Jacob e Esaú), procurar-se-á expor o conflito e as personagens a uma
outra luz, não para acrescentar mais um item ao já copioso rol de fontes invocadas a
4 Desse consenso cite-se, a título de exemplo, o clássico Contour in Time (1972) de Travis Bogard, autor
desaparecido em 1997 que continua hoje a ser estimado como um dos mais consistentes investigadores da
obra de Eugene O’Neill: “[Desejo Sob os Ulmeiros] atinge uma perfeição de conteúdo e de forma que
nenhuma peça anterior do escritor tinha alcançado. É uma obra de arte criada por um dramaturgo que, ao
dominar o seu ofício e ao compreender cabalmente as implicações do tema, atinge finalmente a
maioridade.” Travis Bogard, Contour in Time, in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive
[em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/contour/triumvirate1/desire.
htm˃ [consult. 13-05-2012]. 5 Egil Törnqvist, “O’Neill’s philosophical and literary paragons”, in Michael Manheim (ed.), The
Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 19. 6 “Foi Aristóteles que, para descrever o teatro de Eurípides, dotou o adjetivo ‘trágico’ de uma forma do
superlativo absoluto sintético: tragicíssimo (tragikótatos). O mais trágico dos poetas trágicos”. Frederico
Lourenço, “Eurípides: Trágico no Superlativo”, in Grécia Revisitada: Ensaios sobre Cultura Grega,
Lisboa, Cotovia, 2004, p. 58. 7 Raiz e rizoma: conceitos epistemológicos tematizados por Guattari e Deleuze que explicitaremos no
decurso deste trabalho, bem como na nossa conclusão. Vide Gilles Deleuze/Felix Guattari, Mille
Plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980.
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propósito de Desejo Sob os Ulmeiros, nem talvez para produzir mais significado, mas,
se nos for possível, para perceber melhor como é aquilo que é.8
Apesar de a estrutura do estudo ser praticamente simétrica na apreciação dos
dois espólios simbólicos e narrativos, tendemos a considerar o capítulo relativo aos
valores bíblicos como especialmente relevante e necessário: um tal parecer não decorre
da presunção dos méritos intrínsecos desse trabalho em particular, nem sequer do
pressuposto de que a quota-parte do legado proveniente das Sagradas Escrituras se
revela mais decisiva na compreensão da peça do que aquela que provém das tragédias
da Antiguidade. A razão é diversa: enquanto a matriz clássica de Desejo adquiriu, no
decurso dos anos, contornos de ‘evidência’ – críticos e investigadores não hesitam em
classificá-la como “a primeira tragédia de relevo a ser escrita na América”9 ou em tomá-
la como a “refutação do axioma de que a tragédia é uma proeza impossível para os
dramaturgos modernos”10 –, a simbólica bíblica manifesta-se de modo obscuro e difuso,
sendo geralmente objeto de referências breves ou de pontuais e dispersivos comentários.
Nisto, o próprio dramaturgo desempenhou o seu papel, pois as descrições que foi
fornecendo da peça, bem como a sua aspiração a ser lido como um tragediógrafo,
favoreceram a ênfase crítica sobre os arquétipos clássicos. Por seu turno, as citações e
alusões bíblicas disseminadas pela superfície do texto dramático acabam por
desencadear um efeito de despistagem, dando a ler-se como decorativas alusões que
viriam apenas introduzir um novo grau de verosimilhança numa peça inscrita na Nova
Inglaterra de 1850, profundamente marcada pelo puritanismo e a sua tradição político-
teológica. Como tentaremos demonstrar, a influência do Livro dos Livros transcende
largamente uma função ornamental ou o papel de adereço, infundindo na ficção teatral
de O’Neill uma fulgurante energia dramática. É nesse arsenal simbólico, teatro do
natural e do sobrenatural ou atlas do humano – the Great Code of Art, na famosa
8 O que aparenta ser um humilde desígnio pode revelar-se a maior das arrogâncias. No texto, aludimos a
um passo de “Contra a Interpretação”, ensaio de Susan Sontag que marcou uma época: “A função da
crítica devia ser mostrar como é o que é, ou mesmo que é o que é, em vez de mostrar o que significa.”
Susan Sontag, “Contra a Interpretação”, in Contra a Interpretação e Outros Ensaios, trad. José Lima,
Lisboa, Gótica, 2004, p. 32. 9 T. Bogard, Contour in Time, op. cit. 10 Margaret Loftus Ranald apud Stephen A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, New
Haven/London, Yale University Press, 1999, p. 318.
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definição de William Blake11 – que se encontrará o sentido e o nexo de várias cenas
nucleares de Desejo Sob os Ulmeiros e de feições particulares das suas personagens em
carne viva.
Diremos, em suma, que este trabalho visa associar ao legado ático, no interior do
qual Eugene O’Neill programaticamente se move, uma outra herança, que vem
capitalizar decisivamente a empresa do dramaturgo americano. É nossa convicção que,
na composição de Desejo Sob os Ulmeiros, O’Neill é fortemente atraído por aquilo que
George Steiner chama “o magnetismo dual da Atenas pagã e da Jerusalém hebraica”.12
Como o autor de A Morte da Tragédia e de Depois de Babel, o dramaturgo também
poderia dizer: “Venho depois de Atenas e depois de Jerusalém. Todos nós vivemos no
interior desta dupla herança.”13 Se, de facto, como sugere Sarrazac, herdeiro é o epíteto
justo para descrever O’Neill, é também porque no seu labor dramatúrgico se apropria
desses atos de fala fundadores da nossa ‘civilização’, textos que, através dos séculos,
mantêm intacta toda a sua força germinativa. Escreve o triestino Claudio Magris:
“Heine dizia que houve dois povos na história do mundo, ou pelo menos do Ocidente,
os judeus e os gregos, que expressaram a essência da vida para todos e para sempre.
Com efeito, a Bíblia – Antigo e Novo Testamentos – e a tragédia e o mito gregos
continuam a fornecer-nos as chaves e as imagens para compreender quem e o que
somos, a culpa e a salvação, o exílio e o regresso”.14
Em relação a esta herança, Eugene O’Neill bem poderia argumentar nos termos
em que Eben se refere a Minnie: “Possuí-a. Pode ter sido dele… e vossa também… Mas
agora é minha!” [I Parte, Cena 3].
Poderíamos, talvez, ficar-nos por aqui. Sucede, porém, que todo o verdadeiro
texto dramático clama pela cena, pela teatralidade, e que, por outro lado, o
acontecimento teatral – a encenação, a representação, o jogo do ator – transcende uma
mera operação de transferência do papel para o palco. Patrice Pavis explica que a
11 Apud Northrop Frye, The Great Code: The Bible and Literature, New York, Harcourt Brace
Jovanovich Publishers, 1983, p. xvi. 12 George Steiner, A Ideia de Europa, trad. Maria de Fátima Aubyn, Lisboa, Gradiva, 2005, pp. 41-42. 13 George Steiner/Ramin Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, trad. Miguel Serras
Pereira, Lisboa, Fenda, 2006, p. 105. 14 Claudio Magris, “El Alfabeto del Mundo”, in Alfabetos: Ensayos de Literatura, trad. Pilar González
Rodríguez, Barcelona, Anagrama, 2010, p. 24.
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encenação não corresponde à “redução ou transformação de um texto em espetáculo,
mas antes ao seu confronto”, ou seja, à aptidão de “pôr o texto sob uma tensão
dramática e cénica”.15 Por essa razão, num capítulo final, damos notícia das duas únicas
encenações profissionais de Desejo Sob os Ulmeiros realizadas, com vinte anos de
distância, em Portugal, por destacados criadores teatrais de diferentes gerações: João
Lourenço (n. 1944), do Novo Grupo/Teatro Aberto, e Nuno Cardoso (n. 1970), da
companhia Ao Cabo Teatro. Da primeira encenação, produzida em 1990, tomámos
conhecimento através de documentos da época (imprensa, fotografias, programa de
sala); da segunda, socorremo-nos do mesmo tipo de recursos, bem como de um registo
vídeo de plano fixo, mas beneficiamos sobretudo desse arquivo intempestivo que é a
nossa memória de espectadores.16 Invocando, pois, duas categorias tematizadas por
Patrice Pavis, diremos que, no primeiro caso, ensaiaremos um breve exercício de
reconstituição da representação a partir dos “resíduos do ato teatral”;17 no segundo,
fundamo-nos sobre a “experiência individual e única do espectador confrontado com o
acontecimento cénico”.18 No que diz respeito à encenação de Nuno Cardoso, para além
deste indispensável contacto direto com o espetáculo finalizado – nas palavras de Pavis,
a “regra de ouro” da análise da criação teatral –, foi-nos ainda dado assistir a ensaios,
em momentos distintos do processo de criação. Daí que a reflexão sobre esta segunda
encenação de Desejo Sob os Ulmeiros possa expandir-se significativamente para além
da simples nótula histórica. Digamos que, ao ponderarmos as diversas escolhas e
escolas em jogo nas duas produções, é nossa intenção bifurcar o itinerário das
interpretações e, mesmo que modestamente, evidenciar o homem de teatro que – desde
os primeiros dias nos Provincetown Players de Massachusetts até à colaboração final
com o nova-iorquino Theatre Guild – Eugene O’Neill também foi.
15 Patrice Pavis, “From Stage to Page: A Difficult Birth”, in Theatre at the Crossroads of Culture, trad.
Loren Kruger, London/New York, Routledge, 1992, pp. 26, 30. 16 Eugenio Barba advoga que a experiência teatral escapa aos media e diz sobretudo respeito à memória
do espectador: “Na época da memória eletrónica, do filme e da reprodutibilidade, o espetáculo teatral
dirige-se à memória viva, a qual não é um museu, mas metamorfose”. Apud Patrice Pavis, L’Analyse des
spectacles, Domont, Armand Colin, 2008, p. 43. 17 Idem, p. 21. 18 Idem, p. 22.
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1. Uma dramaturgia na primeira pessoa
Desculpem-me não ser simpático, mas acabo de chegar do Inferno.
BENJAMIN DE CASSERES, sobre o semblante de Eugene O’Neill19
Existências como a de Eugene O’Neill – marcadas pelo excesso e pelo ferrete do
trágico – tornam irresistível o exercício crítico que consiste em ler a obra à luz da vida,
em escandir toda uma literatura diversa ao ritmo dos mesmos factos de uma existência.
Apesar de, no princípio da década de 70, Louis Sheaffer ter empreendido, em dois
volumes galardoados com o Prémio Pulitzer, um trabalho biográfico de uma amplitude
e minúcia praticamente insuperáveis, no caso do dramaturgo norte-americano, o passado
é tão funestamente transbordante, que é seguro afirmar que cada biógrafo ou crítico terá
direito ao seu quinhão de conjeturas e correspondências. Objetar-se-á que uma tal
estratégia interpretativa se revela não apenas altamente sedutora, mas efetivamente
necessária, tendo em consideração que é da vida que toda a escrita de O’Neill
umbilicalmente se alimenta: que outro tópico é no seu teatro objeto de tão obsessivas
cogitações e ruminações quanto o familiar, nomeadamente o relacionamento entre pais e
filhos? À semelhança do Conrad de O Coração das Trevas, autor que prezava
imensamente, Eugene foi marinheiro e viajante experimentado, mas, de certo modo,
nunca chegou a sair de casa, a deixar pai e mãe. Também é verdade que nunca chegou a
ter uma casa, e esse tornou-se o problema nodal do seu teatro.20 Perguntamos de novo:
se o seu teatro testemunha a espetacularidade do íntimo, se participa de uma estética do
buraco de fechadura – como diria Nelson Rodrigues, “anjo pornográfico” que tanto
19 Apud Barrett H. Clark, Eugene O’Neill: The Man and His Plays, New York, Dover, 1947, p. 40. 20 A culpa que Mary imputa ao marido, James Tyrone, dá conta desse vazio ardente em torno do qual
volteiam os dramas o’neillianos: “[O teu pai] viveu demais em hotéis. E claro que nunca nos melhores.
Sempre em hotéis de segunda ordem. Não compreende o que é um lar. Nem se sente à vontade nele. E, no
entanto, anseia por um lar. Chega a ter orgulho neste buraco miserável.” Mais adiante, referindo-se às
criadas, censura de novo o marido: “Não é justo esperar que a Bridget ou a Cathleen se comportem como
se isto fosse uma casa de verdade. Sabem que o não é, tão bem como nós. Nunca foi e nunca o há-de ser.”
Especialmente eloquente é a declaração que Edmund (o avatar de Eugene em Longa Jornada) faz no ato
derradeiro: “Serei sempre um estranho que nunca se sente em sua casa, que realmente não quer, nem é
querido, que não pertence a isto, que tem de estar sempre um pouco de amores com a morte!” Eugene
O’Neill, Jornada para a Noite, trad. Jorge de Sena, Lisboa, Cotovia, 1992, pp. 78, 88, 170.
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admirava O’Neill21 –, recusar a chave biográfica ou íntima não constituirá um
contrassenso? Poder-se-á mesmo supor que, involuntariamente, o dramaturgo fomentou,
a título póstumo, uma semelhante voragem – poderíamos mesmo dizer, devassa –
biográfica, com uma peça como Longa Jornada para a Noite, cuja publicação O’Neill
remeteu expressamente para um momento ulterior à sua morte e que rapidamente se
revelou o seu maior feito literário. O receio de que, um dia, alguém viesse a “saber de
nós” e escrevesse “qualquer coisa vulgar e melodramática sobre o assunto” – ou, terror
dos terrores, “uma peça”! – levou o dramaturgo americano a antecipar-se, compondo
um drama-exorcismo, testamento dramático escrito com “lágrimas e sangue”, no qual
expõe o “inferno que cada membro da família suportou”.22 Medida profilática que
redundou, afinal, numa reação paradoxal, multiplicando toda a sorte de suposições e
bisbilhotices sobre a vida privada e o passado familiar de O’Neill. Dir-se-ia que, a partir
de Longa Jornada, todas as suas peças se tornaram retroativamente autobiográficas.
Desejo Sob os Ulmeiros, peça escrita em 1924 que consagrou O’Neill como um
dramaturgo de primeira água e lhe outorgou uma estatura internacional, não escapou à
compulsão biografista de cariz clínico: em 1957, três anos após a morte do dramaturgo,
um psiquiatra nova-iorquino de filiação freudiana, Philip Weissman, tratou de
estabelecer para a posteridade um conjunto de conexões entre as peças de O’Neill e
alguns traços marcantes da sua vida pessoal. Na omnisciência psicanalítica de
Weissman, Longa Jornada para a Noite constitui uma projeção “consciente” da história
familiar de O’Neill, enquanto Desejo Sob os Ulmeiros configura “um drama
autobiográfico inconsciente”.23 Uma tese que parecia ser ratificada pelo próprio autor
21 Ruy Castro alude a essa admiração num determinado passo da biografia O Anjo Pornográfico:
“[Nelson Rodrigues] tinha medo de que não entendessem que Vestido de Noiva podia ter sido escrito em
seis dias, mas tinha levado anos maturando em sua cabeça. Além disso, ouvira dizer que seu ídolo Eugene
O’Neill escrevia devagar e reescrevia mais devagar ainda. E ele, que nem reescrevia? Não tinha culpa se,
quando se sentava para trabalhar, já sabia o que iria fazer.” Mais adiante, o biógrafo do escritor brasileiro
assinala: “Senhora dos Afogados era inspirada em O Luto Assenta a Electra, de O’Neill […].” Ruy
Castro, O Anjo Pornográfico: A Vida de Nelson Rodrigues, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp.
177-178, 252. 22 Apud Louis Sheaffer, O’Neill: Son and Artist: Volume II, New York, Cooper Square Press, 2002, p.
505. 23 Philip Weissman, “Conscious and Unconscious Autobiographical Dramas of Eugene O’Neill”, in
Journal of the American Psychoanalytic Association, V, July 1957, p. 432. Disponível em www: <URL:
http://apa.sagepub.com/content/5/3/432˃ [consult. 17-05-2012]. Não deixa de ser curioso assinalar que
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numa carta datada de Fevereiro de 1925, na qual, apesar de desdenhar dos méritos de
Freud, aventava, talvez com uma irritação mal contida, a seguinte hipótese: “Se existe
qualquer freudismo no Desejo, o mais certo é que tenha entrado diretamente ‘através do
meu inconsciente’.”24 Mas trata-se apenas de uma hipótese, e bem vacilante, se dermos
crédito a uma confissão de O’Neill, feita em 1928, três décadas antes de o psiquiatra de
Nova Iorque formular a tese de uma autobiografia inconsciente: I have always loved
Ephraim so much! He’s so autobiographical!25 O conhecimento prévio de uma tão
desassombrada declaração de amor ao titã puritano que constitui um dos vértices –
também poderíamos dizer ‘vórtices’ – do infame triângulo de Desejo Sob os Ulmeiros
seria suficiente para perturbar a supina ingenuidade que subjaz à ideia de uma
involuntária e inapercebida projeção biográfica.26 Declaração, de resto, bastante
intrigante, pois parece ainda descompor os intérpretes que, como Weissman, se
mostram mais atreitos a identificar Eugene – eterno filho atormentado por obsessões
edipianas – com Eben do que com o septuagenário Ephraim, cujo temperamento e
avidez pela terra parecem refletir cristalinamente a personalidade do pai do dramaturgo,
em Desejo Sob os Ulmeiros se viu não só uma “autobiografia inconsciente” como também um “plágio
inconsciente”. É uma tese avançada por Louis Sheaffer, na esteira das impressões de Kenneth Macgowan,
amigo pessoal de Eugene O’Neill e um dos elementos do chamado “Triunvirato” (constituído pelo
dramaturgo, por Macgowan e pelo encenador, cenógrafo e figurinista Robert Edmond Jones) que dirigiu o
Greenwich Village Theater e a Provincetown Playhouse. Segundo o biógrafo, Desejo apropria-se da
estrutura narrativa de uma peça de Sidney Howard, They Knew What They Wanted, que Macgowan dera a
conhecer a Eugene pouco tempo antes. Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., pp. 126-127. 24 A mencionada depreciação das virtudes da psicanálise freudiana ocorre no seguinte passo da mesma
carta: “A meu ver, Freud só nos dá conjeturas e explicações vacilantes sobre verdades do passado
emocional da humanidade que todos os autores dramáticos intuíram claramente desde o nascimento do
verdadeiro teatro. […] Eu tenho um enorme respeito pelo trabalho de Freud – mas não sou um adepto!”
Carta de 25 de Fevereiro de 1925, endereçada a Mr. Perlman. Travis Bogard/Jackson Bryer (ed.), Selected
Letters of Eugene O’Neill, New York, Limelight, 1994, p. 192. 25 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 130. 26 Tanto assim é que, num artigo de 1958, Arthur Gelbs – autor de múltiplos ensaios sobre Eugene
O’Neill, coautor de uma biografia seminal do dramaturgo (O’Neill, 1962) e, à época, editor do The New
York Times – adianta que “um conjunto de amigos próximos de O’Neill estava a par, durante a escrita e a
montagem da peça, que os conflitos nela presentes ecoavam os problemas emocionais do próprio autor
com os seus pais e irmão”. Arthur Gelbs, “At the Roots of O’Neill’s Elms” (The New York Times, March
2, 1958), in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL:
http://www. eoneill.com/library/on/gelbs/times3.2.1958.htm> [consult. 09-04-2012].
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o ator James O’Neill.27 É como se o escritor, cuja fascinação pelas máscaras era, de
resto, bem conhecida,28 se entretivesse postumamente – a si e aos seus mais diligentes
leitores – com um pueril e perverso jogo de esconde-esconde: não, não, eu não estou aí,
onde me analisais, mas aqui, de onde vos observo, a rir .29
Em todo o caso, o facto é que, sob os auspícios de Philip Weissman, se deu
início à exploração do filão biográfico, tão pródigo e concorrido quanto o oitocentista
ouro da Califórnia de que se fala em Desejo Sob os Ulmeiros. Essa prospeção começa
nas leituras feitas por O’Neill no período que antecede a composição do drama – do
desbotado They Knew What They Wanted de Sidney Howard, de que o Desejo de cores
garridas seria um “plágio inconsciente”,30 ao Nascimento da Tragédia de Nietzsche31
27 Após enunciar as afinidades entre o velho Cabot e o pai O’Neill, Louis Sheaffer esclarece
inteligentemente em que medida encontramos em Ephraim uma projeção do dramaturgo: “No essencial, o
velho Cabot […] representa mais um dos vários autorretratos do dramaturgo. Ephraim despreza o que é
fácil, o que é obtido sem esforço; similarmente, ‘fácil’ era um dos adjetivos mais depreciativos do léxico
de O’Neill. Ephraim, assim como o seu criador, é um marido exigente e difícil, e um pai incompetente.
Por último, nada era mais verdadeiro para O’Neill que o facto de sofrer de um perpétuo sentimento de
isolamento, de não ser compreendido por aqueles que lhe eram mais próximos, outra característica
fundamental que partilha com o velho Cabot. Na cena em que Ephraim, ao tentar estabelecer contacto
com a nova esposa, procura explicar-se e justificar-se, o estribilho ‘E eu sempre solitário’ pontua o seu
discurso. ‘Alguma vez me conhecerás… ou a algum homem ou mulher?’, pergunta ele, desdenhosamente,
a Abbie. ‘Não, parece-me que nunca’.” (L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 130.) Esse
sentimento de solidão é também uma realidade a que a mãe de Longa Jornada empresta voz no final do II
Ato: “Como isto é solitário! […] Mas porquê, Mãe do Céu, tanta solidão?” E. O’Neill, Jornada para a
Noite, op. cit., p. 111. 28 Essa fascinação revelou-se na composição de obras como The Great God Brown, a primeira peça de
O’Neill cuja representação decorre totalmente com máscaras, e Lazarus Laughed, em que centenas de
personagens usam máscara, à exceção do protagonista. Vide Margaret Loftus Ranald, “O’Neill, Eugene”,
in Mark Hawkins-Dady (ed.), Playwrights: International Dictionary of Theatre – 2, Detroit/London/
Washington DC, St. James Press, 1994, p. 724. 29 Adotamos um aviso de Foucault: “Não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o
observo rindo”. Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, trad. Luiz Felipe Baeta Neves, Rio de Janeiro,
Forense-Universitária, 1987, p. 20. 30 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126. 31 No capítulo de Contour in Time que dedica ao Desejo Sob os Ulmeiros, Travis Bogard detém-se em
particular sobre o modo como O’Neill encontrou no pensamento de Friedrich Nietzsche um esquema
filosófico capaz de infundir fôlego aos seus interesses fundamentais como dramaturgo. O crítico ocupa-
se, por exemplo, com a centralidade da dialética entre forças dionisíacas e os princípios apolíneos. Mais
recentemente, também o politólogo John Patrick Diggins abordou a questão da influência de Nietzsche no
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(cujo exemplar o’neilliano estaria coberto de copiosas anotações),32 passando por uma
obra de Wilhem Stekel sobre aberrações sexuais, com especial destaque para o caso de
uma mãe que seduz o filho, levando-o à loucura.33 Mas das putativas ‘fontes’ às doídas
memórias familiares (a vivenda Monte Cristo comprada pelo pai em Nova Londres, os
acessos de choro de uma mãe que, viciada em morfina, erra pela casa como uma
sombra, etc.) ou às neuroses pessoais do autor vai um curto passo. A esta luz algo
impudica, agressiva como o foco de um interrogatório policial, têm-se formulado
hipóteses como aquela que identifica no ‘incesto’ que Eben comete com Abbie uma
sublimação das fantasias sexuais do irmão do dramaturgo, Jamie, com a mãe. Outro
eloquente exemplo: a propósito do infanticídio da peça, biógrafos como Stephen A.
Black ventilam a possibilidade de Eben e Abbie constituírem uma projeção do autor e
daquela que, à época, era sua mulher, um casal “cuja paixão excluía toda a gente,
incluindo os filhos, e de que por fim restavam as suas próprias cinzas”.34 Aplicando esta
lógica, Eben é Gene e Abbie é Aggie, bastando trocar o b pelo g para fazer tombar as
máscaras.
A biografia pode, contudo, revelar-se um escolho. E a estratégia biografista
acaba frequentemente por redundar num procedimento redutor, falho e potencialmente
vicioso: ao entrarmos tão depressa nessa noite escura, vemo-nos a dado momento
absorvidos na tarefa de procurar, com um escrúpulo de fiscal, as mínimas
correspondências entre homem e obra, deixando-se o texto, na sua irredutível
autonomia, intocado. Perante uma tal tirania interpretativa na receção da obra dramática
de Eugene O’Neill, sentimo-nos tentados a invocar a zaratustriana morte do autor
proclamada por Barthes, para quem, no ano de 1968, era tempo de superar a estafada
fórmula crítica que implicava ler a poesia de Baudelaire como a expressão do “fracasso
dramaturgo norte-americano. Vide John Patrick Diggins, Eugene O’Neill’s America: Desire Under
Democracy, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2007, p. 100 e ss. 32 Vide Brenda Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, in Rebecca Bushnell (ed.), A
Companion to Tragedy, West Sussex, Wiley-Blackwell, 2009, p. 492. 33 Vide S.A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 311. 34 Idem, ibidem. Um pouco mais adiante no seu livro, Stephen A. Black volta a ler e a associar o
infanticídio de Desejo Sob os Ulmeiros àquilo que chama “a relutância de O’Neill em se assumir como
pai e a ocasional ambivalência do escritor e de Agnes em relação à intrusão de Shane na intimidade do
casal”. Idem, p. 313.
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do homem Baudelaire”35 ou a pintura de Van Gogh como o resultado da sua insanidade.
Escorado nas experiências dos surrealistas e nas intuições de Mallarmé, de Valéry
(segundo o qual o recurso à interioridade do escritor no exercício de interpretação se
afigura uma “pura superstição”) ou mesmo de Proust, o semiólogo sepulta a categoria
totalitária e castradora do Autor sob uma conceção libertária de escrita, tomada como
lugar de aniquilação de toda a origem: “Dar um Autor a um texto é impor a esse texto
um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita.”36
Para a nossa demanda, talvez mais importante do que o caráter destrutivo da renúncia a
essa privilegiada instância literária, a partir da qual a enunciação se esclareceria, se
afigure o poder criativo que é conferido à leitura e ao leitor, nos quais o texto encontra a
sua própria unidade:
Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias
culturas, que entram em diálogo entre si, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que
essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor […], é o leitor.37
O ensaísta Jean-Pierre Sarrazac não participaria na implosão da figura do autor,
mas, ainda que não despreze a apreciação da dimensão pessoal ou biográfica na
hermenêutica textual, chama justamente a nossa atenção para a manifesta insuficiência
do procedimento biografista e identifica com precisão o ponto em que este deixa de ser
operativo. No ensaio em que se detém sobre a filiação strindbergueriana de O’Neill, o
dramaturgo francês faz notar:
A crítica destacou na obra de O’Neill a parte das memórias pessoais e o rastro da sua vida
familiar e conjugal, mas faz silêncio sobre o essencial, a saber: o processo existencial e estético
através do qual os elementos autobiográficos adquirem forma dramática. Não é negligenciável
assinalar que o jovem jornalista de The Straw e Longa Jornada para a Noite constitui um
autorretrato do dramaturgo e remete para um doloroso episódio da juventude, mas, por outro
lado, seria decisivo estabelecer de que forma e até que ponto essas peças e muitas outras definem
uma dramaturgia na primeira pessoa.38
35 Roland Barthes, “A Morte do Autor”, in O Rumor da Língua, trad. António Gonçalves, Lisboa, Edições
70, 1987, p. 50. 36 Idem, p. 52. 37 Idem, p. 53. 38 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 48.
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No caso específico de Eugene O’Neill, no qual a categoria fundamental da
‘vida’ parece adquirir um relevo muito particular, o luxuriante arquivo biográfico
ameaça, a dada altura, tornar-se um esquife que rasura outras possibilidades de vida
interpretativa e crítica. Assemelha-se àqueles túmulos de sociedades antigas nos quais,
juntamente com o defunto, se depunham roupas, vasos, armas, vinho, comida.
Condomínios fechados de luxo que não deixam, por isso, de ser tumbas. Evidentemente,
como adverte uma expressão proverbial alemã, convém não deitar fora o bebé com a
água do banho. Por um lado, o argumento clínico revela-se perverso, além de
imensamente frágil: se, como afirmava Sartre, “Paul Valéry é um intelectual pequeno-
burguês, mas nem todo o intelectual pequeno-burguês é Paul Valéry”,39 também Eugene
O’Neill pode padecer de um distúrbio edipiano, mas nem todo aquele que apresenta essa
particular perturbação de personalidade é Eugene O’Neill (de onde se infere que nem a
condição pequeno-burguesa explica a obra do filósofo francês nem as neuroses
edipianas dão conta das peças do dramaturgo norte-americano).40 Por outro lado,
devemos sentir-nos gratos por algumas abordagens de cariz biográfico não denotarem
esta debilidade determinista nem enfermarem de uma ostensiva propensão intrusiva. É o
caso de várias observações e relatos que Louis Sheaffer incluiu na sua biografia de
O’Neill. Manifestamente, há luzes que encandeiam, que impedem que se veja e, nessa
medida, obscurecem tudo (como sabia Heidegger),41 e há luzes, ainda que ténues ou
39 Jean-Paul Sartre, Questions de méthode, Paris, Gallimard, 1986, p. 55. 40 Seguimos aqui os termos da argumentação de António M. Feijó sobre a famigerada histero-neurastenia
de Fernando Pessoa: “Há uma teoria que afirma que a heteronomia é a fabricação de um histérico-
neurasténico, ou, em alternativa, de uma personalidade múltipla. Este argumento clínico – usado, aliás,
pelo próprio Pessoa a propósito de si mesmo – é débil, e facilmente desmontável. É o mesmo tipo de
argumento que críticos marxistas vulgares usavam para atacar um autor como Paul Valéry, classificando-
o como ‘pequeno-burguês’. Do mesmo modo que Pessoa é um histérico-neurasténico, Valéry é um
pequeno-burguês, e a pequena burguesia de Valéry determinaria o que escreve. Sartre arrumou esta tese
de modo expedito: ‘Valéry pode ser um pequeno-burguês, mas nem todo o pequeno-burguês é Valéry’.
Ser pequeno-burguês não me torna capaz de escrever como Valéry, do mesmo modo que ter
personalidade múltipla não torna ninguém capaz de escrever como Pessoa. Na maioria dos casos, aqueles
que sofrem de tais distúrbios padecem de um sofrimento atroz que os torna incapazes de criar. […] O
argumento clínico é, pois, perverso, como são genericamente os argumentos clínicos, porque inoculam
medo.” António M. Feijó, “Fernando Pessoa, Romance”, in Pedro Sobrado (ed.), Turismo Infinito:
Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2014, p. 27. 41 “A luz do público obscurece tudo.” Martin Heidegger apud Hannah Arendt, Homens em Tempos
Sombrios, Lisboa, Relógio D’Água, 1991, p. 9.
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vacilantes, que esclarecem alguma coisa. Avançamos com um exemplo útil, que prepara
o caminho para a tematização, no terceiro capítulo, da nuclear irradiação simbólica das
pedras na mecânica dramática de Desejo Sob os Ulmeiros. O passo abaixo transcrito
remete-nos para a infância de O’Neill, quando passava os Verões na Monte Cristo
Cottage, numa altura em que, como o autor escreverá mais tarde no verso de uma
fotografia, “ainda não tinha a mania do teatro, mas era um incansável desenhador de
árvores e navios”.42
Além das grandes árvores, uma outra característica da propriedade dos O’Neill que contribuiria
para o tom e a imagística de Desejo Sob os Ulmeiros era um velho e maciço muro “seco” com
algumas centenas de metros de comprimento, construído com pedras e pedregulhos da região.
De facto, na época em que a família O’Neill aí se instalou, a zona era ainda muito pedregosa, e
uma velha fotografia de Eugene mostra-o sentado numa grande pedra nas proximidades da casa.
A profunda impressão que o muro e o terreno pedregoso causaram ao rapaz reemergiria anos
mais tarde, quando o dramaturgo comprou uma propriedade em Ridgefield, no Connecticut,
onde havia um muro semelhante ao do quintal traseiro da vivenda Monte Cristo. O’Neill
escreveu Desejo Sob os Ulmeiros em Ridgefield, e, por essa altura, os muros tinham passado a
simbolizar para ele a vida frugal e árdua dos agricultores da Nova Inglaterra. “Aqui… pedras
amontoadas no chão… pedras sobre pedras… a fazer muros de pedra”, diz um dos filhos em
Desejo Sob os Ulmeiros. E o velho Cabot exprime a mesma ideia quando afirma: “Pedras.
Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada dia uma
pedra, monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus…”43
42 Eugene O’Neill apud Louis Sheaffer, O’Neill: Son and Playwright: Volume I, New York, Cooper
Square Press, 2002, p. 61. 43 Idem, pp. 49-50. (Trad. Rui Pires Cabral.)
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2. Herança clássica
Limiar
Somos todos gregos.
PERCY BYSSHE SHELLEY
“A águia está sempre no futuro.” Este passo de Píndaro, tão amado por George
Steiner, aplica-se aos grandes textos que nos foram legados pelos antigos,
nomeadamente às tragédias clássicas, textos que contêm ainda a gramática do que
somos, obras cuja enérgeia se tem revelado, através dos séculos, assombrosamente
inextinguível. A máxima pindariana não afirma apenas o conteúdo de uma das
definições que Italo Calvino forneceu de clássico – “Um clássico é um livro que nunca
acaba de dizer o que tem a dizer”44 –, mas diz-nos que provavelmente nunca
chegaremos a saber o que tem para dizer. “Ninguém – afirma George Steiner, numa
entrevista em que faz o balanço de todo o seu percurso – compreendeu uma palavra de
Ésquilo, de Sófocles, de Eurípides.”45 A obra está sempre em excesso, vai
continuamente adiante de nós, abrindo caminho para o nosso devir. Os antigos são,
afinal, vindouros. Uma forma de captarmos o voo da águia, ou de lhe seguirmos, por um
instante, a trajetória, é estudar as transfigurações e metamorfoses com que assoma e nos
visita, segundo as ignotas leis de uma qualquer onda mnémica.46 George Steiner
empreendeu esse trabalho em Antígonas, obra monumental condenada a um
envelhecimento precoce, uma vez que a história das apropriações do arquétipo de
Antígona se assemelha a um novelo vivo, que não cessa de crescer e se adensar. Nesse
livro para sempre incompleto, tentou Steiner percecionar as formas em que a Antígona
de Sófocles se desdobra e progride, concluindo: “O mito da Antígona espia-nos e
segreda-nos que é o alfabeto da nossa nova experiência, que esta última será espontânea
44 Italo Calvino, Porquê Ler os Clássicos?, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa, Teorema, 2009, p. 11. 45 G. Steiner/R. Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, op. cit., p. 110. 46 O conceito pertence a Aby Warburg e encontramo-lo tematizado numa obra do ensaísta italiano
Roberto Calasso. Vide Roberto Calasso, A Literatura e os Deuses, trad. Clara Rowland, Lisboa, Gótica,
2003, pp. 29-48.
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e imediata e mais fácil de viver dada a presença da mitologia, presença latente, vaso de
prata onde se vazarão o pensamento e a vida.”47
Salvaguardadas, evidentemente, todas as distâncias, este nosso segundo capítulo
configura um muito parcelar e provisório ato de observação do voo de uma águia – o
Hipólito, de Eurípides – sobre um território inóspito: Desejo Sob os Ulmeiros, texto
dramático que se inscreve na paisagem da tradição mítico-religiosa do puritanismo, que,
do século XVII em diante, se enraizou nessa árida Jerusalém chamada Nova Inglaterra,
e cuja importância no estabelecimento da ideia americana não pode ser menosprezada,
como demonstrou Alexis de Tocqueville em A Democracia na América.48 Poucas
paisagens se nos afigurariam tão diversas do panorama ático quanto esta, no
Connecticut ou no Maine de Oitocentos… Em todo o caso, estamos em crer que, mais
do que de peças contemporâneas como They Knew What They Wanted de Sidney
Howard ou Birthright de T.C. Murray – textos em que alguns biógrafos e críticos
encontraram paralelos potencialmente incómodos49 –, é, em grande medida, do ancestral
arsenal grego – do Hipólito, mas também do mito de Édipo e da Medeia euripidiana –
que o dramaturgo norte-americano de 36 anos extrai a explosiva perigosidade que
atravessa Desejo Sob os Ulmeiros.
47 G. Steiner/R. Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, op. cit., pp. 111-112. 48 Transcrevemos apenas um passo da obra de Tocqueville, embora toda a primeira parte do Livro I (Leis
e Costumes) se revista de interesse para compreender a história, a natureza e o alcance ideológico da
tradição puritana nos Estados Unidos da América, pano de fundo de Desejo Sob os Ulmeiros: “[Os
puritanos] furtavam-se às doçuras da pátria [Inglaterra] obedecendo a uma necessidade puramente
intelectual; expondo-se às misérias inevitáveis do exílio, queriam fazer triunfar uma ideia. Os emigrantes
ou, como eles mesmos se chamavam tão apropriadamente, os peregrinos (pilgrims), pertenciam àquela
seita de Inglaterra que a austeridade de princípios fizera receber o nome de puritana. O puritanismo não
era apenas uma doutrina religiosa; ele também se confundia em vários pontos com as teorias democráticas
e republicanas mais absolutas. Daí lhe vieram seus mais perigosos adversários. Perseguidos pelo governo
da mãe-pátria, feridos no rigor de seus princípios pelo andamento quotidiano da sociedade no seio da qual
viviam, os puritanos buscaram uma terra tão bárbara e tão abandonada pelo mundo para que nela ainda
pudessem viver à sua maneira e orar a Deus em liberdade.” Alexis de Tocqueville, A Democracia na
América: Leis e Costumes (Livro I), trad. Eduardo Brandão, São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 41. 49 Se Louis Sheaffer aventava a possibilidade de Desejo ser um “plágio inconsciente” de They Knew What
They Wanted, Travis Bogard define Birthright como uma obra de uma “centralidade formativa” na
composição da peça de O’Neill. L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126. T. Bogard, Contour
in Time, op. cit., disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/contour/triumvirate1/desire.
htm> [consult. 11-04-2012].
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Esta extorsão lembra-nos um poema em que Manuel António Pina se refere à
literatura como uma “arte escura de ladrões que roubam a ladrões”.50 Talvez O’Neill se
tenha revelado mais original quando menos o foi. Ou então é à palavra ‘original’ que
precisamos de devolver a sua aceção primeira: relativo às origens. Neste caso, origens
do teatro (mas também origens da América e do seu puritano ideário), porque Desejo
Sob os Ulmeiros – obra que “estabelece O’Neill como dramaturgo de verdadeiro génio e
representa o auge do seu primeiro período de composição”51 – é altamente devedor das
tragédias clássicas. Este capítulo visa o levantamento dessa dívida soberana – uma
dívida que, como se procurará demonstrar, tem em Hipólito, Fedra e Teseu os principais
credores.
2.1. Uma tragédia por escrever
Ao desejar possuir o mundo, a América perdeu a alma.
EUGENE O’NEILL
No final do segundo volume da biografia que nos ofereceu de Eugene O’Neill,
Louis Sheaffer introduz um pequeno episódio, aparentemente banal ou ocioso. Trata-se
de um daqueles fait-divers que, sob determinada luz, adquirem contornos de oráculo. O
dramaturgo fora, uma vez mais, assistir à representação de The Iceman Cometh [1946],
peça escrita no trágico ano de 1939, mas estreada apenas no pós-guerra, em Nova
Iorque, corria o ano de 1946. Foi considerada por Harold Bloom como uma das duas
obras-primas de O’Neill52 e, em Contour in Time, Travis Bogard classificou-a como
“provavelmente a mais ‘grega’ das suas peças, construída em torno de um coro
central”.53 Entre a assistência, encontrava-se um casal grego: a célebre atriz Katina
50 Manuel António Pina, “Emet”, in Poesia, Saudade da Prosa: Uma Antologia Pessoal, Lisboa, Assírio
& Alvim, 2011, p. 72. 51 Margaret Loftus Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, in Michael Manheim (ed.), The
Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 65. 52 Na ótica, canónica, do crítico norte-americano, a segunda obra-prima de O’Neill é Longa Jornada para
a Noite. Vide Harold Bloom, “Introduction”, in Eugene O’Neill’s “Long Day’s Journey Into Night”,
Philadephia, Chelsea House Publishers, 1987, p. 2. 53 T. Bogard, Contour in Time, op. cit., disponível em www: < http://www.eoneill.com/library/contour/
mirror/iceman.htm> [consult. 19-04-2012].
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Paxinou54 e o seu marido, o encenador e também ator Alexis Minotis, recém-chegados
de Atenas. O biógrafo faz constar que, durante o serão, O’Neill não parou de se
contorcer no seu lugar, tartamudeando imprecações contra o encenador do espetáculo,
Eddie Dowling. No final, o casal grego soube granjear o apreço do dramaturgo,
solidarizando-se com O’Neill e somando ao desgosto deste o seu próprio lamento.
Escreve Sheaffer que, no estabelecimento de uma tal empatia, O’Neill contou que se
fizera dramaturgo ao devorar os clássicos gregos, após o que Katina Paxinou e Alexis
Minotis lembraram que, quando haviam tomado parte na montagem de Desejo Sob os
Ulmeiros, um crítico ateniense qualificara O’Neill como “o primeiro dramaturgo depois
de Sófocles a possuir o sentido clássico de tragédia”.55
Seja qual for o grau de acerto contido num tal encómio, pode imaginar-se o
efeito destas palavras no dramaturgo, mesmo tratando-se já de um autor consagrado por
inúmeros Pulitzer e pelo cobiçado Prémio Nobel (1936). O’Neill não acusava um défice
de reconhecimento ou aplauso, mas antes uma repetida falta de atenção da crítica em
relação ao que entendia ser o núcleo sensível de todo o seu projeto dramático. Em 1925,
escreve ao crítico e investigador Arthur Hobson Quinn:
Sou mais negligenciado precisamente no ponto em que mais me empenhei – como um poeta que
tem trabalhado sobre a oralidade para desenvolver ritmos de uma beleza original onde
aparentemente não há beleza […] e ver a nobreza transfiguradora da tragédia – tão próximo do
sentido grego quanto possível – naquelas que parecem ser as mais vis e ignóbeis existências.56
Nesta mesma carta, interessantemente, O’Neill expressa os termos da afinidade da sua
demanda poético-teatral com a tragédia, tal como foi consagrada por Ésquilo, Sófocles e
Eurípides, e com a peculiar Weltanschauung que a informa, nomeadamente a noção de
uma desesperada impotência humana face aos deuses.
Estou permanente e intensamente consciente da Força que está por detrás de tudo – o Destino,
Deus, o nosso passado biológico a engendrar o nosso presente, o que lhe quisermos chamar:
Mistério, certamente – e da eterna tragédia do Homem, que resulta do seu glorioso combate
54 Galardoada poucos anos antes com o Óscar de Melhor Atriz Secundária pela sua participação em Por
Quem os Sinos Dobram, de Sam Wood, Katina Paxinou integraria, em 1947, o elenco da adaptação
cinematográfica de O Luto vai bem com Electra, realizada por Dudley Nichols. 55 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 591. 56 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 195.
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autodestrutivo para se fazer expressar na Força, em vez de, como um animal, ser um incidente
infinitesimal da Sua expressão.57
Esta confissão pessoal – ou declaração programática – foi escrita em Abril de
1925, escasso meio ano após a estreia de Desejo Sob os Ulmeiros, uma peça que Travis
Bogard não hesitou em qualificar como “a primeira tragédia de relevo a ser escrita na
América”.58 Note-se que este complemento circunstancial de lugar – “na América” – é
tão importante quanto o rótulo “tragédia”, tendo em conta que o desígnio de O’Neill não
passa apenas pela reabilitação da antiga forma trágica praticada na Atenas do século V
a.C., mas também pela expressão do conteúdo trágico americano. Já em 1922, reagira
intempestivamente ao ser confrontado com a objeção de que a tragédia era estranha à
índole americana:
Suponhamos que um dia, subitamente, seríamos capazes de ver com inteira clareza o verdadeiro
valor de todo o nosso triunfante e atroador materialismo; que seríamos capazes de ver os custos e
o resultado em termos de verdades eternas! Que tragédia colossal e absolutamente americana não
seria… A tragédia não é natural ao nosso país? Mas nós somos uma tragédia, a tragédia mais
pavorosa jamais escrita ou por escrever!59
Desejo Sob os Ulmeiros é o anúncio dessa “tragédia por escrever”. Inscrita no
cenário da Nova Inglaterra de 1850, e projetada no horizonte da febril corrida ao ouro
da Califórnia e dos seus sonhos de um veloz enriquecimento, a peça “prefigura – como
nos diz Margaret Loftus Ranald, uma das mais destacadas autoridades na obra de
Eugene O’Neill – O Luto vai bem com Electra [Mourning Becomes Electra, 1931] e a
57 Idem, ibidem. Dada a relevância deste passo, transcrevemos o original inglês: “I’m always acutely
conscious of the Force behind – Fate, God, our biological past creating our present, whatever one calls it:
Mystery, certainly – and of the one eternal tragedy of Man in his glorious, self-destructive struggle to
make the Force express him instead of being, as an animal is, an infinitesimal incident in its expression.” 58 T. Bogard, Contour in Time, op. cit. 59 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 441. Num ensaio em que se detém sobre os esforços de
Maxwell Anderson, Eugene O’Neill e Arthur Miller por reconstituir a tragédia no quadro do teatro
moderno norte-americano, Brenda Murphy chama a nossa atenção para uma ironia histórica: “É uma das
ironias da história do teatro americano que, não se considerando, de uma forma geral, a visão trágica
como característica da visão americana da vida, as peças mais significativas do repertório clássico
americano sejam trágicas na sua visão, mesmo quando não exemplificam todas as convenções associadas
ao género.” B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 503.
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totalidade da sua saga inacabada ‘A Tale of Possessors, Self-Dispossessed’,
demonstrando a natureza obstinada e ávida do Grande Mito Americano”.60 Desejo Sob
os Ulmeiros é isso mesmo: a história de gente voraz que acaba de mãos vazias. Ou,
como o próprio O’Neill registou numa carta, “uma tragédia de gente possessiva – o
patético desejo do homem de construir o seu paraíso na terra, satisfazendo o seu sentido
de poder mediante a posse de terra, gente, dinheiro.”61 Não por acaso, a obra de O’Neill
suscitou recentemente o interesse de um politólogo e historiador político: John Patrick
Diggins, autor de Eugene O’Neill’s America: Desire Under Democracy. No capítulo
que dedica especialmente à peça de 1924, Diggins discorre sobre a problemática da
propriedade privada e da democracia moderna, e correlaciona-a com a “luxúria da
posse” que define as personagens de O’Neill, concluindo: “O teatro torna-se o lugar da
perpétua questão americana: quem possui o quê, quando, como e porquê.”62
Curiosamente, ao revelar a face negra do moderno american dream, Eugene
O’Neill investiga e apropria-se das tragédias clássicas e dos velhos mitos que lhes
subjazem. Os seus mais devotos leitores nem sempre coincidem na perceção das
analogias e correspondências: Louis Sheaffer menciona o Hipólito de Eurípides, como
faz, aliás, Edgar F. Racey, um dos primeiros a abordar a estrutura trágica de Desejo Sob
os Ulmeiros;63 por seu turno, Stephen A. Black, numa abordagem vincadamente
psicanalítica, considera que “os temas edipianos não poderiam ser mais explícitos”,64
acrescentando ainda que o infanticídio produz um deslocamento do centro dramático e
simbólico da peça de O’Neill, fazendo emergir o obscuro arquétipo da Medeia;
Margaret Loftus Ranald descreve o relacionamento entre Eben e Abbie como “uma
união edipiana, com tonalidades fedrianas”;65 Brenda Murphy inverte os termos desta
correlação de forças, descrevendo Desejo como uma peça “primeiramente baseada no
mito de Hipólito e Fedra”, mas também alusiva aos arquétipos de Édipo e Medeia…66 A
nosso ver, um tal desencontro não implica que estejamos perante hipóteses mutuamente
60 M. L. Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 66. 61 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 194. 62 J. P. Diggins, Eugene O’Neill’s America, op. cit., p. 97. 63 Vide Edgar F. Racey Jr., “Myth as Tragic Structure in Desire Under the Elms”, in John Gassner (ed.),
O’Neill: A Collection of Critical Essays, New Jersey, Prentice-Hall, 1964, pp. 57-61. 64 S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 308. 65 M. L. Ranald, “From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 67. 66 B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 496.
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exclusivas, mas que O’Neill adota na composição de Desejo Sob os Ulmeiros o método
do bricolage que, segundo Claude Levi-Strauss, define os próprios mitos,67 operando a
partir de sobras e fragmentos, e dando provas de uma intuitiva agilidade na gestão do
seu arquivo mítico. Uma destreza bem diversa do constrangimento que Travis Bogard
detetou na sintaxe simbólica da peça anterior, Bound East for Cardiff, e da trilogia
posterior O Luto vai bem com Electra.
Embora subscrevamos, com Bogard, a tese de que as magnéticas ressonâncias
trágicas contidas no enredo e nas personagens de Desejo não decorrem de uma
“imitação detalhada” e de que O’Neill não segue uma “receita”, tendemos, todavia, a
divergir no ponto em que afirma que “nem o Hipólito nem a Medeia são uma fonte
precisa da história de O’Neill”.68 Tudo dependerá efetivamente do que se entenda por
‘fonte’, mas, se a aproximação à Medeia se revela, em determinado ponto,
problemática, o parentesco com o Hipólito está longe de ser da ordem da referência
indireta ou da sugestão. Aquela que tem sido cotada como “a mais sofocliana das peças
de Eurípides”69 é uma fonte – nascente, origem, matriz –, e isso em nada diminui os
méritos de O’Neill. Como se tentará demonstrar, o Hipólito está não apenas fisicamente
presente na estrutura do enredo e, em parte, no desenho das personagens, mas também
espiritualmente, na secreta força propulsora que orienta o drama.
2.2. Núpcias de morte
NORMAN BATES: A boy’s best friend is his mother.
ALFRED HITCHCOCK, Psycho
Uma autoridade em psicanálise como Stephen A. Black menciona os longos
anos em que Eugene O’Neill pareceu “odiar o pai tanto quanto amá-lo”. Além disso,
informa-nos que “o acontecimento mais importante” da juventude de O’Neill foi um
golpe de contornos edipianos: a descoberta, por volta dos catorze anos, de que a mãe se
tornara viciada em morfina na sequência do seu parto:
67 Vide Claude Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, Campinas SP, Papirus, 2005, pp. 32 e ss. 68 T. Bogard, Contour in Time, op. cit. 69 Edith Hall, Greek Tragedy: Suffering under the Sun, New York, Oxford University Press, 2010, p. 248.
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Foi uma descoberta semelhante à descoberta de um Édipo que é celebrado em duas peças de
Sófocles; numa delas, Sófocles imaginou o processo de descoberta, e na outra, as consequências
da descoberta. O jovem Eugene não descobriu que matou o pai e desposou e gerou filhos com a
mãe, mas ficou a saber que o nascimento do seu eu de quase cinco quilos provocou na sua mãe
sofrimento e depressão prolongados, em virtude dos quais lhe foi prescrita morfina.70
No que toca a Desejo Sob os Ulmeiros, gostaríamos de começar por apreciar a
perspetiva edipiana, mas diversamente do que fazem os praticantes da modalidade
psicanalítica, que a adotam para encastrar o próprio Eugene O’Neill no molde de Édipo.
Parece-nos ser chegada a hora de deixar para trás uma hermenêutica centrada no autor e
na sua experiência – o nosso propósito não consiste em entrar na mente de O’Neill e aí
nos instalarmos como se estivéssemos em casa –, privilegiando antes o texto dramático
na sua irrecusável imanência ou autonomia. Ora, no Desejo Sob os Ulmeiros, o padrão
edipiano insinua-se sub-repticiamente logo na primeira cena, quando Eben convoca os
irmãos para a ceia, fazendo soar ruidosamente uma sineta. De imediato ficamos a saber
que é ele quem se ocupa da cozinha, quem prepara as refeições aos dois irmãos, quem
os chama para a mesa. “A ceia está pronta”, “a ceia está a esfriar” [I Parte, Cena 1] –
chamamentos e advertências que, apesar de infetados pelo rancor, esboçam contornos
maternais, sobretudo no cenário oitocentista da Nova Inglaterra. A mãe morreu, e Eben
manifesta menos a intenção de ocupar o seu lugar, substituindo-a funcionalmente na
esfera doméstica, do que a vontade de com ela se identificar, ou melhor, o desejo de
nela se identificar a si mesmo – um anseio de fusão e, ipso facto, de recomposição da
mãe falecida. Assumir os seus afazeres, o seu espinhoso quotidiano, é uma forma de
Eben a conhecer – termo que, tanto no Português como no original inglês (to know),
possui uma aceção bíblica peculiar (ter relações sexuais com),71 ressonância que não
está, de modo algum, ausente de um contexto em que as personagens usam e abusam da
70 Stephen A. Black, “Celebrant of Loss: Eugene O’Neill 1888-1953”, in Michael Manheim (ed.), The
Cambridge Companion To Eugene O’Neill, Cambridge, Cambridge University Press, 1998, p. 6. 71 “Nas línguas semíticas (e nos LXX), o verbo ‘conhecer’ é usado em sentido especial, indicando união
sexual. Esse sentido, que não existe no grego profano, foi, sob influência da Bíblia, adotado por diversas
línguas indo-germânicas, sendo conservado até hoje em traduções modernas da Bíblia”. In A. Van Den
Born (org.), Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 288.
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fraseologia sagrada (“Honra o teu pai”, “Vamos começar a viver como os lírios do
campo”, “E Deus ouviu Raquel”, etc.).72
EBEN: […] Cozinhar… fazer o trabalho dela… foi que me levou a conhecê-la, sofrer o que ela
tinha sofrido… Ela havia de voltar para me ajudar… voltar para descascar as batatas… voltar
para fritar o presunto… voltar para cozer o pão… voltar, cheia de dores, para atiçar o lume, tirar
a cinza, com os olhos cheios de lágrimas e raiados de sangue, por causa do fumo e das cinzas,
como os dela estavam sempre. E ainda volta… está ali ao pé do fogão, à noite… [I Parte, Cena 2,
itálico nosso]
A cena seguinte oferece-nos uma segunda oportunidade para reconhecer a
fisionomia edipiana de Eben, que se manifesta agora no interesse por Min, a “mulher
escarlate”, estafada prostituta da vila com quem já seu pai e seus irmãos se haviam
deitado. Quando traz a Simeon e Peter as novas do casamento do seu velho pai com
uma mulher de 35 anos, o jovem confessa, inflamado pelo orgulho: “Sim, senhor.
Possuía-a. Pode ter sido dele… e vossa também… Mas agora é minha!” Referindo-se
ainda a Minnie, um instante depois, Eben formula o seguinte enunciado
despudoradamente edipiano: “Que me ralo eu com ela? […] O que importa é que era
dele… e agora pertence-me!” [I Parte, Cena 3]. Quando Eben se prepara para sair de
cena, depois de desdenhar da “vaca a que o velhote se atrelou”, Simeon surpreende-o
com a seguinte provocação: “Talvez experimentes possuí-la, não?” Enojado com a
ideia, Eben cospe para o chão, mas nesse instante já O’Neill inoculou a hipótese na
mente dos espectadores.
Todos estes sinais constituem uma propedêutica para o que nos é dado assistir na
cena em que – na sala de visitas, aquela onde o corpo da mãe de Eben estivera em
câmara ardente – Abbie seduz o enteado e o torna seu amante. Aí, os contornos do
paradigma edipiano adquirem maior definição e uma eloquência simultaneamente
fascinante e repulsiva. Trata-se de uma cena habilmente urdida, na qual eros e thanatos
se mesclam e confundem, como que falando a uma voz. Ao dirigir-se para essa sala,
uma divisão que permanecera encerrada desde a morte da mãe, Eben intui um encontro
imediato com a progenitora defunta: a didascália que precede a cena, célebre pela sua
72 Evidentemente, não podemos comparar o Eben Cabot de Desire ao Norman Bates de Psycho, embora –
sublime ironia da sétima arte… – o mesmo ator, Anthony Perkins, tenha desempenhado, com apenas dois
anos de diferença, ambos os papéis no cinema. De resto, a celebérrima máxima de Bates (“O melhor
amigo de um rapaz é a sua mãe”) poderia sem surpresa sair da boca de Eben.
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lutuosa lascívia, informa-nos que a personagem “volta atrás e põe a camisa branca, o
colarinho, dá mecanicamente um vago nó de gravata, veste o casaco, pega no chapéu,
fica descalço a olhar em volta, desorientado, e murmura meditativamente: Mãe! Onde
estás tu?” [II Parte, Cena 2]. Nesse instante, Eben é simultaneamente o homem feito, o
noivo que se prepara para a cerimónia de casamento (colarinho branco, gravata, etc.), e
o menino de pés descalços, perdido, a chamar pela mãe… Intrigantemente, assim que
franqueia o limiar desse aposento, Abbie partilhará a noção de uma presença estranha,73
e a sua disposição excitadamente lúbrica dá lugar a uma nervosa delicadeza. No interior
dessa sala, a um tempo câmara mortuária e tálamo nupcial, Abbie desenvolve uma
poderosa simpatia em relação à mãe de Eben, reclamando para si a identidade desta e
assumindo em tudo a sua condição.
ABBIE: […] Fala-me da tua mãe, Eben.
EBEN: Não há muito de que falar. Era delicada. Era boa.
ABBIE: (Passando-lhe um braço pelos ombros, o que ele parece não notar, e apaixonadamente.)
Serei delicada e boa para ti!
EBEN: Às vezes costumava cantar para mim.
ABBIE: Eu cantarei para ti!
EBEN: Esta casa era dela. Esta herdade era dela.
ABBIE: Esta é a minha casa! Esta é a minha herdade!
EBEN: Ele casou com ela para lha roubar. Ela era terna e doce. Ele não soube apreciá-la.
ABBIE: Ele não sabe apreciar-me!
EBEN: Ele assassinou-a à força de dureza.
ABBIE: Ele assassina-me!
EBEN: Ela morreu. (Pausa.) Às vezes cantava só para mim. (Solta um soluço abrupto.)
ABBIE: (Abraçando-o numa louca paixão.) Hei-de cantar para ti! Hei-de morrer por ti! (Apesar
do abrasador desejo que tem dele, há nos seus modos e na sua voz um sincero amor maternal;
uma horrivelmente franca mistura de cio e de amor de mãe.) Não chores, Eben! Hei-de tomar o
lugar da tua mãe! Hei-de ser tudo o que ela era para ti! Deixa-me beijar-te, Eben! (Puxa-lhe a
cabeça. Ele tenta uma perplexa resistência. Ela transborda de ternura.) Não tenhas medo! É um
beijo puro, Eben… como se eu fosse tua mãe… e tu podes beijar-me como se fosses meu filho…
o meu menino a dar-me as boas-noites! Beija-me, Eben. [II Parte, Cena 3]
Este processo simultâneo de emulação e assimilação da mãe morta por parte de
Abbie, associado à perceção mística de Eben de que o espírito da Maw paira, em
73 Curiosamente, quando promete a Ephraim um filho, Abbie apresenta-se como uma espécie de vidente:
“Talvez eu tenha uma segunda vista. Sou profeta.” [II Parte, Cena 2]
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desassossego e como que clamando por uma reparação, naquele espaço funéreo (“Mãe!
Mãe! Que queres? Que me estás a dizer?”), desencadeará uma espécie de duplo incesto:
não se trata apenas de copular com a nova esposa do pai, mas de uma tal cópula ser
antecedida por uma espécie de reencarnação da mãe. Aquele lugar é uma câmara
ardente – no sentido fúnebre (compartimento no qual o defunto é velado) e no sentido
sexual (divisão em que a concupiscência carnal se cumpre). Aplicando uma outra
formulação, cunhada por Jean-Pierre Sarrazac ao referir-se a Welded [1924], peça que
precedeu Desejo Sob os Ulmeiros, podemos dizer que o que tem lugar no interior
daquele cenotáfio são umas “núpcias de morte com a figura invisível da mãe”.74 Em
Desejo, como em tantas outras peças desse Prometeu agrilhoado à condição filial que é
Eugene O’Neill, a mãe é o “Grande Ausente” – ausente na aceção precisa e
eminentemente teatral (pois que todo o teatro visa uma ausência) que lhe atribui o
ensaísta francês: “aquele que, a partir de um limiar de invisibilidade, orienta o drama”.75
Uma entidade que não aparece, mas transparece, no sentido etimológico da palavra –
aparece através de um véu. Mesmo naquelas peças em que a mãe não é (ou não começa
por ser) uma defunta, ainda assim, a sua condição é a de um espectro, uma morta-viva.
“[Na Longa Jornada para a Noite,] drogada e suicidária, acorrentada a um irreprimível
sentimento de culpa pela morte do pequeno Eugene (sic), um dos seus filhos, a mãe não
existe senão sob a forma de um fantasma.”76 De um determinado ponto de vista, afetivo,
está já morta – e ainda vai morrer.
Um pouco à semelhança da casa assombrada de Ibsen – não por acaso, uma das
referências cimeiras do dramaturgo norte-americano –, a casa o’neilliana é um viveiro
de espectros. “Está frio nesta casa. É desagradável. Há coisas que remexem no escuro…
pelos cantos”, diz Ephraim a Abbie antes de passar a noite no estábulo, junto das vacas
que o conhecem e entendem [II Parte, Cena 2]. Essa perceção da casa como realidade
fantasmática está, de resto, presente num dos passos mais citados e discutidos de toda a
peça, mas que raras vezes terá sido pronunciado no palco. Trata-se da tão amada quanto
odiada didascália de abertura,77 a qual nos fornece uma brumosa e, no entanto,
74 A expressão refere-se especificamente a Desejo Sob os Ulmeiros. J.-P. Sarrazac, “Le Roman
Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 53. 75 Idem, p. 52. 76 Idem, p. 54. 77 Um crítico da importância de Travis Bogard não hesita em censurar o simbolismo “explícito e forçado”
do cenário aí descrito. A páginas tantas, grato por se tratar apenas de uma didascália, de um passo da obra
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esclarecedora descrição dos dois enormes ulmeiros que ladeiam a casa e cuja
importância simbólica é, desde logo, sinalizada pela sua inclusão no título:
Parecem proteger e ao mesmo tempo dominar. Há, no aspeto deles, uma maternidade sinistra,
uma absorção ciosa e esmagadora. Desenvolveram, no contacto íntimo com a vida humana na
casa, uma humanidade aterradora. Meditam opressivamente sobre a casa. São como mulheres
exaustas que pousam no telhado os seios pendentes, as mãos e os cabelos, e, quando chove, as
suas lágrimas escorrem monotonamente e apodrecem o telhado de madeira.
Assim descritos, à maneira de um romance do século XIX, os ulmeiros
afiguram-se a expressão de uma maldição que paira sobre a casa e, em especial, sobre
Eben – a maldição de uma mãe que nunca acaba de morrer e de um filho que, incapaz
de fazer o luto, vive da morte da progenitora e a alimenta. Mas a famosa didascália
cenográfica é complexa, e é necessário ver nela mais do que foi intuído por Philip
Weissman, que diagnosticou ao autor um luto incessante pela mãe, a endémica
dificuldade em enterrar e livrar-se dos seus mortos. To subdue, que Jorge de Sena
traduziu por “dominar” na versão portuguesa, deriva do latim seducere – seduzir. Trata-
se de uma maternidade funesta e opressiva, que exerce um efeito asfixiante e
putrefaciente sobre a casa, mas também uma maternidade sedutora, que atrai e cativa,
no duplo sentido do termo. Uma maternidade sexualmente predadora, noção que o
termo “cioso” (parente da palavra “cio”), com que Sena rende o original “jealous”,
inteligentemente inocula no corpo de Desejo Sob os Ulmeiros. Como pretende Stephen
A. Black, “a linguagem da descrição cenográfica contém o germe do processo da peça”.
Antropomórfica e animisticamente presente na herdade, a mãe defunta é, a nosso ver, o
objeto último do intenso desejo de posse por parte de Eben, e não apenas de Eben.
Conclui o investigador e psicanalista, reincidindo no topos clínico: “Os temas edipianos
não poderiam ser mais explícitos, e são inseparáveis dos temas da perda e do luto sem
fim. Tentar enfrentá-los em conjunto ao escrever Desejo Sob os Ulmeiros equivale a
tentar realizar todo o processo da psicoterapia na primeira sessão”.78
que não sobreviverá na passagem à cena, Bogard escreve: “Afortunadamente, a retórica novelística que
associa os ulmeiros à falecida mãe de Eben e a uma exangue força vital não tem qualquer expressão para
lá das páginas impressas. […] O seu significado é assimilado à medida que as personagens se vão
tornando conscientes da sua presença e que os ulmeiros, consequentemente, passam a integrar a ação.” T.
Bogard, Contour in Time, op. cit.. 78 S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p. 308.
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Mas nem só de Édipo vive o Desejo. Parte considerável dos leitores mais
autorizados de Eugene O’Neill tem proposto o mito de Fedra, tal como cunhado por
Eurípides, como a principal chave de leitura trágica do enredo da peça, com o fatídico
triângulo constituído por Teseu, Fedra e Hipólito a servir de protótipo estrutural ao
relacionamento de Ephraim, Abbie e Eben. É a hipótese cujos fundamentos tentaremos
em seguida ponderar e detalhar, escorados no parecer não só de Louis Sheaffer,79 mas
também de Edgar F. Racey, aquele que primeiramente terá esclarecido, ainda que de
forma sumária, a homologia em relação à tragédia de Eurípides.80 Antes, porém, há uma
outra afinidade a equacionar sucintamente: contestando a prevalência que, desde a
década de 1960, investigadores vêm atribuindo ao Hipólito, Stephen A. Black advoga
que o assassínio da criança produz forçosamente um deslocamento do centro dramático
e simbólico da peça de O’Neill, pois, quando ocorre o infanticídio, os obscuros
contornos da Medeia euripidiana adquirem clareza. Se bem que tal deslocamento
tectónico no subsolo da herdade dos Cabot nos pareça incontestável (a sinistra sombra
de Medeia pairará sempre sobre o teatro quando nele se represente ou aluda ao nefando
crime), há que ter em consideração que um de “dois pontos essenciais da tragédia de
Eurípides” enunciados por Maria Helena da Rocha Pereira – “o filicídio e a motivação
do crime na infidelidade de Jasão”81 – não se encontra no Desejo o’neilliano, uma vez
que a ação de Abbie não coincide, no móbil e no propósito, com a démarche da
feiticeira da Cólquida. Matar o filho não corresponde, no caso do ‘melodrama’
americano, a um ato de vingança. Abbie não pretende, como sucede com a heroína de
Eurípides, punir Eben, mas premiá-lo, isto é, conceder-lhe a mais irrefutável
demonstração de um amor incondicional:
ABBIE: (Gritando-lhe com intensidade.) Hei-de provar-te! Hei-de provar-te que te amo mais…
(Ele entra, não parecendo ouvi-la. Ela fica de pé onde está, seguindo-o com o olhar, e conclui
então, desesperadamente) …mais do que a tudo no mundo! [III Parte, Cena 2]
ABBIE: (Histericamente.) Já está, Eben! Eu disse-te que era capaz! Provei que te amava mais que
tudo… para não duvidares mais de mim! [III Parte, Cena 3]
79 Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 127. 80 Vide Edgar F. Racey Jr., “Myth as Tragic Structure in Desire Under the Elms”, op. cit., pp. 57-61. 81 Maria Helena da Rocha Pereira, “Introdução”, in Eurípides, Medeia, trad. Maria Helena da Rocha
Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 12.
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Na nossa ótica, o que há de análogo em Abbie e Medeia é a cegueira dos
sentimentos e os seus devastadores efeitos: no caso da figura clássica, o infanticídio
resulta de um ódio indómito; no da personagem moderna, parece ser expressão de um
amor inabalável, cuja ação se revela, contudo, funesta. (Neste plano, aplicar-se-iam
cabalmente a esta as palavras daquela: “Que grande mal é o amor para os mortais!”)82
No tocante à sua impetuosa índole, Abbie estará porventura mais próxima de Medeia –
“carácter selvagem, temeroso, de um ânimo indomável” 83 – do que da pudica Fedra,
que, ainda que acometida por uma paixão avassaladora por Hipólito, não ousa dirigir-se
ao enteado, preferindo votar-se a si mesma à morte. Mas até este parentesco é de
problemática determinação, porque, no caso da personagem de O’Neill, a desorientação
e o desespero que a conduzem ao filicídio não são mediados pela maturação de um
propósito furioso, pela celebração consigo mesma de um pacto de sangue e morte que,
depois de deliberado, se torna inexorável. 84 É o que sucede no caso da protagonista de
Eurípides, cuja veemência de carácter se conjuga, de modo admirável e aterrador, com o
raciocínio e a lucidez: segundo Maria Helena da Rocha Pereira, “ela surge-nos como um
ser de razão e observação no primeiro episódio, e a mesma frieza calculista se
evidenciará na fala com Creonte, com Egeu, no segundo diálogo com Jasão”.85 É talvez
nesta peculiar combinatória de fogosidade temperamental e frieza cerebral que radica a
perigosidade de Medeia, contra a qual nos previne, logo na abertura da representação, a
Ama: “É que ela é terrível, e quem a desafiar como inimiga não alcançará facilmente
vitória.”86
Evidentemente, poderíamos alegar que Abbie traça uma tangente à figura da
feiticeira euripidiana quando se declara possuidora – como, a dado momento, chega a
aventar junto de Ephraim – de uma vidência particular, o que é, de algum modo,
atestado pela singular sensibilidade mediúnica que mostra em relação à presença do
espírito da mãe de Eben.87 Estaríamos também dispostos a sugerir um parentesco solar:
82 Eurípides, Medeia, op. cit., p. 50 [v. 330]. 83 Idem, p. 49 [vv. 103-104]. 84 Rapidamente, Abbie reconhece o desesperado desnorte em que caiu e o carácter imponderado da sua
ação: “Eu não queria. Eu odiei-me por ter feito o que fiz. Eu amava-o.” [III Parte, Cena 3] 85 M. H. R. Pereira, “Introdução”, in Medeia, op. cit., p. 21. 86 Eurípides, Medeia, op. cit., p. 46 [vv. 44-45]. 87 Esta conexão é débil porque a Medeia de Eurípides é menos senhora de artes mágicas do que o mito faz
supor e do que nos mostrarão apropriações dramáticas posteriores, como esclarece Maria Helena da
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se, na mitologia grega, Medeia descende do Sol, Abbie vem com a Primavera e parece
encontrar-se sob a influência direta do astro-rei – quando é violentamente acometida
pelo desejo88 ou na manhã que se segue à noite de núpcias com Eben, ao dar novamente
vida ao sarcófago da casa, abrindo-o aos raios solares… Todavia, estaríamos a
calcorrear ociosamente uma no man’s land, terreno fértil para o joio das suposições e
conjeturas. Se há uma afinidade que vincula Abbie e Medeia, ela manifesta-se na
descida ao Maelström que ambas experimentam, nesse vórtice de forças irracionais em
que as duas heroínas se vêem lançadas e enleadas. Sucede, porém, que esse indefinível
elemento de irracionalidade que imputamos a Medeia não sustenta uma filiação
exclusiva – também ele se descobre na fisionomia de Fedra, como assinala Frederico
Lourenço:
Medeia hesita […] e deixa bem claro que, racionalmente, não quer fazer mal aos filhos. Mas há
uma força irresistível que a arrasta, tal como acontece com Fedra que, por muito que não queira
estar apaixonada por Hipólito, não consegue fazer nada contra a paixão que a vai destruir. Eis
um bom exemplo da vertente do ‘irracional’ do teatro euripidiano.89
Rocha Pereira: “Mas, contrariamente ao que sucederá nas imitações desta tragédia, como a de Séneca e a
de Corneille, a magia ocupa uma parte mínima: apenas é utilizada nos venenos do peplos e da coroa, que
causarão a morte da filha de Creonte e de quem dela se aproximar, e no carro do Sol, no qual a Cólquida
abandona o palácio, qual deus ex machina.” Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da
Cultura Clássica, vol. I – Cultura Grega, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, p. 326. 88 O passo a que nos referimos é o seguinte: “Pois não está um sol quente, medonho? Sente-se ele a
penetrar na terra… a natureza… a fazer as coisas crescerem… tomarem-se maiores… maiores… ardendo
dentro de nós… fazendo a gente querer crescer… mudar-se noutra coisa… até nos fundirmos com ela… e
é nossa… mas somos dela também… que nos faz crescer mais… como uma árvore… como estes
ulmeiros…” [II Parte, Cena 1]. Esta associação parece-nos algo problemática porque o Sol é objeto de
atração e desejo por parte de todas as personagens: Simeon e Peter referem-se ao “Sol que vem connosco
para o Oeste Dourado”, Cabot queixa-se da solidão fria que é consubstancial à casa e anseia pelo calor
(mais das vacas do que do Sol, é certo) e Eben, a caminho da prisão, detém-se e aponta para o horizonte:
“O Sol a nascer. É lindo, não é?” [III Parte, Cena 4]. 89 Frederico Lourenço, “Eurípides, Medeia”, in Grécia Revisitada: Ensaios sobre Cultura Grega, op. cit.,
p. 298.
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2.3. Caracteres de uma primitiva escrita
Desejo Sob os Ulmeiros foi um escândalo – e adiante explicitaremos em que
sentido preciso ele é, em si mesmo, um escândalo (ponto 3.1). Mas, excetuando talvez
as situações em que os objetos artísticos assentam numa deliberada estratégia de
choque, num plano de perturbação da ordem emocional – e esse não é certamente o caso
da peça de Eugene O’Neill –, esta categoria não se revela grandemente útil se for nossa
intenção inquirir da natureza específica de um texto dramático ou de uma proposta
teatral. A reportagem da indignação tende a fixar-se na espuma das coisas, que
rapidamente se dissipa, condenando o assunto a um envelhecimento precoce e deixando
escapar o essencial.90 Todavia, se nos ativermos momentaneamente ao magma
incandescente de que Desejo é feito (incesto, filicídio, alcoolismo, luxúria, vingança,
todo um catálogo de paixões e delitos) e à reação que colheu nos EUA das primeiras
décadas do século XX (como regista ainda a Encyclopædia Britannica, “o primeiro
elenco de Los Angeles foi preso por representar uma obra obscena”),91 afigurar-se-á
inteiramente justificado que o dramaturgo norte-americano visite, neste seu teatro do
escândalo, a obra do tragediógrafo da Antiguidade clássica que, precisamente, como
informa Frederico Lourenço, “mais escandalizou os seus concidadãos com a ousadia
dos temas que tratou”.92
Referimo-nos a Eurípides, o ateniense que terá virado do avesso o ethos dos
heróis trágicos e feito “descambar”93 a própria tragédia enquanto género nobre. Dizê-lo
não corresponderá a um exagero retórico ou a uma liberdade estilística da nossa parte. A
90 Um exemplo tomado de empréstimo ao cinema: a onda de choque produzida por Je vous salue, Marie
impediu que se alcançasse uma evidência (como diz Nelson Rodrigues, “só os profetas enxergam o
óbvio”): o facto de o filme de Jean-Luc Godard estar imbuído de uma reverência de cariz religioso.
Sentimo-nos inclinados a subscrever a opinião do jornalista e escritor italiano Sergio Saviane, que, na
altura em que o filme se estreava em Roma, afirmou: “É um filme hiper-católico! Nunca esperaria isto de
Godard… Está cheio de amor e graciosidade infinita. Não há nele ponta de obscenidade ou blasfémia!”
Apud Maryel Locke, “A History of The Public Controversy”, in Charles Warren/Maryel Locke (ed.),
Jean-Luc Godard’s Hail Mary: Women and The Sacred in Film, Carbondale, Southern Illinois University
Press, 1993, p. 5. 91 In Encyclopædia Britannica [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.britannica.com/
EBchecked/topic/159216/Desire-Under-the-Elms> [consult. 09-04-2014]. 92 F. Lourenço, “Eurípides, Medeia”, in Grécia Revisitada, op. cit., p. 296. 93 F. Lourenço, “Eurípides: Trágico no Superlativo”, op. cit., p. 58.
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descrição pertence ao escritor e helenista português, que, ao cotejar o teatro euripidiano
com o de Ésquilo e o de Sófocles, apresenta um esclarecedor ponto de situação:
A elevação moral esquiliana desapareceu. A nobreza de expressão e a sobriedade de efeitos de
Sófocles também. Em Eurípides, assistimos (passe a expressão) à desbunda total. O estilo é ao
mesmo tempo hiperbólico, simples, barroco, transparente, incompreensível, de mau gosto e
arrepiantemente lírico. Poesia em estado puro, poesia do quotidiano, poesia da desmesura, poesia
do gore, do sangue, da morte, da loucura: esta é a própria respiração da tragédia de Eurípides.94
Um diagnóstico que é confirmado por Maria de Fátima Sousa e Silva, num estudo em
que, respigando testemunhos em Aristófanes, analisa o drama de Fedra tal como este
nos surge no Hipólito de Eurípides – tragédia de que conhecemos apenas uma segunda
versão (Hipólito Portador da Coroa), supostamente expurgada de uma desassombrada
disposição viciosa constante da primeira (Hipólito Velado), dada como perdida.95 Nesse
ensaio, a classicista assinala o golpe que o criador de intrigas eróticas e “uniões
culpadas” (citando Aristófanes) desferiu à honorabilidade do teatro clássico: “A
acusação de imoralidade cai agora, com ecos de escândalo, sobre a tragédia.”96
Evidentemente, não terão sido a aura de escândalo nem a notícia do ultraje
público a desencadear o interesse de Eugene O’Neill por Eurípides e o seu Hipólito. A
nosso ver, a atenção do dramaturgo norte-americano – tal como se manifesta em Desejo
Sob os Ulmeiros – incide no conflito erótico que o poeta antigo não hesita em explorar
(ao invés dos seus predecessores, que dele guardam distância), na orientação realista
que confere ao teatro clássico e, invocando de novo o saber de Maria Helena da Rocha
94 Idem, ibidem. 95 Têm sido empreendidas diversas tentativas de reconstituição do primeiro Hipólito, cujo despudor terá
chocado a sensibilidade do público ateniense. Pela importância de que ainda se reveste o seu estudo,
mencione-se a de Spencer Barrett (vide W.S. Barrett, Euripides’ Hippolytus, Oxford, Claredon Press,
1964, pp. 15-22). Transcrevemos a versão mínima de um desses exercícios reconstitutivos: “A Ama de
Fedra terá tentado refrear a paixão da sua senhora, em vez de encorajar a sua manifestação. Depois de
Fedra apresentar a sua acusação ao marido Teseu, há uma confrontação entre ele e Hipólito, culminando,
como na versão que chegou até nós, na imprecação que Posídon executou, ao enviar um touro do mar
para matar Hipólito. A verdade é revelada, talvez através de uma confissão de Fedra, que depois suicida-
se.” Peter Burian, “Myth into muthos: the shaping of tragic plot”, in P. E. Easterling (ed.), The Cambridge
Companion to Greek Tragedy, New York, Cambridge University Companion, 1997, pp. 201-202. 96 Maria de Fátima Sousa e Silva, “A Fedra de Eurípides: Ecos de um escândalo”, in Ensaios Sobre
Eurípides, Lisboa, Cotovia, 2005, p. 168.
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Pereira, na “feição predominantemente psicológica do teatro do terceiro dos grandes
trágicos gregos”.97 Fedra avulta nessa galeria de heroínas euripidianas “cuja
feminilidade – assegura-nos Frederico Lourenço – é aproveitada com uma
verosimilhança psicológica que faz delas figuras muito mais reais do que as
inesquecíveis, mas comparativamente monolíticas, Cassandra e Antígona, de Ésquilo e
Sófocles, respetivamente”.98 Orientação realista, drama psicológico, lutas endógenas,
desejo sexual – como veremos, todas estas matérias orgânicas fertilizam o subsolo da
herdade dos Cabot…
Comecemos, contudo, pela evidência – por aquilo que, cartesianamente, se nos
afigura claro e distinto: a simpatia entre a ação dramática de Desejo Sob os Ulmeiros e o
Hipólito. Na tragédia estreada a 428 a.C., que valeu a Eurípides o primeiro prémio nas
Grandes Dionisíacas, Fedra é acometida por uma avassaladora paixão carnal pelo jovem
Hipólito, filho do seu marido, Teseu. Desprezada no seu amor, e não querendo trazer
desonra sobre si e os seus filhos, comete suicídio e vinga-se de Hipólito, ao deixar
escrita uma infundada acusação contra o enteado – a de que este a violara, poluindo a
cama do próprio pai. Confrontado com a denúncia, Teseu amaldiçoa o filho, nesse
mesmo dia despedaçado por um touro que, em resposta à paterna imprecação, irrompe
das águas do mar. Na nossa perspetiva, é este incandescente triângulo que se encontra,
distorcida ou retorcidamente, reproduzido em Desejo Sob os Ulmeiros: Abbie é essa
mulher sensual que, tendo casado com o septuagenário Ephraim, deseja, desde o
primeiro encontro, o corpo jovem e vigoroso do enteado; Eben é esse enteado que – não
representando o supino modelo de virtudes que Hipólito encarna – reage, todavia, com a
repugnância e altivez deste à expressão do desejo da mulher do pai; e Ephraim é esse
pai que deposita crédito na palavra da mulher ensandecida pelo desejo e não hesita em
amaldiçoar o filho. Mas o carácter intrincado, manifestamente não linear, deste jogo de
97 M. H. R. Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I, op. cit., p. 325. Maria de Fátima
Sousa e Silva evoca todos estes elementos no seu estudo sobre a Fedra: “A orientação realista que
Eurípides procurou dar à tragédia influenciou, como é inevitável, a caracterização psicológica das
personagens. Humanas como são, as figuras que criou participam das fraquezas inerentes à sua própria
natureza. E Eurípides compraz-se em denunciar as lutas interiores que as dominam, como a qualquer
simples mortal, o que constitui um elemento novo dentro do teatro trágico. Pela primeira vez, a cena da
tragédia abria-se ao vasto domínio das relações sentimentais entre os dois sexos, que os seus antecessores
tinham evitado por considerarem indigno tal tipo de intrigas.” M. F. S. Silva, “A Fedra de Eurípides: Ecos
de um escândalo”, op. cit., p. 167. 98 F. Lourenço, “Eurípides, Medeia”, in Grécia Revisitada: Ensaios sobre Cultura Grega, op. cit., p. 297.
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semelhanças e correspondências lembra-nos o imperativo contido no velho oxímoro:
Festina lente.
Detenhamo-nos, pois, antes de mais, nos reflexos e refrações que Abbie
estabelece com a sua remota ascendente grega. Como Fedra, a personagem de O’Neill
começa por ocultar o desejo que sente e, a exemplo da filha de Pasífae, vinga-se do
ostensivo repúdio a que é votada, forjando a acusação de que Eben a tentara seduzir,
uma patranha que, na terceira e última parte da peça, conhecerá consequências
devastadoras. Ao invés de Fedra, contudo, Abbie confronta diretamente o enteado e
acaba mesmo por ser bem-sucedida nas suas investidas eróticas, fazendo de Eben seu
amante. Surgindo aos nossos olhos como uma criatura estruturalmente oportunista e
lasciva, talvez Abbie tenha mais em comum com a Fedra da infeliz (porque tão mal
acolhida) primeira versão do Hipólito. Nessa versão, dada como perdida, Fedra afigurar-
se-ia uma mulher amoral que ousava despudoradamente seduzir o enteado, descrição
que se ajustaria na perfeição à personagem o’neilliana. Sucede, porém, que a figura de
Abbie não é puramente negativa. Se, no Hipólito sobrevivente e definitivo, a esposa de
Teseu é uma figura de incontestável dignidade,99 a mulher de Ephraim Cabot é, de
algum modo, reabilitada ao longo da peça de O’Neill, descobrindo-se-lhe afinal uma
insuspeitada nobreza nos horrores de que é simultaneamente vítima e fautora.100 Nesse
ponto, assemelha-se mais à Fedra de Hipólito Portador da Coroa do que à de Hipólito
Velado, cujo suicídio seria afinal destituído de qualquer honra ou dignidade, afigurando-
se antes um cobarde ato de fuga. De resto, poderiam pertencer a uma Abbie rural
múltiplos passos das intervenções da heroína euripidiana, nomeadamente a seguinte
metáfora agrícola: “A minha alma já está completamente arada pelo desejo…” (v. 505)
99 Na introdução à sua tradução do Hipólito, Frederico Lourenço chama a nossa atenção para o facto de
tal dignidade ser reconhecida inclusive por Ártemis, deusa que teve em Hipólito o mais escrupuloso
devoto. Dirigindo-se a Teseu, diz: “Venho para te mostrar o espírito justo do teu filho, para que morra
honrado, e para te mostrar a paixão desvairada da tua mulher ou, de certo modo, a sua nobreza.” (vv.
1296-1301) Vide Frederico Lourenço, “Introdução”, in Eurípides, Hipólito, trad. Frederico Lourenço,
Lisboa, Colibri, 1996, p. 11. 100 Frederico Lourenço salienta uma estratégia tipicamente euripidiana: “Ao longo da peça, Eurípides leva
o espectador a rever de alto a baixo a sua perceção das duas personagens principais, a ponto de, no final,
ficarem completamente invertidos os papéis do ‘bom’ e do ‘mau’.” F. Lourenço, “Introdução”, op. cit., p.
12. Uma estratégia análoga é aplicada por O’Neill em Desejo Sob os Ulmeiros, obrigando-nos a “rever de
alto a baixo” a nossa perceção das personagens: se inicialmente a nossa simpatia está com Eben – uma
espécie de Hamlet chamado a vingar a mãe –, no final é o desesperado amor de Abbie que nos comove.
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Tal como a castamente lúbrica personagem de Eurípides, Abbie está refém do
impiedoso poder de eros e thanatos, que num caso redunda em suicídio e no outro em
infanticídio. Fedra e Abbie são, ambas, acometidas pelo mal da loucura: no Prólogo,
Afrodite alude à intensa perturbação psíquica da sua devota e, sobressaltada pelas
desconformes palavras de Fedra, a Ama confirmará, logo no primeiro episódio, o
prognóstico precoce enunciado pela deusa, obtendo o assentimento da sua senhora:
AMA: Mas que conversa disparatada é esta outra vez? Mesmo agora ias para a montanha,
desejosa de ir à caça. Agora é a paixão dos poldros nas praias sem ondas. Perceber qual dos
deuses te afasta do caminho e dá a volta à cabeça – isto, filha, só mediante poderes de divinação
muito especiais!
FEDRA: Pobre de mim, que terei eu feito? Para onde me afastei do bom senso? Enlouqueci… caí
devido a uma interferência divina. Ai, ai, pobre de mim! Ama, cobre-me outra vez a cabeça.
Tenho vergonha das coisas que disse. Cobre-me. As lágrimas correm-me dos olhos e só vejo
vergonha à minha frente. Pensar racionalmente dói, mas a loucura é uma desgraça terrível. (vv.
232-248)
No caso de Abbie, a loucura insinua-se sub-repticiamente na brusca mudança de humor
que ocorre quando irrompe pela sala de visitas onde o corpo da mãe de Eben estivera
em câmara ardente, para manifestar-se em toda essa cena, célebre pelo seu funéreo
erotismo [II Parte, Cena 2]. Nesse lugar – a peculiar câmara ardente a que acima nos
referimos –, Abbie assimila, perturbada e perturbantemente, a figura invisível da mãe
morta e consuma o ‘incesto’ com Eben. Nas didascálias, o recurso de O’Neill a
expressões como “louca paixão” ou “doidamente” não configuram propriamente
hipérboles ou meras forças de expressão. Após o infanticídio, quer Eben quer Ephraim
compreenderão que, como afirma Fedra, “a loucura é uma desgraça terrível”.
ABBIE: (Demasiado absorta nos seus próprios pensamentos para o ouvir e tentando convencê-
lo.) Não há agora razões para que vás… Não faz sentido… Está tudo como dantes… Não há
nada entre nós… depois do que eu fiz!
EBEN: (Algo na voz dela o intriga. Fita-a um tanto assustado.) Pareces louca, Abbie! Que
fizeste? [III Parte, Cena 3]
EPHRAIM: [O teu filho] está como eu esta manhã. Nunca dormi até tão tarde…
ABBIE: Está morto.
CABOT: (Fita-a, perplexo.) O quê?…
ABBIE: Matei-o.
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CABOT: (Recuando, lívido.) Estás bêbada… ou doida… ou…!
ABBIE: (Levanta de repente a cabeça, volta-se para ele, desvairada.) Matei-o, é o que te digo!
Abafei-o. Vai lá acima ver, se não me acreditas! [III Parte, Cena 4]
Numa apressada primeira leitura, é difícil identificar a simetria entre as
personagens de Eben e Hipólito: o jovem de Desejo Sob os Ulmeiros não apenas cede
aos libidinosos avanços de Abbie, como está longe de se pautar pelos elevados padrões
de castidade e autodomínio erguidos pelo nobre adorador de Ártemis. Nunca da boca da
personagem de O’Neill sairiam as seguintes palavras: “Não estou interessado em deuses
que se limitem a taumaturgias nocturnas” [v. 106]. Nem se poderia despedir dos seus
irmãos, Simeon e Peter, nos termos em que Hipólito diz adeus aos companheiros de
juventude: “Nunca vereis outro homem mais virtuoso” [v. 1100]. Na verdade, logo na
abertura de Desejo, é-nos dado a saber que Eben visita frequentemente Minnie, a
“mulher escarlate”, meretriz de aldeia com quem já seu pai e irmãos se haviam deitado.
Fá-lo inclusive no “dia do Senhor”, como afirma uma escandalizada – ou despeitada –
Abbie. Os irmãos acusam: “Luxúria… é o que cresce em ti!” [I Parte, Cena 2]; mais
adiante, o pai há-de corroborar: “A luxúria corrói-lhe o coração.” [II Parte, Cena 1]. No
entanto, a nosso ver, o vínculo entre o casto Hipólito e o devasso Eben subsiste, e
reconhecê-lo não requer uma especial subtileza de análise: ainda que com um carácter
diverso, a indignação e a repugnância com que o nobre herói de Eurípides reage às
imorais propostas da Ama são análogas às que Eben expressa face à lúbrica insinuação
de Abbie. Curiosamente, quando agarrados pelo braço, ambos se livram do repulsivo
contacto físico, eloquente demonstração de um asco que tem na ação de “cuspir” um
violento correlato.
HIPÓLITO: Não me posso calar, depois das coisas terríveis que ouvi.
AMA: (Agarra o braço de Hipólito.) Podes sim, pelo teu braço direito.
HIPÓLITO: (Com um espasmo de repugnância.) Importas-te de tirar a mão e de não me tocar na
roupa? [vv. 604-606]
ABBIE: (Pousando a mão no braço dele, sedutora.) Sejamos amigos, Eben.
EBEN: (Estupidificado, como que hipnotizado) Sim!… (Depois, sacudindo com fúria o braço
dela:) Não, velha bruxa! Tenho-te ódio! [I Parte, Cena 4]
AMA: O que vais fazer, filho? Dar cabo dos que te são próximos?
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HIPÓLITO: Tenho nojo deles! [Literalmente: “Cuspi!”] Delinquentes a mim não me são
próximos! [vv. 613-614]
EBEN: (Cuspindo com nojo.) Essa… aqui… a dormir com ele… a roubar a herdade da minha
mãe! Mais valia amansar uma doninha malcheirosa ou beijar uma serpente! [I Parte, Cena 3]
À altivez e superioridade moral que definem a postura de Hipólito e Eben face a
Fedra e Abbie haverá que somar uma intrigante feição da fisionomia moral daquela
personagem grega, que reaparece, ainda que desfigurada, no seu longínquo descendente
norte-americano: a misógina recusa do casamento e a veneração de uma figura
transcendente, exterior ao universo dos mortais. No discurso que encerra a truculenta
altercação com a Ama, Hipólito fará inclusive do tópico um eminente objeto de
teorização.
HIPÓLITO: O mais fácil de aturar é a mulher que nem conta como gente; mas entronizar em casa
estupidamente uma mulher assim também não serve de nada. Detesto as que são inteligentes:
que nunca haja nenhuma em minha casa que pense mais do que deve uma mulher. É entre as
mulheres inteligentes que Cípris implanta a pouca-vergonha. A sua própria estupidez impede a
mulher limitada de enlouquecer. Era preciso que nenhuma criada se aproximasse da mulher e
que com elas só vivessem animais afónicos, amigos de morder, para que não fossem capazes de
falar nem, por sua vez, de lhes compreender a voz. Mas agora elas elaboram – as malvadas! –
estratagemas perversos, que depois as criadas vêm cá para fora divulgar. [vv. 635-651]
Apesar de não se escusar ao comércio íntimo, de bom grado Eben subscreveria, como
num abaixo-assinado, a feroz catilinária do seu ascendente ático. Se Abbie é
repetidamente tratada por “pega”, “ladra”, “mentirosa” e “bruxa”, Minnie – a mulher
cuja beleza e até honestidade são apregoadas nas contendas com os irmãos e com Abbie
– não chega, na verdade, a merecer-lhe qualquer genuíno apreço: “Que me ralo eu com
ela! Só me interessa que tem carne e da quente!” [I Parte, Cena 3]. Casar é algo que está
ausente do seu horizonte de expectativas e é estranho à sua índole, como se depreende
da seguinte troca de palavras entre pai e filho:
CABOT: Porque não vais para o baile? Estavam a perguntar por ti.
EBEN: Que perguntem!
CABOT: Há lá uma molhada de raparigas bonitas.
EBEN: Que vão para o diabo!
CABOT: Devias tratar de casar com uma delas.
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EBEN: Não vou casar com nenhuma.
[III Parte, Cena 2]
Poderá certamente atribuir-se uma tal atitude à peculiar união de facto mantida
com Abbie, mas estamos convencidos de que a sua raiz e motivação são anteriores e se
prendem com a figura tutelar da mãe, cuja morte absorve a vida do filho, impondo-lhe
uma dedicação absoluta. De facto, nem o envolvimento sexual com Abbie chega a fazer
perigar esta influência, uma vez que a cópula é precedida por um fenómeno de
‘reencarnação’ da mãe na madrasta e é interpretada como um soberano gesto de
vingança da progenitora. A devoção de Eben à mãe reproduz, em boa medida, a
devoção de Hipólito à deusa Ártemis, de quem se diz “caçador” e “servidor”,
“cavaleiro” e “guarda” (v. 1397-1399). O jovem príncipe de Eurípides, como infere
Maria Helena da Rocha Pereira, é “um exemplo vivo de misticismo, no seu culto por
Ártemis, de tal modo exclusivo que se torna, por excesso, culpado de hybris para com
outra divindade não menos poderosa, Afrodite”.101 Analogamente, o convívio de Eben
com a mãe morta adquire contornos místicos e teofânicos. Quando se vê em apuros,
Eben recomenda-se à oração: “Hei-de rezar à minha mãe para que volte e venha ajudar-
me…”; quando rompe com Abbie, apela à ira divina: “Não vou contar nada ao pai.
Deixo a mãe vingar-se em ti”; e quando se confronta com o horror do infanticídio,
interroga a progenitora por si endeusada: “Mãe, onde estavas tu, porque a não
detiveste?”. Neste lutuoso e edipiano culto, não falta sequer altar ou templo: a sala de
visitas, que permanecera fechada desde que ali repousara o cadáver materno, possui
uma aura sagrada que a própria Abbie reconhecerá quando excitadamente franquear o
seu umbral. Aí busca o jovem o oráculo: “Mãe! Mãe! Que queres? Que me estás a
dizer?”. As cantantes palavras do filho de Teseu, relativas à sua exclusiva veneração a
Ártemis, poderiam transitar diretamente para a boca de Eben, esse Hipólito americano,
surpreendentemente dissoluto, mas igualmente devoto:
HIPÓLITO: […] Sou o único entre os homens que tem este privilégio: conviver e conversar
contigo, ouvindo o som da tua voz, sem olhar, porém, para o teu olhar. [vv. 84-86]
De Ephraim Cabot poderemos dizer que representa uma expressiva inflação
dramatúrgica e simbólica do arquétipo euripidiano, Teseu. Se, na tragédia grega, o pai
101 M. H. R. Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I, op. cit., p. 328.
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de Hipólito não comparece a uma parte substancial da peça, assomando apenas no
terceiro episódio, na sequência do suicídio de Fedra, na peça de O’Neill, porém, o velho
Cabot assume uma incontestável centralidade, mesmo estando ausente de quase toda a I
Parte. Mas tudo o que é dito pelos três filhos – ora tolhidos pelo medo, ora a transbordar
de rancor – vem apenas adensar a expectativa do público em relação à sua personagem,
na qual Louis Sheaffer encontrou “uma das figuras mais ricas de toda a obra de
O’Neill”. 102 Personagem estranhamente compósita, o pai Cabot tem sido perspetivado
sob múltiplas formas, como se fosse um caleidoscópio nas mãos dos seus intérpretes:
profeta hebreu (nomeadamente Oseias), risível bufão, velho Karamazov, uma
personagem das telas de Grant Wood, titã puritano, uma grotesca variação de John
Bunyan… O próprio dramaturgo não escondeu a sua predileção por esta força da
natureza, a um tempo repelente e magnética: “Sempre adorei tanto Ephraim! Ele é tão
autobiográfico!”103 Sheaffer explica a afeição de O’Neill: “Com a sua devoção cristã e
os seus apetites carnais, o seu desdém pelos filhos e a estranha ternura que dedica à sua
manada de vacas, a sua dureza e a sua ligação à terra, simultaneamente mesquinha e
religiosa, as suas explosões de humor feroz e extravagante, Ephraim assume dimensões
épicas”.104 A esta estatura não é alheio o facto de neste homem “duro como o aço”
reaparecerem, como num palimpsesto, caracteres de uma primitiva escrita – a do
Hipólito, de Eurípides. Como Teseu, Ephraim Cabot apresenta-se-nos como um homem
de várias mulheres: na história do herói grego, contam-se três especialmente
emblemáticas – Helena, Ariadne e Fedra –, enquanto na narrativa de Ephraim sabemos
da existência da mãe de Simeon e Peter, da mãe de Eben e agora de Abbie, a “Rosa de
Sião” da sua velhice. A isto acresce que ambos são presas fáceis do logro das respetivas
mulheres: se Teseu não concede sequer o benefício da dúvida ao virtuoso Hipólito,
apesar da sólida argumentação filial, Ephraim considera Eben culpado da acusação de
se insinuar sexualmente à madrasta, mesmo conhecendo a sua aversão por ela e as
repetidas contendas entre ambos. Garante Abbie ao enteado feito amante: “Sei sempre
deitar-lhe poeira nos olhos” [II Parte, Cena 4]. Outro traço distintivo de Teseu ressurge
na invenção o’neilliana: a “fúria funesta” de que fala o Coro (v. 899) e a pronta
disposição imprecatória. As insistentes pragas que o velho Cabot roga aos filhos – em
102 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 128. 103 Apud idem, p. 130. 104 Idem, p. 128.
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especial, a Eben – são reminiscentes da fatídica maldição proferida por Teseu contra o
filho:
TESEU: […] Ó pai Posídon, as três imprecações que outrora me prometestes – com uma delas
aniquila o meu filho! Que ele não fuja a este dia, se são seguras as imprecações que me
concedestes. [vv. 886-890]
CABOT: (Erguendo os braços ao céu, numa fúria que já não domina.) Senhor Deus dos
Exércitos, esmaga esses filhos sem vergonha com a pior das Tuas maldições! [I Parte, Cena 4]
Finalmente, Teseu e Cabot conhecem o mesmo irremediável destino: a solidão. No caso
daquele que aniquilou o Minotauro, a mulher suicida-se e o filho, sob o poder letal das
suas palavras, é fatalmente dilacerado contra as pedras por um “monstruoso touro”; no
caso daquele que ama a companhia das vacas e chama ao ‘seu’ Hipólito “vitelo
desmamado”, mulher e filho abandonam a herdade sob custódia policial, tendo por
futuro certo o cadafalso. A partir de uma das derradeiras intervenções de Ephraim,
ocorre-nos efabular um breve colóquio entre o herói de Atenas e o patriarca da Nova
Inglaterra, síntese possível do dialogismo que estruturalmente aproxima as duas
personagens e as duas obras.
TESEU: Agora isto vai ser mais solitário do que alguma vez foi… E eu estou a ficar velho…
CABOT: Ora… que esperas? Deus é solitário, não é? Deus é duro e solitário!
2.4. The Force behind
FEDRA: Caí devido a uma interferência divina.
EURÍPIDES, Hipólito
ABBIE: É Deus que se vinga em todos nós!
EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros
As analogias e conexões que temos vindo a estabelecer entre as personagens da
tragédia grega de 428 a.C. e as do ‘melodrama’ americano de 1924 não visam, de modo
algum, sugerir que as criaturas (re)inventadas por Eugene O’Neill são antigos gregos –
ou heróis da mitologia ática – destituídos das suas togas de época e travestidos de
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pilgrim fathers ou de rudes yankees da oitocentista Nova Inglaterra. Essas afinidades
têm, antes, por assim dizer, um carácter propedêutico, funcionando como a antecâmara
de algo mais essencial que atravessa e marca decisivamente Desejo Sob os Ulmeiros.
Tendo em consideração o que atrás ficou exposto, estamos convencidos de que, no seu
The Secret Cause, Normand Berlin desvaloriza precipitadamente as eventuais
correspondências existentes entre as personagens de Eurípides e O’Neill –
negligenciando, a nosso ver, um precioso capital de análise –, mas inclinamo-nos a
concordar quando afirma que “a abordagem de O’Neill afigura-se mais grega não nas
similitudes particulares ou nas variações em relação à história convencional, mas na
atmosfera do determinismo”.105 A necessidade, de que a Razão e as Luzes teriam
expurgado a modernidade – “A necessidade é cega apenas enquanto não é
compreendida”, postulou Marx106 –, pairaria afinal sobre a herdade da Nova Inglaterra,
à semelhança do que, num remoto tempo mítico, acontecera no palácio real de Trezena.
Verifica-se a existência de uma espécie de homologia simbólica no Hipólito e no
Desejo Sob os Ulmeiros, um vínculo espiritual ilustrado pelo aparato cénico previsto
nos textos de Eurípides e de O’Neill. Na tragédia clássica, a intervenção inicial do
jovem príncipe atesta a existência de um altar com uma estátua dedicado a Ártemis,
deusa que há-de comparecer no teatro antes de a representação cessar; analogamente, o
colóquio mantido, instantes depois, entre Hipólito e o Servo, que paternalmente o
aconselha, denuncia a existência simétrica de um segundo altar e uma segunda estátua,
consagrados à deusa Afrodite, que abrira, em pessoa, o espaço-tempo da representação,
anunciando um plano já em curso.107 Este binómio cenográfico foi, aliás, deduzido do
texto euripidiano pelos seus tradutores e vertido numa preliminar rubrica de cena, que
decerto constaria da edição do Hippolytus que integrava a biblioteca pessoal de O’Neill
105 Normand Berlin, “Passion: Hyppolytus, Phaedra, Desire Under the Elms”, in The Secret Cause,
Amherst, The University Massachusetts Press, 1981, p. 54. 106 Apud George Steiner, The Death of Tragedy, New Haven/London, Yale University Press, 1996, p. 4. 107 A estátua de Ártemis é intuída na invocação inicial de Hipólito e dos seus Servos: “Nobilíssima
soberana, rebento de Zeus, salve, Ártemis, filha de Leto e Zeus!”; “Trago esta coroa entretecida para ti,
senhora…” [vv. 60 e ss.] A presença da estátua de Afrodite é evidenciada pela seguinte altercação entre
Hipólito e o Servo: “SERVO: Então por que motivo é que não te diriges a uma divindade altiva?//
HIPÓLITO: Qual? Pondera bem, não vá a tua boca escorregar!// SERVO: Esta que está às tuas portas,
Cípris.// HIPÓLITO: É ao longe que a saúdo, visto que sou puro.” [vv. 99-102]
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(muito provavelmente, a tradução publicada em 1902 por um insigne helenista de
Oxford, Gilbert Murray, versão que conheceu uma expressiva difusão).108
Na peça de O’Neill, nenhuma deusa toma, de início, a palavra (embora a
primeira intervenção seja o exclamativo God! de Eben), mas – no lugar das duas
estátuas – temos dois ulmeiros, cujo sentido nos é dado pela famigerada didascália de
abertura, que voltamos a invocar:
Há dois enormes ulmeiros de cada lado da casa. Parecem proteger e ao mesmo tempo dominar.
Há, no aspeto deles, uma maternidade sinistra, uma absorção ciosa e esmagadora.
Desenvolveram, no contacto íntimo com a vida humana na casa, uma humanidade aterradora.
Meditam opressivamente sobre a casa. São como mulheres exaustas que pousam no telhado os
seios pendentes, as mãos e os cabelos, e, quando chove, as suas lágrimas escorrem
monotonamente e apodrecem o telhado de madeira.
Conforme anteriormente mencionado, esta didascália terá sido pronunciada em palco
em raríssimas ocasiões, mas a importância dramática dos ulmeiros é decisiva e desde
logo sinalizada pelo título. Anota Normand Berlin: “Tudo o que acontece na peça,
desencadeado por múltiplas formas de desejo, acontece sob os ulmeiros – fisicamente
sob os ulmeiros, uma vez que eles pairam sobre a casa, e simbolicamente sob os
ulmeiros, uma vez que representam clara e convincentemente o predomínio da Mãe:
Mãe como princípio feminino, Mãe como apelo do passado, Mãe como espírito
vingativo, Mãe como amante.”109 Diríamos mesmo que representam o predomínio de
duas mães: uma, “esmagadora” e dominadora, que nunca morre; outra, “ciosa” e
sedutora, que cativa. Ambas, forças que, como enunciámos, adquirem contornos
místicos e teofânicos, correspondendo às divindades euripidianas. Curiosamente, estes
ulmeiros, que vêm ocupar o lugar dos dois altares do Hipólito, constam já do texto
trágico:110
108 Uma outra possibilidade seria a de Eugene O’Neill dispor da versão de Edward P. Coleridge,
publicada também no início do século XX. Mas ainda nesse caso se aplica a nossa suposição, uma vez
que a tradução de Coleridge inclui uma didascália similar. 109 N. Berlin, The Secret Cause, op. cit., p. 55. 110 Maiúscula e itálico nossos.
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FEDRA: Ai, ai! Se ao menos eu pudesse beber um golo de água pura de uma nascente de orvalho
e pudesse deitar-me a descansar, sob os ulmeiros, num prado viçoso e luxuriante!111 (vv. 208-
210)
Se Desejo Sob os Ulmeiros pode admitir a classificação de tragédia – rating que
Margaret Loftus Ranald lhe vem insistentemente atribuindo –, não será por mimetizar a
estrutura ou os tópicos de uma tragédia clássica (ou, como puerilmente por vezes se
supõe, porque acaba mal), mas por assentar na perceção de forças exógenas coercivas –
the Force behind de que falava O’Neill, um impenetrável reduto de mistério –, que
obscuramente presidem ao curso da vida humana e determinam a infelicidade como o
seu destino último. Resistir-lhes ou combatê-las equivale a esbracejar pateticamente no
vazio. No seu The Death of Tragedy, George Steiner assinala:
Os poetas trágicos gregos declaram que as forças que moldam ou destroem as nossas vidas
radicam no exterior do governo da razão ou da justiça. Pior ainda: em torno de nós há energias
daemónicas que se apoderam da alma, entregando-a à loucura, ou envenenam a nossa vontade de
tal modo que infligimos irreparáveis danos a nós próprios e aos que amamos.112
É no interior desta mundividência que encontramos o torturado autor de Longa
Jornada para a Noite, e é ela que pode inocular, em Desejo Sob os Ulmeiros, o “sentido
clássico de tragédia” de que falava o crítico citado pela atriz Katina Paxinou. Se, na
obra de Eurípides, Afrodite determina o curso da existência de Fedra, Hipólito e Teseu,
dando provas de um poder contra o qual nada podem e desencadeando, no caso da
primeira, um estado de perturbação psíquica que a coloca no limiar da loucura, the
Force behind que opera na peça de O’Neill é essa “maternidade sinistra”,
simultaneamente funesta e sedutora, objetivada pelos omnipresentes ulmeiros, geradora
não apenas de vida, mas também de insânia e morte. Em Eurípides, as deusas projetam a
sombra do inelutável sobre o palácio de Trezena; em O’Neill, os ulmeiros lançam a
mesma trágica sombra sobre a herdade dos Cabot. Ao invés de Afrodite e Ártemis, que
surgem no Prólogo e no Êxodo, respetivamente, para se dirigirem ao público e
interpelarem os homens, as duas árvores ditam silenciosamente a sua lei, acossando
todavia com idêntica eficácia os seus mortais. Apropriando-nos das palavras de um
111 Cometemos o atrevimento de, na tradução de Frederico Lourenço, substituir a expressão “debaixo dos
ulmeiros” pela formulação sinónima “sob os ulmeiros”. 112 G. Steiner, The Death of Tragedy, op. cit., pp. 6-7.
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Salmo hebraico, poderíamos dizer: “Sem linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vozes.”
(Sl. 19.3) É a muda eloquência do passado – “o passado que gera o presente”, para
retomar a expressão de O’Neill113 –, do indeferível apelo do atavismo, da feroz
persuasão de “uma mãe morta que não acaba de morrer e retém o filho cativo”.114
Aplica-se à espectralidade de Desejo Sob os Ulmeiros o sombrio passo de Requiem por
uma Freira, de William Faulkner: “O passado nunca morre. Nem sequer é passado.”115
Ou poderíamos lembrar a réplica um tanto brutal que, em Longa Jornada para a Noite,
Mary dá ao apelo de Tyrone para que esqueça o passado: “O passado é o presente, não
é? E também o futuro. Todos tentamos ignorar isto, mas a vida não consente.”116
Já não nos encontramos no mesmo paradigma epistémico ou ontognoseológico,
é certo. O determinismo divino é, em Hipólito, uma evidência não apenas para o
público, a quem Afrodite dá a conhecer as suas intenções e o seu programa, mas
também para as personagens que protagonizam, ou sofrem, a ação trágica. Tanto Fedra
como a Ama revelam consciência e até uma compreensão racional da “doença” (v. 395)
que aflige a filha de Pasífae e do que está na sua origem: “Enlouqueci… caí devido a
uma interferência divina”, lamenta Fedra (v. 240); “Cípris, que me destruiu a mim, a ela
e a esta casa, não é uma deusa, mas algo mais poderoso ainda do que um deus”, pranteia
a Ama (vv. 359-361). Também Hipólito e Teseu acederão a esta evidência, quando
Ártemis fizer a sua aparição como deus ex machina: “Ai, já sei quem foi a divindade
que me destruiu”, (v. 1401) dirá o moribundo caçador que antes frequentava prados
113 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 195. 114 André Green apud J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 55. 115 Embora autores como Normand Berlin advoguem que O’Neill substitui em Desejo a teogonia grega
pela doutrina freudiana, na verdade, esse passado insepulto que polui o presente dos Cabot também se
encontra, em surdina, no Hipólito. Esta é, pelo menos, a perspetiva de Edith Hall em Greek Tragedy:
Suffering under the Sun, onde se chama à colação o passado biológico e a herança genética: “Fedra é uma
princesa cretense, filha da lasciva Pasífae que gerou o Minotauro, e neta de Aérope, que adulterou ao
deitar-se com o irmão do próprio marido: as mulheres de Creta são, na tragédia, invulgarmente suscetíveis
a impulsos eróticos transgressivos. Hipólito herda da mãe a sua rejeição à maturidade sexual, o repúdio ao
casamento e a radical antipatia pelo sexo oposto. A mãe de Hipólito era a Rainha das Amazonas, tribo de
mulheres guerreiras que desprezavam relações conjugais ‘normais’ e percorriam bosques virgens.” (E.
Hall, Greek Tragedy: Suffering under the Sun, op. cit., p. 249.) É como se, à semelhança de Yahveh, o
Deus único da Bíblia hebraica, os deuses pagãos da Grécia visitassem “a iniquidade dos pais sobre os
filhos e sobre os filhos dos filhos até à terceira e quarta geração”. (Ex. 34.7) 116 E. O’Neill, Jornada para a Noite, op. cit., p. 103.
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virgens. Ora, a evidência desapareceu entre os unicórnios, como sentenciou o ensaísta
italiano Roberto Calasso.117 Mas, ainda que não possuindo contornos de coisa clara e
distinta, a presença real dessa força estranha é também, em Desejo Sob os Ulmeiros,
objeto de reconhecimento por parte das personagens, nomeadamente Eben, que intui a
“interferência divina” (aplicamos a formulação de Fedra) protagonizada pela mãe morta
na magnífica cena que tem lugar nesse sancta sanctorum que é a sala de visitas:
EBEN: (À presença que sente na sala.) Mãe! Mãe! Que queres? Que me estás a dizer?
ABBIE: Está a dizer-te que me ames. Sabe que eu te amo e que serei boa para ti. Não sentes? Não
sabes? Está a dizer-te que me ames, Eben!
EBEN: Sim… Sinto… talvez ela… mas… não consigo perceber… porque… quando roubaste o
lugar dela… aqui, na sua casa… na sala onde ela esteve…
ABBIE: (Com intensidade.) Ela sabe que eu te amo!
EBEN: (Com o rosto a iluminar-se subitamente de um imenso riso triunfante.) Estou a ver! Estou
a ver porquê! É que ela, assim, vinga-se dele… e pode repousar em paz na sepultura!
ABBIE: (Doidamente.) É Deus que se vinga em todos nós! E que nos importa? Eu amo-te, Eben!
Deus sabe que eu te amo! (Estica os braços para ele.) [II Parte, Cena 3]
Se a tragédia de Eurípides é, pois, a história da exemplar vingança de Afrodite sobre
Hipólito, cuja misógina castidade foi cobrada nos termos de uma imperdoável
blasfémia, e se essa punição tem de ser executada, mesmo implicando a destruição de
uma ‘filha’ (Fedra), Desejo Sob os Ulmeiros é, também a seu modo, uma revenge play:
a que a mãe defunta impõe ao pai vivo, a que o passado impõe ao presente, mesmo que
tal acarrete o sacrifício do filho, Eben. Não podemos, contudo, deixar de notar que o
próprio Ephraim é sensível à alteridade que informa o drama. Pertence-lhe inclusive um
dos mais perturbantes e misteriosos comentários de toda a peça, sobretudo tendo em
conta que ocorre durante essa celebração dionisíaca que é a festa do nascimento do
filho/neto. Aí, Ephraim dá voz à perceção de uma familiar estranheza, algo a que
aparentemente só a palavra alemã Unheimlich, teorizada por Freud num texto famoso de
1919, parece fazer justiça – um conceito que “pertence a dois conjuntos de
representações que, por serem opostas, são, pelo menos, mutuamente estranhas: o
familiar, confortável, e o escondido, dissimulado”.118
117 “Ontem, os filósofos costumavam partir da evidência, que agora desapareceu entre os unicórnios.”
Roberto Calasso, Os Quarenta e Nove Degraus, Lisboa, Cotovia, 1998, p. 27. 118 Sigmund Freud, L’inquiétante étrangeté et autres essais, Paris, Gallimard, 1985, p. 221.
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CABOT: […] Sinto isto, que tomba dos ulmeiros, que trepa pelo telhado, que se esgueira pela
chaminé abaixo e espreita dos cantos! Não há paz nas casas, não há repouso no meio de gente. E
sempre alguma coisa vive connosco. [III Parte, Cena 1]
A nosso ver, se etimologicamente protagonista significa ‘o primeiro a entrar na
luta’ ou ‘o que combate na primeira fila’, talvez os protagonistas do Hipólito e de
Desejo Sob os Ulmeiros não sejam Fedra ou Hipólito, nem Eben, Abbie ou Cabot, mas
essa força “mais poderosa ainda do que um deus”, insondável matriz do obscuro objeto
que é o desejo. Num caso, trata-se de Afrodite; no outro, trata-se de uma maternidade
difusa, presente tanto no opressivo espectro da mãe de Eben e em Abbie (“a nossa nova
mãe”, diz Simeon), como nos ulmeiros e nas vacas, junto das quais um Ephraim “a cair
da tripeça” espera satisfazer o seu enigmático desejo de calor e companhia. Normand
Berlin observa: “Parece que percorremos um longo caminho, indo do Teseu que
enfrenta um touro no labirinto até ao Ephraim Cabot com as suas vacas numa quinta da
Nova Inglaterra, mas as paixões e necessidades do homem permanecem obscuras e as
suas causas secretas e impenetráveis”.119 Não há progresso nessa coisa a que, por
comodidade, chamamos ‘condição humana’. Encontramo-nos, afinal, no mesmo ponto –
indeterminável – em que sempre estivemos. E permanecemos irremediavelmente
expostos a uma imprevisível força oculta,120 como um desabrigado animal num mundo
frio e hostil, como uma abelha na chuva. Escreve George Steiner: “Fora e dentro do
homem está l’autre, a alteridade do mundo. Podem chamar-lhe o que quiserem: um
Deus oculto e malévolo, o cego destino, as reivindicações do inferno ou a fúria bruta do
119 N. Berlin, The Secret Cause, op. cit., p. 61. 120 A perceção de uma força oculta e obscura é também veiculada no drama póstumo de O’Neill, Longa
Jornada para a Noite. Se em Desejo Sob os Ulmeiros, os ulmeiros que ensombram a herdade dos Cabot
são o correlato objetivo desse protagonista ausente que é Mãe (ou o Passado), algo análogo ocorre no
nevoeiro que se vai adensando em torno da casa dos Tyrone, como que montando um cerco à família.
Jean-Pierre Sarrazac refere-se ao nevoeiro de Longa Jornada como “o verdadeiro agente dramático da
peça”. (Jean-Pierre Sarrazac, Poétique du drame moderne: De Henrik Ibsen à Bernard-Marie Koltès,
Paris, Seuil, 2012, p. 117.) Sintomaticamente, é através da mãe, um espectro que vagueia pelo andar de
cima da casa, que o apelo e a coerção desse poder exógeno são evocados: “MARY: O nevoeiro esconde-
nos do mundo e esconde o mundo de nós. Sente-se que tudo mudou, nada é o que parecia ser. Ninguém
pode encontrar-nos ou tocar-nos sequer. […] A ronca é que eu detesto. Não nos deixa estar sós. Está
sempre a lembrar-nos, a avisar-nos, a chamar por nós.” E. O’Neill, Jornada para a Noite, op. cit., p. 115.
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nosso sangue animal. Espera por nós em encruzilhadas, prepara-nos emboscadas.
Escarnece de nós e aniquila-nos. Em algumas raras ocasiões, leva-nos para lá da
destruição, para algum incompreensível descanso.”121
Analisado o modo como Desejo Sob os Ulmeiros procura estar à altura da
categoria de tragédia, no sentido clássico, percebemos, assim, a razão pela qual a peça
tem sido vista pelos biógrafos e críticos de O’Neill, em termos quase teleológicos, como
“o cumprimento da promessa” contida na primeira fase da carreira do dramaturgo. Os
mais resolutos não hesitam em convocar a problemática – e talvez pouco proveitosa –
categoria crítica da genialidade, asseverando que “com esta peça, O’Neill afirma-se
como um dramaturgo de génio”.122 Ainda assim, somos obrigados a perguntar se Desejo
Sob os Ulmeiros pode ser categoricamente designada, como faz Travis Bogard, “a
primeira tragédia de relevo a ser escrita na América”.123 Não é o de relevo que suscita
legítimas reservas, mas a própria categoria tragédia. É verdade que O’Neill se
apresentou como tragediógrafo – “Escrevo tragédias”,124 afirma resolutamente numa das
cartas da época de Desejo – e, como vimos anteriormente, definiu a sua violenta e
apaixonada peça como “uma tragédia de gente possessiva”.125 Sucede que uma coisa é o
trágico; outra, diversa, a tragédia. Na ótica de George Steiner, o trágico é universal,
enquanto a tragédia pertence a um momento da história ocidental que se encontra
superado: as suas condições de possibilidade teriam expirado após Racine, no século
XVII, com a irresistível emergência de um paradigma de racionalidade tecnocientífica e
progressista.
A personagem trágica é despedaçada por forças que não podem ser compreendidas na sua
plenitude nem suplantadas pela prudência da razão. […] Onde as causas da desgraça são
temporais, onde o conflito é suscetível de ser resolvido através de meios técnicos ou sociais,
121 G. Steiner, The Death of Tragedy, op. cit., pp. 8-9. 122 Margaret Loftus Ranald apud S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., p.
318. No volume organizado por Harold Bloom sobre o moderno teatro norte-americano, Lionel Trilling
inicia assim o ensaio dedicado a Eugene O’Neill: “O que quer que haja de incerto em relação a Eugene
O’Neill, uma coisa é definitivamente certa: o seu génio.” Lionel Trilling, “Eugene O’Neill”, in Harold
Bloom (ed.), Modern American Drama, New York, Chelsea House, 2005, p. 13. 123 T. Bogard, Contour in Time, op. cit.. 124 Carta de 6 de Fevereiro de 1925, endereçada a Sister Mary Leo. In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected
Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 192. 125 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., pp. 441-442.
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podemos ter drama a sério, mas não tragédia. Leis de divórcio mais flexíveis não podem alterar o
destino de Agamémnon, e a psiquiatria social não é resposta para o Édipo. Mas relações
económicas mais salutares e mais justas podem resolver algumas das graves crises das peças de
Ibsen. Não se pode perder de vista este violento contraste. A tragédia é irreparável.126
Mesmo se nos alhearmos do aparato argumentativo de Steiner e nos detivermos
exclusivamente sobre a especificidade da poética o’neilliana, a classificação de tragédia
pode revelar-se problemática. Jean-Pierre Sarrazac não hesita em classificar como um
fiasco o projeto de O’Neill erguer uma forma trágica de matriz e inspiração ática.
Argumenta Sarrazac que o seu teatro enferma de uma anomalia genológica: “Se as
peças de Ibsen se escoram em romances não escritos de que são epílogos, as peças de
O’Neill desenrolam-se e projetam-se como romances”.127 Tudo na escrita dramática do
autor de Welded e Strange Interlude [1928] o parece indiciar: a organização não em
atos, mas em capítulos, que pautam as diferentes etapas de uma existência; a hipertrofia
das didascálias, que se assemelham a típicas descrições de um romance do século XIX e
dissecam, física e psicologicamente, as personagens (didascálias que, no caso de Desejo
Sob os Ulmeiros, representam uma décima parte do texto);128 os diálogos nos quais, em
várias peças, emerge uma espécie de monólogo interior;129 a estrutura temporal, que faz
126 G. Steiner, The Death of Tragedy, op. cit., p. 8. Infaustamente, o dramaturgo americano caiu na cilada
aqui denunciada por Steiner: a de pretender adaptar a tragédia a um moderno paradigma racionalista,
“substituindo a fatalidade grega por forças mais compreensíveis num tempo sem religião e sem
comprometimento com os deuses”. Eugene O’Neill apud M.L. Ranald, “O’Neill, Eugene”, op. cit., p.
724. 127 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 49. 128 Esta inflação didascálica atinge o seu expoente máximo em Longa Jornada para a Noite, cujas
indicações cénicas detalham a biblioteca da casa de férias dos Tyrone, minudenciam as madeiras do
mobiliário e descrevem fotograficamente a compleição e a fisionomia das personagens (altura, silhueta,
pele, nariz, boca, testa, sobrancelhas, pestanas, dedos das mãos, articulações, etc.). 129 Este procedimento o’neilliano, que Peter Szondi, Jean-Pierre Sarrazac e Joseph Danan identificam em
peças temporalmente próximas de Desejo Sob os Ulmeiros, como Welded e Strange Interlude, talvez se
encontre também presente na folk tragedy dos Cabot (por exemplo, no monólogo da Cena 2 da II Parte,
em que Ephraim exuma o seu passado). A propósito desse procedimento ou técnica transcrevemos um
comentário de Danan: “As personagens de O’Neill não conversam. Estão presas na tensão de um diálogo
de que não se conseguem evadir nem mesmo pelo entendimento dessa tensão. Os ‘monólogos interiores’
são os de personagens em situação que, como jogadores de xadrez, calculam a sequência dos lances (as
réplicas que se seguem).” Joseph Danan, Le Théâtre de la Pensée, Rouen, Médianes, 1995, p. 126. Vide
Peter Szondi, Teoria do Drama Moderno (1880-1950), São Paulo, Cosac & Naify, 2001, pp. 152-156.
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tudo vir à superfície, sejam dezenas de anos ou todo o curso de uma vida… Não que
Sarrazac partilhe da tese dos detratores de O’Neill, segundo a qual a opção do escritor
pelo teatro em detrimento do romance decorre de um erro de cálculo. Na ótica do
dramaturgo e ensaísta francês, os desvios e inflexões romanescas redundam num
robustecimento da intersubjetividade dialogada e visam aquela mutação da forma
dramática anteriormente patrocinada por Lessing e Schiller: “uma regeneradora
hibridação do drama pelo romance”.130 É sobretudo no plano de uma penetração do
dramático pelo épico, de um “transbordamento mútuo destes modos”,131 que se
manifesta a “pulsão rapsódica”132 de Eugene O’Neill. Estamos em crer que Matthias
Langhoff – encenador franco-alemão que desde sempre se interessou por essa segunda
linguagem dos textos dramáticos (as legendas brechtianas, as didascálias de Heiner
Müller, etc.) – subscreveria integralmente a tese de Sarrazac. Quando, em 1992, encena
Desejo Sob os Ulmeiros, Langhoff trata a peça de O’Neill não como uma tragédia
grega, mas, diz-nos Odette Aslan, “como um romance que tivesse partes dialogadas”:
numa terminologia brechtiana, “ele literariza a peça de teatro com um metatexto”.133
Concluímos assim que, por detrás de um eventual fracasso do projeto trágico de
O’Neill, se ocultará, afinal, um triunfo: o de um romance dramático familiar, que,
acrescenta Jean-Pierre Sarrazac, “a arte de O’Neill, plena de humor e sensibilidade,
converte em romance da América.”134
130 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 50. Sarrazac advoga
que a romancização do drama (de que já falara Mikhail Bakhtine) constitui o traço definidor do teatro de
O’Neill e que esta perversão genológica concorre, juntamente com outros desvios dramatúrgicos, para a
“emergência de uma dramaturgia do tempo – do tempo da vida”, ou seja, para um novo paradigma
dramático que depõe a conceção aristotélico-hegeliana do drama que vigorou no Ocidente, entre o
Renascimento e o final do século XIX: a esse novo paradigma chama Sarrazac “drama-da-vida”, por
oposição ao “drama-na-vida”. J.-P. Sarrazac, Poétique du drame moderne, op. cit., pp. 115, 66. 131 Idem, p. 304. 132 “A pulsão rapsódica – que não significa nem abolição nem neutralização do dramático […] – procede,
na verdade, por um jogo múltiplo de aposições e oposições… Dos modos: dramático, lírico, épico e
mesmo argumentativo. Dos tons ou daquilo a que chamamos ‘géneros’: farsesco e trágico, grotesco e
patético, etc. […] Também da escrita e da oralidade… e a enumeração não é exaustiva.” Jean-Pierre
Sarrazac, O Futuro do Drama, trad. Alexandra Moreira da Silva, Porto, Campo das Letras, 2002, p. 227. 133 Odette Aslan, “La Saga des Cabot: Désir sous les ormes”, in Odette Aslan (org.), Langhoff: La
poétique de Matthias Langhoff, Paris, CNRS Éditions, 1994, p. 368. 134 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 62.
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3. Herança bíblica
Limiar
A Escritura cresce com os que a lêem.
GREGÓRIO MAGNO
Em muitas casas é ainda possível encontrar, expostos na parede, retratos de
longínquos antepassados. Para os parentes vivos que os não conheceram ou que deles
conservam apenas uma memória difusa, essas imagens constituem uma realidade
simultaneamente familiar e estranha. Habituados a conviver com tais retratos ao ponto
de estes se tornarem virtualmente invisíveis, são talvez capazes de recordar o primeiro
nome, o grau de parentesco ou até o posicionamento dos ascendentes na árvore
genealógica, mas desconhecem a sua história, personalidade e influência: o modo como
as suas feições, físicas e espirituais, se reimprimiram e transmudaram nos que se lhes
seguiram.
Numa sociedade laicizada, que ignora as narrativas bíblicas, ou até que as relega
como uma velharia para o balde do lixo da História de que falava Trotsky, a Bíblia é
como um desses retratos – algo familiar que permanece estranho.135 Admitimos, de uma
forma genérica, a sua importância matricial na história da cultura judaico-cristã que
herdámos, mas ignoramos o seu carácter e autoridade. Não nos referimos,
evidentemente, à sua autoridade teológica, decorrente do estatuto dogmático de Dei
Verbum, mas à força gravitacional que a Bíblia historicamente exerceu – e exerce ainda
no presente, a despeito da secularização do Ocidente e da aparente falência de uma
prática religiosa formal – ao informar a imaginação e o pensamento, da filosofia ao
135 Foi esse sentimento que levou um autor como Northrop Frye a formular um curso sobre a Bíblia como
guia para o estudo da literatura inglesa e, posteriormente, a elaborar um livro como The Great Code: “O
meu interesse na matéria começou nos primeiros tempos da minha carreira como professor, quando me vi
a ensinar Milton e a escrever sobre Blake, dois autores excecionalmente bíblicos, mesmo para os
parâmetros da literatura inglesa. Rapidamente percebi que um estudante de literatura inglesa que não
conheça a Bíblia não compreende muito do que se passa naquilo que lê: o estudante mais escrupuloso
estará permanentemente a deturpar as implicações, até o significado.” N. Frye, The Great Code: The
Bible and Literature, op. cit., pp. xi-xii.
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direito, da ‘arte sacra’ à psicanálise, da poesia à teoria política. Num ensaio recente,
Claudio Magris definiu-a como “o alfabeto do mundo”,136 peça-chave da legibilidade do
real e do humano, parceiro inalienável de uma ‘comunicação global’. Outros viram no
texto bíblico um atlas iconográfico, um estaleiro simbólico, um reservatório de
narrativas, um laboratório de linguagens.137 Após anos de estudo, investigadores e
críticos literários como Robert Alter e Frank Kermode, a quem tomámos de empréstimo
a nossa analogia (a de que as Sagradas Escrituras equivaleriam às feições de um
antepassado), concluíram que “a linguagem [da Bíblia], bem como as mensagens que
ela veicula, simboliza para nós o passado, estranho e todavia familiar, o qual sentimos
que nos é necessário compreender, se querermos compreender-nos a nós próprios”.138
Sugere José Tolentino Mendonça que, ao pensarmos nas várias definições de
clássico propostas por Italo Calvino, não recusaremos às Sagradas Escrituras o estatuto,
um pouco grandiloquente, de “superclássico”.139 Retenhamos, por ora, uma dessas
definições: “Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quanto
se impõem como inesquecíveis, como quando se ocultam nas pregas da memória,
mimetizando-se de inconsciente coletivo ou individual.”140 Tal caracterização permite-
nos aludir ao carácter multiforme da presença real do texto bíblico na atividade
simbólica e literária do Ocidente, sobretudo nas regiões em que a Reforma erigiu a
leitura das Escrituras e a sua tradução para as línguas vernáculas em imperativos
categóricos. Não dispomos sequer de uma forma cabal de enunciar essa força tentadora,
que vai da paráfrase direta à citação truncada, da paródia desabrida à mais delicada das
alusões. Qualquer levantamento documental, mesmo circunscrevendo-nos tão-somente
à literatura, revela-se um esforço vão, um exercício fastidioso, tendo de incluir tanto a
transposição amplificada dos topoi bíblicos promovida pelos mistérios medievais – de
que temos no vicentino Breve Sumário da História de Deus uma esplêndida versão
miniatural – como a referencialidade tangencial de Absalão, Absalão de Faulkner. Do
Paraíso Perdido de Milton a A hora em que não sabíamos uns dos outros de Peter
136 C. Magris, “El Alfabeto del Mundo”, op. cit., p. 23. 137 Vide José Tolentino Mendonça, A Leitura Infinita: Bíblia e Interpretação, Lisboa, Assírio & Alvim,
2008, p. 46. 138 Robert Alter/Frank Kermode (ed.), The Literary Guide to the Bible, Cambridge (Massachusetts),
Harvard University Press, 1990, p. 1. 139 J. T. Mendonça, A Leitura Infinita, op. cit., p. 47. 140 I. Calvino, Porquê Ler os Clássicos?, op. cit., p. 11.
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Handke, da Divina Comédia de Dante a À Espera de Godot de Beckett, de Anunciação
a Maria de Paul Claudel aos Prantos de Giovanni Testori, da Salomé de Wilde a Um
Auto para Jerusalém de Cesariny, das redondilhas camonianas ao “De Profundis” de
Nemésio – muitas e tão diversas são as aparições da simbólica bíblica na produção
literária e dramática ocidental. Num prefácio à Bíblia hebraica, George Steiner diz que,
no fundo, todos os livros e textos seriam como “centelhas, muitas vezes distantes,
espargidas pelo sopro incessante de um fogo central”.141
Recuperando a imagem inicial – a do retrato de um antepassado mais ou menos
remoto –, diremos que o propósito de todo este capítulo consiste na identificação de
traços da fisionomia bíblica no rosto de Desejo Sob os Ulmeiros, alguns dos quais não
denotam transparência, manifestando-se antes de forma problemática, ambígua ou
irrisória. Tal reconhecimento dos caracteres da escrita sagrada pretende exceder a mera
sinalização de ‘fontes’ e enunciar operações hermenêuticas e procedimentos estéticos
implicados na apropriação dramática que Eugene O’Neill faz da imagery bíblica. Trata-
se de compreender como o brilho do duplo gume das Escrituras ilumina figuras,
motivos ou cenas desta criação dramática. Talvez aqui encontremos alguma felicidade,
como desejariam Didi e Gogo, esses longínquos descendentes dos dois ladrões do
Evangelho segundo São Lucas.
VLADIMIR : Leste a Bíblia alguma vez?
ESTRAGON: A Bíblia… [Reflete.] Devo ter passado os olhos.
VLADIMIR : Lembras-te dos Evangelhos?
ESTRAGON: Lembro-me dos mapas da Terra Santa. Eram coloridos. Muito bonitos. O Mar Morto
era azul claro. Só o aspeto dele dava-me sede. É lá que havemos de ir, costumava eu dizer, é lá
que havemos de passar a lua-de-mel. Lá podemos nadar. Ser felizes.142
141 George Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, in Paixão Intacta: Ensaios, trad. Margarida
Periquito e Victor Antunes, Lisboa, Relógio D’Água, 2003, p. 76. 142 Samuel Beckett, À Espera de Godot, tradução inédita de Francisco Luís Parreira. Sujeitos a um longo
martírio e a uma penosa espera, Didi e Gogo mimetizam os dois ladrões de que fala o Evangelho (Lc.
23.39-43) e que a tradição batizou como Dimas e Gestas (a semelhança fonética indicia o parentesco). A
narrativa bíblica é motivo de conversa entre as personagens e um quadro silencioso insinua o paralelismo:
uma didascália indica que Didi e Gogo “permanecem imóveis, os braços adormecidos, as cabeças
descaídas, os joelhos ligeiramente fletidos”, como dois crucificados. Adianta Francisco Luís Parreira, nas
notas à tradução: “O motivo cruciforme atravessa a relação entre os pares. Estragon e Vladimir colocam-
se por vezes de um e de outro lado da árvore, como os ladrões (o que faz da árvore a árvore da salvação) e
as próprias indicações de Beckett para que sobretudo Estragon estendesse os braços vão nesse sentido.”
- 58 -
3.1. Pedras de tropeço
E esta pedra, que eu erigi à maneira de monumento,
será para mim casa de Deus…
GÉNESIS 28.22
Quando estreou, a 11 de Novembro de 1924, no Greenwich Village de Nova
Iorque, Desejo Sob os Ulmeiros foi considerado um escândalo. Teve, é certo,
admiráveis índices de público – o que em nada contradiz o vaticínio, pelo contrário – e
o autor afirmou, confiadamente, tratar-se da sua “melhor peça”.143 As reações críticas
revelam, contudo, uma violenta crispação: o American denunciou a peça de Eugene
O’Neill como um “cancro” e as suas personagens como seres “hediondos”; mais
benigno talvez, o Post recusou-a com base na “sordidez quase irrecuperável” do seu
argumento, enquanto a revista Time pontificava: “É o tipo de coisa a que o espectador se
irá opor pela razão de que simplesmente a existência não pode ser tão brutal.” Houve
também quem afirmasse que a peça deveria ser vista por todos aqueles que tivessem
sério interesse pelo teatro, para logo acrescentar um edificante aviso: “Ninguém a
deverá ver precipitadamente – sem ter conhecimento de que é uma história na qual
luxúria e homicídio, incesto entre filho e madrasta e infanticídio, coisas ignóbeis e
pecaminosas e uma aterradora liberdade de expressão são amplamente ilustrados.”144 A
reação escandalizada não se confinou às páginas da imprensa: os fiscais da moral e dos
bons costumes consideraram a peça “demasiado nociva para ser purificada por um lápis
azul”.145 Em conformidade, o procurador público de Nova Iorque despendeu os
melhores esforços para encerrar a produção e, em Londres, o zeloso Lord Chamberlain
Office conseguiu proibir a apresentação da peça, anátema que só em 1941 seria
suspenso.146
143 É uma convicção afirmada repetidamente nas cartas do dramaturgo, tanto antes como depois da
estreia. Em Julho de 1924, escreve: “Tenho a certeza de que, até ao momento, é a minha melhor peça e a
mais acabada”. Já após a estreia da primeira montagem, em Fevereiro de 1925, pergunta a Michael Gold:
“A propósito, já viste o Desejo Sob os Ulmeiros? Considero-o como o meu melhor”. In T. Bogard/J.
Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., pp. 188, 193. 144 Fragmentos críticos citados por L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p.158. 145 T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 194. 146 Vide S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy, op. cit., pp. 316-317.
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A crónica deste escândalo encontra-se suficientemente explicada e, atualmente,
talvez não justifique mais do que uma nota de rodapé, a título de anedota ou curiosidade
histórica. Se, não obstante, a mencionámos é porque o conceito de escândalo se revela
surpreendentemente adequado para descrever Desejo Sob os Ulmeiros, não pelos
motivos acima aduzidos (o poder de choque da peça de O’Neill é hoje residual, e as
suas virtudes não são, manifestamente, as do chamado in-yer-face theatre), mas, porque
derivada do grego neotestamentário skándalon, a palavra significa literalmente pedra de
tropeço. Biblicamente, escandalizar é fazer cair, constituir(-se) motivo de tropeço e
queda para alguém. Trata-se de um conceito moral e religioso: escândalo é não só a
tentação que Satanás ou o homem lança a um inimigo ou irmão, mas também uma
provação divina, desencadeada para, por exemplo, aquilatar da perseverança ou
fidelidade de um servo.147 O próprio Cristo, que nos Evangelhos é designado como
“pedra angular” [Mt. 21.42; Act. 4.11; 1 Pe. 2.4-7], também se afigura skándalon –
pedra de tropeço, sinal de contradição. Dirigindo-se à igreja da Ásia Menor, São Paulo
adverte que a Cruz é um obstáculo a toda a lógica e sabedoria humana: “Nós pregamos
o Messias crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios” [I Cor.
1.23]. Ora, as personagens de Desejo Sob os Ulmeiros são não apenas “pedras vivas” [I
Pe. 2.5], para empregarmos uma formulação cunhada por São Pedro (ele próprio assim
chamado para transportar no nome a sua vocação eclesial), mas também pedras de
arestas vivas, pedras não lavradas, como as que a Lei de Moisés prescreve para a
edificação dos altares sacrificiais,148 e sobretudo pedras de tropeço. O modo como as
personagens de O’Neill se arremessam e acometem umas contra as outras, como se
atingem e ferem mutuamente, como se fazem tropeçar e cair, constitui não apenas um
caso de bellum omnia contra omnes, mas também uma espécie de intifada – guerra de
pedras.
A identidade pétrea a que aludimos é especialmente evidente em Ephraim, nome
bíblico que nos remete para o progenitor de uma das doze tribos de Israel e cuja
etimologia significa fecundo ou fértil (o que lança uma irónica luz sobre a personagem
do velho pai). Não é apenas o seu rosto que é duro, “como se tivesse sido esculpido num
seixo” [I Parte, Cena 4], ou a sua compleição física que é de uma notável robustez (“rijo
147 Vide Xavier Léon-Dufour (dir.), Vocabulaire de Théologie Biblique, Paris, Les Éditions du Cerf, 2009,
p. 1199. 148 “Se fizeres para mim um altar de pedras, não o construirás com pedras lavradas, porque ao vibrares o
teu cinzel sobre elas, profaná-la-ias.” [Ex. 24.25]
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como uma nogueira”, [II Parte, Cena 1]): toda a sua história, índole e vocação possuem
a natureza, a consistência e a severidade da pedra. Daí a sua total identificação com um
Deus “duro e solitário” [III Parte, Cena 4], imune à patologia moral da
condescendência, e a sua irreversível projeção na herdade de cujas pedras fez, pela sua
inabalável persistência, brotar o trigo.149
CABOT: […] Deus é duro, não é fácil! Deus está nas pedras! Fundo a minha igreja numa pedra…
em pedras, e estarei nelas. Era o que ele queria dizer a Pedro! (Suspira profundamente. Pausa.)
Pedras. Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada
dia uma pedra, monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus, que eu tinha
feito sair do nada… segundo a vontade de Deus, como um servo das Suas mãos. E não era fácil.
Era duro e, para tanto, Ele me endureceu. [II Parte, Cena 2]
Se bem que o patriarca Cabot não veja na sua descendência a matéria granítica
de que ele próprio é feito (“Vivi com os rapazes. Eles odiavam-me por eu ser duro. E eu
odiava-os por serem moles.”, [II Parte, Cena 2]), a verdade é que os filhos são, também
eles, pedras no xadrez bíblico de Desejo Sob os Ulmeiros. Eugene O’Neill veicula-o
subliminarmente, através de uma muito criteriosa escolha de nomes bíblicos para os
restantes varões da tribo. Peter deriva do grego pétros, palavra que nos alvores da era
cristã não era utilizada como nome próprio e que significa “pedra” ou “rocha”,
reenviando-nos para o ato de nomeação que Jesus faz de um dos seus discípulos, um
episódio dos Evangelhos a que Ephraim alude no passo supracitado: “Também Eu
[Jesus] te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do
abismo nada poderão contra ela.” [Mt. 16.18] Simeon, o filho mais velho, é
precisamente o nome pelo qual, até ao momento desse simbólico batismo, era
conhecido este apóstolo que a tradição católica consagrou como o primeiro Bispo de
Roma. De certo modo, Simeon e Peter são gémeos siameses ou, adotando a
terminologia bíblica, uma só carne: dormem juntos numa cama de casal, como nos
informa uma didascália de O’Neill [I Parte, Cena 3], e juntos partem rumo a essa Nova
Jerusalém que é a Califórnia, entoando a uma só voz a cançoneta dos pesquisadores de
ouro. Esta hipotética ligação simbiótica entre os dois irmãos torna-se, aliás, mais
149 Este aspeto adquire um caráter especialmente intrigante quando Ephraim formula o desejo de, na
impossibilidade de levar consigo a herdade que construiu com o seu sangue e suor, lhe deitar fogo na hora
da morte, ficando a vê-la arder – “a esta casa, a cada grão de trigo, a cada árvore, até à última folhinha de
feno!” [II Parte, Cena 1].
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plausível a partir do momento em que consideramos o facto de os autores dos
Evangelhos se referirem frequentemente ao apóstolo como Simão Pedro, conjugando o
velho nome pré-cristão e o novo nome outorgado pelo Messias. Simbolicamente, não
deixa ser interessante notar que, no momento em que abandonam a cena para não mais
regressar, Simeon e Peter apanham pedras da estrada e lançam-nas contra as janelas da
sala que servira de câmara mortuária à mãe de Eben, uma divisão “cujas persianas estão
sempre fechadas”, partindo as vidraças e rasgando a cortina. Um episódio
aparentemente marginal, mas que possui o impacto de uma blasfémia proferida em voz
alta: trata-se de uma espécie de profanação do sanctum sanctorum, esse espaço sagrado
que se encontrava na zona mais interior e secreta do templo, uma espécie de sacrário,
lugar isolado por uma cortina de linho a que só o sumo-sacerdote, e com risco da
própria vida, poderia aceder uma vez ao ano.150
A atribuição do nome Eben ao terceiro filho da tribo de Ephraim – aquele que,
invocando uma outra expressão sagrada, poderíamos designar como a “pedra angular”
do drama de O’Neill – vem ratificar em termos definitivos a natureza escandalosa, ou
pelo menos pétrea, das criaturas que habitam e circulam por uma casa onde faz sempre
frio, mesmo em dias de intenso calor.151 É certo que se trata de um nome comum na
rural e puritana Nova Inglaterra de 1850, aspeto que um O’Neill obsessivo e
perfeccionista terá com certeza ponderado, mas sucede que, no hebraico de que deriva,
eben significa literalmente “pedra”. Trata-se, em alguns casos, de uma variação e,
noutros, da natural abreviatura de um nome de forte inspiração bíblica: Ebenezer (Even
Ha’Ezer), que significa “pedra de ajuda” ou “pedra de socorro” e remete para um
episódio emblemático da história sagrada, ocorrido ainda no tempo dos Juízes.
Enquanto os atemorizados israelitas pelejavam contra os filisteus, Samuel oferece um
holocausto a Yahveh e, pela vitória alcançada, o profeta lança uma pedra memorial no
campo de batalha, chamando àquele lugar Ebenezer: “Até aqui nos ajudou o Senhor.” [I
Sm. 7.12] O Eben de Desejo Sob os Ulmeiros é Ebenezer apenas ironicamente (ajuda o
pai a fecundar a madrasta, aplicando uma técnica primitiva de procriação assistida) ou
na medida em que presta auxílio na herdade – “Não corras com ele. Sê compreensivo.
Quem arranjas tu para te ajudar no campo?”, pergunta Abbie a Ephraim [II Parte, Cena
150 Vide X. Léon-Dufour (dir.), Vocabulaire de Théologie Biblique, op. cit., p. 1266-1271. 151 A dada altura, Cabot confessa a Abbie: “Há sempre uma solidão fria nesta casa… mesmo quando está
cá fora um sol de rachar. Não dás por isso?” [II Parte, Cena 1].
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1] –, mas a sua identidade é, antes, a de uma pedra de tropeço, um skándalon: uma
pedra de arestas vivas, perigosa, como a que, projetada pela ágil funda de David, fez
tombar o gigante filisteu.
Mesmo Abbie – cujo nome, como adiante veremos, nada tem que ver com os
étimos eben ou pétros e cuja ascendência bíblica não permite associações imediatas com
as virtudes das pedras – não está isenta de feições, tanto físicas como psíquicas e
morais, de pedra. Logo após nos descrever a vitalidade e o ar alegre da jovem mulher –
a “Rosa de Sião” com que Cabot pretende florir a velhice e a herdade –, uma das
romanescas didascálias de O’Neill exibe Abbie sob uma outra luz: “Há no queixo dela
força e obstinação, uma determinação dura nos olhos, e em toda a personalidade as
mesmas características desesperadas, irrequietas e indomáveis que tão aparentes são em
Eben.” [I Parte, Cena 3] Dir-se-á, pois, que o profuso imaginário bíblico ligado a pedras
e rochas – um imaginário que percorre as Escrituras como um todo, da pedra que serve
de travesseiro a Jacob e depois se constitui em memorial sagrado [Gn. 28] às
apocalípticas pedras preciosas com que a Nova Jerusalém será edificada [Ap. 21],
passando pelas tábuas de pedra em que Yahveh lavra o Decálogo [Ex. 24] ou pelas
imagens proféticas que celebram um Deus que é “rocha eterna” [Is. 26.4] – parece
fecundar o enredo da peça de Eugene O’Neill.152 Mal sobe o pano sobre a cena e já
152 Como assinalámos no final do capítulo 1, Louis Sheaffer avança, com admirável sobriedade, uma
outra explicação, de cariz biográfico, para a centralidade simbólica da pedra na composição de Desejo
Sob os Ulmeiros. Recuperamos aqui um outro passo da sua biografia (desta vez, no segundo volume),
onde fornece uma outra hipótese biográfica para a coexistência dos ulmeiros e das pedras na descrição
cenográfica da peça: “O modelo real para a casa dos Cabot era uma quinta localizada a curta distância de
Brook Farm [propriedade onde Eugene O’Neill se instalou com a família em 1922], visível da
autoestrada, que O’Neill terá certamente visto centenas de vezes. No quintal dianteiro da velha herdade
Smith, como era então chamada, havia dois imponentes ulmeiros que emolduravam e davam sombra à
casa. E este lugar, por seu turno, devia recordar a O’Neill a vivenda Monte Cristo em Nova Londres,
rodeada de árvores (incluindo ulmeiros) que, para desagrado da mãe, Ella, a tornavam sombria. Pela
descrição incluída em Desejo Sob os Ulmeiros, dir-se-ia que as árvores e os acessos de choro de Ella
quando sob a influência da morfina estavam estranhamente entrelaçados na imaginação do filho
dramaturgo […]. Um outro aspeto unia o passado ao presente do autor: a vivenda Monte Cristo tinha um
muro ‘seco’ no quintal das traseiras, assim como Brook Farm no quintal dianteiro, numa região onde este
tipo de estruturas era muito comum. Para O’Neill, estes muros de pedra solta, laboriosamente construídos
ao longo de várias gerações, tinham passado a simbolizar a existência rude e árdua da Nova Inglaterra de
outrora, como explicitado numa imagem chave da peça. ‘Pedras’, diz a certa altura o velho Ephraim.
‘Apanhei-as, fiz com elas muros. Podes contar os anos da minha vida nesses muros, cada dia uma pedra,
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Simeon e Peter fantasiam uma terra prometida – já não a Canaã que mana leite e mel,
mas a Califórnia das pepitas de ouro –, ao mesmo tempo que se confrontam com a
agreste realidade de uma petrificada existência.
SIMEON: (Excitado por sua vez.) Fortunas amontoadas no chão, ali, para que as apanhem! As
minas de Salomão, diz-se. (Por momentos continuam a fitar o céu; depois os olhos caem-lhes.)
PETER: (Com sardónica amargura.) Aqui… pedras amontoadas no chão… pedras sobre
pedras… ano sobre ano… ele e tu e eu e Eben… a fazer muros de pedra para ele nos muralhar à
volta! [I Parte, Cena 1]
Mesmo opondo-se aos irmãos, de quem em boa medida se constitui adversário,
Eben assenta mais uma pedra neste muro das lamentações, partilhando, na cena
seguinte, a amarga perceção de um devir-pedra que define toda a sua existência.
EBEN: (Explodindo de repente.) Porque nunca se meteram entre ele e a minha mãe, quando ele a
andava a matar aos poucos… em paga da bondade com que vos tratava? (Há uma longa pausa.
Eles fitam-no surpresos.)
SIMEON: Bom… Era preciso levar o gado a beber.
PETER: Ou havia lenha a cortar.
SIMEON: Ou havia que lavrar.
PETER: Ou que secar o feno.
SIMEON: Ou que estrumar.
PETER: Ou que sachar.
SIMEON: Ou que podar.
PETER: Ou que ordenhar.
EBEN: (Interrompendo asperamente.) Ou que fazer muros… pedra sobre pedra… muros e muros
até o coração ser uma pedra que se tira do caminho para uma pessoa se tornar uma pedra!
A cena soube extrair as devidas consequências desta bíblica recorrência. Daí que
um encenador como Matthias Langhoff tenha optado por figurar a herdade como um
pedregal, recusando em grande medida a cenografia de recorte naturalista prescrita pelo
dramaturgo norte-americano (nem a casa nem os ulmeiros são propriamente figurados).
“A enxada e a relha do arado são os utensílios com que [as personagens] esburacam
uma terra dura como rocha. Os corpos estão condenados a vergar-se para extrair pedras
monte abaixo e monte acima, a vedar os campos que eram meus.’” L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, p.
129. (Trad. Rui Pires Cabral.)
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do terreno.”153 Tendo em conta o carácter pedregoso da tão desejada e disputada
herdade, bem como o estribilho desse híbrido de profeta hebreu e velho Karamazov que
é Cabot – God is hard, not easy! –, deveríamos antes chamar-lhe hardade!154
3.2. Trinta moedas, e um prato de lentilhas
Terrível é este lugar.
GÉNESIS 28.17
Confrontado com o escândalo chamado Desejo Sob os Ulmeiros e as suas
indecorosas personagens, um crítico registou a seguinte observação, por ocasião da
estreia em Nova Iorque: “Estas pessoas – ao contrário daquelas que encontramos na
vida quotidiana! – são cruéis e gananciosas; discorrem livremente sobre assuntos
vergonhosos que só têm lugar na Bíblia.”155 A esta distância, um tão beatífico reparo –
segundo o qual a vida de todos os dias ignoraria criaturas duras como pedra – surge
como algo quase comovente. O que, todavia, há de notável neste cómico comentário
puritano é o facto de se revelar surpreendentemente certeiro. É claro que se trata de uma
pontaria involuntária, como a de um inábil atirador de fim-de-semana que, pretendendo
alvejar um boneco de feira, acertasse em cheio no sniper oculto por detrás de uma
barraca distante. O que sucede é que a peça que Eugene O’Neill escreve nos ‘loucos
anos vinte’ é não apenas devedora (e devoradora) da tragédia ática como também –
provavelmente, em grau superior, se bem que de forma difusa e equívoca – desse livro
(ou biblioteca portátil) que William Blake definiu como “o Grande Código da Arte”: a
Bíblia Sagrada.156 Está longe de ser um acaso que, como faz notar o biógrafo Stephen
A. Black, o dramaturgo americano se tenha embrenhado numa adaptação do Apocalipse
de São João imediatamente antes de se lançar na escrita de Desejo Sob os Ulmeiros.157
153 O. Aslan, “La Saga des Cabot: Désir sous les ormes”, op. cit., p. 364. 154 É uma recomendação do poeta Daniel Jonas, que viu no termo hard do original inglês “o adjetivo mais
determinante ao longo da peça”. Daniel Jonas, “2 textos sobre 2 ensaios e 1 ensaio sobre 1 texto”, in
Pedro Sobrado (ed.), Desejo Sob os Ulmeiros: Programa, Teatro Nacional São João, Porto, 2011, p. 6. 155 Apud L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 126. 156 Apud N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xvi. 157 “O’Neill concluiu uma primeira versão da adaptação do Apocalipse e, no dia seguinte, 15 [de Janeiro
de 1924], começou a escrever o Desejo.” S. A. Black, Eugene O’Neill: Beyond Mourning and Tragedy,
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As visitações bíblicas de O’Neill não constituem sequer uma novidade, se bem sejam
amiúde negligenciadas no exame da crítica:158 antes e depois de compor a tragédia dos
Cabot, o dramaturgo foi frequentador habitual dessa caverna de Ali Babá e dela trouxe
para a luz do dia algumas pedras… preciosas. Já em 1918, relata Travis Bogard, O’Neill
escrevera The Rope, uma peça “conscientemente construída sobre a parábola do filho
pródigo do Evangelho de São Lucas”,159 contendo ainda uma remissão para a história de
Abraão e Isaac narrada pelo Génesis. E, uns escassos três anos depois de Desejo,
O’Neill voltará ao lugar do crime para escrever Lazarus Laughed [Lázaro Riu, 1928]
nas palavras do autor, a play for an imaginative theatre160 (uma classificação talvez
provocatória, em virtude de os seus 420 papéis a tornarem virtualmente irrepresentável).
Nessa peça onde tenta recriar um teatro altamente ritualizado, no qual apenas o
protagonista se apresenta sem máscara, imagina-se a condição de Lázaro, um amigo a
quem Jesus de Nazaré, segundo o Evangelho de São João, ressuscitou três dias após
aquele sucumbir.
Uma dessas incursões em território sagrado ocorre em 1920, quatro anos antes
de Desejo Sob os Ulmeiros. Trata-se de Beyond the Horizon [Além do Horizonte, 1920],
peça em que O’Neill revisita um célebre tópico do Antigo Testamento: a história de
Jacob e Esaú, os filhos gémeos nascidos a Isaac, por seu turno, filho unigénito que
Yahveh concedeu a um envelhecido Abraão, a quem jurara uma descendência tão
copiosa “como as estrelas do céu e como a areia que há nas praias do mar” [Gn. 22.17].
À primeira leitura, o arquétipo bíblico em Beyond the Horizon não é reconhecível senão
op. cit., p. 308. Louis Sheaffer corrobora esta informação, mencionando também este trabalho que nunca
chegou à cena e que é hoje dado como perdido. Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 148. 158 Esta era, pelo menos, nos anos 1980, a perceção de Shelly Regenbaum, autora de um ensaio intitulado
“O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”. No ver desta investigadora norte-americana, a razão
principal para o défice de atenção crítica à “utilização das histórias do Antigo Testamento” por parte de
O’Neill prende-se com um procedimento dramatúrgico do escritor: “o facto de que esses arquétipos
[bíblicos] nunca serem aberta e cabalmente dramatizados nas peças”. Prossegue Regenbaum: “E, no
entanto, os conceitos e as figuras do Antigo Testamento manifestam-se na obra de O’Neill e são usados
principalmente para exprimir conflitos familiares”. Shelly Regenbaum, “O’Neill and the Hebraic Theme
of Sacrifice”, in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. V, n.º 3, Boston, Suffolk
University, 1981. In eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em
www: <URL: http://www.eoneill.com/library/newsletter/v_3/v-3a.htm˃ [consult. 08-07-2012]. 159 T. Bogard, Contour in Time, op. cit.. 160 Apud M. L. Ranald, “O’Neill”, op. cit., p. 724.
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a olhos adestrados. Uma investigadora norte-americana, Shelly Regenbaum, deteve-se
sobre os temas da história sagrada presentes na peça e concluiu: “[Beyond the Horizon]
não contém referências ou alusões diretas ao Antigo Testamento em geral, nem à
narrativa de Jacob e Esaú em particular. Além do mais, o enredo da peça, especialmente
o seu desfecho, diverge da narrativa bíblica. E, no entanto, a influência do Antigo
Testamento pode ser detetada em impressionantes correspondências temáticas.”161 Algo
análogo se pode dizer de Desejo Sob os Ulmeiros, se bem que aqui seja dado livre curso
ao imaginário bíblico: do pastiche do Cântico dos Cânticos, que O’Neill se diverte a pôr
na boca de Ephraim, à invocação do Decálogo (“Honra o teu pai”), passando pelas
menções a personagens veterotestamentárias, como Sansão ou Raquel, e pelas alusões
explícitas aos Evangelhos (“Vamos começar a viver como os lírios do campo”, graceja
Simeon),162 a influência da linguagem e da simbólica bíblicas em Desejo é de tal modo
evidente que não requer especial acuidade analítica. Mas, à semelhança do que acontece
em Beyond the Horizon, Desejo apropria-se da narrativa de Jacob e Esaú sub-
repticiamente, como se se tratasse de uma mercadoria de contrabando: uma narrativa
escandalosa, stumbling block para a apologética judaico-cristã e arma de arremesso à
disposição daqueles que vêm na Bíblia “um manual de maus costumes, um catálogo de
crueldade e do pior da natureza humana”.163 Os logros e o sagaz oportunismo de Jacob
têm absorvido as melhores energias de gerações de hermeneutas e apologetas: como
justificar que o herdeiro da promessa feita a Abraão e renovada a Isaac, o silencioso
161 Shelly Regenbaum, “Wrestling With God: Old Testament Themes in O’Neill’s Beyond the Horizon”,
in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. VIII, n.º 3, Boston, Suffolk University,
1984. In eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL:
http://www.eoneill.com/library/newsletter/viii_3/viii-3b.htm˃ [consult. 09-07-2012]. 162 Zombeteira alusão a um passo do Sermão da Montanha: “Atentai para os lírios do campo, como
crescem: nem trabalham, nem fiam. E digo-vos que nem ainda Salomão, em toda a sua glória, foi vestido
como um deles. Pois se Deus assim veste a erva do campo, que hoje é, e amanhã se lança no forno, não
vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé?” [Mt. 6.28b-30]. 163 In Sérgio Costa Andrade, “Cronologia: Um percurso polémico”, Público (19 Jun. 2010), p. 4.
Recuperamos palavras do Prémio Nobel português, José Saramago. A este propósito, valerá a pena citar
Claudio Magris, autor de Danúbio, que lembrava a centralidade das Sagradas Escrituras numa obra como
a do insuspeito Bertolt Brecht: “Brecht encontrava na Bíblia um alfabeto para ler o mundo, a grandeza de
um texto que diz, brutalmente e sem dourar a pílula, a verdade nua sobre a vida e a morte, o eros e a
violência, o maravilhoso e o sabor a cinza, a altitude a que os homens podem chegar, elevando-se acima
de si mesmos até conceber um absoluto que os transcende, sustém ou anula, e a infame vileza em que
esses mesmos homens podem cair.” C. Magris, “El Alfabeto del Mundo”, op. cit., p. 23.
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protagonista da akedah, seja um mentiroso e um falsário? Como explicar que Jacob
perpetre as suas patifarias sem um moralizante reparo da parte do escritor sagrado?
George Steiner reformula a questão nos seguintes termos: “Que ambiguidades e
mistérios, contidos nas intenções de Deus para com a humanidade, subjazem ao destino
escandaloso de Esaú e às frutíferas astúcias e velhacarias de Jacob, quase semelhantes
às de Ulisses?”164
Ora, em Eben e na sua história reconhecemos os traços desse patriarca que, certa
noite, teve por travesseiro uma pedra. De forma híbrida e impura, a narrativa sagrada
(mas moralmente pouco edificante) do contrato de promessa de compra e venda do
direito de primogenitura celebrado entre Esaú e Jacob [Gn. 25] reaparece na história de
Eben e os seus irmãos. A cena em que, já com o temível pai a assomar no horizonte,
Eben tira partido do desesperado desejo de fuga dos dois irmãos mais velhos,
convencendo-os a vender o seu direito à herança, é reminiscente do episódio bíblico em
que Jacob, inteligentemente, aproveita o desejo voraz de um Esaú esfaimado para lhe
comprar o direito de primogenitura, prerrogativa que lhe garantia dois terços da
herança.165 É certo que Eben faz uso de trinta moedas (o que o aproxima,
momentaneamente, de um Judas Iscariotes), enquanto Jacob recorre a uma eficaz receita
de lentilhas, mas isso em nada prejudica a simpatia tipológica à qual desejamos trazer
alguma luz, e apenas demonstra o procedimento ziguezagueante, imprevisível e
espantosamente ágil de O’Neill na gestão do seu arquivo simbólico.166 Mas note-se que,
se Eben não coloca diante dos irmãos o prato de lentilhas que desgraçadamente Esaú
devorou, é ele quem prepara as refeições para os irmãos, como fica desde logo
demonstrado na cena inicial. Na verdade, até certo ponto, a cozinha é o território natural
de Eben: Abbie deixá-lo-á fora de si com a seguinte provocação: “Esta herdade é
minha! É o meu lar! E esta é a minha cozinha!” [I Parte, Cena 4]. À semelhança de
164 G. Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, op. cit., p. 76. 165 Trata-se de uma mera suposição, mas é possível que O’Neill, ao optar por dois irmãos mais velhos em
vez de um, tivesse em mente não apenas uma certa polifonia dramatúrgica, mas também este aspeto
ligado à posse da herança: tal como Jacob precisa de comprar a Esaú o direito de primogenitura que
outorgava ao filho mais velho dois terços da herança, analogamente, Eben precisa de adquirir a Simeon e
Peter as partes da herdade que, à morte do pai, lhes caberiam em sorte, de forma a garantir os dois terços
restantes da propriedade. 166 Margaret Loftus Ranald assinala precisamente que, ao fazer uso de trinta moedas, O’Neill introduz um
aspeto da traição de Judas Iscariotes nesta reinvenção da narrativa de Esaú e Jacob. Vide M. L. Ranald,
“From Trial to Triumph: The Early Plays”, op. cit., p. 66.
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Esaú, Simeon e Peter são homens do campo, que tratam de animais; à semelhança de
Jacob, que o capítulo 25 do Génesis descreve como um homem caseiro, Eben
desconhece as lides do campo e move-se entre tachos e caçarolas: quando Simeon diz
“A ele [Eben], as vacas mal o conhecem”, Peter apressa-se a acrescentar: “E os cavalos,
e os porcos, e as galinhas. Mal o conhecem todos.” [I Parte, Cena 4].167
Uma outra afinidade, menos evidente, mas com implicações talvez mais
profundas, diz respeito à simbiótica ligação de Eben e de Jacob com as suas respetivas
mães. Uma das primeiras informações que nos são dadas sobre o patriarca hebreu diz
respeito à preferência que Rebeca fazia recair sobre ele, em evidente detrimento do seu
irmão Esaú. Talvez essa primazia afetiva esteja na origem do carácter eminentemente
doméstico de Jacob e do seu persuasivo talento culinário, uma hipótese a que as
próprias Sagradas Escrituras atribuem consistência, ao associar o espírito caseiro de
Jacob e o favoritismo maternal [Gn. 25.27-28]. No que diz respeito a Eben, dispomos de
uma confissão, em todos os aspetos esclarecedora:
EBEN: […] Cozinhar… fazer o trabalho dela… foi o que me levou a conhecê-la, sofrer o que ela
tinha sofrido… Ela havia de voltar para me ajudar… voltar para descascar as batatas… voltar
para fritar o presunto… voltar para cozer o pão… voltar, cheia de dores, para atiçar o lume, tirar
a cinza, com os olhos cheios de lágrimas e raiados de sangue, por causa do fumo e das cinzas,
como os dela estavam sempre. E ainda volta… está ali ao pé do fogão, à noite… não pode
habituar-se a dormir e a repousar em paz. Não é capaz de se sentir livre… nem mesmo na cova.
[I Parte, Cena 2]
O poderoso ascendente da figura da mãe é, muito provavelmente, o ponto
nuclear do parentesco estrutural e simbólico que une Eben e Jacob. Ambos se
encontram sob a forte influência de suffocating mothers,168 que determinam em grande
medida os seus gestos e decisões. Elie Wiesel, que lê a personagem de Jacob como um
167 A afinidade dos irmãos Cabot com Jacob e Esaú insinua-se logo na abertura da peça: se Jacob e Esaú
disputam entre si desde antes do nascimento – dizem as Sagradas Escrituras que os gémeos lutavam no
ventre de Rebeca e que Jacob dele saiu agarrado ao calcanhar de Esaú –, algo de similar sucede com Eben
e o par Simeon/Peter: o mal-estar e a rivalidade já estão plenamente instalados quando sobe o pano e
tornam-se cabalmente evidentes na segunda cena. 168 Usamos a expressão que Janet Adelman cunhou para falar das mães shakespearianas de Hamlet e King
Lear. Vide Janet Adelman, Suffocating Mothers: Fantasies of Maternal Origin in Shakespeare’s Plays,
Hamlet to The Tempest, New York/London, Routledged, 1992.
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ser “fraco, resignado e cobarde” até à decisiva luta com o Anjo que lhe alterará a
própria identidade – a “vitória” sobre a criatura celestial será classificada pelo escritor
judeu como “uma vitória sobre si mesmo” –, escreve: “Toda a gente o levou a fazer
coisas – e ele obedeceu… Incapaz de iniciativa, Jacob não podia tomar decisões pela
sua própria cabeça”.169 Reconheçamos que este everyone empregue por Wiesel é um
manifesto exagero retórico, um mero recurso de estilo: para além da mãe, apenas um
astucioso parente – o tio, Labão – submeteu Jacob aos seus ditames, mas, neste caso, de
forma provisória, pois o herdeiro/usurpador da promessa soube, em devido tempo,
inverter os termos da equação. Pelo contrário, a mãe aloja-se na vontade e na mente do
filho: quase poderíamos dizer, como no poema de Herberto Helder, que “seu corpo
move-se/ pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões/ e órgãos mergulhados”170 de Jacob.
Rebeca não apenas é cúmplice do embuste a que o filho mais novo irá sujeitar um pai
idoso e praticamente cego, como também urde o diabólico ardil para Isaac lhe conceder
a bênção patriarcal: Génesis 28 relata como a mãe industria meticulosamente Jacob a
fazer-se passar pelo irmão hirsuto, cobrindo-se de pêlos de cabritos e levando ao velho
pai um apurado guisado de caça, de forma a usurpar o que caberia ao primogénito. Por
instantes, o patriarca cego hesita – “És, na verdade, o meu filho Esaú?” –, mas a bênção
acaba por ser pronunciada e irreversivelmente outorgada a Jacob. Quando o choro e a
dor de um Esaú ultrajado se converterem em revolta e desejo de vingança, será de novo
a mãe a urdir um plano, ordenando a Jacob que se refugie em Haran, junto do seu irmão
Labão, até que ela o mande de novo chamar.
Uma análoga influência maternal manifesta-se em Eben, não se confinando
apenas à reivindicação filial de uma semelhança (“Saio à minha mãe, até à última gota
de sangue!”), contestada, aliás, pelos irmãos, que veem nele o pai “escrito e escarrado”
[I Parte, Cena 2]. Antes de falecer, a mãe espiara o patriarca Ephraim, vira-o esconder
os lucros (as bênçãos, poderemos talvez dizer) e instrui Eben como proceder, para que
deles o filho se possa apropriar no tempo devido. Mesmo depois de morta, é dela que
Eben espera toda a instrução: na cena célebre pelo seu lúgubre erotismo, o rapaz
interrompe o ardor sensual de Abbie para perguntar: “Mãe! Mãe! Que queres? Que me
estás a dizer?” [I Parte, Cena 3]; e, após o infanticídio cometido por Abbie, Eben
169 Elie Wiesel, “And Jacob Fought the Angel”, in Messengers of God: Biblical Portraits and Legends,
New York, Pocket Books, 1977, pp. 136, 138, 125. 170 Herberto Helder, “No sorriso louco das mães…”, in Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p.
43.
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manifesta incompreensão face à passividade da progenitora morta: “Mãe, onde estavas
tu, porque a não detiveste?” [III Parte, Cena 3]. Curiosamente, tal como Rebeca sabe
iludir Isaac, após assumir uma vocação maternal sobre Eben (“Hei-de tomar o lugar da
tua mãe! Hei-de ser tudo o que ela era para ti!”), Abbie adquire uma especial
competência em ludibriar o velho Cabot: “Sei sempre deitar-lhe poeira nos olhos.” [II
Parte, Cena 4]. O vínculo à narrativa sagrada é, de resto, consolidado pela figura de
Ephraim, no qual encontramos uma das particularidades de Isaac: tal como o patriarca
hebreu, o velho Cabot sente-se, apesar da sua propalada robustez, a “cair da tripeça” [III
Parte, Cena 3] e a sua visão está altamente enfraquecida. O’Neill descreve-o numa
didascália, assim que a personagem entra em cena: “Os seus olhos são pequenos, muito
juntos, extremamente pitosgas, piscando continuamente no esforço de focar os objetos e
com um olhar que projeta uma tensão interior.” [I Parte, Cena 4] A sua débil visão é,
aliás, motivo de um gracejo irónico da parte de Eben, na manhã que se segue às suas
“núpcias” com Abbie:
EBEN: (Jovial.) Bom dia, pai. A ver as estrelas ao meio-dia?
CABOT: Lindo, não está?
EBEN: (Olhando em volta com ares de dono.) Isto aqui? Uma quinta que é um gosto.
CABOT: Eu falo do céu.
EBEN: (Sorrindo.) Como sabe? Esses seus olhos não vêem até lá. (Isto titila-lhe o humor; bate
nas ancas e ri.) Ah… ah! Essa é boa!
Deste jocoso remoque o septuagenário pai não é capaz de alcançar o verdadeiro sentido,
porque aquilo que ele não consegue ver não são as estrelas do céu, mas os factos que
todos veem (“O que aconteceu nesta casa é claro como água!”, dirá uma das mulheres
presentes na festa da III Parte), a saber: que Eben enganou o pai com a sua nova mãe. A
esta luz, Ephraim parece adquirir a fisionomia de Isaac, uma identidade que talvez já se
encontrasse nele inscrita desde o início, como uma espécie de negativo: à semelhança
do filho de Abraão, Cabot invoca o Altíssimo e Todo-Poderoso. Não para conferir
bênção, mas maldição.
CABOT: (Erguendo os braços ao céu, numa fúria que já não domina.) Senhor Deus dos
Exércitos, esmaga estes filhos sem vergonha com a pior das Tuas maldições!
EBEN: (Intrometendo-se com violência.) O senhor e o seu Deus! Sempre a amaldiçoar gente…
sempre a arreliá-la!
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3.3. Máquina de emaranhar paisagens
Enquanto a cada dia me puder deter nem que seja sobre uma só linha
das Escrituras, não perderei o espanto de estar vivo.
ERRI DE LUCA, Caroço de Azeitona
Um dos nossos mais eruditos biblistas, José Tolentino Mendonça, anotou na sua
Leitura Infinita: “Sem a chave bíblica, o recheio pictórico da Capela Sistina,
diariamente frequentada por milhares de pessoas, seria mais intrigante e impenetrável
do que as misteriosas estátuas da Ilha da Páscoa.”171 Resultaria excessivo afirmar o
mesmo a propósito da peça que Eugene O’Neill escreveu em 1924: por um lado, Desejo
Sob os Ulmeiros não é o Paraíso Perdido (embora também o seja); por outro, a trágica
chave grega tem rodado com eficácia a fechadura, já para não falar nessa chave-mestra
– a biográfica e clínica – que parece abrir todas as portas (ou arrombá-las, tendo em
conta o seu carácter invasivo). Contudo, a verdade é que vários elementos da peça se
afiguram sem nexo ou razão, se não tivermos em conta esse imenso atlas ou armazém
simbólico que são as Sagradas Escrituras. E muitos outros adquirem uma insuspeitada
amplitude semântica, que desencadeia novas interrogações e desdobra os sentidos
conhecidos. Empenhando-se a fundo na tentativa de transcender o naturalismo naive do
teatro americano que tão manifestamente deplorava, O’Neill frequentou não apenas a
Grécia de Eurípides, mas também os topoi bíblicos – palácios e amplas praças, escuros
becos e baldios. Estes estão presentes nos temas e nas encruzilhadas do enredo como no
desenho das suas personagens – não esqueçamos que, diz Steiner, os escritos
veterotestamentários “se contam entre os textos-mestres de toda a psicologia
dramática”172 – e na cadência discursiva. Pensamos, em particular, no tom profético de
Ephraim Cabot e na sua corruptela do Cântico dos Cânticos:
CABOT: […] Tu és a minha Rosa de Sião! Atende, tu és bela; os teus olhos são como pombas; os
teus lábios são escarlates; os teus dois seios são como duas corças; o teu umbigo é como uma
redonda taça; o teu ventre é como um monte de trigo… [II Parte, Cena 1]
171 Itálico nosso. J. T. Mendonça, A Leitura Infinita, op. cit., p. 47. 172 G. Steiner, “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”, op. cit., p. 80.
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Erradamente, tomar-se-á essa multiforme presença, que vai da paráfrase
explícita à alusão paródica, por adornos ou elementos decorativos, muito apropriados a
uma ação dramática inscrita no pitoresco cenário protestante da Nova Inglaterra, como
se fossem adereços de que um encenador pudesse abrir mão por razões de ordem
estética (ou cosmética) cénica, quando na verdade dessa presença real advém uma
irrecusável e fulgurante energia dramática. A Bíblia ilumina, com o brilho tremeluzente
do seu duplo gume, a terra e o céu que as personagens de Desejo Sob os Ulmeiros tanto
contemplam, de mãos na anca ou punhos erguidos, apoiadas na enxada ou ao pé da
cancela, a ponto de não saberem já de que falam – ou o que desejam.
PETER: Há ouro no Oeste, sim.
SIMEON: (Ainda sob a influência do poente; vagamente.) No céu?
PETER: Bom… é uma maneira de dizer… Há a promessa. (Excitando-se.) Ouro no céu… no
Oeste… a Porta de Ouro… A Califórnia!… O Oeste Dourado!… Campos de ouro! [I Parte,
Cena 1]
CABOT: (Abbie conserva desviado o rosto. O dele gradualmente se amacia. Fita o céu.) Lindo,
não está?
ABBIE: (De mau humor.) Nada vejo de lindo.
CABOT: O céu. Parece um campo fértil, lá em cima.
ABBIE: (Sarcástica.) Estás a pensar em comprar também essa quinta? [II Parte, Cena 1]
EBEN: (Jovial.) Bom dia, pai. A ver as estrelas ao meio-dia?
CABOT: Lindo, não está?
EBEN: (Olhando em volta com ares de dono.) Isto aqui? Uma quinta que é um gosto.
CABOT: Eu falo do céu. [II Parte, Cena 4]
Se essa presença bíblica possui uma tal força gravitacional na estrutura e no enredo de
Desejo, como explicar o carácter pontual e assistemático das leituras que visam
explicitar onde e como e porquê essa presença se manifesta? A resposta não será fácil
nem unívoca, podendo incidir tanto sobre o carácter alegadamente ocioso de uma tal
cartografia como sobre a nietzschiana “síndrome Deus morreu” que, segundo Northrop
Frye, afetou muitas abordagens críticas contemporâneas.173 Mas podemos também
acrescentar uma hipótese endógena, intrínseca à própria obra de O’Neill e à sua escrita
173 N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xix.
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dramática. Foi o que, de certo modo, fez, nos anos 80, Shelly Regenbaum, autora de um
ensaio intitulado “O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”, quando avançou uma
razão para o facto de a apropriação das histórias do Antigo Testamento por parte de
O’Neill “escapar frequentemente à atenção dos críticos”. Este “lapso” seria, por assim
dizer, desencadeado por um procedimento dramatúrgico do escritor: “o facto de esses
arquétipos nunca serem aberta e cabalmente dramatizados nas peças”.174 Um passo que
citámos no capítulo precedente pode também agora servir-nos de exemplo: no momento
em que Eben compra aos irmãos o direito à herança – cena que, como vimos, é
reminiscente do episódio bíblico em que Jacob adquire o direito à primogenitura de
Esaú –, O’Neill introduz uma inflexão ou variação, renunciando às lentilhas e
invocando as trinta moedas com que Judas Iscariotes foi remunerado pelo traiçoeiro
ósculo. Um paradigma assoma, mas como que se retrai no preciso instante em que o
julgamos reconhecer; dá então lugar a um outro, embora aquele venha a infiltrar-se de
novo, mais adiante, através de um gesto ou palavra. Se nos é permitido invocar um
produto da cultura pop, recordemos que encontramos um procedimento análogo numa
canção célebre (demasiado célebre, talvez, e assaz incompreendida) desse génio
talmúdico chamado Leonard Cohen: em seis versos de “Hallelujah”, o songwriter
sobrepõe, com surpreendente agilidade, as narrativas bíblicas de David/Betsabé e de
Sansão/Dalila, tornando-as, em apenas dois versos, virtualmente indiscerníveis. A
viragem brusca despista-nos, mas revela-se também avassaladora: que quantidade de
informação é processada em meia-dúzia de versos, que nos dizem tudo sobre a fé, o
desejo, o poder, a traição, a deceção?175
Evocando um dispositivo do poeta Herberto Helder, poderíamos, a propósito de
Desejo Sob os Ulmeiros, falar de uma máquina de emaranhar paisagens. Ou de um
palimpsesto, de um texto no qual reaparecem caracteres de primitivas escritas. É por
isto que os pequenos ensaios e artigos que têm, no decurso dos anos, relevado a
influência imaginativa da Bíblia na tessitura de Desejo Sob os Ulmeiros disparam em
sentidos tão diversos. Alguns exemplos:
174 Prossegue Regenbaum: “E, no entanto, os conceitos e as figuras do Antigo Testamento manifestam-se
na obra de O’Neill e são usados principalmente para exprimir conflitos familiares”. S. Regenbaum,
“O’Neill and the Hebraic Theme of Sacrifice”. 175 “Your faith was strong but you needed proof/ You saw her bathing on the roof/ Her beauty in the
moonlight overthrew you/ She tied you to a kitchen chair/ She broke your throne, and she cut your hair/
And from your lips she drew the Hallelujah”. Canção do álbum Various Positions (Columbia, 1984).
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i) ainda na década de 1960, Peter L. Hays estabelece uma analogia entre
Ephraim Cabot e Oseias, entre a história do casamento com Abbie e a história do
casamento do profeta hebreu com uma meretriz;176
ii) por seu turno, no final da década de 1970, Patrick Bowles identifica
“múltiplos paralelos” entre a narrativa bíblica da jovem Abisague e do velho Rei
David e a história de Abbie e do septuagenário Ephraim;177
iii) em meados da década de 1980, Arnold Gordenstein avança a tese de que em
Desejo os “mitos combinados não são o Hipólito grego e o Efraim bíblico, mas
as histórias do Édipo e do Éden”;178
iv) num ensaio publicado em 2009, Brenda Murphy assinala o reconhecimento
de uma imagem miltoniana de Adão e Eva na cena final da peça (“os dois [Eben
176 Este paralelismo é suportado não só pela sistemática associação de Ephraim à figura bíblica do profeta
– “E agora cá me vou para escutar a mensagem que Deus me manda na Primavera, como os profetas
faziam” [I Parte, Cena 2] –, mas também, e muito especialmente, pelo facto de Abbie ser recorrentemente
tratada por Eben como uma meretriz. Num desses momentos, o jovem amante grita-lhe: “Odeio-te! És
uma pega… uma pega reles!” [III Parte, Cena 2]. Vide Peter L. Hays, “Biblical Perversions in Desire
Under the Elms”, in Modern Drama, n.º 11 (February 1969), pp. 423-428. 177 Patrick Bowles explora a possibilidade de Abbie ser uma abreviatura não de Abigail (nome que, sob a
influência puritana, se tornou bastante comum na Nova Inglaterra e que em Desejo adquiriria um sentido
irónico, uma vez que este nome tem por significado “a alegria do pai”), mas de Abisague, figura marginal
do Antigo Testamento. Para além de alguns eruditos considerarem esta Abisague a protagonista do
Cântico dos Cânticos (canto nupcial amiúde citado por Ephraim), ambas as figuras masculinas têm em
comum a idade avançada, padecerem de um frio que aparentemente nada consegue erradicar e não
chegarem a conhecer (na aceção bíblica do termo) estas mulheres, lançando-se no seu concurso os filhos
(Adonias na história bíblica, Eben na peça de O’Neill). Vide Patrick Bowles, “Another Biblical Parallel in
Desire Under the Elms”, in Frederick Wilkins (ed.), The Eugene O’Neill Newsletter, vol. II, n.º 3. Boston,
Suffolk University, 1979, in eONeill.com: An Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível
em www: <URL: http://www.eoneill.com/library/newsletter/ii_3/ii-3e.htm> [consult. 25-07-2012]. 178 Diz o antigo professor norte-americano da Universidade Federal de Santa Catarina que “Abbie e Eben
lembram, pela sua aura e nos seus gestos, Adão e Eva e o pecado original”. Arnold Gordenstein, “A Few
Thousand Battered Books: Eugene O’Neill’s Use of Myth in Desire Under the Elms and Mourning
Becomes Electra”, in Ilha do Desterro: A Journal of English Language, Literatures in English and
Cultural Studies, n.º 15/16, Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1986, in
Periódicos UFSC [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/
desterro/issue/view/1115> [consult. 21-07-2012].
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e Abbie] saem de mãos dadas em direção ao nascer do sol, uma imagem que foi
identificada com a de Adão e Eva a abandonar o jardim no Paraíso Perdido”); 179
v) mais recentemente, em 2010, Jerry V. Stinnett parte da centralidade das
referências bíblicas na peça de O’Neill para argumentar que “a ação trágica
encontra a sua principal fonte nos mitos judaicos da criação”, descortinando na
mãe morta de Eben a figura de Lilith.180
Embora algumas destas hipóteses nos pareçam escassamente argumentadas,
nenhuma delas se afigura, em si mesma, despropositada. Ou melhor, não precisaremos
propriamente de optar por esta em detrimento daquela, ou de preferir uma e recusar as
restantes: sucede que a presença dos arquétipos bíblicos (e parabíblicos) no Desejo Sob
os Ulmeiros é da ordem do rizoma, e não da raiz. Evocamos momentaneamente os
conceitos botânicos tematizados pela dupla Deleuze/Guattari para afirmar que não há na
peça de O’Neill uma totalitária raiz bíblica que se ramifique cartesianamente na
estrutura dramática, mas uma fasciculação rizomática – múltipla, acentrada e dinâmica:
“[O rizoma] é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, invertível,
suscetível de receber modificações constantemente.” Já no final do seu ensaio, Deleuze
e Guattari vaticinam: “Um rizoma não começa e não acaba, está sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo.”181 Mais modestamente talvez, descreveríamos a
dissimulada montagem bíblica de Desejo Sob os Ulmeiros como bricolage, um trabalho
feito a partir de sobras, restos, pedaços, um pouco como fez T.S. Eliot num ensaio que
dedicou a Blake, ao falar de um engenhoso método à Robinson Crusoe, através do qual
o poeta das Canções de Inocência e Experiência forjou um sistema de pensamento a
partir de retalhos das suas leituras.182 Com mais propriedade talvez invocar-se-ia a
noção de “pulsão rapsódica”183 proposta por Jean-Pierre Sarrazac, princípio ou força
que teria sido responsável pelo desenvolvimento, ao longo de todo o século XX, de uma
forma dramática aberta e heterogénea, em reinvenção permanente, que não cessa de
179 B. Murphy, “Tragedy in the Modern American Theatre”, op. cit., p. 496. 180 Jerry V. Stinnett, “A sinister maternity: Maw, Lilith, and Tragic Unity in Desire Under the Elms”, in
Zander Brietzke (ed.), The Eugene O’Neill Review, vol. 32. Boston, Suffolk University, 2010, p. 10. 181 Gilles Deleuze/Felix Guattari, Rizoma, trad. Rafael Godinho, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 29,
61. 182 Vide N. Frye, The Great Code: The Bible and Literature, op. cit., p. xxi. 183 Vide J.-P. Sarrazac, Poétique du drame moderne, op. cit., p. 293 e ss.
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concertar materiais, modos e géneros. Reencontramos algo dessa poética da impureza e
da mestiçagem – que a figura do autor-rapsodo encarna – na combinação dinâmica de
elementos trágicos, melodramáticos e romanescos, na hábil conjugação de mitos
clássicos e de narrativas sagradas, que Eugene O’Neill promove em Desejo Sob os
Ulmeiros.
Em todo o caso, seja qual for o conceito ou a metáfora através dos quais
ambicionemos perspetivar esta presença real – rizoma, palimpsesto, bricolage,
rapsódia, patchwork –, o certo é que a linguagem e a simbólica bíblicas fecundaram o
imaginário de Desejo Sob os Ulmeiros. Assinalá-lo e compreendê-lo não corresponde
tanto a devolver a peça de Eugene O’Neill ao pano de fundo de que se destaca como a
ampliar o horizonte da sua própria legibilidade. Educado em escolas católicas até aos
treze anos de vida, o dramaturgo de ascendência irlandesa era já há muito um apóstata
quando escreveu a folk tragedy dos Cabot. Numa carta dirigida a uma freira
dominicana, três meses após a estreia pública da sua peça-escândalo, expõe: “Devo
confessar-lhe que, nos últimos vinte anos, tenho vivido sem Fé.”184 Isso, todavia, não o
impediu de descobrir a irrecusável inatualidade (no sentido que Nietzsche atribuía ao
termo) da Bíblia, esse livro perigoso. As seguintes palavras de Elias Canetti poderiam
ser suas: “É estranho! Diante do que hoje acontece, só a Bíblia me parece ter uma força
adequada. E é precisamente a sua terribilidade que nos consola.”185
184 Carta de 6 de Fevereiro de 1925, endereçada a Sister Mary Leo. In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected
Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 192. 185 Apud J. T. Mendonça, Leitura Infinita, op. cit., p. 54.
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4. Notícia de duas encenações em Portugal
4.1. Muito cuidado com o teatro
Em 2012, Três Dedos Abaixo do Joelho dava a escutar passos de Desejo Sob os
Ulmeiros, de Eugene O’Neill. O espetáculo do dramaturgo e encenador Tiago
Rodrigues – um exemplo português, talvez paradigmático, do que, na esteira de Hans-
Thies Lehmann, se vem designando por “teatro pós-dramático”186 – não punha em cena
o drama puritano dos Cabot, mas partia dos castos (ou castradores) relatórios da censura
do Estado Novo arquivados na Torre do Tombo, operando sobre aquilo a que um
crítico, Augusto M. Seabra, chamou “dramaturgias do interdito”.187 Para além da
sucessiva recusa dos serviços de censura em autorizar, na primeira metade da década de
1960, a apresentação de um texto como Andorra de Max Frisch, ou das rasuras
efetuadas sobre Menina Júlia de Strindberg, ficámos ainda a saber da proibição de se
representar Desejo Sob os Ulmeiros em palco,188 enquanto a sua adaptação
cinematográfica, realizada em 1958 por Delbert Mann, com Sophia Loren (Abbie) e
Anthony Perkins (Eben), mereceu validação, depois de submetida a cortes cirúrgicos.189
186 Por “teatro pós-dramático” entendemos um teatro que ignora ou até contesta a anterioridade ontológica
do texto face à cena ou que recusa para si próprio a função de mediação de um texto. Numa obra que
adquiriu já contornos de clássico, Lehmann fala de uma espécie de revolução coperniciana no mundo
teatral, correspondendo o primado do texto ao geocentrismo ptolemaico: “Ocorre que as relações
constitutivas do teatro se invertem […]: não mais está em primeiro plano a questão de saber se e como o
teatro ‘corresponde’ adequadamente ao texto que tudo irradia; antes, cabe aos textos responder se e como
podem ser um material apropriado para a realização de um projeto teatral”. Hans-Thies Lehmann, O
Teatro Pós-Dramático, trad. Pedro Süssekind, São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 91. 187 Augusto M. Seabra, “Reflexões teatrais (bis)”, Público: Ípsilon (8 Jun. 2012), p. 37. 188 Sobre as intervenções do lápis azul, vide Graça dos Santos, O Espectáculo Desvirtuado: O Teatro
Português Sob o Reinado de Salazar (1933-1968), Lisboa, Caminho, 2004. Aí se mencionam os
problemas que o próprio Teatro Nacional, sob a égide de Amélia Rey Colaço, enfrentou junto da censura
salazarista, bem como a insistência da histórica diretora do D. Maria II em levar à cena autores como
Bertolt Brecht e Eugene O’Neill. 189 Ao contrário do que poderíamos supor, esta dualidade de critérios em relação ao teatro e ao cinema
não decorre de uma pura arbitrariedade da censura: “O teatro tinha algo de incontrolável no seu aspeto
direto e vivo, o que não tem o cinema.” César Príncipe, Os Segredos da Censura, Lisboa, Caminho, 1979.
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“MUITO CUIDADO COM O TEATRO”, admoestavam, em justificada caixa alta, os
serviços do Secretariado Nacional de Informação.190
Tendo vasculhado nove mil documentos no Arquivo Nacional, Tiago Rodrigues
distinguiu uma feição predominantemente moral na censura que o salazarismo exerceu
sobre o teatro (feição, aliás, contida na advertência à indumentária feminina que o
artista adotou como título do espetáculo), nela detetando a razão pela qual um texto
como Desejo não poderia senão desassossegar os zeladores da moral e dos costumes:
É muito mais recorrente a questão moral [do que a política], tudo o que tenha a ver com
sensualidade, sexualidade, ou com a mulher com força ou vontade própria. Todo o realismo do
início do século XX, sobretudo o americano e inglês, não podia ter lugar. Depois de Strindberg,
passou a ser problemático. Antes, a posição das mulheres na dramaturgia era diferente, com
Tchékhov ou Ibsen. Mas depois, as mulheres do Tennessee Williams, do Eugene O’Neill, são
todas fortes, interessantíssimas. E isso era complicado. A posição da mulher era também a
posição da atriz, do que é que a mulher pode fazer em palco. Esse lado era muito feroz.191
Expurgado desta ferocidade, ou com ela anestesiada pela virtuosa injeção de um
lápis azul, Eugene O’Neill passou, malgré tout, pelo crivo fino dos censores: a primeira
encenação de um texto do dramaturgo norte-americano em Portugal ocorre em 1943,
quando a Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro apresenta a trilogia Electra e os
Fantasmas, espetáculo que, a 21 de Fevereiro, assinalava a abertura oficial do Theatro
de D. Maria II após as obras de restauro ordenadas por Duarte Pacheco.192 Outro
momento-chave da receção de O’Neill no Portugal do ‘Antigo Regime’ ocorre nos
primeiros dias de 1958, quando esse dínamo do teatro português chamado António
Pedro encena Jornada para Noite, menos de dois anos depois de o “testamento
190 Diretiva grafada em maiúsculas num telegrama telefonado dos serviços de censura a um jornal diário.
Apud idem. 191 In Ana Dias Cordeiro, “Na cabeça dos censores”, Público: Ípsilon (25 Mai. 2012), p. 13. 192 Após dois meses de representação em Lisboa, entre Fevereiro e Abril, o espetáculo migra para o
Teatro Rivoli, no Porto, onde é apresentado entre 9 e 17 de Outubro. A versão integral do espetáculo tinha
a duração aproximada de seis horas, mas apenas terá sido representada nos dias 9 e 10 de Outubro, no
Teatro Rivoli, e a 20 e 28 de Novembro de 1943, no Teatro D. Maria II. Nestes dados da história do teatro
português (e noutros que adiante invocaremos), somos altamente devedores dos ativos desse banco bom
que é a CETbase – Teatro em Portugal, direção científica Maria Helena Serôdio [em linha]. Disponível
em www: <URL: http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/˃.
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espiritual em forma dramática”193 de O’Neill (como, na época, o classificou Jorge de
Sena, seu tradutor) ter sido ‘desselado’ no lendário Dramaten de Estocolmo. Com Dalila
Rocha e João Guedes no elenco, o espetáculo do Teatro Experimental do Porto, fundado
poucos anos antes, estreou-se no Cine-Teatro Sá da Bandeira, sendo mais tarde exibido
na capital, no Teatro ABC.194 Dos escassíssimos exemplos disponíveis, citemos ainda a
encenação de O Imperador Jones [The Emperor Jones, 1920], onde encontramos a
combinatória de naturalismo e expressionismo que define várias peças de O’Neill:195 a
peça foi montada em 1970 pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra
(TEUC), numa encenação do argentino Julio Castronuovo. De Desejo Sob os Ulmeiros,
todavia, não há nova no Estado Novo, a não ser a da sua vetusta omissão.196
A fortuna cénica de Eugene O’Neill em Portugal mudou após a Revolução de
1974, se bem que, por razões óbvias, não tenha conhecido a irresistível ascensão que
um dramaturgo como Bertolt Brecht teve nos nossos palcos: a avaliar pelos dados
disponíveis, foi, aliás, necessário aguardar pelas décadas de 1980 e 90 para que a obra
do “grande clássico do teatro americano”197 granjeasse uma atenção mais regular por
parte de criadores e programadores teatrais. Tal interesse crescente parece, de resto, não
se confinar a O’Neill, mas abranger os nomes cimeiros do teatro norte-americano do
193 J. de Sena, “O Testamento de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 384. 194 Sobre a produção deste espetáculo vide Carlos Porto, O TEP e o Teatro em Portugal: Histórias e
Imagens, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1997, pp. 84-86. 195 Jorge de Sena assinala precisamente que O’Neill participa “igualmente do realismo superior de um
Ibsen, pelo qual se reformara o teatro nos fins do século passado [séc. XIX], e da vaga de expressionismo
que varreu os palcos no primeiro quartel deste século [séc. XX].” J. de Sena, “O Testamento de Eugene
O’Neill”, op. cit., p. 384. 196 Apesar da CETbase não registar qualquer apresentação de Desejo Sob os Ulmeiros em Portugal antes
de 1990, e de se encontrarem disponíveis no Arquivo Nacional/Torre do Tombo documentos que atestam
a reprovação da peça por parte dos serviços de censura do Secretariado Nacional de Informação, há
contudo, no conjunto dos processos de censura a peças de teatro, o registo de um processo de 1962 que
concede à Empresa Vasco Morgado autorização para levar à cena a peça de O’Neill, ainda que submetida
a cortes. Parece-nos, todavia, altamente improvável que Desejo Sob os Ulmeiros tenha chegado a ser
produzida por essa empresa teatral, cujo histórico revela menos uma inclinação para o chamado ‘teatro de
repertório’ do que para o teatro popular, a opereta ou a ‘revista’. Tendo em conta a inexistência de
registos, será de supor que a dimensão dos cortes infligidos ao texto de O’Neill teria convidado os
proponentes à desistência? 197 Marie-Claire Pasquier, “Eugene O’Neill”, in Michel Corvin (dir.), Dictionnaire encyclopédique du
théâtre à travers le monde, Paris, Bordas, 2008, p. 1009.
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século XX (Tennessee Williams, Sam Shepard, etc.). Nas reflexões que dedicaram à
encenação de Desejo Sob os Ulmeiros realizada em 1990 por João Lourenço, dois
críticos de teatro, Carlos Porto e Eugénia Vasques, reconheciam precisamente a gradual
invasão dos palcos nacionais pelo teatro da América do Norte. Se, nas páginas do
Diário de Lisboa, Carlos Porto atribuía esse fenómeno à americanização do planeta (“se
os Estados Unidos dominam o mundo em termos militares e económicos, não poderiam
deixar de o dominar em termos culturais”),198 no Expresso, Eugénia Vasques tomava-o,
arejadamente, como o cumprimento de “mais uma etapa no derrubamento de fronteiras
e preconceitos culturais”, para o qual concorriam tanto o “esforço de atualização
desenvolvido por criadores de um teatro mais ou menos ‘alternativo’” como “o apelo a
produções ou nomes que, mais ou menos recentemente, tenham conhecido a divulgação
pelas vias do cinema e da televisão”.199
Não obstante, no que respeita a Eugene O’Neill, tudo indica que estes anos
transcorridos do século XXI tenham sido mais favoráveis do que todo o último quartel
do século XX.200 Alheando-nos da simbólica fronteira do século, e tomando os últimos
trinta anos como um continuum, rapidamente concluímos que alguns dos mais
destacados fazedores teatrais do chamado ‘Portugal democrático’ se ocuparam da
encenação das peças de O’Neill: Joaquim Benite, João Mota, Rogério de Carvalho e
João Lourenço, bem como, num outro núcleo geracional, Carlos J. Pessoa e Nuno
Cardoso.201 Haverá a relevar, em especial, a ênfase que a Companhia de Teatro de
Almada, sob a liderança de Joaquim Benite, atribuiu à dramaturgia o’neilliana,
produzindo cinco espetáculos – dois na década de oitenta e três em 2009 e 2010, altura
em que promoveu um ciclo dedicado ao escritor. É, aliás, sintomático que, no repertório
da companhia, onde se contam quase cem autores trabalhados, apenas um supere o
198 Carlos Porto, “Desejo e amor”, in Diário de Lisboa (9 Out. 1990). 199 Eugénia Vasques, “Pelo teatro fora”, in Expresso (5 Out. 1990). 200 Segundo os dados da CETbase, entre 1974 e 2000 foram produzidos oito espetáculos baseados em
textos de Eugene O’Neill (incluindo uma montagem de teatro universitário e uma produção da já mítica
companhia nova-iorquina The Wooster Group, protagonizada pelo ator Willem Dafoe e apresentada no
âmbito do Festival Mergulho no Futuro/Expo’98); entre 2001 e 2014, nove espetáculos (dois dos quais no
contexto do teatro amador). 201 A título de curiosidade, assinale-se que o cineasta João Canijo experimentou também a encenação de
um texto de O’Neill: Confissão ao Luar (1991) [A Moon for the Misbegotten, 1943].
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dramaturgo de Longa Jornada para a Noite, e que esse seja ‘tão-somente’, na canónica
formulação de Bloom, o inventor do humano:202 William Shakespeare.
Desejo Sob os Ulmeiros é classificada pelos historiadores do moderno teatro
americano como “uma das mais extraordinárias peças de O’Neill, tanto no seu potencial
de inquietação como no seu continuado sucesso de público”.203 Ronald Wainscott indica
que, desde os anos 1960, a peça tem sido montada e remontada por todo o país na maior
parte dos teatros regionais. Estranhamente, o histórico de encenações da ‘tragédia’ dos
Cabot em Portugal não confirma tão elevado rating. Dispomos apenas do registo de
duas montagens profissionais de Desejo, empreendidas com duas décadas de distância:
a primeira, já mencionada, em 1990, por João Lourenço e o Novo Grupo/Teatro Aberto;
a segunda, em 2011, por Nuno Cardoso, numa coprodução da companhia Ao Cabo
Teatro e da Academia Contemporânea do Espetáculo/Teatro do Bolhão. Se os dias do
mundo entram nesta contabilidade, talvez não seja impertinente lembrar que os dois
espetáculos acontecem em Portugal, mas é como se tivessem lugar em países diferentes:
em Setembro de 1990, encontrávamo-nos em plena euforia nacional, inspirada pelo
progresso económico e por uma ditosa ‘integração europeia’; em Junho de 2011, a
nação mergulhava num estado disfórico, assombrada pelo espectro da bancarrota e com
o termo ‘austeridade’ convertido em sinistra palavra-passe da nossa existência coletiva.
Talvez o país de 1990 se assemelhe mais à doce planície no Oeste que Ephraim chegou
a conhecer (“Era só lavrar e semear e uma pessoa sentar-se a fumar de cachimbo e a ver
o grão crescer”), enquanto o país de 2011 faça lembrar o destino da árida herdade dos
Cabot – um pasto para o fogo.
202 Vide Harold Bloom, Shakespeare: A Invenção do Humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. 203 Ronald Wainscott, “Notable American stage productions”, in The Cambridge Companion To Eugene
O’Neill, op. cit., p. 104. Ronald H. Wainscott é o autor de uma importante obra sobre experiências
seminais de encenação das peças de O’Neill – de Beyond the Horizon [1920] a Days Without End [1934]
– e sobre o extraordinário impacto que tiveram no teatro americano. Transcrevemos um passo em que
alude aos desafios e exigências que os textos dramáticos do “mais destacado dramaturgo do país”
acarretavam: “As peças de Eugene O’Neill produzidas entre 1920 e 1934 colocaram uma multiplicidade
de sérios problemas aos seus encenadores. Tratava-se de peças que não apenas propunham uma
caracterização complicada, um simbolismo denso, uma linguagem agreste, situações estranhas, mas que
também representavam novas e ousadas (e ocasionalmente pobres) experiências em termos de forma e de
teatralidade, como também […] jornadas pessoais e extravagantes de angústia psicológica.” Ronald H.
Wainscott, Staging O’Neill: The Experimental Years 1920-1934, Yale University, 1988, p. 1.
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4.2. Ecos do primeiro Desejo – a encenação de João Lourenço
“A Praça de Espanha transformou-se, há uma semana, no lugar donde e onde se
vê a América: uma América poética, inquietante, extremada nos seus conflitos mais
íntimos”,204 noticiava, nos primeiros dias de Outubro de 1990, um diário recém-
fundado: o jornal Público. Anabela Mendes, que na edição do dia assinava uma crítica
de teatro – e que assombrosa distância, maior do que a cronológica, parece separar a
dimensão consagrada na época aos textos críticos de teatro daquela, de uma exiguidade
quase telegráfica, que atualmente constrange o espaço crítico de teatro na imprensa
portuguesa205 –, chamava a atenção para um pequeno ciclo de teatro norte-americano
com que Novo Grupo/Teatro Aberto abria a sua temporada de 1990/91: Desejo Sob os
Ulmeiros, de Eugene O’Neill, e Loucos por Amor [Fool for love, 1983], de Sam
Shepard, ambos com encenação de João Lourenço.
Estreados no mesmo dia – a 29 de Setembro de 1990, um sábado –, os dois
espetáculos revezaram-se diariamente durante longas semanas no palco do antigo Teatro
Aberto (Loucos por Amor, às quartas, sextas-feiras e sábados; Desejo Sob os Ulmeiros,
às quintas-feiras, sábados e domingos). Anabela Mendes descrevia esta pequena mostra
como um par de janelas – uma virada a Oeste, que dava a ver uma América on the road,
de quartos de motel de beira de estrada; outra a Leste, com vista para a herdade dos
Cabot, na Nova Inglaterra. Da receção crítica inferir-se-á justamente que o gesto de
programação do Novo Grupo/Teatro Aberto foi entendido como uma empresa artística
única: não só Anabela Mendes, mas também críticos como Eugénia Vasques, Jorge
Listopad e Maria Helena Serôdio assinaram críticas conjuntas aos dois espetáculos,
identificando razões várias para a sua geminação. Dispomos, aliás, de um curioso
emblema desse cotejo entre o proclamado ‘pai’ da modernidade dramatúrgica dos
Estados Unidos e um dos seus (desavindos) filhos nas páginas do programa de sala que
o Novo Grupo editou, onde encontramos uma extensa conversa entre O’Neill e Shepard,
204 Anabela Mendes, “Duas janelas para a América”, Público (4 Out. 1990), p. 36. 205 O espaço crítico que as duas montagens nacionais mereceram na imprensa, em 1990 e 2011, poderia
eventualmente constituir uma pequeníssima amostra da violenta retração que a crítica teatral conheceu em
duas décadas, em Portugal: no caso da produção do Novo Grupo/Teatro Aberto, acedemos a um conjunto
de sete críticas; no caso da montagem do Ao Cabo Teatro/ACE Teatro do Bolhão, dispomos apenas de
uma crítica publicada.
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sabedoramente urdida por Vera San Payo de Lemos (dramaturgista dos dois
espetáculos) a partir de entrevistas, cartas e textos dos dois dramaturgos.206
Mas, como assinalamos, a própria crítica soube reconhecer e eventualmente
aprofundar os motivos do parentesco O’Neill/Shepard criado pela programação do
Teatro Aberto. Salvaguardando as “distâncias epocais e de qualidade poética” entre os
dois autores, Eugénia Vasques assinalava que, tanto na dramaturgia de O’Neill como na
de Shepard, “a tragédia manifesta é a de todos os americanos, dilacerados por uma
cultura puritana, por um apelo à errância pioneira em conflito com o desejo de
enraizamento”.207 A crítica do semanário Expresso evocava ainda os fantasmas privados
dos dois autores para destacar o modo como em ambos os textos dramáticos
encontramos o tópico familiar:
O que se narra […] é a história clássica do herói americano, despedaçado entre o amor à terra (e
à mãe) e a impossibilidade de permanecer em família, tão caros à saga americana expressa por
uma cinematografia da virilidade que, de John Wayne ao próprio Shepard, não cessa de dar rosto
à solidão do ‘Lone Ranger’ perdido na amplidão territorial do país-continente.208
Por seu turno, Jorge Listopad avaliava, nas páginas do Jornal de Letras, esta geminação
já não a partir da mitologia americana, dos temas tratados nas peças ou das pesadas
heranças familiares dos dois dramaturgos, mas a partir da própria cena, sugerindo que a
teatralidade dos espetáculos criava ou acentuava essa consanguinidade:
206 Vide Vera San Payo de Lemos, “Desejo Loucos Sob os Ulmeiros por Amor: Conversa entre Eugene
O’Neill e Sam Shepard”, in Desejo Sob os Ulmeiros/Loucos Por Amor: Programa, Lisboa, Teatro
Aberto, 1990. Na sua crítica assaz reticente ao Desejo Sob os Ulmeiros, Carlos Porto imprimia uma justa
“palavra de louvor” ao programa duplo dos espetáculos, que continha contribuições inéditas de Luiz
Francisco Rebello e Jorge Leitão Ramos, entre outros textos (C. Porto, “Desejo e amor”). A esse louvor
se juntou Maria Helena Serôdio, referindo-se igualmente ao artigo “de aparente didatismo, mas
inteligente e cativante” de Vera San Payo de Lemos. [Maria Helena Serôdio, “O amor como enunciação
trágica em O’Neill e Shepard”, O Jornal (2 Nov. 1990)]. Um aplauso que se poderia prolongar no tempo,
tendo em conta que o Novo Grupo/Teatro Aberto é uma das escassas companhias de teatro independente
que tem investido, de forma persistente e continuada, na edição de programas de sala que, para além da
tradução de textos relevantes sobre as dramaturgias postas em cena, contemplam textos inéditos que
permitem ao espectador prolongar e ampliar a experiência de fruição teatral. 207 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 208 Idem, ibidem.
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João Lourenço dá a ambas as peças, de mundivisão não oposta mas diferente, uma visão e uma
gramática comuns, isto é, o dinamismo da força, o grito, o mélo dilacerado, abolindo as
passagens naturais entre o simbólico e o naturalista em proveito de uma neurose geral,
colecionando os tiques para atestar a verosimilhança, a visão da paixão de vidas devoradas.209
Apesar desta sintaxe teatral comum, os espetáculos conheceram sorte diversa em
termos de avaliação crítica, com vantagem para a encenação que João Lourenço propôs
de Loucos por Amor. Um pouco como se se tratasse de um combate entre autores,
Eugénia Vasques garantia que “o realismo mais imediatista” da peça de Shepard “ganha
a batalha”.210 Numa nota crítica publicada no Diário de Notícias, Fernando Midões
secundava este parecer, falando de vários “desacertos” nesta montagem de Desejo Sob
os Ulmeiros: “Por tudo isto… antes Loucos por Amor”.211 Mesmo definindo a sua
intervenção como um exercício impressionista ou um diálogo com os fazedores do
espetáculo – “Crítica, isto? Fragmentos de uma linguagem que reage a outra” –, Jorge
Listopad considerava que, se as prestações interpretativas do elenco de Loucos por
Amor “souberam convidar o espectador para o vazio americano de um Paris, Texas”,
Desejo Sob os Ulmeiros trazia “mais problemas consigo”.212 Em que consistiam tais
desacertos ou problemas? Grosso modo, Carlos Porto reconhecia dificuldades de duas
ordens: uma exógena à produção do Novo Grupo, outra endógena. Para o crítico do
Diário de Lisboa, o texto de O’Neill “envelheceu mal, e foi vítima do tempo que levou
a chegar cá”.213 Tal envelhecimento prender-se-ia com a natureza denunciada tanto do
freudismo que caracteriza o relacionamento Eben/Abbie como da glosa da tragédia
clássica e do mito de Fedra. No ver de Carlos Porto, a encenação de João Lourenço não
fora capaz de superar esse “caráter do óbvio” no texto o’neilliano, acentuando inclusive
a sua fragilidade pela “inadequação dos intérpretes aos papéis que lhes foram destinados
(o caso mais flagrante é o de Irene Cruz)” e pela sua incapacidade em “exprimir os
valores que as personagens de O’Neill contêm”.214 Embora ressalve a prestação de
209 Jorge Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias (16 Out.
1990), p. 28. 210 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 211 Fernando Midões, “Altos e baixos sob os ulmeiros”, Diário de Notícias (13 Out. 1990). 212 J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”. Paris, Texas: filme de Wim Wenders (1984), de cujo
guião Sam Shepard é coautor. 213 C. Porto, “Desejo e amor”. 214 Idem, ibidem.
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Rogério Paulo (ator que fora cedido pelo Teatro Nacional D. Maria II), o crítico
identifica uma deficiência que não seria, de todo, exclusiva do elenco envolvido na
montagem em casa, mas que se revelaria transversal ao teatro português:
O teatro norte-americano, como o teatro inglês, exige um trabalho de ator muito forte e
sobretudo tendo em consideração processos de representação que exigem uma técnica
stanislavskiana que os nossos atores geralmente não dominam. Daí a insatisfação que este
espetáculo me causou.215
No contexto da nossa dissertação, onde se enfatizam os caracteres clássicos e
bíblicos que ressurgem na composição palimpséstica de Desejo Sob os Ulmeiros,
importará sobretudo realçar a argumentação de Eugénia Vasques, que identificava “a
necessidade, aparentemente sentida pelos criadores do Teatro Aberto, de negar
esteticamente as qualidades do texto de O’Neill que lhe outorgam o caráter de tragédia”.
Na ótica da crítica e investigadora teatral, teria sido essa recusa, consubstanciada no
“apagamento dos parâmetros de folk tragedy”, a transformar a peça num “melodrama
inverosímil”.216 (No vespertino A Capital, Tito Lívio confirmaria esta mesma noção, ao
classificar a substituição da tragédia pelo drama como “um dos erros”217 da encenação.)
A par da rasura das feições trágicas, Vasques diagnosticou ainda – questão não
tematizada por qualquer das restantes críticas publicadas – “a abolição de aspetos que
rondam a discussão teológica (o Velho Testamento, a culpa, a vontade, o livre
arbítrio)”, aspetos que exigiriam, ao nível da interpretação, “um desenho mais marcado
das contradições geradas pela violência intransigente dos valores fundamentalistas
personificados pelo velho Cabot”.218
Todavia, ao cotejarmos pareceres e opiniões, concluímos que aqueles que
expressaram o seu desacordo em relação ao espetáculo não se puseram propriamente de
acordo entre si. A avaliação da interpretação é, neste caso, paradigmática: se Carlos
Porto assinala que é Rogério Paulo, “apesar das dificuldades de ordem física, quem
consegue, graças a um técnica de ator aqui indispensável, tornar a sua personagem, pelo
215 Idem, ibidem. 216 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 217 Tito Lívio, “Conflito edipiano comanda relação de amantes”, A Capital (11 Out. 1990). 218 E. Vasques, “Pelo teatro fora”.
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menos, verosímil”,219 Eugénia Vasques expressava a opinião contrária, argumentando
que o ator emprestava a Ephraim Cabot uma “temperança e elegância que anulam a
verosimilhança dos conflitos”.220 (Uma divergência que nos permitiria colocar a
questão: a verosimilhança, tal como beleza, está no olho de quem vê?) Analogamente,
Vasques destacava “belos momentos de tensão emocional e sensual que [Irene Cruz]
estabelece com Fernando Luís”221 e um crítico como Tito Lívio punha em causa
precisamente essa tensão, informando que a atriz “não deixa transparecer a sensualidade
requerida na cena de sedução com Eben nem nos consegue transmitir […] o patetismo
da amante que, para conservar o objeto do seu amor, mata deliberadamente o filho de
ambos”.222 (Do triângulo incandescente de Desejo Sob os Ulmeiros apenas a
personagem de Eben, atribuída a Fernando Luís, terá colhido um elogioso consenso
crítico que, neste plano, se revela quase surpreendente.)
Todavia, se Jorge Listopad, Eugénia Vasques, Carlos Porto e Fernando Midões –
secundados, em parte, por Tito Lívio, que assegurava tratar-se de “um espetáculo apesar
de tudo digno de ser visto” 223 – emitiam juízos mais ou menos desfavoráveis à primeira
montagem nacional de Desejo Sob os Ulmeiros, Anabela Mendes e Maria Helena
Serôdio não deixaram de exprimir o seu aplauso, a começar, curiosamente, pelas
próprias interpretações:
Na peça de O’Neill é de salientar a força vibrátil e apaixonada de Fernando Luís a representar
Eben, a presença simultaneamente sedutora e dominadora de Irene Cruz no desempenho de
Abbie (que talvez no final exigisse um mais visível descontrolo passional), a rudeza e
agressividade que Francisco Pestana e Melim Teixeira colocam na composição dos seus papéis,
e a firmeza dura, quase obstinada, com que Rogério Paulo evoca a figura do pai, dela retirando
qualquer traço simpático que pudesse ter.224
219 C. Porto, “Desejo e amor”. 220 E. Vasques, “Pelo teatro fora”. 221 Idem, ibidem. 222 T. Lívio, “Conflito edipiano comanda relação de amantes”. 223 Idem, ibidem. 224 M. H. Serôdio, “O amor como enunciação trágica em O’Neill e Shepard”. Apesar do desencontro de
juízos, sobretudo no que diz respeito ao trabalho dos atores, regista-se, contudo, uma convergência de
opiniões no que toca à representação de Irene Cruz na última parte do espetáculo. Não só Maria Helena
Serôdio, mas também Eugénia Vasques e Jorge Listopad dão conta das suas reservas: “Dirigida,
tecnicamente admirável até ao último terço do jogo…” (J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”);
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Anabela Mendes subscreveu, em boa medida, o teor da apreciação supracitada, mas, no
caso da crítica do jornal Público, dir-se-ia que a dimensão plástica e cenográfica
(mencionada de passagem ou simplesmente ausente de outros textos críticos) adquiriu
um carácter quase epifânico:
Vejo os ulmeiros gigantes. Maternais. Símbolos de proteção e afeto. Vigiam tudo e todos. Estou
presa e rendida ao cenário. De José Carlos Barros. Imagino agora amanheceres, o pôr-do-sol
fulminante. O horizonte é mágico. A imponência despojada do dispositivo cénico com a criação
de espaços amplos, em que jogam plataformas fixas e móveis, abre na minha cabeça outras
janelas.225
Sem mencionar os ulmeiros da cenografia nem tecer considerações esotéricas, o artigo
assinado por Maria Helena Serôdio fornece-nos, contudo, uma utilíssima descrição do
funcionamento cenográfico do espetáculo de João Lourenço. Se Loucos por Amor vivia
de uma reconstituição naturalista de um quarto de motel, a encenação do texto
o’neilliano envolveu o desenho de um espaço de feição psíquica e simbólica:
A opção foi pela abertura que o ciclorama permite, pelo despojamento cénico e pelo
funcionamento simbólico das ‘paredes’ de madeira que, de uma forma impressiva, estabelecem a
diferença de lugar, desvendam o interdito (quando, por exemplo, parece abrir-se o ‘coração’ da
casa em que Abbie e Eben se entregam à paixão que os domina), ou permitem uma solução
cénica muito feliz do baile, por exemplo.226
A partir dos “resíduos do ato teatral”227 que representam hoje os artigos
analisados e citados, deduzimos que, na primeira produção de Desejo Sob os Ulmeiros,
terá sido a matriz trágica da peça – se se preferir, a zona cinzenta em que tragédia e
melodrama se parecem cruzar e mesclar, o caráter quase indecidível do texto o’neilliano
– a oferecer especiais dificuldades à sua encenação. Da análise destes documentos da
época, inferimos também que, se a vinculação de Desejo à tragédia clássica e aos mitos
“um problema dos registos de voz de Irene Cruz […] afunda o pathos final num ‘miado’ desagradável,
que inviabiliza qualquer adesão emocional conseguida.” (E. Vasques, “Pelo teatro fora”.) 225 A. Mendes, “Duas janelas para a América”. 226 M. H. Serôdio, “O amor como enunciação trágica em O’Neill e Shepard”. 227 P. Pavis, L’Analyse des spectacles, op. cit., p. 21.
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de Fedra e Édipo é amplamente reconhecida, os tópicos bíblicos problematizados no
capítulo 3 são, de um modo geral, obliterados. Mencione-se, ainda, que é o problema da
interpretação, da direção de atores, da verosimilhança na representação que parece
constituir-se como a linha divisória para a crítica teatral, o elemento-chave da receção
do espetáculo.
4.3. O som e a fúria – a encenação de Nuno Cardoso
Algures no caminho, Eugene O’Neill tornou-se talvez uma inevitabilidade para
Nuno Cardoso. Não que a sua trajetória como encenador seja o resultado de um
programa preestabelecido – “vou fazendo projetos e, volta e meia, olho para trás e penso
que talvez tenha um programa”,228 afirmava numa entrevista a Alexandra Moreira da
Silva – ou que a obra do dramaturgo norte-americano galardoado com o Prémio Nobel
represente um ponto de chegada ou, empregando uma locução algo paroquial, o
corolário de uma carreira. Mas o próprio percurso de Cardoso, ainda que marcado por
inflexões ou desvios, parecia encaminhá-lo numa certa direção, pois, ao examinarmos o
seu curriculum artístico, encontramos – em alguns casos, repetidas vezes – os nomes
daqueles que formaram a constelação dos interesses dramáticos de O’Neill, os pontos
cardeais da rosa-dos-ventos do seu teatro: Tchékhov, Ibsen, Shakespeare,229 os antigos
poetas trágicos… Para a checklist ficar completa, bastaria apenas aditar o nome de
Strindberg, fautor do “teatro íntimo” e “pai espiritual”230 de O’Neill. Atente-se na
228 Alexandra Moreira da Silva, “O quarto ‘pê’: Entrevista com Nuno Cardoso”, in João Luís Pereira
(ed.), Platónov: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2008, p. 7. 229 Frequentemente, Shakespeare não figura na lista de autores referenciais de Eugene O’Neill, na qual
pontificam os dramaturgos Strindberg e Ibsen, o filósofo Nietzsche, o ficcionista Joseph Conrad, os
poetas Dante e Swinburne. Todavia, um livro de Normand Berlin veio colocar à luz as fortes relações
intertextuais que se estabelecem entre a obra de Shakespeare e a dramaturgia o’neilliana, levando-o a
afirmar: “Não tenho qualquer dúvida de que Eugene O’Neill, embora fosse um iconoclasta e um
experimentador de formas dramáticas, era conhecedor da tradição dramática, estava ao corrente da
história do teatro e se encontrava muito próximo – de formas até por ele ignoradas – do seu centro:
Shakespeare.” Normand Berlin, O’Neill’s Shakespeare, Michigan, University of Michigan Press, 1993, p.
6. 230 “É certo que os modelos de O’Neill são os maiores autores russos, mas também Strindberg
(considerado o seu ‘pai espiritual’), Ibsen, o teatro grego (para O’Neill, nada era mais nobre do que o
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adjacência tchekhoviana/o’neilliana que ocorre na cronologia teatral de Nuno Cardoso,
onde o dramaturgo nascido em Times Square e o médico-escritor dado à luz em
Taganrog convizinham: em 2010, escassos dois meses separam as estreias de A
Gaivota231 e de Jornada para a Noite;232 no ano seguinte, o mesmo sucede em relação a
As Três Irmãs233 e Desejo Sob os Ulmeiros. O período em que o encenador produz a sua
trilogia de Tchékhov, iniciada em 2008 com essa “explosão de alegria sem rumo”234 que
é Platónov,235 coincide também, aproximadamente, com o arco temporal em que faz
uma incursão desabridamente política no teatro shakespeariano – e entre o Ricardo II de
2007 e o Medida por Medida de 2012, situam-se as duas peças de O’Neill. Um teatro
que não versa já a esfera pública, a arbitrariedade do poder, o catálogo de manhas e
perversões da governação, mas que efetua, por assim dizer, uma retirada estratégica em
direção a essa fração íntima que é a casa, espaço suscetível, segundo Jean-Pierre
Sarrazac, de uma “dilatação infinita”.236 Este balanço entre o público e o privado, a
praça e a casa, o político e o íntimo, parece, aliás, pautar o trajeto de Nuno Cardoso –
ilustram-no as suas duas criações teatrais mais recentes: Coriolano, “a mal-amada de
entre as tragédias da maturidade de Shakespeare”,237 posta em movimento numa
recriação hiper-realista das escadarias da Assembleia da República (nos últimos anos,
palco de recorrentes tensões e confrontos em manifestações públicas), e Demónios,
onde Lars Norén – afinal, um herdeiro sueco de O’Neill na perceção da violência
‘sonho grego’) e o teatro isabelino – o teatro da crueldade avant la lettre.” M.-C. Pasquier, “Eugene
O’Neill”, op. cit., p. 1010. Na abertura do seu O’Neill: Son and Artist, Louis Sheaffer refere que O’Neill
teve em Strindberg “o seu modelo auto-consciente, o qual, voltando-se repetidamente para a sua própria
vida como material de trabalho, transmutou a história privada e a angústia secreta em arte.” L. Sheaffer,
O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. ix. 231 Espetáculo estreado a 15 de Setembro de 2010, no Teatro Nacional São João. Coprodução Ao Cabo
Teatro, TNSJ, Centro Cultural Vila Flor, Teatro Aveirense, Teatro Maria Matos. 232 Espetáculo estreado a 20 de Novembro de 2010, no Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia.
Produção Teatro Experimental do Porto. 233 Espetáculo estreado a 14 de Abril de 2011, no Teatro Nacional D. Maria II. Coprodução Ao Cabo
Teatro, TNDM II. 234 Peter Brook, “La Cerisaie, une immense vitalité”, Théâtre en Europe, n.º 2 (Avril 1984), p. 53. 235 Espetáculo estreado a 17 de Julho de 2008, no Teatro Nacional São João. Produção TNSJ. 236 J.-P. Sarrazac, Théâtres Intimes, op. cit., p. 9. 237 Fernando Villas-Boas, “Coriolano: Triunfos e Quedas”, in Coriolano: Programa, Lisboa, Teatro
Nacional D. Maria II, 2014, p. 24.
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psicológica e do espaço fechado – se compraz em exibir a esfera doméstica como ringue
de boxe ou jaula para feras esfaimadas.
Se um conjunto de outras experiências teatrais prepara ou rodeia o aparecimento
da dramaturgia o’neilliana no percurso de Nuno Cardoso, não é menos verdade que, em
grande medida, esta lhe sai ao caminho. (À semelhança do pintor, o encenador e ator
poderia dizer: “Não procuro, encontro.”) A encenação de Jornada para a Noite resulta
de um convite do Teatro Experimental do Porto, que, no âmbito das comemorações do
centenário do seu primeiro diretor artístico, António Pedro, delibera remontar a peça
que, em 1958, proporcionara à companhia um dos seus êxitos históricos. Por seu turno,
Desejo Sob os Ulmeiros decorre não só da vontade do encenador – e da companhia que
serve os seus desígnios artísticos, o Ao Cabo Teatro – como também do plano
programático da entidade coprodutora, a ACE/Teatro do Bolhão, que estabelecera a
realização de um ciclo de espetáculos construídos sobre “textos de forte pendor
realista”:238 depois de Edward Albee, Tennessee Williams e Lars Norén, teria chegado a
hora do founding father da moderna dramaturgia norte-americana.239 De onde talvez se
possa inferir a hipótese de a aparição de Eugene O’Neill na trajetória artística de Nuno
Cardoso resultar, afinal, de uma feliz concatenação de acasos e vontades.
Integrado na temporada 2010/2011 do Teatro Nacional São João, Desejo Sob os
Ulmeiros estreou-se no Teatro Carlos Alberto a 24 de Junho de 2011, permanecendo em
cena até 3 de Julho. No final do ano, o TNSJ promoveu uma reposição do espetáculo,
apresentando-o, sem qualquer alteração de elenco, entre 9 e 18 de Dezembro. Pela
vontade do encenador Nuno Cardoso, seguir-se-ia O Luto vai bem com Electra;240 pela
vontade do ator que também é, The Hairy Ape [1922], uma feroz experiência
expressionista de O’Neill, que nos lança na espiral depressiva de um fogueiro
condenado à condição de pária e filthy beast.
238 ACE/Teatro do Bolhão, [Nota introdutória ao espetáculo], in P. Sobrado (ed.), Desejo Sob os
Ulmeiros: Programa, op. cit., p. 5. 239 “Eugene Gladstone O’Neill é o maior dramaturgo dos Estados Unidos da América e o pai fundador da
moderna dramaturgia americana.” Robert M. Dowling, Critical Companion to Eugene O’Neill: A Literary
Reference to His Life and Work, New York, Facts on File, 2009, p. xi. 240 Vide Inês Nadais, “California dreaming, enquanto a tempestade se abate sobre uma casa que podia ser
nossa”, Público: P2 (24 Jun. 2011), p. 37.
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A encenação de Nuno Cardoso adota a tradução de Jorge de Sena, publicada em
1959 como o vigésimo título da belíssima coleção “Os Livros das Três Abelhas”
(Publicações Europa-América) fundada, dez anos antes, pelo arquiteto, fotógrafo e
designer Victor Palla e pelo escritor José Cardoso Pires.241 Cinquenta anos volvidos, se
analisada a partir da cena, a tradução envelheceu notoriamente, o que, pelo menos em
parte, terá levado João Lourenço e Vera San Payo de Lemos a realizar uma nova
tradução para o seu espetáculo.242 Cardoso recupera a tradução de Jorge de Sena, mas
submete-a a uma série de acertos, pequenas reformulações e elisões, de forma a, por um
lado, assegurar a verosimilhança requerida pelo chamado ‘teatro naturalista’ e, por
outro, renovar a força percussiva do texto, amolar as suas arestas. Alguns exemplos: o
desusado “havia montes de ouro à bica” passa a “havia ouro a dar com um pau”; “A
ceia está pronta” dá lugar a um grosseiro “O tacho está pronto”; o polido “É qualquer
coisa… que o impele… a impelir-nos” passa a “É qualquer coisa… que o empurra… a
empurrar-nos”; e o literário “o povo ia sempre dizendo que eu era duro, tão duro como
era pecado ser” foi substituído pelo coloquial “o povo ia sempre dizendo que eu era
duro, como se isso fosse pecado”.
Deixando de parte a questão de se saber se o prazo de validade da tradução de
Sena terá efetivamente expirado (o poeta e tradutor Daniel Jonas aludiu a essa
eventualidade),243 importa equacionar um aspeto que o original de Eugene O’Neill
coloca à consideração do seu tradutor e do seu encenador: um dos elementos centrais na
evocação do ambiente rural da Nova Inglaterra é a variante dialetal em que as
personagens de Desejo Sob os Ulmeiros se expressam. No texto original, não se trata de
um pitoresco adereço linguístico: o efeito desse arcaico inglês do nordeste americano no
público é complexo, pois não só participa coerentemente da agreste ruralidade da peça
como instaura uma distância em relação ao público culto (que não diz “purty” nem
“hoss”, mas “pretty” e “horse”), ao mesmo tempo que possui um particular vigor e uma
musicalidade quase encantatória.244 Tendo em conta a relevância deste aspeto na
241 A coleção foi originalmente concebida para a editora Gleba, tendo depois transitado para as
Publicações Europa-América. 242 Dizemos “em parte”, porque o Novo Grupo/Teatro Aberto privilegia a realização de novas traduções
para as suas produções. 243 Vide D. Jonas, “2 textos sobre 2 ensaios e 1 ensaio sobre 1 texto”, op. cit., p. 6. 244 “[O dialeto] mantém-nos permanentemente conscientes do pano de fundo rural da peça e do facto de
que as suas personagens são simples lavradores. Eles não são tão educados ou sofisticados quanto nós,
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estética dramatúrgica de Desejo, perguntamo-nos se cabe ao seu tradutor encontrar um
equivalente dialetal no idioma de chegada, em vez de sujeitar as rústicas personagens a
uma língua-padrão. Não se trata, note-se, de uma experiência inédita ou
necessariamente votada ao mais embaraçoso dos fiascos: recordemos a inventiva e
gostosa experiência com o falar de Caxinas no D. João de Molière, encenado por
Ricardo Pais em 2006, no Teatro Nacional São João. Fruto do labor do escritor José
Coutinhas e do foneticista João Veloso, o patois das primeiras quatro cenas do II Ato
dava aí lugar – sem perda de autenticidade, verosimilhança ou graça – ao
dialeto/socioleto das Caxinas, bairro piscatório de Vila do Conde.245
Trata-se, em todo o caso, de uma vexata quaestio que não temos a pretensão de
aqui resolver: no que diz respeito a Desejo Sob os Ulmeiros, objetar-se-ia, com
pertinência, que uma mera conversão dialetal redundaria num lastimável desastre, uma
vez que o que está em jogo no texto o’neilliano não se reduz a uma questão de acento –
todo um imaginário, nutrido pelo puritanismo norte-americano e imbuído de locuções
da popularizada King James Bible (cujo inglês era já arcaico no momento em que foi
publicada, no início do século XVII),246 teria igualmente de ser vertido, bem como o
pano de fundo da avidez pelo ouro californiano. Sem essa operação metamórfica,
perguntar-se-ia: que sentido faz um português de Miranda do Douro comportar-se e
discorrer como um yankee? Uma adaptação dessa envergadura foi, contudo, tentada por
João Canijo em 1991, quando encenou A Moon for the Misbegotten [1943]. O
espetáculo intitulava-se Confissão ao Luar e nele o realizador procedeu – como contava
então Eugénia Vasques nas páginas do Expresso – a “uma transplantação do sistema
referencial da peça de origem para a realidade social, mental e linguística portuguesa de
um possível e verosímil Alentejo contemporâneo”.247 Coadjuvado por António Feio
mas a sua linguagem possui um vigor e encanto que admiramos. Por conseguinte, parece refletir ou
corporizar a beleza natural do pano de fundo físico da peça […].” Michael Mikoś/David Mulroy,
“Reymont’s The Peasants: A Probable Influence on Desire Under the Elms”, in Frederick Wilkins (ed.),
The Eugene O’Neill Newsletter, vol. X, n.º 1, Boston, Suffolk University, 1986. In eONeill.com: An
Electronic Eugene O’Neill Archive [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.eoneill.com/
library/newsletter/x-1/x-1b.htm˃ [consult. 08-08-2014]. 245 Sobre esta experiência vide João Veloso, “La scène se passe à la campagne, au bord de la mer, non
loin de la ville”, in João Luís Pereira (ed.), D. João: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João,
2006, pp. 6-7. 246 Vide R. Alter/F. Kermode (ed.), The Literary Guide to the Bible, op. cit., p. 1. 247 Eugénia Vasques, “Serenata alentejana”, Expresso: Cartaz (16 Mai. 1991), p. 9.
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(autor da tradução), e beneficiando da experiência de rodagem de uma série televisiva
no Alentejo,248 Canijo promoveu a transmutação de uma família de origem irlandesa e
da sua paisagem rural do Connecticut dos anos 1920 numa pequena herdade da planície
alentejana, com os seus cardos e piteiras. O que sustentava a arriscada transposição era,
por um lado, uma certa paridade dos elementos identitários das duas regiões (“terra
árida, sol escaldante, problemas de água, porcos e pocilgas, trabalho braçal,
patriarcado/matriarcado”) e, por outro, uma afinidade antropológica: as “tragédias de
solidão, isolamento e ensimesmamento existencial que nos permitem transitar do
universo mental de um transplantado catolicismo irlandês para o universo herético e
agnóstico daquelas terras portuguesas”.249 Todavia, uma adaptação deste alcance
acarreta perdas significativas: as réplicas atravessadas por ressonâncias bíblicas e o
característico praguejar irlandês perderam-se (bem como algumas das remissões
míticas), dando lugar a um linguajar mais rasteiro, repleto de grosserias. Não se trata de
um mero detalhe formal: como assinala Eugénia Vasques (que, na altura, não deixou de
emitir um parecer favorável à experiência), a narrativa teatral viu-se destituída do seu
carácter simbólico ou metafísico, prejuízo indemnizado por uma feição mais
sociológica. Na eventualidade de Desejo Sob os Ulmeiros ser submetida a uma
transcrição desta natureza, receamos que pouco restasse da peça escrita por O’Neill em
1924: em arte, não se opera sem dor uma disjunção forma/conteúdo. Tal operação
assemelha-se perigosamente a um transplante cardíaco, pois o organismo recetor pode
ser traído pelo próprio sistema imunológico, que, não reconhecendo o novo órgão vital,
ordena a sua implacável aniquilação.
Nuno Cardoso não só não transplantou a herdade dos Cabot para uma erma
povoação portuguesa, como também não abriu uma zona cinzenta – territorialmente
ambígua ou compósita – para a representação. Renunciou ainda a uma fuga para a
frente em relação às indicações espaciais do dramaturgo norte-americano, estratégia que
adotara, um ano antes, na encenação de Jornada para a Noite, ao despejar os Tyrone da
sua cottage no Connecticut para instalar toda a família numa roulotte, estacionada num
anónimo parque de campismo. (Um gesto cenográfico que, simultaneamente, observava
e subvertia o naturalismo do drama familiar o’neilliano.) Ao invés, em Desejo Sob os
248 Alentejo sem Lei, minissérie realizada por João Canijo para a RTP. 249 E. Vasques, “Serenata alentejana”, op. cit., p. 9.
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Ulmeiros, Cardoso optou por encenar o romance da América250 que, segundo Jean-
Pierre Sarrazac, o dramaturgo foi compondo na sua obra dramática, mesmo execrando
as congeniais mitologias do seu país natal.
Esta perceção de uma inscrição americana é-nos inequivocamente fornecida pelo
quadro de abertura do espetáculo: enquanto um lento fade in de luz desvenda o cenário
– o amanhecer do Novo Mundo –, escutamos uma gravação do clássico folk “Oh!
Susanna”, canção composta por Stephen Foster nos anos da primeira vaga do California
gold rush. Interessantemente, o tema não é de imediato reconhecível: tocado já não com
banjo e harmónica de boca, mas ao piano, como um velho hino protestante do século
XIX (parece saído de entre as partituras do The Puritan Hymn and Tune Book), denota
qualquer coisa fora do sítio, ou ligeiramente deslocada – notas erradas, uma anomalia
rítmica, acordes quase dissonantes? (Dir-se-ia que a canção foi submetida menos a um
arranjo do que a um desarranjo…) O tema musical – o único de todo o espetáculo,
complementado apenas por apontamentos de sonoplastia que recriam a paisagem sonora
do campo ou uma noite de trovoada – reveste-se de uma importância dupla: ao mesmo
tempo que pontua a estrutura dramática da peça (abre a representação e funciona como
leitmotiv, demarcando as três partes e as várias cenas que as constituem), inocula
inteligentemente uma problemática – entendida como nó de problemas251 – que
atravessa Desejo Sob os Ulmeiros: primeiro, esboça o pano de fundo histórico a que a
peça se reporta (meados do século XIX, época da corrida ao ouro da Califórnia, a que
Simeon e Peter aderem febrilmente); depois, sinaliza a avidez de que, sem exceção,
todas as personagens estão possuídas (inclusive o representante da lei, o Xerife, que
assobia a cançoneta e remata a representação com uma manifestação de cupidez: “É
uma quinta que é um gosto […]. Quem dera que fosse minha!”); por último, pelo
arranjo musical que lhe foi conferido (como se fosse necessário convertê-lo ao hinário
do divine service), introduz a questão religiosa, nuclear e irradiante em Desejo – não
apenas em virtude do ideário puritano da Nova Inglaterra ou dos signos bíblicos que o
texto vai constelando, mas também por força dessa estranha modalidade de culto
prestado à herdade (tantas vezes entendida numa perspetiva animística)252 e, no caso de
250 J.-P. Sarrazac, “Le Roman Dramatique Familial de Eugene O’Neill”, op. cit., p. 62. 251 “Uma problemática é fundamentalmente um nó de problemas”. Manuel Maria Carrilho, Jogos de
Racionalidade, Porto, Asa, 1994, p. 31. 252 Embora possamos encontrar a mesma perspetiva noutras personagens, Ephraim é aquele que, de uma
forma particular, lhe confere voz: “A herdade precisa de um filho. […] Às vezes tu és a herdade, e às
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Eben, à figura da mãe ausente. De algum modo, o solene mas desarranjado hino à
fortuna e à posse insinua, na estrutura do espetáculo, esse anel de Moebius que dinheiro
e religião formam na Weltanschauung americana. Uma mundividência admiravelmente
concentrada na profissão de fé inscrita nos seus copiosos dólares: In God We Trust.
De forma menos sub-reptícia e mais tangível, a cenografia de F. Ribeiro – um
dos companheiros de estrada de Nuno Cardoso, encenador que vem insistindo numa
lógica de equipa mais ou menos fixa, assente em sólidas afinidades estéticas – confirma
a inscrição da ação no espaço-tempo americano. A casa de recorte naturalista, com o
alpendre e as ripas de madeira pintadas a branco (mas bastante encardidas, como requer
a rubrica de cena inicial), evoca memórias cinematográficas (The Scarlett Letter de
Wim Wenders, por exemplo) e um panorama norte-americano que parece ainda hoje
comover os autores do Velho Continente, do Jean Baudrillard de América, com o seu
fascínio por uma metafísica da paisagem, ao Peter Handke de Breve carta para um
longo adeus. Ao nosso olhar, a figuração da casa dos Cabot reporta-nos sobretudo à
pintura de Grant Wood, cujo icónico American Gothic [1930] concentra (apesar das
paródicas apropriações de que tem sido alvo) uma ambígua fusão de reverência e sátira
à América rural e à austeridade repressiva do seu puritanismo. Poderíamos ainda evocar
a pintura cinematográfica de Edward Hopper,253 célebre pelas visões melancólicas de
uma América urbana e nocturna, mas que, na década de 1920, fixava em telas luminosas
– e não menos melancólicas – as casas de Gloucester,254 localidade costeira de
vezes a herdade és tu. É por isso que me agarro a ti na minha solidão. […] Eu e a herdade temos de gerar
um filho!” [I Parte, Cena 4]. 253 Se as telas de Edward Hooper possuem uma feição cinematográfica, o contrário também é verdade, ou
seja: que algum cinema desenvolveu uma qualidade hopperiana, como, de resto, assinala Julian Bell: “O
cinema retribuiria o elogio, citando as suas composições em muitos cenários.” Julian Bell, Espelho do
Mundo: Uma Nova História de Arte, trad. Luís Leitão e Cláudia Brito, Lisboa, Orfeu Negro, 2007, p.
394. 254 Em 2012, a fotógrafa Gail Albert Halaban percorreu Cape Ann em busca das casas que Edward
Hopper pintou nos anos 1920. As fotografias deram origem a uma exposição em Nova Iorque (Edwynn
Houk Gallery, Novembro de 2012) e o jornal The New York Times publicou uma galeria de imagens que
associa algumas das fotos de Halaban às telas de Hopper, permitindo um interessante cotejo. In The New
York Times [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.nytimes.com/interactive/2012/07/22/
magazine/hopper-houses.html> [consult. 02-09-2014]. Com interesse pode também ser consultada, no
website da fotógrafa, uma sequência mais generosa de fotografias. In Gail Albert Halaban [em linha].
Disponível em www: <URL: http://www.gailalberthalaban.com/ART/HOPPER-REDUX/1/> [consult.
02-09-2014].
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Massachusetts, Nova Inglaterra. Nesses anos, e não longe dali (pelo menos pelos
padrões americanos de distância), O’Neill compunha Desejo Sob os Ulmeiros, tendo ele
próprio apresentado esboços para a cenografia que Robert Edmond Jones – um dos
elementos do ‘Triunvirato’ que reconfigurou os Provincetown Players no Experimental
Theatre255 – desenvolveu para o espetáculo de estreia, em 1924.
A sombria little house on the prairie concebida para a encenação de Nuno
Cardoso participa do paradigma mimético instituído pelo texto o’neilliano, bem como
pela produção original, que o dramaturgo supervisionou. Trata-se de um gesto
cenográfico que, do ponto de vista conceptual, não é propriamente arquetípico da
estética cénico-teatral de Nuno Cardoso. A avaliar pelas cenografias mais emblemáticas
que F. Ribeiro vem desenhando para espetáculos seus – o campo de futebol de Ricardo
II , os carris de comboio de Platónov, a autoestrada de Medida por Medida –, o
encenador parece privilegiar espaços simbólicos, cenários que comportem metáforas
cénicas: por vezes, óbvias, quase ostensivas no seu apelo à atualidade, como sucedia
com a escadaria da Assembleia da República de Coriolano (os tempos não estão para
subtilezas?); outras vezes, enigmáticas, como era o caso da “folha de papel
amarrotada”256 de Woyzeck, uma espécie de gigantesca lomba de cimento para skaters,
escultura cénica onde a escritora Regina Guimarães reconheceu a exteriorização dos
“fortíssimos movimentos tectónicos” que operam no subsolo do drama de Büchner e a
que o pobre-diabo soldado é estranhamente sensível.257 A uma solução diversa, na
aparência mais convencional, terão encenador e cenógrafo sido conduzidos ou pelo
naturalismo do texto de O’Neill ou pela vontade própria de experimentar uma
teatralidade que, segundo Cardoso, se confunde sistematicamente com “as práticas do
255 Companhia off-Broadway criada e preparada para produzir qualquer texto dramático que O’Neill
pudesse propor, o que veio a conceder livre curso à imaginação do dramaturgo, que compôs
excentricidades como Marco Millions e Lazarus Laughed [1928]. Vide James A. Robinson, “The Middle
Plays”, in Harold Bloom (ed.), Eugene O’Neill, New York, Infobase Publishing, 2007, p. 101. 256 Declaração de Nuno Cardoso, in Regina Guimarães, “Ainda não é a noite de todos os dias: Uma
conversa com Nuno Cardoso”, in João Luís Pereira (ed.), Woyzeck: Manual de Leitura, Porto, Teatro
Nacional São João, 2005, p. 7. 257 “Não posso deixar de repensar nos gestos e palavras de Woyzeck que exprimem a ideia de que ele
ouve o som da terra a tremer e se julga capaz de comunicar com ela (‘é como se o mundo falasse’),
‘esgotando-se’, como lhe diz o Capitão, nesse seu estado de semi-transe e nesse seu rudimentar
pensamento alegórico.” Regina Guimarães, “Ensaios, Diários”, in Woyzeck: Manual de Leitura, op. cit.,
p. 9.
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audiovisual”.258 Mas se o espaço cénico cumpre, de um modo geral, as prescrições do
dramaturgo americano e não diverge, na sua tipologia, daquele que Robert Edmond
Jones construíra quase cem anos antes, há neles apreciáveis diferenças (não apenas ao
nível do desenho arquitetónico ou no plano dos materiais usados) e a distância entre os
dois permite-nos avaliar aspetos importantes da encenação de Nuno Cardoso.
Conta-nos Ronald Wainscott que, uma vez que a ação de Desejo Sob os
Ulmeiros envolvia espaços interiores e exteriores numa mesma unidade cenográfica, a
produção dos Provincetown Players adotara paredes removíveis, de forma a que a
fachada da granja dominasse o palco sempre que os interiores não fossem necessários.
A vantagem, explica o historiador, consistia em “manter a misteriosa e fantasmagórica
sala de visitas oculta até ser necessária à cena de sedução de Eben por Abbie”.259 (Por
outro lado, esta opção comportava desvantagens, nomeadamente o retardamento
imposto à representação pela remoção e recolocação das paredes do cenário.) Não
reencontramos este dispositivo na casa parda da encenação de Nuno Cardoso: se bem
que tenha implicado a deslocação de múltiplas cenas para o exterior – para o alpendre
(como sucede na ceia que tem lugar na segunda cena da I Parte) ou para a área
retangular de terra escura em frente (é o caso do baile que abre a III Parte) –, a casa é
fechada e, no que toca à ação que decorre no seu interior, acedemos apenas ao que as
janelas nos permitem entrever, o que estabelece uma nova relação entre interior e
exterior, entre visível e invisível, entre o que é mostrado e ocultado ao espectador. Para
além de aniquilar um princípio de transparência absoluta que as didascálias do texto
o’neilliano previam (“o interior da cozinha é agora visível” [I Parte, Cena 2]; “vê-se o
interior dos dois quartos de cama, no andar de cima” [II Parte, Cena 2]; “vê-se o interior
da sala de visitas” [II Parte, Cena 3], etc.), este jogo de exposição/ocultação tem
consequências dramatúrgicas e de poética cénica, como facilmente se depreende de uma
cena nodal de Desejo: se o texto dramático pressupõe a representação efetiva do
infanticídio – a didascália que Eugene O’Neill antepõe à terceira cena da III Parte
descreve a silenciosa consumação do crime –, a encenação de Nuno Cardoso deixa
apenas pressentir (e sobretudo imaginar) o nefando ato de Abbie: vemos a personagem a
acercar-se de um berço quase invisível e a tomar a criança nos braços, deitando-a de
258 Nuno Cardoso, [Nota introdutória ao espetáculo], in P. Sobrado (ed.), Desejo Sob os Ulmeiros:
Programa, op. cit., p. 4. 259 R. Wainscott, “Notable American stage productions”, op. cit., p. 104.
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novo – mas nada mais. Figurado nestes termos, o acontecimento aproxima Desejo da
tragédia grega não apenas tematicamente, mas também formalmente, uma vez que a
antiga forma trágica isentava a representação teatral à exibição do crime, remetendo
para o interior de um reduto inacessível a sua execução. Invoquemos um caso afim: o
duplo filicídio cometido pela Medeia euripidiana não ocorre à vista do público, mas no
interior da casa, com as portas trancadas.
Merece ainda menção a caracterização cenográfica da sala de visitas,
significativamente diversa daquela que recebe o resto da casa: sem parede exterior,
envolvida apenas por um cortinado branco translúcido, é simultaneamente um féretro e
um tálamo nupcial. Também um templo, uma espécie de Débir (Santo dos Santos ou
Santíssimo Lugar),260 sala interior do Templo de Salomão que se encontrava isolada por
uma cortina de linho e a que apenas o sumo-sacerdote acedia uma vez por ano, no Dia
da Expiação. Uma caracterização que está em plena conformidade com a noção,
veiculada por Eben, de se tratar de um lugar sagrado – ali estivera, em câmara ardente, o
corpo daquela a quem ele se devota religiosamente – e com a intuição, manifestada
também por Abbie, de que ali uma oculta força exógena se abrigou.
Um aspeto, contudo, da cenografia de Desejo Sob os Ulmeiros oferece-nos
reservas: a figuração das duas árvores do título, feita através de eucaliptos ‘importados’
de um espetáculo tchekhoviano de Nuno Cardoso, onde ‘interpretavam’ o papel de
tílias. Evidentemente, não é a transferência cenográfica que gera incompreensão (pelo
contrário, pois, em si mesma, possui uma feição meta-teatral que tantas vezes se revela
intrigante).261 Os dois ulmeiros – por sinal, a árvore oficial do Estado de
Massachusetts262 – já não ladeiam a casa, como sentinelas ou como os altares a Ártemis
e Cípris no Hipólito, mas encontram-se ao fundo da cena, nas traseiras da residência,
260 Vide A. V. D. Born, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, op. cit., p. 1393. 261 Nas páginas do programa de um dos primeiros espetáculos do São João enquanto Teatro Nacional (O
Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca, enc. Nuno Carinhas), Ricardo Pais expressava essa
feição nos seguintes termos: “Quando, num ensaio do Grande Teatro, vi a enxada de Dom Duardos ser
entregue ao Lavrador pelo Mundo, ocorreu-me que passar de um projeto a outro é passar as ferramentas
deste duro ofício de palco como quem passa um testemunho. Cada espetáculo é um repto que se faz a
outro, cada experiência um desafio à que a antecede e assim sucessivamente.” Ricardo Pais, “Em
Setembro de 1996”, in Rodrigo Affreixo (ed.), O Grande Teatro do Mundo: Programa, Porto, Teatro
Nacional São João, 1996, p. 5. 262 In States Symbols USA [em linha]. Disponível em www: <URL: http://www.statesymbolsusa.org/
Massachusetts/tree_american_elm.html > [consult. 15-09-2014].
- 99 -
sendo apenas em parte visíveis: não têm porte de ulmeiros, não possuem o carácter
vigilante e opressivo que o texto o’neilliano lhes atribui, nada revelam da “maternidade
sinistra” e da “absorção ciosa e esmagadora” que a didascália inaugural anuncia.
Assemelham-se, por assim dizer, a protagonistas despromovidos à condição de
figurantes. Em sua defesa, oferece-nos dizer que parecem não ter princípio nem fim,
afinal como o próprio desejo do título: não lhes vemos as raízes, não alcançamos a
folhagem, apenas o lenho está diante de nós… Ainda assim, perguntar-se-á se não teria
sido preferível renunciar à figuração dos ulmeiros do que ficar, digamos, por uma
figuração mutilada, incompleta. Foi o que fez, por exemplo, José Quintero, fundador do
Circle in the Square Theatre (Nova Iorque) e um dos mais destacados encenadores da
obra de Eugene O’Neill nos EUA, cuja histórica encenação de 1963 provocou uma
clivagem na crítica, pois de uma assentada abdicava da casa e dos ulmeiros, embora
estes fossem, a dada altura, percecionados através da projeção da sua abundante
folhagem.263 Encontramos uma reflexão afim no livro que Georges Banu dedicou a O
Cerejal de Tchékhov, onde, entre tantas outras coisas, avalia a necessidade de
representar cenograficamente as cerejeiras, um problema que não releva apenas do
gosto pessoal dos criadores do espetáculo, mas que transporta a marca de combates
estéticos (naturalismo, simbolismo, etc.). Conta o ensaísta que houve quem figurasse
cabalmente o cerejal, quem discretamente o evocasse em pontas de ramos e flores
(como fez Stanislavski) e quem rasurasse por completo a sua presença, tornando-o cosa
mentale. No que respeita aos ulmeiros de O’Neill, tendemos a adotar a tomada de
posição de Banu sobre as cerejeiras de Tchékhov: “Figurar ou não o cerejal? De
maneira nenhuma ou completamente. Toda a solução intermédia dececiona, transige
com esse supremo desafio, o desafio do invisível completado pelo visível. O imaginário
extremo ou o físico supremo.”264
Em todo o caso, afigura-se árdua a tarefa de encontrar, entre as encenações de
Nuno Cardoso, produções que pequem pela incúria cenográfica ou pela indigência
plástica (podemos censurar o oportunismo da escadaria da Assembleia da República em
Coriolano, mas de modo algum o seu impressivo grafismo cénico ou a qualidade da sua
execução técnica). No caso de Desejo Sob os Ulmeiros, os chamados production values
são irrepreensíveis: favorecida pelo desenho de luz de Pedro Vieira de Carvalho, a
263 R. Wainscott, “Notable American stage productions”, op. cit., p. 105. 264 Georges Banu, Notre Théâtre, La Cerisaie: Cahier de Spectateur, Arles, Actes Sud, 1999, p. 32.
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cenografia de F. Ribeiro pactua com os figurinos de Cristina Costa, os quais parecem
cumprir os critérios que Roland Barthes fixou na sua minima moralia do figurino de
teatro: materialidade bastante para significar e transparência suficiente para não
constituir os seus signos em parasitas.265 Poderíamos formular o elogio em termos
negativos – não estorvam, não enchem, não distraem –, mas seria dizer pouco de
figurinos que, nas formas, cores e materiais, assumem também como seu o argumento
do espetáculo, participando de uma semântica franca e austera que, sem escrúpulos
epocais ou pormenores decorativos, evoca uma ruralidade puritana.
Em Desejo Sob os Ulmeiros, reencontramos outra marca distintiva da fisionomia
teatral de Nuno Cardoso: a vitalidade percussiva da interpretação, aspeto que requer dos
atores uma particular disponibilidade física, ou mesmo um poder de choque. Se bem
que algumas cenas a imponham (o baile da III Parte, o confronto físico entre Ephraim e
Eben, etc.), essa corporalidade veemente do teatro de Cardoso manifesta-se
transversalmente, produzindo inclusive inflexões na orientação do texto o’neilliano,
com consequências ao nível da perceção das personagens ou da situação dramática. É o
que sucede, por exemplo, na entrada em cena de Simeon e Peter: onde o texto descrevia
dois homens exaustos, que regressam do trabalho de ombros curvados e arrastando os
pés (prisioneiros cujas grilhetas são invisíveis), a encenação dá-nos a ver dois estoura-
vergas que voltam a casa numa corrida desenfreada, arremessando a sachola com
violência, digladiando-se fisicamente, rindo como hienas.266 O que se afigura uma
inusitada explosão cinética decorre, contudo, de uma dramaturgia do corpo que Nuno
Cardoso promove em cada trabalho de encenação: digamos que a hermenêutica que o
encenador empreende sobre o texto dramático é sobretudo uma hermenêutica corporal,
uma exegese que tem no corpo do ator uma ferramenta privilegiada de análise
dramática. (Daí que o encenador privilegie, em muitos processos criativos, o método da
improvisação, que o próprio define como “uma operação de hermenêutica, um
265 “Em suma, o bom trajo de cena deve ser bastante material para significar e bastante transparente para
não constituir os seus signos em parasitas.” Roland Barthes, “As doenças do trajo de cena”, in Ensaios
Críticos, Lisboa, Edições 70, 2009, p. 72. 266 Algo análogo ocorre quando Eben se prepara para visitar “a mulher escarlate”: a altercação que o opõe
aos dois irmãos mais velhos degenera numa pequena batalha campal não prevista por O’Neill.
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estudo”.)267 Em Desejo, essa dramaturgia do corpo estaria ao serviço da intifada
(‘guerra das pedras’) que as personagens – anteriormente definidas, à luz das conexões
bíblicas, como “pedras vivas” e “pedras de tropeço” – corporizam. Mas também da
bestialidade que atravessa todo o texto de O’Neill: Eben é um touro, um galo de
capoeira, um cão; Ephraim, uma cobra; os dois irmãos são bois e porcos; Abbie, uma
vaca e, a dado momento, “arqueja como um animal”; os convidados são porcos,
galinhas, asnos… (Razão pela qual a pequena disputa territorial se tornou um dos
tópicos mais valorizados pela encenação.) Digamos que o espetáculo generaliza a
natureza que uma didascália imputa a Eben, tratando as personagens de Desejo como
“animais selvagens” para os quais “cada dia é uma jaula”.
Curiosamente, ao contrário do que parece impor esta dramaturgia musculada, e
do que habitualmente sucede nos seus projetos de encenação (onde rapidamente
divisamos um núcleo de atores reincidentes), Nuno Cardoso dirigiu pela primeira vez,
em Desejo Sob os Ulmeiros, intérpretes que não haviam antes figurado nos seus elencos
– entre eles, o ator António Capelo, cofundador da Academia Contemporânea do
Espetáculo –, alguns dos quais se tornaram, nos anos que se seguiram, presença mais ou
menos regular nas produções do encenador: Catarina Lacerda, Afonso Santos e, muito
especialmente, Pedro Frias. Por razões que, em alguma medida, terão origem em
constrangimentos de produção, os últimos dois assumiam não apenas a interpretação
dos dois irmãos siameses (que se eclipsam, rumo à Califórnia, no final da I Parte), mas
também o papel dos dois lavradores que participam no baile da II Parte, e mais tarde do
Xerife e do seu ajudante, que vêm pôr termo à representação. (Bem longínquo se afigura
o início da década de 1990, que permitira ao Novo Grupo/Teatro Aberto encenar Desejo
Sob Ulmeiros com treze atores e um músico.) Deste elenco, a cuja diversidade (ou
disparidade) de escolas de interpretação Daniel Jonas se referiu, ao mencionar “um
elenco […] tão variado como uma tábua de queijos”, sentimo-nos inclinados a sinalizar
o desempenho de Catarina Lacerda, na qual se assiste ao progresso de uma Abbie
demencial, ao mesmo tempo que a relativa unidimensionalidade que Capelo confere a
Ephraim – no qual Louis Sheaffer descobriu “uma das figuras mais ricas de toda a obra
de O’Neill”268 – fá-lo regredir à condição de um bufão puritano (o que a personagem
267 “Uma improvisação aplicada a um texto de repertório é uma operação hermenêutica, é um estudo.” In
A. M. Silva, “O quarto ‘pê’: Entrevista com Nuno Cardoso”, op. cit., p. 8. 268 L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op.cit., p. 128.
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em parte requer), rasurando os distorcidos traços de profeta ou patriarca bíblico que a
nossa leitura lhe imputa. Nas páginas do jornal Público, o crítico e dramaturgo Jorge
Louraço Figueira não destrinçou prestações, emitindo um parecer amplamente favorável
ao elenco de Desejo: “Os atores interpretam o texto com impulsividade, a capacidade de
escuta e o caráter lúdico que são indispensáveis a um elenco feito de talento e
experiência como este.”269
Alguns achados da encenação de Nuno Cardoso merecem também a nossa
ponderação. Um deles diz respeito ao quadro de abertura, não previsto pelo texto
o’neilliano: enquanto escutamos a canção do gold rush numa versão litúrgica, e todo o
cenário se vai gradualmente iluminando, vemos Eben no interior da sala de visitas – sob
uma luz ténue, embala-se a si próprio numa cadeira de baloiço. Com uma sagaz
economia expressiva, esta cena apócrifa conta-nos muito sobre Eben e a sua vinculação
umbilical à mãe morta, bem como sobre essa misteriosa divisão da casa, onde o corpo
da mãe estivera em câmara ardente e que, desde então, permanecera encerrada e de
persianas corridas. Como vimos nos capítulos precedentes, a peça de O’Neill dá-nos a
ver essa sala da casa dos Cabot como um mausoléu – “sala desgraciosa e pesada como
um sepulcro em que a família tivesse sido enterrada viva” [II Parte, Cena 3] – e
simultaneamente como uma alcova nupcial, pois no seu interior se consuma uma ilícita
noite de núpcias. Mas, quer como túmulo quer como tálamo, trata-se de uma câmara
materna, pois Eben e Abbie praticam aí um coito incestuoso: ela não só é a sua madrasta
como, nesse reduto habitado por estranhas forças, emula e incorpora a mãe morta. Tudo
isto está já contido na peça de O’Neill. Interessantemente, a encenação de Nuno
Cardoso antecipa-o (ou prepara-o) com o seu quadro de abertura: ao mostrar-nos Eben
no interior do aposento maternal, embalando-se na cadeira de baloiço, é como se o
víssemos no seu berço – ou no útero materno. Nesse compartimento, envolvido por um
tule diáfano, ele está na sua placenta, efetuando trocas nutritivas com a progenitora.
Quando finalmente o palco se ilumina por completo (sentimo-nos tentados a dizer:
quando a representação dá à luz), vemo-lo a abandonar a matriz, atravessando a cozinha
rumo ao exterior: vem como uma criança estremunhada, e traz vestido um figurino não
previsto por O’Neill: o avental da mãe. Instantes depois, reivindicará: “Saio à minha
mãe, até à última gota de sangue!” [I Parte, Cena 2].
269 Jorge Louraço Figueira, “Desejo e meio”, Público: P2 (21 Dez. 2012), p. 53.
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Outra inventiva subversão proposta pela encenação tem lugar nas Cenas 2 e 3 da
II Parte, que representam o turning point da ação dramática: é a noite em que Ephraim
conta a ‘sua’ história a Abbie – o dia em que ali chegou, há cinquenta anos; o casamento
com a mãe de Eben; a disputa pela herdade em tribunal; a vida com os filhos; o
chamamento divino para que procurasse uma “Rosa de Sião” para o seu deserto –, mas
também em que Abbie e Eben se acometem fisicamente, ora cobrindo-se de beijos, ora
repelindo-se com violência, e que culmina na ‘violação’ de um aposento selado desde a
morte da mãe – a mística sala de visitas onde ocorre a cópula incestuosa. É uma noite
que a didascália da Cena 2 descreve como invulgarmente quente e que a encenação
converte numa noite sufocante que produz uma tempestade elétrica sobre a herdade
(com relâmpagos e trovões que a sonoplastia e o desenho de luz mimeticamente
engendram). O que há de incisivo na intuição meteorológica de uma descarga elétrica é
o facto de, precisamente nas duas cenas em causa, se manifestar poderosamente uma
força exógena, tão coerciva e inelutável quanto a de um fenómeno eletromagnético.
Toda essa noite ressuma não só carnalidade, como também um excitante ocultismo: é a
convicção de que “há coisas que remexem no escuro” e que levam Cabot a acoitar-se
junto das vacas; é o seu pungente rogo, reminiscente dos Salmos (“Deus Todo-
Poderoso, das trevas clamo!”); é o cruzamento do olhar entre Abbie e Eben através da
parede, como fossem dotados de uma perceção extrassensorial; é a assunção de Abbie
como “profeta” e, pouco depois, a perceção mediúnica da ação de “qualquer coisa”; é a
invocação mediúnica da mãe por parte de Eben e a lasciva incorporação da progenitora
morta por parte de Abbie… Ao desencadear uma tempestade elétrica que prepara e
acompanha esta sucessão cumulativa de pequenos prodígios do oculto, a encenação
evoca the Force behind que sempre ocupou O’Neill: algo maior do que o homem, que o
excede e obscuramente preside ao seu destino.270
Apesar destas pontuais invenções (ou atendendo à sua natureza), temos em
Desejo Sob os Ulmeiros uma encenação respeitosa, isto é, uma encenação que respeita a
natureza do texto de Eugene O’Neill e se esforça por jogar segundo as regras que ele
institui. Talvez por isso, na nota que assina na abertura do programa de sala, Nuno
Cardoso afirme pretender, com o espetáculo, “fazer um teatro digno e honesto”.271 O
que significa isto? A nosso ver, que o encenador não teve a ambição ou a pretensão de
270 In T. Bogard/J. Bryer (ed.), Selected Letters of Eugene O’Neill, op. cit., p. 195. 271 N. Cardoso, [Nota introdutória ao espetáculo], op. cit., p. 4.
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subverter o texto, de se lhe impor ou de construir sobre ele um ponto de vista ‘original’,
mas de o servir ou, se se preferir, acionar: “Resta o desejo de levar à cena os textos de
O’Neill pela excelência das histórias contadas, pela acuidade dos seus diálogos e pela
força das suas personagens”.272 À atitude não impositiva por parte de um encenador
chamou o ensaísta e dramaturgista António M. Feijó “agnosticismo”,273 talvez porque,
com ela, o encenador não se toma por criador – leia-se, demiurgo – ou simplesmente
porque não assume já a sua visão pessoal como um absoluto.274 Numa conversa sobre a
sua encenação de O Tio Vânia de Tchékhov, Nuno Carinhas reclamava para si uma
atitude afim, embora enunciando-a em termos diversos: “Enquanto encenador de
repertório, não escrevo ao lado do texto do autor. Sou reverente.”275 Analogamente, em
Desejo Sob os Ulmeiros, Nuno Cardoso não sobrepõe à escrita de O’Neill uma outra
escrita; não fala por cima da voz do autor, mas empenha-se em aclará-la, torná-la
audível. É pouco? Seria uma ingenuidade tomar esta honestidade, agnosticismo ou
reverência – or what you will – como expressão de uma neutralidade artística que
redundaria fatalmente num teatro linfático, inócuo. O que parece um gesto de renúncia
ou humildade pode constituir, afinal, uma temeridade. No caso de Desejo Sob os
Ulmeiros, estamos perante um texto que, aspirando à tragédia, adquiriu feições de
melodrama276 – género árduo que implica a recusa do cinismo e a superação do medo
272 Idem, ibidem. Itálico nosso. 273 António M. Feijó/Ricardo Pais, “Universos absolutamente plurais: De La Castro à Castro”, in João
Luís Pereira (ed.), Castro: Manual de Leitura, Porto, Teatro Nacional São João, 2003, p. 8. 274 Aludimos a uma questão complexa, que, no limite, nos levaria a perguntar se “o progresso de um
artista é um contínuo autossacrifício, uma contínua extinção da personalidade”, como convictamente
defendeu Eliot. T.S. Eliot, “Tradition and the individual talent”, in Selected Essays, London, Faber and
Faber, 1957, p. 17. 275 Nuno Carinhas et al., “Vânia na Rua das Oliveiras”, in João Luís Pereira (ed.), O Tio Vânia: Cadernos
Tchékhov Vol. 1, Porto, Teatro Nacional São João, 2005, p. 38. 276 Tocamos de novo numa questão complexa, que exigiria ponderação. Note-se, por ora, que melodrama
e tragédia possuem um parentesco que um autor como Patrice Pavis não deixou de assinalar: “O
melodrama é a finalização, a forma paródica, sem o saber, da tragédia clássica, cujo lado heróico,
sentimental e trágico teria sido sublinhado ao máximo, ao multiplicar os golpes de teatro, os
reconhecimentos e comentários trágicos dos heróis.” (Patrice Pavis, Dicionário de Teatro, trad. J.
Guinsburg/Maria Lúcia Pereira, São Paulo, Editora Perspectiva, 1999, p. 238.) Por outro lado, refira-se
que o melodrama o’neilliano difere significativamente daqueles que caracterizaram o teatro norte-
americano do século XIX e que tem em O Conde de Monte Cristo (que o pai do dramaturgo protagonizou
durante décadas) um caso exemplar. No entanto, vários críticos identificaram melodramas em peças como
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do ridículo (essa coisa mortífera). Um melodrama requer a coragem de caminhar sobre
o arame: é preciso que haja verdade, não havendo verosimilhança; que seja crível, não
sendo plausível.277 Se, como notava Jorge Louraço Figueira, “na hora da verdade,
quando a personagem feminina revela, primeiro, que matou o filho, e depois, como
matou o filho, a sala riu às gargalhadas”,278 não foi porque a encenação promovesse a
irrisão do seu próprio objeto, ou porque se distanciasse ironicamente do magma
melodramático da III Parte de Desejo Sob os Ulmeiros. Pelo contrário, a encenação
depositou crédito no enredo dramático e levou a sério o som e a fúria das personagens.
Teria alguma modalização interpretativa da sua cobiça e escárnio, da sua ira e paixão
produzido uma diferença na receção? Por que motivo, como enuncia Louraço Figueira,
“o melodrama, neste início de século, já foge para a farsa”?279 Terá Desejo Sob os
Ulmeiros envelhecido? Teria razão Jorge Listopad quando, em 1990, afirmou que a
peça de O’Neill é hoje “mais interessante para discutir do que para ver”?280 Terá a razão
cínica que, segundo Peter Sloterdijk,281 preside ao nosso tempo instaurado um
paradigma epistémico, fenomenológico ou afetivo incompatível com o melodrama? Nos
Beyond the Horizon e Desejo Sob os Ulmeiros, embora a complexidade psicológica das personagens e o
grau de elaboração dos temas de O’Neill elevem a sua obra acima dos estafados melodramas de matiné do
final do século XIX. Vide R. M. Dowling, Critical Companion to Eugene O’Neill, op. cit., pp. 651-652.
Sobre a influência do melodrama do século XIX na obra de O’Neill vide Matthew H. Wikander, “O’Neill
and the cult of sincerity”, in The Cambridge Companion To Eugene O’Neill, op. cit., p. 217-235. 277 Num excurso sobre Douglas Sirk e R.W. Fassbinder (príncipes do melodrama, ambos homens de
teatro), Edmundo Cordeiro dá conta da dificuldade de definir o melodrama, enunciando várias tentativas
que, apesar de considerar insatisfatórias, nos aproximam da sua especificidade: o género pode ser
caracterizado por “certas figuras, como a linha do destino – a sina, a queda; o mau encontro; o auxílio
involuntário; a obstinação; a recompensa, o remédio, a redenção; e, finalmente, o happy end”; atribuem-
se-lhe também traços como “o exagero e o excesso (o melodrama trabalha com emoções fortes e
extremas), o moralismo (o restabelecimento, a vitória do justo, são motivos muitas vezes determinantes) e
mesmo a pedagogia”; podemos ainda invocar “o excesso emocional, as emoções primárias, o espetáculo”.
(Edmundo Cordeiro, “Sirk e Fassbinder: O que é o melodrama?”, Livro de Actas – 4.º SOPCOM,
Universidade de Aveiro, 2005, pp. 1135-1136.) De algum modo, muitos destes signos melodramáticos
são reconhecíveis em Desejo Sob os Ulmeiros. 278 J. L. Figueira, “Desejo e meio”, op. cit., p. 53. 279 Idem, ibidem. 280 J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”, op. cit., p. 28. 281 Peter Sloterdijk propõe uma análise da sociedade contemporânea a partir do que considera ser uma
nova configuração epocal: o nosso tempo – esta é a sua tese – é caracterizado pelo triunfo do cinismo.
Vide Peter Sloterdijk, Crítica da Razão Cínica, trad. Manuel Resende, Lisboa, Relógio D’Água, 2011.
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Fragmentos de um Discurso Amoroso, Barthes conta que, no filme A Marquesa d’O de
Eric Rohmer, as personagens choram e os espectadores riem, o que talvez seja indício
de que qualquer coisa mudou impercetivelmente.282 Que mutação genética se terá
operado na nossa sensibilidade? Ter-se-á sofisticado, ou embotado? Será que não foi o
texto que envelheceu, mas o espectador que envileceu? Será que, à semelhança do seu
longínquo e nobre parente – a tragédia –, o melodrama viu esgotadas as suas condições
de possibilidade? Ter-se-á abrigado no reduto de algum cinema – o de Sirk, Fassbinder,
talvez Almodóvar? Questões que Desejo Sob os Ulmeiros coloca hoje – em tom de
desafio – à encenação e à reflexão teatral.
282 Vide Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, 1995, p. 73.
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Conclusão
CABOT: Torna a orar… para compreenderes.
EUGENE O’NEILL, Desejo Sob os Ulmeiros
“Dis-cursos é, originariamente, a ação de correr para aqui e para ali, são as idas
e vindas, as ‘tarefas’, as ‘intrigas’.”283 É deste passo dos Fragmentos de um Discurso
Amoroso que nos lembramos, agora que somos chegados ao termo do nosso vaivém, da
nossa correria, repleta de pequenas tarefas e intrigas, em volta de Desejo Sob os
Ulmeiros. Talvez pudéssemos falar de uma viagem de circum-navegação, pois fomos
conduzidos da Nova Inglaterra dos Cabot (e dos O’Neill) à Atenas dos poetas trágicos, à
Jerusalém dos patriarcas hebreus e apóstolos cristãos e, por fim, ao palco do teatro
português contemporâneo. A metáfora marítima harmoniza-se com o imaginário
conradiano de Eugene O’Neill – ele que, em criança, desenhava navios; que, antes de
ser proclamado o maior dramaturgo americano,284 foi marinheiro de um navio
norueguês chamado Racine;285 que nas primeiras peças (ou em toda a sua obra
dramática?) escreveu sobre náufragos…286
Todavia, além de imodesta, a formulação é impertinente, pois o que aqui se
expôs configura menos um descobrimento do que um argumento – na sedutora
etimologia barthesiana, “exposição, relato, sumário, pequeno drama, história
inventada”.287 No fundo, dramatizámos (no sentido originário de pôr em ação) a
influência que a tragédia clássica e as Escrituras exercem sobre Desejo Sob os Ulmeiros
e que, desde há muito, vem sendo reconhecida, de formas e em graus diversos, por
críticos literários, comentadores, biógrafos e investigadores teatrais. Estamos
convencidos de que, para além de um certa sistematização, inflacionámos, em alguns
283 Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70, 1995, p. 11. 284 Brooks Atkinson, o mais influente crítico de teatro norte-americano de meados do século XX, escrevia
no obituário de O’Neill: “Um gigante deixou a terra; um grande espírito e nosso maior dramaturgo
deixou-nos e o nosso mundo teatral é agora mais pequeno.” (The New York Times, 13 de Dezembro de
1953.) Apud Frederic I. Carpenter, Eugene O’Neill, Rio de Janeiro, Lidador, 1966, p. 19. 285 Vide L. Sheaffer, O’Neill: Son and Playwright, op. cit., pp. 160-161 e R. M. Dowling, Critical
Companion to Eugene O’Neill, op. cit., pp. 549-551. 286 Referimo-nos a Thirst, Fog e Warnings [1914]. 287 R. Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, op. cit., p. 13.
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pontos, a dívida soberana que a peça de O’Neill contraiu junto desses dois erários
narrativos, míticos e simbólicos (arriscando-nos, com isso, a tornar-nos seus
fiadores…), ao considerarmos aspetos que têm ficado de fora dessa contabilidade
analítica: se, no caso da filiação à tragédia clássica, julgamos ter aclarado os contornos
da simpatia estrutural da ação dramática de Desejo face ao Hipólito de Eurípides,
minudenciando os reflexos e refrações que as respetivas figuras entre si estabelecem e
produzem, no caso do vínculo às Sagradas Escrituras, estamos certos de ter ido mais
longe num território como a natureza biblicamente escandalosa (skándalon, pedra de
tropeço) das personagens o’neillianas, que vem conjugar-se poderosamente com o pano
de fundo de uma herdade árida em que é necessário fazer “nascer trigo das pedras”
(imagem reminiscente de uma das tentações de Jesus no deserto da Judeia [Lc. 4.2-3])
ou com a homilética granítica de Ephraim Cabot (“Deus está nas pedras!”).
Mas, apesar de calcularmos esta dívida, o nosso estudo não constitui um
exercício de fiscalidade literária: na verdade, mais do que a contabilidade exaustiva de
paralelismos, citações ou ressonâncias – demanda infindável (e talvez ociosa), porque é
sempre possível aventar, através de um levantamento indicial, que Eugene O’Neill
evoca isto ou aquilo da tragédia clássica ou das Escrituras –, procurámos sobretudo
compreender como os arquétipos clássicos e as imagens bíblicas identificados operam
no interior do texto dramático e com que consequências, em termos de expressividade e
sentido. Usando uma formulação de Nietzsche, o filósofo de eleição de Eugene
O’Neill,288 digamos que nos interessou não apenas saber o que é, mas também perceber
288 Recuperamos dois breves passos de um dos volumes de Louis Sheaffer: “Em contraste com as
declaradas reservas em relação a Freud […], O’Neill sempre admirou Nietzsche, que lera pela primeira
vez quando foi para Princeton; em Campsea, leu de novo com prazer a Gaia Ciência do filósofo
(‘material admirável’) e O Nascimento da Tragédia (‘o mais estimulante livro sobre teatro alguma vez
escrito!’). Lia com absoluta concentração; uma visita frequente dos O’Neill notou que, quando ‘imergia
na leitura de um livro, era necessário algum tempo até que fosse possível trazê-lo de novo ao presente’.”
(L. Sheaffer, O’Neill: Son and Artist, op. cit., p. 174.) “Assim Falou Zaratustra, afirmou O’Neill,
‘influenciou-me mais do que qualquer outro livro que eu tenha lido’.” Idem, p. 256. Uma admiração que
ficou fixada em Longa Jornada para a Noite: “JAMIE : A tua poesia não é muito alegre. Nem o é o que lês
e dizes admirar. Por exemplo, o teu bem-amado, o que tem um nome que nem se pode pronunciar!//
EDMUND: Nietzsche. Não sabes de que estás a falar. Nunca o leste.” E. O’Neill, Jornada para a Noite, op.
cit., p. 93.
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como chega a ser o que é.289 Poderíamos ainda dizer que o que nos ocupou não foi
‘descobrir’ o que O’Neill usa em Desejo Sob os Ulmeiros (o que está, em boa medida,
contabilizado, sobretudo no que à herança clássica diz respeito), mas o que faz e
acontece com aquilo que usa. Daí que, como acima afirmámos, a nossa dissertação se
afigure menos um descobrimento do que um argumento. Sem pretender prolongar ou
adensar esta explicação, digamos que, ao mobilizar o mito de Édipo, as tragédias
Medeia e Hipólito, a simbólica bíblica ou a narrativa veterotestamentária de Jacob,
pretendemos avaliar o que se passa (o que se experiencia) naquilo que se passa (naquilo
que ocorre) em Desejo Sob os Ulmeiros.
Da realização deste estudo parece-nos ainda possível inferir uma distinção de
natureza nas conexões intertextuais que a peça de Eugene O’Neill estabelece com os
arquivos clássico e bíblico. Ainda que um enunciado deste tipo deva ser lido
prudentemente e em termos aproximativos, podemos perspetivar a apropriação que o
dramaturgo norte-americano realiza das duas heranças através das noções botânicas de
raiz e rizoma, conceitos tematizados por Felix Guattari e Gilles Deleuze e por nós
invocados no ponto 3.3.290 Tendo em consideração o caráter cartesiano e relativamente
linear da projeção da tragédia de Eurípides no drama o’neilliano (o que julgamos ter
ficado suficientemente demonstrado nos pontos 2.3 e 2.4), inclinamo-nos a designar o
Hipólito como a raiz dessa árvore que é Desejo Sob os Ulmeiros – “o fundamento-raiz,
Grund, roots e foundations”.291 Em alguma medida, o texto clássico constitui o modelo
ou o eixo da nossa peça; estabelece com ela, por assim dizer, uma relação hierárquica; é,
pelo menos, o seu primeiro ponto de ramificação. (A nosso ver, para além do programa
trágico que O’Neill estabeleceu para si mesmo reforçar esta hipótese, o facto de a
própria formulação “sob os ulmeiros” corresponder a um extrato do Hipólito parece
caucionar os termos desta associação arborescente.) Ao invés, a presença das Escrituras
no enredo de Desejo manifesta-se rizomaticamente: é acentrada, plural, dinâmica. A
aparição de figuras ou imagens bíblicas não apresenta a mesma consistência radical que
289 Parafraseamos o subtítulo do livro póstumo de Friedrich Nietzsche: Ecce Homo – Como se chega a ser
o que se é. 290 Vide Sousa Dias, Lógica do Acontecimento: Introdução à Filosofia de Deleuze, Lisboa, Documenta,
2012, pp. 115-119. 291 G. Deleuze/F. Guattari, Mille Plateaux, op. cit., pp. 27-28.
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a tragédia clássica – é, antes, multiforme e multidimensional, o que a torna tão difícil de
fixar: essas manifestações são “memórias curtas”, “linhas de fuga”.292
Diferentemente das árvores ou das suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro
ponto qualquer e cada uma das suas características não aponta necessariamente para
características da mesma natureza, põe em jogo regimes de signos muito diferentes […]. O
rizoma não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças.293
Em alternativa ao aparato conceptual de Deleuze/Guattari, ou
complementarmente, poderíamos talvez expressar esta diferença entre a herança clássica
e a herança bíblica em Desejo Sob os Ulmeiros recorrendo à identidade de Eben, ele
próprio resultado de um problemático cruzamento de duas heranças genéticas: os irmãos
Simeon e Peter garantem que ele é “tal e qual o pai – escrito e escarrado”; Ephraim
emite a opinião contrária, e o próprio jovem assevera sair à mãe “até à última gota de
sangue”. Analogamente, a tragédia grega é o pai de Desejo, pois a semelhança
fisionómica é por demais evidente; a Bíblia é a mãe, pois a afinidade é menos imediata
e, para ser esclarecida, exige o conhecimento da interioridade do filho. A revelação
destes ascendentes na constituição dramática de Desejo Sob Ulmeiros parece,
curiosamente, reconduzir-nos à absoluta convicção que paira sobre toda a obra de
Eugene O’Neill e à qual, de forma pungente, Mary Tyrone dá voz: “O passado é o
presente, não é? E também o futuro.”294
Estamos conscientes de que, ao fixar a nossa atenção nos arquivos ático e
bíblico, incorremos no risco de malbaratar outras associações possíveis (Strindberg,
Nietzsche, Shakespeare, etc.): assim que adotamos um ângulo de análise, um ponto de
vista, imediatamente renunciamos a outros. Há sempre a tendência para levar demasiado
longe a demonstração de uma ‘tese’, um pouco à semelhança do que, segundo Barthes,
acontece no discurso amoroso, que se adianta e deixa para trás o objeto do amor – “é o
meu desejo que eu desejo…”295 Afinal, estamos ansiosos por detetar certas
correspondências, por escutar determinadas ressonâncias. Também neste campo se
aplica o preceito evangélico: crer para ver. A consciência que possuímos deste perigo
292 G. Deleuze/F. Guattari, Rizoma, op. cit., p. 52. 293 Idem, p. 51. 294 E. O’Neill, Jornada para a Noite, op. cit., p. 103. 295 R. Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, op. cit., p. 40.
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talvez nos tenha mantido afastados de conjeturas precipitadas, ou infundadas. Ainda
assim, não teremos usado suficientemente a palavra ‘talvez’ – ao que parece, a “palavra-
chave”296 das peças de Beckett. Por outro lado, e considerando o facto de termos
desejado que o nosso estudo excedesse o estatuto de índice ou inventário, teremos
deixado de fora certas conexões que mereceriam, sem dúvida, ponderação: no caso da
herança clássica, ao equacionarmos as correspondências Teseu/Ephraim e
Hipólito/Eben, deixámos na sombra a incerta (mas talvez surpreendente) convergência
entre Ephraim e Hipólito, pois o velho Cabot invoca recorrentemente o “Deus Todo-
Poderoso” e prefere a companhia dos animais, assim como a personagem euripidiana
invoca Ártemis e privilegia as caçadas ao comércio com os humanos, especialmente as
mulheres. No caso da herança bíblica, relegámos a simetria entre Eben/Abbie e
Adão/Eva, por exemplo, que a própria assonância, em língua inglesa, entre Eben e Eden
parecia insinuar. Em favor de uma hipótese como esta, poderíamos aventar que o
abandono da herdade – território edénico que Eben e Abbie tanto desejaram para si
próprios e no qual os ulmeiros são uma espécie de ‘árvore do bem e do mal’ – lembra a
expulsão do Paraíso: não por acaso, o casal sai em direção a leste (como na narrativa do
Génesis) e o Xerife e seus ajudantes surgem-nos como uma variação dos querubins que
executam esse despejo. A solidão de Ephraim numa “quinta que é um gosto” [III Parte,
Cena 4] é, de resto, análoga à solidão edénica de um Deus traído pelas suas criaturas e
da sua companhia privado.
Quanto à avaliação da posteridade cénica de Desejo Sob os Ulmeiros em
Portugal, dir-se-á que foi amplamente comprometida pela censura moral que o Estado
Novo impôs não apenas aos textos com perigosas ressonâncias políticas – é o caso
paradigmático da obra dramática de um Bertolt Brecht –, mas também àqueles que
maculavam uma determinada (e acanhada) paisagem moral. Quando finalmente a peça
de O’Neill se estreou em Portugal, em 1990, houve quem, à parte os méritos da
encenação de João Lourenço, a considerasse “envelhecida”.297 A questão a que a nossa
296 “A palavra-chave das minhas peças é ‘talvez’.” Samuel Beckett apud Michael Worton, “Waiting for
Godot and Endgame: theatre as text”, in John Pilling (ed.), The Cambridge Companion to Beckett,
Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p. 67. 297 J. Listopad, “Ciclo de desejos luso-americanos”, op. cit., p. 28. Carlos Porto subscreveu esta opinião,
deduzida da encenação do 1990: “A julgar pelo espetáculo do Novo Grupo, o texto de Eugene O’Neill
envelheceu mal e foi, para nós, vítima do tempo que levou a chegar cá.” C. Porto, “Desejo e amor”, op.
cit.
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argumentação conduz obriga a uma deslocação de perspetiva: terá sido antes o
espectador que envileceu, subjugado pelo triunfo da razão cínica? Em todo o caso, a
análise demorada a que nos foi possível submeter a montagem de 2011, assinada por
Nuno Cardoso, permitiu-nos pôr em tensão noções exploradas nos capítulos 2 e 3, bem
como avaliar os árduos desafios que Desejo Sob os Ulmeiros parece colocar à sua
tradução, encenação e representação: ao seu tradutor, em virtude da variante dialetal que
a peça é escrita (algo que foi tido em conta, por exemplo, por Matthias Langhoff, numa
encenação de 1992, no Théâtre National de Bretagne); ao seu encenador, por causa das
exigências naturalistas do texto o’neilliano; ao ator, porque lida com personagens
ambivalentes e com um magma melodramático que é necessário assumir com verdade.
Disse o pintor George Braque que “as provas cansam a verdade”.298 As nossas
explicações, argumentos, conjeturas deixam o ‘objeto de estudo’ num estado de
exaustão – ou, como se diz num Português do Brasil, cansam a sua beleza. A uma
personagem de Robert Walser, escritor assaz enigmático, chega a ser pedido, em
sonhos: “Ah, pára de interpretar.”299 Como restaurar a beleza, a verdade, o mistério de
um texto depois de o termos sobrecarregado com o fardo da nossa interpretação?
Através da linguagem indireta, íntima, frugal de um poema? Talvez. Encerramos o
excurso que dedicamos a Desejo Sob os Ulmeiros com versos de Louise Glück, poeta
norte-americana, convencidos de que neles se entrevê – de relance, apenas – o fundo da
tragédia, melodrama e/ou romance dramático de Eugene O’Neill. Disse outro pintor,
Willem de Kooning, que o sentido é “um encontro, como um relâmpago”…300
ULMEIROS
Todo o dia tentei distinguir
necessidade e desejo. Agora, no escuro,
sinto apenas uma amarga tristeza por nós,
os carpinteiros, os que aplainamos a madeira,
porque tenho estado a observar
pacientemente estes ulmeiros
298 Apud George Steiner, Presenças Reais: As Artes do Sentido, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa,
Editorial Presença, 1993, p. 9. 299 Robert Walser, Jakob von Gunten, trad. Isabel Castro Silva, Lisboa, Relógio D’Água, p. 158. 300 Apud S. Sontag, Contra a Interpretação e Outros Ensaios, op. cit., p. 17.
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e vi que o processo que cria
a contorcida, estacionária árvore
é o tormento, e compreendi
que não dará outras formas senão tortuosas formas.301
301 “All day I tried to distinguish/ need from desire. Now, in the dark,/ I feel only bitter sadness for us,/
the builders, the planers of wood,/ because I have been looking/ steadily at these elms/ and seen the
process that creates/ the writhing, stationary tree/ is torment, and have understood/ it will make no forms
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FIGUEIRA, Jorge Louraço, “Desejo e meio”, Público: P2 (21 Dez. 2012).
LISTOPAD, Jorge, “Ciclo de desejos luso-americanos”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias (16 Out.
1990).
LÍVIO , Tito, “Conflito edipiano comanda relação de amantes”, A Capital (11 Out. 1990).
MENDES, Anabela, “Duas janelas para a América”, Público (4 Out. 1990).
M IDÕES, Fernando, “Altos e baixos sob os ulmeiros”, Diário de Notícias (13 Out. 1990).
NADAIS, Inês, “California dreaming, enquanto a tempestade se abate sobre uma casa que podia ser
nossa”, Público: P2 (24 Jun. 2011).
PORTO, Carlos, “Desejo e amor”, in Diário de Lisboa (9 Out. 1990).
SEABRA, Augusto M., “Reflexões teatrais (bis)”, Público: Ípsilon (8 Jun. 2012).
SERÔDIO, Maria Helena, “O amor como enunciação trágica em O’Neill e Shepard”, O Jornal (2 Nov.
1990).
VASQUES, Eugénia, “Pelo teatro fora”, in Expresso (5 Out. 1990).
VASQUES, Eugénia, “Serenata alentejana”, Expresso: Cartaz (16 Mai. 1991).
- 120 -
Anexo I
[Ficha artística Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]
Desejo Sob os Ulmeiros
de Eugene O’Neill
versão João Lourenço, Vera San Payo de Lemos
dramaturgia Vera San Payo de Lemos
encenação João Lourenço
música Eduardo Paes Mamede
cenário José Carlos Barros
figurinos António Filipe
luz João Lourenço, Melim Teixeira
interpretação Irene Cruz Abbie Putnam; Rogério Paulo Ephraim Cabot; Fernando
Luís Eben; Francisco Pestana Peter, Convidado; Melim Teixeira Simeon, Convidado;
António Filipe Xerife; Joaquim Monchique Ajudante; Alexandra Sedas Convidada;
Arnaldo Silva Convidado; Cristina Carvalhal Convidada; Élio Correia Convidado;
Luísa Salgueiro Convidada; Zita Esteves Convidada; Alfredo Nunes Violinista
produção Novo Grupo/Teatro Aberto
estreia 29 Setembro 1990 | Teatro Aberto [antigo] (Lisboa)
classificação etária M/12 anos
- 121 -
Anexo II
[Fotografia do elenco principal Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]
Na foto: Francisco Pestana, Rogério Paulo, Irene Cruz, Francisco Luís e Melim Teixeira
© Novo Grupo de Teatro
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Anexo III
[Fotografias de cena Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]
Na foto: Francisco Luís e Irene Cruz.
Na foto: Melim Teixeira e Francisco Pestana.
© Novo Grupo de Teatro
- 123 -
Na foto: Francisco Luís, Irene Cruz e António Filipe.
Na foto: Francisco Luís e Irene Cruz.
© Novo Grupo de Teatro
- 124 -
Anexo IV
[Programa de sala Desejo Sob os Ulmeiros, enc. João Lourenço, 1990]
[Capa do Programa de sala (imagem do cartaz António Inverno). Edição Novo Grupo/Teatro Aberto.]
[Interior do Programa de Sala. Edição Novo Grupo/Teatro Aberto.]
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Anexo V
[Ficha artística Desejo Sob os Ulmeiros, enc. Nuno Cardoso, 2011]
Desejo Sob os Ulmeiros
de Eugene O’Neill
tradução Jorge de Sena
encenação Nuno Cardoso
cenografia F. Ribeiro
figurinos Cristina Costa
desenho de luz Pedro Vieira de Carvalho
sonoplastia Luís Aly
assistência de encenação Victor Hugo Pontes
interpretação
Afonso Santos Peter; Lavrador 2; Ajudante de Xerife
António Capelo Ephraim Cabot
Catarina Lacerda Abbie Putnam
Cláudio Silva Eben
Pedro Frias Simeon; Lavrador 1; Xerife
co-produção Ao Cabo Teatro, ACE/Teatro do Bolhão
estreia 24 Junho 2011 | Teatro Carlos Alberto (Porto)
classificação etária M/16 anos
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Anexo VI
[Fotografias de cena Desejo Sob os Ulmeiros, enc. Nuno Cardoso, 2011]
Na foto: Pedro Frias e Afonso Santos.
Na foto: António Capelo, Catarina Lacerda e Cláudio Silva.
© João Tuna
- 127 -
Na foto: Catarina Lacerda e Cláudio Silva.
Na foto: António Capelo e Catarina Lacerda.
© João Tuna
- 128 -
Na foto: Cláudio Silva e Catarina Lacerda.
Na foto: Cláudio Silva e Catarina Lacerda.
© João Tuna
- 129 -
Na foto: António Capelo e Cláudio Silva.
Na foto: António Capelo, Cláudio Silva e Catarina Lacerda.
© João Tuna