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1
Jéssica Aparecida Vianna
Lastro Vocal: A importância do repertório
adequado para o desenvolvimento dos coros infanto-
juvenis
Monografia apresentada como
exigência para obtenção do
grau de Bacharelado em Música
– Habilitação em Regência do
Instituto de Artes da UNESP.
Orientador: Profº Dr. Angelo
Jose Fernandes
2
São Paulo
2012
INSTITUTO DE ARTES DA UNESP
Música – Habilitação em Regência
Lastro Vocal: A importância do repertório
adequado para o desenvolvimento dos coros infanto-
juvenis
Jéssica Aparecida Vianna
3
São Paulo
2012
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo apresentar o conceito deLastro Vocal, compreendido como a base ou fundamentoadquirido através do repertório. Este por sua vez, deveconter características musicais funcionais que conduzam demaneira eficaz a obtenção do Lastro Vocal. Algumascomposições foram analisadas com a finalidade deexemplificar que os elementos musicais (melodia, harmonia,ritmo, contraponto) e extra musical (texto), quando bemestruturados facilitam a construção do Lastro Vocal.
Palavras-chave: vozes infanto-juvenis, repertório canto
coral, regente, técnica vocal.
4
ABSTRACT
This research aims to present the concept ofBallast Vocal, understood as the basis orfoundation acquired through musical repertoire.This, in turn, must contain functional musicalcharacteristics that lead affectively obtaining thevocal ballast. Some musical compositions wereanalyzed in order to illustrate that the musicalelements (melody, harmony, rhythm, counterpoint)and extra-musical (text) when properly structuredto facilitate construction of vocal backing.
Keywords: juvenile-infant vocal, choral chantrepertoire, conductor, vocal technique.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar ao Maestro e parceiro VitorGabriel pelas belas obras que compuseram este trabalho, portodos os diálogos que me ajudaram a refletir melhor sobre oassunto.
Agradeço ao professor Angelo por ter aceitado me orientarmesmo num momento de tantas mudanças em sua vida.
6
A todos os professores que contribuíram para minha formaçãoe me deram a oportunidade de ser uma profissional melhor.
A minha primeira professora de canto Maria Cecília deOliveira, que com sabedoria me ensinou a prática do ensinare do aprender a arte de cantar.
Às Instituições Bacarelli e Guri Santa Marcelina por medarem a oportunidade de trabalhar com crianças eadolescentes maravilhosos.
Aos meus alunos do Polo Campo Limpo que serviram de baseprincipal para a realização deste projeto.
Ao meu filho João que me ensinou e me ensina a importânciado educar hoje e sempre.
SUMÁRIO
7
Introdução.........................................
...................................................
.........6
Capítulo 1: A ESCOLHA DO REPERTÓRIO PARA COROS
INFANTO-
JUVENIS............................................
.......................................7
1.1 ORepertório .............................
................................................
...........7
1.2 O Repertório como Ferramenta na
Construção do Som do Coro.....11
CAPÍTULO 2: COMPOSIÇÕES PARA COROS INFANTO-
JUVENIS....13
Conclusão..............................................
.......................................................
.30
8
INTRODUÇÃO
Este projeto de pesquisa teve como primeira
etapa, discutir como os regentes de coros infanto-
juvenis escolhem o repertório para seu(s) grupo(s),
e se este de fato é adequado às vozes adolescentes
e a construção do Lastro Vocal, pois uma obra
musical pode conter elementos que tanto beneficiem
a boa produção vocal/artística/expressiva quanto o
contrário.
Apresentamos também que certos tipos de
repertório não são adequados para a construção da
sonoridade coral, como por exemplo, os arranjos de
música popular, onde esta nasceu para ser cantada
9
por uma voz solo masculina ou feminina e geralmente
adulta, sendo que os arranjos que lhe são
atribuídos muitas vezes não são de qualidade e não
contemplam a realidade das vozes infanto-juvenis.
Ao contrário de outros tipos de repertório que são
muito funcionais e muito pouco realizados, como o
uníssono e o cânone.
Foi considerada também a necessidade do
regente ser um bom preparador vocal. E como através
de uma boa preparação vocal juntamente com o
repertório adequado construiremos as ferramentas
necessárias para a obtenção do Lastro Vocal.
Realizamos então um estudo de caso sobre
composições pensadas para o Lastro Vocal, escritas
pelo Maestro Vitor Gabriel para meu grupo infanto-
juvenil do Polo Campo Limpo. Foram realizadas
algumas análises acerca deste repertório que
serviram para demonstrar que, uma composição quando
bem estruturada em seus elementos melódicos,
rítmicos, harmônicos e contrapontísticos,
juntamente com um texto de alto teor literário
podem dar Lastro Vocal, e como este servirá de
herança a repertórios futuros cada vez mais
elaborados e sofisticados.
10
CAPÍTULO 1: A ESCOLHA DO REPERTÓRIO PARA COROS
INFANTO-JUVENIS
1.1 O Repertório
A escolha do repertório é sempre um desafio
para o regente. A literatura coral possui uma
diversa gama de gêneros e estilos. Mas será que os
regentes sempre escolhem o repertório mais adequado
para seus coros? Até que ponto nós, regentes
corais, temos um conhecimento abrangente sobre o
repertório coral?
O regente tem de estar sempre bem consciente
das qualidades e limitações de seu coro para poder
estabelecer com clareza um repertório que
corresponda às reais possibilidades de
interpretação. A busca pelo repertório adequado
exige, enfim, muita pesquisa.
No caso das vozes infanto-juvenis temos que
compreender que os cantores são adolescentes em
processo de desenvolvimento corporal. Suas vozes
não estão formadas nem do ponto de vista físico,
nem do ponto de vista da técnica vocal. Os regentes
que trabalham com esta faixa etária têm de estar
muito atentos a esta questão, pois será um dos
itens determinantes no processo de escolha do
repertório.
11
Alguns procedimentos, quanto à escolha do
repertório para os coros infanto-juvenis, parecem-
nos ser desfavoráveis:
a) O piano como ferramenta de estudo e escolhado repertório
A seleção do repertório envolve (em boa parte
dos casos) a utilização do piano como ferramenta
para o estudo das peças. Por meio deste o regente
consegue avaliar o resultado melódico/harmônico das
obras escolhidas e verificar se o que ouve o
satisfaz. Trata-se, aqui, do primeiro contato com
determinada composição ou do estudo mais atento de
uma obra já conhecida mais ainda não avaliada.
Por outro lado, a composição e/ou arranjo
vocal podem – quando avaliadas ao piano – oferecer
uma sonoridade esteticamente satisfatória,
principalmente em relação à harmonia. Mas, será que
este resultado sonoro obtido pelo piano contempla
as exigências de condução vocal tão necessária as
vozes infanto-juvenis? Presumivelmente não, pois o
que funciona para um instrumento harmônico, como é
o caso do piano, pode não funcionar vocalmente.
Portanto, o regente ao analisar as peças terá
de identificar quais são suas características
estruturais (melódicas, harmônicas, rítmicas,
contrapontísticas). Deve avaliar o que as obras têm
(ou deveriam ter) para que seu coro obtenha um
12
melhor rendimento vocal, artístico e expressivo.
Aprofundaremos e discutiremos melhor este assunto
no capítulo seguinte.
b) O repertório de referência
É perceptível no convívio com outros regentes
que, muitas vezes, estes escolhem o repertório para
seu(s) grupo(s) assistindo/ouvindo outros coros. É
o que, neste trabalho, chamaremos de repertório de
referência. Ao gostarem de alguma obra que ouviram,
passam a utilizá-la com seu(s) grupo(s). Mas este é
um processo que nem sempre dá certo, pois cada
grupo tem um perfil próprio, e uma obra que serve
para um grupo nem sempre servirá para o outro.
c) O gosto pessoal
Muitas vezes o regente gosta de uma
determinada obra e insiste em realizá-la a qualquer
custo, não levando em consideração se seu coro é,
de fato, capaz de executá-la. Em muitos casos,
quando o regente percebe que as tessituras (por
exemplo) são inadequadas para as vozes que possui,
faz uma adaptação destas, redistribuindo as linhas
melódicas, tornando-as mais confortáveis para cada
uma das vozes de seu coro. Esta opção pode até ser
eficaz no que diz respeito ao conforto vocal, mas a
mudança de uma linha melódica destinada a uma voz
para outra pode gerar problemas de condução vocal.
Se isto ocorrer, também dificultará a construção do
13
som do coro no que tange a sua homogeneidade, ao
seu conjunto timbrístico, à sua afinação e no
resultado artístico-expressivo do coro.
Enfim, impossibilitará a construção do que
chamaremos neste trabalho de Lastro Vocal, isto é,
a base ou fundamento vocal que será alcançado
através da soma dos diversos elementos musicais
como melodia, harmonia, contraponto, tessitura,
forma (estruturação interna das partes) e de um
elemento extra-musical que será o texto. É
importante salientar que o Lastro Vocal não se
restringirá a um componente meramente técnico, mas
que todos estes elementos (musicais e extra-
musical) acima citados, fornecerão ferramentas para
a sua construção e este por sua vez dará o subsídio
necessário para que os coralistas alcancem seu real
potencial vocal/artístico/expressivo.
d) A mutilação
Um grave equívoco cometido pelos regentes é o
de suprimir uma (ou mais que uma) das vozes de uma
composição e/ou arranjo coral. É prática comum
entre muitos regentes de coros infanto-juvenis
retirarem a linha do baixo em obras compostas para
coro misto a quatro vozes (SATB). Em geral, no coro
infanto-juvenil, os meninos não conseguem alcançar
as notas compostas para a voz do baixo e muitas
vezes nem a do tenor. A obra, assim mutilada, não
14
soará adequadamente, oferecendo dificuldades de
afinação, de obtenção de timbre e de conteúdo
expressivo, por exemplo. Tendo em vista a realidade
brasileira, os coros infanto-juvenis deveriam
cantar um repertório a três vozes desiguais (SABr),
composto ou arranjado para três vozes desiguais. A
linha melódica da terceira voz deveria contemplar
as possibilidades vocais (qualidades e limitações)
dos meninos em processo de muda vocal, no momento
em que eles não se definem nem como tenores nem
como baixos.
e) O que é bom para os Estados Unidos é bom
para o Brasil?
A bibliografia que trata do repertório coral
infanto-juvenil é, em sua grande maioria,
estrangeira. Quando os autores escrevem sobre
música coral, eles obviamente escrevem mediante a
realidade coral a que pertencem. Entretanto, alguns
fatores são comuns, independentemente da Cultura a
que pertencem.
Há hoje no Estado de São Paulo alguns projetos
sócioculturais, como o Projeto Guri Santa
Marcelina1, a ONG Bacarelli2, que recebem crianças e
1 Projeto Guri Santa Marcelina – Organização Social de Cultura que, temcomo objetivo a educação musical e a inclusão sociocultural decrianças e adolescentes na Grande São Paulo.2 ONG Bacarelli – Programa que atende mais de 1300 crianças e jovens,visando oferecer formação musical e artística de excelência,proporcionando desenvolvimento pessoal e oportunidade deprofissionalização na música.
15
adolescentes na faixa etária de seis á dezoito anos
respectivamente, sendo o canto coral uma atividade
obrigatória para os integrantes destes projetos.
O Projeto Guri Santa Marcelina, por exemplo,
conta com professores de diversos Instrumentos e
Canto. Além destes, os alunos têm de participar das
aulas de Canto Coral. Por ser um projeto
sóciocultural, é de sua natureza procurar abranger
o maior número possível de crianças e adolescentes
na faixa etária dos seis aos dezoito anos. Se uma
criança de nove anos e um adolescente de dezoito
estiverem iniciando seu curso ao mesmo tempo, tanto
a criança de nove quanto o adolescente de dezoito
serão matriculados na mesma turma. Assim posto, não
há como se ter uma distribuição equilibrada frente
à faixa etária na formação das turmas de Canto
Coral, o que gera grupos muito heterogêneos, não
podendo ser classificados estritamente como um
coral infantil, infanto-juvenil ou juvenil.
Nesse aspecto a realidade dos regentes que
participam deste projeto é muito diferente daquela
que encontramos no material bibliográfico em língua
estrangeira. Em alguns países a atividade coral faz
parte da grade curricular das escolas, o que
propicia o agrupamento coerente e equilibrado de
cantores, em acordo com a faixa etária das crianças
e dos adolescentes, na prática da atividade de
canto coral.
16
Apesar das diferenças culturais e estruturais
entre a atividade coral proposta pelos projetos
sociais acima citados e a realidade coral exercida
em outros países, descritas bibliograficamente,
faremos uso de alguns critérios de escolha de
repertório levantados na bibliografia utilizada
neste trabalho que nos serão bastante úteis.
Henry Leck, regente norte-americano, aponta
algumas questões com relação à escolha do
repertório adequado às vozes infantis, infanto-
juvenis e juvenis, afirmando3:
“Com os jovens, comece pelotexto. Qual seu significado? Éapropriado? Os desafiará? Evite textoscom duplo sentido. A música está deacordo com suas capacidades vocais?Procure obras com tessiturasapropriadas. Se for um grupo bemjovem, a parte de tenor é apropriada?E a do baixo? Olhe a linha melódica eas mudanças de intervalos. Há saltosestranhos. É cantável? É importanteoferecer uma variedade de estilos paraencorajar o crescimento musical dascrianças. Procure obras que desafiemos cantores a explorar novos estilos.
3 With young people, start with text. What does it means? Isit appropriate? Will it challenge them? […] Avoid a text thatcould create difficulties because of secondary meanings. […]Is the music within their vocal capability? Look for pieceswith an appropriate range. If it is a young ensemble, is thetenor part placed well? What about the bass part? […] Look atthe voicing and the challenge of intervals. Are there oddleaps? Is it singable? It is important to offer a variety ofstyles to encourage children’s musical growth. Look forpieces that challenge the singers to explore new musicalstyles. Singers need to sing the best of every style.
17
Os cantores precisam cantar o melhorde cada estilo. (LECK, 2009, p.72-74).
1.2 – O Repertório como Ferramenta na Construção do
Som do Coro
Esta secção do trabalho se propõe a discutir a
relação do repertório com a busca pelo Lastro
Vocal. Isto é, que tipos de composições e/ou
arranjos corais – quando bem estruturados (melodia,
harmonia, contraponto, ritmo, acompanhamento,
texto), fornecerão ferramentas para o aprimoramento
da musicalidade do coro e melhoria de sua
sonoridade enquanto conjunto: timbre,
homogeneidade, precisão rítmica, afinação, aumento
de tessitura e em seu desenvolvimento artístico-
expressivo.
Em primeiro lugar é importante ressaltarmos as
etapas de um ensaio coral, ou seja, antes de
iniciarmos o trabalho com o repertório, é
fundamental aquecermos as vozes, prepararmos o coro
vocalmente para o que está por vir.
Será papel do regente, caso este não tenha o
apoio de um preparador vocal, conduzir os
exercícios vocais o mais eficientemente possível.
Para tanto é necessário que o regente não só
conheça alguns exercícios vocais, mas que tenha um
bom conhecimento sobre o instrumento vocal, e que
18
tipo de exercício será mais funcional mediante o
repertório a ser cantado. Fernandes (2009, p.197)
comenta a importância do regente também ser um bom
preparador vocal:
Conseguir uma sonoridade adequadano processo de interpretação de umaobra coral vai exigir do regente e doscantores um domínio e umaflexibilidade vocais capazes depossibilitar a melhor emissão, um bomentendimento do texto a ser executado,além do conhecimento sobre práticasinterpretativas. Regentes atentos aorefinamento histórico/estilístico naperformance coral costumam enfatizar aimportância do conhecimento técnicoque viabilize os resultados buscados.Conhecendo a pedagogia vocal, osregentes corais podem trabalharefetivamente para desenvolver noscantores uma maior habilidade vocal,facilitando a tarefa de interpretaçãode repertórios diversificados. Com umatécnica vocal eficaz, o cantor podeaprender a variar a sonoridade da vozem todos os registros, atingindogrande quantidade de “cores sonoras”;desenvolver um amplo espectro dedinâmicas; e adquirir a habilidade deexecutar passagens melismáticas comgrande agilidade e leveza.
Enfim, é necessário entender que nem os
exercícios vocais, nem o repertório a ser cantado
agirão isoladamente um do outro, mas que tanto um
quanto o outro, devem se beneficiar mutuamente. A
importância de um aquecimento eficiente e adequado
antes de se cantar é uma das etapas importantes
19
para a construção da sonoridade de um coro. A
próxima etapa cabe ao repertório.
Devido a minha atividade pedagógica como
regente coral e professora de canto, há muito tenho
pensado sobre o repertório e em como este afeta
positiva ou negativamente a sonoridade dos coros.
Por que determinadas obras, em detrimento de
outras, fazem com que os coros timbrem, ganhem
conjunto, expressividade, cantem mais e afinem
melhor?
Um dos fatores observados é como as obras a
serem cantadas se estruturam musicalmente. A
bibliografia utilizada neste trabalho salienta que
tipo de repertório seria mais adequado para os
coros infanto-juvenis, principalmente, o que seria
mais adequado para os meninos, que requerem uma
especial atenção quanto às tessituras, devido ao
processo da muda vocal. Sublinham que: obras em
uníssono, cânones, a duas e três vozes formam um
repertório adequado. Alguns chegam até a fazer
indicações de algumas obras e quais seriam as
dificuldades encontradas em cada uma delas:
20
Leck (2009, p.73) – sugestão de repertório adequado a
cada faixa etária
Entretanto, é difícil encontrar na
bibliografia apontada uma abordagem que indique
quais elementos musicais são benéficos para a
melhoria do coro e por que. Há, a nosso ver,
necessidade de discutir a estrutura, os elementos
que compõe uma obra e sua relação intrínseca com o
desenvolvimento vocal, artístico e expressivo dos
coros infanto-juvenis.
CAPÍTULO 2: COMPOSIÇÕES PARA COROS INFANTO-JUVENIS
Já há algum tempo, venho observando a
qualidade das composições e/ou arranjos realizados
pelos coros infanto-juvenis e qual a funcionalidade
destes para o desenvolvimento vocal, artístico e
expressivo de um coro.
De modo geral, em grande parte (quando não em
sua totalidade) os corais amadores brasileiros
privilegiam em seu repertório os arranjos de música
21
popular. Ocorre algo similar com os coros infanto-
juvenis. Existe uma preferência pela música popular
brasileira que alguns presumem ser ‘facilitadora’,
por trabalharmos com a nossa língua e nossa
cultura, partindo de algo familiar.
Fernandes (2009, p. 182 e 183), comenta sobre
os arranjos e os arranjadores de música popular:
Ao lado de Marcos Leite eCozzella, surgiu, no movimento coralbrasileiro, um número sem fim dearranjadores de canções da músicapopular. Boa parte desses arranjadoresseguiu os passos dos arranjadorescitados e escreveram arranjos degrande qualidade artística, adequadosà sonoridade coral e à natureza da vozhumana. Outros, porém, pordesconhecimento dos elementos dacomposição musical e/ou daspossibilidades vocais, produziram umimenso número de arranjos corais depequena qualidade artística, muitasvezes inadequados à natureza da voz eineficazes no tocante à sonoridadecoral. Infelizmente, apesar daprodução contínua de arranjos coraisde qualidade inquestionável adequadosaos mais diferentes níveis de coros, aexecução de arranjos de baixaqualidade é bastante frequente em todoBrasil, levando uma grande quantidadede coros brasileiros a limitar seusrepertórios inteiros a tais arranjos.
Lembramos, ainda, que a composição de uma
música popular nasce para ser cantada por uma voz
solo, sendo que sua melodia pode encaixar-se
22
perfeitamente tanto em uma voz masculina quanto
feminina, geralmente adultas. Mas, quando se produz
um arranjo coral com estas melodias, nem sempre o
resultado vocal é de qualidade, especialmente para
as vozes infanto-juvenis. Um dos problemas é que
estas melodias atuam numa região médio-grave para
as mulheres e médio-aguda para os homens, não
contemplando a realidade das vozes infanto-juvenis.
Dando exclusividade aos arranjos corais de
música popular, trabalhamos muito pouco com outros
tipos de música vocal polifônica que são
extremamente funcionais para a construção da
sonoridade coral. De fato, do ponto de vista da
textura vocal, mal trabalhamos o uníssono (como
categoria de conjunto) e os cânones (como categoria
de monodia que se transforma em polifonia). Leck
(2009. Pág. 171)4 cita que, dentre os benefícios de
se trabalhar com obras em uníssono:4 Inexperienced singers all ages need to hear every-onetrying to “sound the same. Adults and youth need to hear andunderstand the octave displacement that occurs when men andwomen are singing together. The key to a beautiful sound isvocal blend. A cappella unison singing allows the instructorto focus the choir on accurate pitch matching skills, todevelop consistent vowel formation without the distraction ofharmony, and to teach and clarity rhythm and form. Unisonsinging allows the singer to focus on vocal technique. Theycan clearly concentrate on the shape of the lips, placementof the tongue, jaw, teeth and soft palate as well as thequality of the sound they are hearing from themselves andothers. Clarity of what the choir hears is important inunison singing. A cappella singing focuses on the voice.Invoke this vital tool as often as possible in warm-ups,repertoire choices, and group and solo evaluations.
23
a) É necessário ‘cantar o mesmo’ para ouvir e
compreender a oitava que difere homens e mulheres,
sendo o segredo deste cantar a ‘mistura vocal’;
b) O uníssono a capela permite ao regente
buscar uma afinação acurada, consistência no canto
das vogais, (sem a ‘distração’ da harmonia) e
ensinar a compreensão e clareza do ritmo e da
forma;
c) Os cantores podem se concentrar no bom uso
do aparelho fonador e na qualidade da emissão
vocal, deles próprios e dos outros cantores. O
objetivo final é clareza do que se escuta;
d) O canto uníssono a capela tem seu foco
exclusivamente na voz; possui uma força vital no
aquecimento, na escolha do repertório e na
valorização do grupo e de solistas.
Os cânones oferecerão os mesmos benefícios do
uníssono, pois todo o grupo aprenderá a melodia
conjuntamente, ou seja, depois de ter a melodia bem
trabalhada por todo grupo, é que o regente começará
a trabalhar o processo de imitação a duas, três ou
mais vozes. Os cânones oferecerão um excelente
desenvolvimento para a escuta dos coralistas: em
primeiro lugar eles terão uma maior segurança
quanto à melodia; em segundo lugar, devido ao
processo de imitação, eles já estarão trabalhando
sua percepção para a polifonia. Após este processo
24
com os cânones, o grupo estará mais habilitado a
cantar o repertório polifônico, no qual cada voz
tem sua própria melodia.
O Polo Campo Limpo
Trabalho com grupos infanto-juvenis no Projeto
Guri Santa Marcelina desde 2010. Venho desde então
buscando selecionar um repertório que contemple a
realidade das vozes juvenis e que, ao mesmo tempo,
pudesse ajudá-los a se desenvolver, não somente na
parte vocal, mas que pudesse também contribuir para
uma percepção/formação musicalmente mais ampla.
Em 2011 comecei a trabalhar como professora de
canto coral no Polo Campo Limpo. O Projeto Social
Santa Marcelina recebe crianças e adolescentes com
idades entre seis e dezoito anos, sendo o canto
coral uma atividade oferecida a partir dos nove
anos.
Um dos coros deste referido Polo, contava em
2011 com um grupo de dezesseis adolescentes (por
oito meninas e oito meninos), entre 15 e 16 anos,
com uma sonoridade equilibrada, boa musicalidade e
expressividade.
Realizar com este grupo um repertório a três
vozes com a formação SABr tornaria a sonoridade de
conjunto muito desequilibrada, visto que são oito
meninas que teriam de ser dividas para os naipes de
25
soprano e contralto, e oito meninos cantando em um
único naipe, ou seja, as vozes masculinas
‘cobririam’ as vozes femininas. A solução
encontrada foi fazer um repertório a duas vozes
desiguais. Tive, então, dificuldades em encontrar
‘obras brasileiras’, compostas especificamente para
coros infanto-juvenis, principalmente a duas vozes
desiguais. Assim sendo, tomei a decisão de
encomendar peças que pudessem satisfazer a
realidade de meu grupo.
Naquele momento pude conhecer algumas peças
compostas pelo maestro Vitor Gabriel, considerando-
as muito funcionais quanto ao aspecto da condução
vocal, de uma construção musical bastante elaborada
e que vinham de encontro as minhas idéias sobre o
Lastro Vocal. Fiz um convite ao maestro Vitor
Gabriel para que ele compusesse algumas obras para
este meu grupo do Pólo Campo Limpo. Deste convite
surgiu o ciclo intitulado Lunares – 9 partículas
compreendidas como nove mini-peças para coro a duas
vozes desiguais e piano. Todos os textos escolhidos
para Lunares têm a lua como temática central, sendo
escritos em forma de Haicais – tipo de poesia de
origem japonesa do século XVII, curto, sintético e
muito expressivo. Sua forma original constitui-se
de 17 sílabas distribuídas em três versos, sendo o
primeiro verso composto por 5 sílabas, o segundo
com 7 e o terceiro com 5. Foi com o passar do tempo
26
adaptado de diferentes modos aos padrões
ocidentais. No Brasil, é praticado de acordo com
concepções formais diversas.
Destas 9 partículas de Lunares, escolhi duas para
serem analisadas neste trabalho: a de número I –
Lua Crescente; e a de número V – Na Poça da Rua.
A primeira peça do ciclo A Lua Crescente tem o
texto escrito pelo poeta Oldegar Vieira (1915-
2006). O texto segue assim:
I – A lua crescenteUma foice corta
o matagal no poentea lua crescente
Para o compositor Vitor Gabriel este texto
sugere uma sensação não muito agradável, causada
pela imagem de “Uma foice corta”. Assim sendo, ele
criou para esta peça, uma ambiência mais escura em
modo menor; a articulação da mão esquerda do piano,
logo quando o coro inicia, é realizada com staccato
e tratino, dando um efeito pesante no registro
grave:
Exemplo 1 Lunares: I - Lua Crescente c. 08-12
27
A vozes vêm em processo de imitação não
estrita, pois os meninos fazem um salto de 4ªJ para
em seguida descerem em grau conjunto e realizar um
movimento contrário à melodia cantada pelas
meninas, criando um efeito de onda entre as vozes
[c.8-9]. Quando a expressão ‘lua crescente’
aparece, a articulação do piano muda para legato
[c.15] e a melodia se beneficia da movimentação do
compasso binário composto, num belo crescendo. A
imitação agora se dará entre a mão direita do piano
e a linha das meninas:
Exemplo 2 Lunares: I - Lua Crescente c. 13-17
28
A harmonia, segundo o compositor, é sempre
pensada em função das tessituras e do texto. No
Exemplo 1 ela move-se de um acorde menor para um
acorde maior e segue assim até o c.13 (primeiro
compasso do Exemplo 2); logo após [c.14], há um
grupo de acordes diminutos e/ou aumentados seguido
por um acorde maior, como podemos ver no c.14 (La
diminuto com sétima) e c.15 (Fa maior com sétima
menor); depois no c.16 (Fa aumentado com sétima) e
c.17 (Sib maior com sétima). O acompanhamento do
piano como podemos perceber, não aparece como
elemento coadjuvante, mas sim como um comentarista
daquilo que o texto sugere. As tessituras estão
numa região bem confortável para ambas as vozes,
indo de um Do3 até um Re4 para as meninas (uma 9ª
maior de extensão) e de um Re2 até um Do3 para os
meninos (uma 7ª de extensão). Os saltos melódicos
vêm quase sempre precedidos de grau conjunto em
movimento contrário; acontecem no âmbito de uma 6ª
para os meninos e de uma 8ª para as meninas, mas
estes saltos acontecem num único momento da peça;
tanto para uma voz quanto para outra, a melodia é
escrita em sua maior parte por grau conjunto. É
importante salientar que os saltos melódicos que
ocorrem nesta peça são totalmente factíveis devido
à fórmula de compasso em 6/8 e o seu andamento,
sendo que as notas mais agudas não necessitam de
muita sustentação. Melodias com notas muito longas
29
(principalmente se acontecerem nos picos graves ou
agudos) e melodias que contenham mais saltos do que
graus conjuntos (essencialmente se os saltos não
forem ‘bem preparados’) não fornecerão uma boa
condução vocal, conseqüentemente não ajudarão na
construção do Lastro Vocal.
A próxima peça a ser analisada é Na poça da rua
sobre texto de Millôr Fernandes:
V – Na poça da rua’Na poça da ruaO vira lataLambe a lua
Esta peça está escrita na tonalidade de Re
maior que reflete um colorido brilhante, já que o
texto tem uma característica bem humorada. A
melodia em legato e compasso ternário (que, devido ao
andamento, deve ser regido em 1) gera uma ambiência
de movimento de dança. O ritmo do piano contrasta
com a melodia em legato das vozes; as colcheias em
movimento descendente e a acentuação do primeiro
tempo bem marcado (c.6-9) faz com que a peça ganhe
fluência e leveza. A partir do c.10 o ritmo fica um
pouco mais ‘quebrado’, reforçando a característica
de uma peça alegre e altiva. O processo de imitação
também esta presente nesta peça. O maior salto
melódico é o de 8ª, logo no início da peça, sempre
seguido de repetição de nota e/ou grau conjunto.
30
Para as vozes femininas a tessitura é de uma 10ª
(Re3 - Fa#4) e vozes masculinas uma 9ª (Re2 – Mi3).
Exemplo 3 Lunares: V – Na Poça da Rua c. 05-15
31
A característica melódica ‘em movimento de
onda’ destas duas peças propicia uma excelente
condução vocal. Schoenberg (2004, p.25) diz que:
Uma boa melodia irá combinarsaltos e movimentos por grau conjuntoe não seguirá por muito tempo em umasó direção. A mudança de direção éobtida por salto ou pelo movimento degrau conjunto na direção oposta.Mover-se em “ondas”, para cima e parabaixo, é, em geral, o melhorprocedimento.
Vemos então que tanto A lua crescente quanto Na
poça da rua, seguem as linhas de condução vocal dadas
pelas regras de contraponto.
Quando se escreve para duas vozes desiguais,
levando em consideração as tessituras de uma 8ª
para os meninos e um pouco mais estendida para as
meninas, existe a dificuldade do preenchimento
harmônico e o espaçamento entre as vozes tem que
ser controlado. Portanto, escrever utilizando o
processo de imitação foi o meio encontrado pelo
compositor para contornar o problema do espaçamento
entre as vozes, sem criar um vazio harmônico devido
à ausência de uma voz interna. As 9 partículas de
Lunares propiciaram um excelente crescimento aos
coralistas do Ceu Campo Limpo. Em primeiro lugar
eles se sentiram muito prestigiados, pois pela
primeira vez estavam cantando um repertório que
32
havia sido escrito para eles. Isso fez com que eles
se unissem mais enquanto grupo.
A escrita das peças, embora dentro de um
contexto tonal, trouxe a eles um novo tipo de
sonoridade. Eles tiveram que trabalhar bastante a
escuta, pois os encadeamentos harmônicos não são
realizados de maneira óbvia. E isso forneceu um
grande subsídio quanto à afinação, pois para
realizarem as notas corretamente, eles tiveram que
ficar muito atentos, principalmente para a parte do
piano. As linhas melódicas estavam dentro dos
parâmetros adequados às vozes juvenis e foram muito
funcionais para o desenvolvimento técnico-vocal do
grupo. Os textos em forma de Haicais são curtos, mas
de grande valor literário, e muito contribuíram
para o resultado artístico/expressivo do coro.
Lunares foi a primeira de uma série de composições
de Vitor Gabriel, escrita para o coral infanto-
juvenil do Campo Limpo. Mais duas obras foram
compostas: Cantiga de Amores e Epifania das Estrelas para
Galileo Galilei.
Cantiga de Amores é uma obra escrita para coro a
duas vozes desiguais e piano, cujo texto foi
extraído do Cântico dos Cânticos. Após assistir a
audição de Lunares, Vitor Gabriel considerou que:
1. Seria interessante se houvessemais uníssonos por voz – só meninos ousó meninas, mas não juntos – com
33
tessituras médias e idéias musicaisque pudessem (com o apoio do piano)‘dar lastro’ ao coro, isto é, formaruma sonoridade de conjunto dentro decada naipe. Depois poderiam unir-se empolifonia.
2. Um texto ‘em diálogo’facilitaria a prática desta proposta.Uns (umas) cantam; outros (outras)cantam; então se unem. Os naipesfuncionam e o tutti também. (VitorGabriel, 2012, introdução de Cantigade Amores)
O texto do Cântico dos Cânticos contém o
diálogo entre a Amada e o Amado e exprime o
sentimento recíproco de amor e admiração. Cantiga de
Amores compõem-se de VIII movimentos: I. Prelúdio;
II. Amada; III. Amado; IV. Exortação; V. Indagação;
VI. Revelação; VII. Indagação e VIII. Conclusão.
Utilizaremos para análise somente o IV (Exortação)
movimento.
O IV movimento é onde, pela primeira vez, as
personagens da Amada e do Amado se encontram. As
vozes femininas (Amada) começam cantando a partir
do c.11 em uníssono:
Exemplo 4 Cantigas IV - Exortação c. 11-18
34
Como podemos perceber a melodia conserva o
‘delineamento de onda’ como em Lunares, porém, as
notas são mais longas e sustentadas e as frases
mais cantabile. A melodia vem crescendo
paulatinamente, criando um efeito muito expressivo
entre texto e música. O piano apresenta uma escrita
temática para cada personagem. Neste movimento em
especial, Vitor Gabriel faz duas citações à ópera
Don Carlo de Verdi. O tema que o piano traz para a
entrada das vozes femininas no c.10 é referente ao
último dueto da ópera entre os personagens Don
Carlo e Elisabeta. A escolha por este tema foi mais
do que pertinente, já que se trata de um dueto de
amor.
35
As vozes masculinas têm início na anacruse do
c.35; a estruturação melódica segue o mesmo padrão
das vozes femininas: notas longas dentro de um
fraseado cantábile e expressivo. O tema apresentado
pela condução do piano é marcante e decidido, como
que em resposta a proposta feita pela Amada: “Vem
meu amado, vamos ao campo, lá te darei meu amor”. A
tonalidade também muda, indo para Ré menor:
Exemplo 5 Cantigas: IV - Exortação c. 34-38
No próximo exemplo, a Amada e o Amado se
encontram pela primeira vez, cantando juntos em
uníssono o tema apresentado pela amada no c.10:
36
Exemplo 6 Cantiga: IV - Exortação c. 48-57
Para Cantiga o compositor pensou em escrever
mais uníssonos por voz, quando a Amada e o Amado
cantam isoladamente. Mas neste trecho (c.52-57) o
uníssono reforça a intenção de união entre os
enamorados.
No próximo exemplo (c.58-64), os personagens
deixam de cantar em uníssono. Agora é um dos temas
do Amado que surge no piano a partir do c.58. Esse
tema aparece pela primeira vez no c.40 deste
movimento. É com este tema do Amado que o
compositor faz sua segunda citação da ópera Don
38
Exemplo 7 Cantiga IV - Exortação c. 58-64
Neste exato momento o diálogo (iniciado no
c.52, Ex.4) não se estabelecerá somente pelo texto,
mas também pelas sobreposições dos temas de cada
personagem que vem se amalgamar neste primeiro
encontro.
Diferente de Lunares, aqui o compositor não se
utilizou do processo de imitação entre as vozes; a
solução foi escrever mais uníssonos, como já
mencionado, para se trabalhar melhor a sonoridade
dentro dos naipes e quando as vozes se encontram,
eles cantam num espaçamento de terças e sextas:
Exemplo 8 Cantigas IV - Exortação c. 66-76
39
O movimento desfecha de maneira cíclica (como
uma forma ABA), pois ele se inicia com a temática
da Amada e termina com a mesma.
A parte vocal de Cantigas foi bastante
simplificada quando comparada àquela de Lunares.
Todavia, o texto em forma de diálogo criou mais
espaço para a interpretação e a expressividade. A
parte mais elaborada ficou por conta do piano que
comenta os temas dos personagens, fortalecendo as
relações entre música e texto. Embora vocalmente
mais simples Cantigas só surgiu devido a herança
deixada por Lunares.
Cantigas foi apresentada no primeiro semestre
deste ano de 2012. Para o segundo semestre iremos
apresentar a obra inédita ‘Epifania das Estrelas para
Galileu Galilei (1564-1642)’.
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Epifania é uma obra composta para narrador,
solista, coro e piano. E assim como ‘Cantigas’ vem
dividida em VIII movimentos, intitulados: I-
Introitus; II-O Mensageiro das Estrelas; III-O Céu
Imutável; IV-O Universo Surdo; V-O Sol Soberano;
VI-A Abjuração; VII-A Nave Sonda Galileu; VIII-A
Dança dos Astros. Para análise utilizaremos alguns
trechos do movimento VII-A Nave Sonda Galileu.
Em Epifania o compositor manteve as mesmas
soluções que encontrou para escrever Cantigas, com
algumas pequenas modificações:
1. Os uníssonos continuam, só que desta vez
juntos (meninos e meninas) – com tessituras médias
e idéias musicais que pudessem (com o apoio do
piano) ‘dar lastro’ ao coro, isto é, formar uma
sonoridade de conjunto misto.
2. Um texto ‘em diálogo’ facilitou a prática
desta proposta.
3. Para enriquecer as sonoridades e ampliar a
expressividade, introduziu-se uma voz solo, que, de
acordo com o ‘libreto’ só poderia ser Galileu.
Em Lunares, o coro cantou 9 mini-peças que
tinham um tema central (a lua), mas as peças não
eram musicalmente relacionadas umas com outras, ou
seja, cada peça tinha sua identidade própria.
Cantigas é uma obra escrita em movimentos, que
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contém toda uma estrutura de inter-relação entre as
partes, sendo os meninos e as meninas os próprios
personagens. Epifania assim como Cantigas, também é
escrita em movimentos que se inter-relacionam, mas
agora o coro não será mais o personagem (s) da
obra, mas o comentador/narrador de uma história.
Epifania, conta resumidamente através de um
Poema/Homenagem, escrito por Álvaro Pacheco (1933),
a história do ‘pai’ da Ciência Moderna, Galileu
Galilei, cujas observações no campo da Física deram
impulso à construção de novas explicações sobre a
Natureza, num momento histórico particularmente
complexo. As propostas de Galileu puseram abaixo
séculos de aristotelismo e confrontaram os dogmas
da Igreja. Galileu foi julgado pela Inquisição pelo
‘erro’ e ‘heresia’ de defender o copernicanismo.
Condenado em 1633, ficou em prisão domiciliar até
sua morte em 1642.
Galileu teve seu nome dado a uma nave sonda
espacial, lançada em 18 de outubro de 1989 para
explorar Júpiter. Essa foi uma homenagem prestada
ao grande cientista, por ele ter sido um grande
estudioso de Júpiter e ter descoberto as quatro
maiores luas daquele planeta: Io/ Europa/ Calixto/
Ganimedes.
42
O texto descreve brevemente o percurso da nave
sonda que foi lançada para excursionar em direção a
Júpiter, como vemos a seguir:
[...]para excursionar pelo Cosmos,
Júpiter e suas luas,Vênus e a Lua
E as nuvens vermelhas de hidrogênio Onde deveria queimar-se.
Exemplo 9 Epifania VII - A Nave Sonda Galileu c. 49-64
43
Como em todas as peças escritas por Vitor
Gabriel, as relações de música e texto são
intrínsecas. O compositor tentou criar a atmosfera
de uma nave no espaço. A tonalidade é de Mi menor,
o coro inicia no c. 50 num registro médio grave em
dinâmica de piano com notas longas e repetidas,
sempre subindo por grau conjunto. O piano também
começa no registro grave; repetitivo, vai crescendo
juntamente com a voz lentamente. Toda condução
melódica e de acompanhamento neste exemplo criam de
fato o ‘efeito’ de uma nave percorrendo o espaço.
Depois da chegada ao ponto culminante da frase (c.
57 – Ex.9), a melodia desce também por grau
conjunto, e finaliza com uma grande nota longa em
44
decrescendo, simbolizando o esfacelamento da nave
no espaço após o cumprimento da missão.
Percebemos uma maior simplificação melódica e
harmônica, se comparada com Lunares e Cantigas. Mas é
de enorme funcionalidade técnica e musical, pois, a
ferramenta mais imprescindível para o estudo vocal
(de qualquer faixa etária), especialmente para
vozes infanto-juvenis, é a sustentação do som em
legato por grau conjunto. As notas longas
trabalharão a resistência da coluna de ar; através
da nota longa e grau conjunto o cantor consegue
perceber melhor a afinação.
Este trabalho não pretende colocar que os
coros infanto-juvenis têm de cantar somente
repertório em uníssonos e/ou grau conjunto. Mas,
trabalhar uníssonos e grau conjunto servem para
desenvolver o som do coro numa primeira etapa, e
este é o sentido do Lastro Vocal, ou seja,
construir através do repertório adequado às vozes
infanto-juvenis, ferramentas que possibilitarão a
evolução do próprio repertório para algo mais
complexo e sofisticado.
Lunares, Cantigas e Epifania foram pensadas para o
Lastro Vocal. Elas contêm todos os elementos que
contribuem eficazmente para às vozes infanto-
juvenis, como demonstramos na análise dos exemplos.
Entretanto, é importante notar que as peças também
45
são providas de elementos desafiadores. As melodias
são simples, mas contêm muita falsa relação e nem
sempre são fáceis de realizar com o acompanhamento,
pois o piano produz em alguns momentos certa
instabilidade harmônica. Isso demonstra que o
repertório para ser funcional e adequado não tem
que necessariamente ser fácil, mas tem que propor
graus de dificuldade que sejam superados ao longo
do trabalho. Um repertório adequado dará suporte
para a formação do Lastro Vocal, e este por sua vez
contribuirá como herança aos futuros repertórios.
Conclusão
Minha experiência como cantora coral e regente coral
fez com que eu entrasse em contato com diversos gêneros e
estilos de composição e/ou arranjos corais. Esta
experiência me possibilitou diagnosticar que: algumas
composições e arranjos contêm elementos que são muito
funcionais para o desenvolvimento vocal e que outras
composições e arranjos, ao contrário, dificultam este
processo.
Nota-se que uma parte do repertório praticado pelos
coros infanto-juvenis carece de conteúdo que possibilite o
desenvolvimento vocal, musical e artístico adequado de seus
integrantes. Acredito que o Lastro Vocal, ou seja, a base,
o fundamento, adquirido através do repertório adequado,
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venha fornecer subsídio
técnico/musical/artístico/expressivo, que serão deixados de
herança para repertórios futuros.
É necessário que os regentes que trabalham com coros
infanto-juvenis estejam mais atentos à escolha do
repertório, e analisem melhor os elementos musicais contido
nas peças, e que tenham a consciência se estes elementos
são factíveis e benéficos às vozes juvenis, e à construção
da sonoridade do coro.
As peças analisadas para este trabalho vem expor de
maneira clara e pontual, os elementos musicais e extra
musical (texto), que são essenciais para a obtenção do
Lastro Vocal.
Conclui-se com este projeto a total eficácia do
repertório apresentado, pois possibilitou aos cantores do
Polo Campo Limpo se aperfeiçoarem musicalmente, vocalmente
e artisticamente.
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