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Johannes Kepler: o homem, sua vida e contribuições.
Primeira aplicação importante de um instrumento de cálculo
“O homem é arrogante à proporção da sua ignorância, e a sua tendência natural é o egoísmo. Na infância do saber, pensa que toda a criação foi feita para ele. Por muitos séculos, viu nos inumeráveis mundos que brilham no espaço, como as borbulhas de um imenso oceano, apenas pequenas velas, que a Providência havia-‐se comprazido em acender com o único fim de tronar-‐nos a noite mais agradável. A astronomia corrigiu esta ilusão da vaidade humana; e o homem, ainda que, com relutância, confessa, agora, que as estrelas são mundos mais vastos e mais formosos do que o nosso mundo, -‐ que a terra, sobre a qual os homens se arrastam, é apenas um ponto dificilmente visível no vasto mapa da criação.”
Sir E. Bulwer Lytton, Zanoni, 1842 (431)
“Na minha opinião, é muito melhor compreender o universo como ele é realmente do que imaginar um universo como gostaríamos que ele fosse.” (380)
Carl Sagan, Bilhões e Bilhões
Johannes Kepler (1571-1630) é admirado como um dos principais agentes de mudança do pensamento científico, responsável por introduzir o método científico no ocidente e, juntamente com Galileu Galilei (1564 – 1642), de fundamentar a teoria da gravidade, mais tarde formalizada por Isaac Newton (1643 – 1727). Kepler, reformulando paradigmas, alterou profundamente a forma como percebemos o mundo e a nós mesmos.
Thomas Kuhn propôs como o marco limítrofe da Idade Média, a elaboração do sistema heliocêntrico por Nicolau Copérnico (1473 – 1543), que corrigia as idéias de Aristóteles e Ptolomeu (≅ 90 – 168), consideradas até então como verdades absolutas. Tal evento alterou o equilíbrio de forças entre religião e ciência, entre dogma e conhecimento, ao destronar a Terra, e por conseguinte o homem, do centro do universo. Kuhn denominou a obra de Copérnico como a Revolução Copernicana. Kepler, tomaria para si a tarefa de comprovar as idéias de seu antecessor, colocando por terra uma crença estabelecida por quinze séculos.
Marcelo Gleiser, em seu livro Criação Imperfeita, ilustra brilhantemente um pouco da história das vidas de Copérnico e de Kepler, e como elas se entrelaçaram:
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“(...) Copérnico estava convencido de que, por toda a história, dos babilônios a Aristóteles, do grande Ptolomeu aos inspirados astrônomos islâmicos que mantiveram viva a sabedoria grega durante as trevas medievais, literalmente todo mundo, sábio ou ignorante, pensava de forma errada sobre o arranjo dos céus.
(...) Copérnico sabia que alguns gregos, dentre eles Heráclito do Ponto e Aristarco de Samos, haviam já proposto alternativas ao modelo geocêntrico. Sabia também que, se as idéias desses filósofos já não foram aceitas na Grécia Antiga, a situação agora seria ainda pior, após quinze séculos de teologia cristã terem pregado a Terra no centro da Criação. Não é, portanto, surpreendente que Copérnico tenha esperado décadas até ter tido a coragem de denunciar os erros do mundo. Sabia que sua obra teria sérias repercussões. Uma nova cosmologia implicaria uma nova visão de mundo; uma nova visão de mundo, por sua vez, implicaria um lugar diferente para o homem no cosmo, numa nova explicação para quem somos e qual o sentido da vida. Se não somos mais o centro da Criação, somos ainda os eleitos de Deus? Se a Terra é um mero planeta, será que existem seres inteligentes em outros? Será que também são pecadores e precisam ser salvos? Por quem? Pelo nosso Jesus, ou será que Deus teve muitos filhos? Será que o nosso Paraíso é o mesmo dos extraterrestres? Tirar a Terra do centro causava muita confusão.
(...) Kepler dedicou-‐se à causa copernicana com um fervor religioso. Estava convicto de que o cosmo heliocêntrico era obra de Deus.
(...) Na minha opinião, nenhum outro cientista, nem mesmo Galileu e o seu famoso confronto com a Inquisição Católica, encarna de forma tão dramática o arquétipo do herói solitário que luta sem tréguas pela verdade.
(...) Ao tentar explicar os movimentos planetários a partir de causas físicas – uma força emanado do Sol – Kepler transformou irreversivelmente a astronomia, que deixou de ser um mero mapeamento dos movimentos celestes... no Mysterium, Kepler sugeriu que uma anima motrix emanando do Sol causava os movimentos planetários. A idéia foi refinada no seu segundo livro, Astronomia nova, publicado em 1609, onde propôs uma força de origem magnética entre o Sol e os planetas. Essas primeiras noções de uma dinâmica celeste – o estudo das forças responsáveis pelos movimentos dos objetos celestes – foram essenciais para o pensamento de Newton que, em 1687, irá apresentar uma teoria quantitativa da gravitação.
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“Apenas uma descrição baseada nas causas físicas poderá explicar os movimentos celestes”, Kepler escreveu profeticamente.
Mesmo que seu sonho pitagórico de uma solução geométrica para o cosmo não passasse de uma fantasia que combinava cristianismo e misticismo matemático, foi tentando concretizar a sua visão de mundo que Kepler descobriu as leis matemáticas das órbitas celestes. É irônico, e de extrema importância para nosso argumento, que justamente o homem que tanto amava a simetria acabasse provando que o círculo – a mais perfeita das formas – não tinha um papel central na astronomia. Cada planeta tinha sua própria órbita elíptica, com uma elongação maior ou menor: a estrutura do cosmo deixou de ser um sonho humano e passou a ser uma realidade científica, imperfeita e assimétrica. Kepler nos proporcionou um cosmo menos belo, mas uma ciência mais preciosa. A lição que aprendemos e tão simples quanto essencial: para nos aproximar da verdade, muitas vezes temos que abandonar nossos sonhos de perfeição. (332)
Johannes Kepler é considerado o protagonista da primeira utilização importante de um instrumento de cálculo, viabilizando a conclusão da obra de sua vida. Caso não tivesse a sua disposição as tabelas de logaritmos de Napier, poderia, talvez, não ter tido tempo suficiente para concluir a elaboração matemática de suas três leis, que regem o movimento planetário e que alteraram profundamente a visão de mundo que se tinha até então.
Kepler é mais conhecido por estas três leis do movimento celeste, tão exatas hoje como há quatrocentos anos quando foram criadas. A Lei das Órbitas e a Lei das Áreas, as duas primeiras, foram publicadas em 1609, no livro Astronomia Nova, e a terceira lei ou Lei Harmônica, deduzida dez anos mais tarde, foi divulgada no ano seguinte a sua descoberta, em 1620, em seu livro Epitome Astronomiae Copernicane. Porém, Kepler fez bem mais que isso, superando as enormes dificuldades e dissabores que precisaria enfrentar ao longo de praticamente toda sua vida.
São vários os exemplos notáveis de sua genialidade, como o fato de ter chegado muito próximo da formulação da lei da gravidade, proposta por Isaac Newton (1634 – 1727) algumas décadas mais tarde. Partindo da suposição de que a gravidade seria um fenômeno baseado no magnetismo, deduziu a existência de
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uma força de atração (“vis motora”) entre todos os objetos, de intensidade proporcional a sua massa e inversamente proporcional à distância entre eles. Deduziu ainda que esta era a força que, emanando do Sol, mantinha a ordenação de nosso sistema planetário. Sua percepção estava correta; a sua matemática é que ainda não possuía o desenvolvimento necessário para chegar ao cálculo exato da força da gravidade, que em realidade diminui proporcionalmente com o quadrado da distância entre os corpos.
Newton deduziria a equação correta da força da gravidade “ao aplicar sua própria lei da força centrífuga à terceira lei do movimento planetário de Kepler”. Esta descoberta seria publicada em sua obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, em geral conhecida apenas como Principia, em 05 de julho de 1687. Entretanto, como tantos outros trabalhos de Newton, este também seria cercado de controvérsias, como nos conta Stephen Hawking: (415)
“Numa reunião de triste lembrança, realizada em 1684, três membros da Royal Society, Robert Hooke, Edmond Halley e Chistopher Wren, o famoso arquiteto da Catedral de St. Paul, envolveram-‐se em exaltada discussão sobre a relação do inverso do quadrado que rege o movimento dos planetas. Em princípios da década de 1670, a conversa dominante nos cafés e em outros pontos de encontro dos intelectuais de Londres era a de que a gravidade emanava do Sol em todas as direções e se precipitava com intensidade inversa ao quadrado da distância, tornando-‐se assim, cada vez mais difusa sobre a superfície da esfera, à medida que se expandia sua área. A reunião de 1684 marcou, com efeito, o nascimento de Principia. Hooke declarou que deduzira da lei das elipses, de Kepler, a prova de que a gravidade era uma força emanante, mas que não a revelaria a Halley e Wren, até que estivesse pronto para torná-‐la pública. Furioso, Halley foi a Cambridge, descreveu para Newton as alegações de Hooke e propôs o seguinte problema: “Qual seria a forma da órbita de um planeta ao redor do Sol se ela fosse atraída em direção ao Sol por uma força que variasse inversamente com o quadrado da distância? ”A resposta de Newton foi surpreendente. “Seria uma elipse”, respondeu imediatamente, e disse a Halley que ele havia resolvido o problema quatro anos antes, mas que não sabia onde guardara a demonstração em sua sala.
A pedido de Halley, Newton passou três meses reconstituindo e melhorando a demonstração. Então, num acesso de energia que durou dezoito meses, período em que se envolveu de tal maneira com o trabalho que muitas vezes se esquecia de comer, desenvolveu essas
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idéias, até que sua exposição recheou três volumes. Newton escolheu como título do trabalho Philosophiae Principia Mathematica, deliberadamente em contraste com Principia Philosophiae, de Descartes. Os três livros do Principia, de Newton, forneceram o elo entre as leis de Kepler e o mundo físico.” (421)
Um dos aspectos sombrios da vida de Newton seria o seu grande interesse por alquimia, teologia e pelas profecias bíblicas sobre o Armagedon, o final dos tempos, assunto sobre o qual teria dedicado, secretamente, cerca de 30 anos de leituras e pesquisas. A partir destes estudos, Newton produziu uma interpretação não ortodoxa da Bíblia, que considerava o seu maior trabalho. Porém, com medo da Inquisição, manteve estes escritos guardados por toda a sua vida, sendo os mesmos publicados somente em 1733, seis anos após a sua morte, em uma obra póstuma sobre as profecias de Daniel e o Apocalipse de São João. Revelando a sua versão para o significado verdadeiro destes textos sagrados, Newton, que considerava-se um autêntico cristão, também deixaria claro a sua revolta com a corrupção existente nas instituições religiosas e com as distorções introduzidas na Bíblia. Segundo o professor William Kolbrener, professor de inglês na Universidade Bar-Ilan, em Israel, uma parte considerável destes textos teriam permanecido ocultos do público até pouco antes da Segunda Guerra Mundial: (461)
“[...] os trabalhos não-‐científicos de Newton permaneceram na obscuridade – primeiro sob a custódia de seu assistente no Royal Mint, John Conduitt (marido de sua sobrinha), e depois sob a custódia da família em Portsmouth. Os Papéis de Portsmouth foram doados à Universidade de Cambridge, em 1872 e, em 1888, foram classificados por quatro professores – um físico, um químico, um medievalista e um astrônomo, sob vários títulos. Os papéis sob os títulos, por exemplo, de “química”, “história” e “miscelânea” ficaram para a biblioteca; mas cinco partes, contudo, foram devolvidos à representação da família de Portsmouth, Hurstbourne, como de “pouco interesse”. Mas, sob uma oferta da casa de leilões Sotheby’s, o conteúdo dessa coleção, juntamente com obras de arte impressionista, foram levados a leilão em 1936, e vendidos por nove mil libras. John Maynard Keynes ficou com a maioria dos manuscritos referentes à alquimia (doando-‐os à Universidade de Cambridge); Abraham Yahuda comprou todo o volume de escritos teológicos, doando-‐os ao Estado de Israel, em 1961. A coleção, depois de uma seqüência de disputas, finalmente chegou à Biblioteca Nacional Judaica e Universitária de Jerusalém, em 1969.” (462)
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Retornando à vida e obra de Johannes, percebemos que, como a maioria dos grandes gênios de sua época, Kepler interessava-se e trabalhava em várias áreas do conhecimento. Aproveitamos as palavras de David Koch, pesquisador norte-americano da NASA e responsável pela missão espacial Kepler, que tem por objetivo buscar planetas habitáveis semelhantes à Terra, para descrever parte de
suas realizações:* (413)
“[...] ele também é considerado o fundador da óptica moderna. Ele foi o primeiro a investigar a formação de imagens com uma câmara pinhole (câmara escura), o primeiro a explicar o processo de visão por refração dentro do olho, o primeiro a formular projetos de lentes para miopia e hipermetropia, e o primeiro a explicar o uso dos dois olhos para a percepção em profundidade, tudo isso descrito em seu livro Astronomiae Pars Optica. No seu livro Dioptrice (um termo criado por Kepler e usado até hoje), foi o primeiro a descrever imagens reais, virtuais, em pé, invertidas e a ampliação (e criou todos aqueles diagramas em raio comuns nos manuais de óptica atuais), o primeiro a explicar os princípios do funcionamento de um telescópio, e o primeiro a descobrir e descrever as propriedades do reflexo interno total. Galileu pode ter usado o telescópio que Johann Lippershey havia inventado para descobrir as luas de Júpiter e ver as primeiras sugestões dos anéis de Saturno, mas foi Kepler quem explicou como o telescópio funciona.
Kepler provavelmente foi o primeiro astrofísico de verdade, no sentido moderno que damos ao termo, usando a física para explicar e interpretar fenômenos astronômicos. Foi o primeiro a explicar que as marés são causadas pela lua. No seu livro Astronomia nova, foi o primeiro a sugerir que o sol gira em torno do seu eixo. [...] No seu livro Stereometrica Doliorum Vinariorum, desenvolveu métodos para calcular o volume de sólidos irregulares que se tornaram a base do cálculo integral. E foi o primeiro a deduzir o ano de nascimento de Cristo que agora é universalmente aceito.
[...] Como ele conseguiu realizar tudo isso? Na verdade, considerando-‐se a época em que viveu e os parcos recursos disponíveis, como ele conseguiu fazer qualquer coisa?
Contexto é a chave da compreensão. Para compreender Kepler e suas façanhas, é preciso compreender a época em que ele viveu – a cultura, as pessoas, os lugares, a política, a religião e a sua família. As guerras,
* O ano de 2009 foi instituído pela ONU como o Ano Internacional da Astronomia, celebrando os 400 anos das primeiras observações telescópicas de Galileu Galilei e a publicação do livro Astronomia Nova por Johannes Kepler, que alterariam os paradigmas da ciência. Para mais informações, consultar http://kepler.nasa.gov/education/iya/. (Nota do Autor)
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a caça às bruxas, as pestilências e a morte eram coisas comuns do dia-‐a-‐dia. [...] Ele viveu à beira da miséria. Seu salário estava quase sempre atrasado. Seus únicos recursos eram papel, pena e um tesouro de observações de um único homem.” (405)
Utilizando os dados astronômicos diligentemente coletados durante trinta e oito anos consecutivos pelo astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546 – 1601), Kepler conseguiu comprovar de forma irrefutável o modelo heliocêntrico proposto pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473 – 1543). Após uma longa sequência de tentativas e erros, procurando e testando modelos que reproduzissem com precisão os movimentos planetários de acordo com as observações de Tycho, Kepler, experenciando um dos saltos mentais descritos por Einstein, deduziu matematicamente que a Terra e os demais planetas se movem em torno do Sol em órbitas elípticas, com o Sol ocupando um dos focos da elipse. Anunciada em 1605, esta descoberta, que ficaria conhecida como a Lei das Órbitas, ou Lei das Elipses, também assegurava que a Terra fica mais próxima do Sol no mês de janeiro e mais distante em julho.
A segunda lei de Kepler, ou Lei das Áreas, estabelece que ao percorrerem suas órbitas elípticas em torno do Sol, os planetas varrem áreas iguais em intervalos de tempo iguais. Esta lei atesta a existência de uma variação na velocidade dos planetas ao longo de suas órbitas, mais lenta quando ele está mais afastado do Sol e mais rápida quando está mais próximo.
t1
ABS=CDS e t1=t2
t2
A forma como Kepler demonstrou sua segunda lei tornou-se clássica, sendo utilizada até hoje nas escolas de nível médio: uma linha traçada de qualquer planeta ao Sol percorrerá áreas iguais em tempos iguais.
Em sua terceira lei, ou Lei Harmônica, Kepler descobriu que quanto mais distante do Sol maior será o tempo necessário para um planeta percorrer toda a sua órbita, estabelecendo a relação matemática entre a distância ao Sol e o tempo para um planeta completar uma revolução:
T2 / D3 = k
A equação acima, descrição matemática da terceira lei de Kepler, nos diz que o cubo do eixo maior da órbita de um planeta é proporcional ao quadrado do seu período de revolução, onde T indica o período de revolução, D é o eixo maior da órbita e k é uma constante. Esta equação permite, por exemplo, calcular a altitude que deverá ser lançado um satélite a ser colocado em órbita Terra, para que ele passe sobre os pontos na superfície com um intervalo de tempo
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previamente determinado ou que permaneça em uma órbita geoestacionária, permitindo a existência de nossos mecanismos de comunicação global e dos dispositivos de localização por GPS (Global Positioning System).
Em conjunto, as leis de Kepler lhe permitiram produzir novas tabelas astronômicas, apontando com precisão a posição dos planetas em qualquer momento do passado, presente ou futuro. Em sua época, não havia um fronteira bem definida entre astronomia e astrologia e, para suprir as necessidades básicas de sua família, ele aplicou estes mesmos conhecimentos à confecção de mapas astrológicos. Ironicamente, Kepler seria mais conhecido e respeitado em seu tempo por suas previsões astrológicas e horóscopos.
Kepler tirou a Terra de sua posição central e colocou-a em movimento, alterou as órbitas dos planetas de círculos perfeitos para eclipses e mostrou como calcular com precisão a posição dos corpos celestes no espaço. Porém, bem mais que a correção de um modelo astronômico, ao tirar definitivamente a Terra de seu
posto no centro do Universo*, Kepler destronaria o ser humano de seu lugar privilegiado na Criação, colocando por terra os dogmas teológicos estabelecidos até então e abriria as portas para a busca pela compreensão das origens e significado da própria existência humana.
O modo de trabalho de Kepler trouxe-nos ainda um benefício adicional, ao
introduzir o uso sistemático do método científico.† Diferentemente de Aristóteles, Kepler tratou em conjunto as observações precisas de Tycho e suas próprias conjecturas mentais. Por ocasião do terceiro centenário de sua morte, em 1939, Albert Einstein faria o seguinte comentário sobre o processo de trabalho de Kepler:
“Aparentemente a mente humana necessita criar independentemente as formas para depois identificá-‐las nas coisas. A conquista formidável de Kepler exemplifica muito bem que o conhecimento não brota apenas da experiência, mas também da comparação das criações do intelecto em conjunto com o fato observado.” (418)
Para que se tenha uma correta dimensão das contribuições de Copérnico e Kepler, é preciso levar em consideração as crenças religiosas, filosóficas e
* A palavra Universo é derivada da concepção equivocada de que a Terra estava fixa, no centro de toda a criação, e que os demais objetos celestes giravam todos em uníssono ao seu redor. Deste modo, o conjunto dos objetos celestes passou a ser chamado de "aquilo que gira como algo único", ou unus verterem, em latim. (Nota do Autor) † A maioria dos historiadores da ciência creditam a pensadores islâmicos, destacando-se o persa multidisciplinar al-Hasan ibn al-Haytham (965 - ≅ 1040), o pioneirismo no uso de métodos rigorosos de experimentação, de quantificação e de testes controlados, para a verificação de hipóteses teóricas, fundamentando o raciocínio lógico e indutivo. Inspirados por estes predecessores islâmicos, os filósofos britânicos Roger Bacon (1214 – 1294) e Francis Bacon (1561 – 1626) ao lado de René Descartes (1596 - 1650), filósofo e matemático francês, completariam a definição do método científico, orientando a forma de trabalho da ciência atual. (Nota do Autor)
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culturais, assim como as instabilidades políticas daquela época. A mudança de paradigma introduzida por estes dois homens se tornaria fundamental na separação formal entre ciência e religião, alterando definitivamente o equilíbrio de forças pré-existente e determinando o rumo do desenvolvimento científico e tecnológico.
O modelo cosmológico aceito pelos teólogos de então era originário das idéias do pensador grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), descritas em seu livro Do céu (De Caelo). Aristóteles concluiu que a Terra era esférica, a partir da observação de que a sombra que ela projetava na Lua durante os eclipses era sempre redonda, e também pelo fato do casco de um navio desaparecer de vista antes das velas, à medida que ele se afasta da terra, contrariando a crença anterior de que o mundo seria achatado. Estas conclusões acertadas de Aristóteles foram baseadas em suas observações e em um raciocínio indutivo e objetivo.
Já a visão geocêntrica de Aristóteles foi construída a partir de algumas evidências, que ele acreditou estarem corretas, de que a Terra encontrava-se em repouso e que o Sol, a Lua e os demais planetas conhecidos em seu tempo, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, giravam em torno da Terra em órbitas perfeitamente circulares. Não sendo um experimentalista, Aristóteles permitiu que o senso comum o conduzisse a este equívoco, não percebendo que a força que mantém a Terra, a Lua e todos os planetas em suas órbitas é a mesma força que atrai uma maça ao chão e nos mantém presos à Terra. (417)
Em outra ocasião, Einstein nos brindaria com algumas palavras
complementares sobre a importância da experimentação:*
“O raciocínio lógico puro não é capaz de nos munir de conhecimentos sobre o mundo empírico, todo o conhecimento da realidade parte da experiência e nela termina. Conclusões alcançadas puramente a partir dos meios lógicos são totalmente vazias do ponto de vista da realidade.” (418)
Cerca de cinco séculos após Aristóteles publicar sua teoria cosmológica, o astrônomo egípcio Ptolomeu (87 – 150 d.C.), aperfeiçoando o modelo geocêntrico de Aristóteles, criaria um novo modelo que calculava com mais precisão os movimentos planetários. Sem motivos para discordar, o modelo de Aristóteles e Ptolomeu foi adotado pelos teólogos da cristandade ocidental, contribuindo
* Em 1936, Einstein teria dito que "A ciência, como um todo, não é nada mais do que um refinamento do pensar diário", criando um paradoxo com suas próprias afirmações posteriores sobre a metodologia científica. Certamente o comentário mais antigo de Einstein deve ser aplicado apenas às mentes privilegiadas como a dele. (Nota do Autor)
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fortemente para que o mesmo permanecesse praticamente inalterado por cerca de quinze séculos.
Certamente um modelo heliocêntrico já havia sido especulado anteriormente, como o de Aristarco de Samos (310 a.C. – 230 a.C.), astrônomo grego posterior a Aristóteles. Mas foi somente a partir de Copérnico que esta idéia disseminou-se e passou a ser levada a sério, ensinando o homem a ser modesto”, nos dizeres de Einstein, apesar da forte resistência dos adeptos da corrente ortodoxa. Segundo observação do físico teórico inglês Stephen Hawking (1942 - ), a atuação dos responsáveis pela condução política da cristandade ocidental foi determinante para a estagnação da ciência:
“Muitos estudiosos modernos acreditam que a aceitação universal dessa teoria pelas autoridades religiosas retardou o progresso da ciência, uma vez que desafiar as teorias aristotélicas significaria pôr em questão a autoridade da própria Igreja.” (411)
Copérnico, para escapar da Inquisição, postergou ao máximo a publicação de seu livro Sobre as revoluções, no qual descrevia o movimento da Terra e dos outros planetas em torno Sol, embora ainda se apegasse à noção antiga de órbitas circulares. Um exemplar da primeira edição, ricamente ilustrada, foi finalizado a tempo de lhe ser entregue no dia em que morreria. Porém, grande deve ter sido o seu pesar ao constatar, em seu leito de morte, a inclusão de um novo prefácio, propositalmente sem assinatura de modo a parecer que era de sua própria autoria, no qual era declarado que as idéias apresentadas naquele livro eram apenas hipóteses matemáticas, pouco representativas da realidade, e que não precisavam ser verdade ou mesmo demonstráveis como tal”. A farsa somente seria desmascarada por Kepler em 1609, ao revelar que o verdadeiro autor do prefácio teria sido o teólogo luterano alemão Andreas Osiander (1498 – 1552), a cargo de quem estava a supervisão da publicação. A motivação de Osiander para alterar o texto de Copérnico sem o seu consentimento, seria aplacar a ira dos defensores da teoria geocêntrica. (406)
Em 1616, sete anos após a publicação das duas primeiras leis de Kepler, ainda tentando bloquear o avanço da ciência e a preservação de dogmas que lhe eram tão caros, a Igreja Católica publicaria um édito proibindo a propagação da doutrina de Copérnico. Comprovando serem fundamentados os temores do astrônomo polonês, noventa anos após sua morte, em 1633, o matemático e astrônomo italiano Galileu Galilei (1564 – 1642) seria levado a julgamento em Roma, perante a Inquisição, sob a acusação de heresia. Seu crime teria sido a publicação do livro Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo: copernicano e ptolomaico, onde deixava claro sua preferência pelo sistema
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heliocêntrico. Para escapar da fogueira, Galileu foi obrigado a assinar uma confissão de próprio punho, renunciando às suas idéias. (412)
Ao tomar a decisão de renegar sua concepção do universo, Galileu certamente deve ter refletido sobre o destino do frade e astrônomo italiano Giordano Bruno (1548 – 1600), também preso e julgado por heresia pela Inquisição devido ao fato de ter se manifestado publicamente em defesa da tese de um universo infinito e povoado por infindáveis estrelas como o Sol e por outros
planetas.* Considerado um dos pioneiros da filosofia moderna e de ter influenciado fortemente os filósofos Baruch de Espinosa (1632 – 1677) e Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646 – 1716), Giordano Bruno, ao recusar-se a negar suas crenças, foi condenado e queimado vivo na fogueira, com uma tábua de pregos presa à sua língua. Este último detalhe, talvez tenha sido o preço adicional por ter dito aos seus juízes uma frase histórica, ao ser obrigado, de joelhos, a ouvir sua sentença, em 08 de fevereiro de 1600: (416)
"Talvez sintam maior temor ao pronunciar esta sentença do que eu ao ouvi-‐la."
Na opinião de Stephen Hawking, a mais eloquente descrição das contribuições de Copérnico, possivelmente tenha sido produzida pelo filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749 – 1832):
“De todas as descobertas e opiniões, nenhuma pode ter tido um efeito maior sobre o espírito humano do que a doutrina de Copérnico. Mal o mundo se tornara conhecido como redondo e completo em si mesmo, pediu-‐se que ele abrisse mão do enorme privilégio de ser o centro do universo. Talvez nunca se haja pedido tanto da humanidade – pois, ao admiti-‐lo, quanta coisa não desapareceria na bruma e na fumaça! Que aconteceu com o Éden, nosso mundo de inocência, piedade e poesia; como o testemunho dos sentidos; com a convicção de uma fé poético-‐religiosa? Não admira que seus contemporâneos não hajam querido deixar tudo isso ir embora e tenham oferecido toda a resistência
* Diferentemente das informações comumente ensinadas nas escolas de ensino fundamental e ensino médio, o Sol não é uma estrela relativamente insignificante. Atualmente presume-se que o Sol seja mais brilhante que 85% das estrelas da Via Láctea e que, entre as 50 estrelas mais próximas do sistema solar, no raio de até 17 anos-luz de distância (a estrela mais próxima de nós é a anã vermelha Proxima Centauri, que dista aproximadamente 4,2 anos-luz de nós), o Sol seja a quarta estrela no quesito massa, com um diâmetro equatorial de 1,392 milhões de quilômetros, ou 109 vezes o diâmetro da Terra e peso de cerca de 2 x 1030 Kg, ou 330.000 vezes o peso da Terra, correspondendo a 99,86% da massa total do Sistema Solar. (349)
Outra estimativa interessante, realizada em outubro de 2010 por cientistas norte-americanos e baseada na análise de 166 estrelas parecidas com o Sol localizadas a uma distância de até 80 anos-luz, considera que planetas semelhantes à Terra, com até duas vezes a sua massa, seriam os mais comuns, podendo ser encontrados em um quarto destas estrelas. (384) (Nota do Autor)
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possível a uma doutrina que autorizava e exigia daqueles a ela convertidos uma liberdade de visão e uma grandeza de pensamento até então desconhecidas, e mesmo jamais sonhadas.” (410)
Curiosamente, para comprovar o sistema heliocêntrico de Copérnico, Kepler utilizou-se dos dados de Tycho Brahe, fervoroso partidário do modelo que previa a centralidade da Terra e estava de acordo com os dogmas religiosos do Cristianismo da época. Apesar de suas convicções filosóficas e religiosas, Tycho percebia as disparidades existentes entre suas observações astronômicas e o modelo Ptolomaico e ansiava por melhorá-lo, tornando-o mais preciso e capaz de explicar de forma adequada os movimentos celestes por ele catalogados. E, de preferência, gostaria de realizar sua obra sem criar indisposições com a Igreja. A partir destas premissas, Tycho pretendia criar um novo modelo cosmológico que levasse o seu próprio nome, mas para conseguir realizar esta proeza ele precisava da ajuda de alguém metódico, com conhecimentos simultâneos e profundos de astronomia e matemática, e que não tivesse um nível de nobreza semelhante ao seu, de forma a evitar uma possível competição pelos direitos de autoria do novo modelo.
Então, quando Tycho Brahe, residindo na cidade de Praga, para onde havia se mudado em junho de 1599 ao aceitar o posto de matemático imperial, convidou Kepler para trabalhar com ele, alguns meses após assumir o novo cargo, certamente tinha em mente utilizar as habilidades matemáticas de Kepler na análise de suas observações astronômicas para ajudá-lo a alcançar o seu intento de construir um novo modelo cosmológico. Tycho estava então com quase 54 anos de idade e já devia sentir o peso da corrida contra o tempo. Entretanto, o início deste relacionamento foi bastante conflituoso e, talvez por perceber as convicções de Kepler, frontalmente opostas às suas, Tycho Brahe liberava a Kepler apenas uma pequena parte de suas anotações, conforme comenta o escritor e professor de inglês James A. Connor, em seu livro A Bruxa de Kepler:
“Não havia dois homens mais diferentes do que eles. Tycho era nobre, acostumado com riquezas e privilégios, com freqüência desconfiando dos outros e temeroso de que alguém lhe roubasse as descobertas, lhe mascateasse a fama no meio da noite. [...] Kepler, por outro lado, era franco, a ponto de ser ingênuo. Ele podia ser desconfiado, sovina e irascível, mas não imaginava ficar remoendo suas idéias como Tycho havia feito. [...] Tycho era um consumado extrovertido, sempre rodeado pela família, pelos amigos e criados. Vivia numa grande mansão em estilo dinamarquês, barulhenta, e apreciava refeições intermináveis temperadas com conversas sobre ciência, filosofia, religião e as notícias do dia. Kepler, por outro lado, preferia a sua
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própria companhia e a tranquilidade de seu estúdio, onde recalculava seus números e exercitava suas idéias.
[...] Tycho protegia as suas observações como uma loba guarda os filhotes, e mostrava a Kepler apenas aquelas que eram pertinentes ao trabalho que esperava dele. Essa mesquinharia era um sintoma da idade. Kepler tinha a mente mais aberta do que a maioria e, de certa forma, era mais moderno. Ficava furioso porque outros astrônomos, inclusive o seu professor Michael Mästlin, se recusavam a colaborar uns com os outros, guardavam suas próprias observações como dragões e escondiam seus dados como se fossem tecidos de ouro. Ao longo de toda a sua carreira, Kepler incentivou outros astrônomos a compartilharem os seus trabalhos, a promoverem o conhecimento geral, mas teve poucas respostas. Cada astrônomo estava preocupado demais com a sua reputação, o seu lugar na corte e com as opiniões dos seus patronos, como se um único homem pudesse ser dono de todo o conhecimento. Tycho era típico de sua época, mais interessado em promover a sua própria fama do que a disciplina.
[...] Tycho rejeitava Copérnico baseando-‐se na teologia, enquanto Kepler o adotava apoiando-‐se também em fundamentos teológicos. Tycho acreditava que se os homens foram criados à imagem de Deus, então o seu pequeno lugar no Universo tinha de ser o centro. Deus os colocou ali para que pudessem ter uma boa visão do grande espetáculo cósmico e, por conseguinte, louvar e honrar a Deus ainda mais. [...] Kepler concordava em princípio, mas o sistema de Tycho ainda parecia excessivamente complexo e difícil de manejar para ele, uma acomodação tipo colcha de retalhos que não levava em conta a elegância do plano de Deus. O plano de Deus tinha de ser racional, e racional significava geométrico, e geométrico significava elegantemente simples. E, portanto, enquanto Tycho pensava como um astrônomo, Kepler pensava como um matemático.” (404 e 407)
Além da influência teológica, Kepler orientava seu raciocínio indutivo pelas soluções mais simples e elegantes, seguindo a Lei da Parcimônia, ou Navalha de Ockham, por ele adotada como fator de refinamento de seu trabalho. Esta ferramenta da lógica, criada pelo teólogo e filósofo inglês William de Ockham (1285-1349), estabelece a premissa de que ao existirem várias formas de explicação para algo, a mais simples deverá ser a correta, pregando ainda que a menos que seja necessário, não se deve introduzir complexidades ou suposições em um argumento porque não só o resultado será menos elegante e convincente, como também terá maiores probabilidades de estar errado. (204 e 205)
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Por vários meses os desentendimentos entre Tycho e Kepler foram uma constante. Mas, após quase um ano de convivência, passaram a se entender bem e Kepler pensou que finalmente teria um período de paz em sua vida.
“[...] Tycho o apresentou ao imperador, que recebeu Kepler com generosidade e o designou para colaborar com Tycho na compilação de novas tabelas astronômicas baseadas em suas observações. [...] Kepler foi incluído no projeto como colaborador, não como um assistente ou empregado. [...] Tycho também fez algo que havia feito com muito pouca gente antes. Sabendo que só Kepler poderia provar as suas teorias tychônicas, Tycho confiou-‐lhe seus preciosos dados, as chaves para o seu reino celeste. Kepler de repente tinha tudo que precisava.” (408)
No entanto, paz não era algo que estava previsto existir na vida de Kepler. Pouco tempo depois de apresentá-lo ao imperador, Tycho contrairia a doença que
o levaria à morte em poucos dias, falecendo em 24 de outubro de 1601.* Dois dias após a morte prematura do astrônomo dinamarquês, o imperador Rudolf II (1552 - 1612) nomeou Kepler como seu matemático imperial e confiou aos seus cuidados todos os instrumentos e anotações de Tycho. Assim, Kepler, antecipando-se aos familiares e legítimos herdeiros, com quem passaria a ter problemas a partir de então, tomou posse dos preciosos dados que lhe permitiram conquistar um lugar na história.
Os anos vividos em Praga, entre 1600 e 1612, certamente, foram os mais tranquilos na atribulada vida de Kepler, porém, a permanência na corte imperial da família Kepler terminaria com a morte do imperador Rudolf II. Considerado um bom católico, Rudolf II promovia o trabalho de jesuítas e capuchinhos, enquanto, possuidor de uma personalidade tolerante, esforçava-se por manter a paz com os luteranos. Interessado em esclarecer os mistérios da vida, Rudolf II patrocinou e reuniu em Praga grandes mentes da Europa, tornando o seu castelo um lugar onde a presença de cientistas como Tycho e Kepler, além de artistas, pintores, filósofos e místicos era uma constante.
Em 1611, após desentendimentos internos de cunho político-religioso entre os membros da família Habsburgos, herdeira do Sacro Império Romano, Rudolf II foi forçado a abdicar por seu irmão mais novo, o arquiduque Matthias (1557 – 1616). De temperamento radical, Matthias considerava condescendente demais a política de seu antecessor com os protestantes, sendo este o principal motivo da * Oficialmente, Tycho Brahe teria sido vitimado por uma infecção urinária. Entretanto, testes realizados com amostras de seu cabelo e bigode, por ocasião de uma exumação realizada em 1901, teriam detectado elevados níveis de mercúrio, levantando suspeitas de envenenamento. Em novembro de 2010, sua tumba tornou a ser aberta e um novo estudo poderá esclarecer as causas de sua morte. (Nota do Autor)
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discórdia familiar. Apesar de ter deposto o irmão mais velho, Matthias permitiu que ele mantivesse o título de imperador e continuasse vivendo em seu palácio imperial, próximo aos seus tesouros e brinquedos com que havia equipado parte do palácio em Praga, transformada em espécie de museu. Entretanto, abatido pela perda efetiva do poder e com a saúde fragilizada, Rudolf II sobreviveria apenas um ano após sua deposição. Com a morte de seu protetor e o recrudescimento das ações contra os luteranos, após Matthias assumir oficialmente o império, Kepler sentiu-se forçado a deixar Praga.
Sete anos após Kepler ter partido de Praga, agora sob o império de Ferdinand II (1578 – 1637), sucessor de Matthias, falecido três anos antes, um incidente entre católicos e protestantes, ocorrido no palácio imperial tantas vezes frequentado pelo matemático imperial de Rudolf II, daria início a Guerra dos Trinta Anos que dizimaria a Alemanha e a Áustria. Este conflito tornaria Kepler um virtual exilado, forçando-o a abandonar várias cidades e empregos, e o perseguiria até o túmulo.
Kepler nasceu em 27 de dezembro de 1571, na cidade alemã de Weil der Stadt e durante sua vida colecionou uma série de infortúnios marcantes. Em sua infância, precisou conviver com um pai mercenário que passava grandes períodos fora de casa lutando como soldado em guerras que não lhe pertenciam. De temperamento grosseiro, quando permanecia em casa maltratava a família, chegando até mesmo a tentar vender como escravo o irmão caçula de Johannes. Aos três anos de idade, Kepler quase morreu de um ataque de varíola, doença que lhe desfigurou as mãos e prejudicou sua visão, causando-lhe miopia e estrabismo.
Sentindo-se limitado em suas opções profissionais por causa dos problemas físicos contraídos na infância, Kepler tencionava seguir uma carreira religiosa, ambicionando lecionar na faculdade de teologia em Tubingen, local de sua formação. Entretanto, desentendimentos entre os membros daquela universidade levaram-no a aceitar um posto de professor de matemática e astronomia em uma escola protestante na cidade de Graz, na Áustria. Foi desse modo que aos 22 anos de idade, Kepler ingressaria em uma carreira profissional dedicada à ciência. Sendo um homem profundamente religioso, tornaria-se também obcecado por entender com precisão o funcionamento do universo criado por Deus.
Devido às suas crenças, Kepler partiria de premissas falsas em busca das respostas que procurava. Neste caminho, assombrado pelos resultados obtidos por meio de árduo trabalho, testando os dados das observações astronômicas de Tycho Brahe em diversos modelos matemáticos, Kepler precisaria confrontá-los com suas crenças e arquitetar um universo que abarcasse a ambos. Precisaria abandonar a perfeição do círculo pela realidade das elipses. Kepler conseguiria o
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seu intento, e morreria pensando que desvendara os mistérios da criação. Destruiu dogmas que perduravam por mais de mil e quinhentos anos, mas foi iludido por suas próprias crenças. Ainda assim, apesar de enganado, Kepler mudaria o mundo. Tal proeza é descrita por Marcelo Gleiser:
“(...) Foi durante uma aula para um grupo de alunos sonolentos que Kepler teve a visão que mudaria a sua vida. Quando explicava os movimentos dos planetas Júpiter e Saturno, percebeu algo que antes não dera o significado devido: o fato de Saturno ser duas vezes mais distante do Sol que Júpiter não podia ser uma coincidência. Dentro da ideologia pitagórico-‐cristã, se Deus era o arquiteto cósmico, o arranjo dos céus não podia ser ao acaso. Deveria, por exemplo, haver alguma explicação para o número de planetas ser seis, e não três ou vinte e cinco. E o que determinava as suas distâncias em relação ao Sol? Kepler sabia que, de alguma forma, a resposta tinha que envolver a geometria.
Passou semanas trabalhando, procurando por um modelo geométrico do cosmo. Tentou diversas possibilidades, mas nada parecia funcionar. Sua frustração aumentava a cada dia. De repente, num momento de grande intuição, entendeu. Como suspeitara, era mesmo a geometria que determinava a estrutura do cosmo, isto é, o número de planetas e as distâncias entre eles e o Sol. Kepler sabia que, em três dimensões espaciais, existiam apenas cinco sólidos perfeitos, os chamados sólidos platônicos: nenhum outro sólido tridimensional fechado pode ser construído a partir de apenas um objeto bidimensional (triângulos, quadrados e pentágonos). Os dois mais familiares são o cubo (feito de seis quadrados) e a pirâmide (feita de quatro triângulos equiláteros). Os outros três são o octaedro (oito triângulos equiláteros), o dodecaedro (doze pentágonos) e o icosaedro (vinte triângulos equiláteros). [...] Kepler imaginou que os cinco sólidos deveriam se encaixar um dentro do outro, como num quebra-‐cabeça (as bonecas russas). Entre cada dois sólidos, uma esfera imaginária localizava a órbita planetária... O surpreendente era que cinco sólidos permitem apenas seis esferas entre eles, isto é, apenas seis planetas... Ademais, as distâncias entre as esferas eram determinadas precisamente pelas leis da geometria. Após experimentar com alguns arranjos para os cinco sólidos, Kepler encontrou um que coincidia, com uma precisão surpreendente, com as distâncias entre os planetas medidas pelos astrônomos.
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Com essa sacada genial, Kepler “resolveu” o maior mistério da astronomia, explicando a priori não só por que existiam apenas seis planetas, mas também as suas distâncias em relação ao Sol. Jamais seria o mesmo após essa revelação. Morreu acreditando ter decifrado a estrutura do cosmo, que a matemática permitiu-‐lhe vislumbrar a mente de Deus. Como afirmavam os filósofos pitagóricos da Grécia Antiga, a solução ocultava-‐se na geometria (...)
Com apenas 26 anos, Kepler acreditou ter desvendado o mapa da Criação. Deus havia mesmo usado a geometria para construir o mundo. Cabia aos homens usar a razão para estudar a Natureza. Essa era a verdadeira devoção religiosa, louvar a Deus através da Sua obra, fazer preces das equações.
[...] Rodeei o modelo cósmico de Kepler algumas vezes, admirando a sua beleza.* Ali estava a visão de um homem brilhante, a primeira versão concreta da Teoria final, a suposta solução a priori da estrutura do universo, baseada apenas em proporções geométricas: um cosmo criado pela mente humana. Para Kepler, a ordem, as proporções perfeitas, a simetria refletiam a glória de mente de Deus. Mesmo após ter revolucionado a astronomia, provando que as órbitas eram elípticas e não circulares, Kepler continuou acreditando no seu modelo geométrico (...) A busca por uma harmonia cósmica era o que dava significado a sua vida.
[...] Como alguém tão errado poderia estar tão convicto de estar certo? Temos muito o que aprender com o erro de Kepler. A partir da nossa perspectiva moderna, é fácil ridicularizar a sua criação, chamá-‐la de delirante. Afinal, são oito planetas no sistema solar, e não seis. Se Kepler pudesse vê-‐los todos a olho nu, não haveria proposto o seu modelo, e sua carreira teria tomado um outro rumo. Sua visão limitada da realidade foi sua benção. Na época, todos acreditavam que só existiam seis planetas; seu modelo refletia esse fato. Mesmo que a ciência tenha avançado enormemente nos últimos quatro séculos, o que ocorreu com Kepler continua a ocorrer nos dias de hoje: construímos nossa visão de mundo com os dados que temos no momento. Em outras palavras, nossa visão de mundo depende fundamentalmente do que podemos medir. O erro de Kepler foi ter acreditado que sua criação era tão perfeita que transcendia os limites
* Em suas pesquisas para o romance A harmonia do mundo, publicado em 2006, Marcelo Gleiser esteve em Praga e visitou a casa em que viveu Kepler, atualmente um museu, onde há uma réplica em bronze do modelo cósmico de Kepler para o sistema solar. (Nota do Autor)
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mundanos da realidade. Para ele, a ordem que vislumbrou era bela demais para não ser verdadeira.
[...] Como explicar então o sucesso de Kepler? Em uma palavra, “busca”. Acreditar numa idéia é a condição básica para tentar prová-‐la correta. Tal como o viajante que acredita na Terra Prometida e sai pelo mundo buscando por ela, descobrindo novos lugares pelo caminho, muitas das descobertas importantes da ciência ocorreram durante a busca por objetivos que nunca foram atingidos. Vemos a visão suspensa ao longe, como uma miragem, e fazemos de tudo para chegar a ela. Kepler ilustra bem esse ponto. Usando os dados astronômicos de Tycho Brahe com o intuito de comprovar a estrutura cósmica que propôs no Mysterium, Kepler acabou por descobrir as três leis que regem os movimentos planetários em torno do Sol, as primeiras leis matemáticas da astronomia moderna.
Hoje sabemos que as leis de Kepler não se limitam ao nosso sistema solar: qualquer sistema estelar pode ser descrito por suas leis. Muito provavelmente, ficaria chocado se alguém lhe revelasse que o sistema solar tem oito e não seis planetas e que, portanto, o seu sistema com cinco sólidos platônicos é inviável. Por outro lado, sem dúvida ficaria muito feliz em saber que as suas três leis são válidas em todo o cosmo.” (332)
Retornando à vida pessoal de Kepler, encontramos grandes dificuldades, presentes praticamente em toda a sua vida. De seu primeiro casamento, devido às enfermidades e pestes daquela época, perdeu dois filhos recém nascidos, em um espaço de menos de dois anos, deixando-o arrasado. Mais tarde, em 1611, perderia outro filho aos seis anos de idade e, logo em seguida, a esposa. De seu segundo casamento, em 1613, teve seis filhos, dos quais três morreram em sua primeira infância. Em 1617, perderia a enteada de seu primeiro casamento, a quem adorava e criara como se fosse sua própria filha. Sua própria saúde também não era das melhores, obrigando-o por diversas vezes a manter-se recolhido ao leito por longos períodos.
Constantemente, Kepler viu-se obrigado a fugir de uma cidade após a outra, abandonando o emprego, devido a revoltas religiosas e rebeliões políticas. Por causa da Contra-Reforma, em 1619, Kepler foi excomungado por sua própria igreja, a luterana, a quem seria fiel até o final de sua vida, sendo por este motivo perseguido simultaneamente por católicos e protestantes. Naquele mesmo ano de 1619, Katherine, a excêntrica mãe de Kepler, conhecida por produzir poções de ervas para diversos propósitos, seria acusada de bruxaria e brutalmente torturada, exigindo grande esforço, dispêndio de recursos e longa dedicação de sua parte para livrá-la da fogueira. Kepler ficaria preso à causa de sua mãe até o
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encerramento do processo, em novembro de 1621, quando ela seria finalmente libertada. Entretanto, debilitada pelos maus tratos recebidos na prisão, viria falecer cerca de um ano mais tarde. (414)
Diferentemente de Copérnico, em quem se inspirava na condução de seu trabalho, a vida de Kepler não foi nada tranqüila. Para alcançar o status de pai da mecânica celeste, Kepler precisou enfrentar os familiares de Tycho Brahe, que dificultaram de vários modos, inclusive com ações judiciais, a publicação de suas obras que mencionavam os dados do astrônomo dinamarquês. Apesar de suas realizações, Kepler não recebeu em vida o devido reconhecimento, aparentando ele próprio não ter a exata dimensão da importância de seu trabalho. Sempre com pouco dinheiro, precisava com frequência recorrer à publicação de calendários astrológicos e horóscopos para complementar seus rendimentos.
Mas afinal, que força moveu Kepler a realizar sua obra lutando contra tantos obstáculos? Possivelmente o sentimento que o guiou em sua jornada tenha sido sua profunda religiosidade, termo empregado aqui com o mesmo significado da religiosidade professada e descrita pelo físico Albert Einstein, trezentos anos mais tarde, em alguns de seus pensamentos, transcritos a seguir:
“A condição dos homens seria lastimável se tivessem de ser domados pelo medo do castigo ou pela esperança de uma recompensa depois da morte.“
“A característica do homem religioso consiste no fato de ter se libertado das algemas do seu egoísmo, construindo, por seu modo de pensar, sentir e agir, um mundo de valores suprapersonais, aprofundando e ampliando cada vez mais o seu impacto sobre a vida.”
“A percepção do desconhecido é a mais fascinante das experiências. O homem que não tem os olhos abertos para o mistério passará pela vida sem ver nada.”
“O mecanismo do descobrimento não é lógico e intelectual, é uma ilusão subcutânea, quase um êxtase.”
“A mente avança até o ponto onde pode chegar; mas depois passa para uma dimensão superior, sem saber como lá chegou. Todas as grandes descobertas realizaram esse salto.”
“Sem a convicção de uma harmonia íntima do Universo, não poderia haver ciência.”
“Eu quero saber como Deus criou este mundo. Não estou interessado neste ou naquele fenômeno, no espectro deste ou daquele elemento. Eu quero conhecer os pensamentos Dele, o resto são detalhes.”
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“O mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência. O homem que desconhece esse encanto, incapaz de sentir admiração e estupefação, esse já está, por assim dizer, morto e seus olhos se cegaram. Aureolada de temor, é a realidade secreta do mistério da religião. Homens reconhecem então algo de impenetrável a suas inteligências, conhecem porém as manifestações desta ordem suprema e da Beleza inalterável. Homens se confessam limitados e seu espírito não pode apreender esta perfeição. E este conhecimento e esta confissão tomam o nome de religião. Deste modo, mas somente deste modo, sou profundamente religioso, bem como estes homens.”
Apesar de todos os problemas enfrentados por Kepler, ele manteve-se produtivo, pesquisando e escrevendo prolificamente por quase toda a sua vida adulta. Complementando os pensamentos de Einstein, James A. Connor ressalta o exemplo de grande força moral que foi a vida deste matemático e astrônomo alemão:
“Grandes personalidades aparecem de repente neste mundo. O que as faz serem grandes é complicado. Alguns dizem que Kepler foi um gênio, o que certamente ele foi, mas a sua inteligência científica não foi a fonte da sua grandeza. Johannes Kepler foi uma das mentes científicas mais poderosas do seu século – ele foi páreo para Galileu em quase todos os aspectos, um precursor de Newton, um homem que havia desbravado o caminho para a maioria das descobertas importantes que definiram a ciência do século dezessete. E, no entanto, Kepler também foi grande do modo como Gandhi e Martin Luther King Jr. Foram. Ele foi um homem que lutou pela paz e pela reconciliação entre as igrejas cristãs, mesmo quando isso por pouco lhe custava a vida. Algumas pessoas nascem para serem grandes; algumas se tornam grandes pelos acontecimentos de sua época. Outras, como King, Gandhi e Kepler tornam-‐se grandes porque fazem escolhas repletas de coragem moral.” (409)
Johannes Kepler faleceu em 15 de novembro de 1630, aos 58 anos, por causa do agravamento de um resfriado contraído quando encontrava-se em meio a uma viagem para resgatar os lucros de algumas ações e cobrar o pagamento de uma dívida. Uma vez mais ele encontrava-se em dificuldades financeiras. Kepler foi enterrado no cemitério protestante de São Pedro, na cidade de Regensburg, na Bavária, Alemanha. Mesmo morto e enterrado, continuou a ser perseguido pela Guerra dos Trinta Anos: dois anos depois de sua morte, uma batalha entre católicos e protestantes destruiria o seu túmulo. Até a presente data se desconhece a localização dos restos mortais de Kepler. No local do cemitério foi
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construído um parque e erigido um memorial em sua homenagem. A lápide de seu túmulo, também perdida, trazia a seguinte inscrição, redigida pelo próprio Kepler:
“Eu costumava medir os céus, Mas agora meço as sombras da terra. Embora minha alma fosse dos céus, A sombra do meu corpo aqui jaz.”
Retornando ao tema que gerou este capítulo, a importância dos dispositivos de cálculo, resolvemos finalizá-lo com algumas palavras de Isaac Asimov (1920 - 1992), norte-americano de origem russa, Ph.D. e professor de bioquímica, conhecido principalmente por suas obras de ficção e de divulgação científica. Segundo Asimov, os computadores, descendentes diretos dos primeiros instrumentos de calcular, contribuem para tornar o ser humano verdadeiramente humano. A história parcialmente transcrita a seguir, publicada em 1977, ilustra o impacto causado por um simples instrumento de cálculo na vida e obra de Kepler:
“Nos anos de 1620, o astrônomo alemão Johannes Kepler estava procurando elaborar tabelas que pudessem predizer a posição dos vários planetas no céu, em qualquer tempo determinado, no futuro.
Não era uma tarefa nova. Os antigos babilônios haviam preparado tabelas dessa espécie; o mesmo haviam feito os gregos, e também os eruditos medievais. Alguns deles estiveram interessados no problema, porque tinha significação astrológica; outros, porque permitia lançar uma vista de olhos na mecânica que fazia o Universo funcionar.
Kepler estava interessado, de coração, pelos dois aspectos, e também teve pela frente uma tarefa enormemente difícil. Sem dúvida, ele possuía o registro de cuidadosas observações em torno das posições planetárias, do passado. Tinha, igualmente, uma nova teoria que ele mesmo elaborara – a de que os planetas não se moviam em círculos ao redor do Sol, e sim em elipses.
Os cálculos, pois, teriam de ser feitos na base da nova teoria, e não eram, de forma alguma, parecidos com os que haviam sido feitos por astrônomos anteriores. Kepler estava trabalhando em terreno novo, e tinha de fazer certa quantidade de multiplicações e divisões. Isso lhe tomaria um tempo enorme, e a cada passo haveria a oportunidade de erros aritméticos, de modo que ele se via obrigado a controlar e recontrolar. Já contava com 50 anos de idade, e a duração da vida não era longa naqueles tempos. Viveria ele o suficiente para ver o fim do seu trabalho?
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Felizmente, um matemático escocês, John Napier, havia concebido um sistema daquilo que ele denominou “logaritmo”. Em 1614, produziu longas tabelas em que cada número tinha outro número – o logaritmo – alistado para ele. Se se somassem os logaritmos de dois números, o resultado seria o logaritmo do produto dos números. Somando (e fazendo uso da tabela), fazia-‐se o trabalho da multiplicação.
De igual maneira, se se subtraísse o logaritmo e um número do logaritmo de outro número, o resultado seria o logaritmo do quociente. Subtraindo, fazia-‐se o trabalho da divisão.
É mais fácil somar do que multiplicar, e mais fácil subtrair do que dividir. Deste modo, o uso dos logaritmos proporcionava um atalho tremendo no campo dos cálculos aritméticos.
Com grande alívio, Kepler agarrou a tábua de logaritmos, e pô-‐la no primeiro uso importante da História. A tarefa, ainda assim, lhe tomou longo tempo; mas, então, ele pôde concluir o trabalho dentro daquilo que lhe restou de vida. Suas tabelas planetárias foram publicadas em 1627, e foram as melhores produzidas até àquele tempo. Kepler morreu em 1630.
Entretanto, os logaritmos são um dispositivo de computação, nada mais. Eles não acrescentaram idéia alguma à cabeça de Kepler. A noção de traçar órbitas planetárias em eclipses, em lugar de em círculos, de colocar o Sol em uma posição particular dentro da órbita, de fazer com que os planetas se movessem com velocidades diferentes, de acordo com as suas distâncias cambiantes em relação ao Sol, estas foram as idéias de Kepler. Elaborar as conseqüências desta idéia, por meio de computação aritmética, foi meramente um detalhe, um detalhe tedioso e consumidor de tempo.
Mesmo com logaritmos, a tarefa de Kepler levou anos, e enquanto Kepler, com sua mente de primeira classe, andava ocupado resmungando seus números, não tinha tempo de pensar em idéias adicionais também de primeira classe.
Pode-‐se ser criativo, ou pode-‐se passar o tempo todo somando e subtraindo; o que não se pode é fazer as duas coisas juntas.
Imagine-‐se, porém, que Kepler pudesse recorrer a dispositivos que se encontravam a três séculos no seu futuro. Suponha-‐se que ele pudesse fazer uso de um computador eletrônico – um computador com súbitas correntes elétricas, movendo-‐se com a velocidade da luz, reproduzindo as normas da aritmética mas obedecendo a essas normas cem milhões
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de vezes mais rapidamente do que o possa fazer a mente humana – e isso sem errar.
Um par de anos atrás, os dados sumários de Kepler foram, com efeito, postos num computador eletrônico; o computador, a seguir, foi programado para fazer a tarefa da aritmética que exigira de Kepler vários anos para ser feita, mesmo com logaritmos. O computador completou a tarefa em oito minutos!
O computador era mais inteligente do que Kepler? Naturalmente, não. Ele não era mais intelectual do que uma tábua de logaritmos, mas era tremendamente mais complicado que ela. O computador eletrônico é muito mais capacitado que uma tábua de logaritmos para realizar essas tarefas mentais, que são tediosas, repetitivas, estultificadoras e degradantes, deixando para os seres humanos o trabalho muito mais importante do pensamento criativo em todos os campos, desde a arte e a literatura até a ciência e a ética.
O aparecimento do computador eletrônico, nos anos de 1940, introduziu uma revolução na história da mente humana. Trata-‐se, de certa maneira, de uma revolução atemorizante, uma revolução que retira, dos seres humanos, o fardo com o qual temos estado acostumados por tão longo tempo, que parece que se tornou quase que parte da condição humana. Sem ele, muitos temem que definhemos... Mas isto não pode ser assim, porquanto não equivale a desumanizar o ato de deixar as máquinas fazerem o trabalho desumanizador. Deixá-‐las fazer isso, ao contrário, torna o ser humano, finalmente, verdadeiramente humano.” (329)