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Inquietações distópicas na literatura portuguesa contemporânea Um piano para cavalos altos

Date post: 23-Feb-2023
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Inquietações distópicas na literatura portuguesa contemporânea Uma análise do romance Um piano para cavalos altos, de Sandro William Junqueira Caroline Valada Becker (Doutoranda Teoria da Literatura - PUCRS) Orientador: Dr. Paulo Ricardo Kralik
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Inquietações distópicas na literatura portuguesa contemporânea

Uma análise do romance Um piano para cavalos altos, de Sandro William Junqueira

Caroline Valada Becker (Doutoranda Teoria da Literatura - PUCRS)

Orientador: Dr. Paulo Ricardo Kralik

Segundo Teixeira Coelho, no livro

O que é utopia (1981, p. 50),

podemos utilizar três abordagens:

COMO ESTUDAMOS TAL CONCEITO?

perspectiva

filosófica

perspectiva

políticaperspectiva

literária (a utopia e

a distopia

como gêneros narrativos)

As dimensões

econômica,

política e social

são inerentes à

utopia/distopia.

A narrativa utópica

particulariza e corrige os

mecanismos sociais que

regem as relações entre os

indivíduos e a coletividade (PAQUOT, 1999, p. 6)

Eixos, segundo Gregory Claeys (2013, p.8):

• “pensamento utópico”

• “literatura utópica”

• “busca de comunidades”

Vita Fortunati, ‘Utopia as a Literary Genre’, in Dictionary ofLiterary Utopias, ed. by Vita Fortunati and Raymond Trousson

UTOPIA, portanto, implica, na sua forma,

preocupações ÉTICA e ESTÉTICA, ou

IDEOLÓGICA e LITERÁRIA.

“The concept of the semantic mutability

characterising the term utopia must warn

the reader of the dangers of rigid

connotations in the attempts at defining

this term.” (p. 632)

O GÊNERO UTOPIA:

“in utopia, the elsewhere, the journey, the layout

of some city, these simulate society.” (p. 635)

Estratégias narrativas:

• UTOPIA: um viajante é levado a uma sociedade utópica e a compara com sua própria sociedade;

• DISTOPIA: já começa no terrível mundo (in media res).

(VIERIA, Fátima. “The concept of utopia”. Utopian literature.)

“Uma coisa é certa: a UTOPIA – e isto desde Thomas

Morus – não é um futuro, e sim um outro lugar. Na

realidade, não trata de imaginar, em um processo

prospectivo, um novo mundo, mas de localizá-lo,

aqui e agora, no centro mesmo do antigo mundo.”

(PAQUOT, 1999, p. 13)

E NA DISTOPIA?

“A palavra ‘utopia’ passou a existir com a publicação

do pequeno livro de More, em dezembro de 1516.

More cunhou-a ao fundir o advérbio grego ou –

“não” – ao substantivo tópos – “lugar” –, dando ao

composto resultante uma terminação latina.”

(LOPES, 2011, p. XV)

• U-CRONIA – NÃO TEMPO

• U-TOPIA – NÃO-LUGAR

• NUSQUAMA – LUGAR NENHUM

Século XX

Projeção negativa, cujas marcas

essenciais são o colapso e o caos.

• Distopia são “pesadelos ao invés de

idílios” (SZACHI, 1972, p. 111).

• Um “mau lugar, lugar da distorção” (COELHO, 1981, p. 45)

UTOPIA DISTOPIASéculo XVI, com a obra Utopia,

de Thomas More

• Se a utopia enuncia projeções positivas, a distopia, também se relacionando com a sociedade que

circunda o autor no momento da criação, tece críticas à sociedade, algo como visões negativas (e

verossímeis) dos aspectos políticos e sociais, potencializados na elaboração estética, é claro.

“Uma das principais características da utopia como

gênero literário é a sua relação com a realidade.

Utopistas partem da observação da sociedade em

que vivem, percebem os aspectos que precisam ser

mudados e passam a imaginar um lugar onde esses

problemas foram resolvidos.” (VIEIRA, 2010, p. 8)

“As utopias buscam a emancipação ao visualizar um

mundo baseado em ideias novas, negligenciadas ou

rejeitadas; as distopias buscam o assombro, ao

acentuar tendências contemporâneas que ameaçam

a liberdade” (JACOBY, 2007, p. 40).

A ação humana cria a

UTOPIA – intervenção

“[…] esta terra não foi

sempre uma ilha.

Chamava-se antigamente

Abraxa e se ligava ao

Continente; Utopus

apoderou-se dela, e deu-

lhe seu nome.

Este conquistador teve

bastante gênio para

humanizar uma

população grosseira e

selvagem […]. Desde que a

vitória o fez dono deste

país, mandou cortar um

istmo de quinze mil

passos no lado em que

está ligado ao continente:

e a terra de Abraxa

tornou-se, assim, a ilha da

Utopia”

(MORUS, 2011, p. 69-70)

“O paraíso perdido”, de Grefory Claeys (In: Utopia: a história de uma ideia)

“No final do século XIX, ficou claro que a industrialização causava

aumento de poluição e degradação da vida urbana, em especial dos

pobres. Uma resposta foi o renascimento do imaginário apocalíptico,

antes associado quase exclusivamente à religião, principalmente ao

cristianismo. A fantasia do imenso e crescente poder científico e

tecnológico – que segue sendo o principal tema da ficção científica

moderna, o maior subgênero do utopismo –, a partir de meados do século

XIX, produz uma sensação desesperadora de incapacidade de conter os

excessos de invenção. Máquinas tornam-se mais complexas, mas seus

usos diabólicos deixam as guerras mais destrutivas. Utopia e distopia

andam cada vez mais lado a lado” (p. 207)

Parafraseando as ideias de Gregory

Claeys apresentadas no texto “The

origens of dystopia: Wells, Huxley and

Orwell”, nas distopias clássicas são

recorrentes estas características:

um estado monolítico e totalitário que exige

obediência de seus cidadãos, individualismo e

avanços científicos e tecnológicos para

garantir o sistema do controle social.

Na distopia, é possível

retratar visões negativas

e viáveis (factível e

verossímil) de

desenvolvimento político

e social, em um molde

ficcional.

A imaginação distópica, para Baccollini

e Moylan, representa, na ficção, as

preocupações éticas e políticas dos

escritores, sugerindo os contornos de

um tempo histórico e social; dessa

forma, a arte “avisaria” aos receptores

os potenciais problemas do mundo.

Segundo Carlos Eduardo Ornelas Berriel,

“a utopia clássica se desenvolve construindo um hiato (insanável) entre a

História real e o espaço reservado para as projeções utópicas; a descoberta de

um país distante, até então ignorado (como no enredo de Morus, Campanella e

outros) se tornou símbolo de uma fratura não apenas geográfica, mas, sobretudo

histórica”;

“a distopia busca colocar-se em continuidade com o processo histórico,

ampliando e formalizando as tendências negativas operantes no presente

que, se não forem obstruídas, podem conduzir, quase fatalmente, às

sociedades perversas (a própria distopia). […] na distopia a realidade não

apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas,

desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação da

estrutura de um mundo grotesco.”

Editorial da MORUS – Utopia e Renascimento 2, 2005, p. 4-10.

UTOPIA

como

FRATURA

HIATO

DISTOPIA

como

CONTINUIDADE

AMPLIAÇÃO

Dark horizons: science fiction and the dystopian imagination,

de Rafaella Baccolini e Tom Moylan

Séc. XX: formas clássicas de distopismo.

Exemplos: 1984, Admirável mundo novo

Década de 60 e 70: utopias críticas.

Ecologia, Feminismo e New-Left

Exemplos: Marge Piercy, Ursula Le Guin, Joanna Rus

Década de 80: movimento cyberpunk.

Exemplo: “Blade Runner”

Pós-década de 90: distopias críticas

(um gênero híbrido, mistura de tendências)

Exemplo: Margaret Atwood

PROPOSTA HISTORIOGRÁFICA CATEGORIAS DE ANÁLISE

Dissipado nos romances

contemporâneos do

século XXI, o leitor

encontra categorias

relativas à distopia do

século XX, como o

APARELHO POLÍTICO

OPRESSOR, o

PESSIMISMO, a

AUSÊNCIA DE

ALTERNATIVAS para os

sujeitos sociais, a

tendência – no âmbito da

forma narrativa – à

ALEGORIA e, como

grande tendência, surge o

MEIO AMBIENTE EM

COLAPSO

UM PIANO PARA CAVALOS ALTOS,

de Sandro William Junqueira

“Não tardou que o vento da notíciacorresse pela Cidade.[…] Para a população da Cidade faziasentido este excitado entusiasmo peladesgraça acontecida. Há uma dezenade anos que não se ouvia falar deassuntos da Floresta. […] Apesar domedo inerente ao salivar a notícia,havia nalguns corações uma nova zonade alegria, entusiasmo. Este inesperadoacontecimento era o começo de umanova paisagem. Uma porta aberta paranovas trevas.” (p. 17)

NÃO TEMPO E

NÃO LUGAR

“O Governo, sempre zeloso, desta veznão conseguira pisar o rastilho dacomunicação para desmetir a ameaça.De facto, um jovem militar fora vítimade um ataque insólito no interior daFloresta. E a estranheza da morteincomodou a chefia: custavareconhecer a fraqueza do braço bélicoquando este se aventurava para longedas imediações do Muro e entrava nanatureza.Na Torre Governamental, o MinistroCalvo, ao ser informado, dera ummurro na mesa.” (p. 19)

PERSONAGENS

SEM NOME

CAPÍTULOS COM “DITADOS DO MINISTRO CALVO”

• “A implosão das igrejas é outro passo certo dado em direção a um estado social que nãodesperdiça.” (p. 29)

• “O trabalho de um Governo que quer governar com coragem e seriedade deve assentar nocontrolo do medo.” (p. 40)

MÚSICA: “O Diretor encaminha-se até à estante. […] Liga o rádio. A estação governamentalemite uma sonata para piano. […] a persuasão, como a música, é arte.” (p. 45)

Música OFICIAL: “E que música permitiremos nós dar a todas as cabeças silvestres e coraçõestoscos que nesta cidade abundam, para que não lhes cresça na boca a espuma da babaraivosa?” (p. 98)

“Este governo vai legislar a música.” (p. 224)

O filho do Diretor toca: “O Filho está amarrado ao piano. Tem oito anos e olheiras de adulto[…]. Liago de pulsos e tornozelos ao piano, como um doente à máquina que lhe segura a vida,o Filho repete até à perfeição um compasso […]” (p. 83)

ORGANIZAÇÃO

SOCIAL

Apresentação

da sociedade

distópica:

primeira parte do

romance,

chamada

“SONATA DE

INVERNO”

COLAPSO DA

NATUREZA

Tendência in

media res das

narrativas

distópicas

“Na Cidade a fome não mostrava as cáries. Mas também, como se pode calcular o grau dafome? Que escala usamos para medir a carência? Os quilos do apetite ou os gramas da mánutrição? Antes, não havia abundância: desde o Grande Desastre, a carne era monopóliodo Governo; o peixe rareava, o mar era longe. […] A comida, ainda que racionada, chegavaao estômago de todos.Apenas aos habitantes da Zona Sul – militares de alta chefia, e principalmente, aosmembros do Governo – era permitido acesso à nutrição da fruta fresca do lombo, iogurtes,e claro está, empadas.” (p. 119)

“O Grande Desastre dizimara mais de dois terços da população. Derrubara edifícios, leis ecabeças até ali consideradas bastante sólidas. Obrigando os sobreviventes – os insolentesdo aleatório – ao confronto com o que sobra da gastronomia da destruição: pó.O Diretor tinha nove anos e ainda sonhos quando o pai lhe pegou na mão, minutos apóso acidente, e o levou em passeio pelas curvas dos destroços como a um jardim de plantase árvores raras.” (p. 150)

DIZ O FILHO DO DIRETOR: “O Muro protege-nos dos lobos. E a Fábrica dá-nos empadas. Sóque a Mãe não nos deixa comer muitas empadas.” (p. 326)

MÚSICA “Após o Grande Desastre, quem reconstruiu esta Cidade? Nós! Quem deu a todos tectos sólidos? O mínimoconforto? Quem criou milhares de postos de trabalho? Nós! [...] A quem eles devem tudo isto? A estePartido! [...] A besta continua a falar. O burburinho malévolo. O ruído de fundo. Pois eu digo-vos: deixai-afalar, a besta. Deixai-a ladrar. Uivar se lhe apetecer. O nosso Governo e este Partido não cederão a essesuivos pretensiosos; não cederemos naquilo que acreditamos ser a conduta certa de uma política construídapara o bem comum! E mais: a arquitetura, o método, a organização, a desinfecção e os militares são osinstrumentos da nossa orquestra! São a música deste Partido e deste Governo, para uma claraaprendizagem da canção certa por parte do povo!”(p. 166)

“O cavalo está vivo, tem luz nos olhos, sangue nos músculos.” (p. 33)“O Operário vem pelo pavimento. Vê alguns transeuntes, sapatoscansados, cavalos altos. Armas a brilhar em mãos militares.” (p. 109)“O incêndio comia no edifício [...]. Mas um cavalo não perde aelegância. [...] Até que, pouco depois, quando já se ouvia em fundo oacelerado de botas de militares, as rédeas soltaram-se em direção aoMuro [...] escapando ao começo do desastre.” (p. 339)

TÍTULO DO ROMANCE

ESTRUTURA NARRATIVA:

Divisão em capítulos chamados

“GYMNOPÉDIE”, três composições

de Erik Satie.

“As melodias usam dissonâncias

deliberadas mas amenas contra a

harmonia”

https://www.youtube.com/watch?v=0koaxjHP5Q8

TENDÊNCIA

ALEGÓRICA

Alimentar-se da

morte do outro

(ou realmente do

corpo humano?)

NO MESMO ESPAÇO EM QUE AS PESSOAS SÃO CREMADAS, A COMIDA É PREPARADA:

“Os cheiros da morte e das empadas casam-se naquele local, mais do que noutra parte daCidade, numa estranha e repugnante combinação. O Operário olha pra cima. As suaschaminés – dois canos apontados à parede de Deus – continuam a cuspir rolosininterruptos de fumo: a seda fina e amarela, oriunda dos fornos da pastelaria; a lãgrossa e preta dos fornos de cremação.Ao encontrar a liberdade do ar gelado, aqueles indícios de alimentação e morte unem-senum só novelo que se cola às nuvens permanentes, engrossando o cinzento.” (p. 113)

PREOCUPAÇÕES DA CRIANÇA“Ele diz-me que algumas [empadas] são feitas da nossa carne.” (p. 170)

DIÁRIO DA CRIADA“Antes de vir embora, abrimos o livro sagrado e lemos algumas passagens. Para limparmosa culpa de termos comido empadas.” (p. 307)“Tenho medo do que vem aí. O Patrão já tem a caixa. Abri a arca frigorífica, só praespreitar. Meu Deus! Rezo.” (p. 309)

CONTROLE

POR MEIO DO

MEDO

“Se não conseguimos matar os lobos que uivam, ao menos emudecemos a ovelha que bale.Esta ovelha que balia e desassossegava o restante rebanho, segundo o Ministro Calvo, era umhomem singular a quem muitos reconheciam um talento místico ou psíquico. E esse talentocomeçava a dar-lhe uma notoriedade que importunava. Fazia nervos a quem mandava. Esseoperário era dotado da capacidade de sonhar com aquilo que ainda não acontecera. […]Era aquele a quem chamavam Mensageiro.” (p. 20)

TENDÊNCIA

ALEGÓRICA

Os humanos

digladiando na

sociedade

DISCURSO DO MENSAGEIRO (palavras enunciadas por Ele em um sonho):

“Os lobos vão chegar e conhecer e fazer o homem ímpio e beber o sangue do homemímpio. […]Os lobos não são os lobos.Os lobos são aqueles que vos rodeiam como cordeiros de hálito sensual. [...]Os lobos são os que, por trás das fachadas coloridas e vestes limpas, defecam e urinamonde se deitam, e convivem com os próprios excrementos” (p. 24)

“Ouviram-se vários disparos seguidos de uma explosão. Os gritos semelhantes a uivos.” (p. 338)

LOBO como imagem da resistência:

A (RE)AÇÃO DAS PERSONAGENS DIANTE DA IMOBILIDADE SOCIAL:ações do Mensageiro, da Prostituta, do Operário e da Criada.

“O Operário olha com asco aquela alegria efémera.Diz:Aqueles sorrisos vão cair.Ainda não aconteceu, é certo, mas vai acontecer.Em breve, o corvo vai gralhar.Baixa a persiana.Fecha a janela.” (p. 279)

SONHOS:“É nisto que a Ruiva acredita e é com isto que sonha: acordar uma manhã sem observarpó deitado na mesa de cabeceira, espreguiçar-se de uma janela de onde possa avistar olonge.” (p. 233)

SIGNOS

UTÓPICOS

Na segunda

parte do

romance,

chamada

“CONCERTO DE

VERÃO”


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