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Hume acerca da vida e da felicidade

Date post: 18-Nov-2023
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96 REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS HUME ACERCA DA VIDA E DA FELICIDADE Sara Albieri Entre os Ensaios Morais, Politicos e Literários que Hume publica pela primeira vez em 1742, constam quatro cujos titulos chamam desde logo a atenção para o tema do helenismo: "O Epicurista", "0 Estóico", "0 Platônico", "0 Cético". Não se trata de incursões eruditas acerca do helenisn-io e suas escolas. Em nota ao primeiro dos quatros ensaios, o autor nos adverte que "a intenção deste ensaio, assim como dos três que se lhe seguem, menos a de ex- plicar de maneira precisa as opiniões das antigas seitas filo- sáficas, do que a de expor as opiniões das seitas que, de uma maneira natural, se constituem no mundo, cada uma delas defendendo idéias opostas, no que diz respeito a vida e à felicidade humana. A cada uma delas atribui o nome da seita filosófica com a qual apresenta maior afinidade" (E, 197) A referência ao mundo helênico 6, pois, apenas obliqua: a nota sugere que é possível, para além do mundo antigo e pela observação das opiniões que os homens cos- tumam nutrir acerca da vida e da felicidade, agrupá-los
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96 REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS

HUME ACERCA DA

VIDA E DA FELICIDADE

Sara Albieri

Entre os Ensaios Morais, Politicos e Literários que Hume publica pela primeira vez em 1742, constam quatro cujos titulos chamam desde logo a atenção para o tema do helenismo: "O Epicurista", "0 Estóico", "0 Platônico", "0 Cético". Não se trata de incursões eruditas acerca do helenisn-io e suas escolas. Em nota ao primeiro dos quatros ensaios, o autor nos adverte que "a intenção deste ensaio, assim como dos três que se lhe seguem, menos a de ex-plicar de maneira precisa as opiniões das antigas seitas filo-sáficas, do que a de expor as opiniões das seitas que, de uma maneira natural, se constituem no mundo, cada uma delas defendendo idéias opostas, no que diz respeito a vida e à felicidade humana. A cada uma delas atribui o nome da seita filosófica com a qual apresenta maior afinidade" (E, 197) A referência ao mundo helênico 6, pois, apenas obliqua: a nota sugere que é possível, para além do mundo antigo e pela observação das opiniões que os homens cos-tumam nutrir acerca da vida e da felicidade, agrupá-los

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segundo "tipos" que, a grosso modo, são aparentados àque-las seitas. Uma sugestão que poderia até fazer supor que tais seitas, originalmente, já se constituíam como expressão de um conjunto de opiniões comuns, já agregavam em tor-no de si aqueles que naturalmente correspondiam Aquela classificação, não fazendo muito mais que traduzir para o filosofar uma manifestação da natureza humana, que lhes era anterior e servia de ponto de partida.

As seitas antigas emprestam, pois, seus nomes, a uma galeria de tipos humanos, classificados segundo as "idéias que nutrem acerca da vida e da felicidade". Esses tipos (ou talvez devêssemos designá-los como caracteres, respeitan-do o interesse da literatura seiscentista e setecentista pelo tema), são brevemente definidos por Hume em nota ao titu-lo de cada ensaio, talvez para facilitar ao leitor a tarefa de sua identificação. Assim, o epicurista é "o homem de ele-gancia e prazer"; o estóico, "o homem de ação e virtude"; o platônico, "o homem de contemplação e devoção filosófi-cos" . Curiosamente - ou sintomaticamente, se tivermos pre-sente a declarada filiação cética de sua própria filosofia - Hume não propõe para o cético qualquer outra designação.

Trata-se, portanto, de tipos humanos e de sua carac-terização - se assim se pode chamar essa reconstrução de um caráter pelo que ele tem, ao mesmo tempo, de especi-fico e genérico. Um caráter sendo, em termos humeanos, aquele conjunto de princípios mais estáveis que determi-nam as ações de um homem - e que contemporaneamente denominaríamos "tragos" de caráter. Estáveis o suficiente para esperarmos a repetição de certas ações e até atribuir-mos ao ator a responsabilidade que delas decorre. Genéri-cos o suficiente para que cada homem, em cada ato, não provoque a surpresa, a perplexidade diante do inteiramen-te novo (ou outro), do incausado enfim, mas para que ações possam ser com certa regularidade (e, por certo, diferentes graus de certeza) atribuidas a motivos, tais motivos permi-tam inferir a ação regular de certas paixões, e um conjunto

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desses motivos permita sua classificação como caso de um tipo, de um gênero: o caráter. Caso este que, no entanto, só se define por sua diferença especifica: há espécies dentro do gênero "caráter" cada uma definida pela explicitação de suas diferenças, de suas "caracteristicas" Uma caracte-rização consiste na explicitação dos tragos de um caráter enquanto caracteristicas distintiva s .

O que destingue, portanto, segundo Hume, o epicu-rista do estóico, do platônico, do cético, em sua busca pela felicidade? O que os caracteriza? Para explicitar estes diver-sos caracteres, Flume recorrera, em cada caso, a oposição entre natureza e arte - enquanto técnica, indústria, enge-nho, artificio. Esta é obra do homem sobre o mundo e so-bre si. Aquela está no mundo e na estrutura do entendi-mento e das propensões humanas. Nos quatro casos, tra-ta-se de um embate entre natureza e artificio, instinto e cul-tura, paixão e razão. Nos quatro casos, trata-se de decidir a melhor maneira de conduzir a vida para encontrar a felici-dade, sendo dado esse embate.

O EPICURISTA

O homem de elegância e prazer, em tudo reconhece a supremacia da natureza sobre o engenho. Mesmo nas obras humanas mais perfeitas em arte e técnica, a transformação da natureza que se operou ali foi primariamente produto daquilo que fez dos artesãos criadores: sua natureza de ho-mens. Uma obra acabada, em seu poder de produzir felici-dade e beleza, é o produto feliz do livre fluxo da natureza de seu autor. Mas o maior gênio não conseguirá, pelo mero recurso As regras da boa arte, produzir essa feliz harmonia se a natureza negar-lhe a inspiração. O esforço do gênio só sera recompensado se a inspiração vier em seu socorro.

0 caso da felicidade é o mesmo que o do belo. Tenta-se produzi-la só pelo esforço da arte, e dentre tais esforços, o mais ridículo (preservando para o termo o duplo sentido de absurdo e de risível) é o dos filósofos que julgaram po-

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der produzir uma felicidade artificial obtida pela boa apli-cação de certas regras de razão e de reflexão. Uma felicida-de interior, por assim dizer, que distinguiria o sábio do vul-go pela sua capacidade de deleitar-se no exercício de seus próprios pensamentos, na satisfação que o mero agir cor-reto por si já proporcionaria, pela compostura daquele que ignora e dispensa a assistência dos objetos externos de pra-zer. Quanta dor, quanto sacrifício para compor essa ima-gem de falsa satisfação interior, destinada a iludir o vulgo! Enquanto o coração, vazio de toda alegria, e a mente, pri-vada de objetos adequados, mergulham na mais profunda melancolia e abjeção!

Nenhuma outra atitude é mais contrária a estrutura original do corpo, como da mente, nenhuma é mais des-naturada. A felicidade está em seguir, e não contrariar, as " molas e princípios" que a natureza "implantou" em nós. Assim é a saúde do corpo: consiste na facilidade com que fluem suas operações: o estômago digere, o sangue circu-la, sem que eu me dê conta, disso me ocupe ou possa aí intervir. Assim é a felicidade da mente. Consiste no livre fluxo dos sentimentos e paixões em direção aos objetos que lhes dão prazer, sem que eu force minhas faculdades a obter prazer de "algum objeto que não foi dotado pela na-tureza para afetar meus órgãos com deleite" (E,198).

O resultado da disciplina da mente a que os filósofos querem subordinar a conquista da felicidade é a vigilância, os cuidados, a fadiga - breve, a dor. Mas a felicidade im-plica na descontração, na satisfação, no repouso - no pra-zer, que só o caminho da natureza pode nos proporcionar. Para alcançá-lo, é preciso deixar livre o curso daqueles prin-cipios e faculdades naturais, e que constituem o quadro mais amplo em que se inserem nossas operações estrita-mente racionais. Estas violentam a própria origem quando se tornam disciplinadoras.

Nesta altura, é licito que o aprendiz destas lições dei-xe escapar sua perplexidade: estaria o epicurista, este homen de elegância e prazer, ditando a conduta que sempre lhe

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atribuiu o vulgo? Uma vez que a natureza nos inclina ao prazer, devemos segui-la incondicionalmente a todo e qual-quer prazer, e à saciedade? O moderno epicurista ter-se-ia por fim tornado o imoralista da visão comum?

Pela boca do epicurista, Hume cla à virtude um papel:

o de renovar e refinar o prazer. Deixado a si mesmo, o pra-zer conduz rapidamente ao esgotamento. Quanto mais sô-fregos formos, mais depressa chegaremos ao torpor e ao

fastio. Mas a virtude permite outros prazeres: por exemplo,

o sentimento de aprovação moral que experimentamos di-ante do bom caráter, do belo gesto. 0 sentimento moral de

aprovação é irmão dos prazeres sensórios. É através dele

que o prazer da mente pode acompanhar o do corpo, e a

sabedoria encontrar a natureza. Obteremos assim prazeres mais duradouros, porque

mais complexos e refinados. Prazeres que irão de mãos dadas com a sociabilidade, essa fonte inesgotável de delei-te. O epicurista moderno tem prazeres elegantes, seu nome é "virtudes sociais". Mas não se pergunta pela sua dura-ção, se é eterna. Se o que nos aguarda é o não-ser, toda ansiedade é inútil, uma vez que tudo será ali engolido jun-to com nossas vidas, inclusive as especulações acerca de causas primeiras. Mas se houver um Criador, ficará satisfei-to se nos comportarmos segundo o fim natural do prazer para o qual fomos criados.

O ESTÓICO

Aos animais a natureza tudo provê. E quando deles requer alguma indústria, é ainda a natureza que para tal lhes (16 engenho e arte, na forma dos instintos que lhes ditam a melhor conduta. 0 homem veio ao mundo em estado de extrema carência e necessidade, a indústria que o provê não é o cego instinto, mas o emprego do engenho que possui a semelhança dos seres celestiais. A inteligência foi o modo como a natureza nos dotou, por ela procurare-

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mos desenvolver nossos poderes físicos e mentais. Deve-mos fazê-lo, porque a natureza se vinga na proporção de nossa negligência.

E qual conduta nos indica essa inteligência, esse grão da natureza celeste em nós? "O grande fim de todo enge-nho humano é alcançar a felicidade. Para isto foram inven-tadas as artes, cultivadas as ciências, promulgadas as leis, organizadas as sociedades, pela mais profunda sabedoria de patriotas e legisladores" (E, 205). Todos os homens reconhecem esse fim, e pelo seu crescimento intelectual dele se aproximam, desde o selvagem, passando pelo cidadão, pelo homem de virtude até chegar enfim ao verdadeiro filósofo, "que governa seus apetites, subjuga suas paixões, e aprendeu da razão a atribuir um justo valor a cada anseio e gozo" (E, 205). Trata-se de um aprendizado e de uma disciplina. Assim como o aperfeiçoamento na execução de qualquer arte, a trajetória da busca pela felicidade exige muitas correções de curso. É verdade que foi a natureza quem primeiro nos dotou desse movimento, como deu um curso aos corpos celestes. Mas o curso dos corpos celestes é objeto de nossa investigação, e de correções constantes em nossas teorias, até que possamos reduzi-lo a alguns prin-cipios explicativos. Assim também o filósofo examina seus erros em busca da correção nas regras de conduta. Em moral, como em ciência, nenhum conhecimento é eviden-te. Quando o filósofo consegue não só conhecer como pôr tais regras em pi-Mica, torna-se sábio.

Todo trabalho, mesmo subalterno ou fatigante, faz sen-tido, se conspira com o plano geral da felicidade. A própria labuta traz prazer, o crescimento diário, os progressos da razão e do auto-controle. 0 lazer, a busca incessante de prazeres, acaba por só trazer dor e sofrimento, só expor a azares e acidentes. A felicidade só pode existir em segu-rança. "0 tempo da sabedoria está assentado numa rocha, acima da ira dos elementos em luta, inacessível à malícia do homem" (E, 207).

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Mas será que o sábio se contenta em observar os ho-mens em sua busca, acima da miséria e dos erros, o cora-gão endurecido por essa sabedoria severa, por essa APA-TIA? Não pode. Porque a propensão a sociabilidade e aos afetos também é natural, e ele a sente forte demais para contrariá-la. Mesmo quando lamenta os homens, os senti-mentos de humanidade e compaixão lhe dão satisfação.

Nossa paixão predominante nos encaminha para as virtudes sociais, e estas, quando puras, nos levam as ações mais louváveis e generosas, como a confecção das leis vi-sand° o bem público E quando o sábio se torna patriota que mais a natureza humana reflete a imagem da divindade.

E qual a recompensa da virtude? A "senhora celestial" (a natureza) coroou-a com algo que só os já contaminados pelo amor a virtude podem prezar: a GLÓRIA. Mesmo morte ela sobrevive, através da fama imortal que o sábio adquire entre os homens. Quanto ao Ser que preside o universo e que reduziu os elementos a sua ordem e propor-ção, "que os raciocinadores especulativos disputem até que ponto este ser benéfico estendeu seus cuidados, e se ele prolonga nossa existência além do túmulo... (E, 210).

O PLATÔNICO

Pode parecer surpreendente para muitos que a Humani-dade, compartilhando a mesma natureza e as mesmas faculdades, divirja tanto em suas inclinações e objetivos; e que o mesmo homem possa mudar de conduta em épocas diversas, rejeitando o que antes desejava. Esta inconstância é explicável, porque a alma racional não foi feita para a busca ignóbil do prazer sensual ou do aplauso popular. Só na contemplação do Ser Supremo encontrará a tranquilida-de e a satisfação de uma fonte inexorável de glória. Como riachos desgarrados desse grande oceano, as mentes huma-nas buscam seu retorno â imensa perfeição do inicio. Este é o caminho natural, não ha felicidade em sua obstrução.

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Mesmo aquele que se diz filósofo, e se apresenta à apro-vação pública, só consegue o aplauso do vulgo. E mesmo se nos apresenta 6. admiração o mais sublime fruto de sua arte, este não se compara 'a natureza. "Compare as obras de arte com as da natureza. Aquelas são apenas imitações des-tas. Quanto mais a arte se aproxima da natureza, mais per-feita é considerada" (E, 212-3). E contudo esta arte copia só os aspectos exteriores da natureza, ignorando as "molas e princípios internos" que estão além de sua compreensão.

A felicidade mais perfeita provém da contemplação do objeto mais perfeito. Nossas vidas serão curtas para nos aperfeiçoarmos nessa tarefa, que se desdobra pela eterni-dade. Em cada encarnação, teremos melhor oportunidade de ser melhores adoradores de nosso Criador.

O CÉTICO

Observando o debate dos filósofos, o cético tende mais a disputar que a concordar com suas conclusões. Em geral, quando os filósofos encontram um princípio, tendem a querer explicar a imensa variedade da natureza por esse principio. O mesmo se dá com respeito à vida humana e aos métodos para atingir a felicidade. O dogma é a "enfer-midade" dos filósofos (E, 214). No caso da felicidade, en-frentam não só os limites do entendimento, mas os de suas paixões. Há um equivalente passional do dogma: quase todos temos uma paixão dominante, e por isso não pode-mos conceber que outros possam ter prazer com paixão diversa. "Suas próprias buscas são, a seu ver, as mais envolventes; os objetos de sua paixão, os mais valiosos; e o caminho que segue, o Calico que leva à felicidade" (E, 214).

A menor reflexão, porém, aponta para argumentos a favor de todos os modos de vida, de todos os gostos e pra-zeres. Sera que a razão não tem o menor papel nessa aven-tura? Seu papel é o de escolher os meios adequados para obter os fins que a paixão coloca, e algumas pessoas fazem dela emprego melhor que outras.

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Ora, esse ensino da boa escolha dos meios é o resul-tado de qualquer educação de senso comum. Ninguém consultaria o filósofo para indicar-lhe meios que o simples bom senso pode dar; antes, pergunta-se ao filósofo pelos fins que são preferíveis. E aí o cético se embaraça em ofe-recer resposta. No máximo poderá dizer que nada 6, em si mesmo, valioso ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme, pois esses atributos derivam da constituição dos sentimentos dos seres humanos. Apenas, isto não é tão evidente para pensadores superficiais porque há mais uni-formidade nos sentimentos morais ou de gosto do que nas sensações físicas. "Fla algo próximo de princípios nos gos-tos mentais; e os críticos podem raciocinar de modo mais plausível que cozinheiros ou perfumistas" (E, 217).

A diferença entre nossa apreensão dos objetos do mundo, acerca dos quais trata nossa ciência, e os senti-mentos morais, é que para aqueles vigora um padrão ex-terno à mente, embora desconhecido; e podemos nesses casos falar de verdade ou falsidade. Mas os sentimentos morais acompanham a observação do objeto com "um sentimento de deleite ou desconforto, aprovação ou desa-provação, consequentes a essa observação; e esse senti-mento determina a mente a atribuir o epíteto belo ou dis-forme, desejável ou odioso." (E, 218) Tais sentimentos va-riam com os órgãos e operações da mente, por isso um homem é diferente do outro na paixão como na fruição estética e moral.

O conjunto dessas considerações nos faz concluir o seguinte: "Não é do valor do objeto que alguém busca que podemos determinar sua fruição, mas meramente da pai-xão com a qual busca, e do sucesso que tem na busca." Objetos não trazem por si a felicidade, esta deriva da pai-xão com que a eles se lança. Se a paixão é forte, continua e bem sucedida, a pessoa é feliz (E, 219). As diferenças entre a maior felicidade e a mais extrema miséria derivam da paixão e da fruição de cada um.

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Levando tudo isto em conta, o cético poderia ainda fazer algumas recomendações quanto às chances de certas paixões obterem maior felicidade. A paixão bem sucedida é benigna e sociável. Deve ser alegre, não melancólica; uma propensão à esperança e alegria é real riqueza; ao medo e desespero, verdadeira pobreza. Uma vida de prazeres se esgota em sociedade mais depressa que uma vida dedica-da aos negócios. Os entretenimentos mais duráveis são jus-tamente aqueles que misturam aplicação e entretenimento, como o jogo ou a caça. Os negócios costumam preencher os grandes vazios da vida humana. Além disso, é mais ga-rantida a paixão que depende de um objeto interno, como o estudo, do que uma que dependa do caráter errático de objetos externos, como a riqueza.

Qual 6, então, a mais feliz disposição da mente? A VIRTUOSA, que nos conduz à ação e à ocupação, nos tor-na sociáveis, fortes contra a adversidade, reduz as afeições

moderação, permite que nos entretenhamos com nossos próprios pensamentos, e nos faz preferir a sociabilidade satisfação dos sentidos. 0 homem feliz, como Proteus, se-ria sempre feliz se pudesse alterar seus sentimentos, sua forma, de acordo com as circunstancias. Mas não pode-mos escolher a constituição de nossa mente mais do que a de nosso corpo. A maioria da humanidade ignorante dei-xa-se levar por suas propensões naturais tanto quanto pe-las circunstancias externas. Tudo isso está excluído da filo-sofia, a tão propalada medicina da mente. Mas mesmo entre os sábios, não está em seu poder controlar o temperamen-to e conquistar o caráter virtuoso a que tanto aspiram. A autoridade da filosofia estende-se sobre poucos, e mesmo aí fraca e limitada. Nenhuma filosofia oferece remédio para nos tornar mais virtuosos ou perversos (E, 222). Sua atua-ção é insensível e obliqua; vem dos frutos da ocupação séria com as ciências. Eis aí uma consequência platônica da postura cética: "Muito raramente ocorre que um ho-mem de gosto e cultura não seja, ao menos, um homem

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honesto" (E, 223), que consegue ao menos seguir modelos de caráter. Mas só pelo habito diligente se realizam essas conquistas: eis todo o alcance do filosofar.

Ainda se poderia dizer, a favor da aplicação da refle-xão sobre os sentidos, que a filosofia poderia interferir na avaliação de um objeto de paixão, permitindo que seja vis-to sob mais de um ponto de vista. Mas ela estaria só aplai-nando a via dos sentidos, que cedo ou tarde naturalmente fariam esse reconhecimento. Também não nos auxilia a li-vrar-nos de paixões incômodas: em vão um homem apai-xonado disso se libertaria provocando visões monstruosas de sua amada. "As reflexões da filosofia são demasiado sutis e distantes para ocorrer na vida comum, ou erradicar qual-quer afeição. 0 ar é muito rarefeito quando acima dos ven-tos e nuvens da atmosfera" (E, 225). Além disso, qualquer movimento que nos fizesse deter os vicios, extinguiria junto a capacidade de sentir prazer, como quando seccionamos os nervos do corpo para nos tornar imunes a dor, e nos tornarmos insensiveis a tudo.

Filosofia antiga e moderna sempre tentou nos pro-porcionar saídas para os males humanos, através de uma visão superior dos sentimentos. Ela nos repetiu que a mal-clade não deve pegar-nos de surpresa, porque os homens são naturalmente violentos; que a ordem do universo in -dui os males preparando-nos para sofrê-los (e nos tornan-do miseráveis por antecipação); que mesmo defeitos e pri-vações podem ser encarados filosoficamente - que é ser surdo, senão acrescentar a todas as línguas que não com-preendo, mais uma? Ou cego, se pode haver prazeres no escuro? Ou a dor do exijo, do ponto de vista matemático do deslocamento de um ponto no espaço? Sem contar que essas visões acabam por justificar maldades e vicios, con-solar o exilado mas encorajar o que exila.

Um filósofo tem sempre a pretensão do olhar divino sobre as coisas humanas, e do menosprezo que a este é facultado. Acontece que não se livra de sua natureza de homem; vé, mas não sente a verdade disso, e esta sujeito

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'as mesmas paixões que os outros quando deixa de ser espectador.

"A vida humana é mais governada pela fortuna que pela razão; deve ser encarada mais como passatempo tedio-so do que uma ocupação séria; e é mais influenciada pelo humor particular do que por princípios gerais" (E, 231). Se nos mantivermos na indiferença, perderemos os prazeres. morte recebe igualmente o tolo e o filósofo. E ocupação com a razão só é justificável porque, para alguns "6 uma das mais prazeirosas nas quais a vida poderia ser empregada" (E, 231).

Embora Hume declare desde o inicio não ater-se fiel-mente a uma explicitação do tema da felicidade de acordo com as seitas helênicas das quais empresta o nome, transparecem em sua leitura ao menos alguns traços da-quilo que tais escolas efetivamente defendiam. 0 Epicurista guia-se pelos sentimentos de prazer e dor, aceitando os se-gundos apenas quando conduzem a prazeres maiores. Mas não exclui a virtude. Virtudes tradicionais como a justiça, a temperança, a coragem, são meios para atingir uma vida agradável, e só por isso se justificam. A mente intervem para tornar os prazeres duradouros (catetesmáticos) e atin-gir a paz e tranquilidade, a ataraxia. O Estóico também segue a natureza, e busca pela inteligência compreeder plano geral da ordem universal. A virtude é acessivel a to-dos, iguais na inteligência celestial em cuja imagem foram criados, e que sempre podem espelhar-se nas atitudes de seus superiores em sabedoria. O sábio atinge a apatia como consequência desse viver de acordo com a ordem do uni-verso; mas só chega à Eudaimonia, que é a condição de felicidade, quando a alma assemelha-se à Divindade, e isto só se realiza na cosmópolis, a cidade que reproduz a or-dem do universo. Ele só é feliz quando desenvolve as virtu-des cívicas, quando é patriota. 0 Platônico busca a con-templação do objeto mais perfeito; para tal foge da

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pluralidade, das cópias, das sombras. Mas o caminho para a saída da caverna é o caminho da natureza, ainda que custe achá-lo sob a multiplicidade de enganos. Finalmen-te, o Cético reconhece a dificuldade de decidir entre os sen-timentos morais, ao mesmo tempo que cede à força da natureza no caminho do prazer, mas também da virtude.

Alguém poderia desejar deter-se a denunciar a sim-plificação excessiva ou possível desfiguração de aspectos dessas doutrinas. Mas preferimos defender que Flume, to-mando a séculos de distancia, alguns traços gerais, fala daquilo cuja sobrevivência simplicada talvez seja justamente o que havia nessas doutrinas de pertinente a vida dos ho-mens, de factível.

Mas não é só. A intenção declarada de apenas carac-terizar tipos "sobreviventes" esconde mais articulações. possível encontrar temas recorrentes no tratamento hume-ano dessas quatro correntes. 0 leitor um pouco familiariza-do com a filosofia de Hume poderia colocar-se duas ver-sões de uma mesma questão: até que ponto é Hume falan-do pela boca de todos eles (indispensável lembrar que Hume, em cada ensaio, se expressa na primeira pessoa)? Qual deles é Hume?

possível encontrá-lo em todas as descrições, pelo menos em alguma instancia. Em todas há a supremacia da natureza sobre o artificio, que acaba identificado com a ra-zão. Em todos a paixão é causa da ação, determina os fins, cabendo à razão a atribuição dos meios. Na teoria das pai-xões, é célebre a fórmula humeana de que a razão 6, e deveria ser, escrava das paixões. Inferioridade, talvez, mas não irrazoabilidade. E possível decidir pelo prazer maior, pelo mal menor; o epicurista, o cético, o platônico, o estói-co, com maior ou menor esforço, acabam virtuosos, ou ao menos adeptos de condutas que não transgridem as leis vigentes, nem ferem as regras elementares da sociabilida-de. Alias, é nessa sociabilidade que o antigo se atualiza, que o heleno vira iluminista. Dir-se-ia que todos reconhe-cem as virtudes indispensáveis ao fruir da boa companhia,

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todos transmutam os jardins ou a agora na elegância espi-rituosa dos salões.

Razoabilidade que se manifesta ainda no desejo e no prazer de conhecer. Fala-se muito em "molas e princípios" da mente, como é propósito declarado de Hume desven-dar em alguma medida, quando se propõe a investigar o entendimento humano. Assim, se há prioridade de prazer e dor enquanto princípios condutores de nossas paixões, e das paixões como móbeis da ação, nem por isso a paixão do conhecimento deixa de se exercer como uma modali-dade natural de razão investigadora. É compreensível que o epicurista se detenha no mero fruir dos dias, que busque tab só o aperfeiçoamento do prazer que proporcionam as virtudes da sociabilidade. Mas não é menos adequado que o estóico busque o refinamento dessa intelecção com a qual a natureza o dotou, que investigue na direção de uma or-dem cósmica, em principio, escondida, que dignifique essa busca na arte política. Quanto ao cético, o naturalismo cognitivo de Hume não o levou a desejar ser o Newton das ciências morais, não o fez ocupar-se tanto dos assuntos da vida política? O Platônico, embora inspirado pela busca do Sumo Bem, não é menos investigador, intuindo que não há ciência do particular, e que é preciso encontrar um prin-cipio explicativo que se esconde por trás da mutiplicidade confusa das aparências.

Quanto ao Desígnio, uns admitem sem subterfúgio o seu enigma: o epicurista, o cético. O estóico é forçado por Hume a contentar-se com a glória dos homens, deixando intacto o enigma da sobrevivência da alma. Mesmo o platô-nico, certo da reincarnagão, é levado a buscar a Divindade pela eternidade de vidas sem fim. 0 máximo que o agnóstico Hume lhes concede é a máxima que segundo alguns norteou a ele próprio: "Conhecer a Deus é adorá-lo".

Vemos então que Hume, tido como cético, pode con-cordar com pontos importantes de todas essas doutrinas. Seria tarefa por demais extensa partir agora para o exame minucioso de seu ceticismo. Sabemos que ele se declara um

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cético mitigado. É certo que comportaria discussão decidir até que ponto o Livro I do Tratado ou a Seção XII da Inves-tigação poderiam, na verdade, ser conciliadas com o P -ro-nismo. A questão se decide, no caso do ceticismo, também pela atitude, e estes ensaios que examinamos são acerca de atitudes. Hume pode, como o cético de seu ensaio, não ver na razão mais que uma paixão de conhecer. Mas mesmo ali ele é afirmativo acerca de muitas coisas: da precedência da natureza em nossas crenças e preferências, ou avançando o que não pode pretender ser senão uma teoria acerca dos sentimentos morais. Em suma, um cético que deseja conhe-cer. Dizer-se mitigado é declarar limites para o cognoscível, dentro ou fora de nós. Mas é aceitar, dar o assentimento ao método da ciência moderna, que justamente é bem sucedi-da porque se limita a falar de causas eficientes, procedendo a um corte que impede a investigação acerca das causas primeiras: suspendendo, portanto, a investigação quando ela pretende o dogma. Perde-se em finalidade, ganha-se em operacionalidade. Seria ocioso especular aqui se o pirronismo permitiria o mesmo desfecho para a investiga-gão. O fato é que o pirrônico não avança qualquer teoria acerca do que aparece. 0 ceticismo mitigado assume a figu-ra do espitiro cientifico e com ele é compatível.

Hume 6, pois, o cético, mas pode concordar com to-dos os outros ou fazê-los concordar com ele, porque os faz não-dogmáticos. Ao descrevê-los, ele os circunscreve: mos-tra os limites, desautoriza o que possam pensar ou dizer além disso. Assim restritos, são quatro faces de uma mes-ma doutrina, quatro atitudes possíveis alternadamente e sem contradição no mesmo homem. Homem natural, mo-vido pelo prazer e dor, que se compraz na sociabilidade, mas não pode refrear a paixão do conhecimento. Homem que não avança além do que pode ser conhecido, e que suspende o juizo acerca de causas finais, últimas, a sobre-vivência da alma, Deus. Em todos a mesma boa condução das paixões naturais, mesma felicidade que vem dessa re-núncia e da modéstia desses anseios.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIC AS

HUME, David. Essays Moral, Political and Literary. Scientia Verlag Aalen, 1964. v.3. Citados no Corpo do Texto com a forma abreviada "E" seguida do número de página.


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