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Editorial Volume 3 - Portal de Periódicos UFPE

Date post: 07-Apr-2023
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Hipertextus Revista Digital (www.hipertextus.net) 1 Editorial Volume 3 Penso no perigoso fim do humanismo literário enquanto utopia da formação humana por meio de práticas de escrita e de leitura que promovam a atitude paciente e que eduquem para se julgar com circunspecção e manter os ouvidos abertos. Peter Sloterdijk Não lamento a morte de um conceito tão profundamente enraizado em projetos de dominação e de opressão. Katherine Hayles Antes de proceder à apresentação deste terceiro número da Revista Digital Hipertextus, focalizado no modo como as questões especificamente literárias são tratadas em face do advento do computador e das novas tecnologias da comunicação, gostaria de comentar brevemente duas cenas de obras que poderíamos classificar como pós-utópicas ou distópicas, pelo modo apocalíptico como concebem o futuro da humanidade a partir da destruição da cultura livresca que gerou, fundamentou e alimentou séculos de humanismo. As cenas foram retiradas dos universos opressivos descritos nos romances: 1984, de George Orwell, publicado em 1948, filmado por Michael Radford em 1984, e amplamente citado quando da criação dos reality shows na linha do Big Brother, por ter inaugurado a idéia do “Grande Irmão” e a proposta do controle social dos espaços público e privado através de câmeras; e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado em 1953 e filmado em 1966 por François Truffaut. A trama de Fahrenheit 451 apresenta vários pontos de contato com o seu antecedente, 1984, sobretudo no que diz respeito à linguagem como reduto de
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Hipertextus Revista Digital (www.hipertextus.net) 1

Editorial Volume 3

Penso no perigoso fim do humanismo literário enquanto utopia da formação humana por meio de práticas de

escrita e de leitura que promovam a atitude paciente e que eduquem para se julgar com circunspecção e

manter os ouvidos abertos.

Peter Sloterdijk

Não lamento a morte de um conceito tão profundamente

enraizado em projetos de dominação e de opressão.

Katherine Hayles

Antes de proceder à apresentação deste terceiro número da Revista Digital

Hipertextus, focalizado no modo como as questões especificamente literárias são

tratadas em face do advento do computador e das novas tecnologias da comunicação,

gostaria de comentar brevemente duas cenas de obras que poderíamos classificar

como pós-utópicas ou distópicas, pelo modo apocalíptico como concebem o futuro da

humanidade a partir da destruição da cultura livresca que gerou, fundamentou e

alimentou séculos de humanismo.

As cenas foram retiradas dos universos opressivos descritos nos romances: 1984, de

George Orwell, publicado em 1948, filmado por Michael Radford em 1984, e

amplamente citado quando da criação dos reality shows na linha do Big Brother, por

ter inaugurado a idéia do “Grande Irmão” e a proposta do controle social dos espaços

público e privado através de câmeras; e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado

em 1953 e filmado em 1966 por François Truffaut.

A trama de Fahrenheit 451 apresenta vários pontos de contato com o seu

antecedente, 1984, sobretudo no que diz respeito à linguagem como reduto de

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construção do humanismo e de garantia da preservação de seus valores na história.

Um dos pilares do controle social na ficção de Orwell é a Novilíngua, um processo de

destruição de palavras, que norteia uma das três máximas do sistema: “Ignorância é

Força” (ao lado de “Guerra é Paz” e “Liberdade é Escravidão”). O objetivo da

Novilíngua é estreitar a gama do pensamento, de modo a tornar a Crimidéia – a idéia

do crime – literalmente impossível, pois não haveria palavras para expressá-la. Os

habitantes desta distopia não só não lêem livros, como se comprazem em destruir

palavras, às dezenas, às centenas, todos os dias, reescrevendo um dicionário cada

vez mais sintético, cheio de abreviações e de siglas, expurgado das “imprecisões e

inúteis gradações de sentido” da língua original. O protagonista desta história, Winston

Smith, vive uma séria crise de identidade, e a sua insubordinação máxima se

concretiza na cena em que, encolhendo-se num vão de parede originalmente

destinado a uma estante de livros e, portanto, fora do alcance do telão que escrutina

o restante da casa, põe-se a escrever um livro à mão, o que “não era proibido” mas

que, se fosse descoberto, seria punido com pena de morte.

O romance Fahrenheit 451 também se passa numa época em que os livros configuram

uma ameaça ao sistema, numa sociedade onde eles são absolutamente proibidos.

Para exterminá-los, basta chamar os bombeiros – profissionais que outrora se

dedicavam à extinção de incêndios, mas que agora são os responsáveis pela

manutenção da ordem, queimando publicações e impedindo que o conhecimento se

dissemine como praga. Daí o título: 451 graus Fahrenheit é a temperatura de

combustão do papel. Para coroar a alienação em que vive essa nova sociedade,

anestesiada por informações triviais, as casas são dotadas de televisores que ocupam

paredes inteiras de cômodos e exibem “famílias” com as quais se pode dialogar, como

se estas fossem de fato reais. Neste cenário vive Guy Montag, um bombeiro que

também atravessa uma crise ideológica. Sua esposa passa o dia entretida com jogos

eletrônicos que realizam uma simulação vazia de interatividade, enquanto ele trabalha

arduamente para comprar-lhe a tão sonhada quarta parede de TV. Sua vida sem

sentido é transformada quando ele conhece Clarice, uma adolescente que reflete

sobre o mundo e o instiga a fazer o mesmo. O misterioso sumiço da menina leva

Montag a se rebelar contra a política estabelecida, e ele passa a esconder livros em

sua própria casa.

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Se a insubordinação máxima de Winston se configura no ato de escrever; a de Montag

se configura no ato de ler. Mas enquanto Winston procura se esconder da teletela

para escrever, Montag toma um livro nas mãos e se encaminha para a parede da sala,

ligando um botão. A tela se ilumina, sem imagens. Ele se senta e começa a ler o livro,

literalmente, “à luz da televisão”. O momento em que isso acontece é claramente

assinalado, no filme de Truffaut, por uma metáfora visual: essa imagem irônica e

curiosa que frisa a singularidade da distopia de Bradbury. Pois enquanto Orwell

escreveu seu livro sob o impacto dos regimes totalitários (nazismo e stalinismo),

Bradbury percebe o nascimento de uma forma mais sutil de totalitarismo: a indústria

cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético – a moral do senso comum. A

insubordinação, hoje, seria praticamente impossível, pois mesmo a leitura de livros se

faria “à luz” dos mecanismos de simplificação largamente exercitados nas pessoas

pelos meios de comunicação de massa, o que impossibilitaria a compreensão da

mensagem. Já não seria, portanto, necessário destruir palavras como na Novilíngua

de Orwell, e nem mesmo queimar livros, como no próprio enredo de Fahrenheit 451.

Essa visão negativista sobre o futuro do pensamento na era das mídias eletrônicas e

da cibercultura parece vir assombrando uma grande parcela de produtores e

consumidores de literatura através dos tempos. Mas nem todos partilham as idéias

aflitivas que proclamam o desaparecimento do livro e, com este, o fim do humanismo.

Muitos produtores e estudiosos da literatura, ao contrário, percebem uma provocação

interessante e enriquecedora no cenário atual, uma provocação que envolve a crítica

ao absolutismo da razão e à presunção antropocêntrica do sujeito racional. Para

esses, o pós-humano como condição assinala não o fim do “humano”, mas o fim de

certa concepção do humano, como diz Katherine Hayles: concepção aplicada, no

máximo, “àquela fração da humanidade que tinha riqueza, poder e disponibilidade

para conceitualizar-se a si mesma como seres autônomos exercendo sua vontade

através da escolha e da ação individual”.

Conscientes deste fato, autores de muitas obras importantes do século XX

promoveram o desmoronamento dos pilares de certas concepções do humanismo que

estruturaram e ainda estruturam as principais instituições sociais do Ocidente, e que

eram reproduzidas pelas estruturas convencionais do romance. Muitas dessas

inovações narrativas, como o questionamento da mimese, a quebra da linearidade

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temporal, a fragmentação do enredo, o pluriperspectivismo narrativo, a

intertextualidade declarada, o fim do monopólio do autor sobre o sentido através da

interatividade com o leitor, e a problematização da idéia do livro como mercadoria

antecipavam características que, futuramente, seriam próprias dos textos veiculados

no formato do hipertexto em meio eletrônico. Todas as obras literárias

verdadeiramente significativas sempre estiveram em sintonia com o seu tempo, e até

mais: com o futuro. Os avanços científicos e tecnológicos tornaram-se temas de todo

um gênero, a Ficção Científica, e inspiraram experimentalismos narrativos e poéticos

os mais diversos. A migração do texto da página do livro para a tela do computador

não impediu, antes incentivou, difundiu e democratizou a leitura, gerando novas e

inusitadas perspectivas criativas, tanto para os escritores quanto para os leitores.

Os doze textos aqui reunidos pretendem discutir esses temas, seja através da análise

de romances clássicos e modernos; seja através da leitura de poesia impressa e

digital; seja através de considerações sobre a sobrevivência da literatura no meio

virtual e a criação de novos gêneros especificamente voltados para as exigências e

possibilidades deste suporte; seja, ainda, através do cinema e do discurso publicitário

sobre o corpo humano e suas reconfigurações na contemporaneidade, que expandem

a noção de “interface” homem-máquina. São mencionadas desde obras como L'Ève

Future, de Auguste Villiers de l'Isle-Adam e a peça R.U.R.: Rossumovi univerzální

roboti, de Karel Čapek, que problematizam os limites entre o homem e o robô,

abordadas no texto de Márcio de Oliveira Bezerra, “Do Homo Sapiens à Mens

Humanata: a literatura do trans-humano”; o romance V., de Thomas Pynchon, alvo,

entre outras considerações sobre a tematização de conceitos científicos na literatura,

do texto de Andréa Coutinho, “Leitura literária e categorias exatas”; o romance

The.Powerbook, de Jeanete Winterson, construído sobre o layout das páginas de e-

mails trocados entre as personagens, analisado por Ana Cecília Acioli em seu ensaio

“Corpos sem corpos em The.Powerbook, de Jeanette Winterson”; até à discussão

mais teórica sobre a evolução dos meios de comunicação no artigo de Marcus

Petrônio Fernandes Iglesias, “A tecnologia como mediadora das interações humanas”

e à especulação sobre o fim ou a renovação do livro na era cibernética, no artigo de

Suzana Ferreira Paulino, “Livro tradicional & livro eletrônico: a (r)evolução do livro ou

uma ruptura definitiva?”. O conceito de “emergência” em poesia é tratado no artigo

“Vídeo-duração: morte e antropofagia em Tour de Augusto de Campos”, de Luciano

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Barbosa Justino; e em “Ciência e tecnologia na tradição literária pernambucana”, de

minha autoria, sobre os poetas Joaquim Cardozo, César Leal e Alberto da Cunha

Melo. Adriana Dória Matos e Fabiana Móes Miranda discutem os desdobramentos da

literatura na Internet, nos textos “Escritores de blogs: a web como espaço de criação

e discussão sobre literatura” e “Fandom: um novo sistema literário digital”,

respectivamente; enquanto a temática do hiperrealismo, do simulacro e da realidade

virtual através do cinema é abordada por Polyanna Angelote Camêlo em seu texto

“Imagens em Fricção” (sobre Matrix) e por Maria Giselda da Costa Vilaça em “O show

de Truman: espetáculo midiático de manipulação humana”; e Antônio Clériston de

Andrade avança na discussão do pós-humano através da análise do caso do atleta

que superou suas limitações físicas numa uma bem-sucedida simbiose com os

recursos proporcionados pela moderna tecnologia protética, em “Oscar Pistorius –

“The blade runner” – e a questão do pós-humano”.

Desejamos a todos uma boa leitura. Acessar Volume 3

Ermelinda Maria Araújo Ferreira

Recife, 18 de maio de 2009

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

DO HOMO SAPIENS À MENS HUMANATA: a literatura do trans­humano

Márcio de Oliveira Bezerra Université Blaise Pascal (Clermont­Ferrand))

[email protected]

RESUMO:

Robôs, andróides, ciborgues, próteses mecânicas, engenharia genética, realidade virtual: todos fazem parte de um único e mesmo movimento, iniciado primevamente, quando a realidade passou a ser dividida entre natureza e cultura. Através desta contingência, a sociedade patriarcal concebeu­se ­ e, por ela, encontrará seu fim. Neste trabalho, pretende­se analisar temática do trans­humano em duas obras basilares, ainda que pouco lembradas: o romance L'Ève Future, de Auguste Villiers de l'Isle­Adam, e a peça R.U.R.: Rossumovi univerzální roboti, de Karel Čapek. Será traçado um panorama englobando as fontes de inspiração destas obras e suas influências exercidas posteriormente, assinalando­se as mudanças de enfoque que essa linha temática foi sofrendo ao longo do século XX.

Palavras­chave: Pós­humano, Ficção científica, Auguste Villiers de l'Isle­Adam, Karel Čapek

ABSTRACT:

Robots, androids, cyborgs, mechanical prostheses, genetic engineering, virtual reality: all those elements compose a single and earlier movement, originated through the institution of the binomial opposition between nature and culture, by which the patriarchical society was given shape ­ and by which it shall perish. The post­humain rises. In this essay, by exploring how this transformation affects the arts, two important literary works will be analyzed ­ the novel L’Ève Future, by Auguste Villiers de l’Isle­Adam, and the play R.U.R.: Rossumovi univerzální roboti, by Karel Čapec ­ and a panoramic review of their artistic inspiration sources and influences over the 20th century literature will be presented with the contrast of different focuses on the question.

Keywords: Posthuman, Science fiction, Auguste Villiers de l'Isle­Adam, Karel Čapek

Introdução

Homem e mulher, senhor e escravo, mente e corpo, virtual e real, religioso e mundano:

no senso comum, tais dualidades assumem per se uma separação total e irreparável. Todas se baseiam em escolhas e contraposições que se foram constituindo em face a necessidades

históricas dadas – pontuais ou contínuas. Todas provêm de um mesmo binômio axial, cultura / natureza, através do qual o humano afirma­se categoricamente humano. Porém, o preço pago pela confiança extrema nesta estrutura binária é a crise da razão cartesiana, arrastando­se

pela pós­modernidade e com a qual convivemos.

Nos Novecentos, os avanços da biogenética e da robótica fizeram aportar parâmetros

novos para a discussão: a interferência humana sobre sua própria fisiologia faz­nos questionar

as fronteiras reais entre o natural e o artificial. Próteses mecânicas, alimentos geneticamente

modificados, a medicina estética: o que ainda há de beleza “natural”, de alimentação “pura”, de

“puramente humano”? Ou melhor, já existiu, em algum momento dado, o “puro”?

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Em paralelo, o movimento ambientalista e os debates de cunho ecológico têm

requalificado as posturas em relação a nosso habitat, rediscutindo nossas limitações e indiferença. Ademais, unidos à neurologia, os zoologos seguem destituindo certos caracteres

considerados pelo senso comum como exclusivamente nossos (o aprendizado de atividades

complexas, o raciocínio abstrato, a capacidade de criar e reproduzir a linguagem, etc.). Assim,

em um contexto generalizado que fez da globalização econômico­cultural palavras de

comando, os limites entre o animal, o humano e o pós­humano vão­se desgastando e dando origem a criaturas híbridas e “monstruosas”. Sobre esta desfiguração, afirma o filósofo e

sociólogo Slavoj Žižek (apud WOLFE (2003)): “monsters can be defined precisely as the

phantasmatic appearance of the ‘missing link’ between nature and culture” (p. 108).

Começado o processo, não há mais ponto de retorno. Limites claros entre o natural e o

artificial já não se veem: pela óptica metafísica, o homem é – e sempre foi – um ser híbrido

entre o animal da existência e o ciborgue da essência. Um trans­humano. Por extensão, os antigos binômios e paradigmas foram de um por um caindo em terra, levando consigo as

certezas incontestáveis. “As novas conceituações não são dualísticas, mas probabilísticas” 31:

ou seja, não há mais como analisar o mundo através de padrões pré­estabelecidos, fechados

em si, mas sim por graus de subjetividade que cada caso incita por si. Enfim, a dedução cede

passo de fato à indução.

Concomitantemente, as artes absorvem as ressonâncias deste movimento

aparentemente alheio, projetando­se sobre o tema tanto eufórica quanto amargamente. Acerca

destes reflexos, comenta HARAWAY (1991):

the cyborg appears in myth precisely where the boundary between human and animal is transgressed. Far from signaling a walling off of people from other living beings, cyborgs signal disturbingly and pleasurably tight coupling. Bestiality has a new status in this cycle of marriage exchange” (p. 152).

Coexistindo a realidade concreta do ciborgue com a instituição deste ser no imaginário,

temos a posteriori a necessidade de explorá­lo artisticamente, lidar com ele em nossos planos de reflexão e apreciação estéticas, levá­lo à ágora onde os sonhos do indivíduo encontram as

ações da coletividade.

Deste modo, a ficção científica, a tecnocultura, o cyber­punk e o synth­pop são claras demonstrações estéticas não apenas do avanço tecnológico, mas do tema da hibridização

trans­humana. Por extensão, os próprios suportes artísticos foram­se transmutando com o

advento da internet e da informação digital. No caso da literatura, o hipertexto possibilita uma

associação totalmente nova entre autor, obra e leitor, recriando­os. Isto porque a distância

entre aquele que lê e aquele que escreve é cada vez mais irrisória, dada a abertura do tráfego

31 SIBILIA, 2002, p. 52.

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de informações no ciberespaço. Os blogs são menos livros do que grandes rascunhos públicos, esperando por novos textos a ser­lhe conectados.

Investigando estes novos espaços de interrelações, o presente estudo almeja

comprovar, através das artes, a hipótese de que a falácia da pureza dicotômica fez surtir a crise ética e ontológica pós­moderna. Trata­se da atual revisão dos conceitos de homem – homo sapiens, ser fundamentalmente orgânico – e de pós­humano – enquanto um novo passo na evolução da espécie ou uma entidade à parte concebida mediante a técnica humana.

Ademais, tentaremos responder à seguinte questão: qual é a relação entre as

intermitências de natural / artificial e as expressões artísticas (principalmente as de cunho literário)? Para tal, usaremos a Teoria Literária e a Crítica Temática como instrumentos de de­

formação estética do discurso artístico. Contiguamente, será traçado um panorama ideológico­

histórico, relacionado ao binômio homem / pós­humano. Constituindo­se na catalogação de livros, filmes e projetos musicais e na análise de duas obras literárias pouco analisadas – L’Ève Future, de Auguste Villiers de l’Isle­Adam e R.U.R., de Karel Čapek –, este traçado percorrerá o desenvolvimento do trabalho.

Pós­humano e mens humanata 32

The transition from human to posthuman can be defined physically or memetically. Physically, we will have become posthuman only when we have made such fundamental and sweeping modifications to our inherited genetics, physiology, neurophysiology and neurochemistry, that we can no longer be usefully classified with Homo Sapiens. Memetically, we might expect posthumans to have a different motivational structure from humans, or at least the ability to make modifications if they choose (MORE (1994)).

É a esta maleabilidade fisiológica que nos referimos ao criar a expressão mens humanata: um jogo de idéias construída em contraposição a homo sapiens. Nela, trocamos sujeito e predicado de “homem que pensa” ou “homem sábio” para formarmos algo como

“pensamento que se faz à imagem do homem”, “sabedoria corporificada em homem” 33. Além

deste conceito, relevante para a explanação acerca da pós­organicidade, cabe salientar que robôs, andróides e ciborgues encaixam­se no termo pós­humano por uma outra via: a da

32 Muitos dos termos utilizados na introdução possuem um histórico polissêmico inquietante para o trabalho que nos propomos aqui. Então, para evitar confusões terminológicas e associações estapafúrdias, necessário se faz estabelecer palavras­chaves de fácil remissão – fato este que não sugere pressupostos analíticos “hermetizados”, mas instrumentos provisórios para a construção de nosso raciocínio. 33 Certo sentido religioso nestas traduções não é gratuito. Humanor, aris, atus sum, ari é um neologismo do polígrafo romano Cassiodoro (c. 485 – c. 585), latinizando o vocábulo grego νδρόω. No Scriptum super Libros Sententiarum, comenta seu uso Tomás de Aquino: “Vel dicendum, quod cum dicitur Deus humanatus, non sumitur humanatus in vi nominis denominativi, sed in vi participii; unde tantum valet ‘humanatus’, quantum ‘homo factus’” [Ou seja, ao falar­se em Deus humanado, não se assume humanado com valor de adjetivo, mas sim de particípio; do que tanto vale dizer humanado, quanto em homem feito] (vol. 5, p. 440).

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substituição, superação ou melhoramento das capacidades humanas através de um ser a

parte, um terceiro.

Robô

Resultante da palavra tcheca para trabalho pesado (robota), robô foi pela primeira vez usada na peça R.U.R.: Rossumovi univerzální roboti, de Karel Čapek, em 1921. Desde Aldous Huxley até os irmãos Wachowsky, R.U.R. influenciou, ao longo do século XX, toda a ficção que abordasse a temática do construto. Talvez por esta repercussão tão vasta e diferenciada, o

termo robô haja adquirido uma conotação bastante generalizada, tornando­se referente para qualquer maquinário capacitado de movimentação e decisão automáticas – fato este corroborado pelo gênero discursivo das ciências exatas, que o absorveram exatamente desta

maneira. Conseqüentemente, o vocábulo passou a substituir o que se tinha por autômato, afastando­se da especificidade de seu uso originário. Por esta razão, é mister especificar

outros dois vocábulos que normal e erroneamente são postos como sinônimos daquele

primeiro: andróide e ciborgue. De fato, os limites entre os três são um tanto quanto frágeis e incertos, o que nos força a optar por definições que sejam as mais relevantes para o estudo

aqui empreendido.

Andróide

Na Cyclopedia, or An universal dictionary for arts and sciences, publicada em 1728 por Ephraim Chambers, lê­se a seguinte definição para o verbete androides, sendo este seu primeiro registro escrito: “an Automaton, in figure of a man ; which by virtue of certain Springs,

&c. duly contrived, Walks, Speaks, &c. [...] The Word is compounded of the Greek νήρ, νδρός, Man, and ε δες, form”. Contudo, tal palavra passou a ser recorrente apenas em 1886, com o lançamento do romance L’Ève Future. Ainda que pouco lembrado pela crítica moderna, trata­se de um romance que estabeleceu um firme paradigma seguido pela ficção novecentista,

tanto descritiva quanto ideologicamente. Ao contrário do que ocorreu com R.U.R. e seus roboti, o andreïde de Villiers de l'Isle­Adam refere­se a um estereótipo bem específico: um maquinário não­orgânico (ou com alguns elementos orgânicos não­majoritários) feito à imagem e semelhança do ser humano, visando – em alguns casos – ao melhoramento de certas características (físicas e/ou intelectuais). Por se centrarem na confusão cognitivo­sensorial causada pela aparência humanizada desses robôs, o andróide David de Brian Aldiss e os replicants de Philip K. Dick são talvez os maiores devedores desta figuração. A discussão metafísica parece encontrar nesses autores e nessas personagens seu maior grau de precisão

e excelência.

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Ciborgue

Em 1960, Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline criaram o termo cyborg (um amálgama entre cybernetic e organism) no artigo Cyborgs and Space, publicado no periódico estadunidense Astronautics. A epígrafe do ensaio é bastante figurativa quanto ao sentido deste neologismo: “Artifact­organism systems which would extend man's unconscious, self­regulatory

controls are one possibility”, um enunciado que qualifica em termos exatos o que significa o

projeto cyborg. O discurso que o entremeia tem o peso do cientificismo novecentista, de tradição fáustica, que busca superar, com pretensões metafísicas, os limites do organismo por

meio do controle das técnicas necessárias para tal: “Solving the many technological problems

involved in manned space flight by adapting man to his environment, rather than vice versa, will

not only mark a significant step forward in man's scientific progress, but may well provide a new

and larger dimension for man's spirit as well”.

No capítulo A Virtualização do Corpo da obra O que é o Virtual?, Pierre Lévy ressalta os parâmetros orgânicos deste discurso de apropriação do que era outrora incontrolável:

No prolongamento das sabedorias do corpo e das artes antigas da alimentação, inventamos hoje cem maneiras de nos construir, de nos remodelar: dietética, body building, cirurgia plástica. Alteramos nossos metabolismos individuais por meio de drogas ou medicamentos. (...) Como a das informações, dos conhecimentos, da economia e da sociedade, a virtualização dos corpos que experimentamos hoje é uma nova etapa na aventura de autocriação que sustenta nossa espécie (p. 27)

Assim, uma tarefa mormente executada pelos processos genéticos e fisiológicos de

adaptação e evolução passa a ser atribuída à técnica humana. Almejamos ser os senhores

conscientes de nossos destinos mediante o paradigma ciborguiano: a vitória sobre a morte, a

velhice e o condicionamento genético é “necessária” e “urgente”. Em nome deste ideal, a

primeira barreira que se quebrou foi a dos limites sensoriais básicos. Assim, enxergamos,

escutamos e falamos para além do círculo físico mais primário:

Essa função é claramente externalizada pelos sistemas de telecomunicação. O telefone para a audição, a televisão para a visão, os sistemas de telemanipulações para o tato e a interação sensório­motora, todos esses dispositivos virtualizam os sentidos (p. 28).

Tal ambiente só se tornou tangível com as mudanças graduais do capitalismo que

levaram ao atual processo de globalização econômico­cultural. O fim da relevância dos limites

político­geográficos para a troca de bens e informações estimulou a sede por um novo

progresso – não aquele positivista, mas um que não isolasse o instrumento do objeto, os meios dos fins, o artificial do natural. Eis a busca constante pela virtualização – enquanto “uma

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mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológica do objeto

considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade (uma “solução”), a

entidade passa a encontrar sua consistência essencial num campo problemático” (pp. 17­18).

Ou seja, para Pierre Lévy, virtualização é sinômino direto de artificialização, da ação unívoca da mens humanata, pois todas presumem o pós­humano, o organismo moldável, a criação de ferramentas para além do homo sapiens.

Paralelamente, Donna Haraway toca em uma ferida aberta por tal incorporação de

novos valores. Referimo­nos à derrocada do discurso primevo ligado às diferenças de gênero,

raça e classe social. Sobre o primeiro domínio, ela disserta:

The new technologies affect the social relations of both sexuality and reproduction, and not always in the same ways. The close ties of sexuality and instrumentality, of views of the body as a kind of private satisfaction and utility maximizing machine, are described nicely in sociobiological origin stories that stress a genetic calculus and explain the inevitable dialectic of domination of male and female gender roles (p. 169).

Destarte, a presença do pós­humano (em qualquer uma das formas citadas) afeta

imediatamente todo o discurso ideológico dominante ao destronar axiomas basilares deste.

Ainda que possuam suas particularidades, todos representam juntos um mesmo movimento,

um único processo de revisões acerca dos dogmas forjados pela humanidade. Outrora úteis

para as mudanças sociais por que passamos, esta ortodoxia tornou­se terminantemente

obsoleta após a segunda metade do século XX.

Prometeu e Fausto: dois procedimentos

No capítulo « Tecnociência » de O Homem Pós­Orgânico, Paula Sibilia (2002) apresenta ao leitor, citando Hermínio Martins, duas linhas discursivas centrais nos escritos

científicos dos últimos dois séculos. Martins concebe­as a partir de dois mitos fundamentais

para a construção da sociedade moderna: o grego Prometeu e o germânico Fausto. Tais

inclinações serão investigadas e analisadas nas criações artísticas propostas na introdução.

Porém não custa lembrar que esta classificação (como as demais contidas neste projeto) não

se resume a uma taxonomia una e absoluta de discursos epistemológicos e expressões

estéticas. Pelo contrário, ela implica, na maioria absoluta dos casos, uma dosagem graduada

entre um posicionamento e o outro.

Inspirando­se na façanha do gigante que roubou uma pira acesa do Olimpo para

acabar com a escuridão do mundo mortal, a primeira linha consolidou­se no Ocidente da Era

Moderna mediante os cânones literários e filosóficos greco­latinos:

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Se a tradição prometéica pretende dominar tecnicamente a natureza, o faz visando “o bem humano”, a emancipação da espécie e, fundamentalmente, das “classes oprimidas”. Apostando no papel libertador do conhecimento científico, este tipo de saber almeja melhorar as condições de vida dos homens através da tecnologia, graças à dominação racional da natureza. Confiantes no progresso, os defensores do prometeísmo colocam a ênfase na ciência como “conhecimento puro” e têm uma visão meramente instrumental da técnica. Ao menos teoricamente, o desenvolvimento gradativo desse tipo de saber levaria à construção de uma sociedade racional, assentada em uma sólida base científico­industrial capaz de acabar com a miséria humana (p. 44).

Além de inspirar alguns dos principais artistas dos últimos séculos – nomes como

Milton, Goethe, Mann e Murnau –, a lenda medieval do Doktor Faustus, ilustre cientista e célebre preceptor, fez surgir um novo modelo de ideologia tecnocientífica. Frustrado com as

ciências e a teologia de seu tempo, Fausto resolve seguir a trilha da magia arcana e da

bruxaria através do pacto que faz com o demônio Mefistófeles. Com isto, ele joga de lado todos

os arreios da moral judaico­cristã e busca, sedento, pelos segredos mais resguardados da

existência, almejando tomar para si o controle deles. De acordo com Sibilia, esta tem sido a

tendência do discurso científico novecentista, laicizado: um dos porta­estandartes da ideologia

capitalista, “com seu impulso para a acumulação ilimitada de capital” (p. 48).

Enfim, enquanto Prometeu liga­se à ética e à religião, Fausto submete­se à estética e à

metafísica. O primeiro é heróico e justiceiro; o segundo, demoníaco e questionador. Aquele,

idealista; este, carnal.

L'Eve Future

Publicado primeiramente sob folhetim, trata­se de um relato de “antecipação científica”

da obra de Auguste de Villiers de l’Isle­Adam, figura extravagante do já controverso fin­de­ siècle francês. Integrante do círculo de amizades de Stéphane Mallarmé e Joris­Karl Huysmans, trata­se de um nome representativo da nova escritura que os movimentos literários

de entre­séculos estavam a ponto de dar à luz. Assim, ao estilo holístico comum ao seu meio e

à sua época, esta obra mescla o enredo romanesco com passagens líricas, divagações

estéticas, embates metafísicos e discussões tecnocientíficas, tornando­a ao mesmo tempo um

romance maravilhoso­instrumental 34, um poema em prosa – cujo minucioso apuro formal

debruça­se sobre os primeiros capítulos – e, finalmente, um tratado científico que, se usa como

plataforma o sobrenatural, faz­se perpassar a todo instante na ação narrada e no discurso das

personagens.

34 “Se o leitor decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno possa ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso". A denominação instrumental refere­se à irrealidade acometida pelo deslocamento temporal. Ou seja, certos elementos plausíveis são apresentados em um contexto destoante, tornando­os irrealizáveis, maravilhosos. Como exemplo, podemos citar o steampunk, que mistura ficção futurista com cenários situados na Inglaterra vitoriana. Cf. TODOROV (1995).

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Em Le discours scientifique dans L'Ève future, de Villiers de l'Isle­Adam : une poétique de la figure et du secret, a Profª. Doutora Anne Lefeuvre repousa sua análise no discurso científico construído ao longo do romance. Sobre sua interpelação com a estrutura textual, ela

afirma: “(...) La science constitue le fond même du texte : non seulement en raison de l'intrigue

(...) mais aussi par la place, littéralement envahissante, qu'y tient le discours scientifique, le rôle

qu'il y joue et le statut qui lui est accordé”. Villiers associa­se, desta forma, a uma vasta tradição

francófona ligada a certa ficção científica avant la lettre, na qual “les significations de la science excèdent la science même” e cujo tom varia da paródia e do sarcasmo para a fantasia e a

utopia positivista.

O enredo do romance de Villiers apresenta­nos um novo Thomas Edison, um dos

principais inventores estadunidenses e criador do modus vivendi moderno, iluminado por suas lâmpadas elétricas. The wizard of Menlo Park, como era conhecido entre os seus, ressurge romanescamente como um novíssimo alquimista vitoriano, encarcerado em seu laboratório

subterrâneo, desenvolvendo máquinas e dispositivos inconcebíveis até então. A emersão

social de seu magnum opus, uma andróide, é o grande passo para o qual ele se prepara nas primeiras páginas. Falta­lhe, contudo, um motivo, uma testemunha ocular, um meio de

transição entre o virtual e o real: isto fica a cargo do lorde inglês Ewald, amigo íntimo de Edison

e alma atormentada por um impasse pessoal. Aflige­lhe o fascínio e o desgosto simultâneos

que Alicia Clary, cantora lírica e nobre escocesa recém­ascendida, provoca em seus

pensamentos. Se, por um lado, ela é dotada de beleza e graça que a igualam a Venus victrix de Antonio Canova e a Venus de Milo de Alexandre de Antióquia, por outro, sofre da leviandade e da vaidade burguesas.

Nesta configuração de fatos e personae, deparamo­nos com a atualização do mito de Galatéia, devidamente transposto à mundividência oitocentista. Transformação sub­reptícia, a estatificação de Alicia faz dela uma referência atomizada, de abrangência limitada. Como a jovem só é exaltada através da memória subjetiva do primeiro encontro e através do estatuário

de Afrodite, ela entra em um processo de niilficação na medida em que seu “corpo ideal” desloca­se para a peça de mármore branco e em que o desprezo do lorde para com suas

opiniões e personalidade desanima­a 35 gradualmente. Há uma passagem bastante elucidativa e sintética no relato do aristocrata bretão: “Et j’ai constaté qu’elle en avait une [âme] dans les

seuls et terribles instants où elle semble avoir je ne sais pas quelle peur obscure et instinctive de son corps idéal”. (pp. 72­73).

Em vista do impasse apresentado pelo amigo, a solução encontrada por Edison é fazer

uso de Halady, seu protótipo androidiano. Quase amorfa, ela ganharia, após devidas

intervenções técnicas, a aparência e o espírito de Alicia no momento exato da primeira

35 Do latim, desanimo, are, cuja raiz provem de anima, ae (alma). No sentido aqui empregado, salienta a perda da alma.

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impressão de Ewald. Eis que Galatéia molda­se a nossos olhos. Passa a existir, a partir daí,

uma proporção direta entre a estatificação de Alicia e a animação de Halady. Contudo, Lord Ewald, um Pigmaleão sem cinzel, aterroriza­se e repugna a sugestão de Edison. A defesa de

seu ideal feminino – um traço parelho à estética fáustica – não chega ao ponto de admitir tal

artificialização do desejo humano e tal controle das técnicas naturais e divinas. Uma das

respostas do cientista a essa hesitação é definitiva: “Milord, (...), je vous le jure : prenez garde

qu’en la juxtaposant à son modèle et en les écoutant toutes deux, ce ne soit la vivante qui vous semble la poupée” (p. 104). Assim, como um Mefistófeles transposto, os argumentos de Edison atingem os pontos mais suscetíveis de Ewald, fazendo­o finalmente aceitar o acordo – ainda

que bastante cético. Para convencê­lo do sucesso de seu engenho, o inventor passa a

descrever os pormenores composicionais de sua criação. Neste momento do romance, a

ciência vai adquirindo cada vez mais uma aura paranormal e alquimista, extrapolando as

diretrizes positivistas. Este efeito é atingido através da própria explicação de Edison, tão plena

de meandros e jogos lógico­descritivos que fazem dele quase um retórico barroco. Sobre este

aspecto, aponta­nos Lefreuve: “[La science dans L'Eve Future] est dotée d'une véritable puissance poétique : paradoxalement en effet, c'est elle qui donne profondeur, mystère,

densité énigmatique à la réalité dépeinte”. Vemos, aqui, uma confluência proveitosa entre duas

temáticas literárias distintas: a da ficção científica – com fortes influências de Jules Verne – e a

do misticismo – referente à tradição de Edgar Allan Poe.

Enfim, a obra realizada em sua completude causa estranhamento a Ewald, que chega

a confundi­la com o modelo original, pois o encontro entre os dois não fora premeditado e deu­

se em via pública. A repugnância volta a tomar conta de Ewald, levando ambos a uma

discussão. Questionada a respeito de sua essência, Halady abre espaço, em sua resposta,

para mais uma leitura do romance: “Qui suis­je ?... Un être de rêve, qui s’éveille à demi en tes

pensées – et dont tu peux dissiper l’ombre solitaire avec un de ses beaux raisonnements qui ne

te laisseront, à ma place, que le vide et l’ennui douloureux, fruits de leur prétendue vérité” (p.

335). Halady não é apenas uma sombra animada de Alicia, um espectro preso na memória de

Ewald. Halady é, em certa medida, a própria encarnação do inconsciente, da cultura e de toda a obsessão e o tormento que perseguiam o dandy: sua ânsia em aperfeiçoar o modelo original, a nostalgia de um momento distante e perdido. O lorde inglês opta por levá­la como uma

espécie de consolo, um brinquedo que tranqüilizará sua angústia nos momentos de tédio com

Clary. A sombra da jovem cantora é uma garantia não admitida de que sua paixão pelo original

não se extinguirá.

Assim, o andróide em Villiers é a materialização dos assuntos não resolvidos, dos

traumas em vigília, da hesitação fachadista. Enquanto em Donna Haraway o cyborg surge interna e vagamente para suplantar, através do paradoxo, a ordem estabelecida, o andreïde propõe­se somente o choque e a suplantação da razão diante do desejo e da natureza –

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enquanto conjunto caótico e incontrolável – diante da cultura – enquanto seleção apropriada e reconfigurada de elementos naturais. Contudo, ambos os autores atingem, em um momento

dado, o mesmo efeito: fazer do construto um elemento de transformação – positiva ou negativa

– do ser humano.

Haja vista esta junção corrosiva de sentidos e discursos, o fim do romance não poderia

ser outro, além de trágico: o navio em que estão embarcados lorde Ewald e Alicia Clary

incendeia­se, sobrevivendo do episódio apenas alguns passageiros. Ewald perde ambas, mas

lamenta­se somente pela andróide. Cria­se, assim, um clima deprimente à cena final do

enredo, na qual se vê Edison em seu laboratório refletindo sobre o caso, ao ler as últimas

palavras recebidas do britânico: “Ami, c’est de Halady seule que je suis inconsolable – et je ne

prends deuil que de cette ombre. – Adieu. – Lord Ewald” (p. 374).

R.U.R.: Rossumovi univerzální roboti

O argumento desta peça, a mais celebrada da produção de Karel Čapek, retrata a

criação de um maquinário com arquétipo físico e expressões humanas por dois cientistas, tio e

sobrinho, ambos de personalidades contrárias – o “velho” Rossum 36 e o “jovem” Rossum. O

primeiro concebera o projeto ainda jovem, fascinado com o achado de “another way [of

organising living matter] which is simpler, easier to mould, and quicker to produce than Nature

ever stumbled across”. Esta descoberta o haveria levado ao deslumbramento e à hubris de um

típico Henry Frankenstein, como descrito na cena introdutória: “He wanted, in some scientific

way, to take the place of God”.

Nesta figuração, vemos o culto à tecnociência através do discurso tipicamente fáustico.

Entrevemos a busca sedenta pelo poder divino, sem outro fim além de si mesma. Mefistófeles

encarna seu próprio orgulho, fazendo­o enxergar um mundo completamente renovado em

relação àquele que conhecera. Não por acaso sua primeira criatura vivificada não passa de um

remendo heterogêneo e monstruoso – mais uma remissão ao romance de Shelley. O construto

como monstro é uma imagem corriqueira para destacar a distorção do projeto científico, o

descaso ao ideal prometéico e do bem­estar individual em prol do sucesso progressivo da

técnica.

Enquanto isto, o “jovem” Rossum mostrava­se um enérgico e impetuoso

empreendedor, tornando a obra iniciada por aquele em projeto rentável para a construção de

escravos­máquinas (já que destituídas de características humanas supérfluas, como

sentimentos, aptidões artísticas e sistema sensorial). Confirmando o argumento de Sibilia, o

espírito capitalista une­se primordialmente à empresa fáustica, ainda que exija uma submissão

36 Rossum vem do tcheco rozum (cérebro, razão, sabedoria, intelecto).

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desta a si próprio – como ocorre na história de R.U.R. quando o sobrinho toma as rédeas das pesquisas ao trancafiar seu preceptor em um alçapão. Apesar de congruentes e permissivos a

fatores parelhos, ambos os discursos – o científico e o mercadológico – travam um embate de

sobrevivência por demandarem para si um espaço vital muito largo e ferrenho para que

consigam conviver um ao lado do outro. A vitória final da juventude sobre a senilidade dá­se na

transmutação de Galatéia para Golem, ou seja, de um pressuposto puramente formal para uma

forma pressuposta na práxis – no caso, a capitalista.

Na ilha onde tais experimentos são postos em prática e onde posteriormente – ao

morrer o último Rossum – se abre a fábrica dos “Robôs Universais”, uma grande leva de

humanistas e religiosos vem combater a suposta blasfêmia contra Deus e a humanidade. Uma

desses ativistas mais extremistas, Helena Glory, ao encantar as atenções do diretor geral,

Harry Domin 37, e de seus subordinados diretos, implanta o germe da complicação tramática.

Todos estes se parecem menos com homens do que um pulso carnalizado de consciência, um

mesmo centro nervoso de ações e reações, um ideal humanado – e megalomaníaco – que

toma para si seis homens como membros. Assim, quando Helena decide casar­se com Harry –

após ser quase forçada a tal –, ela contrai matrimônio praticamente com todos: “If you don't

marry me you'll have to marry one of the other five”. Enquanto a consumação carnal recai a

Domin, a subjugação ideológica é realizada em grupo, através do afeto cavalheiresco e

infantilizado de cada um. Ademais, ainda que se configure contraditório, o posicionamento de

Domin e seus assessores almeja reavivar e ratificar, no projeto de que estão encarregados, o

ideal prometéico:

37 A possível relação entre este nome e a palavra latina dominus, i (senhor) não é, portanto, fortuita.

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Domin (earnestly) Alquist, this is our last hour; it's almost as if we were speaking from the other world already. Alquist, putting an end to the slavery of labour was not a bad dream. Work humiliates, anyone who's forced to do it is made small. The drudgery of labour is something dirty and murderous. Oh, Alquist, the burden of work was too much for us, life was too heavy for us, and to remove this burden...

Alquist That was never the dream of either of the Rossums; old Rossum was thinking of Godless rubbish and young Rossum thought of nothing but making millions. And it's not the dream of RUR shareholders either; their only dream was their dividend. And it's because of their concern for their profits that mankind is about to perish.

Domin (agitated) The Devil take their dividends! Do you think I'd have spent an hour of my time for their sakes? (thumping table) I did it for myself, d'you hear? For my own satisfaction! I wanted mankind to become his own master! I wanted him not to have to live just for the next crust of bread! I wanted not a single soul to have to go stupid standing at somebody else's machines! I wanted to leave nothing ­ nothing! ­ left of this damned mess that society's in! I hate seeing humiliation and pain all around us, I hate poverty! I wanted to start a new generation! I wanted to ... I thought that...

Alquist What?

Domin (quieter) I wanted mankind to become an aristocracy of the world. Free, unconstrained, sovereign. Maybe even something higher than human.

Alquist Superhumans, you mean.

Domin Yes. If only we'd had another hundred years. Another hundred years for the new mankind [grifos nossos].

A “escravidão do trabalho”, as “máquinas dos outros”, a “aristocracia do mundo”, os

“superhomens” e a “nova humanidade” são expressões que entrelaçam discursos pragmáticos

totalmente distintos em seu único ponto de confluência: a suposta necessidade do bem­estar

humano acima dos arranjos sócio­históricos e naturais. Na primeira passagem, pulula o elogio

greco­romano ao ócio. Na segunda, configura­se uma leve inclinação marxista ­ marcada pela

consciência da troca desleal entre a força de trabalho e o retorno salarial (a “crosta de pão”),

mediante o instrumentário industrial de posse minoritária. Reavivando a “ordem natural e

divina” medieva, a separação oligárquica entre os bellatores e os laborantes em “a aristocracia do mundo” ressurge dividindo humanos e robôs. Quanto aos super­homens, desvendam­se os

anseios utópicos dos pós­humanistas – os avanços da robótica e da cibernética como meios de

atingir o próximo passo da evolução humana.

Apresenta­se­nos, enfim, uma teia de boas intenções e bandeiras humanitárias

forjadas no seio da sociedade patriarcal. Por extensão, a máquina não representa o surgimento

de uma nova tradição humana, pós­patriarcal, ao contrário do ciborgue de Donna Haraway. A

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explicação deste fato reside na separação física entre homem e construto: tal espaço não

permite a aceitação do trans­humano como estado típico do homo sapiens, reproduzindo, assim, as antigas dicotomias e a crença na “naturalidade” destas.

Portanto, domesticada neste meio masculino “ideal” e “igualitário”, vemos uma nova

personagem dez anos depois dos primeiros eventos – agora, no início do primeiro ato –:

Helena Domin, uma típica dona­de­casa castrada pela instituição matrimonial burguesa. A

partir de então, ela só aparece em um cômodo da casa: a sala de estar. Desta forma, ela

transmuta­se abruptamente de uma voluntária rebelde e socialmente engajada para uma

esposa burguesa novecentista. Praticamente uma leitora de folhetins – hábil no tricô, no piano

e no francês. Acalenta­se com a servidão de Nana, uma criada de firmes convicções religiosas,

representante da opinião do senso comum a respeito do que ocorre na fábrica. Sua voz ressoa

com a de todo um povo, evocando Deus em todos os temas recorrentes. Tomada pelo temor

da fúria olímpica e nada entendendo do que se passa, Nana leva o problema ao mero plano do

bem e do mal, do natural – como algo original à feitura divina – e do distorcido – enquanto

produto direto da mens humanata. Revela­se o discurso do medo no irreconhecimento, da novidade temível. A ficção científica costuma explorar o emprego desta crença para anunciar

previamente ao leitor acerca do que se acometerá ao desenrolar da história – e este é um

exemplo deste artifício.

Ainda que mentalmente sobrepujada, sobra a Helena uma lembrança de seu

engajamento humanitário, da força de suas crenças, fato este que a faz convencer Dr. Gall –

diretor de Fisiologia do Departamento de Pesquisa – a fim de modificar a concepção dos roboti, dando­lhes consciência­de­si ou, como prefere nomear Čapek, uma alma. Apesar do número reduzido deste novo modelo, uma das conseqüências desta imprudência é a revolta armada

que os robôs levantam contra o regime escravatório ao qual estão submetidos. São

reveladores os últimos instantes antes de tomarem a fábrica e arrasarem toda a humanidade.

Todas as personagens que se encontram na habitação do casal Domin são levadas ao limite

de seus medos e apreensões, deixam suas máscaras caírem. Como um castelo de cartas, todo

o teatro que montavam desfaz­se, revelando a manipulação de Henry sobre os sonhos e as

expectativas dos demais.

O único sobrevivente do massacre é Alquist, construtor chefe da RUR, último e

destoante elemento de uma humanidade que achara no ócio completo a felicidade suprema. É

salvo da hecatombe por ser o único a entender a verdadeira natureza dos roboti: o lavor. Por fim, o terceiro e último ato revela­nos a distopia do construto: sem o conhecimento

técnico da robótica, destruído juntamente com seus criadores, criam­se impasses políticos e

pânico geral entre os roboti. A ascensão produzira no mesmo movimento a queda. Contudo, em um gesto de fé, Čapek planta o germe da nova gênese, quase ao estilo do pós­Ragnarök nórdico: faz surgir entre dois andróides um amor infantil, ingênuo. Alquist, ao deslumbrar­se

com o fato, vê nisto a superação da última barreira entre o robô e o domínio da Terra: a

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aquisição da “alma”, já presumida por Helena ao ver estourar o levante armado. Tal como

ocorre ao longo da peça, este processo indica o retorno de um caos fáustico e ateu para a

ordem do plano divino ante­prometéico – quase o castigo divino premeditado por Nana. Logo, o

robô apenas retoma a progressão humana, não a recria. Neste ponto, vemos o estagnar do

dramaturgo tcheco no horizonte de vista estreito que sua época tinha da carga simbólica do

pós­humano. Todavia, as questões sociais, os problemas discursivos e as discussões

metafísicas que ele propõe influenciaram tudo que fosse escrito acerca do construto a partir de

então.

Tradições e influências

Galatéia

Mesclando intenções prometéicas e fáusticas, o mito de Galatéia 38 remete­nos ao

desejo do escultor Pigmalião de dar vida a sua última obra, pela qual se apaixona. A figura

retratada em pedra exalta a pureza e a perfeição femininas – perdidas pela mansidão e pela

libertinagem das mulheres de seu tempo. 39 Afrodite, ao saber de seu anseio, atende às preces

de seu seguidor, outorgando­lhe a paz e a felicidade conjugal. Nesta história, a virtualização supera a atualização; o ideal, o sensível. Assim, ainda que cumpra um papel moral relevante e atenda a uma pesada demanda social, Galatéia atende a um desejo pessoal gratuito, a uma

expectabilidade estética pessoal. Ou seja, exatamente o contraposto do Golem, desleixado e

prático.

Configura­se, então, em uma linha de complexidade densa e sensível. Poderíamos

enquadrar nela as intervenções cirúrgicas estéticas e a robótica do entretenimento,

abrangendo um vasto leque de valores e tendências. O exemplo literário mais significativo é a

personagem Halady de L’Eve future, cujo entorno arquétipo e psíquico nada mais é do que a recriação vitoriana da Galatéia clássica.

Golem

Personagem símbolo da magia cabalística, o Golem 40 representa a última barricada

do povo judeu contra seus opressores milenares, haja vista possuir a força sobrenatural

38 Depois do modelo ovidiano (Metamorphoses, X, 243­297), temos as referências ao mito nos escritos da patrística católica: no Protréptico de Clemente de Alexandria (150 – 215) e no Adversus Nationes de Arnóbio de Sicca (255 – 327). Ademais, a literatura francófona reutilizou largamente esta lenda, variando a de acordo com o tema da “animação do inanimado”. O século XIX é o mais prolífico de todos quanto a este tema; assim, listar toda a produção desta época seria rebarbativo. 39 Contudo, é provável que este mito represente, sobretudo, a última vitória do patriarcado sobre a sociedade matriarcal, subjugando a mulher e remodelando a imagem social desta a seu bel­prazer. 40 O relato mais famoso de sua aparição é o ocorrido em Praga durante o século XVI: o rabino Judá Loew

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necessária para opor­se à violência anti­semita. Feito a partir do barro – à semelhança de Adão

–, trata­se de uma invocação feita por pessoas santas, cujo empenho em aproximar­se de

Deus faz com que adquiram uma parcela limitada de seu poder e sabedoria. Contudo, sendo

apenas um produto do homem, o Golem é intelectualmente limitado e incapacitado de falar.

Assim, o Golem diz muito mais respeito ao ideal de Prometeu do que o de Fausto.

Trata­se do último recurso a uma necessidade urgente, sendo, logo, de capacidades limitadas

e uso descartável. A robótica industrial e a doméstica associam­se a esta concepção. Como

exemplo literário, o protagonista de Super­Toys Last All The Summer Long apresenta­se como a reencarnação mais fiel deste mito.

Homunculus

Além de Galatéia e Golem, é possível esquadrinhar o construto em outros relatos

anteriores ao de Villiers e Čapek. Com seu substrato pagão de origem céltica e germânica, a

tradição medieval mantinha em seu bestiário de seres reais e imaginados um lugar para o homunculus. Associado à alquimia e à bruxaria, era normalmente tido como uma criatura mágica surgida a partir de um pingo de sangue de seu evocador. Este laço sanguíneo tornava­

o capataz de seu conjurador – uma extensão servil do corpo original. Na primeira parte do Faust goethiano, presencia­se a feitura de um desses entes.

Der Sandmann

Em 1817, o escritor alemão Ernst T. A. Hoffmann combina conto infantil, horror e ficção

científica ao narrar o relato de Nathanael, perturbado desde pequeno por um episódio que, a

seus olhos, se passou em uma fenda entre fantasia e realidade. Nele, o advogado Coppelius,

visita contumaz de seu pai, está juntamente com este, ambos com batas esfumaçadas,

preparando algum experimento alquímico. Aparentemente era o que eles sempre faziam à

noite, poucos minutos depois de todas as crianças irem para a cama. Pelo que ouve da

camareira, este tal amigo seria o Homem de Areia, um homem horrendo e recurvado que joga

areia nas crianças a fim de apanhar­lhes os olhos e, com eles, alimentar suas corujas na Lua.

Contudo, Nathanael se atreve a esconder­se no escritório do pai em uma dessas noites. Ele é

descoberto e apanhado para, após, desmaiar e passar dias febril. Alguns dias depois, em mais

uma aparição surpresa do distinto advogado, o pequeno encontra seu próprio pai estendido no

chão, morto, com o rosto queimado e enegrecido. O trauma da situação não se apaga

totalmente de sua memória mesmo muitos anos depois, quando se depara com um vendedor

de barômetros piemontês, Giuseppe Coppola. Nathanael reconhece em seu rosto o sinistro

ben Bezalel teria invocado um golem para proteger o ghetto de Josefov de ataques anti­semíticos imperais.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

advogado de sua infância. A partir deste evento, o herói é encurralado em uma seqüência de

desventuras e apaixona­se por Olimpia – na verdade, um autômato criado por Coppola e

Spalanzani, o professor de física do jovem estudante. Enganado pelos dois, ele adquire um

óculos que torna Olimpia, a seus olhos, a mais bela das mulheres. Tal paixão transforma­se

gradualmente em loucura. Ele, enfim, é internado no hospício, onde tenta assassinar sua noiva

ao vê­la através dos malfadados óculos. Termina por suicidar­se.

Neste conto, temos a primeira figuração do construto como mediador da extinção do homo sapiens. Atormentado por seus medos mais instintivos, Nathanael entrega­se

inocentemente a uma trama de malícia e assassinato. Ressurgido de seus pesadelos, Sandmann corporifica­se na aparição de Coppola e Spalanzani. Os óculos que recebe destes distorcem­lhe a visão, fazendo­o crer em uma graça não existente nos gestos de Olimpia. Esta,

por fim, toma conta de seus pensamentos e afãs, consumindo­lhe enfim a vida. Mutatis mutandi, pode­se ler aqui a gradual pulverização da sociedade patriarcal, construída sobre dogmas e temores compulsivos, em vista do cyborg pós­orgânico e das contradições que este aponta na constituição daquela.

Frankenstein, or The Modern Prometeus

Quase contemporaneamente a Der Sandmann, o romance memorial Frankenstein é considerado por vários autores e pesquisadores de ficção científica como a primeira obra deste

gênero temático. Publicado em 1818, só deixou de pertencer à anonimidade quando Mary

Shelley decidiu, na terceira edição, acabar com o enigma e declarar sua autoria. Baseada na

febre do galvanismo e na esteira ideológica positivista, a história conta da fabricação de um ser

humano a partir de membros provindos de cadáveres. Henry Frankenstein, o “Prometeu

moderno” e idealizador do projeto, é de tal forma tomado por sua criação que acaba por

afastar­se do convívio social salutar. Este estereótipo do cientista­ermitão em busca de

capacidades divinas mediante a luz da ciência seria, a partir de então, uma imagem recorrente

na literatura moderna. É também bastante freqüente o efeito colateral de seu trabalho: o

orgulho extremado e a deificação que consomem artesão e produto em um ciclo entrópico de

rebeldia, destruição e inversão de papéis. A criatura destrói o criador para validar

psiquicamente sua existência. Na adaptação cinematográfica de James Whale (1931), Boris

Karloff interpreta com maestria e performismo o monstro remendado. A versão do cineasta

estadunidense retoca os tons positivistas e eugênicos do enredo ao apresentar, como uma das

raízes do fracasso experimental, a utilização de um cérebro que pertencera a um criminoso ao

invés de um “sadio”. Outro adendo memorável é a cena em que o construto encontra uma

menina à beira de um lago. Não conseguindo compreender nem reproduzir o afeto com que ela

o acolhe, arremessa­a na água e deixa que se afogue, fugindo apavorado. Temos aqui mais

um caso de incomunicabilidade entre humano e pós­humano.

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Metropolis

“Por cérebro e mãos não mais se entenderem, outrora foi destruída a Nova Torre de

Babel. O cérebro e as mãos necessitam de um intermediário – é necessário que entre mãos e

cérebro haja o coração” 41: este é o mote para o filme de Fritz Lang (1927) e o romance de

Thea von Harbou (1926), Metropolis. Neste cenário futurista, o leitor e o espectador são arremessados contra um novo construto: uma cidade inteira, em todos seus elementos

humanos e inorgânicos. Tal abertura sociológica permite discutir as fortes diferenças de classe

entre o operariado (as mãos) e a burguesia (o cérebro). Se uma Androide assume um dos principais papéis da história, ela, todavia, nada mais é do que a versão minimizada da

superestrutura social construída a dedo por uma oligarquia gananciosa. Após Metropolis, este paradigma discursivo – centralizado na crítica distópica sócio­política – atinge outros grandes

escritores novecentistas, como George Orwell em 1984 e Aldous Huxley em Brave New World. Contudo, quando o assunto é “literatura robótica”, não houve um período tão fértil

quanto as décadas de cinqüenta, sessenta e setenta. Alavancada pelo enorme progresso

científico do pós­guerra, a temática foi, aos poucos, fazendo­se mais e mais íntima ao cotidiano

da humanidade. Somente a partir dessa vaga pode­se entender a obra de Isaac Asimov, Philip

K. Dick e Brian Aldiss. Todos eles, de maneiras distintas, buscaram questionar ontologicamente

a humanidade através dos construtos.

The Bicentennial Man

Nesta novela publicada em 1975, de Asimov, nossa identidade é profundamente

vasculhada e rearticulada no confronto com a consciência­em­si do andróide Andrew, cuja

batalha por direitos básicos aos robôs atua como cerne matriz do enredo. Asimov já arrolara,

em I, Robot (1950), uma série de casos­limite a fim de atestar o valor pragmático de suas leis robóticas: I) um robô não pode fazer mal a um ser humano e nem, permissivamente, permitir que algum mal lhe aconteça; II) um robô deve obedecer às ordens dos seres humanos, exceto

quando estas contrariarem a primeira lei; III) um robô deve proteger a sua integridade física,

desde que com isto não contrarie as duas primeiras leis. Tais diretrizes são mantidas com

atenção pelos profissionais da Robótica, a fim de controlar ao máximo as capacidades de suas

invenções – cada vez mais independentes do controle humano. Todavia, como o próprio Isaac

comprova em sua obra, nada poderá impedir a animação do construto – tanto simbolicamente, como em L’Ève future, quanto literalmente, como em R.U.R..

41 „Dass sich Hirn und Hände nicht mehr verstehen, das wird einst den Neuen Turm Babel zerstören. Einen Mittler brauchen Hirn und Hände. Mittler zwischen Hirn und Händen muss das Herz sein“ (HARBOU, 1984, p. 98).

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Do Androids Dream of Electric Sheep?

Lançado em 1982, o filme Blade Runner, primeiro sucesso de Ridley Scott e blockbuster imediato, é uma adaptação de um romance de Philip K. Dick. No sentido inverso ao de The Bicentennial Man, não é a máquina que vai gradualmente rastreando sua humanização, mas o humano que vai, em meio à paranóia coletiva, perdendo­se em meio da multidão,

desmemoriado. O argumento do romance focaliza Rick Deckard, caçador de andróides, em sua

jornada diária em meio a uma Terra sucateada e violenta, abandonada pelos mais ricos –

agora em colônias extraterrenas – para ceder espaço à parcela mais miserável da população.

Neste contexto, os replicants ­ como assim são chamados os andróides – constituem um projeto de uso funcional ao gosto burguês – como os roboti de R.U.R. –, mas não conseguem solucionar o impasse social entre os homens – como imaginara Domin na peça de Čapek.

Mendigos, inválidos, proletários, prostitutas e replicants fugidos dividem o mesmo espaço vital, quase todos olhando para o céu como um espaço utópico de bem­estar social e sucesso

individual.

Quase, pois os andróides enxergam no sucateamento terreno a oportunidade ideal

para lutarem por sua soberania. Não apenas uma soberania geopolítica, mas, sobretudo, uma

soberania física, vital: cada um deles é construído com um prazo fixo de funcionamento, sendo

automaticamente desativado ao término deste tempo. A fim de reconhecer e – termo

“politicamente correto” recorrente no romance – retirar 42 as máquinas revoltosas, a força policial contrata mercenários e detetives particulares, como Deckard, dotados de um aparelho que

mede as reações musculares do rosto androidiano. Como os replicants são reconhecidos por sua apatia e indiferença, o método interrogatório Voigt­Kampf baseia­se neste fato. Contudo,

ao longo da história, alguns episódios visam a questionar a efetividade de tais testes e

equipamentos. Na medida em que somos convencidos de seu caráter falho, somos também

levados a crer na destruição das barreiras ontológicas: como se provaria, por exemplo, que o

próprio Deckard, cujas memórias de infância estão perdidas, não seria ele mesmo um

andróide? Se humanos esquizóides podem ser simplesmente confundidos com replicants e mortos por tal, ainda existem diretrizes de diferenciação?

A trilogia Super­Toys

Seguindo a mesma linha de discussão de Dick, Brian Aldiss apela para o lado mais

emocional da relação entre andróides e humanos. Nos contos Super­Toys Last All Summer Long, Super­Toys When Winter Comes e Super­Toys in Other Seasons, confronta­se a descartabilidade de David e Teddy – duas máquinas que reproduzem a convivência com uma

42 Do inglês, retire, cujo sentido pode ser também o de aposentar­se.

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criança de seis anos e seu ursinho de pelúcia – com a ilusão amorosa de David em relação a

Monica Swinton, sua dona/mãe. A função destes construtos é satisfazer o instinto materno de

Monica até que se confirme a autorização do governo e ela possa engravidar­se. Como no

romance de Dick, deparamo­nos aqui com mais uma visão futurista distópica, mas, ao contrário

daquele, a classe mais onerosa continua estabelecida na Terra, em cidades­bolhas que a

separam do mundo real – onde a guerra por comida e água assola dois terços da humanidade.

Um mundo superlotado exige restrições na taxa de mortalidade e, para suprir as pulsões e os

anseios advindos deste fato, os andróides servem como estepe – tal como Tamagochis, mascotes eletrônicos hodiernos. No desenvolvimento dos fatos, David enlouquece com a

rejeição que começa a sofrer aos poucos, já que fora programado com a ilusão de ser um

menino de verdade para dá­lo o máximo de verossimilhança possível.

Kraftwerk

Musicalmente, a temática robótica construiu espaço e posicionamento plenos com a

proposta instrumentária e formal da banda Kraftwerk, surgida em 1971 na cidade alemã de

Düsseldorf. Apesar de sua formação haver variado ao longo de mais de 30 anos, a mais

célebre é aquela constituída por Florian Schneider­Esleben (flautas, sintetizadores, violino

elétrico), Ralf Hütter (órgão eletrônico, sintetizadores), Wolfgang Flür e Karl Bartos (ambos

percussionistas eletrônicos). Pertencente ao movimento vanguardista Krautrock, eles

aproximaram­no à música pop vigente a partir da década de 60: foram decisivas as influências

de artistas como Frank Zappa e Jimi Hendrix, e grupos como The Velvet Underground e The

Beatles. A música progressiva e psicodélica destas fontes associada ao experimentalismo

erudito de Karlheinz Stockhausen enraizaram­se na batida motorik (seca marcação de tempo em 4/4, típica das bandas de Krautrock) para formar o caldo artístico que o som de Kraftwerk

denota. O electro, o techno e, posteriormente, o synth­pop são estilos concebidos a partir da estética deste grupo.

Seguindo a organização guitar, bass and drums do rock­pop anglo­saxão, o primeiro grande salto formal está no uso de sintetizadores e vocoders 43 como instrumentos principais: até então, eles eram meramente complementares. Destarte, nenhum som é reproduzido pelo

instrumento em si: antes de atingir as caixas de som, cada um passa por um computador

central ou qualquer aparelho eletrônico análogo, onde é totalmente remodelado. O mesmo dá­

se com a voz dos integrantes, completando, assim, a virtualização do instrumentário musical.

Durante o período em que o mundo passou a prestigiar ostensivamente seu

trabalho – após o lançamento do álbum Die Mensch­Maschine (1978) –, os integrantes do grupo começaram a apresentar­se como esquizóides pálidos e robotizados (tal qual se haviam

43 Uma palavra­valise constituída de voice (voz) e encoder (codificador).

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retratado na canção Schaufensterpuppen (Manequins da Vitrine), do álbum Trans Europa Express (1977)). Na letra de Die Roboter (Os Robôs), lêem­se os seguintes versos, nos quais a máquina é tida como mero objeto de caprichos e luxúria: “Wir sind auf Alles programmiert und

was du willst wird augesfürht”. Já em Das Modell (A Modelo), desumanizam satiricamente o estilo de vida, as poses e os gestos das top­models. Ademais, neste mesmo álbum, eles relembram von Harbou e Lang na faixa Metropolis.

Contudo, é em Trans Europa Express que encontramos a letra mais representativa da estética visual e sonora de Kraftwerk. Em Spiegelsaal (Salão Espelhado), conta­se a história de um homem que, ao ver sua imagem no espelho, é acometido de um

reflexo / uma reflexão (Spiegelung) de / sobre si mesmo 44. No lado espelhado, uma nova criatura toma forma. Enquanto mais ele tenta reconhecê­la, mais ela metamorfoseia­se: uma

paixão megalomaníaca, uma alucinação (Wahnbild), uma nova personalidade, a imagem idealizada de si mesmo, o gesto das celebridades incorporado em seu dia­a­dia. O jovem

torna­se gradualmente na Modell automotizada e desanimada ao incorporar­se no discurso padronizado das mídias e da cultura de massa: como as grandes estrelas, ele “vive sua vida no

vidro do espelho”.

Desta maneira, indica­se outra via para o pós­humano, renovada e totalmente

desassociada de um construto extra­humano: o pós­humano passa a surgir no próprio corpo

orgânico e no discurso sócio­ideológico a fim de superá­los, emergir destes como uma

borboleta que rasga o casulo por dentro.

Crash

Enquanto núcleo simbólico da sociedade contemporânea, o robô está morto: estamos

em uma dessas épocas em que ficção e realidade mesclam­se a ponto de criarem, no

imaginário coletivo, uma hiper­realidade 45 , uma contaminação entre os planos concreto e

44 “Der junge Mann betrat eines Tages in ein Spiegelsaal / Und entdeckte eine Spiegelung seines selbst Sogar die größten Stars / Entdecken sich selbst im Spiegelglas. / Manchmal sah er sein wirkliches Gesicht / Und manchmal einen Fremde, den kannte er nicht / Sogar die größten Stars / Finden ihr Gesicht im Spiegelglas. / Manchmal verliebte er sich in seinem Spiegelbild / Und dann wiederum sah er ein Wahnbild / Sogar die größten Stars / Mögen sich nicht im Spiegelglas. / Er schuf die Person, die er sein wollte, / Und wechselte in einer neuen Persönlichkeit / Sogar die größten Stars / Verändern sich selbst im Spiegelglas. / Der Künstler lebt / Mit dem Echo seines selbst / Sogar die größten Stars / Leben ihr Leben im Spiegelglas. / Sogar die größten Stars / Machen sich zurecht im Spiegelglas. / Sogar die größten Stars / Leben ihr Leben im Spiegelglas”. 45 Cf. BAUDRILLARD (1991) com as devidas recolocações. Ao contrário do filósofo, não cremos que a ficção científica e a fantasia hajam morrido com o advento da hiper­realidade: trata­se de um evento que existiu em diferentes graus ao longo da história ocidental, cada vez em que esta cultura possibilitou­se confrontar seus dogmas mais cristalizados através de um instrumentário técnico atualizado e das expansões geográficas. É desta maneira que vemos o fenômeno dos relatos de viagem dos séculos XV e XVI.

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virtual 46 . Os avanços dentro da realidade virtual através da animação gráfica e da internet

trouxeram os anseios robóticos para dentro do próprio homem – ontológica e fisicamente.

Neste ambiente congênito é escrito, em 1973, o romance Crash por James Gallard Ballard e, em 1996, é filmado Crash – Estranhos Prazeres sob a direção de David Cronenberg. Em ambas as obras, relata­se a experiência da personagem James Ballard com um grupo de bons­vivants escatológicos, liderados por Vaughan, uma espécie de guru fetichista. Obcecados pela aura de perfeição das celebridades – como em Spiegelsaal de Kraftwerk –, eles vêem em graves acidentes automobilísticos e em suas conseqüentes seqüelas a possibilidade de

recriarem­se um simulacro do que ocorre com a imagem midiática das estrelas hollywoodianas:

a homogeneização pelo corpo inteiro do apelo sexual e do prazer orgasmático. Ou seja, a

transfiguração corporal seria uma via inversa, porém concorrente, da idealização dos sex symbols.

Aqui, a mens humanata opera, em sua missão de controle completo sobre o corpo, através da corrupção, da mutilação, da morte manipulada. A tecnologia invade o organismo

concreto e resolve transmigrá­lo para o estado de potência abstrata. Contudo, tal violência

escandaliza a última barricada prometéica dentro do ranço ocidental. Confrontado, assim, o

homem entre passado e presente, a saída mais “limpa” e “higiênica” é a virtualização pós­

orgânica: se não se pode mudar o corpo em si, que seja ele então gradualmente reocupado por

uma outra substância – mais maleável, dinâmica e, sobretudo, desprendida da história e dos

mitos trans­humanos.

Neuromancer

Bem vindo à matrix: esta é a mensagem inscrita no portal da realidade literária cyberpunk. Em 1984, William Gibson lança em seu romance Neuromancer uma sociedade absurda onde tudo se encontra tão entranhadamente combinado e reatualizado que só

podemos descrever as personagens com o auxílio de barras: Henry Dossett Case é um célebre

ex­hacker / um estelionatário de baixa influência / um viciado em cocaína e afetaminas / um

suicida em potencial; Molly Millions é uma rurouni pós­moderna / um guarda­costas / uma mercenária / uma lutadora de rua; Armitage pode ser tudo e ao mesmo tempo nada: uma

pessoa, um software, uma organização; e assim em diante. Cyber­cowboys, samurais, organizações secretas comunistas, inteligência artificial, engenharia biogenética e,

principalmente, ciberespaço: necessário se faz, inclusive, revisar o próprio conceito de

identidade. Ao invés de uma síntese mínima, de um cartão de visita, ela passa a ser uma

dispersão, um prisma que indica direções a lugares totalmente dispersos e obtusos. Chamar

por algo, aqui, é perder o objeto de vista: nomear é não­nomear.

46 Não esquecer do conceito de virtual com o qual trabalhamos: não é à toa que o vocábulo está aqui contraposto a concreto (no sentido de estático).

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Desta forma, a mens humanata torna­se palavra de comando. Ela divisa­nos em seu estado mais puro e completo. Dentro desta perspectiva, o ciberespaço é nada mais, nada

menos que o único e legítimo espaço humano.

De tal mote, temos a trama apocalíptica de The Matrix: após a última grande guerra, travada entre robôs e humanos, a vitória das máquinas condiciona­nos ao serviço mais basilar

de qualquer tipo de sociedade: a produção de energia. Plugados a geradores movidos a

metabolismo orgânico, a humanidade é entretida com uma realidade virtual que simula o

mundo entre­séculos hodierno. Alterando a imagem proposta por Kraftwerk, começamos a

viver nossas vidas não diretamente através do Spiegelglass, mas de um camera obscura localizada entre o olho e o espelho, direcionada a um ponto pré­determinado e controlado por

terceiros. Um simulacro da simulação que distorce o simulacro da simulação que Baudillard sugere em Simulacra and Science Fiction.

Considerações finais

Lenta, mas ostensivamente, as figurações estereotipadas do pós­humano e a extra­

sensoriedade da realidade virtual vão assumindo seus papéis no cotidiano de toda a

humanidade. Há poucas áreas do conhecimento, da indústria e da prestação de serviços que

ainda não façam uso nem de um item nem de outro. O aporte, enfim, já está definido e

programado. Contudo, ainda existe pouco preparo para as profundas mudanças econômicas,

sócio­políticas e ontológicas que este empreendimento implica, resultando na revelação de

antigos impasses e atualizadas inquietações entremeados ao longo de toda a história humana.

Embora de ramos e linhas tão variados entre si, teóricos como Donna Haraway, Pierre Lévy,

Paula Sibila e Jean Baudrillard debruçam sobre o assunto como o mesmo assombro e fascínio,

prevendo o ponto de não­retorno que estamos prestes a ultrapassar – mas que, no fundo, já

escolhêramos transgredir quando passamos a nortear nossa mundividência a partir do binômio

entre natureza e cultura. Ou seja, trata­se pura e simplesmente da queda depois de um

movimento milenar de ascensão e auge: como todos os grandes impérios da Terra, este

também cairá.

Tal prenúncio e tal labirinto de sensações e descobertas surtiram efeito profundo nas

artes do século XX. Não só foram utilizados como tema e criaram um rincão e um gênero

próprios, como igualmente uniram estéticas tão várias quanto a literária, a cinematográfica e a

musical. Indo de encontro à falácia da morte de certas formas em favor de outras, comprovou­

se a interdependência entre as artes e o amálgama natural entre estas – cada uma

influenciando as outras e sugerindo novas técnicas à linguagem das demais. Em termos gerais,

esta seria mais uma das várias marcas dos novos tempos, gradualmente concebidos, nos

quais a pureza cede lugar à mestiçagem, as mônadas de Leibniz à fenomenologia de Hegel, o

apriorístico ao pontual e, enfim, o humano ao trans­humano.

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Trans­humano, o cerne sub­reptício de nossa discussão. Com ele, criou­se um termo fadado a se extinguir instantaneamente em si: ele representa a relevância de um traço inerente

ao ser humano que, por razões ideológicas, é ocultado ou parcialmente ignorado pelo discurso

vigente. A intenção aqui foi claramente a de estabelecer uma relação de igualdade entre os

dois conceitos para, em seguida, absorver um no outro, ressignificando­os. Vemos neste

procedimento uma possível via de interpretação da nova linguagem e do novo ser humano. Foi

com esta intenção maior que o presente artigo levou­se ao cabo.

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LEITURA LITERÁRIA E CATEGORIAS EXATAS

Andréa Coutinho Universidade Católica de Brasília

[email protected]

RESUMO:

Este trabalho pretende considerar que o mundo contemporâneo apresenta, como uma importante característica, a expansão da ciência e da tecnologia e que a literatura acaba por imprimir essa característica aos textos nomeados de ficção científica. O estudo científico do aleatório, da desordem, caos e ordem, abre caminhos que aproximam a ciência da literatura que é capaz de antecipar, muitas vezes, possibilidades de futuro baseando­se em alguns conceitos científicos e tecnológicos atuais.

Palavras­chave: Ficção científica, literatura, ciência, tecnologia.

ABSTRACT:

This work intends to take into consideration that the contemporary world has the expansion of science and technology as an important atribute, and that literature ends up setting that same characteristic onto the texts known as science fiction. The scientific study of randomness, disorder, chaos and order, create ways that bring together science and the literature which is often capable of anticipatating future possibilities based on some concepts of current science and technology.

Keywords: Science fiction, literature, science and technology.

Era uma vez uma coincidência que saiu a passeio em companhia de um pequeno acidente. Enquanto

passeavam encontraram uma explicação, uma velha explicação, tão velha que já estava tão encurvada e tão encarquilhada que mais se parecia com uma charada. 22

Em 1953, Arthur C. Clarke, escritor britânico, publicou um conto, que está na coletânea

O outro lado do céu, intitulado “Os nove trilhões de nomes de Deus”, no qual lemos que monges, de um mosteiro tibetano, resolvem descobrir todos os nomes de Deus, os nove

trilhões de nomes (ou mais), partindo de todas as possibilidades de combinações permitidas

pelos nove caracteres de um alfabeto elaborado por eles. Essa busca, feita manualmente, já

durava mais de três séculos – “desde que a lamaseria foi fundada” (1984, p.13) e, nas

melhores previsões do “lama”, calculava­se que ainda seriam necessários quinze mil anos para

o término do trabalho. Pensando em uma forma de resolver a questão, os monges adquirem

um computador – o “Computador Sequenciador Automático” ­ que permitiria que se terminasse

o trabalho, substituindo­se os números pelas tais nove letras do alfabeto, em apenas cem dias.

No entanto, segundo a crença tibetana, quando a busca estivesse completa, e todos os nomes

22 Trecho de Lewis Carrol, estampado na orelha de A Ficção Cética, livro de Gustavo Bernardo.

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catalogados, estaria extinto o propósito da existência da raça humana e o mundo acabaria.

Claro que os engenheiros responsáveis pela instalação do computador, George e Chuck, não

acreditam de forma alguma, céticos que são, nesta crença. Mesmo assim, não se arriscam ­ o

que prova que, por mais descrentes que se seja, sempre há a dúvida, que mantém certo medo

e mistério ­, e abandonam o mosteiro antes que o computador termine de imprimir as últimas

páginas com os últimos nomes. Finalmente, quando retornam, já visualizando o DC­3 que os

levaria de volta, vão perceber que as estrelas no céu “sem nenhum estardalhaço” (1984, p.23)

estão se apagando no momento exato em que o computador estaria terminando sua

classificação.

O computador, no conto, embora preparado para executar tarefas repetitivas, é capaz

de realizar trabalhos impensáveis para o ser humano. São mais de “três séculos” contra “cem

dias”. Mapear os nove trilhões de nomes de Deus é possível para o “pensamento” linear,

programático e rápido dos computadores. Foi a partir deste conceito que David Ruelle afirmou

que, daqui a cem, cinquenta, ou duzentos anos veremos “os computadores não apenas a

ajudar os matemáticos nos seus trabalhos, mas a tomar a iniciativa, a encontrar definições

naturais e fecundas, depois de conjecturar e provar os teoremas cuja demonstração ultrapassa

em muito as possibilidades humanas” (1994, p.11) isso porque o autor acredita que cada vez

mais se tornará difícil para um matemático ser capaz de dominar sozinho uma questão

qualquer, pois as características e necessidades atuais da investigação científica mudaram

muito. O melhor exemplo seria apontado com o “teorema das quatro cores”, que postula que,

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em um mapa plano, quatro cores são suficientes 23 para que as regiões vizinhas não partilhem a

mesma cor, o que é impossível de ser demonstrado sem a ajuda de um computador. 24 Assim,

os conceitos de “acaso” e “incerteza” passam a ser considerados, o que acabou resultando na

valorização do cálculo das probabilidades e no desenvolvimento da teoria do caos buscando

compreender “a espantosa relação tripla entre a singularidades das matemáticas, a

singularidade do mundo físico e a singularidade do nosso próprio espírito humano”(RUELLE,

1994, p. 15).

Pensar que, na literatura de ficção científica, um monge tibetano (em cujas montanhas,

me pergunto, dispõe de energia?) necessita de um computador sequenciador – o Mark V, para

descobrir todas as combinações possíveis de letras, que seriam os “verdadeiros” nomes de

Deus, para que possam ser catalogados em cem dias e não em quinze mil anos, faz parte de

nosso imaginário, não deixa de ser interessante a descoberta de que também na matemática,

para que se evitem teorias que durem os mesmos quinze mil anos, há o uso da tecnologia

como uma única maneira de resolução de problemas. Claro que são apenas semelhanças, mas

é inevitável não perceber a mais exata das ciências, que precisa ser construída sem cometer

enganos, integrando mecanismos descritos na literatura, e esta sendo capaz de incorporar

facilmente as definições de acaso, de caos, de arbitrário e gratuito e ir além delas, pois interage

com o ficcional. Do outro lado, no entanto, sem espaço para esse arbitrário e gratuito, há toda

uma linguagem que também pode esbarrar com a construção primeira da máquina humana. E,

é preciso lembrar que, mesmo a física, que está mais voltada para explicar o mundo que nos

rodeia, também se revela pela linguagem matemática.

Newton estabeleceu leis que hoje chamamos de “física clássica” e a compreendemos

como uma ciência determinística. Einstein, por mais que represente a “física moderna”, com a

relatividade, mantém características essenciais que também são determinísticas. Com o

surgimento da física quântica, que estuda as partículas atômicas, no início do século XX, é que

as concepções começam a mudar e passam a apresentar um cunho mais probabilístico.

Apesar da ordem aparente do mundo natural, começa a ficar patente de que muito do que

vemos está menos regido pela ordem e mais pelo acaso. O princípio da incerteza ou da

indeterminação de Heisenberg, que acabou gerando muitos temas polêmicos, demonstrou que

não conseguimos saber, ao mesmo tempo, qual é a velocidade e a posição de um elétron,

quando observamos partículas atômicas, ou seja, se vou para algum lugar mas não tenho

23 Exemplo de mapa colorido pela teoria das quatro cores. Disponível em: http://www.unemat.br/faciex/professores/nelo/arquivos/colorindoMapsEd.pdf. Acesso em 21 jan2008.

24 A primeira vez que o teorema foi demonstrado foi em 1976, com um computador IBM, por Kenneth Appel e Wolfgang Haken. “Antes da demonstração do teorema das quatro cores, apresentada por estes dois autores, a utilização dos computadores na matemática resumia­se a calcular uma resposta aproximada, a gerar dados, a verificar regularidades, nunca afetando o que era demonstrado. Com a publicação da demonstração do teorema das quatro cores tornou­se inevitável o ressurgimento de discussões epistemológicas entre matemáticos e filósofos.” Disponível em: http://www.urbi.ubi.pt/030617/edicao/_op_trodrigues.html. Acesso em 21 jan 2008).

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como definir qual é a minha posição ou a minha velocidade, o tempo que levarei para chegar

torna­se uma “incerteza”. Existe, por exemplo, uma forma de se demonstrar que a forma e o

tamanho das estrelas segue uma ordem definida pela gravidade e pressão elétrica, mas não se

consegue definir qual é o lugar e o momento em que uma estrela irá surgir. Daí vamos deduzir

que o acaso é responsável por muito daquilo que percebemos no mundo e, desta forma, é

preciso mudar a maneira de analisá­lo e percebê­lo.

Claro que tudo isso, toda a constatação de que podemos prever possibilidades mas

não delimitar as certezas, não poderia ter sido aceita, sem muita discussão, nas comunidades

científicas. Claro também que acabou envolvendo diversas áreas diferentes (embora saibamos

que afins) como a biologia, a química, a astronomia, envolvendo até conceitos místicos e

religiosos. É possível prever padrões regulares e repetitivos, porém estes não obedecem mais

ao previsível absoluto. No entanto, por paradoxal que seja, a ciência está, hoje, procurando

compreender a “desordem”, por meio de estudos ordenados, concluindo que é possível prever,

dentro de determinados limites, alguns eventos acidentais. Explico: se a ordem do mundo

natural é a desordem, esta última passa a ser, sem dúvida, a nova “ordem” do universo. A

“desordem” é a ordem natural e passa a ser “medida” por uma propriedade, que é a entropia

que, como uma “flecha do tempo”, tende sempre a aumentar, num processo de

irreversibilidade. No seu livro, Primeiro você constrói uma nuvem, K. C. Cole, define de forma bem simples e direta o que se entende por entropia.

Por causa de sua enervante irreversibilidade, costumam chamar a entropia de flecha do tempo. Todo mundo compreende isso instintivamente. O quarto das crianças, se deixado por conta delas, tende a ficar bagunçado, e não organizado. A madeira apodrece, o metal enferruja, as pessoas enrugam e as flores murcham. Até mesmo as montanhas se deterioram; os próprios átomos decaem. Na cidade, você vê a entropia nos metrôs quebrados, nas calçadas velhas, nos prédios demolidos, nas pontes caídas. (2007, p. 248).

Probabilisticamente, no entanto, não sei se para o “bem” ou para o “mal”, existem muito

mais caminhos para a desordem do que para a ordem. Neste sentido, a entropia supera

sempre, porque é mais fácil, e há muito mais possibilidades para o “erro” do que para o

“acerto”. É muito mais fácil desmontar do que montar, é mais fácil ampliar a desordem do que a

manutenção da ordem. De maneira doméstica, podemos perceber isso, basta que nos

perguntemos se é mais fácil manter uma casa ordenada ou ir, mesmo que pouco a pouco,

ampliando a desordem. Claro que é um exemplo muito pequeno, perto das possibilidades e do

tamanho das questões naturais, mas esta é apenas uma maneira de entendimento. No

entanto, para aumentar o paradoxo, é interessante perceber, seguindo o pensamento de Cole,

como o grau de ordem é crescente em relação à desordem, porque o que procuramos, na

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verdade, é a ordem, embora saibamos que o aumento da desordem, sobretudo segundo os

físicos, tende a se ampliar.

A ordem total do universo é um equívoco. Mas é sempre bom termos consciência de

que a "desordem" é uma nova ordem, diferente da primeira ou daquela que aprendemos a

considerar como ordem mas, sem dúvida, uma "ordem". Estamos todos submetidos a uma

ordem, que se nomeia universal e, talvez por isso, torna­se difícil pensar a desordem,

principalmente se a associo, simplesmente, à ausência de organização, à falta de lógica, à

incoerência ou desigualdade, à má administração ou à desarmonia. No entanto, na física, a

"desordem", que tratamos aqui, e que nos serve como paralelo ao texto literário, corresponde a

uma distribuição aleatória de objetos, daí a relação com a probabilidade. Nem a cadeia de

átomos dos diamantes é perfeita, alguns apresentam algumas "deformações", mas, é claro, a

olho nu é e será sempre perfeito. A "desordem" da qual tratamos é aquela que me permite

entender que, por mais que siga pelo mesmo caminho, na mesma velocidade, em direção ao

mesmo lugar, não é possível seguir "milimetricamente" o mesmo trajeto. Um ponto ou outro

sempre sairão do lugar. Essa é a percepção de várias áreas da ciência contemporânea, que

tenta perceber essa "ordem natural" a partir de nova perspectiva. Ela é uma "ordem", sem

dúvida, mas não é única.

Claro que é difícil fugir completamente da semântica de uma palavra. Na filosofia grega

o universo ordenado em leis e regularidades de maneira integrada, ou seja, a harmonia

universal, era designada como "cosmos". E essa era a forma como os gregos nomeavam o

universo. Não o chamavam de caos, que remetia exatamente à idéia contrária ­ a desordem.

Porém, é bom lembrar que, no princípio, era o caos, pois a suposição é de que os elementos

no espaço se misturavam antes de se ordenarem para formarem o universo como o

entendemos hoje. Caos estava associado, então, à escuridão, à confusão de elementos, à

irregularidade, à desordem. Na cosmogonia de Hesíodo, o caos aparece como o vazio

primordial, a busca pela origem de todas as coisas 25 , que acaba propiciando o nascimento de

todos os seres do universo e da concretização do que associaremos à realidade. Diz Hesíodo,

em sua Teogonia: "Antes de todas as coisas, surgiu o Caos; depois Géia (terra), de vasto seio,

assento sempre firme de todos os Imortais que habitam os cumes do Olimpo, e o Tártaro

tenebroso nos recessos da terra espaçosa, e Eros, o mais belo dos Deuses Imortais... Do Caos

nasceram Erebo e a negra Noite; da Noite foram gerados o Eter e o Dia. A Terra gerou,

semelhante a si própria em grandeza, o Céu (Urano)... e gerou depois os grandes montes,

morada dos deuses e das Ninfas, que habitam nos seus vales." O caos saiu das trevas, que

remete à ignorância, e das trevas deu­se a luz, o que remete ao conhecimento, à objetividade,

25 Hesíodo foi o primeiro a sistematizar os antigos mitos da criação e a organizar os mitos gregos numa seqüência lógica. De certa forma, Teogonia é o mais antigo tratado de mitologia grega que chegou até nós. (Disponível em: http://greciantiga.org/lit/lit03b­2.asp) . Acesso em 22 jan 2008).

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ao lógico e racional. Assim, os conceitos clássicos de ordem e desordem, cosmos e caos não

são associados na mesma perspectiva que nos apresenta a física, quando afirma que

pequenas diferenças iniciais, estas regidas por equações sensíveis, vão acarretar grandes

diferenças finais.

O pensamento racional, de certa forma, se afasta do pensamento mítico. Mas, pode­se

afirmar que o mito tem, em sua origem, a explicação para a origem do próprio homem e de seu

pensamento, e é um “lugar” onde a ciência não consegue penetrar porque não é permeável ao

pensamento racional. Mesmo com todo o avanço da ciência e da tecnologia, mesmo que todo

esse desenvolvimento se deva à intelecção humana, é sabido que nem toda a capacidade

mental do homem está direcionada ou dirigida pelo pensamento lógico. Além disso, esse

pensamento não­lógico não é linear como o queria a ciência. Não é sem outra razão, então,

que a atenção de muitos pensadores e cientistas, a partir da constatação do “nem sempre

lógico” tem se voltado para o estudo do não racional e, em conseqüência do imaginário, que

passou a designar o acervo dos pensamentos não racionais, mas que continua a designar o

pensamento possível para a construção da literatura. E, é estranho constatar, que os

pensamentos lineares estão sempre em discussão em busca da veracidade e da comprovação,

mas que os mitos, por alguma forma eternizados, dispensam a comprovação e são

permanentes.

Assim, o conceito de caos não é novo, pois tem sua origem na história do pensamento

humano, na mitologia, na filosofia. Ainda hoje seguimos a tradição, de Platão a Aristóteles, de

explicar, de maneira racional, a estabilidade e o equilíbrio da natureza, daí considerar­se que o

conhecimento é o triunfo da ordem sobre a desordem, do cosmos sobre o caos. E, quem

sempre procurou encontrar a ordem no caos foi a ciência. No caso, a ciência clássica visava a

leis que determinassem os fenômenos que poderiam ser previstos. Seria uma ciência

invariavelmente da certeza. Assim, sempre houve uma equivalência entre os conceitos daquilo

que é completamente desordenado com o conceito de caos e, esse conceito é que define o

pensamento e o uso “popular” do termo. Para que se tenha, entretanto, a real definição do

conceito, na ciência, é importante desligar o caos dessas concepções populares e até mesmo

teológicas. O caos seria, nesta perspectiva, apenas a impossibilidade de aplicar métodos

exatos em um elevado número de objetos. Vários textos literários apresentam o caos nessa

concepção de “desordem” e “confusão”. Mas o caos não tem relação direta com essa

desordem porque, na verdade, refere­se ao princípio indefinido e indeterminado de todos os

objetos da natureza.

Visto por outro lado, a descoberta de que nem tudo obedece a mesma ordem, de que

a natureza não é tão regular assim, revolucionou a ciência pois, com tais conceitos, criaram­se

uma infinidade de enigmas. James Gleick, no seu livro Caos: a criação de uma nova ciência, vai demonstrar que o caos se tornou um nome para um movimento que está reformulando a

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estrutura dos sistemas científicos. Além disso, com o suporte das tecnologias, criou novas

técnicas, novas possibilidades de uso dos computadores, produzindo imagens, fotos, um

mundo gráfico e visual que era impensável há alguns anos e, o mais impressionante, vai

“revolucionar” conceitos ancestrais já canonizados dentro de diversas outras ciências como a

química, a biologia, a geometria, e a física. O mais interessante é a afirmação de que os

físicos, por exemplo, estão, agora, também preocupados com os fenômenos “numa escala

humana” e, embora continuem a estudar e pesquisar as galáxias passaram também a ter certa

preocupação “com as nuvens”. É difícil não ver nessas nuvens uma certa composição

metafórica, artística e literária e, com isso certa aproximação com a concepção mais antiga das

artes, pois o conceito de “caos” como o indefinido e indeterminado, que sempre acarreta a

surpresa, já que não delimita , ao certo, o que virá, é a força da criação artística que sempre

busca, na ordem, um elemento novo que se estabelece como uma surpresa. A matemática,

que sempre esteve bem perto da arte nas partituras musicais, nas constituições estéticas,

dentre outras coisas, vai se tornar mais arte com os fractais. Assim, “para um físico, criar a

fusão a laser era um problema válido; descobrir a rotação, a cor e o sabor de pequenas

partículas era um problema válido; datar a origem do universo era um problema válido.

Compreender as nuvens era problema para o meteorologista”. (GLEICK, 1989, p.3). De toda

forma, fica a pergunta: qual é a forma de uma nuvem? E a única resposta possível é a

percepção de que, definitivamente, o mundo não se apresenta como geométrico.

A teoria do caos terá a pesquisa feita por Mitchell Feigenbaum 26 como seu grande

marco. Este matemático observou que, mesmo os fenômenos que apresentam certa

linearidade, podem, de repente, mudar de direção, o que desnortearia cálculos e resultados já

considerados como corretos. Por isso, o conceito de aleatoriedade foi se incorporando ao

conceito de caos e "rompeu as fronteiras que separam as disciplinas científicas” e, ainda como

afirma Gleick:

O caos suscita problemas que desafiam os modos de trabalhos aceitos na ciência. Vale­ se, e com muita ênfase, do comportamento universal da complexidade. Os primeiros teóricos do caos, os cientistas que colocaram em andamento essa disciplina, tinham certas sensibilidades em comum. Eram sensíveis aos padrões, em especial os que surgiam em escalas diferentes, ao mesmo tempo. Tinham um gosto pelo aleatório, pelo complexo, pelas extremidades recortadas e pelos saltos súbitos. Os que acreditam no caos – e eles por vezes se intitulam crentes, ou conversos, ou evangelistas – especulam sobre o determinismo e o livre­arbítrio, sobre a evolução, sobre a natureza da inteligência consciente. Sentem que estão fazendo recuar uma tendência na

26 Mitchell Feigenbaum, matemático americano que, usando computadores, estabeleceu uma descrição completa dos sistemas durante sua transição ordenada a partir de uma desordenada, identificando a existência de um "padrão matemático universal". Pioneiro na ciência do caos, identificou uma constante na natureza que hoje é conhecida como "os números de Feigenbaum. Apresenta como exemplo a ebulição da água demonstrando que há uma progressão na fervura da água que é bem definida e, esses pontos que definem essa ebuluição, equivalem aos números de Feigenbaum. Com isso, pode­se pensar que mesmo no caos existe uma ordem matemática.

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ciência, a do reducionismo, a análise dos sistemas em termos de suas partes constitutivas: quarks, cromossomos ou neurônios. Acreditam estar á procura do todo. (1989, p.5)

Então, é notável que esse eterno afastamento entre ordem e desordem, harmonia e

caos, é resultado de toda uma percepção da origem do universo e, com certeza, de algum

impulso inerente ao próprio homem que, de uma forma ou outra, sempre busca a ordem, até

mesmo para sua localização e entendimento. O resultado da pesquisa de Newton, conjugada a

outras leis, ampliou o desejo de se buscar uma teoria que explicasse o todo. Newton foi

suplantado pela relatividade de Einstein e pela mecânica quântica mas, em busca da

confiabilidade e perfeição, ainda acreditamos muitas vezes que “Deus não joga dados” 27 e,

com isso, permanecemos em um jogo no qual uma teoria suplanta outra teoria, o que não é

negativo, percebendo que há algo de novo “no ar”. Por essas nossas “origens”, torna­se difícil

muitas vezes entender o conceito de caos, associado não só à “desordem” mas à “ordem”,

entender o caos como resultado, sobretudo, da relação entre a desordem e a ordem, pois os

conceitos “probabilísticos” parece que só existiam para comprovar a ignorância dos não aptos à

ciência em relação às dimensões dos fenômenos sociais. A incerteza como elemento inerente

a esses fenômenos não era algo a ser declarado. Com curiosidade, no livro do matemático Ian

Stewart, Será que Deus joga dados?, diversos conceitos abstratos vão sendo explicados e, embora centrado nas demonstrações matemáticas, a idéia do “provável” passa a ser elemento

primordial neste estudo. Assim, Stewart, explica­nos a ligação entre “ordem” e “desordem” pela

imagem (dentre outras) de um liquidificador, que “é um aparelho mecânico, que se move de

modo regular e predeterminado e torna os ingredientes randômicos” (1991, p.160), e

demonstra que, muito do entendimento para toda essa nova teoria, não é algo que se possa

enxergar nitidamente. Só entenderei, mesmo que de maneira distante, o que é um atrator

estranho, quando puder vê­lo “pulando” na tela de um computador. É o mesmo autor que,

como matemático, vai afirmar um “parentesco” entre a beleza do matemático e a do poeta, pois

“ambas procuram a simplicidade em meio à complexidade” (1991, p. 180).

Toda essa discussão deve ainda levar em consideração mais do que as incertezas mas

também o universo da imaginação , pois acredito que este último seja o passo primordial para

se desvendar algumas incertezas, mesmo que estas se mantenham como tal. Isso faz lembrar

o livro do Louis Aragon, O camponês de Paris, quando afirma que “agrada ao homem manter­ se no limiar das portas da imaginação”, e nos apresenta um “Homem” que conversa com suas

faculdades – a Sensibilidade, a Vontade, a Inteligência, sobre seu “médico”, alguém não muito

conhecido, o que leva a Inteligência a afirmar que não gosta “da incerteza”. Na verdade, refere­

se à imaginação descrita como: “um velho alto e magro, com seus bigodes à Habsbourg, uma

longa sobrecasaca forrada e um barrete de pele. Seu rosto é animado por tiques nervosos;

27 Deus não joga dados com o universo", é frase atribuída a Einstein, dando a entender que na sua opinião, a Natureza não poderia operar através de leis estatísticas, tal como proposto na Teoria Quântica.

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quando fala, faz o gesto de segurar os adornos imaginários de um interlocutor invisível; traz

sobre o braço Au 125, Boulevard Saint­Germain, de Benjamin Péret. Uma única coisa parece verdadeiramente extravagante nele: é que anda com um patim de rodinhas no pé esquerdo,

colocando o direito diretamente na terra . Adianta­se em direção ao homem e lhe diz: Guerra é

guerra. Vocês todos, com esse costume de resignar­se à própria sorte, vocês não me levaram

em conta. De uma ilusão a outra, vocês recaem incessantemente à mercê da ilusão Realidade.

Entretanto fui eu que lhes dei tudo: a cor azul do céu, as Pirâmides, os automóveis. Por que

vocês perdem a esperança em minha lanterna mágica?” (1996, p. 90 – 91)

Fruto da imaginação, está a ficção, que não consegue nos mostrar uma atrator

estranho como a tela de um computador, mas é capaz de, pelas suas histórias, servir como

uma “lanterna mágica”. O mestre da ficção científica Pynchon foi capaz de relacionar

questões sociais com a física e a biologia e tratar da crônica do caos. No seu livro V., o autor revelará uma sociedade que vai crescendo exponencialmente em sua organização, fruto de

fantásticas linhas de desenvolvimento, sobretudo, tecnológico mas que, paralelamente, vai

aumentando sua degradação. Ao mesmo tempo que discute e imprime velocidade para criar

um novo sistema, cria um outro que escapa do seu próprio controle que , na verdade,

contribuirá para aumentar o nível de entropia. No livro, o autor contrapõe a vida de dois

personagens, que são completamente diferentes, mas que se precipitam em relação ao vazio,

desorientados pela degeneração do Cosmos no caos. Assim, não há melhor modelo para

pensarmos e percebermos muito da ciência e tecnologia contemporâneas do que a literatura

que, mais que ficção, é científica.

Referências

ARAGON, Louis. O Camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996). BRONOWSKI, Jacob. O olho visionário: ensaios sobre arte, literatura e ciência. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

CLARKE, Arthur C. O outro lado do céu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. COLE, K.C. Primeiro você constrói uma nuvem e outras reflexões sobre a física em nosso cotidiano. Rio de Janeiro: Record, 2007

COUCHOT, Edmond. A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2003.

GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. 15ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 1989. KRAUSE, Gustavo Bernardo. A ficção cética. São Paulo: Annablume, 2004. PYNCHON, Thomas. V. São Paulo: Paz e Terra, 1988. RUELLE, David. O acaso e o caos. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1994. STEWART, Ian. Será que Deus joga dados?: a nova matemática do caos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed.,1991.

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CORPOS SEM CORPOS em The.Powerbook, de Jeanette Winterson

Ana Cecília Acioli Lima Universidade Federal de Alagoas

[email protected]

RESUMO:

Baseada no pressuposto de que os textos literários constituem­se em espaços onde as novas tecnologias podem ser resignificadas, repensadas e problematizadas em termos sócio­culturais, pretendo analisar como Jeanette Winterson, em The.Powerbook (2000), utiliza a narrativa como um meio de encenar a tensão entre (ciber)leitor/a e (ciber)autor/a e entre corpos “reais” e corpos “virtuais”/ciborgues/pós­ humanos, que interagem através de imagens eletrônicas, em um universo cibernético que desestabiliza as fundações ontológicas do que conta como humano (HAYLES,1999); enfatizando, assim, a ansiedade gerada pela dissolução não só da materialidade dos corpos e de suas fronteiras físicas, como de suas marcas de gênero. Conseqüentemente, segue­se a essa discussão, as formas em que as subjetividades e identidades são (des)(re)construídas no universo fluido do ciberespaço, onde o corpo não mais as garante ou as contém.

Palavras­chave: Ficção pós­moderna, hipertexto, corpo, ciberleitor/a

ABSTRACT:

Based on the assumption that literary texts constitute spaces where new technologies can be resignified and problematized in social­cultural terms, I investigate, in this essay, the ways in which Jeanette Winterson, in The.Powerbook (2000), makes use of narrative as a way of playing out the tension between (cyber)reader and (cyber)author, and also between “real” bodies and “virtual/cyborg/posthuman” bodies, which, in interacting through electronic­prompted situations, in cyberspace, destabilize the ontologic foundations of what counts as human; emphasizing, thus, the anxiety brought about by the dissolution, not only of the materiality of the body and its physical limits, but of gender marks. This discussion leaves open the question of what is left of subjectivities and identities when the social and material body, as we know it, can no longer contain them.

Keywords: Post­modern fiction, hypertext, body, (cyber)reader

A pós­modernidade e a questão da autoria

Será que nos chamados tempos pós­modernos em que vivemos podemos falar em

autor/a? Será que, de fato, existe uma subjetividade real por trás de um texto, que lhe possa

garantir alguma coerência estrutural e/ou de significados? Essas questões, inevitavelmente,

nos levam a repensar da mesma forma o papel do leitor/a. É possível falarmos em um leitor/a

independente, capaz de estabelecer uma relação dialógica única e coerente com o texto

literário?

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A analogia entre Autor/a e Deus é um tema ontológico clássico na teoria e na filosofia

da literatura. O poeta inglês, Sir Philip Sidney, em sua The Defence of Poesy 3 , de 1595, defendia uma idéia que, na verdade, era lugar­comum na Renascença — a de que o poeta, o

sujeito que conhece, o demiurgo (com uma função quase divina) — cria um mundo outro, “uma

outra natureza”. Assim, Sidney situava o mundo ficcional como um heterocosmo, um universo

similar, e, por isso mesmo, diferente do real. Apesar da noção da criação de um heterocosmo,

ainda se concebia um mundo real que seria refletido no espelho mimético da literatura.

Desde a exaltação romântica da originalidade e do gênio do poeta/autor, cuja mente

não só refletia, mas transformava o mundo ao seu redor, passando pela pretensão realista de

registrar o mundo e as relações humanas tais como se apresentam na realidade, chegamos ao

dilema epistemológico modernista, como coloca Dick Higgins, citado por Brian McHale,“Como

posso interpretar esse mundo do qual faço parte? E quem sou eu nele?” (McHale, 1987: 9). 4

Outras interrogações levantadas pelo modernismo são: “O que existe para ser conhecido?”;

“Quem pode conhecê­lo?”; “De que forma podemos conhecê­lo, e com que grau de certeza?”;

“Como o objeto do conhecimento se transforma à medida que passa de conhecedor/a para

conhecedor/a?”; “Quais os limites do que podemos conhecer?”. Mesmo inaugurando uma

relação mais conflituosa com as possibilidades de se apreender e representar o real, o

modernismo ainda acreditava na existência do referente — de um real passível de ser

representado, muito embora ele exigisse novas formas e novas estratégias de representação.

Quando chegamos ao que hoje chamamos de ficção pós­moderna, observamos que os

questionamentos vão além dos limites epistemológicos da representação, diante da

impossibilidade de se apreender o real. A arte pós­moderna, como coloca Fredric Jameson,

não vislumbra um fim para o processo de mudança; daí seu interesse em rupturas, em eventos

(um momento jamais é igual ao outro); em variações em vez de fixidez. A ficção pós­moderna

não trabalha mais com uma linguagem transparente, mimética, que reflete o real; a “realidade”

já foi em si encapsulada por imagens culturais que ocuparam o lugar da “natureza” — um

fenômeno que Jameson chama de “aculturação do real”. Portanto, com a dissolução do

referente, a interrogação dominante da ficção pós­moderna, como aponta McHale, é

ontológica. Ainda segundo McHale, outras questões características do pós­modernismo

residem tanto na ontologia do texto literário em si como na ontologia do mundo que ele projeta:

“O que é um mundo?”; “Que tipos de mundo existem, como são constituídos, e como diferem

entre si?”; “O que acontece quando diferentes tipos de mundo são confrontados, ou quando os

limites entre mundos são violados?”; “Qual o modo de existência de um texto, e qual o modo de

3 Ver The Norton Anthology of English Literature, vol. 1, 5 ed: 504­25. 4 Todas as traduções são de minha inteira responsabilidade, e foram feitas com o fim exclusivo de citação neste trabalho.

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existência do mundo (ou mundos) que ele projeta?”; “Como é estruturado um mundo

projetado?”.

Na carência de um mundo palpável e de uma linguagem que possa lhe servir de

espelho, a ficção pós­moderna se vale dessa instabilidade ontológica e do caráter irrecuperável

da experiência vivida para descrever outros mundos, outros universos que não aquele(s) no

qual acreditamos que vivemos. Isso não implica necessariamente, como aponta McHale, uma

tentativa de encontrar bases explicativas para o nosso mundo, mas além, obviamente, do

próprio heterocosmo que é a ficção em si, implica a invenção não só de universos possíveis e

inteligíveis, como também de universos impossíveis e ininteligíveis.

Por que não dizer que a ficção pós­moderna tenta explorar discursivamente os

impasses epistemológicos do modernismo, muitas vezes, articulando a própria impossibilidade

de um sujeito­autor/a­leitor/a detentor/a de um ponto de vista fixo e coerente? The.Powerbook 5 (2000), da inglesa Jeanette Winterson, desloca tanto a figura autoral

quanto a do/a leitor/a dos lugares pré­definidos de criador/a e de intérprete. Ao multiplicar as

vozes da/o suposto/a autor/a das várias micronarrativas que compõem o livro, torna mais

complexa ainda a função não só do/a leitor/a­personagem como a do/a leitor/a real, que passa

a ocupar uma série de posições subjetivas provisórias e instáveis. Além disso, articula através

da narrativa a tensão entre os corpos materiais que existem fora da tela do computador e os

corpos virtuais ou “descorporificados”, simulacros cibernéticos, que criam um espaço próprio

dentro da tela (ver Hayles, 1999: 20).

Interação no ciberespaço: ciberautor/a e ciberleitor/a

Ao abrirmos o livro, antes mesmo da folha de rosto e informações sobre a autora,

Jeanette Winterson, deparamo­nos de imediato com um powerbook aberto 6 , exibindo na tela a frase que norteia as estórias, “Freedom for just one night” 7 . Em vez de um índice propriamente,

temos um “menu”, em que os segmentos narrativos ora recebem títulos relativos à temática

explorada, ora são identificados por toda uma terminologia de comandos operativos e

interativos de um computador, a sua maioria em letras maiúsculas: “OPEN HARD DRIVE”,

“NEW DOCUMENT”, “SEARCH”, “VIEW”, “VIEW AS ICON”, “EMPTY TRASH”, “SPECIAL”,

“HELP”, “SHOW BALLOONS”, “CHOOSER”, “QUIT”, “REALLY QUIT”, “RESTART”, “SAVE”.

5 O título do livro, The. Powerbook, tanto pode se referir, de uma forma mais óbvia, ao novo formato do livro eletrônico e o meio através do qual é veiculado, o powerbook (laptop), (“power”=energia=eletricidade), como à desconstrução de um poder centralizador (o autor onisciente), ou, ainda, ao poder investido no/a (ciber)autor/a e no/a (ciber)leitor de se reinventarem continuamente, ao longo das narrativas. 6 Observação pertinente à edição da Vintage, Londres, 2000. 7 Liberdade por apenas uma noite.

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The.Powerbook, na verdade, encena narrativas produzidas no ciberespaço — essa

espécie de “hiperterminal planetário onde toda informação circula” (Nicola, 2003: 156) — e que

nascem a partir de uma relação virtual entre autor/a e leitor/a. De fato, a/s narrativa/s

materializam a desmaterialização da informação, ilustrando e problematizando, mesmo que,

muitas vezes, não explicitamente, algumas implicações das novas tecnologias no

relacionamento interpessoal e na (des)construção/articulação de identidades.

Como alguns teóricos já destacaram (Derrida, Foucault, Butler, Hall) as identidades são

produzidas dentro, e não fora, da representação, em uma intersecção contínua com a história,

a cultura e a linguagem, através de um processo de “tornar­se” e não de “ser”. Como afirma

Stuart Hall, as identidades surgem da “narrativização do self”, o que aponta para a natureza ficcional desse processo. Ainda mais, as identidades são construídas através e não fora da

diferença. E esse fato, como ressalta Hall, revela que é apenas através da relação com

aquele/a/aquilo que não é, com o Outro — o que Derrida e Butler chamam de “exterior

constitutivo”, que qualquer idéia de identidade pode ser construída (Hall, 1996). Evidentemente,

a relação com as novas tecnologias cibernéticas e espaços virtuais proporciona diversos

pontos de intersecção por onde se (des)construir possíveis identidades/identificações. É

pertinente, assim, observar como Winterson tece narrativas que articulam a fragilidade das

nossas construções do real, e, através da cibernética, metaforiza a ansiedade que emerge

quando as fronteiras físicas dos corpos são rompidas — o humano é transformado em um

“pós­humano descorporificado” — e suas identidades, conseqüentemente, passam a se

constituir, provisoriamente, através das narrativas.

Winterson pensou The Powerbook como uma ficção do século XXI, que narra uma história simples de uma maneira complexa, numa realidade multidimensional, onde passado,

presente e futuro se entrecruzam. Basicamente, o livro trata de Ali, um/a escritor/a que escreve

por encomenda histórias que permitem às pessoas serem as heroínas de suas próprias vidas.

O único risco é entrar na história como você mesma e sair como outra pessoa. E esse risco é

uma prerrogativa que o/a leitor/a personagem compartilha com o/a próprio/a autor/a. Situado

em Londres, Paris, Capri e no ciberespaço, The Powerbook, é um livro que se re­inventa ao longo das narrativas, à medida em que o nosso passado literário também é reinventado pelas

novas versões de contos de fadas, Dante, Malory e mitos contemporâneos. Todas as narrativas

funcionam, como diz a própria Winterson, na intersecção entre o real e o imaginado. 8

Logo no início, temos a impressão de que o foco narrativo está centrado em Ali, um/a

escritor/a que conta estórias por encomenda, e que se autodenomina um/a estilista da

linguagem — “a language costumier”. Na verdade, Ali estiliza não só a linguagem, mas através

dela, as identidades de seus/suas clientes e a sua própria. Em nenhum momento, coloca­se

8 Cf. www.jeanettewinterson.com/the.powerbook

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como sujeito criador, onisciente, imbuído de poder pela manipulação da linguagem. Numa

perspectiva bem foucaultiana, Ali é tão produto de suas narrativas, como as pessoas que o/a

procuram, buscando a liberdade por uma noite — a liberdade de se transformarem em outras

pessoas. Uma transformação que se dá no ciberespaço, sem contato físico ou visual:

Noite. As ferramentas de busca estão paradas. Continuo lançando estórias, como uma mensagem numa garrafa, com a esperança de

que você as leia, e me responda. Você não responde. Avisei­lhe que a estória poderia se transformar nas minhas mãos. Esqueci que o/a

contador/a de estórias se transforma também. Eu estava nas suas mãos (p. 83).

O livro que se materializa em nossas mãos, leitores/as reais, parece, muito mais, uma

transcrição da interação entre Ali e seus/suas clientes e do processo de construção das

diversas micronarrativas, as quais, vale lembrar, podem ser interrompidas, sofrer alterações, ou

ser até completamente eliminadas, se não agradarem a/o cliente/leitor/a/personagem, quase

que nos moldes de um hipertexto construtivo 9 e/ou de uma hiperficção. 10 O/a leitor/a­

personagem passa a ter o poder de interferir no desenrolar de “sua” história, e, dessa forma,

Winterson confunde, minimiza e desestabiliza a relação tradicionalmente hierárquica entre

autor/a e leitor/a.

Ao final de uma das histórias, Ali, o/a escritor/a sem corpo — o próprio simulacro da

função do autor, para usar o termo de Foucault — que se materializa apenas através de suas

palavras na tela do computador, recebe uma mensagem de um/a cliente insatisfeito/a com o

rumo de “sua” narrativa. Ao que Ali rebate alegando que, uma vez que começa uma história,

esta pode seguir caminhos imprevisíveis (p. 26), negando mais uma vez a figura do autor­

demiurgo, que julga ter pleno controle sobre a sua criação. A partir daí se segue um diálogo

inusitado entre “escritor/a­personagem” e “leitor/a­personagem”, em que trocam críticas,

sugestões e novas idéias para uma nova narrativa. Entretanto, mesmo esse contato, que,

supostamente, ocorre em um intervalo entre uma história e outra, está totalmente imbricado no

universo virtual e ficcional, e não há mais como definir ou identificar uma realidade original;

9 Com respeito à suposta liberdade do/a leitor/a interativo/a , é importante lembrarmo­nos de que a rede também apresenta limitações, que, por sua vez, limitam e delimitam, mesmo em um espaço vastíssimo como a Internet, as possíveis escolhas desse/a leitor/a. Assim, Michael Joyce distingue entre dois tipos de hipertexto, o exploratório, que exige da audiência a capacidade de organizar de forma coerente e sistemática as informações obtidas na rede; e o construtivo, que exige do/a leitor/a “capacidade de ação”, para “criar, modificar e recuperar encontros particulares no contexto de um sistema de conhecimentos em expansão” (Joyce, 1995. in Bellei, 2002: 76). 10 A hiperficção, no meio eletrônico de fato, caracteriza­se pela abertura que oferece ao/à leitor/a de entrar e circular no texto por diversas portas e de diversas formas, trilhando uma infinidade de enredos possíveis. Torna­se impossível reduzir uma hiperficção a um enredo básico dentre os vários possíveis. (ver Bellei, 2002: 115). Aqui sugiro que Winterson apenas simula a construção constante de uma hiperficção, sem começo, meio ou fim, em que o/a autor/a, mais do que nunca, escreve em função de, e em conjunção com, o/a leitor/a.

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assim como também não existe um centro, muito menos um sujeito unitário que possa ser

representado na sua unicidade e totalidade:

Você disse, Quem é você?” “Me chame de Ali”. “Esse é seu nome verdadeiro?” “Verdadeiro o suficiente”. “Homem ou mulher?” “Importa?” “É uma coordenada.” “Esse é um mundo virtual.” “OK, OK — mas só pra constar — homem ou mulher?” “Pergunte à Princesa.” “Aquilo era apenas uma história.” “Isso é apenas uma história.” “Que eu chamo de uma história verdadeira.” “Como você pode saber?” “Eu sei, porque faço parte dela.” “Estamos juntos/as nela agora.” Houve uma pausa — então digitei, “vamos começar. Que cor de cabelo você quer?” “Vermelho. Sempre quis cabelos vermelhos.” (...) “O que devo vestir?” “Você escolhe. Combat ou Prada?” “Quanto posso gastar em roupas?” “Que tal $1000?” “Todo o guarda­roupa ou só uma roupa?” “Você está preso/a a um orçamento?” “Você é o/a escritor/a.” “É a sua história.”

E, por fim, o golpe final na instituição clássico­romântico­realista do/a autor/a:

“O que aconteceu com o/a autor/a onisciente?” “Virou interativo/a” (p. 26­7).

Interessante observar como o/a leitor/a, habituado/a ao modelo de leitura convencional,

ainda se prende a determinados conceitos tão arraigados como o de autor onisciente e resiste

a entrar no jogo da interatividade. Aceito o jogo, toda e qualquer relação estável entre autor/a e

leitor/a é subvertida e ambos/as são autorizados/as e desautorizados/as ao longo do processo.

Winterson cria, assim, um universo hipertextual em que o/a leitor/a tem toda a liberdade de se

inventar e se re­inventar infinitamente. A exemplo de vários escritores de vanguarda como

Sterne, W. Faulkner, James Joyce, Borges, Calvino, Angela Carter, Winterson instaura uma

nova modalidade textual dentro do tradicional texto impresso; transforma seu/sua leitor/a

personagem em leitor/a interativo/a — o que chamaria de ciberleitor/a — na medida que este/a

é interpelado/a diretamente pelo/a autor/a e convidado/a a tomar parte ativa no processo

narrativo, autorizando inclusões e exclusões, e efetuando toda sorte de escolhas.

Na teoria da informática, interatividade é “a comunicação recíproca entre o usuário de

um sistema de computadores e a máquina, por intermédio de um terminal dotado de um

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monitor de vídeo” 11 . Inseridos/as nesse sistema de relações informáticas, autor/a e leitor/a

constituem­se não apenas enquanto terminais virtuais, invisíveis, como também enquanto

indivíduos cujas identidades são produzidas a partir de estímulos mútuos dentro desse novo

modo de comunicação 12 . Poderíamos até dizer que a interação que se dá entre autor/a e

leitor/a trata­se tanto de uma relação interpessoal, visto que há troca de informações, como

também de uma reinvenção dessa interpessoalidade, já que essas “pessoas” não

correspondem a indivíduos “reais” fora do ciberespaço. De fato a simulação de um/a narrador/a

que conta histórias por e­mail enfatiza, não a presença, mas a ausência de um real ou de um

referente. 13 A simulação em The.Powerbook obedece, em grande parte, a lógica da simulação como conceituada por Jean Baudrillard, ou seja, trata­se da criação de modelos de realidade

completamente desconectados de uma origem e dissociados de qualquer realidade. É a

construção do que Baudrillard chama de uma hiperrealidade, em que “o território não mais precede o mapa, nem sobrevive a ele. Conseqüentemente, é o mapa que precede o

território”. 14 As personagens circulam, então, em uma rede, cujas intersecções estão em

contínua expansão, em um espaço hiperreal, onde não existem coordenadas definidas, e o

sujeito se perde num movimento incessante através de uma infinidade de canais e “links”. O

sujeito já não possui mais uma única direção a escolher, segue um movimento espiralado, cada

vez mais divorciado de um remoto referente. E assim, a relação entre autor/a e leitor/a é

problematizada, gerando uma espécie de angústia da incerteza, e seus papéis tornam­se

permeáveis e intercambiáveis; o autor/a é tão leitor/a quanto o /a leitor/a é autor/a:

Noite. Estou sentada/o diante da tela lendo essa estória. Por sua vez, a estória me lê. Escrevi essa estória, ou foi você, escrevendo através de mim, da mesma maneira que o sol acende o fogo através de um pedaço de vidro? (p. 209).

Numa entrevista, a própria Winterson defende que não podemos mais continuar

escrevendo uma ficção oitocentista tradicional; é inegável que o Modernismo e o Pós­

Modernismo mudaram o mapa, e que qualquer escritor/a de peso vai querer desenhar novos

caminhos nesse mapa. Nas suas próprias palavras: “Não quero ser curadora de um Museu da

Literatura; quero ser parte do futuro”. 15

11 Grande Enciclopédia Larousse Cultural, vol.6: 3.251, in Nicola, 2003: 28 12 ver Lévy, Cibercultura: 36, in Nicola, 2003: 29 13 Baudrillard ressalta a diferença entre dissimular, “fingir não ter o que se tem”, e simular, “fingir ter o que não se tem”. 14 “Simulacra and Simulations” de Jean Baudrillard. Selected Writings ed. Mark Poster, Stanford University Press, 1988. 166­84. Disponível em http://www.stanford.edu/dept/HPS/Baudrillard/Baudrillard_Simulacra.html 15 Entrevista publicada em um volume da série Vintage Living Texts, que apresenta e discute os temas, gêneros e técnicas narrativas utilizadas por JW em alguns de seus romances.

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Corpos, estórias, identidades

As estórias de Ali — cujo gênero permanece indefinido — não apenas criam narrativas

em que as pessoas podem se imaginar em um universo novo; na verdade, estas elaboram

mitos de origem alternativos de identidades cyborg, num espaço onde corpos e estórias se formam e se re­formam mutuamente, e onde a linguagem não é um determinante estático que

limita as possibilidades de configuração desses corpos. Podemos dizer que as narrativas

funcionam como uma forma de “matar” o real, para usar a expressão de Baudrillard ao se

referir às imagens, visto que à medida que são escritas e reescritas infinitamente, apesar da

irônica finitude do espaço físico do objeto­livro, elas resistem e desafiam a suposta relação

especular entre as representações e o real visível e inteligível. 16 A realidade passa a existir e a

se reproduzir exclusivamente na simulação de um universo ficcional situado no ciberespaço,

que se relaciona com um universo supostamente “real”, situado também no ciberespaço e nas

narrativas que constituem o livro — e não em algum real exterior a eles. Recorrendo ao

pensamento de Baudrillard, é possível afirmar que as realidades criadas pelas narrativas

constituem­se em um grande simulacro, no sentido que criam as suas próprias referências, em

um circuito contínuo. Em uma passagem em que Ali tenta explicar à/ao sua/seu amante por

que não consegue pôr um fim às suas histórias (que, na verdade, são metáforas da história de

amor entre essa/e escritor/a e sua/seu cliente), mais uma vez recorre a uma outra história, a

suposta história de suas origens, para explicar quem “é”. A necessidade de Ali de apresentar

uma identidade definida e clara, que remonte às influências dos pais, da genética e da

educação, é aqui ironizada ao extremo através de uma narrativa, supostamente autobiográfica,

que subverte todos os padrões realistas de tal gênero, criando uma “história de vida” que se

constrói na imaginação e na fantasia, e que foge de qualquer discurso lógico e coerente. Desse

modo, qualquer referência à realidade se dá dentro das próprias realidades criadas ao longo de

cada narrativa. A simulação, aqui, portanto, como diz Baudrillard (1988), nega a equivalência

entre o signo e real, que a representação pressupõe, e transforma toda representação em

simulacro.

Ao reproduzir, no livro, um novo modo de tecnologia de inscrição, Winterson põe em

xeque, também, a suposta estabilidade das identidades, através da própria instabilidade e

fluidez da relação entre significante e significado na mídia eletrônica, que é totalmente diferente

daquela conseguida através da máquina de escrever, por exemplo. Digitar uma tecla pode

efetuar mudanças radicais em um texto. Além do quê, o texto produzido na tela do computador

reforça ainda mais a sensação da palavra enquanto imagem fluida e mutável, diferentemente

da fixidez da palavra impressa na página datilografada. De fato, a relação que estabelecemos

16 Ver Baudrillard, 1988.

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com imagens eletrônicas não nos garante uma correspondência direta entre significante e

significado, uma vez que sempre sabemos que o texto pode ser manipulado e modificado,

como é o que acontece nas narrativas de The.Powerbook. As subjetividades e identidades são dispersas no circuito cibernético, e, como observa N. Katherine Hayles, “as fronteiras da

interação são determinadas menos pela pele do que pela conexão entre corpo e simulação em

um circuito integrado tecnobiológico” (p. 26­7).

Circulando nos circuitos de um computador, os corpos são as próprias estórias, e

ambos estão em constante mudança, ocupando identidades multi­situadas, entrelaçadas numa

rede de possibilidades múltiplas e provisórias, jamais esgotadas, como num jogo de

combinações infinitas entre cadeias de DNA, ou como o movimento de regressão infinita entre

cadeias de significados acessados através de hiperlinks. Como o/a próprio/a Ali “avisa” a seus/suas clientes no início, “as pessoas chegam como elas mesmas e saem como outras” (p.

3). A promessa de Ali a quem lhe procura não é nada menos que a “liberdade por uma noite.

Por apenas uma noite a liberdade de ser uma outra pessoa” (p. 4). O desejo é o de

transformação. Transformação que se efetua na conjunção entre corpo, linguagem, tecnologia

e narrativa.

As narrativas de Ali são protéicas e fugazes como a própria realidade que tenta

transformar. Na verdade, não diferencia o real da ficção. Afinal tudo são histórias, inclusive a

nossa própria vida: “história da criação, história de amor, de horror, de crime, a estranha

história sobre mim e você” (p. 4). As narrativas transformadoras de Ali são extensões ou

expansões (distensões?) dessa grande narrativa que vivemos no mundo “palpável”. É

impossível conhecer o real; teoricamente, pode ser impossível conhecer um corpo fora das

marcas simbólicas que fazem sua existência viável, mas no campo ficcional é possível

“desmarcá­lo”, dar­lhe formas outras, que penetram além da região dos disfarces que nos

fazem inteligíveis.

Ali não se propõe a criar mundos similares ao que vivemos. Logo no início, avisa que

se trata de um mundo inventado — mundos que podem se descortinar a partir de mínimos

incidentes (p. 32). Remetendo­nos ao que Silvio Gaggi fala sobre o hipertexto, como “uma

estrutura narrativa que se move de um incidente a outro, de um grupo de personagens a outro,

com pouco sentido de uma organização geral” (p. 99). De fato, as narrativas de Ali (se é que

podemos realmente atribuí­las a ela/e) se deslocam no tempo e no espaço, obedecendo a uma

lógica própria, e, aparentemente, casual e acidental: “Mais tarde, muito mais tarde, aparece

uma passagem aérea na tela — destino: Nápoles. Talvez você queira uma ópera, não uma

estória” (p. 83). Sem um roteiro ou planejamento prévio, as estórias podem tomar forma a partir

de estímulos gerados no próprio ciberespaço, a passagem­motivo aparece na tela sem ter sido

solicitada, semelhantemente às janelas “pop­ups” que inundam nossas telas de computador com propagandas.

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As narrativas trabalham, também, com a precariedade da linguagem em apreender

realidades e existências que circulam fora do discurso, e com a fragilidade da linguagem

também em projetar/idealizar/determinar a forma material que impõe limites aos nossos corpos.

Os corpos, na verdade, são vistos como mais uma ilusão de verdade, de certeza, e de

fronteiras fixas. Ilusão que precisa ser desconstruida para que haja estórias, para que haja

transformação. 17 Assim, Ali pede que se dispam, não só de suas roupas, como de seus corpos,

uma vez que estes são meros disfarces — ficções de uma estabilidade identitária, que se dá na

e pela linguagem. E eis que nos deparamos com um paradoxo e um impasse. Como através da

própria linguagem, podemos falar de um corpo antes mesmo deste ser marcado pelo

simbólico? O que resta de nossas identidades se nos desvestirmos do corpo, e, por

conseguinte, das marcas culturais que nos tornam humanos/as e inteligíveis?

Levantar essas questões implica pensar a relação entre a linguagem e a forma como

ela estabelece a materialidade do corpo. Se afirmarmos que a linguagem produz o corpo,

atribuindo a ele significados que se tornam a sua identidade “natural”, pareceria inviável, então,

pensar ou tentar recuperar o corpo fora da linguagem. Entretanto, o corpo, enquanto referente,

constantemente recusa­se a ser contido por um significado. Assim, como nos lembra Butler, a

impossibilidade da linguagem em capturar esse referente — o corpo — leva­na a tentar

indefinidamente, e em vão, essa captura, essa “circunscrição”. Contudo, ao colocarmos o corpo

fora da linguagem, já o fazemos em termos da própria linguagem. Melhor dizendo, a linguagem

e a materialidade estão completamente imbricadas uma na outra; dentro dessa lógica, o

referente não existe à parte do significado, o que não quer dizer, entretanto, que seja reduzido

a ele. Nas palavras de Butler, “sempre já implicadas uma na outra, sempre já excedendo uma à

outra, a linguagem e a materialidade jamais são totalmente idênticas nem totalmente

diferentes”. (Butler, 1993: 69). Ao desvestir o corpo das marcas culturais, Winterson, de fato,

explora outros termos em que o corpo pode ser escrito dentro da própria linguagem que

tradicionalmente o contém e o aprisiona. Reafirmando o corpo como um referente resistente e

irredutível a um único significado, Winterson abre, assim, um espaço discursivo para

reconsiderar e renegociar as silenciosas relações político­ideológicas que constituem e

determinam a anatomia do corpo e seu imaginário pessoal e social.

Acredito que, em The.Powerbook, Winterson se propõe a explorar no hiperespaço —

um espaço deslocado, desconexo e incoerente, onde o indivíduo se fragmenta em identidades

múltiplas e descontínuas — a própria lógica do simulacro, em que, na ausência do referente,

resta­nos nada além de representações de representações, como numa cadeia infinita de

espelhos, cada vez mais dissociada do “real”. Ali, que é, ao mesmo tempo, parte das histórias e

um referencial deslocado e distante, de fato, não se imobiliza diante da grande impossibilidade

17 Uma ilusão que é, paradoxalmente, mantida pela própria materialidade do livro e da página impressa.

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que seria falar de sujeitos que estão fora do discurso. Na verdade, o texto literário, através de

suas formulações discursivas produz e representa a materialização/ corporificação do imaterial

e do corpo “descorporificado”. Como bem diz Hayles, “ilustra como o corpo do texto está

implicado nos processos utilizados para representar corpos dentro do texto” (p. 23).

As (im)possiblidades exploradas por Ali são todas aquelas que foram apagadas,

marginalizadas, postas no limbo pela força da repetição compulsória de normas restritivas —

pela força da proibição — mas que irrompem pelos interstícios dos discursos da cultura como

potenciais a serem articulados discursivamente.

Supostamente, desvestidas de quaisquer marcas culturais, as personagens de

Winterson mergulham num universo virtual, que rearticula, reconta e revisa estórias

culturalmente cristalizadas (Romeu e Julieta, Lancelot e Guinevere, Francesca e Paolo, etc),

em um movimento contínuo de desnudamento das incertezas, que, de fato, constituem a nossa

“realidade” e as nossas identidades. A partir de imagens de fragmentação e de reconstituição

do corpo, Winterson inventa um espaço atemporal em que identidades e corpos circulam em

movimentos ex­cêntricos, sem referencial definido, e que não se reduzem a uma sexualidade

única e fixa.

Em uma das estórias, que é narrada na primeira pessoa, a narradora nos conta que

nasceu mulher, mas a mãe a travestia de homem, para ver se assim ela conseguiria trazer

riquezas para o lar. Um filho homem seria uma benção; uma mulher, um desperdício. Assim,

sua mãe executa um enxerto “horticultural”, transformando uma tulipa embalsamada em um

pênis para a sua filha. Dessa forma, através da criação de um universo simbólico que ironiza

ao extremo os modelos normativos aos quais estamos sujeitadas/os, Winterson traz à tona a

fragilidade e a artificialidade desses mesmos modelos corporais. Uma tulipa pode ser um pênis

e com o tempo de fato se tornar funcional:

Então algo estranho começou a acontecer. Enquanto a princesa beijava e acariciava minha tulipa, minhas próprias sensações intensificaram­se, ainda assim não mais que o meu espanto, à medida em que sentia meu disfarce tomar vida. A tulipa começou a ficar ereta (Winterson, 2000: 22).

O que me faz lembrar o mito do cyborg, criado por Donna Haraway, em “A Manifesto for Cyborgs”, para dar conta, no âmbito da teoria política e social, de identidades limítrofes,

canibalizadas por um insidioso sistema de informações, que ela chama de “informática da

dominação”. Dentro desse sistema, objetos, espaços e corpos se intercruzam, e as dicotomias

ente mente e corpo, animal e humano, organismo e máquina, público e privado, natureza e

cultura, homem e mulher, primitivo e civilizado são ideologicamente questionadas e passam a

se dissolver. Para Haraway, o cyborg se constitui numa identidade pós­moderna, ao mesmo tempo pessoal e coletiva, constantemente montada e desmontada:

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Um cyborg é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura da realidade social assim como uma criatura da ficção. A realidade social são as

relações sociais vividas, nossa construção política mais importante, uma ficção capaz de mudar

o mundo (p. 191).

Em um mundo pós­gênero, sem hierarquias, as marcas sexuais dos corpos são

apagadas e qualquer mito baseado na totalidade é substituído pelo gozo da multiplicidade.

Haraway descreve o mundo cyborg dentro de uma perspectiva que elimina fronteiras fixas. O mundo cyborg, como ela mesma coloca, consiste em “realidades sociais e corporais vividas, nas quais as pessoas não têm medo de seus parentescos com animais e máquinas, não têm

medo de identidades permanentemente parciais nem de pontos de vista contraditórios” (p.

196). Winterson, no âmbito da ficção, subverte os mitos de origem, e inventa seus próprios

personagens cyborg, que nascem, ganham vida, e se transformam no circuito eletrônico­ cibernético dos microcomputadores, na linguagem que lhes apreende de forma precária, e nas

camuflagens e disfarces que os fazem se confundir com o mundo natural, animal e tecnológico.

As tulipas, distintivamente diferentes nas suas semelhanças, assemelham­se, assim, a nós

humanos (ver Winteson, 1993: 3).

O corpo, misto de mulher, tulipa e homem, está disfarçado ou é ele mesmo um

disfarce? É essa a instigante questão que Winterson nos coloca: “Mas e se meu corpo for o

disfarce? E se pele, osso, fígado, veias forem as coisas que uso para me esconder? Eu os

vesti e não posso mais tirá­los. Isso me aprisiona ou me liberta?” (p. 15). E voltamos ao nosso

antigo impasse: se pensamos o corpo como um disfarce descartável que podemos sempre

renovar — e é essa a proposta de Ali — será que podemos dizer que Winterson tenta

recuperar o corpo anterior à linguagem, anterior às marcas simbólicas que o tornam

humanamente possível? Ou será que ela dramatiza um jogo irônico com aquelas possibilidades

de configuração do corpo sexuado reprimidas pela lei? 18

Acredito que a linguagem de Winterson busca exceder a própria linguagem, ao pensar

corpos que se constituem contra os parâmetros do simbólico e dos modelos heterossexistas

que definem o que se qualifica como “sexo”. Imaginar o corpo como um disfarce significa expor

a contingencialidade e a fragilidade da própria linguagem que o forma e o faz inteligível;

significa explorar o ininteligível, o “inumano”, numa tentativa de desestabilizar um processo de

materialização de corpos e identidades limitadas e fixas. Winterson subverte os espaços, os

focos e a linguagem narrativa, e, assim, subverte a teleologia da lei, criando corpos e partes de

corpos fora do centro, e que não se sustentam dentro dos padrões culturais de inteligibilidade.

Como afirmam vários teóricos (Derrida, Laclau, Hall) as identidades se constituem a partir da

18 Em A História da Sexualidade, vol.1, Foucault discute como a lei reguladora, que busca limitar ou proibir certas práticas e sujeitos, no seu próprio processo de criação e de imposição dessas proibições, abre espaços discursivos para a resistência e para a sua própria rearticulação, resignificação e subversão.

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repressão e da exclusão daquilo que ameaça a sua estabilidade, criando, dessa forma, uma

forte hierarquia entre os termos opostos, homem/mulher, etc. E é esse tipo de relação bipolar,

onde o segundo termo trata­se apenas de um “acidente” em oposição ao primeiro, que gera

relações conflituosas, preconceituosas e violentas entre os diferentes. Ao eliminar o centro,

Winterson elimina também as margens. Na ausência de um Outro que se coloque como

parâmetro para a construção de uma identidade determinada, não existe o que ser reprimido,

excluído, marginalizado, e, portanto, não há espaço para conflito ou preconceito, uma vez que

as diferenças foram “des­hierarquizadas”. As identidades passam a funcionar como hipertextos,

com possibilidades infinitas de links, referências efêmeras e identificações temporárias. Ao mesmo tempo, Winterson desenvolve uma grande metáfora do caráter elusivo e

fantasmático do sujeito, que escapa à linguagem, ao mesmo tempo em que só se constitui,

mesmo que provisoriamente, através dela. Assim, desconstrói, sobretudo, o conceito do/a autor

onisciente e do/a leitor/a capaz de decodificar as estruturas narrativas e semânticas do texto,

uma vez em que ambos se configuram como construções instáveis do próprio discurso, que

jamais pode recuperar as suas presenças anteriores a ele próprio. Como afirma Derrida,

“jamais houve um sujeito antes deste ser nomeado e inscrito e dividido” pela linguagem.

O fim, o (re)começo

Dessa forma, The.Powerbook desafia os limites da linguagem e dilui a figura do autor/a em uma infinidade de pontos de vista, que se deslocam no tempo e no espaço, através de

narrativas que se constroem e desconstroem, recorrendo a citações, paródias, contos de fadas,

mitos contemporâneos, e distanciando cada vez mais a figura do/a autor/a da figura de um/a

criador/a de uma obra original, e, conseqüentemente, problematizando ao extremo as

possibilidades do/a leitor/a de encontrar coerência, pelo menos, tal como se entendia na ficção

de cunho mais realista, numa estrutura intencionalmente dispersa e desconexa. Sobre as

inovações estruturais em The.Powerbook, Winterson diz que:

Tem havido muita conversa sobre a morte do livro 19 , mas não existe tal coisa; apenas uma transformação do livro, tanto como um artefato quanto como uma idéia. Em um novo século, precisamos de novas formas de olhar coisas familiares — é a única maneira de torná­las nossas, do contrário, são apenas emprestadas e logo se tornam clichês. (...) A forma do livro [The.Powerbook], sua estrutura, sua linguagem, é uma forma diferente de trabalhar. 20

19 Para uma discussão mais aprofundada sobre as respostas divergentes às novas tecnologias textuais, daqueles que temem o fim do livro e daqueles que louvam o fim da “tirania da linha”, supostamente proporcionado pelo hipertexto, ver Bellei, 2002: 09­42. 20 Reynolds, Margaret & Jonathan Noakes (eds.) Vintage Living Texts: Jeanette Winterson London: Vintage, 2003.

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Na verdade, o que The.Powerbook nos traz é uma simulação impressa, por assim dizer, de escrituras cibernéticas que, em vez de divergirem de, ou convergirem a, um sujeito­

leitor, situado em um ponto determinado e fixo no tempo e no espaço, dispersam­se em uma

textualidade expandida, e recriam a própria noção de autor/a. A/s origen/s do texto se tornam

cada vez menos relevantes e, no espaço da textualidade eletrônica, mesmo aqui apenas

simulada, passamos a ter a figura do/a ciberautor/a e do/a ciberleitor/a — sujeitos e corpos

pós­modernos, que, tal qual o cyborg de Haraway, configuram um sistema humano­cibernético, que se relaciona com o mundo e se reconhece enquanto sujeito apenas na complexa

tecnologia hipertextual. São subjetividades e identidades que se formam e se transformam em

um fluxo intenso e contínuo de idéias e imagens, que não buscam representar absolutamente

nada em particular, e escapam a qualquer critério convencional de realidade e representação,

visto que no universo hiperreal em que circulam, nada é igual ou similar a nada, a não ser às

suas próprias criações. 21

Podemos dizer que, ao incorporar modalidades narrativas hipertextuais ao espaço

tradicional do livro impresso, ao encenar o jogo de construção de narrativas e identidades entre

ciberautor/a e ciberleitor/a, Winterson oferece a nós, leitores/as reais, uma nova forma de

experienciar o bom e velho livro, fazendo­nos “navegar” por entre as páginas, assumindo a

perspectiva do/a ciberleitor/a. A escrita convencional se faz passar por escrita eletrônica e traz

para a mídia impressa uma nova forma de textualidade, que exige, igualmente, uma forma

totalmente nova de ler, e modifica radicalmente, assim, o que, em geral, se entende por autor e

leitor. Em The.Powerbook, o texto, mais do que nunca, é rede, tecido, trama, que se expande continuamente, no nosso imaginário, mesmo após fecharmos a última página. Dessa forma,

Winterson revitaliza o modelo de leitura tradicional, introspectivo, temporal e linear, acentuando

a interatividade entre autor/a e leitor/a, através de uma narrativa aberta, descentrada e não­

linear, e transformando­nos em ciberleitores/as de um texto ficcional impresso.

Podemos dizer, também, que a relação do livro com as tecnologias da informação e as

mudanças biológicas, sociais e lingüísticas — para tomar o conceito de informática de Donna

Haraway — efetua uma transformação significativa nos corpos textuais — na maneira como os

textos são produzidos — , e na sua relação com os/as leitores/as que os produzem e são por

eles produzidos. Em outras palavras, as mudanças nos corpos representados em textos

literários contemporâneos, como The.Powerbook, estão profundamente relacionadas com as mudanças na elaboração textual efetuadas pelas novas mídias, e com as relações mais

complexas entre as novas configurações do corpo humano permitidas através de sua conexão

com as tecnologias da informação (ver Hayles, 29). E os corpos produzidos na fluidez do meio

eletrônico são, como vimos, igualmente fluidos, de maneira a subverter os rígidos modelos

21 Ver Gaggi, 1998: 59

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heterossexistas dominantes, questionando e problematizando toda uma política de gênero que,

tradicionalmente, privilegia a relação binária hierárquica entre os “opostos”.

Referências

BELLEI, Sérgio L.P . O Livro, a literatura e o computador. Florianópolis: Edufsc, 2002. BAUDRILLARD, Jean. “Simulations and simulacra”. Selected Writings, ed. MarkPoster. Stanford University Press, 1988. 166­84. Disponível em:

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WINTERSON, Jeanette. The.PowerBook. London: Vintage, 2000. www.jeanettewinterson.com (Site oficial).

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

A TECNOLOGIA COMO MEDIADORA DAS INTERAÇÕES HUMANAS

Marcus Petrônio Fernandes Iglesias Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

RESUMO:

O presente artigo pretende discutir como as interações entre as pessoas à distância sempre dependeu da mediação da tecnologia, desde as mais simples e rudimentares, como as pinturas rupestres, às mais complexas e sofisticadas, como as mídias e a Internet. O termo tecnologia tem aqui sua significação ampliada, entendendo­se como tal todos os meios que servem para levar informação ao homem. A dúvida reside em saber até que ponto a comunicação entre os homens, mediada por algum tipo de tecnologia, vem afetando a natureza do conceito de “humano”.

Palavras­chave: Interação, Tecnologia, Comunicação, Mediação

ABSTRACT:

The following article want to discuss the interactions between people using different technologies, from the most simple and rudimentary to the most complex and sophisticated ways. It analyzes various technologies from the cave paintings until the advent of the Internet and the implications that these media have in the interpersonal relationships and the ways to learn and see the world. The word technology has broadened the meaning, all means used to bring information to the people are considered as technology. The doubt is to know if technological mediated communication is affecting the nature of the concept of “human”.

Keywords: Interaction, Technology, Communication, Intercession

Introdução

Neste artigo, será analisado a relação do homem com seus semelhantes utilizando

para este fim meios tecnológicos, que não impliquem uma conversação face a face e proximal.

É senso comum acreditar que a tecnologia é um meio eletrônico ou um equipamento

sofisticado, entretanto, ao longo deste artigo, tentaremos desmistificar essa idéia e verificar

como o homem, ao longo de sua história, comunicou­se e comunica­se com seus pares, sem

que seu(s) interlocutor(es) esteja(m) fisicamente presentes, utilizando­se para tal propósito

várias tecnologias. Para que essa interação ocorra é necessário algum tipo de tecnologia.

Antes de continuarmos, seria interessante conceituarmos o termo “tecnologia” e para que ela

se presta neste artigo.

A tecnologia é, de uma forma geral, o encontro entre a ciência e a engenharia. Sendo um termo que inclui desde ferramentas e processos simples, tais como colher de madeira e a fermentação da uva respectivamente, até as ferramentas e processos mais complexos já criados pelo ser humano... 47

47 http//pt.wikipedia.org/wiki/Tecnologia

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Ora, fica evidente que o termo supramencionado é muito mais amplo do que se

possa imaginar. Nesta pesquisa, será percorrido, através dos primórdios da humanidade, como

o homem conseguiu solucionar determinados problemas ou dificuldades de interações,

utilizando­se para este mister vários meios que dispensassem interações face a face, que se

observa desde pinturas rupestres até uso de sofisticadas mídias.

No final desta jornada, espera­se responder a seguinte pergunta: Seria a tecnologia,

como ferramenta de comunicação, um fenômeno do pós­humano?

Descendo das árvores

Quando o homem “desceu das árvores” e teve sua cauda “arrancada pela evolução”,

ele procurou se refugiar das intempéries da natureza e das ameaças dos predadores nas

cavernas, buscando uma nova adaptação ao meio ambiente. Assim, passou a conviver em

grupos, organizando­se socialmente. A primeira tecnologia para a comunicação entre

humanos, por isso, talvez tenham sido as pinturas rupestres. Datadas do período Paleolítico

Superior, as pinturas rupestres são representações pictóricas gravadas nas paredes e tetos de

cavernas ou de superfícies rochosas ao ar livre. Essas pinturas remontam há 40.000 A.C. 48

48 http//pt.wikipedia.org/wiki/Arte_rupestre

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Já havia no homem primitivo o desejo de expressar­se através da arte, de simbolizar o

que lhe era conhecido, de demonstrar seus sentimentos. Aqueles que contemplavam a arte

rupestre eram levados a compreender o seu mundo, entretanto a comunicação que era feita

para seus contemporâneos é tão representativa que 40.000 anos depois ainda comunica,

simboliza, sensibiliza e representa aquele mundo a nós: homens e mulheres do século XXI.

Um sinal de fumaça

O sinal de fumaça é, ao mesmo tempo, o meio e a mensagem. No imaginário popular,

seria uma das primeiras e mais criativa e eficiente linguagem que, antecipando a comunicação

de massa, mostrou­se ótima para longas distâncias. Se há fumaça há fogo, ou melhor, há uma

mensagem que alguém deverá decodificar.

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Concomitantemente ao uso da fumaça para comunicação a distância, os homens

também utilizavam os tambores, a fim de informar sobre fatos que ocorriam em suas aldeias ou

tribos. Em geral, a comunicação seja através de fumaça ou por instrumento de percussão,

transmitiam a outras comunidades grandes acontecimentos como guerras, invasões, mortes,

cerimônias...

A humanidade primitiva utilizou esses meios de expressão momentânea que ainda subsistem entre alguns povos: o tambor utilizado na África Ocidental e na Melanésia para transmitir notícias rapidamente em código sonoro, ou a linguagem dos gestos e das mãos que subsiste entre os índios da América do Norte e os chineses. Esses gestos de mão por vezes forneceram modelos para os sinais ideográficos da escrita. A disposição ou o envio de objetos, grãos, tochas, penas ou flechas também se tornaram meios de expressão simbólica e o são até hoje na Malásia ou na África Central... Todas as civilizações primitivas, da Escandinávia antiga até a Austrália, também utilizaram os bastões entalhados como mensagem ou como meio mnemotécnico. Higounet (2004:13).

E os fonemas se fizeram letras

Não se pode negar que a História da humanidade é dividida em antes e depois da

escrita. Os homens tinham a linguagem falada, comunicavam­se sem problema com seu

semelhante, as histórias eram contadas de geração em geração em função da capacidade de

memorizar as mitologias, as crenças, as histórias de seu povo e de suas linhagens. Mas o que

seria a escrita?

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Segundo a definição de um dos nossos mais eruditos mestres, a escrita é, acima de tudo, “um procedimento do qual atualmente nos servimos para imobilizar, para fixar a linguagem articulada, por essência fugidia”. Diante de sua necessidade de um meio de expressão permanente, o homem primitivo recorreu a engenhosos arranjos de objetos simbólicos ou a sinais materiais, nós, entalhes, desenhos. Higounet (2004: 9).

Sem querer entrar no mérito da questão língua falada versus língua escrita, até por que

cada modalidade tem sua especificidade e importância, observamos que a escrita transforma­

se em uma fabulosa tecnologia, a fim de transmitir informações sem a presença do escritor. Os

textos poderiam ser escritos por uma pessoa e ser lido por uma quantidade de leitores

ilimitados. Além disso, a escrita permitiu que os textos fossem escritos não apenas para seus

contemporâneos, mas para gerações futuras. Assim a escrita surge como uma poderosa

tecnologia com finalidades comunicativas.

Os primeiros a usar mão dessa tecnologia utilizaram diversos suportes, a fim de que

seus textos fossem lidos.

Do ponto de vista material, toda escrita é traçada sobre um suporte ou, como se diz, sobre um registro “material subjetivo”, com auxílio de um instrumento manejado mais ou menos habilmente por um gravador ou por um escriba, seja fazendo incisões, com um estilete, seja com um produto colorante. Higounet (2004:15)

Dos sumérios a Guttenberg

Os sumérios foram os primeiros a utilizar a tecnologia da escrita a fim de transmitir

informações a seus contemporâneos. Vejamos mais uma vez a palavra de Higounet sobre o

assunto:

A escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios, é o mais antigo sistema de escrita que conhecemos atualmente por meio de documentos. O termo “cuneiforme”, que significa em forma de “cunha”, caracteriza seu aspecto exterior anguloso. Higounet (2004: 29).

Os sumérios viviam na Mesopotâmia nos milênios IV e III antes de nossa era. A escrita

passou assumir várias formas até as que conhecemos hodiernamente. A Idade Média foi o

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período em que vários textos eram copiados manualmente, entretanto a difusão de textos era

circunscrita a poucos: religiosos, realeza, nobres... Foi com a invenção da imprensa, ou como

afirmam alguns estudiosos, o aperfeiçoamento da prensa móvel por Johannes Guttenberg que

a escrita começou a se popularizar. Livros como a bíblia começaram a ser impressos e outras

pessoas fora da esfera dos paços puderam ter acesso a leitura, aos livros e conseqüentemente

a um conhecimento sistematizado.

Alô, quem fala?

Novas tecnologias surgem para aproximar pessoas que se encontravam distantes, o

telefone foi uma dessas invenções que modificou o modo de as pessoas interagirem, a longas

distâncias, sincronicamente. No século IXX, Alexander Grahan Bell inventa o telefone. Bell,

também, inventa o telégrafo harmônico que visa, assim como o telefone, a transmitir

informações a longa distância.

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O rádio foi e continua sendo um excelente meio de comunicação de massas:

informação, entretenimento, música fazem parte do cardápio desta mídia que foi, por alguns,

considerada superada com o advento da televisão, entretanto essa previsão apocalíptica não

se cumpriu. O rádio continua sendo um fabuloso meio de comunicação entre pessoas.

A televisão, entretanto, encontra­se em franca evolução: das válvulas à televisão digital

essa mídia oferece recursos inimagináveis: interatividade seria a palavra­chave para essa

revolução digital que recentemente chegou ao Brasil e promete mudar os hábitos de nossa

sociedade, haja vista tal mídia poder ser acessada em um celular em qualquer lugar do nosso

território com definição de imagem que beira a perfeição.

O homem, assim, reinventa­se na maneira de interagir­se com seu semelhante: ele terá

a possibilidade de opinar sobre o que está passando na telinha, escolher produtos e comprá­

los. Tudo isso a serviço do capitalismo digital.

O ciberespaço: o mundo encolheu

Imaginar o homem sentado diante de uma tela de computador enviando e recebendo

informação escritas, imagens, sons, gráficos, em tempo real, é algo que, ainda, digital muita

gente duvida que ocorra. Das primeiras pinturas rupestres até o advento da Internet, e tudo o

que o ciberespaço proporciona à humanidade, muitas águas passaram por baixo da ponte. O

mundo tornou­se pequeno. Podemos saber o que acontece on line nos lugares mais remotos do planeta. As cartas que demoravam meses para serem entregues, quando do seu

surgimento na antiguidade, são enviada em uma velocidade maior do que o tempo gasto com

um clique no mouse que utilizo. Mas o que mudou de fato?

Olhando o código de qualquer documento disponível na Web, é fácil concluir que a internet não passa de um grande texto, um imenso sistema de endereçamento que opera a desconexão entre a interface e a superfície, aprofundando a “desobjetivação” dos suportes de leitura. Beiguelman (2003:19)

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firmar que a Internet é apenas uma mudança de suporte é

minimizar a capacidade que essa tecnologia tem não apenas para informar, comunicar,

aproximar pessoas, mas, principalmente, de modificar a maneira de como aprendemos e

vemos o mundo que nos cerca.

Compreende­se não mais de maneira linear, mergulhamos no ciberespaço e, se não

formos diligentes, corremos o risco de nos afogarmos no mar de informações.

Essa tecnologia altamente sofisticada consegue reunir tudo o que se inventou durante

toda a história da humanidade em termos de comunicação. Podemos enviar cartas e bilhetes,

através de e­mails, podemos participar de conferências com pessoas do outro lado do mundo

em tempo real, com imagem e som de alta definição, ler periódicos, artigos científicos e toda

sorte de bobagens. Podemos, inclusive, conhecer pessoas, iniciar novos contatos e, se a

educação não for nosso forte, podemos terminar relacionamentos profissionais ou afetivos.

O ensino a distância é uma realidade, o que comprova que mudamos a maneira de

aprender: somos forçados a sermos autônomos e criativos diante de um PC.

É importante também ressaltar que a apresentação de uma mesma informação através de canais diferentes pode auxiliar alunos que tenham estilos cognitivos distintos: a facilidade de reter informação verbal ou visual pode variar de um indivíduo a outro. Marcuschi & Xavier (2005:153)

Ainda sobre o ensino à distância, tão discutido e muitas vezes questionado, e a

autonomia que se espera do estudante, leiamos o comentário abaixo:

uma das características da aprendizagem a distância é que ela atribui um papel mais importante ao exercício da autonomia no aprendiz, mas por uma razão totalmente diversa. Segundo Holmberg, o fato de não estar em contato espontâneo com um formador obriga o aprendiz a assumir uma parcela maior da iniciativa em sua própria aprendizagem, por exemplo, estruturando

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seus períodos de estudo ou mesmo alterando a seqüência dos conteúdos que lhe são propostos. Daí a sugerir que a aprendizagem a distância recorre a estratégias de autoformação que o professor presencial, por sua natureza, tende a desencorajar há apenas um passo. Alava (2002:74­75).

São inúmeras as possibilidades que a internet oferece para o homem. Nossa espécie

encontra­se em um novo tempo: a era da informação, da comunicação globalizada, da

informação instantânea. O autor divide a autoria com o leitor, co­autor de muito do que se

escreve. Vivemos no admirável hipermundo novo. Iniciamos nossa pesquisa com as pinturas rupestres sendo utilizadas como uma

tecnologia que permite que os homens se comuniquem com seus semelhantes, no caso,

através de uma arte, sem interações face a face. Na modernidade, ou como afirmam alguns, na

pós­modernidade, essa comunicação de dá de forma interativa, como bem afirma Domingues

(1977:22).

A arte interativa é totalmente avessa ao princípio de inércia. Surge um novo “espectador” mais participativo que através de interfaces tem acesso à obra proposta. São as interfaces amigáveis que permitem as trocas do espectador com as fontes de informação. A contemplação é substituída pela relação.

O avanço das novas tecnologias, no caso específico a internet e tudo o que converge

a ela, é irreversível. Essas grandes mudanças tecnológicas, como foi dito, anteriormente,

ampliam nossa capacidade de compreensão do mundo. Domingues (1997:15).

A história mostra que as civilizações nunca voltaram para trás, que as descobertas e inventos são acumulados e servem de background para outros inventos. E como decorrência, a vida vem se transformando, com uma série de tecnologias que amplificam nossos sentidos e nossa capacidade de processar informações. E, a mente humana, uma vez que teve suas dimensões ampliadas, não volta mais a seu tamanho original.

Fechando as janelas

Neste percurso que fizemos “das cavernas a um pequeno quarto com um computador

interligado ao WWW”, podemos perceber que a maneira de o homem interagir com o seu

semelhante utilizando uma tecnologia que não necessite que ele esteja geograficamente

presente no mesmo local do co­enunciador tem a mesma essência. O que mudou, de certa

forma, foi o suporte utilizado para a comunicação, ou seja, desde as cavernas até os nossos

dias, o homem utiliza algum tipo de tecnologia que permita a sua comunicação. Vejamos o que

diz Beiguelman (2003:19) sobre esse tema:

Olhando o código de qualquer documento disponível na Web, é fácil concluir que a internet não passa de um grande texto, um imenso sistema de endereçamento que opera a

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desconexão entre a interface e a superfície, aprofundando a “desobjetificação” dos suportes de leitura.

Quando falamos de ciberespaço podemos afirmar que a intenção é a mesma de

nossos antepassados: informar e ser informado, entretanto essa nova mídia abre novos

campos de conhecimento. Os homens e mulheres lêem o mundo de uma maneira nova o que

implica afirmar que a maneira de aprender, de compreender a natureza que nos cerca mudou.

Essa mudança de compreensão do mundo que a internet imprime a nossa espécie

pós­moderna, não anula o fato de que na pré­história o enunciador já utilizava tecnologias para

se fazer entender sem estar próximo de co­enunciador. Podemos, assim, afirmar que essa

tecnologia não é uma característica do pós­humano, mas sim do homem e da mulher, de todas

as épocas, de todos os lugares deste planeta que encolheu ante a derradeira tecnologia que

chamamos Internet.

Referências

ALAVA, Seraphin (org.). 2002. Ciberespaço e formações abertas; RUMO A NOVAS PRÁTICAS

EDUCACIONAIS? Porto Alegre: ARTMED.

BEIGUELMAN, Giselle. 2003. O livro depois do livro. São Paulo: Petrópolis. DOMINGUES, Diana. 1997. A arte no século XXI: a humanização as tecnologias. São Paulo: UNESP. HIGOUNET, Charles. 2004. História concisa da escrita. São Paulo: Parábola. MARCUSCHI, Luiz, Antônio & XAVIER, Antônio, Carlos. (orgs.) 2005. Hipertextos e gêneros digitais: novas formas e construção dos sentidos. Rio de Janeiro: Lucerna.

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LIVRO TRADICIONAL X LIVRO ELETRÔNICO: a revolução do livro ou uma ruptura definitiva?

Suzana Ferreira Paulino Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

RESUMO:

O livro envolve um suporte de importância cultural única e está associado ao poder, devido ao saber que a ele é atribuído e ao valor simbólico que ele representa na sociedade do conhecimento. Ele ainda constitui­se em um elemento referencial no processo de ensino­aprendizagem. O seu uso, em sua forma tradicional, é recorrente, contudo, alguns acreditam que seu fim está próximo devido às transformações causadas pelo surgimento do livro eletrônico e à incorporação das novas tecnologias na nossa sociedade. Este trabalho visa a refletir sobre o processo evolutivo dos livros, desde quando esses eram tidos como objetos de arte, seu estágio atual e sobre as previsões a respeito do seu futuro. Traçaremos um panorama histórico da evolução do livro e observaremos se o livro eletrônico é a ruptura com os antigos padrões do livro impresso ou se é uma continuação do processo evolutivo deste. O tema será abordado teoricamente. Acreditamos que o livro impresso permanecerá e que o texto eletrônico não eliminará o livro impresso, nem a existência da leitura, mas haverá uma transformação nas formas de construir significados.

Palavras­chave: Livro Impresso, Livro Eletrônico, Hiperleitura

ABSTRACT:

The book has an enormous cultural importance and it’s related to power because of the knowledge it represents to the information society. The textbook is a reference element to the teaching­learning process. Its traditional form use is common in the classrooms; however, some say that it’s next to its end due to the electronic book, softwares and the incorporation of new technologies in education. This work aims at reflecting about the evolutionary process of the books, since they were considered objects of art, their present moment and about the positive and negative predictions about their future. It will be observed if the electronic book is a break in the old patterns of the press book or if it is a continuation of the process. We will theorize about this theme. We believe the press book will remain and the electronic text won’t stinguish it or the reading but the meaning construction process will be transformed.

Keywords: Textbook, Electronic Book, Hypertextual reading

Introdução

Segundo o Dicionário Aurélio (1999), livro é uma "reunião de folhas ou cadernos,

cosidos ou por qualquer outra forma presos por um dos lados, e enfeixados ou montados em

capa flexível ou rígida". Para a Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss (1995) livro

é "um conjunto de folhas impressas e reunidas em volume encadernado ou brochado".

Percebe­se que o livro é definido apenas com uma noção de objeto material, com peso e

volume determinados, que ocupa um lugar no espaço. Aldemario Castro (2004) afirma que

“definir o livro pelo seu formato, pelo padrão tecnológico de sua confecção é um equívoco

considerável”. Geralmente desconsidera­se a essência da idéia de livro, o fato do livro ser um

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veículo para o armazenamento e a divulgação de um conjunto específico de dados,

informações e conhecimentos, sua mais importante função.

O livro indica sabedoria, status social e autoridade, decorrentes do saber que ele

culturalmente possui. Sua história data de aproximadamente seis mil anos. Os vários povos

utilizaram os mais diferentes tipos de materiais para registrar a sua passagem pelo mundo,

aprimorar e difundir seus conhecimentos e experiências.

Os sumérios guardavam suas informações em tijolos de barro. Os romanos escreviam

em tábuas de madeira cobertas com cera. Os indianos faziam seus livros em folhas de

palmeiras. Os maias e os astecas escreviam os livros em um material macio existente entre a

casca das árvores e a madeira. No oriente, o livro era formado de tabulas de madeira ou de

bambu atravessadas, reunidas por uma fivela. Os egípcios desenvolveram a tecnologia do papiro, uma planta encontrada às margens

do rio Nilo, suas fibras unidas em tiras serviam como superfície para a escrita hieróglifa. A

palavra papiryrus, em latim, deu origem à palavra papel. Nesse processo de evolução surgiu o

pergaminho feito geralmente da pele de carneiro, que tornava os manuscritos enormes.

Neste momento histórico o livro era considerado uma obra de arte, devido ao seu

caráter artesanal, uma vez que era manuscrito página por página, produzido com material

orgânico sem tratamento químico, trabalhado com figuras e ornamentações que valorizavam a

obra. Não havia um processo de reprodução rápido e mecânico.

A partir da segunda metade do século XV surge o livro impresso. Os livros que foram

lançados até 1500 e no período anterior a este ano são chamados de incunábulos, do latim incunabulum, berço. O mais conhecido, e um dos primeiros é a Bíblia de Gutenberg, a B­42, livro que inaugura, oficialmente, a fundação da imprensa no Ocidente.

Uma página da Bíblia de Gutenberg

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A concepção de livro limitada à referência à sua tipografia, se cristalizou a partir do

século XV com o surgimento da imprensa de Gutenberg. Esse equívoco gera conflitos e

insatisfação conceitual com os avanços tecnológicos e a evolução do livro.

Segundo Machado (1994), o livro como o conhecemos vem do modelo do códice cristão. “O códice foi um formato característico de manuscrito em que o pergaminho era

retalhado em folhas soltas, reunidas por sua vez em cadernos costurados ou colados em um

dos lados e muito comumente encapados com algum material mais duro”. Esse formato foi

eleito no século IV, pelos cristãos, como padronização das escrituras sagradas.

Inicialmente, livro (liber) referia­se a qualquer elemento para registro do pensamento, como a inscrição em pedra ou madeira, a tabuleta de cera, o rolo de pergaminho etc. (ARNS,

1993, apud MACHADO). Posteriormente, o livro refere­se ao códice e não há mais um termo

para designar outros elementos de registro de pensamento.

Machado (1994) define o livro como “todo e qualquer dispositivo através do qual uma

civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus

conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua

imaginação”. O autor cita Lucien Febvre (apud Martin, 1992, 15), para quem o livro é um

instrumento que uma civilização dispõe para reunir o pensamento dos seus componentes e

para divulgá­lo na sociedade.

As culturas literárias eram, geralmente, orais. Machado (1994) afirma que Platão define

o livro, em sua obra Fedro, como logos gegrammenos (palavras escritas), entretanto o mesmo inseria­se numa sociedade oral. Nessas sociedade, a história da comunidade é guardada e

repassada pelos mais velhos. O autor cita a fábula de Ray Bradbury em Fahrenheit 451, que trata da guarda e da transmissão da memória literária de uma comunidade pelos mais velhos

do grupo, que mais tarde foi transformada em filme por François Truffaut.

O surgimento da imprensa transformou a realidade das sociedades, antes totalmente

orais, nos âmbitos sociais, culturais, políticos e religiosos. Após a criação da imprensa, os

eclesiásticos temiam que ela estimulasse a população comum a estudar textos religiosos por

conta própria em vez de acatar o que era dito pelas autoridades. O Índice Católico dos Livros

Proibidos, criado depois do Concílio de Trento, foi uma tentativa de lidar com esse problema.

Outra possibilidade era, naturalmente, a igreja adotar o novo meio na tentativa de usá­lo para

seus próprios objetivos.

Todas essas soluções de problemas criaram outros problemas e provocaram grandes

mudanças nos estilos de leitura, escrita e organização de informações. Os livros foram, então,

perdendo seu status de obra de arte. A existência de livros impressos facilitou a tarefa de

encontrar informações quando de posse do livro certo, apesar do acesso restrito a esses

objetos pelas classes dominantes.

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Os livros impressos ficaram mais baratos, o que de certa forma tornou­os mais

acessíveis. Acreditava­se que o impresso romperia a familiaridade entre o autor e os leitores.

Entretanto, percebeu­se com o tempo que este rompimento não se confirmara. A relação autor­

leitor permaneceu com características semelhantes às do tempo do manuscrito. Houve, então,

uma continuação da cultura do manuscrito paro o impresso. O que posteriormente ocorreu com

o livro impresso e o livro eletrônico.

No contexto atual do livro impresso e com o surgimento do livro eletrônico, os mais

pessimistas acreditam no fim do livro tradicional. A priori, essa questão é muito recente e

necessita de mais reflexão e estudos, não existindo uma resposta final a respeito do fim do livro

impresso. Contudo, o que se percebe é que as duas formas coexistem em harmonia com um

público específico e fiel para cada formato.

O escritor Roger Chartier, em seu livro A aventura do livro: do leitor ao navegador

(1999), sobre o lamento de alguns pelo surgimento do livro eletrônico e o provável fim do livro

tradicional, diz que o historiador não deve promover um discurso utópico ou nostálgico, e sim

científico, integrando todos os atores e todos os processos que fazem com que um texto se

torne um livro de qualquer formato.

O surgimento e o aperfeiçoamento das tecnologias eletrônicas impuseram uma

profunda modificação na apresentação ou forma de uma série de coisas tradicionalmente

palpáveis ou materiais.

Sobre isso percebemos que dentre os vários conceitos de livro existem aqueles em que

a forma não é elemento essencial. Na Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss,

citada anteriormente, aparece a seguinte definição para livro: "obra em prosa e verso, de

qualquer extensão". No Dicionário Aurélio encontramos "obra literária, científica ou artística que

compõe, em regra, um volume”.

Neste sentido, concluímos que uma forma específica ou um padrão tecnológico não

integra os elementos fundamentais e constituintes da idéia de livro. Assim, a definição de livro

deve ser buscada ou formulada sem ligação direta com os formatos. O livro, então, pode ser

entendido como o veículo ou suporte, tangível ou não, de um conjunto específico de dados,

informações ou conhecimentos.

O livro eletrônico seria justamente o veículo eletrônico de um conjunto específico de

dados, informações ou conhecimentos. Atente­se para o fato de que o Dicionário Aurélio já

consigna a expressão "livro eletrônico" como sendo "versão de um livro publicada em mídia

digital, como, p. ex., CD­ROM".

Provavelmente, no que tange à temática do fim do livro, o que findará será a noção de

livro como objeto impresso.

Neste artigo discorreremos sobre o surgimento do livro, seu caráter de obra de arte,

sua transformação em livro eletrônico e as implicações dessas mudanças para a leitura nos

dois formatos.

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O Livro como Objeto de Arte

Parte das artes gráficas que, compreendendo a judiciosa escolha de papéis e tintas, a tipografia, a ilustração e a encadernação, tem por fim a harmoniosa integração, no livro de sua dupla função, de objeto de estudo e de objeto de arte.

Dicionário Aurélio

O livro é visto, tradicionalmente, como um objeto de estudo. Contudo, além de objeto

catalisador, fornecedor de informações, conhecimentos, criador de aprendizagem e cultura, ele

pode ser considerado um objeto de arte. Desde seu surgimento, quando ainda era caligrafado

por frades e freiras no enclausuramento, página por página, o livro possuía artifícios e

características que lhe concediam o título de objeto de arte, a arte do livro impresso.

Foi com William Morris que o renascimento da bela impressão se originou e o mesmo

fez com que um livro impresso se tornasse uma obra de arte. Ele teve ajuda de Emery Walker.

A partir do trabalho de ambos, o livro foi salvo da industrialização na Inglaterra, renovado nas

suas qualidades artísticas e reavivado na beleza do livro medieval. Morris quis dar ao livro sua

dignidade antiga de trabalho de arte.

Segundo Walker (2000), as características inerentes a um belo livro no seu “aspecto

material, conteúdo literário à parte, dependem de três coisas: primeiro, o papel; segundo, o tipo

e sua disposição; e terceiro, suas ilustrações, se requeridas como suplemento do texto”.

Sobre o papel, até a introdução das máquinas, este era de fibra vegetal. O uso do

papel manufaturado, embranquecido por desgaste e lavagem aumentava o valor artístico da

obra.

Manuscrito medieval

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De acordo com o referido autor, um belo livro tem o tamanho do tipo adequado ao

tamanho da página. A disposição das páginas deve obedecer a uma coerência em relação

umas às outras e com a forma do livro. Ele também possui ilustrações que “devem ser

reproduzidas e impressas pelo método mais apropriado à dignidade do livro, como cobres,

esboços, fotogravuras, fototipos em preto e branco ou coloridos, todos devendo ser impressos

em separado do texto ou, em alguns casos, dos desenhos a traço, que podem ser impressos

junto aos tipos ou no próprio papel do livro”.

No século dezoito, a impressão por cobres gravados era praticamente a única maneira

de reproduzir ilustrações. A xilogravura, cujo uso foi popularizado no final do século, introduziu

um método mais simples e barato e, em paralelo com a litografia, suplantou o processo mais

antigo.

Para Walker, os únicos métodos apropriados a um belo livro, além de cobres gravados

ou litografia, são a fototipia e fotogravura, ou desenhos a traço impressos tipograficamente.

Fazendo isso, as páginas tornam­se agradáveis de olhar e o livro passará a ser admirado

constituindo­se numa obra de arte. Além de considerar o valor do livro como obra de arte, é

importante citar sua função educativa e mediadora da produção de conhecimento.

Sobre o Livro Didático

Ao longo da história, desde seu surgimento na Alemanha, em 1583, o livro didático

sofreu várias transformações. A sua trajetória possibilitou a formação de seres pensantes,

sobre isso Bittencourt (1993, p.346) afirma: “Os livros podem ser classificados em duas

grandes categorias: livros de leitura seqüencial e obras de referência, de acordo com seu

conteúdo. O livro didático é componente das obras de referência”.

Na Idade Média, devido à excessiva efervescência religiosa na Europa, o livro passou a

ser considerado como um objeto de salvação. Foi nesse contexto que pareceram, nessa

época, os textos didáticos destinados à formação dos religiosos.

Wander Soares (2002) informa que o livro didático surgiu como um complemento aos

grandes livros clássicos. Era direcionado ao uso escolar e reforçava a aprendizagem baseada

na memorização reproduzindo valores da sociedade, divulgando as ciências e a filosofia.

O livro didático (LD), especificamente, constitui­se num elemento de referência para o

processo de ensino­aprendizagem. Ele é um instrumento pedagógico que favorece o

desenvolvimento intelectual e a formação sócio­política do aluno, além de transferir os

conhecimentos orais à linguagem escrita. Em algumas situações, o livro didático acaba se

tornando única fonte e meio de informação para alunos e professores.

No estudo do texto escolar, apresentado como ocorre atualmente nos livros didáticos

não existe ou há pouco espaço para negociações do significado, pois os limites de atuação do

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leitor na construção dos sentidos são previamente planejados pelos professores e/ou pelos

autores das coleções didáticas. Não há uma relação dialógica entre autor, texto e leitor. Esse

fato constitui­se numa desvantagem em relação ao texto virtual, sobre o qual discorreremos

mais adiante.

Do Livro ao Não­Livro

O surgimento da Internet trouxe consigo um novo paradigma de livro (ou será de não­

livro?) e criou tensões a respeito do fim da cultura de livro impresso e digital.

A mudança nos padrões tradicionais do livro impresso para o hiperlivro foi um processo

que gerou temores aos que preferem e defendem a continuação do livro “tradicional”. Entende­

se por “hiperlivro” o livro eletrônico.

Giselle Beiguelman (1999), em seu ensaio “O livro depois do livro” aborda as

transformações ocorridas nos livros e no processo de leitura, abrangendo a não­linearidade

textual, além de englobar a dimensão estética das obras. Esse material ilustra bem as

inquietações referentes ao tema e trás elementos científicos para reflexão e discussão acerca

da temática abordada.

Como objeto, o livro impresso não mudou muito com o tempo. A estabilidade dele é

tanta que apesar das mudanças em sua disposição na internet, as telas mostram “páginas”,

apresentando claramente elementos que abrangem relações entre as duas linguagens, a

impressa e a tecnológica.

No final do século XX surgiu o livro eletrônico que se apresenta num suporte eletrônico

que o virtualiza, o computador. Não se pode definir, ainda, se o livro eletrônico é um

continuador do livro tradicional ou uma ruptura total com os antigos padrões de leitura, mas é

concesnso que é uma quebra com os antigos padrões materiais.

Para Chartier (1999) referindo­se ao livro eletrônico, “a revolução do livro eletrônico é

uma revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler”.

Este se caracteriza basicamente por ser um arquivo eletrônico estático onde os dados,

informações e conhecimentos são armazenados para serem consultados pelo usuário

(CASTRO, 2004). O referido autor afirma ainda que o livro eletrônico é essencialmente livro e o

que modifica é somente a forma, o padrão tecnológico utilizado para a sua confecção.

Este novo modelo de livro promovido por um suporte virtualizador transformou as

relações sensoriais, elementos importantes no processo de leitura. O que antes era entendido

como livro cede espaço para uma nova formatação que constitui o não­livro. A tela não

possibilita a sensação do toque, do manuseio, como o livro tradicional. Não há mais uma

relação afetiva; os sentidos não são mais os mesmos aguçados como no livro tradicional, no

qual se fazem presentes e bem marcantes o tato, o contato direto com o objeto, a visão, que é

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atraída pela cor, pelo formato e até o olfato que identifica se o livro tem cheirinho de novo, de

velho, etc. No livro eletrônico apenas a visão atua extensivamente.

Trata­se de um processo que transcende o livro impresso, seu conteúdo, os conceitos

de autoria, a noção de diálogo, alargando o conceito de leitura, uma vez que a interatividade é

um elemento constante nesse novo formato, que permite o alargamento da noção de leitura e

que vai além do livro como conhecemos.

Leitura no Livro Impresso e no Livro Eletrônico

Iniciaremos este tópico com um questionamento de Emilia Ferreiro (1994:41) “Diante

da ação das novas tecnologias que estão chegando, qual vai ser o leitor do século XXI?” Este

questionamento permeia as dimensões pedagógicas desde o surgimento das novas

tecnologias e sua utilização para fins didáticos.

As práticas da leitura sofreram influência da inclusão das novas tecnologias e seus

suportes na sociedade. Em virtude disso, alguns pessimistas insistem em prever o fim do livro

impresso. Apesar do pessimismo e da ameaça que as novas tecnologias possivelmente

representam para este suporte visualizamos uma nova forma de apresentação do livro e

interação deste com o leitor.

A interação dos indivíduos com a tecnologia é o que tem transformado os próprios

indivíduos, induzindo­os a comportamentos e reações novas diante de situações já

conhecidas. Esse processo vem ocorrendo na leitura do livro eletrônico. Vejamos a seguir

como se processa a leitura.

Inicialmente a leitura era entendida como um ato individual que focalizava o produto

final. Segundo Pinto (2004) ela passou a ser visualizada como processo cognitivo quando Huey

(1968, apud Pinto, 2004) integrou o significado nas sentenças com a memória, enfatizando a

integração de fatores internos e externos, mas os estudos permaneceram como estavam,

contemplando só o produto e não o processo.

Na segunda metade do século XX a leitura recebeu contribuições da psicolingüística

que aliada à teoria socioconstrutivista alegam que estão presentes nos três eixos que

compõem a leitura: leitor, texto, contexto da aula. No contexto atual, com a incorporação de

novas tecnologias na educação, podemos dizer que os eixos que compõem a “hiperleitura”

são: hiperleitor, hipertexto e contexto hipertextual.

Para Xavier (2002), hipertexto é uma forma de linguagem hibrida e dinâmica que

interage com outras interfaces semióticas e acomoda em sua superfície várias formas de

textualidade.

A relação de interatividade entre leitura e hipertexto, aqui representado pelo livro

eletrônico, favorece a aprendizagem baseada em pressupostos cognitivos, sociodiscursivos,

uma vez que permite a ação do aluno sobre o conteúdo e possibilita um diálogo, mesmo que

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virtual, com o texto. Para nossa investigação, leitura é entendida como atividade de linguagem

numa prática social, um processo sociointeracional.

Xavier aborda a leitura enquanto processo de co­produção de sentido de textos

e hipertextos. O autor considera as possibilidades de mudança nos processos de leitura com as

novas tecnologias da educação, enfatizando o uso do hipertexto na Internet.

Leitura pode ser então, compreendida como um processo complexo, que envolve

aspectos cognitivos e de interatividade, no qual os conhecimentos prévios do leitor, suas

experiências culturais, sociais e interativas, junto com as informações textuais são acionados

para formarem o sentido e a compreensão da mensagem do texto.

Portanto, o sentido do texto não está em suas palavras, nem na mente do leitor, mas

está na interação texto­leitor­contexto, unindo as informações que este já possui com as que o

texto fornece para que ele infira significados e represente mentalmente o que o texto provoca

ou descreve.

Segundo Santaella (2004) o leitor virtual desenvolveu um outro (sexto) sentido nas

pontas dos dedos, acionado ao clique de um mouse. A distribuição e organização do texto em uma tela não são a mesma dos livros do leitor medieval, moderno e contemporâneo do livro

manuscrito ou impresso. Essa nova apresentação implica em mudanças no processo de leitura

do texto em um novo suporte.

A leitura de um texto seja ele impresso ou num suporte que o virtualiza, pode

exigir do leitor diferentes estratégias de leitura e cada formato pode mudar a maneira de se ler

o texto. As novas modalidades de leitura, escrita e organização da informação provocaram por

sua vez suas próprias conseqüências imprevistas, tanto no campo social quanto no intelectual.

Chartier (2002), citando Martin 2000, aponta a necessidade de compreensão de dois

aspectos: dos textos que têm as significações modificadas ao mudarem suas formas de

“feitura” ou de sua paginação e do público leitor, que tem a composição social e expectativas

culturais mudadas ao se modificarem as possibilidades de acesso à cultura impressa.

Todo leitor diante de uma obra a recebe em um momento, uma circunstancia,

uma forma específica e, mesmo quando não tem consciência disso, o investimento afetivo ou

intelectual que ele nela deposita está ligado a este objeto e a esta circunstância. A obra não é

jamais a mesma quando inscrita em formas distintas, ela carrega, a cada vez, um outro

significado, uma outra leitura.

A leitura é sempre apropriação, invenção produção de significados [...] apreendido pela

leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos totalmente – o sentido que lhe atribui se

autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta

liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas esta

liberdade leitor não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das capacidades,

convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos

mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as rações de ler. Novas atitudes são

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inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto

eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas colocam

em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias

intelectuais que asseguram sua compreensão. (Chartier, 1999:77)

De acordo com Marcuschi (2001) sobre a atividade de produção de sentidos,

para se compreender um texto é necessário ‘sair’ dele e de algum modo, o texto sempre

monitora o seu leitor para além de si próprio. Ler compreensivamente é partir dos

conhecimentos fornecidos pelo texto, dos conhecimentos de mundo e socioculturais para inferir

um sentido para o texto que será produzido fora dele.

Considerando que o hipertexto oferece uma multiplicidade de caminhos a

seguir, podendo ainda o leitor incorporar seus caminhos e suas decisões como novos

caminhos, inserindo informações novas, o leitor­navegador passa a ter um papel mais ativo e

uma oportunidade diferente da de um leitor de texto impresso (Marcuschi, 2007).

Como já afirmamos, o processo de leitura no texto impresso não é o mesmo aplicado

no texto eletrônico. Pesquisas indicam que a leitura num suporte de papel é cerca de 1,2 vez

mais rápida do que em um suporte eletrônico, o que se constitui em uma desvantagem para o

texto eletrônico, mas estudos visam a melhorar a percepção dos livros eletrônicos.

O Fim do Livro ou Uma Continuação no Processo Evolutivo

Sobre o fim do livro, Lucien Febvre (in MARTIN, 1992:14, apud MACHADO) afirma: "Na

metade do século XX, não temos certeza de que [o livro] possa ainda por muito tempo

continuar a desempenhar seu papel, ameaçado como está por tantas invenções baseadas em

princípios totalmente diferentes''.

Ainda sobre o referido tema, Benjamin, em 1929, com uma visão futurista (1978,77­79),

dizia que "o livro, na sua forma tradicional, encaminha­se para o seu fim”.

Marshall McLuhan afirmou que o fim do livro ocorreria na década de 80, do século

passado. Entretanto, o livro impresso, apoiado na grande indústria do papel, continua a existir e

movimentar grandes montantes em vendas anuais no mundo inteiro. Ele tem um público fiel

que possivelmente vai resistir e existir concomitantemente ao acesso eletrônico.

Quando McLuhan, na década de 60, previu o fim do pensamento linear introduzido pela

escrita e aperfeiçoado na invenção da imprensa, profetizava o fim do livro. Entretanto, o

fenômeno não se confirmaria, ao contrário, o livro está se apropriando dos avanços da

tecnologia. Esse temor remete ao medo que surgiu com a chegada do cinema e da televisão

nas artes. E apesar de tudo, todos resistiram e co­existem na sociedade.

No processo de reflexão sobre o “fim” do livro é importante observarmos que sempre

utilizamos o verbo “continuar”. Esta prática é um indício que revela a existência do

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reconhecimento por parte da sociedade da permanência do livro nos processos sócio­

educativos ao longo do tempo.

Na tentativa de promover e proteger o livro didático, por exemplo, foi criado o Dia

Nacional do Livro Didático, comemorado a 27 de fevereiro, como forma de reconhecer e

valorizar esse livro que é um instrumento de trabalho para o ensino e a aprendizagem escolar,

essencial na formação das novas gerações, e constitui­se num elemento que contribui para o

trabalho do professor. Este que muitas vezes se sente a hegemonia do livro impresso

ameaçada pelo livro eletrônico,

Percebemos que apesar do surgimento do e­book, o fim do livro impresso está distante

de ocorrer, pelo contrário, está acontecendo uma volta às origens, a busca pelo belo que

dominava os exemplares antigos. Esta retomada foi iniciada por Morris.

O retorno do livro como objeto de arte visa a atribuir valor e beleza a um objeto que

agora retoma seu status de objeto de arte. Dessa forma ele está garantido como algo digno de

apreciação e reconhecimento.

Considerações Finais

Adotamos uma abordagem teórica para investigar o fim, ou a continuação, do livro,

desde sua concepção como objeto de arte até os dias atuais. Acreditamos que não é possível

traçar uma conclusão definitiva que encerre esta questão. É preciso que haja mais pesquisas

científicas analisando os aspectos constituintes do processo e as suas implicações, vantagens

e desvantagens, para a leitura.

Não podemos desconsiderar a relevância das novas tecnologias no atual contexto

social e educativo da nossa sociedade globalizada. Nem podemos fechar os olhos ou ignorar

as transformações e os avanços tecnológicos, ou mesmo, desprezar todo um construto

histórico do livro tradicional.

Percebemos que o livro eletrônico já é uma realidade, que devemos aproveitar seus

benefícios sem ignorar a continuação do livro impresso. Este possivelmente permanecerá

contribuindo conteudisticamente, metodologicamente e socialmente para a (r)evolução da

sociedade humana como um todo.

Assim como afirma Chartier “o mais provável para as próximas décadas é a

coexistência, que não será forçosamente pacífica, entre as duas formas do livro e os três

modos de inscrição e de comunicação dos textos: a escrita manuscrita, a publicação impressa,

a textualidade eletrônica”.

É importante revermos o conceito de livro para entendermos o processo evolutivo

deste. O texto eletrônico não encerra a vida do livro impresso, nem a existência da leitura, mas

abrange uma transformação nas formas de construir significados. À medida que o homem tiver

necessidade de registrar sua história e seu pensamento, ele criará novos elementos que

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atendam às necessidades do seu tempo, permitindo uma leitura adequada aos objetivos de

cada leitor.

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www.wikipedia.org. Pesquisado em 27/03/08.

i www.uol.com.br/augustodecampos ii Refiro­me às já conhecidas categorias de Charles Sanders Peirce.

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VÍDEO­DURAÇÃO: MORTE E ANTROPOFAGIA EM TOUR DE AUGUSTO DE CAMPOS

Luciano Barbosa Justino Universidade Estadual da Paraíba (MLI/UEPB)

[email protected]

RESUMO:

Tour, publicado em versão impressa em Não (2003, p. 113), circula já há algum tempo no site oficial de Augusto de Campos i . Na rede, ele funciona de outra maneira e levanta questões instigantes tanto sobre o suporte material do signo, o vídeo, quanto a respeito de sua circulação, a net, e o seu consumo, visto se tratar de um poema que pressupõe um diálogo explícito com o interlocutor e com o meio­suporte.

Palavras­chave: Vídeo; memória; antropofagia.

ABSTRACT:

The sign­objects in Augusto de Campos produce a real change in paradigm. Another semiotic unconscious in inherent in them, in which the sign does not exhaust itself either in the message or in the efficacy of the communication, as they surpass the “signification” to position their inflexible places, the supports and the circuits without which any semiosis would be impossible.

Keywords: Vídeo; Memory; Antropofagy.

Para Martín­Barbero e German Rey (2001, p. 55), a imagem­vídeo não dura, nela o

“efêmero” destrói o “genérico”. Philippe Dubois (2004, p 23) afirma que o vídeo “não é um

objeto, mas um estado, um estado da imagem”. A se tomar as palavras de Arlindo Machado (1997, p. 225), o vídeo não gera uma imagem, mas “um efeito de mediação”. A imagem digital

em sua não inscrição no suporte, pairando antes no circuito, em princípio arruína toda

experiência estética, pois esta depende de uma presença, de uma “superfície háptica”, para

poder existir, observa André Parente (1996, p. 25).

Não obstante o que se tem dito no debate sobre vídeo, analógico e digital, Tour exprime a intensidade opaca de uma enformação, uma forma carregada de uma força que a ultrapassa, estrangeira do vídeo digital: ele contém uma poiesis de lugares. Lugar vivencial e de memória coletiva, longa história, e introduz uma turbulência na diafaneidade do vídeo.

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Geralmente acima ou aquém de um real que lhe preexista, como muito se tem dito,

diferente das imagens químicas da foto e do filme, a imagem­vídeo aqui não flutua. A imagem,

que tende no monitor a não possuir uma espessura histórica, aqui é um existente, um índice.

Se toda imagem­Deus abandona a superfície pesada demais do túmulo­suporte –

imagem­Cristo, aquele que deixa o túmulo ­, Tour traz a presença e o rumor de um trabalho coletivo de longa duração, que opera na dialética do “lembrar”, de fazer pesar no ciberespaço

um tempo­manancial, e da fragilidade de toda memória que a custa de não esquecer, de

querer “conduzir”, tem que trabalhar agora na fluidez instável e “perecível” do vídeo, como nos

versos de Tombeau de Mallarmé: “ah Mallarmé, tudo existe pra acabar em TV” (CAMPOS, 1994, p. 109).

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1. A descrição

Tour é composto de dezoito versos. Cada letra é disposta no interior de quadrados perfeitos. Sugerem uma forma concluída, numa atmosfera de visível “fatalidade”. Índice de um

processo incrustado na pedra e por ela enquadrado. A letra, nos últimos duzentos anos a

portadora mestra do simbólico, assume a forma de um índice, vestígio sensível da relação

signo­objeto. Mas um índice de quarto nível, por hipótese, posterior à aculturação ocidental

exercida pela ordem lingüística e numérica, na qual se situa a imagem­vídeo digital, sua

culminância. Trata­se de um índice diverso, que reconhece a circunstância da enunciação e

que faz dela seu tema ao reconhecer a circunstância do atual da imagem. Dito de outra

maneira, o quarto nível do índice já opera com o habitus da metalinguagem e de todas as formas de terceiridade ii .

Da relação entre o fonético e a plasticidade do caractere, entre o que ele diz e o que

ele mostra o índice funda um pacto, misto de parque de diversão e dia de finados, com o meio

ambiente de sua circulação e de seu consumo. Mais fático que poético, interessa­se mais pela

relação que por suas qualidades. É neste sentido que o índice é o “pólo fusional dos

contágios”, nas palavras de Daniel Bougnoux (1994, p. 69).

O lodo nos caracteres dá movimento e ritmo ao quadro, fazem­no pulsar, algo neles

nega parcialmente a racionalidade simbolóide dos quadrados perfeitos. “Do fundo de uma noite

primordial” (para lembrar Mallarmé), opressiva e subterrânea, uma força, entre irônica e

sarcástica, brota da profundeza abissal da terra negra. Dupla imagem: ruína e monumento

(Nenhum só resta) e juventude: (ninguém mais perturba o barulho da festa). Na horizontal, as letras dos quadrados­tijolos formam uma imagem estática e pesada.

Na vertical, um fantasma em movimento, um humanóide (ou pós­humano) de vários braços ou

de braços em movimento. Ambivalência de um objeto sólido e estático, uma tumba formada por

pequenos tijolos perfeitos; e um fantasma vivo e que anda. Enquanto o contorno dos

quadrados é uniforme, redundante, frio, o contorno das letras, porção de lodo e grama,

depende da forma em caixa alta de cada caractere e da utilização ou não de serifa. Pode­se

inclusive dizer que as letras lutam contra o imobilismo das fronteiras rígidas que os quadrados

estabelecem e que elas já trazem em si mesmas, mormente as serifadas.. O J de jazem, cheio de matéria vegetal, parece que em algum momento perderá seu contorno definitivo. Nele se

percebe melhor que o tempo modificou uma nobreza austera que o caractere possuía.

A linha que define os quadrados, como não apresenta nenhuma diferença na forma e

no lugar, cria um espaço sem profundidade que faz o fundo negro perder espessura. Paira

acima de qualquer intervenção dos vivos. Em contraste, as letras estão cheias de

temporalidade, de onde alguma força impõe um movimento à forma.

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Z e S, que ocupam lugares estratégicos na disposição do quadro (Jazem, Fazem, Resta) por estarem no centro dos três eixos geométricos da imagem, se aproximam, na linha do centro de cada um, da extenuação. Têm contornos que em vez de ganharem peso, perdem,

ao contrário de letras como M, C, A, D, H, I, volumétricas, texturais, pesadas. O mesmo ocorre com T, N, U, R, V. Nestas ocorrências importantes para o efeito plástico, o S e o Z destas três palavras literalmente centrais, inclusive nas outras ocorrências destas letras ao longo dos

caracteres escritos, o amarelo­grama já contém espaços internos de preto.

Formas que se diluem, perdem­se, desvanecem­se, assumem o enclausuramento às

custas da perda de seu próprio corpo; e formas que tendem à explosão do casulo e da lógica

visual como um todo dos quadrados. Como este O da última linha, vestígio de uma dispersão iniciada em ÀS, continuada em EM/NÃO, que em breve quebrará (quebrará?) a redoma que o cerca e a própria unidade do movimento horizontal do texto e cairá na mesa ou na escrivaninha

do navegador estático ou entrará em outro programa minimizado na barra de ferramentas.

Embora sem nunca se tocar ou se fundir, os quadrados­tijolos funcionam numa espécie de

atração mútua. A exceção é esse movimento da lateral esquerda, ilhado entre a ocorrência e o

vazio, deslocado, pelas formas lingüísticas adjuntivas, as locuções adverbiais e o artigo

definido, como se um “excesso acessório”, não apenas lingüístico, criasse ou contivesse uma

outra ritmia formativa.

Este O constitui um espaço privilegiado, tanto como signo plástico quanto textual. Ele reitera, no seu próprio deslocamento, as formas que lhe ladeiam e se abre para representar em

si mesmo um topograma da própria imagem­vídeo. Signo do espaço fechado, guardado e

protegido, espaço tumular; e de seu contrário, uma duração que brota para além de seu próprio

invólucro. Espaço imóvel, dimensão de uma perda, e rotação. A letra O ganha volume e peso nas suas extremidades, às custas de um risco de partir­se, como uma ameba, em processo

ininterrupto de geração e de degeneração. O preto em seu centro toma a forma da matéria

fértil. Como em Homero, a noite é onde mora a deusa negra da fertilidade. Espaço de luto e de

criação, de morte e de antropofagia. O círculo interno é uma boca, resto e semente, não de um

corpo qualquer, mas do corpo de onde a voz ancestral emerge de seu silêncio matricial (a

poesia?).

Anti­cristão e anti­celestial, nele há um movimento para o abismo, para as profundezas

da terra informe cuja última ocorrência visível é este O poroso. A lateral esquerda, “ocidental”, do quadro pende para alcançar a larva, a matéria potencial. O fantasma da vertical traz um

rumor constritivo, Ssuass, Ffazzem, Ffressta, Ressta, Fessta, espaço de ar, e oclusivo, signos sonoros que esquentam a atmosfera morna da imagem­vídeo. Palavras como Bemvindo, Catacumbas, Mundo, Nenhum, Nenhuma, Nem, Ninguém, dão a dimensão exata de uma substância que não é apenas fônica. Remetem a uma política da memória e do esquecimento,

pequena viagem onde não se encontra propriamente uma paisagem, uma imagem, mas o

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resquício de um luto, um espaço de perda, um “volume portador de vazio”, como dirá Didi­

Huberman (1998, p. 45), com seus pequenos lances de ar (Poeta/Fresta/Resta) e de clausura limitadora, Mmmmmmm. Peso e duração, aquilo que em princípio a imagem­vídeo não poderia conter. Contra as imagens habituais da rede de computadores, e da cidade em geral,

“superfícies sem distância” (FURTADO, 2002, p. 123), Tour é justamente esta distância que se inscreve na própria superfície das coisas. Neste sentido, o quarto nível do índice é a inscrição

de uma ausência.

2. Dos lugares

O meio ambiente do “literário”, instituições, suportes, meios de transporte, agentes de

legitimação etc., já uma ação sobre o mundo, foi subjugado pela dominância de uma

“epistemologia simbólica” e pela “supremacia do enunciado”, lembrar que a codificação fonética

opera tornando vegetativo seu entorno. E mesmo os textos bastante atuais dos Formalistas

Russos, ainda contêm e aprofundam as potencialidades do alfabético fonético e da escrita. É

preciso entender tudo isso como fundamental para construção de uma visão radicalmente

crítica da produção simbólica e para constituição do campo literário. Negar isso seria uma

tolice, mas é preciso reconhecer que duzentos anos de supremacia da escrita fonética se por

um lado nos deu a base metodológica para uma abordagem técnico­científica e em certo

sentido histórica da literatura, hoje precisa abrir­se a uma nova demanda

Neste sentido, Tour não é um objeto que possa ser inserido na tradição moderna da literatura, pois vai além do Livre de Mallarmé, o inventor da literatura, e verticaliza os lugares, amplia a espessura da instância poética. Já não é a escrita do escritor, a “existência verbal”,

que formula em signo a experiência cotidiana. Tour reafirma de saída que não pode haver um significado que passe ao largo das negociações nada efêmeras entre instituições, dominantes

culturais e ferramentas mnemotécnicas, que o digital não pode funcionar na ausência completa

do analógico. Em suma, não pode haver significado sem que uma midiasfera, o estágio do eco­

sistema natural e semiótico, sirva­lhe de hospedeiro para ulterior transporte/transmissão. Em Tour, o meio ambiente do signo toma a forma de um estado de emergência (Bachelard)

Um dos inúmeros méritos de Walter Benjamin foi ter lido Charles Baudelaire acionando

tudo isso, entrando e saindo do texto o tempo inteiro. Nos ensaios paradigmáticos que

escreveu, o crítico alemão transformou a obra de Baudelaire num lugar onde a significação não

pode ser separada dos espaços de vivência por onde circulou o poeta. Daí nele o tema da

cidade e da ruína serem fundamentais, mas não apenas como temas, sobretudo como

elementos de localização, de pertencimento. Pode ser dito, com um certo exagero, que Walter

Benjamin inaugura uma crítica ecológica, não no sentido mais particularizante dos “verdes”,

mas num sentido amplo da interdependência não hierárquica a priori de agente e médium­

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ambiente, não necessariamente “natural”. Partindo de Walter Benjamin, é possível afirmar que

Baudelaire funda a literatura, o amadurecimento, a expansão e a dispersão da escritura, e

transforma a função poética, aquela mesma de Roman Jakobson, em projeto.

Mas já afirmei que Tour é um objeto fático que poético. Sua função semiótica é fática: o sujeito quer assegurar­se da relação. O que está posto não é função do verbal, pelo menos

enquanto dominante, logo, não se reduz à metalinguagem ou à poética. Emissão, recepção e médium não se separam e a relação não pode ser nem esquecida nem posta exclusivamente no enunciado. Digressão: há uma relação imediata entre a consolidação da poesia escrita no

romantismo, a interiorização subjetivista na forma da recepção e o total abandono da poesia da

cena pública. Acoplada sempre à emissão e/ou à “materialização” de signos verbais escritos, a

poesia moderna descurou dos operadores contextuais não­verbais.

Contudo, a função fática não elimina a metalinguagem, consciência aguda da

linguagem verbal, o que estou chamando de quarto nível do índice. Mas é no fático, e não no

poético, que se pode perceber a ruptura de Tour, e da Poesia Concreta em geral, com a tradição moderna canônica, pois, ao contrário da metalinguagem, abordagem tipicamente

moderna e modernista de poesia, a função fática transcende o literário e se instala na própria

interação. A se pensar em Tour, a função não pode ser entendida como uma atitude linguageira cuja única finalidade é testar se o canal está funcionando. A função fática (Cf.

JAKOBSON, 1986) serve não só para testar a validade dos canais (só no plural se pode pensar

o termo), mas sobretudo das vias de transporte e das hierarquias políticas inerente a toda

relação de sentido. Ele recoloca a relação fundamental entre poesia e intersemiose. Nos

termos de Octávio Paz:

Pela eliminação da música, da caligrafia e da iluminação, a poesia reduziu­se até se converter quase que exclusivamente em uma arte do entendimento. Palavra escrita e ritmo interior: arte mental. Assim, ao silêncio e afastamento que a leitura do poema exige, temos que acrescentar a concentração. O leitor se esforça por compreender o que quer dizer o texto e sua atenção é mais intensa que a do ouvinte e a do leitor medieval, para quem a leitura do manuscrito era igualmente contemplação de uma paisagem simbólica. Ao mesmo tempo, a participação do leitor moderno é passiva. Palavra falada, manuscrita, impressa: cada uma delas exige um esforço distinto para manifestar­se e implica numa sociedade e numa mitologia diferentes. O ideograma e a caligrafia colorida são verdadeiras representações sensíveis da imagem do mundo; a letra de imprensa corresponde ao triunfo do princípio de causalidade e a uma concepção linear da história. (OCTAVIO PAZ, 1996, p. 118).

Do ponto de vista dos lugares, Tour pode ser pensado a partir de três topografias:

1) o objeto­signo por si só já constitui um espaço próprio, neste primeiro ponto estaria

tudo o que foi dito na Descrição, podendo­se dele dizer o que Gervereau (2000, p. 9) disse a

respeito de toda imagem: elle n’est pas seulement une transposition du réel, elle est aussi un réel intrinsèque avec sés propriétés et ses circuits. Ainda, não um espaço propriamente, mas

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uma maneira de organizá­lo, de criar uma ambiência que interfere já aí na recepção e na

espacialidade que esta encontra habitualmente, seja no ambiente de leitura como um todo,

seja no monitor de vídeo em particular. Tour é uma “infra­estrutura física”, nos termos de David Harvey (1992, p. 203). Claro está que o caminho percorrido pelo leitor até chegar a ele –

provedor, site oficial, atualização na tela – esfria o horizonte de recepção, mas também

pressupõe a possibilidade de aparecer de chofre, num e­mail, por exemplo, ou num vírus,

ocorrência em que a atmosfera lúgubre destoa de boa parte, se não da grande maioria, do que

o navegador tem em volta, arquivos e programas disponibilizáveis na rede. Neste caso, Tour se apresenta como um novo hóspede, na tela do computador, por ser hard demais, resquício analógico no digital do monitor de vídeo.

2) O espaço do vídeo como um espaço autônomo com suas próprias regras de

produção e uso. Neste tópico seriam incluídos tudo aquilo que diz respeito às tendências da

imagem­vídeo enquanto gênero semiósico, a saber: esmaecimento da memória e a propensão

à provisoriedade e à fluidez esquizóide, por exemplo. Como diálogo com o espaço maior da videosfera, Tour possibilita justamente uma memória e uma durabilidade de “alvenaria”, um monumento: “a construção deliberada de um espaço vazio para espelhar aquilo que partiu”

(Manguel, 2001, p. 276), contra a recreação inerente ao uso corrente do vídeo, recreação que

opera pela desmaterialização do espaço­tempo, que transforma os lugares em uma abstração

numérica. Cidadão do mundo, o sujeito­vídeo flutua na possibilidade de trocar de lugar a

qualquer momento bastando acionar o controle remoto ou o mouse. Mas aqui, o conteúdo do enunciado não aparece sem antes chamar a atenção para o local da enunciação, a imagem­

vídeo nele assume uma “localidade paradoxal”, uma “paratopia” (MAINGUENEAU, 2001, p.

28). Assim, deve­se pensá­lo como um diálogo com o campo mais vasto da imagem­vídeo,

entendendo por este não apenas um dispositvo técnico, mas fundamentalmente um poderoso

construto de atividades sócio­culturais contemporâneas, onde a técnica dialoga sem

interrupção com o imaginário e as demandas sociais.

3) O terceiro espaço possível é da natureza do pacto que estabelece com o receptor,

complexificação dos dois tópicos anteriores. É aqui que entra em jogo a práxis recepcional,

bem como a relação dele com outras escritas e com o espaço literário mais amplo, inseridos no habitus do receptor. Este encontra um objeto quente e úmido, vivo, pulsante. Se o mouse permite um não envolvimento com a forma, pois possibilita abandoná­la com extrema rapidez, Tour tenta quebrar isso acionando o imperativo cuja finalidade é evocar uma ação que instala um corpo num espaço. Se o receptor já abandonou as geografias tradicionais e agora se

alterna entre o indiferenciado global e o individualismo esquizofrênico potencializado pelo

vídeo, como muito se diz, diante de Tour é obrigado a reconhecer estas velharias que teimam

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em obscurecer a luminosidade do monitor. Nos termos de Walter Benjamin, sua mente

civilizada não pode esquecer a barbárie que lhe é inerente. Num ambiente amorfo, etéreo e

simbólico, o vídeo e a rede, o receptor resgata a temporalidade e a historicidade não apenas

de um passado ido e findo, mas de seu presente se fazendo, ou em via de construção: entre.

3. Morte e antropofagia

Iniciada na década de 50 com a ênfase construtiva de uma vanguarda ansiosa em

produzir uma re­fundação não apenas dos pressupostos poéticos nacionais, mas das próprias

bases de nossos hábitos intelectuais e de nossas relações “externas”, o projeto poético de

Augusto de Campos assume em Tour um diálogo direto com a antropofagia de Oswald de Andrade. Pode ser observada em Tour uma mudança de perspectiva do gesto de devoração, que sai da órbita da produção e transita pela recepção; trata­se agora de um ritual de contágio,

ritual­fático.

É possível estabelecer uma relação fecunda entre o projeto poético implicado em Tour e a antropofagia oswaldeana no sentido que se está diante de outra temporalidade fundada

nas potencialidades semióticas e políticas abertas pela tecnologia contemporânea. Do

matriarcado utópico oswaldeano, Tour incorpora muito mais o dado comunal que “técnico”. Tour difere de Oswald porque nele tem menos peso a devoração por si que o médium, meio­ suporte e meio ambiente.

Se, num primeiro momento o objeto é abordado em seu aspecto de coisa, em suas

“qualidades”; no outro, nas negociações com/nos espaços que ele ao mesmo tempo acata e

ironiza, agora se trata de algo próximo à Outridade. A questão agora é de natureza dialógica. A pequena morte que Tour torna visível é justamente a desta troca­passagem da

máscara para o outro. Da ontogênese (ainda fortíssima em Oswald) à coletivogênese. Colocar o problema do outro não é relevante por si mesmo, pois o “pré­conceito” e os racismos são

também “colocações” do outro. O que se percebe é não apenas o lugar das diferenças sociais,

políticas, étnicas, de classe etc., é principalmente o convite, nem sempre amável, à construção

destas. O que olha (chegar aqui implica sempre uma ação que continua), já é imediatamente

olhado: bemvindo. Não se trata de ser (leitor, autor, sujeito, poeta), pressupõe­se um estar, tanto do morto que já rompeu o limiar da mudez e já anda quanto do receptor diante da tumba.

O princípio antropofágico em Tour não é constituído da cisão de não possuir sua própria língua (em Oswald com duplo sentido: 1) silenciamento da língua bárbara indígena pela 2) tradição lusobrasileira de salão) e de ser forçado a romper o ilhamento e a cerca que o

define por exclusão (exclusão da rede, a nova lógica cultural do “capitalismo tardio”, como

metonímia da exclusão da poesia e dos poetas do espaço social). A ironia, as “colagens de

citações” dos manifestos que exigem do leitor uma energia, um esforço até fisiológico para a

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recepção, em Oswald, se coadunam com este convite a uma co­pertença num espaço dialético

de perda e de abrigo: objeto­tumba. Janela (Pulsar), cidade (Cidadecitycité), cosmo (SOS). Se o “real” é sempre potencial no signo, nem melancólico, nem propriamente em

estado de luto, o antropófago, por sob a vestimenta rota do cadáver, constrói sua integridade

provisória, não na busca de uma identidade perdida, ainda forte em Oswald, mas relacional,

ecológica, que, ao não visar simplesmente o retorno a uma origem trans­histórica, desinveste­a

de ser busca narcísiva, subjetiva e burguesa. A ironia da fresta iluminada, muito mais próxima

de Maiakovski que de Oswald, não é uma utopia nostálgica reatualizável, como se nota na

“metafísica bárbara” do manifesto oswaldeano, mas uma dimensão contemporânea. Tour hibridiza, de uma maneira instigantemente contraditória, todos os indícios de uma a­história

proto­humana (cores, ruídos, ecos nasais, textura lodosa, negror absoluto etc), as máquinas

semióticas assignificantes de que falou Guattari (2000) e que tem na poesia sua metáfora, com

nossa écranosphère (LIPOVETSKY & SERROY, 2007, p. 10). O que ele menos está é preso ao passado ou remetendo exclusivamente a ele, é o aspecto futuro da memória.

Referências

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LIPOVETSKY, Gilles & SERROY, Jean. L’écran global: Culture­médias et cinéma à l’âge hypermoderne. Paris : Éditions du S peuil, 2007, 360 p.

MACHADO, Arlindo. As imagens técnicas: da fotografia à síntese numérica. In: Pré­cinema & pós­cinema. Campinas: Papirus, 1997. p. 220­235.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 202 p.

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PAZ, Octávio. Os signos em rotação. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996, 345 p.

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CIÊNCIA E TECNOLOGIA NA TRADIÇÃO LITERÁRIA PERNAMBUCANA: a poética científica de Joaquim Cardozo,

César Leal e Alberto da Cunha Melo

Ermelinda Maria Araújo Ferreira Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

RESUMO:

Neste trabalho pretende­se discutir como alguns poemas de Joaquim Cardozo, César Leal e Alberto da Cunha Melo dialogam, do ponto de vista estrutural e/ou temático, com os princípios norteadores de obras das artes plásticas e do cinema contemporâneos que problematizam a ciência e a tecnologia.

Palavras­chave: Poética científica, Cyber­art, Joaquim Cardozo, César Leal, Alberto da Cunha Melo

ABSTRACT:

This essay analises how some poems of Joaquim Cardozo, César Leal e Alberto da Cunha Melo reflect structurally and/or thematically the main principles of contemporary artworks and movies that discuss science and technology.

Keywords: Scientific poetics, Cyber­art, Joaquim Cardozo, César Leal, Alberto da Cunha Melo

Releituras contemporâneas da poética científica

Derrubei desastrado a caixa de números: um calendário

que havia sobre a escrivaninha, e o tempo se espalhou no chão.

Alberto da Cunha Melo

Na pobreza ou indigência de uma ficção científica brasileira, salvo honrosas exceções, são algumas obras poéticas que comparecem para atestar a sintonia da literatura brasileira

com os avanços tecnológicos e científicos da modernidade, e para comprovar a preocupação

dos nossos pensadores e artistas contemporâneos com os dilemas filosóficos e existenciais

que permeiam a ficção especulativa nos contextos de países mais desenvolvidos. O fato de

que muitas obras com essa preocupação sejam escritas por poetas nordestinos,

particularmente pernambucanos ou atuantes em Pernambuco, nos fez pensar numa vinculação

desses autores à tradição literária da poesia científica, que remonta, já em fins do século XIX, à

Escola do Recife, surgida na Faculdade de Direito do Recife, e a figuras como Tobias Barreto,

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Silvio Romero e Martins Júnior; e que só parece ter produzido, entre seus alunos, um autor de

destaque representativo do gênero: Augusto dos Anjos. 28

Surgida numa região mais conhecida pelo cultivo de uma literatura ligada ao presente,

ao realismo e aos temas telúricos; fugindo à abordagem massificada, descuidada do ponto de

vista estético, e à duvidosa função de instrumento de alfabetização científica da população

leiga – aspecto muitas vezes colocado em prática pela literatura e pelo cinema de ficção

científica contemporâneos, sobretudo americanos – a “poética científica” pernambucana

poderia ser definida como erudita, revolucionária em suas rearticulações estruturais e

lingüísticas, e destemida quanto ao mergulho numa profundidade filosófica ainda hoje rejeitada

pela injusta suposição de “hermetismo”.

Selecionamos aqui, para um brevíssimo comentário, três poetas pernambucanos –

Joaquim Cardozo, César Leal e Alberto da Cunha Melo – nos quais se identificam abordagens

diversas, criativas e bem sucedidas das questões científicas e/ou tecnológicas no âmbito do

texto poético. Nosso objetivo é o de relembrar a existência dessa possível tradição científica na

poesia pernambucana, que em fins do século XIX já parecia mais preocupada com questões

universais ligadas à redefinição do ser humano sem fronteiras, desafiado por suas próprias

criações, do que a questões regionais ou nacionalistas, voltadas para a busca da identidade

brasileira, aspecto que norteou o movimento modernista no sudeste do país e que acabou

sendo divulgado como a única corrente do pensamento moderno brasileiro na literatura.

Revisitada à luz das conquistas tecnológicas da segunda metade do século XX por

poetas pernambucanos isolados, a tradição inaugurada pelos manifestos da Escola do Recife,

e continuada por figuras marcantes como João Cabral de Melo Neto – cuja “educação pela

pedra” é mais conhecida e divulgada do que as obras dos escritores aqui selecionados –

descortina uma poesia magistral, de múltiplas e imprevisíveis abordagens, original e

desconcertante em muitos aspectos pela consciência que revela do futuro, o que não raro lhe

confere um certo caráter premonitório; mas que impressiona e inspira sobretudo pela

capacidade renovadora e de redimensionamento do belo sensível através da tematização do

belo intelectual e perceptivo. Noções como a virtualização dos corpos e dos textos, a

redefinição do binômio espaço­tempo e a preocupação com a conquista – material e espiritual

– do universo, projetam essa poesia no âmbito de um cenário cósmico e anunciam

insistentemente o aprofundamento da crise que ronda a definição do humano.

28 No entanto, como diz Delmo Montenegro, a poética científica constitui uma das tendências mais fortes da literatura em Pernambuco, “presente em nosso genoma, em nosso código genético­literário, desde os primeiros momentos”. Segundo o autor, “as relações entre poesia e ciência sofrem uma nova guinada a partir do Modernismo. Novos pressupostos ideológicos e estéticos modificam a forma desta relação, contudo ela ainda permanece como parte do núcleo rígido da tradição literária pernambucana”.

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Joaquim Cardozo: o livro­objeto e a comunicação virtual

Considerado pela estudiosa Maria da Paz Ribeiro Dantas, um poeta “contemporâneo

do futuro”, o engenheiro de formação e calculista dos projetos revolucionários do arquiteto

Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo construiu “uma obra poética de extraordinária densidade,

não só no aspecto plástico mas também no filosófico. Não obstante a complexidade de seus

temas de eleição, dosava a seriedade com a ironia e o humor, resultando daí um objeto poético

estimulante para a inteligência. Não um saber puramente filosófico ou científico, mas um

conhecimento poeticamente holístico, capaz de abranger regiões mais vastas da sensibilidade,

para além do que o próprio poema denomina “lógica linear”. Mas nem só de ciência se faz a

poesia cardoziana. Também de cheiros, de imagens, de coisas reais, de nomes ligados à

geografia nordestina, de modo especial à flora, sem que tal presença telúrica venha privá­la da

ressonância universal com que o poeta, quem quer que seja, pode tornar­se habitante ou

freqüentador de tempos para além do presente histórico em que viveu”. Segundo o crítico

César Leal, “a poesia de Joaquim Cardozo atravessou várias fases de evolução até chegar à

esbeltez cósmica de seu livro Trivium, de 1970, no qual incorpora numerosas linguagens presentes em todos os idiomas do mundo somente após a Teoria da Relatividade de Einstein e

a mecânica quântica de Heisenberg.”

Comentarei aqui, brevemente, o poema “O Congresso dos Ventos”, da coletânea Signo Estrelado, de 1960, que, ainda segundo César Leal, pode ser encarado como “símbolo das vozes da humanidade e de um nítido anseio de fraterna comunicação entre os homens em

escala planetária”. Diz o crítico que, ao escrever “O Congresso dos Ventos”, Joaquim Cardozo

colocava à margem os temas regionalistas, provincianos e locais. Mostrava que o intercâmbio

cultural entre os homens pode ser simbolizado pelo próprio ar, o ar em movimento, que é

sempre o mesmo em toda a parte. Na sua análise deste texto, César faz uma constatação que

interessa de perto aos teóricos da era virtual e aos estudiosos do hipertexto. Diz ele que o

poeta recorre à personificação dos ventos, estratégia que o conduz à desumanização tal como

vista por Ortega y Gasset em seu famoso ensaio de 1925. Também o autor “desumaniza” o

tema lírico já que os agentes da ação humana não estão presentes: são apenas “ventos”, os

mais ilustres ventos da terra.

O que o poema sugere ao promover essa espécie de comunicação telepática de vozes

descorporificadas e reunidas num congresso universal poderia ser entendido, hoje, como uma

alegorização do nosso atual sistema de comunicação via Internet. Cardozo parecia acreditar na

perpetuação da capacidade de comunicação humana ainda quando o “humano”, enquanto

conceito, precisasse ser revisto. À luz das modificações da escrita e da leitura resultantes do

uso do computador nos dias de hoje, e da verdadeira revolução na comunicação cotidiana que

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o diálogo em rede vem proporcionando em escala universal, a idéia de um congresso eólico

abandona o universo do fantástico e passa a soar, no poema de Cardozo, um tanto profética

ou visionária.

Ainda nesta linha das novas abordagens do texto literário à luz da tecnologia,

gostaríamos de comentar o poema “A Escultura Folheada”, do livro Mundos Paralelos, de 1970, extraído da série de “Poemas Sistema” dedicados a João Cabral de Melo Neto:

Aqui está um livro Um livro de gravuras coloridas; Na parte superior da capa deste livro Há um ponto­furo: um simples ponto Simples furo

E nada mais.

Abro a capa do livro e Vejo por trás da mesma que o furo continua; Folheio as páginas, uma a uma. Vou passando as folhas, devagar, O furo continua.

Noto que, de repente, o furo vai se alargando Se abrindo, florindo, emprenhando, Compondo um volume vazio, irregular, interior e conexo: Superpostas aberturas recortadas nas folhas do livro. Tem a forma rara de uma escultura vazia e fechada. Uma variedade, uma escultura guardada dentro de um livro.

Escultura de nada: ou antes, de um pseudo­não; Fechada, escondida, para todos os que não quiserem Folhear o livro.

Ecoando alguns acordes de contos proto­hipertextuais como O livro de areia de Jorge Luis Borges, esse poema fala de um livro do porvir, virtual, multimídia, pois constituído de

palavras e gravuras com efeitos tridimensionais e folhas­suporte de aberturas recortadas para

um volume vazio, “emprenhado e florido” a partir de um único furo, furo este que pode ser

entendido tanto como a janela do imaginário aberta pela simples leitura ou como uma quase

definição do que hoje se conhece como um link num texto. “Esculturas de nada”, as janelas que se abrem sobre, ou dentro das folhas, a partir do ponto, se desfazem e ali permanecem à

espera de novos navegadores. Os significados que esse texto adquire à luz das novas práticas

de criação textual e de leitura em suportes eletrônicos podem nos levar à interpretação deste

poema como uma divagação antecipada e lírica dos novos espaços franqueados à literatura na

contemporaneidade. Ao veicular textos, imagens e sons, a tela do computador parece

materializar, numa “escultura de pseudo­não” – ou escultura­simulacro – o imaginário antes

relegado aos recônditos da mente fantasiosa do leitor.

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O fato de conceber o poema como uma “escultura folheada” também é interessante,

pois opera uma reversão no clássico conceito de Lessing que entende a poesia como arte

temporal. Para Cardozo, a poesia é uma arte espacial, destinada tanto à fruição visual quanto

intelectual. A percepção de Cardozo tem atingido vários artistas plásticos na atualidade, que

passaram a explorar o livro em sua condição de objeto de arte. Com a virtualização crescente

da literatura, observa­se uma certa nostalgia pelo livro impresso, que passa a ser tratado como

forma escultórica e peça de museu. Cito, a propósito, um objeto extraído de uma exposição

ocorrida nos Estados Unidos em 1990, intitulada Book Arts and Technology. “Conteúdo fora do contexto”, de Kathleen Amt (Fig. 1), mostra um livro antigo, todo corroído, com suas páginas

abertas e imobilizadas, e grandes letras escorrendo do seu interior.

Fig. 1. Kathleen Amt, Conteúdo fora do contexto (1990)

A tecnologia também tem contribuído para se pensar a nostalgia por esse suporte em

vias de extinção – uma extinção em grande parte desencadeada pelo próprio avanço

tecnológico. Foi o que se observou na quarta Bienal Internacional de Arte e Tecnologia, ocorrida em São Paulo em 2008, intitulada Emoção Art.ficial 4.0, cuja proposta era refletir sobre o conceito de “emergência” no campo da arte cibernética. A exposição apresentava obras

constituídas de elementos reais ou virtuais que, ao interagirem entre si, originavam resultados

complexos e não­previstos pelos artistas. Entre vários trabalhos interessantes, destaco Bachelor – The Dual Body, do coreano Ki­Bong Rhee (Fig. 2), por sua concepção poética.

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Trata­se de uma instalação representando um livro aprisionado num aquário.

Impermeável, o livro executa uma espécie de dança silenciosa em meio aquático. Suas

páginas fazem delicados movimentos que lembram os de um peixe ou pássaro, graças a um

equilíbrio dinâmico entre um campo magnético e o fluxo proporcionado por uma bomba de

água que o mantém flutuando, sem afundar. Em sua superfície, a obra simula uma grande tela

de plasma azul, que exibe um interminável filme: não mais o do livro não lido, pleno de

significados potenciais – retratado n’“A Escultura Folheada” feita com palavras por Joaquim

Cardozo –, mas o do livro para sempre ilegível, que comunica apenas – conquanto

intensamente – pela reminiscência de seu suporte.

partir de obras de software art. Fig. 2. Ki­Bong Rhee, Bachelor: the dual body (2003)

César Leal e o livro O Arranha­Céu: um “ Arquitetom” ?

Em seu ensaio “O universo poético de Joaquim Cardozo”, César Leal parece endossar

a hipótese da existência de uma tradição pernambucana de poesia científica (se admitirmos

como “pernambucana” a poesia do cearense radicado em nossa terra), ao afirmar que “poucos

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poetas brasileiros além de Joaquim Cardozo e, permitam­me ou não, eu próprio, integram­se a essa corrente de poesia científica que tem suas raízes mergulhadas profundamente no solo da

cultura greco­latina”.

Autor de uma obra cujos títulos já remetem o leitor para um universo de especulações

filosóficas – a exemplo de Invenções da noite menor, O triunfo das águas, A quinta estação, Tambor cósmico e Ursa maior, e de versos que figuram em epígrafe aos teoremas de Einstein na descrição do Universo Geodésico pelo filósofo das ciências italiano Carlo Borghi, César Leal

encena com sua poesia, na feliz expressão de Sébastien Joachim, um “silêncio­motim”: “Neste

silêncio ativo, defrontamo­nos com os leões do infra­mundo de uma fantasia desinvestida, com

sua farra selvagem e sua insubmissão. O escândalo e o mal­estar produzidos por sua poesia

são um indício excelente de sua eficiência revolucionária.” O próprio César Leal não cansa de

afirmar o poder renovador de sua poesia, como no poema “Voz própria”:

No tempo aparecer como aparece o pássaro, mas dele diferente: ser novo no seu canto.

O pássaro repete sempre o timbre da voz ­ desde o início do tempo quando cantava ao Sol.

Mas o poeta não pode: não pode repetir tal esquema ancestral que o trouxe até aqui...

Sua voz é diferente da voz (que foi cantada por seus pais e avós na tumba) hoje calada.

E assim o antigo esquema o poeta não repete ­ tudo o que faz é novo: o mais é só reflexo.

Mas não só em poesia defende César Leal a necessidade de renovação. Em seu

ensaio “Universo: tempo e espaço são feitos de música”, ao traçar reflexões sobre a teoria das

formas, ele afirma peremptoriamente que a ciência deve ser a cada instante mobilizada não só

pelo poeta mas também pelo crítico: “Irei dizer dezenas de vezes que o crítico do século XXI

deve ser um interdisciplinador. O interdisciplinador precisará dominar os conceitos originários

da física, da química, da biologia e de outras ciências da natureza que os poetas estão

incorporando a seus poemas. O equipamento crítico­analítico dos séculos anteriores ao século

XX não está em consonância com a teoria quântica, com a relatividade restrita e geral, com a

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mecânica ondulatória, com a biologia molecular, com a neurofisiologia e, portanto,

desamparado para a análise de poemas de autores que incorporaram tais conceitos – os

conceitos dessas ciências novas – às suas criações”.

Transcrevo ainda um trecho desse ensaio. Diz César:

Chegamos ao século XXI. Em função dessa mudança temporal, muitos fatores de ordem psicológica devem estar atuando, ainda que não tenham sido observados, nos processos de construção em poesia. Isso não é válido apenas em relação ao poema. Também alcança as artes em geral, especialmente a pintura e a música. A arquitetura, evidentemente, irá passar por grandes transformações. Ela tem voz, vista e ouvido. Creio ser difícil ao arquiteto, nesse período de transição, fugir das “falas”, das “visões” e das “audições” impostas pela beleza das linhas mágicas e tectônicas do sonho. Uma sinfonia oracular parece conduzir, em suas notas, a idéia de ser o Universo feito de música. Sinfonia que se ouve continuamente no tempo, ocupando todas as regiões do espaço. Astrofísicos norte­americanos, da Universidade John Hopkins, na década de 1960, constataram essa música estelar, captada por meio de vibrações em sensibilíssimos instrumentos de pesquisa. Uma leitura dos poetas mais completos deste fim de século e início de milênio mostra­nos uma característica comum: um contínuo e crescente anseio de forma. Tal anseio vem da música.

A considerar sua produção literária e ensaística, portanto, qualquer texto de César Leal

desafia o pesquisador interessado no tema da poesia científica. Mas como ele insiste na

questão da busca deliberada de processos formais como a maior característica dos mais fortes

temperamentos criadores da atualidade, e como cita a arquitetura, comentarei aqui,

brevemente, o poema “Epílogo”, com o qual finaliza o seu livro O Arranha­Céu, de 1994:

Coberto todo o arranha­céu ­ seis colunas a sustentá­lo, essas colunas são os prelúdios que aos 100 andares deram amparo. Chegando ao topo aguarda as chuvas Que irão cair nesse alto teto, aqui se sente irmão dos astros: amado filho do Universo. Na altura os olhos sempre postos buscam as mais altas estrelas e cada estrela com seu fogo vista do topo é mais estrela. O som das chuvas sobre o teto, o som do teto sob as águas o furacão varrendo a terra, o sangue é cinza o sangue é nada. O Sol em vôo, o verde, o mar, o mar rolando ondas nas ondas sopra leve brisa da tarde, o vento leva o balão­sonda que vai sondar as altas nuvens, as nuvens cobrem toda a Terra e sobre a Terra caem as chuvas e sob a chuva estão as pedras com o duro de sua pureza ­ pele de pedra – veda a luz ao núcleo interno oculto e seco da rocha assinalando o azul

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da Terra que irrompe no sonho e faz o arranha­céu radiante o alicerça: pedras, safiras e água­luz: água­diamante. Velozes são seus elevadores com altas portas de topázio no largo topo: um heliporto: pouso e repouso dos relâmpagos. Olha o edifício e o vê erguido, toda estrutura é só leveza, a imagem desse Arranha­Céu nos lembra a Terra e altas estrelas.

Trata­se de um poema metalingüístico, que resume e analisa a própria arquitetura do

livro ao qual se integra; um livro pensado, segundo Carlos Nejar, como um prédio repleto de

andares, apartamentos, compartimentos­poemas, quartos, peças de sonhar o visível”. O Arranha­Céu possui três colunas de natureza marcadamente musical, os “Prelúdios”. Prelúdio é um gênero musical composto por obras introdutórias de outras obras maiores, geralmente

operas ou balés. Difere da Abertura por antecipar temas da obra que antecede; pois nas aberturas, normalmente, os temas não se repetem no decorrer da obra.

N’O Arranha­Céu, cada uma das três colunas é composta por um prelúdio, ou seja, dois poemas introdutórios e uma epígrafe, os quais servem de fundação para os cem andares­

poemas que constituem o livro. O primeiro prelúdio tematiza A Imagem; o segundo, O Tempo e as Coisas; e o terceiro, Atlas e as Águas. Assim dividido em três partes, precedidas pelos prelúdios, o livro versa sobre A Escrita do Universo. No topo, o poeta constrói um heliporto para os relâmpagos: quem sabe os da crítica a que estão sujeitas todas as edificações poéticas?

A matéria do poema, sua “pele de pedra”, é de transparente limpidez, composta por

pedras preciosas: safiras, topázios e “água­luz: água­diamante”. Trata­se de uma construção

peculiar, porque suficientemente dura e resistente para alçar o poeta à altura das estrelas, e

suficientemente leve e fluida para se desfazer nos acordes dos sons naturais que a constituem:

dos ventos, das chuvas, do furacão, do mar, das ondas, enfim, da tempestade da criação

poética tão relacionada, neste texto, às revoluções próprias da natureza.

Ao contrário de proceder à tentadora empresa – impossível no espaço deste ensaio –

de analisar os andares deste edifício, discutirei um seu equivalente nas artes plásticas, a

instalação do americano Nicolas Reeves, também exibida na quarta Bienal Internacional de Arte e Tecnologia, Emoção Art.ficial 4.0, ocorrida em São Paulo em 2008. Intitulada Mutations of the White Doe, de 1997 (Fig. 3), esse trabalho dialoga diretamente com a teoria de César Leal a respeito da correspondência entre os saberes e as artes, propondo exatamente a idéia

de uma nova arquitetura estruturada sobre princípios musicais.

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Fig. 3. Nicolas Reeves, Mutations of the white doe (1997)

A instalação consiste em três grandes mapas expostos numa parede ao lado de três

pequenas esculturas que lembram construções glaciais, transparentes, futuristas (no original, o

autor trabalhou mais versões). O pedestal de cada uma emite trechos reelaborados de The White Doe, “A Cerva Branca”, antiga música folclórica. Segundo Reeves, esta cantiga é uma das mais intrigantes de todos os tempos. Mais de oitenta versões foram criadas para ela,

sobretudo na Escandinávia, França e Canadá. Alguns pesquisadores acreditam que ela teria

cerca de oito mil anos, e que suas origens estariam enraizadas no sânscrito. Mas é uma

cantiga ainda presente nos dias de hoje, constituindo a memória de uma origem comum de

diferentes sociedades através da história.

Utilizando um programa de computador, Reeves transpôs algumas versões desta

música para partituras especiais, que não utilizam notações musicais, mas diagramas

tridimensionais. É isto o que ele chama de “Arquitetons”, e que expõe na parede como os

equivalentes gráficos da música. A partir de um algoritmo (segundo a definição do projeto),

Reeves conseguiu, a seguir, construir esculturas tridimensionais de polímero translúcido a

partir das formas dos diagramas nas partituras (Fig. 4). O que há de surpreendente nessas

esculturas, que lembram míticas formações rochosas ou cidades de cristal, é que elas parecem

ser a tradução intersemiótica literal – apenas conseguida graças a um aparato tecnológico –

das diferentes versões da mesma canção folclórica The White Doe, do meio sonoro para o meio plástico.

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Fig. 4. Nicolas Reeves, Mutations of the white doe (1997)

Tratar­se­ia de um novo processo de execução “musical” de uma partitura, não com

instrumentos sonoros mas com materiais sólidos, gerando formas e não sons? Estaríamos diante de um congelamento da forma musical, temporal portanto, numa forma espacial e

plástica, algo semelhante ao que nos propõe César Leal com o seu O Arranha­Céu, nascido da sonoplastia da natureza e do cosmos e projetado tridimensionalmente no espaço a partir das

palavras?...

Na verdade, as especulações de César Leal sobre uma nova “arquitetura musical”

comprovam­se, hoje, pelo que está sendo considerado uma verdadeira revolução na

construção civil, o início de uma nova era na arquitetura: a “arquitetura dinâmica”. Os

chamados Buildings in Motion (Fig. 5), já em construção em algumas grandes capitais do mundo, representam um desafio à arquitetura tradicional, que até agora foi baseada na força

da gravidade. Os edifícios seguem o ritmo da natureza, mudando de forma e direção como

estruturas vivas. Segundo os criadores do projeto, os edifícios terão quatro dimensões, porque

o “tempo” se torna parte da arquitetura. Como cada andar destes prédios pode rodar

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separadamente em diferentes momentos e velocidades, a forma do edifício jamais se

estabiliza. Essas construções darão às cidades, provavelmente, o aspecto de sinfonias para os

olhos. Como previa o poeta.

Fig. 5. Projeto de um edifício giratório a ser construído no Dubai. Através da “arquitetura dinâmica”, os andares podem se movimentar à vontade de cada morador, provocando um efeito diferente no edifício a cada instante que se olhe para ele. Como uma sinfonia visual.

Cinema, andróides e computadores na poesia de Alberto da Cunha Melo

Talvez os leitores de Alberto da Cunha Melo estranhem a sugestão deste veio temático

atribuído a uma poesia de origem inequivocamente social, tão visceral e orgânica e tão

familiarizada com as dores e as agonias do humilde cotidiano que nada lhe pareceria mais

distante do que a presunção positivista e cartesiana da ciência, produto de um racionalismo em

princípio indiferente às urgências do corpo e de suas sensações, tão evocadas pela ambiência

de seus versos.

Mas Alberto não se furtou à evidência de que a reflexão sobre seres não­humanos, os

mais radicais exemplos de alteridade possível – sejam eles animais ou máquinas – estimula

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novos modos de pensar a própria condição humana. Assim, em meio à multidão de gente

comum que atravessa seus poemas, atropela­se um bestiário muito peculiar, que engloba não

apenas bichos domésticos e selvagens, mas algumas vezes seres de silício, emigrados da

ficção científica. Cinéfilo, sua produção profundamente telúrica e humanista vê­se, assim,

atravessada por surpreendentes referências ao pós­humanismo, provavelmente sugeridas

pelos filmes que assistia.

É o que acontece com o poema “Blade Runner”, do livro Meditação sob os Lajedos (2002), inspirado na cena final do cult de Ridley Scott, baseado na novela Do androids dream of electric sheep (Caçador de andróides), de Philip K. Dick. No início do século XXI, uma grande corporação desenvolve um andróide que é mais forte e ágil que o ser humano, a ele se

equiparando em inteligência. São conhecidos como replicantes e utilizados como escravos na colonização e exploração de outros planetas. Mas quando um grupo dos andróides mais

evoluídos provoca um motim numa dessas colônias, este incidente faz os replicantes serem

considerados ilegais na Terra, sob pena de morte. A partir de então, policiais de um esquadrão

de elite, conhecidos como Blade Runner, têm ordem de atirar nestes seres para matar. Tal ato, contudo, não é chamado de “execução”, e sim de “remoção”.

Estando prestes a morrer, limitado por seu criador humano a uma existência de quatro

anos, um desses andróides salva o caçador que o perseguia e o torna testemunha de seu

canto de cisne, um lamento final pela extinção da memória de seus feitos heróicos jamais

registrados, e das cenas inimagináveis que se descortinaram aos seus olhos no breve, mas

intenso, período de sua vida (Fig. 6). O poema de Alberto se desenvolve em torno da frase

inicial deste lamento: “Hora de morrer”. I

É tempo de morrer: as chances não percebidas, se voltassem, e agora fossem percebidas, talvez no pranto se afogassem;

porque se foram as esperas e os prazos longos; restam meras

oscilações arteriais entre jornais não desdobrados, cochichos, sombras e sinais

de que alguém (se alguém ainda te ama) vai ficar ao lado da cama.

II

“Hora de morrer”, disse o andróide, um dourado ser ariano, sentindo o tempo digital de sua vida se acabando;

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tempo de pétala, de pústula, de pressa frívola, de dúvida,

destes fáceis jogos verbais, coroas de lama e de louro sobre os cabelos dos mortais;

hora de o ser voltar aos seus eflúvios cósmicos de Deus.

A respeito deste tema, parece oportuna a observação de Maurice Blanchot: “o homem

é indestrutível, e isso significa que não há limite à destruição do homem”. O homem celebrado

pelo humanismo – segundo Lyotard, “valor seguro que não necessita ser interrogado, que tem

inclusive autoridade para suspender, interditar a interrogação, a suspeição, o pensamento que

corrói” – é posto em questão pelo imaginário do gênero ficção científica na figura do andróide.

Replicante ou simulacro do homem­criador, a criatura rejeita a condição de prótese

descartável, exigindo para si o mesmo estatuto daquele que o engendrou. Exigência legítima,

se imaginarmos que tudo aquilo que o homem cria, por ser produto de sua capacidade inata e

resultado de sua ação no mundo, também é “humano”, parte de sua natureza. 29

Fig. 6. Cena do instante epifânico de Roy Batty, o andróide replicante de Blade Runner

29 Como diz Alberto no poema “Natureza”: “É natureza a falha azul/no olho de vidro da boneca;/pulsa o grafite em cada linha/desta figura geométrica;/é natureza o raio laser,/tudo que o cálculo fez à/grama abstrata, ao teorema/que se borda no monitor,/feito carinho em carne trêmula;/é natureza até, suponho,/a sombra do nada, a do sonho.” Meditação sob os lajedos, in: Dois caminhos e uma oração.

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No entanto, como reflete o poema de Alberto, nada parece ser mais humano no

homem do que a capacidade de auto­destruição: a do eu no semelhante que continuamente desconhece, subjuga e escraviza; e a de si­próprio, que se aniquila incontáveis vezes neste

processo. Talvez seja esta a característica mesma de sua condenação à eternidade, aquilo que

retarda infinitamente a sua “hora de morrer”: a hora “de o ser voltar aos seus/eflúvios cósmicos

de Deus”.

Segundo Blanchot, “nas situações em que o homem, esmagado pelos homens, é

radicalmente alterado, deixando de existir na sua identidade pessoal; no momento em que ele

se torna o desconhecido e o estrangeiro, ou seja, fatalidade para si mesmo, seu último recurso

é o de se saber esmagado, não pelos elementos, mas pelos homens, e de dar o nome de homem a tudo o que o ataca”. Despossuído de tudo, o ser humano se torna, enfim, uma presença silenciosa que nenhum poder pode suprimir: o que essa presença traz, por si mesma

e como afirmação última, é o sentimento de pertencer à espécie. É esse o sentimento

paradoxal que ecoa no lamento epifânico do andróide: o “dourado ser ariano” que, nesta hora

última, irmana­se no texto de Alberto a todos os outros seres demasiadamente humanos,

terrosos e decaídos, falíveis e falhados, freqüentadores assíduos de sua poesia.

Mas a temática da ciência e da tecnologia assume um papel dominante num intrigante

livro de Alberto, de 1999, intitulado Yacala. Segundo o autor, Yacala, personagem de nome quicongolês e símbolo do homem universal, mora numa palafita nordestina entre brinquedos

eletrônicos e um computador arfante, sucata de luxo da universidade. Autodidata e matemático

experimental, dedica­se a “reciclar os dados do lixo, sobre a lama”, a fim de “traduzir em cifras

exatas/a voz do cosmo em voz humana”. Fonte de “uma estranha beleza”, segundo Alfredo

Bosi, este livro produz um efeito estético original ao se rebelar contra o cânon e ao mesmo

tempo inventar uma inflexível ordem estrófica e métrica. Com seus cento e quarenta poemas

octossilábicos, funde o épico ao lírico de maneira inusitada, narrando a saga completa deste

personagem do nascimento à morte, sem perder em nenhum momento a força da

singularidade de cada poema.

A tenacidade de Yacala em superar as adversidades de sua condição social e investir

numa pesquisa científica, pessoal, de busca pela transcendência na arte vai revelando, aos

poucos, ao longo do livro, todo o poder imaterial da poesia. A poesia que existe no mundo

como energia, e que flui dos quatro elementos da natureza para contaminar o homem e suas

produções, imiscuindo­se não apenas nos textos mas também na ciência, na fé, no amor e no

calvário. A poesia que não está ainda na literatura, mas que pulsa, em potência, dentro do

poeta. A natureza da poesia, segundo se infere da leitura deste livro, é, portanto, virtual.

A palavra “virtual”, segundo Pierre Lévy, vem do latim medieval virtualis, derivado de virtus: força, potência:

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Na filosofia escolástica é virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual não se opõe ao real, mas ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização. O problema da semente, por exemplo, é fazer brotar a árvore. A semente “é” esse problema, mesmo que não seja só isso. Isto significa que ela “conhece” exatamente a forma da árvore que expandirá finalmente sua folhagem acima dela. A partir das coerções que lhe são próprias, deverá inventá­la, co­produzi­la com as circunstâncias que encontrar.

Yacala narra a epopéia da irrupção da poesia no mundo nas condições mais imprevisíveis. Em Yacala, o livro, a poesia se faz a partir do relato do processo mesmo de criação. É a investigação da potência contida na semente: “gorda de luz, a sua estrela/quase

rompeu a fina rede de cognição, onde Yacala/a tinha, entre quatro paredes.”

É bem verdade que, algumas vezes, a citação à ciência é menos celebração do que

critica. No universo de Alberto da Cunha Melo, as viagens espaciais, as guerras dos mundos e

as máquinas do tempo podem incomodar, como se percebe na “Afronta a H. G. Wells”:

Vamos suportar a demora de Deus, a poesia: longa espera, longa paciência ante os olhos que tudo viram.

Já deixamos a superfície da Terra, para começar a nossa vida nas estrelas, mas um dia regressaremos.

Terão acontecido coisas estranhas, nos lares de colmo que abandonamos: violetas invadindo a sala­das­armas,

tanques floridos pelos pátios de estacionamento e abandono, e poderemos libertar os filhos, na terra inocente.

E cada um de nós voltará à sua humilde profissão, sob um céu que tenha ficado mais baixo do que antigamente.

Mas o que nos interessa investigar aqui, para além do ponto de vista de cada poeta, é

a preocupação da moderna poesia brasileira, sobretudo a nordestina, com questões

relacionadas à ciência e à tecnologia, tão esquecidas no contexto da prosa contemporânea no

Brasil. A percepção desses artistas sobre as conquistas científicas recentes, bem como o

reconhecimento da relevância desses temas como matéria poética nos falam de um olhar muito

específico da arte contemporânea brasileira ainda pouco enfatizado pela crítica: um olhar que

redimensiona poeticamente o popular gênero da “ficção científica” numa refinada e inusitada

dimensão filosófica, ética e estética.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Referências

BLANCHOT, Maurice. “L’Indestructible”, in: L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.

CARDOZO, Joaquim. Poemas selecionados. Antologia organizada por César Leal. Recife: Bagaço, 2006. CATÁLOGO de Exposição. Bienal Internacional de Arte e Tecnologia: Emergência – Emoção Art.ficial 4.0. São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2008.

CATÁLOGO de Exposição. Book Arts in the USA. New York: Center of Book Arts, 1990. CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

CORDEIRO, Cláudia. Faces da resistência na poesia de Alberto da Cunha Melo. Recife: Bagaço, 2003. DANTAS, Maria da Paz Ribeiro. Joaquim Cardozo, contemporâneo do futuro. Recife: Ensol, 2003. DOMINGUES, Diana. A arte no século XXI. A humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp, 1997. GINWAY, M. Elizabeth. Ficção científica brasileira. Mitos culturais e nacionalidade no país do futuro. São Paulo: Devir, 2005.

HAYLES, Katherine. How we became posthuman. Virtual bodies em cybernetics, literature and informatics. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1999. JOACHIM, Sébastien (org.). César Leal: poeta e crítico de poesia. Recife: Edufpe, 1994. LEAL, César. Tempo e vida na Terra. Rio de Janeiro: Imago, 1998. _____. Dimensões temporais na poesia e outros ensaios. Vols. 1 e 2. Rio de Janeiro: Imago, 2005. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996. LYOTARD, Jean­François. O inumano. Considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa, 1997. MELO, Alberto da Cunha. Dois caminhos e uma oração. São Paulo: Girafa, 2003. MONTENEGRO, Delmo. “Martins Júnior, Augusto dos Anjos, Joaquim Cardozo: presença da poesia

científica na literatura em Pernambuco”. In: http://www.joaquimcardozo.com/paginas/joaquim/depoimentos/poesia2.htm SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós­humano. São Paulo: Paulus, 2003. SANTOS, Jair Ferreira dos. Breve, o pós­humano. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

ESCRITORES DE BLOGS * : a web como espaço de criação e discussão sobre literatura

Adriana Dória Matos Universidade Católica de Pernambuco

[email protected]

Saturday, October 25, 2008

blog é uma merda. se você não escreve no blog, te mandam emails reclamando do abandono. se está se sentindo mal e escreve no blog, te escrevem reclmando que você reclamou. se você está feliz e escreve no blog, te acusam de só falar de si mesmo. se você cansou de ficar reclamando e ficando feliz publicamente porque causa muito furor e foi trabalhar, dizem que você está negligenciando

seus importantíssimos leitores. então você publica um trecho de seu novo livro no blog e ele VIRA UM LIVRO DE BLOG. se você escreveu uma crônica e publicou no blog, ela vira um TEXTO DE BLOG. se você escreve um conto

ficcional, ele vira um FATO CUSPIDO E NARRADO EM UM BLOG. depois ainda perguntam por que eu canso. mas aí fico com uma saudadinha de poder publicar

a qualquer momento e faço um blog qualquer escondido. leva um tempo até descobrirem e é legal. depois, quando descobrem e começam a achar que o

meu email é um SAC, é hora de acabar. (Clara Averbuck, Adeus Lounge)

Uma pergunta que comumente permeia a chegada de novas tecnologias e linguagens

ao contexto da arte é justamente se ‘aquilo’ é arte. Assim ocorreu com a fotografia, o cinema e,

mais recentemente, com as manifestações contemporâneas em artes plásticas — como a arte

conceitual, as instalações, a land art, as performances e a web art — tornando mesmo o uso do

termo ‘plásticas’ inadequado. Além de questionar a técnica, o público também se indaga

quanto ao conteúdo: criar objetos artísticos usando códigos incomuns provoca estranhamentos

e polêmicas.

Esse tipo de estranhamento não chega a ocorrer em relação aos blogs, não apenas por

não terem sido alçados à categoria artística, provavelmente por seu conteúdo majoritariamente

prosaico, e pela atitude quase sempre despretensiosa de seus autores. Entretanto, na medida

em que estes espaços virtuais de comunicação ganham maior visibilidade, com um público

heterogêneo acessando conteúdos artísticos existentes neles, é possível reconhecê­los como

* Este trabalho foi escrito em julho de 2005, pela observação de produção literária na Internet, tendo como corpus o portal eletrônico www.wunderblogs.com e sua versão em livro Wunderblogs.com, publicado em 2004, pela então nova editora Barracuda. À época, eram 11 autores participantes do coletivo. Nos três anos que separam a produção do trabalho e a revisão empreendida agora, em 2008, para publicação em livro, diversas foram as mudanças na blogosfera, que se expandiu, moveu, popularizou. Nesse intervalo, assim como outros endereços citados, o coletivo Wunderblogs deixou de existir, tendo seus integrantes se pulverizado pelo ambiente virtual ou simplesmente deixado de nele atuar. O que permanece online do www.wunderblogs.com são arquivos e links para os atuais endereços de alguns dos antigos integrantes.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

alternativas a suportes hoje tidos como legitimadores da arte, como espaços expositivos

(museus, galerias, cinemas, teatros) e produtos editoriais (livros, revistas).

Mas é preciso enxergar distinções nos espaços virtuais de comunicação. Diferentes de

homepages e sites institucionais, corporativas e comerciais, mais formais, os blogs se

assemelham às salas de discussão e comunidades virtuais, pelo seu caráter subjetivo e

relacional. A liberdade aparentemente dominante nestes espaços e certa garantia de

visibilidade permitem aos criadores usá­los como lugar de experimentação. Ali são criados,

comentados e distribuídos conteúdos artísticos.

Nosso argumento é de que existe produção literária na web — e não apenas

transportada para este ambiente — e que os blogs podem ser vistos tanto como ‘cadernos de

exercício’ quanto como plataformas editoriais para escritores, que muito provavelmente não

teriam onde mostrar o que estão produzindo, trocar idéias e experiências com outros autores e

leitores, se não existisse o ciberespaço. Também, que nele a relação estabelecida entre autor,

obra e leitor se dá de forma direta e (quase sempre) instantânea. O intermediário entre estes

agentes é a plataforma volátil da rede de computadores (a world wide web), que se pode constituir num primeiro passo a investidas mais sólidas — como projetos editoriais futuros — ou

num lugar de trocas efêmeras e informais — como comentários diários aos seus conteúdos.

Weblog, blog ou blogue é página na Internet na qual o usuário tem autonomia para

inserir informações que lhe convierem, excetuando­se aquelas consideradas criminosas. Seu

formato é o de um diário ou carta aberta e o blogueiro pode postar (palavra originada no verbo inglês to post, significando enviar, editar) novos conteúdos a qualquer momento. A cada atualização, ficam registradas em rodapé a data e a hora, em ordem cronológica decrescente

(da mais recente à mais antiga) e todos os posts contam com espaço para comentários de leitores.

Um blog pode ser individual ou coletivo. Para criá­lo, o blogueiro conta com

ferramentas disponíveis em endereços eletrônicos que auxiliam na publicação, manutenção e

interconexão entre seus agentes. O início deste fenômeno mundial, desencadeado nos EUA,

aconteceu em 1999, quando foi criado o site Blogger.

Os textos dos blogs podem ser curtos, longos, fragmentados, seqüenciais;

acompanhados de fotos, ilustrações, áudios, vídeos; podem discutir cotidiano, notícias

jornalísticas, meio artístico, política, sociedade, cultura de massa, ciências, esportes. Também

podem ser confessionais (autobiográficos), reflexivos, humorísticos, artísticos e literários.

Muitos blogs abarcam todos estes conteúdos. Interatividade é condição de existir deste

ambiente, no qual são sugeridos acessos a outros blogs, em colunas de links (hipertextos).

Visitando várias páginas, o leitor acaba se familiarizando com o estilo de seus autores,

temáticas recorrentes, traços geracionais e propostas editoriais, assim como acontece nos

livros impressos.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Emissão e recepção incessantes

Uma escrita informal, espontânea, rápida e direta caracteriza este ambiente virtual. Os

blogueiros formam comunidades cujo epíteto ‘espaço sem fronteiras geográficas’ não é mera

retórica, sendo apropriado o uso do termo blogosfera para se referir a este universo e sua

amplitude de alcance. Tomando como partida o número de usuários de internet neste início de

século XXI no Brasil, vemos que há um constante aumento de permanência de indivíduos

conectados à rede. Pesquisa divulgada em 22 de julho de 2005 pelo servidor UOL, intitulada Brasileiros batem recorde mundial de tempo na web, mostrava o alcance obtido por estas comunidades:

Os usuários residenciais de Internet no Brasil navegaram, em média, 16 horas e 54 minutos na Internet no mês de junho, maior tempo registrado no mundo, informou o Ibope NetRatings. [...] O País ficou à frente da França, com 15 horas e 40 minutos em média, do Japão (15h e 35 minutos), dos Estados Unidos (14 horas e 46 minutos) e da Espanha (14 horas e 46 minutos). [...] O destaque para o mês, segundo Alexandre Magalhães, coordenador de análise do Ibope/NetRatings, foi a categoria "Portais, Buscadores e Comunidades", que alcançou 88,7% dos usuários domésticos. [...] O número de internautas residenciais no mês de junho chegou a 11,55 milhões, contra 11,52 milhões registrados em maio. As medições do Ibope são feitas em 11 países desde setembro de 2000.

Menos de dois anos depois, em 23 de janeiro de 2007, o mesmo UOL informava que o

país batia recorde de navegação residencial pela oitava vez consecutiva, destacando que, de

acordo com o Ibope, em dezembro de 2006, 14,4 milhões de brasileiros navegaram em média

21 horas e 39 minutos em casa. Do que deduzimos parte da população passar quase o dia

inteiro conectada à internet, mesmo levando em consideração o fato de a banda larga facilitar a

conexão, podendo não significar o resultado da pesquisa 21 horas de uso ininterrupto.

A mesma pesquisa apontou que os internautas brasileiros superaram novamente em

conectividade a França (18h41min), os Estados Unidos (18h05min) e a Austrália (17h41min),

que ficou quase empatada com o Japão (17h40min). Os principais interesses dos brasileiros na

internet continuaram sendo buscadores, portais e comunidades.

No que diz respeito ao número de indivíduos que transitam pela blogosfera, é possível

afirmar que ela está se tornando tão populosa quanto o espaço real. Milhões de pessoas

visitam diariamente os mais variados blogs. Em 2006, o site norte­americano Technorati, que

monitora a rede mundial de computadores, apresentava dados relevantes sobre a blogosfera,

entre os quais os de que existem mais de 40 milhões de blogs em todo o mundo e que todo dia

são criados cerca de 75 mil novos blogs. De acordo com a pesquisa, no Brasil, 43% dos

internautas lêem blogs regularmente.

A conexão massiva de indivíduos à Internet (observe que o Brasil é o único país em

desenvolvimento dos referidos pela pesquisa) aponta para um evidente enclausuramento

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

doméstico. Significa que boa parte dessas pessoas está abrindo mão de outras atividades para

se dedicar à troca de informações online, alterando sua relação com o outro e com o mundo. A

mudança de comportamento provocada pela Internet traz resultados complexos, ainda não

totalmente diagnosticados, que inquietam observadores sociais. No artigo A Luta Virtual Continua (FSP, 08/03/2004), o escritor e jornalista Nelson Ascher registra a capacidade crescente de a blogosfera influenciar a opinião pública:

Infiltrando­se pelas frestas da grande imprensa e da mídia eletrônica, a blogosfera tem não apenas se consolidado como também exercido, em particular nos Estados Unidos, uma influência decisiva no clima de opinião.

O que está acontecendo nesses casos é aquilo que hegelianos e marxistas caracterizam como a transformação da quantidade em qualidade. Alguns milhares, ou mesmo dezenas de milhares, de computadores pessoais interconectados não querem dizer muita coisa. Uma vez que se passe à casa das dezenas ou centenas de milhões, que sua velocidade aumente e os custos sejam reduzidos, tudo muda de figura. Os links a outros blogs e as incontáveis fontes de informação produzem um efeito cascata, pois, se no material impresso referências assim se reduzem a incômodas notas de rodapé, no ambiente virtual elas se transmutam em atalhos que conduzem a novos atalhos, permitindo aos navegantes personalizarem seus roteiros de leitura.

Além do mais, enquanto na imprensa tradicional a seção de cartas dos leitores é um minúsculo apêndice, a blogosfera desempenha um papel semelhante, só que com as dimensões de um dilúvio cujas águas interativas terminarão arrastando quem ignore a metamorfose democratizante, inclusive a do espaço reservado às opiniões. Não é à toa, portanto, que, quer à esquerda, quer à direita, sobram pessoas reclamando de que a internet é excessivamente anárquica e desregulamentada.

Se, na imprensa, os espaços para notícia e opinião estão cada vez mais resumidos e

as informações publicadas pelas grandes empresas de comunicação são alvo de acusações de

excessiva manipulação de conteúdo, no setor editorial, o que ocorre é uma limitação à

publicação de livros de autores já consagrados ou mesmo de iniciantes que tenham credenciais

e influência (participações em concursos literários, formação acadêmica, contatos profissionais,

poder econômico, apadrinhamentos, entre outros). Para quem exerce a crítica literária, os

espaços consolidados (revistas acadêmicas, institucionais ou comerciais especializadas em

resenhas e críticas, bem como os fóruns de discussão instituídos) também são limitados e

mesmo as publicações chamadas ‘alternativas’ possuem elenco fechado de colaboradores.

Neste contexto de saturação, a blogosfera constitui­se em espaço aberto, um viável

‘faça­você­mesmo’, desde que o interessado tenha acesso a computador com conexão à

Internet e que, a princípio, não intencione lucrar com a empreitada, pois, assim como o

experimentalismo, a pouca rentabilidade ainda caracteriza este ambiente. Além do objeto aqui

estudado, o portal wunderblogs.com, há casos interessantes de como o uso do blog pode

resultar em interação com outras mídias e na ampliação de leitores. Os casos dos escritores

Clarah Averbuck (RS) e Wagner Campelo (RJ) são exemplos disto.

Entre 2002 e 2005, a jornalista gaúcha Clarah Averbuck manteve o weblog

http://brazileirapreta.blogspot.com, diário eletrônico de caráter autobiográfico. Os textos por ela

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

publicados chamaram a atenção de editores, que publicaram dois livros de sua autoria: Máquina de Pinball (Conrad, 2002) e Vida de Gato (Planeta, 2004). Hoje o Brazileira Preta está desativado, e Averbuck ‘bloga’ no Adeus Lounge. Ela continua a ser convidada a participar de

projetos editoriais e de outros, tendo o seu Máquina de Pinball servido como base ao longa­ metragem Nome Próprio (2008), dirigido por Murilo Salles.

O blog do carioca Wagner Campelo (www.quaseescritor.blogger.com.br), atualmente

fora do ar, anunciava pelo título as ambições literárias do autor. Em sua página, ele publicou

contos e fragmentos de histórias, no formato dos folhetins do século XIX. Em 2005, ele acabara

de ter um trabalho incluído na coletânea Contos do Rio (Bom Texto, 2005), resultado de sua participação no primeiro concurso literário promovido pelo caderno de resenhas Prosa & Verso,

do jornal O Globo. Em texto postado no dia 19 de julho daquele ano, Waqner Campelo fazia o

que chamou de Balanço (ou quase) da sua atuação ‘blogueira’:

Ontem fez um ano que este blog está no ar. Curiosamente, a impressão que tenho é de que ele existe há bem mais que isso. Algumas coisas mudaram nesse período de tempo (eu inclusive), mas até hoje não sei muito bem qual a real finalidade deste espaço preenchido com minhas idéias e alguns textos criados por mim. “Divulgação”, imaginei a princípio: mas divulgar­me para quê?, para quem? Ainda não descobri. O que sei é que meu blog — por mais relegado que esteja ultimamente — de alguma forma me simboliza no mundo em que vivo. E se, como indivíduo, tenho direito a ocupar um lugar neste estranho planeta confuso, nada mais justo que essa representação também se dê no mundo virtual. No fundo, não vejo um objetivo que vá além disso: mera demarcação de território. Uma bobagem, sem dúvida, mas uma bobagem que me pertence e na qual tenho liberdade de expor o que bem quiser. [...] Desconheço quase que totalmente a maioria dos que visitam este blog. Muitos "conheci e conheço" ainda apenas virtualmente; outros, que não comentam, não tenho como saber quem são, mesmo que virtualmente (embora desconfie de alguns). Mas sei que tenho um certo "público" — o que às vezes me deixa espantado. Quem serão os anônimos que aparecem por aqui silenciosamente? O que será que descobriram em minhas palavras que os faz voltar de vez em quando? Curioso... aí está algo que eu gostaria muito de saber.

As informações até aqui reunidas apontam para o crescimento avassalador do

ambiente virtual, no qual se proliferam blogs que surgem e desaparecem na proporção do

descompromisso que lhes é peculiar. Também se observa a desregulamentação promovida

pelo desenvolvimento das tecnologias digitais, que possibilitam o uso diversificado do ambiente

virtual, em que há um estímulo à experimentação, às manifestações individuais e não­

institucionais, promovidas a baixo custo, graças à disponibilidade de ferramentas auto­

explicativas, como no caso do Blogger, que permite ao internauta criar sua própria página, nem

mesmo necessitando para isso dominar linguagens de programação.

Em junho de 2003, o jornal português Diário de Notícias publicou o artigo Notícias da Blogosfera, em que o blogueiro Paulo Querido catalogava os mais variados tipos de blogs que, naturalmente, expressam tendências, necessidades e estilos heterogêneos:

Há, literalmente, blogues para todos os gostos: humorísticos, regionalistas, bibliófilos, de arquitectura, futebolísticos, eróticos, religiosos, gastronómicos, apócrifos, académicos, literários, rascas, eruditos, ‘you name it’. Alguns são excelentes (sendo que a palavra ‘alguns’ equivale,

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

neste universo, a umas boas dezenas), outros são apenas razoáveis e muitos não têm qualquer interesse. A blogosfera, no fundo, limita­se a reflectir o que acontece em qualquer outra actividade humana. É a velha história da curva de Gauss: impera a mediania, rareia a excelência. Como em tudo. Sejamos honestos: ninguém deixa de ouvir os cantores de qualidade só porque sabe que existem os pimbas, pois não?

Em meio à profusa e excitante oferta, há os que diante dela hesitam, confusos sobre as

qualidades do meio. Este é o caso da escritora e designer Ana Peluso, que em março de 2007

escreveu no site literário Cronópios 1 :

E aí, em dado momento do passeio a barco nesse mundo que nem de ar é feito, se pergunta para onde tudo isso vai. Qual será o futuro da literatura feita hoje em Blogs, daqui há dez, vinte anos? Menos, até. Cinco. Dois. Seremos tantos, seremos muitos, inúmeros, incontáveis? Já somos? Já, já somos. E ainda: conseguiremos passar nossos sinais à frente, ou alguém pode repassá­los em nosso(/noutro) lugar, e isso sequer ser notado?

Hoje, lança­se um Blog como se lança um livro. Ou até mais. Acredito que infinitamente mais. Se isso é ruim? Claro que não. Isso, por um lado, é o que de melhor aconteceu para a literatura, para as artes, para qualquer tipo de expressão. Isso fez com que o concretista do sudeste conhecesse o cordelista do centro­oeste, tendo, ambos, como recurso extra, a opção de comentarem publicamente o que pensam, respectivamente, a respeito de suas obras. [...] Nunca se viu tanta interatividade. E ao mesmo tempo, tanta dispersão.

Além da profusão, o que se observa na produção de textos literários no ambiente

virtual é que os autores têm explorado a web como plataforma de apresentação de portfólios,

caderno de exercício ou espaço para diálogo com leitores, no qual, em se exibindo, é possível

ao autor estabelecer rede variada de trocas. Neste caso, para escritores, a web tem se

restringido quase exclusivamente a um meio de comunicação e publicação, um suporte

alternativo às revistas e livros, quando em outras vertentes artísticas, como no caso da web art, os artistas se apropriam dos recursos tecnológicos, criando obras que não fariam sentido, ou

sequer existiriam, fora do ambiente virtual. Percebemos que os blogueiros literários, até o

momento da feitura deste trabalho, pouco se apropriavam das possibilidades tecnológicas do

meio, mostrando­se mais adaptados à nova mídia que proponentes de linguagens textuais

específicas para ela. Usar recursos como fotografia, áudio e vídeo em blogs — prática hoje

recorrente — não significa uma renovação ao campo literário, mas a aplicação de recurso

comum, por exemplo, ao jornalismo eletrônico. Apesar desta ponderação, observamos

aspectos que, tornando­se recorrentes na produção literária na web, acabam por indicar

caminhos de renovação da linguagem literária a partir das demandas específicas do

ciberespaço.

1 A Literatura nos Blogs — O hiper­modernismo já chegou (http://www.cronopios.com.br/site/internet.asp?id=2265), retirado em 03/11/08.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Os Wunderblogs

Nutridos pelos conteúdos até aqui tratados, buscamos agora enfocar os textos

produzidos pelos autores do www.wunderblogs.com, selecionados para edição no livro Wunderblogs.com. Em suas 300 páginas, estão reunidos posts de 11 autores: Alexandre Soares Silva, Felipe Ortiz, Marcelo De Polli, Daniel Pellizzari, Fabio Danesi Rossi, Juliana

Lemos, César Miranda, Radamanto (Alex Cristiano Baldin), Ruy Goiaba, Mozart e Dante

Gabriel Rossetti (estes três últimos, pseudônimos). Cada um deles responsável por um dos

blogs reunidos no portal Wunderblogs. À época do lançamento do livro, em meados de 2004,

eram estes os autores reunidos no portal; um ano depois, eram 23 os hospedados, em 2008, o

coletivo deixou de existir. Wunderblogs.com foi o primeiro livro lançado no Brasil sobre blogs de conteúdo que

podemos chamar amplamente de ‘literário’. À época, nem mesmo livros técnicos, teóricos e

jornalísticos sobre o tema facilmente encontrados. Na orelha que escreveu para o volume, a

editora Isabella Marcatti testemunha sobre sua falta de informação sobre o assunto:

“Em que mundo você vive?”, perguntou­me a blogueira sem esconder sua indignação quando admiti que não, não costumava dedicar horas diárias à leitura dos meus blogs favoritos e à redação de comentários sobre os posts. Eu nem tenho blogs favoritos. Aliás, há poucos meses, nem sequer sabia o que eram posts — e da existência de blogs tinha uma vaga idéia. No mundo onde eu vivo, se quero informação, recorro, com a dose de desconfiança que me parece adequada, aos jornais; se quero ficção, tenho os clássicos, os contemporâneos da literatura universal e até mesmo autores recentíssimos, todos impressos em livros. Por que cargas d’água eu perderia meu tempo lendo as opiniões de jovens desautorizados sobre os mais diversos assuntos?

Mais adiante, no mesmo texto, a editora rende­se ao carisma dos autores, chamando­

os de ‘contrabandistas’, pois lhes atribui o poder levar ao ambiente virtual valores que antes

apenas reconhecia nas obras impressas. Ela lembra que a boa apreciação de um texto deve

abandonar juízos morais apriorísticos e, despindo­se de preconceitos, encontra naqueles

blogueiros inteligência e humor radical, além de uma urgência de vida.

Quanto aos autores, eles oferecem pouca informação sobre si mesmos, preferindo

manter em seus perfis o tom de pilhéria, o clima paródico e sarcástico que permeia os textos.

No capítulo Sobre os Autores, os onze blogueiros escrevem uns sobre os outros, deixando

lacunas a granel para os leitores. Não há indícios de idade e profissão dos integrantes e raras

são as informações sobre onde nasceram, formação, profissão, obras publicadas. Alguns se

mantêm sob pseudônimos. Mas em matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, em

03/07/04, é informado que entre os autores há paulistas, brasilienses, cariocas, gaúchos, que

atuam como escritores, editores, tradutores, jornalistas, arquitetos de informação, bancários e

estudantes. Em 2004, as idades dos wunderblogueiros variavam entre 25 e 37 anos.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Empreendemos uma seleção do livro Wunderblogs.com em que privilegiamos a divisão por gêneros, indicando diversidade existente encontrada no ambiente virtual. Os textos foram

divididos em cinco grupos: poesia, crítica e ensaio, crônica, autobiografia e humor. Diferente foi

o critério de organização do livro, onde cada capítulo é dedicado a um autor, com entrada por

ordem alfabética, e posts editados em ordem cronológica (de 2002 a 2004).

Cristina Costa afirma que o texto escrito é de longe a linguagem mais importante na

rede mundial de computadores, chamando atenção às formas não convencionais que ele

assume nos meios eletrônicos (Costa, 2001: 97). Fazendo referência ao que diz Mark Poster,

em The Second Media Age, a autora afirma que os textos escritos na web são pequenas narrativas (little narratives), com características flexíveis, fáceis e rápidas, assim como aquelas encontradas nas informações e avisos dos jogos eletrônicos.

A disputa por tempo e atenção de um público imerso em um universo de informações transforma radicalmente as maneiras de dizer e contar as coisas, tendo especial importância a sociabilidade que a linguagem instaura. Poster diz que as pessoas buscam identificar­se com grupos e com eles interagir, e que o uso de um jargão é parte importante de aceitação nas relações virtuais, o elemento visível das identidades. Idioma, estilo, vocabulário e assunto identificam as comunidades virtuais (Costa, 2001: 98).

Seguindo o raciocínio da autora, encontramos aspectos em comum entre os autores do Wunderblogs.com que os identifica como uma comunidade virtual específica, regida por códigos internos de conduta, expressos sobretudo pela linguagem escrita, pela qual os autores

se corporificam, visto que não dispõe de gestos, movimentos corporais, tons de voz, olhares

que os distinga de tantos outros indivíduos virtuais (Costa, 2001: 98).

Presente, cotidiano, humor, sarcasmo e iconoclastia são características unânimes.

Aspectos reincidentes também são a auto­referência, o biografismo e o memorialismo em tom

de paródia. Citações literárias e filosóficas, referências ao mundo da história, da psicanálise, da

cultura erudita e de massa (chegando ao lixo cultural) estão presentes em vários autores.

Alguns se dedicam com talento ao ensaísmo, à crítica literária, à resenha, ao artigo, ao texto

opinativo. Com exceção de poucos posts longos, a brevidade é marca desta produção textual,

como se os blogueiros soubessem que dispõem de pouco tempo para seduzir o leitor, como se

não quisessem enfastiá­lo. Seguindo a cartilha da concisão, César Miranda, autor do blog Pró

Tensão, exerce a síntese em Versos Limpos — Folhas de Árvores e Livros (p. 196):

As folhas Amarelas Caem. Quantas Páginas Terão Essas Árvores? E as folhas

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Do meu Livro, Darão Frutos?

Minimalista, o autor preza por certo formalismo, expresso na disposição do poema, no

qual indaga sobre o futuro ou a fertilidade de sua produção. Também ocupado consigo, Mozart

— Dies Irae não se lança à frente, mas volta ao passado, realizando narrativa de tom

melancólico em Reminiscências:

Possuía um cão em infância, cocker spaniel que atendia por Bach; não apenas bobo, como cheio de problemas. A família passava por dificuldades financeiras, de modo que chegou o inevitável dia em que papai me informou de que teríamos de nos livrar do infame animal. Muito genial, meu pai não usou termos tais; em vez disso, falou­me que libertaríamos o cão; e, a despeito dos frágeis protestos infantis, lá fomos nós, na estropiada Belina vermelha, rumo à estrada, levando o cão a seu habitat natural. Paramos no acostamento e deixamos o pobre animal numa pequena mata­clareira. Tiramos a coleira, e ele saltou um pouco para lá e cá, atrás de insetos; aparentemente feliz, como papai ressaltou. Despedi­me do bicho, que se aproximara, e fomos para o carro, enquanto ele tornava a saltar. Quando ruidosamente ligamos o veículo, creio que meu cão não entendeu bem o que ocorreria a seguir, pois parou junto ao meio­fio e ficou nos observando partir, parado, com a língua para fora. Ainda correu um pouco em nossa direção, antes que desaparecesse na curva (p. 96).

Usar o espaço virtual para contar histórias pessoais, rememorar, leva­nos de retorno

aos blogs como diários íntimos, primeiro boom da blogosfera, muito apreciados por adolescentes, que no início dos 2000 infestaram a rede com confissões escritas — a própria

Clara Averbuck, anteriormente mencionada, foi signatária desta tendência —, depois

transformadas em egolatrias imagéticas, os fotologs (espécie de diários fotográficos). Estes,

junto com os diários íntimos, acabaram gerando comunidades de relacionamento do tipo Orkut,

Myspace e Facebox, em que se privilegiam perfis e anotações de gostos pessoais que

aproximam internautas de geografias as mais variadas (sendo parte dessas comunidades

escritas em inglês, reforçando sua natureza transnacional).

Ao analisar o blog como espaço de comunicação e escrita íntima na internet, em que a

página/tela em branco é o primeiro interlocutor, Schittine pondera que antigas questões

relativas ao diário no papel permanecem no diário virtual, embora ganhem novas perspectivas.

Ela se refere à presença, nesses escritos, de pontos como “a memória (imortalidade e

permanência), o segredo (o contar ou não a intimidade a um desconhecido), a tensão entre o

espaço público e o privado (que vai aumentar com a passagem para a internet) e a relação

com o romance (ficção) e o jornalismo (a observação dos fatos)” (Schittine, 2004: 14­5).

É na relação entre literatura e jornalismo que encontramos a crônica nos blogs. A partir

dos anos 1990, com o advento da internet e a simultânea redução do espaço editorial nas

páginas de jornal impresso, houve a migração da crônica para o ambiente virtual. O que aos

leitores de jornal parecia ser o fim da crônica — sobretudo daquela que no Brasil ficou

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conhecida como a crônica lírica e memorialística, aos moldes de Rubem Braga —, significou

uma ampliação de território para o gênero, no qual surgiu uma nova geração, disposta a

observar os fatos e o cotidiano com subjetivismo, oferecendo à leitura uma das melhores

qualidades da crônica: o poder de criticar e fazer ver os problemas do presente com humor e

leveza, até quando há desencanto. Este é o caso da crônica The Mind at the End of its Tether (p. 43­4), de Felipe Ortiz — Alexandrinas, que se detém na poluição sonora crescente nas

grandes cidades brasileiras.

Carros velhos, caminhões e motocicletas estouradas passam pela rua sem parar. Reformas para todo lado. Rá­tá­tá­tá de britadeira quebrando o asfalto. Martelos arrebentam ladrilhos, serras cortam aço nas construções das redondezas. Rádios e aparelhos de som ligados nos apartamentos vizinhos, vários, volume alto. Madrugadas de sono interrompidas por hordas de babuínos que saem bêbados, dos bares, a gritar no meio da rua. Telefones, interfones e campainhas cada vez mais estridentes e agudos, que já não permitem mais saber de imediato se tocam no apartamento do vizinho ou no seu. Sirenes: polícia, bombeiros, ambulância. Orangotangos e egüinhas pocotó estacionam seus veículos com as portas abertas, exibindo a potência de seus amplificadores de som, músicas grotescas (nunca vi tocarem Mahler). Os ruídos domésticos, inevitáveis, da máquina de lavar roupa e do forno de microondas. Barzinhos e casas noturnas cheios de gente animada e sem nenhum isolamento acústico. Em qualquer escritório, loja, rua, cinema, teatro, sala de concertos ou igreja toca um celular a cada quinze minutos. E as pamonhas, pamonhas, pamonhas. Uma cidade insuportavelmente barulhenta como esta, em que é impossível ler um livro sem fechar as portas e janelas, está morta para a cultura. Até pode surgir nela um ou outro escritor de primeira, mas será quase invariavelmente um Edgar Allan Poe, um Augusto dos Anjos ou alguma outra expressão melancolicamente refinada de nossos transtornos obssessivo­compulsivos. De São Paulo não sairá jamais um Buffon, um Arnold Toynbee, um São Tomás de Aquino ou qualquer realização intelectual assim disciplinada e ambiciosa, que exija pensamento sistemático, meditação prolongada e cultural geral sólida. O nível máximo de decibéis compatível com esse tipo de empreendimento já foi superado, sem chance de reabilitação. E para cada escritor talentoso que ainda insiste em surgir nesta caixa acústica infernal, irrompem pelo menos cem pagodeiros, grafiteiros e skatistas.

Rir da própria desgraça, do absurdo, rir dos medíocres, dos canonizados, rir de si

mesmo e dos outros. O humor faz sucesso na rede. Se pela necessidade de tornar a

mensagem convidativa ou o contato com o leitor leve, criando um ambiente descontraído e

afinidades entre os internautas, observa­se a constante busca do riso, da gargalhada e da

ironia pelos autores de Wunderblogs.com. Talvez, o mais escrachado e sarcástico deles seja Ruy Goiaba, que no blog Puragoiaba escolhe como alvo de críticas personagens do mundo

cultural e artístico, parodiando­os, como em Piada & Exegese (2):

1. A piada “Meu bem, lá vem o guarda”. “Guarda”.

2. A exegese • Gerald Samthos: “A piada é ma­ra­vi­lho­sa, minimalista, um verdadeiro exercício à

moda de Samuel Beckett. Vou encená­la como Godot 2 — A Chegada. Esse será o único diálogo entre Estragon e Vladimir — dois mendigos gays — nas quatro horas de duração da peça. Haverá um terceiro personagem, o Guarda, que pode Godot, Deus, Nietzsche, Osama bin Laden, Hélio Oiticica ou o próprio Beckett. Mas tenho certeza de que o público subdesenvolvido do Brasil não vai entender lhufas”.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

• Sigmund Freud: “Scheisse. Se eu conhecesse essa piada, não precisaria ter escrito O Mal na Civilização. Bastaria explicar que o ‘guarda’ é, na verdade, nosso superego”.

• Noam Chomsky: “A piada é uma claríssima metáfora do imperialismo norte­americano, que se arroga o direito de agir como ‘guarda’ do mundo e oprimir todos os povos que não se ajustem à sua política externa. Só não vê quem não quer”.

• Ary Toledo: “A piada é minha, viu, seu sem­vergonha? Eu contava lá no Sílvio Santos e no meu show Com a Corda Toda. E quem usar sem pagar royalties tem a mãe na zona”.

• Baiano Meloso: “Essa piada é linda, um eclipse oculto, uma coisa odara. A primeira vez que a ouvi foi na voz de Luiz Caldas; fiquei tão emocionado que chorei no colo de Bethânia. Faço questão de gravá­la no meu próximo CD, para o qual estou musicando um lindíssimo discurso de Antônio Carlos Magalhães” (p. 216­7).

É o mesmo Ruy Goiaba quem escreve, em trecho de sua apresentação a Miss Veen

(Juliana Lemos), no capítulo Sobre os Autores: “O que nos une é o horror a clichês, preguiça

mental e idéias surradas — sejam eles políticos, ideológicos, estéticos ou ‘bloguísticos’. Isso

não impede que às vezes eu, por exemplo, pague o óbolo ao deus dos lugares­comuns,

malgrado todos os esforços para fugir do caminho mais fácil”. A relação dos blogueiros com

seu público não parece com a do crítico distante e severo, mas com o de um grupo de amigos,

compadres. Ainda assim, percebe­se a preocupação com a linguagem, temas, conteúdo; em

estilo, verve, respondendo às expectativas por eles mesmos criadas. A intimidade com os

leitores — passível de verificação post a post pelos comentários a eles anexados 2 — parece

deixar os autores em posição segura e isto os libera para escrever com espontaneidade.

Considerações finais

Incerto projetar o futuro dos blogs literários: se sobreviverão, serão elevados ao status

de gênero e canonizados; se serão engolidos por conglomerados de comunicação ou por

megaeditoras, perdendo a espontaneidade deste começo do século XXI, transformando­se em

pastiches; se cairão no esquecimento. Quem sabe estas não são preocupações de analistas,

daqueles que estão olhando o fenômeno de fora? Porque parece que a conduta dos blogueiros

é de simplesmente fazer, aproveitar enquanto há tempo e vontade.

O que se pode destacar, neste momento, é a vitalidade desses ambientes que, mesmo

com inevitáveis oscilações criativas, expressam o talento de indivíduos dos quais sabemos

muito pouco ou quase nada, a não ser o que pensam, sentem e andam fazendo enquanto a

vida acontece. Também, que estes cibernautas estão ocupados em trocas diversas. Sim,

2 No padrão dos blogs, cada texto postado/editado, é acompanhado de espaço para comentário, situado no seu rodapé. Isto permite que o autor saiba quais assuntos geraram mais reação e interesse nos visitantes, que depositam naquele espaço opiniões, esperando qualquer retorno do blogueiro ou de outros internautas, podendo muitas vezes um post gerar debates e desdobramentos não previstos pelo autor.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

porque enclausurados e isolados, comunicando­se através do teclado e da tela luminosa do

computador, sem contato corporal, visual, gustativo, eles tecem diariamente uma rede de

comunicação, compartilham conteúdos e informações, constituem grupos de afinidades

pessoais, ideológicas, artísticas, os quais possivelmente não encontrariam guarida em

instituições, clubes, escolas, academias, livros e revistas, lugares onde ‘antigamente’ literatos e

públicos de variadas faturas costumavam se encontrar.

Mas o que blogs tem a ver com a ‘realidade’ do mundo das letras? Perguntarão alguns.

Que ‘realidade’? Indagarão outros. O depoimento do coletivo Critical Art Ensemble (2001: 35)

ajuda a ilustrar diferentes concepções contemporâneas de ‘realidade’:

Cartazes, panfletagem, teatro de rua, arte pública — todos foram úteis no passado. Mas como mencionamos acima, onde está o ‘público’, quem está na rua? A julgar pelo número de horas que uma pessoa comum assiste televisão, parece que o público está envolvido com a eletrônica. O mundo eletrônico, no entanto, não está de forma alguma totalmente estabelecido, e está na hora de tirar vantagem desta fluidez através da criação.

Mesmo entusiasmados com a fluidez e democratização do meio virtual, é necessário

que a exaltação seja acompanhada de cautela, para que não ofusque reflexões como a do

sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que enxerga sob outra perspectiva o ciberespaço e a

desintegração de redes tradicionais de socialização, levando em conta os interesses de donos

de corporações globalizadas, muitas das quais responsáveis pela circulação de informação na

rede mundial de computadores:

Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras, fortificadas e barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar; a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem (Bauman, 2001: 22).

Abordagens que problematizam interesses econômicos e políticos subjacentes no

ambiente virtual, embora importantes e pertinentes, não estiveram no foco de interesse deste

trabalho. Apenas mencionamos aqui a questão.

Sob esse aspecto, como não se indagar por que um país como o Brasil — onde há um

grande número de analfabetos e alfabetizados funcionais, baixo índice de escolaridade e

reduzido acesso a computadores conectados à internet — figura reincidentemente em primeiro

lugar em pesquisas sobre recorde mundial de tempo na web? Em que proporção isto evidencia

uma imensa capacidade comunicativa e o enclausuramento das novas gerações? Estamos

conquistando abundância de informação ou uma assombrosa alienação? Estas são perguntas

importantes para o presente e para o futuro. É preciso estar atento às polaridades, aos

desequilíbrios, a possíveis enganos, à necessidade de ajustes.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

O tema aqui tratado está relacionado a acontecimento bastante recente na história, a

revolução digital. Como foi dito, nossa proposta não poderia ambicionar cobrir tantos aspectos

do assunto, apenas vislumbrar um espaço — a blogosfera — onde as pessoas se permitam

simplesmente exercer o prazer da literatura.

Referências

BAUMAN,Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. COSTA, Cristina. Ficção, Comunicação e mídias. São Paulo: Senac, 2001. CRITICAL ART ENSEMBLE. Distúrbio eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001. SCHITTINE, Denise. Blog: Comunicação e escrita íntima na Internet. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

VÁRIOS AUTORES. Wunderblogs.com. São Paulo: Barracuda, 2004. ASCHER, Nelson. A luta virtual continua. São Paulo: Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 08/03/2004. MACHADO, Cassiano Elek. Blogs em conserva. São Paulo: Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 03/07/2004.

http://adioslounge.blogspot.com/

http://brazileirapreta.blogspot.com

http://blogger.globo.com/br/about.jsp

http://blogo.no.sapo.pt/25momentos/25.htm

http://www.cronopios.com.br/site/internet.asp?id=2265

http://es.wikipedia.org/wiki/Blogosfera

http://idgnow.uol.com.br/AdPortalv5/InternetInterna2_220705.html

http://idgnow.uol.com.br/internet/2007/01/23/idgnoticia.2007­01­23.9123117348/IDGNoticia_view/

http://ultimosegundo.ig.com.br/paginas/ultimosegundo/blig/blig_us/saiba_como.html

http://www.blogclipping.blogspot.com/2003_06_01_blogclipping_archive.html#105657911359311614

http://www.livroscotovia.pt/livros/ensaio/gato_fedorento.htm

http://www.tosko.com.br/materias

www.blogcasmurro.blogspot.com

www.quaseescritor.blogger.com.br

http://technorati.com/

www.wunderblogs.com

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

FANDOM: UM NOVO SISTEMA LITERÁRIO DIGITAL Fabiana Móes Miranda

Universidade Federal de Pernambuco [email protected]

RESUMO:

Este artigo pretende discutir o fandom como sistema literário surgido na virtualidade do ciberespaço. Um sistema que demonstra a (re)apropriação dos leitores sobre as formas narrativas de diversos gêneros literários e midiáticos, fazendo da recepção e da produção textual uma forma de auto­representação destes leitores. Além disso, o fandom se estabelece como uma comunidade de recepção que se organiza paralelamente aos sistemas representacionais e institucionais de literatura e midia.

Palavras­chave: Sistema Literário; Ciberespaço; Fandom.

ABSTRACT:

This article will Fandom as literary system appeared in virtuality of cyberspace. A system that shows the (re)appropriation of the readers on narratives manners of various literary genres and media, making of the reception and of textual production a form of self­representation of these readers. Furthermore, the Fandom is established as a receipt community that is organized in parallel to the institutional and representational systems of literature and media.

Keywords: Literature System; Cyberspace; Fandom

Introdução

Talvez a principal novidade do sistema fandom resida na sua contribuição efetiva para a formação de um novo leitor. Um leitor que, além de receber, compreender e interpretar um

texto individualmente, procura nos livros a oportunidade de participar de uma comunidade na

Internet. Este novo leitor, que nasceu na era virtual, não aceita uma recepção passiva e não

entende a leitura como uma atividade isolada. Além disso, considera­se realmente um fã dos

livros, assumindo a relação entre erudição, mídia e entretenimento. Se o leitor individualizado

no mundo real sujeita­se a receber/perceber o cânon institucionalizado respeitando as normas

e códigos que presidiram à sua sistematização, o leitor coletivizado do fandom apresenta­se muito mais independente, selecionando não só o seu cânon particular como estabelecendo

novas regras para a recepção/percepção da obra literária, incluindo estratégias de leitura

produtiva e criativa através dos mais diversos recursos tecnológicos disponíveis no

ciberespaço.

O sistema fandom e o novo leitor digital representam para os estudos literários um desafio perturbador, na medida em que propõem novos comportamentos que parecem desestabilizar

atitudes e modelos há muito consolidados. A passividade diante do texto não é mais admitida.

A leitura individual e silenciosa, que em certo momento da história foi considerada, inclusive,

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

um avanço e uma conquista, cede paulatinamente espaço a práticas mais coletivas, que

parecem comungar com as dos antigos contadores de histórias. Partilhando em tempo real,

apesar de virtual, suas percepções sobre a leitura, os integrantes do fandom transformam o ato de ler numa espécie de jogo, onde a principal regra é a interatividade. Ao ingressar num fandom, o novo leitor busca um modo de ler através do qual também possa atuar. O texto precisa se converter numa provocação argumentativa, num manancial de idéias a ser

continuamente revisitado, desconstruído e recriado. Neste sentido, a interpretação deixa de ser

entendida como a “busca de um sentido” para se converter numa “produção de sentidos”. A

atividade hermenêutica torna­se, assim, essencial e deliberadamente pragmática.

Essa nova atitude tem encontrado nas diferentes mídias possibilidades técnicas inusitadas

para a reconstrução e a atualização do texto literário. Pode­se dizer que, na era da

(re)apropriação textual, o livro ganhou um novo lugar na mentalidade de muitos: tanto o livro­

objeto quanto as idéias nele contidas tornam­se alvos de uma atividade eminentemente

divertida e criativa, como a que Walter Benjamin previa em suas reflexões. Pois só o texto

entendido como jogo e o próprio livro, em sua dimensão lúdica, entendido como brinquedo, poderiam ter criado o fandom e garantido a sua intensa difusão no ciberespaço. Ao contrário do que se possa pensar, porém, não se observa no fandom uma desvalorização da tradição canônica. Na verdade, a leitura produtiva tem­se constituído numa forma de reconhecimento e

de perpetuação — nos critérios pós­modernos — da própria tradição culta, relida e recriada ao

lado de obras novíssimas e de obras consideradas “populares” e “de massa”. Neste contexto,

não há para o leitor qualquer quebra de perspectiva de valoração do objeto livro: pois é sobre

um livro (um texto literário) que esta técnica de leitura produtiva e digital atua, transformando o

ato de recepção numa atividade impossível de ser concebida antes do advento da

hipertextualidade.

Mas o que é fandom?

Pode­se definir o fandom como um sistema digital que engloba diversas manifestações próprias do campo literário, abarcando desde a produção e a recepção de textos até a crítica e

a criação de produtos artísticos, numa perspectiva inovadora na qual já não cabem as atitudes

passivas da leitura e da crítica tradicional e universitária. Leitura e crítica, no fandom, são atividades essencialmente criativas, geradoras de novos produtos: sejam eles textos fictícios,

poéticos ou teóricos; e novas formas de crítica, construídas a partir de releituras plásticas,

musicais ou de outra natureza (pequenos filmes, clipes ou jogos) que refletem, comentam ou

recriam a partir de uma obra literária de origem, em torno da qual se reúnem os “fãs” em suas

comunidades. A reunião dos fãs em torno de uma mesma obra de eleição, e às vezes de culto,

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

é a característica determinante de um fandom. Há, portanto, fandoms específicos para obras específicas.

O fandom mostra como a recepção da literatura, (re)apropriada pelos usuários em contexto hipermidíatico, vem permitindo uma atualização do sistema literário, com a renovação

das atividades tradicionais de leitura e escrita e com a formação de novos cânons. Constituídos

por obras clássicas e modernas, eruditas e populares, esses cânons parecem se compor

obedecendo tanto a critérios antigos quanto a demandas contemporâneas. Espera­se dos

textos eleitos que respondam ou continuem respondendo às interrogações da atualidade, e que

possam oferecer desafios ao exercício da interatividade, que parece ser a marca distintiva da

leitura e da crítica no fandom. O receptor torna­se o elemento mais importante neste sistema, não obstante o próprio

texto (reconhecidamente obra de um autor específico) jamais seja desmerecido. Ao contrário:

parece ser valorizado e cultuado como o ponto de partida e de inspiração para novas criações.

Daí o próprio nome do sistema — fandom: “domínio dos fãs”. Fandoms são, portanto, sistemas multimodais de leitura que se estabelecem em torno de uma obra literária eleita, por diversas

razões, como valor de culto e valor de exposição. No fandom, a obra é cultuada em si e por sua potencialidade de oferecer material à exposição. Por sua capacidade de enfrentar a reciclagem

sem se desfazer. Por sua resistência à desleitura e à desconstrução crítica e criativa. Como

diria Harold Bloom, pelo seu poder de precursividade, desde que adaptado às exigências

contemporâneas.

O leitor/fã/escritor no fandom — campo de investigações instigante e ainda completamente

inexplorado — parece ser, basicamente, o público jovem, não especialista em literatura, mas

com suficiente formação escolar para ler e selecionar obras segundo critérios próprios,

definidos e partilhados por comunidades que vão se organizando segundo as suas motivações

e necessidades. Tais comunidades, que se constituem virtual e espontaneamente, não sofrem

a tutela da academia nem da universidade, e não são, em geral, monitoradas pela escola nem

por professores. Seus membros raramente são apenas leitores passivos, ou meros fãs de

alguma obra. Comunidades de fandoms quase sempre incluem leitores que também escrevem e publicam extra­oficialmente na Internet, a partir de ou sobre as obras de seus cânons. Nesse

espaço, têm as suas produções lidas, criticadas e comentadas pelos seus pares ou por

visitantes ocasionais.

Histórico: o processo construtivo

No processo de formação dos fandoms parece ter havido, primeiramente, a necessidade de subjetivar o sistema literário oficial, diversificando­se as comunidades conforme a

necessidade de um leitor de partilhar com outros leitores as suas preferências individuais por

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uma determinada obra literária. Em seguida, houve a necessidade de sistematização dessas

comunidades, quando os leitores/fãs/escritores, num momento já avançado de elaboração

desses espaços, se depararam com o verdadeiro universo textual que estavam construindo na

Internet. Essa necessidade acabou formalizando e formatando um sistema que não se

encontra localizado, mas disperso no espaço virtual em grupos distintos. Como no sistema

literário, podemos notar que a noção de organização interna e formalização é sempre maior

nos fandoms mais antigos e complexos, que reúnem um maior número de colaboradores, como nos das séries Harry Potter e O Senhor dos Anéis. As comunidades que giram em torno destes fandoms constroem uma unidade que é feita de uma incrível variedade de textos de várias naturezas, decorrentes de um mesmo texto literário de origem: ficção, poesia, ilustrações,

desenhos, músicas, vídeos.

Pode­se dizer que o fandom existe pela convergência de imaginários de uma comunidade de leitores de uma mesma obra. Isto quer dizer que o sentimento de pertencer a uma comunidade literária é o elemento que promove a identificação entre os textos, imagens, vídeos produzidos pelos participantes desta comunidade. Muitas vezes, é num fórum que os leitores

reintegram estes elementos, fazendo links com os diversos corpus narrativos que constituem, afinal, o fandom.

Esta característica do fandom — sua forma de integrar pessoas e produtos em torno de

uma obra específica — é o que nos leva a compreendê­lo como um sistema digital online. Um

sistema que reproduz todas as instâncias do sistema literário impresso, mas na perspectiva de

uma recepção produtiva e virtual. Se o sistema literário tradicional se constitui de obras (onde o

texto é o elo entre o autor e o leitor), mercado (que medeia autor/texto/leitores) e crítica

acadêmica (que medeia o mercado e a sociedade), no fandom, apesar destas funções estarem menos definidas, podem ser verificadas e cada participante pode assumir todas estas funções.

Comunidades de leitores de obras literárias não constituem um fenômeno recente.

Aficcionados, críticos e cultores de livros sempre existiram e estiveram na base da formação

canônica oficial, dos textos a serem adotados nos manuais e nas escolas. A própria disciplina

História da Literatura deve a sua constituição a esse movimento de admiração, valorização e

estudo dos leitores de obras literárias. A especificidade e a novidade do fandom, porém, surgem do fato de se tratar de uma manifestação virtual, com todas as peculiaridades típicas

da leitura na era da Internet. Embora se espelhe nos sistemas já estabelecidos pelas

instituições que determinam e avaliam, oficialmente, as produções literárias, o fandom se diferencia por se constituir num espaço democrático e aberto, alheio a questões de poder e de

interesses que transcendam a própria literatura. Como tal, traz contribuições próprias à

reconfiguração da História Literária. Seus participantes são anônimos ou se apresentam com

pseudônimos e nomes fictícios. Não há critérios seletivos para a inclusão de um membro numa

comunidade além de seu apreço pela obra cultuada, e sua vontade de comentá­la ou de

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partilhar as suas criações pessoais em torno dela. A admiração gratuita pelo texto parece ser,

portanto, o principal critério para o estabelecimento de um fandom, um critério pouco científico e bastante criticado nos meios acadêmicos. Além disso, o fandom é um espaço que permite uma convergência de atividades e reconfigura gêneros literários e midiáticos, cultura jovem,

cultura de entretenimento e contra­cultura, fazendo todas essas manifestações dialogarem

produtivamente.

Se o nascimento da categoria do “autor” e da “literatura” como mercadoria resultaram das

conquistas tecnológicas da era industrial, com o surgimento da imprensa e a expansão do

público leitor e consumidor de informações e de lazer, a era digital permitiu a reconfiguração

desse leitor em co­autor, crítico e criador. Para este novo público, o anonimato não parece ser

um problema, uma vez que o interesse maior é dar continuidade às obras lidas e compartilhá­

las, além de ensaiar produções próprias. O espaço do fandom pode ser considerado, muitas vezes, o de um imenso laboratório criativo, acessível e acolhedor. Neste sentido, a literatura

afasta­se do universo do “mercado” — criação destinada à comercialização de idéias —, e

aproxima­se do universo do “seminário” — germinação de idéias sem destino específico, que

podem vir a se tornar textos e obras a serem partilhados gratuitamente.

Apesar da importância e da riqueza do processo literário que se cria em ambientes virtuais

como o fandom, não se observa ainda o devido interesse por parte das instituições como a universidade e a escola pelo estudo desse fenômeno contemporâneo. As instituições, que

lidam preponderantemente com o binômio autor­detentor de direitos/obra única­mercadoria, em

torno do qual se organizam os cânones, tende a ignorar manifestações espontâneas como os fandoms, ou a enquadrar suas produções na categoria de meros pastiches. Mas, desde os anos 60, quando se tornou inegável o papel das mídias na produção cultural, questões como

as da autoridade sobre as idéias e da originalidade das obras passaram a ser revistas, gerando

grandes polêmicas até hoje não resolvidas.

O que se observa cada vez mais é que o texto literário impresso na página de papel já não

é a única maneira de se estruturar uma narrativa, e que outros meios de comunicação vêm

conquistando cada vez mais espaço no hábito de leitura do público jovem. A Internet

possibilitou um novo momento nas relações entre público e técnica e afirmou a convergência

de construções canônicas e não­canônicas, pois ampliou o espaço para negociações

identitárias e estéticas. A disponibilidade de obras clássicas ou de best­sellers proporcionada pelo espaço de leitura virtual ampliou incomensuravelmente o público leitor, mas também o

universo dos escritores, aspirantes ou efetivos. Todos parecem se sentir criadores na

atualidade.

Um dos aspectos mais importantes do fandom é o seu caráter formador não só de um público aficcionado e fiel para obras novas e inéditas, mas também para obras de cânones

tradicionais, que vão assegurando sua permanência na História também através dessas

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comunidades. Nos seus prováveis dez anos de existência, os fandoms são responsáveis pela criação de toda uma geração de novos leitores com hábitos, expectativas e comportamentos

diversos daqueles da era da imprensa. Trata­se de um fenômeno que, como já se disse,

demanda uma atenção urgente e específica, pela abrangência que atinge, por não estabelecer

fronteiras e por reunir um número crescente de adeptos, considerando que se multiplicam em

escala vertiginosa. Leitores de fandoms organizam­se em torno de cânones “pessoais”, indiferentes aos determinados pelos manuais das escolas. Incorporam textos clássicos, mas os

desconstroem e reconstroem à exaustão. As formas de relacionamento com a literatura são

diferentes e dinâmicas, e nascem da prática constante e entusiasmada da leitura e do debate

livre e não monitorado sobre os textos.

Para este público de leitores e para muitos jovens, por exemplo, a fanfic (ficção do fã) tem tanta importância quanto um texto impresso. Muitos autores de fanfics já conseguem ter seus nomes reconhecidos nessas comunidades e suas obras servem de modelo e inspiração para

outros leitores. Estes textos assumem, no fandom, uma dimensão de “clássico”, paralela às obras de autores renomados da literatura universal. No ciberespaço esta forma de interação se

estabelece muito mais tranquilamente do que no mundo “real”. O diálogo se estabelece não

porque não exista mais a hierarquia, mas porque a noção do jogo, com seu elemento

eminentemente lúdico, permite a co­participação no ato da construção textual.

Promovendo uma situação extremamente favorável à auto­aprendizagem, o fandom não se presta apenas para fomentar a leitura e a escritura como práticas habituais e estimulantes, e

para divulgar e promover obras inéditas e novíssimos autores. Ele também oferece um

instrumento valioso para se verificar quais as obras clássicas que permanecem na preferência

dos leitores/fãs/autores; ou seja, quais as obras da tradição que ainda gozam de prestígio junto

ao público do ciberespaço e que são capazes de funcionar no sistema de reapropriação do fandom. Embora devamos levar em conta que o meio divulgador dos fãs é o próprio fandom, o que gera uma circulação de certos livros e de certas leituras, estamos diante de um sistema

espontâneo e extremamente aberto de manifestação valorativa, que tem a peculiaridade de

mapear e revelar o status quo das obras clássicas na visão de uma geração de jovens leitores em seu locus habitual: o ciberespaço, que muitos consideram uma verdadeira “pátria”.

O fandom como sistema: elementos de formação e de reprodução

Como um sistema espontâneo e aberto localizado no ciberespaço, o fandom comporta uma série de elementos que convergem em torno de uma obra já escolhida pelo público que

integra uma determinada comunidade. Já vimos que o novo leitor antecipa a escolha de uma

comunidade, levando em conta principalmente a empatia com a obra ou com um personagem,

ou até mesmo com o autor/ídolo.

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A partir desta escolha, o leitor/fã decidirá que tipo relação irá manter dentro da comunidade

e qual será a sua participação. Alguns preferem apenas manter uma relação através dos fóruns, comentando e debatendo os temas que mais lhes interessam sobre o livro e sobre as leituras paralelas que vão surgindo. Outra etapa mais comum é a escrita de fanficção, pois mesmo os leitores que não se consideram “aptos” para a escrita assumem o risco de inserir

alguma modificação subjetiva no texto lido. E, ainda, o leitor resolve desenhar ou produzir um

vídeo. Estas estratégias de leitura/crítica/criação revelam tanto a afinidade desses leitores com

o texto como com os elementos da técnica no espaço virtual, surgindo assim as fanarts e os fanvídeos. Para os leitores que dominam uma segunda língua, o trabalho para sua comunidade pode ser a tradução e a disponibilização de material traduzido online, no caso de fandoms criados em comunidades de várias procedências linguísticas.

Esses gêneros, por assim dizer, são produzidos exclusivamente para o espaço virtual. Mas

como já vimos, o fandom pode adquirir um caráter performático e buscar o espaço real para suas representações do texto. Os encontros de cosplay e os festivais em que bandas se organizam em torno de uma obra e criam músicas para os personagens e as histórias lidas

(Fanhit) são, em sua maioria, gravados e disponibilizados nas comunidades ou em arquivos para vídeos como o YouTube e o dailymotion. Esta disponibilização imediata permite que fãs em várias partes do mundo também “participem” destes eventos. É um processo de inclusão

espontânea, pois o que conta para as comunidades de fandom é a quantidade de membros, que amplia a participação pública em torno da obra e aumenta a quantidade de textos (no

sentido amplo do termo) produzidos no fandom. Veremos como os gêneros do fandom estão se sofisticando e ganhando espaço dentro e fora do ciberespaço.

1. Fanfics

A fanficção é certamente a mais visível manifestação no fandom, que permite a verificação mais imediata do fenômeno da recepção na atualidade. Uma recepção midiática e multimodal

que enxerga na obra, sobretudo, a abertura para novas leituras, para o desmembramento de

novos textos. Ler uma obra torna­se equivalente a pensar produtivamente sobre ela,

questionando­a e recriando­a. Um exemplo recente ocorreu com o seriado Capitu, em que a emissora de televisão Rede Globo fragmentou a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, e disponibilizou na Internet cerca de mil trechos para que os internautas produzissem vídeos a

fim de homenagear o centenário da morte do autor. Trata­se de um exemplo de um fandom induzido, que revela que a potencialidade e a força desse fenômeno virtual já estão sendo apropriadas pelos meios de comunicação. Embora aqui não haja escolha pessoal do leitor,

certamente os idealizadores da série contavam com a espontaneidade criativa desses

usuários.

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Isso mostra que a recepção recente, apesar de ainda se focalizar na escritura, sente­se

muito mais à vontade no âmbito da co­criação, sobretudo quando amparada pelos recursos

hipermidiáticos. Em outras palavras, torna­se mais fácil compreender o texto recriando­o de

alguma forma, e partilhando essa recriação com um grupo, o que constitui um “leitor coletivo”

que não se vincula a uma leitura “correta” e acadêmica, mas a uma leitura afetiva e

comprometida com a coletividade da comunidade do fandom. A fanficção ou ficção escrita por um leitor/fã não pode ser considerada uma mera redação

escolar, pois sua ação se frustraria como proposta didática, já que o propósito não é hermenêutico (de decifração e explicação de significados), mas pragmático (de criação a partir da re­utilização de recursos). No entanto, apresenta todas as características que muitos

docentes, às vezes, lutam para conseguir dos seus alunos, ou seja, uma produção escrita que

reúna interpretação, pesquisa por iniciativa própria, crítica e ainda desejo de correção e de

avaliação, quando não até mesmo o de tradução.

Muitos escritores de fanfics querem primar pela escrita, buscando um estilo e uma adequação gráfica e gramatical. As betareaders oferecem seus serviços e são muito requisitadas pela maioria dos fanfiqueiros/fanwriters (Fig. 1.). E, da mesma forma, é quase uma exigência do autor de fanfics que surjam comentários, pois são estes que dão a avaliação do que foi ou está sendo escrito. Podemos perceber que ter seu texto traduzido para um fandom em outro idioma ou ter seu texto plagiado é motivo de muito orgulho ou indignação por estes

escritores. E tudo isso é debatido nos próprios fóruns de fandoms. As fanfics com obras de autores brasileiros ainda estão em processo de gestação. Talvez

Machado de Assis seja o autor clássico mais considerado na produção dos fãs (Fig. 2. e 3.),

mas essa afirmação demandaria uma ampla pesquisa em todos os fandoms existentes, o que transcende os objetivos deste trabalho. Ao que parece, toda a fortuna crítica e todas as

reescrituras criativas pré­fandoms não foram suficientes para esgotar o poder de

precursividade canônica da obra machadiana, que continua a incendiar as mentes e os

corações, agora no ambiente virtual. A resistência de um autor/obra a essa passagem é uma

verdadeira prova iniciática de sua força como um clássico, até porque é preciso considerar que

o fandom representa uma cultura jovem, que prefere não seguir os textos já “fixados” pela cultura tradicional, ou seja, cultura que identificam como a regra que desejam contestar. O texto

clássico poderá ser amado, mas enquanto representar liberdade e não convenção.

Apesar de geralmente procurarmos nas fanfics a transformação de um texto clássico (ou não) em outros textos, devemos levar em consideração que muitas vezes a fonte da recriação

não procede da literatura. A inspiração para textos literários pode surgir das artes plásticas e do

cinema. Muitos fanfics surgem depois de um leitor admirar uma fanart ou se “inspirar” por um fanvídeo, da mesma forma que um quadro ou uma música pode servir de “inspiração” para um

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poeta. No fandom, a hierarquia textual (que coloca na forma gráfica toda a prioridade) é muito difusa e se movimenta continuamente entre/textos.

O FanFiction.Net ainda é um dos maiores e mais representativos arquivos para textos de fanficção. Nele, os fandoms se classificam por obras. Assim, podemos encontrar, no index de livros/books, centenas de títulos disponibilizados por ordem alfabética a partir nos nomes de autores, obras ou personagens, constituindo, cada um destes títulos, links que remetem a milhares de textos de fãs. Há, por exemplo, fandoms que podem ser acessados pelos títulos, nos index: Bíblia, Mitologia Grega, Homero, Dom Quixote, Alice no País das Maravilhas, Peter Pan, Harry Potter. Os próprios verbetes mereceriam um estudo, pois já revelam se a força interpretativa se concentra na figura do autor, na obra ou num personagem.

Os textos são escritos nos mais variados gêneros literários, e o mais interessante é que

alguns sites já organizam seus arquivos colocando a fanfic como um gênero particular, junto a gêneros tradicionais como conto, poema, crônica. Isso revela ao leitor inserido nesta cultura

que, ao clicar em “fanfic”, entrará em contato com textos escritos por fãs a partir de uma obra original e reconhecida. Quem procura a fanficção não busca apenas uma história nova, mas busca uma nova perspectiva e uma nova experiência sobre a história existente, que tenha

algum desdobramento “extra” sobre a vida de um episódio ou personagem. Assim, a fanficção poderia ser considerada um gênero de leitura, não exatamente de escritura, uma vez que está vinculada a uma escritura prévia, e que se apresenta necessariamente como um

desdobramento daquela para os conhecedores do texto de base.

A fanfic tem se popularizado como leitura alternativa e certamente supera a própria produção de outros gêneros literários produzidos e divulgados no ciberespaço. As hiperficções

e os blogs literários não oferecem ao leitor a mesma dinâmica constituinte das fanficções, e isso pode ser observado no fato de que muitas ficções interativas perderam seus ares de

novidade. A fanficção, ao contrário do que se poderia esperar de mais um “modismo” entre os jovens, vem conquistando uma segunda geração na Internet.

2. Fanarts

As fanarts representam as variações gráficas do fandom — na Wikipédia, por exemplo, os

desenhos, as colagens, os doujinshi e os vídeos são colocados como fanarts. Neste trabalho, entretanto, considero fanart apenas os desenhos e pinturas feitas no e para o fandom. Uma das especificidades da fanart é a possibilidade dos leitores/autores fazerem encomendas (commisions) de desenhos, ou seja, muitos artistas de fanarts fazem desenhos por encomenda e recebem por isto. No universo do fandom, a fanart apresenta sua face comercial: os que não sabem desenhar e desejam possuir um desenho ou incluí­lo em seus trabalhos, podem

encomendá­los. Para os que sabem desenhar, portanto, a fanart é um negócio rentável e basta

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que os fãs ou otaku solicitem os desenhos informando os seus personagens favoritos e a cena que imaginam para a figura, em seu padrão de expectativas e desejos (Fig. 4.).

As encomendas funcionam seguindo a lógica da Aura Digital, ou seja, apesar de todos

poderem ver o desenho disponibilizado num site (como o DeviantArt), a propriedade pertence a quem fez a encomenda e o proprietário recebe em casa o original do desenho. O que, em certo

sentido, torna o fã que encomenda uma espécie de “mecenas” no fandom. Em relação à autoria, é comum que alguns fanartistas recomendem que não seja feito uso

indevido das suas obras e que elas não sejam reproduzidas sem autorização prévia. Mas não

há um controle total sobre estas produções que muitas vezes vão parar em fóruns, blogs ou podem ser impressos. Para proteger seus direitos autorais, muitos fanartistas disponibizam as

imagens em baixa resolução ou em miniaturas.

Outra questão que existe é que cada artista escolhe a técnica que irá utilizar para compor

o seu desenho. As técnicas utilizadas para as fanarts podem ser diferentes, sem que isso modifique a especificidade do gênero digital, já que o produto forçosamente será digitalizado e

exposto online. Podemos encontrar desde rabiscos em cadernos (feito durante as aulas provavelmente) até os que se utilizam de técnicas de photoshop, tablet, técnicas clássicas (bico de pena, aquarela, guache) e mesmo técnicas orientais de sumiê. Por exemplo, a fanart de Bentinho/Dom Casmurro, elaborada em grafite (Fig. 5.).

Na fanart ocorre o mesmo que nas fanfics, ou seja, o leitor/fã/artista quer exibir a sua interpretação da obra lida, seja de um personagem ou seja de um momento — um recorte de

alguma cena do livro. Muitos autores integram fanarts em suas fanfics, como forma de ilustração da história e é comum que ocorra interações entre os fãs­escritores e os fanartistas

que colaboram juntos numa produção. Ou os tesauros, que são trocas de presentes entre os participantes das comunidades, sendo comum um fanartista “presentear” com um desenho

uma fic da qual particularmente tenha gostado. Outra forma de produção gráfica bastante comum nos fandoms é o fanzine ou doujinshi,

ou seja, os quadrinhos feito pelos fãs (Fig. 6). Neste caso, os recursos hipermíaticos permitiram

uma maior produção e uma melhor qualidade de histórias diponíveis para leitura e download. As histórias contam e recontam os textos já lidos pelos fãs e são mais próximas das narrativas

das fanfics. Assim podemos ver os personagens de um texto sobre o ponto de vista de vários fanzineiros.

Também devemos nos lembrar dos ícons, que são pequenas imagens colocadas para representar os membros das comunidades/fandoms. Como no caso do personagem Coringa, do filme Batman, já mencionado, que causou uma verdadeira “febre” de ícones com a figura do Joker. As imagens podem ser desde fotografias em que se incluem frases ditas pelo personagem até animações.

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Por fim, os emoticons e gifs (graphics interchange format) também são um importante elemento dos fandoms, pois introduzem o elemento gráfico em muitas fanfics, substituindo uma descrição por uma representação que pode revelar até mesmo o estado de ânimo do

personagem.

3. Fanvídeo

Muitos fanvídeos surgiram a partir dos AMVs (Anime Music Videos) que são produções em vídeos feitos com animes (desenho japonês). Os AMVs são montagens sobre as séries de anime, ou sobre várias delas, em que o produtor coloca um fundo musical, que geralmente

caracteriza o estilo do vídeo, ou seja, se será uma paródia, um drama, um romance.

Neste sentido, os AMVs e os fanvídeos procuram contar uma história e a produção é feita como a edição de um filme, em que se escolhem as partes das cenas que mais colaboram no

efeito que o diretor quer criar. Já existem sites arquivos específicos para os AMVs, como animemusicvideo.org que disponibiliza os vídeos em categorias como nome do artista ou série de anime. Mas, sem dúvida foi o YouTube que permitiu e ampliou este gênero do fandom.

Para seus próprios criadores, o YouTube promoveu o “faça você mesmo” entre os seus

usuários, que compreendem desde artistas de vídeo arte até amadores. O “faça você mesmo”

demonstra muito do conceito de “liberdade” que entra como um dos discursos mais fortes das

mídias digitais, além de que responde ao fazer como o processo de experimentação da técnica

(Fig. 7).

Entretanto, o domínio da técnica para a criação de um vídeo não conta somente com os

programas, já que a principal ferramenta para um vídeo bem aceito e bem elaborado é a

conjunção feita pela “sensibilidade” do artista para escolher as cenas, montá­las e definir a

música, pois é comum que as maiores críticas nos comentários sejam pela escolha

desequilibrada entre o tema musical e as imagens escolhidas. Para o fã inserido neste contexto

algumas vezes a obra origem é reconhecida apenas pelo título do vídeo ou pelo

reconhecimento das histórias narradas, pois muitas vezes o produtor fez uma seleção

totalmente arbitrária de elementos para a montagem.

Os fanvídeos deixaram as suas características mais próximas dos AMVs e começaram a criar até mesmo uma independência com as séries de origem, já que muitos livros não estão

disponíveis como imagens. Para os fãs/cineastas a ausência de imagens relacionadas à sua

história favorita cria várias possibilidades no universo fandom. Quando existe um filme sobre o livro, como na série Harry Potter de J.K. Rowling, as imagens do filme são reutilizadas para uma montagem: ou apenas um musical ou a proposta de uma nova narrativa. Desse modo,

podemos dizer que os fãs, desejosos de antecipar os livros da série que já foram lançados,

mas ainda sem a perspectiva de exibição dos filmes, criam seus próprios filmes sobre a série

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infanto­juvenil britânica. Para isso escolhem cenas de outros filmes, ou até mesmo desenhos

de fanarts, e montam as histórias. Um detalhe curioso é sobre a escolha do personagem, pois o produtor do vídeo irá procurar atores que se pareçam com a idéia mental que fizeram durante

a leitura do livro. É bom lembrar que a escolha dos personagens “oficiais” desagradou à

maioria dos fãs da série.

Há, ainda, duas formas de produção de fanvídeos que vêm ganhando adeptos: o fantrailer e as fan­animações. Os fantrailers se diferem dos fanvídeos, principalmente, porque quem interpreta são os próprios fãs, caracterizados como personagens (Fig. 8).

Os fãs procuram imitar desde a atuação até os cenários, mas isso não impede que façam

paródias ou atualizem as obras (como num fanvídeo sobre Dom Casmurro, que mostrava a vida de Bentinho nos tempos atuais). Outro exemplo performático nestes vídeos de

participação dos fãs é o LiveAction. O LiveAction tem origem nos seriados japoneses, entretanto ficou mais conhecido pela teatralidade de seus personagens que muitas vezes

saiam dos desenhos animados para serem encenados por atores. Os LiveAction fazem uma união entre os fanvídeos e os cosplays, que veremos adiante.

A outra forma que vem se popularizando são as fan­animações. Herdeiras das animações de cartum ou anime, as fan­animações precisam se utilizar dos mesmos recursos tradicionais e, por isso, são feitas por fãs que trabalham em estúdios de produção animada ou que

dominam bem as técnicas de animação e possuem programas específicos para isso. As fan­ animações ainda são muito simples e rápidas, já que sua produção é cara.

Sua compensação é o resultado que se torna uma história mais próxima ao imaginado

pelo seu produtor. Um exemplo nacional é a fan­animação sobre o Alienista de Machado de Assis. Esta animação conta com poucos frames, ou seja, quantidade de quadros por segundo, mas a música “Sanidade”, dos Raimundos, contribuiu para a atualização e originalidade do

vídeo.

Na falta de recursos técnicos e financeiros, os fãs elaboraram mais uma “saída” criativa

para construírem seus vídeos narrativos em suas comunidades/fandom. O novo recurso vem dos jogos interativos como o The Sims e Second Life, pois estes softwares permitem a criação de avatares e de cenários. O fã aproveita o espaço virtual e nele constrói a sua narrativa para

seus personagens favoritos, podendo “jogar” de forma mais “realista” no mundo que construiu e

que, na verdade, é o mundo do livro em que sempre quis interferir — como nos lembra a

recente produção cinematográfica Coração de Tinta: é ainda o desejo do mundo possível e a auto­representação dentro da história lida.

4. Cosplay

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O cosplay reúne a idéia de customização e jogo/play e que, simplificando, significa fantasia. De forma geral, podemos dizer que são os fãs vestidos com fantasias que

caracterizam seus personagens preferidos. E, embora não seja uma prática originária do

ciberespaço, tem conquistado mais adeptos justamente pela fácil divulgação de imagens na

Internet (Fig. 9).

O cosplay tem uma forte relação com a mídia em geral (seriados de televisão e de filmes) e, a partir de seus fandoms, são realizados eventos de fãs, que primam pela caracterização e a performatização para representar séries de TV/livros/games/desenhos. Como no LiveAction, uma forma de teatralidade ocorre nos festivais de fãs (Fanacs, ou seja, Fannish Activities 30 —

Atividades dos Fãs), pois não basta colocar a fantasia, já que atuar como o personagem é o

que conta para uma boa caracterização. Em outras palavras, os eventos propõem uma

suspensão do mundo real e colocam os participantes num mundo possível, que se torna o

mundo do qual retirou a sua “vestimenta”.

Em Fanacs “mistas” podemos ver diversos mundos num mesmo espaço. Em outros, como os eventos de Harry Potter ou do Senhor dos Anéis, podemos nos sentir transferidos para o Mundo Bruxo ou para a Terra Média, e, certamente, seremos cumprimentados em linguagem

élfica. Para aqueles que não estão inseridos na contextualização destas histórias torna­se até

difícil entender as expressões e termos utilizados pelos participantes, que muitas vezes fazem

“poses” numa forma de dramatização estática.

Outra característica do cosplay são os concursos de apresentação. Na grande parte deles, um ou mais personagens (ou até mesmo um grupo inteiro) se apresenta num palco para

representar uma cena do livro ou da série que escolheram para o cosplay. Muitos destes grupos se formam de improviso, ensaiam as falas por alguns minutos — alguns decoram todas

as falas dos personagens — e se apresentam no palco. Estes são os momentos mais

esperados dos eventos, tendo inclusive música e iluminação para acompanhar a cena.

O cosplay foi apropriado pela cibercultura e, com a facilidade e rapidez de comunicação, os eventos agora podem ser organizados até internacionalmente. Fandoms específicos promovem Fanacs anuais ou em épocas comemorativas que tenham algum significado especial para estas comunidades.

É através da “vestimenta” (cosplay) que o fã se torna o avatar no mundo real, sendo a virtualidade sua atuação. Neste caso, surge uma realidade diversa daquela existente na

relação do cibernavergador com o mundo virtual e que seria a noção de que projetamos o

nosso “eu” na virtualidade para torná­lo ficcional, como ocorre nos jogos interativos que

reproduzem vidas aparentemente desejadas pelos seus integrantes. No fandom, o cosplay faz o caminho inverso, sem que seja necessário “enviar” a mente para o ciberespaço, trazendo a

30 Fannish aparece definido como um termo abstrato, que caracteriza as interrelações entre os fãs.

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narrativa para o corpo. Desta forma o “jogo” ocorre no âmbito do real e o corpo se integra à

mente “imaginante”, criando, ou melhor, recuperando personagens e histórias, que serão “lidas”

pelos que estiverem assistindo.

5. Fanhit

Outra forma de performance que “sai” do ciberespaço é o fanhit. Podemos definir o fanhit como uma composição musical feita pelo fã, que depois será tocada para o público dos

eventos do fandom (Fanac) ou disponibilizada para o público online. Os fãs escrevem as músicas para seus personagens (como Good morning Voldemort, que tem até um videoclip no YouTube) ou formam bandas que levam os nomes dos personagens (como “Draco and the

Malfoys”; e “Alastor and Nagini”): os exemplos se integram ao fandom de Harry Potter. O fanhit não é uma música para o personagem, mas a música dos personagens, como se estes

contassem as suas histórias ou narrassem o seu desenvolvimento no livro, muitas vezes em

formas paródicas (Fig. 10).

Como foi demonstrado, o fandom funciona de forma agregadora e se reproduz a partir de outras obras. É neste sentido que o fandom contribui como um novo sistema literário digital, uma vez que elementos diversos se formalizam através desta produção na comunidade virtual.

Um dos temidos efeitos de projetos de lei sobre internet é que passem a criminalizar os fansubers, que são grupos de fãs que fazem a tradução e divulgação de livros, filmes, desenhos, quadrinhos, alguns que nem chegam ao nosso mercado.

Pois, como o texto escrito ainda é a principal produção do fandom, ele acaba dialogando com elementos comuns às próprias obras, como tradução, revisão, comentários e crítica.

Assim, cada membro da comunidade/fandom exerce cada uma destas funções. E, se o fandom surge como uma forma de crítica que transforma o texto existente em outros textos digitais,

também se pode verificar uma fancrítica que surge para “validar” os textos do fandom. Entretanto, essas valorizações ainda surgem como um “paideuma” pessoal de cada fã,

que fazem coleções e pequenos arquivos “bibliotecas”, ou em blogs, com suas fanfics, fanvídeos, fanarts, muitas vezes comentando sua seleção. E, também, fazem entrevistas com fan­escritores de sucesso no fandom.

Há ainda o fanon que seriam fanfics escritas a partir de outras fanfics. Ora, se o fanon se ampliar, teremos um exemplo de uma “dobra barroca” digital, principalmente porque o fanon surge “puro”, ou seja, já sem nenhum contato com um texto não­virtual.

Para que todas estas comunidades estejam integradas de forma permanente e coerente,

os grupos de fandoms se comunicam por fóruns e por fansites — na maioria grupos criados

online para discutir os livros. Desta forma, ocorre uma dinâmica entre os debates e se mantém

as relações interpessoais dos participantes. Outro detalhe é que são os próprios membros dos

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fandoms que estão construindo as nomenclaturas e conceitos, disponibilizando um dicionário de termos do fandom, tanto na Wikipédia como na Desciclopédia (já parodiando a fã­cultura em que estão inseridos).

Considerações finais

No momento em que se colocam tantas novas e imprevistas perspectivas sobre o texto e a

produção textual, seria interessante que a crítica literária também buscasse redefinir seus

posicionamentos. Uma atitude de maior abertura promoveria uma reflexão sobre a validade de

parâmetros teóricos que, muitas vezes, se afastam de uma ação mais pragmática e mais ligada

à realidade do contexto social. Ao voltar sua atenção para as influências do sistema literário na

constituição do fandom, e para as repercussões deste na tradição literária, observando as tensões e acomodações das categorias e princípios teóricos à luz das novas demandas do

público, a crítica literária ganharia em atualização e dinamização de sua práxis.

Toda inovação literária surge aliada a um novo sistema técnico. A relação que é criada

entre os leitores e os textos que se manifestam pela técnica tem influência sobre muitos

autores: novas formas sempre atraem o público porque, num primeiro momento, precisam da

adesão destes leitores para a sua legitimação. O público de ontem e os fãs de hoje têm em

comum o gosto de participar das invenções e de nelas se inscrever de forma ativa.

Reconhecer o fandom, neste sentido, não é identificar apenas mais um gênero literário ligado ao meio digital, mas entender como uma nova postura por parte dos leitores cria (e

recria) um sistema completo e revolucionário de leitura e de produção textual num sentido

verdadeiramente paradigmático (onde o leitor pode figurar como autor, crítico, fã, tradutor,

comentarista, divulgador, ilustrador, editor). Refletindo, especularmente, a imagem do sistema

maior – às vezes parafrásica, às vezes parodicamente, mas sem se desvincular dele – o fandom realiza uma “dobra barroca” na concepção do que vulgarmente entendemos como “literatura”, desafiando as nossas certezas e nos propondo novos desafios.

O estudo do fandom nos permite perceber, com uma clareza inimaginável para os teóricos da Estética da Recepção dos anos 60, o verdadeiro perfil daquele “novo leitor participativo” tão

anunciado ao longo das décadas seguintes. Um leitor consciente de que, para chegar a uma

forma de posse e participação dos bens culturais, precisa contribuir ativamente na reinvenção

do cânon e na democratização da crítica ao próprio sistema criado. É através da apropriação

da técnica e da conscientização sobre “como” fazer literatura e “como” apresentar­se no meio

literário que este “novo leitor” está redefinindo o sistema da leitura e da produção textual na

atualidade. Falta à crítica literária, aliada da teoria, atentar para esse fenômeno que se

apresenta como um novo sistema, dando ao leitor digital e ao fandom a visibilidade e o respeito que merecem aqueles que anunciam uma nova era.

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Referências

BEIGUELMAN, Giselle. O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

_____. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. Trad. Marcos Vinicius Mazzare. São Paulo: Summus, 1984.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BLOOM, Harold. Um mapa da desleitura. Rio de Janeiro: Imago, 1995. BOLTER, Jay David. Writing space. Computers, hipertext and the remediation of print. London: Lawrence Erlbaum Associates Publishers, 2001.

CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: Unesp, 2002. GRAY, Jonathan (Ed.). Fandom: identities and communities in a mediated world. New York: NYU Press, 2007.

HARRIS, Cheryl (Ed.). Theorizing Fandom: fans, subculture and identity. Hampton Press, 1998. HAYLES, Katherine. Writing machines. Cambridge and London: The Mit Press, 2002. _____. Eletronic literature. New horizons for the literary. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press, 2008.

HELLEKSON, Karen (Ed.). Fan fiction and fan communities in the age of the internet. McFarland, 2006. ISER, Wolfgang. O ato da leitura. São Paulo: Ed.34, 1996. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. MURRAY, Janet H. Hamlet no holodeck. O futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Unesp, 2003. PUSH, Sheenash (Ed.). The democratic genre: fanfiction in a literary context. Seren Publisher, 2006.

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ANEXOS

Fig. 1. Betareaders. A betareader Didi “oito dedos” oferece e divulga os seus serviços. Ela se apresenta como professora de português. Não dá “pitaco” nas fanfics e não revisa fanfics eróticas.

Fig. 2. Fanfic: O ponto de vista de Capitu. Escrita a partir de Dom Casmurro, de Machado de Assis. A autora tenta resgatar a forma narrativa machadiana. Fonte: Site Nyah!Fanfiction.

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Fig. 3. Nyah!Fanfiction. Um dos sites/arquivos brasileiros, em que encontramos autores nacionais como Machado de Assis, Aluisio de Azevedo, Clarice Lispector e Pedro Bandeira. Este site está em expansão e as obras nele contidas são as preferidas pelo público­fã brasileiro.

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Fig. 4. e Fig. 5. Fanarts de Capitu e de Bentinho. O fanartista norteamericano comenta que se apaixonou pelas

personagens machadianas. Fonte: DeviantArt.

Fig. 6. Doujinshi alemão com Sherlock Holmes de Conan Doyle. Fonte: DeviantArt.

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Fig. 7 e Fig. 8. Fanvídeos. Fan­animação sobre o conto O Alienista. de Machado de Assis. Esta

animação torna­se interessante porque o autor utilizou os poucos recursos técnicos que possuía para

se expressar sobre o texto lido. Fantrailer sobre o filme O Crepúsculo, homônimo do livro de Stephenie

Meyer. Fonte: YouTube (2008).

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Fig. 9. Cosplay de Alice (personagem de Lewis Carroll). Fonte: Internet

Fig. 10. Fanhit Draco & the Malfoys. Fonte: YouTube (2008).

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IMAGENS EM F ICÇÃO

Polyanna Angelote Camelo Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

RESUMO:

O presente artigo é um trecho de uma tese de doutorado em andamento sobre a qualidade onírica cada vez mais presente nas artes e na sociedade midiática da atualidade. Questionamos o lugar da ficção, bem como o que é o real, para percebermos que a morte social de Baudrillard tem, além de um efeito perverso, também, e sobretudo, um efeito reverso: o de procurar o real no fundo das aparências. Assim, a imaginação, passa a ocupar um lugar privilegiado, nestes tempos de crise do real e da verdade objetiva. O lugar da arte onírica sendo, portanto, o lugar mágico da exaltação da subjetivação artística em seu grau mais explícito.

Palavras­chave: Arte Onírica, Imaginário, Ficção, Simulacro

Qualquer imagem verdadeira, qualquer fotografia verdadeira,

são válidos apenas como exceção e, sob esses prismas são singulares.

Baudrillard, 2003: 15

Para analisarmos o lugar da ficção na cena atual da cultura ocidental é preciso pensar

antes sobre a idéia mesma de ‘ficção’. E então teremos que indagar também sobre o que é Real. E não somos os únicos a fazer isso. No cinema, a ficção pode ser o lugar a partir de onde se questiona e inverte as posições entre realidade/ficcionalidade. Agora nos parece ser The Matrix, dos irmãos Wachowski (1999), o melhor exemplo para perceber que o mundo físico, e o

que lhe é inerente, está sendo mistificado:

­ Do you want to know what it is? The Matrix is everywhere, it is all around us. Even now in this very room. You can see it when you look out your window or when you turn on your television. You can feel it when you go to work, when you go to church, when you pay your taxes. It is the world that has being pulled over your eyes to blind you from the truth.

­ What truth? ­ That you are a slave, Neo. Like everyone else, you were born into bondage, born into a

prison that you cannot smell, taste it or touch it. A prison for your mind.

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Na cena deste diálogo, Morfeus apresenta a Neo a chance de conhecer o que é a

Matrix. Mas, como ele mesmo diz, infelizmente, não é possível explicar (palavra) para alguém o que a mesma é. É preciso enxergá­la (imagem) com os próprios olhos. E depois que se opta por ver, não é possível voltar atrás. É assim que a memória (da raiz grega mnese) surge como problema: o judas, deste caso, trairá o escolhido para poder ser novamente inserido no mundo ilusório; porque deseja a ignorância, ou melhor, a amnésia. É claro que o filme é uma ficção. Mas quando, no início do primeiro filme, o livro de Baudrillard, Simulacros e Simulação, aparece nas mãos de Neo, percebemos que a ‘irrealidade’ de Matrix está fundamentada em

teorias já nem tão recentes (o livro de Baudrillard é de 1981) sobre as imagens e os discursos

da Civilização da Imagem. Baudrillard tem uma visão pessimista da realidade atual. Para ele, a vida social é puro simulacro. Nada mais é real. Tudo é fingimento, simulação e máscaras. Morte social: tudo na sociedade é agora espetáculo (Debord, 1997).

Escolhemos especificamente Matrix para mostrar como a pergunta crucial da

metafísica chegou ao cinema ­ o que é Real 49 ? ­ mas porque o mesmo também irá nos ajudar a

49 Mais dois trechos diálogos metafísicos entre Morfeus e Neo:

­ Have you ever had a dream, Neo, that you were so sure it was real? What if you were unable to wake from that dream? How would you know the difference between the dream world and the real world?

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entrar numa outra questão: como nossa realação com a imagem modifica nossa concepção de realidade, e também de ficção? Baudrillard analisou um certo percurso da imagem que é, no

mínimo, interessante: (1) primeiro a imagem refletia uma realidade profunda; (2) depois a

mascarou e deformou; (3) para então mascarar a ausência de alguma realidade profunda; (4) e

finalmente, não ter mais relação com qualquer realidade e ser seu próprio simulacro puro (Baudrillard, 1991: 13).

Percebe­se que o adjetivo profunda é usado após a realidade para reforçá­la em como esta seria naturalmente; ou seja, antes de ser tocada/retocada pelas simulações. Depois de

tantas aparências, algo ficou perdido atrás, no fundo (Maffesoli, 1996), em um momento anterior, na matriz; como num tempo edênico. Esta anamnésia do real, ou seja, recusa em esquecer o lugar do real mesmo que num tempo anterior, é uma luta contra o mascaramento

da ausência de realidade, quarta e última instância do percurso da imagem.

Como se a verdade (pudesse ser apreendida subjetivamente e) pertencesse somente a

Narciso: que podia ver a si sem imagens intermediárias, sem ideologias. Ele era quem via,

aquela imagem da superfície ainda era uma imagem que refletia uma realidade profunda.

Agora, tudo são reflexos sobre reflexos. Espelhos diante de espelhos: os novos sujeitos

divididos, de identidades fragmentadas, já nascem na grande casa dos horrores de Debord.

Podíamos até enxergar na luta de Neo versus os mímicos e multiplicantes Agente Smith (imagem abaixo), a luta de uma realidade profunda, contra seus simulacros.

­ This can’t be! ­ Be what? Be Real?

E: ­ What is real? Define real. If you’re talking about what you can feel, what you can smell, what you

can taste and see, than real is simply electrical signals interpreted by your brain.

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O que The Matrix traz é uma explosão de irrealidades: sim, o mundo é uma ilusão, um programa de simulação e o homem é um escravo cego e paralítico e ignora esta sua condição.

A mente, aí, mente mesmo. Ele precisa se perguntar sobre a matrix, sobre a origem, a realidade profunda.

Mas quando o cinema questiona a realidade humana, num filme de grande alcance,

com atores hollywoodianos como Keanu Reaves!, seu efeito, no mínimo, deixa de ser tão perverso. Apesar de o capitalismo tardio (Jameson, 2002) incluir (por que não dizer vender/lucrar com) sua própria crítica; ele oferece ­ a quem conseguir driblar as coerções que o discurso aplica no sujeito (Foucault, 1996) ­ as ferramentas para sua própria transformação.

Sua linguagem de imagens está à venda, quem a comprar pode usá­la para minar sua

ideologia fundadora e quem sabe a transformar em longo prazo.

Acreditamos que a revolução do vídeo não tenha somente um efeito perverso (Durand, 1998). É claro que o efeito perverso do vídeo existe, e pode ser facilmente percebido,

principalmente se confrontarmos o vídeo pós­moderno e literatura moderna. Nesta, um leitor

privilegiado por seu tempo de ócio, podendo parar e pensar, ou imaginar paralelamente; e assim é agente. Naquele, um espectador hipnotizado como sujeito paciente. Mas este pensamento também é simplista. A culpa não pode estar na tecnologia, mas em quem a utiliza, em como estes a utilizam. A palavra escrita e o discurso têm uma história e controle antigos 50 .

Já a imagem produzida (e sobretudo reproduzida) é muito recente. Exige o vídeo necessariamente um sujeito inerte? Curiosamente, não podemos esquecer do poder cognitivo

da imagem.

Claro que quando a crítica do simulacro surgiu, ela levava em conta as imagens da

sociedade do espetáculo, onde o céu é sempre azul e as donas de casa estão sempre lindas

como modelos; o que não podemos esquecer é que estas imagens eram imanentemente publicitárias. E a publicidade sempre esteve envolta em ficção. Foram poucos os casos

divergentes, como o das famosas campanhas publicitárias de Toscani para a United Colors of

Benneton. A campanha não foi compreendida em sua época pela massa, e até mesmo por

parte da intelectualidade crítica, e Toscani acabou por escrever um livro sobre o assunto. Ficou

claro, na época da veiculação da campanha nas grandes cidades em todos os continentes, que

a sociedade do espetáculo ainda não estava preparada para aceitar imagens referentes a

50 Foucault (1996) inicia sutilmente sua aula inaugural, dizendo da sua dificuldade em começar, quando afirma: O desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo: gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz.“ E a instituição responde:“ Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém.”

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tabus, preconceitos e críticas sociais associadas a uma marca de roupas atuante no mercado

global. Apesar da idéia na época ter parecido radical (no sentido de imaginar uma linguagem

publicitária em que não houvesse mentiras e simulação), a idéia de que a publicidade é um cadáver que nos sorri, está cada vez mais clara, mesmo para o espectador mais alienado. Daí o poder e o espaço cada vez maior do merchandising; como tentativa última de mascarar e vender quase que subliminarmente.

Desde a ideologia gramatical até o domínio dos modos de reprodução, o controle da escrita já se dá de modo explícito. Tendo já sido a rarefação do sujeito que fala (Foucault, 1996) tão analisada; o que dizer da rarefação do sujeito que escreve, ou ainda, do sujeito que lê? A intelectualidade e seu necessário ócio criativo sempre foram privilégios de uma elite. Mas justamente o contrário, numa velocidade historicamente perceptível dentro de uma mesma

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geração, parece vir acontecendo no que tange ao controle da imagem (ainda não estamos

falando em imaginário). Não apenas sua recepção (dentro principalmente do fenômeno televisão), mas inclusive sua apropriação e criação estão se tornando cada vez mais populares (dentro­da­rede/ Internet).

A imaginação certamente é anterior à fala. Deve ter sido assim com os homens

primitivos, anteriores à invenção da linguagem 51 . Como o é na primeira infância, na fase pré­

edipiana, fase do espelho pra Lacan; onde a criança se relaciona com um mundo de imagens,

sem intermediação da linguagem. Pode­se não falar, mas não se pode fugir do imaginário. O

que eu sou quando não tenho palavras para me explicar? Eu sou o que vejo sem

intermediações. Neste caso, não se trata de dizer. Não é o que, mas quem. E a resposta é

poeticamente encontrada no repouso ao leito de um lago... diante da superfície de água calma,

cuja aparência solidifica sua matéria e a endurece ao ponto do líquido transformar­se em vidro,

espelho de água (como no Narciso de Caravaggio). Estando estabelecida como o está, a

51 Todos os seres têm sua linguagem. A dos mamíferos é primordial à sua sobrevivência já que não nascem como os répteis, de ovos, prontos para viverem sempre sozinhos. Por isso, os mamíferos todos têm em comum a dependência materna. É preciso mamar para sobreviver, é preciso se comunicar para se alimentar. E essa relação primordial, mãe­filho(te), pode ser já considerada uma instância de micro sociedade.

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civilização da imagem não pode ser criticada apenas por seu efeito perverso. É preciso pensar em suas possibilidades positivas, principalmente em seu potencial pedagógico. E assim,

esperar que ela possa ter um efeito reverso.

O controle do imaginário teve sempre um caráter ideológico indissociável do dueto pouvoir/savoir. Sendo que antes da proliferação midiática das imagens, a imaginação era sempre ‘a louca da casa’, raríssimo levada a sério. Enquanto hoje, é ela quem dita as grandes

cifras do mercado, e as campanhas publicitárias faturam milhões em todo ano incentivando o

consumo. Basta imaginarmos o impacto que a campanha Fish da Johnny Walker teve sobre o

telespectador para acreditarmos que a imaginção está faturando alto e ganhando prêmios

internacionais também.

Mas nosso objetivo não é apenas escrever sobre o papel importante que a imaginação

ocupa linguagem publicitária ou cinematográfica na sociedade do espetáculo. É, sobretudo,

indagar sobre o papel da ficção, ou melhor, da linguagem ficcional. A proliferação de imagens

só nos prova que na realidade da sociedade do espetáculo não há nada de real profundo. Como diz a citação de abertura deste nosso artigo, qualquer imagem verdadeira, qualquer fotografia verdadeira, são válidos apenas como exceção e, sob esses prismas são singulares. O real é o que não é real, quando o verdadeiro é exceção. Vivemos em uma sociedade

ficcional. Tudo é construção da imaginação, simulação. A ficção não está mais reservada

apenas ao deleite do prazer; como na arte tradicional. Hoje, as fronteiras entre arte e

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mercadoria, entre deleite e consumo, ficção e realidade, história e acontecimento, razão e

imaginação não podem ser traçados simplesmente.

Se nossa sociedade mesma é uma sociedade ficcional, se o verdadeiro é o singular;

algo muda em nossa percepção do discurso histórico. Para que ele exista, é preciso que o conceito de verdade permaneça válido. Mas nesses tempos de crise do verdadeiro, a história vem se aproximando da ficção justamente onde não desejava: em seu grau explícito de

subjetividade. Afinal, mesmo um fato histórico ao ser ‘relatado/narrado’ necessita de linguagem

para isso. Não se pode escapar da linguagem. Ao mesmo tempo em que a linguagem é

insuficiente e sempre será subjetiva, até mesmo pela escolha do dito, a ordem em que é

apresentado. A grande questão agora é a seguinte: como a sociedade que sempre vetou a ficção irá escapar dela nestes tempos? O lugar da ficção não pode mais ser lido como um lugar à parte. A ficção agora deve pertencer e permanecer, nem que seja como ponto de

questionamento e investigação, dentro de todo e qualquer argumento teórico­social.

Referências

BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento ao Outro. São Paulo: Zouk, 2003. _____. Senhas. Rio de Janeiro: Difel, 2001. _____. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DURAND, Gilbert. O imaginário: Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. JAMESON, Fredric. Pós­modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2002. LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. _____. O fingidor e o sensor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. _____. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

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O SHOW DE TRUMAN: Espetáculo midiático de manipulação humana

Maria Giselda da Costa Vilaça Universidade Católica de Pernambuco

[email protected]

RESUMO:

Através da estética do Reality Show ou do espetáculo humano exibido para milhares de telespectadores no mundo inteiro, o filme O Show de Truman, de Peter Weir, problematiza aspectos decisivos da vida moderna, como a mecanização das relações, a manipulação das vontades e a invasão da privacidade pela tecnologia. A partir de considerações sobre esse enredo, busca­se discutir neste ensaio o status da realidade no mundo contemporâneo, e até que ponto o convívio com o simulacro afeta a vida cotidiana das pessoas e de suas representações. Investiga­se, ainda, a importância da publicidade na promoção e na propagação dos espetáculos midiáticos, e o tipo de leitor que tem como característica perceptivo­ cognitiva a leitura de imagens em movimento.

Palavras­chave: Mecanização e manipulação humana. Invasão de privacidade, Reality Show, Publicidade, Espetáculo midiático

ABSTRACT:

Through the aesthetics of the Reality Show or the human spectacle showed to thousands of viewers worldwide, the film Truman’s Show from Peter Weir, renders problematic about decisive aspects of modern life, such as the mechanization of relationship, manipulation of wills and the invasion of privacy by technology. From considerations on this plot, one pursues to discuss in this essay the status of reality in the contemporary world, and to what extent the interaction with the simulation affects the daily lives of people and their representations. It is also researched the importance of advertising in the promotion and spread of media spectacles, and the kind of reader who has as a perceptual­cognitive characteristic the reading of moving images.

Keywords: Human mechanization and manipulation, Invasion of privacy, Reality show, Advertising, Mediatic show .

Introdução

Truman Burbank foi um bebê abandonado pelos pais e adotado por uma rede de televisão que o criou num mundo irreal. Foi montado um cenário de uma imensa cidade, no qual todos com quem convive – amigos, pais, esposa, vizinhos – são atores contratados para com ele viverem uma farsa. Entretanto, a sua falsa vida é filmada e transmitida pela TV, acompanhada por milhares de telespectadores 24h por dia desde o seu nascimento. Ele é o único que não sabe que é a estrela desse reality show. Nessa cidade, chamada de Seahaven, ele é um pacato vendedor de seguros que segue naturalmente a sua vida. Tudo corre bem até o momento em que ele é despertado por uma garota para o fato de ser o protagonista do show. A partir daí ele começa a desconfiar de certos acontecimentos, tem a sensação de estar sendo observado e uma série de situações estranhas aguça a sua desconfiança até que ele descobre a verdade. Ao perceber que está aprisionado, ele decide que seu único objetivo é escapar da cidade.

(Release do filme)

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O filme O Show de Truman, dirigido por Peter Weir e com roteiro de Andrew Niccol, foi

criado para radicalizar a encenação especular e espetacular dos reality shows que viraram uma

febre mundial nos canais de TV nos últimos anos. Neste programa, a emissora do diretor

Christof “adota” uma criança enjeitada e passa a criá­la como um animal de laboratório, num

ambiente que reproduz utopicamente o cenário de uma sociedade perfeita e feliz. A família, os

habitantes da cidade, os acontecimentos e a história de Truman, a criança enjeitada, são falsos

e controlados pelo diretor, mas a espontaneidade do protagonista, que ignora a sua realidade

desde o nascimento, funciona como um grande atrativo para milhões de espectadores no

mundo inteiro.

Truman não tem conhecimento de ser a estrela do show. A sua ilha, que para ele é um

território real, aparece como um monumental simulacro para os telespectadores, uma das mais

eficientes e inovadoras vitrines ou canais de venda de que já se teve notícia, uma vez que o

programa é transmitido sem interrupções, dia e noite, durante os trinta anos de sua vida,

anunciando absolutamente todas as mercadorias que fazem parte do dia­a­dia do personagem:

casas, carros, móveis, eletrodomésticos, roupas, alimentos, utensílios, etc. Transformado numa

marionete do consumo ou num garoto­propaganda em caráter permanente, Truman tem a sua

vida privada tornada pública sem o saber, tem roubado o seu direito a uma existência

autônoma, aos afetos verdadeiros e à vivência de uma história pessoal.

O diretor Christof detém o poder sobre Truman através da mídia eletrônica e todos os

aparatos tecnológicos que o permitem monitorar os seus passos e induzi­lo a agir de acordo

com os seus interesses. Porém, quando no filme o diretor é indagado sobre a sua própria vida,

ele nada revela. É considerado “um homem reservado”. Truman é tratado como um animal

enjaulado, controlado, mas é humano. Ao contrário dos robôs que são máquinas que buscam a

perfeição humana, como em O homem bicentenário (Asimov, 2001), ele é um humano que tem a sua vida mecanizada em favor de um programa de TV que busca manter a sua audiência. É

uma vítima que tem a privacidade invadida por meio da revolução eletrônica, uma produção

artificial que nos faz refletir até onde vai a capacidade humana de manipulação, pois “as

relações do homem com o mundo não são mais as mesmas depois da revolução da informática

e das comunicações” (Domingues, 1997:17).

A vida de Truman é arbitrariamente convertida no suporte de uma forma degenerada

de “arte”, criada para o entretenimento e o consumo das massas. Mas Truman não é um

autômato. Dentro das limitações que lhe são impostas, pensa ter liberdade de ir e vir no espaço

que lhe foi destinado. As suas tentativas de rebeldia são coibidas por mecanismos psicológicos

de sujeição pelo medo e punição, exercitados desde a infância, com a perda traumática do pai

num naufrágio, para que desenvolvesse o pânico do mar e não se aventurasse fora da ilha.

Somente aos trinta anos é que Truman vai realmente despertar para a sua condição,

encontrando forças para desafiar o comodismo e coragem para enfrentar seus terrores,

partindo em busca de si mesmo e da verdade.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

A era Big Brother

O Show de Truman é uma metáfora da vida atual, pois estamos caminhando para a perda de privacidade total, possibilitada pela tecnologia vigente e cada vez mais aperfeiçoada.

Estamos vivendo a era Big Brother. É um caminho sem volta. A privacidade torna­se cada vez mais difícil de ser mantida. Onde quer que estejamos somos vigiados: nos bancos, ônibus,

escolas, lojas, restaurantes e até nas ruas. Sorria. Você está sendo filmado. Várias são as câmeras, escondidas ou expostas, como as dos celulares que nos fotografam, gravam e filmam

muitas vezes sem que tenhamos conhecimento disto. É um jogo perigoso. Em nome da

necessidade de segurança, estamos sendo vigiados e perseguidos em todos os lugares. É

inevitável não recordar a atmosfera opressora do romance que George Orwell publicou em

1948: 1984. Embora tenha sido escrito há mais de meio século, o enredo de Orwell (1984) é

extremamente atual. Fala de um mundo dominado, inspirado pelo socialismo stalinista, onde o

Estado domina e nada é de ninguém, mas tudo é de todos. Tudo o que resta de privado é o

pequeno espaço do cérebro. É uma batalha que se desenvolve entre o indivíduo e o Estado,

pela tentativa de controlar um bem maior que os bens de consumo: a mente e a vontade dos

cidadãos. A opressão está por todo o lado, a mentira é a verdade imposta, e qualquer opinião

contrária à do Partido significa a morte certa. O Estado é onipotente e controlado pelo “grande

irmão” – o Big Brother. São instaladas telecâmeras em todas as residências, as pessoas têm as suas vidas monitoradas pela polícia política e são punidas “exemplarmente” se forem

desviadas do comportamento considerado “normal” pelo sistema.

Esse enredo parece ser um prenúncio dos dias atuais, um prenúncio do “Show de

Truman” em que as vidas humanas estão se convertendo. Atualmente, os nossos dados

pessoais, profissionais e financeiros já constam em bancos de dados dos órgãos do governo e

de entidades financeiras que, embora sejam protegidas por um sistema de segurança online, não escapam das invasões dos hackers. Os nossos hábitos de consumo são diariamente rastreados através dos sites de busca da Internet, cartões de crédito, celulares e todo sistema

online a que tivermos acesso.

Hoje, até mesmo os passos de cada um são passíveis de monitoramento, através dos

rastreadores de veículos, aparelhos celulares com GPS (Global Positioning System – Sistema de Posicionamento Global) e até de chips inseridos embaixo da pele (Adler, 2004), que

possibilitam saber o local exato onde a pessoa se encontra. Empresas de entretenimento já

implantam chips nos seus clientes vips, que proporcionam fácil acesso e praticidade no

atendimento. Eles não precisam mostrar documento de identidade na entrada, nem ter dinheiro

para pagar a conta, pois tudo será debitado no seu cartão de crédito. Os seus dados são

armazenados dentro do chip. Por enquanto tudo isso é absorvido como modismos inofensivos

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

e passageiros, mas são mudanças definitivas que rapidamente se incorporam ao cotidiano do

cidadão, sem lhe dar tempo de refletir ou de esboçar uma crítica ou uma escolha.

Evidentemente, a cada inovação ou upgrade de uma máquina lançados no mercado, há todo um discurso construído para assegurar a sua necessidade no melhoramento da

qualidade de vida. As razões oscilam entre vantagens ligadas à saúde, ao conforto, à

segurança, mas quase sempre se ancoram numa justificativa ligada ao status social. Num

mundo mercadológico, as pessoas se confundem com o que possuem, e portanto constroem

suas personalidades e seu amor próprio em função do seu poder aquisitivo e de sua

capacidade de utilização dos últimos lançamentos das indústrias, que por isso precisam ser

constantemente renovados.

Nos Estados Unidos da América já existe um projeto chamado Conhecimento Total de

Informações (TIA, Total Information Awareness), instalado no final de 2002, por ocasião do pânico gerado com os atentados terroristas do 11 de setembro, que faz um serviço de

monitoramento dos cidadãos. Os movimentos dos moradores das cidades são acompanhados

com o receio de novos atentados. As informações são fornecidas por empresas públicas e

privadas, e são armazenadas em bancos de dados. A justificativa da segurança, por mais

convincente que possa parecer, esbarra sempre na questão ética da invasão de privacidade,

que gera a angústia crescente que se percebe na vida moderna.

Afinal, com quem seria seguro conversar abertamente? Onde e a quem poderíamos

recorrer? Não se pode mais falar tranqüilamente ao telefone, porque ele pode estar sendo

vigiado. Embora seja um ato ilegal, é perfeitamente possível captar as ondas emitidas pelos

aparelhos móveis ou mesmo grampear os telefones fixos, a exemplo dos casos policiais que

vemos relatados na imprensa. Não se pode enviar e­mails sem o risco de que sejam

interceptados ou de que o usuário possa ter seu aparelho invadido por hackers. Conversas confidenciais em público são perigosas porque não conhecemos a índole nem do nosso

interlocutor, nem daqueles que nos cercam. Em ambientes fechados, públicos ou privados, há

câmeras por toda parte monitorando os movimentos e até gravando as conversas. Nem mesmo

em casa o cidadão pode sentir­se livre deste sentimento de perseguição.

Aliada à falta de privacidade, a vida urbana está sendo também mecanizada como

nunca antes. Hoje somos reféns dos horários, de um ritmo temporal arbitrário e construído

sobre as necessidades e os ritmos da produção e do consumo. Hora para levantar, tomar

banho, comer e seguir para o trabalho; hora para levar e buscar os filhos na escola; hora para

tudo. Não podemos atrasar, nem faltar aos compromissos. Temos que cumprir os rituais

cotidianos para que possamos realizar tudo o que precisamos, dentro dos horários

estabelecidos. Precisamos ser gentis, educados, cumprirmos as regras sociais impostas pela

civilização. São regras e mais regras. Somos sim, seres mecanizados nas nossas atitudes,

mas continuamos sendo seres humanos vítimas da vida moderna, que também inclui a

tecnologia desenvolvida e cada vez mais presente em nossas vidas. Segundo Haraway, “as

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

realidades da vida moderna implicam uma relação tão íntima entre as pessoas e a tecnologia

que não é mais possível dizer onde nós acabamos e onde as máquinas começam”.

Estamos vivendo um paradoxo, pois à medida que a tecnologia avança com o objetivo

de facilitar a vida humana, torna­se cada vez mais difícil conviver com a velocidade com que as

novidades aparecem. Não há como absorver tudo, e isso pode ser a causa da angústia de

muita gente. Além disso, a tecnologia caminha para a tentativa de humanizar as máquinas, de

fazê­las pensar e tomar decisões. Esse também é um caminho perigoso e um assunto que

demanda mais discussão no âmbito da sociedade.

Ser biológico

No personagem Truman não há uma ligação do seu sistema biológico às redes

nervosas de uma máquina, nem há uma relação homem­máquina, uma simbiose da sua mente

humana com uma mente de silício de computador. Há um corpo biológico e uma mente

pensante que é manipulada por outro ser biológico. A tecnologia é utilizada apenas para tornar

possível a execução da idéia do diretor Christof, que é um homem governando máquinas para

manipular outros homens. E, como afirma Santaella (2004:184), “os organismos respondem ao

seu ambiente das maneiras que são determinadas por sua organização interna”.

Não há uma telecâmera num robô (Domingues, 1997:27), nem “nunca houve uma

câmera na sua cabeça”, como afirma o próprio Truman na cena final do filme. É um humano

virtualizado, vigiado por câmeras, que vive uma vida normal como todo ser humano. Há todo

um conjunto de elementos que conduzem o seu comportamento, o seu mundo é controlado em

sua complexidade, e os problemas são resolvidos intuitivamente e com rapidez não

programada.

Havia dois mundos: o mundo conhecido por Truman, criado exclusivamente para ele,

sob absoluto controle, com as coisas funcionando perfeitamente; e o mundo externo a esse

mundo criado, que ele desconhecia, e que é o mundo dos telespectadores do grande show. O

seu mundo faz parte do sistema sob observação, que incorporou o próprio observador. Truman

é uma ficção para o observador, que sabe do que se trata – reality show – em contraponto à

realidade social vivida por ele e a qual pensa ser única. É um ser individual, independente,

dentro de limites e situações pré­estabelecidas.

Truman pode ser considerado um ser analógico. Ele é de carne e osso e não de carne

e do silício usado nos computadores. Entende­se por analógico “o real, as impressões discretas captadas pelos sentidos e percebidas pelo humano” e como digital “a simplificação através da qual a máquina sente o mundo, o verdadeiro e o falso como as únicas

possibilidades de interpretação da realidade” (Donato, 2007:7).

Espetáculo x Publicidade

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Diana Domingues (1997:22) afirma que a palavra­chave para este milênio é interatividade. Entretanto, não há interatividade no Show de Truman. Há recepção das informações, mas não interação. O público é bombardeado pela publicidade inserida no show e

torna­se consumidor da marca “Truman”, para a qual foi criado um catálogo com os produtos

mostrados no show. Tudo lá está à venda, desde roupas e alimentos, até as casas onde

moram. O Show de Truman é um espetáculo que se tornou um fenômeno midiático visto por milhares de telespectadores no mundo inteiro. Como todo espetáculo televisivo, é patrocinado

por vários anunciantes que têm seus produtos inseridos através de merchandising e que são acintosamente exibidos pelos atores que contracenam com Truman. Sendo um espetáculo

ininterrupto, foi uma forma encontrada de exibir suas publicidades, uma vez que não havia

intervalos comerciais no programa.

A TV digital, que acaba de ser instalada no Brasil, também se apropria desse recurso

para compensar os espaços perdidos nos intervalos comerciais “evitados” pelos

telespectadores. Entretanto, já é uma prática largamente usada pelas emissoras de TVs, tanto

abertas e fechadas, pois os produtos são cada vez mais parecidos e o que os diferencia é a

força das suas marcas. Num merchandising inserido na programação, no momento em que todos estão ligados, o produto e sua marca não deixam de ser vistos. Essa foi a alternativa

encontrada pelas emissoras de TV para driblarem o zapping do controle remoto. Os comerciais dos intervalos são pouco vistos porque os telespectadores mudam de canal nesse momento e,

como afirma Kellner (2006), o entretenimento, como também a seleção de produtos

comercializáveis, é um setor importante na economia de um país.

Não se pode negar a importância da publicidade na propagação dos espetáculos

midiáticos. Segundo Kellner (2006:125) “para vencer no mercado global ultracompetitivo, as

corporações precisam fazer circular suas imagens e marca para que negócios e publicidade se

combinem”. Na briga pela conquista do mercado, a publicidade anteriormente mostrava os

atributos dos produtos em suas mensagens, comparando­os uns aos outros. Atualmente, ela

ressalta os valores emocionais, ativa os sentidos das pessoas, ataca­os pelo lado afetivo.

Algumas das inserções de merchandising mostradas no Show de Truman surgem em momentos de emoção do personagem. As corporações usam essa estratégia para tornar seus

logotipos símbolos familiares e atrair os consumidores em potencial, influenciando­os na

escolha do produto no momento da compra.

Leitores

Para que as corporações tenham sucesso no seu intento, é necessário que a leitura

das suas mensagens seja adequada a cada contexto e a cada suporte midiático.

Lucia Santaella (2004: 18­19) classifica os principais leitores em três tipos:

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

• Contemplativo: o leitor da era do livro impresso e da imagem expositiva, fixa;

• Movente: leitor do mundo em movimento, dinâmico, que é filho da evolução industrial e

do aparecimento dos grandes centros urbanos;

• Imersivo: o leitor que começa a surgir nos novos espaços da virtualidade.

Cada tipo de leitor revela características perceptivo­cognitivas próprias. O tipo de leitor

que se adequa ao caso Truman é o movente, por ser um leitor de imagem em movimento,

tendo como suporte, neste caso, a televisão. A leitura não se resume à decifração de textos;

ela incorpora uma relação entre “palavra e imagem, desenho e tamanho de tipos gráficos, texto

e diagramação” (SANTAELLA, 2004:17).

A relação de palavra/imagem é percebida com grande propriedade na publicidade. Os

tipos de suportes de mídia que surgiram e que continuam a surgir são em grande número,

graças à reprodutibilidade técnica de produção e impressão, de tal forma que nem nos damos

conta da leitura automática que fazemos e da expansão de contextos e situações de leituras

que temos.

Com o desenvolvimento dos grandes centros urbanos, o homem passou a se

preocupar mais com o seu espaço, com a necessidade de se proteger das surpresas da

metrópole, e teve que se adaptar às novidades impostas pelo mercado, entre elas o ato de

consumir. Tudo foi transformado em mercadoria e, com a comunicação feita pela publicidade, o

prazer de consumir foi estimulado, ressaltado pelas imagens e mensagens visuais sedutoras,

com sinais para serem vistos e decodificados na velocidade que é peculiar ao ritmo de vida dos

grandes centros. No mundo de Truman esse frêmito urbano existe de forma mais tranqüila e

controlada, porém o estímulo ao consumo é feito apenas para os telespectadores do show de

forma bem planejada.

O que vem por aí

O Show de Truman nos mostra por meio de metáfora e a exemplo de 1984, obra de George Orwell, para onde o mundo caminha. Se já não temos privacidade com a tecnologia

vigente, onde quem não tem telefone celular e cartão de crédito é considerado ultrapassado,

poderá chegar o dia no qual quem não tiver um chip inserido embaixo da pele poderá ser

considerado um ser fora do mundo.

Talvez haja alguém que diga que não há mais o que inventar. Engana­se quem pensar

assim. A implantação do chip sob a pele e o monitoramento dos nossos passos poderão ser

considerados pequenos diante das novidades que vêm surgindo, cujas conseqüências são

imprevisíveis. Pela velocidade com que a tecnologia se desenvolve, podemos supor que estão

bem próximas.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Ian Pearson, futurólogo da empresa British Telecom, já previu a possibilidade de haver

computadores conscientes até 2020 e download da mente até 2050 (MARINHO, 2008).

Cientistas norte­americanos da Universidade de Berkeley, na Califórnia, desenvolveram um

sistema computacional que permite a leitura da mente através de aparelhos de ressonância

magnética. Esse avanço se por um lado é benéfico e pode ajudar em casos de solução de

crimes lendo as mentes dos acusados, esbarra na questão ética de invasão de privacidade.

Além disso, pode ser uma arma perigosa se cair nas mãos de criminosos que possam usar

essa técnica em favor dos seus roubos e crimes.

Uma prévia do que pode estar por vir é o que vemos em alguns filmes de ficção

científica como Blade Runner, Matrix, Inteligência Artificial, O Homem Bicentenário. Nesse sentido, o cinema cumpre a função de mostrar como funcionam os novos aparatos

tecnológicos, suas possibilidades e conseqüências. De acordo com Kunzru (apud SILVA,

2000:21): Esses febris sonhos de ficção científica têm origem em nossas mais profundas

preocupações sobre ciência, tecnologia e sociedade. Com os avanços na medicina, na robótica e na pesquisa sobre Inteligência Artificial, eles estão se aproximando, inexoravelmente, da realidade.

Se fizermos uma retrospectiva, podemos perceber que alguns dos filmes de ficção

científica mostraram ao mundo coisas que para nós pareciam pura fantasia e que jamais

conseguiríamos alcançar. Um exemplo é o desenho dos Jetsons, onde as pessoas se comunicavam com as outras através de vídeo, situação tão comum para nós hoje através da

internet e suas redes de computadores.

No filme Matrix as pessoas vivem num mundo virtual cuja energia mental vem de seus próprios corpos. Os personagens têm suas mentes liberadas para entrarem na Matrix, um mundo virtualizado onde eles têm poderes especiais. Os seus corpos ficam no mundo físico

plugados em aparelhos que liberam suas mentes para circularem dentro da Matrix. Entretanto, morrer na Matrix significa morte no mundo real. Seria o Second Life, mundo virtual no qual as pessoas participam como si mesmos ou criando seus avatares, uma representação real da

metafórica Matrix? Para Santaella “a realidade virtual quebra a barreira da tela, abrindo o espaço multidimensional à habitação cognitiva e sensória do usuário” (2003:194). Nós

entramos nesse espaço com um simulacro do nosso corpo, no qual interagimos em tempo real

num mundo gerado matematicamente.

Algumas previsões feitas pelo futurólogo Ian Pearson, como o download da mente, por exemplo, são inimagináveis, mesmo conhecendo o avanço tecnológico atual. Somos cientes de

que pode ir muito mais além, e não temos noção das conseqüências desses avanços.

Podemos supor, diante do que hoje conhecemos, que ela poderá ser muito útil mas que poderá

também chegar a situações de proporções incontroláveis, pois sendo a nanotecnologia capaz

de produzir aparelhos cada vez menores, eles estarão instalados nas pessoas de formas

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

imperceptíveis. Como identificaremos quem tem ou não aparelhos instalados no seu cérebro ou

outra parte do corpo? Que aparência eles terão? Quais serão as suas expressões faciais?

A digitalização da mente humana é para nós, por enquanto, uma hipótese longínqua.

Isso é assustador, pois não sabemos as reais conseqüências dessa ação e como estaremos

vulneráveis num mundo no qual não se pode confiar na integridade do caráter de muitas

pessoas. Há muita gente que poderá usar esses recursos a favor do mal.

Considerações finais

Diante do exposto, é impossível não indagar quais serão os dilemas que a humanidade

enfrentará no futuro. Serão dados poderes totais às máquinas? O humano desaparecerá na

simbiose com o mecânico e o eletrônico? Até que ponto as previsões apocalípticas e os sonhos

delirantes da ficção científica não serão mais do que pesadelos da nossa imaginação? A

verdade é que não se pode conter os avanços científicos e tecnológicos. Mas é preciso estar

atento para o fato de que a velocidade das transformações, hoje, ultrapassa em muito a

capacidade geral de apreensão e de compreensão dos verdadeiros efeitos da modernização

tecnológica em nossas vidas. Por isso, esperamos que o ser humano seja capaz de mobilizar

esforços não apenas no sentido de promover ganhos e lucros desenfreados, mas de fazer

valer a sua capacidade intelectual também num sentido moral e ético, a fim de que a idéia de

“crescimento” ultrapasse a noção econômica e mercadológica, e atinja o ser em sua plenitude.

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Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

OSCAR PISTORIUS – “ THE BLADE RUNNER” – e a questão do pós­humano

Antonio Clériston de Andrade Universidade Federal de Pernambuco

[email protected]

RESUMO:

Este artigo busca discutir a questão do pós­humano, revelando as contradições pragmáticas e discursivas sobre o uso de próteses em atletas com deficiência física ou não, mostrando o apagamento das margens entre aquilo, como diz Santaella (2003), que é tido como natural e o artificial, tendo como pano de fundo o par de lâminas de fibra de carbono flexíveis que o atleta Oscar Pistorius usa para competir na corrida de 100, 200 e 400 metros.

Palavras­chave: pós­humano, práticas discursivas, jogo semântico.

ABSTRACT:

This paper aims to discuss the issues of the post­human, revealing the pragmatic and discursive contradictions about the use of prosthesis on athletes with disabilities or not, showing erasing of margins between what, as Santaella (2003), is accepted as natural or artificial, taking as background the blade pair of flexible carbon fiber used by Oscar Pistorius to compete in the race 100, 200 and 400 meters.

Key words: post­human, discursive practices, semantics.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

A foto que abre este artigo seria surrealista – um homem olhando as próprias pernas

desconectadas de si mesmo –, não fosse esta a expressão icônica de uma realidade: trata­se

do sul­africano Oscar Pistorius, um (pára­)atleta que teve as pernas amputadas aos 11 meses

de idade, fitando uma de suas próteses. O percurso vitorioso de Pistorius obriga a uma reflexão

mais profunda sobre a questão da deficiência físico­motora, da superação de limites e do

estado contemporâneo da condição humana, além de suscitar interessantes questões devido

às escolhas lingüísticas, cujas marcas axiológicas dividem os discursos em pós e contra.

O caso tem recorrente destaque na mídia e suscita inúmeras e desconcertantes

indagações do ponto de vista filosófico, lexical, semântico, ético, desportivo, e porque não

dizer, sobre a questão do pós­humano. Por conseguinte, faremos neste trabalho algumas

reflexões com o objetivo de por mais alguma luz sobre o caso, mesmo que essa luz seja tênue

e provoque ainda mais questionamentos.

Em maio de 2007 deu no The New York Times (on line): “An Amputee Sprinter: Is He Disabled or Too­Abled?”, esta manchete teria feito uma simples pergunta (capacitado ou incapacitado), não fora o advérbio “too”, que superlativa o adjetivo “capaz” para “capacíssimo”

ou, “demasiado capaz”. Temos, em decorrência, dois problemas imediatos. O primeiro deles,

dialoga com as pretensões de Pistorius de competir nas Olimpíadas 2008, em Pequim, na

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

prova dos 400m de corrida, sua especialidade, junto a competidores não­deficientes. Se a

reivindicação de “ser capaz” (ou habilitado) em si já causa polêmica, o segundo problema

causa perplexidade; é que Pistorius foi vetado pela Federação Internacional de Atletismo

(IAAF), que anunciou em 14 de janeiro de 2008 sua decisão, a de que Pistorius teria uma

“ajuda técnica” sobre seus concorrentes, advindas das próteses. Daí o “Too­Abled” da referida

manchete, ou seja, seguindo os rumores sobre a intenção da IAAF, o jornal já antecipava em

sete meses que ele poderia ser considerado um “deficiente” com maior capacidade que os

“não­deficientes”.

Ao nosso olhar, o problema maior não é o fato de que se julgue sua aptidão a competir

com os não­deficientes, os “normais”, como ele deseja, mas, o de não estar habilitado

justamente por encontrar­se em uma condição “superior”, isto é, Pistorius levaria vantagem na

competição sobre os sem­prótese, pois teria uma “ajuda técnica”.

A decisão da IAAF de impedir Oscar Pistorius de competir nos jogos teve como base

um estudo realizado em novembro de 2007 pela Universidade do Esporte de Colônia, na

Alemanha, pois, as lâminas curvadas que compõem as próteses do corredor sul­africano, para

tal estudo, permitem correr à mesma velocidade dos outros atletas, gastando menos 25% de

energia. Endosso, em seguida, as perguntas de Jeré Longman (The New York Times): “What should an athlete look like? Where should limits be placed on technology to balance fair play with the right to compete?”; inclusive a mais perturbadora delas: “Would the nature of sport be altered if athletes using artificial limbs could run faster or jump higher than the best athletes using their natural limbs?”. E radicalizo: até que ponto proteses dentárias beneficiariam um atleta de certa modalidade em oposição aos competidores que não as têm? Será que fizeram

testes em um atleta com uma prótese auditiva, para saber se ele estaria “ouvindo melhor” que

os não­deficientes, e se isto lhe daria alguma vantagem em determinada competição?

O que é prótese? Para o Wikipédia (acesso em 03/03/2009), “é o componente artificial

que tem por finalidade suprir necessidades e funções de indivíduos seqüelados por

amputações, traumáticas ou não”. Quando uma pessoa perde algum membro do corpo, no

lugar é posto uma prótese mecânica. Na “enciclopédia livre” (idem) ainda temos que “essa

prótese responde a qualquer impulso nervoso, virando um substituto ideal, com a vantagem de

ser mais resistente. As próteses podem também ser internas , para substituiçao de articulações

ósseas”.

Na imagem seguinte, temos um homem jogando pebolim (o popular “totó), cujas mãos

amputadas foram substituídas por duas próteses distintas. Qual das duas é mais eficaz para o

jogo? Teria ele alguma “vantagem técnica” sobre um opositor cujas mãos sejam naturais?

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Se estamos discutindo as fronteiras do pós­humano: um salto mais alto seria uma

“prótese”, ou uma “ajuda técnica” no desenvolvimento de certa atividade desportiva (ou outra

qualquer)? E um tipo de agasalho, ou luvas, ou boné? Proteger os olhos com um certo tipo de

óculos daria uma vantagem técnica em uma dada ação sobre alguém sem óculos?

Santaella (2003) diz que no fundo da questão reside a seguinte implicação:

Se o ser humano é uma série de códigos, tais códigos podem não só ser re­misturados de diferentes modos para produzir uma variedade de rebentos mutantes com vários graus de humanidade, quanto a clonagem de um ser humano, mais cedo ou mais tarde, se tornará possível, e o mundo estará imerso no imaginário do filme Blade Runer, de Ridley Scott (1982), debatendo­se nos problemas que foram lá antecipados.

Sabe­se que nadadores olímpicos que vestem uma roupa inspirada na pele de tubarão

para deslizarem nas águas com menos atrito, podem ganhar alguns segundinhos, isto não

seria uma prótese da pele? Por que ela é aceita? Os interesses em jogo são éticos ou

econômicos? Vejamos o que capturamos em Época on line:

O tubarão, o maior inimigo dos surfistas, parece ter se tornado o maior aliado dos nadadores olímpicos. A textura de sua pele está sendo copiada por fabricantes de roupas esportivas que acreditam ter encontrado o modelo ideal de maiôs para os Jogos de Sydney. Aderentes e com pequenos orifícios para facilitar a passagem da água pelo corpo, os trajes podem melhorar em até 3% o rendimento do atleta. Em 1996, a Speedo aproveitou os Jogos de Atlanta para lançar o aquablade, tecido revestido com resina, que repele água.

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Capturamos também este quadro ilustrativo (a seguir) no mesmo site, que não deixa

dúvidas sobre o fato de estarmos lidando com um objeto extra­humano, cujas qualidades

técnico­científicas proporcionam vantagens a competidores.

A segunda pele

Maiôs inteiriços para nadadores, desenvolvidos por Adidas, Nike, Speedo e TYR Sport,

reduzem o atrito com a água e auxiliam na compressão muscular.

Compressão muscular ­ Aquapel TYR Sport

Esse maiô compreende um sistema de placas costuradas de forma a comprimir as seções

essenciais dos músculos. Sua forma protege a pele de ondulações durante os movimentos,

reduzindo o atrito. As costuras são especialmente posicionadas para permitir flexibilidade e

afastar a água de áreas de alto atrito

Redução de atrito ­ Fastskin Speedo

Os fabricantes de maiôs combatem o atrito com um traje mais hidrodinâmico, com pequenas

estruturas em forma de V, inspirado na pele de tubarão. Minúsculos sulcos no tecido

permitem que a água passe pelo corpo mais livremente. O fluxo da água é direcionado sobre

o corpo, reduzindo o arrasto e a turbulência na piscina

Fontes: TYR Sport, Speedo, USA Swimming

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

No Jornal do Commercio (2008, esportes: 6) encontramos o seguinte título: “Joanna

entra na água sem o maiô milagroso (sic)”. O texto, em seguida, afirma que o maiô não chegou

a tempo e que ele “vem causando polêmica. (...) Nos últimos meses, nadadores que o utilizam

conseguiram quebrar 33 recordes mundiais”. A Fina, entidade que rege o esporte, chegou a

cogitar a proibição da peça, mas concluiu ser legítimo o seu uso entre os competidores,

demonstrando mais este ato hesitante que a problemática em torno desses casos e seus

desfechos estão mais próximos da subjetividade, dos interesses inconfessos ou da

idiossincrasia do mandante de plantão. Nos discursos veiculados na mídia anotamos termo

como “milagroso”, “polêmica”, “proibição”, “legítimo”, junto a uma semântica do contraditório,

repleta dos respectivos antônimos.

Ora, vejam, se a aplicação (leia­se “ajuda tecnológica”) desta tecnologia é tolerada nas

Olimpíadas, porque as pernas artificiais de Pistorius, chamado na França de “le coureur sur

lames” em razão de sua prótese – um par de lâminas em fibra de carbono –, não seriam uma

das várias e aceitas tecnologias desenvolvidas para o esporte, com o ganho extra de também

poder ser aplicada com sucesso em cidadãos não atletas? Outra indagação: será que um

corredor com particularidade similar a Pistorius teria os mesmos 25% de ganho de energia, e

essa energia não despendida, resultaria em quantos segundos mesmo, numa prova?

Para Santaella (2003) as próteses borram as margens entre aquilo que é tido como

natural e o artificial, mesmo quando refinam as capacidades do primeiro, marcando uma

intersecção entre dois sistemas, duas redes subjacentes de rizomas [a organização dos

elementos não segue linhas de subordinação hierárquica], tecnológica e orgânica. Quando

Longman (The New York Times) diz que “Yet Pistorius is also a searing talent who has begun erasing [grifo meu] the lines between abled and disabled”, parece repetir Lévy (1996:30), que dissera: “Os implantes e as próteses confundem a fronteira entre o que é mineral e o que está

vivo”. Temos, portanto, acadêmicos discutindo a questão das próteses a partir da condição

humana, enquanto jornalistas e articulistas colocam em pauta o mesmo tema a partir de um

caso particular, enfocando a questão ética. Unem­se todos, porém, na polêmica da produção

de efeitos de sentido, no campo da ética desportiva, dos atos de fala e do discurso retórico.

De concreto, Oscar Pistorius, de 22 anos, é recordista de mundial paraolímpico nos

100, 200 e 400 metros, “tendo conseguido medalhas de ouro e bronze nos Jogos

Paraolímpicos de Atenas, em 2004” (Jornal do Commercio). E mais, terminou em segundo

lugar na Liga Dourada, em Roma, onde competiu com atletas sem limitações físicas, na final A

dos 400 metros, em julho de 2007, com a marca de 46.90 segundos. “Não me vejo como um

deficiente” disse Pistorius (in www.g1.com.br), que se recusa até a estacionar em vagas reservadas para deficientes. “Não há nada que os atletas normais façam que eu não possa

fazer”, desafia ele, que é ex­jogador de rúgbi e pólo aquático. O velocista também brilhou na

Paraolimpíada disputada em 2008, disputada na China (sede da Olimpíada 2008), quando

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

ganhou medalhas de ouro vencendo nos 100, 200 e 400 metros. Como é persistente, Pistorius

anunciou que ia tentar se classificar para o Mundial de Berlim, em 2009, e a Olimpíada de

Londres, em 2012 (abril.com, 26/02/2009).

Donna Haraway (apud Kunzru, in Silva, p.26), autora de um ensaio de 1985 chamado “Manifesto em favor dos ciborgues”, conclama a pensar sobre a tecnologia dos calçados para

esportes, diz ela: “Antes da Guerra Civil [Americana], nem sequer havia, na indústria calçadista,

qualquer diferenciação entre o calçado do pé esquerdo e o do pé direito. Agora, temos um

calçado para cada atividade”. Kunzru (in Silva, p.26), seguindo o raciocínio de Haraway, analisa

que vencer os Jogos Olímpicos na era do ciborgue não tem a ver simplesmente com correr

mais rápido: “Tem a ver com a interação entre medicina, dieta, práticas de treinamento,

vestimentas e fabricação de equipamentos, visualização e controle de tempo”. Nessa visão pró­

ciborguização, continua a voz de Kunzru (idem):

Com drogas ou sem drogas, o treinamento e a tecnologia fazem de todo atleta olímpico um nó em uma rede tecnocultural internacional tão “artificial” quanto o supercorredor Bem Johnson no ponto máximo de consumo de esteróides (...) Se isto soa complicado, é porque é. O mundo de Haraway é um mundo de redes entrelaçadas – redes que são em parte humanas, em parte máquinas; complexos híbridos de carne e metal que jogam conceitos como “natural” e “artificial” na lata do lixo (...) Ocorre para Haraway uma relação tão íntima entre as pessoas e a tecnologia que não é mais possível dizer onde nós acabamos e onde as maquinas começam (p.25).

A saga de Oscar Pistorius e seu debate nos meios de comunicação chega a conteúdos

cômicos. Elio Locatelli, diretor de desenvolvimento da IAAF, recomendou que o atleta em

discussão se concentrasse nas Paraolimpíadas (que aconteceram após as Olimpíadas de

Pequim), afirmando: “Isso afeta a pureza do esporte. Em seguida virá outro aparelho com o

qual as pessoas conseguem voar com algo preso nas costas”. A resposta veio menos

sarcástica e mais virulenta, através de Robert Gailey da Faculdade de Medicina da

Universidade de Miami, que estudou corredores amputados (in www.g1.com.br): “Eles estão preocupados que não haja uma vantagem injusta? Ou estão discriminando devido à pureza

das Olimpíadas, porque não querem ver um homem deficiente na mesma altura de um homem

não deficiente, temendo o que significaria para a imagem do homem a vitória de uma pessoa

que não possui o corpo perfeito?”; temos, assim, uma provocação retórica, onde ficaria

subentendida uma inspiração nazistóide na ação da IAAF.

O par de lâminas instalado abaixo dos joelhos de Pistorius, em formato de “J” e

conhecidas como “chitas” tem, como já deixamos claro, acirrado o debate na mídia, porém, à

maneira de Haraway, diria que as raízes da problemática antecedem em muito a pós­

modernidade. O que dizer da utilização ou emprego, por exemplo, de óculos, de monóculos, de

binóculos, da lupa, da lente e do microscópio, todas com as respectivas funções de corrigir ou

ampliar a capacidade do homem de ver objetos à distância, objetos microscópicos e objetos

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

que já não podem são vistos com naturalidade à meia distância? É óbvio que aqui

extrapolamos o campo da competição olímpica, mas, reforçamos que a questão é antiga e

casos instigantes como o de Oscar Pistorius chama a atenção da sociedade midiática,

desportiva, filosófica, médica, cibernética e acadêmica.

O inesperado é que, o que parecia uma deficiência, um truque da tecnologia para que a

vida de Pistorius se aproximasse da normalidade, com o veto na participação do atleta na

olimpíada de Pequim, sob a alegação de levaria uma ligeira vantagem sobre os demais

competidores, pôs a nu, inclusive, o conceito de “normalidade”, pois, atletas sem qualquer

problema motor ou de restrição ou supressão de quaisquer parte do corpo, poderiam reivindicar

para si algum tipo de “prótese” ou recurso biomotor que viesse em auxílio da superação de

marcas olímpicas.

O debate em tela, que seria provocado por uma tragédia pessoal, passa por atos de

superação pessoal, no caso do próprio seja­eu de Oscar Pistorius, por tiradas de humor negro

dos oponentes, mas, o melhor é que traz esperança àqueles que, devido a razões que lhes

fogem do controle, tenham alguma dificuldade em desempenhar funções. Uma indagalção, que

amplia as especulações que fizemos, circulou no site do Instituto de Ética e Tecnologias

Hipertextus (www.hipertextus.net), n.3, Jun.2009

Emergentes, Conecticut/EUA, quanto à natureza acirrada da competição, caso se aceite a

obtenção de “vantagens tecnológicas”, se atletas fariam algo tão radical quanto substituir seus

membros naturais saudáveis por membros artificiais. A suposição levou um diretor do instituto,

George Dvorsky, a perguntar: “Seria automutilação se você recebesse um membro melhor?”

Talvez isso explique a corrida para a realização de próteses de mama, capilar, peniana,

dentária, auditiva, no glúteo ou panturrilha, dentre outras, na busca do homem pela

modificação ou amplificação de seu corpo, agora na condição, cada vez mais aceita, de pós­

humano ou de sujeito cibernético. De nossa parte, enquanto ser­do­discurso a observar o

apagamento dessas fronteiras, fica a torcida por todos os Pistorius em qualquer olimpíada ou

em qualquer outro espaço em que se demonstre que o homem não é mais o limite de si

mesmo.

Referências

LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996 SANTAELA, Lucia. Cultura e artes do pós­humano : da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. (2ª edição, 2004)

SILVA, Tomaz Tadeu da. Antropologia do ciborgue – as vertigens do pós­humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

Jornal do Commercio. Iaaf veta Oscar Pistorius / Mais esportes. Recife/PE, 15 de janeiro. 2008. p.5

Jornal do Commercio. Joanna entra na água sem o maiô milagroso / Mais esportes. Recife/PE, 7 de

maio. 2008. p.6

G1 Globo.com – O portal de notícias da Globo

(g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL36614­5602,00.html ­ 49k ­)

Sport courier international

(sport.courrierinternational.com/star/071107_oscar_pistorius.asp)

The New York Times

(www.nytimes.com/2007/05/15/sports/othersports/15runner.html )

Abril.com. Pistorius volta para casa após acidente de barco / Esportes. Agência Estado, 26/02/2009

(www.abril.com.br/noticias/esportes/pistorius­volta­casa­acidente­barco­289726.shtml)


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