Empreendedorismo de si e Empreendedorismo Moral na Magistratura: As
representações dos Juízes de Direito de Ponta Grossa sobre os “usuários de
drogas”
Aknaton Toczek Souza1
Pablo Ornelas Rosa2
Pedro Rodolfo Bodê de Morais3
Contexto da Pesquisa
Esse artigo, que se ampara em uma pesquisa qualitativa e etnográfica, teve
como objeto as representações sociais dos juízes de direito de Ponta Grossa/PR sobre
os supostos “usuários” ou “traficantes” de substâncias psicoativas tratadas pela
legislação brasileira como ilícitas, também investigando se o encaminhamento desses
sujeitos à prisão tem operado na legitimação da criminalização da pobreza e no
encarceramento em massa, sob a justificativa de ameaça à ordem pública.
O estudo de campo foi realizado no município de Ponta Grossa, no Paraná,
não tendo sido escolhido aleatoriamente, mas pela afinidade de um dos pesquisadores,
autor desse artigo, que trabalhou durante alguns anos como advogado criminal e na
época, em decorrência da ausência de defensoria pública, atuou diversas vezes como
advogado dativo auxiliando – em parceria com o Conselho Nacional de Justiça – CNJ
em evento organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/PR – o mutirão
carcerário quando então se tentou revisar a situação prisional de alguns presos afim de
1 Aknaton Toczek Souza é Bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais –
CESCAGE, Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política
Criminal da Universidade Federal do Paraná – UFPR e Mestrando em Sociologia na Universidade
Federal do Paraná – UFPR. Atua como advogado criminalista e como professor nos Cursos de
Graduação em Direito do Instituto Superior do Litoral do Paraná – ISULPAR e da Sociedade
Educativa e Cultural Amélia – SECAL (http://lattes.cnpq.br/8961574472191125). 2 Pablo Ornelas Rosa é Pós-Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR,
Doutor em Ciências Sociais com área de concentração em Política pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestre em Sociologia Política e Bacharel em Ciências Sociais pela
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Atualmente é Professor Titular I nos Programas de
Mestrado em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha – UVV e
coordenador do Grupo de Pesquisa Subjetividade, Poder e Resistência.
(http://lattes.cnpq.br/1908091180713668) 3 Pedro Rodolfo Bodê de Morais é Doutor e Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro – IUPERJ, Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional / Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Fluminense –
UFF. Atualmente é Professor Adjunto no Departamento de Ciências Sociais, no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Professor Convidado do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná – UFPR. Consultor da Comissão de Estabelecimentos Prisionais da
Ordem das Advogados do Paraná – OAB/PR. Membro da Comissão da Verdade – PR. Publicou 3
livros e diversos artigos em periódicos especializados e livros. Atua nas áreas de Sociologia e
Antropologia (http://lattes.cnpq.br/9901027858838220).
acabar com a superpopulação na Cadeia Pública Hildebrando de Souza.
Nessa oportunidade tal unidade carcerária estava com mais do que dobro de
sua capacidade, ou seja, algo entre 500 presos para 173 vagas. Em sua maioria, eram
presos preventivos por tráfico de drogas – conforme as diversas contagens realizadas
antes e no decorrer da pesquisa, a média entre os homens presos provisoriamente por
tráfico de drogas era de 46% à 64%, já entre as mulheres o índice era superior aos
90% – sendo boa parte deles e delas, envolvidas com crack.
Contudo, mesmo com o apoio e a participação das mais distintas instituições
que militavam a favor da liberdade dos presos que se encontravam encarcerados de
maneira preventiva mesmo sem terem sido julgados, os poucos pedidos de liberdade
tiveram sucesso. Pois, dos 21.492 processos analisados no estado do Paraná, apenas
674 pedidos de liberdade provisória foram concedidos. No município de Ponta Grossa
quase não houveram solturas, já que a imensa maioria dos pedidos foi negada,
sobretudo, quando se referia àqueles crimes relacionados ao tráfico de drogas, em que
o discurso sobre “o perigo à ordem pública” imperava.
Nos diversos processos que tratavam de crimes de tráfico de drogas avaliados
no mutirão carcerário foi possível notar algumas situações que despertaram certa
curiosidade científica. Quase todos os suspeitos se declaravam usuários, sendo que a
droga consumida era em sua maioria o crack, as prisões eram realizadas em flagrante
por policiais e pela quantidade não ser determinante – quase sempre era gramas e não
quilos como assinalou um dos juízes entrevistados – a fundamentação do magistrado
para a manutenção da sua prisão preventiva era baseada na palavra dos policiais.
Mesmo com toda a mobilização que um mutirão carcerário, promovido pelo CNJ,
pôde causar no mundo jurídico de uma cidade do interior, quase nenhum pedido de
liberdade provisória para os suspeitos de tráfico de drogas foi concedido.
Atualmente o “cadeião” Hildebrando não mudou muito a sua situação, desde a
realização de nossa pesquisa etnográfica, exceto pela população carcerária que
aumentou e hoje circula entre 600 presos. Para compreender o exercício desse
controle social foi necessário me aproximar dos juízes de direito de Ponta Grossa no
intuito de compreender o sentido de suas decisões e a racionalidade com que eram
operacionalizadas.
Naquela ocasião, o Fórum Estadual de Ponta Grossa contava com mais de 20
juízes, entre titulares e substitutos, quase todos com mais de dez anos de experiência
(isso por que o Fórum de Ponta Grossa é uma entrância final), dividido quase que
paritariamente entre homens e mulheres, todavia, no caso dos juízes criminais
(considerando os juizados), a quantidade de mulheres era um pouco superior. Isso se
revelou porque as entrevistas foram realizadas com quatro juízas e apenas um juiz.
Entrevistamos não apenas os juízes das varas criminais, mas, também os do
juizado especial criminal, da vara da infância e adolescente – especializada em atos
infracionais –, sendo todos eles titulares que já haviam passado por outras comarcas,
tendo atuado nas varas criminais. A seleção dos juízes para entrevista se deu de
acordo com suas disponibilidades, entretanto, nenhum dos que contatamos se negou a
participar da pesquisa. Contudo, não conseguimos encontrar ou marcar entrevistas
com alguns deles. É importante deixar claro que todas as entrevistas foram realizadas
nos gabinetes dos juízes de direito, localizados no Fórum Estadual de Ponta Grossa.
Ao explicar nossa pesquisa e o propósito da conversa, explicitávamos que
gostaríamos de compreender como viam, através de suas experiências profissionais,
as questões das drogas, o que em alguns casos era prontamente atendido – inclusive
em entrevistas exploratórias ou em conversas para marcar entrevista –, resultando em
longas entrevistas.
Utilizando o guia de entrevista semi-estruturada, direcionávamos as questões
para o foco da pesquisa, iniciando com algumas perguntas pessoais e genéricas –
quanto tempo atua como juiz e como ele via a questão das drogas na sua atuação
profissional – objetivas – como a frequência do crime de tráfico/uso de drogas e o
perfil dos suspeitos –, passando para questões mais delicadas – como é feita a prova
do tráfico de drogas, a palavra e a atuação dos policiais, o que era considerado perigo
à ordem pública –, e por fim para questões paralelas como sugestão de livros,
entrevistados, o que pensa da internação compulsória para usuários ou da legalização
da maconha medicinal.
Em quase todas as entrevistas foi possível notar certa frustação com a
profissão ou com o Sistema de Justiça Criminal - SJC, sobretudo após reconhecer a
sua seletividade. Isso ocorria sempre ao discutir o perfil dos acusados por tráfico de
drogas, todos os juízes entrevistados reconhecem que a “clientela” – e esse um dos
termos utilizados por um dos juizes entrevistados – são de pessoas pobres, sem
escolaridade, moradores de periferia e que existem traficantes na classe média ou alta,
só que a estrutura policial raramente os alcança. Sendo assim, foi possível verificar
certo sentimento de falta de investimento em políticas públicas para usuários de
drogas e pessoas carentes, de modo geral.
É imporante destacar que o controle social não é algo inerente à sociedade ou
natural, mas sim algo socialmente construído, sendo um efeito do processo de
socialização, que pode ser tratado dentre de certas suposições acerca de supostas
“normalidades”, através de mecanismos de integração social que promovam coesão e
solidariedade; ou perverso, através de mecanismos que buscam excluir os conflitos e
diferenças, reiterando as desigualdades, estigmas e preconceitos dos mais diversos.
Partindo da premissa de que o crime é um ato tipificado como ilícito uma vez
que viola certa condição de “normalidade” das condutas em sociedade, supostamente
comprometendo a segurança da população, verifica-se que o ato criminalizável varia
de época em época e de país à outro.
Isso ocorre visivelmente no campo de estudos sobre o controle das substâncias
psicoativas, objeto de nossa análise que trata das representaçoes sociais dos juízes de
direito acerca dos supostos “usuários” e “traficantes” de drogas, pois até o início do
século XX, algumas das substâncias que paulatinemante foram transformadas em
ilícitas eram lícitas e comercializadas sem restrições em estabelecimentos e sem a
necessidade de receita médica, como era o caso da cocaína, utilizada como anestesia e
como anorexógeno, e do ópio, usado como substância com propriedades calmantes,
inclusive receitada para recém-nascidos (ROSA, 2014).
Entretanto, pra que o SJC opere com certa eficiência na busca pela
intesificação das criminalizações e por seus resultantes processos de encarceramento
legitimados pelas instituições estatais, “é preciso haver delinquentes e criminosos
para que a população aceite a polícia, por exemplo. O medo do crime, que é
permanentemente atiçado pelo cinema, pela televisão e pela imprensa, é a condição
para que o sistema de vigilância policial seja aceito” (FOUCAULT, 2012: 107).
O exercício do controle social através da punição, incentivado por programas
de segurança pública e realizado através do SJC é operado por diversos profissionais.
Todavia, aqui se optou por pesquisar a representação daqueles que decidem e opinam
sobre à eventual liberdade ou prisão preventiva dos suspeitos: os juízes de direito.
Desse modo, propomos“tentar compreender o fenômeno da punição articulado aos
processos sociais e culturais nos quais as práticas punitivas emergem, passando a ser
um de seus elementos constitutivos” (MORAES, 2003: 05).
Contudo, é importante esclarecer que o controle social na perspetiva da qual
estamos tratando, atua de maneira perversa na medida em que se fundamenta na
utilização de valores morais que são governamentalizados segundo verdades
produzidas distintamente por diferentes meios que perpassam diferentes tipos de
conhecimento, através da relação entre saber e poder, conforme ponderou Foucault
(2007).
Durante a experiência do campo foi possível verificar certa frequência na
utilização de argumentos apresentados supostamente amparados em conhecimentos
cientÍficos que se davam por meio do uso de adjetivos que lhes auferiam certo status
de verdade científica. Argumentos do senso comum ou senso comum douto pareciam
ganhar maior relevância se enquadrados como comprovação científica. Esses dados
sugeriram pensar o controle social perverso e o exercício do poder/saber que, ao criar
uma verdade, acabam produzindo uma representação social bastante deslocada da
realidade.
Pressupostos Teóricos
Ao verificarmos certa hibridização entre a razão de Estado e a razão
governamental, que acabou resultando em uma importante ferramenta de
regulamentação, normalização, punição e controle, chamado de dispositivo das
drogas, podemos constatar sua incidência nas representações sociais dos juízes de
direito de Ponta Grossa que, em sua grande maioria, não ponderam nem refletem
relevantemente sobre os motivos das políticas proibicionistas e seus impactos
econômicos e sociais.
Como Foucault (2007) propõe governamentalidade como um conjugado de
instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos e estratégias focalizadas na
população, tendo a economia política como principal forma de saber e os dispositivos
de segurança como instrumentos técnicos essenciais, situaremos as representações
sociais dos juízes de direito entrevistados a partir dessa noção foucaultiana, uma vez
que constatamos que esses operadores jurídicos não apenas governamentalizam as
leis, como também passam por processos sujeições e assujeitamentos amparados
naquilo que Becker (2009) chamou de empreendedorismo moral.
Para Becker (2009), aqueles que apresentam iniciativas no sentido de propor
novos grupos de outsiders são denominados pelo autor de empreendedores
morais. Eles são os reformadores cruzados, que acreditam piamente na sacralização
de suas missões, embora contem muitas vezes com a concordância daqueles que
pretendem "salvar". Geralmente, recorrem a especialistas, como psiquiatras,
advogados, educadores, dentre outros profissionais que geralmente possuem alguma
formação científica e que possuem algum tipo de interesse quando se posicionam de
maneira interventiva. Em decorrência dessa constatação, Becker (2009) verificou que
a cruzada para ser bem-sucedida necessita ter como possíveis consequências não
apenas a criação de um novo conjunto de regras e normatividades, mas também a
criação de novas agências que possibilitarão a institucionalização do empreendimento
para então poder agir através de uma força policial.
Os impositores profissionais, como atuam parte dos juízes de direito
entrevistados, estão mais interessados na manutenção de seus cargos do que nas
justificativas das regras impostas como ocorre com as políticas proibicionistas. Isso
acaba gerando um paradoxo, pois embora necessitem mostrar a eficácia de sua
atuação na magistratura, o fim desse suposto problema significaria o fim da razão de
existência de seus cargos. Assim, são os profissionais quem escolhem em quais casos
deverão agir.
Ao partirmos de um pressuposto amparado tanto na analítica foucaultiana
quanto nas ponderações de Becker, constatamos que a disciplina potencializa a
instituição de mecanismos de adestramento progressivos e de controle, que no caso
das drogas, acaba demarcando o que deveria ser considerado adequado ou inadequado
do ponto de vista médico-legal. É através da junção de uma razão de Estado,
fundamentada em uma legislação que supostamente visa garantir o bem estar da
população através do SJC, e de uma razão governamental, que incide
concomitantemente sob os indivíduos e toda a população através da
governamentalização de verdades proferidas por empreendedores morais; que
veremos a ascensão de políticas proibicionistas repressivas, refletidas nos discursos
desses operadores do direito que certamente não ponderam profundamente sobre as
suas condutas e posicionamentos, resultando na insensibilização diante da miséria e
na criminalização da pobreza.
Diferentemente dos posicionamentos apresentados nas entrevistas realizadas
com os juízes de direito de Ponta Grossa, Carneiro (2002), dentre muitos outros
pesquisadores que assumem um caráter mais progressista, a exemplo dos
pesquisadores do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos – NEIP e
Law Enforcement Against the Phroibitions – LEAP, propõe uma espécie de
desterritorialização desse discurso proibicionista.
As drogas são produtos da cultura, são necessidades humanas, assim como os
alimentos ou as bebidas, podendo ter um bom ou um mau uso, assim como ocorre
com os alimentos. A diferença é que um viciado em açúcar não corre o risco de ir
preso mas apenas o de perder a saúde na obesidade ou diabetes. A idéia da
erradicação do consumo de certas substâncias é uma concepção fascista que
pressupõe um papel inquisitorial extirpador para o Estado na administração das
drogas, assim como de outras necessidades humanas. Tal noção de um Estado
investido do poder de polícia mental e comportamental legislando e punindo sobre os
meios botânicos e químicos que os cidadãos utilizam para interferir em seus estados
de humor e de consciência é um pressuposto necessário para a hipertrofia do lucro
obtido no tráfico. Em outras palavras, a proibição gera o superlucro. Tais razões
levam a que a reivindicação da descriminação das drogas se choque tanto com os
interesses dos grandes traficantes assim como com os do Estado policial
(CARNEIRO, 2002: 19).
As Políticas Proibicionistas e a Suposta Ameaça à Ordem Pública
Rodrigues (2003) constatou que determinados grupos étnicos estiveram
submetidos a um processo de criminalização de suas práticas culturais que eram
muitas vezes milenares, como é possível verificar historicamente na conotação
explicitamente racista, xenófoba e repressiva, que provavelmente tem sua procedência
no Decreto de Expulsão de Chineses de 1882. Esse Decreto que acabou resultando na
criação estadunidense da chamada Lei Harrison, comumente conhecido por Lei Seca,
procurou não somente estigmatizar, mas também criminalizar os chineses que naquele
momento eram considerados os grandes consumidores de ópio, tratados, a partir
daquele episódio, como agressores da cultura e da moral estadunidense. Não obstante,
o álcool acabou sendo associado aos negros que, ao consumi-lo, passaram a ser
considerados pela população dominante daquele país como um grupo perigoso que
também deveria ter suas práticas culturais combatidas. Devido ao fracasso decorrente
de sua completa inexequibilidade, a Lei Seca acabou sendo revogada em 1933.
No entanto, a lista de substâncias proibidas internacionalmente pela ONU não
parou de aumentar após a Segunda Guerra Mundial, intensificando a demanda de
maconha, haxixe e cocaína nos Estados Unidos e na Europa nos anos 1960. Segundo
Rodrigues (2003), houve uma espécie de simbiose entre os interesses do Estado e do
Narcotráfico4.
4 Nesse quadro, a cidade de Santa Cruz de La Sierra, situada estrategicamente entre Chapare e as
densas selvas do estado do Beni, foi convertida em capital do narcotráfico boliviano. A experiência
acumulada por grupos ilegais no contrabando de produtos e bebidas para o Paraguai e Brasil foi
importante para auxiliar na montagem dos esquemas de compra de folhas de coca, processamento da
pasta base e venda aos traficantes colombianos. O setor competitivo boliviano se constituía aliando a
existência de fortes sindicatos de plantadores de coca – defensores do cultivo da coca como legado
cultural e alternativa de vida aos camponeses – com a de organizações responsáveis pela produção da
pasta base. Contudo, o envolvimento de grupos bolivianos na economia do narcotráfico não dava seus
primeiros passos na metade dos anos 1980. A inserção dos circuitos do tráfico ilícito boliviano na
dinâmica do narcotráfico contemporâneo deve ser ao menos investigada desde o início da década de
1970. Em 1971, um golpe de Estado leva ao poder o general Hugo Bánzer Suárez, primo do traficante
Roberto suárez, que naquele momento investia no estabelecimento de laboratórios para a produção de
pasta base. Com o apoio do primo, de outros importantes traficantes do país e com o aval dos Estados
O autor entende que, as organizações que produzem e comercializam as
drogas ilícitas tendem a maximizar seus lucros na medida em que procuram manter a
ineficácia da proibição e da repressão destas substâncias amplamente desejadas e
consumidas por diversas pessoas e das maneiras mais distintas em todos os países ao
redor do planeta.
Rodrigues (2003) observou que a influência que estes grupos exercem sobre as
instituições públicas garante a abertura de canais estatais, criando um ambiente que
possibilita que o crime organizado se desenvolva. Assim, a proibição das drogas
acabou fornecendo ao Estado uma importante justificativa para a intervenção na vida
daquelas pessoas consideradas suspeitas através da repressão à produção,
comercialização e consumo destes produtos ilegais, passando a incidir diretamente
sobre o usuário e o comerciante varejista, geralmente proveniente das classes sociais
mais baixas, que passa a ser tratado como traficante.
Além de reconhecer que os objetivos da luta mundial contra as drogas não
foram cumpridos até os dias de hoje, o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e
o Crime – UNODC ligado a Organização das Nações Unidas – ONU, sugeriu, em
reunião realizada em Viena no ano de 2014, que os países adotassem políticas que
visassem a descriminalização dos consumidores de substâncias psicoativas ilícitas, no
intuito de “descongestionar” as prisões5.
Mesmo antes da UNODC reconhecer as consequências danosas das políticas
proibicionistas, Rodrigues (2003), dentre outros muitos pesquisadores, já havia
constatado que a “guerra contra as drogas” tem sido ineficiente porque não consegue
sobrepujar os fortes oligopólios que produzem e comercializam estas substâncias
psicoativas consideradas ilícitas, no entanto, a sua utilização acaba sendo operacional
no momento em que passa a ser usada como estratégia política de controle social. Esta
simbiose constatada pelo autor não ocorre necessariamente durante a penetração dos
envolvidos com o tráfico de drogas nos aparelhos estatais, mas também através da
perpetuação de um modelo repressivo que passa a ser vantajoso tanto para
“perseguidor” (Estado) quanto “perseguido” (narcotráfico).
Colocadas em movimento pelas leis, as políticas de controle social são, portanto,
medidas de contenção dos indivíduos e grupos que podem desestabilizar a ordem. Ao
longo do século, o conjunto de políticas de controle social foi enriquecido com um
Unidos, Hugo Bánzer mantém-se no poder perseguindo opositores políticos com violência e
possibilitando o crescimento da economia do narcotráfico (RODRIGUES, 2003: 90). 5 Dados extraídos do site http://www.efe.com/efe/noticias/brasil/sociedade/onu-sugere-pela-primeira-
vez-descriminaliza-consumo-drogas/3/2017/2259689 no dia 17 de setembro de 2014.
tipo particular de intervenção: os crimes relacionados às substâncias psicoativas. Ao
serem proibidos, os negócios, os psicoativos passaram a alimentar um grande
negócio que colocou sob a mira dos aparatos repressivos dos Estados proibicionistas
aqueles que produziam e comercializavam tais substâncias e àqueles que as
consumiam. Classificados como traficantes e usuários, respectivamente, esses
indivíduos ficaram a mercê das iniciativas antidrogas. Mas qual seria a ligação
explicita entre proibicionismo e controle social? A ligação começa a ficar mais
evidente quando se percebe quais foram os indivíduos que ocuparam os papéis de
traficante e usuário. Desde os momentos mais antigos da proibição às drogas, as
atividades de produção e venda de psicoativos ficaram a cargo de indivíduos postos à
margem do sistema econômico-social dominante. Na ilegalidade, a economia das
drogas convocou os indivíduos que não tinham espaço no mundo legal: analfabetos,
pobres e marginalizados foram recrutados pelo nascente narcotráfico. Essa mesma
classe de indivíduos já era alvo das políticas de contenção social; eles já eram os
principais corpos a superlotarem os sistemas penitenciários. Capturados por
ameaçarem os costumes e a propriedade privada dos homens de bem, esses
indivíduos, tidos como desviantes, passaram a ser rastreados também por negociarem
perigosos venenos. Antigos preconceitos foram redimensionados, dando à Proibição
a característica espacial de instrumento para encarcerar os que deviam ser
encarcerados (RODRIGUES, 2003: 108-109).
A violência resultante do tráfico de drogas tão difundida pelos meios de
comunicação se concentra quase que exclusivamente no setor do varejo e em sua
erradicação, também passando a ser intensificada, mais especificamente, nos
determinados locais onde grupos rivais disputam clientes e territórios que geralmente
estão situados nas periferias das cidades; ou seja, em territórios onde a atuação da
polícia ocorre de maneira mais intensa e repressiva.
Nos últimos anos, grande parte dos países ocidentais vem investindo muito na
área da segurança pública através do desenvolvimento de estudos sobre criminalidade
que, além de possuírem outros importantes objetivos, também procuram intensificar
estratégias de repressão à produção, comercialização e ao consumo daquelas drogas
consideradas ilícitas, passando a promover políticas de repressão policial nas
periferias das cidades focalizando suas ações, sobretudo, nos jovens pertencentes às
classes mais pobres da sociedade, sobretudo, negros e latinos, conforme mostrou
Wacquant (2001) ao analisar o desenvolvimento das políticas de tolerância zero na
cidade de Nova York.
Ao constatar que as políticas de segurança pública que tratam do controle
sobre as substâncias psicoativas consideradas ilegais pelos Estados dificilmente
conseguem atingir o seu alvo (se é que os produtores e demais figurões do mundo das
drogas ilícitas são, de fato, o seu foco; já que algumas campanhas eleitorais
disputadas ao redor do planeta, a exemplo do Brasil são financiadas com recursos
provenientes destas “fontes misteriosas”), é possível ressaltar a existência de uma
complexa e paradoxal relação de dependência entre o Estado e as empresas
narcotraficantes, bem como as demais atividades ilícitas; uma vez que eles acabam
deixando de procurar quem realmente lucra com a proibição das drogas, sendo
capturados pela polícia.
Da Biopolítica ao Empreendedorismo Moral
Após verificar a preponderância, passagem e hibridização de diferentes tipos
de poderes tais como o poder pastoral, poder soberano, poder disciplinar e o biopoder,
Foucault (2008a) constatou a emergência da institucionalização, também por meio da
ascensão das políticas públicas, de um tipo de poder que opera politicamente na busca
pela manutenção e perpetuação da vida produtiva, chamando-a de biopolítica. Para o
autor francês, biopolítica é a maneira pela qual se procurou racionalizar os problemas
colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de
viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça, etc.
O reconhecimento de que o capitalismo exigiu métodos de poder capazes de
elevar as forças, aptidões e a vida em geral, sem torná-las mais difíceis de sujeitar, fez
com que este biopoder se tornasse um elemento indispensável para o desenvolvimento
deste modo de produção, que só conseguiu garantir seu espaço por meio da fixação
controlada dos corpos nos aparelhos de produção, decorrentes de ajustamentos da
população aos processos econômicos. Para que o capitalismo pudesse efetivamente se
desenvolver foi necessária a intensificação de um poder sobre os corpos
fundamentado tanto no seu reforço quanto na sua utilização e docilidade.
Por mais que o desenvolvimento dos aparelhos estatais como instituições de
poder tenham garantido a manutenção das relações de produção no capitalismo, foram
os rudimentos de anátomo e de biopolítica, iniciados no século XVIII como
tecnologias de poder presentes em todas as instâncias do corpo social na medida em
que operava por meio de diversas instituições - família, Exército, escola, polícia,
medicina, administração das coletividades - que proporcionaram a ação em nível dos
processos econômicos e de seus desdobramentos, dentre eles os processos de
assujeitamento e sujeição presentes do empreendedorismo moral localizado nos
discursos proferidos pelos juízes de direito de Ponta Grossa acerca das consequências
das políticas proibicionistas.
Ao localizar a emergência do poder disciplinar a partir de instituições que
visam a docialização dos corpos, Foucault verificou também a ascensão de uma
espécie de hibridização entre a razão de Estado, característico do poder soberano, e a
razão governamental, que opera, sobretudo, através de sujeições e assujeitamentos, ou
como práticas de subjetivação que passam a fomentar a governamentalização de
verdades, resultando também na produção daquilo que Becker chamou de
empreendedorismo moral, presente nas representações sociais dos juízes de direito de
Ponta Grossa acerca das politicas de controle sobre as drogas e suas consequentes
decisões.
Ao verificarmos que os discursos proferidos por esses operadores do direito,
em sua maioria, fundamentam-se em materiais informativos que não possuem bases
científicas, mas amparados exclusivamente no senso comum e justificados através de
revistas de circulação nacional ou em livros religiosos e/ou de auto-ajuda, é possível
questionar os juízos de valor atribuídos àqueles que estão sendo julgados por esses
profissionais da magistratura paranaense. Sendo assim, verificamos que os juízes de
direito de Ponta Grossa não somente governamentalizaram os discursos
proibicionistas, passando a atuar como empreendedores morais, como também
exerciam suas atividades tomando decisões a partir dos seus juízos de valor que
resultaram no encarceramento em massa e em certa insensibilidade para com o
suposto “criminoso”.
Em entrevista realizada com um de nossos interlocutores que atua como juiz
de direito no município de Ponta Grossa, pudemos verificar a presença do
empreendedorismo moral e, consequentemente, a base de seus discursos sobre as
políticas de controle sobre as drogas, amparada em autores que não realizam
pesquisas sobre esse assunto:
“Juiz: É uma alienação imposta (…) sabe quem pode lhe falar com autoridade sobre
isso? O filosofo Olavo de Carvalho, você entre no youtube é um cara bem
‘nomerento’, ele saiu daqui por que ele ia ser morto. Ele mora em Richmond nos
Estado Unidos. Olavo de Carvalho, ele fala puta merda, ele fala de cada 10 palavras
que ele fala 9 nomes, mas é uma pessoa, eu acho que é uma mente pensante única no
mundo, o senhor entra na parte que ele fala sobre o tóxico, sobre o que está
acontecendo no Brasil. Ele diz que o comunismo é inevitável no Brasil e vai
acontecer para já. Então é tudo isso daí, isso que eles estão fazendo de escola
integral. O que é escola integral? Eles querem afastar a criança da família, primeira
coisa. Depois eles fazem eles não acreditarem em Deus. Eles faziam isso (…) é como
eles entraram na revolução Russa. A criançada ia para escola, eles diziam: “você está
com fome? Então ore para você comer”. A criançada fechava o olhinho pedia para
Deus comida. Abria. Não tinha nada. “Tá vendo Deus não te escuta, Deus não existe.
Agora peça para Lenin”. Dai eles fechavam os olhinhos e pediam para Lenin, dai eles
colocavam o pratinho de comida na frente. (...) Você leia essa semana Olavo de
Carvalho.
Entrevistador: Ele fala sobre tóxico? Juiz: Tóxico, ele fala sobre tudo.
A partir desse discurso, é possível constatarmos que as drogas e as relações
sociais que permeiam esse objeto, são classificadas por diversos saberes – medicina,
psicologia, pedagogia, religião – onde os discursos sobre a verdade acabaram sendo
recepcionados pelo saber/poder jurídico, como desvio. Portanto para compreender
esses saberes que baseiam as políticas criminais, Foucault pondera:
O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser
fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática.
Logo, a questão, para mim é curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o
direito, da soberania e da obediência dos indivíduos submetidos a essa soberania, e
fazer que apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação e
sujeição. (FOUCAULT, 2000: 32)
Como, em uma perspectiva foucaultiana (2000), o sistema de direito e o
campo jurídico são veículos permanentes de relações de dominação e de técnicas de
sujeição polimorfas, esses saberes que assumem o status de norma jurídica,
fundamentando formas específicas de controle social são empreendimento de
indivíduos, o que Howard Becker (2009) chamou de empreendedorismo moral.
Howard Becker, diferentemente de Michel Foucault, enfatiza os indivíduos e
suas interações, procurando compreender o sentido simbólico atribuído à essas
interações. Desta forma, Foucault estaria mais preocupado com a identificação dos
jogos de poder e técnicas utilizadas para regulamentar as ações dos indivíduos por
meio de práticas classificatórias que estabeleceriam normas saudáveis aos demais,
enquanto que Becker (2009) nos possibilita pensarmos sobre quem determina os tipos
de comportamentos são considerados anormais e/ou problemáticos, ou seja, quem
acusa quem? De que estão acusando? E em que circunstâncias essas acusações tem
êxito?
Becker (2009), ao analisar o suposto desvio social sob a perspectiva do
interacionalismo simbólico em sua obra Outsiders, inspirado em seu estudo com
Everett Hughes de 1961, intitulado Boys in White: Student Culture in a Medical
School. Nesse trabalho, Becker concluiu que o desvio é criado pela sociedade por
aqueles que estabelecem as normas. Assim, para que um ato seja desviado ou não,
depende da forma com que os outros se relacionam perante ele, pois para que esse ato
seja desviado dependerá também de quem comete e de quem se sente prejudicado
com o ato; “la desviación no es una cualidad intrínseca al comportamiento en sí, sino
la interacción entre la persona que actúa y aquellos que responden a su accionar”
(BECKER, 2009: 34).
Desta forma, os desviados e/ou supostamente marginais, seriam aqueles que
são julgados pelos demais como desviados, estando às margens dos círculos de
membros “normais” de um grupo. Todavia, pode-se pensar que do ponto de vista dos
que são rotulados como desviantes, os marginais podem ser as pessoas que ditam as
regras, aquelas mesmas pessoas que os acusam de quebrá-las. Isso porque a regras,
assim, como o saber/poder que as fundamenta, são desenvolvidas por grupos sociais
específicos e é preciso reconhecer que as sociedades modernas possuem uma estrutura
complexa, sendo o conflito um elemento mais presente que o consenso. “Las
sociedades actuales están altamente diferenciadas en franjas de clase social y en
franjas étnicas, ocupacionales y culturales. Estos grupos no necesariamente
comparten siempre las mismas reglas; de hecho, no lo hacen” (BECKER, 2009: 34).
Para Becker (2009), as normas seriam os resultados das iniciativas e dos
empreendimentos de pessoas definidas por ele de “empreendedores morais”, existindo
duas espécies: os que criam as regras e os que as aplicam. O protótipo do criador de
normas é o cruzado reformista, que opera através de uma ética absoluta e considera
que as regras existentes ainda não o satisfaz, pois ainda existem outros males a serem
corrigidos, através de outras normas. “Lo que ve es malo, total y absolutamente malo,
sin matices, y cualquier medio que se emplee para eliminarlo está justificado. El
cruzado es ferviente y recto, y las más de las veces se siente moralmente superior”
(BECKER, 2009: 167).
O termo cruzado parece apropriado ao autor, uma vez que os reformistas
crêem que sua missão é sagrada, que deve salvar a sociedade de um mal. Assim pode-
se pensar que os criadores das normas, as fazem partir de saberes/poderes, que
proponham verdades, estabelecendo políticas públicas, exercidas através de técnicas e
instrumentos de controle social, com o intuito de suprimir um mal social. E um bom
exemplo desses que promovem uma cruzada contra o “mal”, segundo BECKER
(2008), são os proibicionistas, que querem suprimir os vícios.
Os cruzados agem normalmente por meio de um forte sentimento humanitário,
acreditando estar salvando os demais, mostrando o caminho correto, bom para aquelas
pessoas que são então o alvo de sua cruzada. Assim, não sentem que estão impondo
sua moral sobre os outros, mas sim que estão gerando melhores condições de vida
para as pessoas.
Esse discurso supostamente humanitário das ações dos empreendedores
morais é importante na medida em que possibilita um intercâmbio de apoio com as
outras cruzadas humanitárias (BECKER, 2008) e mesmo com intenções humanitárias
o poder/saber que classifica, estabelece padrões, normatizações, disciplinas e
controles através da promulgação de verdades. Assim, o poder disciplinar ainda é
exercido, porém de forma sútil.
De fato, Foucault demonstrou certa ampliação do poder disciplinar através de
mecanismos, procedimentos, técnicas e tecnologias nas sociedades modernas. Para o
autor, esse poder disciplinar ultrapassa os limites do aparelho estatal, sendo incluído
no cotidiano, na rotina, ou seja, amparando-se em técnicas cotidianas de poder
garantidas pela verdade. Assim, impondo-se sobre todos não somente através da
repressão, mas também por meio de capturas e convencimentos operados por meio de
governamentalizações.
Muito embora firmados em um caráter humanitário, os empreendedores
morais, ao estabelecer um padrão de vida que consideram adequado, ainda se
encontram sob a égide da biopolítica, ou seja, do exercício do poder para controle e
subjugação dos corpos, tanto enquanto individuo como enquanto população. É nesse
sentido, por exemplo, que as políticas de redução de danos que, embora calcada em
uma tentativa humanista e não repressivas destinadas ao tratamento do uso de drogas,
ainda se situam no contexto da biopolítica, através da classificação, normalização, e
do exercício de tecnologias de poder fundadas em verdades desenvolvidas pela saúde
e pela segurança pública (ROSA, 2014).
Em uma das entrevistas realizadas com um dos juízes de direito de Ponta
Grossa foi possível localizar não somente a incidência da biopolitica, mas um
caminho investigativo para a relação do empreendedorismo moral, o
empreendedorismo de si e o controle do outro:
“Sabe o que que funciona? Eu não sou evangélica, nem nada, mas para a camada
social pobre funciona, por que? Ele sai das drogas, se você for ver quem são esses
pastores de igreja evangélica é esse pessoal que largou as drogas...., então importa a
forma de evangelizar, funciona. Um caminho, para o pessoal, principalmente para a
camada pobre largar a droga é evangelizar. Acreditar em alguma coisa, a partir do
momento que ele acredita que exista um deus – independente da filosofia e da
religião – ele para de se drogar, ele vai dizer: não, eu não posso fazer isso com o meu
corpo (Juiz). Pensar na economia política e na relação entre saber/poder, possibilita-nos
pensar em que instituição, ou em quais condições nasceram às verdades utilizadas
pelos empreendedores morais e a probabilidade de governamentalização dessas
verdades.
Este tipo de reformismo moral sugiere el acercamiento de una clase dominante a los
menos favorecidos en la estrucutura económica y social. Generalmente, los cruzados
morales quieren ayudar a los que están por debajo de ellos a alcanzar un estatus
major (BECKER, 2009: 169).
Como as cruzadas promovidas pelos empreendedores morais estão dominadas
pelos níveis mais altos da estrutura social, significando que o poder, que deriva da
legitimidade de sua posição moral se soma ao poder que deriva de sua posição social
superior (BECKER, 2009), a produção de verdades soma-se a outros interesses, sendo
por esse motivo que os empreendedores morais conseguem largo apoio de outros
sujeitos cujo o interesse vai além da salvação. “Así, algunos industriales apoyaron la
Prohibición porque sintieron que les garantizaría una fuerza laboral más manejable”
(BECKER, 2009: 169).
Os empreendedores morais, afim de ampliar a verdade proposta, precisam
aliar-se a outros saberes/poderes, como o dos magistrados para que, de fato, possam
desenvolverem leis admissíveis e assim dar legitimidade à cruzada. Todavia, o mais
importante não é a utilização dos saberes jurídicos e/ou psiquiátricos, mas sim a
necessidade que os cruzados têm de recorrer a serviços profissionais para o
desenvolvimento de normas apropriadas em uma forma especificamente legal. Nesse
sentido foi possível constatar, em nossa pesquisa de campo, a fusão de um discurso
psiquiátrico/psicológico com a moral religiosa. As entidades citadas nas entrevistas
que promovem acordos com o judiciário na tentativa de recuperação de usuários de
drogas, são de cunho religioso, somados a supostos elementos terapêuticos e
“científicos”.
Juiz: Eu agora que estou mais afeta a essa área e tenho me preocupado muito com a
questão da droga, eu ando lendo coisas fora da minha área, a gente acaba virando
meio psicólogo/psiquiatra (...)
Entrevistador: Um livro para indicar?
Juiz: O ultimo que eu li é de um cara que tem uma comunidade terapêutica, o nome
da comunidade é Ave Cristo e tem um site: avecristo.com.br. É um delegado que
trata drogados em Birigui. Não lembro o nome do livro, acho que é “filhos da dor” 6
.
Foi possível visualizar em todas as entrevistas realizadas com os juízes de
direito de Ponta Grossa, a construção de argumentos mesclando verdades
religiosas/morais/científicas. Além das indicações de livros religiosos/terapêuticos
sobre as drogas, os “especialistas” sobre o tema eram sempre pastores e ou
pastores/psicólogos. Talvez a característica parecerista da área jurídica reforce ainda
mais a luta pela verdade através da mescla de diversos saberes conforme seu interesse
que, inclusive escapam aquelas bases que deveriam ser utilizadas por esses
6 Essa comunidade terapêutica tem como proposta: “O Programa de Acolhimento e Tratamento da Ave
Cristo é oferecido gratuitamente, em regime de internação voluntária, por meio de abordagem de
totalidade do ser humano: “Corpo e Alma”. O saber científico da Psicologia, Neurologia do
Comportamento, Psiquiatria e Espiritualidade, associado às experiências da Equipe Técnica e
voluntários da Ave Cristo, resultaram em significativa metodologia que tem contribuído para oferecer
especial Projeto de Vida às pessoas vitimizadas pelas drogas” (CASA DO CAMINHO AVE CRISTO -
21 ANOS RECUPERANDO VIDAS, 2014).
operadores do direito: o conhecimento científico.
Crimes, Criminosos e Criminalizadores
Como a principal característica do neoliberalismo estadunidense é a busca
permanente pela generalização da forma econômica de mercado por todo o sistema e
corpo social que resulta tanto no investimento do capital humano quanto no controle
contínuo dos atos tidos como criminosos, as análises e demais mensurações referentes
ao capital investido ao longo da vida permearão a própria quantificação do valor que
essas vidas possuem do ponto de vista econômico de mercado. Portanto, as relações
sociais analisadas pelos neoliberais estadunidenses não só partem de perspectivas
exclusivamente econômicas amparadas no investimento individual do capital humano,
como também procuram proporcionar retornos financeiros aos seus investidores.
Esta forma geral de mercado que vigora nos Estados Unidos se torna cada vez
mais uma ferramenta neoliberal de discriminação, na medida em que as análises dos
comportamentos não-econômicos que ocorrem por meio da inteligibilidade
econômica se encontram com as críticas e as avaliações das ações do poder público
em termos de mercado, culminando com a elaboração de noções referentes tanto à
criminalidade quanto ao funcionamento da justiça penal.
A preocupação com a lei baseada na ideia de que um sistema penal só
funciona de forma efetiva se pressupor uma legislação boa, acaba sendo intensificada
e incorporada como verdade através da utilização de termos econômicos decorrentes
da mensuração dos custos do combate àquilo que se caracteriza como crime. Assim, o
discurso penal utilizado pela perspectiva neoliberal estadunidense pressupõe cálculos
de utilidade decorrentes da minimização de custos referentes ao controle sobre as
consideradas práticas criminais.
A lei é a solução mais econômica para punir devidamente as pessoas e para que essa
punição seja eficaz. Primeiro, vai-se definir o crime como uma infração a uma lei
formulada; logo, não há crime e é impossível incriminar um ato enquanto não há uma
lei. Segundo, as penas devem ser estabelecidas, e estabelecidas de uma vez por todas,
pela lei. Terceiro, essas penas devem ser estabelecidas, na própria lei, de acordo com
uma gradação que acompanha a gravidade do crime. Quarto, o tribunal penal
doravante só terá uma coisa a fazer: aplicar ao crime, tal como foi caracterizado e
provado, uma lei que determina de antemão que pena o criminoso deve receber em
função da gravidade do seu crime. Mecânica absolutamente simples, mecânica
aparentemente óbvia, que constitui a forma mais econômica, isto é, menos onerosa e
mais certeira, para obter a punição e a eliminação das condutas consideradas nocivas
à sociedade. A lei, o mecanismo da lei foi adotado no poder penal, creio eu, no fim
do século XVIII, como princípio de economia, no sentido ao mesmo tempo lato e
preciso da palavra “economia”. O homo penalis, o homem que é penalizável, o
homem que se expõe à lei e pode ser punido pela lei, esse homo penalis é, no sentido
estrito, um homo œconomicus. E é a lei que permite, precisamente, articular o
problema da penalidade com o problema da economia (FOUCAULT, 2008b: 341).
Toda a série de deslocamentos referentes à transição do homo œconomicus ao
homo legalis, ao homo penalis e, finalmente ao homo criminalis decorrem de uma
análise econômica não apenas do crime, mas da criminalidade. A necessidade e a
gradação da punição, bem como a aplicação efetiva da lei penal, só passaram a ser
dotadas de sentido na medida em que a punição deixou de operar por meio do ato tido
como criminoso, passando a operar através do próprio indivíduo em decorrência de
seu ato que deveria ser utilizado como exemplo aos outros possíveis “infratores”. Este
equívoco entre a forma de lei que define uma relação com o ato e a aplicação efetiva
da lei só pôde se tornar efetivo, do ponto de vista econômico, ao visar o indivíduo.
A aplicação penal por meio da economia de mercado, fundamentada no
liberalismo, conseguiu alcançar os maiores sonhos de toda a ciência política do século
XVIII, possibilitando que o direito fosse construído e aplicado inteiramente a partir de
cálculos de utilidade. Não obstante, foi preciso manter o problema do homo
œconomicus que, ao ultrapassar as barreiras expostas pelo problema das formas da
estrutura jurídica, reduziu a criminalidade e a delinquência à esfera econômica.
Como o código penal não realizava nenhuma definição substancial, qualitativa
e moral do crime, os neoliberais o trataram basicamente como tudo aquilo que fosse
passível de ser punido pela lei, caracterizando todo ato criminoso como crime. É
interessante observar que tanto a teoria do capital humano quanto à conduta criminosa
possuem objetivos bastante similares, amparados na obtenção de resultados
decorrentes do investimento em ações perpassadas por situações de risco.
(...) o criminoso não é, de forma alguma, marcado ou interrogado a partir de
características, morais ou antropológicas. O criminoso não é nada mais que
absolutamente qualquer um. O criminoso é todo o mundo, quer dizer, ele é tratado
como qualquer outra pessoa que investe numa ação, que espera lucrar com ela e
aceita o risco de uma perda. O criminoso, desse ponto de vista, não é nada mais que
isso e deve continuar sendo nada mais que isso. Nessa medida, vocês percebem que
aquilo que o sistema penal terá de se ocupar já não é essa realidade dupla do crime e
do criminoso. É uma conduta, é uma série de condutas que produzem ações, ações
cujos atores esperam um lucro, que são afetadas por um risco especial, que não é
simplesmente o da perda econômica, mas o risco penal ou ainda o risco da perda
econômica que é infligida por um sistema penal. O próprio sistema penal lidará
portanto, não com criminosos, mas com pessoas que produzem este tipo de ação. Em
outras palavras, ele terá de reagir a uma oferta de crime (FOUCAULT, 2008b: 346).
Para Foucault (2008b), a política penal não tem apenas como princípio
interferir no mercado do crime, como também intervir na oferta do crime, procurando
reduzi-lo e limitá-lo por meio de uma demanda negativa cujo custo, jamais deverá
superar o custo desta criminalidade cuja oferta se busca limitar. Como a sociedade vai
bem com certa taxa de ilegalidade e iria muito mal se procurasse reduzi-la, a questão
essencial da política penal não trata exclusivamente da punição dos crimes, nem
mesmo de quais ações devem ser consideradas como crime, mas sim do que se deve
tolerar como crime.
O problema da droga foi reconhecido por Foucault (2008b) por se tratar não
apenas de um fenômeno de mercado permeado por uma análise econômica, mas
também de um exemplo do funcionamento de certa economia da criminalidade. Por
mais que a circulação da droga no mercado ocorra há alguns anos, até a década de
1970, as políticas de esforço da lei7 visavam exclusivamente à redução da oferta, do
crime e da delinquência em decorrência da droga através da redução de sua
quantidade disponibilizada no mercado. Sendo assim, havia uma busca constante em
desmantelar as redes de distribuição das drogas.
Considerações Finais
A criação do crime é resultado de um processo de estatização dos conflitos
onde o monopólio para suas resoluções é do Estado. Isso implica pensar inicialmente
no processo de normatização centrado no universo jurídico/estatal e segue seus
fundamentos, objetivos e interesses. Assim a normatização baseada em critérios legais
é desenvolvido pelo e para o Estado. Em decorrência desse fato é necessário sempre
pensar na economia política que envolvem os empreendimentos morais (BECKER,
2009) e os saberes utilizados. “Não se trata de um combate “em favor” da verdade,
mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela
desempenha. É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termo
de “ciência/ideologia”, mas em termos de “verdade/poder” (FOUCAULT, 2014:
10).
Por outro lado as normas estabelecida por critérios legais assumem sentidos e
lógicas independentes assim que são convocadas à realidade. O sentido formal da
norma assume um sentido material que é orientado segundos critérios de saber-poder
que no caso da política antidrogas constrói diversos sujeitos/objetos a serem
sujeitados – doentes, anormais, criminosos e inimigos, todos perigosos – e os
sujeitadores/objetos – soldados, heróis, excelências e ilustres cidadãos, todos com fé
7 O esforço da lei é mais do que a simples aplicação da lei. Trata-se de um conjunto de instrumentos
postos em prática para dar ao ato de interdição, fundamentado na formulação da lei, uma realidade
política e social. O esforço da lei deve ser entendido como um conjunto de instrumentos de ação sobre
o mercado do crime que opõe à oferta do crime a uma demanda negativa (FOUCAULT, 2008b: 348).
pública e a chancela do Estado. Por isso estudar a segurança pública através da
aplicação formal da leis – seja as estatísticas criminais, hermenêutica das leis penais
ou através das sentenças criminais – significa abandonar um vasto campo de relações
que dão sentido ao SJC (ROBERT, 2011).
Assim, muito embora a lei de drogas 11.343/06 estabeleça em seu artigo 28 –
destinado ao usuário – um controle diferenciado que impede qualquer possibilidade
de privação de liberdade, ainda permite a intervenção – legal – aos usuários de
drogas. Dessa intervenção é difícil prever o resultado, todavia, basicamente, vai
depender de como é construído o processo de interação, que na falta de elementos
mais profundos para construção das representações sociais acaba sendo formado pelos
elementos externos, características visíveis (GOFFMAN, 1985) que nos casos
analisados pode ser resumidas em: onde, quem e o que. A abordagem de um policial a
um grupo de usuários de drogas segue essa lógica, o trato – “sacolejo”, violência e
abuso ou “vistas grossas”, aconselhamento, apreensão da droga e liberação dos
usuários – ao usuário vai depender de onde foi feita abordagem, em quem foi feita e
qual a droga encontrada.
Assim, com a ampliação e força que os saberes/poderes vão sendo utilizados
como fontes de verdades, utilizadas para não só classificar, mas também para
desenvolver técnicas e instrumentos de controle social, cujo objetivo não é
simplesmente expulsar, ou eliminar os homens da vida social, ou impedir as suas
atividades, justamente o oposto, pois são utilizados para gerir a vida dos homens,
controlar seus atos para utilizá- los ao máximo, sendo assim um objetivo ao mesmo
tempo econômico e político, aumentando o efeito do trabalho, e diminuindo a
capacidade de revolta e de resistência contra as ordens do poder. Desta forma
aumenta-se a utilidade econômica e diminui-se a força política (MACHADO, 1979),
contribuindo através do empreendedorismo moral, para a manutenção das
normalizações, regulamenteções e controles que supostamente ameaçam a segurança
dos indivíduos e populações.
Esse tipo específico de poder, chamado por Foucault de poder disciplinar, que
como as demais formas de poder atua em rede, não é especificamente um instrumento
ou instituto. Contudo, quando verificamos um disciplinamento amparado no
empreendedorismo moral, averiguamos a intesidade de suas consequencias danosas às
sociedades, sobretudo, às suas populações mais pobres e fragilizadas, conforme
verificamos nesse trabalho acerca das representações sociais dos juízes de direito
sobre os “usuários” de drogas ilícitas.
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