Inquietações distópicas na literatura portuguesa contemporânea
Uma análise do romance Um piano para cavalos altos, de Sandro William Junqueira
Caroline Valada Becker (Doutoranda Teoria da Literatura - PUCRS)
Orientador: Dr. Paulo Ricardo Kralik
Segundo Teixeira Coelho, no livro
O que é utopia (1981, p. 50),
podemos utilizar três abordagens:
COMO ESTUDAMOS TAL CONCEITO?
perspectiva
filosófica
perspectiva
políticaperspectiva
literária (a utopia e
a distopia
como gêneros narrativos)
As dimensões
econômica,
política e social
são inerentes à
utopia/distopia.
A narrativa utópica
particulariza e corrige os
mecanismos sociais que
regem as relações entre os
indivíduos e a coletividade (PAQUOT, 1999, p. 6)
Eixos, segundo Gregory Claeys (2013, p.8):
• “pensamento utópico”
• “literatura utópica”
• “busca de comunidades”
Vita Fortunati, ‘Utopia as a Literary Genre’, in Dictionary ofLiterary Utopias, ed. by Vita Fortunati and Raymond Trousson
UTOPIA, portanto, implica, na sua forma,
preocupações ÉTICA e ESTÉTICA, ou
IDEOLÓGICA e LITERÁRIA.
“The concept of the semantic mutability
characterising the term utopia must warn
the reader of the dangers of rigid
connotations in the attempts at defining
this term.” (p. 632)
O GÊNERO UTOPIA:
“in utopia, the elsewhere, the journey, the layout
of some city, these simulate society.” (p. 635)
Estratégias narrativas:
• UTOPIA: um viajante é levado a uma sociedade utópica e a compara com sua própria sociedade;
• DISTOPIA: já começa no terrível mundo (in media res).
(VIERIA, Fátima. “The concept of utopia”. Utopian literature.)
“Uma coisa é certa: a UTOPIA – e isto desde Thomas
Morus – não é um futuro, e sim um outro lugar. Na
realidade, não trata de imaginar, em um processo
prospectivo, um novo mundo, mas de localizá-lo,
aqui e agora, no centro mesmo do antigo mundo.”
(PAQUOT, 1999, p. 13)
E NA DISTOPIA?
“A palavra ‘utopia’ passou a existir com a publicação
do pequeno livro de More, em dezembro de 1516.
More cunhou-a ao fundir o advérbio grego ou –
“não” – ao substantivo tópos – “lugar” –, dando ao
composto resultante uma terminação latina.”
(LOPES, 2011, p. XV)
• U-CRONIA – NÃO TEMPO
• U-TOPIA – NÃO-LUGAR
• NUSQUAMA – LUGAR NENHUM
Século XX
Projeção negativa, cujas marcas
essenciais são o colapso e o caos.
• Distopia são “pesadelos ao invés de
idílios” (SZACHI, 1972, p. 111).
• Um “mau lugar, lugar da distorção” (COELHO, 1981, p. 45)
UTOPIA DISTOPIASéculo XVI, com a obra Utopia,
de Thomas More
• Se a utopia enuncia projeções positivas, a distopia, também se relacionando com a sociedade que
circunda o autor no momento da criação, tece críticas à sociedade, algo como visões negativas (e
verossímeis) dos aspectos políticos e sociais, potencializados na elaboração estética, é claro.
“Uma das principais características da utopia como
gênero literário é a sua relação com a realidade.
Utopistas partem da observação da sociedade em
que vivem, percebem os aspectos que precisam ser
mudados e passam a imaginar um lugar onde esses
problemas foram resolvidos.” (VIEIRA, 2010, p. 8)
“As utopias buscam a emancipação ao visualizar um
mundo baseado em ideias novas, negligenciadas ou
rejeitadas; as distopias buscam o assombro, ao
acentuar tendências contemporâneas que ameaçam
a liberdade” (JACOBY, 2007, p. 40).
A ação humana cria a
UTOPIA – intervenção
“[…] esta terra não foi
sempre uma ilha.
Chamava-se antigamente
Abraxa e se ligava ao
Continente; Utopus
apoderou-se dela, e deu-
lhe seu nome.
Este conquistador teve
bastante gênio para
humanizar uma
população grosseira e
selvagem […]. Desde que a
vitória o fez dono deste
país, mandou cortar um
istmo de quinze mil
passos no lado em que
está ligado ao continente:
e a terra de Abraxa
tornou-se, assim, a ilha da
Utopia”
(MORUS, 2011, p. 69-70)
“O paraíso perdido”, de Grefory Claeys (In: Utopia: a história de uma ideia)
“No final do século XIX, ficou claro que a industrialização causava
aumento de poluição e degradação da vida urbana, em especial dos
pobres. Uma resposta foi o renascimento do imaginário apocalíptico,
antes associado quase exclusivamente à religião, principalmente ao
cristianismo. A fantasia do imenso e crescente poder científico e
tecnológico – que segue sendo o principal tema da ficção científica
moderna, o maior subgênero do utopismo –, a partir de meados do século
XIX, produz uma sensação desesperadora de incapacidade de conter os
excessos de invenção. Máquinas tornam-se mais complexas, mas seus
usos diabólicos deixam as guerras mais destrutivas. Utopia e distopia
andam cada vez mais lado a lado” (p. 207)
Parafraseando as ideias de Gregory
Claeys apresentadas no texto “The
origens of dystopia: Wells, Huxley and
Orwell”, nas distopias clássicas são
recorrentes estas características:
um estado monolítico e totalitário que exige
obediência de seus cidadãos, individualismo e
avanços científicos e tecnológicos para
garantir o sistema do controle social.
Na distopia, é possível
retratar visões negativas
e viáveis (factível e
verossímil) de
desenvolvimento político
e social, em um molde
ficcional.
A imaginação distópica, para Baccollini
e Moylan, representa, na ficção, as
preocupações éticas e políticas dos
escritores, sugerindo os contornos de
um tempo histórico e social; dessa
forma, a arte “avisaria” aos receptores
os potenciais problemas do mundo.
Segundo Carlos Eduardo Ornelas Berriel,
“a utopia clássica se desenvolve construindo um hiato (insanável) entre a
História real e o espaço reservado para as projeções utópicas; a descoberta de
um país distante, até então ignorado (como no enredo de Morus, Campanella e
outros) se tornou símbolo de uma fratura não apenas geográfica, mas, sobretudo
histórica”;
“a distopia busca colocar-se em continuidade com o processo histórico,
ampliando e formalizando as tendências negativas operantes no presente
que, se não forem obstruídas, podem conduzir, quase fatalmente, às
sociedades perversas (a própria distopia). […] na distopia a realidade não
apenas é assumida tal qual é, mas as suas práticas e tendências negativas,
desenvolvidas e ampliadas, fornecem o material para a edificação da
estrutura de um mundo grotesco.”
Editorial da MORUS – Utopia e Renascimento 2, 2005, p. 4-10.
UTOPIA
como
FRATURA
HIATO
DISTOPIA
como
CONTINUIDADE
AMPLIAÇÃO
Dark horizons: science fiction and the dystopian imagination,
de Rafaella Baccolini e Tom Moylan
Séc. XX: formas clássicas de distopismo.
Exemplos: 1984, Admirável mundo novo
Década de 60 e 70: utopias críticas.
Ecologia, Feminismo e New-Left
Exemplos: Marge Piercy, Ursula Le Guin, Joanna Rus
Década de 80: movimento cyberpunk.
Exemplo: “Blade Runner”
Pós-década de 90: distopias críticas
(um gênero híbrido, mistura de tendências)
Exemplo: Margaret Atwood
PROPOSTA HISTORIOGRÁFICA CATEGORIAS DE ANÁLISE
Dissipado nos romances
contemporâneos do
século XXI, o leitor
encontra categorias
relativas à distopia do
século XX, como o
APARELHO POLÍTICO
OPRESSOR, o
PESSIMISMO, a
AUSÊNCIA DE
ALTERNATIVAS para os
sujeitos sociais, a
tendência – no âmbito da
forma narrativa – à
ALEGORIA e, como
grande tendência, surge o
MEIO AMBIENTE EM
COLAPSO
UM PIANO PARA CAVALOS ALTOS,
de Sandro William Junqueira
“Não tardou que o vento da notíciacorresse pela Cidade.[…] Para a população da Cidade faziasentido este excitado entusiasmo peladesgraça acontecida. Há uma dezenade anos que não se ouvia falar deassuntos da Floresta. […] Apesar domedo inerente ao salivar a notícia,havia nalguns corações uma nova zonade alegria, entusiasmo. Este inesperadoacontecimento era o começo de umanova paisagem. Uma porta aberta paranovas trevas.” (p. 17)
NÃO TEMPO E
NÃO LUGAR
“O Governo, sempre zeloso, desta veznão conseguira pisar o rastilho dacomunicação para desmetir a ameaça.De facto, um jovem militar fora vítimade um ataque insólito no interior daFloresta. E a estranheza da morteincomodou a chefia: custavareconhecer a fraqueza do braço bélicoquando este se aventurava para longedas imediações do Muro e entrava nanatureza.Na Torre Governamental, o MinistroCalvo, ao ser informado, dera ummurro na mesa.” (p. 19)
PERSONAGENS
SEM NOME
CAPÍTULOS COM “DITADOS DO MINISTRO CALVO”
• “A implosão das igrejas é outro passo certo dado em direção a um estado social que nãodesperdiça.” (p. 29)
• “O trabalho de um Governo que quer governar com coragem e seriedade deve assentar nocontrolo do medo.” (p. 40)
MÚSICA: “O Diretor encaminha-se até à estante. […] Liga o rádio. A estação governamentalemite uma sonata para piano. […] a persuasão, como a música, é arte.” (p. 45)
Música OFICIAL: “E que música permitiremos nós dar a todas as cabeças silvestres e coraçõestoscos que nesta cidade abundam, para que não lhes cresça na boca a espuma da babaraivosa?” (p. 98)
“Este governo vai legislar a música.” (p. 224)
O filho do Diretor toca: “O Filho está amarrado ao piano. Tem oito anos e olheiras de adulto[…]. Liago de pulsos e tornozelos ao piano, como um doente à máquina que lhe segura a vida,o Filho repete até à perfeição um compasso […]” (p. 83)
ORGANIZAÇÃO
SOCIAL
Apresentação
da sociedade
distópica:
primeira parte do
romance,
chamada
“SONATA DE
INVERNO”
COLAPSO DA
NATUREZA
Tendência in
media res das
narrativas
distópicas
“Na Cidade a fome não mostrava as cáries. Mas também, como se pode calcular o grau dafome? Que escala usamos para medir a carência? Os quilos do apetite ou os gramas da mánutrição? Antes, não havia abundância: desde o Grande Desastre, a carne era monopóliodo Governo; o peixe rareava, o mar era longe. […] A comida, ainda que racionada, chegavaao estômago de todos.Apenas aos habitantes da Zona Sul – militares de alta chefia, e principalmente, aosmembros do Governo – era permitido acesso à nutrição da fruta fresca do lombo, iogurtes,e claro está, empadas.” (p. 119)
“O Grande Desastre dizimara mais de dois terços da população. Derrubara edifícios, leis ecabeças até ali consideradas bastante sólidas. Obrigando os sobreviventes – os insolentesdo aleatório – ao confronto com o que sobra da gastronomia da destruição: pó.O Diretor tinha nove anos e ainda sonhos quando o pai lhe pegou na mão, minutos apóso acidente, e o levou em passeio pelas curvas dos destroços como a um jardim de plantase árvores raras.” (p. 150)
DIZ O FILHO DO DIRETOR: “O Muro protege-nos dos lobos. E a Fábrica dá-nos empadas. Sóque a Mãe não nos deixa comer muitas empadas.” (p. 326)
MÚSICA “Após o Grande Desastre, quem reconstruiu esta Cidade? Nós! Quem deu a todos tectos sólidos? O mínimoconforto? Quem criou milhares de postos de trabalho? Nós! [...] A quem eles devem tudo isto? A estePartido! [...] A besta continua a falar. O burburinho malévolo. O ruído de fundo. Pois eu digo-vos: deixai-afalar, a besta. Deixai-a ladrar. Uivar se lhe apetecer. O nosso Governo e este Partido não cederão a essesuivos pretensiosos; não cederemos naquilo que acreditamos ser a conduta certa de uma política construídapara o bem comum! E mais: a arquitetura, o método, a organização, a desinfecção e os militares são osinstrumentos da nossa orquestra! São a música deste Partido e deste Governo, para uma claraaprendizagem da canção certa por parte do povo!”(p. 166)
“O cavalo está vivo, tem luz nos olhos, sangue nos músculos.” (p. 33)“O Operário vem pelo pavimento. Vê alguns transeuntes, sapatoscansados, cavalos altos. Armas a brilhar em mãos militares.” (p. 109)“O incêndio comia no edifício [...]. Mas um cavalo não perde aelegância. [...] Até que, pouco depois, quando já se ouvia em fundo oacelerado de botas de militares, as rédeas soltaram-se em direção aoMuro [...] escapando ao começo do desastre.” (p. 339)
TÍTULO DO ROMANCE
ESTRUTURA NARRATIVA:
Divisão em capítulos chamados
“GYMNOPÉDIE”, três composições
de Erik Satie.
“As melodias usam dissonâncias
deliberadas mas amenas contra a
harmonia”
https://www.youtube.com/watch?v=0koaxjHP5Q8
TENDÊNCIA
ALEGÓRICA
Alimentar-se da
morte do outro
(ou realmente do
corpo humano?)
NO MESMO ESPAÇO EM QUE AS PESSOAS SÃO CREMADAS, A COMIDA É PREPARADA:
“Os cheiros da morte e das empadas casam-se naquele local, mais do que noutra parte daCidade, numa estranha e repugnante combinação. O Operário olha pra cima. As suaschaminés – dois canos apontados à parede de Deus – continuam a cuspir rolosininterruptos de fumo: a seda fina e amarela, oriunda dos fornos da pastelaria; a lãgrossa e preta dos fornos de cremação.Ao encontrar a liberdade do ar gelado, aqueles indícios de alimentação e morte unem-senum só novelo que se cola às nuvens permanentes, engrossando o cinzento.” (p. 113)
PREOCUPAÇÕES DA CRIANÇA“Ele diz-me que algumas [empadas] são feitas da nossa carne.” (p. 170)
DIÁRIO DA CRIADA“Antes de vir embora, abrimos o livro sagrado e lemos algumas passagens. Para limparmosa culpa de termos comido empadas.” (p. 307)“Tenho medo do que vem aí. O Patrão já tem a caixa. Abri a arca frigorífica, só praespreitar. Meu Deus! Rezo.” (p. 309)
CONTROLE
POR MEIO DO
MEDO
“Se não conseguimos matar os lobos que uivam, ao menos emudecemos a ovelha que bale.Esta ovelha que balia e desassossegava o restante rebanho, segundo o Ministro Calvo, era umhomem singular a quem muitos reconheciam um talento místico ou psíquico. E esse talentocomeçava a dar-lhe uma notoriedade que importunava. Fazia nervos a quem mandava. Esseoperário era dotado da capacidade de sonhar com aquilo que ainda não acontecera. […]Era aquele a quem chamavam Mensageiro.” (p. 20)
TENDÊNCIA
ALEGÓRICA
Os humanos
digladiando na
sociedade
DISCURSO DO MENSAGEIRO (palavras enunciadas por Ele em um sonho):
“Os lobos vão chegar e conhecer e fazer o homem ímpio e beber o sangue do homemímpio. […]Os lobos não são os lobos.Os lobos são aqueles que vos rodeiam como cordeiros de hálito sensual. [...]Os lobos são os que, por trás das fachadas coloridas e vestes limpas, defecam e urinamonde se deitam, e convivem com os próprios excrementos” (p. 24)
“Ouviram-se vários disparos seguidos de uma explosão. Os gritos semelhantes a uivos.” (p. 338)
LOBO como imagem da resistência:
A (RE)AÇÃO DAS PERSONAGENS DIANTE DA IMOBILIDADE SOCIAL:ações do Mensageiro, da Prostituta, do Operário e da Criada.
“O Operário olha com asco aquela alegria efémera.Diz:Aqueles sorrisos vão cair.Ainda não aconteceu, é certo, mas vai acontecer.Em breve, o corvo vai gralhar.Baixa a persiana.Fecha a janela.” (p. 279)
SONHOS:“É nisto que a Ruiva acredita e é com isto que sonha: acordar uma manhã sem observarpó deitado na mesa de cabeceira, espreguiçar-se de uma janela de onde possa avistar olonge.” (p. 233)
SIGNOS
UTÓPICOS
Na segunda
parte do
romance,
chamada
“CONCERTO DE
VERÃO”