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Entre rastros e restos: a imaginação como arqueologia da ...

Date post: 04-May-2023
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Fabio Henrique Ciquini Entre rastros e restos: a imaginação como arqueologia da imagem Doutorado em Comunicação e Semiótica São Paulo 2016
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Fabio Henrique Ciquini

Entre rastros e restos: a imaginação como arqueologia da imagem

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo 2016

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Fabio Henrique Ciquini

Entre rastros e restos: a imaginação como arqueologia da imagem

Doutorado em Comunicação e Semiótica

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica -linha de pesquisa Processos de Criação na Comunicação e na Cultura- sob a orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Junior.

São Paulo 2016

Banca Examinadora

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A minha pequena Alice, inspiração para toda vida e que me ensinou o que

é superar limites.

Este doutorado foi realizado com auxílio do Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e tecnológico (CNPq) pela concessão de bolsa integral

Processo n˚ 140135/2014-6

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq pela concessão de bolsa de estudo, apoio este fundamental para a realização

desta pesquisa

Ao querido mestre e amigo Prof. Dr. Norval Baitello Junior, ao qual agradeço pela

acolhida amigável e leve. Tê-lo como orientador é uma dádiva.

É preciso reconhecer aqueles que foram fundamentais antes mesmo deste trabalho vir à

tona: meu agradecimento aos professores da Universidade Estadual de Londrina, Dirce

Vasconcellos Lopes, Miguel Luiz Contani e Alberto Klein pelos diálogos em tempos de

graduação e mestrado, e por fomentarem em mim o espírito de pesquisador.

Aos professores Amálio Pinheiro e Lucrécia D’Aléssio Ferrara, pelas aulas inspiradoras.

A Profa. Malena Contrera, pelo pensamento transgressor.

Aos professores presentes na banca de qualificação Profa. Dra. Christine Mello e Prof.

Dr. Maurício Ribeiro da Silva pela leitura criteriosa e contribuições fundamentais à

pesquisa.

A minha querida companheira Danielly, que pacientemente me apoiou desde o início desta

jornada partilhando angústias e alegrias, nunca deixando de me incentivar.

Sou grato também aos familiares de Londrina, pelos ensinamentos de vida e incentivo.

Aos queridos amigos do CISC e do Arquivo Vilém Flusser São Paulo, em especial Diogo

A. Bornhausen, Camila L. Garcia e Luiza S. Amaral, junto aos quais caminhei nestes

últimos anos partilhando experiências e principalmente, aprendendo.

Aos deuses e anjos.

Paul Klee Angelus Novus (1920) Desenho à nanquim, giz pastel e aquarela sobre papel

RESUMO

O objetivo central desta pesquisa é analisar se a imaginação pode se configurar como ferramenta arqueológica sobre a imagem em seus saturados ambientes midiáticos. O trabalho parte do cenário midiático do Google Street View e afirma que a inflação e disseminação contínua das imagens por meio de seus aparatos provoca um anestesiamento dos sentidos. O corpus de análise selecionado foi o ato fotográfico do fotógrafo alemão Michael Wolf na série intitulada Street View, na qual o autor registra, via tela do computador, imagens do site Google Street View. Por meio deste objeto, analisa-se o caráter inventivo e de escavação da imagem presente na dinâmica, o qual sugere uma natureza arqueológica neste ato fotográfico. Isso posto, a ideia de uma arqueologia sobre a imagem é aqui evocada no sentido de uma percepção aprofundada, que aponte tanto rastros passados escondidos nas profundezas da imagem quanto prospecte elementos que a sinalizem como reserva de um porvir. Justifica-se, dessa forma, a necessidade dessa visada arqueológica como modo de superar a visualidade superficial tão celebrada nas imagens midiáticas, e a hipótese sugerida é a de que a ferramenta arqueológica capaz dessa escavação sobre a imagem é a imaginação, a qual operaria como ponto de equalização frente aos saturados ambientes visuais midiáticos. A metodologia adotada foi a de um movimento de aproximação ao objeto, no qual realizou-se tanto recortes oblíquos, quanto visadas mais amplas, buscando-se considerar a Arqueogenealogia de conceitos e teorias. A pesquisa aborda aspectos da Teoria da Imagem em Walter Benjamin, Aby Warburg, Hans Belting e Norval Baitello Jr., sobre os ambientes midiáticos e o modo como as imagens em excesso neles embotam a percepção, dialogou-se com reflexões da Teoria da Mídia em autores como Vilém Flusser, conceitos de reino do lixo e escalada da abstração, Dietmar Kamper (órbita do imaginário e força da imaginação) e Malena Contrera (mediosfera). A respeito do conceito de imaginação, argumentamos com base em Bachelard e, sobre o pensamento por imagens, utilizamo-nos das apreciações de Arnheim e Damásio. Como resultado, portanto, salientamos o modo como a imaginação se configura como arqueologia da imagem baseada em três aspectos: pensamento por imagens, inconsciente ótico e distração. Assim, reafirma-se o papel fundamental da imaginação, e portanto do corpo, em sua relação antropológica com as imagens. Palavras-chave: Google Street View; Arqueologia da Imagem; Imaginação; Imagem Midiática; Pensamento por Imagens.

ABSTRACT The main objective of this research is to examine whether imagination can be configured as an “archaeological tool” over the image in its saturated media environments. The work begins considering Google Street View as its media environment and we affirm that inflation and continuous dissemination of images by its apparatuses causes a anaestheticization of senses. The selected corpus of analysis was the photographic act of German photographer Michael Wolf in the series titled Street View, in which author takes photos, through computer screen, from Google Street View site. By this object, one analyzes the inventive and delved character of this photographic dynamic over the images, which one suggests an archaeological nature in this photographic act. By this point, the idea of an archeology of image is here evoked in the sense of depth perception, which points not only to past traces hidden in the depths of the image, but also prospect signal elements that indicate future tracks in it. Therefore, one justifies the need for this archaeological sight, as a way to overcome the celebrated superficial visuality in mediatic images, and our suggested hypothesis is that the archaeological tool, which is able to delve on the image is imagination. Consequently, imagination would operate as a point of equalization in front of saturated visual media environments. The methodology adopted was an approximation to the object, which took place oblique cuts and a broader target, one considers for an Archeogenealogy of concepts and theories. The research approaches aspects of Image Theory in Walter Benjamin, Aby Warburg, Hans Belting and Norval Baitello Jr., about media environments and how images in excess dulls perception, there was discussion with reflections of Theory of Media in authors like Vilém Flusser – concepts of reign of garbage and escalating of abstraction - Dietmar Kamper (imaginary orbit and force of imagination) and Malena Contrera, concept of mediasphere. Regarding the concept of imagination, one argues based on Bachelard, and about visual thinking we consider reflections from Arnheim and Damasio. As a result, therefore, we emphasize how imagination is configured as an archeology of image based on three aspects: thought by images, optical unconscious and distraction. Thereby, one reaffirms the fundamental role of the imagination, and thus the body, in its anthropological relationship with images. Key-words: Google Street View; Archeology of Image; Imagination; Mediatic Image; Thought by Images.

LISTA DE FIGURAS Figura 1- Carro do Google Street View .............................................................................. 19Figura 2- Trekker do Google Street View ........................................................................... 19Figura 3- Trolley do Google Street View ............................................................................ 20Figura 4- Motoneve do Google Street View ....................................................................... 20Figura 6- Coleta de imagens ............................................................................................... 21Figura 7- Alinhamento de imagens ..................................................................................... 21Figura 8- Como transformar fotos em panoramas de 360˚ (I) ............................................ 22Figura 9- Como transformar fotos em panoramas de 360˚(II) ............................................ 22Figura 10- The real toy store (instalação) ........................................................................... 25Figura 11- Architeture of density ........................................................................................ 25Figura 12- Frame do documentário Peeping. Michael Wolf procura imagens no GSV. .... 26Figura 13- Frame do documentário Peeping. Michael Wolf fotografando. ....................... 27Figura 14- a Series of unfortunate events (1) ..................................................................... 29Figura 15- a series of unfortunate events (2) ...................................................................... 29Figura 16- Paris (1) ............................................................................................................ 30Figura 17- Paris (2) ............................................................................................................ 30Figura 18- Eiffel Tower (1) ................................................................................................. 31 Figura 19- Eiffel Tower (2) ................................................................................................. 31 Figura 20- Manhattan (1) ................................................................................................... 32 Figura 21- Manhattan (2) ................................................................................................... 32Figura 22- Fuck you (1) ...................................................................................................... 33Figura 23- Fuck you (2) ...................................................................................................... 33Figura 24- Portraits (1) ...................................................................................................... 34 Figura 25- Portraits (2) ....................................................................................................... 34Figura 26- Interface (1) ....................................................................................................... 34Figura 27- Interface (2) ....................................................................................................... 35Figura 28- Transparent city(1) .......................................................................................... 36 Figura 29-Transparent city( 2) ........................................................................................... 36Figura 30- Ouroboros ....................................................................................................... 115 Figura 31-Anel Benzênico ................................................................................................ 115Figura 32- Sala de leitura da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg (Biblioteca

Warburg de Ciências da Cultura ................................................................................ 120Figura 33- Detalhe do painel 48 do Atlas Mnemosyne. Fortuna. Símbolo do conflito

próprio do homem que conquista sua liberdade (comerciante). ............................... 120Figura 34- Esquema de disposição das imagens para ilustrar conferência sobre astrologia

orientalizante. ............................................................................................................. 121

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO __________________________________________________________ 11

1DAESTRELAAOPIXEL,OUDAIMAGEMMÍTICAÀMIDIÁTICA__________________ 171.1CartografiafotográficanoGoogleStreetView________________________________________________181.2Embuscadeimagensnasimagens____________________________________________________________241.3Escanearecortar _______________________________________________________________________________351.4Aimagemcomoduplo__________________________________________________________________________371.5Aestrela,aorientaçãoeaimagemmítica_____________________________________________________421.6Imagemdeculto ________________________________________________________________________________441.7Imagemartística________________________________________________________________________________461.8Imagemereprodutibilidadetécnica __________________________________________________________481.9Opixel,adesorientaçãoeaimagemmidiática_______________________________________________501.10Imagemmidiáticaeasubtraçãodoscorpos ________________________________________________551.11Aescadapositivaeoespaçoimaginado_____________________________________________________571.12Contaminaçõeseintersecções________________________________________________________________601.13Ambiênciadetensionamentossimbólicos__________________________________________________62

2IMAGINAÇÃOCOMOARQUEOLOGIADAIMAGEM___________________________ 682.1DeKepleraKamper,oudaórbitaplanetáriaàórbitaimaginária __________________________692.2Aórbitaimaginária_____________________________________________________________________________702.3Mediosferaeórbitaimaginária________________________________________________________________732.4Dejetoseapremênciadeumaarqueologia___________________________________________________752.5Entrerastroserestos___________________________________________________________________________792.6Topografiairregularehápticadaimagem____________________________________________________832.7Rasgaredialetizar______________________________________________________________________________872.8Nasdobras,asespacialidades__________________________________________________________________902.9TempoespacializadoXinstantedecisivo_____________________________________________________922.10Arqueologiacomoduraçãoeduraçãocomoarqueologia__________________________________972.11Quebrarespelhosevoltaraocorpo_________________________________________________________100

3OPENSAMENTOPORIMAGENS _________________________________________ 1033.1Imaginaçãocomoforçacorporal _____________________________________________________________1043.2Vigiaresentir__________________________________________________________________________________1073.3Aimagemcomopensamento_________________________________________________________________1103.4AserpentedeKekulé__________________________________________________________________________1133.5AserpentedeWarburg________________________________________________________________________1163.6AserpentedeWolf_____________________________________________________________________________1223.7OInconscienteótico,afrestaeorastro______________________________________________________1243.8Orastrocomolapsoeofotógrafocomoesgrimista_________________________________________1293.9AimagemcomoflordeLótus_________________________________________________________________1313.10Adistraçãonaduração_______________________________________________________________________1323.11Sentarsemsedar_____________________________________________________________________________135CONSIDERAÇÕESFINAIS_________________________________________________ 138

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS ___________________________________________ 145

11

INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto de reflexões e indagações que, de forma contínua, ocorreram

nos últimos quatro anos. Sua germinação, no entanto, iniciou-se há dez anos, ainda como

trabalho de conclusão de curso, quando estudamos a relação entre aspectos da visualidade

do movimento punk com a moda daquele período, e ampliou-se como dissertação de

mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na Universidade Estadual de

Londrina. Dessa forma, observou-se que o complexo tema da imagem já se fazia presente

nesses estudos anteriores tal como se faz basilar para esta pesquisa de doutoramento.

Nesse âmbito, a problemática inicial que nos instigou – antes mesmo da proposição

do projeto de pesquisa vir à tona – foi: como lidar/perceber as imagens em um cenário cada

vez mais prenhe de visualidade? Obviamente que, após discussões sobre o projeto de

pesquisa, bem como reflexões instauradas no decorrer de leituras e dos cursos

frequentados, tal questão inicial foi lapidada, complexificou-se e articulou-se ao objeto de

estudo selecionado. Assim, o problema de pesquisa desta tese fundamenta-se em duas

perguntas: como é possível lidar mais harmonicamente com a imagem no contemporâneo

em plena era de sua desmesura? E, estando o corpo afetado diretamente pelo processo de

hipertrofia da visualidade contemporânea, porém sendo ele fundamental no processo de

produção e transformação das imagens, como é possível recuperar sua presença ativa neste

processo? Trata-se, como é sabido, de indagação importante já nas primeiras décadas do

século XX, cuja reflexão inspirou estudos fundamentais de autores como Walter Benjamin,

Guy Debord, Daniel Boorstin, Jean Baudrillard, Vilém Flusser, Aby Warburg, Dietmar

Kamper e de professores deste Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e

Semiótica, em especial Norval Baitello Jr., orientador desta pesquisa. Assim, em

consonância com a problemática de pesquisa, o objeto de estudo selecionado foi o ato

fotográfico empreendido pelo fotógrafo alemão Michael Wolf na série street view, em que

o autor fotografou, via tela do computador, imagens do site Google Street View.

Considerando, portanto, o problema da pesquisa e o objeto a ser investigado, a

hipótese sugerida é a de que a imaginação pode se constituir como uma escavação

arqueológica sobre a imagem, superando sua visualidade superficial e operando como

ponto de equalização frente aos excessivos ambientes visuais contemporâneos. Nesse

prognóstico conjectural, salientaremos o modo como isso tenderia a se desenvolver sob três

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aspectos correlatos e envolvidos no objeto analisado: pensamento por imagens,

inconsciente ótico e distração, os quais, acreditamos, contribuiriam para melhor

caracterizar essa dinâmica arqueológica e ampliariam o entendimento de que a imaginação

é uma força do corpo, conforme afirma Dietmar Kamper (1997, 2002a, 2002b, 2016).

Para além de uma pesquisa que vise apenas a comprovar sua hipótese, este trabalho

busca articular ao seu prognóstico um viés crítico sobre os conceitos, lastreando-os em

distintas nuances, projetando discussões, e assim, fomentar debates em torno da imagem na

atualidade, denominada neste trabalho de midiática. Sob essa perspectiva, na primeira parte

do capítulo Da estrela ao pixel, ou da imagem mítica à midiática, apresentamos o objeto

contextualizando-o ao problema da pesquisa – o ato fotográfico de Michael Wolf e seu

“método” de fotografar em meio à gigantesca tapeçaria imagética do Google Street View.

Nesse sentido, primeiramente elaboramos um panorama sobre o que é a ferramenta Google

Street View, como funciona e de que modo se desenvolvem as etapas subsequentes ao

registro automático das fotografias. Destaca-se a importância de configurar tal quadro, pois

ele encaminha a reflexão sobre características dos ambientes midiáticos contemporâneos,

como a quantidade exacerbada de imagens com intuito informativo e de entretenimento.

Na abordagem relacional entre a prática fotográfica do autor e a imagem midiática, nosso

eixo de investigação privilegia um viés antropológico. Isso posto, na segunda parte do

primeiro capítulo, dissertaremos sobre o que é a imagem e, diante desta complexa tarefa,

enfatizaremos sua dimensão cultural, a qual projeta diferentes “funções” da imagem e seus

distintos ambientes, tal como afirma Baitello Jr. sobre imagem mítica, cúltica, artística e

midiática. No encerramento do capítulo, refletiremos sobre possíveis consequências

socioculturais advindas do excesso de produção e disseminação de imagens, como a

constante “transformação” do mundo quadridimensional em superfície visual, e

projetaremos contaminações, intersecções e tensionamentos simbólicos entre imagens de

distintas épocas e ambientes, já que a divisão acima mencionada sobre o conceito não

objetiva compartimentar isoladamente significações.

Diante de ambientes midiáticos intensamente povoados pela imageria

contemporânea, instala-se, como diagnosticado por Kamper (2002), uma incapacidade

premente dos olhos em acompanhar a ubiquidade de imagens fragmentárias, velozes e

repetitivas, que, não totalmente consumidas e/ou mal digeridas, amontoam-se nas mídias

formando dejetos imagéticos, os quais provocam crescente embotamento perceptivo. Ante

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esse cenário, portanto, aprofundaremos no capítulo Imaginação como arqueologia da

imagem, a reflexão iniciada no capítulo anterior a respeito das ambiências midiáticas

atuais impregnadas de visualidade, sob os conceitos de imaginário (Kamper, 2002, 2016)

e mediosfera (Contrera, 2010), os quais versam, grosso modo, sobre como as imagens

cerram nosso entorno e acossam nossa imaginação. Após essa etapa, estabeleceremos uma

metáfora entre imaginário/mediosfera e a reflexão de Vilém Flusser (1972) sobre o Reino

do Lixo, de modo a considerar que grande parte do conteúdo daquelas estruturas –

imagens inconsumidas e/ou mal digeridas – pode configurar-se como resíduo. A partir da

exposição crítica deste panorama e seu vínculo ao objeto de estudo, emergem as seguintes

questões: De que forma a imaginação poderia auxiliar nesse cenário de embotamento

perceptivo? Poderia ela configurar-se como uma arqueologia da imagem?

Nesse âmbito, considera-se a dinâmica fotográfica estabelecida por Wolf e na qual

se destaca o desvendar de imagens nas próprias imagens. O autor seleciona áreas

específicas das fotos do Google Street View, atentando-se meticulosamente aos detalhes.

Rasga a superficialidade imanente das imagens, busca rastros recônditos e visualidades

marginais que se aninham nas dobras da visualidade e os fotografa. Projetamos, assim,

com base na análise do objeto, um gesto no qual Wolf localiza e é também localizado por

rastros nas/das imagens e vislumbramos, dessa forma, um fotografar plasmado em ação

imaginativa que escava nas abissalidades. Descobrem-se imagens nas próprias fotografias

do Google, o que, acreditamos, caracterizaria gesto arqueológico de visualização

compreendido entre a busca de rastros passados e a prospecção de novas imagens, uma

arqueologia do futuro (Fontcuberta, 2012), que valorizaria a imaginação e denotaria a

imagem como uma reserva do porvir. Dessa forma, no segundo capítulo,

investigar-se-á de que forma o ato fotográfico de Wolf pode se configurar como escavação

arqueológica entre rastros, e de que modo essa dinâmica auxiliaria a modular a relação

contemporânea entre homem e imagem.

Com base na argumentação apresentada nos capítulos 1 e 2, no terceiro e último

capítulo da pesquisa intitulado O pensamento por imagens, busca-se melhor compreender

como e por quais meandros a imaginação poderia se constituir como arqueologia da

imagem. Sob essa perspectiva, empregaremos uma visada antropológica e apoiamo-nos

em autores como Dietmar Kamper (2016), Bachelard (2001) e Wulf (2014), a fim de

delinear a imaginação como força corporal. Assim, faz-se necessário primeiramente

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rememorar a concepção de Hans Belting (2006) de que as imagens nascem no corpo e

perfazem um trânsito fluido e ambivalente entre o ambiente interno e seus suportes

externos, como céu, caverna, papel, tela, etc. Ou seja, a imagem está em devir nos espaços

entre, e a força que age nessas transmutações é a imaginação, de origem endógena,

portanto, corporal.

No subitem vigiar e sentir, enfatizaremos que, atrelada a essa percepção corporal

imaginativa, está um olhar meticuloso do fotógrafo que perscruta detalhes e dimensões

recônditas na imagem. Assim, afirmamos que Wolf emprega a visão de forma sagaz,

transcendendo o olhar que se conforma à visibilidade imanente em um olhar que se

confronta com visualidades marginais, sente rastreando e rastreia sentindo nas filigranas

da imagem. Trata-se de olhar escaneador potencializado pelo inconsciente ótico

(Benjamin, 2012), uma percepção por apaixonamento (pathos) que possibilita e

desencadeia mais facilmente a irrupção mental de imagens, ou seja, vislumbra-se um

possível trânsito entre percepção acurada externa (exógena) e o fluir de certa dinâmica

interna (endógena). Diante de tal perspectiva que vincula uma percepção mais acurada e o

emergir intempestivo de imagens, analisaremos, baseados na ideia de Damásio (2015)

sobre o pensamento como fluxo de imagens, a acepção de um pensar por imagens que não

se configura strictu sensu como racionalidade, mas trata-se antes de um pensar por e sentir

através da imagem um deixar-se levar ao sabor de suas livres relações associativas.

Consideraremos, portanto, pensamento por imagens como um fluxo da imageria corporal,

sem amarras e no qual se evocam imagens polissensoriais que, além de visuais, podem ser

táteis, sonoras, musculares e somatossensitivas. Assim, pretende-se com essa abordagem

relacional entre o pensar por imagens, inconsciente ótico e distração caracterizar melhor

uma arqueologia imaginativa sobre a imagem e, assim, contribuir também com o

entendimento de que a imaginação é uma força corporal.

Faz-se importante ressaltar que, mesmo considerando um objeto de estudo

específico – o ato fotográfico de Michael Wolf na série intitulada Street View – e sua

relação com o ambiente midiático contemporâneo, esta pesquisa se esquivará de uma

análise estanque e fetichizada do objeto, mas ampliará a hipótese de imaginação como

arqueologia da imagem, refletindo e considerando-a em relação a um cenário midiático

mais ampliado, a órbita do imaginário, conforme descreveremos no desenvolver do

trabalho.

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A investigação que adotamos nos parece oportuna na abordagem em relação à

imagem e ao objeto selecionado. Estando aquela em contínuo devir, incorporando

elementos e amplificando-se ambientalmente, empregaremos o método de campo de

observação, configurado como movimento de aproximação ao empírico. Tal como em um

sítio arqueológico – ambiente caro a esta pesquisa –, balizamos áreas e delimitamos

recortes específicos, que, no entanto, puderam ser ampliados ou reduzidos conforme o

olhar que se pretendia ao objeto. Como no espaço arqueológico, sabe-se que,

independentemente do tamanho do objeto encontrado, todos os rastros são fundamentais à

compreensão dos fenômenos. É nesse diapasão de Arqueogenealogia (Severino, 2007)

que a metodologia desta pesquisa se faz, recolhendo rastros, considerando teorias e

conceitos e os colocando em uma relação síncrono-diacrônica com o objeto.

Em todo processo de criação – obviamente também na produção de uma tese –

sabe-se que as escolhas são determinantes para a caracterização do produto final. Assim

afirmamos, pois, sendo esta pesquisa um trabalho de natureza bibliográfica e inserido no

vasto campo da comunicação, obviamente que assuntos correlatos e autores que poderiam

contribuir foram aqui pouco abordados ou mesmo esquecidos no escopo de

fundamentação teórica. Nesse sentido, alerta-se que esta tese não projetou abordagens

sobre a imaginação em relação ao campo das chamadas novas mídias nem tampouco

discorreu sobre políticas colaborativas entre interface e usuário, nomadismos tecnológicos

ou cultura da mobilidade. Afastamo-nos também de uma abordagem celebrativa sobre o

fato – com certo ar modernoso – de Wolf fotografar sentado em frente ao computador, o

qual, sob esse viés, poderia ser considerado como uma expressão futura de cultura da

conectividade e de fotografia híbrida. Esquivamo-nos, por último, de vincular o objeto de

pesquisa a uma reflexão sobre o eventual caráter artístico e seus possíveis desdobramentos

estéticos.

Distanciando-se, assim, de estudos sobre aparatos e suas possíveis novidades

linguageiras que surgem na atualidade, nos interessou abordar nesta tese a questão da

imagem em face da sua proliferação excessiva em relação com o objeto da pesquisa.

Assim, ante a reflexão que se apresentará, objetiva-se, sobretudo, reconsiderar o papel

ativo e fundamental da imaginação, portanto do corpo, nos processos comunicativos, pois,

como afirmou Casey (1974) reside no ato imaginativo a possibilidade de se compreender

16

as imagens, o que de certa forma é uma derivação da célebre frase de Harry Pross (1972)

de que “toda comunicação começa e termina no corpo”1.

1

“Toda comunicação humana começa na mídia primária, na qual os indivíduos se encontram cara a cara, corporalmente e imediatamente, e toda comunicação retorna para lá” (Pross, 1972. p. 128). Citado a partir de Menezes, 2015.

17

1 DA ESTRELA AO PIXEL, OU DA IMAGEM MÍTICA À MIDIÁTICA

“Adora como deus supremo o Uraniano que forma a substância dos astros, das almas e dos espíritos. Vê! Num só dos meus raios, milhares de mundos rolam. Em toda parte teu olhar descobre, para além desse ínfimo universo em que a Terra pende de sua corrente, esferas, fogos multicores, mais numerosos que as vagas dos rios ou as folhas das florestas. E essas esferas colossais, por sua vez, voam, atraídas por outras esferas, que outras esferas ainda, girando entre suas chamas de fósforo e seus tufões borrascosos, arrebatam na dança sem fim de sua eterna alegria” Élémir Bourges, poeta simbolista francês.

Ó imaginativa que por vezes Tão longe nos arrasta, e nem ouvimos As mil trombetas que ao redor ressoam; Que te move, se o senso não te excita? Move-te a luz que lá no céu se forma Por si ou esse poder que a nós te envia Dante Alighieri – Divina Comédia

Neste capítulo, abordaremos inicialmente nosso objeto de estudo e o

relacionaremos ao conceito de imagem que será empregado na pesquisa. Sob esse ponto de

vista, o capítulo se dividirá em duas partes: na primeira, coloca-se o leitor a par do objeto

envolvido, bem como seu ambiente e contexto; assim, discorreremos sobre o Google Street

View2, origem, pressupostos e sua relação com o processo fotográfico empenhado pelo

fotógrafo alemão Michael Wolf, que, de forma geral, consiste em fotografar imagens do

site GSV.

Na segunda parte, refletiremos sobre o conceito de imagem tendo como escopo

uma abordagem antropológica-histórica que o complexifique. Assim, traçar-se-á um

possível percurso antropológico da imagem, atentando para suas modulações em mítica,

cúltica, artística e midiática e suas hibridações. Paralelo ao conceito de imagem,

discutiremos o esquema proposto por Vilém Flusser de “escada da abstração”, de forma a

problematizá-lo juntamente com o objeto da pesquisa a fim de elencar questionamentos

que perscrutem caminhos possíveis para o desenvolvimento da tese.

2 Utilizaremos, a partir deste ponto do texto, a abreviação GSV para referenciarmos o Google Street View.

18

1.1 Cartografia fotográfica no Google Street View

Na fábula de Borges Do rigor da Ciência3, cartógrafos de um império produzem

mapas com tamanha perfeição, a ponto de estes serem do próprio tamanho do território,

expressando - como afirma Baudrillard (1991, p.8) sobre a mesma alegoria – “uma

coextensividade ideal do mapa e do território”. De certa forma, a épica tarefa de

cartografar perfeitamente territórios, como descrita na fábula do escritor argentino, é

atualmente desempenhada pelo projeto GSV, cuja intenção primaz é mapear o planeta por

meio de fotografias.

Ainda no ano de 2003, conforme explica Levy (2012, p.427), o Google compra a

empresa de mapeamento por satélite Keyhole e, a partir disso, desenvolve produtos que

se utilizam de geodados. Em 2006, surge o Google Maps e, oriundo deste, em 2007,

nasce o GSV “como consequência da fome onívora por geodados” (LEVY, 2012, p.427).

No seu ano de estreia, a ferramenta exibia timidamente fotografias de cinco cidades

americanas; no ano seguinte, mais de 30 países já contavam com o serviço de

mapeamento fotográfico4.

Atualmente, as fotos são obtidas por quinze câmeras fotográficas – com sensores

de GPS para georreferenciamento – afixadas em uma espécie de tripé localizado

aproximadamente a dois metros acima do veículo que o carrega. Inicialmente, apenas

carros transportavam as câmeras fotográficas, no entanto, com a expansão do projeto e a

impossibilidade de os veículos entrarem em ambientes de difícil acesso, as câmeras foram

também afixadas em motos, bicicletas, barcos, motoneve, camelos e transportadas por

pessoas e mergulhadores no fundo do mar. Dessa maneira, percorrem-se ruas, avenidas,

estradas, passagens, vales, desertos, campos nevados, fundo do oceano, aeroportos,

shoppings, arenas esportivas, museus, enfim, quaisquer lugares que possam ser registrados

para a confecção dos mapas imagéticos.

3 In “História Universal da Infâmia”. Tradução de Davi Arrigucci Jr. Companhia das Letras, São Paulo, 2012. 4 Sabe-se que, além do serviço de mapeamento fotográfico, o GSV se utiliza de geodados comprados de governos nacionais e regionais que permitem ao usuário doméstico, quando navega pela ferramenta, deparar-se involuntariamente com sugestões de serviços como restaurantes entre outros. A despeito da complexidade e multiplicidade de dados contidos no GSV, nos interessa, sobretudo para o desenvolvimento da pesquisa, a capacidade deste ferramental em mapear fotograficamente.

19

Conforme os veículos (ou pessoas) do Google andam, as câmeras digitais

fotografam automaticamente e em intervalos regulares, registrando imagens em

angulações de até 290º na vertical e 360º na horizontal, que depois são alinhadas e

“costuradas” por softwares que também suavizam a transição entre as imagens e simulam

o efeito estereoscópico5 de tridimensionalidade para a exibição no site e no aplicativo.

Dessa forma, quando os acessamos, é possível procurar por ursos polares na tundra

canadense, visitar a Estátua da Liberdade ou um beco de Nova York, as falésias da ilha

de Sardenha, o ambiente subaquático de Fernando de Noronha, grandes museus e até

explorar a vila do Papai Noel na Finlândia, tudo mediado pelas fotografias do GSV.

Figura 1- Carro do Google Street View

Fonte: Google (2016)

Figura 2- Trekker do Google Street View

Fonte: Google (2016)

5 No capítulo 2 abordaremos de forma mais aprofundada a estereoscopia no GSV.

20

Figura 3 - Trolley do Google Street View

Fonte: Google (2016)

Figura 4- Motoneve do Google Street View

Fonte: Google (2016)

Figura 5- Triciclo do Google Street View

Fonte: Google (2016)

Atualmente, segundo informações do próprio Google em seu portal6, o projeto está

em mais de 65 países, em todos os continentes, e foram percorridos mais de 11 milhões de

quilômetros para o registro das fotografias. Tão colossal quanto a quilometragem

percorrida é a quantidade de imagens e de dados gerados, na ordem de 20 petabytes (1

6 Os dados aqui inseridos referem-se a 03 de janeiro de 2016. Após fevereiro deste mesmo ano, o Google indisponibilizou as informações sobre o Street View.

21

petabyte = 1 milhão de gigabytes). A fim de aprimorar a interface de uso, o GSV integra,

desde o segundo semestre de 2015, a plataforma Google Maps, unificando assim os

“produtos de imagens do Google”, e já conta tanto com aplicativos para celular que

permitem ao próprio usuário comum registrar determinado lugar, gerar uma fotografia

“esférica” e publicá-la no google.com quanto com uma ferramenta exclusiva para

empresas que queiram, supostamente, aumentar sua visibilidade na rede, o Street View

Trusted7.

Figura 6- Coleta de imagens

Fonte: Google (2016)

Figura 7- Alinhamento de imagens

Fonte: Google (2016)

7 Trata-se de um mecanismo em que a empresa contrata um fotógrafo profissional certificado com o selo trusted, atribuído pelo Google, para produzir fotos de seu estabelecimento comercial e assim, “impulsionar a visibilidade” do seu empreendimento. Desse modo, quando se acessa via street view a rua onde determinado restaurante está, por exemplo, é possível explorar o lugar pelas fotografias produzidas pelo fotógrafo contratado. Na página em que o serviço é ofertado, o Google argumenta que “Escolher o restaurante, café ou hotel certo não é uma tarefa muito fácil. Estabeleça confiança com um tour virtual de alta qualidade que permita às pessoas viver a experiência de estar no seu estabelecimento antes mesmo de chegar lá. Essas experiências virtuais imersivas inspiram mais confiança entre os hóspedes e clientes em potencial”, argumento este que é corroborado por uma pesquisa (encomendada pelo próprio Google) e realizada pela empresa britânica de consultoria econômica Oxera, cujos dados apontam que “páginas de serviços que possuem fotos e tour virtual tem o dobro de chance de gerar interesse nos consumidores” e, “em media 41% dessas visitas ao lugar resultam em uma visita física ao local”. Fonte https://www.google.com/streetview/hire/. Acesso em 15/09/2016.

22

Figura 8- Como transformar fotos em panoramas de 360˚ (I)

Fonte: Google (2016)

Figura 9 - Como transformar fotos em panoramas de 360˚(II)

Fonte: Google (2016)

Com mais de 10 milhões de seguidores nas redes sociais e uma colaboração cada

vez mais constante dos usuários para o mapeamento, o Google, não raro, é alvo de

críticas, já que as imagens de Street View invadiram a privacidade das pessoas e, mesmo

com a ferramenta de “borramento” automático do rosto, o projeto, desde seu início,

causou polêmica, pois poderia expor pessoas a situações indesejadas

[...] os defensores da privacidade que viram a prévia do produto ficaram horrorizados. Eles diziam ‘meu Deus, isso é terrível – você consegue mesmo ver uma pessoa na Times Square’ [...] o que dizer sobre alguém que estava entrando em um clube de striptease – ou talvez passando na frente de um clube de striptease? E quanto a uma pessoa casada andando de mãos dadas com alguém que não era seu cônjuge? E se o Google Street View mostrasse – conforme os observadores efetivamente descobriram – adolescentes tomando banho de sol com roupas curtas, vadios entrando em prédios, alunas de colegial participando de brigas e pessoas misteriosamente usando cabeças de cavalo? O Google realmente queria se tornar um bisbilhoteiro global? (LEVY, 2012, p.429).

23

Nesse sentido, tendo em vista questões internas de segurança8, o GSV não é

permitido em parte da África e em países islâmicos como a Arábia Saudita, que alegam –

além da segurança nacional – invasão da privacidade de seus cidadãos. Por serem

produzidas por meio de captura automática e intermitente das câmeras fotográficas,

esporadicamente são publicadas no site imagens constrangedoras ou mesmo violentas de

pessoas tropeçando, assaltos e mesmo cadáveres nas ruas. Para resolver essa questão de

“odd or unpleseant moments” (momentos constrangedores ou ímpares) como é

denominado pela empresa, o Google criou um ícone na própria página chamado de

“report a problem”, no qual o próprio usuário solicita uma revisão de conteúdo nas

fotografias publicadas, o que na maioria das vezes é rapidamente atendido e as imagens

“constrangedoras” prontamente retiradas do ar. Dessa forma, fotos alusivas à violência,

pessoas abordando prostitutas, fazendo gestos obscenos ou qualquer outra “impertinência”

não fazem parte do estatuto de visibilidade do GSV.

Produto sintomático de uma era na qual a imagem é hipervalorizada,

inflacionada9 e a visibilidade no ciberespaço torna-se sinônimo de existência em tempo

real10, o GSV, de acordo com a própria corporação, já publicou dezenas de milhões de

fotografias11. Acessar, portanto, esse vasto oceano de imagens, e na maioria das vezes

ficar à deriva, acaba sendo quase um caminho natural na internet, já que a maioria dos

8 Assange (2015) de certa forma corrobora essa desconfiança ao afirmar que o Google Maps e o Street View recebem sistematicamente financiamento do serviço de defesa americano. 9 De acordo com estimativas recentes de fabricantes de câmeras digitais e de empresas de produtos químicos usados na revelação de fotografias analógicas, a cada dois minutos são produzidas mais fotografias no mundo do que todo o montante produzido no século XIX. Estima-se ainda que em 1930 produzia-se 1 bilhão de fotos/ano; em 1960, 3 bilhões; 1970, 10 bilhões. A partir do ano 2000 (popularização massiva da fotografia digital), esse número alcançou 86 bilhões de fotos por ano; em 2013 estaria na ordem de 380 bilhões de fotos por ano e no ano passado, 880 bilhões de fotos/ano. Fonte: http://www.popphoto.com/news/2013/05/how-many-photos-are-uploaded-to-internet-every-minute. Acesso em 07/07/2015. 10 Trivinho (2007, 2015) explica o conceito de existência em tempo real partindo do fundamento sociocultural contemporâneo em que o ciberespaço e a cibercultura são matizes predominantes na civilização midiática, que tem na comunicação eletrônica sua principal característica. Segundo o autor, o existir em tempo real transcende o “existir a distância”, mas articula-se pelo modo como o sujeito se põe na e através da rede. Trata-se de um reescalonamento da vivência cotidiana, presencial e material, para uma vivência no ciberespaço. O existir em tempo real “sustém, em sua fenomenologia, o condicionamento do valor, da validade e atualidade do ser e do agir no mundo à exigência social reinante de inserção na visibilidade mediática” (2007, p.13), dessa forma, afirma o autor, dos fatos econômicos aos culturais, do trabalho ao tempo livre, o existir em tempo real cumpre papel fundamental na dinâmica do capitalismo contemporâneo, como demonstra o exemplo citado no texto sobre a ferramenta business view do GSV, na qual empresas pagam ao Google em busca de melhorar sua visibilidade na plataforma. 11 A empresa não divulga um número exato ou aproximado sobre a quantidade de imagens presentes em seu domínio, menciona apenas em seu site que são “dezenas de milhões de fotografias”.

24

acessos12 passa pelo portal google.com. Singrar entre essas imagens do Street View,

porém, de maneira consciente, dialetizar, perceber e extrair singularidades, algo para

além de sua superficialidade, constitui-se como árdua e exaustiva tarefa e, é neste âmbito

que fotografar a partir das fotos do GSV, torna-se, ao nosso ver, interessante objeto de

pesquisa que merece cuidadosa apreciação.

1.2 Em busca de imagens nas imagens

Nascido em 1954 na cidade alemã de Munique, o fotógrafo Michael Wolf passou a

infância e a adolescência entre o Canadá e os Estados Unidos, onde se formou pela

Universidade de Berkeley. Após concluir a graduação, voltou à Alemanha e estudou

fotografia com Otto Steinert13; logo depois, emigrou para a Ásia e passou a ser

fotojornalista correspondente da revista alemã Stern, na qual trabalhou por cerca de dez

anos. Em 2001, Wolf deixou o emprego na revista e passou a se dedicar a projetos

autorais: o primeiro, cuja concepção começou quando ainda era repórter fotográfico,

chama-se The real toy story. Nesse trabalho, durante um mês, Wolf percorreu lojas de

bugigangas pela costa californiana reunindo mais de 20 mil brinquedos de plástico

produzidos na China e montou uma instalação artística com todas as paredes forradas

pelos brinquedos, que, conforme caiam ou eram retirados pelos visitantes, de forma

perturbadora, desvelavam retratos de trabalhadores chineses em fábricas de brinquedos.

Após críticas positivas sobre esse primeiro trabalho, Wolf desenvolveu projetos

cujos temas abrangem a arquitetura e a vida nas grandes cidades, como o architeture of

density que exibe, além da estética formal e funcional das construções do skyline de

Hong Kong, aspectos contemporâneos que denotam a emergência de um simbólico poder

econômico da região.

12 Pesquisa realizada pela Serasa Experian no ano de 2013 aponta que no Brasil 91,3% das buscas na internet são realizadas pelo portal google.com. Disponível em: http://olhardigital.uol.com.br/noticia/google-lidera-buscas-no-brasil-mas-bing-e-mais-relevante-diz-estudo/38245. Acesso em 07/07/2015. 13 Médico e autodidata em fotografia, Otto Steinert (1915-1978) lecionou inicialmente na Staaliche Schule für Kunst und Handwerk, em 1949 funda o grupo Fotoform, responsável por experimentações de vanguarda na fotografia. A partir de 1959 leciona na School of Design de Essen, onde Michael Wolf estudou.

25

Figura 10- The real toy store (instalação)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

Figura 11- Architeture of density

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

No ano de 2008, por conta de uma oferta de emprego a sua esposa, Wolf mudou-

se para Paris e passou a se questionar sobre como poderia fotografar uma cidade

registrada belamente pelas lentes de fotógrafos como Eugène Atget, Henri

Cartier-Bresson, Robert Doisneau e Willy Ronis. Além do que, o autor vislumbrava uma

Paris ainda velha, que não havia substancialmente mudado de paisagem nos últimos 100

anos. De que maneira fotografar uma cidade cheia de clichês visuais e que pouco

26

mudara?14. Como passava a maior parte do tempo em casa, resolveu conhecer a cidade-luz

por meio do site GSV, que estava no ar há pouco mais de seis meses.

Dessa forma, diante da tela do computador e com um equipamento fotográfico de

médio formato15 no tripé, Wolf percorreu visualmente as ruas e passagens parisienses,

buscando nas fotos automáticas das câmeras do Street View elementos inusitados e que

lhe chamavam atenção. Não se tratava – como em muitas páginas e vídeos da rede – de

compilar fotos com flagrantes curiosos feitos pelo Google, mas, sim, de utilizar as

imagens disponibilizadas no site como material bruto para sua produção fotográfica

autoral, trazer visibilidade a uma visualidade16. Para tal, o fotógrafo realizou cortes nas

imagens: após localizar uma foto que lhe chamava atenção, ele a “escaneava”,

selecionando fragmentos e detalhes que lhe interessavam e, finalmente, disparava a

câmera. Nesse processo de garimpagem, o autor passou mais de 600 horas em frente à

tela do computador, procurando por imagens singulares dentro das próprias imagens.

Seus olhos se tornaram nômades pelas ruas virtuais de Paris, realizando uma verdadeira

caçada iconofágica na selva fechada de imagens do GSV.

Figura 12- Frame do documentário Peeping. Michael Wolf procura imagens no GSV.

Fonte: Documentário Peeping, 2012, 2min 15seg.

14 Entrevista concedida ao British Journal of Photography. Disponível em: https://vimeo.com/20667709. Acesso em 08 de fevereiro de 2013. 15 Câmeras fotográficas de médio formato, seja com a utilização de película ou no suporte digital, afirma Hedgecoe (2013, p.15), produzem imagens de alta qualidade e possibilitam ampliações detalhadas, impossíveis de serem realizadas com câmeras fotográficas do tipo reflex, cujo tamanho do sensor e consequentemente da imagem é menor em relação às câmeras de médio formato. 16 Com base em Baitello Jr. (2005), distinguimos os conceitos de visualidade e visibilidade da seguinte forma: sobre o primeiro, pode-se citar a experiência cultural contemporânea de transformar o mundo concreto em imagens, em visualidade, que em sua dimensão excessiva condena à invisibilidade. A visibilidade está no âmbito de uma efetividade perceptiva simbólica da visualidade, portanto, pode-se dizer que esta instância é a de um pathos, aquilo que efetivamente, dentre uma visualidade narcotizante (pois nem tudo o que é visual se torna visível), nos impressiona, ou seja, transita da visualidade para a visibilidade.

27

Figura 13- Frame do documentário Peeping. Michael Wolf fotografando.

Fonte: Documentário Peeping, 2012, 2min 40seg.

Nessa série, portanto, denominada genericamente pelo autor de Street View17, suas

fotografias não remetem à realidade espaçotemporal, mas a uma realidade abstraída em

bidimensionalidade, a imagens que se desdobram em um espiral infinito de outras

imagens. O disparo do obturador opera como parte de um processo intenso de

garimpagem, deflagrando a abertura de um portal, de um vórtice imagético – tema sobre o

qual discorreremos posteriormente.

Apesar de uma aparente novidade nessa dinâmica de trabalho, a prática de

fotografar nas próprias imagens, no entanto, não é original, já que, desde o início do

processo fotográfico no século XIX, pintores e daguerreotipistas já o faziam.

Muitas obras fotográficas de artistas contemporâneos se referem a outras imagens mais do que a objetos materiais ou situações reais. Naturalmente é o caso de Christian Boltanski, que refotografa e amplia clichês de família para inseri-los em suas obras. Éric Rondepierre não registra a realidade das coisas, dos lugares ou dos acontecimentos do mundo, mas a do cinema, fotografando, em uma tela de vídeo, filmes legendados. Dominique Auerbacher utiliza vistas de objetos impressos em catálogos de venda por correspondência, enquanto os clichês da série Montagnes de magazine (1994), de Joachim Mogarra, não foram tirados ao natural. O artista não enfrentou as encostas nevadas da montanha:

17 A partir da série inicial Street View, houve desdobramento e continuidade desta em outras sete sequências (todas produzidas pela tela): a Series of unfortunate events cujo eixo de desenvolvimento é a ocorrência de imagens de acidentes, pessoas caindo de bicicleta, assaltos ocorrendo, ou seja, imagens que depois de poucas horas eram retiradas do ar pelo Google. Duas séries sobre cidades, Paris e Manhattan, e uma sobre o monumento da Eiffel Tower. Há ainda a Fuck you - com imagens de pessoas apontando o dedo para as câmeras do Google; Portraits, retratos com rostos todos desfocados; e finalmente Interface, no qual Wolf faz uma brincadeira estabelecendo uma relação de interação entre pessoas e elementos de interface disponibilizados no site como setas e marcadores elípticos.

28

contentou-se em fotografar as paisagens impressas nas revistas. Por ocasião da Guerra do Golfo (1991), a artista israelense Michel Rovner realizou uma série de grandes fotografias das operações militares. Mas não foi até o local, como um repórter teria feito: simplesmente fotografou uma tela de televisão. Essa prevenção estética designa uma situação visual onde o contato direto com o real se tornou impossível e até mesmo supérfluo, onde o mundo ficou reduzido à sucessão de suas imagens [...] em todos esses trabalhos, a fotografia não remete às coisas, mas à espiral infinita, a outras imagens. Ao mundo das coisas sucede o das imagens, e as próprias imagens tendem a tornar-se mundo. (ROUILLÉ, 2009, p.144 e 145).

Na passagem assinalada, reafirma-se que a prática de fotografar outras imagens

tendo como mediação fotografias impressas, telas de tevê, cinema ou computador não se

configura como novidade atual, e corrobora a proposição de Hans Belting (2007) sobre a

transformação do mundo palpável e concreto em um mundo de imagens, tal qual

discutiremos especificamente a partir do item 1.4.

Mesmo com a saturação visual presente em distintas ambiências midiáticas, no

fotojornalismo atual ainda permanece – apesar de influências constantes de outras

modulações e ambientes da imagem – o paradigma entre o binômio imagem/realidade,

sendo aquela consequência quase direta desta. Nesse cenário, quando Michael Wolf

recebeu menção honrosa no concurso fotográfico World Press Photo de 2011 por uma de

suas fotos produzidas pelo GSV, sofreu críticas avassaladoras que reprovaram

firmemente a ausência de vínculo entre a fotografia obtida e a realidade concreta. Aos

críticos mais hostis que sequer o consideraram fotógrafo, Wolf respondeu dizendo que

“fazia parte de uma longa história de apropriação artística que seus detratores

presumivelmente não conheciam” (Revista Zum nº1, p.112). Suas séries produzidas por

meio da plataforma consistem justamente no recorte e produção – deliberada ou

acidentalmente – de outras fotos, enfatizando elementos singulares, potencializadores e

criadores de narrativas/imagens paralelas.

29

Figura 14- a Series of unfortunate events (1)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

Figura 15- a series of unfortunate events (2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

30

Figura 16- Paris (1)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

Figura 17- Paris (2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

31

Figura 18- Eiffel Tower (1)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

Figura 19- Eiffel Tower (2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

32

Figura 20- Manhattan (1)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

Figura21-Manhattan (2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

33

Figura22-Fuck you (1)

Fonte: www.photomichaelwolf.com (2016)

Figura23-Fuck you (2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com(2016)

34

Figura 24- Portraits (1) Figura 25- Portraits (2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com(2016) Fonte: www.photomichaelwolf.com(2016)

Figura 26- Interface (1)

Fonte: www.photomichaelwolf.com(2016)

35

Figura 27- Interface (2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com(2016)

1.3 Escanear e cortar

A dinâmica de perscrutar minuciosamente as imagens do GSV pode ser

considerada uma continuidade do trabalho anterior de Wolf, Transparent city (2008), no

qual o autor emprega lentes teleobjetivas para registar edifícios em Chicago, EUA. Nessa

série, há um padrão geométrico de luzes e linhas chapadas nas imagens que vez ou outra é

quebrado por seres humanos nas janelas.

Ao olhar as fotos com lupa, Wolf notou em uma delas um homem mostrando-lhe o

dedo, pois havia percebido que estava sendo fotografado a longa distância. A partir desse

episódio, o autor passou a buscar nas fotografias elementos que rasgassem a

superficialidade imanente da imagem, vagueou pelas fotos tal qual Flusser sugere:

O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado de scanning [...] que segue a estrutura da imagem mas também os impulsos no íntimo do observador. (FLUSSER, 2002, p. 7 e 8).

36

Como afirma Silva (2012) há uma armadilha típica do pensamento flusseriano ao

afirmar que o significado da imagem encontra-se em sua superfície. Para além dos seus

constituintes superficiais, reside na ação sobre ela – o modo como se estabelece esse

scanning – a articulação de significados. Dessa forma, o scanning de Wolf vagueia

meticulosamente pelas janelas mais distantes em busca de fatos inusitados e capturados

imotivadamente, encontrando vários deles. Sendo talvez um dos mais interessantes a

imagem em uma tevê que exibia uma cena do filme Janela indiscreta (1954) de Alfred

Hitchcock em que o ator James Stewart apontava sua teleobjetiva para o apartamento à

frente. Sobre esse episódio, poder-se-ia aqui refletir sobre um irônico encontro

escopofílico entre o ator e o artista que se dá nos interstícios da imagem, entre sua

estrutura e “impulsos no íntimo do observador” (FLUSSER, 2002, p.8) que geram

visibilidade por meio de novas fotografias que, ao acaso e aleatoriamente, exibem rastros

que se aninham nas dobras recônditas e fendas abissais da imagem.

Figura 28- Transparent city(1) Figura 29-Transparent city( 2)

Fonte: www.photomichaelwolf.com(2016) Fonte: www.photomichaelwolf.com(2016)

O fato de seccionar a imagem em áreas específicas, escaneá-las (na acepção

flusseriana do termo), e, como um arqueólogo, adentrar em seus meandros com

“enxadadas cautelosas e tateantes na terra escura” (BENJAMIN, 2012, p.246) vagueando

em suas capilaridades, vislumbrando e projetando outras visibilidades constitui-se para o

fotógrafo como referência prática para as fotografias produzidas no Street View e, apesar

37

de uma aparente fundamentação metodológica na dinâmica, Wolf enfatiza em entrevistas

o caráter intuitivo do processo.

Não há método, apenas uma forma bastante intuitiva de olhar e vez ou outra me deparo com detalhes interessantes, imagens que me permitem imaginar (grifo nosso) outras coisas, como no filme Janela indiscreta18. (WOLF, entrevista ao documentário Peeping).

Consequentemente, a partir da fala do artista e do exemplo mencionado de Janela

indiscreta (1954), evoca-se outra obra cinematográfica, Blow-Up (1966) de Antonioni, em

especial a cena em que o protagonista-fotógrafo Thomas registra despreocupadamente um

casal de namorados no parque. Ao revelar a fotografia e ampliá-la várias vezes, depara-se

com um possível cadáver atrás de um arbusto, fato que desencadeará a trama na obra.

Dessa forma, nesse processo de deambular pela superficialidade da imagem e flagrar

singularidades que emergem entre as fissuras – que tanto Wolf quanto Thomas realizam –

pode-se evocar Didi-Huberman (2013) que afirma de forma benjaminiana a existência de

imagens que emergem de sua própria rasgadura (como será detalhado no capítulo 2), de

rastros e vestígios que irrompem e perfazem uma dinâmica de mão dupla de

aparição/desaparição, na qual passado e presente coexistem sinalizando, inclusive,

aspectos futuros.

Dessa forma, como objeto desta pesquisa, nos interessa especialmente a dinâmica

arqueológica empenhada pelo fotógrafo em busca de rastros, de outras imagens que se

escondem nas próprias imagens. Trata-se, assim, de investigar não as fotografias da série

mencionada, mas sim o processo fotográfico que ocorre amplamente na duração do ato –

compreendido pela expectação, clique e pós-clique - que se plasma em jogo imaginativo

e dialético, scanning que evoca, desdobra e também inventa imagens. Assim sendo, o

primeiro conceito que se apresenta como fundamental para a dinâmica da pesquisa é o de

imagem, aqui compreendido sob um viés cultural.

1.4 A imagem como duplo

Sabe-se que o conceito de imagem possui várias acepções e, neste trabalho,

entendemos que ao lidar com essa complexidade que o envolve, não devemos empregar

exclusivamente uma única apreciação, mas cotejar perspectivas que atendam a distintos 18 Trecho extraído do documentário Peeping, produzido pela revista holandesa Foam Magazine. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a-8pd-wXyT8. Acesso em 17 de janeiro de 2013.

38

vieses, sobretudo, o antropológico e o interdisciplinar, já que, como afirma Belting (2009,

p.11), “nenhuma das disciplinas acadêmicas tem competência plena sobre as imagens, que

parecem estar em um âmbito de estudo de todas e não de uma em exclusivo”19. Em menor

intensidade, como auxílio fundamental a uma compreensão que se pretende

complexificada, algumas leituras historiográficas e da história da técnica e dos meios serão

também utilizadas. O que queremos enfatizar, já de antemão, é a incapacidade teórico-

conceitual da ciência em clarificar a totalidade do fenômeno imagem, que se

metamorfoseia continuamente.

Para além de uma compreensão reducionista deste conceito que se coloca, muitas

vezes, como “percepção visual de uma informação que nos chega por intermédio da luz

que entra em nossos olhos” (AUMONT, 1993, p.22), neste trabalho compreende-se a

imagem como uma somatória de processos culturais e, portanto, cumulativos, que não se

restringe à visualidade material externa que se apresenta, mas também corresponde a

aparições mentais e oníricas presentes nos meandros da imaginação.

A partir da indagação quando e por que o homem começa a produzir imagem,

pode-se perscrutar um possível caminho de referências a este oceânico conceito, que neste

subitem será abordado à luz do seu caráter mágico de pleno. Segundo Edgar Morin em O

homem e a morte (1970), ao ter consciência de sua finitude, o homem produz um duplo seu

que o acompanha durante toda a vida, um desdobramento simbólico, uma resposta

antropológica à morte. Afirma o autor que o duplo é “o âmago de toda representação

arcaica que diz respeito aos mortos” (1970, p.126) e, enquanto dormimos e sonhamos, o

duplo está em movimento e ativo, atuando de forma autônoma, podendo se metamorfosear

em outros seres, sendo a sombra uma de suas manifestações mais conhecidas.

A sombra, que é ser vivo para a criança, como fez notar Spencer, foi para o homem um dos primeiros mistérios, uma das primeiras percepções de sua pessoa. E, como tal, a sombra tornou-se a aparência, a representação, a fixação, o nome do duplo, não somente os gregos com o Eidolon, como também os Tasmanianos (Tylor), os Algonquins e numerosos povos arcaicos empregam a palavra sombra para designar o duplo e, simultaneamente, o morto [...] as superstições que traduzem o temor e a inquietação suscitados pela sombra do vivo são da mesma natureza das que exprimem o temor e a inquietação suscitados pelos mortos-sombras. (MORIN, 1970, p.126 e 127).

19 “Ninguna, pues, de las disciplinas académicas tiene competencia plena sobre las imágenes, que parecen caer en el ámbito de estudio de todas y de ninguna en exclusiva.” Tradução do autor.

39

Hans Belting (2007, p.178) afirma que, sendo o “morto sempre um ausente, e a

morte uma ausência insuportável, o homem produz imagem para lidar com seu vazio”20.

Recorre a uma sombra que também, a exemplo do corpo vivo, necessita de roupas, armas e

dos seus bens. Em pesquisas de campo, o paleontólogo francês André Leroi-Ghouran

encontrou restos de sepulturas do Paleolítico onde foram descobertos corpos inumados

com “adornos pessoais, rede de conchas, pingentes, colares [...] em construções funerárias

onde os corpos estavam protegidos por uma espécie de caixão” (s/d. p.67). Em princípio

análogo, sabe-se também que, no Egito Antigo, as pirâmides possuíam uma função de

morada dos corpos mumificados dos faraós com suas posses materiais. Há, dessa forma, a

percepção de que este corpo morto e mumificado não apenas representa, de maneira

mediada, o que fora aquele corpo em vida, mas é a própria pessoa plasmada em imagem

(ainda materialmente corporificado) que recebe uma concessão à perpetuidade.

A proximidade relacional entre o conceito de imagem e a morte é indicado também

na palavra latina imago, cujo significado é retrato de pessoa morta, “sombra, espectro,

cópia, imitação, fantasma, visão” (BAITELLO Jr. 2002, p.2). Régis Debray (1994) explica

que no império Romano, quando da morte de altos monarcas, procedia-se à confecção de

máscaras mortuárias, de uma efígie em cera que funcionava como um duplo, um pleno,

recepcionado como original e que, como as ossadas no Paleolítico e os crânios do

Neolítico, serviam como suportes de culto ao morto. Na Grécia Antiga, essa máscara

mortuária chamava-se eidolon (Είδωλον), que, segundo Brandão (2014, p.193), é derivado

de eîdos e significa “imagem, reflexo[…] um simulacro que reproduz os traços exatos do

falecido em seus derradeiros momentos”, complementa ainda o autor:

Eidos (eîdos) e, por conseguinte, seu derivado Είδωλον (eidolon) pressupõem o indo-europeu *weid, que exprime a ideia de ver, como atesta o grego da mesma família etimológica idêin e de saber, como nos mostra o perfeito grego oîda, eu sei. Não há que se estranhar no caso o ver e o saber: é que, sendo o eidolon uma réplica do morto, ele é uma imagem que se vê e, por conservar um resíduo latente de consciência, é algo que sabe. (BRANDÃO, 2014, p.193).

O eidolon, dessa forma, não representa o morto, mas é o próprio indivíduo

plasmado na imagem que atua como módulo de persistência de vinculações e a essa

plenitude do duplo está atrelada uma consciência mágica. Dietmar Kamper (2002, p.2)

20 “El muerto será siempre un ausente, y la muerte una ausencia insoportable, que, para sobrellevarla, se pretendió llenar con una imagen.” Tradução do autor.

40

explica que, na língua alemã, a palavra bild (imagem) vem do germano arcaico bilidi, cujo

significado, por um lado, significa “essência, sinal, forma [...] uma ordem mágica da plena

presença idêntica àquilo que mostra”, corroborando o caráter pleno da imago.

Como resposta antropológica à finitude, a imagem atua como módulo de resistência

capaz de manter e prolongar vinculações, possui uma magicidade simbólica de pleno, a

qual é integralmente projetada forma e essencialmente pelo corpo em vida. Não há apenas

um facho parcial de representação, mas uma inteireza ontológica mágica que não está

restrita ao primitivismo dos rituais Neolítico e Paleolítico nem à adoração do Bezerro de

Ouro, mas ainda se projeta na atualidade como em rituais cristãos ortodoxos, nos quais a

divindade está encarnada e simbolizada na própria imagem, sendo, portanto, ela própria o

sagrado e não mediação a um terceiro. Klein (2006, p.47) observa que, para além do

encantamento ritual, esse mecanismo de “confundir a imagem com o próprio objeto,

evidenciando uma intenção mágica”, também se faz presente na publicidade

contemporânea, exemplificando com o fato de uma campanha veiculada em outdoor na

capital paulista, no início dos anos 2000, trazer um automóvel fixado no suporte em vez da

imagem.

A partir desses exemplos, portanto, a imagem não apenas pode exercer a função

paradoxal de exibir a “presença de uma ausência” (BELTING, 2007, p.178), mas também

confundir-se com o próprio objeto, projetar integralmente, investir-se da inteireza da

própria coisa, ser a presença de uma presença21, exibir-se como “mística de uma

homologia automática” (Machado, 2015).

Esse poder decorre da capacidade de processamento da presença de um ser distante e efêmero, para emprestar a sua presença bem como para

21 Segundo o Prof. Dr. Norval Baitello Jr., em curso ministrado sobre Aby Warburg no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP no 2˚ semestre de 2014 (aula em 28/08/2014 com áudio gravado), em conversa com Hans Belting, o autor relatou a forte presença mágica da imagem ao narrar o episódio de uma celebração católica na cidade de Sevilha, Espanha, na qual os fiéis faziam longa fila para se aproximar e beijar as relíquias religiosas da santa celebrada. Nesse sentido, Belting reconhece o conceito de imagem para, não somente presença de uma ausência, mas amplia-o para presença de uma presença, que é justamente a plenitude mágica e simbólica da qual fala Dietmar Kamper, entre outros autores. De maneira análoga, relato minha experiência como repórter fotográfico do jornal Folha de Londrina ao visitar o que seriam os restos mortais de um mártir da Igreja Católica que viveu no século III depositados na igreja matriz de Tomazina-Pr. Santo Inocêncio, como é conhecido pela população do município, tem seus restos mortais (crânio, cabelos, sobrancelha e corpo em cera) venerados por grande parte dos quase 10 mil habitantes da pequena cidade, que acreditam nos milagres do mártir decapitado, reverberando, o culto medieval à relíquia que “manifesta seus poderes de cura para os fiéis no local onde está depositada parte de seus restos mortais[...] por meio da prática ritual, a relação entre a relíquia como a encarnação idolatrada do sagrado e os resultados esperados na esteira das práticas rituais é estabelecida naquilo que podemos chamar como mágico” (Wulf, 2013, p.30).

41

tomar inteiramente o espaço da percepção e atenção humanas. A imagem tira a sua força da assimilação e cria uma semelhança com o representado. O bezerro é – quando visto da perspectiva do ritual – Deus. A imagem e seu conteúdo fundem-se a ponto de serem indistinguíveis (BOEHM apud WULF, 2013, p.29).

Em seu longo percurso histórico antropológico, a imagem amplia suas modulações

para além de sua presença plena magicizante (verificadas, sobretudo, em sua modulação

mítica e cúltica), dilatando-se em outras nuances como representação artística e simulação,

associando-se a distintos ambientes midiáticos22 e utilizando-se de diferentes suportes

como forma de estender sua capilaridade. Essas variações, no entanto, não ocorrem de

maneira isolada, entrecruzam-se umas às outras e possibilitam que uma das entonações

ganhe proeminência. Dessa forma, ao observarmos o fenômeno antropológico da imagem,

deve-se buscar uma mirada complexa que aprecie suas distintas faces “presença mágica,

representação artística, simulação técnica” (KAMPER, 2002, p.7) e “presença,

representação e simulação” (WULF, 2013) ou “mítica, cúltica, artística e midiática”23,

investigando hibridações e capilaridades não apenas em suas projeções externas em

suportes, mas também em manifestações internas da força da imaginação, de onde as

imagens antropologicamente nascem e continuam emanando.

No atual cenário onde o GSV se propõe como uma tapeçaria de imagens costuradas,

estas se projetam, segundo Kamper (2002, p.7), em três funções: “a de presença mágica, a

de representação artística e a de simulação técnica, entre as quais existem múltiplas

intersecções e superposições”. Dessa forma, quando pensamos em nosso objeto de

pesquisa – o processo de fotografar imagens nas próprias imagens vinculado à ambiência

midiática contemporânea – para além das fotografias com objetivo cartográfico, há uma

complexa trama simbólica de elementos que vinculam outras modulações da imagem bem

como ambientes, gerando assim, outras visualidades e possíveis visibilidades que se 22 Nesta pesquisa, o conceito de mídia, bem como seu derivado midiático, não aponta para linguagens restritivas nem aparatos técnicos difusores de informação, mas o amplia para a compreensão da Teoria da Mídia que “vem se dedicando a exorcizar o fetichismo das linguagens (e técnicas) separadas do ambiente do qual nascem e que fazem mudar. Por isso desloca-se o foco da mera informação transferindo as atenções para a geração de vínculos e ambientes de vínculos, entidades muito mais complexas, pois que envolvem necessariamente uma confluência multidisciplinar e uma visão prospectiva, preocupações com desdobramentos e cenários futuros” (BAITELLO JR, 2010, p.10). 23 Esta divisão proposta – ainda não publicada – foi elaborada pelo Prof. Dr. Norval Baitello Jr. e proferida em aulas gravadas em áudio (25/09/2015 e 29/10/2015) de cursos ministrados no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), assim como em palestra proferida no II EIEIMAGEM (Encontro Internacional de Estudos da Imagem) ocorrido na Universidade Estadual de Londrina entre os dias 19 e 22/05/2015). Trata-se, a nosso ver, de uma concepção que dialoga proximamente com a teoria da imagem de Aby Warburg e Hans Belting, e com autores como Dietmar Kamper, Christoph Wulf, Walter Benjamin e Vilém Flusser.

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formam em espiral, em camadas mais profundas, sendo assim, faz-se basilar compreender

essas modulações simbólicas da imagem.

1.5 A estrela, a orientação e a imagem mítica

Na epígrafe que abre este capítulo, selecionamos um trecho da obra La nef24 do

poeta simbolista francês Élémir Bourges que comenta a bela dança das estrelas no céu que

formam “milhares de mundos”. Na narrativa bíblica do capítulo de São Mateus, a estrela

também é elemento importante, pois, ao cruzar o céu, anuncia o nascimento do menino

Jesus. A passagem da Estrela de Belém ou de Natal representa simbolicamente o

nascimento do Messias e serve de orientação para os Magos do Oriente que a seguiram em

uma longa caminhada até a cidade de Belém.

Sabe-se também que já nos séculos II e III a.C, navegadores Fenícios e Cretenses

utilizavam as estrelas como referência para as longas viagens marítimas empreendidas,

sendo o norte geralmente determinado pelo posicionamento da estrela Polar. Os Egípcios

também foram argutos na navegação orientada pelos astros, chegando, inclusive, a elaborar

um calendário, o chamado ciclo decanal, com o posicionamento de 36 estrelas.

Os decanos egípcios eram estrelas que nasciam, viviam e morriam, por isso eram designadas por ‘os que vivem’ (ankhu), em oposição às estrelas circumpolares – aquelas que não conhecem a destruição- (ikhemu-sek). No ciclo decanal a volta completa de cada decano era de 360˚. Eram 36 e devido ao movimento de translação da Terra eram visíveis por períodos de dez dias, daí o seu nome. Assim, se dividia o ano em 36 períodos de dez dias e cada mês em três décadas: tepi, a primeira, her-ib, a segunda, e pehui, a última. Todos os decanos tinham nome e identificação própria. Por exemplo, o ciclo decanal que se iniciava com o aparecimento de Sírio era designado por tepakenmut e seu deus era Seb. Embora a palavra ‘semana’ fosse desconhecida dos Egípcios, cada década correspondia, em termos actuais, a uma semana de dez dias. (CANHÃO, 2006, p. 3).

Com certa hibridação entre funcionalidade e misticismo, as estrelas eram

empregadas como recurso à contagem do tempo no Egito, as quais também serviram à

gênese do calendário gregoriano – media-se o movimento do sol em relação aos corpos

celestes – sendo, dessa forma, importantes para o aprimoramento da agricultura. No que se

refere ao emprego dos astros em rituais mítico-religiosos, por exemplo, é sabido que na

mitologia egípcia, segundo os Textos das Pirâmides, o rei morto era transformado numa

24 Disponível em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k550486/f263.item.zoom. Acesso em 20/05/2016.

43

“estrela imperecível” e assim viveria para sempre (Quirke apud Ronnberg, 2012, p.18).

Seu sarcófago “construído à semelhança do mundo visível [...] e com entradas alinhadas

com as estrelas” (JOÃO, 2008, p.85) tinha no teto a representação do céu sob a forma da

deusa Nut, que com seu corpo alongado e coberto por estrelas formava a abóbada celeste.

Em um dos episódios da Mitologia Grega, as estrelas são representadas pelas sete

irmãs – filhas de Atlas e Plêione – que foram transformadas por Zeus na constelação das

Plêiades, livrando-as assim da perseguição de Orion que se apaixonara por uma delas.

Segundo Brandão (2013, p.199) às Plêiades “são atribuídas às instituições dos coros de

dança e das festas noturnas” e em diversas culturas “como nos indígenas da Guiana, na

França e na Guiana Francesa associam-se ao ritmo pluvial das regiões tropicais”

(VERDET, 1987). Como afirma Bachelard (2001, p.180) as constelações são “convites aos

sonhos e construções efêmeras das mil figuras dos nossos desejos [...] o sonho constelante

traça linhas imaginárias”.

Na astrologia, juntamente com os planetas e segmentos de espaços geocêntricos,

por exemplo, “as estrelas compõem a soma de elementos que perfazem o caráter simbólico

cultural do posicionamento dos astros na abóbada celeste” (CONTRERA, 1996, p.18) e

sua contemplação possui caráter mítico religioso.

A expressão “simples contemplação da abóbada celeste” toma um sentido diferente se a relacionamos com um homem primitivo, de tal modo sensível aos milagres cotidianos que nos é hoje difícil de imaginar, pois que essa contemplação equivale a uma revelação. O céu revela-se tal como é na realidade: infinito, transcendente. (ELIADE, 2010, p.40).

A infinitude das estrelas no firmamento é um tema que historicamente atrai a

atenção de estudiosos e pessoas comuns que, observando-as, utilizaram-nas como

referência tanto para “ciências como a matemática, agricultura, navegação, quanto para

mitos, lendas, enfim, para o simples prazer do sonho” (VERDET, 1987, p.17). O céu

projeta uma magicidade simbólica, algo visionário que se reflete em nós, uma

incandescência atrativa contemplada de forma a proporcionar ao homem primitivo

imagens com as quais se estabelecia uma relação magicizante de analogias e simbologias e

sob as quais as estrelas e sua luminescência – por meio da imaginação – projetavam-se na

fosforescência do firmamento psíquico, enriquecendo a imaginação, formando imagens

fugidias e evanescentes que em um átimo desapareciam ou se transmutavam em outras

imagens. Assim, muito antes de projetar imagens na materialidade dos suportes rígidos

44

como nas paredes das cavernas, o homem as projetava mentalmente no firmamento

psíquico e no céu, orientado por uma força plena de equivalência entre céu e terra, pois,

conforme o segundo princípio da filosofia hermética (princípio da correspondência) “o que

está em cima é como que está embaixo, e o que está embaixo é como que está em cima25”

(1989, p.13), assim, céu e terra são duplos um do outro e, via imaginação, o homem

vislumbrava corpos celestes no céu e projetava imagens.

Dessa forma, a imagem em sua modulação mítica é a manifestação plena de algo.

Sua origem é primeva, projeta-se, por exemplo, nas cosmogonias – a Via Láctea que se

forma pelo derramamento do leite de Hera (BRANDÃO, 2013). Ela não representa algo,

mas é a própria coisa em si, traz uma magicidade simbólica completa, a exemplo de a

deusa egípcia Nut ser propriamente o céu. Sua estratégia convidativa de apreensão é

imanente e nela está contido, afirma Campbell (1994), “um forte lastro de mitologia(s) que

se projeta sob forma de arquétipos”, animados pela imaginação que ocorre em meio a um

refluir sereno do tempo artesanal da contemplação.

1.6 Imagem de culto

Os lastros de um pensamento religioso na cultura humana, afirma Leroi-Ghouran

(s/d), estão em uma zona híbrida entre magia e religião impossível de se separar. A atenção

devotada ao pensamento religioso pelo paleontólogo francês em seu Religiões da

pré-história é fundamental, já que, a partir dessa dimensão simbólica cognitiva

conquistada pelo homem, vai se observar a transcendência por meio de imagens religiosas

ou de culto. A questão da religiosidade do homem pré-histórico:

Está ligada, muitas vezes, ao problema do surgimento das primeiras imagens, pois delas se extraíam, provavelmente, temas mitológicos, muito embora seja possível identificar a presença de um pensamento religioso antes mesmo do período figurativo no paleolítico superior. Portanto os indícios da religiosidade humana são anteriores às evidências do surgimento de uma ‘arte’ figurativa no paleolítico, levando-nos à hipótese de que é um homem já governado pelos seus deuses que vai começar a figurar o mundo na forma de imagens. (KLEIN, 2006, p.31).

Nesse sentido, as antiquíssimas imagens de culto que trazem em si lastros míticos

exercem papel ritualístico. Máscaras, ídolos e estátuas eram empregados como mediações 25 Edição de 1989 (Ed. Pensamento) do Caibalion (Kybalion), livro que teria sido escrito a seis mãos pelos autodenominados “Os Três Iniciados”. A obra aborda os ensinamentos da filosofia hermética de Hermes Trismegisto do Antigo Egito e Grécia.

45

e criavam uma ambiência envolvente, a qual apontava para a presença do divino que se

encarnava e simbolizava no objeto ou pessoa a “presença de uma presença”. Hans Belting

(2009), na grande obra ocidental dedicada à imagem de culto intitulada Imagen y culto,

analisa meticulosamente um período de 1200 anos, afirmando o caráter milagroso dessa

modulação imagética. Sobre imagens de mártires e santos, afirma o autor (2009, p.13): ela

“marca sua presença intemporal, que depois da sua morte opera milagres por meio de sua

imagem, ou seja, segue vivendo26”.

Anterior à oficialidade religiosa e cultual do uso da imagem no Cristianismo,

entretanto, deve-se salientar que nas práticas pagãs – cuja influência se reverberou

amplamente do cristianismo primitivo ao Renascimento, conforme comprova Aby

Warburg – a imagem era investida de poderes sobrenaturais que eram incorporados na

multiplicidade de objetos e imagens.

Enfatiza-se também que essa dimensão de duplo da imagem de culto não está

restrita a períodos históricos antigos, ela se faz notar ainda hoje em diversos ambientes

midiáticos. No que tange ao cenário religioso (e em grande parte também midiático) a

sacralização de imagens e ídolos tem ainda uma intensa força, relembra Klein (2006, p. 54)

sobre uma controvérsia recente:

Em 1995, o Brasil assistiu à polêmica em torno do “chute na Santa”, desferido em um programa de TV por um bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. O episódio reacendeu antigas rixas entre protestantes e católicos, deixando transparecer uma rejeição mútua pelas práticas do outro. O que os protestantes negavam era o catolicismo do qual a imagem era símbolo. As imagens do outro não são tão dignas de adoração quanto as nossas. (KLEIN, 2006, p.54).

Nesse episódio, como exposto, a negação à imagem possibilitou uma demarcação

de território cultural e simbólico e, além da polêmica, ele ilustra uma contaminação entre

imagem de culto e sua contemporânea configuração midiática, justamente o tema da obra

de Klein (2006). No que se refere aos aspectos formais, como afirma Belting (2009), a

imagem cúltica preza apenas por ser correta, não importando beleza nem complexidade

técnica da execução, preceitos que se tornarão fundamentais nas representações imagéticas

a partir da era da imagem na arte, em especial a partir do Renascimento.

26 “Subraya la presencia intemporal del santo, que después de su muerte obra milagros en su imagen, es decir, sigue viviendo”. Tradução do autor.

46

1.7 Imagem artística

Se em suas faces mítica e cúltica a imagem engendra uma duplicidade mágica e

simbólica, encarnando-se no próprio objeto ou sendo o meio para ascender a uma

metafísica, com o passar do tempo, a imagem é articulada a outros ambientes e funções

que demandam temporalidades também distintas. Na era da arte, a imagem projeta de

forma mais declarada características específicas, como sua dimensão estética e

complexidade na execução. No início do Renascimento, surge o conceito de criação

artística e o artista deixa de ser artesão, passando a orientar seu trabalho por uma série de

convenções normativas do estatuto da arte. As artes visuais sofrem valorização em seu

caráter especular e as imagens passam a apontar para algo, a representar, assumindo, dessa

forma, uma dimensão predominantemente estética.

Com o desenvolvimento e aplicação da técnica da perspectiva linear ou albertiana,

hierarquizam-se os elementos na imagem decompondo-se os espaços da tela em linhas

ortogonais, fazendo com que o olhar convirja para o chamado “ponto de fuga” (FLORES,

2007), sistematizando o modo de observação de tal sorte que as representações

proporcionais e matematicamente corretas tornam-se, muitas vezes, sinônimos de imagens

bem acabadas, ainda nos dias atuais.

A invenção pictórica a que chamamos perspectiva foi uma revolução na história do olhar. Quando a perspectiva se tornou o olhar moderador da arte, o mundo transformou-se em imagem, como Heidegger viria a observar posteriormente. Pela primeira vez, as pinturas em perspectiva consideravam o modo como o espectador olhava o mundo, transformando-o, dessa forma, em uma visão de mundo. O termo "imagem analógica", que observamos com nostalgia de nossa era digital, foi designado pela primeira vez para a fotografia. Ainda no início do período moderno, no entanto, as pessoas reconheceram que essa nova imagem a qual utilizava a técnica da perspectiva era, de alguma maneira, "análoga" a nossa percepção visual, ainda que fosse uma ideia pretensiosa. As imagens que empregam a perspectiva sugerem, assim como as imagens produzidas posteriormente pela tecnologia moderna, que estamos vendo com nossos próprios olhos o que, de fato, vemos somente na representação”27. (BELTING, 2011, p.13 e 14).

27 “the pictorial invention that we call perspective was a revolution in the history of seeing. When perspective turned the gaze into the umpire of art, the world became picture, as Heidegger would later observe. For the first time, paintings in perspective depicted the gaze that a spectator turned on the world, thereby transforming the world into a view of the world. The term "analog image", to which we look back with nostalgia from the digital era, was first coined for photography. Yet as far as the early modern period people recognized that the new kind of picture using the perspective technique was somehow "analogous" to our visual perception, even though the claim was a bold one. Pictures in perspective suggested - just like all the

47

Assim, o espectador, a fim de contemplar a beleza e precisão dos traços, deve se

ater calma e meticulosamente à observação dos planos homogeneizados da imagem, cujo

objetivo “não é a semelhança, mas a aparência do aparecimento” (WULF, 2013, p.31),

compreender com os sentidos as cores, textura e elementos da superficialidade do plano

bidimensional, enfim, colocar a imagem para dentro de si (aisthêtiké) que sugere, em maior

grau, uma relação de imanência entre observador e imagem. No ambiente da arte, a

imagem ganha em exponibilidade, já que passa a figurar também nos palácios e não

somente nas igrejas. Em sua face predominantemente artística, ela é alvo de reverência,

sendo sua qualidade artística e estética centros dessa admiração e privilégio. Walter

Benjamin, no notável ensaio escrito em 1935 A obra de arte na era da reprodutibilidade

técnica28, aborda um aqui e agora da autenticidade da imagem, uma aura que se percebe na

trama singular de espaço e tempo, uma “manifestação próxima de algo por mais distante

que esteja” (Benjamin, 2012), que se faz presente nas imagens de culto e artísticas, como

na Verônica de São Pedro de Roma29, apresentada em ocasiões solenes e sempre recuada.

Como afirmamos, no ambiente artístico cresce o nível de exposição da imagem

gerando um reflexo de diminuição em seu caráter ritual (algo intrínseco às imagens de

culto), e, além disso, há um trânsito perceptivo que vai da transcendência da imagem de

culto – leva à ascese – para a face imanente da imagem artística, que solicita apreciação

estética. Outra diferença assinalada é o decréscimo da potência de duplo da imagem (a

imagem artística não encarna algo, mas sim representa, aponta para algo), e nessa

dinâmica, a temporalidade de contemplação também se altera: da lenta duração

imaginativa que anima as imagens, para instantes de apreciação que se dividem entre as

imagens as quais se sucedem umas às outras.

Principalmente até meados do século XIX, a imagem em sua modulação artística se

mantém como forma pomposa e elitizada de conhecimento, como afirma o postulado de

Panofsky segundo o qual o “historiador da arte difere do espectador ‘ingênuo’ no sentido

de que ele é consciente do que faz” (Panofsky apud Didi-Huberman, 2013, p.186). Dessa later images produced by modern technology -that we are seeing with our own eyes what we can in fact see only in the representation.” Tradução do autor. 28 A partir desse momento, ao nos referirmos sobre o referido ensaio, utilizaremos como notação “A obra de arte na era…”. 29 Sobre a Verônica de Roma, a vera icona afirma Didi-Huberman: “ela é exatamente aquela trama singular de espaço e de tempo que se oferece a ele (cristão de Roma) num espaço tramado, num poder de distância: pois lhe é habitualmente invisível, retirada, como sabemos, num dos quatro pilares da basílica; e, quando se procede a uma de suas raras exposições solenes, a Verônica ainda se furta aos olhos do crente, apresentada de longe, quase invisível – e, portanto, sempre recuada, sempre mais longínqua” (2010, p.152).

48

forma, a imagem artística seria mais bem compreendida com o conhecimento e consciência

dos historiadores da arte, afirmação esta refutada por Hans Belting30 (ele próprio

historiador da arte) que redimensiona histórica e culturalmente o ambiente da imagem na

era da arte, decretando que, com a possibilidade de múltiplas reproduções técnicas da

imagem a partir de meados do século XIX, a historiografia da arte tendencialmente

perderia sua função.

1.8 Imagem e reprodutibilidade técnica

Se, por meio da imaginação do homem primitivo exibe-se a força simbólica da

imagem e seu caráter de duplo (imagem mítica e de culto), com a era da imagem artística

há um decréscimo dessa modulação, diminuída ainda mais frente ao advento dos aparatos

de reprodução técnica das imagens – principalmente após meados do século XIX.

Já é de amplo conhecimento que, na atualidade, vive-se em meio a um excesso de

imagens, sejam elas estáticas ou em movimento. Além de mídias tradicionais como a tevê,

jornais e revistas, o aprimoramento da internet e os aparatos como smartphones e tablets

elevaram exponencialmente a quantidade de imagens a que somos submetidos diariamente.

A amplificação hipertrófica da visualidade está diretamente associada ao desenvolvimento

da fotografia e do cinema no século XIX, mecanismos capazes de reprodução técnica da

imagem e da sua exibição em sequência, respectivamente. Por meio desses aparatos,

sabemos, altera-se a forma de percepção da imagem: anteriormente, na era da imagem

mítica, cúltica e artística, seu uso/percepção estava principalmente associado ao caráter

ritual e contemplativo/representacional, respectivamente. Ao final do século XIX, a

imagem se torna reprodutível em escala ampla, promovendo o que Walter Benjamin – no

ensaio A obra de arte na era... – denomina de perda de uma centelha única da imagem, sua

aura. Sua essência, portanto, passa a ser da ordem da reprodução e repetição e não mais de

uma aparição única e auratizada.

A reprodução técnica da imagem está articulada com a Revolução Industrial

Mecânica, responsável pela alteração da produção manufatureira que paulatinamente cede

espaço à fabricação de produtos em série. Essa alteração impacta diretamente a sociedade,

pois além da transformação produtiva industrial, altera-se a percepção espaçotemporal, que

30 Hans Belting “O fim da história da arte”. São Paulo, Cosacnaify: 2012.

49

passa ser ditada pelo ritmo cada vez mais veloz das máquinas. Vincular, portanto, a

Revolução Industrial Mecânica, o desenvolvimento da fotografia e do cinema e a alteração

perceptiva-sensorial da sociedade faz-se necessário tendo em vista a influência desse

contexto ambiental no desenvolvimento desses aparatos que hoje se amplifica pelo cenário

hipersaturado de imagens a que somos submetidos.

Na esteira de Benjamin, outros pesquisadores e intelectuais como Jean Baudrillard

(1991), Guy Debord (1997), Daniel Boorstin (1987) e, mais recentemente, Hans Belting

(2007, 2012), Christoph Wulf (2013), Dietmar Kamper (2002, 2016) e Norval Baitello Jr.

(2002, 2005, 2010, 2012) refletem sobre a presença maciça das imagens como mediação da

realidade e projetam cenários analíticos sobre seus efeitos. Baitello Jr. (2005) afirma que

com o desenvolvimento dos suportes materiais para sua exibição, bem como seu

barateamento, elas se multiplicam, se inflacionam e passam a ser produzidas em larga

escala. Com esse excesso de visualidade, sofre a visibilidade: os olhos tornam-se cansados

e fatigados, pois imagens em demasia não promovem uma melhor comunicação, pelo

contrário, no exagero, elas mais ofuscam e obliteram a percepção do que efetivamente

comunicam. A hipertrofia da visualidade gera uma hipotrofia da visão.

Assim, como toda visibilidade carrega consigo a invisibilidade correspondente, também a inflação e a exacerbação das imagens agrega um desvalor à própria imagem, enfraquecendo sua força apelativa e tornando os olhares cada vez mais indiferentes, progressivamente cegos, pela incapacidade da visão crepuscular e pela univocidade saturadora das imagens. (BAITELLO, 2005, p.85).

No bojo dessas análises estão as imagens disseminadas pela mídia na

contemporaneidade em seus diferentes ambientes que, para além de sua hipertrofia

quantitativa, passam a ser confundidas com a própria realidade (Belting, 2007),

“esvaziando outros mundos de seu conteúdo real” (WULF, 2013, p.34), em uma espécie de

estrangulamento da função de duplo magicizante da imagem e causando sequelas no

sentido da visão.

Os olhos não acompanham; seja pela abundância de imagens, seja pela acelerada aparição e desaparição de coisas. A imaginação na Idade Média ainda pura paixão (Passion), na modernidade, inversamente, a atividade principal de um sujeito cujos olhos iluminam, naufraga por isso no padecimento (Leiden). A órbita ocular dos companheiros de espaço (Raumgenossen) tornou-se estúpida. Quase tudo passa por ela, mas ela não mais se detém ou não retém mais nada. (KAMPER, 2006, p.117).

50

O diagnóstico apocalíptico e revelador de Dietmar Kamper a respeito do

padecimento dos olhos leva em conta o processo hipertrófico da visualidade,

principalmente em voga após o Renascimento. Pelo excesso, as imagens não são mais

retidas por esse sentido, elas apenas passam e são reiteradamente repetidas pelos aparatos

midiáticos. Tal repetição, como sintoma da reprodutibilidade, afirma Baitello Jr. (2005,

p.49), ocorre porque “não são mais os olhos que buscam as imagens, mas o oposto, as

imagens ‘nos procuram’ e querem se animar por meio da nossa visão”.

Ao desenvolvimento de mecanismos produtores e disseminadores de imagens está

atrelada a eletricidade. Por meio dela, foi possível a difusão de imagens pelo sistema de

pantelégrafo ou fototelegrafia (Couchot, 2011), mas que se aperfeiçoou e hoje culmina

numa era “midiática elétrica” (Baitello Jr., 2010).

Imagem e eletricidade, de mãos dadas, vão ditar os preceitos do mundo, sua sociabilidade, sua memória e seus projetos, seus ritmos e tempos, seus territórios e espaços, sua capilaridade e sua potência. Não é gratuita a categoria das tecnoimagens ou imagens técnicas, cunhadas por Vilém Flusser [...] sua definição de tecnoimagens como imagens feita de grãos (grânulos) que se aglutinam por uma fração ínfima de tempo, por obra do vento (ou do sopro) se aproxima do conceito de realidade paradoxal, ausência presente, novamente uma miragem, uma realidade sem dimensões espaciais ou uma nulodimensão. (BAITELLO JR., 2010, p.73).

1.9 O pixel, a desorientação e a imagem midiática

Sabemos que nas atuais e disseminadas imagens digitais ou digitalizadas há

pequenos pontos luminosos que as formam, conhecidos como pixel. Na literatura

especializada, o pixel é descrito como “o último e menor constituinte físico da imagem”

(COUCHOT, 2011, p.37). Segundo Trigo (2007, p.28), sua síntese está ligada a um

processo de abstração matemático no qual algoritmos específicos transmutam a luz em

codificação numérica, gerando pixels de intensidade luminosa e cor específicas. Cada um

desses grânulos digitais ocupa ainda uma posição determinada numericamente a partir de

um par de eixos cartesianos, não pode se subdividir e tem apenas uma cor. Apesar da

complexidade nesse processo de transmutação da luz em impulso elétrico, código binário e

finalmente sua projeção em ponto de intensidade luminosa e cor determinada, estamos

habituados com as imagens numéricas, exibidas exponencialmente nas telas de

51

computador, câmeras fotográficas digitais, tablets, celulares, aparelhos da imagiologia

médica entre outros meios disponíveis.

Para que na atualidade fosse possível a síntese dessa porção mínima da imagem

digital, a partir de complexos processos matemáticos e computacionais, foram necessários

caminhos científicos e uma tradição histórica analítica que pensasse a imagem de maneira

decomposta em linhas e pontos. Tal cenário se acentua a partir de meados do século XIX

no campo das artes e, principalmente, com a mecanização dos processos figurativos. Com

o Impressionismo, por exemplo, e, mais radicalmente com a técnica do pontilhismo,

observa-se essa fragmentação, a imagem é decomposta e vista como um mosaico. George

Seurat (1859-1891) é o principal representante dessa técnica, ancorada em bases

científicas.

Usando como ponto de partida o método impressionista de pintura, (Seurat) estudou a teoria científica da visão cromática e decidiu construir seus quadros por meio de pequenas e regulares pinceladas de cor ininterruptas como um mosaico. Esperava ele que isso levasse à mistura das cores no olho (ou, melhor dizendo, no cérebro), sem que perdessem sua consistência e luminosidade. (GOMBRICH, 1999, p.544).

Já no Cubismo, opera-se por uma modelagem formal e síntese de imagens a partir

de formas conhecidas. Gombrich (1999, p.575) afirma que os artistas desse movimento

convidavam o público a compartilhar com a obra “esse jogo sofisticado de construir a

ideia de um objeto sólido e tangível a partir de um punhado de fragmentos planos em sua

tela”.

No que se refere aos processos de automatização das técnicas de figuração, a

Daguerreotipia31, afirma Fabris (2008, p.14), promove a decomposição e a racionalização

da produção de imagens em técnicas ordenadas, em “uma sucessão de gestos mecânicos e

químicos parcelados”. Nesse diapasão científico-racionalista da época, busca-se o

ordenamento em linha de montagem e fragmentação, de tal sorte que, não somente o

processo de produção da imagem é submetido a esse método, mas o próprio produto é

pensado como objeto constituído por elementos mínimos e fractais, passíveis de serem

escaneados e observados, tal qual o faz a máquina desenvolvida pelo italiano Giovanni

Caselli:

31 Um dos processos fotográficos pioneiros em meados do século XIX. Desenvolvido por Louis Daguerre e patenteada pelo governo francês em 1839, a técnica consistia em, por meio de uma câmera obscura, expor uma placa de cobre à sensibilização pela luz (Rouilé, 2009).

52

Rapidamente foi possível decompor a imagem em linhas, com o fito de não reproduzi-la ou criá-la mas de transmiti-la. Essa decomposição analítica da imagem fixa em elementos lineares descontínuos e paralelos, realizou-a pela primeira vez Caselli, entre 1855 e 1861. O pantelégrafo, máquina elétrica que funciona sob o duplo princípio da varredura e da sincronização – sob esse aspecto incontestável antepassado da televisão – conseguia transmitir imagens em contorno, entre Paris e Lyon, em quinze minutos. (COUCHOT, 2011, p.38).

Se para o homem do Paleolítico de 25 mil anos a.C os pontos nas imagens eram

pensados como fruto da imaginação e privação de sentido32, para o homem do século XIX,

com o desenvolvimento de mecanismos técnicos de divisionismo da imagem há uma

pretensão científica, ordenadora e industrial do processo – que é acirrada na atualidade

pela numerização da imagem, pela correspondência entre ponto luminoso e codificação

binária. Matematicamente, afirma Trigo (2007, p.30), “a imagem digital pode ser

entendida como uma função de intensidade luminosa bidimensional f (x,y)”.

É sabido que se outrora as estrelas foram objetos de contemplação, simbologias e

orientação para o homem primitivo, hoje, no entanto, com o céu das grandes cidades

iluminado demasiadamente, elas praticamente desaparecem no firmamento celeste e pouco

despertam a imaginação do homem contemporâneo, que cada vez mais permanece

sentado/sedado diante de máquinas de imagens (Baitello Jr, 2012) as quais projetam

ininterruptamente outro tipo de constelação, a de imagens33. Dessa forma, perdem força as

estrelas – a imagem e seu potencial de duplo magicizante, o ato imaginativo e sua gestão

temporal lenta – e ganham crescente importância os pixels, as velozes e luminosas imagens

midiáticas atuais com sua abstração projetiva que sequencial e ubiquitariamente se fazem

presente em nossas rotinas. A outrora Heimarmene, a força da “governação inexorável das

estrelas sobre nossas vidas” (RONNBERG, 2012, p.518), que acreditavam os estoicos

romanos, perde espaço para outro tipo de regência biossocial: as constelações de imagens

formadas por partículas pixelares emulam objetos e corporeidades e subtraem vivências.

Da plenitude mágica das estrelas projetada na “grande tela” da abóbada celeste e seu poder

32 Nas cavernas de Peche Merle, centro sul da França, há imagens de cavalos, felinos, bisões e mamutes e, em algumas destas, encontram-se pontos vermelhos inscritos. Na série documental da BBC How art made the world, no episódio 2 The day pictures were born, o professor e pesquisador da Universidade de Cambridge Dr. Nigel Spivey, historiador da arte e especialista em imagens pré-históricas, afirma que esses pontos nas imagens são fruto da privação de sentido e alterações no estado de consciência causados pela escuridão das cavernas. Dessa forma, esses elementos teriam sido imaginados pelo homem do Paleolítico e seriam padrões visuais cerebrais, tese em parte corroborada pelas pesquisas do neurocientista português António Damásio sobre a imagem como padrão mental, como abordaremos adiante. 33 Curiosamente, no site do GSV, o conjunto de imagens de determinado ambiente é denominado constelação.

53

sobre a imaginação, chegamos a um estágio de imanência simulativa dos pixels que se

plasmam em imagens nas múltiplas telas dos aparatos os quais fatigam e extenuam o

sentido da visão.

Ao se investigar possíveis rastros culturais sobre a palavra pixel, encontra-se no

Oxford dictionary of english etymology que (pixy/pixie) significa seres fantásticos e

sobrenaturais, e sua variante correlata pixie-led origina o termo pixializado ou pixelado,

que remete à confusão, enlouquecido, lunático ou bêbado34. Na mitologia celta também há

lastros importantes, indicativos de que a palavra pixie, pixy ou pixi denominaria pequenas

criaturas, uma espécie entre duendes e fadas, com orelhas pontudas e que morariam atrás

de megalitos e construções pedregosas. Segundo Keightley (1828, p.29935), “sua natureza

geralmente é amigável, são personagens folclóricos e de origem pagã”, tanto que, na Idade

Média, acreditava-se que crianças não batizadas que morriam transformavam-se em pixies,

cuja diversão principal era transmutar-se em pontos luminosos nas estradas

(pixie-led) a fim de ofuscar a visão, desorientar e confundir os viajantes.

Isso posto, parece-nos oportuno refletir em via metafórica sobre as imagens

midiáticas na atualidade: em sua maioria digitais e/ou digitalizadas, são formadas por

pixels que podem também confundir e desorientar, tanto pelo excesso de luz quanto pela

sua disseminação em desmesura pela mídia e pela sua imanente superfície solarizada que

nos traga, ofuscando nossa visão para abissalidades e rastros crepusculares da imagem. Se

na mitologia os pixies eram seres folclóricos e confundiam viajantes pelas estradas, hoje

eles estão menos míticos em relação à aparência (já que não são fadas ou duendes) e mais

midiáticos, pois disseminaram-se pelas superfícies das imagens, porém, continuam

desorientando pela luminosidade ofuscante.

Diante desse panorama, aponta-se que durante o século XX e também no início do

XXI, houve intensificação da relação mundo mediado por imagens e essa ação

espetacularizada proporciona um cenário no qual grande parte dessas imagens não é

consumida, acumulando-se de forma depositária nos ambientes midiáticos. Nesse cenário

– não despropositadamente repetitivo – as imagens são exibidas travestidas de

34 Tradução do autor : ORIGIN mid 19th cent.: variant of pixie-led, literally [led astray by pixies,] figuratively [confused]. 35 The fairy mythology (1828). De Thomas Keightley. Obra disponível para download gratuito no Google books.

54

entretenimento e sedutoramente luminosas plasmadas nos pixels das imagens nas telas36,

que, tal como os pixies da mitologia celta, também nos confundem e desorientam pela sua

sedução figurativa.

A imagem nessa entonação contemporânea, mesmo trazendo um amplo rastro

cultural, manifesta de forma mais proeminente seu expediente midiático, caracterizado por

uma intensa avidez pela visualidade e ubiquidade espaçotemporal. Nessa tonalidade da

imagem que se inicia em especial após o advento da fotografia, do cinema e das

vanguardas artísticas na Europa, sua reprodutibilidade é alçada a elevados patamares,

principalmente por conta do desenvolvimento da eletricidade – e consequentemente de

meios técnicos para sua disseminação – e de suas sucessivas etapas de fracionamento que

simplificam processos de arquivamento em suportes desmaterializados. Pela constante e

intensa repetição das imagens nos variados meios técnicos disponíveis na atualidade, que

nos acompanham dioturnamente, a estratégia de convite à mirada empregada pelas

imagens midiáticas é a da transcendência, não metafísica, mas a que leva ao consumo

irrefreável de outras imagens e se materializa em modismos, costumes de época e na sua

fetichização como mercadoria.

Consoante a este tema, em pesquisa realizada no mestrado (2010), analisamos

criticamente a influência da cena punk londrina de meados dos anos 1970 na moda do final

do século XX e observamos padrões de transmutações de formas entre visualidades dos

períodos citados e certa permanência de sensações evocadas pelas imagens. Ou seja,

verificou-se que na moda contemporânea havia elementos que remetiam ao movimento,

porém, para usar uma palavra em voga, “gourmetizados”, muito mais palatáveis ao

consumo amplificado e que em pouco se assemelhavam aos andrajos sujos com vômito

outrora vestidos pelos punks de Londres37. Nesse exemplo – deixando de lado a questão

comercial dos produtos fetichizados – a imagem midiática do movimento é consumida sob

a forma de produtos e alterações corporais que remetem à transgressão. Compram-se 36 Em artigo apresentado no IX Seminário Imagens da Cultura, Cultura das Imagens (2013) na Universidade de São Paulo e publicado nos anais do evento, propomo-nos a refletir sobre a hegemonia das telas e de que forma isso pode afetar processos comunicativos. Sob esse objetivo, contabilizamos na estação Butantã do metrô, 23 telas espalhadas pelo local. São 3 telões de aproximadamente 2X3m e 20 televisores próximos às escadas e principalmente à plataforma de embarque no trem. Dentro dos trens do metrô, existem ainda, afixadas na parte superior, 4 displays por vagão, totalizando 48 telas na composição, gerando um efeito de “hipnotismo do olhar” de parte dos passageiros, que, em pé ou sentados, fixam-se nas imagens que pipocam nas telas uma após a outra. 37 Em meados de 1975, não era raro adolescentes punks londrinos sujando suas próprias roupas com vômito e depois as vestindo normalmente, como exibido no documentário Punk Attitude (2005), 90 min. Direção de Don Lets.

55

roupas e acessórios que de alguma forma evocam sensações de contravenção, devora-se a

imagem da rebeldia que se projetará em um corpo/imagem imagem/corpo, já que este

também foi devorado pela imagem (Baitello Jr, 2005).

1.10 Imagem midiática e a subtração dos corpos

Como explanado acima, um dos fatores para a crescente profusão quantitativa da

imagem nos ambientes comunicacionais é o seu barateamento nos custos de produção e

disseminação, que estão diretamente atrelados à decomposição da imagem, analisada por

Vilém Flusser como um dos fenômenos integrantes da dinâmica subtrativa nos processos

comunicativos contemporâneos, sob a metáfora da “escada da abstração”, no excerto

abaixo explicada por Norval Baitello Jr.:

A “escalada da abstração” ou “escada da abstração” elaborada por Flusser parte, portanto, da percepção do espaço e das formas de ocupação do mundo. A cada degrau ocorre uma redução, uma perda espacial, a cada passo reduz-se uma das dimensões. “Abstrair significa subtrair”, assim começa Flusser seu artigo de 1989, “A caminho das não coisas”. E assim, subtraindo degrau após degrau, a história da imagem constrói sua “escada da abstração” da maneira que se segue. (BAITELLO Jr., 2005, p.90).

O caráter subtrativo sequencial do fenômeno que tem no homem seu principal

agente de atuação (ente abstraidor) inicia-se no mundo da vida real Lebenswelt, (Flusser

2008), a partir da percepção do espaço/tempo quadridimensional, “degrau de vivência

concreta” (FLUSSER, 2008, p.16), em que corpos agem uns sobre outros (Wirken), a

“realidade concreta é um tecido de intencionalidades, e este tecido chamamos de mundo da

vida (Lebenswelt)” (Flusser apud Heilmair, 2012, p.112).

A partir do momento em que o homem passa a existir, ele tem a capacidade de dar

um passo atrás (o primeiro passo), “abstrair tempo e transformar o mundo em circunstância

abstrata, em Vênus de Nillendorf (sic), em faca de sílex, em cultura” (FLUSSER, 2008,

p.16), trata-se da manipulação como gesto primordial, a subtração do tempo que origina a

circunstância tridimensional.

No terceiro degrau da escada regressiva, o passo seguinte à abstração do tempo, o

homem manipula a cultura com as mãos e os olhos; “olha primeiro e manipula em seguida

[...] os olhos percebem as superfícies dos volumes” (FLUSSER, 2008, p.17), subtraindo o

volume do espaço e produzindo as imagens tradicionais, como por exemplo, as de

56

Lascaux, Peche Merle, Altamira, São Raimundo Nonato, entre outras. “A visão é o

segundo gesto a abstrair” (FLUSSER, 2008, p.17), a tridimensionalidade do espaço menos

o seu volume resulta nas pinturas nas paredes, em circunstância imaginada. Passamos,

portanto, de uma tridimensionalidade à bidimensionalidade, imaginação bidimensional.

No quarto degrau, adiante em seu processo de descascamento fenomenológico,

após milhares de anos, o homem intenciona tornar essas imagens bidimensionais mais

objetivas, “arrancando com os dedos os elementos da superfície das imagens e alinhando-os a

fim de contá-los” (FLUSSER, 2008, p.17). Assim, ao contar linearmente, escrever textos e

conceituar, subtrai-se, dessa forma, não só a largura da superfície da imagem, mas sua

amplitude imaginativa. De um tempo circular e imaginativo da imagem, para a linearidade

do texto, o homem “transforma a si próprio em homem histórico” (FLUSSER, 2008, p.18).

No último estágio desse modelo fenomenológico, passa-se do estágio

científico-racional da escrita linear ordenada e suas convenções para a abstração de grau

zero; a nulodimensão é o último passo na escadaria negativa da abstração

O universo mediado pelos textos, tal universo contável, é ordenado conforme os fios do texto. E mais de três mil anos se passaram até que tivéssemos ‘descoberto’ este fato, até que tivéssemos aprendido que a ordem ‘descoberta’ no universo pelas ciências da natureza é projeção da linearidade lógico-matemática dos seus textos, e que o pensamento científico concebe conforme a estrutura dos seus textos assim como o pensamento pré-histórico imaginava conforme a estrutura das suas imagens. Essa conscientização, recente, faz com que se perca a confiança nos fios condutores. As pedrinhas dos colares se põem a rolar, soltas dos fios tornados podres, e a formar amontoados caóticos de partículas, de quanta, de bits, de pontos zero dimensionais. Tais pedrinhas soltas não são manipuláveis (não são acessíveis às mãos) nem imagináveis (não são acessíveis aos olhos) e nem concebíveis (não são acessíveis aos dedos). Mas são calculáveis (de calculus=pedrinhas), portanto tateáveis pelas pontas de dedos munidas de teclas. E, uma vez calculadas, podem ser reagrupadas em mosaicos, podem ser ‘computadas’, formando então linhas secundárias (curvas projetadas), planos secundários (imagens técnicas), volumes secundários (hologramas). Destarte o processo se transforma em jogo de mosaico. Em consequência, o cálculo e a computação são o quarto gesto abstraidor (abstrai o comprimento da linha) graças ao qual o homem transforma a si próprio em jogador que calcula e computa o concebido. (FLUSSER, 2008, p.18 e 19).

Da unidimensionalidade para o nulo ou zero-dimensionalidade há subtração da

sequencialidade lógica do texto cujos pedaços – na metáfora do autor, as pedrinhas do

colar – podem ser arranjados por softwares e algoritmos de forma a compor um arranjo

mosaical. É o estágio no qual é possível reagrupar os cômputos, “formar linhas secundárias

57

(curvas projetadas), planos secundários (imagens técnicas), volumes secundários

(hologramas)” (FLUSSER, 2008, p.19).

Nesse gesto abstraidor, a dimensão da linha é subtraída, e a imagem técnica surge

ontologicamente distinta da imagem tradicional, pois parte de imaterialidade e projeta

cenários, não é análoga à realidade, mas a sintetiza. (FLUSSER, 2008, 2015). O pixel, que

forma a imagem técnica, como explanado anteriormente, é função matemática, possui

natureza numérica (não por acaso, na língua francesa, a fotografia digital é chamada de

photographie numérique). Essa “constelação de grânulos[...] que reunidos oferecem a

ilusão de uma superfície” (BAITELLO Jr., 2010, p.54), imagens espectrais, de natureza

incorpórea e não coisa impalpável (Unding) é parte, portanto, de uma sequencialidade

subtrativa, “escada ou escalada de abstração” como denominou Flusser e vem ao cabo de

uma imaterialidade que se instala em diversos processos e ambientes do mundo concreto.

Na era atual do “homem-aparelhos-eletrônicos” (FLUSSER, 2007, p.37), a natureza

eletrônica da imagem promove supressão de fronteiras e desvinculações com a realidade

que se projetam em “ubiquidades e aceleração” (Virilio, 2015), culminando em “jogos

intoxicados com simulacros e simulações” (WULF, 2013, p.34) e em uma

autorreferencialidade constante entre imagens que continuamente nos assediam por meio

dos aparatos técnicos, impelindo-nos a viver plasmados em um mundo de imagens, a

transferir nossa corporeidade e existência concreta para um mundo em efígie.

1.11 A escada positiva e o espaço imaginado

O sociólogo do corpo e professor da Universidade Livre de Berlim Dietmar

Kamper (1936-2001) comentava que Vilém Flusser, com sua gestualidade peculiar,

representava corporalmente os processos históricos de abstração fenomenológica.

Ele (Flusser) caminhou gesticulando sobre o tablado da sala de aula, primeiramente para trás, até bater com as costas na lousa. Em seguida, caminhou para frente até chegar à beirada enquanto ensinava sobre tecnoimaginação38 e imagens sintéticas. Deu quatro passos para trás e encenou com seu corpo a abstração corporal histórica e biográfica da

38 Do inglês technical imagination, o conceito foi escrito no dicionário Flusser (2015) por Yuk Hui e traduzido para o português como imaginação técnica. Para Flusser, a faculdade da imaginação (Einbildungskraft) tem papel fundamental no progresso humano, sendo que, com as diferentes etapas da escada da abstração, a imaginação sofreu metamorfoses e, com as imagens técnicas, ela passa a ser imaginação calculada, a qual, afirma Flusser (2007), ainda não aprendemos como utilizar. Tecnoimaginação, portanto, afirma o autor, se instaura como “capacidade de decifrar tecnoimagens” (FLUSSER, 2011, p.120).

58

qual tratou repetidamente em seus últimos escritos. (KAMPER, 2016, p.33).

Ao voltar para frente após bater com as costas na lousa, Flusser simboliza uma

inversão de caminho; caminha para frente, reconquista paulatinamente outros níveis até se

chegar novamente ao estágio do horizonte concreto; perfaz, dessa forma, uma escalada

reconstitutiva de abstrações e perdas, uma escada positiva. Será possível, no entanto, essa

escalada reconstitutiva de espaço e de corpo?

O conceito flusseriano nos indica que a escada de subtração parte de uma

quadridimensionalidade do espaço/tempo (horizonte concreto) e se estende para a

nulodimensionalidade (horizonte abstrato). Trata-se de uma “alienação da existência, ou

então, da passagem da cultura material à cultura imaterial” (HEILMAIR, 2012, p.111).

Assim sendo, a experiência ontológica no estágio atual da nulodimensionalidade,

ambientada em grande parte pelas imagens técnicas, se configura em grande parte como

uma vivência abstrata, já que mediada pelas configurações mosaicais probabilísticas, por

números que formam pontos, bits e pixels, cujas consequências reais se projetam na

rarefação dos vínculos comunicativos primários (interpessoais) e na exaltação de

superfícies das imagens; uma vivência na e pela imagem. Com a escada positiva proposta

por Flusser, no entanto, seria possível superar o nível ontológico das não coisas (Unding) e

voltar a estratos cujos vínculos comunicativos são menos abstratos e mais corporais, ou

seja, ao retornar ao primeiro degrau (superior) da escada que é o mundo da vida

(Lebenswelt), no qual, o que efetivamente importa, segundo Flusser (2015, p.113), é “o

comestível, o copulável e o perigoso”.

Nesse retorno de reconquista do espaço e do corpo, afirma o autor, o holograma

seria um dos primeiros passos de volta rumo ao mundo da vida, imiscuindo-se às

corporeidades de tal forma que “não haveria diferença entre uma maçã e o holograma de

uma maçã39. Tal qual Kamper (2016) que não se convence da proposta flusseriana sobre o

39 No artigo “Vilém Flusser e a terceira catástrofe ou as dores do espaço, a fotografia e o vento”, Norval Baitello Jr. refere-se à figura polêmica e hipnotizante de Flusser, menciona, a partir do comunicólogo espanhol Vicente Romano, uma discussão entre este e o filósofo tcheco brasileiro sobre abstração/corporeidade: “Vicente Romano relata uma célebre polêmica entre ambos. Flusser afirma: “Já não existe nenhuma diferença entre uma maçã e o holograma de uma maçã”. Responde, então, Romano: “Que bom, já não teremos que brigar pela comida, você come o holograma e eu como a maçã!”. Disponível em: http://www.flusserstudies.net/sites/www.flusserstudies.net/files/media/attachments/terceira-catastrofe-homem.pdf. Acesso em 19/05/2016.

59

modo de reverter o processo histórico da abstração, também analisamos com ressalvas o

“caminho de volta da escada” proposto pelo filósofo tcheco brasileiro, citando Kamper:

Vilém Flusser, radiante, falava sobre as novas possibilidades da tecnoimaginação, que podem agora transformar em imagem tudo o que existe. Abruptamente, perguntei se ele também gostaria de transformar sua mulher em uma dessas imagens sintéticas. Respondeu lacônico: “ela não. Ela precisa escutar quando falo”. (KAMPER, 2016, p.35).

Obviamente que se destaca o horizonte visionário do agudo diagnóstico – inspirado

nas etapas da hominização – de Vilém Flusser, o qual assinala intensa utilização dos bits e

codificação binária na era contemporânea nulodimensional. A prescrição terapêutica do

autor sobre o modo como reconstituir as abstrações, no entanto, se configura, a nosso ver,

mais pelo caráter cênico da performance no palco (sabe-se que Flusser possuía uma

gestualidade vigorosa e marcante) e pelo seu deslumbramento frente aos aparatos40 do que

efetivamente responde à questão sobre como voltar do cenário da zerodimensionalidade

para a Lebenswelt (mundo da vida).

Sendo assim, é possível reconstituir dimensões abstraídas? Em nossa compreensão,

na própria esquematização de Flusser há rastros que de alguma forma auxiliariam na

reflexão sobre o tema, e uma delas é a concomitância dos níveis ontológicos da escada da

abstração. “A história da cultura não é uma série de progressos, mas dança em torno do

concreto” (FLUSSER, 2008, p.19). Obviamente que ao abstrair de um degrau para outro

não se abandona completamente aquele um; quando se subtrai o volume da dimensão

física dos objetos e se produz imagens tradicionais (tridimensionalidade para

bidimensionalidade) não se vive apenas nestas. Dessa forma, mesmo em um nível

ontológico da zerodimensionalidade há uma pluridimensionalidade em potência, e apesar

da descida abstrativa do homem, o autor afirma que os degraus de subida ainda estariam à

disposição. Trata-se de uma reconstituição espacial irrigada positivamente pela

imaginação41:

40 Em consulta ao Prof. Dr. Michael Hanke (UFRN) na 25ª Compós (Goiânia, 2016), o pesquisador, estudioso da obra de Flusser, afirmou que uma das possibilidades de reconstituição da escadaria positiva rumo a Lebenswelt, mencionadas indiretamente por Flusser em alguns de seus textos, estaria futuramente na utilização de aparatos capazes de sintetizar objetos a partir de softwares, prevendo, de certa forma, as atuais impressoras 3D.41 Em um dos seus cursos em São Paulo, Flusser aborda o conceito de espaço empregando fundamento biológico (o labirinto como órgão utilizado para a orientação), enfatizando seu caráter abstrato e o modo como a fantasia se torna fundamental para o espaço. “Aqueles entre vocês que tem imaginação biológica e inclinação literária talvez inventem um mundo de monstros e marcianos, assim que vivem dentro de um

60

Neste contexto de abstração das dimensões espaçotemporais, o fator decisivo para o processo de comunicação seria a atuação da imaginação como processo não somente de subtração das dimensões presentes no mundo, como também responsável pela reconstituição das dimensões anteriormente abstraídas [...] são nas ações realizadas sobre a imagem (a reconstituição do tempo imposta pelo ‘vaguear do olhar’ ou scanning que se restauram de modo mágico, as dimensões abstraídas. (SILVA, 2012, p. 20).

A imaginação – ação sobre as imagens –, portanto, pode exercer papel

protagonista na possibilidade reconstitutiva de abstrações proposta por Flusser e, assim

sendo, como afirma Silva (2012, p. 24), abre-se um flanco nos processos comunicacionais

que é a “incerteza sobre a efetiva comunicação”, já que a natureza da imaginação é da

ordem de fluxos aleatórios e imprevisíveis. Em autores como Durand (1998, 2012) e

Kamper (2000, 2016) também encontramos abordagens sobre a imaginação que, sob nosso

ponto de vista, auxiliariam no processo de reconstituição das abstrações, mas ressaltamos

que não se trata de uma recuperação concreta do espaço físico, mas de desdobramentos

imaginativos que se configuram em outras espacialidades, como argumentaremos

posteriormente.

Além do próprio esquema de escada de abstração, cujos rastros nos fornecem pistas

iniciais, a teoria da imagem também pode auxiliar quando afirma a coexistência de

múltiplas faces da imagem que se exibem diferentemente entre épocas e ambientes. Nesse

sentido de coexistência de possibilidades, ao afirmarmos certo protagonismo da imagem

midiática na comunicação contemporânea e uma vivência ampla na e pelas imagens a

“transferência de corpos para a vivência in effigie” (Baitello Jr, 2005), pode-se dizer que a

vida e suas demandas concretas continuam ocorrendo, ou seja, o denominado “mundo das

imagens” coexiste ao mundo concreto, sendo que naquele as modulações da imagem não

se configuram separadamente, mas se hibridizam e se contaminam.

1.12 Contaminações e intersecções

Nos escritos da Comunicologia (anos 80/90) de Flusser publicada em 2015 no

Brasil e em outras obras anteriores, o autor difere ontologicamente os conceitos de imagem

tradicional e imagem técnica. Sobre esta, afirma o autor: “implica em universo

pontilhado”, é de ordem mosaical alfanumérica – superfície que aponta para textos que espaço de dimensões multiplicadas. Curso: Causalidade. Tiposcrito inédito consultado no Arquivo Vilém Flusser São Paulo.

61

apontam imagens (Flusser, 2015), enquanto aquela é “superfície coberta de símbolos que

apontam para o mundo dos objetos” (Flusser, 2015); a primeira da ordem da analogia, a

segunda da simulação.

No que tange também às modulações da imagem em mítica, cúltica, artística e

midiática há distinções entre elas, sendo as duas primeiras da ordem de uma “presença

mágica” (KAMPER, 2002); a artística, de caráter representativo e a imagem midiática uma

“simulação técnica” (KAMPER, 2002), além de suas características perceptivas do tipo

imanente ou transcendente. Obviamente que em cada período histórico há o predomínio de

uma modulação imagética bem como o tipo de mediação empregado: as ancestrais

imagens míticas eram muitas vezes projetadas na fosforescência psíquica, fruto de um

esforço imaginativo e tinham como mediação o próprio corpo – fonte antropológica de

nascimento das imagens. Já no Renascimento, destaca-se a imagem em seu caráter

estetizante e representativo, seguidora de normas como a técnica da perspectiva linear e

tendo como mediação predominante (ambientes) belos palácios, igrejas e telas adornadas

por molduras rebuscadas, além é claro do próprio corpo.

É necessário, portanto, e de extrema importância destacar que a imagem é um

complexo cultural no qual se acumulam e se entrecruzam camadas simbólicas, e que,

sendo assim, seria um grave equívoco engessar características destas tipologias de forma

determinística e exata e contentar-se com suas características mais aparentes. Na

comunicação contemporânea, compreendemos, deve-se pensar a imagem de forma

complexificada, atentar para os fluxos simbólicos dinâmicos que ocorrem entre suas

nuances e atinar para que, mesmo sendo a imagem técnica (midiática) da ordem da

nulodimensão e uma simulação, ela traz em si um amplo rastro simbólico e cultural que

não se dilui em sua ontologia projetiva.

Pensemos na seguinte situação hipotética: um homem com medo de viajar em

avião mexe em seu celular durante um voo, quando o comandante avisa que a aeronave

passará por fortes turbulências. No mesmo instante, o homem localiza em seu aparelho

uma fotografia que reproduz a obra Cristo Crucificado de Velázquez e reza com fé

veemente para que o avião não caia. Nessa hipótese simples, pode-se perceber que a

imagem tem um papel fundamental para o homem que tem medo de voar, mas qual a sua

função? Ora, percebe-se que, mesmo sendo uma imagem técnica formada por pixels e da

ordem da simulação, uma imagem midiática, ela também é reprodução de uma imagem

62

artística barroca, mas sua função no momento de desespero do passageiro foi

eminentemente de culto. Ele não rezou para os pixels que simulam Cristo, tampouco para a

representação barroca da imagem, mas suas preces foram diretamente para o duplo de

Deus encarnado na imagem. Nesse sentido, ela (a imagem midiática) o colocou em contato

direto, exibiu-se em seu “caráter de plena magia” (KAMPER, 2002), operou também em

nível de imagem de culto, ou seja, ocorreu um trânsito antropológico em que capilaridades

simbólicas profundas foram trazidas à tona sob uma dinâmica de trânsitos simbólicos

inscritos na imagem que, de alguma forma, subverteu a abstralidade que lhe é

característica como imagem técnica nulodimensional.

1.13 Ambiência de tensionamentos simbólicos

Como explanado, sendo a imagem fruto de um percurso antropológico extenso,

todas as tentativas de classificá-la em tipologias formais e categorias lógicas configuram-se

insuficientes. Em seu macro ambiente cultural, a imagem revela-se paradoxal, ambivalente

e labiríntica e, sob esse prisma, não nos cabe aqui sugerir tipologias estanques que

certamente se mostrariam reducionistas, mas, sobretudo, buscar miradas que vislumbrem

sua complexidade, conjuguem seus fractais multifacetados e que, de alguma forma,

sugiram antes questionamentos do que respostas. Diante desse oceânico cenário, os

estudos transversalizados do historiador da cultura Aby Warburg (1866-1929) mostram-se

como amplificadores de tensões dos territórios subterrâneos das imagens.

Nascido no ano de 1866 em Hamburgo, no seio de uma rica família judia, o

primogênito da família Warburg realizou estudos em Arqueologia, História, História das

Religiões e Antiguidade, Medicina e História da Arte, o que lhe conferiu sólida formação

interdisciplinar. Atuando não apenas restritivamente à História da Arte – como muitas

vezes sugerido em obras sobre o autor –, Warburg se dedica à imagem, seus diferentes

usos e ambientes, decompondo perspectivas, trabalhando com seus abismos insondáveis e

aparições fantasmáticas. Em sua obra encontra-se:

Um modelo cultural da história, no qual os tempos já não eram calcados em estágios biomórficos, mas se exprimiam por estratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades específicas, retornos frequentemente inesperados e objetivos sempre frustrados. Warburg substitui o modelo ideal das “renascenças”, das “boas imitações” e das “serenas belezas” antigas por um modelo fantasmal da história, no qual os tempos já não se calcavam na transmissão acadêmica dos saberes, mas se exprimiam por

63

obsessões, “sobrevivências”, remanências (sic), reaparições das formas. Ou seja, por não saberes, por inflexões, por inconscientes do tempo [...] tratava-se, pois, de um modelo sintomal, no qual o devir das formas devia ser analisado como um conjunto de processos tensivos - tensionados, por exemplo, entre vontade de identificação e imposição de alteração, purificação e hibridação, normal e patológico, ordem e caos, traços de evidência e traços de irreflexão. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.25).

Considerado pai da iconologia42, Warburg propõe em seus estudos da imagem um

olhar múltiplo perspectívico que contemple o objeto em seu paradoxismo e complexidade,

um antimétodo que se deixa levar por sintomas presentes na imagem. Em seu primeiro

estudo publicado (1893) sobre representações da Antiguidade no início do Renascimento

italiano, Warburg coteja duas obras de Sandro Botticelli (O nascimento de Vênus e A

primavera) com “representações correspondentes nas literaturas poéticas e na teoria de arte

da época” (WARBURG, 2013, p.3), como o texto La Giostra43 do erudito, escritor, poeta e

dramaturgo florentino Ângelo Poliziano. Nessa comparação, o autor ressalta a presença das

ondulações, a movimentação das Ninfas44, a representação da gestualidade, e chega à

conclusão que no início do Renascimento encontram-se formas antigas de representação do

movimento:

Em La Giostra, Poliziano adapta um modelo literário fornecido pela poesia épica da Antiguidade à descrição dos movimentos rápidos das figuras, tirada da observação direta. A influência recíproca entre a intuição do corpo, imediatamente oferecido à sensibilidade do poeta, e as reminiscências das figuras da fábula produzem um compromisso entre a figura mitológica e personagem real, do qual Warburg encontra uma expressão visual em O nascimento de Vênus e A primavera, de Botticelli. (MICHAUD, p.76, 2013).

Essa correspondência entre partes do texto de Poliziano e algumas características

visuais dos quadros de Botticelli não se configura como similitudes absolutas e

irrevogáveis. Menos interessado nessa identificação inequívoca, Warburg vislumbra um

42 Ao contrário da iconologia classificatória e reducionista proposta por Panofsky, curiosamente discípulo de Warburg, a iconologia warburguiana opera complexificando as tramas simbólicas entre imagens de diferentes épocas e ambientes. Há uma dialética que localiza entre as fissuras da imagem rastros e elementos paradoxais que são tensionados ora em relações de analogia, ora em polaridades conflitantes. 43 “A justa” é um texto descritivo de uma sequência de esculturas imaginárias que representariam a deusa Vênus saindo das águas (Michaud, 2013). 44 Segundo Brandão (2013, p. 223), Ninfa significa “a que está coberta com um véu”. São chamadas divindades secundárias da mitologia, essencialmente ligadas a terra e à água, simbolizando a própria força geradora daquela [...] são divindades femininas de eterna juventude que traduzem a perenidade de Geia, a Terra-mãe.

64

cerne visual correspondente entre as imagens, uma expressividade comum entre distintas

manifestações artísticas.

No artigo “Dürer e a Antiguidade italiana”, publicado em 1905, Warburg explana

pela primeira vez o conceito de Pathosformel (fórmula de pathos45) – apesar de no estudo

sobre Botticelli em 1893 o conceito já estar de certa forma presente. O autor compara duas

representações de A morte de Orfeu46 – um desenho de Albrecht Dürer de 1494 e uma

cópia de uma gravura anônima da Itália Setentrional – e vislumbra:

A revelação de um autêntico espírito antigo, pois a composição remete indubitavelmente a uma obra antiga perdida que representava a morte de Orfeu ou talvez a morte de Penteu [...] seu estilo é diretamente influenciado pela linguagem típica gestual patética da arte antiga, desenvolvida pela Grécia para essa cena trágica [...] a morte de Orfeu aparece também em outras obras de arte de caráter bem distinto, como por exemplo, no caderno de desenhos da Itália Setentrional, nos pratos de Orfeu da coleção Correr, numa placa do Museu de Berlim e em um desenho no Louvre. Todos eles demonstram, em concordância quase perfeita, a vitalidade com a qual a mesma “fórmula de pathos”, arqueologicamente fiel, inspirada numa representação clássica de Orfeu ou Penteu, se instalara nos circuitos artísticos. (WARBURG, 2013 p.435 e 436).

Dessa forma, o autor observa nas imagens da sua época uma tipologia visual

retomada, reengendrada, forças energéticas destruidoras ou apaziguadoras (caráter

dionisíaco e apolíneo), polaridades conflitantes que caminham juntas aos movimentos

patéticos presentes nas imagens e que nos aplacam.

Inerente à imagem, além de sua força de pathos, há um trânsito de formas,

fragmentos, memórias, esquecimentos, enfim, um legado cultural preservado que se

dinamiza e garante sua sobrevivência, sua pós-vida existencial em outras épocas. Essa

dinamização de formas, explica Warburg, não obedece a nenhum sistema disciplinar e

cronológico para que elas sejam evocadas. São “aparições fantasmáticas” (Didi-Huberman,

45 O termo pathos é fundamental para a compreensão do conceito warburguiano de Pathosformel e por extensão auxilia no entendimento sobre a imagem. Pathos significa sentimento de paixão e emoção, e também sofrimento, ser afetado positiva ou negativamente por algo, como demonstra Bordelois (2007) em amplo estudo sobre a etimologia do termo na cultura ocidental. A autora estabelece tensionamentos entre o pathos e a cobiça, avareza, inveja, ciúme, tristeza, mas também com alegria, felicidade e esperança. Assim, no pathos configura-se uma ambivalência que é típica também à imagem. 46 “Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, recebeu de seu pai, como presente, uma lira e aprendeu a tocar com tal perfeição que nada podia resistir ao encanto de sua música” (BRANDÃO, 2014, p.463). Após a morte da amada Eurídice, recusava enfaticamente qualquer donzela que se aproximasse, até que em certa ocasião, jovens Mênades excitadas pelos ritos de Baco lançam dardos em Orfeu matando-o violentamente e arrancando sua cabeça, cena esta desenhada por Albrecht Dürer.

65

2013), Nachleben der Antike (pós-vida do antigo) que brotam de imemorialidades, estão

nas franjas da cultura, nos entremeios, nos espaços desconsiderados e vivências recalcadas.

São formas metamorfoseantes que irrompem do subterrâneo das imagens – fluxos e

refluxos –, heranças que se dinamizam.

No processo de elaboração desse conceito, Warburg devota especial atenção à

serpente e a sua dinâmica de movimento quando pesquisa no Novo México47 rituais dos

índios Hopi e posteriormente vislumbra elementos de parecença presentes tanto nos rituais,

quanto em obras de arte greco-romana, como nos drapeados esvoaçantes da pintura

renascentista. Por meio desses estudos, Warburg elabora o conceito de Nachleben, uma

pós-vida das imagens “quando seus elementos se transportam de uma cultura e de uma

época para outra” (BAITELLO JR., 2010, p.60), ou seja, uma espécie de etimologia

comum entre imagens, cuja transmissão muitas vezes ocorre por uma mobilização

inconsciente de forças emotivas, movimentos fósseis psíquicos imperceptíveis e ondas de

memória. Esses movimentos migratórios de um “cerne arcaico” (Baitello Jr., 2010)

aparecem de tempos em tempos, não obedecem qualquer ordem cronológica e, por meio de

combinações múltiplas – inclusive contraditórias –, agem morfologicamente plasmando-se

na imagem.

Dilacerando as perspectivas científicas rígidas em torno da imagem, Warburg

observa contundentemente os sintomas que dela emanam, percebendo entrelaçamentos de

forças nela presentes. Portanto, para o autor, a imagem atua como um condensador e

amplificador de energias, um dínamo de forças (Dynamogramm) simbólicas que traz em si

uma força de apaixonamento (Pathosformel) junto a suas memórias, esquecimentos, lastros

arcaicos (Nachleben), ou seja, toda uma potencialidade simbólica que se desdobra

dialeticamente. Para Warburg, a sobrevivência advém como imagens.

47 Warburg, em viagem ao Novo México, nos Estados Unidos, em 1895, pesquisa o ritual da serpente entre os índios Hopi, assim como os motivos iconográficos da tribo análogos à dinâmica de movimento do animal ctônico. Nesses rituais, os Hopi dançavam com os animais entrelaçando-os ao corpo coreograficamente, pois acreditavam que eles agiam como um catalisador de forças naturais. Ao presenciar tais rituais, o autor evoca a imagem do célebre grupo escultural do Laocoonte e, nesse sentido, passa a investigar a existência de fórmulas patéticas primitivas (Pathosformel) entre os rituais indígenas com outros ritos primitivos e pagãos, vislumbrando características essenciais das sobreviventes na cultura. Segundo Warburg (2008, p.48) o “ritual da serpente poderia ser associado, por sua natureza, às práticas mágicas da Antiguidade greco-romana”. Em 1923, após o período de internação na clínica psiquiátrica Bellevue, a fim de provar sua cura psíquica, Warburg profere conferência sobre a pesquisa no Novo México intitulada “A sobrevivência da humanidade primitiva na cultura dos índios Pueblo”, o que lhe permitiu, pouco tempo depois, receber alta médica.

66

Nessa complexificada conjunção de forças e energias presentes na imagem, reduzi-la

em sistemas classificatórios específicos e estanques significa amputar seus lastros arcaicos

e rebaixá-la à mera classificação formal, desconsiderando suas fissuras labirínticas – e

territórios insondados – de onde emergem fragmentos simbólicos. Compreendemos assim,

baseados nessa constelação de autores que complexificam o fenômeno da imagem, e

sobretudo em Warburg, que devemos analisar criticamente este objeto sob uma mirada

fractal que, ao mesmo tempo em que permite um vislumbre enviesado, esteja interligada ao

todo, conjugando paradoxos e ambivalências, observando a imagem em seu devir

metamorfoseante. Sob esse aspecto, ao considerarmos este objeto em modulações como a

mítica, cúltica, artística e midiática não estamos seccionando fragmentos específicos de

maneira isolada, mas analisando um viés complexificado ao todo, o que nos permite

afirmar níveis energéticos e polaridades distintas entre essas modulações da imagem, todos

eles em constante dinâmica fluida.

Sob essa perspectiva, buscou-se discutir criticamente neste capítulo o conceito de

imagem seguindo um lastro antropológico e histórico, não seccionando e

compartimentando-o em classificações estanques, mas relacionando e cotejando-o em

distintas miradas. Junto à apresentação deste, abordamos o esquema fenomenológico de

“escada da abstração” elaborado por Vilém Flusser que, dentre outras proposições,

contempla uma ontologia subtrativa que mantém diálogo premente com a imagem, suas

abstrações e consequências na comunicação contemporânea. Em meio a essa ambiência,

portanto, propusemo-nos a contextualizar o objeto de estudo, o ato fotográfico de Wolf em

meio ao GSV.

Dessa forma, estando este objeto de pesquisa no horizonte da imagem midiática,

faz-se necessário que o pensemos complexamente tal como sugerem os autores

referenciados neste capítulo. Salientamos assim que nossa pesquisa não se circunscreverá a

análises de possíveis significados das imagens produzidas pelo fotógrafo Michael Wolf,

mas será desenvolvida considerando o processo de confecção da série Street View: a busca,

as escavações e os múltiplos scannings do artista por imagens nas fotos do projeto GSV.

Com essa projeção e relacionando os conceitos apresentados neste capítulo ao

objeto desta pesquisa, surgem indagações que nortearão o desenvolvimento do próximo

capítulo:

67

a) De que modo se caracteriza o ambiente das imagens midiáticas e o atual estágio

antropológico de vivência na e pelas imagens? (no qual a imagem se sobressai

e toma o lugar das coisas concretas), e, qual o papel da mídia nesse cenário?

b) Seria possível uma arqueologia da visualidade? Se sim, qual seria sua

importância para a comunicação no contemporâneo?

c) De que modo se articulam a imaginação e a dinâmica fotográfica de Wolf?

68

2 IMAGINAÇÃO COMO ARQUEOLOGIA DA IMAGEM

“Seus olhos estão escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu semblante está voltado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa a seus pés [...] mas uma tempestade sopra do paraíso e prende--se em suas asas com tanta força que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas diante dele cresce até o céu” Walter Benjamin, sobre a obra Angelus Novus de Paul Klee.

“Vamos então, coração, mente e coragem, adentrar o abismo insondável de todas as coisas adoráveis” Henry Suso, frei místico medieval.

O cenário de aquecimento industrial e o desenvolvimento de aparatos técnicos de

imagem nas primeiras décadas do século XX elevou a níveis exorbitantes sua quantidade e

ampliou sua disseminação em diversos ambientes. Como afirmamos no capítulo inicial,

nos dias atuais, estima-se que a quantidade de fotografias produzidas a cada dois minutos

supere o contingente produzido em todo século XIX – e essa produção continua se

elevando exponencialmente –, um forte sintoma do “ápice do programa de visibilidade em

voga desde o período moderno” (KAMPER, 2016, p.68). Lançado em 2007 com o

objetivo, de certa forma renascentista, de ser a janela do mundo, o Google Street View

também está intimamente associado a essa emergente avidez pela visibilidade que se

plasma na projeção do mundo em imagem, impactando diretamente na dimensão

imaginária, “apropriando-se das imagens que produzimos em nossos corpos” (BELTING,

2011, p. 79). Essa voracidade da imagem externalizada – e projetada em grande parte pelo

ambiente midiático – em ocupar múltiplos ambientes e temporalidades é porque nela a

visibilidade se torna pedra de toque e, dessa forma, são utilizadas distintas formas de

mediação como outdoors, panfletos, painéis eletrônicos, cartazes, jornais, revistas,

ciberespaço, entre outros suportes peculiares48, que praticamente não possibilitam áreas de

escape ao nosso olhar, fonte essencial de animação dessas imagens.

Diante de ambientes intensamente povoados pela imageria midiática

contemporânea, instala-se, como já diagnosticou Kamper (2002), uma incapacidade 48 Já é comum na cidade de São Paulo, por exemplo, anúncios publicitários em cartazes ou vídeo posicionados dentro de banheiros masculinos (especificamente à frente de mictórios individuais) em bares/casas de show, hastes de catraca em estações de trem e metrô, na parte externa dos trens e até mesmo no chão desses veículos.

69

premente dos olhos em acompanhar a ubiquidade de imagens fragmentárias, velozes e

repetitivas que, não totalmente consumidas, amontoam-se nos ambientes midiáticos na

forma de dejetos imagéticos residuais os quais provocam crescente embotamento

perceptivo. Sob esse cenário, portanto, investigaremos inicialmente neste capítulo o

conceito de imaginário em Dietmar Kamper, estabelecendo diferenças entre a acepção

deste autor e seu uso pelas teorias do imaginário. Em referência ao primeiro, reforçaremos

a noção de um intenso povoamento das imagens nos ambientes midiáticos analisando a

apreciação de mediosfera, elaborada por Contrera (2010). Sob esse contexto, refletiremos

criticamente sobre o acúmulo dessas imagens e seus rastros maldigeridos que giram

repetida e orbitalmente em nosso entorno e acossam a imaginação.

Após essa argumentação inicial, investigaremos o modo como o ato fotográfico de

Wolf se articula à imaginação e sugeriremos que tal combinação pode se configurar como

uma espécie de arqueologia da imagem, de modo a auxiliar com os dejetos imagéticos da

órbita imaginária e, por consequência, modular beneficamente a relação homem X

imagem midiática. Caracterizaremos assim, possíveis dinâmicas dessa prática

arqueológica imaginativa, configurando o “terreno” onde ela ocorreria e sugerindo que,

por sua mediação, seria possível vislumbrar fissuras que romperiam a tirania das imagens

midiáticas.

2.1 De Kepler a Kamper, ou da órbita planetária à órbita imaginária

Na Física Clássica, o nome de Johannes Kepler (1571-1630) figura entre os

célebres cientistas protagonistas da revolução científica do século XVII e, especificamente,

está associado a descobertas importantes sobre movimentos da mecânica celeste, em

especial a revelação de que as “órbitas dos planetas não são perfeitamente circulares, mas

sim elípticas” (ÁVILA, 1989, p. 1), a qual auxiliou no desenvolvimento das chamadas Leis

de Kepler. Em uma época cujas fronteiras entre astrologia e astronomia misturavam-se, o

astrônomo observou e estudou os movimentos planetários, descrevendo-os como elípticos

que se configuram como “trajetória curva descrita em torno de dois pontos fixos sob

influência de alguma força” (MOURÃO, 1988, p.261).

Interessa-nos notar aqui, como pontos fundamentais a esta pesquisa, as ações do

movimento elíptico de um corpo ao redor de outro, recuperando inicialmente a etimologia

da palavra elipse, cuja origem do grego élleipsis (έλλειψη) remete a “não alcançar, deixar

70

de fora” (CUNHA, 2010, p.238). Assim, o movimento elíptico configura uma órbita

imperfeita (do latim orbis, círculo) em torno de algo, porém, sem tocá-lo. É o movimento

dos planetas ao redor do Sol que serviu de inspiração a Kamper (2016) para refletir sobre a

dinâmica da imageria contemporânea em sua relação com as pessoas e com o imaginário

cultural.

2.2 A órbita imaginária

Dietmar Kamper aborda o ambiente excessivo de imagens na atualidade sob um

viés singular: trata-se de imagens (e seus restos inconsumidos), sonhos fracassados,

totalitarismos e dejetos culturais em suas distintas manifestações que orbitam elipticamente

em nosso entorno, emparedando nossa perspectiva. “É um coletivo imaginário de

proporções mundiais, é uma imensa bolha, pura imanência sem exterior, uma prisão feita

de imagens de liberdade [...] aqui o real acontece somente como assombração” (KAMPER,

2009, p.29). Ainda na concepção do autor, esses dejetos que nos circundam elipticamente

(denominados por ele imaginário) configuram-se como:

Uma órbita a partir das ruínas das grandes obras da humanidade: religião, estado, filosofia, arte e técnica. É um novo tipo de prisão; não é feita de muros e sim de desejos e sonhos fracassados, principalmente do sonho da razão que, há dois séculos, tem gerado monstros. Por motivos de simplificação, isso recebe aqui o nome de “imaginário”, um caldeirão pós-histórico de estratégias históricas ligadas à realidade e à aparência [...] O imaginário é a relação dos seres humanos com seus corpos. É resultado inesperado de um trabalho realizado no medo do sexo e da morte. Funciona como um escudo protetor. Estende-se na imagem-superfície e não no corpo-espaço. É tão intocável quanto as imagens que o constituem. É uma superfície ilimitada que encobre um núcleo finito e mortal até torná-lo irreconhecível. É um universo do espírito, aversivo e hostil ao corpo, a tudo o que do corpo provém. É um duplo daquilo que se entende até agora por realidade, mas não real e sim virtual. Sua modalidade não é nem a necessidade nem a realidade, mas o possível. O que um dia já foi necessário ou real, agora virou possível. Consiste em restos de sonhos, nostalgias, esperanças, visões, mas também de dejetos de programas fracassados, conceitos, projetos. Um lixo histórico na reciclagem da cultura. Seu tempo é o futuro do pretérito. Tudo o que é terá sido. Neste sentido, ele tem seu futuro sempre no passado. O imaginário, do ponto de vista interno, nunca aconteceu. Por fora, nega sua origem. Jamais pode parar. Tem uma eternidade fatal que força seus prisioneiros à compulsão pela imagem. (KAMPER, 2016, p.117).

A perda da corporeidade, a abstração e a compulsão por imagem são marcas

significativas – e que se entrelaçam – dessa imensa bolha opaca e autorreferente que é a

71

órbita imaginária kamperiana. Essas imagens ubiquitárias tendem a representar e a emular

a realidade, porém, gradativamente tornam-se autorreferentes, sua imanente

superficialidade e veloz disseminação tendem a encobrir os lastros simbólicos profundos

contidos nas múltiplas camadas das imagens. Essa imensa bolha é, como afirma o próprio

autor, uma grande festa com participação espontânea dos envolvidos (Kamper, 2016) que

se utilizam e creem piamente nas imagens luminosas repetidas em looping infinito na atual

cultura das telas. Nesse ambiente onde o homem “é só Narciso sem eco” (KAMPER, 2016,

p.91) fabricam-se repetidamente verdadeiras “cavernas de imagem” que funcionam como

prisão de espelhos e praticamente não possibilitam ver “nenhum além para além de sua

própria cavidade” (KAMPER, 1997, p.232), perfazendo uma imanência de instâncias

totalitárias.

Ligada principalmente à fabricação técnica de imagens e à expansão dos meios de

comunicação, a dilatação da órbita imaginária se dá de forma autorreferente, alimentando-se

“não de sonhos, mas de seus restos, derrotas, frustrações e conteúdos reprimidos”

(OLIVEIRA, 2014, p.168) que elipticamente circulam em sua concavidade fechada e

seduzem corpos cuja materialidade é abstraída para um mundo encapsulado de imagens

“desprovidas de referência (Bildhaftigkeit)” (KAMPER, 2016, p.56). Devoradoras e

devoradas de forma incompleta – pois perdem lugar para outras imagens semelhantes que

velozmente se substituem umas as outras - elas formam um grande receptáculo de restos

inconsumidos que emparedam sonhos fracassados e recalcamentos, construindo um

depósito de rejeitos que formam aparentemente um mundo total, “não se podendo saber se

há algo além dos próprio media” (MARCONDES, 2007, p.157). Nessa imanência

midiática, a tridimensionalidade e a complexidade dos corpos são reduzidas à abstração

imagética, leva-se uma vida diante de espelhos de nós mesmos, é um presente impossível

pois sem corpo, o continuum temporal, a dinâmica da vida e seu devir de transformação

são substituídos pela superficialidade das imagens; os corpos no tempo cedem lugar a

corpos na imagem, em uma espécie de estrangulamento do diagnóstico benjaminiano sobre

a modernidade no qual apontava para a rarefação da experiência (Erfhärung).

Nesse sentido, convivem em relação parasitária a caverna orbital imaginária e os

corpos: a primeira parasitando vivências biossociais e devorando estes, que, devorados,

também devoram imagens, engendrando assim, como afirma Baitello Jr. (2005), um ciclo

esfaimado, no qual a saciedade inexiste. Diante de tal ambiência de contínua fagia,

72

notabiliza-se consequentemente nossa incapacidade para o consumo total dessas imagens,

as quais, inconsumidas e/ou maldigeridas, acumulam-se junto aos restos e rastros

simbólicos nas vias labirínticas e nos cantos dessa órbita elíptica imaginária. Nesse

cenário, portanto, há uma compensação distrófica a essa impotência: mais e mais imagens

passam a circular nessa bolha de imanência imaginária acrescendo ainda mais os acúmulos

residuais e cerrando os horizontes do sentir.

Sob esse escopo, nota-se que o padrão autóctone da voracidade multiplicadora da

órbita imaginária eleva exponencialmente a quantidade de imagens, caracterizando no

interior dessa caverna imaginária um “culto telemático da imagem que funciona como

veneração de Moloch49, com o corpo como sucata e lixo” (KAMPER, 2002, p.7). Assim, a

caverna especular forma uma imensa massa de superficialidade visual que de modo

autorreferente se repete ad nauseam, “vazio recoberto por vazio” (KAMPER, 2002, p.7).

Essas imagens da órbita perfazem um movimento elíptico que não toca em dimensões

imaginárias mais profundas e, consequentemente, não toca a nascente e o lugar de

transformação das imagens, o corpo. Praticamente descartado da ação de transformar e dar

vida a novas imagens, o corpo apenas assiste à dinâmica da órbita em contínuo movimento

repetitivo, tornando-se também, dessa forma, imagem dela, cuja configuração precisa estar

ajustada a sua visibilidade solarizada, já que passa a ser menos corpo e mais imagem, da

ordem da virtualidade e abstração.

A órbita do imaginário atua como uma ampla caverna elíptica de espelhos que se

apresenta na superfície e está constantemente em um ciclo dinâmico, fechado e

tautológico. Compõe-se, assim, um novo “céu artificial” (KAMPER, 2016, p.74) onde se

projetam, como explanado no capítulo um, novas constelações de imagem e, tal como o

espetáculo debordiano, a órbita do imaginário é “o sol que nunca se põe no império da

passividade moderna [...] recobre toda a superfície do mundo e está indefinidamente

impregnado de sua própria glória” (DEBORD,1997, p.17).

49 Deus Cananeu e demônio na tradição cristã e cabalística. Ligado ao sacrifício de crianças, identificado na tradição grega como Cronos. Fonte: Encyclopedia Mythica, disponível em: http://www.pantheon.org/articles/m/moloch.html. Acesso em 01/03/2016.

73

2.3 Mediosfera e órbita imaginária

É interessante notar que Kamper – para descrever e refletir sobre o cenário de

hipertrofia da visualidade a partir dos aparatos midiáticos – faz uso da palavra imaginário,

que aqui tem um peso específico, necessitando assim ser diferenciada da concepção

clássica de imaginário cultural, mas também em certo sentido, evocando-o.

Nos estudos clássicos sobre o imaginário, há perspectivas de abordagem com viés

cultural e com respaldo na psicologia arquetípica. No caso da primeira abordagem, autores

como Gaston Bachelard (1884-1962), Henri Corbin (1903-1978), Gilbert Durand (1921-2012)

– discípulo dos dois primeiros –, Mircea Eliade (1907-1986) e Roger Caillois (1913-1978)

são alguns dos mais importantes, cujos trabalhos se debruçaram sobre o modo como o mito

configura a estrutura imaginária em atividades como a vida cotidiana, religião, ciência,

literatura, filosofia, arte, etc. Durand – cuja tese de doutoramento intitulada As estruturas

antropológicas do imaginário – é autor basilar para a compreensão sobre o tema, pois

salienta a importância antropológica do simbólico, cria bases epistemológicas como os

“regimes diurnos e noturnos da imagem” e enfatiza o movimento, a trajetória em si mesma

da imageria que repousa no imaginário, onde, por excelência – citando seu mestre

Bachelard –, “é o lugar não onde se formam imagens, mas onde elas são deformadas pela

ação imaginante”50 (DURAND, 2012, p.30).

Pesquisando no âmbito dos arquétipos, há o trabalho fundamental de C.G Jung

(1875-1961) e neojunguianos como James Hillman (1926-2011) sobre a influência de

imagens universais e primordiais em nossas vidas51. Não cabe a esta tese, no entanto,

refletir sobre teorias específicas de cada um dos autores mencionados, mas, sobretudo

compreender a concepção clássica de imaginário como um “sistema organizador de

imagens [...] onde o sentido se encontra na relação entre elas” (BARROS, 2014, p.52) e

age em diferentes esferas da vida, como referido acima.

50 No sentido de transformar, ressignificar as imagens primeiras. É importante enfatizar também que Durand (2012) opondo-se duramente à concepção racionalista de Jean Paul Sartre sobre o imaginário - que afirma que o pensamento é empobrecido pela imagem - inverte essa acepção e afirma que são as imagens que enriquecem o pensamento: “mesmo um pensamento afinado, de cem mil francos, não pode prescindir das imagens de quatro vinténs” (DURAND, 2012, p.31) e a riqueza da ação imaginante reside nas metáforas, afirmação esta que tem papel fundamental no desenvolvimento desta pesquisa. 51 No texto “Raízes dos estudos do imaginário: teóricos, noções e métodos”, a autora Ana Taís Martins Portanova Barros (UFRGS) nos fornece, como o próprio título do texto sugere, um mapeamento amplo e aprofundado sobre estudos da área.

74

Diante dessa configuração do imaginário cultural e cotejando-o com o conceito

kamperiano de “órbita do imaginário”, que tem relação premente com o ambiente da

comunicação contemporânea, duas questões surgem de imediato: Esses “imaginários” se

distanciam? Em que medida? Há influência entre eles? O próprio Gilbert Durand (1998)

alerta para o tríplice perigo das imagens midiáticas sobre as “gerações do zapping”, já que

hiperinflacionada e onipresente sob diversas formas, elas “sufocam o imaginário, nivelam

valores de grupo – isto é, homogeneízam indevidamente valores e culturas – e podem

escapar ao controle daqueles que pretendem governar” (DURAND, 1998, p.120), no

sentido em que se enxergam apenas os benefícios desta revolução civilizacional. Nesse

diagnóstico que sugere prejuízos, o autor afirma que o imaginário e a criatividade são as

vítimas sacrificiais, tomados pelas imagens na era da mídia eletrificada.

As difusoras de imagens – digamos a mídia – encontram-se onipresentes em todos os níveis de representação e da psique do homem ocidental ou ocidentalizado. A imagem midiática está presente desde o berço até o túmulo, ditando as intenções de produtores anônimos ou ocultos: no despertar pedagógico da criança, nas escolhas econômicas e profissionais do adolescente, nas escolhas tipológicas (a aparência) de cada pessoa, até nos usos e costumes públicos ou privados, às vezes como informação, às vezes velando a ideologia de uma propaganda e noutras escondendo-se atrás de uma publicidade sedutora. (DURAND, 1998, p.33 e 34).

Contrera (2010) também nos fornece rastros importantes sobre este tema,

afirmando que a expansão da imageria midiática recente é tão intensa que se pode falar de

um imaginário próprio à mídia, ou mediosfera, que certamente influencia o imaginário

cultural e vice-versa.

Se até meados do século XX os meios de comunicação reeditavam com poucas intervenções os conteúdos do imaginário cultural que são ancestrais (milenares) e arquetípicos, suficientemente enraizados em vivências comunitárias, ou seja, se contentavam em ‘vender a varejo o coração e a alma’, a partir da ação dos meios de comunicação de massa eles começam a criar uma versão própria desse imaginário e a propagá-la de tal modo que podemos conferir a esse processo um status de crescente autonomia em relação ao imaginário cultural. Essa nova versão e inicialmente gerada pelos processos de seleção, edição, composição e re-contextualização desses conteúdos e de sua representação em imagens audiovisuais, que podemos dizer que constituem uma visão bem própria, para em seguida ser proposta pela criação de simulacros dos meios eletrônicos, onipresentes em sua possibilidade técnica então emancipados radicalmente da experiência social comunitária. (CONTRERA, 2010, p.56 e 57).

75

Percebe-se, neste contexto, uma apropriação gradual de padrões míticos e

arquetípicos para a esfera da mídia eletrônica contemporânea, que, obedecendo quase que

unicamente a critérios econômicos de visibilidade e audiência, pasteurizam e

homogeneízam conteúdos do imaginário cultural52. Essa imageria padronizada, superficial

e que objetiva ser digerida rapidamente por espectadores, nasce no contexto de

proliferação dos aparatos de reprodutibilidade midiáticos. Com a crescente inflação das

imagens midiáticas, afirma Contrera (2010), pressionam-se internamente as estruturas do

imaginário cultural que cede espaço à mediosfera (imaginário midiático), ou seja, dilata-se

a mediosfera que empurra para segundo plano o imaginário cultural. Nesta inversão de

papéis que sobrevaloriza o imaginário midiático, a mediosfera torna-se uma estrutura de

imagens midiáticas prêt-à-porter que tem como isca um verniz superficial mítico e

arquetípico.

Nesse contexto, o imaginário cultural é acossado, fica relegado a algo menor,

tratado pela mídia como instância fantasiosa e ficcional. No lugar dele, a mediosfera que,

ao cabo, é análoga à órbita imaginária descrita por Kamper (vale lembrar: a esfera também

é cerrada como a órbita imaginária), cuja estrutura elíptica comporta imagens reluzentes,

solarizadas, superficialidades vazias trajadas de entretenimento e, que, em sua dinâmica

elíptica, não toca (ou pouco toca na concepção referida de Contrera), não atinge o

imaginário cultural mais profundo, apenas o circunda velozmente em looping contínuo e

infinito. Assim, mediosfera e órbita do imaginário – receptáculos de imagens midiáticas e

ambientes do objeto desta pesquisa – ao contrário de outras ambiências e nuanças da

imagem que requerem temporalidades esgarçadas e olhar inventivo, querem fagia imediata

e visadas velozes, apenas o zapping dos espectadores.

2.4 Dejetos e a premência de uma arqueologia

A onipresença da órbita do imaginário na cultura contemporânea com seus dejetos

moldados em fracassos, totalitarismos e overdose de imagens provocam, afirma Kamper

(2007), o extenuamento da visão, já que esse sentido passa a ser constante e intensamente

solicitado pelas imagens autorreferentes da caverna orbital espelhada, prenhe de lixos e

rejeitos inconsumidos. Diante desse cenário no qual a órbita imaginária se expande (e se

52 No texto “Publicidade e mito” in Publicidade e Cia. (2003), Contrera analisa a transformação de padrões míticos em formatos estereotipados presentes na publicidade atual.

76

autoconsome gerando mais lixo) na cultura, de que forma é possível pensar e lidar com

esses dejetos? Tendo como referência uma reflexão de Vilém Flusser (1972) sobre nossa

incapacidade para o consumo, e na trilha dos rastros kamperianos que configura o

imaginário como “depósito universal de detritos” (KAMPER, 2016, p.56), compreendemos

como uma das possibilidades, primeiramente assumir essa impotência para o consumo total

da natureza transformada em cultura e posteriormente revisitar o inconsumido53.

No texto “A consumidora consumida” publicado na revista Comentário em 1972,

Flusser aborda de maneira genérica54, entre outras coisas, a atual incapacidade da

sociedade do consumo em consumir tudo o que produz, consumo este que é visto por uma

ótica invertida, pois, segundo o autor:

Aquilo a que chamamos de sociedade de consumo é justamente uma sociedade que não consegue consumir tudo o que produz, gerando uma grande quantidade de lixo, de detritos […] que não são mais natureza – são o resultado de sua devoração – e também não são cultura, visto que já foram usados e descartados. (FLUSSER, 1972, p.35).

Em uma abordagem com viés antropológico, o autor afirma certa novidade histórica

em nossa incapacidade para o consumo, já que “desde o Paleolítico até a Segunda Guerra

Mundial, os bens produzidos nunca conseguiram suprir a avidez da demanda” (FLUSSER,

1972. p.35). Na crença de um consumo interminável, incrementam-se os ritmos de produção

53 Ao abordarmos a órbita imaginária (neste trabalho, em parte, representada pelas imagens que estão disponíveis no Google Street View) em paralelo à reflexão flusseriana sobre o reino do lixo, fazêmo-lo de forma alegórica em sentido benjaminiano. Nos textos “Origem do drama trágico alemão” e “Paris do segundo império em Baudelaire”, Benjamin aborda o modo específico de constituição de sentido da alegoria que, na historicidade moderna, ganha importância fundamental já que com o choque e as novas dinâmicas do período, o significado das coisas tende a se rarefazer. Na alegoria, a historicidade aparece como forma imagética e o princípio fundamental de atribuição de sentido está na subjetividade, oportunizando, dessa forma, um amplo panorama para a denominação das coisas, cujos sentidos passam a ser libertados de um único contexto: “Cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra coisa” (BENJAMIN, 2013, p.186). Afirma ainda o autor: “No campo da intuição alegórica a imagem é fragmento, runa. A sua beleza simbólica dilui-se, porque é tocada pelo clarão do saber divino” (BENJAMIN, 2013, p.187), ou ainda “[…] as alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas […] e nas ruínas jazem os fragmentos altamente significativos” (BENJAMIN, p.189 e 190). Um clássico exemplo de forma alegórica é a referência do autor à obra Angelus Novus (1920) de Paul Klee quando comenta “[…] enquanto o amontoado de ruínas diante dele cresce até o céu”: muitos estudiosos viram na frase uma referência aos milhares de corpos vítimas do holocausto e também ao cogumelo atômico das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Sob esse escopo alegórico, portanto, consideramos as imagens depositadas no Google Street View como imagens e dejetos inconsumidos e maldigeridos da cultura contemporânea e não como virtualidade em potência, à espera de usos e mediações. 54 Segundo o Prof. Dr. Norval Baitello Junior, em aula proferida no dia 07/11/2013 e registrada em áudio, Flusser aborda, de forma ampla, a incapacidade humana em consumir a totalidade da natureza transformada em cultura, cujos restos formam o “reino do lixo”. Apesar de não analisar em seu texto especificamente o objeto imagem, afirma o Prof. Baitello, Flusser nos instiga a pensar, por exemplo, na questão do lixo imagético que se forma pela nossa incapacidade de consumo total de imagens.

77

que culminam em um labirinto repleto de produtos, por onde caminham os homens

ocupados em produzir, transportar e desesperados por consumir tudo o que produziram

(FLUSSER, 1972). Configura-se assim a necessidade de um consumo (devoração)

exponencial e desmesurado que não objetiva a saciedade, mas que gera mais necessidade

de produção, justificando, mesmo que falsamente, a ânsia progressiva de consumo

(FLUSSER, 2008b). Nessas vias labirínticas, no entanto, acumulam-se nos cantos restos

inconsumíveis:

Em todos os cantos do labirinto está se amontoando lixo, isto é, restos inconsumíveis. E é este lixo que merece uma atenção mais apurada, porque tende a ser a parte mais determinante da condição humana. O lixo que está inundando a cultura na forma de produtos maldigeridos e vomitados (produtos materiais e ideais), não apenas perturba os passos dos homens que perambulam no labirinto, corta as plantas dos seus pés com seus cacos, infecta com as bactérias de podridão os seus pulmões e suas mentes, mas ainda atrai os homens com sua moleza informe de lodo. (FLUSSER, 1972, p.36).

A má digestão daquilo que não foi completamente consumido provoca seu retorno,

mas não ao reino da natureza ou ao da cultura. Esses restos inconsumidos e não

metabolizados plenamente formam um terceiro reino, o do lixo, que é o passado da cultura,

ambiência de recalcamentos que se divide em duas partes: superficialmente, uma fina

camada de valores e formas, um passado assumido, “guardado na memória, nos silos, nos

arquivos [...] sempre apresentável e disponível” (FLUSSER 1972, p.39), ou seja, como

reitera Kamper (2016, p.56) “imagens desprovidas de referência [...] o imaginário como

modelo de dominação mundial, que se consome vertiginosamente”. Logo abaixo da

camada superficial, um grosso estrato de dejetos formado por vivências recalcadas, sonhos

fracassados, um passado recusado e não exibido “aparentemente eliminado e superado”

(KAMPER, 2016, p.56), que sub-repticiamente se apresenta de forma ardilosa, atestando

nossa impotência total para o consumo e “condicionando-nos muito mais que o

armazenado e deliberadamente apresentado” (KAMPER, 2016, p.56). Com o

conhecimento dessas camadas de dejeto, pergunta-se: de que modo acessar esses níveis

profundos que nos condicionam?

Para essa pesquisa de lixos atuantes, afirma Flusser, deve-se recorrer às ciências

arqueológicas diversas como ecologia, psicanálise, etimologia, mitologias, ecologia,

ciências da cultura, entre outras. Por meio dessas arqueologias profundas (pesquisa de lixo)

de revolvimento de camadas, que acessam importantes conteúdos recônditos, objetiva-se

78

alcançar e reconhecer a importância de capilaridades simbólicas recônditas e/ou

descartadas que, a despeito de eclipsadas, continuam como fontes influentes em nossas

vidas, pois, muito mais que o estrato superficial rememorado ampla e continuamente, é o

“passado recusado, jogado fora, que passaram a condicionar as perspectivas da sociedade

futura” (BAITELLO JR., 2010, p.26).

Fora de um eixo metodológico strictu sensu, essa perspectiva arqueológica, em

nosso ponto de vista, deve operar com mobilidade, deslocando-se por práticas, tramas

culturais e simbólicas, buscando inter-relações e pontos quiasmáticos, contornando e

tangenciando saberes distintos, deflagrando rastros e sugerindo possibilidades, tal como

afirma Foucault (2007) trabalhando com um “emaranhado de interpositividades” e,

deslocando-se da ciência e suas verdades epistemológicas para o nível do saber do homem,

complexificando e articulando conhecimentos (MACHADO, 2006).

Diante do cenário iconomaníaco que se articula na cultura (ANDERS apud

BAITELLO, 2010) – observável, sobretudo, pela constante produção, disseminação e

vivência nas imagens – e seu efeito colateral gerador de dejetos, projeta-se, assim, a

formação de um reino de lixo constituído por imagens. Sobre essa montanha residual, faz-se

necessário revolver nas sobras, articular escavação verticalizada em distintas camadas que

vasculhe rastros. Nessa busca, a dinâmica arqueológica se mostraria como um drible na

órbita imaginária e delinearia sobretudo uma fuga da imanência visual midiática e seu

tatibitate autorreferente. Trata-se de um desviar-se constante em busca de brechas e

porosidades, um tatear na terra escura, quebrar o espelho, superar a solar imanência visual

da órbita elíptica imaginária e alcançar rastros crepusculares e noturnos de imaginação.

Ante a essa premência, vislumbramos que a dinâmica fotográfica estabelecida por

Wolf pode se constituir como uma arqueologia da imagem, prática esta pautada pela

imaginação, cujo resultado são imagens distintas das tradicionais imagens da cidade luz55.

O processo fotográfico adotado pelo fotógrafo consiste em escanear – na acepção

flusseriana do termo – as imagens do site GSV e fotografar singularidades, detalhes

peculiares e/ou o desdobramento de outras imagens dentro das próprias imagens. Nesse

desenvolvimento, compreende-se que o ato fotográfico poderia operar como deflagrador de

portais imaginativos, os quais possibilitariam a formação de imagens em um espiral de

55 É importante salientar alguns dos questionamentos iniciais de Wolf sobre fotografar Paris: “Como fotografar Paris sem recorrer aos milhares de clichês visuais produzidos por mais de 100 anos? Como não repetir um Atget ou um Brässai?”.

79

outras imagens, formar-se-iam vórtices, imagens em abismos, como afirma Baitello Jr.,

citando Eduardo Peñuela Cañizal56.

Sabe-se que o conceito de vórtice ou vortex está ligado à física, especificamente à

mecânica de fluídos, e se caracteriza por um escoamento giratório que perfaz linhas

circulares e elípticas, causando um espiralamento por diferenças de pressão57. No que

tange às imagens58, quando Wolf fotografa, ele não está apenas seccionando partes

específicas, mas antes rasgando a imagem em sua dimensão imanente, gerando um

turbilhonamento de outras imagens, fractalizando perspectivas, criando dobras e

espacialidades. Seu “método” é uma operação dialética que articula não um jogo opositivo

entre parte X todo, tese X antítese, mas engendra ambas as partes quiasmaticamente59.

Configura-se, assim, um ato fotográfico aleatório que tem no refluir do tempo lento e na

deriva um estímulo à imaginação, a qual prospecta rastros, desdobra outras imagens e faz o

autor deparar-se com suas irrupções sintomáticas. Prática fotográfica que opera como uma

arqueologia imaginativa da imagem.

2.5 Entre rastros e restos

A arqueologia enunciada por Foucault mantém certo padrão constelar, já que opera

dialeticamente contrapondo saberes e procedimentos entre a ciência moderna e o chamado

período clássico (séculos XIV, XV e XVI), tendo sempre o homem posição privilegiada

em relação ao conhecimento. Dessa forma, sendo a história um amplo lastro de camadas

56 Norval Baitello Jr, citando Cañizal, afirma a perspectiva abismal entre as imagens. “O mundo das imagens iconofágicas possui uma dimensão abismal. Por trás de uma imagem haverá sempre uma imagem que também remeterá à outra imagem in As imagens que nos devoram – Antropofagia e Iconofagia” disponível em http://www.cisc.org.br/biblioteca. Acesso em 06/03/2016.57 Sobre o conceito de vórtice in Souza; Oliveira; Azevedo; Soares & Mata: “Uma revisão sobre a turbulência e sua modelagem”. Revista Brasileira de Geofísica vol.29, n.1. São Paulo. Jan/mar. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em 10/03/2016. 58 No início do século XX, com ênfase nas artes plásticas e na literatura, nasce o grupo artístico vanguardista britânico denominado vorticismo, que apresentava imagens sucessivas aceleradas em profundidade que criavam vórtices perspectívicos. Fonte: http://www.tate.org.uk/learn/online-resources/glossary/v/vorticism. Acesso em 22/02/2016. 59 Neste trabalho a palavra quiasma possui conexão direta com o pensamento de Dietmar Kamper. Em nota explicativa presente no livro Mudança de horizonte (2016), a tradutora Danielle Naves de Oliveira explica que “Quiasma ou chiasma é palavra que evoca o traço cruzado da letra grega χ. Dietmar Kamper vê no quiasma um dos elementos fundamentais da civilização do Ocidente, pois confere ao homem a condição de um constante dilacerado, uma existência na encruzilhada, na cruz, atravessada por oposições: verticalidade e horizontalidade, vida e morte, corpo e imagem, presença e ausência, imaginação e imaginário. Kamper, dessa forma, amplia a noção de Merleau-Ponty (para quem quiasma é entrelaçamento, nó, dobra do homem no mundo e do mundo no homem), ao mostrar que o quiasmático pode, além de apaziguar as tensões da existência, estrangulá-las” (KAMPER, 2016, p.227).

80

sedimentares que se interpenetram e se entrecruzam, há uma “movimentação tectônica” de

placas culturais que se atritam e se projetam umas sobre as outras, fazendo emergir por

entre fissuras elementos e rastros singulares, ou, como afirma Agamben (2009), pontos de

insurgência do fenômeno. No amplo terreno cultural, transitório e movediço que é a

imagem, a arqueologia foucaultiana pode se configurar como uma ferramenta de escavação

importante para “adentrar” a imagem, já que acompanha esse intenso dinamismo tectônico

e não opera rigidamente como procedimento epistemológico strictu sensu, mas sim

transita, tangencia e correlaciona saberes e práticas externas ao horizonte da racionalidade,

opera nos limiares de forma quiasmática promovendo aproximações e esquivando-se de

um princípio arqueológico unitário.

Vimos que uma das definições clássicas sobre imagem é a postulada por Hans

Belting (2007) que afirma o caráter paradoxal e ambivalente das imagens, pois são

“presença de uma ausência e ausência de uma presença”. Gagnebin (2012, p.28), ao

abordar o conceito de rastro (Spuren) em Benjamin – à luz da tradição filosófica e

historiográfica – relembra o caráter também paradoxal deste conceito, afirmando que o

rastro é “presença de uma ausência e ausência de uma presença”, ou seja, definição

idêntica à elaborada por Belting sobre o conceito de imagem. Se relembrarmos uma das

funções primevas da imagem como objeto antropológico, remetemos às máscaras

mortuárias confeccionadas em cera ou metais preciosos na antiguidade (imago) – como

explanado no capítulo um – cuja finalidade inicial era a preservação da memória, um rastro

do indivíduo morto entre seus contemporâneos, mas que de forma ambivalente, também

lembrava sobre a finitude do ser. Nesse sentido, portanto, imagem é rastro e o rastro

também é imagem.

De forma análoga à categoria de imagem, o conceito de rastro em Benjamin aponta

para uma dualidade característica, seja para a vontade de deixar marcas – manutenção do

passado – ou de apagá-las. Ao abordar a cidade moderna e sua tendência de apagamento

dos rastros, Benjamin denuncia a vontade individualista do burguês citadino de imprimir

seus rastros na vida, seja como produção artística, econômica ou em seu próprio ambiente

doméstico, como na citação que segue:

A burguesia se empenha em buscar uma compensação pelo desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande. Busca-a entre suas quatro paredes. É como se fosse questão de honra não deixar se perder nos séculos, se não o rastro dos seus dias na Terra, ao menos o dos

81

seus artigos de consumo e acessórios. Sem descanso, tira o molde de uma multidão de objetos; procura capas e estojos para chinelos e relógios de bolso, para termômetros e portas-ovo, para talheres e guarda-chuvas. Dá preferência a coberturas de veludo e de pelúcia, que guardam a impressão de todo contato [...] a moradia se torna uma espécie de cápsula. Concebe-a como um estojo do ser humano e nela o acomoda com todos os seus pertences, preservando, assim, os seus vestígios. (BENJAMIN, 1994, p.43).

Na ambiência da modernidade das grandes cidades, o homem utiliza coberturas de

veludo e pelúcia em sua casa como forma de acentuar ainda mais a manutenção do rastro

das coisas (BENJAMIN, 2006, p.247 I 1,3), uma marca desse intérieur do século XIX que,

ciente do apagamento dos rastros, deseja afirmação e perpetuação de uma classe

dominante. Exatamente contra esse estrato prestigioso – especificamente contra a arte

burguesa – Benjamin afirma o caráter de empobrecimento da experiência e a inutilidade da

estética do belo e da harmonia, conforme o texto “Experiência e pobreza”60. Nesse sentido,

em vez de uma valorização dos rastros e preservação do passado, o autor de Passagens

volta-se afirmativamente para uma defesa dos movimentos de vanguarda artística que

pretendem o aniquilamento dos valores burgueses, do passado e dos rastros.

É interessante notar que em Benjamin, o conceito de rastro é face antagônica à aura,

ambos engendram continuidade e ruptura, tempo e distância.

Rastro e aura. O rastro é a aparição de uma proximidade, por mais longínquo que esteja aquilo que o deixou. A aura é a aparição de algo longínquo, por mais próximo que esteja aquilo que a evoca. No rastro apoderamo-nos da coisa, na aura, ela se apodera de nós. (BENJAMIN, 2006, p.490 M16a,4).

Nessa correlação entre as categorias, o paradoxo entre distância e proximidade

instaura-se em ambas. A aura manifesta proximamente uma distância, por mais longínqua

que ela esteja, enquanto o rastro, o seu oposto: há uma manifestação distante de algo que

está próximo. Nesses jogos conceituais e ambivalentes presentes em Benjamin, como

lembra Janz In (Ginzburg & Sedlmayer, 2012), há um forte teor de insinuação que enuncia

uma unidade dialética. Quando no clássico A obra de arte na era... Benjamin aborda o

conceito de aura, fala em “observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de

montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sobra sobre nós, significa respirar a

aura dessas montanhas” (BENJAMIN, 2014, p.184), ou seja, a referida paisagem evoca

proximamente um fenômeno distante, tal como ocorre com exemplos de imagens da era 60 “Experiência e Pobreza” in Walter Benjamin: Obras escolhidas I – Magia e técnica, arte e política. Editora Brasiliense, São Paulo, 8˚ed. 2012.

82

artística: a obra do Renascentista alemão Matthias Grünewald A crucificação (1520) que

em sua materialidade figurativa (próxima) evoca a aura, uma presença mágica, de um

fenômeno longínquo no espaço-tempo (o episódio da crucificação de Cristo). O rastro, por

sua vez, opera inversamente, trazendo à tona uma distância topográfica ou temporal, como

ocorre com o chamado Sudário de Turim, supostamente a mortalha que envolveu Cristo e

que conservou suas marcas corporais, os rastros. A peça, portanto, exibe em suas marcas

algo que está distante, por mais próximo que estejam os rastros61.

Nesse esquema paradoxal entre espaço e tempo que envolve os conceitos de aura e

rastro, a segunda parte da citação de Benjamin sobre as categorias soa menos intrincada:

“No rastro, apoderamo-nos da coisa; na aura, ela se apodera de nós”. Há aqui uma

dinâmica de movimento oposta; no rastro desempenhamos um papel ativo, deciframos

vestígios, ruínas e escombros que apontam para algo no passado, enquanto que na

experiência aurática há um encantamento, somos cativados, “entregamo-nos em repouso”

Janz In (Ginzburg & Sedlmayer, 2012, p.20). O rastro serve a Benjamin como fragmento

de leitura de uma história cultural, a aura opera no âmbito da estética.

Outro importante viés do rastro é seu caráter de não intencionalidade, conforme

afirma o filósofo Emmanuel Lévinas citado por Gagnebin (2012), ao qual faço a

referência:

O detetive examina como signo revelador tudo o que ficou marcado nos lugares do crime, a obra voluntária ou involuntária do criminoso; o caçador anda atrás do rastro da caça; o rastro reflete a atividade e os passos do animal que ele quer abater; o historiador descobre, a partir dos vestígios que sua existência deixou as civilizações antigas como horizontes de nosso mundo. Tudo se dispõe em uma ordem, em um mundo, onde cada coisa revela outra ou se revela em função dela. Mas, mesmo tomado como signo, o rastro tem ainda isto de excepcional em relação a outros signos: ele significa fora de toda intenção de fazer signo e fora de todo projeto do qual ele seria a visada (...) o rastro autêntico (...) decompõe a ordem do mundo; vem como “em sobreimpressão”. Sua significância original desenha-se na marca impressa que deixa, por exemplo, aquele que quis apagar seus rastros, no cuidado de realizar um crime perfeito. Aquele que deixou rastros ao querer apagá-los, nada quis dizer nem fazer pelos rastros que deixou. Ele decompôs a ordem de forma irreparável. Pois ele passou absolutamente. Ser, na modalidade de deixar um rastro é passar, partir, absolver-se. (LÉVINAS apud GAGNEBIN, 2012, p.31).

61 Rolf-Peter Janz (2012) cita o filósofo alemão Ernst Bloch, que em sua obra Erbschaft dieser Zeit desmascara a auratização, a sacralização do rastro.

83

É eloquente o exemplo do ladrão empregado pelo filósofo que, na ânsia de apagar

rastros, deixa outros não intencionais. Nesse sentido, o rastro excede à vontade consciente

do sujeito, possui um viés desprovido de intencionalidade e significação e, não raro, pode

ser confundido como restos insignificantes que devem ser jogados no lixo. Benjamin, em

sua historiografia crítica do século XIX, debruçava-se, sobretudo, nos rastros

aparentemente menores, aleatórios, ou até mesmo os esquecidos e recônditos como forma

de erigir suas análises – o comentário sobre a preferência da burguesia pelo veludo e

pelúcia como mecanismos de reforçar os rastros é uma amostra de sua atenção às

singularidades.

Diante dos argumentos, portanto, consideramos a imagem como rastro, porém, não

se instaura como módulo de vestígio único, mas comporta uma série de outros rastros

fragmentários não oficiais e não conscientemente planejados que, se não percebidos em

suas nuanças, podem passar como restos desnecessários, como lixo. E, nesse ambiente de

“dejetos amontoados”, Wolf atua, fotografando como quem opera um sismógrafo, sentindo

rastros entre fissuras e meandros da imagem, fragmentando rastros maiores e visíveis em

menores que se escondiam, descobrindo e também deixando outros rastros. Por meio de

uma cartografia funcionalista tridimensional e fotográfica disponibilizada pela ferramenta

Street View do Google, Wolf percorre sua própria geografia mental e imaginativa de

sentidos e rastros por vias labirínticas62, atua como fotógrafo-sismógrafo e é auxiliado por

uma “topografia imagética” singular.

2.6 Topografia irregular e háptica da imagem

Considerando a associação histórica e antropológica entre imagem e cultura, a

abissalidade dos meandros da imagem esconde rastros que lá estão desde eras longínquas.

Assim sendo, traçar um caminho catalográfico que perscrute toda essa ampla

complexidade é uma tarefa hercúlea (e talvez impossível) cuja extensão foge ao escopo

desta pesquisa, porém, faz-se necessário estarmos cientes dessas intrincadas capilaridades

que se aninham em detalhes e dobras da imagem.

62 A simbologia do labirinto (a qual se aproxima do ambiente midiático do GSV) e a geografia imaginativa perscrutada por Wolf, de certa forma, encontram respaldo na fundamental análise de Leão (2002) que reflete sobre o conceito de estética do labirinto.

84

No caso das imagens capturadas pelo Google e disponibilizadas no Street View,

como mencionado no capítulo um, as dobras da imagem (e por consequência os rastros)

são potencializadas, já que são imagens do tipo estereoscópicas, uma técnica importante de

observação visual desenvolvida no século XIX, que consiste na justaposição de duas

imagens distintas de um mesmo objeto criando ilusão de profundidade e

tridimensionalidade entre os elementos observáveis.

Sabe-se que a invenção da estereoscopia – do grego stereo (στερεός), firme, sólido

e escopia (σκοπέω), olhar, ver (CRARY, 2015, p.116) – está ligada ao desenvolvimento

dos estudos de fisiologia ocular e da visão subjetiva, especificamente com o conhecimento

sobre distinções ópticas de cada olho diante da imagem.

A disparidade binocular, o fato autoevidente de que cada olho vê uma imagem ligeiramente distinta, era um fenômeno conhecido desde a antiguidade. Mas só na década de 1830 os cientistas passam a considerar crucial definir o corpo que vê como essencialmente binocular, quantificar com exatidão o diferencial angular do eixo óptico de cada olho e especificar o fundamento fisiológico da disparidade. A questão que preocupou os pesquisadores foi a seguinte: dado que um observador percebe uma imagem diferente com cada olho, como elas são percebidas de maneira única ou unitária? (CRARY, 2012, p.117).

A busca por esse entrelaçamento ótico levou ao desenvolvimento de aparatos de

visão estereoscópica, cujo objetivo principal está na exibição de uma equivalência cada vez

maior entre imagens obtidas pela técnica e realidade, popularizando-a63 principalmente

entre a burguesia. Além da semelhança visual entre realidade e imagem, a técnica

propiciava uma peculiaridade para além do sentido da visão, já que com as diferentes

projeções de relevo e planos distintos na imagem evocava-se uma dimensão tátil. Ao

desenvolvimento da estereoscopia – considerada por Crary (2012) tão importante quanto a

fotografia – estão atreladas características basilares da modernidade: a intensificação da

mediação do mundo por imagens, os rastros da burguesia e a vivência em meio ao choque.

No que tange à mediação da realidade pelas imagens, é interessante o discurso do

afamado médico estudioso da visão Dr. Hermann von Helmholtz, o qual declara que em

face à fidelidade das imagens estereoscópicas, quando vimos o objeto ao qual ela se refere,

essa “visão real não acrescenta nada de novo ou de mais preciso à percepção anterior que

63 Sobre o desenvolvimento dessa técnica visual, as pesquisas e o desenvolvimento de métodos estereoscópicos de Wheatstone e Brewster são basilares. A respeito da popularização da estereoscopia cito Crayer, 2012, p.117 : “já em 1856, dois anos após sua fundação, a Companhia do Estereoscópio de Londres (London Stereoscope Company) havia vendido, sozinha, mais de meio milhão de visores”.

85

tivemos da figura” (CRARY, 2012, p.122), ou seja, na fala do Dr. Helmholtz, se expressa

um dos argumentos benjaminianos sobre a cultura visual da modernidade, de que há uma

“necessidade de possuir o objeto tão perto quanto possível na imagem” (BENJAMIN,

2012, p.109).

Sobre a economia de rastros da burguesia, esta aparece com frequência nos

registros das imagens estereoscópicas. Para acentuar o efeito háptico de

tridimensionalidade na imagem, buscava-se uma “quantidade ampla de objetos ou formas

salientes próximos ou a meia distância” (CRARY, 2012, p.122), ou seja, a avidez que os

burgueses tinham em preencher suas casas com um arsenal de quinquilharias (rastros),

também fica caracterizado no uso da técnica estereoscópica e denota um horror vacui

diante da impessoalidade do ambiente citadino e, por extensão, de sua imagem.

Dentre a multiplicidade de aparelhos capazes de produzir a estereografia, no

Kaiserpanorama ou panorama imperial, cada uma das pessoas ficava em estereoscópios

individuais colocados lado a lado formando um círculo. Sobre este mecanismo

especificamente, Walter Benjamin o descreve em Infância em Berlim por volta de 1900:

Este era o grande fascínio das estampas de viagem encontradas no Kaiserpanorama: não importava onde iniciasse a ronda. Pois como a tela, com os assentos à frente, formava um círculo, cada uma passava por todas as posições, das quais se via, através de cada par de orifícios, a lonjura esmaecida do panorama […] Mas para mim um pequeno – e na verdade – incômodo efeito parece superar toda aquela magia ilusória, que envolve oásis com pastoris ou muralhas em ruínas com marchas fúnebres. Era o toque da campainha que soava alguns segundos antes de a imagem se retirar aos solavancos para dar vez, primeiramente, a uma lacuna e, logo depois à imagem seguinte. (BENJAMIN, 2012, p.76).

Obviamente que há semelhança entre o Kaiserpanorama e o cinema, pois, dentre

outros motivos, há uma tela coletiva compartilhada pelas pessoas que assistem – cada uma

em seu estereoscópio – à sequencialidade das cenas que abruptamente são rodadas e

trocadas após um sinal de aviso ao expectador, que como afirma Benjamin atrapalhava a

magia ilusória. Dessa forma, nesse jogo de vislumbre dialético diante da imagem, o sinal

sonoro opera como um despertador dos sonhos e interruptor da faculdade imaginativa que

fluía diante das imagens estereoscópicas no kaiserpanorama.

Com inscrições fundamentais da modernidade, a técnica estereoscópica nos chama

atenção, pois as imagens disponibilizadas no Street View, e que servem de matéria-prima a

Wolf, são capturadas inicialmente por câmeras que as registram estereoscopicamente,

86

sublinhando, dessa forma, dimensões táteis da imagem, já que a “topografia” da imagem

estereoscópica perfaz um terreno acidentado entre planos e texturas. Quando Wolf realiza

sua busca no GSV, no entanto, não está munido de óculos ou outro aparato que permite a

visão estereoscópica, o que há, efetivamente, é uma simulação do efeito de

tridimensionalidade da técnica, acentuado pela possibilidade de deslocamento horizontal e

vertical na imagem. Dessa forma, em sua caça aos rastros, Wolf visualiza imagens

bidimensionais que emulam tridimensionalidade e a topografia irregular e háptica das

imagens estereoscópicas e, ao fotografar utilizando-se frequentemente do mecanismo do

zoom da objetiva, registra detalhes e tessituras da imagem que, ampliados nas impressões

fotográficas, retomam, de certa forma, essa visualidade tátil da estereografia.

Nesse sentido, apesar de serem bidimensionais, as imagens por ele obtidas possuem

certa hapticidade e configuração rugosa, nas quais exibem-se maiores ou menores

distâncias entre os objetos que contêm diferentes intensidades de relevo. Devido a essa

natureza de “terreno acidentado”, quando os olhos percorrem essas imagens “seguem um

caminho sinuoso e errático para dentro da profundidade da imagem” (CRARY, 2012,

p.123), transitando de forma serpenteante por entre veredas de topografia instável,

passando por fissuras de onde irrompem outros rastros. A imagem estereoscópica, nesse

sentido, em sua visualidade háptica, dismórfica e tridimensional estimula o vislumbre de

tramas e seus espaços-entre, que, em nossa concepção, podem ser analogizados ao espaço

matemático Riemanniano, citados por Delleuze e Guattari64.

Em um espaço de Riemann, cada vizinhança é, pois, como uma pequena porção do espaço euclidiano, mas a ligação de uma vizinhança à vizinhança seguinte não está definida e pode ser feita de uma infinidade de maneiras. O espaço de Riemann mais geral apresenta-se, assim, como uma coleção amorfa de porções justapostas que não estão atadas umas às outras [...] o espaço riemaniano é um puro patchwork. Tem conexões ou relações tácteis. (DELLEUZE & GUATTARI, 1997, p.194).

Nessas passagens rugosas de espaços de Riemman da imagem estereoscópica,

portanto, os rastros aninham-se de forma embusteira, nas dobras e não na reta. É nesse

terreno amplo de geografia acidentada e movediça que o fotógrafo-arqueólogo peregrina

visual e erraticamente, estabelecendo certa correspondência com a própria inconstância de

formas, desdobrando rugosidades, rasgando a imanência superficial da imagem e farejando

64 No capítulo três abordaremos a noção dos autores de espaço liso e estriado.

87

em suas filigranas os desdobramentos de espaços onde possíveis rastros se aninham. Trata-se

de um mapear que:

São registros do aventurar-se no desconhecido, daquilo que foi encontrado ao acaso, mediante busca e observação [...] um tipo de mapa que é criado por aquele que penetra o labirinto – o penetralias – aquele que avança por um espaço desconhecido e registra suas observações [...] geografias que avançam e multiplicam espaços e se desdobram no caminhar. (LEÃO, 2002, p.72).

2.7 Rasgar e dialetizar

Na narrativa mítica da Odisseia, a divindade marinha Proteu – filho mais velho de

Poseidon e pastor dos animais marinhos – possui dons divinatórios, atraindo assim

curiosos que desejam saber os acontecimentos vindouros de suas vidas. Quando os

humanos se aproximam do sábio oracular a fim de ter seu futuro revelado, ele desaparece

e/ou se metamorfoseia continuamente em aparências monstruosas; é preciso

persistentemente agarrá-lo para que ele revele as visões, como o faz a Menelau65.

Fugidia, inconstante e permanentemente em metamorfose, tal qual Proteu, é a

imagem principalmente em seu fluxo endógeno (Belting, 2007). Para que busquemos

rastros e prospectemos dimensões para além de seu caráter representacional, para que ela

sugira caminhos e desvele-se em suas metamorfoses e anamorfoses é preciso estar

agarrado a ela, acompanhar lastros e modulações, instaurar aberturas por entre fissuras.

Dessa forma, atado à imagem e operando a câmera como um bisturi epistemológico

e cultural, Wolf realiza cortes transversais nas densas camadas de imagens selecionadas do

GSV. Mas não se trata de secções compartimentadas e excludentes (um pedaço não exclui

o outro), mas sim de rasgar a imagem em suas dimensões complexas, cortar de modo

transversal e oblíquo, de modo a observar diferenças no todo, “fractalizar e criar

perspectivas em miríades [...] abrir a imagem e renunciar ao seu esquematismo imanente”

(DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.185), e assim possibilitar aparições sintomáticas que

emergem dos subterrâneos das imagens e sugerem possibilidade(s) de saída frente a “caixa

de espelhos”66 (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.185).

65 Episódio descrito na Odisseia de Homero. Edição bilíngue; tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira (3˚edição). Editora 34, São Paulo, 2014. 66 No texto “A imagem como rasgadura e a morte do deus encarnado” na obra Diante da imagem (2013a), Didi-Huberman aborda brevemente a questão do mundo autorreferencial das imagens referindo-se a Kant

88

A perspectiva da rasgadura da imagem proposta por Didi-Huberman pressupõe um

olhar cultural diante deste objeto, que possui uma amplitude de sentidos e emoções muito

mais complexa e profunda do que apenas seu viés representacional67. Assim, com a

rasgadura da imagem, privilegiam-se distintos caminhos, evoca-se a visualidade em sua

vastidão, seus lastros abissais, memórias, esquecimentos e movimentos intrusivos de

energias subterrâneas, em vez de se considerar apenas sua imanente visibilidade

superficial. Afirma o autor sobre o movimento da rasgadura:

No sentido em que a estrutura seria rasgada, atingida, arruinada tanto no seu centro quanto no ponto mais essencial do seu desdobramento. O “mundo” das imagens não rejeita o mundo da lógica, muito pelo contrário. Mas joga com ele, isto é, entre outras coisas, cria lugares dentro dele – como quando dizemos que há ‘jogo’ entre as peças de um mecanismo -, lugares nos quais obtém sua potência, que se dá aí como potência do negativo. (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.188 e 189).

Essa cisão profunda e oblíqua da imagem tem como intenção muito mais que um

olhar, mas um sentir com os olhos fechados nos abismos da imaginação, um perceber em

sintonia fina entre frestas nos pormenores – já que, como afirmava Warburg, “Deus está

nos detalhes”. Busca-se com a rasgadura da imagem tensionar sua logia em analogia, mira-

lá como constante devir prenhe de possibilidades, como multiplicidade de sintomas, tal

como no sonho, onde imagens brotam por entre fissuras em relações aparentemente

paradoxais do ponto de vista lógico, exibem-se em copresença, “descentralizando o sujeito

do saber” (DIDI-HUBERMAN, 2013a, p.203) e dilaceram a noção de inteligibilidade e

representação.

De forma objetiva, rasgar a imagem e estar aberto a toda sua potencialidade

energética e simbólica evoca o pensamento transdisciplinar de Aby Warburg sobre o tema.

Para este autor, como afirmamos no capítulo anterior, a imagem está diretamente atrelada à

cultura, sendo assim, vastíssima em sua dimensão antropológica, ela opera como um

mecanismo condensador e amplificador de energias, traz consigo uma capacidade de

apaixonamento (Pathosformel) pungente e um lastro cultural de recalcamentos, memórias, quando o filósofo aborda comparativamente a dinâmica social de vivência com e nas imagens a uma grande caixa fechada – “dispositivo de encerramento espelhado” (p.185). Nesse sentido, abordando a perspectiva kantiana, salientamos que Didi-Huberman dialoga de certa forma com a perspectiva kamperiana de órbita do imaginário descrita no início deste capítulo. 67 Didi-Huberman (2013a) faz um “mea culpa” dos historiadores da arte, afirmando que estes sempre “se colocaram no centro de comando do saber que produziam” (p.211) e se esqueceram de olhar a imagem como um sintoma, para além de seu caráter representacional, afirma o autor: “Eles (historiadores da arte) queriam saber a arte, inventavam a arte à imagem suturada do seu saber. Não queriam que seu saber fosse rasgado à imagem daquilo que, na imagem, rasga a própria imagem” (p.212).

89

esquecimentos, saber, não saber, mythos, logos, emoções, rastros arcaicos e perspectivas

futuras, enfim, toda uma magnitude simbólica em sua pós-vida (Nachleben), perceptíveis –

sempre em parte – e passíveis de distintas polaridades quando diante da imagem adota-se

uma postura de rasgá-la, senti-la em seu contínuo devir.

Nessa dimensão de rasgadura da imagem coexistem superfície e profundidade,

presente e passado respectivamente plasmados no aqui e agora da visualidade mais ou

menos percebida, e também nas memórias, utopias e sonhos de camadas subjacentes. Sob

essa conjunção está a imagem em seu caráter dialético vislumbrada por Benjamin:

O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma determinada época, mas, sobretudo, que elas só se tornam legíveis numa determinada época. E atingir essa “legibilidade” constitui um determinado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir [...] Não é que o passado lança luz sobre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas, isto é, imagens não arcaicas. A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da sua cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura. (BENJAMIN, 2006, p.504 e 505 N 3,1).

Como uma marca da modernidade, a imagem dialética de Benjamin se faz presente

em seus estudos transpassando sua teoria da história, conhecimento, imagem e montagem e

assim configurando-se como chave importante para a compreensão do período. A imagem

é um campo dinâmico de múltiplas forças na qual se delineia a rarefação da experiência

(Erfährung) e sua transformação em vivência (Erlebnis), ela permite o tensionamento do

imediatamente percebido – o aqui e agora dos choques, encharcado às memórias, utopias,

mitos e lastros arcaicos do passado, imaginação e razão, memórias individuais e coletivas,

ambiguidades e ambivalências, esquecimentos que afluem consciente ou

inconscientemente ao sujeito. A imagem dialética age como elemento condensador e

dilatador desses espaçamentos tramados.

Imaginamos doravante essa floresta (de símbolos) com todos os vestígios de sua história, suas árvores partidas, vestígios de tempestades, suas árvores mortas invadidas por outras vegetações que crescem ao redor, suas árvores calcinadas, vestígios de todos os raios e de todos os

90

incêndios da história. Então, a imagem dialética torna-se a imagem condensada – que nos põe diante dela como diante de uma dupla distância – de todas essas eclosões e de todas essas destruições. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.174).

Projetando-se como instância de trânsitos ambivalentes, entre o já-foi e o vir a ser, a

imagem dialética amplifica68 vivências psico-perceptivas deslocadas de um continuum

temporal e diante desses imbricamentos múltiplos configura-se uma teoria da imagem

benjaminiana que encontra em Proust e Freud importantes elementos para sua elaboração:

a memória involuntária proustiana, atravessada pelo esquecimento, emerge imponderável

podendo desdobrar-se com “abertura para o infinito” (GAGNEBIN, 2014, p.167), tecendo

juntamente com o inconsciente (Unbewusste) freudiano e permitindo uma fractalização de

perspectivas além-da-imagem, substituindo a visibilidade superficial por uma

complexificação do sentir.

Epistemologicamente, há um diálogo entre a imagem dialética de Benjamin e os

conceitos warburguianos sobre este objeto, que o contemplam em amplo

dimensionamento, como um engrama, um dínamo condensador de forças e amplificador

de memórias, esquecimentos, passado e futuro, razão e imaginação que se exibem de

alguma forma na pós-vida (Nachleben) e na fórmula de pathos (Pathosformel) da imagem.

Ambos os pensadores foram cientes de que, assim como Proteu que se metamorfoseia

continuamente, a imagem sofre transmutações formais e simbólicas e que para

compreendê-la é preciso estar agarrado a ela de forma simbiótica, embarcar em suas

mutações e estar atento aos seus desdobramentos criadores de novas espacialidades. A fim

de se “pensar por imagens e não apenas pensar imagens [...] sair de um estágio

antropológico da análise para atingir uma arqueologia da visualidade”. (FERRARA, 2014,

p.190).

2.8 Nas dobras, as espacialidades

A emergência de um vórtice imagético deflagrado com o ato fotográfico-arqueológico

de Wolf, além de possibilitar uma miríade de imagens, fractaliza perspectivas e cria

desdobramentos dentro delas próprias. Dessa forma, nas imagens agasalham-se dobras

68 Também nesse sentido, a fotografia instaura-se como um dos principais mecanismos amplificadores de percepções, tema este discutido direta ou indiretamente em textos de Benjamin, como no Pequena história da fotografia (2012) e Sobre alguns temas em Baudelaire (1994).

91

intersticiais, espaços que se plasmam em espacialidades, aqui compreendidos segundo

Ferrara (2008) como:

Aquele fenômeno que se situa entre comunicação e cultura [...] a construtibilidade do espaço que se volta não para o espaço que é forma ou lugar [...] mas para o espaço “entre”, um espaço que só se mostra quando sobre ele se debruça uma atenção cognitiva capaz de revelá-lo nas flutuações que o comunicam e no modo como, através dele, se constrói a cultura. (FERRARA, 2008, p. 9).

Na transição do espaço para espacialidade – da formalidade ambiental do meio para

uma apropriação imponderável da mediação – a atenção devotada para a categoria de

espacialidade deve ser cuidadosa, já que:

A espacialidade surge como um imprevisto fenomênico que atua entre ambas (comunicação e cultura) sem delimitar características e, como consequência, sem qualquer relevância que justifique qualquer interesse científico: ou seja, enquanto objeto científico, a espacialidade não se impõe, não chama atenção, é frágil e esquecida por se confundir com espaço enquanto suporte físico, material ou topológico. Porém, nessa sorrateira imprevisibilidade, a espacialidade acaba por estabelecer, entre comunicação e cultura, filtros relacionais que as fazem cada vez mais próximas. (FERRARA, 2008, p.15).

Diante de tal cenário, urge atentarmos para a percepção fina de um espaço “entre”,

fundamental para melhor compreendermos distintas mediações e os processos vigentes da

comunicação contemporânea – dentre os quais, a intensiva mediação da realidade por

imagens com origem no século XIX. À época, afirma Ferrara (2008), a concentração

populacional que se ampliava nas cidades proporcionou a criação de novos espaços os

quais “se tornando exíguos ou diminutos, exigem ser multiplicados e inventados como se

novos fossem” (FERRARA, 2008, p.53), criando assim espacialidades que clamam por

visibilidade nas metrópoles modernas.

Na reprodutibilidade, espacialidade e visualidade descobrem-se mutuamente. A essa altura, a espacialidade como categoria do espaço se amplia no modo como se dá a conhecer e se confunde com a visualidade: ambas produzem tal impacto perceptivo que passam a valer pelo próprio espaço, colocando-o em dúvida como entidade autônoma. (FERRARA, 2008. p.55).

Nesse diapasão moderno, a reprodutibilidade sequencial não atinge somente os

espaços citadinos, mas perfaz o espírito da época que busca na reprodução das coisas um

alinhamento aos padrões da indústria mecânica. Dessa forma, desenvolvem-se mecanismos

de reprodução da imagem os quais estimulam e configuram a emergência da imagem

92

midiática que resgata em parte certa dimensão cúltica da imagem que em nossa época

ocorre de forma enviesada aos “deuses midiáticos”, obedece à lógica de quanto mais

visível mais importante é essa “divindade”.

Para além da visualidade hipertrofiada e ubiquitária das imagens contemporâneas,

nos interessa notar que, em suas dobras, criam-se espacialidades fractais onde se aninham

rastros que se desdobram em outras imagens. É justamente nesse trânsito entre espaço e

espacialidade, entre visibilidade imanente da caverna orbital imaginária para uma

visualidade imaginada, que o processo adotado pelo fotógrafo chama atenção, pois

corrompe, de certa forma, o ato fotográfico “tradicional”: ele se utiliza de um instrumental

do ambiente do ciberespaço a fim de desdobrar e inventar outras imagens que não apenas

visuais. Trata-se, em nossa concepção, de olhar “multidimensional e, portanto, labiríntico,

ao qual não corresponde uma lógica clássica, aristotélica [...] inaugura um outro tipo de

espaço” (LEÃO, 2002, p.102 e 103).

Há o rompimento de uma utilização apenas técnica da fotografia que se amplia para

uma dimensão de produção de sentido, de uma “tecnosfera para uma psicosfera”

(SANTOS, 1996, p.204) que se plasma em sua peregrinação e expectação visual aleatória

pelas imagens do GSV culminante no clique. Wolf logra o programa, dribla e expande a

técnica para além de sua funcionalidade (Flusser, 2002, 2008), mergulha nas vias

labirínticas da imagem rasgando-a em sua superficialidade imanente, desdobrando

espacialidades e descobrindo rastros. Dessa forma, o fotógrafo trabalha imaginativamente:

a imaginação opera como uma arqueologia da imagem, desvelando rastros passados e

intuindo energias do vir a ser da imagem. Na dinâmica fotográfica, Wolf vai desvelando

palimpsestos, descobrindo e inventando imagens sobre imagens.

2.9 Tempo espacializado X instante decisivo

Desde o início do desenvolvimento dos processos fotográficos em meados do

século XIX, sabemos, há uma atuação ambivalente em relação à técnica; ora empregada

como expressão da racionalidade científica da modernidade, ora utilizada como

mecanismo de apreensão subjetiva do mundo propiciadora de espacialidades imprevistas.

Em meio ao ambiente científico e racional do século XIX, o desenvolvimento da

fotografia como técnica químico-óptica capaz de fixar a realidade cotidiana, gera

93

estranhamento inicial, pois se configura como um novo modo de percepção sensorial

cotidiana, opositiva – em um primeiro momento – à pintura e aos modos manuais de

produção da imagem. Evidencia-se, segundo autores como Rouillé (2009), Souza (2004) e

Kossoy (2014), que a fotografia encarnava a dinâmica de representação da sociedade

industrial nascente, pois como filha da moderna urbanidade parisiense do século XIX,

legitima valores e práticas imbuídos de espírito racionalista organizador e se constitui

como instrumental inequívoco de representação da realidade, operando em consonância à

época.

Essa atuação pré-definida, no entanto, foge aos preceitos racionalistas e, desde o

início, a fotografia possibilita outras manifestações além de seu estatuto instrumental e

objetivo, abrem-se perspectivas mais subjetivas, proporcionando oposição entre arte e

ciência, ofício e criação:

O antagonismo entre o procedimento de Daguerre e o de Bayard (Hippolyte), entre o metal e o papel, em breve fomentará os defensores do nítido e os adeptos do indefinido dos contornos; os partidários do negativo de vidro e os calotipistas; os artistas e as “pessoas do ofício” [...] e também entre as instituições. Daguerre é sustentado por Arago, da Academia das Ciências; e Bayard, por Raoul-Rochette, da Academia de Belas Artes. (ROUILLÉ, 2009, p.30).

A fotografia é vetor de tensionamento entre cultura subjetiva e objetiva,

configurando-se de maneira ambivalente. Nesse sentido, a despeito de terem sido

produzidas com escopo racionalista, as cronofotografias69 de Étienne-Jules Marey que

registram movimentos corporais sequenciais de aves, cavalos e humanos são exemplos

dessa ambivalência entre objetividade e subjetividade, pois, além de exibirem a dinâmica

de movimento fracionada, elas tornam visíveis lapsos de espaço-tempo captados de forma

imotivada.

Além das séries cronofotográficas de Marey, que proporcionam visibilidade às

ações e movimentos imperceptíveis a olho nu, outros fotógrafos e homens de ciência se

interessam por essa temporalidade intersticial instaurada pela fotografia. No campo da

medicina, por exemplo, anomalias e excrescências corporais eram descritas na literatura

médica por meio de fotografias em close, produzidas, segundo Roillé (2009), por médicos

69 Sistema fotográfico desenvolvido pelo cientista e fotógrafo francês Étienne-Jules Marey na década de 1880 que consistia de uma “metralhadora fotográfica” capaz de registrar 12 frames por segundo em uma mesma fotografia. Com a invenção, Marey estudou a dinâmica e a fisiologia do movimento humano e de animais como cavalos, cães, pássaros, etc.

94

nos estúdios fotográficos dos próprios hospitais onde trabalhavam. No sanatório francês

Salpêtrière, fotografavam-se pacientes epilépticos e histéricos do psiquiatra Jean-Martin

Charcot em plena crise a fim de se verificar e classificar contorções corporais e expressões

características ocasionadas pela doença70.

Percebe-se a caracterização da fotografia como uma lente expandida, capaz de

flagrar detalhes, embalsamar o espaço e espacializar o tempo, operar como um vetor de

novos modos de percepção do mundo, segundo Benjamin “capaz de destacar coisas que

antes passavam despercebidas no vasto fluxo do mundo perceptível, tornando possível

analisá-las” (2012, p.78), ou ainda, uma “imagem que se cristaliza ao ser arrancada do

fluxo contínuo da história” (2012, p.79). Diante das contribuições tanto científicas quanto

subjetivas que a técnica possibilita, evidencia-se que a dimensão da temporalidade

diminuta ganha proeminência, principalmente após algumas décadas de desenvolvimento

fotográfico71.

No citado estudo de Jules-Marey e em outras dinâmicas fotográficas como no

fotojornalismo, essa temporalidade infinitesimal e fracionada do clique perfaz um cenário

no qual “a mística do instantâneo faz com que grande parte de processo fotográfico seja

eclipsado pela hipertrofia do instante decisivo” (MACHADO, 2001, p.133), o que sugere

inclusive uma atuação secundária do fotógrafo, não raro surpreendido pelos eventos

registrados pela câmera, como afirma Dubois (1994, p.165), assegurando haver uma

“elipse do sujeito” tornado coadjuvante frente à técnica.

A progressiva importância dada à instantaneidade fotográfica encontra na modernidade

um ambiente que reforça e justifica sua força de petrificação do espaço-tempo. Benjamin

explica essa gestualidade brusca do período:

Com a invenção dos fósforos, em meados do século passado, surge uma série de inovações que têm uma coisa em comum: disparar uma série de processos complexos com um simples gesto. A evolução se produz em

70 Georges Didi-Huberman afirma em A invenção da histeria (2015) que os registros fotográficos das pacientes histéricas da clínica Salpêtrière são teatralizações nas quais a patologia coloca-se como espetáculo, como simulacro. 71 No início da técnica fotográfica, o tempo de exposição necessário à sensibilização das placas nos daguerreótipos era bastante longo. Sobre a pose para o retrato na gênese da fotografia, afirma Benjamin (2012, p.102) “o próprio procedimento técnico levava o modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele, durante a longa duração da pose”. A fotografia que não era retrato, segundo Lissovsky (2010, p.47), “busca formas de conciliação com a temporalidade perdida” como na associação entre o pictorialismo e a tradição artística, entre as chamadas ‘fotografias espirituais’ e sua manifestação metafísica e entre obras do final do século XIX e início do século XX que tinham formas de temporalização arquivísticas, como as fotografias de Eugène Atget.

95

muitos setores; fica evidente entre outras coisas, no telefone, onde o movimento habitual da manivela do antigo aparelho cede lugar à retirada do fone do gancho. Entre os inúmeros gestos de comutar, inserir acionar, etc., especialmente o “click” do fotógrafo trouxe consigo muitas consequências. Uma pressão do dedo bastava para fixar um acontecimento por tempo ilimitado. O aparelho como que aplicava ao instante um choque póstumo. (BENJAMIN, 1994, p.124).

A instantaneidade fotográfica apenas encontra seu significado “na consumação, e a

temporalidade da fotografia está marcada pela exclusão abrupta da duração”

(LISSOVSKY, 2010, p.61); trata-se, dessa forma, de gesto típico da modernidade

cronotópica, marcada pela expressiva aceleração temporal e transformação dos tempos de

experiência em frações cronométricas, marcas da marcha triunfal racionalista. Esse tempo

parcelado e medido instaura-se, como afirma Elias (1998), uma simbologia social moderna

com intensa capilaridade nas sociedades contemporâneas, que cada vez mais se

autodisciplinam pelo discurso cronométrico, instrumentalizado pelo objeto nômade que é o

relógio de pulso.

Na fotografia, um dos conceitos contemporâneos que celebra a dimensão veloz da

temporalidade do instante é a formulação de Henri Cartier-Bresson sobre o instante

decisivo. Trata-se, ainda hoje, de uma expressão conceitual cerne do fotojornalismo e, não

raro, sua formulação se confunde como base ontológica da fotografia, como recorte preciso

no espaço-tempo. A essência do instante decisivo reside na captação fotográfica

instantaneamente precisa, o disparar do obturador como deflagração de uma

expressividade singular no espaço-tempo (pathos culminante da imagem), “numa só

imagem, o essencial de uma cena” (CARTIER-BRESSON, 2004, p.16). Para Bresson, o

instante decisivo não se restringe a um fragmento infinitesimal de tempo que jamais se

repetirá, ele possui certa modulação circular que pode se repetir, irromper em momentos

diferentes. No entanto, como mecanismo de congelamento, reitera o isto foi barthesiano72

no sentido de presentificação de algo no escoamento contínuo do tempo o qual obedece a

uma ordenação sequencial de presente que sucede o passado.

Para o fotógrafo francês, a câmera fotográfica é “senhora do instante” opera “como

instrumento de intuição e espontaneidade que questiona e decide ao mesmo tempo”

(CARTIER-BRESSON, 2004, p.12), a qual conjuga temporalidades distintas e

heterogêneas, sendo a primeira: 72 Roland Barthes. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012.

96

O presente da ação durante a qual o operador é ‘confrontado, no visor, com a realidade’ dos corpos e das coisas. Esse presente concreto e verdadeiro da percepção, do necessário contato físico com a realidade material, tem uma certa duração. ‘Um evento é tão rico, que, durante seu desenrolar, gravitamos em volta’, explica Cartier-Bresson, para quem o processo pode durar alguns segundos, às vezes horas, e mesmo dias. (ROUILLÉ, 2009, p.208).

Após o processo de confrontação da realidade no visor, a segunda temporalidade,

como consequência da primeira, é o recorte do instante vivido, como afirma Flusser

(2002), uma secção, contração e condensação do presente vivido que no exato momento do

disparo do obturador abre espaço a uma terceira temporalidade que delimita passado e

futuro. É importante ressaltar que nesta terceira temporalidade reside uma singularidade da

película fotográfica que depois de sensibilizada pela luz (gravar o passado dos eventos)

torna-se imagem latente, em potencial, pois gravada nos sais de prata da emulsão, porém

ainda não visíveis. A imagem latente será atualização e vir a ser dos fatos pretéritos (futuro

do pretérito) que se tornavam visíveis após os procedimentos químicos de revelação.

Nessa dinâmica entre passado e futuro, Rouillé (2009, p.209) define o instantâneo

fotográfico em dois momentos entre a imagem latente como “ainda não está e, no entanto,

já está”, que quando revelada torna-se uma imagem cuja temporalidade reside no “ainda

está e no entanto já passou” (ROUILLÉ, 2009, p.209).

Sob o espírito racionalista que envolve as primeiras décadas de desenvolvimento da

técnica fotográfica, a temporalidade do ato é geralmente dimensionada à luz das

possibilidades ofertadas pelo mecanismo obturador das câmeras. Nos mencionados estudos

de Jules-Marey, até os anos 1950 quando Bresson formula o instante decisivo, há uma

hipertrofia do instante como temporalidade inerente e basilar da fotografia, a qual

petrificaria o tempo e o espaço. No entanto, sabe-se a partir de estudos importantes de

autores como Aristóteles (2006) e Bergson (1974, 1990) que o que há não é o

congelamento do tempo – pois este possui dimensão fluida – mas sim há o tempo

submetido ao espaço, ou seja, a espacialização do tempo. Como afirma Aristóteles (2006),

o tempo espacializado é o tempo “mostrado”, o movimento como medida do tempo, que

em si, é uma abstração. Nesse sentido, a atribuição de simbolismo a um episódio como

demarcador de temporalidade serve como quantificador, o tempo espacializado como

“computação do tempo” (ZARIFIAN, 2002, p.4) que referencialmente serve para indicar o

que foi antes dele e o que veio depois. Assim, “os acontecimentos que situamos nesse

tempo é que estão carregados de valor e sentido, mas não o próprio tempo” (ZARIFIAN,

97

2002, p.4). Dessa forma, a fotografia é a espacialização do tempo, congela o espaço e não

o tempo, opera como mecanismo ceifador e, imbuída do espírito racionalista, tende a

desprezar a duração do ato – expectação, clique e pós-clique – e valorizar a instantaneidade

e precisão do mecanismo.

Faz-se importante essa delimitação com relação à temporalidade da fotografia, pois

o processo de trabalho do fotógrafo Michael Wolf não se dá em meio à dita realidade

concreta, mas com as imagens produzidas por câmeras automáticas e dispostas no Google

Street View. Assim sendo, ele não parte do continuum temporal, mas do tempo

espacializado das fotografias e em seu processo fotográfico ele supera a instantaneidade

fotográfica cronotópica, transmutando-a em duração. Nesse sentido, vislumbra-se certa

superação do tempo espacializado da fotografia e uma volta à dimensão do tempo lento

(tempo-devir), que instiga a imaginação e estimula mutações da imagem em sua dinâmica

endógena e exógena.

2.10 Arqueologia como duração e duração como arqueologia

Em Imagens do pensamento, afirma Benjamin sobre o processo arqueológico:

Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois “fatos” nada são além de camadas que apenas à investigação mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Especificamente as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais antigas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento posterior, igual a torsos na galeria do colecionador. E certamente é útil avançar em escavações de acordo com planos. Mas é igualmente indispensável a enxadada cautelosa e tateante na terra escura [...] um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar as camadas das quais se originam seus achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que foram penetradas anteriormente. (BENJAMIN, 2012, p.245 e 246).

Como procedimento de rememoração do historiador materialista, a prática

arqueológica benjaminiana é meticulosa, busca rastros e vestígios considerados

insignificantes (lixo) e, diante de um terreno liso e aplanado que aparentemente nada

esconde, revolve a terra em busca de rastros esquecidos. É coerente, portanto, que nessa

prática de destrinchamento da terra em busca de rastros que se aninham embusteiramente,

a dilatação da temporalidade tem papel basilar, orienta-se antes pelo refluir do tempo no

98

qual reside “a essência da duração” (BERGSON, 1974, p.110) do que pelas aquecidas e

fragmentadas instantaneidades contemporâneas.

Isso posto, poderia se refletir sobre uma aparente contradição no objeto, já que a

temporalidade da arqueologia é da ordem do fluir, da expectação e depuração, enquanto o

“instrumental arqueológico” de Wolf, a câmera fotográfica, é da ordem da instantaneidade

seccionadora. Uma primeira pista a fim de diluir esse antagonismo está na pesquisa de

Lissovsky (2010), a qual aborda a ontogênese da questão do tempo na fotografia

contemporânea, amplificando este conceito para uma dimensão de expectação que se dá no

ato fotográfico. Sob esse viés, o autor primeiramente relembra as origens do processo

fotográfico em meados do século XIX, e afirma a necessidade de imersão na duração do

tempo da pose que os pioneiros daguerreotipistas tinham no momento do registro, fato este

que se perdeu frente aos sucessivos aquecimentos cronométricos que reduziram

drasticamente o tempo de exposição e que deram origem à “mística do instante decisivo”,

tão celebrada na fotografia, conforme aponta Machado (2015). Sobre a duração que

envolve o ato fotográfico, afirma Lissovsky:

Não devemos buscar a temporalidade do instantâneo como parte acessória que integrasse a ele sucessão infinitamente divisível ou como afecção do espaço, mas como um intervalo que a constitui, desde o momento em que o fotógrafo dispõe-se a produzi-la: ‘não é um intervalo que se possa alongar ou encolher sem lhe modificar o conteúdo. A duração de seu trabalho faz parte integrante de seu trabalho’. Tal intervalo é o da expectativa. É na forma do expectar que a duração veio finalmente integrar-se ao instantâneo. Reúnem-se na expectação tanto um simples pôr-se à espera, como um dar-se a ver no aspecto. (LISSOVSKY, 2010, p.59).

A espera anterior ao clique (expectação) é parte gestacional do acionamento do

disparador fotográfico que tem no instante (aspecto) não um recorte temporal, mas um

rastro do “ausentar-se do tempo”, já que o que se congela na fotografia “não é o tempo,

mas sim o espaço” (LISSOVSKY, 2010, p.60). Assim sendo, a expectação e o aspecto

estão contidos em um continuum do tempo, integram algo mais amplo que é a duração e

não somente o instante. Em uma metáfora contundente, resume o autor:

A fotografia como tal permaneceu refém da noção de uma instantaneidade artificial, que se abate sobre o tempo e a duração como a guilhotina do carrasco arranca a vida do condenado. Nada poderia ser mais enganoso. As expectativas que precedem a descida da lâmina tomam conta, com inaudita intensidade, desse tempo de espera. E o átimo de segundo em que a cabeça se desmembra do corpo, quando a

99

vida finalmente se consuma, marca em cada rosto o seu aspecto. (LISSOVSKY, 2010, p.64).

No aspecto mostram-se rastros de um tempo que se ausentou, continuou seu

refluir, ele “é para o tempo, o que o ponto de vista é para o espaço” (LISSOVSKY, 2010

p.97), e, ao ser observada, a fotografia oferta para além e aquém do seu aspecto,

proporciona um tensionamento entre presente e passado (imagem dialética) com

projetividade para o futuro, ou seja, um afrouxamento na noção de sucessão ininterrupta do

tempo que dialoga prementemente com o conceito bergsoniano de duração.

Ao longo do desenvolvimento de sua obra filosófica, Henri Bergson aborda a

questão da passagem do tempo como essencial e constituinte do ser humano, e seu

conceito de duração instaura-se como contínuo devir, temporalidade que se plasma em

“forma orgânica” (WORMS, 2004, p.129) fundindo suas distintas etapas e possibilitando

que o presente prolongue o passado e o futuro seja um fluir orgânico de ambos. Trata-se,

assim, de um tempo uno e interpenetrado, tempo transformado em puro presente, duração

de instância qualitativa que em seu progresso “sentimos as diversas partes de nosso ser

entrarem umas nas outras e nossa personalidade inteira concentrar-se numa ponta que se

insere no futuro encetando-o sem cessar “(BERGSON apud WORMS, 2004, p.140), ao

contrário, portanto, do tempo fragmentado das instantaneidades. Sobre a diferenciação

entre o instante e duração, afirma Bergson:

Reter o que já não é, antecipar o que ainda não é, eis a primeira função da consciência. Não haveria para ela o presente se este se reduzisse ao instante matemático. Este instante é apenas o limite, puramente teórico, que separa o passado do futuro; ele pode a rigor ser concebido, não é jamais percebido; quando cremos surpreendê-lo, ele já está longe de nós. O que percebemos de fato é uma certa espessura de duração que se compõe de duas partes: nosso passado imediato e nosso futuro iminente. Sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos debruçamos; apoiar-se e debruçar-se desta maneira é o que é próprio de um ser consciente. Digamos, pois, que a consciência é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre o passado e o futuro. (BERGSON, 1974, p.77).

Vimos que a imagem em sua dimensão antropológica possui distintas modulações

(mítica, cúltica, artística e midiática) as quais estão em constante mutação no contínuo

temporal e que, a fim de melhor compreendê-las, é necessário estar agarrado a ela,

acompanhar suas modulações, segui-la ao sabor de suas transformações e do seu tempo.

Ou seja, diante da imagem, orientar-se pela duração e pelas ondulações memoriais que ela

100

possibilita. Nesse sentido, Lissovsky (2010) busca resgatar na fotografia a dimensão

complexificada da imagem, afirmando a necessidade de a prática fotográfica pautar-se pela

duração e não pelo instante e desse modo, proporcionar ao fotógrafo a imersão na duração.

Ante essa argumentação, compreendemos que em sua dinâmica fotográfico-arqueológica,

Wolf está imerso no refluir do tempo: seleciona e esquadrinha uma área específica,

revolve as camadas consideradas menos importantes da imagem (lixo), mergulha nelas ao

sabor da duração do processo, rasga a imagem em sua dimensão imanente, segue apenas o

tempo-devir distraindo-se por entre labirintos e fissuras da imagem, cujos rastros apontam

para o passado e estimulam a irrupção de memórias involuntárias. Bergsonianamente,

Wolf apoia-se sobre lastros passados e debruça-se, via imaginação, sobre aspectos do vir a

ser da imagem. Na temporalidade lenta e artesanal da duração, sua imaginação opera como

um antimétodo arqueológico da visualidade, o qual se constitui mais como processo que

resgata um pensar por e através das imagens, do que um modo objetivo de se buscar

resultados concretos. Nesse exercício de deriva labiríntica, o fotógrafo realiza uma

arqueologia não apenas possível, mas transcende-a para algo desejável, uma “arqueologia

do futuro” Fontcuberta (2012), que tem na força corporal da imaginação sua marca

indelével.

2.11 Quebrar espelhos e voltar ao corpo

Em estreita relação à onipresença ubiquitária das imagens que povoam a

contemporaneidade e contribuem para os processos de abstração – como abordado no

capítulo um –, neste capítulo buscou-se, inicialmente, aprofundar criticamente a ideia de

mundo amplamente mediado por imagens sob o conceito de órbita do imaginário, descrito

por Dietmar Kamper (2002, 2016), o qual dialoga prementemente com a noção de

mediosfera (Contrera, 2010), sendo que neste a autora aborda, de certa forma, alguma

influência do imaginário cultural no midiático e vice-versa. Diante dessa órbita elipsoidal,

constata-se que as imagens tornam-se cada vez mais autorreferentes, devorando-se umas as

outras e também nos devorando (Baitello Jr., 2005) e, nesse jogo de voracidade insaciável

entre os atores, a consequência primeira são imagens maldigeridas e/ou inconsumidas que

acabam, na maioria das vezes, descartadas como lixo.

Seguindo a pista flusseriana (1972) – cuja inspiração freudiana é perceptível – de

que aquilo que tende a nos condicionar é justamente os dejetos, e vislumbrando a

101

necessidade de um pensamento arqueológico em torno dos objetos das ciências da

comunicação, sugerimos – por meio do objeto da pesquisa – a possibilidade de a

imaginação atuar como arqueologia da imagem, desvelando rastros passados, intuindo e

inventando imagens futuras. Compreendemos que o “método” do fotógrafo poderia se

configurar como uma estratégia para lidar com as imagens midiáticas, uma perspectiva de

fuga frente à imanência imaginária e suas subtrações totalitárias. Em nossa análise,

depreendemos que o “sítio arqueológico” onde Wolf trabalha é compreendido por imagens

disponibilizadas no site Street View do Google, as quais são “rasgadas” e “dialetizadas” em

sua superficialidade, permitindo assim, que o fotógrafo encontre consciente e

inconscientemente rastros importantes. Ainda sobre a caracterização do procedimento

arqueológico, chamamos atenção para o caráter háptico das imagens do site, cujos

“terrenos acidentados”, de certa forma, metaforizam a deriva necessária que o artista

propõe por entre as camadas das imagens.

Como o procedimento arqueológico demanda buscas minuciosas, a temporalidade

instaurada pelo fotógrafo em busca de rastros e restos na imagem é da ordem da duração e

não da instantaneidade fotográfica. Agindo, portanto, de modo a lograr o aparato e superar

os congelamentos do instantâneo, Wolf mergulha na imagem e em seus meandros e,

imerso no refluir do tempo, confronta-se com sintomas da imagem, complexifica rastros,

desdobra e inventa outras imagens.

Diante de um processo fotográfico inventivo que se molda em arqueologia

imaginativa da visualidade notam-se, dessa forma, fissuras na órbita imaginária por meio

das quais se pode fugir à imanente superficialidade de sua estrutura, paradoxalmente, por

meio de imagens, via força corporal da imaginação. Faz-se necessário, no entanto,

compreender melhor algumas estratégias imaginativas que podem furar esse

emparedamento de imagens midiáticas prêt-à-porter e frear sua voracidade devoradora de

outras imagens e corpos. Sob esse escopo, a investigação no próximo capítulo se orientará

pelos seguintes questionamentos:

a) Como se configura a estrutura não alcançada pela órbita do imaginário

descrita por Dietmar Kamper como força da imaginação

(Einbildungskraft)?

b) Há elementos correlatos à imaginação que poderiam auxiliar nessa

prospecção; se sim, quais?

102

c) À luz do objeto de pesquisa, como compreender esse pensar por e

através das imagens? Qual sua relevância frente à comunicação e cultura

contemporânea?

Nosso objetivo, portanto, é melhor compreender a faculdade imaginativa em

relação ao objeto de pesquisa e de que forma aquela instância possibilitaria acessar rotas de

fuga à órbita imaginária, quebrar os espelhos desse “grande evento fechado” (Kamper,

2016). Após a sugestão de que a imaginação pode atuar como ferramenta arqueológica

sobre a imagem, ampliaremos tal reflexão e caracterizaremos essa capacidade prospectiva

sob três aspectos correlatos: pensamento por imagens, inconsciente ótico e distração. Nesse

sentido, vislumbraremos não uma solução miraculosa e revolucionária para a problemática

dos ambientes saturados de visualidade na comunicação contemporânea, mas uma saída

simples via ação corporal imaginativa.

103

3 O PENSAMENTO POR IMAGENS

“Finalmente, há dois dias, consegui demonstrar um teorema. Não como resultado de meus penosos esforços, mas graças a Deus. O enigma foi resolvido num raio súbito. Não sei dizer qual foi a natureza do fio condutor que ligou o que eu já sabia com o que tornou possível o meu sucesso”. Friedrich Gauss

“The image - not in its usual meaning as a pictorial form of imaginative presentation, but rather as the mode of presentation with which imagined content is given to the imaginer’s consciouness. The image is not what is present to awareness - this is the content proper - but how this content is presented." Edward Casey

No capítulo anterior, buscou-se compreender de que forma a dinâmica fotográfica

de Wolf pode se configurar como arqueologia da visualidade e, nesse quadro

argumentativo, intencionou-se refletir criticamente sobre o ambiente midiático onde nosso

objeto de pesquisa está alojado, elucidando diferenças entre o imaginário cultural e

imaginário midiático, cuja compreensão se buscou por meio dos conceitos de órbita do

imaginário e mediosfera. Nessa configuração, salientamos a força da órbita do imaginário

que, em sua dinâmica de apropriação superficial de conteúdos do imaginário cultural e suas

imagens primordiais, acossa-os em suas dimensões mais profundas e assim se sobrepõe

nos ambientes midiáticos – apenas envernizada de conteúdos arcaicos – como grande

matriz irradiadora de visualidade.

Outra rememoração conveniente neste momento, é que a imagem – conforme

explanado no capítulo um –, independente de seu suporte, possui grande força mnemônica

cumulativa e, nesse sentido, não mantém relação indissociável com uma materialidade

externa que a projete. Conforme Belting (2006) explica, ela nasce em nossos corpos e

transita dinâmica e fluidamente de forma ambivalente entre meio interno e externo

(imagens endógenas e exógenas). Recuperar tais discussões na abertura deste capítulo

torna-se importante, pois, como objeto antropológico, a imagem é de ampla complexidade

e mesmo na atual época de tecnolatria que as regurgita continuamente, sua gênese e

mutações dinâmicas ainda estão atreladas à imaginação, uma força do corpo. Buscaremos

agora, portanto, seguindo a máxima kamperiana de que contra o imaginário73 ajuda

somente a força da imaginação, refletir sobre a faculdade imaginativa, sua relação com o

corpo e de que modo ela se constituiria como possibilidade de fuga frente à imanência

73 Dietmar Kamper emprega a palavra imaginário para referir-se à órbita do imaginário.

104

totalitária dos ambientes visual midiáticos. Ocorrendo nas frestas da racionalidade, entre

distração e atenção, a imaginação pode fazer-se em uma espécie de pensamento de grandes

sínteses, irruptivo e por imagens. Assim, refletiremos sobre como e por quais meandros a

imaginação poderia se constituir como arqueologia da imagem, ampliando a análise

realizada sobre o ato fotográfico de Wolf e projetando que a dinâmica estabelecida pelo

autor poderia se configurar como gesto contemporâneo diante da órbita imaginária: ato de

deriva e imaginativo que rasga a imagem em sua superficialidade, esfrega-a em outras e

assim possibilita a emergência de rastros que se plasmam em imagens polissensoriais,

diante da atual caverna orbital de imagens.

3.1 Imaginação como força corporal

Nos rastros kamperianos de que a força da imaginação pode-se constituir como o

escape frente à imanente superficialidade das imagens da caverna orbital imaginária, e

refletindo sobre a afirmação de Casey (1974, p.10) de que “reside no ato imaginativo o ato

de perceber a imagem”74, de que modo pode-se compreender a imaginação? Vários foram

os autores que refletiram sobre essa força corporal que, para Bachelard (2001, p.1), é antes

de tudo “faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção[...] libertar-nos das

imagens primeiras, mudar as imagens”75.

Para Gilbert Durand (1995, 1998, 2012) o imaginário se perfaz por imagens cuja

dimensão simbólica motivada76 mantém certa relação natural com algo ausente. Ou seja, a

toda imagem ata-se uma dimensão de significado e esta dinâmica possui um trajeto

antropológico:

O imaginário, aquilo que é próprio do homem [...], define-se como uma representação incontornável, a faculdade da simbolização de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus ficou em pé na face da Terra. (DURAND, 1998, p.117).

74 Tradução livre do autor a partir do trecho em epígrafe no início deste capítulo. 75 Buscando nas fontes primárias do inconsciente, o autor baseia suas reflexões nos elementos primordiais ar, água, fogo e terra como matrizes para a imaginação do indivíduo. Interessa-nos aqui, sobretudo, sua abordagem sobre a fluidez da imaginação. In: O ar e os sonhos, Martins Fontes: São Paulo, 2001. 76 Neste trabalho, a concepção de imagem simbólica faz referência aos Estudos do Imaginário (quando uma imagem ata-se a um sentido) e não à Teoria dos Signos que observa no símbolo um caráter arbitrário.

105

Nesse sentido, percebe-se a constituição de um tripé entre imagem, imaginário e

imaginação77. Sob esse escopo, James Hillman (1992) opera em uma perspectiva das

imagens primordiais, aproximando as teorias da imagem e do imaginário, afirmando ser a

imagem – de mitos, sonhos, fantasia, poética – expressão de fundamentos arquetípicos,

acessíveis via imaginação78 (HILLMAN, 1992 p.10). Ou seja, via imaginação, há um

trabalho da imagem que alojada no imaginário (ora prevalentemente o cultural, ora o

midiático) nos atinge de alguma forma.

Ao refletirmos sobre esse lidar com imagens, não se pode esquecer da proposição

de Didi-Hiberman (2013a), a qual afirma sinergia entre olhar e coisa olhada, ou seja,

quando olhamos as imagens elas já nos olharam anteriormente. Equivale a dizer que, ao

ocuparmos as imagens via imaginação, também somos por elas ocupados, ou seja, “a força

representativa da imaginação torna possível transformar mundo exterior em mundo interior

e mundo interior em mundo exterior” (WULF, 2014, p.14). Nesse sentido, há o que Hans

Belting compreende como fluxo entre imagens endógenas e exógenas, marca indelével da

faculdade imaginativa que nesta pesquisa é compreendida como força corporal:

A imaginação tem como raízes os processos vivos do corpo humano. Arnold Gehlen vê a sua origem no aspecto vegetativo e a concebe como correlação com o superávit de impulsos do ser humano. Para André Leroi-Gourhan, o desenvolvimento da imaginação depende de trabalhos musculares e está associado com a alimentação, as atividades físicas e o sexo. Jousse (1974) vê o surgimento da imaginação nas ações dirigidas aos processos de natureza mimética [...] ela é, portanto, uma energia que tem a sua fonte no corpóreo. (WULF in Baitello & Wulf, 2014, p.14 e 15).

É justamente essa energia corporal, na visão de Dietmar Kamper (2002, 2002a,

2002b, 2016), a ferramenta que possibilita driblar a imanência das imagens na órbita do

imaginário que, rarefeitas simbolicamente e de superficialidade atrativamente luminosa,

estão presentes em distintos ambientes midiáticos narcotizantes os quais nos anestesiam e

nos sedam/sentam (Baitello Jr, 2012). Contra esse cenário envoltório da órbita imaginária,

afirma Kamper (2016), não há saídas milagrosas, mas estratégias paradoxais

77 Norval Baitello Junior In O olho do furacão. A cultura da imagem e a crise de visibilidade detalha o parentesco etimológico das palavras imagem/imaginário/imaginação com a palavra magia e mágica. Disponível em http://www.cisc.org.br/biblioteca. Acesso em 10/07/2016. 78 Sob uma perspectiva mais tecnicista, Vilém Flusser (2002, 2008) aborda o imaginar como forma de concretizar o abstrato, adquirida após o desenvolvimento dos aparatos de imagem técnica ou tecno-imagens. Como referenciado na nota de rodapé 38, para este autor, na atual época, vive-se em meio à imaginação técnica, cujo objetivo é “captar o clima espectral do nosso mundo, desprezar a profundidade e preferir a superficialidade empolgante”.

106

disponibilizadas pelas próprias armadilhas: “levar uma vida com imagens, contra as

imagens” (KAMPER, 2016, p.225).

Contra o imaginário, diz ele, ajuda somente a força da imaginação. Aqui entram em cena o devaneio, o sonho, a magia, a imageria corporal, a heresia, a sensação, a mimeses, a poiesis e o desejo. Imaginário e imaginação são face e contraface de uma mesma fita de Moebius79, retorcem-se sobre si infinitamente, ambas se carregando nas costas, se tocando, porém, em nenhum momento se olham de frente (NAVES, 2014, p.169).

Contra a força impositiva da órbita imaginária, sua tentativa de esvaziar os lastros

simbólicos das imagens – as quais se tornam autorreferentes –, a força da imaginação

(Einbildungskraft) em suas distintas manifestações como sonho, devaneio e imageria

endógena. Ou seja, na porosidade e plasticidade das imagens corporais via imaginação

encontram-se possibilidades para transpor as aporias da caverna orbital. Trata-se de uma

inversão da ordem vigente que não requer grandes ferramentas, mas que se retorne a um

sentir por apaixonamento, que se faz por caminhos aleatórios e tem no rastrear, ouvir,

sentir e ver percepções cuja essência é da ordem do pathos.

Dessa forma, portanto, a força da imaginação – e seu fluxo de impulso mimético –

está inserida em um contexto mais amplo, que é o pensamento-corpo ou pensamento

corporal (KörperDenken) caracterizado por Kamper:

Pensamento-corpo significa trabalhar no sem-chão, perceber o evento a partir de todos os lados e efetivá-lo numa singular existência-insistência. Pensamento-corpo é como rir e chorar, comer e beber, andar, êxtase, como alergia e idiossincrasia, teatro inconsciente, como o inconsciente, como a pequena morte ou foder até não aguentar mais. Pensamento-corpo funciona como máquina desejante (Deleuze/Guattari). Pensamento-corpo é antes de tudo um padecimento, uma paixão, uma subversão da distância; além disso, é contestação dos meios virtuais da virtuosidade do experiente espírito do presente. Pensamento-corpo não é nenhuma sensualidade militarizada e tampouco alternativa a qualquer autoafirmação intelectual que, a cada momento, traz somente a si própria à baila. Pensamento-corpo também não invoca uma necessidade dos pensamentos, mas toma seus desfechos pela contingência histórica, para dali começar. Pensamento-corpo é a forma corrente do começo sob a insuportabilidade das condições sociais. Pensamento-corpo não é apoteose do início. Ao contrário, começa do abismo e assegura-se de

79 Fita ou faixa de Moebius (Möbius) é um espaço topológico anelar inventado pelo matemático August Möbius no qual não se faz distinção entre parte interna e externa. Segundo Naves (2016) “na obra de Kamper, (a fita de Moebius) faz parte de um arcabouço de formas e topografias reunidas em desafio à geometria euclidiana. Entre tais formas estão também os anéis borromeanos, a rosa, os fractais, o labirinto, o deserto e o desenho a mão livre” In Kamper (2016, p.231).

107

maneira a manter abertas as sentenças inerentes ao homem. (KAMPER 2016, p.227).

Como uma estratégia do pensamento-corpo, a força da imaginação não é fundada

sob algo, mas está em dinâmica, não segue ordenamentos e se distrai em impulsos

miméticos, é da ordem da irrupção e persegui-la, afirma Kamper, é “como caçar

unicórnios” (2002b, p.7). Sob esse cenário, portanto, o primeiro rastro fundamental a que

nos agarramos é a ideia de um sentir por apaixonamento, que se faz presente na dinâmica

fotográfica de Wolf, pois o modo como o fotógrafo percebe os rastros e outras imagens nas

próprias imagens está primeiramente vinculada a um pathos. Assim, faz-se necessário

investigar o seu uso do sentido da visão, pois, apesar de fatigado, ainda é um sentir.

3.2 Vigiar e sentir

Em sua agrimensura arqueológico-imaginativa ao lidar com as imagens do GSV,

Michael Wolf emprega o sentido da visão amplificando-o de forma perspicaz. Wolf, tal

qual afirma Flusser (2002) sobre o gesto de fotografar, age na floresta densa da cultura

como caçador: ele percorre caminhos por descaminhos, sente pelos rastros e escaneia pelas

fendas das imagens. Enxerga onde não se vê, transpõe a luminosidade ofuscante superficial

e traz à tona uma visualidade tátil, investe o olhar nas fronteiras entre visível e invisível.

Busca, antes de ver, um sentir que se guia pelo pathos, o qual pode reconectar o corpo com

as coisas (Merleau-Ponty, 2011).

Na atual condição contemporânea cujos simulacros são confundidos com as

próprias coisas e o espetáculo quer se fazer ver – vale lembrar, “as sociedades ocidentais

reduzem o mundo às imagens e fazem das mídias o principal vetor da vida cotidiana” (LE

BRETON, 2016, p. 51) –, o sentido da visão passa a ser exigido em demasia, e, como

afirma Kamper em citação já referida, isso provoca o seu extenuamento.

Nesse contexto, portanto, a fim de desestabilizar a caverna orbital imaginária que

clama por olhares padronizados e calibrados para dimensões luminosas e repetitivas de

entretenimento80, é necessário transpor tais fronteiras e rastrear nas dimensões

80 Interessante a iniciativa da designer Marcela Hippe que criou o blog chamado “Sempre o mesmo cara”, no qual compila anúncios publicitários e cartazes diversos publicados no Brasil e no exterior que, como o próprio nome sugere, trazem sempre o mesmo modelo http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2013/08/sempre-o-mesmo-cara-dentista-estima-estampar-10-anuncios-por-dia.html.Trata-se de um exemplo oportuno sobre o tema da órbita imaginária, que repetitiva e reluzente alastra-se globalmente reforçando padrões de visualidade midiática.

108

crepusculares. Mais do que estar diante de algo, urge estar na própria coisa, sentir a carne

do mundo imbricada ao próprio corpo, o que pressupõe percepção que se confronta e não

apenas se conforma com as coisas, “percepção como possessão simbólica do mundo” (LE

BRETON, 2016, p.29) ou “existência pática” (KAMPER, 2016, p.169) que se dá pelos

sentidos, mesmo o saturado sentido da visão.

Ao registrar estereoscopicamente os lugares por onde passa, as câmeras do GSV

que ficam acopladas nos carros fotografam aleatória e imotivadamente, não compõe com

paisagens e/ou fatos específicos, operam de forma automática. Nesse contexto, não raro, as

fotografias das câmeras do Google projetam visualidades marginais, elementos indesejados

que não fariam parte do repertório da reluzente órbita imaginária e que, por equívoco, se

tornam visíveis na enorme tapeçaria de imagens costuradas do GSV. No encalço dessas

visualidades recônditas, Wolf rastreia com a visão de forma seletiva e móvel, ora buscando

detalhes longínquos, ora fixando-a nas proximidades de primeiros planos. Sempre, porém,

no sentir de lastros, empregando a visão sagazmente, notabilizando tinturas luminosas que

envernizam as imagens e as raspando para que rastros mais profundos possam ser

evidenciados. Wolf subverte a visão que se afeiçoa apenas às aparências; no pathos,

enxerga rastreando e rastreia enxergando.

O olhar é suspeição sobre o acontecimento. Ele inclui a duração no tempo e a vontade de compreender. Ele explora os detalhes, opõe-se ao visual por sua atenção mais constante, mais embasada, em sua breve penetração. O olhar se fixa nos dados. Ele desprende situações do pano de fundo visual que rege a cotidianidade. Ele é poiesis, confrontação com o sentido, tentativa de ver melhor, de compreender, após uma surpresa, um espanto, uma beleza, uma singularidade qualquer que demanda uma atenção. O olhar é uma alteração da experiência sensível, uma maneira de colocar-se sob sua vigilância, de apossar-se do visual, extraindo-o de seu incessante desfilar. Ele toca a distância com seus próprios instrumentos: os olhos. (LE BRETON, 2016, p.72).

Confrontando-se com a imagem e não apenas diante dela, Wolf as olha no sentido

acima exposto por Le Breton. A temporalidade do olhar (que se desdobra na temporalidade

fotográfica de seu ato) não é a do instantâneo fotográfico, mas sim a da duração que capta

tanto estruturas gerais de conjunto quanto filigranas, não apenas descobre sentidos nos

rastros, mas também os constrói via imaginação, articulando assim sentidos e propondo

visualidades crepusculares.

O fotógrafo alemão, há que se considerar, fotografa proximamente aos temas, no

avizinhar limítrofe entre olhar e coisa olhada. Nesse sentido, é importante abordar que,

109

antropologicamente, a visão é um sentido da distância, fóbico, de alerta, que “busca na

antecipação antever o futuro” (BAITELLO & CONTRERA, 2010) e que quando

empregado na proximidade busca tatilidade, quer tocar com os olhos, apalpar espessuras.

Para Le Breton (2016), a visão quer exercer sua plenitude junto ao tato – revirar objetos

com as mãos, sentir com os dedos – e quando não é possível essa associação entre os dois

sentidos e se tem apenas a visão (como no caso do objeto da pesquisa), há uma

incompletude do sentir, a qual busca ser compensada pelo olhar meticuloso, pela invenção,

imaginação e especulação81, por um olhar que se torna tátil.

Sobre essa capacidade háptica do olhar, Deleuze e Guattari em O liso e o estriado

(1997) orientam para a compreensão desses espaços comparando-os em distintos modelos

como o tecnológico, matemático, musical, entre outros. O espaço liso seria o espaço da

proximidade no qual nos movemos pela própria deriva sem que se necessite de

balizamentos que demarquem, de mapas ou pontos abstratos de sinalização; o liso é um

elemento do espaço háptico, cujo itinerário vai se construindo pelo tato. O estriado, por sua

vez, configura-se pela distância e, portanto, pelo ótico (o sentido da visão como sentido de

distância/alerta), é espaço de medidas e cartografias onde há elementos de organização.

Numa interessante metáfora, explicam os autores:

O feltro não implica distinção alguma entre os fios, nenhum entrecruzamento, mas apenas um emaranhado das fibras, obtido por prensagem. São os micro-filamentos das fibras que se emaranham. Um tal conjunto de enredamento não é de modo algum homogêneo: contudo, ele é liso, e se opõe ponto por ponto ao espaço do tecido (é infinito de direito, aberto ou ilimitado em todas as direções; não tem direito nem avesso, nem centro, não estabelece fixos e móveis, mas antes distribui uma variação contínua. (DELEUZE & GUATTARI, 1997, p.181).

Assim, o feltro está para o espaço liso, é de uma proximidade háptica, da ordem dos

fluxos e não dos fixos. Por outro lado, o tecido confeccionado em trama e urdidura é

espaço estriado, privilegia o distanciamento ótico e é da ordem de fixos e não de fluxos.

No estabelecimento dessas distintas configurações, nos interessa aqui, sobretudo,

compreender a hapticidade da visão no espaço de proximidade em que Wolf trabalha. Em

distância breve em relação à imagem, esta perde contorno, se torna fugidia e inconstante,

sua figuratividade se precariza, permitindo assim que a imaginação atue livremente. Os

81 Segundo Cunha (2007) a palavra especulação tem origem no latim especularis (1572) que significa examinar com atenção. Posteriormente (1813) refere-se àquilo que é próprio de espelho, speculum. Do Indo-europeu Pokorny (1994) afirma a origem no radical Spek- “observação, olhar agudo”.

110

olhos são as mãos e a imagem a argila em devir. Os olhos derivam de forma inconstante e

pática pela imagem, que é deformada, reformada e transformada. Faz-se importante

salientar que no imenso patchwork de imagens do GSV, apesar da simulada estereoscopia

que sugere texturas, Wolf transmuta-a em um espaço liso, emaranhado de pixels – não

homogêneo – mas aplanado, aberto e ilimitado à deriva do olhar.

Na configuração háptica da imagem, tendo em vista a proposta desta pesquisa,

pode-se pensar em duas vias metafóricas: de um lado, os pixels luminosos e saltados que

mais confundem do que auxiliam (como explanado sobre a etimologia da palavra no

capítulo um), ou seja, a precariedade figurativa da imagem como metáfora para a cegueira

contemporânea, a impossibilidade de efetivamente ver nos ambientes saturados de imagem

e a oftalgia para os fenômenos crepusculares. Por outro lado, no entanto – seguindo a

ambivalência característica da imagem e as pistas kamperianas sobre lidar com imagens na

era do seu próprio excesso – essa hapticidade e rarefação figurativa permitem imaginar,

dialetizar, jogar com os pontos, articular significados que se dão nas múltiplas

combinações entre pixels. Na proximidade erótica com os fragmentos da imagem, sentir os

vestígios que se deixam olhar, mas também olham. Benjaminianamente, ler e articular

significados a partir de rastros, juntar ruínas (ou pedrinhas, como diria Flusser), concretizar

imaginativamente visualidades, suturar rastros, articulá-los por sínteses, o que equivale a

sentir e pensar por meio da própria imagem e seus sintomas.

3.3 A imagem como pensamento

Nesse rastreamento visual pático empreendido por Wolf, a percepção e o

pensamento não são estruturas divorciadas, mas operam hibridizadas, relacionando

intuição e intelecto:

Percepção e o pensamento não podem operar separadamente. As capacidades comumente atribuídas ao pensamento – diferenciação, comparação, classificação, etc – atuam na percepção elementar; ao mesmo tempo, todo pensamento requer uma base sensorial [...] A intuição e o intelecto se relacionam com a percepção e o pensamento de uma forma um tanto complexa. A intuição é mais bem definida como uma propriedade particular da percepção, isto é, a sua capacidade de apreender diretamente o efeito de uma interação que ocorre num campo ou situação gestaltista [...] é capacidade cognitiva reservada à atitude dos sentidos porque age por meio dos processos de campo. A atividade de classificação, isto é, do agrupamento das variações sob uma designação

111

comum e baseadas em conteúdos mentais padronizados são da esfera do intelecto. (ARNHEIM, 1989, p.14 e 16).

No âmbito das estruturas cognitivas acima mencionadas, Arnheim (1989) afirma

que ambas estão entrelaçadas, a intuição possibilita uma sinopse da estrutura global

enquanto o intelecto limita-se à estabilização de estruturas lineares. Nesse sentido, enfatiza

o autor, não se trata de uma superioridade desta estrutura em relação à intuição nem

tampouco crer que o conhecimento apenas ocorra na fase intelectiva da cognição, mas

antes de perceber que intuição e intelecto estão amalgamados. Assim, o intelecto trata de

unidades lineares e as coloca nesta ordem, uma após a outra, impossibilitando assim uma

visão de conjunto relacional entre as partes a qual é possibilitada pela intuição. Equivale a

dizer que o intelecto oportuniza visão diacrônica (sequencial) dos fenômenos enquanto a

intuição um viés sincrônico (simultâneo), exemplificado pela imagem como visão intuitiva

da estrutura global das configurações e possivelmente vislumbrado em relações

metafóricas e diagramáticas. Ante esses argumentos, portanto, Arnheim (1989, p.149)

afirma que o pensamento se dá na própria esfera da percepção e é “principalmente visual,

pois a visão é a única modalidade dos sentidos em que as relações espaciais pode ser

representadas com precisão e complexidade suficientes”.

Também consoante à ideia de que o pensamento se dá na esfera imagética (no

quiasma entre intuição e intelecto), o neurocientista António Damásio (2015) afirma que

em nossa mente alojam-se imagens conscientes e inconscientes, estas acessíveis

indiretamente por meio de psicoterapias e sonhos, e aquelas acessíveis somente pela

perspectiva da primeira pessoa. Para o neurocientista português, o conceito de imagem não

está associado à percepção visual apenas, mas amplia-se e se constrói na mente por meio

de sinais provenientes também de diferentes modalidades sensoriais como a olfativa, a

gustativa, a auditiva e a somatossensitiva, esta ligada ao corpo e suas múltiplas formas de

percepção como muscular, térmica, tato, visceral e vestibular. Obviamente que a

complexidade dos estudos neurobiológicos do cérebro e mente não serão aqui abordados

em sua vastidão, porém, é oportuno refletir sobre a configuração da imagem como padrão

mental, como pensamento.

O processo que chegamos a conhecer como mente quando imagens mentais se tornam nossas, como resultado da consciência, é um fluxo contínuo de imagens, e muitas delas se revelam logicamente inter-relacionadas. O fluxo avança no tempo, rápido ou lento, ordenadamente ou aos trambolhões, e às vezes segue não uma, mas várias sequências. Às vezes

112

as sequências são concorrentes, outras vezes convergentes e divergentes, ou ainda sobrepostas. Pensamento é uma palavra aceitável para denotar esse fluxo de imagens. (DAMÁSIO, 2015, p.256).

Nessa dinâmica mental de imagens, um simples detalhe visual, um cheiro, um som,

uma textura, um sabor, enfim, um rastro de quaisquer modalidades sensoriais (ou vários

concomitantemente e sobrepostos) detonam processos mentais como, por exemplo, as

evocações de Proust ao comer sua madeleine com chá82, descritas por Benjamin (2012)

como memória involuntária – uma série de lembranças convocadas por meio das imagens

táteis, gustativas e olfativas que tomam o autor de Em busca do tempo perdido ao morder o

bolinho, fazendo com que o tempo presente seja atravessado por reminiscências. Assim,

nesse fluxo, os pensamentos configuram-se como padrões mentais, como imagem em

constante dinamicidade que tanto pode ser construída de fora do cérebro para dentro, como

no caso proustiano da madeleine, mobilizando-se pessoas, objetos, lugares, etc, ou a partir

da imaginação e da memória, ou seja, de dentro para fora. Faz-se importante ressaltar, no

entanto, que esses estímulos fora-dentro/dentro-fora não necessariamente ocorrem de

forma isolada, mas podem se sobrepor uns aos outros perfazendo um trânsito de mão dupla

entre imageria endógena e exógena.

Pensar e sentir, dessa forma, se dá por uma configuração mental em que imagens

irrompem na mente; quando se está atento a estímulos internos e externos ou distraindo-se

em uma caminhada pelo parque ou lendo um livro. É tocar a carne do mundo com o corpo

e sua somatossensorialidade e ao mesmo deixar ser tocado inesperadamente por ele. Nos

limiares tensivos entre racionalidade e intuição, concentração e distração, o pensar por

imagens não pede licença, brota de forma pática e assim imagens evocam outras imagens.

É o pensamento livre e sem amarras, fluxo de sensações que convoca reações musculares e

imagens mentais, pensamento-corpo.

Einstein (1954), ao responder a pergunta de Jacques Hadamard sobre como se dá

mentalmente os processos de elaboração e pensamento dos matemáticos, afirma que no seu

caso, as palavras e a linguagem escrita têm papel secundário, pois o que de fato o comove

são imagens visuais e musculares, que o auxiliam no estabelecimento de analogias com

certas relações lógicas83. No pensamento-corpo, dessa forma, as imagens de múltiplas

82 In: PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. Mario Quintana. Abril Cultural: São Paulo, 1982. 83 Edição consultada: HADAMARD, Jacques. The psychology of invention in the mathematical field. New York: Dover publications, 1954, Disponível em: http://worrydream.com/refs/Hadamard%20. Acesso em 02/08/2016. A partir do trecho “The above mentioned elements (sobre a pergunta de Hadamard) are, in my

113

sensorialidades – muitas vezes articuladas a partir de detalhes mínimos – analogizam-se

intempestivamente tanto sob a forma de imagens conscientes quanto inconscientes.

3.4 A serpente de Kekulé

Conta a mitologia da ciência que, desconfiado de um ourives que desejava lhe

vender uma coroa de ouro maciço, o rei Hierão da Siracusa ordena ao sábio Arquimedes

(287-212 a.C) que encontre uma forma de verificar se tal objeto era realmente de ouro puro

– como afirmava o ourives – ou se havia prata misturada à coroa, como suspeitava o rei.

Incumbido da tarefa, Arquimedes, um dos maiores cientistas da Antiguidade Clássica, se

debruça sobre o problema, faz cálculos, revisita teorias antigas. Descobre a solução no

banho.

Nu como um verme, molhado como um frango-d’água, Arquimedes desce a rua principal de Siracusa gritando Eureka em dórico: ‘encontrei’. Os transbordamentos intempestivos do seu banho fizeram-no sair do balneário. O grande génio, ninguém o ignora hoje, acabava de descobrir o famoso princípio da hidrostática que gerações de académicos recitariam com ênfase dramática: qualquer corpo mergulhado num líquido fica submetido a uma força vertical, de baixo para cima, igual ao peso do fluido deslocado. (ORTOLI & WITKOWSKI, 1997, p.17).

Obviamente que o trabalho racional e concentrado do matemático pela solução do

problema auxiliou, mas foi no afrouxamento intelectual, nas frestas da racionalidade em

que as imagens se dispuseram lado a lado. Assim, distração e imaginação convidam a

racionalidade para sentar-se junto à mesa e repentinamente a analogia84 entre imagens se

forma, é disposta como prato principal. Tal como no raio súbito de Gauss, citado na

epígrafe deste capítulo, as imagens que brotam mentalmente em Arquimedes colocam-se

como forças que num átimo sintetizam a relação entre causa e consequência: ao entrar na

case, of visual and some muscular type. Conventional words and other signs have to be sought for laboriously only in a secondary stage […] the play with the mentioned elements is aimed to be analogous to certain logical conections” Tradução do autor. 84 Da raiz grega ana=reintegração, comparação e logos=razão, indica a transposição de um determinado domínio conhecido a outro. Trata-se de um eixo comparativo no qual há sugestão de proporcionalidade entre os elementos que possibilitariam, assim, sintetizar novos conhecimentos. Tão antiga quanto o próprio desenvolvimento da razão, tendo sido empregada pela filosofia clássica, alquimia e ciência moderna, a analogia, afirmam Gentner & Jeziorsky (1979), citados por Rodrigues (1997), “se constitui como mapeamento de conhecimento que parte de um domínio (a base) para dentro de outro domínio (alvo) tal que sistema de relações que envolvem os objetos da base também envolve os objetos do alvo”, ou seja, trata-se, ao fim e ao cabo, de uma equiparação modelar ou equivalência estrutural entre partes. As analogias e metáforas possuem papel fundamental na cultura e aqui nesta pesquisa são instâncias consideradas à luz do pensamento por imagens.

114

banheira, o corpo desloca água proporcionalmente a sua massa, logo, ao colocar a coroa,

a água deslocada será proporcional à massa dos metais presentes. Só que no pensamento

analógico por imagens essa associação é da ordem da irrupção mental, junção violenta e

inesperada a qual auxilia o sábio a vislumbrar a solução do problema.

Isaac Newton (1643-1727) com o não menos famoso caso da queda da maçã em

correspondência com a força gravitacional é outro paradigmático episódio em que há essa

associação analógica de imagens85. Menos conhecido do que a banheira de Arquimedes ou

a maçã de Newton, porém cientificamente tão importante quanto, é o sonho com a serpente

alquímica (Ouroboros) do cientista alemão Friedrich August Kekulé (1829-1896), que

possibilitou a descoberta da estrutura do benzeno (C6H6) no século XIX. Relata o químico:

Eu estava sentado à mesa a escrever o meu compêndio, mas o trabalho não rendia; os meus pensamentos estavam noutro sítio. Virei a cadeira para a lareira e comecei a dormitar. Outra vez começaram os átomos às cambalhotas em frente dos meus olhos. Desta vez os grupos mais pequenos mantinham-se modestamente a distância. A minha visão mental, aguçada por repetidas visões desta espécie, podia distinguir agora estruturas maiores com variadas conformações; longas filas, por vezes alinhadas e muito juntas; todas torcendo-se e voltando-se em movimentos serpenteantes. Mas olha! O que é aquilo? Uma das serpentes tinha filado a própria cauda e a forma que fazia rodopiava trocistamente diante dos meus olhos. Como se se tivesse produzido um relâmpago, acordei (...) passei o resto da noite a verificar as consequências da hipótese. Aprendamos a sonhar!, senhores, pois então talvez nos apercebamos da verdade. (BOYD & MORRISON, 1995, p.701).

Aprendamos a sonhar! é a dica de Kekulé, que sonhando (pensando corporalmente)

vislumbra a relação de parecença entre a serpente alquímica Ouroboros e o anel benzênico.

85 Biógrafos e estudiosos da obra de Newton observam com certa reticência o episódio da maçã, que segundo William Stukeley, amigo de Newton e responsável por redigir Memoirs of Sir Isaac Newton (citado por Ortoli & Witkowski, 1997), teria sido mencionado pelo cientista inglês à sobrinha Catherine Conduitt, a qual teria incrementado a história. Apesar da suspeita, Stukeley relata o episódio ocorrido em 1726. “Depois da ceia, o tempo ameno incita-nos a tomar chá no jardim, à sombra de algumas macieiras. Entre outros assuntos de conversa, disse-me que se encontrava numa situação análoga àquela em que tivera a ideia da gravitação. Esta fora-lhe sugerida pela queda de uma maçã num dia em que, estando de humor contemplativo, se sentara no jardim (William Stukeley apud ORTOLI & WITKOWSKI, 1997, p.17).

115

Figura 30- Ouroboros Figura 31-Anel Benzênico

Fonte: O livro dos símbolos (2012). Fonte: Wikipedia. Acesso em 19/07/16.

Nos exemplos científicos acima mencionados, nos interessa refletir sobre esse

procedimento mental e imaginativo que estabelece uma relação de síntese entre

fenômenos, fazendo irromper violentamente imagens mentais, conscientes e inconscientes

que se associam. Trata-se do pensar por imagens, força corporal da imaginação que joga

com a racionalidade positivista.

Em seu Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino (1923-1985) elege os

temas leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência (este último

nunca fora escrito) como fundamentais para o século que se aproximava. No tema sobre a

visibilidade, o autor versa sobre a importância dos processos imaginativos e de como esse

“cinema mental” opera em nós de modo contínuo, e mesmo antes da invenção desta

técnica “nunca cessou de projetar imagens em nossa tela anterior” (CALVINO, 1990,

p.99), tema este que será abordado por Belting (2006), o qual afirma como sendo o corpo a

fonte primeira das imagens. Versando sobre a importância da imaginação na cultura, o

modo como ela opera intuitivamente projetando cenários hipotéticos e seu poder de

evocação, Calvino problematiza, enfim, a relação entre imaginação e a cultura da imagem

no século XX:

Que futuro estará reservado à imaginação individual nessa que se convencionou chamar a ‘civilização da imagem’? O poder de evocar imagens in absentia continuará a desenvolver-se numa humanidade cada vez mais inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas? Antigamente a memória visiva de um indivíduo estava limitada ao patrimônio de suas experiências diretas e a um reduzido repertório de imagens refletidas pela cultura; a possibilidade de dar forma a mitos pessoais nascia do modo pelo qual os fragmentos dessa memória se combinavam entre si abordagens inesperadas e sugestivas. Hoje somos

116

bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo. (CALVINO, 1990, p.107).

No texto de Calvino, há o tangenciamento de questões abordadas nesta pesquisa,

tais qual a preocupação com o dilúvio das imagens pré-fabricadas (a órbita do

imaginário/mediosfera), o modo como em nós esse “depósito de lixo” se acumula

provocando anestesiamento perceptivo e o que acarreta à imaginação. Sob esse cenário,

como imaginar se há uma enxurrada de visualidade que dioturnamente nos assedia? Uma

das possibilidades, acreditamos, é o revirar em meio ao inconsumido, em meio ao lixo

visual que se acumula nos labirintos midiáticos, sentir pelos rastros, pensar por imagens,

que significa antes cair na imagem e deixar-se levar pelas suas inconstâncias

metamorfoseantes do que pensar sua superficialidade, tatear em suas fendas, rasgar sua

superfície, rastrear por apaixonamento. Trata-se de um sentir que se plasma em pensar por

imagens, pensamento que não se dá nos trâmites de etapas da racionalidade, mas é da

ordem do fluxo de múltiplas sensorialidades, transitando entre o inconsciente e o

consciente e está nas franjas do pensar esquematicamente: por uma imagem, evoca-se

outra, ou uma multiplicidade delas que não são apenas visuais, mas táteis, olfativas,

gustativas, sonoras, musculares, enfim, somatossensitivas. Pensamento de saltos, intuitivo

e imaginativo que joga com o racional, esgarça suas etapas dedutivas, desobedece

parâmetros, distrai-se por atalhos e dialetiza. Obviamente que nesse fluxo de imagens

(pensar por imagens) não há uma configuração de novidade epistemológica, mas sim a

sempre ativa capacidade imaginativa do próprio corpo. Trata-se de um rastrear pático que

irrompe e se distrai, está nos sonhos, nos devaneios, dribla o positivismo científico,

aparece no caminhar (a peripatética na filosofia), no banho de Arquimedes, na maçã de

Newton, no sonho alquímico de Kekulé, enfim, está na cultura, e em sua dinâmica

analógica está uma das chaves para transpor a órbita elíptica imaginária.

3.5 A serpente de Warburg

Aby Warburg, como explanamos no primeiro capítulo, afirma que as imagens

transportam-se entre culturas e épocas distintas, seja em pequenos ou grandes fragmentos

e, nesse trânsito, podem inclusive vir a significar o extremo oposto do que simbolizam

117

antes. A imagem é um dínamo de forças que sobrevive como fundamento de memória

(pessoal e coletiva) na cultura.

Quando Kekulé vislumbra no sonho Ouroboros e imediatamente a vincula ao ciclo

benzênico, afirma que a serpente rodopiava diante de seus olhos, e que, “como se tivesse

produzido um relâmpago, acordei”. Tal qual o químico alemão observa a metamorfose da

serpente em relâmpago, Warburg, em visita a tribo dos índios Hopi no Novo México,

vislumbra a semelhança atribuída por esta cultura indígena entre relâmpago, o animal

ctônico e todo um modo como a forma serpenteante se faz presente no dia a dia da tribo.

Destarte, seja no sonho do intelectual forjado na ciência positivista europeia ou no dia a

dia dos índios Hopi, cujas vidas se fazem “estritamente por imagens e agem (os índios)

através delas” (MICHAUD, 2013, p. 327), encontra-se a imagem associativa entre a

serpente e o raio, e faz-se notório o pensamento por imagens, da ordem das grandes

sínteses que irrompe por meio da imageria consciente e inconsciente.

O pensamento por imagens se faz amplamente na cultura, porém, na seara científica

poucos foram corajosos ao ponto de reconhecer sua fundamental importância. Aby

Warburg é um deles, e o faz por meio de uma dinâmica de imagens colocadas em relação

de analogia, projeto este que ficou conhecido como Atlas Mnemosyne. Trata-se, ao fim e

ao cabo, de um Atlas de imagens cujo objetivo principal é reconhecer possíveis

genealogias e o modo como formas arcaicas, a pós-vida das expressões, fórmulas de

apaixonamento (Pathosformel) transitam nas imagens.

O nome faz referência à personificação mitológica da memória – a deusa

Mnemosyne – e a obra em si consiste em pranchas de um metro e meio por dois onde são

afixadas com prendedores de fácil remoção, reproduções fotográficas distintas como

desenhos, obras de arte, imagens publicitárias, entre outras. Warburg elabora esses painéis

vislumbrando projetar a pós-vida (Nachleben) contida nas imagens, possíveis relações

genealógicas de parentesco entre expressões patéticas similares. Nessas múltiplas e

possíveis combinações entre as imagens nas pranchas, os deslocamentos simbólicos são

policrônicos e perpétuos, não há rigidez e nenhum tipo de amarra conceitual e disciplinar

necessária ao trânsito de formas, perfazendo uma dinâmica fluxo/refluxo entre os motivos.

O autor compõe suas pranchas do Atlas Mnemosyne com recortes de jornais,

páginas de livros, cartões-postais, fotografias publicitárias, enfim, qualquer imagem que

possibilitasse a verificação de trânsitos de pós-vida, que compusesse seu imenso cenário de

118

“iconologia dos intervalos”. A disposição dos elementos possibilita pensar em fluxos

diversos entre as imagens, além de o espectador entrever e “comparar com uma só olhadela,

numa mesma prancha, não duas, porém dez, vinte ou trinta imagens” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.

387). Atlas Mnemosyne constitui um estudo profundo e meticuloso sobre as raízes

ancestrais e os lastros de memória encarnados nas imagens e que transitam entre elas.

Dizia o autor que Mnemosyne queria ser antes de tudo um “inventário dos modelos

antiquizantes preexistentes que influenciaram a representação da vida em movimento e

determinaram o estilo artístico na época do Renascimento” (WARBURG, 2010, p.03). As

contradições e polaridades presentes nas imagens eram parte de um organismo complexo e

dinâmico, as quais projetavam as simbologias metamorfoseantes da imagem. A

complexidade e também incompletude do Atlas é explicada por Georges Didi-Huberman:

Mnemosyne é um objeto de vanguarda por ousar desconstruir o álbum de recordações historicista das “influências da Antiguidade”, para substituí-lo por um atlas da memória errática, pautada pelo inconsciente, saturada de imagens heterogêneas, invadida por elementos anacrônicos ou imemoriais, assediada pelo tom negro das telas ao fundo, que amiúde desempenha o papel de indicador de lugares vazios, de elos perdidos, de lacunas da memória. Sendo a memória feita de buracos, o novo papel atribuído por Warburg ao historiador da cultura é o de intérprete de recalcamentos, “vidente” [seher] dos buracos negros da memória. Mnemosyne é um objeto intempestivo, por se atrever, na era do positivismo e da história triunfal, a funcionar como um quebra-cabeça ou um jogo de tarô desproporcionais (configuração sem limite, número infinitamente variável de cartas por jogar). Nele, as diferenças nunca são reabsorvidas numa entidade superior: como no mundo fluido da “participação”, elas são animadas por suas ligações, descobertas – através de uma experimentação sempre renovada – pelo cartomante desse jogo com tempo. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.406).

As possibilidades combinatórias entre as imagens são exponenciais, trazendo à

baila um também sem número de análises e leituras que, mesmo assim, nos coloca sempre

à incompletude combinatória, até porque Warburg não raro substituía ou acrescentava

novas imagens às pranchas. Interessa-nos aqui, neste momento, para além da reflexão

sobre a imagem e suas constituições ancestrais entre diferentes ambientes culturais e

épocas distintas, notabilizar o processo “epistemológico” empregado por Warburg e de que

modo ele se distingue parcialmente do eureka de Arquimedes e de Kekulé. Warburg trata

de, com a imagem e por meio dela, projetar associações, transversalizar e intuir fluxos de

energia, assim, o historiador da cultura assume como “método científico” um pensamento

não linear e sequencial, que salta quanticamente entre imagens. Um pouco distintamente de

119

Newton, Gauss e Arquimedes que se depararam intempestivamente com um raio súbito o

qual trouxe o clarão do saber, Warburg vai combinando as imagens e de certa forma

construindo um cenário – diferentemente dos cientistas mencionados – que estimula esse

fluxo de imagerias. O autor de Atlas Mnemosyne, dessa forma, prevê a irrupção de

imagens recônditas que poderão surgir nas pranchas do Atlas, que funciona muito mais

como espaço liso de livre deriva mental do que como um mapa delimitador de fronteiras.

Assim, de certa forma similar à tabela periódica dos elementos químicos de Mendeleiev86 –

entretanto com menos amarras científicas – o Atlas warburguiano é a materialização do

pensar por imagens, que tem no próprio serpentear uma alegoria do dinamismo de energia

entre imagens; um sentir ziguezagueante nas pranchas que sutura visualidades labirínticas

e recônditas. Trata-se de fisgar lastros em movimentos anadiômenos e fantasmáticos,

vincular dejetos memoriais e imemoriais, tensionar distintas visualidades, rastrear nos

intervalos entre as imagens que recalcam outras imagens. Pensamento por imagens em

Warburg é rastrear e sentir complexamente a imagem por meio dela própria, dialetizar e

imaginar, é estar ciente que sua visibilidade imanente é apenas a ponta do iceberg. No

espaço entre analogias das imagens, vislumbrar a escuridão dos intervalos como cavernas

que em sua profundidade ecoam e amplificam rastros, os quais operam aqui como

elementos ativadores da energia imaginativa corporal.

86 Em 1869, o químico russo Dimitri Mendeleiev começa a agrupar elementos químicos em uma tabela, seguindo certo padrão de similaridade entre elementos dispostos em uma mesma coluna. Inicia-se, assim, a tabela periódica de elementos químicos, que, à época, além de não entusiasmar a comunidade científica, foi motivo de chacota, e seu autor ridicularizado, já que havia casas em branco as quais Mendeleiev afirmava que seriam ocupadas por elementos a serem descobertos. “Em 1879 é descoberto o escândio, que vem a ocupar o lugar de uma das casas, e, dezessete anos depois, o gálio e o germânio vêm preencher as restantes casas vazias e surpreender os químicos de todo o mundo”. (ORTOLI & WITKOWSKI , 1997, p.84).

120

Figura 32- Sala de leitura da Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg (Biblioteca Warburg de Ciências da Cultura

Fonte: (WARBURG, 2012, p.17)

Figura 33- Detalhe do painel 48 do Atlas Mnemosyne. Fortuna. Símbolo do conflito próprio do homem que conquista sua liberdade (comerciante).

Fonte: (WARBURG, 2012, p. 145).

121

Figura 34- Esquema de disposição das imagens para ilustrar conferência sobre astrologia orientalizante.

Fonte: (Warburg, 2012, p.28).

Nesse sentido, faz-se inadiável e imprescindível estabelecer a diferença entre

pensar por imagens e pensar a imagem, conforme indica Ferrara (2014):

Pensar por imagens, ou seja, não mais nos convida a estar ante a imagem na fruição da sua contemplação, mais ou menos alerta, mais ou menos colaborativa e atuante. Ao contrário, propõe pensar com imagens ou através dela; porém, vislumbramos uma diferença ontológica importante entre pensar por imagens e pensar imagens e essa diferença exige que passemos de um estágio antropológico de análise, para atingir a arqueologia da visualidade que, por sua vez, exige operar, comparativamente, entre imagens, pensar suas construções, suas articulações e as possibilidades da sua cognição. (FERRARA in Baitello & Wulf, 2014, p.190).

A despeito da sua complexificada constituição, a imagem muitas vezes é

confundida com seu suporte, elemento este que, de alguma forma, antes recalca camadas

culturais da imagem do que as evidencia. Dessa forma, em nosso ponto de vista,

abordagens estruturalistas sobre pensar a imagem em leituras de imagem fotográfica ou

cinematográfica, por exemplo, tornam-se insuficientes, pois, não raro, prendem-se antes à

constituição técnica dos suportes e às “pontas do iceberg” do que a sua complexidade. O

Atlas Mnemosyne, em oposição a este pensar a imagem, perfaz um pensar por imagens e,

assim, objeto para sempre inacabado e em movimento perpétuo, engendrando novas

122

articulações, operando comparativamente e sugerindo outras imagens para além das

visuais. Trata-se, deste modo, de celebrar a imagem como um gaio saber87 (Didi-Huberman,

2015).

Tendo em vista o pensamento por imagens como um rastrear pático, um pensar

pelos múltiplos sentidos que o corpo oferece, que se faz por analogias, metáforas e é da

ordem da imaginação, da irrupção mental de imagens conscientes e inconscientes,

vislumbramos no ato fotográfico de Wolf tal dinâmica. O autor embarca no devir

metamorfoseante da imagem, supera o pensar a imagem em sua superfície e significados

imanentes e pensa por imagem, rastreia de forma pática e mergulha em suas abissalidades.

Fura imaginativamente o emparedamento cerrado da órbita imaginária.

3.6 A serpente de Wolf

Obviamente que ao refletirmos sobre o trabalho de Wolf na série Street View,

poderíamos, de imediato, afirmar que o autor age como fotógrafo no sentido em que

Flusser (2002, 2008) atribui ao termo como aquele que dribla as intenções pré-programadas

da caixa preta e sugere visualidades marginais nas fotografias. Pretendemos, no entanto,

para além dessa notória e conhecida acepção do pensamento flusseriano, abordar o modo

como o fotógrafo articula a imaginação no lidar com as imagens à guisa de sugestão diante

do emparedamento espelhado da caverna orbital imaginária. Sob esse escopo,

compreendemos que o modo como Wolf articula o pensamento por imagens diante das

imagens do Google Street View poderia se configurar como uma forma crítica para se lidar

com a imagem midiática e, por conseguinte, aprofundar percepções acerca dela,

confrontar-se e não apenas conformar-se com ela.

87 Georges Bataille faz uso do termo gaio saber pensando a imagem em suas lacerações, aproximações e esfregamentos, tal como se observa na revista surrealista marginal Documents, editada de 1929 a 1930. Editor desta publicação, que recebeu contribuições de Michel Leiris e Fritz Saxl (discípulo de Warburg), Bataille priorizava nas páginas montagens inusitadas entre imagens de distintas épocas, objetivando articulações por semelhança e dessemelhança que configurassem sintomas nas imagens (do grego Symptoma – o que cai junto com – um encontro, uma queda, um choque). Nesse sentido, afirma Didi-Huberman (2015) a revista Documents pode ser comparada ao Atlas Mnemosyne de Warburg, pois, de certa forma, também visa a superar a iconografia tradicional. Afirma Didi-Huberman (Idem, p.402) “ambos endereçavam o mesmo gênero de questão antropológica ao mundo das imagens e ao das condutas sociais. No fim das contas, uma mesma prática interpretativa vinha a lume, destinada a fazer fundir e difundir o sentido através de um trabalho da montagem figurativa que as pranchas quase mudas de Mnémosyne, exatamente contemporâneas de Documents, tão bem encarnam na obra de Warburg”. (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.402).

123

No desenvolvimento da série percebe-se uma geografia imaginativa tateada pelo

autor, que se molda em arqueologia da visualidade (conforme descrevemos no capítulo

dois). Trata-se de um pensar por imagens, pois, para além do sentido da visão, Wolf sugere

outras sensorialidades ao se aproximar às imagens do site e transmutar a imanência visual

em visualidade háptica, sugerindo texturas e meandros, rasgando fendas que podem evocar

outras imagens corporais. Assim, por meio da visibilidade luminosa do site, o autor

refotografa lastros, fragmentos específicos de imagem os quais denotam a arqueologia

imaginativa da visualidade que possibilita a evocação de imagens conscientes e

inconscientes, em níveis táteis, olfativos, enfim, em outras sensorialidades para além

unicamente da visual. Trata-se de um fotografar, mas antes de tudo, de estar atado à

imagem e pensar por meio dela, seguir ao sabor de seus meandros imaginativos, lacerar sua

superfície, escavar nas suas fissuras abissais e alcançar (e ser alcançado) pelos dínamos de

forças que toda imagem contém. Tal qual uma serpente, Wolf observa sem pestanejar,

ouve através da pele, sente as vibrações energéticas dos subterrâneos da imagem, enrolar-

se a ela e embarca em seus encontros numinosos.

No desnudar de véus luminosos que encobrem a imagem midiática, Wolf depara-se

com um vórtex espiralado de imagens e suas múltiplas camadas; flagra movimentos

anadiômenos de rastros, embarca no ziguezaguear dos sintomas da imagem, vai

costurando-os erraticamente por sínteses, pespontando visualidades e assim formando

tessituras de diferentes texturas no grande tear da cultura. Entre a vigília polissensorial e os

jogos imaginativos engendrados, o corpo em todo seu esplendor de somatossensorialidades

e capacidade imaginativa se insinua como mecanismo capaz de virar o jogo contra o

excesso da visualidade contemporânea, transpor as aporias da caverna orbital imaginária.

Seguindo a pista kamperiana de “levar uma vida com imagens, contra as imagens”

(KAMPER, 2016, p.225), o trabalho do fotógrafo não sugere solução miraculosa para o

lidar com imagens em plena era do seu excesso, mas antes caminhos que se fazem por

descaminhos, a imaginação contra a órbita imaginária, saltos quânticos em vez de

linearidades analíticas. Para tal empreitada, faz-se necessário perfurar o imaginário

midiático de imagens reluzentes e superficiais, o que significa cair, ter contato com a

matéria escura, buscar na arqueologia da visualidade um fluir intempestivo da imaginação,

pensar por imagens e intuir imagens nos limiares da consciência e da inconsciência, razão

e imaginação.

124

Nesse sentido, parece plausível refletir sobre essa deriva arqueológica empreendida

pelo fotógrafo como uma espécie de colagem singular à Warburg: Wolf inicialmente

escolhe e recorta rastros nas imagens do Google que, posteriormente são alçados à

condição de imagem eles próprios. Não se trata, portanto, de uma colagem tout court na

qual se escolhe, recorta e juntam-se fragmentos, mas antes uma colagem mental que

promove tensionamentos múltiplos entre imageria endógena e exógena, atravessamentos

entre razão/imaginação e diferentes saberes. Colagem que remexe em dejetos, ato que

“nega o lixo ao retransformá-lo em cultura [...] gesto mais radical em favor da cultura,

mais radical que o gesto produtor de obra com matéria natural, porque é gesto que sustenta

a cultura enquanto luta contra o esquecimento”88. Trata-se, ao fim e ao cabo, de gesto que

visa libertar, transpor os biombos visuais da órbita elíptica imaginária via

somatossensorialidade corporal e imaginação plasmada em imagens conscientes e

inconscientes.

3.7 O Inconsciente ótico, a fresta e o rastro

“Por que esperar mais?” Essa é a pergunta que o escritor e fotógrafo amador

Roberto Michel – personagem de Julio Cortázar no conto As babas do diabo89 – se faz

depois de um tempo observando um casal no parque e em meio à indecisão de fotografar

ou não a cena. Ele não mais espera: enquadra, seleciona uma abertura para a objetiva e

fotografa displicentemente. No processo de ampliação fotográfica, Michel dilata parte da

cena fotográfica repetidas vezes e, surpreendentemente, para além do casal na imagem,

vislumbra o que seria um cadáver em meio a um arbusto.

O trabalho de Wolf se assemelha ao da personagem de Cortázar. No entanto, o

fotógrafo alemão o faz de forma mais deliberada, parte não da chamada realidade

quadridimensional, mas trabalha já a partir de fotografias, intuindo que rastros imotivados

possivelmente estarão alojados nas imagens capturadas pelas câmeras do GSV. Sob esse

cenário, como pensar essa visualidade marginal enrustida na imagem e de que modo é

possível trazê-la à tona? Walter Benjamin (2012) fornece pistas, afirmando que por meio

da mecânica e da objetiva da câmera captam-se pequenos lastros simbólicos antes

88 Retirado do tiposcrito inédito “Reflexão sobre collage-valor e lixo”, consultado no Arquivo Vilém Flusser São Paulo, indicado por [sem referência]. 3085_pasta essays 16-Portuguese Q-R. 89 Em 1966, o conto de Cortázar foi adaptado para o cinema “Blow up - Depois daquele beijo” sob a direção de Michelangelo Antonioni.

125

invisíveis a olho nu, e, a essa habilidade instrumental, o autor propõe a metáfora de um

inconsciente ótico contido na câmera.

Em meio à aceleração temporal instaurada pela modernidade, afirma o autor, a

fotografia opera como interruptora do fluxo de fatos cotidianos, represando-os e chamando

atenção para os detalhes da cena tal qual uma lente expandida, uma lupa que fisga

fragmentos de maneira inconsciente e os traz à superfície da foto. Benjamin afirma, assim,

que o inconsciente ótico seria importante no sentido de revelar a aparência “sem nome” das

coisas (Namenlose Erscheinung), tal qual o conceito freudiano de inconsciente

(Unbewusste) enaltece detritos e lapsos. Nesse sentido, notabiliza-se a analogia entre o

chamado inconsciente ótico de Benjamin e inconsciente (Unbewusste) de Freud90.

Operando como uma lente expandia, capaz de flagrar detalhes e embalsamar

elementos, a fotografia opera como um vetor de novos modos de percepção do mundo

(como exemplificamos no capítulo dois sobre a cronofotografia e a fotografia de pacientes

da clínica Salpêtrière), segundo Benjamin “capaz de destacar coisas que antes passavam

despercebidas no vasto fluxo do mundo perceptível, tornando possível analisá-las” (2012,

p.78). No “intervalo entre o dedo e o olho” (LISSOVSKY, 2014, p.50), a expectação em

que o fotógrafo está mergulhado buscando modular um instante que moldará o esvair do

tempo como borrão na imagem, como aspecto e, a despeito “de toda a perícia do fotógrafo

e de todo o planejamento na postura de seu modelo” (BENJAMIN, 2012, p.100), há uma

fagulha que pode brotar da imagem de forma não planejada, e isso se dá pela natureza da

câmera.

A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui um espaço preenchido pela ação consciente do homem, por um espaço que ele preenche agindo inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que de modo grosseiro, mas nada percebemos de sua postura na fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia torna-a acessível, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação.

90 Faz-se importante ressaltar a dimensão metafórica entre os “inconscientes” que Benjamin propõe. Nesse sentido, permitimo-nos discordar de Krauss (1993) que questiona o cotejamento entre os conceitos sob um ponto de vista essencialmente racionalista: “a rigor, como pode o campo ótico ter um inconsciente”? (KRAUSS, 1993, p.178 e 179). Acreditamos que não se trata de uma violência epistemológica em que o inconsciente ótico toma de empréstimo a totalidade e complexidade do inconsciente (Unbewusste), mas sim de um pensar por imagens muito caro a Benjamin como afirma Arendt (2008, p.179): “As metáforas são os meios pelos quais se realiza poeticamente a unicidade do mundo. O que é tão difícil de entender em Benjamin é que, sem ser poeta, ele pensava poeticamente e, por conseguinte, estava fadado a considerar a metáfora como o maior dom da linguagem”. Dessa forma considera-se essa relação entre inconsciente ótico e inconsciente (Unbewusste) como da ordem do pensamento por imagens e não lógica strictu sensu.

126

Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional91. (BENJAMIN, 2012, p.100 e 101).

A analogia instaurada, apesar de não ser inédita92, é provocativa, pois ao alinhar o

conceito de inconsciente ótico ao inconsciente descrito por Sigmund Freud, há a sugestão

de que tanto o olhar pela câmera quanto o olhar clínico da psicoterapia poderiam atuar

como mecanismos de adensamento da capacidade perceptiva. Na década de 1930,

Benjamin passa a dedicar especial atenção ao cinema e à fotografia como fenômenos

comunicacionais da modernidade instauradores de novas percepções estéticas. Além do

texto Pequena história da fotografia, o notável ensaio A obra de arte na era... também

oferece material para discussão sobre impactos perceptivos estéticos do cinema e

fotografia, que podem “acentuar certos aspectos do original acessíveis à objetiva [...] mas

não acessíveis ao olhar humano” (BENJAMIN, 2012, p. 182). Na primeira versão deste

último texto93 há a analogia entre o inconsciente ótico e inconsciente de forma mais

pronunciada:

91 Benjamin utiliza a expressão inconsciente pulsional. Lagache (2001, p.235) define o inconsciente como “representações das pulsões”; isto torna a expressão benjaminiana explicativa (e de certa forma, redundante), mas não incorreta. Para Roudinesco & Plon (1998), entretanto, a expressão ‘inconsciente pulsional’ (Triebunbewusste) não aparece em Freud, por sua vez, a palavra ‘inconsciente” (Unbewusste) possui neste autor um sentido específico, de “instância ou sistema constituído por conteúdos recalcados que escapam às outras instâncias [...] e que se revelam através do sonho, dos lapsos, dos jogos de palavras, dos atos falhos” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p.375). 92 O eixo comparativo proposto por Benjamin, apesar de sui generis, não é inédito à época, pois como assinala Hansen (in BENJAMIN & SCHÖTTKER & BUCK-MORSS & HANSEN, 2012), teóricos do cinema como Jean Epstein e Béla Balázs utilizam-se de analogias psíquicas e fisionômicas a fim de “ler” e conceituar o cinema da época. Ainda de acordo com a autora, possivelmente um ensaio de Kracauer tenha exercido influência direta sobre o conceito benjaminiano, pois refletia sobre um “momento libertado da tirania humana” no momento da captação fotográfica. O pioneiro no processo da calotipia Henry Fox Talbot também enunciava na década de 1840 que uma das causas do “encanto da fotografia” consistia em desvelar detalhes que “haviam passado totalmente despercebidos” (HANSEN, 2012, p.78). Faz-se importante mencionar também que Freud elabora uma analogia conceitual entre atividades psíquicas (consciente e inconsciente) e a fotografia. Afirma o autor que “o primeiro estágio da fotografia é o negativo; cada imagem fotográfica tem de passar pelo processo negativo, e só alguns desses negativos, que foram aprovados, são admitidos ao processo positivo, que afinal termina na imagem fotográfica” (Freud apud Hansen In BENJAMIN & SCHÖTTKER & BUCK-MORSS & HANSEN, 2012). Dessa forma, o inconsciente estaria para o negativo – recalcado, negado, porém ativo – e o consciente estaria para o positivo, as imagens que efetivamente são percebidas e estão presentes em nossa consciência. 93 Segundo Detlev Schöttker (in BENJAMIN & SCHÖTTKER & BUCK-MORSS & HANSEN, 2012), a primeira versão do texto traz mais claramente o modo de reflexão benjaminiano entre inconsciente ótico e inconsciente pulsional. Na segunda versão, foi retirado um parágrafo da primeira que versa sobre a personagem do Mickey Mouse e sua presença no imaginário coletivo: “O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de Heráclito, segundo a qual o mundo dos homens acordados para quem o mundo dos homens acordados é comum, o dos que dormem é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camundongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro” (2012, p. 205).

127

O cinema enriqueceu o nosso mundo perceptível com métodos que podem ser esclarecidos pela teoria freudiana. Há cinquenta anos não se prestava atenção a lapsos durante uma conversa. Seria considerado muito raro que um mero lapso no meio de uma conversação comum e corrente tivesse algum significado profundo. Desde a psicopatologia da vida cotidiana isso mudou. Esse texto foi capaz de destacar coisas que antes passavam despercebidas no vasto fluxo de mundo perceptível, tornando possível analisá-las. De modo semelhante, o cinema ampliou em toda a sua extensão a percepção do mundo perceptível e agora também do mundo acústico [...] por meio de grandes planos, do foco em detalhes ocultos nos objetos familiares e da investigação de ambientes comuns graças à direção genial da câmera, o filme amplia a visão sobre as coerções que regem o nosso cotidiano [...] então torna-se evidente que a natureza que fala à câmera é diferente daquela que se expõe aos nossos olhos, sobretudo porque o espaço no qual o indivíduo age conscientemente é substituído por outro no qual a ação é inconsciente [...] ela (a câmera) nos abre pela primeira vez o inconsciente óptico, do mesmo modo que a psicanálise nos revelou a experiência do inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 2012, p.27 e 28).

Sobre o inconsciente (Unbewusste), Freud afirma que se trata de uma representação

ou elemento psíquico que não percebemos. No entanto, está incubado na consciência e em

determinados momentos como nos sonhos e atos falhos esses detritos psíquicos veem à

tona cruzando a fronteira da inconsciência. A descoberta do inconsciente revoluciona a

ciência no início do século XX, pois desaloja “a consciência de seu lugar de centro,

alterando assim o privilégio conferido aos pensamentos conscientes” (BARATTO, 2009,

p.75).

A despeito dessa morada inconsciente, as representações psíquicas que lá residem

não estão adormecidas e não são necessariamente fracas, podem se expressar ativa e

vigorosamente, como nos casos de pacientes histéricos analisados por Freud:

Umas das características mais marcantes da mente histérica é o fato de ser dominada por representações inconscientes. Se uma mulher histérica vomita, ela pode estar fazendo-o em consequência da ideia que esteja grávida. Entretanto, ela não está ciente dessa ideia, ainda que tal ideia possa, por meio de um dos procedimentos técnicos da psicanálise, ser facilmente detectada em sua mente e tornada consciente para ela. Quando a histérica executa os tremores e os gestos que caracterizam seu “ataque” ela nem sequer tem uma concepção consciente das ações pretendidas [...] a análise consegue comprovar que a histérica estava representando seu papel na reprodução dramática de um incidente do seu passado, cuja lembrança esteve ativa e inconsciente durante o ataque. (FREUD, 2004, p.83).

Ao analogizar inconsciente ótico e inconsciente, portanto, Benjamin os articula no

sentido que ambos podem revelar singularidades para além do que é visto a olho nu e do

128

que é vivido conscientemente. Nesse sentido, no processo fotográfico de Wolf, mesmo o

fotógrafo escaneando minuciosamente fragmentos superficiais nas fotos, há lastros, dejetos

memoriais e imemoriais que se aninham nas fendas abissais da imagem e que vem à tona

não exclusivamente por meio de sua singular percepção, mas também via inconsciente

ótico. Assim, o fotógrafo seleciona em meio às imagens entulhadas e inconsumidas

presentes no GSV uma série que contém singularidades e fragmentos que usualmente não

estariam presentes, como cenas de pessoas caindo (figura 14), roubos, etc. Via inconsciente

ótico, conjuntamente à percepção, emergem outros rastros que trazem à tona uma

visualidade marginal; configuram-se outras imagens que podem se desenrolar em imagens

hápticas, táteis, somatossensitivas, enfim, evocam outras imagerias que transitam entre

ambiência endógena e exógena. Faz-se necessário recordar que, como a arqueologia

imaginativa da visualidade desenvolvida pelo fotógrafo é da ordem de uma temporalidade

dilatada, da duração no ato, esses processos descritos acima não ocorrem isolada e

separadamente, mas estão sobrepostos e atravessados entre si na mesma bacia da

expectação, no refluir do tempo.

A câmera fotográfica, portanto, é operada como um cinzel, lacera a superficialidade

da imagem e possibilita a emergência de rastros recônditos que, combinados, intuídos e

imaginados são dispostos como outras imagens. Trata-se de um desvelamento para além do

que se vê a olho nu – tanto em direção ao passado quanto ao futuro – operado pela

imaginação que até o presente momento foi abordado à luz de duas instâncias complexas e

complementares:

• Pelo pensamento-corpo, por meio do sentido da visão em recepção ativa,

percepção pática que se desdobra em múltiplas sensorialidades. Assim

plasmam-se percepções em fluxos de pensamento (pensamento por

imagens) que, por apaixonamento, atam-se à imagem de forma a embarcar

em sua ontologia metamorfoseante, sugerindo assim outras imagens as quais

emergem pela sua própria configuração ontológica (imagens que contém

outras imagens) e pela temporalidade dilatada da empreita que facilita o

processo.

• Por meio do aparato fotográfico que auxilia no pensar por imagens no

sentido de que atua revelando um inconsciente ótico e exibindo fragmentos

129

esquecidos, recuperando lapsos profundos nas/das imagens, os quais são

elementos do inconsciente coletivo e pessoal.

Salienta-se, entretanto, que essas instâncias estão atravessadas e não ocorrem

isoladamente e, intuir inconscientemente uma imagem não depende exclusivamente de um

aparato técnico, mas inicia-se em uma percepção pática que pode ser auxiliada por aquele.

Nesse sentido, ao abordarmos o conceito de inconsciente ótico referimo-nos a esse

estímulo, mas antes, a uma metáfora fundamental que nos relembra a importância das

imagens corporais inconscientes e o modo como elas podem emergir.

3.8 O rastro como lapso e o fotógrafo como esgrimista

Se na metáfora benjaminiana há um inconsciente ótico que se analogiza ao

inconsciente (Unbewusste), de certa forma pode-se pensar em uma associação entre os

rastros da imagem e os lapsos psíquicos. No procedimento analítico do psicanalista isola-se

um evento ou palavra em meio ao fluxo de acontecimentos relatados, assim, com uma

espécie de lupa imersiva naquilo que foi selecionado, aprofunda-se a discussão, olha-se tal

evento sob diferentes prismas. No caso do ato fotográfico de Wolf, o procedimento é

análogo: isola-se determinada área da imagem onde se realiza uma escavação cujo objetivo

é captar singularidades. Dessa forma, esse aprofundamento permite apreender o que não

está perceptível a olho nu e é imotivadamente captado pelos mecanismos ópticos e

mecânicos do equipamento fotográfico, permitindo um exame esmiuçador que amplia as

possibilidades de compreensão do fenômeno.

Esses fragmentos de espaço e tempo espacializado presentes na imagem,

ampliados, tornam-se de certa forma comparáveis aos lapsos que o analista retira do

contínuo de ideias nas sessões de análise junto ao paciente. Câmera e analista trabalham na

seleção de detritos, garimpando-os e destacando sua importância. Rouanet analisa a

importância do conceito de lapso e sua analogia com o instante fotográfico.

O lapso é um detrito psíquico, cujo valor cognitivo passaria despercebido se o analista não o extraísse do continuum que o envolve e em que ele é mudo. O isqueiro é um mero fragmento do universo das mercadorias, condenado à obsolescência e ao desaparecimento: a câmara se instala no intervalo entre a mão e o metal, e ao desvendar o lado invisível do gesto, desvenda o lado invisível do objeto, que se salva. Nos dois casos o continuum que aprisionava o objeto se imobiliza, e o instante, cativo de historicidade viciosa, é liberado. (ROUANET, 1990, p.13).

130

Os lapsos, característicos do ato falho, configuram-se como ações ditas/não ditas

onde se verificam relações psíquicas recalcadas. Ele chama atenção, pois o foco se volta

para o “acidentalmente” proferido, aquilo que não é deliberadamente declarado, que em

meio ao fluxo é fisgado. O ato falho torna visível relações psíquicas, é transgressão de uma

ordem, a manifestação do inconsciente, “imbricação de uma vontade e de uma contra-vontade”

(FREUD apud ROUANET, 1990, p.38) tal qual é a mais planejada das fotografias, pois

nela residem rastros do inconsciente coletivo e pessoal e fragmentos míticos, ou seja, por

debaixo de sua superfície reluzente amontoam-se visualidades recalcadas e centelhas do

acaso.

A coagulação de um resquício em meio ao fluxo, em ambas as situações, permite

ao analista/fotógrafo investigar um fragmento que a partir de seu descascamento

fenomenológico extraem-se outras dinâmicas e visibilidades. O ato falho:

Isola e ao mesmo tempo torna analisáveis coisas que antes flutuavam, despercebidas, no vasto fluxo das percepções. Isolar e analisar: é uma atenção que secciona, interrompendo o fluxo. Uma atenção tão fina, que capta em suas malhas o mais imperceptível dos objetos. É a atenção do particular, comum a Freud e a Benjamin. (ROUANET, 1990, p.36).

A captura dessas ruínas intersticiais configura-se em Wolf na medida em que o

fotógrafo explora dimensões profundas da imagem, rastros passados de temporalidade

condensada que, como afirma Benjamin (2012), também aninham o futuro94. Wolf age

como um profeta da entrelinha: em meio à tapeçaria monumental de imagens do GSV, foge

à facilidade de reproduzir clichês fotográficos tão imantados à órbita do imaginário e de

fácil digestão. Esquivando-se da visualidade prêt-à-porter, o fotógrafo avança frente às

dobras e fendas da imagem, com seu florete (câmera fotográfica) estocando certeiramente

alguns rastros (e por eles também sendo golpeados). Nesse touché duplo em que o

“fotógrafo-esgrimista” (Lissovsky, 2014) e a imagem são tocados, esta torna-se marcada

pela duração, traz consigo uma cápsula que condensa traços mnemônicos e um torvelinho 94 Na vida de Aby Warburg há um interessante exemplo sobre essa potencial temporalidade futura aninhada na imagem. Em episódios que culminaram na sua internação psiquiátrica, Warburg imaginava tramas persecutórias, torturas, prisões e assassinatos praticados por antissemitas em que ele e sua família seriam as vítimas. De certa forma, o historiador da cultura anteviu os acontecimentos pós-ascensão de Adolf Hitler, e esses fantasmas mentais mostram-se concretos: “Max, seu irmão que havia ficado responsável pela M.M Warburg & Co. estava sob ameaça de terroristas da extrema-direita alemã. Em sua investigação The Warburgs: the Twientieth-Century Odissey of a Remarkable Jewish Family, o jornalista Ron Chernow conta que o guarda-costas que cuidava de Max 24 horas por dia era, na verdade, um espião nazista” (REINALDO, 2015, p.7). Obviamente que não se trata de a imagem ser um oráculo, mas Warburg, atento às fórmulas de apaixonamento da imagem e extremamente sensível aos seus lastros, soube perceber energias nas entrelinhas das imagens.

131

de temporalidade para além do isto foi barthesiano, mas situa-se também

contemporaneamente no aqui e agora de sua existência/insistência e também aninha pistas

futuras. No seu devir contínuo é que a imagem ainda será “a fotografia como reserva do

porvir” (Lissovsky, 2014).

É na sua abertura para o futuro que a fotografia ainda pensa. Inútil buscar um pensamento fotográfico na imagem feita ‘nostálgica’, ‘polissêmica’, ‘casual’. Só há pensamento na expectação, no devir do aspecto, na iminência do choque. É no vestígio da expectativa configuradora da imagem que podemos reencontrar aquilo em que se funda seu sentido, aquilo por meio do qual ela comunica. Nunca depois, nunca depois do clique, nunca depois que a foto já adquiriu um ‘assunto’. (LISSOVSKY, 2014, p.52).

Trata-se, assim, da imagem dialética benjaminiana, cristal multifacetado de passado

e futuro (Benjamin, 2012). Como alerta o autor, o analfabeto do futuro, mais do que aquele

que não sabe fotografar é aquele que não sabe ler as próprias imagens. Essa leitura, no

entanto, não é uma leitura formalista dos fiapos de espaço e tempo espacializado na

imagem, mas sim uma leitura profética das entrelinhas, é saber identificar o pathos

sintomático da imagem, pensá-la ao sabor de seus próprios meandros e lapsos que evocam

outras imagens polissensoriais. Na temporalidade dilatada da expectação de seu ato

fotográfico, Wolf esquiva-se da órbita imaginária, pensa por imagens e se utiliza da

imaginação como estratégia de escavação, uma “arqueologia do futuro” (Fontcuberta,

2014). Na encruzilhada entre logos e mithos, atenção e distração confrontam-se com a

imagem e seus fractais de temporalidade passada, presente e futura.

3.9 A imagem como flor de Lótus

Na narrativa épica da Odisseia, o poeta Homero relata que após Ulisses e seus

homens saírem de Troia, os ventos marítimos os conduziram para o sul, especificamente

para a terra dos Lotófagos, onde os habitantes da ilha alimentavam-se exclusivamente da

flor lótus. Ao desembarcarem, em vez do combate, foi ofertada aos homens de Ulisses a

doce florescência, que causava um torpor, uma narcose que provocava a dissolução da

vontade e a suspensão do tempo e espaço “quem provava o puro mel da fruta-lótus, não

queria mais voltar ou informar-nos de algo, optando por permanecer entre os Lotófagos,

comendo lótus, esquecidos do retorno” (Homero, 2014, canto IX p.255). A apatia e

languidez que os homens sentiam ao comer a flor era tamanha que não conseguiam sequer

132

se levantar dos jardins, retornavam a uma espécie de estado primitivo, apático e vegetativo,

destituídos de seus desejos. Não se concentravam em outra coisa senão na flor, apenas

deleitavam-se em uma espécie de hedonismo paralisante. Assim, para voltar aos barcos, os

marujos tiveram de ser carregados à força e amarrados.

No atual cenário da órbita imaginária, ao se deixar imantar apenas pela

superficialidade solarizada das imagens midiáticas, vive-se em uma espécie de ilha dos

Lotófagos: imagens são disseminadas aos ventos e caçam incansavelmente nosso olhar,

obsediam nossa imageria endógena e vampirizam corpos, nos querem em um estado de

apatia (sem paixão) e “paralisia excitada e tensão paralisante” (BAITELLO JR., 2012,

p.35). Sob uma adocicada máscara de entretenimento e alegria, somos submetidos a uma

narcose paralisante tal qual os homens de Ulisses: a imagem midiática onipresente e em

looping infinito anestesia e provoca embotamento perceptivo, é flor de Lótus doce e

agradável mas que paralisa. Se a imagem tem um caráter do deus marinho Proteu – pois se

metamorfoseia continuamente –, a imagem midiática, ao contrário da divindade dos mares,

não se transforma em horríveis monstros que espantam aqueles que a seguram, mas vai se

transmutando em belas e reluzentes imagens que paralisam e sedam, possuem alto poder de

distração narcotizante. Aparentemente inofensivas, as imagens da órbita imaginária trazem

custos elevados e consequências reais95, como afirma Dietmar Kamper (1994).

Sob esse cenário é que se torna imperativo uma virada de mesa: contra a órbita

imaginária narcotizante, a imaginação, operar na encruzilhada e de modo embusteiro; se a

caverna imaginária oferece as imagens midiáticas como entretenimento, subvertê-la:

pensar corporal e imaginativamente por imagens no trânsito entre endogenia e exogenia e,

no âmbito da duração, jogar com a distração.

3.10 A distração na duração

A segunda versão do texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,

na qual Benjamin trabalhou entre o fim de 1935 e o início de 1936, foi encontrada e 95 Embusteiramente travestida de entretenimento e diversão, a imagem midiática traz consequências reais para os corpos: desde os modismos propagados, passando por casos em que pessoas que se submetem a procedimentos cirúrgicos a fim de se parecer com atores e atrizes e bonecas, até episódios em que o corpo sucumbe efetivamente. Na mais recente febre midiática o jogo de realidade aumentada Pokemon Go, no qual as pessoas saem à caça dos bichinhos com o smartphone, um menino de 9 anos morreu afogado no Rio Grande do Sul quando tentava capturar um Pokemon, conforme noticiado em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/08/crianca-morre-ao-tentar-capturar-pokemons-no-rio-tramandai-no-rs.html. Acesso em 16/08/2016.

133

recuperada nos arquivos de Max Horkheimer apenas em meados dos anos 1980 e

publicada em 1989 no volume suplementar VII de Gesammelt Schriften (obras reunidas).

Segundo Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado, em prefácio à primeira edição

brasileira da segunda versão, publicada em 2012, há diferenças importantes com relação à

primeira versão do texto, já que a segunda é resultado de uma ampliação e revisão e traz

alguns conceitos não elaborados para a primeira edição, publicada na França e com

alterações propostas por Horkheimer.

Aparecem na segunda versão, a saber: uma teoria da mimese na arte pautada na relação entre aparência (schein) e jogo (spiel); e uma teoria do afrouxamento (auflockerung) da massa proletária compacta, que a transformaria em classe com consciência revolucionária. (MACHADO in Benjamin, 2012b, p.5).

Dentre os pontos célebres destacados por Benjamin nesta segunda versão, há a

retomada da oposição entre valor de culto e valor de exposição da obra de arte, entre

contemplação e desauratização, que estaria não somente em um contexto da teoria estética

da obra de arte, mas amplificada para um caráter antropológico em que o lúdico e o

mimético ganham espaço, transformando, assim:

A questão da arte autêntica ou verdadeira numa outra: a de formas de experimentação, de jogo, de exercício lúdico, formas de percepção (aisthèsis) ampliada e mutante, antes de serem formas artísticas determinadas. (GAGNEBIN, 2014, p.118).

Com o declínio do aqui e agora aurático, a questão fundamental que se colocaria

seria menos a reprodutibilidade da arte e sua consequente popularização para as massas, e

mais as possibilidades de criação de um espaço do jogo (spiel-raum), práticas de

experimentação mimética e lúdica de caráter antropológico. Consoante a este espaço de

jogo, pode-se pensar na apreciação benjaminiana de distração/dispersão (Zerstreuung), que

se configura positivamente como pulsão mimética e lúdica, uma “atenção” que não segue

linearidades, mas caminhos tortuosos, um deixar-se conduzir desatentamente por caminhos

pré-traçados e atentamente por descaminhos (Gagnebin, 2014). É a percepção dos

quiasmas, das zonas intervalares entre luz e sombra, o que se mostra e recalca, lembrança e

esquecimento, querer e não querer, consciência e inconsciência.

Se por um lado Benjamin concebe a distração como uma possibilidade de dispersão

ardilosa, mimética e lúdica, Adorno – mesmo reconhecendo seu caráter inventivo –

notabiliza sua face nociva e perversa que oblitera e recalca a primeira e promove tragédias

134

sociais como a adesão das massas ao antissemitismo. A indústria cultural, empregando

estratégias embusteiras como a onipresença do entretenimento, impõe uma distração

nociva, que se plasma em monotonia e enfadamento, uma fruição tediosa “transformada e

alienada, passível e obediente, na propensão induzida a consumir mercadorias

compensatórias de relaxamento e distração, produzidas pela indústria cultural”

(GAGNEBIN, 2014, p.110).

Nesse panorama, a imagem midiática – em sua membrana reluzente e adocicada – é

estratégia importante da indústria cultural. Travestida de entretenimento e distração, traz

consigo uma carta de produtos a serem consumidos que não raro exibem uma falsa

dimensão aurática cujo objetivo não é fruição de um espaço-tempo singular, mas o

consumo de algo que se propõe como experiência única e exclusiva como anunciam as

imagens publicitárias. Sob esse estratagema de inversões operado pela indústria cultural e

projetado pela órbita imaginária, Wolf propõe uma reinversão de alguns desses

tensionamentos: a instantaneidade cronotópica do contemporâneo cede espaço ao tempo da

duração, da expectação que não se finaliza na materialidade da sua fotografia, mas é tempo

que esvai e reflui, evocando outras imagens. A distração monótona e paralisante da “flor de

lótus” é transmutada em distração (Zerstreuung), dispersão ardilosa e inventiva, que não se

prende a roteiros e é da ordem de impulsos miméticos e do lúdico, prática de antifoco que é

vivaz e esgarça fronteiras, um modo para não se cair em um buraco negro de languidez e

monotonia. Rompe-se, assim, a membrana luminosa da imagem midiática, transformando a

letargia em imaginação a qual evoca imagens corporais conscientes, inconscientes e

polissensoriais. Em meio aos excessos da visualidade contemporânea – aqui representados

pela tapeçaria imagética do GSV –, Wolf distrai-se impulsivamente; na temporalidade

dilatada da duração vai se esquivando dos clichês visuais e busca no movimento

anadiômeno dos rastros, lapsos memoriais e imemoriais que encapsulam apaixonamentos.

Ao empregar a distração/dispersão em seu caráter ardiloso e inventivo – tal qual

formula Benjamin – Wolf sugere, despretensiosamente, descaminhos e atenção dirigidos

para as encruzilhadas como possibilidade de novos horizontes e que podem vislumbrar

outras viagens como “ouvir o inaudito e tocar o intocado” (GAGNEBIN, 2014, p.111). Se

para Walter Benjamin “método é desvio”96, essa deriva diante das imagens propostas pelo

96 Methode ist umweg: citação presente no início da obra Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

135

fotógrafo alemão modela-se em artifício, pois se faz nas franjas de métodos tradicionais, é

antes uma rota de fuga sem querer sê-lo, evoca o pensamento kamperiano de que “qualquer

um pode fazer magia, desde que não queira” (Kamper apud Naves, 2014, p.170) e coloca-se

como uma “epistemológica” do pathos na qual opera uma tensão/distensão dos fatos.

Trabalha-se, dessa forma, com aproximações transversalizadas: atenção/distração estão de

mãos dadas, se entreolham o tempo todo, a racionalidade cede ao intuitivo e à força da

imaginação, o pensamento linear é inflado volumetricamente e se plasma em pensamento

que salta quanticamente, em pensamento por imagens.

No sentido etimológico de distrair, conforme assinala Cunha (2010), o fotógrafo

tensiona, puxa (distrahere) a imagem em diferentes sentidos, arrastando (trahere) ruínas de

imagens soterradas, rastros eclipsados tratados como lixo pela órbita imaginária. Em sua

deriva errática e labiríntica, propõe uma cartografia imaginativa que se faz matreiramente

por encruzilhadas como razão e imaginação, atenção e distração, entre corpo sentado e

corpo que salta via força da imaginação. O estar sentado em Wolf é o assumir de um gesto

predominante da cultura contemporânea, da mesma forma que se configura como posição

de consciência crítica; age sentado, porém não está sedado.

3.11 Sentar sem sedar

Em uma abordagem sociológica das doenças e práticas de higiene de nossa época,

Gilberto Freyre (1983) discorre sobre o sentar como gesto típico da cultura, intensificado

após a urbanização e industrialização do Ocidente:

O urbanita típico de hoje – o médio – é um homem não só econômico como social antes sedentário que móvel, havendo mesmo quem o caracterize, em comparação com os seus antepassados socioculturais, como um homem por excelência sentado. Anda a pé muito pouco. Deita-se só para dormir. Realiza, em numerosos casos, a maior parte do seu trabalho ou o seu trabalho, sentado. Repousa em casa, sentado. Viaja quase sempre sentado – quer de trem, quer de ônibus, quer de avião. Diverte-se sentado no teatro, no cinema, no salão de concertos, na tourada, no estádio, ouvindo rádio, vendo televisão. Estuda sentado. Ensina sentado: havendo até a circunstância de ser símbolo de prestígio social e intelectual, a circunstância de um indivíduo ser catedrático do mesmo modo que, no mundo desportivo, ser dono de cadeira cativa. A poltrona tornou-se quase parte física desta soberana moderna: a poltrona, a cadeira, a cátedra. E, sendo assim, não é possível que essa associação constante, íntima, do homem moderno médio de hoje, com a cadeira, não esteja ligada à sua psicossociologia de modo tal que essa associação ou ligação se reflita também nas relações desse homem moderno com os

136

estados de saúde e de doença; com a sua higiene quer do corpo, quer mental. (FREYRE, 1983, p.228 e 229).

Na análise sociológica sobre o gesto do sentar, Gilberto Freyre vislumbra o gesto

do sentar como potencialmente danoso ao corpo, cujos vasos sanguíneos sofrerão com

“flacidez e alterações degenerativas” (FREYRE, 1983, p.235). O autor, entretanto, projeta

que em um futuro breve, o homem médio urbano poderá desprender-se do sedentarismo

excessivo e assim exercitar-se mais, haja vista que a automação técnica dos aparatos

livrará o corpo das atividades sentadas. Passados pouco mais de trinta anos sobre esta

projeção, será que efetivamente estamos ficando menos tempo sentados?

A associação entre o sentar e a proliferação de máquinas de imagens parece surtir

efeito inverso como diagnostica Baitello Jr. (2012). Cada vez mais diante de televisores,

computadores e aparatos móveis como tablets e smartphones sentamo-nos em cadeiras,

sofás, bancos de ônibus e praças97, etc, ficamos inebriados e paralisados pela luminosidade

da órbita elíptica imaginária. É o efeito ‘flor de lótus’ das imagens e seu poder de

anestesiamento e sedação, pois “enquanto as cadeiras acalmam o corpo, as imagens

distraem a mente” (BAITELLO JR., 2012, p.80).

Wolf, entretanto, fotografa nas zonas intervalares entre luz e sombra: sua série é

exemplo de uma “vida com imagens, contra as imagens”, como nos ensina Kamper. Em

consonância com o gesto típico contemporâneo, o fotógrafo trabalha disfarçadamente

sentado, porém, não está sedado diante das imagens, seu distrair-se diante da imagem

transcende a distração narcotizante, é ardiloso e irruptivo, se faz por descaminhos e aos

saltos, é impulsivo e mimético. Paradoxalmente, o autor assume o sentar (assim como o

faz com a órbita imaginária), porém de forma crítica: o corpo está na cadeira, no entanto, a

força da imaginação – que é de ordem corporal e se dá quanticamente – não se deixa sedar,

age livre e intempestivamente por meio do pensamento por imagens nas franjas da

racionalidade linear, intuindo imagens inconscientes e inventando outras. Trata-se de gesto

paradoxal de enfrentamento (sentado, porém não sedado; com imagens, contra as imagens)

que auxilia a sair da imanência imaginária da caverna orbital, já que embusteiramente

disfarçado, porém reformulando-o criticamente. Wolf traveste-se matreiramente de

97 Em São Paulo, há em andamento o projeto municipal WiFi livre SP que visa instalar rede de conexão Wifi gratuita em praças e locais públicos de todas as regiões da cidade. É curioso observar o cenário peculiar criado a partir do projeto, pois, em estações de metrô e nas praças - estas antes basicamente destinadas ao convívio comunitário, com crianças brincando e adultos se exercitando - as pessoas sentam-se e permanecem silenciosamente por longo tempo com seus smartphones conectados à internet.

137

fotógrafo reprodutor de clichês quando na verdade é fotógrafo arqueólogo-esgrimista

engajado em gesto que visa transpor as aporias da caverna orbital imaginária; disfarça-se

sentado diante da tela, mas age imaginativamente aos saltos penetrando nas abissalidades

da imagem, age nas encruzilhadas e, na era dos corpos que desejam cada vez mais ser

imagem, inverte o sentido, relembrando-nos que está no corpo e não nas máquinas a

capacidade de produzir imagens.

Obviamente que se vislumbra na análise do objeto empreendida nesta pesquisa um

gesto que não deve ser compreendido apenas em seu âmbito fotográfico. Ambivalente,

como a natureza da imagem, o fotógrafo sugere em sua dinâmica sinuosa e errática, uma

imaginação que se faz distraidamente por impulsos, joga com a imagem seu jogo de

metamorfoses pensando por meio dela e traz à tona rastros de um inconsciente embutido

nas imagens. Trata-se, em nossa compreensão, de um ato fotográfico que pode plasmar-se

em um modo de estar diante da imagem midiática, uma estratégia de Hermes, trazendo

embusteiramente a magia por entre luz e sombra.

138

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Tão logo o vejas em decúbito, emprega tua força toda para aprisioná-lo bem, pois nada poupa em seu intuito de fugir. Em tudo tentará se transmudar: nos seres serpenteantes, água, fogo divoflâmeo. Deveis aprisioná-lo com mais força ainda. Quando ele mesmo te indagar reavendo a forma em que antes o encontraste jazente com focas, então liberta o velho paulatinamente, ó herói, pergunta qual dos deuses te persegue, como hás de retornar às ôndulas piscosas” (Homero)

Iniciamos as considerações finais desta pesquisa em referência ao episódio da

captura de Proteu por Menelau na Odisseia de Homero e rememorando a analogia

estabelecida entre este acontecimento e o modo de lidar com a imagem na

contemporaneidade, conforme anteriormente descrito. Em consulta a Eidotéia, o rei

Menelau pergunta de que forma poderia consultar-se com o sábio oracular Proteu. Filha do

velho do mar, Eidotéia se sensibiliza e aconselha Menelau a agarrar fortemente seu pai e,

mesmo durante suas mutações tenebrosas, continuar aprisionando-o ainda mais forte,

assim, paulatinamente, Proteu revelaria as respostas de que Menelau precisava.

A imagem em seu percurso antropológico histórico guarda semelhanças com a

divindade marinha Proteu, pois está em contínua mutação e de certa forma possui rastros

que apontam para o futuro. Assim, a fim de melhor compreender suas nuances simbólicas,

faz-se imprescindível “agarrar-se” a ela, sentir seus rastros e embarcar em seu devir

metamorfoseante, que, ao contrário das mutações tenebrosas de Proteu, são transmutações

luminosas que narcotizam e paralisam.

Aproximar-se de uma conclusão tendo a imagem em seu viés midiático e um ato de

imaginação fotográfica ou fotografia imaginativa como objetos, portanto, soa no mínimo

paradoxal e equivocado, pois, ao acreditarmos ter encontrado soluções, imagem e

imaginação já terão se transfigurado e englobado outras nuances e faces. Dessa forma, no

processo de investigação empreendido, agarramo-nos fortemente – tal qual Menelau – à

imagem e suas dinâmicas, olhando-as de forma fractal junto ao ambiente, tensionando

fragmentos e, assim, surgiram horizontes que nos possibilitam tecer algumas considerações

finais sobre esta pesquisa. Também emergiram, no entanto, como é natural aos trabalhos

acadêmicos, outros questionamentos e perspectivas que escaparam e cujas respostas e

reflexões não puderam ser adequadamente abordadas no percurso desta tese.

139

Objeto fugidio e em devir, a imagem é inicialmente produzida para ser uma

encarnação do duplo. Assim, máscaras mortuárias e corpos mumificados trazem em si um

caráter pleno magicizante; não representam algo, mas são efetivamente. Do Paleolítico,

passando pelo pensamento clássico grego, paganismo, o misticismo dos herméticos e

chegando às imagens de culto, a imagem possui uma entonação de duplo, uma magicidade

simbólica celebrada em ambientes ritualísticos. A partir da era artística, a imagem

configura-se predominantemente representacional, e a ela é agregado um viés especular,

assim, valoriza-se em especial suas dimensões estéticas e a figuratividade de sua

representação.

Com o período industrial, científico e racionalista no século XIX (em especial na

Europa), a imagem passa a ser majoritariamente produzida por aparatos técnicos, que

elevam a níveis exponenciais sua quantidade, amplificam sua disseminação, promovendo

visibilidade e rupturas socioculturais importantes. Nesse cenário de reprodutibilidade

técnica da imagem juntamente aos processos de eletrificação urbanísticos e à capilaridade

cada vez maior da mídia, a imagem expande suas ambiências e sua maior finalidade passa

a ser sua exponibilidade: a imagem configura-se em matriz midiática trazendo em si lastros

de duplo magicizante, de mitologia que se projeta sob a forma de arquétipos (Campbell,

1994), de representação especular e predominância estética. Vale dizer, nesse sentido, que

há intersecções e sobreposições entre esses matizes.

Diante deste cenário iconomaníaco, defrontamo-nos com a imagem midiática e sua

onipresença ubiquitária cuja superficialidade reluzente tende a encobrir suas outras

nuanças e a ocultar o mundo das coisas, promovendo a rarefação da experiência

(Erfährung). Nessa conjuntura, há subtração das coisas e do corpo que se abstraem,

transformam-se, assim, em uma presença ausente, em imagem. Isso posto, ao refletirmos

sobre a complexidade da imagem como objeto da cultura e a partir do cenário acima

mencionado, buscou-se ponderar criticamente sobre duas questões centrais: é possível lidar

mais harmonicamente com a imagem no contemporâneo em plena era de sua desmesura?

E, estando o corpo afetado diretamente pelo processo de hipertrofia da visualidade

contemporânea, porém sendo ele fundamental no processo de produção e transformação

das imagens, se e como é possível recuperar sua presença ativa neste processo?

Iniciamos o percurso de pesquisa abordando no primeiro capítulo justamente essa

natureza complexa da imagem, ensejando-a ao ambiente midiático do Google Street View e

140

ao trabalho do fotógrafo alemão Michael Wolf, o qual escolhemos como objeto de estudo

não pelas fotografias obtidas, mas pelo processo fotográfico em si, de fotografar imagens

do site mencionado. Diante de análises iniciais em sua conjuntura ambiental, buscou-se

argumentar sobre as camadas culturais da imagem, bem como apontar o processo de

abstração do mundo das coisas em consonância à intensificação dos processos técnicos de

produção e disseminação da imagem. Nesse contexto, conjecturamos que a possibilidade

de reconstituição das etapas subtrativas do processo de hominização elaborado por Flusser,

em oposição ao que afirma este autor, ocorre não como reconquista física do espaço

abstraído ipsos facto, mas como ação imaginativa que joga com a realidade, criando dobras

na imagem a abrindo vórtices que possibilitam a emergência de outras imagens. Dessa

forma, tem-se um espaço reconstituído via imaginação, ou seja, a mesma força capaz de

abstrair fenômenos é também capaz de reconstitui-los.

Abre-se um flanco, assim, para investigarmos o modo como a imaginação se

articula à prática fotográfica de Wolf. Tendo observado um caráter arqueológico no

trabalho deste autor, perguntamo-nos de que forma seu ato fotográfico possibilitaria a

prospecção de imagens e outros rastros contidos nas próprias imagens do site Google

Street View. Diante das observações realizadas, notamos que, ao examinar

meticulosamente e escolher uma área da fotografia, Wolf escaneia a imagem no sentido

flusseriano do termo, e, nesse exercício, deflagra visualidades recônditas, imagens e rastros

que se aninhavam em suas dobras e profundidades. Trata-se de um olhar imaginativo e

arqueológico que, de forma mais ou menos deliberada, prospecta e vislumbra rastros e

imagens nas próprias imagens. Imaginação como ação arqueológica que no desenterrar de

rastros vislumbra tanto lastros passados quanto projeta aspectos futuros, considerando a

imagem, portanto, como uma reserva do porvir, já que ela está em constante fluidez. Sob

essa observação, destacamos no objeto essa ação de escavar a imagem, e nesse sentido, a

projetamos como uma possível atitude fundamental e imprescindível frente às imagens na

atualidade, pois o tsunami visual que nos assedia continuamente via múltiplos ambientes

faz confundir os padrões entre estar informado com excesso de informação. Frente às

investigações perscrutadas, portanto, destacamos a necessidade de se observar as imagens

imaginativamente e em scanning contínuo. Assim, por meio desta mirada complexa e

sentir criativo que transcende a superficialidade imanente e luminosa da órbita elíptica

imaginária, adentra-se a imagem e sua matéria escura deflagrando outras imagens. Molda-se um

sentir arqueológico que opera em nível de transversalidades das tramas, buscando inter-

141

relações e pontos quiasmáticos, sente a movimentação das placas tectônicas da cultura e o

modo como se entrecruzam.

Ainda sobre a dinâmica arqueológica e imaginativa investigada, destacamos

também a importância da temporalidade ampliada. Em meio aos dejetos maldigeridos ou

inconsumidos (as imagens do Google Street View), Wolf deriva por vias labirínticas

tropeçando, caindo em imagens, operando a câmera como um cinzel, explorando as

possibilidades da imagem não no âmbito clássico do instantâneo cronométrico, mas na

esfera de uma temporalidade esgarçada, a duração. Na dilatação temporal compreendida

pela expectação, clique e pós-clique, a superfície da imagem é rasgada, suas dimensões

reluzentes cedem lugar a visualidades crepusculares. No tempo lento e artesanal da

imaginação produtiva, dialetiza-se, lacera-se e esfrega-se a imagem em outras imagens,

permitindo que o fotógrafo encontre (e seja encontrado) consciente e inconscientemente

pelos seus sintomas. Ao sabor da amplitude temporal que se arrasta lentamente,

desdobram-se e inventam-se outras imagens que extrapolam o sentido visual e se moldam

em imagens táteis, gustativas, sonoras, somatossensitivas, etc.

Tendo em vista as análises empreendidas nos dois primeiros capítulos,

respectivamente, sobre a complexidade cultural da imagem e o modo como o ato

fotográfico de Wolf configura-se – via imaginação – em arqueologia da visualidade que

prospecta visualização, buscou-se refletir no último capítulo especificamente sobre a

poética e profética frase kamperiana de que “contra o imaginário, ajuda somente a força

da imaginação” (KAMPER, 2016, p.57). Neste panorama, buscamos compreender o modo

como a imaginação auxilia na compreensão da imagem midiática. Assim, via análise da

prática fotográfica de Wolf, nossa hipótese de que a imaginação pode se constituir como

arqueologia sobre a imagem, superando sua visualidade superficial e operando como ponto

de equalização frente aos excessivos ambientes visuais contemporâneos, acreditamos,

mostrou-se apropriada. Isso se deve, pois, como força do corpo e enredando aspectos como

pensamento por imagens, inconsciente ótico e distração, a imaginação configura-se como

via possível para transpor a caverna cerrada e luminosa de imagens que nos assediam.

Dessa forma, a imaginação foi descrita como ação interna de deformar as imagens e

nos libertar das primeiras percepções, assim, refletimos sobre essa instância e sua

capacidade de transmutar e derivar simbologias. Como uma força corporal, a imaginação

age sobre as imagens que estão no imaginário, tanto o cultural quanto o midiático. Logo,

142

tendo em vista os argumentos apresentados, estabelecemos relação entre imaginação,

imagem e imaginário, afirmando que, na plasticidade da imaginação corporal, via pathos,

as imagens são deformadas e transformadas e, assim, podem suplantar o imaginário

midiático que nos cerca com suas imagens prêt-à-porter reluzentes. Nesta dinâmica

imaginativa descrita, portanto, a imaginação é considerada como uma estratégia do

pensamento-corpo e, como tal, é irruptiva e mimética, não segue ordenamentos e sequer

necessita ser um pensamento.

Diante dos fatos elencados, refletimos sobre a ideia de um pensar como fluxo de

imagens. Afirma-se, dessa forma, que o pensar ocorre essencialmente por imagens cuja

dinâmica não é ordenada e sequencial, mas errática e “aos trambolhões”, possui percursos

concomitantes e sobrepostos, sendo que essas imagens podem ser olfativas, sonoras,

gustativas, enfim, transcendem o sentido visual. Tendo em vista a ideia de que o

pensamento ocorre por imagens, argumentamos, via exemplos clássicos da história da

cultura e da ciência, sobre a importância deste pensar por imagens, o modo como a

imaginação a ele se articula e como ele pode auxiliar na compreensão de fenômenos.

Compreendemos que o pensar por imagens é uma estratégia do pensar-corpo; não é

oposição à racionalidade, mas joga com ela, é da ordem da irrupção mimética e das

grandes sínteses inesperadas.

No que se refere ao conceito benjaminiano de inconsciente ótico, interessou-nos a

analogia instaurada pelo autor entre inconsciente (Unbewusste) e a capacidade de a câmera

trazer à tona elementos que estão na imagem, porém imperceptíveis a olho nu.

Incisivamente criticado por autores em diferentes áreas, tal conceito é aqui empregado no

sentido de analogia: tal como o olhar clínico do psicoterapeuta, a câmera poderia operar

como mecanismo de adensamento da capacidade perceptiva, ou seja, ambos possibilitariam

o revelar de singularidades para além do que é visto superficialmente. Assim, o analista

destacaria o lapso e a câmera, o rastro, ambos considerados dejetos, porém de fundamental

importância na análise dos fenômenos, tal como nos mostra Michael Wolf ao trabalhar

com rastros de imagem no seu processo fotográfico, e Freud ao notabilizar lapsos de seus

pacientes.

O terceiro elemento sobre o qual refletimos foi a distração. Tal como a imaginação

é infantilizada e considerada menor diante dos processos lógicos científicos, a distração é

abordada superficialmente pela mídia: é força contrária ao foco, ao trabalho e ao sucesso e

143

permitida apenas em breves momentos de lazer. Em nossa argumentação, destacamos esta

inversão operada pela órbita imaginária e enfatizamos – contrariamente ao que projeta a

mídia – que a distração/dispersão (Zerstreuung) possui um caráter de pulsão mimética e

lúdica, não segue linearidades, conduz-se desatentamente por caminhos e atentamente por

descaminhos. Elucidamos, assim, seu caráter ardiloso, mimético e lúdico da distração que

pode auxiliar na percepção de quiasmas e zonas intervalares dos fenômenos.

Na abordagem divorciada de cada um desses elementos, enfatiza-se, não se buscou

dissociá-los de uma complexidade, mas antes pretendeu-se uma análise complexificada das

partes em relação ao todo que melhor delineasse suas peculiaridades. Acreditamos que

neste processo de caracterização foram reveladas intersecções e encharcamentos entre as

partes que evidenciaram a associação entre pensar por imagens, inconsciente e distração, e

seus vínculos estruturais com a imaginação e consequentemente com o corpo.

Tendo em vista a configuração deste trabalho, afirmamos, portanto, ser a

imaginação sua espinha dorsal, de tal modo que a premência de uma arqueologia da

visualidade e, especificamente o pensar por imagens, o inconsciente (ótico) e a distração

estão fundamentalmente vinculados a essa força corporal. Como afirma Kamper (2003,

p.9) “a interface entre corpo e imagem, que tanto enreda quanto fere, até agora só pôde ser

representada a partir da imagem, não do corpo. Uma opção inversa correspondente seria,

contudo, exigida”. Nesse contexto e sob essa urgência, portanto, a imaginação parece ser

uma transcendência possível diante do cenário midiático repetitivo e narcotizante.

Nas crepusculares trilhas kamperianas, a imaginação não se mostra estratégia

revolucionária e de grande alarde, mas sim um embuste oportuno e discreto. No

acompanhamento das imagens da órbita imaginária espelhada, deve-se fingir em narcose –

disfarçar-se de foca como sugere Eidotéia a Menelau –, porém atirar pedras para quebrar o

espelho e mergulhar nas abissalidades da imagem, usar de estratégia ardilosa e silenciosa

para furar o emparedamento visual. O trabalho de Wolf configura-se como uma dessas

estratégias, porém, extrapolando o objeto pesquisado, a artimanha imaginativa do fotógrafo

é aqui pensada como uma possibilidade efetiva de se, como afirma Kamper (2016), “levar

uma vida com imagens, contra as imagens”. Obviamente que não se trata de efetivamente

fotografar e esquadrinhar imagens em busca de rastros e sintomas. A estratégia de

fotografar imagens limítrofes em suas zonas abissais deve aqui ser compreendida como

uma metáfora para observar e escanear imagens por apaixonamento, rastrear, lacerar e

144

esfregar a imagem em outras imagens, sentir e intuir em suas filigranas energias e sintomas

que desdobram outras imagens, ou seja, empregar a imaginação como arqueologia da

imagem. No desencadear de fluxos de pensamento não racionalizados, pensar pelas

imagens ao seu próprio sabor, evocar imagens profundas conscientes e inconscientes,

distrair-se no jogo mimético por ela proposto. Não há que se esperar revolução contra o

mundo das imagens ou uma ruptura nas dinâmicas midiáticas; a órbita elíptica continuará

nos circundando repetida e reiteradamente, porém, pode-se e deve-se acrescer um novo

paradigma transformador que vise modular a relação cultural entre homem e imagem. Está

na força da imaginação esta capacidade de “conquistar as imagens nos vestígios de uma

nova reflexão [...] transformar a TV, de uma paixão apática e estúpida, numa telepatia

clarividente” (KAMPER, 1997, p.1), ver e sentir nas imagens algo além de sua imanência

paralisante, e nesse sentido imaginar, ser mais divino do que mortal, pois como afirmou o

poeta romântico Hölderlin “o homem quando sonha é um deus, mas quando reflete é um

mendigo”.

145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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