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KICKBOXERS Esportes de Combate e Identidade Masculina

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL KICKBOXERS Esportes de Combate e Identidade Masculina. Édison Luis Gastaldo Porto Alegre, novembro de 1995.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

KICKBOXERS

Esportes de Combate e Identidade Masculina.

Édison Luis Gastaldo

Porto Alegre, novembro de 1995.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

KICKBOXERS

Esportes de Combate e Identidade Masculina.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Édison Luis Gastaldo

Orientação: Profª Drª Ondina Fachel Leal

Porto Alegre, novembro de 1995.

Sumário

Resumo/Abstract 5

Introdução 7

Capítulo 1. As Artes Marciais 191.1 A Arte da Guerra 191.2 Artes Marciais e Esportes de Combate 251.3 Artes Marciais e Indústria Cultural 281.4 A Organização das Artes Marciais no Campo Esportivo 35

Capítulo 2. O Full-Contact 462.1 Generalidades 462.2 Universo de Pesquisa: Os Praticantes de Full-Contact 472.3 A Prática Esportiva em Grupos Sociais Diferenciados 53

2.3.1 Dois Casos 552.4 O Lado de Dentro das Academias 59

2.4.1 O Espaço: 612.4.2 Uma Aula: 662.4.3 Uma Tarde de Lutas 74 a. O Evento 74

b. O Público 78c. Os Lutadores 85d. Um Combate 86

Capítulo 3. Identidade Masculina e Competitividade 923.1 Sobre a Noção de Gênero 923.2 A Construção Social da Identidade Masculina 94

3.2.1 Aspectos Sociais da Masculinidade em Diversas Culturas 973.2.2 A Masculinidade e seu Reverso 99

3.3 A Identidade Masculina no Ambiente das Academias 100

3.4 A Competitividade: Jogo e Hierarquização da Masculinidade 1113.4.1 O Ethos Masculino e a Competitividade 1113.4.2 O Jogo 1173.4.3 A Hierarquização da Masculinidade 119

3.5 Uma Semântica da Virilidade 1273.5.1 Sobre os Valores "Força" e "Técnica" 135

3.6 Ringues e Rinhas, Galos e Goleiras: a masculinidade posta à prova 139

Capítulo 4. Homens de Ferro: a Construção do Corpo 1504.1 O Uso e a Percepção Social do Corpo 1504.2 A Utilização do Corpo para a Luta 1534.3 O Desprezo à Dor 1584.4 A Aceitação das Regras 163

Conclusão 166

Referências Bibliográficas 171

Índice Remissivo 180

Anexo: Glossário de Termos Usuais no Full-Contact 183

Resumo

Esta pesquisa etnográfica trata da prática de um esporte de combate, o "full-contact", em academias na cidade de Porto Alegre, sob o viés da construção social da identidade masculina. Como este esporte é praticado quase que exclusivamente por homens, este trabalho busca compreender como se articulam os diversos elementos constituintes da identidade masculina no ambiente destas academias.

Abstract

This etnographical research approaches the practice of a sportive fight, the "full-contact", in the city of Porto Alegre, under the perspective of the social construction of male identity. As this sport is practiced almost exclusively by men, this work wishes to understand how do the shaping elements of this male identity articulate within the environment where this sport is practiced.

Lutar e vencer em todos os combates não é a glória suprema;

a glória suprema consiste em vencer o inimigo sem lutar.

Sun Tzu (c. 500 a.C.)

Introdução

Esta dissertação consiste em um estudo acerca da construção social

da identidade masculina entre jovens praticantes de um esporte de combate, o

full-contact, tomando como universo de pesquisa os freqüentadores das

academias onde se aprende e pratica este esporte, na cidade de Porto Alegre.

Este trabalho pretende contribuir para os estudos sobre a construção

da identidade de gênero, apresentando os praticantes de full-contact (em sua

absoluta maioria homens jovens, entre 15 e 25 anos) e o uso social que eles

fazem do espaço no interior das academias, produzindo significados e

compartilhando determinadas atitudes, valores, gestos e expressões

constituidoras de uma identidade de gênero, no caso o masculino. Nestas

academias, como veremos, se valorizam aspectos como a "valentia", a força

física, a "garra" e uma noção de corporalidade baseada no domínio sobre o

corpo através do aprendizado da técnica de combate, bem como o desprezo à

dor decorrente da prática do combate e dos treinos. Em um plano mais

simbólico, na interação entre os membros do grupo pesquisado se desvaloriza

a conduta "homossexual" e se lança publicamente esta pecha à guiza de

desafio, sendo a conduta esperada pelo grupo a pronta reação do "ofendido".

Como veremos, estes valores e atitudes não são apenas esperadas de um

praticante de full-contact, mas correspondem de modo geral a uma espécie de

"estereótipo" da atitude masculina em nossa sociedade, conforme demonstram

os trabalhos de Leal (1992c), Jardim (1991) e Leczneiski (1995), entre outros.

O fato de ser praticado quase que exclusivamente por homens (em

dois anos de trabalho de campo, só foi registrado um caso de mulher

praticando este esporte) e envolver um estreito contato físico entre os

8

praticantes (o termo "full-contact" significa literalmente "contato pleno") torna

o ambiente das academias um local onde valores associados a esta constituição

de uma identidade masculina se tornam particularmente evidentes.

O full-contact, além disso, é representativo de uma série de outras

técnicas corporais conhecidas sob o nome genérico de "artes marciais".

Oriundas em grande parte de antigas tradições orientais, estas técnicas

corporais de luta corpo-a-corpo sofreram, em maior ou menor grau, um

processo de reinterpretação ao serem adaptadas à nossa sociedade, adotando,

muitas vezes, o caráter de práticas esportivas, desviando-se de sua utilização

original de técnicas de combate para uso militar.

Assim, o tema que este trabalho aborda são estas técnicas corporais

conhecidas como "artes marciais", sob o prisma da construção da identidade

masculina. As academias onde se ensinam e aprendem estas técnicas são

tomadas aqui como um locus privilegiado para o entendimento da construção

desta identidade de gênero.

O universo das artes marciais, entretanto, é demasiado vasto para

ser abarcado em um único trabalho de cunho antropológico, e se o fosse,

provavelmente o grau de generalização necessário a uma tarefa desta ordem

poria a perder a riqueza das especificidades inerentes a cada estilo de luta.

Como colocar em um único trabalho, por exemplo, as complexas relações

sociais presentes nas origens da capoeira com a imensa representatividade do

judô no cenário esportivo brasileiro? Assim, optei por apenas uma modalidade

de luta, que fosse representativa deste universo e cujas especificidades

pudessem acrescentar novos dados para o entendimento destas técnicas

corporais e sua relação com a construção de uma identidade masculina em

nossa sociedade.

9

Neste trabalho, busco construir uma interpretação do que sejam os

aspectos constituintes desta identidade masculina perante o grupo pesquisado.

Entendendo, como Geertz (1978: 15), que a cultura seja como uma "teia de

significados" produzida pelos homens, acrescida da análise sobre esta teia, e a

antropologia como uma "ciência interpretativa, à procura do significado",

procuro captar os significados produzidos pelo grupo pesquisado, para em um

processo interpretativo, analisar estes significados à luz da teoria

antropológica.

Para atingir este objetivo de compreender e interpretar os

significados produzidos por este grupo, foi utilizada a observação

participante. Os dois anos em que convivi com o grupo pesquisado,

observando, entrevistando os praticantes, conversando ou mesmo participando

de alguns treinos de full-contact se inserem neste trabalho como uma parte

importante do processo de interpretação destes significados. O olhar

posicionado do pesquisador e seu estranhamento frente à situação de campo

relativizam e reinterpretam as outras fontes de dados, por vezes confirmando,

por vezes contradizendo estas informações, mas sempre conduzindo a um

conhecimento mais aprofundado do objeto desta pesquisa.

Para viabilizar este objetivo, foram utilizadas diferentes técnicas de

pesquisa, como a realização de entrevistas abertas e semi-diretivas com

praticantes e professores de várias academias, todas gravadas e transcritas

ipsis litteris. Além das entrevistas, também foi realizada uma extensa cobertura

fotográfica de treinos, lutas de demonstração e combates oficiais. Estas

fotografias foram utilizadas não só como material etnográfico, como uma

forma auxiliar na descrição de locais e eventos, mas também foram

posteriormente mostradas aos praticantes, sendo seus comentários a respeito

anotados, fornecendo novos dados acerca do grupo pesquisado, além de

10

estabelecer uma espécie de troca, que levou a um ganho em sociabilidade e

confiança por parte do grupo. Parte destas fotografias encontra-se no corpo

deste trabalho. As minhas impressões pessoais eram escritas imediatamente

após qualquer ida a uma situação de campo, sob a forma de um diário de

campo. Todos estes procedimentos ajudaram a fornecer informações para este

trabalho, que serão tratadas como "dados etnográficos". Estes dados, por sua

vez, como ressalta Jardim (1991), são também produtores de significados, uma

espécie de "metassignificação" acerca da situação de campo, ou seja, uma

interpretação da interpretação original. Nos termos de Geertz (1978: 25),

apenas o "nativo" teria acesso à interpretação original (afinal, é a sua cultura),

a interpretação antropológica via de regra é uma interpretação de segunda ou

terceira mão. Não que isso represente um problema muito sério; afinal de

contas, ainda segundo Geertz, a necessidade de atenção para um trabalho

etnográfico encontra-se basicamente no grau em que ele é capaz de esclarecer

o que ocorre na situação de campo a que ele se refere, de modo a reduzir a

perplexidade derivada de "atos não-familiares que surgem de ambientes

desconhecidos", o assim chamado estranhamento (Geertz, 1978: 26). Dito de

outra forma, trata-se de realizar o trânsito de informações que tornem o exótico

em familiar, de modo a reduzir este estranhamento perante um universo de

significados do qual não somos originários, a cultura de um outro.

Os nomes das pessoas e das academias de full-contact pesquisadas

foram trocados, de modo a preservar a privacidade dos informantes. As

transcrições de trechos de entrevistas foram realizadas a partir do registro em

gravações magnéticas. Eventuais erros de concordância nestes trechos devem-

se à intenção de preservar o quanto possível a fluência original da fala dos

informantes. As referências bibliográficas utilizadas neste trabalho que não

estavam originalmente em português foram traduzidas por mim. Estas

11

traduções estão indicadas com um asterisco (*) na legenda abaixo da citação, e

transcritas no original em nota de rodapé.

Com a finalidade de tornar o acesso a pontos específicos do texto

mais fácil e rápido, ao final foi incluído um índice remissivo contendo os

autores citados e palavras-chave consideradas relevantes. Após o índice

remissivo, coloquei em anexo um glossário de termos usuais do full-contact,

de modo a familiarizar o leitor neófito neste vocabulário. Via de regra, os

termos que indicam nomes de golpes ou especificidades da prática do full-

contact estão italizados, assim como palavras em língua estrangeira.

Uma abordagem mais geral acerca das técnicas corporais chamadas

de "artes marciais" é traçada no primeiro capítulo, com um breve histórico

destas práticas, em especial as de origem oriental. É feita também neste

capítulo uma distinção entre dois grupos diversos de modalidades de luta: as

"artes marciais" e os "esportes de combate". Ainda neste capítulo, é abordada a

relação entre estas práticas de luta e sua apropriação por parte de produtos da

indústria cultural, e a influência advinda desta apropriação no imaginário dos

praticantes. Finalmente, este primeiro capítulo relaciona algumas informações

acerca da organização política destas técnicas de luta na nossa sociedade, sob a

forma de modalidades esportivas. Para tanto, é utilizado o conceito de "campo

esportivo" de Bourdieu, "campo" onde se inserem e organizam estas práticas

na nossa sociedade, segundo uma rígida hierarquização, conforme veremos.

No segundo capítulo, é tratado mais especificamente o full-contact.

Após abordar alguns aspectos gerais a respeito desta prática esportiva, passo à

delimitação do universo de pesquisa. O recorte em que situo o grupo

pesquisado é o de "praticantes de full-contact". Esta categorização implica em

um corte transversal que engloba pessoas provenientes das mais diversas

origens sociais. É evidente que diferenças provenientes deste pertencimento a

12

camadas sociais distintas existirão. Porém, acredito que, isoladas estas

diferenças, os indivíduos que se situam sob este recorte teórico possuem em

comum uma série de características que transcendem o simples pertencimento

a uma determinada camada social, especialmente no que diz respeito à

construção da identidade masculina. A discussão acerca desta questão está no

tópico "a prática esportiva em grupos sociais diferenciados". Após este tópico,

relato dois casos, histórias de vida de praticantes provenientes de grupos

sociais distintos, como ilustração da discussão anterior, e em seguida passo à

descrição etnográfica de diversos aspectos ligados à prática do full-contact. No

tópico intitulado "O lado de dentro das academias", descrevo sob uma

abordagem interacionista a organização do espaço em uma academia de full-

contact, a didática do combate dentro das academias e, finalizando este

capítulo, descrevo a realização de um evento de lutas organizado pela

Federação Gaúcha de Full-Contact, abordando aspectos da constituição do

espaço, do público, as relações entre os lutadores e, por fim, a realização de

um combate.

O terceiro capítulo aborda a questão da identidade masculina sob

diversos aspectos. Inicialmente, este capítulo trata do tema geral onde se

localiza a problemática da identidade masculina, a noção de gênero. Situada

esta noção, passo a descrever mais pormenorizadamente aspectos da

construção social da identidade masculina. Através da referência a etnografias

clássicas dentro da antropologia, busco demonstrar como, nas mais diversas

sociedades, a noção de masculinidade, antes de ser biologicamente dada, é

uma construção social, constituída de atributos socialmente valorizados que

devem ser conquistados pelos meninos em cada cultura para que sejam

considerados "homens". Um destes aspectos, ressaltado por diversos autores, é

a "negação da feminilidade", que freqüentemente toma a forma de um repúdio

13

à homossexualidade. Como este aspecto é relevante junto ao grupo pesquisado,

ser-lhe-á dada maior atenção. Após esta abordagem teórica acerca da

masculinidade, veremos como se articulam estes conceitos na interação entre

os praticantes no interior das academias, analisando os dados de campo à luz

daqueles dados teóricos. A seguir, um aspecto importante da constituição de

um ethos masculino é levado em consideração: a competitividade. Como

veremos, nas mais diferentes sociedades existe uma estreita ligação entre o

"ser homem" e a participação em jogos e disputas, em geral com outros

homens. Após uma revisão bibliográfica sobre este tema, abordo a questão do

jogo propriamente dito, segundo a visão de alguns autores que trataram do

tema. O nexo entre as noções de jogo e identidade masculina é feito a seguir,

no tópico "a hierarquização da masculinidade", onde abordo a prática de jogos

e disputas – os esportes, de modo especial – como sendo criadoras de uma

hierarquia de poder entre homens, uma espécie de ranking simbólico da

masculinidade. Em seguida, analiso os significados de gestos, falas e

expressões de uso corrente entre os praticantes de full-contact pesquisados sob

a ótica da construção da identidade masculina, estabelecendo uma "semântica

da virilidade", nome deste tópico. Finalmente, o último tópico deste capítulo

trata da questão da masculinidade posta à prova, estabelecendo relações entre

a prática de esportes de combate com outras atividades competitivas

eminentemente masculinas, como as rinhas de galo e o futebol, abordando as

conclusões de diversos trabalhos antropológicos nesta área em confronto com

os dados de campo obtidos neste estudo.

O quarto capítulo trata da questão da corporalidade entre os

praticantes de full-contact. Como qualquer prática esportiva, o full-contact

exige do praticante uma intensa preparação física. No início deste capítulo,

discuto alguns conceitos a respeito do uso social da corporalidade, como a

14

noção de "técnica corporal" de Mauss e o conceito de "corpo social" de

Douglas. Considero que, embora todo ser humano possua um corpo

biologicamente dado, o uso que se faz deste corpo é determinado pela

sociedade na qual cada ser humano está inserido. A utilização deste corpo para

a prática de lutas não seria exceção. O corpo humano precisa ser ensinado a

realizar quaisquer atividades. A prática da luta exige que o praticante molde

determinados aspectos de sua constituição corporal para adaptar-se a estas

circunstâncias. Além disso, na prática do combate, é freqüente a ocorrência de

lesões. No ambiente das academias pesquisadas, desta forma, se valoriza

socialmente o desprezo à dor, não apenas como um índice de masculinidade,

mas como um sinal de pertencimento àquele grupo. Sem nenhum acordo

explícito, os praticantes relatam histórias de contusões, fraturas e hemorragias

de modo leve e despreocupado, valorizando as cicatrizes que fazem questão de

exibir como "troféus de batalha". A valorização das cicatrizes como

"emblemas" da masculinidade também é tratada por Jardim (1991). Um último

aspecto a ser tratado neste capítulo refere-se à aceitação incondicional das

regras por parte dos praticantes. Embora a relação dos praticantes com os

professores seja bastante informal, quando em assuntos acerca da prática do

combate, suas palavras são atendidas sem hesitação. O professor, nestas

circunstâncias, é tratado, como em muitas artes marciais orientais, como um

mestre, detentor absoluto de um saber do qual o aluno deseja compartilhar.

Suas palavras e ordens são, neste sentido, indiscutíveis.

Sobre a subjetividade inerente ao fazer antropológico, posso dizer

que ao longo da realização de meu trabalho de campo etnográfico fui recebido

pelo grupo pesquisado de modos os mais diversos. De todos os graus de

estudada indiferença até uma implicante desconfiança a priori ("quê que tu

quer por aqui com essa câmara?"). Afinal de contas, um pesquisador

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observando, anotando e fotografando tudo o que ocorre em um evento de lutas

não passa despercebido ao público presente. Fui várias vezes interpelado por

perguntas de treinadores, lutadores e torcedores. O mote das perguntas era

invariavelmente a minha câmara fotográfica a tiracolo, que todos associavam

com fotojornalismo. Ao tirar fotos, freqüentemente alguém perguntava: "Vai

sair na Zero Hora?" ou "Tu tá vendendo essas fotos?" Ao explicar que o que

eu fazia era reunir material para uma dissertação de mestrado em antropologia,

várias cabeças ao redor se viravam para ver do que se tratava. Posteriormente,

algumas pessoas já puxavam assunto diretamente nesse tema: "Tu tá fazendo

mestrado em antropologia? Qual é a tua tese?" Ao explicar que a tese versava

sobre aspectos da masculinidade entre lutadores de full-contact, me

perguntaram: "E isso aí [apontando o ringue, onde ocorria uma luta], qual é o

teu parecer, aprova ou desaprova?" Tentei me esquivar com uma resposta

dúbia: "Não aprovo nem desaprovo, eu só observo, anoto e depois escrevo a

respeito".

Um professor de boxe que estava sentado do meu lado, ao saber que

eu estava escrevendo uma dissertação, mostrou que para ele aquilo não era

novidade: "Eu sei como é que é isso, lá na minha academia já foi um estágiário

do Jornalismo e um mestrando da Educação Física, fazendo a mesma coisa que

tu tá fazendo, anotando tudo e tirando foto". Enfim, na interação que se

estabalece entre pesquisador e pesquisados, temos, como pesquisadores, um

papel social relativamente delimitado a que temos que nos ater.

Um fator que me ajudou bastante a conquistar a confiança das

pessoas do grupo pesquisado foi o fato de eu também ser praticante de uma

técnica de combate, no caso, a arte marcial chamada "Kung fu estilo Shaolin

do Norte". Vi várias vezes o rumo de entrevistas que prometiam ser

desanimadoras, dada a desconfiança do entrevistado com a presença de um

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antropólogo – manifesta nas respostas monossilábicas – mudar de modo

surpreendente, assim que eu contava en passant que também era praticante de

artes marciais. Após uma ou duas perguntas do entrevistado: "qual estilo?"

"quem é o professor?", o semblante deste desanuviava-se, as frases tornavam-

se mais longas e confidentes, e o tratamento geral a mim dispensado passava a

ser o mesmo dado a um "colega de outra academia": de uma certa maneira,

"um deles". Com o tempo, aprendi a colocar esta informação a meu respeito,

que descobri ser importante para conquistar a confiança dos praticantes, logo

no começo da conversa, para auferir rapidamente dos benefícios etnográficos

desta identificação.

Enfim, vicissitudes inerentes ao ofício de etnólogo, essa mania de

"xereta profissional", que chega na situação de campo a qualquer hora, senta,

puxa um bloquinho, uma caneta, um gravador, uma câmara fotográfica e sai

fotografando e fazendo perguntas insólitas para todo mundo. É evidente que o

reconhecimento do grupo pelo meu trabalho é gratificante: quase no final de

meu trabalho de campo, fui convidado por um professor para fazer a entrega

oficial dos prêmios de um torneio de full-contact; em outra ocasião, fui

apresentado pelo presidente da Federação a um dos diretores: "este aqui é o

antropólogo amigo nosso, que está escrevendo um livro sobre full-contact". No

final das contas, compensa.

Gostaria de deixar registrados aqui, ao final desta introdução, uma

série de agradecimentos a pessoas cuja ajuda foi de fundamental importância

para que a realização deste trabalho fosse possível.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha orientadora,

professora Ondina Fachel Leal, não só pela lucidez de suas indicações teóricas

em antropologia como pela paciência, cuidado e tempo que dedica a cada um

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de seus orientandos, mesmo envolta no seu mar agitado de compromissos

cotidianos.

Agradeço particularmente a meus colegas de seminário de tese e

amigos leais Luiz Eduardo Robinson Achutti, Maria de Nazaré Agra Hassen e

Maria Cristina Duarte Ribeiro, pelo inestimável auxílio teórico-prático e pela

cumplicidade nos meandros do mundo acadêmico. Meu agradecimento sincero

também às minhas colegas de turma Liliane Stanisçuaski Guterres e Maria

Letícia Mazzuchi Ferreira pelo apoio e interlocução qualificada.

Meus agradecimentos também a toda a equipe do Laboratório de

Antropologia Visual, cuja disponibilidade permitiu que fosse realizada a

gravação em vídeo de diversos combates, de grande valia na descrição

etnográfica. De toda a equipe do Laboratório, agradeço especialmente à

professora Cornélia Eckert, pela leitura minuciosa e comentários valiosos

sobre a primeira versão deste trabalho; a Adriane Rodolpho, apoio logístico

indispensável na obtenção de equipamento de vídeo e ao bolsista Alfredo

Barros, pela operação competente da câmara de vídeo no trabalho de campo.

Agradeço também à professora Sônia Maria Haas, da Agência

Experimental de Publicidade e Propaganda da Unisinos, pela disponibilidade

no uso do equipamento (scanner e computadores) desta Agência na

digitalização e editoração das imagens fotográficas incluídas nesta dissertação.

No métier do full-contact, agradeço particularmente ao sr. Vinícius

Guarilha, presidente da Federação Gaúcha de Full-Contact, e aos professores

Aimoré Goulart e Sincinato Rodrigues, pela disponibilidade e colaboração

generosa nas informações necessárias a este trabalho, além dos demais

professores e praticantes de full-contact, pela paciência e boa-vontade.

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Agradeço de modo muito especial a meus pais e irmãos, pelo apoio,

e principalmente à minha irmã Denise Gastaldo, exemplo de pesquisadora,

cuja leitura atenta e comentários precisos sobre a primeira versão deste

trabalho foram de enorme valia, além da pesquisa bibliográfica que ela

realizou na University of London, com resultados inestimáveis. Agradeço

também a minha esposa, Adriana Braga, cujo constante incentivo e carinho

cotidiano em muito colaboraram para a finalização deste trabalho.

Meu agradecimento também aos amigos Marco Zimmer, pelo apoio

bibliográfico sobre dados esportivos; Guilherme Wagner Ribeiro, pelo auxílio

na valiosíssima pesquisa bibliográfica na biblioteca da UFMG e João "Nenê"

Carneiro, por sua sempre solícita e simpática assessoria nos mais diversos

qüiproquós informáticos.

Além destas pessoas, gostaria de agradecer de modo especial ao

Conselho Nacional de Pesquisa Científica - CNPq, pela concessão da bolsa de

estudos que viabilizou a minha formação de mestrado com dedicação

exclusiva, sem a qual eu dificilmente teria conseguido completá-lo.

Capítulo 1. As Artes Marciais

1.1 A Arte da Guerra

Em termos semânticos, a palavra "arte" no termo "arte marcial" tem

o significado de "técnica refinada". A palavra "arte" deriva do latim arte,

enquanto que a palavra "técnica" deriva do grego (téchne), traduzido no

dicionário Aurélio por "arte", o que dá uma indicação da relação estreita entre

os dois termos. A palavra "marcial" deriva do latim martiale, relativo à Marte,

deus da guerra, ou seja, bélico, militar, guerreiro. Portanto, uma tradução

possível de "arte marcial" seria "técnica militar", ou "técnica guerreira". Em

chinês, o termo genérico empregado para designar qualquer estilo de arte

marcial é Wu Shu, que significa literalmente "técnica militar", ou "arte da

guerra", e, nesse sentido, possui o mesmo significado de "arte marcial" (Chan

e Veiga, 1995). Assim, pode ser percebida a estreita ligação das chamadas

"artes marciais" com a prática da guerra propriamente dita.

Na maioria absoluta das sociedades humanas, a sobrevivência

esteve sempre associada, além da obtenção de alimentos, à necessidade de

defesa contra ataques inimigos. Assim, no conjunto das sociedades, simples ou

complexas, a existência da guerra é um fato praticamente universal (Clastres,

1980b e Gilmore, 1990). Segundo Clastres (1980b), a guerra na sociedade

primitiva possui a função de manter a sociedade indivisa, sem estratificação

social, de modo a resistir perante um inimigo sempre à espreita. A existência

de um "inimigo" torna necessária a obtenção de uma "tecnologia militar", que

permita fazer frente aos seus ataques ou, em sociedades particularmente

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belicosas, atacar os inimigos de modo eficaz. Desenvolveu-se, assim, nessas

sociedades, paralelamente aos demais aspectos sociais, uma espécie de

"cultura militar", com desenvolvimento técnico e tecnológico próprios para

esta "arte guerreira". Assim, muitas armas de caça foram aproveitadas na

guerra, como a lança e o arco e flecha, e outras foram criadas e desenvolvidas

especialmente para a guerra, como a borduna, o tacape e o escudo. O uso de

cada uma destas armas exige o aprendizado de uma técnica corporal adequada

para otimizar o desempenho do guerreiro no seu manejo.1 Estas técnicas

tradicionais de combate com cada tipo de arma e, por vezes, técnicas de

combate desarmado estão na origem das técnicas corporais hoje em dia

chamadas de "artes marciais". Paralelamente a estas técnicas militares, é

bastante freqüente em muitas sociedades a existência de lutas "esportivas",

com finalidade ritual ou de entretenimento (Clastres, 1980. Neste sentido, ver

também Gilmore, 1990). Ballery (1954) descreve várias modalidades de lutas

tradicionais ("folclóricas", segundo este autor) em países como a Turquia,

Islândia, Suíça, Rússia, Senegal, Ilhas Canárias, Filipinas e Marrocos, entre

outros (Ballery, 1954: 67-84). Em geral, essas lutas são realizadas corpo-a-

corpo e desarmadas, tendo como objetivo imobilizar o oponente ou deitar-lhe

as costas no chão, como na modalidade olímpica chamada "luta greco-

romana". Um exemplo desta relação entre as práticas militares e jogos rituais

foram os jogos olímpicos realizados na Grécia antiga, durante doze séculos,

de 776 a.C a 393 d.C. As provas disputadas nos jogos olímpicos eram

variações esportivas de técnicas militares, como o arremesso do dardo, o

arremesso do disco e o "pancrácio" – luta em que eram válidos todos os tipos

de golpes. Mesmo provas de corrida, como a célebre maratona, estão

1 O conceito e a discussão sobre "técnica corporal" encontram-se no capítulo 4 desta dissertação. Ver também Mauss (1974).

21

associadas a proezas militares (Durantez, 1987).2 Assim como as técnicas

militares estão na origem das atuais artes marciais, estas lutas disputadas entre

"adversários" (e não "inimigos"), com regras determinando os golpes válidos

estão na origem dos atuais esportes de combate, e os próprios jogos olímpicos

da Grécia antiga serviram de modelo na idealização por Pierre de Coubertin

dos chamados "jogos olímpicos da era moderna", gênese do esporte como o

conhecemos hoje.

Comumente, o termo "arte marcial" refere-se às artes marciais

orientais, embora, como foi visto, no sentido em que emprego este termo,

existam "artes marciais" em quase todas as sociedades. As artes marciais

orientais são oriundas da China, onde existem estilos de wu shu praticados há

vários séculos. O templo budista de Shao Lin, no norte da China, local de

origem de um dos mais famosos estilos de arte marcial chinesa, o estilo

"Shaolin do Norte", recentemente comemorou 1500 anos de sua fundação.

Durante séculos, a cultura chinesa dominou as nações circunvizinhas, como a

Coréia, o Japão e os países do sudeste asiático, influenciando profundamente a

filosofia, a medicina, a culinária, o comércio e vários outros aspectos da

cultura destes países, entre eles as técnicas militares. Assim, modalidades de

artes marciais orientais atualmente praticadas, como o karatê, o taekwondo e

outras, possuem um tronco comum ligando-as ao wu shu chinês(Chan e Veiga,

1995).3

2 A origem da Maratona é atribuída a um soldado grego que correu os 42 Km que separavam a planície de Maratona, local de uma batalha, até Atenas, onde, após dar a notícia da vitória grega sobre os persas, caiu morto de exaustão.3 A maioria das informações acerca da história das artes marciais foram obtidas em Virgílio, 1986 e Chan e Veiga, 1995. Informações complementares sobre este tema, especialmente sobre as artes marciais chinesas, foram obtidas através de entrevistas com o professor Ruben Vieira, professor de artes marciais e presidente da Federação Gaúcha de Kung Fu, que prepara um livro sobre o assunto. Informações adicionais, em especial sobre a história do full-contact, foram obtidas em entrevistas com o professor Aimoré Goulart, professor de full-contact.

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Muitas destas técnicas tradicionais de combate, que tomavam como

paradigma da tecnologia militar a lâmina de aço usada nas chamadas "armas

brancas", como espadas, lanças e punhais, tornaram-se obsoletas para

utilização militar com o advento da arma de fogo. Muitas armas e a técnica

necessária para usá-las desapareceram ou tornaram-se conhecidas de

pouquíssimas pessoas, suplantadas pelo impacto e poder de alcance das armas

de fogo. Várias dessas armas e técnicas, entretanto, sobreviveram até nossos

dias sob a forma de jogo, através de um processo de "esportivização" no qual,

submetendo a sua prática a regras, tornaram-se modalidades esportivas. Proni

(1994) denomina a este processo "esportivização das artes marciais". Assim,

hoje em dia existem competições de arco e flecha, de esgrima, de arremesso de

dardo, bem como de várias outras "artes marciais", mesmo que nenhuma

destas técnicas guerreiras seja hoje usada com finalidade militar.

Segundo Proni (1994), a expansão das artes marciais orientais no

ocidente se deu mais acentuadamente a partir do fim da Segunda Guerra

Mundial, com o aumento da emigração asiática para os Estados Unidos. No

início dos anos 50, tornou-se moda praticar "boxe chinês" (nome genérico

dado então a todas as artes marciais de origem oriental) entre os astros de

Hollywood (Hyams, 1992). Muggiati (1984) aventa algumas hipóteses para

este crescente interesse por aspectos da cultura oriental na sociedade norte-

americana do pós-guerra, como o contato dos soldados americanos com a

cultura japonesa durante a ocupação do Japão ou como uma reação decorrente

do sentimento de insatisfação com os valores judaico-cristãos vigentes naquela

sociedade (Muggiati, 1984: 106). Com a crescente valorização deste

"orientalismo" na sociedade americana, diversas manifestações culturais

oriundas do extremo oriente passaram a ser vistas como algo extremamente

positivo, na medida em que representavam parte da reação à cultura ocidental

23

tradicional, no movimento que se chamou de "contracultura" (Pereira, 1983).

Expoentes das artes naquele país, como Jack Kerouak, Allen Ginsberg, George

Harrison e outros aderiram a religiões e seitas indianas e chinesas, como o

Hare Krishna, o Zen-budismo e a "meditação transcendental" do guru

Maharishi. A adesão a estas religiões orientais naquele momento representava

uma alternativa às religiões judaico-cristãs ocidentais. Estas religiões incluíam

nos seus ensinamentos uma nova maneira de lidar com a mente, o espírito e o

corpo. Na esteira desta valorização de aspectos da cultura oriental, várias

outras manifestações culturais do oriente foram se difundindo, entre elas as

artes marciais. Com o tempo, as artes marciais foram se popularizando nos

Estados Unidos e, de lá, estas técnicas acabaram sendo difundidas para o resto

do mundo ocidental, inclusive por meio de produtos da indústria cultural, tema

que será tratado adiante. Na adaptação destas técnicas tradicionais de combate

corpo-a-corpo de origem oriental para a sociedade ocidental, o lugar destinado

às artes marciais acabou sendo o de prática esportiva. No anos seguintes,

muitas modalidades tradicionais se "esportivizaram", estabelecendo-se

campeonatos, rankings e federações nacionais de cada modalidade. Em 1964,

o judô foi admitido provisoriamente como modalidade esportiva olímpica, nos

jogos olímpicos de Tóquio. Em 1972, nas Olimpíadas de Munique, ele foi

incorporado definitivamente aos jogos (Virgílio, 1986). Assim, o jodô tornou-

se a primeira "arte marcial" de origem oriental (transformada em "esporte de

combate") a fazer parte das Olímpíadas da Era Moderna. Atualmente outras

artes marciais "esportivizadas", como o taekwondo e o karatê, estão se

candidatando a serem modalidades olímpicas, o que deve ocorrer nos próximos

anos.

No final dos anos 60, nos Estados Unidos, alguns praticantes de

diferentes modalidades de arte marcial, como o taekwondo e o karatê,

24

começaram a testar uma nova modalidade de luta com uma regra tal que

permitisse o confronto entre lutadores de estilos diferentes. Esta tentativa de

fazer um estilo que unisse as particularidades dos demais acabou criando um

novo estilo, com suas próprias particularidades, o full-contact. No início, o

full-contact era praticado de modo bastante parecido com o karatê, as lutas

eram realizadas em um tablado e não num ringue e as luvas eram mais leves,

de modalidades de "semi-contact", como alguns estilos de karatê. O próprio

nome da nova modalidade indica o vínculo com o karatê na sua origem:

"karatê full-contact". Aos poucos, o full-contact foi se autonomizando em

relação ao karatê. Após as primeiras lutas, que se assemelhavam a um combate

de karatê com luvas de semi-contact, as regras foram se modificando, e em

poucos anos acabaram tomando a forma atual. A divisão dos lutadores por

categorias de peso, o uso de luvas idênticas às de boxe e a realização dos

combates dentro de um ringue aproximaram o full-contact da prática do boxe,

com a diferença dos golpes de perna, totalmente derivados do taekwondo e do

karatê.

Hoje em dia existem diversas associações mundiais que regulam a

prática do full-contact, com pequenas diferenças técnicas nas regras de cada

uma delas, como a obrigatoriedade ou não de chutar o adversário determinado

número de vezes por round, a validade ou não de chutes abaixo da linha da

cintura, etc. Dentre estas entidades, a associação mundial que tem maior

representatividade no Brasil é a ISKA (International Sports Karate

Association), considerada pelos praticantes entrevistados a mais importante, e

onde estão os melhores lutadores. Em outra associação, a WAKO (World

Association of Kickboxing Organizations), de grande representatividade na

Europa, o campeão mundial é um lutador brasileiro, Paulo Zorello, motivo

pelo qual esta entidade vem crescendo em representatividade no país.

25

O full-contact chegou no Brasil através do lutador paulista Sérgio

Batarelli, no início dos anos 80. Batarelli criou algumas das especificidades

que este esporte tem no país, como a hierarquização dos praticantes por meio

de faixas coloridas, a exemplo do karatê, e uma sistemática de avaliação dos

praticantes com crescente grau de dificuldade de uma faixa para a outra, o

chamado "Batarelli System". Este sistema inclui um teste para aquisição da

faixa-preta, chamado por alguns praticantes de "Homem de Ferro", em que o

candidato deve lutar durante dez rounds contra três adversários que se

revezam. O "Batarelli System" não é unanimemente aplicado, e, na prática,

apenas uma linha de alunos diretos deste lutador aplicam seu método.4 Estes e

outros aspectos mais específicos da prática do full-contact serão

pormenorizados mais adiante.

A maioria dos professores pesquisados neste estudo começou a

praticar luta em outras modalidades (em geral o karatê, taekwondo ou o boxe)

que não o full-contact, e aplicam em suas academias o seu próprio método, de

acordo com a sua experiência pessoal, com visível influência da modalidade da

qual cada um é "originário".

1.2 Artes Marciais e Esportes de Combate

O termo "arte marcial" em geral refere-se a uma técnica de luta

tradicional que visa oferecer ao praticante meios de ataque e defesa contra um

adversário em uma situação de confronto. É senso comum entre os praticantes

destas técnicas de luta que o termo "arte marcial" se aplica somente às técnicas

de luta de origem oriental, que seriam elevadas à categoria de "arte" por

trazerem em seus ensinamentos uma "filosofia" que esportes como o boxe, por

4 As especificidades envolvendo este teste e seu significado simbólico para os praticantes serão assuntos tratados mais adiante nesta dissertação.

26

exemplo, não teriam. Discordo desta justificativa. A origem de cada técnica de

luta está impregnada dos valores da cultura onde esta técnica foi gerada. Por

exemplo, no Japão, a partir do século XVI, houve uma crescente influência do

zen-budismo nas mais diversas instâncias da vida social, incluindo,

naturalmente, as técnicas de combate (Hyams, 1992). A influência do zen-

budismo, entretanto, não se limitou à arte marcial; a ótica zen vê "caminhos"

para o aprimoramento do indivíduo em qualquer atividade que este realize,

desde que o faça com a correta disposição mental, como o ikebana ("arranjo

floral"), ou o origami ("dobraduras de papel"), por exemplo. Da mesma forma,

um esporte criado e desenvolvido no ocidente, como o boxe, por exemplo, está

repleto de valores e características da cultura que o gerou, a própria lógica

interna da prática esportiva, que implica na busca de superação do adversário

dentro das limitações impostas pela regra, é fruto da moderna sociedade

industrial (Bourdieu, 1983). O boxe, neste sentido, também tem a sua

"filosofia"... Além disso, mesmo as artes marciais orientais não incluem no

corpo de ensinamentos aplicados nas academias nenhuma noção de "filosofia",

mas pura e simplesmente o aprendizado de técnicas corporais de ataque e

defesa. As artes marciais podem, neste sentido, eventualmente ser um

"caminho" para o desenvolvimento espiritual do indivíduo, mas esta escolha

deve partir do próprio indivíduo. No sentido zen da palavra "caminho", este

também pode ser encontrado na poesia, na jardinagem ou, como sugere Robert

Pirsig (1984), na "arte da manutenção de motocicletas".

A diferença entre uma "arte marcial" e um "esporte de combate"

reside na destinação original do desenvolvimento de cada estilo de luta. Como

foi visto, uma arte marcial tem na sua origem a intenção de treinamento

militar, ou seja, seu local de aplicação é numa situação de guerra, onde se

estabelecem confrontos de vida ou morte. Quando a maior parte destas

27

técnicas foi criada, no extremo oriente, não existiam armas de fogo, e a

maioria dos combates era corpo-a-corpo. A destreza de um guerreiro no

manejo de armas brancas e, quando desarmado, de seu próprio corpo

transformado em arma, garantia-lhe a sobrevivência em um combate. Assim,

nos ensinamentos de uma arte marcial incluem-se o controle e fratura de

articulações, golpes dirigidos a pontos vitais (técnica chamada de atemi, em

japonês) ou estrangulamentos, técnicas que visam eliminar o perigo

representado pelo adversário da forma que for necessária, mesmo que ao custo

da vida do oponente (Virgílio, 1986). Em um confronto em que seja necessário

o uso de técnicas marciais, o lutador mata o oponente para não ser morto por

ele. Neste sentido, Rapoport, referindo-se à relação estabelecida com o

adversário na modalidade de conflito do tipo luta, afirma que

...em uma luta o adversário é um estorvo. Precisa ser eliminado, desaparecer ou perder seu tamanho e importância. O objetivo de uma luta é subjugar ou fazer desaparecer o adversário.

(Rapoport, 1980: 14)

Já o "esporte de combate", como o próprio nome indica, é uma

modalidade esportiva, em que o objetivo é derrotar o oponente atingindo o seu

corpo com determinados golpes permitidos por regras estritas. A finalidade de

um esporte de combate, desde sua origem, sempre foi lúdica, esportiva, como

o boxe, por exemplo. As lutas de boxe começaram na Inglaterra, em meados

do século passado, como entretenimento em feiras livres, tendo suas regras

sido sistematizadas por Lord Queensberry, por volta de 1860 (Gonçalves et al.,

s/d). Assim como ocorre nas rinhas de galo, o público apostava em um dos

lutadores, que, usando apenas golpes com os punhos (sem luvas nem ataduras,

naquela época), devia derrotar o seu oponente. Mesmo hoje em dia, as lutas de

boxe profissionais são em geral associadas a apostas em dinheiro, como nas

28

corridas de cavalos e nas rinhas de galo. As regras do boxe permitem apenas

socos, e o objetivo de uma luta de boxe sempre foi esportivo.

A representatividade do full-contact no universo das técnicas de

combate, pode-se sugerir, provém do fato de ele, sendo um esporte de combate

de origem extremamente recente, criado há menos de trinta anos, ter sofrido

profunda influência de estilos de luta os mais diversos, orientais e ocidentais,

como o boxe inglês, o taekwondo coreano e o karatê japonês. Estas diferentes

influências tornam este esporte uma espécie de "forma híbrida" de artes

marciais orientais e esportes de combate ocidentais. O estudo mais

aprofundado das particularidades do full-contact, assim, acaba se referindo a

outras artes marciais. Estas referências a outros estilos, sempre presentes,

tornam o full-contact bastante representativo do universo das técnicas de luta.

1.3 Artes Marciais e Indústria Cultural

O conceito de "indústria cultural" foi usado pela primeira vez em

1947, por Horkheimer e Adorno, com o fim de distinguir os então incipientes

produtos dessa indústria de bens culturais do termo "cultura de massa", já que

os produtos da indústria cultural não são, como poderia parecer, oriundos

espontaneamente da própria "massa", como se fossem uma forma

contemporânea de "arte popular" (Adorno, 1978). Pelo contrário, a relação da

indústria cultural com a massa é a de adaptar os seus produtos ao consumo

desta. Como veremos a seguir, em muitos casos, os produtos industriais

culturais acabam por refletir, no seu próprio conteúdo, aspectos de um

determinado momento sócio-político. Esta espécie de "referência" não ocorre

para determinar a conduta da massa no sentido do consumo desses produtos,

mas como um efeito paralelo decorrente da interação entre produtores e

consumidores destes bens culturais.

29

A indústria cultural se define pela produção centralizada e distribuição massificada de "produtos culturais", como filmes de cinema ou programas de televisão – que no início dos anos 60, ainda de modo incipiente, já anunciavam estas características descritas por Adorno. Para Adorno, o termo "indústria" não deve ser tomado literalmente, já que permanecem instâncias de produção individual no processo de produção, por exemplo, de um filme. Segundo este autor, o termo "indústria" se aplica especialmente à "estandardização da própria coisa", como no caso de filmes produzidos segundo os padrões de um gênero específico, como o western ou, como veremos, os chamados "filmes de ação", que seguem uma espécie de "receita" em seu roteiro.

(Adorno, 1978: 289)

Como vimos anteriormente, o advento da contracultura, nos anos 50

e 60, trouxe à cena cultural norte-americana a valorização de uma série de

aspectos da cultura do extremo oriente, num movimento cultural que se

chamou de "orientalismo". Vinculado em princípio ao movimento beat, a

valorização de aspectos da cultura oriental tornou-se na década seguinte um –

mais um – lucrativo empreendimento para a indústria cultural dos Estados

Unidos. Toda uma geração de jovens sedentos por incenso, Kama Sutra,

cítaras e meditação transcendental manifestou seu interesse pela cultura

oriental, entre outras coisas, consumindo livros de Lobsang Rampa, Banghwan

Rajneesh e discos de Ravi Shankar, por exemplo (Muggiati, 1984). Parte deste

mesmo movimento foi o súbito sucesso no cinema dos filmes de arte marcial

de Bruce Lee, que veio a popularizar ainda mais as artes marciais orientais

junto ao grande público. Em alguns episódios do seriado de televisão

"Batman", produzidos em meados dos anos 60, Lee aparece como "Kato", o

fiel ajudante do "Besouro Verde", outro herói mascarado. Tendo seus primeiros

filmes produzidos em Hong Kong, Bruce Lee atingiu o estrelato com o filme

"Operação Dragão".

$$$

30

Foto 1: Pôster de Bruce Lee, Academia Central

Após o sucesso deste filme, no final dos anos 60, os chamados

"filmes de arte marcial" vieram a tornar-se um ramo da indústria

cinematográfica, em geral associados a produções de segunda linha, mas que

já fizeram surgir alguns ídolos do cinema, como o ator belga Jean-Claude Van

Damme, o já citado "dragão" Bruce Lee ou Chuck Norris, ex-heptacampeão

americano de karatê. No início dos anos 70, o seriado de televisão "Kung Fu",

com David Carradine no papel principal, levou para os lares do mundo inteiro

a informação de que "kung fu" era uma luta praticada por sábios monges

chineses, ajudando, desta forma, a popularizar as artes marciais orientais no

ocidente. Neste seriado, um monge Shao Lin foragido da China por ter

vingado a morte injusta de seu mestre vem para a América em meados do

século XIX, nos tempos do western. Com este argumento, "Kane" (o nome do

monge) vagueia pelo deserto do velho-oeste americano, agindo sempre com

serenidade e paciência "orientais". Em todos os episódios, a serenidade e a

paciência de Kane são postas à prova por cowboys prevalecidos que pretendem

abusar do humilde chinês ou de outros desfavorecidos, de quem Kane sempre

toma partido. Neste momento, entra em ação o "kung fu" que dá o nome à

série: Kane (inaugurando na televisão o efeito de slow motion) derrota com as

mãos desarmadas vários adversários ao mesmo tempo, com golpes certeiros de

sua arte marcial. Em cada episódio, Kane também recorre à memória (sob a

forma de flash backs) para se lembrar de algum sábio conselho de seu mestre –

um velhinho cego que o chamava pelo apelido de "gafanhoto" – no templo de

Shao Lin. O argumento desta série parece ilustrar simbolicamente o que

ocorreu no imaginário norte-americano com o momento em que se desenvolve

este "orientalismo". O símbolo masculino por excelência da cultura norte-

americana, o cowboy, até então sempre retratado com atributos positivos, passa

31

a ser visto neste seriado como um brutamontes covarde e truculento. De

"mocinho", passa a "bandido", exatamente o que estava acontecendo com a

imagem pública dos soldados americanos entre a Segunda Guerra Mundial e a

Guerra do Vietnã. Em enormes manifestações de protesto, jovens americanos

queimavam publicamente suas cartas de convocação e carregavam cartazes de

Ho Chi Min, líder do Vietnã do Norte, considerando o povo vietnamita como o

verdadeiro "herói" desta guerra, ao sustentar-se com mínimos recursos contra o

poderoso exército americano, prevalecido como os cowboys-vilões de Kane

(Pereira, 1983). O oriental, neste seriado, era visto como um homem bom

(afinal de contas, ele era o "mocinho"), dotado de vários adjetivos positivos, e

possuidor de uma arma que não se comprava em nenhuma loja: o poder sobre

o próprio corpo, utilizado como arma pelo conhecimento de uma arte marcial.

Os produtores da indústria cultural souberam muito bem captar o momento em

que essas mudanças de mentalidade estavam se passando e traduzi-las em

linguagem televisiva. O enorme sucesso da série, em princípio nos Estados

Unidos e – por conta dos canais de distribuição dos produtos da indústria

cultural – em vários outros países, manifesta o quão adequada era a metáfora

naquele momento.

Na esteira destes produtos da indústria cultural, como uma espécie

de "efeito colateral", houve uma grande popularização das artes marciais, em

especial do kung fu, arte marcial praticada por "Kane" e por Bruce Lee. Uma

música bastante famosa no início dos anos 70 chamava-se – não sem motivo –

"Everybody is Kung Fu Fighting".

Nas academias de full-contact é bastante freqüente verem-se

pendurados à parede pôsteres de Bruce Lee ou Van Damme, denotando a

influência destes filmes no imaginário dos praticantes. Vários praticantes

declararam ter tido o seu primeiro contato com as artes marciais através de

32

programas de televisão ou em filmes no cinema, como pode ser visto no

seguinte depoimento, onde um praticante justifica a sua escolha, na

adolescência, pela prática das artes marciais:

"Eu sempre gostei de luta. Desde pequeno, eu sempre vi filmes, Bruce Lee, David Carradine, só que eu procurei o kung fu, no caso o Shao Lin do Norte, que era o que tinha na época [em 1979], por causa do que ele ensina, não me interessa só aprender a lutar, eu quero mais, eu gosto da história..."

(Lúcio, 30 anos, porteiro)

Notável neste caso é a influência exercida pela indústria cultural no

sentido do praticante escolher não apenas uma arte marcial, mas a mesma arte

praticada pelos dois atores citados pelo praticante, o kung fu chinês.

No caso do full-contact, ocorre hoje em dia um fenômeno parecido

com o que sucedeu ao kung fu no início dos anos 70. A extraordinária

visibilidade patrocinada pela sua presença em diversos produtos da indústria

cultural tornou o full-contact extremamente popular. O full-contact é uma das

modalidades do chamado kickboxing, termo genérico que define as

modalidades de luta esportiva que utilizem mãos enluvadas e golpes com as

pernas. A partir de filmes de artes marciais como "O Grande Dragão Branco",

com Jean Claude Van Damme, ele próprio praticante de kickboxing, esta

modalidade adquiriu grande visibilidade. Outros filmes do gênero reforçam

esta visibilidade, com títulos como "O Rei dos Kickboxers", "American

Kickboxer" ou mesmo "Full-Contact: Contato Mortal", que, apenas por

curiosidade, nada tem a ver com o esporte, é só um título.

Em "O Grande Dragão Branco", o personagem representado por

Van Damme realiza um movimento inverso ao de "Kane" em "Kung Fu". Se

neste seriado o herói era um chinês que sobrevivia em um meio socialmente

adverso, o velho-oeste americano, contando apenas com o seu auto-controle e

o conhecimento de artes marciais, no filme de Van Damme o protagonista é um

33

militar americano que, tendo aprendido os segredos das artes marciais com um

mestre oriental, vai ao extremo oriente participar de um torneio de artes

marciais.

$$$

Foto 2: Pôster de Van Damme, Academia Central

O torneio, ilegal, chama-se Kumite e nele se inscrevem lutadores de

todos os estilos, em lutas que duram enquanto um dos lutadores não desistir ou

desmaiar. A luta final do torneio (e do filme) é contra um chinês corpulento

que usa de todas as vilanias para vencer, como atacar um lutador caído (não

por acaso, um wrestler americano, amigo de Van Damme) ou jogar areia nos

olhos do "mocinho" na luta final.5 A lógica maniqueísta do filme de uma certa

forma "vinga" os cowboys-vilões de "Kung Fu". Desta feita, o grande

"bandido" é um imenso chinês que só vence porque usa de meios ilícitos (ao

contrário de "Kane" e Bruce Lee, ambos de pequena estatura, habilíssimos no

combate, e sempre éticos perante o adversário). O "mocinho", além de ser

militar, americano, branco e de olhos verdes, vai até o mais fundo porão do

extremo oriente competir com lutadores de todo o mundo e de todos os estilos,

ou seja, perfaz o caminho de "Kane" ao contrário, invadindo o próprio "berço"

das artes marciais para mostrar que aprendeu muito bem sua lição. Ao final,

consagrado pela vitória – inevitável –, Van Damme recebe de todos os

orientais que presidem o torneio o título de "O Grande Dragão Branco". Cabe

lembrar que "Dragão" era o apelido de Bruce Lee, que acabou tornando este

ser imaginário em uma espécie de "animal totêmico" das artes marciais. 6

5 "Wrestling" é a denominação americana para uma modalidade de luta-livre, conhecida no Brasil como "catch" ou "telecatch". Wrestler é o praticante de wrestling.6 O apelido de "Dragão" deriva de uma antiga denominação das virtudes necessárias a um mestre de kung fu. São os chamados "cinco animais do kung fu", cada um deles representando uma virtude: tigre, a força; leopardo, a velocidade; serpente, a agilidade; grou, a flexibilidade e, finalmente, o

Utilizando-se do "título" de Bruce Lee, já falecido, acrescido dos adjetivos

"grande" e "branco", Van Damme adquire para si o trono simbólico de "maior

lutador do mundo" – do mundo do cinema, evidentemente –, vago desde a

morte de Lee. Não basta mais ser apenas um "dragão": há que ser "grande" e,

principalmente, "branco".

Assim, ao contrário de outras artes marciais menos conhecidas,

como o kempô ou o hapkidô, o full-contact possui uma "visibilidade" social

derivada dessa influência da indústria cultural, tornando-o "conhecido" e

consumido mesmo por pessoas de fora do métier das artes marciais. Esta

influência da indústria cultural produziu um grande aumento no número de

praticantes deste esporte em relação a outras artes marciais estabelecidas há

bem mais tempo. Além disso, se ao número dos praticantes de artes marciais e

esportes de combate for somado o dos consumidores de produtos da indústria

cultural que se referem a combates corpo-a-corpo, como a transmissão de

combates pela televisão, os filmes de ação ou os videogames de luta, fica clara

a representatividade que estas práticas e consumos têm no imaginário de nossa

sociedade.

A propósito dos videogames que simulam situações de combate, é

notável a freqüência com que, entre os lutadores disponíveis de serem

manipulados pelo jogador, aparecem referências a Van Damme e a Bruce Lee.

Nestes videogames, quase sempre existe um lutador cuja característica é a

abertura lateral das pernas de 180°, referência a Van Damme. Em uma cena de

"O Grande Dragão Branco" que o tornou famoso no mundo das artes marciais,

Van Damme treina para uma luta com os calcanhares apoiados em duas

cadeiras, as pernas diametralmente opostas. Da mesma forma, outro

personagem freqüente nos videogames é um chinês franzino de calças pretas e

dragão, que representa o poder espiritual do mestre de artes marciais.

35

sem camisa que associa seus ataques fulminantes a gritos estridentes,

referências claras a Bruce Lee. Em um jogo chamado Pit Fighter, um dos

lutadores, que na abertura do jogo aparece treinando um kati de kung fu e

associa gritos estridentes ao seu ataque, chama-se – não por coincidência –

"Kato", exatamente o mesmo nome do personagem de Bruce Lee no seriado

"Batman".7 Em outro jogo, chamado Mortal Kombat, um dos lutadores chama-

se "Johnny Cage", que é apresentado como um famoso astro do cinema

americano, praticante de kickboxing, que apresenta no seu repertório de golpes

uma súbita abertura das pernas a 180° que lhe permite golpear o baixo-ventre

do adversário.

Se esta associação do full-contact com o conteúdo dos filmes

referidos e com jogos de videogame por um lado promove a popularização do

full-contact, por outro traz consigo uma série de preconceitos em relação a este

esporte, ao apresentá-lo como uma competição sangrenta onde todos os meios

são lícitos na busca da vitória, os lutadores transformados em gladiadores

sanguinários, como no enredo dos filmes ou dos videogames. O full-contact,

na verdade, é apenas um esporte de combate como tantos outros, repleto de

regras proibindo golpes perigosos e com o corpo do lutador coberto de

equipamentos de proteção. Desmitificar esta imagem pública com que o senso-

comum cerca as artes marciais em geral e em especial o full-contact me parece

importante, e também é um dos objetivos deste trabalho.

1.4 A Organização das Artes Marciais no Campo Esportivo

Neste trabalho será utilizado o conceito de "campo", nos termos

tratados por Bourdieu (1989). Um "campo" pode ser inicialmente definido

7 Kati – kata, em japonês – é uma série de movimentos predeterminados que simulam os golpes característicos de cada estilo de arte marcial.

36

como um "universo relativamente autônomo de relações específicas"

(Bourdieu, 1989: 65-66). Posto nestes termos, o conceito é vago, dada a

imensa multiplicidade de "campos" distintos, como o campo da alta costura, o

campo científico, o campo econômico e o campo do poder, por exemplo.

Apesar dessa diversidade, existem propriedades em comum, a ponto de

Bourdieu sugerir uma "Lei Geral dos Campos" (Bourdieu, 1983a: 89). Nos

termos deste autor, um campo é basicamente um terreno de luta "entre o novo

que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada, e o dominante que

tenta defender o monopólio e excluir a concorrência" (Bourdieu, 1983a: 89).

Assim, a estrutura de um campo é dada pela relação de força entre os agentes

ou instituições em conflito pela distribuição do capital específico deste campo.

Por exemplo, o "campo da religião" é o espaço social onde se trava uma luta

entre as igrejas e crenças tradicionais, já estabelecidas, e o avanço de novas

seitas e cultos, estes ansiosos por conquistar o maior número de "fiéis", e

aquelas, temerosas de perder os fiéis já conquistados. O exemplo é

evidentemente simplificado, mas posto nestes termos, o "capital específico" do

campo são os fiéis, que garantirão a sobrevivência, a manutenção ou a

ascensão de um corpo de crenças dentro desse campo das práticas religiosas,

que tem como "produto" os chamados por Bourdieu "bens de salvação"

(Bourdieu, 1992). Uma característica decorrente deste conflito é a oposição

entre as duas posições citadas, que assume a forma de conflito entre

"ortodoxia" versus "heresia". Os que mantêm a posição dominante

(freqüentemente monopolizando a posse do capital específico) tendem a

estratégias de conservação, ao passo que os que possuem menos capital e

querem estabelecer-se no campo recorrem a estratégias de subversão, de modo

a minar o poder dos dominantes.

37

Essa luta por uma parcela mais significativa do capital específico do

campo, entretanto, não é uma guerra de extermínio. Na verdade, se formos

utilizar a classificação de Rapoport (1980), nem se trata de luta, mas de jogo.

Nos termos deste autor,

...o jogo parte não de um desacordo, mas de um acordo, isto é, o acordo entre os oponentes de lutar por objetivos incompatíveis dentro de certas regras. (Rapoport, 1980: 2)

Assim, apesar do interesse conflitante dos agentes envolvidos, há

um acordo tácito entre eles, e um interesse em comum pela preservação do

campo. Mesmo as estratégias de subversão ocorrem dentro de limites estritos,

sob pena de exclusão. Afinal, a subversão levada a seu extremo levaria à

dissolução do campo, fato que não é do interesse de nenhum dos agentes

envolvidos. Referindo-se ao "jogo" como função cultural, Huizinga relata fato

semelhante. A transgressão da regra leva, segundo ele, à expulsão do

transgressor ou, se tal não ocorrer, ao fim do jogo (Huizinga, 1971: 14). A

analogia do campo como um terreno de jogo é enfatizada por Bourdieu, que

considera, dado o investimento em tempo e esforço para a entrada no campo,

(ou seja, no jogo) "praticamente impensável a destruição pura e simples do

jogo" (Bourdieu, 1983a: 137).

Colocada a questão nestes termos, o universo das práticas e

consumos esportivos pode ser considerado como um "campo esportivo".

Bourdieu considera o esporte moderno como um sistema de agentes e

instituições que começou a funcionar como um "campo de concorrência". Se

esse sistema funciona como um campo, dada a autonomia que o caracteriza,

não se pode simplesmente associar em relação direta os fenômenos esportivos

num dado momento e as condições econômicas e sociais das sociedades

correspondentes. A respeito desta relativa autonomia que caracteriza o "campo

esportivo", Bourdieu afirma:

38

A história do esporte é uma história relativamente autônoma que, mesmo estando articulada com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica. (Bourdieu, 1983a: 137)

O "campo esportivo" ao longo de seu processo de constituição

tornou-se palco de lutas as mais diversas, pelo monopólio da legitimidade de

representar determinado esporte e seus praticantes, pela legitimidade da

"prática amadora" (mais fiel aos ideais da elite) contra a "profissionalização"

(mais próxima da realidade das classes populares), o "esporte-prática" contra o

"esporte-espetáculo", e mesmo dentro de um mesmo esporte, as lutas por

hegemonia de determinadas "escolas" ou "estilos". Essas lutas todas opõem

entre si não apenas atletas, treinadores e dirigentes, mas também médicos,

nutricionistas, fabricantes de artigos esportivos, designers e estilistas de moda,

publicitários e profissionais de imprensa.8 Para Bourdieu, essas lutas pela

legitimidade dentro do campo esportivo são reflexo "do estado das relações de

força entre as frações das classes dominantes e entre as classes sociais no

campo das lutas pela definição do corpo legítimo e dos usos legítimos do

corpo" (Bourdieu, 1983a: 142). No "campo esportivo", como em todos os

outros campos, existe uma luta entre diferentes setores da sociedade pela

legitimidade dos espaços conquistados naquele campo. Como um exemplo,

pode ser vista a difícil relação estabelecida entre a realização dos jogos

olímpicos da era moderna e a prática esportiva profissional, apenas

recentemente permitida naqueles jogos. Durante quase um século – ou seja,

durante praticamente toda a história dos jogos olímpicos modernos – só

podiam competir nos jogos olímpicos (que representavam um ideal de "espírito

esportivo" caracterizado pela distância de vantagens materiais auferidas por

meio do esporte) atletas ditos "amadores". Esta categoria se opõe à categoria

8 Ver também, neste sentido, Cristan, 1994.

39

"profissional", ou seja, "amadores" são aqueles que praticam o esporte "por

amor" e não "por profissão". A disputa acerca destas duas categorias revela um

conflito entre duas posições sociais distintas: de um lado os membros das

chamadas "elites", que podem praticar esportes de modo "amador", devido à

disponibilidade de recursos financeiros; de outro, os esportistas oriundos das

camadas populares, que para disporem de tempo para treinar, precisam receber

pagamento pelas horas de treinamento, ou seja, tornam-se "profissionais". Há

poucos anos, esta posição foi revista, e hoje participam dos jogos olímpicos

todos os atletas que obtiverem um determinado índice técnico específico para

cada modalidade, independente do pagamento ou não dos "serviços" do atleta.

A relação conflituosa no campo esportivo derivada de diferenças de origem

social, entretanto, persiste.

As diferentes práticas e consumos de produtos esportivos em nossa

sociedade – bem como os demais tipos de consumo – se dão de modo

diferenciado de acordo com o pertencimento de cada agente a determinados

grupos sociais.9

Não somente as possibilidades de acesso ao consumo desses bens

são menores para as pessoas provenientes das camadas populares como o

próprio tempo necessário para a prática esportiva em si é aproveitado de modo

diferente. As alternativas de lazer disponíveis – entre as quais se inclui o

esporte – também são diferentes para pessoas de camadas diferenciadas.

Mesmo no caso da prática de um esporte como atividade de lazer, cada grupo

social apresenta uma tendência a escolher determinada modalidade esportiva,

de acordo com a natureza das motivações envolvidas a respeito. A própria

natureza "gratuita" e "descompromissada" da prática esportiva representa um

reflexo das circunstâncias sociais que deram origem ao esporte moderno.

9 Ver, neste sentido, Bourdieu (1983a), e Boltanski (1979).

40

O esporte, como o conhecemos hoje, surgiu em fins do século

passado, apesar de serem referidos jogos e competições entre os mais diversos

povos desde a mais remota antigüidade. De acordo com Bourdieu (1983a),

uma possível "história social do esporte" deveria ressaltar o surgimento da

competição esportiva associado aos liceus e escolas destinados aos filhos das

classes dominantes da Inglaterra e França em fins do século passado. Através

de uma releitura de jogos populares, retirou-se desses jogos todo o elemento de

interesse material imediato (inclusive suas ligações com festas e tradições

populares), tornando-os um fim em si mesmos, uma atividade irredutível a

qualquer outra categoria. Estava criado o "esporte amador", e não é por

coincidência que Pierre de Coubertin, o criador dos modernos jogos olímpicos

era um barão de nobreza antiga. Essa inclinação pela atividade desinteressada

e sem finalidade específica é "uma dimensão fundamental do ethos das 'elites'

que sempre se vangloriaram de desinteresse e se definem pela distância eletiva

(...) em relação aos interesses materiais." (Bourdieu, 1983a: 139) Esse "berço

nobre" no qual nasceu o esporte deixou sua marca ao longo do processo de

autonomização do campo esportivo, na forma de uma "filosofia política do

esporte" (Bourdieu, 1983a: 140). Esta filosofia política é uma dimensão da

filosofia aristocrática baseada no desinteresse por razões materiais e pela busca

tenaz da vitória, desde que jamais se desobedeça às regras. É o assim chamado

fair play (sempre invocado na época das Olimpíadas e Copas do Mundo) que,

na perspectiva de Bourdieu, representa uma forma de forjar o caráter e

desenvolver as virtudes viris dos futuros líderes, conforme os preceitos

daquelas instituições de ensino. Além disso, a prática esportiva era também

recomendada pelos educadores de então como uma maneira saudável de

ocupar, vigiar e, principalmente, canalizar a agressividade latente naqueles

grupos de adolescentes sob seus cuidados. Essa função de mobilização,

41

ocupação e controle exercida pelo esporte foi rapidamente apropriada por

todos quantos tinham sob sua influência grande número de pessoas. Desta

forma, surgiram associações esportivas vinculadas inicialmente a sindicatos,

partidos e igrejas que, adquirindo autonomia, transportaram para o campo

esportivo rivalidades políticas dos mais diferentes níveis (Bourdieu, 1983a).

Nessa transposição da prática esportiva do meio social das elites

dominantes para as camadas populares houve uma profunda reinterpretação

dos significados dessas práticas, segundo os critérios das camadas populares.

Um dos principais efeitos dessa transposição foi a profissionalização do

esporte, fato que contraria frontalmente o chamado "espírito esportivo"

conforme preconizado por Coubertin. No confronto estabelecido entre esporte

amador e esporte profissional, aquele sendo possuidor de uma "pureza" de

princípios que este, por envolver uma soma em dinheiro, não possuiria, muitos

esportistas foram discriminados por serem "profissionais". Fato notável a esse

respeito foi o episódio ocorrido na Olimpíada de Estocolmo, em 1912, quando

um atleta americano, Jim Thorpe, um índio algonquim do Oklahoma, tornou-se

o primeiro campeão olímpico do decatlo e pentatlo. Após os jogos, teve as suas

medalhas cassadas pelo Comitê Olímpico de então por ter, supostamente,

recebido no passado quinze dólares por semana para jogar beisebol, o que faria

dele um "profissional" (Maranhão, 1980). Esta obrigatoriedade da

desvinculação ao interesse financeiro durou até há bem pouco tempo no

Comitê Olímpico Internacional, que não aceitava atletas "profissionais" nos

jogos olímpicos.

Para profissionais ou amadores, as quadras de esporte, pistas,

campos ou ringues são locais privilegiados para a realização de confrontos

competitivos em nossa sociedade. Às diferentes práticas esportivas

correspondem diferentes praticantes. Vários autores referem-se a uma relação

42

estatisticamente comprovável entre as diferentes modalidades esportivas e a

origem social de seus praticantes, como Benach (1987), Bourdieu (1983a),

Kregel (1987) e Boltanski (1979). Assim, entre pessoas provenientes das

classes populares, a utilização do próprio corpo como instrumento de trabalho

revelaria uma tendência a escolher esportes que demandem um grande

investimento de esforço físico, "por vezes, mesmo dor e sofrimento", tais

como os esportes de combate (Bourdieu, 1983a). Já nas camadas médias, a

motivação para praticar uma determinada modalidade esportiva adviria de

benefícios na manutenção da saúde e da forma física do indivíduo. Nestes

grupos, a prática de esportes arriscados, como o full-contact (onde o risco de

sair ferido ou nocauteado é sempre uma possibilidade real), limita-se a uma

espécie de "licença" concedida aos membros mais jovens e impetuosos destes

grupos, por um período limitado. Em geral, estas práticas são abandonadas

muito cedo (Bourdieu, 1983a). Para as pessoas provenientes das classes

populares, entretanto, a prática do esporte com finalidade profissional

representa uma alternativa bastante viável de ascensão social, talvez uma das

únicas (Bourdieu, 1983a e Magnane, 1969).

Assim, as artes marciais encontram-se, junto com os esportes de

combate, ligadas a uma realidade maior, o "campo das práticas e consumos

esportivos". Para cada estilo de luta existem produtos especializados, desde o

uniforme da academia onde se treina até acessórios importados, como armas

orientais, no caso do kung fu e kendô, ou equipamentos de proteção, como

botas e caneleiras, para full-contact e outros estilos de kickboxing. No

mercado de bens e serviços, os "serviços" são prestados por todas as

academias, locais onde se transmitem os conhecimentos acerca de cada

modalidade de luta, com um corpo técnico autorizado a ministrá-los, a partir

de um alvará emitido pela federação que regulamenta cada modalidade. Nas

43

últimas décadas, muitas artes marciais tradicionais foram transformadas em

modalidades esportivas, com a incorporação de regras para competições,

estabelecimento de rankings, filiação a entidades internacionais de luta

esportiva e organização nacional em federações e confederações, como é o

caso do judô, karatê, jiu jitsu e muitas outras modalidades.

As diversas modalidades de luta encontram-se todas organizadas

em federações e confederações, ligadas em última instância ao poder público,

através do Ministério da Educação e Cultura.10 A organização política de uma

modalidade de luta esportiva ou arte marcial segue uma hierarquia que vai da

academia ao MEC. O Ministério da Educação e Cultura regulamenta a prática

do esporte no Brasil através do Conselho Nacional de Desportos (CND). A este

órgão estão ligadas todas as confederações esportivas nacionais. Uma

confederação é formada a partir da adesão de no mínimo dez federações

estaduais de uma mesma modalidade. No caso dos esportes de combate, a

maioria deles está vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo, que

possui um departamento para cada modalidade. Modalidades que estejam

organizadas no país inteiro, entretanto, podem se autonomizar e fundar a sua

própria confederação, como é o caso da Confederação Brasileira de Judô, hoje

desvinculada da Confederação Brasileira de Pugilismo. A nível estadual, a

organização política das práticas esportivas é similar. As modalidades de luta

mais freqüentes possuem, em cada Estado, uma federação que regulamenta sua

prática, cabendo a ela emitir alvarás autorizando determinados praticantes a

lecionar, referendar testes para passagens de degraus hierárquicos para os

praticantes, organizar competições e estabelecer os rankings amador e

profissional daquela modalidade. Em princípio, uma modalidade nova no

10 As informações acerca da organização política das modalidades esportivas foram obtidas através de entrevistas com o sr. Vinícius Guarilha, ex-presidente da Federação Gaúcha de Pugilismo e atual presidente da Federação Gaúcha de Full-Contact.

44

"campo esportivo", em se tratando de um esporte de combate, terá sua prática e

ensino normatizada, no Rio Grande do Sul, pela Federação Riograndense de

Pugilismo, como é o caso do hapkidô, capoeira e kendô, onde cada um destes

esportes está organizado como um departamento daquela federação. À medida

em que uma modalidade vai crescendo de importância dentro do campo

esportivo, pelo aumento expressivo do número de seus praticantes, aumenta

também o número de instrutores a ela associados, e esse processo em geral

leva a modalidade a buscar autonomia, através de uma federação própria. Após

um ano organizada como um departamento da federação, os clubes filiados

podem pedir a desvinculação desta, através da publicação de um edital de

desvinculação, marcando a eleição da primeira diretoria, de um conselho fiscal

e de um tribunal de justiça esportiva próprios. Cada clube filiado há mais de

um ano tem direito a voto, e o estatuto da nova federação deve ser aprovado

pelo CND. Foi o caso do full-contact no Rio Grande do Sul, que inicialmente

era ligado à Federação Gaúcha de Pugilismo. Os instrutores mais antigos

fizeram seus testes para faixa-preta em São Paulo, através da Federação

Paulista de Full-Contact, e depois tiveram seu resultado referendado pela

Federação Gaúcha de Pugilismo. Com o súbito sucesso desta modalidade

desde o final dos anos 80, em 30 de dezembro de 1991 foi criada a Federação

Gaúcha de Full-Contact, que, com sete clubes fundadores, hoje conta cerca de

35 faixas-pretas (praticantes autorizados a lecionar) e aproximadamente 2000

praticantes registrados em todo o Estado (Dados da Federação Gaúcha de Full-

Contact).

Em nível internacional, o full-contact, a exemplo do boxe, encontra-

se organizado por associações mundiais, como a ISKA, a WAKO e a FFKA.

Cada uma destas entidades disputa com as outras a supremacia dentro do

"campo esportivo", filiando o maior número de países e organizando rankings

45

e competições mundiais. As regras de cada uma destas associações são

ligeiramente diferentes, bem como a área geográfica de influência de cada

uma. A ISKA, principal associação mundial de full-contact, sob cujas regras

compete a maioria dos atletas brasileiros, obriga os lutadores a desferir, em

cada round, no mínimo oito chutes contra o adversário, sob pena de perda de

pontos. Já a WAKO, entidade que predomina na Europa, não impõe aos

lutadores qualquer limite de chutes, tornando a luta mais próxima ao boxe.

Desta forma, cada associação tem seu próprio ranking, e um mesmo lutador

pode, por exemplo, ser o campeão mundial por uma das associações e quinto

colocado no ranking de outra. Por vezes, pode acontecer de os detentores do

cinturão mundial de duas associações combinarem uma luta para unificar o

título, e o vencedor passa a ser o campeão mundial nas duas associações.

Capítulo 2. O Full-Contact

2.1 Generalidades

Como foi visto no capítulo anterior, o full-contact é um esporte de

combate de origem relativamente recente. Surgido nos Estados Unidos em fins

dos anos 60 e início dos 70, o full-contact era uma tentativa de reunir em

condições de competição praticantes das mais diversas técnicas de combate,

como o taekwondo, o karatê e o boxe. Utilizando elementos de todas essas

modalidades, o full-contact, hoje em dia, é praticado em um ringue de 7x7m e

com luvas semelhantes às usadas no boxe, com as faixas, hierarquia e

cumprimentos semelhantes aos do karatê e com técnica de pernas similares às

usadas no taekwondo.

Os praticantes têm sua competência específica hierarquizada por

meio de faixas coloridas atadas à cintura. Cada faixa representa um degrau

hierárquico a ser atingido pelo praticante por meio de exames periódicos, nos

quais o candidato à ascensão de faixa demonstra sua competência perante uma

banca examinadora autorizada pela Federação. São avaliadas seqüências de

socos, chutes, golpes combinados (combinação predeterminada de socos e

chutes) e uma luta, tanto mais difícil quanto mais avançada a faixa pretendida.

Em ordem crescente de competência, as faixas são: branca, azul, verde,

marrom, marrom-com-ponta-preta e preta. Nas academias que aplicam o

sistema de treinamento conhecido como "Batarelli System", o teste para que

um candidato adquira a faixa-preta inclui a realização de uma luta de dez

rounds de três minutos contra três adversários que se revezam no ringue, de

47

modo a estarem sempre descansados. O objetivo deste exame é testar a

determinação e a resistência do candidato à faixa-preta. Os praticantes

chamam este teste de "Homem de Ferro", e aspectos envolvendo a realização

desta prova serão desenvolvidos adiante. Este teste, cabe ressaltar, não é

unanimemente aplicado, em muitas academias o teste para a faixa-preta é

realizado com as seqüências de golpes, uma luta de três rounds e a

apresentação de uma aula de full-contact. Esta aula é solicitada nestas

academias porque a posse da faixa-preta autoriza o praticante a lecionar com

alvará da Federação, uma perspectiva de profissionalização considerada viável

por muitos praticantes.

2.2 Universo de Pesquisa: Os Praticantes de Full-Contact

Os dados etnográficos utilizados para a realização deste trabalho

foram obtidos em academias de full-contact localizadas na cidade de Porto

Alegre, Brasil. Nesta cidade existem mais de dez academias com professores

autorizados a lecionar full-contact. Destas, foram selecionadas cinco

academias, além da própria sede da Federação Gaúcha de Full-Contact, onde

são realizados mensalmente torneios de full-contact freqüentados por dezenas

de praticantes de Porto Alegre, Grande Porto Alegre e interior do estado do

Rio Grande do Sul.

Em Porto Alegre, a origem social dos praticantes de full-contact

permite uma divisão destes em dois grupos: um deles formado por pessoas

provenientes das camadas populares, com escolaridade geralmente abaixo do

segundo grau, trabalhando em funções subalternas (padeiro, auxiliar de

escritório, cobrador de ônibus...) e residindo na periferia de Porto Alegre ou

mesmo nos municípios vizinhos. As academias onde estes praticantes treinam

ficam em geral próximas ao centro da cidade, e cobram uma mensalidade de

cerca de dez reais11. O outro grupo de praticantes é formado por estudantes

universitários, que, quando trabalham (alguns são sustentados pela família),

ocupam cargos de nível médio (funcionalismo público, gerente na empresa da

família, etc) e residem em bairros residenciais de Porto Alegre. As academias

onde estes praticantes treinam ficam em bairros residenciais tradicionais de

Porto Alegre, e o preço de suas mensalidades é cerca de três vezes maior do

que o das academias do outro grupo.

Assim, neste trabalho levei em consideração a existência desta

"bipartição" dentro do grupo pesquisado, e houve a preocupação em realizar

entrevistas e trabalho de campo etnográfico em academias que representassem

os dois segmentos deste grupo.

Apesar de serem tratados neste trabalho como um único grupo, nos

aspectos que se referem à identidade masculina, e de terem em comum a

prática de uma mesma modalidade esportiva, os praticantes de full-contact de

cada um destes grupos raramente se encontram. As academias freqüentadas

por pessoas oriundas das camadas médias são vinculadas ao chamado "Guaraci

Vargas Team", um grupo de academias ligadas a um mesmo professor, que dá

aulas em três academias e a outros professores, ex-alunos seus, que dão aulas

em mais três. Na academia Pro Fitness, foi construído um ringue para realizar

as lutas deste grupo. A partir da construção deste ringue, foi estabelecido um

ranking por faixa de peso entre os praticantes ligados a essas academias, de

modo análogo ao ranking da Federação. Os torneios realizados por este grupo

também são de âmbito exclusivamente interno, e os lutadores mais

qualificados deste grupo são conhecidos entre os alunos das outras academias

do grupo. Com ranking, ringue e praticantes próprios, o único contato deste

grupo com a Federação é o estabelecido por lei, a necessária presença de um

11 O valor de R$ 10,00 correspondia aproximadamente, em maio de 1995, a US$ 9,00

49

representante da Federação quando da realização de exames para passagem de

faixa. Nestas academias se pratica a prova chamada de "Homem de Ferro",

teste para a obtenção da faixa-preta que será tratado adiante. Os praticantes

deste grupo dão grande valor à faixa que estão usando no momento, e a prática

de lutas dentro do ringue é, para muitos deles, de menor importância. Muitos

praticantes têm suas únicas experiências de combate nos testes para passagem

de faixa. Nas tardes de lutas e demais eventos promovidos pela Federação, os

praticantes deste grupo não comparecem, e suas academias são desconhecidas

dos praticantes do outro grupo, acostumados a lutar contra praticantes de todo

o Estado. Deste grupo, foram selecionadas para trabalho de campo a academia

"Pialo", no bairro Mont'Serrat, o "Centro de Lutas Ferlinghetti", no bairro

Auxiliadora e a "Academia Pro Fitness", local da construção do ringue

utilizado por este grupo, no bairro Rio Branco.

O outro grupo, que reúne a maior parte dos praticantes de full-

contact, está subdividido por academia, os alunos de uma academia tendo

pouco trânsito junto aos alunos de outra. O ponto de encontro destes

praticantes é a sede da Federação Gaúcha de Full-Contact, onde mensalmente

são realizados eventos de luta entre praticantes de academias de todo o Estado.

A ênfase dada à prática do full-contact neste grupo é do desempenho no

ringue, sendo dada pouca importância à faixa de cada praticante. No ringue,

somente os lutadores faixa-preta usam faixa, os demais não usam faixa

alguma. É comum, neste grupo, um lutador médio (faixa-verde, por exemplo)

já ter em seu currículo várias lutas "oficiais", contra praticantes de diversas

academias. Com a marca de dez lutas como amador, um lutador pode passar a

realizar lutas como "profissional", recebendo uma "bolsa" em dinheiro de

acordo com sua qualificação. O caminho da luta profissional, assim, passa pela

Federação, e é seguido por muitos praticantes. Para os praticantes do outro

50

grupo, a carreira profissional de pugilista é unanimemente descartada, a única

instância admitida de profissionalização dentro deste esporte é como professor,

de preferência como "dono" de sua própria academia.

Das academias vinculadas a este segundo grupo, foram

selecionadas a "Academia Central", no centro de Porto Alegre, coordenada

pelo professor Daniel, escolhida pela sua representativa participação no

ranking da Federação, com vários dos seus alunos sendo detentores do

cinturão estadual de sua categoria de peso.12

$$$

Foto 3: Cinturão do campeão estadual dos "cruzadores"

Neste sentido, a Academia Central é uma exceção no contexto do

full-contact estadual, pois todos os demais cinturões estão de posse de

praticantes da Grande Porto Alegre e interior do Estado. Além desta academia,

a própria Federação Gaúcha de Full-Contact é outro dos locais pesquisados,

não só pela disponibilidade dos dados do registro dos praticantes no Estado,

mas também pelos eventos mensais de lutas de full-contact realizados por ela,

em que se reúnem praticantes de dezenas de academias de todo o Estado e

onde se realizam lutas valendo pontuação para o ranking e defesas de

cinturões estaduais, ou seja, a prática "oficial" do full-contact, representando

sempre para os praticantes a possibilidade de ascensão dentro deste esporte.

Assim, a divisão dos locais para a realização de trabalho de campo

etnográfico e entrevistas com os praticantes procurou seguir esta diferença na

composição social do grupo considerado, o dos "praticantes de full-contact".

12 Nos esportes de combate, o detentor de um título, campeão de uma determinada categoria de peso, detém, como símbolo de sua posição, a posse de um "cinturão", que deve ser colocado anualmente em disputa com outros lutadores.

51

Em Porto Alegre, alguns esportes de combate, como o boxe, por

exemplo, são praticados, com raras exceções, por pessoas provenientes das

camadas populares, em academias de poucos recursos, com preço

relativamente baixo, em geral no centro da cidade. Outras modalidades, como

o jiu jitsu, são praticadas em academias caras, nos bairros mais elitizados da

cidade, e freqüentadas por pessoas provenientes das camadas médias e altas,

em instalações impecáveis e com equipamentos importados.13 O full-contact,

curiosamente, é praticado por ambos os grupos: as academias no centro, de

preço baixo e instalações precárias, são freqüentadas por pessoas provenientes

da Grande Porto Alegre, trabalhadores de baixo poder aquisitivo e

escolaridade. Ao mesmo tempo, as academias instaladas em bairros

residenciais das camadas médias e altas, são freqüentadas por pessoas

provenientes destas camadas, em geral de nível universitário e de bom poder

aquisitivo. Os dois grupos, é verdade, raramente se encontram, e a distância

entre eles tende a aumentar. Não obstante, enquanto "praticantes de full-

contact" são muitas as semelhanças entre eles, a ponto deste trabalho tratar os

"praticantes" como um grupo relativamente homogêneo.

Assim, o fato do full-contact ser praticado por grupos sociais tão

diferentes torna-se uma particularidade interessante sob o ponto de vista da

pesquisa, já que permite isolar, no somatório dos relatos dos praticantes e

observações etnográficas nas academias, aspectos invariáveis e relativamente

desvinculados da origem social destes praticantes.

2.3 A Prática Esportiva em Grupos Sociais Diferenciados

13 Estes exemplos referem-se à cidade de Porto Alegre. No Rio de Janeiro, onde o jiu jitsu é extremamente popular, a situação provavelmente é diferente.

52

Conforme foi visto no capítulo anterior, os motivos que levam uma

pessoa a praticar um determinado esporte em vez de outro são os mais

diversos, de acordo com o desejo de manter a forma, de conquistar títulos, de

freqüentar a "alta sociedade", apenas pela diversão, etc. De modo geral, o

segmento social a que pertence o praticante influencia esta escolha, embora

não a determine (Boltanski, 1979).

Um aspecto importante a ser levado em conta na prática esportiva

entre pessoas provenientes das camadas populares é a sua utilização por

muitos praticantes como uma atividade profissional. A profissionalização

dentro de um determinado esporte torna, para este atleta, a ascensão neste

esporte no objetivo de uma carreira profissional, fazendo do esporte, que para

a maioria das pessoas está identificado com o lazer, o núcleo do seu projeto de

ascensão social. Neste sentido, a busca de ascensão no ranking de uma

determinada modalidade esportiva representa, para o praticante profissional,

uma etapa necessária para a sua ascensão no "ranking social", recebendo

proporcionalmente maiores quantias em dinheiro por seu desempenho

esportivo e maior reconhecimento social por esse desempenho, na forma de

"prestígio" ("capital simbólico", nos termos de Bourdieu). A busca deste

caminho de realização profissional através do esporte, entretanto, não é

hegemônica entre os praticantes de esportes provenientes das camadas

populares, apesar de vários atletas buscarem esta alternativa, como o cerne

mesmo de seu projeto de ascensão social.

Segundo Velho, a noção de "projeto" representa, dentro da teoria

sociológica, uma tentativa de compreensão das ações de indivíduos ou grupos

que leve em conta a "margem relativa de escolha", naquilo que ele chama de

"campo de possibilidades" (Velho, 1981: 108). A noção de "projeto" é definida

por Schutz como "o ato proposto, imaginado como se já houvera sido

53

efetuado", e também como uma "conduta organizada para atingir fins

específicos" (Schutz, 1974: 24). Esta noção é utilizada por Velho para referir-

se à relativa "margem de manobra" que os indivíduos têm, dentro de uma

mesma situação social, para fazerem opções diferentes. Muitos dos praticantes

de full-contact são provenientes das camadas populares e relatam histórias de

vida semelhantes. Somente alguns destes, entretanto, têm como projeto

individual de ascensão social a prática profissional do full-contact. Assim, a

noção de um "projeto" individual de, no caso, ascensão social através do

esporte, faz parte de um repertório possível de opções para estes praticantes, é

um caminho possível dentro do seu "campo de possibilidades".

2.3.1 Dois Casos

Muitos praticantes de mesma origem social e histórias de vida

semelhantes, entretanto, preferem não optar pelo caminho da

profissionalização, praticando full-contact apenas "por esporte". A seguir,

veremos dois casos de praticantes de full-contact oriundos de meios sociais

diversos e o espaço em que esta prática esportiva se inseriu na vida cotidiana

de cada um deles.

Carlos, 20 anos, luta full-contact há quatro e é faixa-preta no seu

estilo. Como lutador amador, possui um currículo notável: dez lutas e dez

vitórias, oito por nocaute, além de um título estadual amador de full-contact,

categoria meio-médio-ligeiro. É casado, tem uma filha, e trabalha como

cobrador de ônibus em Porto Alegre. Segundo ele, sua adolescência foi

marcada por brigas freqüentes na escola, que pararam quando ele entrou para a

academia:

"No tempo do colégio, sempre o pau fechava, eu sempre procurava os chefes das gangues, eu ganhava as gatinhas deles, eles saltavam em mim, eu não era de levar desaforo pra casa, vivia brigando

54

[mostra as cicatrizes de cortes nos punhos, lembranças do colégio...]. Aí quando eu entrei pra academia, eu acho que até porque os caras sabiam que eu treinava, né, começaram a respeitar mais, quer dizer, os caras respeitam o cara que tá na academia e que tem progresso, não adianta, como eu te falei, tem um monte de cara que treina aí só pra dizer: "Ah, eu faço Full-Contact", e o pessoal tem que ver o teu progresso pra te pegar um respeito."

Atualmente, ele está em processo de profissionalização no full-

contact e no boxe, realizando lutas marcadas de antemão por uma soma em

dinheiro. Sua primeira luta de full-contact como profissional não foi favorável,

ele perdeu por nocaute técnico no primeiro round. Dias depois, falando a

respeito desta luta em entrevista, Carlos assinalava várias vezes que seu

defeito era ser "amador", enquanto que seu oponente era "profissional". A

diferença entre as categorias "amador" e "profissional" é ressaltada com

freqüência por Carlos, que falou diversas vezes no seu sonho de ter como

profissão o full-contact. Como cobrador de ônibus, sua atual ocupação, Carlos

trabalha das seis horas da manhã às três da tarde, e em seguida, vai à academia

treinar. Numa das atividades de sua vida cotidiana, ele é "cobrador", na outra,

ele é "campeão". O projeto de viver exclusivamente dessa atividade como

esportista representa também o desejo de ascensão social pela via do esporte

profissional, embora ele reconheça as dificuldades de viver exclusivamente à

custa do dinheiro de patrocinadores – bastante raros no contexto esportivo

brasileiro. O fato desta via de ascensão social através do esporte ser uma das

poucas possibilidades de ascensão para pessoas provenientes das classes

populares, e um projeto freqüentemente buscado por estas pessoas foi

ressaltado por diversos autores, como Bourdieu (1983a), Boltanski (1979),

Magnane (1969) e Benach (1987). O valor dado por Carlos à prática do

esporte de combate e o significado atribuído por ele a esta prática esportiva

podem ser aferidos a partir do seguinte trecho de entrevista:

55

"[Lutar] é estar vivendo. Isso aí pra mim é estar vivendo. Treinar, lutar, pra mim é a minha vida. Sem isso, eu não seria nada. A minha vida em si é isso aí, é o ar que eu respiro."

A afirmação de que sem o esporte de combate ele não seria nada

revela o desprezo pelas outras instâncias de sua vida cotidiana. O momento em

que ele faz o que sabe, gosta e recebe uma valorização social por suas

atividades é, sem dúvida, o tempo passado dentro do ringue, ou mesmo o

horário de treinos diários dentro do recinto da academia, onde praticantes

iniciantes o olham com respeito e lhe pedem orientações sobre o treino.

Compreensível, portanto o desprezo dele para com a categoria "amador" do

full-contact. Nela, ele já é campeão, enquanto que, na categoria "profissional",

a que ele aspira, ele foi derrotado por nocaute técnico no primeiro round em

sua primeira luta. O grau de dificuldade nos combates profissionais é

sensivelmente maior, e o desafio de lutar contra oponentes cada vez mais

qualificados, além da possibilidade de ganhos financeiros com as lutas, ou seja

"viver do full-contact", são motivação suficiente para o seu projeto de

ascensão no esporte profissional.

Severo, 20 anos, pratica full-contact há três anos, e é faixa marrom-

com-ponta-preta. Trabalha como funcionário de uma transportadora e possui

uma aparelhagem de som e luz para "botar som" em festas nos fins de semana.

Estuda administração de empresas à noite em uma faculdade particular.

Segundo seu relato, durante a adolescência, em uma escola particular, Severo

teve, em um único ano, onze repreensões por escrito por ter se envolvido em

brigas com colegas. Começou a praticar luta treinando capoeira, mas

abandonou esta modalidade em poucos meses por achar "muita ensebação".

Junto com alguns amigos, entrou para uma academia de full-contact, onde foi

o único que permaneceu treinando por mais do que um ano.

56

Com pouco mais de um ano de full-contact, Severo foi processado

judicialmente por lesões corporais, por agredir um rapaz que teria roubado o

relógio de seu primo. Conforme o relato de Severo,

"...meu primo foi assaltado por uma gangue na saída da Crocodillus, e o cara roubou o relógio dele, e eu sou um cara que trabalho, como eu te falei, eu sei quanto é que custa um relógio. Então eu disse, 'olha, se nós encontrar esses caras tu pode deixar que o que eu puder fazer pra desmontar eles eu vou fazer'. Eu botava som numa danceteria, o cara entrou lá dentro, eu chamei o cara pra sala da segurança, eu e ele, tinha o meu primo também, mas não precisei que ninguém cuidasse de mim, e disse pra ele: 'mas tu é um chinelo, mesmo, ô rapaz, roubar um relógio, que é isso?' Aí ele lutava capoeira, e eu como já lutei, né, quando ele fez aquela ginga pra trás, quando ele foi me dar um golpe, eu saí. (...) Coloquei três golpes, um, dois, três, foi o homem. Resolvi. Aí ele me processou e ganhou, eu não tive como alegar legítima defesa. Foi meio premeditado, era dentro da sala do lugar onde eu tava trabalhando, deixei o som rolando e fui lá... Foi de repente um ato impensado, mas eu não me arrependo totalmente, porque na minha opinião, ladrão tem que apanhar, eu acho que tem que apanhar, tem que levar tiro, tem que morrer, ladrão, ainda mais assim gurizinho filhinho de papai, que não passa fome, pra roubar, não é pra comer..."

Na verdade, com esse confronto, Severo não resolveu muita coisa:

além de não ter reavido o relógio de seu primo, ainda foi processado e

condenado por lesões corporais, com o agravante de ser praticante de artes

marciais. Neste depoimento, podem ser percebidos vários outros aspectos além

do simples relato. Severo manifesta a importância do trabalho para ele na

medida em que lhe confere independência. Ele sabe "quanto é que custa um

relógio". A importância dada à independência também é ressaltada quando ele

fala que na sala onde ocorreu o confronto também estava o seu primo, mas que

ele não precisou que ninguém cuidasse dele. Chodorow (1979) afirma que uma

das características da constituição da identidade masculina é a negação de

relações de dependência, tidas como "feminilizantes". Ao defender um

membro de sua família, Severo estava também afirmando publicamente a sua

57

masculinidade por esta via. As conseqüências de seu ato (que só não foram

mais graves porque ele era réu primário) fizeram com que ele se afastasse de

lutas fora do recinto da academia, ainda que ele justifique até hoje a sua atitude

naquela ocasião e mesmo tenha um certo orgulho em contar este caso. Ele

"resolveu" a situação não por ter reavido o relógio, motivo do confronto, mas

porque "vingou" seu primo derrubando o ofensor. Segundo Dundes (1994), a

derrota em um combate implica uma espécie de "feminilização simbólica" do

derrotado. Um conteúdo desta ordem pode ser visto na frase com que Severo

descreve o efeito de seu ataque: "foi o homem". Ele "foi" porque após ser

derrubado não "é" mais homem, neste sentido.

A relação de Severo com o trabalho também manifesta-se num

conteúdo de rejeição a quem depende dos pais, que ele identifica com o seu

adversário, "gurizinho filhinho de papai". Batendo nele, Severo também estava

atingindo um estereótipo que tenta evitar a qualquer preço, o de "filhinho de

papai". Segundo Gilmore (1990), um dos traços que, nas mais diversas

culturas, manifestam a transformação de um menino em um homem é a

obtenção do próprio sustento, ou seja, produzir mais do que consome. Neste

sentido, adquire um especial tom de desprezo o diminutivo "gurizinho"

colocado por ele à frente de "filhinho de papai". Assim, também fica manifesto

o conteúdo de "desmasculinização" do oponente, não por sua feminilização,

mas por sua redução à condição de "gurizinho". Esta temática da construção da

identidade masculina será mais desenvolvida no capítulo seguinte.

2.4 O Lado de Dentro das Academias

Nesta descrição etnográfica de algumas academias, com eventos

como aulas, uma tarde de lutas e um combate, será utilizada a noção de setting

e da representação dramatúrgica da interação social, conforme tratada por

58

Goffman (1975). Segundo este autor, a interação social se dá sob a forma de

uma "representação" análoga à teatral, na qual "atores" sustentam perante um

"público" uma dada definição da situação que ocorre naquele momento, a

chamada "impressão de realidade". Nesta acepção,

o objetivo de um ator é sustentar uma particular definição de situação, representando isto, por assim dizer, sua afirmação do que seja a realidade. (Goffman, 1975: 83)

Assim, o self de cada ator é variável de acordo com a "manipulação

da impressão" (impression menagement) que está sendo dada naquele

momento. Para Goffman, a unidade básica desta interação social

"dramatúrgica" não é o ator, mas a "equipe", definida por ele como

um conjunto de indivíduos cuja íntima cooperação é necessária, para ser mantida uma determinada definição projetada da situação. Uma equipe é um grupo, mas não um grupo em relação a uma estrutura ou organização social, e sim em relação a uma interação, ou série de interações, na qual é mantida a definição apropriada da situação. (Goffman, 1975: 99)

Assim, tratarei a interação social que ocorre durante a realização de

uma aula de full-contact, por exemplo, como o relato da atuação de uma

"equipe" comandada pelo professor e sustentando perante um "público"

(muitas vezes, composto apenas por mim, assistindo e anotando a todos os

pormenores possíveis daquela atuação) uma definição do que seja a realização

de uma aula de full-contact.

Desta forma, os eventos que se passam dentro e fora do ringue e no

lado de dentro de uma academia serão tratados sob esta perspectiva

dramatúrgica, sendo os desempenhos relatados constantemente referidos à

abordagem interacionista de Goffman. Para este autor, o local onde se dá uma

determinada interação é chamado de "região" ou setting, uma espécie de

"cenário", que se define por ser limitado de algum modo por barreiras à

59

percepção. O setting a ser descrito é justamente o lado de dentro das academias

onde se pratica o full-contact, oculto dos olhos dos passantes por escadas e

portas. A descrição do "cenário" onde se dá esta atuação procura fixar aspectos

da decoração e dos acessórios que ajudam a compor a "atmosfera" do ambiente

onde se dá a interação pesquisada, mesmo sem a presença dos atores. Assim,

esta descrição começa pelo setting da prática do full-contact .

2.4.1 O Espaço:

A Academia Central está situada no último andar de um velho

prédio na esquina das ruas Vigário José Inácio com Voluntários da Pátria, no

centro de Porto Alegre. Em frente à entrada, bloqueando metade da porta do

prédio, há uma máquina de fazer "sorvete italiano" e outra de fazer "churros

uruguaios". O operador das máquinas bloqueia a outra metade da estreita

passagem. Em dias quentes, posta-se também à entrada uma enorme fila de

pessoas interessadas no sorvete. Passando por sorveteiros, máquinas e

consumidores, entra-se no prédio, cuja única indicação para a rua é um letreiro

incompleto: "ACAD". A escada que leva até o recinto da academia é de

madeira, muito velha e sem conservação, e range a cada passo rumo ao recinto

da academia, local dos treinos de vários lutadores campeões estaduais de full-

contact. No meio do segundo lance de degraus, fica uma porta de madeira que,

quando trancada por um cadeado com corrente, impede o acesso ao recinto da

academia. Passando por mais esse lance da antiga escada, chega-se ao lado de

dentro da academia. O salão onde são realizados os treinos é bastante grande.

Trata-se de uma sala em formato trapezoidal de aproximadamente quinze

metros de comprimento por uma largura média de cerca de oito metros (ver

figura 1, na pág @). O piso da sala é de madeira, e quando, durante o

aquecimento, os praticantes correm em torno do dojô, o local onde se realizam

os treinos, pode-se ver claramente o chão oscilar sob os passos dos atletas. 14 No

fundo da sala, junto às janelas para a Voluntários da Pátria, ficam os

equipamentos para treino, máquinas de musculação, halteres e um grande saco

de pancada, pendurado ao forro por uma corrente.

A parede lateral da academia, a maior de todas, é praticamente

despida. Nesta parede, perto da entrada, fica um painel de isopor com

fotografias de antigas lutas do professor Daniel, instrutor de full-contact e

taekwondo nesta academia.

$$$

Foto 4: Quadro com fotos de lutas na Academia Central.

Ao lado das fotos, cartazes anunciando as datas de eventos de luta

de full-contact promovidos pela Federação Gaúcha de Full-Contact. Abaixo

dos cartazes, uma folha de papel mimeografado com as divisões de peso

utilizadas pela ISKA15, de mini-mosca a super-pesado. Ao lado desta folha de

papel, um mapa do Brasil com as divisões de Estados, publicado em papel

jornal, provavelmente encarte de algum periódico. Na parede oposta à

Voluntários da Pátria, a menor da sala, estão afixados diversos objetos, o

principal deles um grande espelho com moldura, onde os alunos

freqüentemente se olham ao praticar os golpes aprendidos na aula. Acima do

espelho, diplomas emoldurados comprovando a faixa-preta do professor,

emitidos por entidades nacionais e internacionais de taekwondo. É notável, na

constituição deste setting, o grande número de fotos e diplomas que referem-se

14 O termo "dojô" é uma palavra japonesa que refere-se ao local onde são realizados os treinos de arte marcial, particularmente de karatê. Como na maioria das academias são praticadas várias modalidades de técnicas de combate, o termo japonês pode ser aplicado a outras artes marciais não-japonesas. Neste sentido, utilizarei este termo referindo-me ao espaço onde se realizam os treinos.15 International Sports Karate Association, uma das federações internacionais que organizam a prática do Full-Contact, cujas regras são as mais utilizadas no Brasil.

61

ao desempenho do professor, atestando, mesmo sem sua presença, a sua

excelência nesta área.

Ao lado do espelho, um pôster composto de diversas cenas de

filmes de Jean-Claude Van Damme, incluindo a clássica cena, já citada, em

que ele realiza a abertura lateral de 180° e outra, do mesmo filme, onde Van

Damme acerta um chute frontal com salto no meio do peito de seu adversário

chinês. Acima deste pôster, um cartaz do Conselho Regional de Desporto:

"Esporte é vida, escolha o seu!" Ligeiramente acima dos diplomas, um velho

pôster emoldurado de Bruce Lee. A presença de pôsteres de atores de cinema

que atuam em "filmes de arte marcial" é, como já foi dito, bastante freqüente

nas academias pesquisadas. Os preferidos são o já citado Van Damme e o

eterno "dragão" Bruce Lee.

Em academias onde se ensina o estilo de kung fu "Shaolin do

Norte", é usual colocar-se à parede retratos dos antigos mestres, junto a um

cartaz escrito em chinês louvando os feitos destes "ancestrais", que legaram

aos atuais praticantes os conhecimentos desta tradição. Este estilo, entretanto,

um dos mais antigos e tradicionais dentro das artes marciais, é originário da

China, onde a reverência devida aos ancestrais representa importante papel

dentro daquela cultura, aspecto que se manifesta na arte marcial originária

daquele país. Em uma técnica de combate ocidentalizada como o full-contact,

que foi criado há menos de trinta anos, os "ancestrais" acabaram sendo

substituídos por atores de cinema, refletindo a importância que estes produtos

da indústria cultural têm no imaginário dos praticantes, como que

representando uma perene fonte de inspiração para a prática do combate.

As paredes com as janelas para a rua são decoradas, nos espaços

entre cada janela, com aparelhos auxiliares nos treinos, como "raquetes" (alvos

para chutes e socos altos, em formato aproximado de uma raquete de tênis) e

62

luvas: normais, para a prática de combate e "de foco", uma luva acolchoada,

semelhante à luva de beisebol, utilizada como alvo para socos. Junto às luvas,

outro pôster de Van Damme e, no alto, quase no limite superior das janelas,

vários "nunchakus", armas tradicionais das artes marciais, que consistem em

um par de pequenos bastões de cerca de 30 cm ligados por uma corrente de

cerca de 10 cm. Os nunchakus não são utilizados no full-contact nem no

taekwondo. Sua função na parede desta academia, portanto, é apenas

decorativa, reforçando um vínculo com a origem oriental das técnicas de

combate ali praticadas. Na ilustração abaixo, pode ser vista a disposição dos

diversos elementos no recinto da academia.

aparelhos demusculação

halteres

espelho

Área de Treinos

Entrada

Vestiários

saco depancada

(dojô)

fotografias

pôsters

diplomas

Figura 1: Diagrama do salão de treinos da Academia Central

A partir do diagrama acima, podemos notar diversos aspectos

acerca da constituição deste setting onde ocorrem as aulas de full-contact.

Logo próximo à entrada ficam os objetos de decoração que demonstram

publicamente a capacidade técnica e a competência do professor Daniel: as

fotografias de seu desempenho em combates e seus diplomas conferidos por

63

entidades esportivas internacionais. Ele não precisa estar presente ao recinto de

treinos, nem lutar com ninguém para provar sua capacidade na prática do

combate: suas fotos e diplomas o fazem por ele. No extremo oposto do recinto

de treinos, estão os aparelhos de musculação e demais equipamentos para a

construção do corpo dos lutadores: halteres, cordas e saco de pancadas, à

disposição dos praticantes, antes e depois das aulas. Entre a "técnica refinada"

manifesta pelos "comprovantes de competência" do professor e a "força bruta"

adquirível nos aparelhos, está o dojô, local onde se aplica esta "força bruta"

visando obter aquela "técnica refinada". Numa certa medida, pode-se falar em

um trânsito da "natureza" para a "cultura". Como veremos mais adiante, os

valores considerados necessários para um bom lutador, salientados pelos

praticantes em entrevistas são a "força" e a "técnica", que podem ser

associados ao binômio natureza/cultura. A força é associada ao corpo,

enquanto a técnica está associada à "cabeça", diz-se que um lutador é "técnico"

quando ele "luta com a cabeça".

Esta questão acerca das categorias êmicas "força" e "técnica" será

mais desenvolvida no próximo capítulo. Assim, na descrição do espaço onde

se desenvolvem as aulas de full-contact, podem ser percebidas manifestações

de conteúdos simbólicos que se refletem no uso que os praticantes de full-

contact fazem do espaço onde ocorre esta interação, através do arranjo dos

diversos elementos componentes deste espaço.

Na classificação que Goffman faz dos diversos elementos

componentes do setting de uma determinada representação social, ele divide-o

basicamente em dois setores: "área de fachada" e "área de bastidores"

(Goffman, 1975: 106). A área de fachada corresponde à região onde a

representação efetivamente ocorre, na presença do público. A área de

bastidores é a região onde os atores preparam a representação e ocultam aquilo

64

que contradiria a definição de situação levada à cena. Segundo este autor, o

acesso aos bastidores é normalmente restrito aos membros da equipe. O

público deve restringir-se à área de fachada, de modo a não pôr a perder a

definição de situação que está sendo sustentada pela equipe que atua naquele

setting.

Aplicando esta categorização de Goffman para o caso da academia

descrita, a "área de fachada", ou seja, o recinto de treinos da academia, sempre

me foi franqueado, podendo ficar lá, observar, fotografar, anotar e entrevistar

os praticantes sempre que quisesse. O acesso aos vestiários, entretanto, como

"área de bastidores", sempre me foi tacitamente negado. Os praticantes entram

na academia, cumprimentam os presentes levemente com a cabeça e vão para o

vestiário. Saem de lá vestidos para a aula de full-contact, já com outra

disposição para conversar com os colegas e demais presentes, inclusive para

conceder entrevistas: por duas vezes, alunos desta academia me pediram que

eu esperasse eles se vestirem para dar uma entrevista, já que eu os interpelei

sobre a entrevista logo que chegaram. Uma vez vestidos como "lutadores de

full-contact", ou seja, já "em cena", as entrevistas transcorreram naturalmente.

2.4.2 Uma Aula:

Tarde de maio em Porto Alegre, poucos minutos antes das quatro.

Na Academia Central, os alunos desfrutam de um momento lúdico. Um

aparelho de rádio em volume alto toca sem cessar uma emissora de música

jovem. Sentados no chão, em pequenos grupos, os alunos conversam, riem,

demonstram golpes aos colegas no saco de pancada, outros fazem musculação

nos aparelhos da academia, todos à espera do professor, que começará a aula

às quatro. O professor chega, cumprimenta os alunos informalmente e vai ao

vestiário trocar de roupa. O grupo de alunos é composto de oito praticantes,

65

três meninos de cerca de dez ou doze anos e cinco adolescentes de dezesseis,

dezoito anos. O professor chega na sala de treinos; dois dos meninos, deitados

no chão em frente ao espelho, brincam com o professor, ameaçam "dar nele".

Em resposta, sem dizer palavra, este agacha-se, pega um dos meninos pelo

tornozelo e, com facilidade, levanta-o do chão com um só braço: "E aí? Vai dar

em mim?" O menino jura que não, mas mal é recolocado no chão, já recomeça

a brincadeira, com um arremedo de chute. A brincadeira com o menino é vista

por todos os presentes, e pode ser interpretada como uma manifestação de

virilidade por parte do professor, reestabelecendo o seu poder colocado

jocosamente em dúvida pelos meninos. O braço levantado é, nos esportes de

combate, o sinal da vitória de um dos lutadores. O professor, levantando o

corpo do menino pelo tornozelo com um só braço, demonstra publicamente

sua excelência perante seus alunos como resposta ao chiste dos dois meninos,

além da evidente demonstração de grande força física.

Segundo Goffman, quando ocorre a apresentação de uma equipe,

geralmente um dos participantes possui a função de "dirigir" a apresentação,

basicamente através da realização de duas "missões": trazer de volta à linha de

ação escolhida algum ator desviante e distribuir os papéis destinados a cada

membro da equipe (Goffman, 1975: 94). Estabelece-se, assim, uma relação de

dominância do diretor sobre os demais membros da equipe, para que a

representação tenha sucesso, isto é, para que corresponda à definição de

realidade proposta.

No caso citado, o professor agiu de acordo com o que era esperado

de seu papel social de "diretor" da "equipe": manifestando o seu poder ao

reconduzir à linha de ação proposta o menino "infrator". Como a "infração" se

deu em termos jocosos, a "punição" igualmente o foi, aceitando entrar na

brincadeira. Cabe notar o cuidado com que o professor ergueu o menino,

66

vagarosamente, de modo a evitar machucar o menino ao erguê-lo pelo

tornozelo. Mesmo em uma brincadeira, os papéis de cada ator estão claramente

delimitados, e a linha de ação seguida pela "equipe" que está sendo descrita

durante esta ação nada sofreu com a relação jocosa estabelecida entre este

menino e o professor.

Após colocar o menino no chão, o professor caminha pela sala,

reúne os alunos para o começo da aula. Os alunos ficam alinhados na área de

treinos, em frente ao espelho. O professor comanda "sen-tido!" e os alunos

executam o movimento marcial, os braços estendidos ao longo do corpo. Ao

comando "cumprimentem!", os alunos executam o cumprimento à japonesa,

uma leve inclinação do tronco à frente com os braços ao longo do corpo. Após

o cumprimento, o aquecimento começa com uma corrida em torno do dojô. De

tempos em tempos, são comandadas ligeiras variações na corrida, elevando os

joelhos, trocando o sentido do deslocamento, correndo de costas, etc. Após

alguns minutos de corrida, os alunos fazem o exercício conhecido por

"polichinelo". O total é de 400 repetições, cada aluno "puxa" (conta em voz

alta) 50 repetições. Longas séries de exercícios são comuns nos treinos de full-

contact. Seu objetivo é, além de conferir resistência física aos praticantes,

prepará-los para controlar a dor resultante deste grande esforço muscular.

Durante os exercícios, o professor passeia pela sala, pratica chutes no saco de

pancada ou olha pela janela o movimento intenso de pedestres no centro da

cidade.

Nem sempre é o professor quem coordena o aquecimento dos

alunos. Em algumas academias, um aluno mais experiente pode tomar o lugar

do professor e comandar a sessão de exercícios de aquecimento. Durante um

certo período, participei de treinos de full-contact na academia Pialo, como

parte do trabalho de campo etnográfico, para estar junto com o grupo e

67

compartilhar da mesma experiência. Nesta academia, o professor, que dá aula

em vários outros locais, aproveita que um de seus alunos começa o

aquecimento para chegar um pouco mais tarde na aula e trocar de roupa

enquanto os alunos aquecem. A minha primeira participação em um destes

treinos está registrada no seguinte trecho do meu diário de campo:

Cheguei no treino, após falar com o Guaraci, e os alunos já estavam aquecendo. Eles aquecem por conta própria, orientados por alguns alunos mais experientes. Havia sete alunos, eu e o professor. Como eles já tinham começado, o Severo (entrevistado de hoje), que estava orientando o aquecimento falou pra mim: "é só chegar, tira o tênis e entra". Como eu não sabia há quanto tempo eles estavam aquecendo, falei: "Não esquenta, eu faço shao-lin, deixa que eu aqueço sozinho". Fui pra um canto e fiz meus próprios exercícios. Talvez tenha sido antipático, mas marca minha diferença. Com o tempo, veremos como resultou esse approach.

No caso, a minha entrada em cena – que hoje reputo algo brusca –

foi proveitosa, mal acabou a aula e os alunos vieram conversar comigo para

saber onde eu treinava, o que eu estava fazendo ali, e outras perguntas do

gênero. Ao responder, aproveitei para falar dos objetivos da minha pesquisa e

já marcar entrevistas com alguns deles. O primeiro a ser entrevistado foi o

próprio Severo, arrogante e desconfiado a princípio, porém mais receptivo ao

final, quando, pelo fato de eu também ser praticante de artes marciais, acabei

sendo reconhecido como "um deles". Em várias outras ocasiões, vi o rumo de

uma entrevista mudar totalmente por conta da minha relação pessoal com a

arte marcial, do mesmo modo que ocorreu com Severo. Ao saberem desta

prática, o semblante, os termos empregados e a profundidade das respostas

melhoravam consideravelmente, decorrência do ganho em confiança por parte

dos entrevistados, e a entrevista mudava de uma espécie de questionário

respondido de má-vontade para algo próximo a uma conversa informal entre

velhos conhecidos.

68

Voltando à academia Central, após a longa série de polichinelos

praticada pelos alunos, o professor coloca-se à sua frente e, explicando como

será o próximo exercício, mostra uma ou duas repetições. O aprendizado das

técnicas de combate, como de muitas outras técnicas corporais se dá de modo

mimético. Segundo Bourdieu (1990), o aprendizado das práticas esportivas se

dá através de uma "compreensão corporal", já que o que há para ser aprendido

não passa pelo domínio verbal, mas corporal. Wacquant (1989), que realizou

um estudo etnográfico treinando boxe em uma academia no bairro negro de

Chicago – como "participante observador" – referindo-se à didática do

pugilismo, afirma que

...a transmissão do pugilismo se efetua de modo gestual, visual e mimético, ao preço de uma manipulação regrada do corpo, que somatiza o saber coletivamente detido e exibido pelos membros da academia a cada nível da hierarquia tácita que a atravessa. A "nobre arte" apresenta sob este título o paradoxo de um esporte ultra-individual cuja aprendizagem é profundamente coletiva.

(Wacquant, 1989: 56)*

A transmissão destes conhecimentos corporais, assim, exige que o

professor mostre fisicamente "como se faz", para que os alunos, imitando

mimeticamente o seu movimento, aprendam a técnica. Quando se diz, entre os

praticantes, que "o aluno é o espelho do professor", não se trata só de retórica,

o aprendizado se dá exatamente desta forma: o movimento físico do professor

é imitado do modo mais exato possível pelos alunos. Valores morais

inculcados pelo professor (sentido usual no qual esta expressão é usada)

seriam uma variante desta forma mimética de aprendizado. Além disso, o

professor, ao executar ele próprio o movimento exigido dos alunos reatualiza

constantemente perante eles a sua própria capacidade de fazê-lo, a sua

* No original: "La transmission du pugilisme s'effectue de manière gestuelle, visuelle et mimétique, au prix d'une manipulation réglée du corps qui somatise le savoir collectivement détenu et exhibé par les membres du club à chaque palier de la hiérarquie tacite que le traverse. Le "noble art" présente à ce titre le paradoxe d'un sport ultra-individuel dont l'apprentissage est foncièrement collectif."

69

excelência naquele domínio. Isto fica particularmente claro no seguinte

depoimento de um praticante:

"...se tu for dar aula, tu vai ser um exemplo pros teus alunos. Além de tu ser um exemplo, tu vai ser o espelho de quem te ensinou, então tu vai ter que mostrar que tu é capaz daquilo ali, que tu sabe fazer, que tu tem condições de fazer."

(Lúcio, 30 anos, porteiro)

Após a demonstração, os alunos, mimeticamente, começam a

praticar até receber a ordem de parar. O praticante mais graduado desta aula é

um rapaz de seus dezesseis anos, faixa-verde, que manifesta uma certa

independência dos demais alunos ao praticar os exercícios por conta própria,

de modo mais lento, independente da contagem do professor. Na analogia

dramatúrgica, este ator representa perante o público o seu papel de "aluno

experiente", já que indica possuir experiência suficiente para realizar o treino

no seu próprio ritmo, independente do ritmo determinado pelo professor.

Os exercícios consistem basicamente de "alongamentos", com

especial atenção para as pernas. O efeito buscado com estes exercícios é

aumentar ao máximo a "abertura", o máximo ângulo entre as duas pernas

abertas lateralmente. O "paradigma da máxima abertura", por assim dizer, é

Jean Claude Van Damme, que, como já vimos, tornou-se famoso por sua

abertura de 180°, meta buscada com afinco pelos praticantes.

$$$

Foto 5: Alongamento individual, Academia Central.

A obtenção de uma grande abertura traz diversas vantagens ao

lutador. Como nas regras da ISKA só são válidos os chutes acima da linha da

cintura e são exigidos de cada lutador oito chutes por round, quem tiver a

70

perna mais aberta poderá desferir os chutes mais altos e com maior eficiência.

Para obter uma boa abertura são necessários treinos freqüentes e,

principalmente, suportar a dor do tendão sendo forçado além do seu limite. Se

o praticante forçar demais, pode causar uma lesão que levará semanas para

melhorar. Se forçar pouco, para não doer, o exercício será inútil, pois o tendão

não estará sendo alongado. A obtenção de uma grande abertura de perna,

assim, exige que o praticante não apenas suporte a dor, mas que a busque

voluntariamente como uma etapa necessária para seu desenvolvimento técnico.

Como diz um provérbio americano comum entre fisiculturistas: No pain, no

gain (Klein, 1993).

Em um treino de full-contact, o tema do controle sobre a dor como

uma das medidas simbólicas da masculinidade aparece com freqüência. A

busca deste controle voluntário sobre a dor é ressaltada por diversos autores

como um aspecto da identidade masculina, como Helman (1994) e Gilmore

(1990). Além da busca do alongamento visando a máxima abertura, as

infindáveis séries de exercícios abdominais também são motivo para a

superação da dor. Os exercícios abdominais são imprescindíveis para um

lutador: o abdômen é uma região extremamente vulnerável a ataques do

adversário. Sem uma musculatura rija protegendo o fígado, o estômago e o

baço, basta um único golpe bem colocado no abdômen para tirar de combate

um lutador. Os exercícios abdominais, assim, enrijecem os músculos serráteis

ventrais, formando uma espécie de "escudo" que protege os órgãos internos de

traumatismos decorrentes do combate. É comum os praticantes, após a aula,

realizarem uma bateria de 400 a 500 repetições de exercícios abdominais, cada

aluno "puxando" 50 repetições, como na longa série de "polichinelos" relatada

acima.

71

Após estes exercícios individuais de alongamento, o treino, ainda

no aquecimento, prossegue com exercícios em dupla, também visando o

alongamento, além de exercícios abdominais. Estes exercícios funcionam da

seguinte forma: um dos praticantes ajuda o outro a exercitar-se, e depois é por

ele ajudado.

$$$

Foto 6: Alongamento em dupla, Academia Central

O primeiro exercício consiste em pousar as pernas por sobre as

canelas do colega, estirado no chão, para que ele faça exercícios abdominais.

Outro exercício, desta vez visando abertura, consiste em colocar a planta dos

pés nas panturrilhas do colega, forçando, desta forma, a abertura lateral das

pernas dele. Desta forma, sucedem-se diversos exercícios em dupla. O contato

com o corpo do colega é indispensável à realização do exercício: no full-

contact não há contato corporal apenas durante o combate. Nos treinos, este

contato corporal pacífico é freqüente e, segundo os praticantes, "faz parte do

treino", é considerado necessário à construção de um lutador.

Findo o período de exercícios em dupla, os praticantes se dispersam

pela academia, para terminarem de alongar, cada um à sua maneira. Eles usam

janelas, barras horizontais dos aparelhos de musculação ou mesmo o ombro de

um colega, qualquer anteparo alto o suficiente para pousar uma perna

estendida para alongar, a fixação evidente na busca da máxima abertura.

Ao fim do tempo para alongamento livre, termina o longo

aquecimento dos praticantes. O treino de full-contact começa com os alunos

em fila, andando em círculos em torno do dojô aplicando chutes por cobertura.

Ao passar diante do espelho da parede, os praticantes freqüentemente param

72

um pouco para verem-se aplicando o golpe que está sendo treinado. Os

meninos, para quem o treino tem o seu tanto de brincadeira, nem pensam no

golpe, usam sua passagem diante do espelho para admirarem o próprio bíceps,

com o braço direito erguido, num narcisismo alegre e despreocupado. Além do

"espelho" personificado pelo professor, os praticantes normalmente costumam

treinar em frente a um espelho para poderem ter um feedback de seu próprio

desempenho no aprendizado da técnica de luta. Um praticante considera um

"egocentrismo" ficar admirando o próprio desempenho em frente ao espelho:

"...eu curto me olhar no espelho e ver dar um golpe legal, dizer "pô, tô progredindo", eu curto, é um egocentrismo meu, se tu gosta disso, eu acho que não tem nada de mal..."

(Severo, 20 anos, funcionário de transportadora)

No caso, o que Severo chama de "egocentrismo" nada mais é do

que um sentimento narcíseo em tudo similar ao dos meninos que aproveitam

sua passagem em frente ao espelho para admirarem o próprio bíceps. A

diferença é o nível de elaboração deste sentimento, justificado por conta de

uma valorização estética do desempenho aprimorado da técnica de combate.

Após a sessão de chutes por cobertura, os alunos, em duplas,

treinam golpes combinados com o auxílio de um "escudo" (retângulo

acolchoado, revestido de lona, de cerca de 30 x 40 cm). Enquanto um dos

praticantes segura o escudo, à altura do rosto, o outro aplica os golpes

combinados. Esses golpes, na verdade, são seqüências de golpes

predeterminados, bastante práticas quando em combate, pois fornecem ao

lutador a possibilidade de realizar ataques rapidíssimos, praticamente sem

pensar, evitando a defesa do adversário. No caso, a primeira seqüência de

golpes consistia em um chute frontal, um jab e um direto, ou seja, um chute e

dois socos, um com cada braço. Estas seqüências de golpes também podem ser

chamadas de 1-2-3. Após determinado tempo, o escudo troca de mãos e o outro

73

praticante realiza os golpes combinados. Enquanto os alunos menos

experientes treinam com os escudos, junto às janelas, dois praticantes mais

velhos, com o tórax envolto por um protetor acolchoado, treinam chutes

laterais nas costelas do colega. O treino é realizado em sentido linear, quem

está atacando avança, e a cada passo troca a perna que está chutando. Quem

está levando os chutes não se defende, ao contrário, ergue os braços para

facilitar o chute do colega. Ao final de uma linha imaginária ao longo do dojô,

os papéis são trocados, quem estava no ataque, passa para a defesa, e vice-

versa. Este exercício treina ambos os participantes. Quem está atacando,

aprende a distância correta para o chute, além do controle da força na perna:

mesmo com protetor de tórax, um chute lateral potente quebra com facilidade

algumas costelas, um lutador deve ter alguma prática antes de realizar este tipo

de treinamento. Quem está se defendendo (ou, no caso, não está) aprende a

levar o golpe e, no jargão do grupo, assimilá-lo, isto é, agir como se não

tivesse sido atingido, desconsiderar o dano causado. Mais uma vez, a presença

do controle sobre a dor. Um golpe nas costelas pode facilmente provocar

parada respiratória, por isso os protetores e os chutes que são apenas

colocados no colega. O fato de um lutador deixar-se bater, no entender deste

grupo, prepara este lutador para o combate, demonstra sua coragem e auto-

controle perante os colegas e injeta-lhe a necessária auto-confiança na hora do

combate. Segundo Jardim (1991), o auto-controle perante outros homens é um

dos valores fundamentais associados à masculinidade nos grupos de camadas

populares por ela pesquisados. Fato similar pode ser observado entre os

praticantes de full-contact: não só o controle sobre a dor, mas também o expor-

se deliberadamente aos golpes de outro praticante sem manifestar o reflexo de

defesa, ou seja, deixar-se bater superando estoicamente um gesto involuntário

74

de auto-defesa pode ser considerado, neste grupo, como um índice de valores

associados à masculinidade, como veremos no capítulo seguinte.

Após guardar os escudos, o professor distribui a cada dupla uma

"raquete", que tem um uso similar ao do escudo, serve como alvo para golpes,

só que permite maior mobilidade. O treinamento com as raquetes também é

similar: com a raquete erguida acima da cabeça, o colega deve acertar uma

seqüência de golpes, ao mesmo estilo "1-2-3" descrito anteriormente. Outro

exercício consiste em, segurando a raquete para baixo, passá-la por trás da

nuca do colega ida e volta, forçando-o a esquivar-se duas vezes, para, no

mesmo movimento, desferir-lhe um soco cruzado com cada mão. Outros

exercícios de raquete, sempre incluindo golpes combinados, são realizados. A

aula, desde o aquecimento, já dura mais de uma hora e meia. O professor

recolhe as raquetes, pendura-as junto à parede, ordena aos alunos o mesmo

comando marcial do começo, "sen-tido!", a seguir o comando

"cumprimentem!", com a mesma saudação do início e a seguir, sem mais

palavra, o grupo se dispersa. A aula está terminada.

2.4.3 Uma Tarde de Lutas

a. O Evento

Tarde de sábado. Mensalmente, a Federação Gaúcha de Full-

Contact realiza, num sábado à tarde, um evento de lutas de full-contact,

reunindo diversas academias de todo o Estado. O local destes eventos é a

própria sede da Federação, em Porto Alegre. O ringue está colocado em um

grande salão de cerca de 15 x 30 metros, uma espécie de auditório. Num dos

extremos do salão, há um palco desativado, coberto de cadeiras empilhadas e

restos de material de construção. No extremo oposto fica uma arquibancada de

75

quatro lances que preenche o salão quase de parede a parede. Exatamente no

meio do salão fica o ringue, oficial, de 5 x 5 metros, elevado do piso do salão

cerca de um metro.

$$$

Foto 7: Salão de lutas da Federação Gaúcha de Full-Contact

De cada lado do ringue, fica uma mesa e uma cadeira para os

árbitros e, atrás de cada uma delas, mais cadeiras colocadas para aumentar as

acomodações para o público. Entre o ringue e a arquibancada, fica a mesa dos

jurados, com o gongo que assinala o início e o fim dos rounds e os troféus

conferidos ao vencedor de cada luta. Neste dia, havia dez troféus pequenos e

um grande, para um total de nove lutas. Na primeira luta, que seria entre dois

iniciantes, meninos de doze anos, ficou combinado que ambos ganhariam

troféus, o vencedor como primeiro e o perdedor como segundo colocado. As

demais lutas conferiam um troféu ao vencedor, e, no final do evento, o troféu

maior ia para o atleta mais técnico do torneio. O menino que venceu esta

primeira luta não teve a unanimidade dos jurados, sua vitória foi por dois a um,

resultado que, apesar de hierarquizante, ficou muito próximo de um empate.

O cuidado por parte da organização do evento em não ferir a

suscetibilidade do lutador derrotado, no caso um menino de doze anos,

encontra paralelo no caso de um torneio interno realizado pelos praticantes do

"Guaraci Vargas Team", em que não havia a indicação dos vencedores ao fim

de cada luta. No final do torneio, havia uma premiação para o atleta mais

técnico e outra para o atleta mais competitivo. Novamente cabe ressaltar a

presença da dicotomia entre as categorias "força" e "técnica". A premiação ao

atleta mais "competitivo", ou seja, aquele dotado de mais "garra", denota uma

76

valorização de aspectos associados à corporalidade, enquanto a premiação ao

atleta mais "técnico" valoriza o "uso da cabeça" ao lutar. Voltarei a este tema

mais adiante. Voltando ao torneio de Guaraci, inquirido a respeito da ausência

de vencedores no final de cada combate, o organizador respondeu que preferiu

não expor seus alunos à possibilidade de uma derrota, "para ninguém se

arriscar a ter uma imagem negativa durante o evento". Embora a derrota seja

uma contingência do estar lutando, nenhum lutador gosta de perder. Considera-

se que um cartel de lutas sem nenhuma derrota seja um cartel "limpo", de

modo que, neste sentido, uma derrota "suje" o cartel de um lutador. Neste

sentido, transcrevo o seguinte trecho de entrevista:

"Ter um currículo limpo, só com vitórias, é melhor, lógico, mas não regula: nem sempre o cara que ganha é bem visto pelos outros, tu não concorda comigo? O que eu estou dizendo é o seguinte: que aquele cara que não tem muita técnica às vezes ganha do cara que tem mais técnica e quem está de fora olhando vê que aquele que perdeu, perdeu mas foi melhor. O cara que está lutando não pode ser muito orgulhoso: perdeu, perdeu. O cara tem que ser humilde, não pode ficar dizendo: "Eu sou o cara", não tem essa de "eu sou o cara", pega outro cara ali, te derruba, deu. Muito cara é melhor do que tu, sempre tem um que pode ganhar."

(Daniel, 43 anos, professor de full-contact)

No caso, o professor Daniel estava justificando a derrota de um

lutador seu que fora derrotado por pontos por um adversário que, inferiorizado

tecnicamente, vencera a luta usando de sucessivos clinches para impedi-lo de

lutar. O que fica claro neste depoimento é o cuidado que se tem, neste grupo,

ao lidar com a derrota de um aluno ou companheiro. Freqüentemente se ouve,

à guisa de explicação, como neste caso, que "ele perdeu, mas foi melhor", ou

que "se aprende mais perdendo do que ganhando". Como veremos adiante,

existem conteúdos simbólicos associados à derrota que convém evitar, "para

ninguém se arriscar a ter uma imagem negativa", usando os termos do

professor Guaraci.

77

Voltando ao evento de lutas organizado pela Federação, na figura

abaixo pode ser vista a disposição dos diversos elementos que compõem a

cena do torneio de full-contact da Federação. Como se vê, o ringue ocupa a

posição central: é, por assim dizer, o "palco" onde ocorrem os "dramas"

buscados pelo público, os combates. Os eventos esportivos em geral, por sua

própria natureza, têm o seu tanto de espetáculo teatral, seu lado "dramático",

com a diferença que o final, ao contrário das artes cênicas, é sempre

desconhecido do público. Magnane (1969) atribui a atração que o esporte

exerce sobre as massas à sua "autenticidade". Segundo este autor, o estar

presenciando algo de "real", como um espetáculo esportivo significa, para o

público,

ser a testemunha de um drama que se realiza sob os seus olhos, cujo fim não é conhecido pelo autor, organizador ou qualquer outro deus ex-machina. (Magnane, 1969: 88-89)

ringue

jurados

arquibancada

cadeiras

cadeiras

1

2

3

entrada

a

b

1,2,3: árbitros a,b: contadores de chutes

Figura 2: Diagrama do salão de lutas da Federação Gaúcha de Full-Contact

78

Observando a figura acima, podemos perceber que o ringue/palco

não só está na posição central do setting, como também está completamente

cercado pelos assentos destinados ao público, como em um teatro de arena.

Descrito o cenário, vamos ao espetáculo.

b. O Público

No dia do evento, o público presente lotou completamente os

espaços disponíveis. Havia mais de cem pessoas no local. O público era

composto em sua maioria por homens, cerca de dois terços do total. Um terço

das pessoas presentes, entretanto, eram mulheres e crianças, perceptivelmente

mães, irmãs, namoradas ou amigas de algum lutador. Havia também muitas

crianças brincando no local, o que dava ao público presente um caráter de

"ambiente familiar". As relações familiares envolvidas ficavam claras quando

era anunciado pelo locutor o nome dos lutadores, via-se em meio ao público

aquela pequena torcida a favor de um determinado concorrente concentrada

em um ponto da arquibancada a gritar seu nome antes da luta. O restante da

torcida aderia a um ou outro dos contendores sem saber seu nome, de acordo

apenas com o desempenho de cada um no ringue.

Durante um combate, o público valoriza determinados aspectos da

conduta dos contendores. O valor denominado garra, por exemplo, em geral

associado à agressividade e determinação de um lutador no combate, é

aplaudida e gritada pelo público durante um ataque devastador de um dos

oponentes. A capacidade de reação de um lutador também é valorizada. Se,

após suportar um ataque intenso do tipo que arranca aplausos do público, um

lutador consegue esquivar-se, sair das cordas e surpreender seu oponente com

um inesperado contra-ataque, o público grita e aplaude com mais entusiasmo

ainda. Ao final de um combate nestes termos ocorrido durante este evento, o

79

público aplaudiu espontaneamente por longo tempo os dois contendores, antes

mesmo do resultado oficial. A manifestação do valor denominado técnica,

associado à habilidade e velocidade de um lutador na utilização de golpes

difíceis, enfatizado freqüentemente pelos praticantes em entrevista, também é

bastante valorizada pelo público, além de ser premiada oficialmente com o

maior dos troféus destinados pelos organizadores aos lutadores. Em uma das

lutas, um dos contendores aplicou um chute giratório com salto, golpe

bastante difícil de ser aplicado com êxito. Foi o caso: o lutador errou o alvo

com uma rápida esquiva de seu oponente, enredou-se nas cordas e caiu ao

chão. A luta foi interrompida para que ele se levantasse, mas o lutador ergueu-

se da lona coberto de aplausos.

Além de aplausos e gritos, pessoas do público também interagem de

modo mais direto com os lutadores. Durante o combate, parentes e amigos do

lutador incentivam-no gritando seu nome: "Vai lá, Sabugo, vamos, Sabugo,

não pára!!!" Colegas e treinadores aconselham táticas para vencer o combate

ou para reverter uma situação difícil aos berros: "Entra de novo com a perna!!"

Frases avulsas ditas em voz alta ironizam condutas dos lutadores,

evidenciando aspectos considerados jocosos pelos torcedores. Durante uma

luta, um dos lutadores pediu para interromper o combate pois seu cabelo,

bastante comprido, estava caindo em seu rosto pela fresta do capacete, e ele

precisava tirá-lo. Ao ver o motivo da interrupção, um torcedor gritou,

provocando gargalhadas no público: "Faz uma maria-chiquinha!!" Este tipo de

comentário jocoso ironiza a aparência do lutador, em uma espécie de censura à

cabeleira ostentada pelo lutador. A "maria-chiquinha", arranjo do cabelo em

dois rabos-de-cavalo laterais à cabeça, é comumente utilizada em cabelos de

menininhas. De forma irônica, o torcedor aludia ao lutador com um termo

depreciativo comum em desafios verbais entre meninos, indicando a falta de

80

atributos masculinos, referindo-se a ele como "mulherzinha" (ver também,

neste sentido, Carvalho, 1987, Leal, 1992c, e Leczneiski, 1995).

Atributos masculinos são exigidos dos lutadores pelo público

praticamente em tempo integral, usando da jocosidade como canal de

manifestação desta cobrança. Após uma luta, abraçar o oponente é uma

conduta normal nos esportes de combate, considerada entre os lutadores uma

manifestação de honradez e espírito esportivo. Porém, após um dos combates,

o abraço demorou uma fração de segundo além do esperado, o suficiente para

ouvir-se o grito da arquibancada: "Dá um beijo também!!"

Além de palavras, é comum ver-se "conselhos" sobre táticas de

combate manifestados sob forma gestual, durante o intervalo: enquanto o

lutador, extenuado, descansa em seu canto do ringue, seu professor, um dos

jurados da luta, indica-lhe com as mãos a seqüência de golpes a ser utilizada,

no caso, o clássico 1-2, um cruzado de esquerda e um uppercut de direita. Por

vezes, os "conselhos" nem precisam de muito entendimento técnico do público

para serem válidos.

Pelas regras da ISKA, são necessários oito chutes por round para

cada lutador, sob pena de perda de pontos. Para tanto, existem dois auxiliares

"contadores de chutes" (ver figura 2, na pág @), um para cada lutador, com

cartazes de um a oito indicando em ordem decrescente o número de chutes

desferido por cada lutador. Em um determinado combate, um dos lutadores,

em péssima situação na luta, estava "devendo" seis chutes e se aproximava o

final do round. Seus amigos e familiares começaram a gritar desesperados:

"Chuta, Ricardo, chuta!!" Ricardo não chutou, mas por absoluta falta de

condições de terminar a luta. Ele completou o round de pé, nas cordas, sob

severo ataque do adversário. Cambaleou até seu canto, seu treinador

perguntou: "Tudo bem?" Ricardo, completamente grogue, agarrado nas cordas,

81

apenas balançou a cabeça. O treinador fez para os jurados o sinal de

desistência, as duas mãos espalmadas se cruzando na horizontal sobre uma

linha imaginária à frente do peito. Vitória do oponente por desistência no

segundo round.

$$$

Foto 8: Ricardo, sem condições físicas, desiste do combate.

A interação entre o público e os lutadores não é unidirecional, existe

uma comunicação entre os lutadores e a torcida, em geral ao final de um round

ou da luta, quando da entrega dos prêmios. Ao final de um round onde tinha se

saído excepcionalmente bem, um lutador vai para o seu canto com os braços

erguidos, o símbolo da vitória, girando de leve o corpo para mostrar-se ao

público em torno como o virtual vencedor, visando também o efeito moral

sobre a disposição do adversário naquela luta. Ao final do combate, o vencedor

recebe seu troféu e ergue-o caminhando em torno do ringue para, da mesma

forma, mostrá-lo ao público que o aplaude.

$$$

Foto 9: Apresentando o troféu ao público, Academia Pialo.

Apesar da "cena principal" acontecer dentro do ringue, interações as

mais diversas acontecem entre as pessoas que compõem o público das lutas.

Pouco antes de começar o evento, o presidente da federação e um professor de

boxe "acertavam" (combinavam os detalhes) a realização de duas lutas de boxe

para o próximo evento da Federação Gaúcha de Boxe, uma noite de lutas

semelhante ao evento descrito. Dizia o professor para o presidente: "Então tá,

82

eu te levo um de 58 e um de 62 pra semana que vem". No caso, o professor

estava se referindo a dois lutadores, um com 58 e o outro com 62 quilos, que

estavam sendo procurados pelo presidente para completar as lutas de um

evento. Em outro momento, um instrutor de uma academia, falando com o

espectador que estava a seu lado, descobriu que ele era fabricante de artigos

para esportes de combate, como luvas e sacos de pancada, e em pouco tempo

já estavam tratanto de facilidades no pagamento.

A realização de um evento como este, que reúne lutadores de várias

academias, também é um momento de encontro entre os treinadores, e muitos

deles se conhecem de outros eventos. Existe entre eles uma espécie de

corporação baseada no pertencimento a uma mesma categoria hierárquica

perante os alunos. O corporativismo dos treinadores é manifestado na

interação que se estabelece entre eles. Quando não se percebe uma

camaradagem de longa data, os treinadores tratam-se como colegas de

profissão, com uma espécie de ética profissional, cada qual respeitando os

alunos e a academia dos demais. Cada treinador traz para o evento alguns dos

"seus" alunos, para porem-se à prova contra os alunos dos outros. Em uma

certa medida, os treinadores podem ser comparados aos "galistas" que trazem

seus galos para uma rinha. O bom desempenho dos galos recai simbolicamente

sobre o proprietário. No caso dos treinadores, a diferença é que um lutador é

muito mais "treinável" do que um galo, e seu desempenho depende muito mais

da orientação do treinador, portanto o prestígio decorrente de uma série de

vitórias dos lutadores de um determinado treinador é bem mais merecido do

que no caso dos "galistas". O paralelo com as brigas de galo será mais

desenvolvido no capítulo seguinte.

Os treinadores via de regra não lutam, pelo menos nestes eventos, a

não ser indiretamente, por meio do desempenho dos seus alunos. A relação dos

83

treinadores com os alunos é algo paternal, e se vários alunos de um mesmo

professor ganham suas lutas, ele também sai do evento prestigiado junto a seus

pares. Durante este evento, registrei em meu diário de campo o seguinte trecho

de um diálogo entre dois professores, a respeito da luta de "Sabugo", referida

acima:

"Estão indo bem os teus guris..." "Tá bom este guri, né? Tá treinando só há cinco meses...""Ele é o que melhor usa os braços até agora, ele devia era boxear, leva ele lá [na academia] pra treinar boxe..."

c. Os Lutadores

Os lutadores formam um grupo claramente distinguível das demais

pessoas presentes ao evento. Antes do começo dos combates, eles encontram-

se junto ao público presente, mas por sua representação peculiar, bem como

por seus trajes, pode ser dito que eles formam uma "equipe", no sentido

empregado por Goffman (1975). Eles são os protagonistas do espetáculo

apresentado/representado no ringue, e, de uma certa forma, são todos

"colegas". Goffman define "colegas" como

...pessoas que apresentam a mesma prática à mesma espécie de platéia, mas não participam juntos, como fazem os companheiros de equipe, no mesmo momento e lugar, de uma mesma platéia determinada. Os colegas, como se diz, partilham de um mesmo destino. (Goffman, 1975: 149)

Os lutadores parecem saber desta partilha de um destino comum e

fazem questão de estarem distintos do público. Vestidos com o uniforme de

suas academias, já com as ataduras nos punhos, os lutadores reúnem-se em

pequenos grupos dos conhecidos da mesma academia. Mantendo o

aquecimento para a luta, eles ficam treinando seus golpes devagar,

demonstrando sua "abertura", praticando socos e esquivas em frente a uma

84

coluna do salão (a coluna, parede, etc, em frente ao lutador serve para dar a

noção de distância do golpe) ou simplesmente conversando com seus colegas.

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Foto 10: Grupo de lutadores em um dos eventos de lutas promovido

pela Federação Gaúcha de Full-Contact

Muito desta performance pré-combate não é mais que mise-en-

scène para impressionar o público e os prováveis adversários: mostrar o

domínio do corpo para a luta, mesmo antes desta, já é uma atuação em cena,

ainda que fora do ringue, que seria, por assim dizer, o "palco principal" deste

evento. A maior parte dos lutadores usa uniformes de full-contact: camiseta

regata e calça comprida com boca larga. Alguns lutadores, entretanto, circulam

com uniformes característicos de outras modalidades, como taekwondo e kung

fu. O conhecimento de outra arte marcial, indicado pelo uso do uniforme a ela

peculiar, pode representar outro aspecto do mesmo mise-en-scène já referido

anteriormente. Full-contact, todos os praticantes sabem, mas full-contact e

taekwondo ou full-contact e kung fu, apenas uma minoria. Apesar das técnicas

peculiares a estes estilos não serem válidas em uma luta de full-contact

(portanto, inúteis neste caso), o sentido simbólico atribuído a um praticante de

várias artes marciais é o de um lutador experiente (mesmo que ele só tenha

praticado os dois estilos o tempo suficiente para comprar os uniformes),

portanto um adversário a ser temido. Em um caso, pelo menos, que será visto

adiante, a combinação deste e de outros papéis funcionou a contento.

A interação entre os lutadores quando um deles está no ringue e

seus companheiros estão assitindo é a de uma entusiasmada torcida, acrescida

do fato de todos conhecerem a luta e, portanto, darem mais palpites ao colega

85

sobre a conduta correta a ser seguida dentro do ringue. Voltando ao caso de

Ricardo, citado acima, não faltou incentivo por parte de seus companheiros,

mas a diferença técnica entre os contendores era por demais evidente: Ricardo

não teve a menor chance. Desanimado, ainda cambaleando, Ricardo desceu do

ringue e foi ao encontro dos colegas. Um deles ergueu as mãos abertas, que

Ricardo socou de leve, com ambas as mãos. Cinco ou seis colegas dele se

aproximaram para abraçá-lo, consolando-o: "Da outra vez..." "Na próxima..."

No caso de uma vitória, a comemoração também é realizada em

grupo. No caso também citado de "Sabugo", lutador da mesma academia de

Ricardo, os comentários e gritos dos colegas foram igualmente intensos. No

intervalo de um excelente primeiro round, os colegas comentaram: "Só dá

Sabugo...". No primeiro knockdown, gritos e aplausos não só dos amigos de

Sabugo como de todo o público. A uma tentativa de reação, o aviso dos

colegas: "Não deixa ele entrar, Sabugo!!" No meio do terceiro round, Sabugo

nocauteou seu adversário. No meio da euforia dos colegas, o comentário, entre

risadas: "Eu não disse? Só deu Sabugo!!"

A entrega do troféu é também motivo para uma interação especial

entre o vencedor e seu treinador. Com o troféu na mão, sobre o ringue, o

treinador de Sabugo (provavelmente oriundo de uma arte marcial oriental)

comanda "sentido!" ao seu lutador, e, a seguir, cumprimentam-se à japonesa.

Só então ele lhe entrega, com um aperto de mão, o troféu que Sabugo levanta

com o braço direito erguido para seus companheiros. Além disso, a entrega do

troféu é também um momento importante para o treinador: em pleno "palco",

se por um lado o treinador "entrega" o troféu, por outro é ele quem o tem nas

mãos tantas vezes quantas os seus lutadores vencerem os combates contra seus

oponentes, uma manifestação pública do triunfo obtido sobre seus pares.

86

d. Um Combate

Após a entrega do troféu ao vencedor de uma luta, ele, seu treinador

e "segundos" deixam o ringue saindo por entre as cordas. No ringue, fica

somente o locutor do evento, que anuncia para o público o nome dos

oponentes da próxima luta. A não ser algum familiar, como já foi apontado,

ninguém aplaude a nomeação dos contendores. Eles entram no ringue, cada um

pelo seu canto (onde ficam os contadores de chutes), junto com seu treinador e

um "segundo", auxiliar do lutador, que nos intervalos lava seu protetor de

dentes, dá-lhe água, abana-o, etc. Os lutadores entram no ringue sem luvas, só

com as ataduras nos punhos, o protetor de dentes na boca e a caneleira

colocada por dentro das calças. Já no ringue, o treinador, enquanto vai

instruindo seu aluno para o combate, vai também "armando-o" com os

equipamentos de proteção, primeiro as luvas, depois as "botas" (espécie de

polaina acolchoada, sem sola, que cobre só a parte de cima do pé) e finalmente

o "capacete", protetor de cabeça usado em lutas amadoras, que também serve

para identificar os lutadores.

$$$

Foto 11: treinador vestindo seu lutador para um combate.

O lutador de full-contact é coberto literalmente da cabeça aos pés

com equipamentos de proteção. Ao ver o treinador equipar seu lutador, me

ocorre imediatamente a imagem de um cavaleiro medieval "armando-se" (isto

é, colocando sua armadura) antes de um combate. Estes equipamentos,

ajustados ao corpo do lutador, formam uma espécie de "couraça" protegendo

sua cabeça, dentes, punhos, canelas e tornozelos. Além desses acessórios

exteriores ao corpo do lutador, a sua própria musculatura desenvolvida em

longas séries de exercícios, como foi visto acima, possui a mesma intenção. A

87

musculatura abdominal, por exemplo, enrijecida por séries diárias de 500

repetições de exercícios abdominais, possui a mesma função de uma caneleira.

A diferença é que, à exceção dos equipamentos de proteção da cabeça e dentes,

todos os outros equipamentos tem a função não de salvaguardar quem recebe o

golpe, mas de proteger o atacante, seus punhos e tornozelos, "armas" válidas

no full-contact. Construir no próprio abdômen uma "muralha" de músculos

capaz de suportar os golpes adversários é função do lutador, em defesa de sua

própria integridade física.

Um combate de full-contact pode ser entendido como uma

representação, de certa forma ritualizada, de alguns aspectos considerados

"masculinizantes" em nossa sociedade, como a resistência à dor e a aceitação

de confrontos com outros homens. Este aspecto ritualizado encontra um

paralelo na classificação das etapas dos ritos de passagem descritos por Van

Gennep (1978), que, segundo ele, dividiriam-se em "separação", "margem" e

"agregação". É importante ressaltar que uma luta de full-contact não é um rito

de passagem, mas sim que a luta apresenta, na forma como é realizada,

elementos destes ritos, instâncias ritualizadas. Assim, ao entrar dentro do

ringue e ser "armado" pelo treinador, o lutador está sendo "desinvestido" de

outros papéis que tenha fora daquele ringue e "investido" exclusivamente do

papel de lutador. Durante o combate, que pode ser comparado à fase

"marginal" ou "liminar" [conforme o termo usado por Turner (1974)] a

situação do lutador é ambígua, ele e seu oponente encontram-se em igualdade

de condições, de peso e de equipamento. Não obstante, o decorrer dos

acontecimentos no combate determinará a criação de uma hierarquia entre eles,

implicando em uma mudança de status entre estes lutadores até então iguais.

Com o final do combate, ocorre a concessão pública do símbolo desse valor

posto em jogo: a elevação do status do vencedor e a diminuição do derrotado.

88

O caráter ambíguo da fase "liminar" dos rituais é ressaltado por Turner (1974),

uma vez que durante este período, os envolvidos "escapam à rede de

classificações que normalmente determinam a localização de estados e

posições num espaço cultural" (Turner, 1974: 117).

Como já vimos, o "drama" presenciado pelo público e vivenciado

pelos lutadores dentro do ringue tem o seu potencial dramático acentuado por

esta incerteza quanto ao resultado do confronto. Segundo Magnane, a paixão

pelo espetáculo esportivo manifesta-se por uma "obsessão do visível". Em

esportes de combate, este estado de fascínio pelo olhar é crítico, já que o golpe

decisivo pode ser desferido a qualquer momento, "com a rapidez do

relâmpago" (Magnane, 1969: 90).

Após "armar" seu lutador, o treinador comunica-lhe o final das

instruções. O juiz comanda: "Segundos fora!" e, somente com os lutadores e o

árbitro sobre o ringue, soa o gongo, dando início ao combate.

Em uma das lutas, um dos adversários era um rapaz de seus

dezesseis anos, moreno, vestido com um uniforme de kung fu. Antes de entrar

no ringue, ele tirou a camiseta branca de mangas curtas com um dragão nas

costas, característica deste estilo, e colocou outra camiseta, tipo regata, preta,

com a inscrição "full-contact" nas costas. A calça preta com duas listas azuis,

entretanto, permaneceu, indicando sua ligação com o kung fu. Seu adversário,

um rapaz loiro aparentando a mesma idade, com um uniforme comum de full-

contact, calça preta com uma lista vermelha larga, subiu ao ringue aparentando

insegurança, o passo tíbio ao pisar a lona. Durante a colocação dos

equipamentos, este lutador ficou de olhos baixos, enquanto que seu oponente,

no outro canto do ringue, balançava os braços de modo a ressaltar a

musculatura saliente, e, sem tirar os olhos do adversário, o peito inflado,

mastigava o protetor de dentes. O rapaz de vez em quando erguia os olhos para

89

o adversário, mas não sustentava esse olhar por muito tempo. Na denominação

estabelecida por Goffman, chama-se "maneira" os estímulos que informam

sobre o papel que um ator espera desempenhar em uma situação que se

aproxima, as maneiras de um ator podem ser arrogantes e agressivas ou

humildes e escusatórias (Goffman, 1975: 31). Vendo as "maneiras" destes dois

lutadores, eu intuí qual seria o resultado da luta... Ao soar o gongo, o lutador

com uniforme de kung fu aproximou-se de seu adversário e começou um

ataque demolidor, o rapaz apenas se defendia do jeito que conseguia, um chute

frontal, um jab, mas acabou sendo levado para as cordas, onde continuou a ser

batido. Com um golpe que atingiu-o abaixo da linha da cintura o rapaz caiu,

mas não foi configurado o knockdown por ter se tratado de um golpe ilegal,

que valeu uma advertência ao oponente. Após este golpe, a luta foi

interrompida para que o lutador recém-derrubado colocasse um protetor de

genitais, o que lhe deu um tempo para respirar. Ao final da interrupção, o outro

lutador continuou a atacar violentamente, usando todo seu repertório de

golpes, cruzados, uppercuts, socos giratórios, até que o protetor de genitais do

lutador loiro começou a cair, pois estava muito frouxo: nova interrupção. Com

o protetor de genitais devidamente apertado, a luta continuou por mais alguns

segundos até soar o gongo. No intervalo, via-se claramente o esforço do

treinador do lutador em desvantagem para dar-lhe uma tática que pudesse

reverter sua situação desfavorável no combate. Ele repetiu várias vezes, por

gestos, a conduta a ser tomada: durante o ataque do adversário, um jab para

ganhar espaço seguido de um uppercut para surpreender o oponente. Soou o

gongo para começar o segundo round. Como era de se esperar, o lutador de

calça de kung fu começou novamente com seu ataque avassalador, e seu

oponente, preocupado em não apanhar, apenas fugia, jabeava e dava chutes

frontais para tentar afastar o adversário, não conseguindo nenhuma vez utilizar

90

a tática sugerida por seu treinador. O público, reconhecendo a total

desigualdade de nível técnico entre os dois lutadores, torcia agora para que

uma reação do lutador em desvantagem surpreendesse o oponente. Um

espectador gritou: "Vai pra cima dele, alemão!!" Mas já era tarde. Com a

saraivada de golpes, um direto acabou entrando certeiro na guarda deste

lutador, que caiu agarrado às cordas. O juiz entendeu que ele não tinha mais

condições de continuar no combate e concedeu vitória por nocaute no segundo

round para o lutador com uniforme de kung fu.

Na verdade, acredito que o simples fato de um dos lutadores estar

vestido com um uniforme de outra arte marcial não determine absolutamente o

resultado de qualquer combate, tampouco a atitude arrogante e agressiva do

lutador vencedor antes do combate. Podia muito bem ocorrer – como muitas

vezes efetivamente ocorre – de todo o mise-en-scène ser apenas um blefe, e o

lutador que agia desta maneira ser "desmascarado" logo nos primeiros

segundos de luta por um adversário em princípio humilde, mas que não se

deixou intimidar. No caso, não foi o que ocorreu, e o mise-en-scène antes do

combate, aliado à superioridade técnica do lutador, acabou funcionando.

Após a divulgação do resultado, o lutador derrotado dirigiu-se até

seu oponente mas não abraçou-o, apenas um aperto de mão e um tapinha nas

costas, antes de sair por entre as cordas, para junto de seus colegas de

academia. Sobre o ringue, o vencedor recebia o troféu das mãos de seu

professor, um negro alto com um boné escrito "boxe". A "luta de origem" deste

treinador provavelmente seja mesmo o boxe, porque a entrega do troféu não

teve aquela ligeira cerimônia já descrita, com o cumprimento à japonesa. O

professor, com o troféu nas mãos, simplesmente o entregou a seu aluno, com

um aperto de mão e um tapinha no ombro. O lutador, de posse de seu prêmio,

levantou-o com um braço, mostrando-o em torno do ringue para o público,

91

bastante aplaudido. Terminados os aplausos, o lutador e seu treinador deixaram

o ringue por entre as cordas para dar a vez ao locutor, que subia ao ringue para

anunciar a próxima luta. Fim do espetáculo.

$$$

Foto 12: Fim da cena.

Capítulo 3. Identidade Masculina e Competitividade

3.1 Sobre a Noção de Gênero

O conceito de gênero refere-se à construção de uma identidade social a

partir de diferenças biológicas entre homens e mulheres. Cabe ressaltar que,

apesar de estarem na base da justificativa acerca das diferenças entre masculino e

feminino, as diferenças biológicas absolutamente não determinam a conduta de

homens e mulheres em sua vida social. Como diz uma palavra de ordem

feminista citada por Fonseca e Brito (1995: 9): "Biologia não é destino". Segundo

Rosaldo (1995), o conceito de gênero não deve ser entendido com referência a

limitações biológicas, mas como um produto de relações sociais e políticas com

especificidades variáveis para cada sociedade.

Nas mais diferentes sociedades, o conjunto de valores e atitudes

socialmente determinadas correspondentes às representações e expectativas do

ser homem e do ser mulher, os chamados "papéis sexuais", estão claramente

definidos, variando de acordo com o uso que cada sociedade faz das diferenças

biologicamente dadas. De acordo com Rosaldo (1995),

Todo sistema social usa fatos de sexo biológico para organizar e explicar os papéis e oportunidades dos quais homens e mulheres podem desfrutar. (Rosaldo, 1995: 18)

Cada indivíduo, desta forma, constrói para si uma identidade baseada

em padrões de conduta para cada gênero. Estes padrões são correspondentes aos

valores e atitudes esperados de homens e mulheres de acordo com cada

sociedade. É importante notar que as noções de "gênero" e de "papéis sexuais"

93

implicam em conceber estes sistemas de valores como construções

eminentemente culturais, que se apresentam sob uma forma "relacional", isto é,

que se constrói na relação e/ou oposição a um "outro". Mesmo fatos

aparentemente universais a respeito da relação entre os gêneros, como a

dominação masculina, que acaba conferindo um status subordinado ao gênero

feminino, devem-se à manipulação cultural de diferenças biológicas. Ortner

(1979) sustenta que esta universal desvalorização da mulher em relação ao

homem deriva de uma visão que, relacionando a dicotomia "natureza/cultura" aos

gêneros masculino e feminino, associa a mulher à natureza e o homem à cultura.

Na medida em que o desenvolvimento da cultura se dá por sobre a dominação da

natureza, esta estrutura se repetiria na relação de gênero. Assim, a partir de um

dado biológico (a gravidez, nascimento e a lactação dos filhos) se aproxima

culturalmente a mulher do mundo da natureza, a mulher, por assim dizer,

engendra a sua criação de dentro do próprio corpo, enquanto que o homem deve

buscar a matéria para o seu ato criador fora dele, transformando o mundo da

natureza no mundo da cultura (Ortner, 1979). Por meio desta dicotomia, Ortner

explica vários outros fatos recorrentes, como a associação da mulher ao domínio

doméstico e do homem ao domínio público, já que o público se sobrepõe ao

doméstico da mesma forma que a cultura se constitui sobrepondo-se à natureza

(Ortner, 1979: 108. Neste sentido, ver também Rosaldo, 1995).

Da relação entre os gêneros surge uma identidade pessoal associada

aos papéis de cada gênero. O conceito de identidade, bem como o de gênero, na

tradição antropológica, é eminentemente relacional, ou seja, só se define no

contraste com um outro que fornece os parâmetros para o estabelecimento das

diferenças que constituirão esta identidade. No caso da identidade de gênero, a

relação que definirá os termos da construção desta identidade será a relação com

o sexo oposto. Segundo Chodorow (1979), muitas das características relativas a

94

cada gênero são adquiridas através de um processo de socialização intensa na

primeira infância, pela relação da criança, menino ou menina, com a mãe, que

definirá diferentes padrões de identidade de gênero. Segundo esta autora, o fato

de uma filha mulher ser socializada por alguém do mesmo sexo facilita a

apreensão dos padrões sociais femininos, o que seja "ser mulher" em uma dada

sociedade. A socialização de um menino é diferente: ele precisa apreender um

papel social que não é dado de imediato, e que se constrói em grande parte por

conta da negação do papel feminino (Chodorow, 1979: 73).

3.2 A Construção Social da Identidade Masculina

Na construção da identidade masculina, os atributos que definem o

que é considerado "ser homem" em uma dada sociedade – ou seja, qual a conduta

esperada por esta sociedade de um homem frente a diferentes situações – são uma

construção eminentemente social, e a identidade masculina passa pela conquista

destes atributos pelos meninos. Socialmente falando, nenhum menino "nasce

homem", mas "torna-se homem" no decorrer da sua vida, pensando e agindo de

acordo com valores tidos por sua sociedade como "valores masculinos". Desta

forma, a identidade masculina, não é dada simplesmente por atributos

anatômicos, como a posse de um pênis e musculatura desenvolvida, mas sim pela

filiação do indivíduo ao longo de sua vida a determinados valores e condutas

considerados dentro de sua sociedade como "condutas e valores masculinos".

Diversos estudos etnográficos apontam para estes aspectos sociais da

construção da identidade masculina, mostrando a recorrência, nas mais diversas

sociedades, da necessidade de conquista da masculinidade pelos meninos. Alguns

destes trabalhos serão explorados no tópico a seguir.

95

3.2.1 Aspectos Sociais da Masculinidade em Diversas Culturas

Em muitas sociedades, a diferença entre os gêneros chega a determinar

completamente o modo de vida de homens e mulheres, punindo com severidade

os desviantes. Em um estudo etnográfico sobre relações de gênero nos Balcãs,

entre os gregos Sarakatsani, os Albaneses, os Sérvios e os Montenegrinos, Denich

(1979) analisa a organização política e social destas sociedades a partir do ethos

masculino. Para ela, nos Balcãs, a relação de cada grupo familiar com o mundo

externo é vista como uma relação competitiva contra rivais em potencial.

Lutar, tanto na defensiva como na ofensiva, é uma atividade exclusivamente masculina. Desde que todas as arenas públicas têm a potencialidade para o combate, elas são designadas como masculinas. O meio ambiente externo da família é de domínio exclusivamente masculino. (Denich, 1979: 213)

Nestas sociedades, como em muitas outras, o "ser homem" confunde-

se com a vida pública, e os valores da honra familiar, cuja perda pode ser

desencadeada pela mulher, forjam severas sanções a comportamentos desviantes

por parte destas.

Pitt-Rivers (1979) tratando sobre honra e posição social na Andaluzia,

considera que a conduta "honrada" implica obrigações diferentes para homens e

mulheres. Enquanto para um homem a obrigação é de "defender a honra" sua e de

sua família, para uma mulher, a honra consiste em conservar a sua pureza. Esta

"obrigação" feminina praticamente exclui as mulheres da vida pública, pois ao

tomar um papel ativo na vida social (prerrogativa masculina naquela sociedade)

uma mulher arrisca a sua reputação e a de sua família, e pode, por esta via,

"perder a vergonha". Um homem, por sua vez, deve mostrar-se sempre pronto a

participar ativamente na arena pública, e sua conduta "honrada" exige, por

96

exemplo, que ele ofenda ao outro homem no caso de receber dele uma

provocação (Pitt-Rivers, 1979: 44-45).

Também se referindo à Andalusia, Brandes (1980) considera que,

nesta sociedade, a causa da dominância masculina sobre o sexo feminino – cujo

corolário é a exclusão das mulheres da vida pública – se deve ao fato de os

homens se sentirem ameaçados pelo poder que as mulheres têm de porem a

perder a sua reputação e a de sua família, através de uma conduta "desonrosa".

Para Brandes, este temor é que impele os homens daquele grupo a dominar a vida

feminina, e que os faz sentirem-se paradoxalmente "vulneráveis e vitimizados"

por elas (Brandes, 1980: 75-76).

Em seu estudo a respeito da sociedade brasileira, Da Matta (1991)

considera que em nossa sociedade a "rua" é tradicionalmente o espaço destinado

ao homem, onde a mulher é englobada "jurídica e politicamente pelo marido",

enquanto que o espaço da "casa" corresponde ao domínio feminino, onde ele é

englobado por ela (Da Matta, 1991: 130). A respeito desta associação entre

homem/domínio público e mulher/domínio doméstico, ver também Jardim (1991)

e Rosaldo (1995).

Em uma sociedade indígena do Brasil central, os Mehinaku, Gilmore

(1990) referindo-se à identidade masculina entre este grupo, afirma que nesta

sociedade toda a atividade masculina é realizada no meio da aldeia, "à vista do

público". Fato notável a esse respeito é o local destinado à arena onde ocorrem as

lutas corpo-a-corpo, atividade que define a hierarquização da masculinidade nesta

sociedade. Num notável simbolismo, esta arena situa-se exatamente no centro da

aldeia (Gilmore, 1990: 91). No estudo cross-cultural realizado por este autor,

torna-se evidente a quase absoluta predominância no mundo de sociedades onde a

identidade do gênero masculino é algo a ser conquistado pelos meninos através

de provas e indicadores socialmente determinados, que variam de cultura para

97

cultura. Segundo ele – sob um viés psicológico e buscando referências na teoria

pós-freudiana –, meninos e meninas ao nascer possuem uma visão de unidade de

sua personalidade com a da mãe. À medida em que que crescem, entretanto, as

crianças vão adquirindo uma personalidade independente. Para as meninas, em

geral este processo é considerado mais fácil, dada a proximidade da mãe como

modelo dos papéis sociais que ela deve assumir, de acordo com sua sociedade.

Para os meninos, no entanto, cria-se uma ambivalência de fantasia-medo a

respeito da mãe. A fantasia em questão é a da volta ao útero materno, tornar-se

novamente "uno" com ela, dela tudo recebendo, a assim chamada "regressão". O

medo inseparável desta fantasia é de, voltando à mãe, ter a sua personalidade

aniquilada nesta fusão: tornar-se o mesmo que a mãe, nesta visão, significa

tornar-se mulher, perdendo assim a identidade masculina, o que pode ser

associado ao assim chamado "temor da castração". Assim, para Gilmore, o que

leva a existir em quase todas as sociedades testes para a conquista da

masculinidade é o temor da regressão. Sob o ponto de vista social, a tendência à

regressão representa um seriíssimo perigo à sociedade como um todo. Para

Gilmore, um dos indicadores da conquista da masculinidade pelo indivíduo se dá

quando ele mostra perante sua sociedade que é capaz de prover de recursos a seus

dependentes, ou seja, quando produz mais do que consome. Além disso ele deve

ser capaz de engravidar sua esposa e de defender seus dependentes de ataques de

toda ordem. No caso, um indivíduo "regressivo" espera somente receber, sem

nada produzir. É, nesse sentido, hostilizado entre seus pares, que com freqüência

o comparam a uma criança, negando-lhe o direito ao casamento e ao respeito

dentro daquela sociedade, com todas as sanções sociais possíveis, negando-lhe o

direito à masculinidade: ao negar-lhe o casamento, nega-lhe a existência de

mulher e filhos, "dependentes" a quem ele deveria suprir e defender. Assim, nos

termos de Gilmore, a construção social da masculinidade surge como uma reação

98

da sociedade a uma tendência regressiva inata a qualquer ser humano, e que se

fosse levada em conta por cada indivíduo, inviabilizaria a vida social.

A masculinidade é uma proposição ambivalente, uma construção cultural baseada nas necessidades do grupo, que se sobrepõe e reage a uma natureza hesitante e renitente. (...) O que a masculinidade coloca é a negação social de um desejo anti-social de fugir aos rigores da cultura do trabalho. (Gilmore, 1994: 98)*

Neste sentido, também Jardim (1991) considera que exista uma

associação entre a masculinidade, através do valor respeito, e a autonomia de um

homem, manifestada na regra segundo a qual um homem deve pagar a sua

própria bebida: aceitar que outrem a pague é considerado uma espécie de ofensa .

Também Chodorow (1979) considera que existem diferenças

marcantes na construção do senso de identidade masculina e feminina. Para ela, a

identidade feminina é atribuída naturalmente à menina, a partir de sua

identificação com a mãe, ao passo que a identidade do gênero masculino tem que

ser adquirida ou mesmo conquistada pelo menino, num processo bem mais

problemático. Para esta autora, na obtenção desta identidade do gênero masculino

devem ser levados em consideração quatro aspectos:

...em primeiro lugar, a masculinidade se torna e permanece uma questão problemática para um menino. Segundo, envolve a negação do vínculo ou do relacionamento, principalmente daquele que os meninos consideram como dependência ou necessidade de outro (...). Terceiro, envolve a repressão e a desvalorização da feminilidade tanto no nível psicológico como cultural. Finalmente, a identificação com seu pai normalmente não se desenvolve no contexto de um relacionamento afetivo satisfatório, mas consiste na tentativa de interiorizar e aprender componentes de um papel não compreensível de imediato. (Chodorow, 1979: 73)

Para Chodorow, a personalidade masculina é caracterizada por uma

espécie de "independência forçada", referente à busca de autonomia por parte dos

* No original: "...manhood is an ambivalent proposition, a cultural construct based on group needs, that overlays and counteracts a hesitant and resisting nature. (...) The manhood pose is the social negation of an anti-social wish to flee the rigors of work-culture."

99

meninos. Segundo esta autora, a compreensão da identidade do gênero masculino

pelos meninos começa pela negação da identidade do gênero feminino. Os

atributos inerentes ao "ser homem", então, são primeiro entendidos como o

oposto do que seja "ser mulher", a partir do referencial materno (Chodorow,

1979: 70). Assim, na medida em que relações de dependência são entendidas

como sendo identificadas ao gênero feminino, a atitude masculina a esse respeito

é a da busca do oposto, ou seja, da individualidade e da autonomia.

3.2.2 A Masculinidade e seu Reverso

O aspecto da construção da identidade do gênero masculino a que

Chodorow chama de "repressão e desvalorização da feminilidade"

freqüentemente toma a forma, em grupos de homens de qualquer idade, de uma

aversão social à homossexualidade. Sendo o homossexual, em termos simbólicos,

um ser híbrido, com corpo masculino e atitudes consideradas femininas, ele

representa uma negação dos princípios norteadores da construção da identidade

do gênero masculino. Um "desvio" desta natureza em relação a comportamentos

estabelecidos provoca uma reação particularmente acentuada em grupos que se

caracterizam por valorizar sobremaneira estes aspectos constitutivos da

identidade do gênero masculino. Em grupos que se caracterizam pela

predominância (por vezes, a totalidade) de homens, o discurso a respeito da

construção da identidade do gênero masculino tende a ser mais incisivo a esse

respeito, e menos tolerante com o desvio. Klein (1993) denomina "homofobia" a

este aspecto do discurso dos fisiculturistas pesquisados por ele, que hostilizavam

em público alguns praticantes assumidamente homossexuais. Carvalho (1987)

referindo-se ao jogo de bolinhas de vidro praticado por meninos, relata que

aqueles meninos que não sabem jogar ou que choramingam e reclamam com

facilidade são chamados pejorativamente de "mulherzinha" pelos demais. O uso

100

pejorativo deste termo e sua forma diminutiva, como índice de desprezo, ilustram

bem a análise de Chodorow acerca da desvalorização da feminilidade como

aspecto da identidade masculina. Sob esta lógica, um menino que choraminga e

reclama está na verdade pedindo proteção aos demais, pois sua habilidade no

jogo não é suficiente para fazê-lo competir em condições de igualdade com eles.

Voltando aos termos de Chodorow, este menino pede "proteção" aos demais, isto

é, solicita uma relação de dependência por não possuir a autonomia necessária

para vencer por seus próprios meios. Sob esta ótica simbólica da masculinidade,

portanto, ele não é um homem, é uma "mulherzinha". A seguir, veremos como

estas abordagens teóricas se equacionam dentro das academias, na interação com

os praticantes.

3.4 A Identidade Masculina no Ambiente das Academias

Um local freqüentado de modo quase exclusivo por homens gera

quase que automaticamente, na interação entre estes homens, situações que

envolvem termos e questões associadas à identidade masculina. Wacquant (1989)

refere-se à sala de treinamento de boxe por ele pesquisada como "um espaço

eminentemente masculino no qual a intrusão de mulheres é tolerada, mas rara"

(Wacquant, 1989: 45). Oates, autor citado por Wacquant, refere-se a esta ausência

de mulheres no local de treinos de boxe de modo enfático:

O boxe é para os homens, o boxe é sobre os homens, o boxe é os homens. Homens combatendo homens para determinar seu valor, ou seja, sua masculinidade, excluem as mulheres.

(Oates, apud Wacquant, 1989: 45, nota 31)*

Entre os praticantes de full-contact observados neste trabalho, podem

ser ouvidas com alguma freqüência no seu discurso alusões a uma aversão à

* No original: "La boxe est pour les hommes, à propos des hommes, elle est les hommes. Des hommes qui combattent des hommes pour déterminer leur valeur, c'est-à-dire leur masculinité, excluent las femmes."

101

conduta homossexual. Estas alusões, geralmente jocosas, são freqüentemente

utilizadas com o objetivo de provocar um companheiro, aludindo à sua pretensa

homossexualidade. Certa vez, eu estava, após uma aula de full-contact,

mostrando a Guaraci, o professor, o livro recém-publicado que incluía um artigo

meu sobre o full-contact. Ele o mostrou para alguns alunos que estavam por

perto, um deles examinou o livro e disse: "O nome da tese dele é: 'O que leva um

homossexual a se tornar professor de full-contact'". As risadas generalizadas e um

arremedo de chute do professor como uma forma branda de vingança

completaram o episódio. É de se notar que uma brincadeira a respeito da

virilidade de alguém, como foi o caso, não pode, de modo algum, ficar sem

resposta, seria "concordar" com o que foi dito. Segundo Duarte, (1986), a

agressividade verbal entre grupos de homens funcionaria como uma espécie de

"teste contínuo da capacidade de cada um reagir 'como homem'" (Duarte, 1986:

195), isto é, como uma espécie de critério para a definição da identidade

masculina junto àquele grupo. A realização desta espécie de desafio à

masculinidade de outro homem perante uma platéia é característica em grupos de

adolescentes, conforme Leal (1992c). Segundo ela, a alusão à homossexualidade

do "ofendido" é uma constante na temática destas ofensas jocosas. Esse tipo de

relação jocosa, para esta autora, pode significar uma forma de lidar

simbolicamente com a ansiedade decorrente da assunção do papel sexual

masculino, o que também inclui o lidar com os próprios impulsos homossexuais

presentes no processo de auto-identificação enquanto ser masculino (Leal,

1992c). Análises neste sentido são também desenvolvidas por Suárez-Orozco

(1982) em seu trabalho sobre os torcedores de futebol na Argentina. Neste grupo,

as provocações entre torcidas centram-se basicamente na insinuação da assunção

pelo oponente de um papel homossexual passivo. É de se notar que em todas

estas frases de desafio, é considerado "homossexual" apenas quem representa o

102

papel passivo. O outro, o "comedor" (geralmente o próprio ofensor) tem por esta

via um acréscimo na avaliação social de sua masculinidade por conta da

submissão de outro homem à penetração anal simbólica, como se a masculinidade

que ele nega ao outro fosse acrescida à sua própria.

Ao insinuar uma pretensa homossexualidade do professor, o aluno

estava, ainda que brincando, atentando contra a "honra" deste. Nos termos de

Pitt-Rivers (1979), o termo "honra" é entendido como "o valor de uma pessoa

para si mesma, mas também para a sociedade, (...) é o seu direito ao orgulho"

(Pitt-Rivers, 1979: 18). Para este autor, a honra por vezes é tratada como um bem,

algo que se for tirado a alguém deve ser restituído. "Deixar uma afronta sem

vingança é deixar a própria honra em estado de profanação, o que equivale a

covardia" (Pitt-Rivers, 1979:24). A uma ofensa "de brincadeira" corresponde um

chute nos mesmos termos, entre risadas. Pode-se supor que, se as circunstâncias

fossem "sérias", a ofensa e a agressão física subseqüente também o seriam.

A respeito deste tipo de relação jocosa estabelecida entre os

praticantes de full-contact fora dos momentos de aula, pode-se dizer que a

intenção, mais do que ofender o oponente, é provocar o riso público às custas

dele, que terá que, usando dos mesmos meios, retribuir o chiste para reestabelecer

a sua posição posta em risco. Esta troca de chistes, de desafios verbais é, por

assim dizer, uma relação eminentemente lúdica, ainda que manifeste profundos

conteúdos simbólicos. O conceito de "relação jocosa", aplicável a este caso, é

definido por Radcliffe-Brown (1959) como

...uma peculiar combinação de amizade e antagonismo. O comportamento é tal que em qualquer outro contexto social ele expressaria e geraria hostilidade; mas tal atitude não é a sério e não deve ser levada a sério. Há uma pretensão de hostilidade e uma real amizade. Posto de outro modo, é uma relação de desrespeito consentido. (Radcliffe-Brown, 1959: 91)*

* No original: "...a peculiar combination of friendliness and antagonism. The behavior is such that in any other social context it would express and arouse hostility; but it is not meant seriously and must not

103

Segundo Freud (1969), a presença de instintos inibidos em um

indivíduo, cuja supressão reteve alguma instabilidade, fornecem uma "disposição

favorável para a produção de chistes tendenciosos" (Freud, 1969: 166). Assim,

uma das maneiras de tratar de um tema potencialmente "perigoso" para um grupo,

como no caso a homossexualidade para os praticantes de full-contact, é pela via

do humor. A tendência a abordar um assunto preferencialmente através da

comicidade manifesta a instabilidade acerca do grau de elaboração deste assunto.

Neste mesmo sentido, Brandes (1980) considera os "chistes", os gracejos, como

demarcadores de "fronteiras culturais", que soam engraçados para um dado grupo

porque referem-se a situações e emoções produtoras de ansiedade compartilhadas

por este grupo. Para ele, o humor pode ser considerado uma espécie de

"barômetro" que indica certos temas "preocupantes" para um grupo, cuja via de

acesso para contornar a ansiedade produzida por estes assuntos é o riso. O riso,

segundo este autor, é "um mecanismo de descarga que fornece alívio para uma

tensão nervosa" (Koestler, apud Brandes, 1980). Esta definição é similar à

elaborada por Freud (1969: 172), que aponta também para o aspecto social da

produção dos chistes: é necessário que o(s) ouvinte(s) de um gracejo

compartilhe(m) de uma mesma realidade psíquica perante o tema tratado por este

gracejo. "Partilhar o riso diante dos mesmos chistes evidencia uma abrangente

conformidade psíquica" (Freud, 1969: 174). Se uma determinada situação ou

tema traz tensão a um certo grupo, esta tensão é dissipada prazerosamente através

das risadas compartilhadas pelos membros deste grupo (Brandes, 1980: 114). Ele

cita, entre outros motivos de gracejo dos homens da Andaluzia por eles

pesquisados, a infidelidade conjugal e a impotência sexual. No caso dos

praticantes de full-contact, o tema "homossexualidade" enquadra-se muito bem

be taken seriously. There is a pretence of hostility and a real friendliness. To put it in another way, the relationship is one of permitted disrespect."

104

nesta categoria de "temas preocupantes", que encontra-se manifesto nos gracejos

destes praticantes.

Em outra ocasião, eu estava na Academia Central entrevistando o

professor Daniel a respeito de questões técnicas do full-contact, falávamos da

diferença entre "full", "semi" e "light-contact". Um aluno que fazia exercícios

abdominais ali perto parou e nos interrompeu, em alto e bom som: "Light-

contact? Isso só pode ser coisa de veado!" Na verdade, muitas modalidades de

luta esportiva podem ser praticadas "light-contact", como a modalidade chamada

"karatê point", por exemplo, e a observação do aluno, sob o ponto de vista

técnico, é irrelevante. Em termos simbólicos, entretanto, o que este praticante está

afirmando é que uma luta é tanto mais "masculina" quanto mais direto e real for o

combate, novamente construindo a identidade masculina por contraste com a

identidade feminina, ou por um seu "equivalente", a homossexualidade, na

medida em que esta é tomada como representação de ausência de virilidade. Se

lutas "light-contact" são "coisa de veado", lutas "full-contact" são (para aquele

praticante, evidentemente) "coisa de macho". Como praticante de full-contact,

portanto, o aluno se auto-adscreve nesta categoria de "macho", afirmando em

público sua masculinidade.

Certa vez, durante uma entrevista com um professor acerca da relação

entre diferentes estilos de luta e a conduta dos praticantes, o tema da

homossexualidade voltou novamente à baila, desta vez relacionado à prática da

dança por homens, numa súbita mudança no rumo do discurso:

"O pessoal que faz kung fu é um pessoal que é sempre compenetrado, correto, educado, humilde. No karatê, o pessoal é direto, assim, às vezes até arrogante, mas porque o japonês é um povo assim arrogante, autoritário, então isso aí vem da tua prática, assim como todo bailarino é veado..."

(Guaraci, 28 anos, professor de full-contact)

105

A insólita mudança de assunto, passando subitamente da natureza das

condutas de praticantes de artes marciais para a "veadagem" dos bailarinos traz à

tona novamente a oposição "macho/veado", desta vez associada à técnica

corporal praticada pelo indivíduo. Em termos de técnica corporal, as técnicas de

aprendizado da dança e das artes marciais possuem muito de semelhante,

variando basicamente no destino a que se aplicam estas técnicas. A finalidade

puramente estética da dança é, neste discurso, associada à conduta feminina, ao

passo que o uso pragmático do corpo em um combate, nas artes marciais, é visto

como uma atividade masculina. Segundo o discurso deste professor, associando-

se a prática da dança a uma conduta feminina, "todo bailarino" é visto como um

homem com uma conduta feminina, ou seja, um "veado", gíria comum para

"homossexual". No outro extremo desta oposição, está o praticante de artes

marciais, que, associando-se à conduta "masculina" afirma-se como "macho",

associado a valores como "compenetrado, correto, educado" ou mesmo

"arrogante e autoritário", nada que ponha em dúvida sua condição masculina.

Esta ênfase masculinizante é dada justamente pelo contraste com a expressão

"assim como todo bailarino é veado". É de se notar que as modalidades de arte

marcial usadas como exemplo não são ingenuamente escolhidas: o kung fu é a

modalidade que eu pratico, e os juízos de valor dizem da opinião deste professor

a meu respeito. O karatê é a modalidade de onde o próprio professor é originário,

de modo que ele próprio se qualifica por esta via como "arrogante e autoritário",

adjetivos que, no contraste imediato com o juízo de valor acerca dos bailarinos,

adquirem por esta oposição um caráter "masculinizante". Mais uma vez, constrói-

se a identidade masculina por sobre a oposição ao feminino, ou esta sua "variante

masculina", a homossexualidade. "Ser homem", neste sentido, é principalmente o

"não-ser mulher".

106

Outro tema que surge com freqüência nas conversas e entrevistas com

os praticantes de full-contact pesquisados neste trabalho, é a afirmação de que a

prática do esporte de combate seria para eles uma ocasião de "botar pra fora" uma

agressividade que estaria "no sangue". Cabe ressaltar que apesar de recorrente,

esta afirmação não é unânime. Muitos praticantes procuram a academia por

motivos os mais diversos, embora eu creia que a escolha deliberada por uma

modalidade de luta esportiva indica a busca pelo confronto com outros homens,

uma maneira de aceitar desafios, correr riscos. Afinal de contas, um bom

"condicionamento físico" – motivo para praticar full-contact freqüentemente

ressaltado por praticantes deste esporte em entrevistas – também pode ser

adquirido caminhando diariamente em um parque...

Após o ingresso na academia, a noção, transmitida pelo treinador, do

perigo real representado pelo uso indevido das técnicas de combate muitas vezes

serve como um freio a uma eventual falta de controle por parte do praticante. Os

treinadores sempre procuram impor limites à prática do combate fora do recinto

da academia. Percebe-se, entretanto, no discurso de alguns praticantes, um desejo

velado de ver o limite ultrapassado, para poder usar do poder adquirido na

academia com um bom motivo, que o isente das sanções associadas à prática

ilegítima deste esporte, isto é, fora do contexto esportivo. O limite relatado pelos

praticantes em geral é o contato físico: palavras não atingem, mas se o adversário

"encostar um dedo" no praticante, aí este terá motivo para "desmontá-lo". No

caso, o contato físico deliberado por parte de um pretenso adversário configura

agressão (ainda que seja apenas um gesto em direção ao oponente), o que

justifica o uso da técnica de combate como "legítima defesa". Esta negociação

acerca do limite para o uso da técnica de combate fora do recinto da academia

fica clara no seguinte depoimento:

107

"O professor tenta dar uns toques de conscientização, tipo, 'não usa isto pro mal', ou, se o cara te chamar de pau no cu, tu diz, 'sou pau no cu mas tou feliz, fica na tua'. Agora, se ele encostar o dedo em ti, aí, sim, aí tu desmonta..."

(Severo, 20 anos, funcionário de transportadora)

O perigo representado pelo uso indevido de técnicas de luta é uma

realidade. Um golpe aplicado em um ponto vital do oponente pode causar-lhe a

morte, ou, no mínimo, custar ao agressor um processo por lesões corporais. No

caso de um eventual processo judicial por lesões corporais, o fato de o agressor

ser praticante de alguma arte marcial é considerado um agravante, de acordo com

o artigo 129 do Código Penal Brasileiro. No caso deste praticante ser faixa-preta

em seu estilo, ele terá seu registro suspenso junto à Federação que o legitimou,

impedindo-o de lecionar e participar de competições, uma espécie de

"banimento" do mètier das academias. Lutar fora da academia, assim, implica em

sanções severas, de que os praticantes têm noção e tentam, em princípio, evitar.

Não obstante, o simples fato de saber-se detentor do poder de até mesmo matar

um possível adversário usando apenas o próprio corpo parece satisfazer alguns

praticantes, que realizam este poder apenas enquanto discurso:

"...depois que tu aprende uma arte marcial, uma luta, tu sabe lutar, e tu sabe que tu sabe fazer e o que tu é capaz de fazer. Por incrível que pareça, se tu é consciente, tu até evita de brigar, porque tu sabe o que tu pode fazer com uma pessoa, então tu jamais vai querer fazer aquilo ali." (Lúcio, 30 anos, porteiro)

O lado de dentro da academia, desta forma, se torna o local destinado

à prática do combate, e um confronto físico fora deste espaço só se justifica em

circunstâncias muito especiais. Uma vez dentro da academia, entretanto, todos

são iguais, estão ali para lutar, e eventuais lesões decorrentes da luta são

invariavelmente consideradas como inerentes à prática do full-contact. A esse

respeito, Ballery (1954), falando sobre os esportes de combate, afirma:

Do ponto de vista moral, a luta desenvolve a virilidade, a energia, a combatividade, o senso de observação e o espírito de decisão. A

108

cortesia faz parte das regras, pois, sem fazer mal ao adversário deve-se derrubá-lo, provar-lhe que se é momentaneamente mais forte.

(Ballery, 1954: 13)*

No caso de um eventual confronto entre amigos, é freqüente o relato

de que a amizade é colocada em parênteses durante a luta. No ringue, o que se

tem diante de si é um adversário, que deve ser derrubado antes que nos derrube.

Na prática do combate, o que conta é a "garra", a capacidade técnica e a

resistência dos lutadores. A amizade, via de regra, fica do lado de fora das cordas

do ringue:

"Ali dentro é cada um por si, no caso eu vou lá e falo com ele: 'Olha, sinto muito, tu é meu amigo, mas ali dentro tu vai ser o meu pior inimigo, depois na rua eu espero que a gente continue amigos...' Amizade acima de tudo, mas dentro do ringue o negócio é outro..."

(Salomão, 22 anos, padeiro)

Se para lutar com um amigo o combate se dá nestes termos, quando ao

combate se acresce o fato de se estar diante de um desafeto, ou de ser uma

revanche, caso em que o lutador tenta vencer um combate em que foi derrotado

anteriormente, este ímpeto competitivo torna-se ainda mais acentuado, pois à

vontade de vencer, acrescenta-se o desejo pessoal de vingança pela derrota

sofrida ou por motivos pessoais os mais diversos. Em geral, os professores

tentam evitar que lutadores que sejam notórios desafetos entrem no ringue, mas

por vezes, uma simples antipatia mútua é motivo para a luta degenerar em uma

"briga" dentro do ringue, caso em que a intervenção pronta e enérgica do árbitro

se faz necessária, com uma severa admoestação aos infratores. O valor

reconhecido como "garra" não pode jamais ser confundido com "raiva".

Estes casos de uso do espaço do ringue para "tirar diferenças" com

algum desafeto existem, sem dúvida, e quase todos os praticantes conhecem

histórias a respeito. Esta, entretanto, não é a regra nos combates e torneios

* No original: "Au point de vue moral, la lutte développe la virilité, l'énergie, la combativité, le sens de l'observation et l'esprit de décision. La courtesie est de règle puisque, sans lui faire aucun mal, il faut terrasser son adversaire, lui prouver que l'on est momentanément le plus fort."

109

observados. Os praticantes de full-contact valorizam o fair play como uma

condição importante à prática esportiva em geral. Os cumprimentos entre

adversários são freqüentes, em lutas e em treinos. A forma do cumprimento varia

de acordo com a "origem" do treinador (de acordo com a arte marcial da qual ele

é proveniente). Nas academias do professor Guaraci, que antes do full-contact

praticava karatê, no início e no fim de cada aula, os alunos realizam um

cumprimento em grupo, saudando o professor e o local de treinos. O

cumprimento é o mesmo usado em aulas de karatê. Na luta, entretanto, um

cumprimento que é praticado com freqüência por todos os praticantes é "bater a

luva". O full-contact é praticado com equipamentos de proteção, entre eles as

luvas, semelhantes às de boxe. Antes de entrar em combate, no início de cada

round, ou após cada interrupção da luta por clinch, knockdown ou outro motivo,

os lutadores, esticando um braço ou os dois, tocam de leve as luvas um do outro,

uma espécie de "grau zero" do aperto de mão. Desta forma, no sinal para o

começo do combate, ou à ordem do juiz para lutar, não se desencadeia um ataque

de parte à parte, mas um cumprimento. Após este, os contendores voltam a lutar.

É comum, também, ao final de uma luta, antes mesmo de declarar-se o vencedor

(no caso de uma decisão por pontos) os dois lutadores abraçarem-se

cumprimentando-se pelo combate.

$$$

Foto 13: Cumprimento entre os lutadores antes de um combate.

Em uma tarde de lutas de full-contact promovida pela Federação,

entre participantes de diversas academias, uma das primeiras lutas foi entre dois

meninos de doze anos, ambos negros. No primeiro round, um dos meninos levou

um knockdown (queda sem nocaute), mas se recuperou. No segundo round, este

110

mesmo menino, com um chute frontal, derrubou seu oponente, que não levantou

até o fim da contagem. Nocaute. O juiz-professor declarou o nocaute para os

jurados, levantou o braço do menino vencedor, para os aplausos do público, e,

retirando o capacete do menino nocauteado, passou-lhe a mão na cabeça e,

discretamente, abraçou-o junto à lateral do corpo, falando-lhe em voz baixa,

consolando-o. No combate seguinte, entre dois lutadores mais velhos, de cerca de

dezoito anos, após uma seqüência de chutes por cobertura de um dos lutadores, o

outro, recuando, esperou a distância certa e, com um direto fulminante no queixo,

nocauteou seu adversário. Após a sagração do vencedor, este foi abraçar seu

oponente e ambos desceram abraçados do ringue. Consolar o adversário

derrotado é considerado uma manifestação de espírito esportivo e grandeza de

caráter entre os lutadores.

A justificativa dos lutadores para assimilar uma eventual derrota é

dada nos termos de um "espírito esportivo", que englobaria quaisquer outros

valores que estivessem em jogo. A vitória e a derrota em uma luta são aspectos de

um mesmo evento: a vitória de um contendor é a derrota de seu oponente.

Entrevistando lutadores que foram derrotados, é freqüente ouvir uma explicação

similar à que é dada a uma contusão ou sangramento, ou seja, que a derrota é uma

parte integrante do "estar lutando": tanto a derrota quanto a vitória "fazem parte"

do full-contact, como de qualquer outro esporte. A possibilidade da derrota é que

confere o valor à vitória, o verdadeiro valor em questão é a "valentia" de aceitar o

desafio e entrar no ringue.

111

3.4 A Competitividade: Jogo e Hierarquização da Masculinidade

O full-contact, a exemplo de outras modalidades esportivas, é antes de

tudo um jogo. Acredito que o engajamento de homens em disputas e competições

tenha uma profunda relação com a constituição de uma identidade masculina,

particularmente em nossa sociedade. Assim, após relacionar ao meu tema vários

autores que se referem a esta característica competitiva do ethos masculino,

desenvolvo alguns aspectos acerca da natureza do jogo, relacionando alguns

autores que abordaram este tema. Após estas revisões bibliográficas, estabeleço

um vínculo entre a prática de jogos e disputas por homens e a busca por uma

"hierarquização simbólica" de valores em princípio alheios aos objetivos

imediatos do jogo, como a honra e a masculinidade, por exemplo.

3.4.1 O Ethos Masculino e a Competitividade

A prática de disputas e competições pode ser considerada uma

característica bastante generalizada do ethos masculino. Em culturas as mais

diversas, a afirmação social do "ser homem" passa pela disputa com outros

homens, seja do modo mais direto, em uma luta corpo-a-corpo, seja por vias mais

sutis, como desafios verbais, torneios de insultos ou apostas em rinha de galos,

por exemplo.

Vários autores referem-se a esta relação entre a prática de disputas e o

reconhecimento social da masculinidade nas mais diferentes sociedades Em geral,

a prática de disputas tem lugar privilegiado na infância, e se refere a uma espécie

de "treinamento" para as funções da vida adulta.

Em estudo sobre o grupo Arapesh das montanhas da Nova Guiné,

Mead (1988) refere-se à existência de uma modalidade de relação entre homens

chamada de buanyin, que caracteriza-se pelo dever formal de insultarem-se

112

publicamente, onde quer que se encontrem, afirmando que esta relação é um

"campo de treino quanto ao tipo de firmeza que um grande homem deve ter"

(Mead, 1988: 51). Entre os Tchambuli, outro grupo pesquisado por esta autora,

também é registrada a competição entre homens pelos favores das mulheres do

grupo, não da forma aberta e violenta de outras sociedades, mas de modo sutil e

subterrâneo, por meio de intrigas e meias-palavras, valendo-se das relações de

parentesco vigentes naquele grupo (Mead, 1988: 253).

Mauss (1979), referindo-se ao potlatch praticado no noroeste da

América do Norte como um "fato social total", não se esquece de ressaltar seu

caráter agonístico, como uma competição por generosidade e nobreza.16 À

realização de um potlatch está também associado, em um dado momento, como

parte das festividades, um torneio de insultos entre os homens que dele

participam (Mauss, 1979: 175).

Segundo Harris (1993), a participação masculina em expedições

guerreiras, na quase totalidade das sociedades tribais, está associada à

determinação de um papel sexual masculino, estando a posse e uso das armas

reservados aos homens. Para ele, estas sociedades "treinam os homens para o

combate através de jogos competitivos, como a luta livre, as corridas e os duelos"

(Harris, 1993: 66).

Freqüentemente se preparam os jovens para a guerra por meio de lutas

"jogadas", com finalidade "esportiva". Em sociedades particularmente belicosas,

a referência a essas lutas é um conteúdo presente em seus mitos e narrativas orais.

Em um mito Chulupi, grupo habitante da região do Chaco paraguaio, Clastres

(1980) relata formas de luta "esportiva". Neste mito, a origem da guerra entre eles

16 O conceito de "fato social total"refere-se a fenômenos sociais que a um só tempo mobilizam toda espécie de instituições de uma dada sociedade: religiosas, jurídicas, morais, políticas, econômicas, etc. O caráter agonístico destes fenômenos faz parte deste "sistema de prestações totais", como no kula trobriandês ou no potlatch norte-americano. Ver, neste sentido, Mauss, 1979.

113

e seus tradicionais inimigos, os Toba, deriva de uma luta "esportiva" entre dois

jovens, quando os dois grupos eram indivisos. Ao ser atingido por um golpe um

pouco mais forte do que o combinado, ou seja, ao "violar a regra", o contendor

atingido acusa o golpe desleal e vinga-se atingindo o outro com um pedaço de

pau. Do conflito gerado a partir da crescente violência entre os dois contendores,

surgiu a guerra entre as duas sociedades, que desde então rivalizam-se

mutuamente. A prática de lutas é uma das atividades preferidas deste grupo.

Segundo Clastres, ela consiste mais de agilidade do que de força, e seu objetivo é

deitar o adversário ao chão, como na modalidade olímpica chamada de "luta

greco-romana".

Outro mito que se refere a um fato semelhante é descrito por Da Matta

(1976). Este autor relata um mito de origem das tribos Timbira segundo o qual a

separação deste grupo se deu a partir do conflito decorrente do resultado de uma

modalidade esportiva: a corrida de toras. Um dos grupos, derrotado, não se

conformou com a derrota e os comentários jocosos decorrentes dela, iniciando

uma luta "a sério" que provocou a separação das tribos. Da Matta refere a

existência desta espécie de competição, em que um grupo de homens deve

carregar uma pesada tora de madeira de um ponto no exterior até dentro da

aldeia, como um jogo característico de todos os grupos Jê do Brasil central. Os

Apinayé, grupo pesquisado por este autor, realizam esta corrida de toras

separando os "times" segundo critérios de idade, de casados/solteiros e

associados às metades exogâmicas. Em geral, as corridas estão associadas a

momentos rituais de iniciação (Da Matta, 1976: 105).

Em seu livro sobre os Nuer, grupo pastoril do Sudão, Evans-Pritchard

(1993) afirma que um Nuer luta em duelo sempre que se sentir ofendido, e que

eles se ofendem com muita facilidade. No caso de alguém ser desafiado para um

duelo, deve aceitá-lo. Uma vez começada a luta, nenhuma das partes pode

114

desistir, a menos que uma delas fique seriamente ferida. Neste povo, no caso de

alguém se sentir prejudicado em alguma questão, não há outra instância a recorrer

que os próprios punhos: os meninos são instados a lutar desde muito cedo.

Segundo Evans-Pritchard, tendo aprendido desde pequenos a resolver todas as

suas questões lutando, "eles crescem considerando a habilidade de lutar como a

realização mais necessária, e a coragem, como a virtude mais elevada" (Evans-

Pritchard, 1993: 162).

Lévi-Strauss (1979) relata uma situação de campo em que presenciou

o encontro de duas facções rivais do grupo Nambikwara, que, sem estarem

abertamente em guerra, provocavam-se mutuamente entre cantos e danças, tendo

sido necessário com freqüência apartá-los para evitar uma luta sangrenta. Um

Nambikwara manifesta sua antipatia agarrando os próprios genitais com as duas

mãos e apontando-os para o adversário, para em seguida, agredi-lo tentando

arrancar-lhe o tapa-sexo feito de folhas de buriti, assim como tomar-lhe arco e

flechas para lançá-los longe (Lévi-Strauss, 1979: 299).

Os exemplos da relação entre masculinidade e competitividade

buscados junto a sociedades tribais poderiam ser estendidos quase que

indefinidamente. Na sociedade ocidental, em grupos bem mais próximos de nosso

convívio, a competitividade também é exacerbada e por vezes exigida

socialmente, a aceitação de desafios sendo freqüentemente uma das medidas da

masculinidade.

Em seu trabalho sobre os "gaúchos", trabalhadores da pecuária

extensiva na região dos pampas, Leal (1992b) enfatiza a presença, neste grupo, de

diversas formas de desafio entre homens. Estes desafios incluem desde formas

corporais, como a dança conhecida como "chula", até formas poéticas, como a

"trova", e são consideradas constituintes da identidade masculina naquele grupo.

115

A pronta aceitação dos desafios de outros homens reafirma a masculinidade de

um sujeito frente aos demais (Leal, 1992b: 12).

Na sua etnografia sobre os homens de classes populares que

freqüentam os butecos, Jardim (1991) relata diversas formas de competição entre

eles, com especial destaque para os "duelos verbais". Segundo ela,

Os duelos verbais são uma das formas que os homens encontram de, através da comparação e competição, compartilharem alguns dos significados associados à masculinidade. (...) Responder a um jogo verbal é reconhecer o outro enquanto um igual e, ao mesmo tempo, assumir um papel ativo, ser agressivo, responder na hora ao adversário. (Jardim, 1991: 198)

Aranguren (1976), referindo-se a um "sentido agonal da existência

humana", acredita que a competitividade possa ser não apenas a dimensão

preponderante, mas mesmo "a nota essencial de toda uma concepção de vida"

(Aranguren, 1976: 80-81). O homem, para este autor, é capaz de levar esta

dimensão de competitividade até o mais abstrato plano intelectual: "que é a

dialética senão a luta, a golpes de silogismos, para (con)vencer o adversário?" *

(Aranguren, 1976: 81). Rapoport (1980) compartilha da mesma opinião,

colocando os "debates", juntamente com as "lutas" e os "jogos" como categorias

dos conflitos inerentes à conduta do homem.

Ao longo da História, a humanidade sempre conviveu com formas

complexas de luta competitiva. Ballery (1954) assinala que, no canto XXIII da

Ilíada [escrita em torno do século IX a.C., segundo Schüler (1985)] é descrita

uma luta entre Ulisses e Ajax, em frente ao exército grego, em homenagem a

Pátroclo, amigo de Aquiles (Ballery, 1954: 21). Os jogos olímpicos17, realizados

* No original: "El hombre es capaz de llevar su competitividad hasta el mismíssimo y más abstracto plano intelectual: ¿qué otra cosa es la 'dialéctica' sino la lucha, a golpes de silogismos, para (con)vencer al adversário?"17 Os Jogos Olímpicos da Antigüidade, convém lembrar, eram uma atividade exclusivamente masculina, ao contrário dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Na Grécia, as mulheres sequer podiam assistir aos jogos.

116

na Grécia durante cerca de doze séculos, de 776 a.C. até 393 d.C., incluíam

modalidades competitivas as mais diversas, como corridas, arremessos e luta. As

provas de luta dividiam-se em pugilato ("luta com os punhos") e pancrácio

(literalmente, "vale tudo"). Não raro, lutas de pancrácio terminavam com a morte

de um dos contendores, já que todo tipo de chaves, fraturas e estrangulamentos

eram permitidos pelas regras. Para os gregos daquela época, entretanto, a vitória

nos Jogos era um caminho para a imortalidade, uma maneira de "permanecer no

pensamento dos parentes e na recordação dos homens, através de êxitos

extraordinários" (Durantez, 1987: 8).

De acordo com Huizinga (1971), toda luta submetida a regras (e

justamente por essa limitação) possui as características formais do jogo. Para ele,

a luta pode ser considerada "a forma de jogo mais intensa e enérgica, e ao mesmo

tempo a mais óbvia e primitiva" (Huizinga, 1971: 101).

Na nossa sociedade, esta relação entre a conquista da identidade

masculina e a competitividade também pode ser encontrada, especialmente na

infância, quando a demanda social pela afirmação do "ser homem" é maior. Leal

(1992b) considera a realização de duelos verbais entre crianças em idade escolar

no Brasil como sendo uma forma ritualizada de desafio, uma maneira de afirmar

a própria virilidade durante a puberdade, "momento do menino assumir o papel

masculino que a cultura espera dele" (Leal, 1992b: 55). A afirmação da

masculinidade pela via competitiva, entretanto, não é característica apenas entre

crianças. Mesmo entre adultos, se a honra de um indivíduo estiver em jogo, a

maneira de defendê-la é enfrentando o desafiante, seja com palavras, num duelo

verbal, seja fisicamente, numa luta corporal. Nos termos de Huizinga (1971):

A dignidade do indivíduo deve ser evidente para todos e, se este reconhecimento estiver em perigo, ela precisa ser afirmada e defendida pela ação agonística em público. (Huizinga, 1971: 107)

117

Aranguren (1976) afirma que "hoje, em nossa civilização, o esporte

prima como o exercício por excelência da competitividade agonal"* (Aranguren,

1976: 91). Assim, as diferentes práticas esportivas fornecem em nossa sociedade

local e oportunidade para colocar em ação o desejo de competitividade de um

indivíduo. Certamente, o esporte não é a única via de manifestação deste impulso

agonístico, mas, como veremos a seguir, ele contém em sua natureza todos os

elementos necessários para que se ponha socialmente em disputa os quesitos mais

diversos. Como veremos mais adiante, uma das formas de "mostrar-se homem"

em nossa sociedade é correr riscos, aceitar desafios, em suma: "entrar no jogo".

3.4.2 O Jogo

Uma primeira e muito importante visão acerca dos aspectos culturais

do jogo foi realizada por Huizinga (1971), no livro Homo Ludens, cuja primeira

publicação foi feita em 1938. Muitos de seus conceitos, feitas algumas ressalvas,

são utilizados até hoje. Huizinga considera o jogo como um elemento presente na

maioria das manifestações da cultura: a poesia, o direito e a guerra, por exemplo,

estariam permeados por uma espécie de "espírito do jogo". Segundo Huizinga, o

próprio desenvolvimento da cultura se realizaria sub specie ludi, sob a forma de

jogo. O conceito de jogo utilizado por ele, entretanto, é passível de críticas. Para

este autor,

Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não séria" e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. (Huizinga, 1971: 16)

* No original: "Hoy, en nuestra civilización, prima, sobre todo como ejercício de la competitividad agonal, el deporte."

118

O fato de Huizinga considerar o jogo como sendo destituído "de todo e

qualquer interesse material" coloca fora do âmbito de seu conceito o esporte

profissional, considerado por ele uma "corrupção" do espírito do jogo, bem como

toda a vasta gama dos jogos de azar, que estão excluídos de sua definição. Além

disso, a insistente proposição de que "a menor desobediência às regras 'estraga o

jogo'" (1971: 13) não encontra respaldo na realidade, onde freqüentemente se

joga ultrapassando o limite da regra, como no caso de alguém "fazer uma falta"

no futebol para evitar um gol do adversário. Para isso existem os árbitros e um

código de punições previstas para as mais diversas transgressões, ou seja, a

transgressão das regras não apenas não estraga o jogo, como inclusive está

prevista nestas mesmas regras.

Outro trabalho a tematizar o jogo, de modo bem mais completo, no

meu entender, é o de Caillois (1990). Em sua análise, Caillois classifica os jogos

em quatro categorias básicas: agôn, os jogos de competição; alea, os jogos de

azar; mimicry, os jogos de representação e ilinx, os jogos de vertigem. Os jogos

de competição, como as diferentes modalidades esportivas, por exemplo, são

classificados na categoria agôn, descritos por Caillois como

...um grupo de jogos que aparece sob a forma de competição, ou seja, como um combate em que a igualdade de oportunidades é criada artificialmente para que os adversários se defrontem em condições ideais, suscetíveis de dar valor preciso e incontestável ao triunfo do vencedor. (Caillois, 1990: 33-34)

O full-contact e os demais esportes de combate podem ser bons

exemplos dessa "igualdade de oportunidades criada artificialmente", pois não só

o equipamento de cada lutador deve ser idêntico, como o próprio peso corporal

dos lutadores deve estar situado dentro de uma mesma categoria de peso. A

perspectiva de Caillois, entretanto, embora mais elaborada do que a de Huizinga,

também possui aspectos passíveis de crítica. Com um forte acento evolucionista,

119

Caillois peca ao desvalorizar as "sociedades primitivas" quando, mais adiante em

seu trabalho, as compara com a "sociedade civilizada". Neste sentido, Turner

(1987) comenta que a análise conceitual do jogo de Caillois deve ser valorizada,

"desde que se evite seu argumento evolucionista, pois ele desvaloriza as

sociedades não-elitistas, que agora talvez tenham muito a contribuir ao curso

geral da cultura humana" (Turner, 1987: 128). Geertz (1983) reconhece o valor da

análise conceitual do jogo de Caillois, mas assinala o risco de se tomar a vida em

sociedade como um jogo. Geertz chama de "analogia do jogo" a esta extrapolação

teórica.

Decididamente, apesar de ter alguns aspectos em comum, a vida em

sociedade é muito mais do que simplesmente um jogo, e a utilização das análises

de Huizinga e de Caillois, no meu entender, deve ficar restrita àquilo que é seu

objeto, o jogo.

3.4.3 A Hierarquização da Masculinidade

O trabalho de Carvalho (1987) acrescenta às reflexões anteriormente

referidas de Chodorow (1979) o jogo, fator que considero fundamental na

reprodução dos valores associados à identidade do gênero masculino em nossa

sociedade. Diversos trabalhos etnográficos que referem-se a grupos de homens e

à construção da identidade masculina nestes grupos relatam que, entre homens, o

sobrepor-se ao outro em uma disputa traz para o vencedor um incremento

simbólico à própria masculinidade. Neste sentido, a prática de disputas e

competições pode ser considerada um terreno fértil para a investigação dos

valores que compõem o que seja o "ser homem", e é um dos motivos que me

levaram a pesquisar a construção da identidade masculina junto a um grupo de

praticantes de esporte.18 Em muitas expressões de uso corrente podem ser

18 Ver também, neste sentido, Suárez-Orozco (1982), Gilmore (1990), Leal (1992b e 1992c) e Dundes (1994).

120

identificados aspectos desta relação entre o jogo e a virilidade, como na

expressão "atleta sexual", aplicada a um homem que apresente um desempenho

"atlético" em sua performance sexual. Outra expressão que refere-se a esta forma

competitiva da virilidade é "ganhar uma menina", significando conquistá-la. A

palavra "ganhar", no caso, indica uma relação com o obter pela vitória alguma

coisa que estava em jogo. Note-se que há nestas duas expressões uma forte ênfase

à atitude masculina em relação a essa espécie de "jogo". Neste sentido, Magnane

(1969) afirma que existiria hoje uma tendência a uma "contaminação (...) do

comportamento sexual pelo espírito de competição esportiva" (Magnane, 1969:

155). Desta forma, pode ser notada a ligação entre o jogo e a aquisição e

manutenção da identidade masculina, como uma instância privilegiada de

observação de valores relacionados aos significados do "ser homem"em nossa

sociedade.

A partir da análise do jogo das bolinhas de vidro praticado por

meninos de Ipanema, cidade no interior de Minas Gerais, Carvalho (1987)

identifica uma série de aspectos que compõem a identidade masculina, conforme

é entendida na comunidade pesquisada. Para ele, o jogo revela-se como uma

forma de treinamento para as futuras atribuições masculinas na sociedade, como

a manutenção da honra e a posse e administração do dinheiro. As situações

propiciadas pelo jogo simulam, em termos simbólicos, desafios e dificuldades

pelas quais um homem deve passar na sua vida cotidiana. Existe, no "jogo da

lua", pesquisado por este autor, uma regra segundo a qual o jogador que "cricar"

o "coco" do adversário (ou seja, que acertar com a sua bolinha a bolinha de jogar

do adversário) ganha imediatamente todas as bolinhas da "lua" (espaço em forma

de semicírculo onde cada jogador aposta duas ou mais bolinhas). Por vezes, esta

regra reduz o jogo a uma tentativa de "cricar" os adversários sem ser "cricado"

por eles, numa manifestação simbólica de evidente conteúdo sexual. Leal (1992c)

121

refere-se aos desafios verbais entre meninos de modo similar a Carvalho, isto é,

os jogos (no caso, os por ela chamados "duelos verbais") proporcionariam uma

oportunidade para a manifestação simbólica de aspectos da construção da

identidade do gênero masculino. Nestes desafios entre meninos nota-se muitas

vezes a dicotomia estabelecida entre "comer" e "ser comido", isto é, entre tomar o

papel ativo e o passivo numa virtual relação homossexual entre esses meninos. O

papel ativo, como já foi visto, é sempre identificado com a atitude masculina,

sendo socialmente reconhecida como "homossexual" apenas a atitude

homossexual passiva.

Além dos jogos infantis, a prática de esportes diversos por crianças e

adolescentes também representa, por vezes, uma forma de construir socialmente a

identidade masculina, podendo-se relacionar os "feitos esportivos" e o

desempenho individual em atividades esportivas em geral como possíveis

parâmetros para uma "mensuração" da masculinidade entre meninos, uma

maneira de instituir uma espécie de "hierarquia" da masculinidade pela via do

desempenho individual nas práticas esportivas (Gilmore, 1994: 110). Segundo

Gagnon (1981), a valorização social da força física, (mesmo que atualmente o

valor "força física" seja cada vez menos necessário nas atividades cotidianas)

ainda hoje encontra-se presente na educação dos meninos, freqüentemente

reforçadas pelo incentivo paterno a que seus filhos tornem-se fortes e testem-se a

si mesmos nas diversas práticas esportivas, competindo fisicamente com outras

crianças. Desta noção de competitividade desenvolvida desde a infância surge,

segundo este autor, a noção da força física como uma das medidas da

masculinidade.

Força física e coragem física tornam-se identificadas com força moral e coragem moral, e a determinação de lutar com outros garotos

122

pelos próprios direitos é um emblema da masculinidade. (Gagnon, 1981: 142-3)*

Neste sentido, Klein (1993), que pesquisou indivíduos pertencentes à

elite dos fisiculturistas nos Estados Unidos, entende a força física como um

"emblema biológico da masculinidade". Para ele, o senso de identidade de um

homem provém de alguma resposta a esses "emblemas": a posse de um pênis e de

musculatura masculina. Outras manifestações seriam variantes simbólicas.

Segundo ele,

alardear a respeito do tamanho dos troféus recebidos ou do número de publicações que alguém tenha é, nesse sentido, a mesma coisa que exibir um peito musculoso numa camiseta colante.

(Klein, 1993: 34)*

Além da simples obtenção de força física, o engajamento lúdico em

práticas esportivas realiza, por assim dizer, uma "ponte" entre as brincadeiras

infantis e as atividades "sérias" do mundo do trabalho adulto, possuindo

características de ambos os domínios. Cada esporte é organizado em nível

mundial por Federações, realizam-se competições internacionais capazes de

conferir grande prestígio aos contendores e, em alguns casos, remuneração à

altura, tornando-se um caminho possível de realização profissional. Ao mesmo

tempo, pode ser uma atividade completamente descompromissada, realizada por

pessoas de qualquer idade e geralmente prazerosa, praticada sem qualquer outro

fim que o próprio prazer do jogo, como uma partida de futebol na beira da praia,

a tradicional "pelada".

A prática de esportes, além disso, pode ser associada, conforme as

condições sociais em que é realizada, àqueles aspectos da construção da

identidade do gênero masculino tratados acima. Afinal de contas, os esportes são

* No original: "Physical strength and physical courage become identified with moral strength and moral courage, and the willingness to fight other boys for one's rights is an emblem of manliness."* No original: "Bragging about the size of grants won or the number of publications one has is the same tjing, in this respect, as showcasing a massive chest with a skin-tight T-shirt."

123

uma variante mais "regrada" dos jogos e disputas infantis. Jackson (1990) associa

a prática de esportes com a infância e adolescência, "uma etapa da vida de um

homem onde a masculinidade é construída e confirmada" (Jackson, 1990: 207).

Este autor descreve a sua experiência nos esportes como carregada de valores

socialmente atribuídos à conduta masculina, como a coragem, a determinação e o

estoicismo. Segundo ele, para que um atleta seja bem-sucedido, deve desenvolver

uma personalidade bastante determinada, que o encorage a ver seu corpo "como

uma ferramenta, uma máquina ou mesmo uma arma utilizada para derrotar o

oponente" (Jackson, 1990: 210).19 Este autor acentua que a valorização do caráter

agonístico nos esportes está relacionada com a reprodução de valores

considerados masculinos. Segundo ele, estes valores são códigos sociais

derivados da literatura épica, que associa a "honra masculina heterossexual" e a

virilidade de um homem à sua prova e defesa pública através de competições ou

combates contra seus rivais (Jackson, 1990: 218). Como veremos mais adiante,

este é exatamente o ponto onde se insere a identidade masculina nos esportes de

combate, ou seja, na aceitação pública do desafio, no pôr-se à prova contra outro

homem perante um público/platéia.

Na verdade, a prática de esportes se presta à aferição de um

determinado valor colocado em questão, conforme a modalidade esportiva. A

vitória será do mais veloz, se for disputada uma corrida; do mais forte, se for uma

prova de halterofilismo; do mais hábil lutador, se for um combate. Segundo

Caillois (1990), o interesse de uma competição esportiva para os contendores é o

"desejo de ver reconhecida a sua excelência num determinado domínio" (Caillois,

1990: 35). A prática do esporte apresenta-se, desta maneira, como a forma por

excelência para a manifestação pública do valor pessoal. Para Gagnon (1981), a

força física e seu uso através da prática do combate corpo-a-corpo (esportiva ou

19 Ver também, neste sentido, Magnane, 1969 e Wacquant, 1989.

124

não) e de outros esportes competitivos seria uma maneira de criar uma espécie de

"hierarquia de poder entre os homens". Em relação ao mesmo tema, Lévi-Strauss

(1976) refere-se ao jogo como uma atividade "disjuntiva", isto é, ele resulta na

criação, pelos fatos do jogo, de uma "divisão diferencial" entre os jogadores. No

início de uma partida, os competidores encontram-se em igualdade de condições.

Quando esta chegar ao fim, os participantes estarão distinguidos entre vencedores

e perdedores (Lévi-Strauss, 1976: 54). Cria-se assim uma hierarquia de valor num

dado domínio entre os adversários, ainda que temporária.

Para Gilmore (1994), a identidade do gênero masculino está

geralmente associada a uma espécie de "escala" onde pode-se "hierarquizar"

simbolicamente a masculinidade de um indivíduo em relação a outro, de acordo

com padrões variáveis de uma sociedade a outra (Gilmore, 1994: 110). Assim, a

prática esportiva em geral pode ser considerada uma forma de hierarquizar

simbolicamente a masculinidade dos praticantes envolvidos.

Em relação especificamente aos esportes de combate, existem aspectos

envolvendo esta situação de vitória/derrota que tornam mais "literais" tanto uma

quanto a outra. Nesse sentido, Parlebas (1986) realiza um inventário das

diferentes categorias referentes aos por ele chamados "duelos esportivos". Neste

sistema se enquadram a maioria dos esportes. Após uma primeira divisão entre

esportes individuais e esportes de equipe, Parlebas dispõe os esportes individuais

em um eixo crescente de simbolização acerca do dano físico real ao oponente.

Num extremo estariam os esportes de combate como o kendô e a esgrima,

modalidades com o uso de arma, além de modalidades desarmadas, como a luta

greco-romana, o judô e o boxe. No outro extremo, estariam os duelos com

projéteis, em que o dano ao adversário é simbolizado pelo toque do projétil em

seu "território", como o tênis e o ping pong, sem qualquer contato físico entre os

contendores. Nos esportes de combate, com ou sem armas, o objetivo a ser

125

atingido é o corpo do oponente, esta é a regra fundamental destas modalidades

esportivas.

O objetivo do lutador, do boxeador ou do esgrimista é o de derrubar seu adversário, literalmente nos esportes de combate, simbolicamente hoje, na esgrima. (Parlebas, 1986: 171-2)*

Para este autor, a lógica interna dos combates singulares é uma lógica

de destruição real ou simbólica do corpo do adversário. O sistema de pontuação

se baseia de modo inequívoco sobre a demonstração direta desta superioridade

corporal: a vitória é dada ao maior número de toques no corpo do oponente

(como na esgrima e kendô), por queda, estrangulamento, projeção ou

imobilização (como no judô ou jiu-jitsu) ou por colocar o adversário fora de

combate, por nocaute (como no caso do boxe e do full-contact).

$$$

Foto 14: Um dos contendores estirado no chão: knockdown.

Em função do código do jogo, hoje em dia a destruição do corpo do

adversário não é mais do que simbólica, e para tanto, são utilizados os mais

diversos artefatos de proteção, como, no caso do full-contact, luvas, botas,

caneleiras, protetor de dentes, etc. O conteúdo da derrota numa contenda

esportiva como uma "morte simbólica" do oponente, entretanto, continua presente

em muitas práticas esportivas. Diz-se, por exemplo, de um time de futebol

desclassificado para as finais de um campeonato: "Nadou, nadou e morreu na

praia".

Nesse mesmo sentido, Lévi-Strauss (1976) também afirma que,

conforme diversos mitos, ganhar no jogo é, de uma forma simbólica, "matar" o

* No original: "L'objectif du lutteur, du boxeur ou du bretteur est de terrasser son adversaire, littérallement en sports de combat, symboliquement aujourd'hui en escrime."

126

adversário (nos mitos, este conteúdo aparece muitas vezes de forma literal). No

caso dos esportes de combate, uma derrota por nocaute pode representar de modo

quase literal este conteúdo simbólico inerente ao espírito do jogo: por vezes, um

dos lutadores fica estirado no piso do ringue, inconsciente da vitória de seu

oponente.

$$$

Foto 15: Uma derrota por nocaute, Academia Pialo.

A prática de esportes de combate pode ser relacionada a alguns

aspectos que envolvem a construção da identidade masculina entre os

participantes. Em um combate, a derrota do oponente, uma espécie de "morte

simbólica" deste, não implica automaticamente na perda dos seus atributos

masculinos, desde que se seja derrotado lutando bravamente. É freqüente o

comentário entre os assistentes de um combate de que determinado lutador é

"valente". Em geral, esta qualificação se aplica ao lutador derrotado, que, mesmo

com absoluta inferioridade técnica em relação ao seu oponente, não foge ao

combate, e, lutando, tenta evitar o nocaute. Para este lutador, terminar a luta "de

pé" (ou seja, garantir uma derrota "por pontos") já é em si uma espécie de vitória,

sua "honra" e fama de "valente" estão asseguradas. Para o vencedor, a glória será

tanto maior quanto mais qualificado e respeitado for o seu oponente. Leal

(1992b) refere uma afirmação aos "gaúchos" por ela pesquisados que pode ser

aplicada com propriedade neste caso: "nesta cultura, um homem será sempre mais

homem quando derrotar um outro homem" (Leal, 1992b: 12). Para Pitt-Rivers

(1979), o vencedor em uma disputa em que o valor "honra" esteja envolvido vê

sua reputação realçada socialmente pela humilhação do vencido (Pitt-Rivers,

1979: 21). Gilmore (1994), referindo-se ao grupo Mehinaku do Brasil central,

127

ressalta a importância das lutas esportivas realizadas no centro de suas aldeias.

Para Gilmore, a luta realizada por eles é um "quadro simbólico de referência"

pelo qual um homem pode demonstrar seu valor perante seus pares.

Por simbolizar todas as outras habilidades, a habilidade na luta é, sobretudo, a medida de um homem e uma arena simbólica para sua auto-promoção.(...) Entre os Mehinaku, a derrota e a vitória são, portanto, muito mais do que bilhetes de uma loteria inconseqüente; a luta tampouco é apenas recreação. Os combates indicam o valor de um homem como um adulto atuante e são sinais indeléveis de seu potencial. (Gilmore, 1994: 89-90)*

Assim, pode ser visto como através de uma prática esportiva podem

ser traçadas divisões hierárquicas acerca da identidade masculina, uma espécie de

ranking simbólico da masculinidade.

Após esta revisão bibliográfica sobre a relação entre competitividade,

jogos e hierarquização da masculinidade, passo a analisar o universo dos

praticantes de full-contact à luz destas questões, a respeito da forma que tomam

neste meio as manifestações simbólicas de virilidade relacionadas à prática deste

esporte, tanto no discurso dos praticantes como nos eventos relacionados aos

combates.

3.5 Uma Semântica da Virilidade

Entre os praticantes de full-contact, a constituição deste ranking

simbólico decorrente do desempenho individual no combate enseja uma

valorização de si em relação à sociedade envolvente, sendo freqüente a alusão a

"andar na rua" ou "sair pela rua" aplicando os conhecimentos adquiridos na

* No original: "Because it symbolizes all other skills, wrestling ability is, above all, the measure of a man and a symbolic arena for self-promotion. (...) Among the Mehinaku, defeat and victory in sports are therefore more than tickets in an inconsequential lottery; nor is wrestling simply a recreation. The contests indicate a man's worth as a functioning adult and are undelible signals of his potential."

128

academia. No caso, o "andar na rua" significa sair em público, fora do espaço

restrito do interior da academia. Em entrevista, alguns praticantes referem que a

prática do esporte de combate confere a oportunidade do lutador pensar "ser mais

do que o outro" em função de dominar melhor as técnicas de combate de modo a

derrotar a este "outro" no caso de um eventual confronto. Em geral, estas

afirmações vêm acompanhadas da negativa dos entrevistados em pensarem a si

mesmos desta forma, valorizando a necessidade de ser humilde. A verbalização

deste sentimento, entretanto, ocorre de modo recorrente, conforme o exemplo

abaixo:

"...eu pratico Full-Contact porque me sinto bem com isso, não pra mim sair agredindo os outros na rua nem pra mim ficar dizendo: 'Ah, eu sou mais do que tu, tu é mais um otário'".

(Alexandre, 22 anos, auxiliar de escritório)

Outra expressão usada neste mesmo sentido de sobrevalorização de si

decorrente da excelência na prática do combate é "ser o cara". O fato de um

indivíduo dizer que "é o cara" indica que este se diferencia do resto das pessoas

de um modo "individualizante", ele não é "um cara", ele é "o cara". Um exemplo

do emprego deste termo no discurso dos praticantes é dado a seguir:

"Eu faço full-contact pra me sentir bem, é um hobby. Tem três tipos de pessoa, um que faz luta pra ser o cara, outro que faz luta pra campeonato, pra ser o campeão e outro que faz pra se sentir bem."

(Salomão, 22 anos, padeiro)

A eventualidade do uso do combate dentro do ringue para obter uma

sobrevalorização da própria masculinidade à custa do "vexame" do oponente que

seja um desafeto, ou seja, que dentro do ringue coloquem-se em disputa outras

questões além do simples confronto esportivo é relatada no seguinte depoimento,

em que o praticante considera a possibilidade de encontrar-se em um campeonato

com um seu desafeto:

129

"...num campeonato, eu esperaria pegar o cara numa luta, aí eu dava o troco, claro que dentro das normas, dentro da regra, agora, se o cara disse isso, isso e isso, e o confronto é num campeonato, eu não vou poupar ele, se tiver que dar um vexame, dar um nocaute nele na frente de todo mundo no primeiro assalto, eu vou dar, certamente."

(Severo, 20 anos, funcionário de transportadora)

A realização de um combate para um lutador, entre outras coisas,

representa uma oportunidade de demonstrar publicamente aspectos socialmente

valorizados na construção da identidade do gênero masculino, como a coragem

de correr riscos, já que, ao entrar no ringue, a possibilidade de ser derrotado em

um combate é sempre real e presente. Existem muitos casos em que um lutador

estava sendo surrado e, num golpe feliz, acertou o queixo de seu adversário e

nocauteou-o. Então, na medida em que o risco de ser derrotado está sempre

presente, é interessante para um lutador buscar sempre adversários mais

qualificados do que ele, pois uma eventual derrota nada mais é do que a

confirmação de um prognóstico já esperado, o favoritismo era do adversário.

Uma vitória contra um lutador "superior", entretanto, confere ao vencedor um

grande aumento no seu prestígio, além de valiosos pontos no ranking de sua

categoria. O fato de um lutador "não escolher adversários", ou seja, aceitar

qualquer luta que se lhe apresente, freqüentemente aparece no discurso dos

praticantes como um motivo de orgulho, e pode ser entendido como um índice de

masculinidade. Em um eventual torneio, o fato de um lutador recorrer à comissão

organizadora para negociar um adversário mais "fácil" é considerado "pedir o

penico", ou seja, colocar-se sob a dependência de outrem, assumindo uma postura

"infantil" que não combina com a virilidade esperada de um lutador pelo público

e pelos colegas. Assim, a conduta "masculinizante" é justamente o contrário, ou

seja, "encarar qualquer um". Sob a ótica da identidade masculina, é até mesmo

preferível buscar adversários ainda mais qualificados.

130

A esse respeito, é bastante ilustrativo o comentário de um praticante de

full-contact, poucos dias antes de ser derrotado por nocaute técnico no primeiro

round de sua primeira luta profissional. A entrevista foi concedida enquanto o

praticante ainda era detentor de uma carreira invicta de dez lutas como amador e

um título estadual. Nesta sua primeira luta como profissional, ele bateu-se (e foi,

literalmente, batido) com o campeão brasileiro profissional de full-contact, versão

WAKO:

"Eu sempre gostei de lutar com cara melhor que eu, um cara que tem fama, já, porque aí, vá que dê uma casualidade de perder a luta, não vai 'ficar xarope' ['pegar mal'], agora, se tu ganhar, melhor ainda. Acho que é por isso que eu subi tão rapidamente, os adversários que eu peguei sempre estavam acima, sempre cara com fama. Eu luto há quatro anos e já tenho este título aí, agora tô começando no profissional." (Carlos, 20 anos, cobrador de ônibus)

A busca da glória esportiva leva um lutador que deseja se

profissionalizar a procurar sempre adversários mais qualificados, lutas mais

difíceis, para que o valor atribuído a cada vitória seja proporcional ao risco

corrido em disputá-la. Uma derrota perante um adversário muitíssimo mais

qualificado torna-se quase inevitável para quem procura desafios sempre

crescentes ao seu desempenho no ringue.

A esse respeito pode ser traçada uma associação, guardadas as

diferenças, entre a atitude destes lutadores em busca da profissionalização e o

modus vivendi dos grupos de guerreiros descritos por Clastres (1980). A partir da

constatação da guerra como um fato universal das sociedades primitivas, este

autor entende que a função da guerra nestas sociedades é a de manter a identidade

destes grupos como uma "totalidade una", um grupo coeso e indiviso, sem

estratificação social. Clastres descreve e analisa uma série de sociedades onde a

função da guerra é exercida em tempo integral por um grupo de homens, que dela

fazem seu modo de vida. O que move estes guerreiros não é o desejo do poder

131

dentro destes grupos, mas a busca da glória alcançada pelos feitos militares, cada

vez mais audaciosos. A busca de suplantar seus pares em feitos gloriosos leva

estes guerreiros invariavelmente à morte em combate. Assim, para este autor – no

que pode ser traçado um paralelo com a análise de Chodorow –, o modo de vida

do guerreiro opõe-se de modo radical à condição feminina. As mulheres nestas

sociedades seriam "seres para a vida", que concebem, fazem nascer e conservam

vivos os filhos destes grupos, enquanto que os guerreiros seriam "seres para a

morte", onde o objetivo de sua existência é a morte dos inimigos, de modo cada

vez mais audacioso e destemido, que acaba conduzindo-os a uma morte

prematura. Pode ser notado que na sociedade primitiva o preço da audácia

crescente perante o inimigo é a morte do guerreiro.

No caminho do full-contact profissional, o "preço" é um provável

nocaute no primeiro assalto, morte simbólica de um dos contendores, estirado no

chão, enquanto o adversário tem seu braço levantado pelo juiz sob os aplausos da

torcida. Pode ser percebido um conteúdo simbólico no fato do árbitro levantar o

braço do vencedor. O braço é, nos esportes de combate desarmado, a própria

arma do lutador, que com um direto certeiro pode nocautear o oponente, "matá-

lo", em termos simbólicos. A demonstração pública desta vitória é dada pelo

árbitro, que levanta o braço do vencedor perante o público e mantém baixo o

braço do derrotado. A honra de um lutador se constrói na mesma medida da

desonra do outro, ou mais do que isso, à custa desta desonra. A "arma" erguida

em público: um símbolo de virilidade incontestável. O derrotado com os seus

braços/armas pendentes: uma manifestação simbólica da sua impotência/morte.

$$$

Foto 16: A assinalação da vitória.

132

Sob este mesmo prisma, pode ser visto o sinal pelo qual é entendido

que um lutador está em condições de continuar o combate após um knockdown,

uma queda que não resulta em nocaute. Ao cair um dos lutadores, o árbitro afasta

o contendor que derrubou o oponente para um canto neutro do ringue. Inicia,

então, a chamada "contagem protetora", em voz alta, de um até oito. Neste

intervalo de tempo, o lutador derrubado deve levantar do chão e manifestar ao

árbitro suas condições de permanecer no combate, levantando as luvas até a

altura do rosto, ou seja, mostrando que a sua "guarda" está "alta". Não aquela

demontração incontestável de superioridade, o braço erguido do vencedor, mas a

recusa em ficar no chão, o desejo de prosseguir até o fim, manifestado pelo

braço/arma erguido, em posição de voltar ao combate. A recusa de um lutador em

abandonar o combate contra um adversário mais qualificado, tentando levar a luta

para uma derrota por pontos ou mesmo "vingar-se" do knockdown nocauteando o

oponente, é valorizada pelos espectadores que, como já foi visto, interpretam

como "valentia" esta atitude. Levantar após um knockdown e prosseguir de pé até

o fim da luta significará na certa uma derrota por pontos, mas concede ao lutador

que soube superar a queda a fama de "valente", um valor de ordem moral:

independente da derrota no combate, sua "honra" está assegurada.

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Foto 17: A "contagem protetora".

Para Gilmore (1994) – referindo-se aos jovens lutadores das ilhas

Truk, no Pacífico Ocidental –, embora a vitória em um combate seja importante,

o que marca a identidade masculina de um homem é o aceitar prontamente os

desafios e mostrar-se indiferente à dor. Para os membros daquele grupo (e, neste

133

sentido, também para os praticantes de full-contact), não importa se um homem

ganhe ou perca uma determinada luta,

se um homem porta-se bravamente no calor do combate, seu apelo à masculinidade fica assegurado, simultaneamente mantendo por sua força a reputação de seu grupo. (Gilmore, 1994: 67)*

A propósito do simbolismo da "guarda", ou seja, a defesa realizada

com os braços erguidos juntos em frente ao rosto e ao abdômen, pode ser notada

uma relação entre a prática do esporte de combate e a dicotomia "comer/ser

comido" freqüente nos duelos verbais relatados por Leal (1992b). Para atingir o

seu oponente, um lutador deve "entrar" em sua guarda, desviando o golpe da

defesa do adversário, por exemplo, ameaçando um cruzado de esquerda que fará

o adversário erguer a sua guarda para em seguida "entrar" por baixo com um

uppercut.

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Foto 18: Cena de um combate, Academia Pialo. A "guarda alta"

protegendo o lutador.

É de se notar que em uma combinação de golpes com ambos os braços

como a descrita acima, o lutador que estava no ataque arriscou-se a ser

nocauteado, pois no momento do ataque estava com a sua própria guarda

completamente aberta, preocupado apenas em "entrar" no oponente. Poderia ter

sido surpreendido por um contra-ataque e ter perdido a luta. Assim, em um

combate, os lutadores devem buscar atingir o corpo do adversário sem deixar que

este o atinja: uma espécie de "dar pau sem levar pau". Muitas expressões verbais

referentes à luta carregam um sentido sexual bastante acentuado, e são de uso

comum mesmo fora do métier das academias de arte marcial. Diz-se de um

* No original: "...if he acquits bravely in the heat of the combat, a man corroborates his claim to manhood, simultaneously bolstering his group's reputation for strength."

134

lutador que foi duramente golpeado em um combate, ou nocauteado, que ele

"levou um pau", ou "tomou um cacete", enquanto que o vencedor deste combate

hipotético "deu um pau" no seu oponente. Um soco aplicado com energia é

chamado de "porrada" e se um lutador "toma uma porrada", ou seja, se o golpe

aplicado pelo oponente efetivamente "entra" em sua guarda, ele fica em uma

situação difícil no combate, provavelmente "se fodendo" no final.

Em um combate, quando um lutador "toma uma porrada", uma das

maneiras de evitar a seqüência do ataque adversário é jogar o próprio corpo por

sobre o oponente, agarrando-o com ambos os braços, o chamado clinch. Além de

fornecer ao lutador que recorre a este expediente preciosos segundos para respirar

e se recuperar do golpe sofrido, é ainda uma maneira de cansar o adversário com

o peso do próprio corpo lançado por sobre o dele. O clinch ou "abraço",

entretanto, apesar de tolerado pelas regras é muito mal visto pelos praticantes e

espectadores, que o consideram uma forma de "fugir à luta", algo muito próximo

da covardia. Um dos professores entrevistados afirmou que sempre orienta seus

alunos a procurarem o combate até o fim, mesmo que eles acabem sendo

derrotados:

"Aqui eu treino pra fazer os caras técnicos, não é aquela pauleira, atropelado, nem agarramento, disso aí eu nunca gostei. Eu sempre falo pra eles: 'se tiver que lutar e perder, vai perder lutando, não se agarrando ou fugindo'".

(Daniel, 43 anos, professor de full-contact)

Tentar prorrogar o desenvolvimento desfavorável de uma luta

recorrendo ao "agarramento" (termo utilizado por este professor) ou fugindo do

combate é para ele uma atitude desonrosa. Em outros casos, a própria

masculinidade do lutador parece ser colocada em dúvida se ele resolve recorrer

ao clinch. Cabe notar que o termo "agarramento" é também sinônimo de contato

físico voluptuoso, "bolinação", o que, entre dois homens, seria uma prática

135

homossexual. No depoimento de outro professor, que relatou uma de suas

experiências de combate, o seu próprio treinador incitava os brios dos lutadores

acusando-os de homossexuais caso recorressem ao clinch:

"...quando a gente cansava e agarrava o cara [clinch] ele dizia: 'Mas que bichona, se abraçando! Luta, rapaz, que eu quero ver sangue!' – e isso que ele era o juiz da luta..."

(Nicolau, 44 anos, professor de full-contact)

Assim, uma eventual derrota de um lutador não representa risco à sua

reputação de "valente" (que pode ser traduzida por "valoração da identidade

masculina"), desde que ele "perca lutando", ou seja, devido ao melhor

desempenho do adversário.

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Foto 19: Um clinch

Perder uma luta fugindo ao combate ou tentar evitar os golpes do

adversário "se agarrando" nele (o que, ao fim e ao cabo, também é uma maneira

de "fugir da luta") não só pode ser identificado como "covardia" como também

pode comprometer, de modo simbólico, a própria identidade masculina do

lutador.

3.6.1 Sobre os Valores "Força" e "Técnica"

É bastante comum ouvir nas entrevistas com os lutadores e professores

de full-contact alusões a dois valores considerados necessários a um bom lutador:

"força" e "técnica". Como já foi referido anteriormente, é relativamente comum,

em torneios de full-contact, haver premiações especiais para o atleta mais

"técnico" do torneio e para o mais "competitivo", ou seja, aquele que for mais

dotado de "garra".

136

Essas categorias êmicas, consideradas complementares, na verdade

englobam, cada uma, diversos outros atributos, possibilitando uma bipartição dos

atributos considerados positivos para um lutador de full-contact pelos praticantes

pesquisados.

Sob a categoria "força" encontram-se associados os valores ligados

mais diretamente à corporalidade: não só a "força bruta", mas também

características como a resistência física, a capacidade de "assimilação" –

velocidade com que o lutador se recupera de um golpe sofrido –, e o valor

conhecido como "garra" – tenacidade e determinação do lutador em buscar a

vitória no combate, também chamada de "força de vontade".

Já a categoria "técnica" engloba os valores associados ao domínio da

mente, como a inteligência, a esperteza, o conhecimento de grande número de

golpes e a eficiência em aplicá-los com velocidade e precisão, ou seja, a

aplicação dos conhecimentos adquiridos ao próprio corpo tende a torná-lo mais

ágil e veloz. É interessante, neste sentido, a crença, bastante difundida entre os

praticantes, de que o excesso de exercícios físicos de musculação – comumente

conhecidos como "puxar ferro" – tornam os músculos "lentos". Neste caso, a

busca de um acréscimo no valor "força" por si só, sem a presença da "técnica",

produziria um efeito inverso ao esperado, tornando o corpo, apesar de forte,

lento. Se se considerar que a sagacidade e a esperteza são demonstrações de

velocidade de raciocínio, associadas ao valor "técnica", a sua versão "corporal" é

a velocidade e precisão nos golpes, fintas e esquivas. Um corpo que seja "lerdo",

neste sentido, seria o equivalente corporal de uma pessoa sem esperteza, "burra",

por assim dizer.

Estes dois valores podem ser relacionados a dois conjuntos de pares

opostos, de modo a buscar categorias mais abrangentes: numa primeira instância,

pode-se associar força/corpo e técnica/cabeça. Jardim (1991), em sua etnografia

137

acerca dos homens freqüentadores de butecos, relata categorias similares.

Curiosamente, os termos êmicos são exatamente os mesmos para significar a

diferença de uma para a outra categoria. Para ela, a "força" e a "técnica" são duas

vias complementares pelas quais ocorre a auto-percepção enquanto ser

masculino. Estes valores encontram-se particularmente evidentes, segundo ela, na

leitura que seus pesquisados fazem de jogos de futebol. Cabe notar, mais uma

vez, a relação entre práticas esportivas e sistemas simbólicos envolvendo a

masculinidade:

Entre os homens, o futebol evoca uma habilidade baseada na força física dos jogadores e na técnica. (...) Estes são atributos que os homens entendem que devem possuir e adquirir para construir sua masculinidade socialmente. (Jardim, 1991: 188)

Num segundo movimento de categorização, proponho a associação do

binômio força/técnica ao conhecido binômio natureza/cultura. Assim, o grupo de

valores representado pelo termo "força" pode ser associado ao âmbito da

"natureza", enquanto o termo "técnica" pode ser associado à "cultura". A relação

entre "força" e "natureza" pode ser melhor entendida a partir dos outros termos a

ela associados. Por exemplo, o atributo "garra", que em um sentido significa

persistência, vigor e determinação, em outro, refere-se à unha forte e recurvada

de certos animais, como as aves de rapina, que tem a função de "agarrar" a presa.

Igualmente, o termo "raça", empregado em geral no mesmo sentido de "garra",

possui também fortes conotações biológicas, inclusive estando associado a

classificações de animais, como cavalos, cães e gatos. A relação dos atributos da

"técnica" com o âmbito da cultura está particularmente ligada ao "uso da cabeça",

referindo-se a atributos como a inteligência, velocidade – do corpo e da mente – e

conhecimento.

A dicotomia força/técnica encontra-se por vezes relacionada a outros

temas, embora me pareça sempre refirir a idéia de um trânsito, de um movimento

138

cujo desenvolvimento progressivo, partindo do domínio da "força", encontra ao

final o domínio da "técnica". Considero este processo similar à realização de um

trânsito entre o domínio da natureza e o da cultura. No seguinte trecho de

entrevista, estes aspectos ficam bastante claros:

"...a diferença do amador pro profissional é muito grande. A qualidade de luta é muito superior no profissionalismo. Enquanto o amador é um lance em que tu usa mais força e raça, no profissionalismo, não, no profissionalismo tu usa a técnica e a cabeça, tu luta com a cabeça, então tu não te atira pra ganhar a luta logo, o profissional luta com a cabeça, é muito inteligente. Eles não largam golpe em vão, eles entram só na boa. Só na boa e são uns experts, são profissional, né, a diferença é essa, o profissional tem que usar muito a cabeça."

(Carlos, 20 anos, cobrador de ônibus)

Neste trecho, fica clara a distinção entre as categorias "amador" e

"profissional" do full-contact segundo o praticante. O que identifico por sobre a

leitura direta deste discurso é essa noção de um processo, no qual o "amador",

iniciante na prática do combate, contando apenas com os atributos conferidos

pela "natureza", como a "força", a "garra" e a "raça" vai, com o tempo,

aprimorando-se na prática do combate, adquirindo "técnica". A aquisição dessa

"técnica" por parte do lutador implica em utilizar os atributos da mente no

combate, em "usar a cabeça" e "lutar com inteligência". O aprendizado da

"técnica" vai aprimorando a qualidade do lutador, vai dotando-o de "cultura" até

que ele possua os atributos da "técnica" em ordem de fazer dele um

"profissional". Desta forma, o processo de aprendizado de uma técnica de

combate pode ser considerado como um trânsito entre o domínio da natureza e o

domínio da cultura, mediado pelo ensinamento, na academia, das técnicas de

combate. Estas técnicas são, em última instância, um conhecimento de que o

professor é o detentor legítimo: por meio dele, em suas aulas dentro da academia,

realiza-se o trânsito de um domínio para o outro. As faixas coloridas atadas à

139

cintura dos praticantes, neste sentido, são indicadores da posição relativa de cada

lutador neste processo de culturalização da natureza.

3.6 Ringues e Rinhas, Galos e Goleiras: a masculinidade posta à prova

Em muitos sentidos, o universo das artes marciais e esportes de

combate pode ser comparado com outros domínios relativamente conexos, e com

alguma freqüência abordados por trabalhos de cunho antropológico, como o

universo das rinhas de galo e o complexo mundo do futebol. Os aspectos

esportivos/lúdicos que perpassam estas atividades são em larga medida

equivalentes, desde que, é claro, seja feita a transposição da natureza dos

contendores – galos, nas rinhas e homens, nos esportes citados. Além disso, os

aspectos de natureza simbólica envolvendo a constituição da masculinidade são

basicamente os mesmos nestes universos, justificando a constituição de um

paralelo entre estes domínios. A seguir, farei uma breve abordagem paralela

destas atividades, sob o prisma da construção da identidade masculina. Após

relacionar e comentar as abordagens que diferentes autores fizeram do tema da

masculinidade relacionada a rinhas de galo e jogos de futebol, retomarei alguns

dos temas tratados anteriormente, confrontando-os com algumas abordagens

destes autores.

As brigas de galo, também chamadas rinhas, já foram objeto de

diversos estudos antropológicos, como o de Geertz (1978), Teixeira (1992), Leal

(1989, 1994), Cook (1994) e Dundes (1994). Consideradas uma atividade de

origem extremamente antiga, as rinhas de galo possuem apreciadores nos mais

diversos países, e são com freqüência associadas a uma forma simbólica de lidar

com aspectos da construção da masculinidade, e podem ser relacionadas sob

140

diversos aspectos à prática de esportes de combate, como o full-contact e o boxe,

por exemplo.

Teixeira (1992), descrevendo as rinhas de galo no Brasil,

freqüentemente compara aspectos da rinha com a prática do boxe. Geertz (1978)

também assinala as semelhanças do tratamento dispensado a um galo ferido no

intervalo de um combate à assistência prestada pelo treinador ao seu boxeador

entre dois rounds. Os paralelos, na verdade, são muitos, e não apenas de ordem

simbólica. Assim como no boxe, os galos são treinados antes de entrar no

rinhadeiro, com exercícios para fortalecer as pernas e asas, além de "lutas

simuladas" para acostumá-los com o combate. Por ocasião de um combate, os

dois galos contendores devem ser de peso semelhante, de modo a equilibrar as

chances de cada galo, assim como na maioria dos esportes de combate. À

semelhança do full-contact, onde os lutadores revestem seu corpo de

equipamentos de proteção, usados principalmente para proteger os punhos e

pernas do atacante, "armas" usadas na luta, assim também na rinha de galos são

aplicados "bicos de aço", não como armas, mas como uma proteção aos bicos dos

galos, que de outra forma se quebrariam facilmente durante o combate. O regime

da luta também é similar ao de um esporte de combate, com períodos de luta

alternados por intervalos para "recuperar" os contendores das vicissitudes do

combate. A principal semelhança, entretanto, e a que me interessa de modo

particular é no nível das relações simbólicas envolvidas nos combates, principal

dimensão abordada pelos trabalhos antropológicos referidos.

Segundo Geertz (1978), as brigas de galos observadas por ele em Bali

denotam grande parte do ethos balinês, do mesmo modo que o ethos americano

pode ser visto num campo de beisebol ou em torno de uma mesa de pôquer. Para

Geertz, "é apenas na aparência que os galos brigam ali - na verdade, são os

homens que se defrontam" (Geertz, 1978: 283). Para este autor, os galos

141

representam para os balineses os símbolos por excelência da masculinidade,

estando a linguagem cotidiana dos balineses repletas de alusões metafóricas sobre

galos e atitudes masculinas, a própria ilha de Bali sendo comparada, por seu

formato, a um pequeno galo orgulhoso em permanente desafio à ilha de Java, sua

tradicional rival (Geertz, 1978: 285).

No trabalho de Leal (1994) sobre os gaúchos, um dos capítulos centra-

se na descrição e análise de um rinhadeiro em Porto Alegre. Nesta análise, é

ressaltado um valor simbólico atribuído à conduta de um galo de rinha: a

"dignidade". A "dignidade" de um galo consiste, nos termos desta autora, na

capacidade do animal de suportar o sofrimento de modo estóico, "heroicamente".

Para ela, a busca da vitória numa rinha é importante, mas não é a parte mais

importante deste evento.

Nesta adoração profana da masculinidade, o senso de abnegação dos homens, seu senso de sacrifício necessário encontra compensação na "dignidade" do galo: ele sofre, mas não é um perdedor, sua honra está salva se ele (o homem e o galo) souber como sofrer e assim preservar sua masculinidade. Se um galo luta até a morte, sem jamais fugir do rinhadeiro e se, mesmo profundamente ferido, ele continua lutando, sua honra e a honra de seu dono não estão em risco: um homem pode perder dinheiro, mas não a honra.

(Leal, 1994: 213)

Fica claro neste trecho outro importante aspecto das rinhas: a

identificação simbólica do galo com seu dono. As ações do galo no rinhadeiro são

simbólicas da conduta do seu dono. Se um galo, após um golpe do oponente, foge

do rinhadeiro "piando feito galinha"20, não só ele é motivo de escárnio entre os

assistentes, mas seu possuidor também, como se ele em pessoa tivesse fugido ao

combate. Esta relação simbólica do galo como "representante" ou "duplo" do seu

20 Devido a um traumatismo craniano, um galo pode "piar feito galinha", isto é, cacarejar. Isto se deve exclusivamente ao traumatismo sofrido, e não por uma eventual "perda dos atributos masculinos", que, além dos biologicamente dados, animal algum possui. Os "galistas" (possuidores dos galos) são cientes de que o "piar feito galinha" é decorrência de um dano fisiológico, mas o evidente conteúdo simbólico de "feminilização do adversário" é mais forte: se um galo "piar feito galinha" ele e seu dono estão desonrados.

142

possuidor é notada por diversos autores que analisaram este evento, como Geertz

(1978), Teixeira (1992), Cook (1994) e Dundes (1994).

Na prática dos esportes de combate, ocorre um fato semelhante,

guardadas as (muitas) diferenças. Como já foi visto, mensalmente, a Federação

Gaúcha de Full-Contact realiza um evento de lutas no qual participam academias

de todo o estado. Durante um evento de lutas entre praticantes de diversas

academias, cada treinador leva os "seus" lutadores para o combate com lutadores

de outros lugares. Normalmente, os treinadores se conhecem de muito tempo. A

realização de um evento desta ordem é também ocasião para o reencontro destes

treinadores, muitos deles ex-lutadores. Os treinadores, via de regra, não lutam

nestes eventos, mas seus alunos, lutadores "feitos"21 por eles o fazem. A figura do

treinador ocupa um papel importante na construção do "estilo" de um lutador, se

sério e compenetrado ou deliberadamente agressivo ou ainda falastrão e

autoconfiante, dentro e fora do ringue.

$$$

Foto 20: Orientação do treinador durante um combate.

Como já foi assinalado anteriormente, uma frase corrente no métier

das academias afirma que "o aluno é o espelho do professor", e toda a noção de

estratégia dentro do ringue, preparo físico para um combate e mesmo a atitude do

lutador antes, durante e depois da luta são, se não orientadas pelo treinador, pelo

menos bastante influenciadas por ele. Antes do combate e nos intervalos, o

treinador sobe ao ringue para "armar" seu lutador e dar-lhe instruções. A glória

decorrente da vitória no combate recai também sobre o treinador, que após a luta

21 O termo "fazer", no sentido de ensinar e treinar um lutador, é êmico e, no meu entender, bastante significativo. Ele implica no fato de que o desempenho do lutador é, em grande parte, "obra" do treinador, que, assim, encontra-se "representado" dentro do ringue pelo "seu" lutador, de modo análogo ao "galista" cujo galo está na rinha.

143

sobe ao ringue para fazer a entrega do troféu a seu aluno, o vencedor,

compartilhando desta forma de sua vitória. Cada treinador o faz de um modo: um,

oriundo do karatê, realiza o cumprimento característico das artes marciais

japonesas; outro, ex-lutador de boxe, bate de leve com a cabeça na têmpora de

seu aluno, antes de abraçá-lo. Enfim, no palco/ringue, cada treinador celebra em

público a "sua" vitória a seu modo. No final do evento, um treinador sai tanto

mais prestigiado entre seus pares quanto maior o número de lutas vencidas por

seus lutadores. Em um destes eventos, um professor levou quatro alunos para o

ringue. Dois deles venceram suas lutas. Ao final do evento, convidei-o para uma

foto: ele espontaneamente chamou para entrarem na fotografia somente os dois

vencedores, com seus troféus, um de cada lado; os seus alunos que foram

derrotados ficaram fora de quadro, observando a glória alheia.

De acordo com a análise de Dundes (1994), não apenas as brigas de

galos, mas todas as formas de combate entre homens obedecem a um mesmo

princípio básico, o da preservação da própria masculinidade à custa da

"feminilização simbólica" do adversário. As formas de combate masculino, para

Dundes, variam desde as brincadeiras infantis até a guerra, passando por todas as

formas de competição esportiva. Segundo este autor, todos estes jogos e esportes

podem ser tratados como variações de um único tema:

Este tema envolve a preservação da masculinidade, na qual um homem demonstra sua virilidade, sua masculinidade, à custa de outro homem adversário. Prova-se a própria masculinidade feminilizando o oponente. Tipicamente, a vitória implica (...) penetração.

(Dundes, 1994: 250)*

A interpretação de Dundes é ousada, e concordo com ela apenas

parcialmente. Quanto ao aspecto de provar a própria masculinidade à custa da

derrota do adversário, concordo plenamente. Vários outros autores manifestam

* No original: "The theme involves an all-male preserve in which one male demonstrates his virility, his masculinity, at the expense of a male opponent. One proves one's maleness by feminizing one's opponent. Tipically, the victory entails (...) penetration."

144

opiniões concordantes neste sentido, como Leal (1992b) e Gilmore (1990). Já a

afirmação de Dundes de que a derrota implica na feminilização simbólica do

oponente parece-me questionável. O conteúdo simbólico que talvez esteja mais

associado à derrota é o da morte do derrotado, conforme foi visto acima, não a

sua necessária feminilização, que me parece apenas um caso possível dentro dos

diversos conteúdos simbólicos inerentes à competição. Os braços do lutador

derrotado abaixados pelo árbitro enquanto levanta o braço do vencedor podem

simbolizar publicamente a impotência do lutador derrotado, que a meu ver está

mais próxima de uma "morte simbólica" do que de sua "feminilização".

No meu entender, algumas derrotas podem ter como conseqüência a

feminilização simbólica do vencido, particularmente quando o contendor

derrotado foge do combate ("pia feito galinha", para manter o paralelo com as

rinhas de galo). Este conteúdo de reduzir o adversário à condição feminina

através da derrota é bastante claro neste caso em que o galo "pia feito galinha".

Se ele age como uma galinha, não é galo, portanto não pode lutar. Quando um

lutador foge do combate ou recorre com freqüência ao clinch, o reconhecimento

social de sua falta simbólica de atributos masculinos se dá da mesma forma,

assim como o menino que choraminga porque não consegue jogar bolinhas em

condições de competir com seus oponentes é chamado pelos outros meninos de

"mulherzinha". Pode-se notar que este menino é "mulherzinha" não porque perde

no jogo, mas porque choraminga, ou, em outros termos, "perde a dignidade",

solicitando o auxílio dos outros, uma relação de dependência.

Em todos estes exemplos, vale ressaltar, a identidade masculina é

construída a partir da negação/desvalorização da feminilidade, de acordo com a

análise de Chodorow (1979). No caso em que algum contendor "perca lutando",

seja uma guerra, um combate ou uma rinha de galos, ou seja, não recue frente ao

ataque do adversário, e, mesmo perdendo a luta, não perca a "dignidade" (no

145

sentido empregado por Leal), o reconhecimento social do desempenho deste

combatente preserva-lhe a honra. Ele é "valente", "perde lutando", e, socialmente,

sua honra e, como decorrência, sua masculinidade, não estão em risco. Neste

sentido, os dados deste estudo mostram que a análise de Dundes é válida, embora

não em todos os casos. A respeito do conteúdo da vitória sobre o adversário ser

decorrente de uma "penetração" simbólica deste, o que acarretaria a sua redução à

condição feminina, acredito igualmente que é uma afirmação que pode ser

relativizada, já que o reconhecimento social a esse respeito só chega efetivamente

a "feminilizar" o contendor derrotado em alguns casos. Não é em toda luta que se

diz que um dos contendores "deu um pau" no oponente, ou "fodeu com ele". É

claro que, para usarmos outros esportes, "meter um gol" nas redes adversárias,

"enterrar" uma bola na cesta da outra equipe ou mesmo "entrar" na guarda do

oponente e "dar uma porrada" nele são expressões usuais referentes a fatos

esportivos que manifestam este evidente conteúdo de "penetração simbólica" do

adversário. Minha discordância decorre de que, no futebol, por exemplo, "tomar

um gol" não é o fim do jogo, nem da "dignidade" ou masculinidade dos

jogadores, contanto que o time se recupere deste revés e faça gols no adversário.

A respeito do simbolismo existente no futebol, Suárez-Orozco (1982)

interpreta o sentido simbólico do futebol para os torcedores argentinos de modo

análogo ao de Dundes, como uma disputa por masculinidade, a goleira de cada

time sendo uma versão simbólica do ânus (interessante lembrar que a goleira de

um time fica "atrás" de seus jogadores). Fazer um gol, neste sentido, significa

submeter simbolicamente o adversário à penetração anal, privando-o assim da

masculinidade, e adquirindo por esta via um acréscimo na própria masculinidade

à custa desta "feminilização" do adversário (Suárez-Orozco, 1982: 23). Acredito

que esta interpretação seja igualmente válida, mas que da mesma forma pode ser

relativizada. No caso do futebol, por exemplo, em uma vitória por dois gols a um,

146

ambos os times foram "penetrados" desta forma simbólica; então, para manter os

termos desta interpretação, ambos os times foram, a seu tempo, "feminilizados"

pelo oponente. Neste caso, seria "mais macho" o time que foi "menos

penetrado"? Assim, creio que tal "feminilização simbólica", conforme descrita

nas análises de Dundes e Suárez-Orozco, seja efetivamente uma interpretação

procedente, embora ela seja aplicável com mais propriedade em alguns casos.

Mantendo o exemplo do futebol, no caso de um time levar cinco gols

no próprio estádio (fato muitas vezes chamado pela crônica esportiva de "perder

em casa") sem fazer nenhum gol é uma situação bastante diferente da descrita

acima. Este foi o resultado de uma partida disputada entre as seleções da

Argentina e a da Colômbia em setembro de 1993, nas eliminatórias para a Copa

do Mundo de 1994. Um cronista esportivo argentino na época comparou uma

derrota desta ordem em pleno Estádio Monumental de Nuñez, em Buenos Aires, a

"um homem que leva um tapa na cara no meio da rua, na frente da esposa e dos

filhos", ou seja, uma situação hipotética em que um indivíduo é completamente

desonrado em público, perante sua própria família.

Cabe lembrar a associação estabelecida por Pitt-Rivers (1979) entre a

honra e sua localização corporal, o rosto. No caso, "a mulher e os filhos", os

dependentes de um homem, nesta alegoria, seriam a torcida argentina, que, "na

própria casa" teve que assistir, sem nada poder fazer, o espetáculo vergonhoso de

sua seleção nacional sendo humilhada. A natureza desta "desonra" (que, ao fim e

ao cabo, não passou de um jogo de futebol) e de sua associação com a

humilhação pública de um pai de família pode ser entendida como a perda dos

atributos masculinos. É interessante lembrar que, entre as atividades que, segundo

Gilmore (1990), definem em quase todas as sociedades o que seja "ser homem"

inclui-se a defesa de seus dependentes. Na linguagem corrente, a seleção nacional

daquele país, num processo de metonímia ocorrente também no Brasil, assume o

147

lugar do próprio país ("A Argentina jogou hoje contra a Colômbia"). Assim,

usando dos termos da análise de Suárez-Orozco, naquela ocasião "a Argentina"

foi simbolicamente "feminilizada" pela Colômbia, perdendo, além do jogo, um

importante fator simbólico da sua identidade masculina. Como no campo de jogo,

único local onde a "vingança" desta "ofensa" poderia ocorrer, a seleção argentina

não fez mais do que ser dominada pelo time adversário, a analogia do cronista

tem sua razão de ser.

Assim, uma "desonra" esportiva destas, no meu entender, pode ser

considerada (neste caso concordando com Dundes e Suárez-Orozco) como uma

"feminilização" simbólica do oponente, associando a perda da honra com a perda

da masculinidade. O conteúdo simbólico da "penetração" do adversário a cada

gol ganha, neste caso – dadas as demais circunstâncias que cercaram a partida –,

uma nova dimensão.

Algumas partidas de futebol terminam empatadas em um a um; no

caso de um combate, os lutadores a um tempo "dão" e "levam porrada" do

oponente. Dos dados de campo obtidos para este estudo, pode ser dado como

exemplo deste aspecto o seguinte depoimento, no qual um praticante fala da

importância que tem para ele, além dos treinos, a prática efetiva do combate

dentro do ringue:

"Teoria é uma coisa, a prática é outra. A prática é melhor que a teoria. Tu sabe que tu tem que dar o soco de um tal jeito, mas se tu nunca sentiu um soco, tu não sabe se ele faz efeito ou não. Tu não precisa apanhar, tu precisa é aplicar aquilo que tu aprendeu em cima de alguém e também aquele alguém vai aplicar em cima de ti, porque não é só tu bater: tu vai bater, mas também vai levar, então tu vai ter que saber defender, sair, tu vai ter que ter resistência."

(Lúcio, 30 anos, porteiro)

Neste trecho de entrevista fica claro que em uma luta o normal é

"bater" e "levar", ou, como foi dito anteriormente, "dar" e "tomar porrada". Seria

148

isto suficiente para afirmar que estes eventos esportivos na verdade simbolizam

uma relação entre dois homossexuais em que ambos são "penetrados"? Não creio.

Assim, os dados de campo deste estudo me fazem acreditar que o

"entrar em campo", seja numa quadra, num rinhadeiro ou num ringue, traz

consigo uma das maneiras de provar publicamente a própria masculinidade:

aceitando riscos. O risco de ser derrotado corresponde como simétrico oposto à

glória de ser o vencedor. Ser derrotado, mesmo por nocaute, (ou, no caso de uma

briga de galos, morrendo na luta) a meu ver, não implica necessariamente em

perder os atributos masculinos. O que pode levar a essa "feminilização" é a

maneira como se é derrotado. Se um lutador é derrotado enfrentando o

adversário (cabe recordar a etimologia de "enfrentar" no sentido de "fazer frente

a"), que, na luta, é facilmente perceptível pelo fato de o lutador estar sempre "de

frente" para o oponente, buscando o combate, não há nenhuma "desonra" nem

"feminilização" nisso. Se, pelo contrário, o lutador perde a luta fugindo do

combate, isto é, dando as costas para o oponente (a expressão "dar as costas",

usual nos esportes de combate, pode ser entendida neste sentido como portando

também uma referência simbólica à posição passiva em uma relação

homossexual), ou recorrendo ao clinch, em outros termos, "ficando de

agarramento" com o adversário (expressão que, como já vimos, também tem

uma conotação de contato sexual), neste caso, então, acredito que se possa falar

de uma "feminilização" do oponente. Como pode ser percebido, a "feminilização"

simbólica produzida pela derrota, nestes casos citados não se deve ao valor

demonstrado pelo vencedor, senão pela "fraqueza" do perdedor em sustentar sua

"dignidade" durante o combate. Mais uma vez pode ser traçado o paralelo com o

jogo das bolinhas de vidro: o menino "mulherzinha" não adquire este status por

perder o jogo, mas por não sustentar sua "dignidade" diante da derrota. O valor

moral associado à "valentia" de um lutador, além do mais, independe da vitória

149

ou derrota no combate: um lutador pode acertar um único golpe e ficar

"agarrando" seu oponente para não deixá-lo lutar e, assim, vencer a luta. Um

professor de full-contact queixava-se, durante uma entrevista, de um lutador que

vencera seu aluno desta forma:

"Tem professor que só sabe ensinar isso: dá um soco no cara e agarra, dá um soco e agarra, pra evitar levar. Ele sente que o outro é mais forte, ele só dá uma e te agarra pra não levar, às vezes até ganha a luta, mas só porque não deixa o outro lutar. É a mesma coisa que uma partida de futebol, o cara não te ataca, só se defende, só passa a bola pro lado, o público não gosta, a mesma coisa é a luta."

(Daniel, 43 anos, professor de full-contact)

O público presente a esta luta hipotética provavelmente não vai

atribuir o papel de "valente" a este lutador e se surgirem vaias no decorrer da luta,

não será nada surpreendente. Acredito que a relação simbólica entre "vitória no

combate" e "masculinidade confirmada" não é tão direta e sem ressalvas como

Dundes supõe, pelo menos no meio social que envolve os esportes de combate. A

meu ver, a conquista pública dos atributos de masculinidade em jogo dependem

mais da performance dos oponentes do que simplesmente do resultado.

Capítulo 4. Homens de Ferro: a Construção do Corpo

4.1 O Uso e a Percepção Social do Corpo

Uma primeira abordagem teórica a respeito do uso social do corpo foi

realizada por Mauss (1974). Num esforço de sistematização das por ele chamadas

"técnicas corporais", Mauss define este termo como sendo "as maneiras como os

homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de

seus corpos" (Mauss, 1974: 211).

Segundo este autor, a semelhança entre as diversas culturas quanto ao

uso do corpo reduz-se a uma dimensão puramente fisiológica: todos os homens

comem, dormem, copulam, etc. A forma que cada um destes atos tomará em cada

uma das diferentes culturas, entretanto, é completamente determinada pelas

particularidades de cada cultura, não existindo nenhuma técnica corporal comum

a todas elas. Para Mauss, a apreensão da natureza das técnicas corporais requer

um ponto de vista que inclua, além dos aspectos anatômicos e fisiológicos,

aspectos psicológicos e sociais (Mauss, 1974: 215). A partir do conceito de

"técnica" a incorporação destes aspectos psicológicos e sociais se torna clara:

Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que nisto não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição. É nisso que o homem se distingue sobretudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral. (Mauss, 1974: 217)

Desta forma, vemos a fundamental importância do aprendizado na

determinação da forma de uma determinada técnica corporal. Na dinâmica do

151

aprendizado, que se baseia na imitação de condutas exitosas de outras pessoas,

encontram-se os componentes psicológicos e sociais de cada técnica corporal,

produzindo-se assim as idiossincrasias que são características a cada uma destas

técnicas (Mauss, 1974: 215).

Outros autores assinalam essa natureza social dos fenômenos

corporais preconizada por Mauss. Rodrigues (1986) considera o aprendizado de

uma técnica corporal como parte da construção do corpo, dotando-o de uma

prática cultural por sobre uma base fisiológica,. O autor denomina a este processo

de interferência cultural sobre o corpo (anatômico e fisiológico, em princípio)

"apropriação social do corpo", e considera "estrategicamente importante" seu

estudo por parte das ciências sociais (Rodrigues, 1986: 47). Outra abordagem que

se refere à natureza social da experiência física do corpo é dada a partir da obra

de Douglas (1970), que considera a existência de "dois corpos", um físico e outro

social, em profunda interação:

O corpo social determina o modo segundo o qual o corpo físico é percebido. A experiência física do corpo, sempre modificada pelas categorias sociais através das quais ele é percebido, sustenta uma visão particular de sociedade. Há um câmbio contínuo de significados entre os dois tipos de experiência corporal, de modo que cada um reforça as categorias do outro. (Douglas, 1970: 65)*

As representações e práticas associadas ao corpo não variam apenas de

sociedade para sociedade. Dentro de uma sociedade complexa como a nossa, as

diferentes classes sociais tendem a apresentar usos, representações e consumos

diferenciados com relação ao corpo. Boltanski (1984) além de, a exemplo de

Mauss, sugerir a utilização de múltiplos pontos de vista (anatômicos, fisiológicos,

sociais, etc) no estudo desses aspectos associados à dimensão social da

corporalidade, estabelece uma diferenciação entre as diversas classes sociais no

* No original: "The social body constrains the way the physical body is perceived. The physical experience of the body, always modified by the social categories through which it is known, sustains a particular view of society. There is a continual exchange of meanings between the two kinds of bodily experience so that each reinforces the categories of the other."

152

que se refere aos usos e consumos sociais referentes ao corpo, não apenas em

termos de necessidade e consumo médicos, mas também em atividades de lazer,

como o uso do tempo de férias e a prática de esportes (Boltanski, 1984: 117).

Para este autor, o consumo de bens e serviços esportivos será diferenciado em

função do pertencimento a diferentes classes sociais:

A prática de um esporte, utilização lúdica, intencional e regrada do corpo, cuja freqüência cresce quando se passa das classes populares às classes superiores, ou seja, quando decresce a atividade física de uso profissional, constitui talvez o melhor indicador da inversão dos usos do corpo e da inversão correlativa das regras que regem a relação com o corpo quando se sobe na hierarquia social.

(Boltanski, 1984: 171)

A abordagem de Boltanski é bastante próxima à de Bourdieu (1983),

quando este afirma que existe, no "campo da prática esportiva", uma relação do

tipo "oferta e procura" entre as diversas modalidades esportivas e seus praticantes

em potencial. O fato de um agente escolher determinada prática esportiva em vez

de uma outra pode ser compreendido através da relação particular deste agente

com o próprio corpo, que vai variar de acordo com o habitus deste agente, e que

está na origem de seu estilo de vida.22 (Bourdieu, 1983: 148)

O "campo esportivo", conceito de Bourdieu que já foi tratado

anteriormente, é hoje em dia muito mais importante e autônomo do que

originalmente era, uma prática de lazer destinada aos filhos das classes

dominantes de fins do século XIX. Existe hoje todo um mercado de produção e

consumo de produtos esportivos, que atinge praticamente todos os segmentos da

sociedade; a amplitude conferida pela indústria cultural aos eventos esportivos

tornou o resultado de certas competições um assunto que ultrapassa em larga

medida as linhas demarcatórias do campo de jogo. Cabe lembrar que cada

modalidade esportiva não é mais que uma "técnica corporal lúdica", com tradição

22 Sobre os conceitos de campo e habitus, ver Bourdieu, (1989: 59-73).

153

e eficácia próprias, com toda uma estrutura de reprodução de seus valores, como

as "escolinhas" de futebol e as academias de arte marcial.

O praticante de esportes possui uma relação de trabalho com o próprio

corpo, que deve ser "moldado" para alcançar o desempenho desejado na prática

esportiva escolhida. A esse respeito, Magnane (1969) afirma:

Como o operário, o esportista deve operar em si próprio, no seu sistema muscular e nervoso, uma transformação completa, sofrer uma aprendizagem que exige atenção, perseverança, uma progressão sutil entre os excessos de indulgência a si próprio e um rigor imprevidente que negligenciaria as particularidades individuais e os dons naturais.

(Magnane, 1969: 60)

Esta relação "profissional" estabelecida pelo praticante de esportes

com o próprio corpo, visto como um instrumento de trabalho ou como uma

"máquina", também é salientada por Wacquant (1989), no caso referindo-se

especificamente ao corpo dos pugilistas:

O corpo do pugilista é ao mesmo tempo seu instrumento de trabalho (arma de ataque e escudo de defesa) e o alvo buscado por seu adversário. (Wacquant, 1989: 62)*

Destarte, pode ser percebido que uma arte marcial, a exemplo de

outros esportes, é antes de tudo uma técnica corporal. Assim, do mesmo modo

que cada sociedade cria e transmite, de acordo com seus padrões, técnicas

corporais que determinarão sua maneira de comer, andar ou dormir, também são

criadas e transmitidas diferentes maneiras de lutar.

4.2 A Utilização do Corpo para a Luta

Como vimos anteriormente, a construção do corpo visando à prática

esportiva exige um trabalho árduo e perseverante. Para a prática de uma técnica

* No original: "Cela parce que le corpos du pugiliste est à la fois son outil de travail (arme d'attaque et bouclier de défense) et la cible de son adversaire.

154

de combate, uma série de modificações na utilização do corpo são necessárias.

Não se trata apenas de bater no oponente com o punho fechado, mas de aprender

a controlar a movimentação do corpo inteiro, desde uma posição firme das pernas

até o balanço dos ombros, projetando o golpe com a máxima eficácia.

Wacquant (1989) afirma que a técnica corporal necessária a um

pugilista nada tem de "natural", e que os movimentos corporais empregados no

combate devem ser aprendidos à custa de muito esforço físico e até mesmo

mental:

a simplicidade aparente dos gestos de um boxeador é enganadora: longe de serem "naturais" e evidentes, os golpes de base (jab, direto, cruzado e uppercut) são difíceis de executar corretamente e supõem uma "reeducação física" completa, uma verdadeira remodelagem na coordenação motora e mesmo uma conversão psíquica. Uma coisa é visualizá-los e compreendê-los em pensamento, outra é realizá-los e, mais ainda, encadeá-los no calor da ação.

(Wacquant, 1989: 50)*

No full-contact, modalidade de luta eminentemente esportiva, é dado

grande valor ao preparo físico e ao apuro técnico dos atletas. Na medida em que a

luta se desenvolve em rounds de três minutos por um minuto de descanso, o

treino também se dá nesse ritmo.

Com um peso de um quilo em cada mão, treina-se a guarda alta, jabs,

diretos e uppercuts, sozinhos ou em seqüência, durante três minutos, por um de

descanso. Ou então em duplas, um atleta coloca um colchonete em torno do tórax

e o outro aplica chutes laterais durante o tempo de um round, depois revezam-se.

Alunos novatos demoram um certo tempo para adequar-se ao ritmo dos treinos,

bastante puxado. Esse aprendizado lento e progressivo, entretanto, é apreciado

pelos praticantes que, na sala de treinos, cheia de espelhos, admiram um golpe

* No original: "La simplicité de façade des gestes du boxeur est on ne peut plus trompeuse: loin d'être "naturels"et évidents, les coups de base (jab, crochet, direct, uppercut) sont difficiles à exécuter correctement et supposent une "rééducation physique" complète, un véritable remodelage de sa coordination gymnique, et même une conversion psychique. Une chose est de les visualiser et de les comprendre en pensée, une autre de les réaliser et, plus encore, de les enchaîner dans le feu de l'action."

155

bem realizado como indício de progresso técnico. Os participantes encontram

uma espécie de "satisfação estética" associada à perfeição técnica dos

movimentos, valor comumente chamado de "técnica".

A finalidade estética do full-contact, para os praticantes, confunde-se

com um ideal de perfeição técnica a ser buscado, de modo a otimizar a utilização

do corpo para a luta. A construção do corpo, neste sentido, não é um fim em si,

mas um meio de atingir esse objetivo, sendo mal vista quando utilizada apenas

com essa finalidade estética, sem aplicabilidade no combate, como por exemplo,

na modalidade chamada fisiculturismo. O depoimento de um praticante ilustra

bem este aspecto:

"A pessoa que faz fisiculturismo, ela não pratica artes marciais, acho muito difícil, fica muito dura, endurece muito, ela fica lenta. (...) Fisiculturismo pra disputa termina ficando grande só em cima, e em baixo fica fininho, as pernas ficam grossas, só que fica lento, eu acho que não vai ter desenvoltura nenhuma em artes marciais, seja qual for." (Lúcio, 30 anos, porteiro)

A relação dos praticantes com o combate inclui a prática de lutas entre

colegas de academia, e a ocorrência de acidentes não é rara. Os relatos de lábios

cortados com um chute, dentes quebrados "por um descuido" e hematomas de

todo tipo são freqüentes, bem como a imediata concordância de que foi acidental,

e a não-interferência de tais incidentes nas relações interpessoais. Os praticantes

entrevistados julgam muito mais a intenção do que o ato em si, e se não foi "por

maldade", está tudo bem. Um exemplo desta atitude acerca das lesões decorrentes

da prática do full-contact pode ser visto no seguinte trecho de entrevista:

"... eu já fiz uns hematomas, mas nunca quebrei nada, só tomei umas pancadas, resolve com um pedaço de gelo. Normal, eu não esquento a cabeça com isso, faz parte, tu pode acertar um colega e machucar como pode ele te acertar e machucar, eu levo tudo no coleguismo, porque eu sei que ele não vai me machucar por querer, e eu também ajo da mesma forma." (Benedito, 24 anos, funcionário público)

156

Como foi visto no segundo capítulo, os testes de passagem de faixa de

full-contact têm, como última prova, uma luta. Em faixas inferiores, os

praticantes lutam entre si, para mostrar sua técnica à banca examinadora. Em um

teste observado, o examinador, o professor Guaraci, exortava os praticantes a

baterem uns nos outros:

"vamos lá, isso aqui é uma luta, tem que se bater, depois toma uma cervejinha junto, faz as pazes, mas agora tem que se bater".

Já no teste seguinte, os praticantes, lutadores faixa-branca, tentavam

compensar a falta de técnica com agressividade nos ataques. Como no teste de

faixa branca para azul a luta é "sombra", isto é, sem os equipamentos de proteção,

o risco de um "acidente" mais sério tornou-se maior, e o examinador teve que

chamar a atenção dos participantes:

"Olha lá pra fora, tá um sábado lindo, tem uma piscina me esperando, se eu perder a tarde de sábado pra levar um cara no HPS pra tomar ponto, esse cara vai 'tomar um pau' tão grande que é melhor nem sair de lá!"

(Guaraci, 29 anos, professor de full-contact)

Dessa forma, vemos que a prática do combate oscila entre o "tem que

bater" e o "não pode sangrar", um limite estreito, mas que os praticantes

reconhecem e mantêm-se inseridos nele. Entre todos os participantes

entrevistados, existe um consenso sobre a idéia de que eventuais lesões

decorrentes da luta "fazem parte", assim como a resistência à dor, "assimilar o

golpe", é uma virtude necessária a um bom lutador.

4.3 O Desprezo à Dor

Em algumas academias, o exame de luta do candidato à faixa preta, o

chamado "Homem de Ferro", além de exigir preparo físico, técnica e

determinação, possui inclusa a necessidade de sofrimento por parte do candidato,

157

que deve mostrar estoicismo durante sua realização. Este dado é recorrente em

entrevistas, especialmente dos faixa-pretas mais antigos, que realizaram este teste

em São Paulo, sob a supervisão do próprio Sérgio Batarelli, criador desta prova.

Apesar do candidato estar treinado e, é claro, disposto a não ser surrado, sua

desvantagem em relação a três adversários descansados e que, além disso, não

arriscam nada, é mais do que evidente, como mostra o depoimento de um

professor entrevistado, que prestou este exame em São Paulo:

"O objetivo deste exame é ver se o cara está preparado. E também faz pra sofrer, tem que sofrer, porque depois que passa o exame, a coisa fica mais fácil. (...) Tem que saber os limites, ver até onde o cara agüenta." (Nicolau, 44 anos, professor de full-contact)

O depoimento de um praticante graduado, que está prestes a realizar o

mesmo exame revela uma outra instância da passagem por esta prova, vista por

ele como um "ritual" necessário. Já que, após obter a faixa preta o praticante está

oficialmente autorizado a lecionar, este praticante vê a prova como uma espécie

de "ritual de passagem", onde o candidato deve demostrar publicamente a sua

capacidade de suportar os golpes de três adversários e resistir de pé até o final da

luta, embora considere a realização deste exame um ritual "sádico", embora

paradoxalmente "prazeroso". Concordo com o depoente quando ele afirma que

esta prova tem o seu tanto de ritual. Como já afirmei anteriormente, um combate

de full-contact pode ser considerado como possuidor de "instâncias ritualizadas",

onde poderiam ser caracterizadas as etapas de "separação, margem e agragação",

conforme descritas por Van Gennep (1978). A realização deste exame, da forma

como é feita nas academias pesquisadas, possui características ainda mais

marcantes de um processo ritual, principalmente quanto ao período "liminar",

onde o "colega" torna-se um "adversário" a ser espancado, para, superada a

provação, ser novamente admitido entre os seus pares, já com seu novo status de

"faixa-preta":

158

"É como se fosse uma provação, como se fosse assim uma cerimônia, no final quase se torna uma cerimônia. (...) É um ritual assim, sádico; sadismo ou não, prazeroso, só pra tu chegar no final vendo que tu conseguiu passar por aquilo ali. Passar por aquilo é necessário, é a prova." (Lúcio, 30 anos, porteiro)

A resistência à dor como prova de virilidade é comum a várias

culturas, que usualmente submetem seus jovens à tortura, em rituais com o

objetivo de, além de avaliar a resistência pessoal do indivíduo, proclamar o seu

pertencimento social (Clastres, 1978). Segundo Clastres, a tortura em sociedades

primitivas possui, além das características citadas, uma função didática: através

do sofrimento suportado silenciosamente, a tribo ensina sua lei ao indivíduo,

utilizando-se de seu corpo, que portará para sempre as marcas desse

pertencimento social. A partir da passagem por este ritual, o iniciado adquire um

novo status perante seu grupo. Após suportar a tortura ritual, ele deixará de ser

um menino e passará a ser um homem, nem melhor nem pior do que ninguém,

"um dos nossos" (Clastres, 1978: 129-130).

Helman (1994), referindo-se ao aspecto social da dor, considera que a

"dor privada", com a recusa do indivíduo em torná-la pública é, em muitas

sociedades, um dos sinais distintivos da masculinidade:

o estoicismo e o autocontrole diante do sofrimento (...) é a reação mais esperada de homens, especialmente de jovens e de guerreiros. Em algumas culturas, a capacidade de suportar a dor sem esquivar-se, isto é, sem manifestar o comportamento da dor, pode ser um sinal de virilidade, e faz parte dos rituais de iniciação que marcam a transição do menino em homem. (Helman, 1994: 166)

Desta forma, vemos que o exame para a passagem à faixa preta, nestas

academias, mutatis mutandi, apresenta várias das características associadas a

rituais de iniciação de sociedades primitivas, como a valorização social do

estoicismo, a submissão às regras tradicionais e o pertencimento social decorrente

da passagem pela "prova".

159

O valor dado à resistência em relação à dor, entretanto, não ocorre

exclusivamente nos testes à faixa-preta. Nos treinos e demais testes de passagem

de faixa, o estoicismo é valorizado. Para Wacquant (1989), a resistência à dor é

parte integrante da prática de esportes de combate:

Só há uma maneira de resistir à dor, de habituar o organismo a receber os golpes, que é recebê-los regularmente. Este aprendizado da indiferença à dor é inseparável da aquisição do tipo de sangue-frio próprio ao pugilismo. (Wacquant, 1989: 55)*

Nas sessões cotidianas de treino, como já vimos, são freqüentes as

séries de 500 exercícios abdominais. Conseguir cumprir uma seqüência destas

exige que o praticante abstraia da dor nos músculos serráteis ventrais, ou pelo

menos, que não a manifeste. Igualmente ocorre nos exercícios de alongamento,

praticados exclusivamente por sobre a dor do tendão sendo alongado. Se não

doer, o exercício não cumpre qualquer efeito.

$$$

Foto 21: Sessão de alongamento, Centro de Lutas Ferlinghetti.

A valorização do desprezo pela dor aflora de frases ditas com intenção

jocosa, como certa vez, quando dois lutadores inexperientes lutavam "sombra",

um deles com as mãos abertas, ao que o professor falou: "fecha esta mão, rapaz,

senão tu vai acertar um olho dele, e aí vai ter que arrancar o olho e jogar no

chão". O desprezo à dor transparece no discurso dos praticantes, que referem-se a

narizes e dentes quebrados, hematomas e hemorragias de modo natural, sem

manifestar nenhum desagrado por isso. Pelo contrário, a maneira como os

praticantes se referem às lesões decorrentes do combate parece conter uma ponta

de orgulho, as cicatrizes tendo o seu tanto de "condecorações de batalha". Este * No original: "... il n'y a qu'une manière de s'endurcir au mal, d'habituer son organisme à encaisser des coups, c'est d'en encaisser régulièrement. Cet apprentissage de l'indifférence à la doleur est inséparable de l'aquisition de la forme de sang-froid propre au pugilisme."

160

orgulho em demonstrar as cicatrizes de antigas lesões decorrentes do combate

encontra paralelo em Jardim (1991). Segundo esta autora, os homens de classes

populares por ela pesquisados consideram as "marcas no corpo como emblemas

de sua coragem, provas da atitude masculina" (Jardim, 1991: 157). É freqüente,

em entrevistas, os praticantes ilustrarem a narrativa de lesões obtidas nos

combates mostrando-me a cicatriz que ficou no local, nem que para isso tenham

que expor a face interna dos lábios ou erguer a calça até o joelho. A cicatriz é a

prova de que ele passou por aquilo, é, nos termos de Clastres, a "memória escrita"

por sobre o próprio corpo do lutador. A cicatriz demonstra de modo incontestável

que ele "agiu como homem" na circunstância onde ela foi adquirida: ele aceitou o

desafio de enfrentar outro homem, entrou no ringue e lutou. Um bom exemplo

destes aspectos é o relato de um lutador relativamente experiente, faixa-verde,

que em sua primeira luta oficial teve dois dentes afrouxados com um golpe

adversário:

"Eu já me machuquei lutando, na minha primeira luta eu ganhei, mas afrouxei os dois dentes, nunca machuquei sério, mas já fiz uns roxos [hematomas] e uma vez levei um chute no nariz, sangrou... (...) Machucar [na luta] não me incomoda, porque se tu tá ali, tu tá sabendo, mas isso faz parte, e eu sou muito controlado, acho que o bom da arte marcial é isso, tu consegue ter um bom auto-controle."

(Salomão, 22 anos, padeiro)

A valorização do controle sobre a dor não é exclusividade do full-

contact, a maioria das artes marciais traz ensinamentos nesse sentido. São

freqüentes os relatos de lutadores de karatê, shaolin ou taekwondo que golpeiam

árvores com os punhos em seus treinamentos, até estarem cobertos de sangue

(Hyams, 1992). Na verdade, o controle sobre a dor é fundamental para a

sobrevivência de um guerreiro (Helman, 1994). Como já foi visto anteriormente,

as diversas artes marciais foram desenvolvidas como forma de treinamento

militar, e, antes do advento do esporte moderno, o aprendizado de técnicas de luta

161

tinha por objetivo salvar a vida do praticante em situações de confronto contra

salteadores ou inimigos (Virgílio, 1986). A crescente penetração do esporte na

sociedade ao longo do século XX "esportivizou" muitas técnicas originalmente

voltadas ao uso pragmático. A esgrima, por exemplo, que antes do século XIX era

ensinada tendo em vista sua utilização em duelos, para ser considerada "esporte"

teve que ser submetida a regras e incluir o uso de diversos equipamentos de

proteção e espadas com ponta esférica. Da mesma forma, a luta esportiva,

derivando das artes marciais, assumiu este caráter esportivo a partir da submissão

a regras e equipamentos de proteção.

4.4 A Aceitação das Regras

Outra característica importante da prática do full-contact e outras

modalidades de luta, que transparece no discurso de seus praticantes, é a

aceitação integral das normas referentes àquela prática. Esta aceitação sem

ressalvas das regras deriva da influência das artes marciais orientais,

profundamente marcadas pelo zen-budismo. O full-contact, surgido nos Estados

Unidos exclusivamente em função do combate, guarda muito pouco dessa

influência oriental, derivada do karatê. Os sinais mais visíveis são a hierarquia

determinada por faixas, a denominação "Dan" para os diversos graus da faixa-

preta e o cumprimento praticado ao iniciar e terminar a sessão de treinos, uma

leve inclinação do tronco à frente, com os braços estendidos ao longo do corpo.

Fora isso, os entrevistados são unânimes em concordar que o full-contact é só um

esporte que inclui lutas, não havendo em suas regras nenhuma alusão a qualquer

"benefício espiritual" proveniente de sua prática, salvo uma eventual "higiene

mental" (presente em qualquer esporte, convém acrescentar).

162

Um aspecto, entretanto, que transparece do discurso dos praticantes é

a submissão sem discussão às normas do treino e às palavras do professor. Em

japonês, o mestre de artes marciais chama-se "sensei" (literalmente, "o que

nasceu antes") e a atitude do aluno perante ele é de total receptividade. O mestre

é detentor de um conhecimento que o aluno não possui. Suas palavras e atos

referentes àquela arte marcial são, portanto, indiscutíveis (Hyams, 1992: 41).

Na verdade, não existe uma relação do tipo mestre-discípulo strictu

sensu entre o professor e seus alunos no full-contact. Impera a cordialidade, e os

professores são chamados pelo nome. A admiração dos alunos por seus

professores, entretanto, é inegável. Quando um professor troca de academia, via

de regra os alunos o acompanham até a nova academia, mesmo que precisem

fazer um trajeto bem mais longo para treinar. É freqüente ouvir-se afirmações do

tipo: "esse véio é o que sabe tudo de full-contact", ou "o que eu sei de full-

contact, aprendi com ele".

Assim, embora o relacionamento entre professores e alunos seja

bastante informal e cordial, na atitude dos alunos perante a disciplina da luta pode

ser encontrada a origem do estoicismo que foi referido anteriormente. Em um

trecho de entrevista, um praticante, referindo-se ao teste de luta para a faixa preta,

colocou a questão nos seguintes termos:

"essa parte é meio bruta, mas eu acho certo. Eu nunca parei pra pensar nisso, eu nunca questionei. Na verdade, eu penso assim, se eu estou nesta arte marcial, eu estou aqui pra obedecer às regras que me foram impostas, então por exemplo, eu estou pensando em entrar pro taekwondo, tem um cara que é faixa-preta, que eu conheço, o cara me disse que pra faixa-preta ele quebrou não sei quantas telhas. Eu nunca dei soco em madeira, tô me imaginando quebrando telha, pra ti ver que estranho, mas é uma característica da arte deles, se pra ti ser preta, tem que fazer aquilo, então se faz."

(Severo, 20 anos, funcionário de transportadora)

163

Assim, as características da prática do full-contact que foram

abordadas, o árduo treinamento visando à construção do corpo para a luta, a

resistência estóica à dor, e mesmo a participação em uma luta da qual já se sabe

de antemão que é mais provável apanhar do que bater, fazem parte de uma

mesma disposição a respeito dessa prática esportiva. Essa disposição é, como já

vimos, comum à maioria das artes marciais de origem oriental, e, no full-contact,

encontra-se sob uma espécie de "forma mínima", dado o intenso caráter de

prática esportiva que cerca esta modalidade, bem como sua "origem ocidental",

surgida nos Estados Unidos com semelhanças ao boxe e voltada exclusivamente

para os resultados dentro do ringue. A disciplina, embora não seja formalizada na

interação entre professores e alunos, está presente na aceitação irrestrita das

regras por parte de uns e outros. Para que se "entre no jogo" – qualquer jogo – é

preciso primeiro estar de acordo a respeito das regras.

164

Conclusão

Conforme pôde ser visto ao longo deste trabalho, a abordagem

antropológica de uma prática esportiva pode ser reveladora de aspectos não

apreensíveis de imediato a respeito da construção social da identidade do ser

masculino, como foi o caso deste estudo realizado entre os praticantes de full-

contact da cidade de Porto Alegre.

A partir da história das técnicas corporais chamadas de artes marciais,

vimos que o seu desenvolvimento sempre esteve associado à prática da guerra,

nas mais diferentes sociedades. Como uma atividade eminentemente masculina,

as "artes do combate", mesmo em suas variantes "esportivas", mantiveram-se

como um espaço onde, entre outras coisas, se prova socialmente a posse de

valores considerados masculinos em muitas sociedades, como a aceitação de

desafios e o estoicismo diante do sofrimento. Em nossa sociedade, a demanda por

confrontos competitivos é em boa parte suprida pelas diversas práticas esportivas.

Dentre elas, as modalidades chamadas "esportes de combate" representam de

modo particularmente intenso estes aspectos da construção da identidade

masculina, a virilidade de um homem sendo simbolicamente medida e

confirmada através da prática do combate com outro homem.

No caso específico do full-contact, esta modalidade foi escolhida

como representativa deste universo das artes marciais por representar uma

espécie de "termo médio" entre as artes marciais tradicionais e os esportes de

combate mais ocidentalizados. Apesar da predominância dos aspectos esportivos

nesta prática, características herdadas das artes marciais que estiveram na origem

do full-contact conferem-lhe este caráter de "forma híbrida".

165

Além disso, a "visibilidade" deste esporte promovida por produtos da

indústria cultural, se por um lado promove a sua prática, por outro, apresenta-o ao

público de uma forma bastante distorcida, tornando-se necessário elucidar o que

realmente acontece nas academias, de modo a evitar preconceitos e interpretações

tendenciosas ligadas ao senso-comum.

Um fato social interessante, a prática deste esporte por pessoas

provenientes de grupos sociais diferenciados, também é um dos aspectos que me

chamaram a atenção e despertaram o meu interesse neste tema. Traçando-se uma

divisão entre os praticantes por critérios de origem sócio-econômica, pode ser

percebida a grande disparidade entre os dois grupos em diversos aspectos,

provenientes desta diferença de origem social. Em termos de projeto, a aspiração

à profissionalização dentro do esporte, uma motivação relativamente freqüente no

grupo dos praticantes mais ligados à Federação – em geral, proveniente das

camadas populares – é completamente descartada no outro, associado ao

chamado "Guaraci Vargas Team" e freqüentado por praticantes oriundos das

camadas médias. Neste grupo, a valorização da conquista de degraus hierárquicos

dentro do esporte – simbolizada pela posse de diferentes faixas coloridas – é

extremamente acentuada entre os praticantes oriundos das camadas médias, e

freqüentemente vista apenas como uma formalidade pelos praticantes oriundos

das camadas populares, que valorizam muito mais o currículo de um lutador, isto

é, a quantidade de combates e seu desempenho neles. Esta diferença fica

manifesta no teste para a obtenção da faixa-preta, que no grupo oriundo das

camadas médias é cercado de instâncias ritualizadas para a conquista desta faixa,

obrigando o praticante a se tornar um "homem de ferro" para "merecê-la". O

esforço e o sacrifício despendidos nesta prova dão a noção do valor que ela tem

para os praticantes. O contraste fica particularmente claro quando se observa o

mesmo teste sendo aplicado no outro grupo: uma luta simples de três rounds e

166

uma aula ministrada pelo candidato. Ao fazer o teste para a faixa-preta nestas

academias, em geral o lutador já possui diversas passagens "oficiais" pelo ringue

da federação. Seu objetivo não é a faixa em si, mas a busca do "cinturão" de sua

categoria de peso e, mesmo a associação do exame a uma aula manifesta uma

relação "profissional" com o esporte, na qualidade de professor, alternativa

profissional considerada válida entre os praticantes deste grupo.

Estes dois grupos tão diferentes em termos de origem social,

entretanto, mostram-se bastante similares a respeito de uma série de aspectos que

dizem respeito à construção social da identidade masculina. Conforme as análises

de Chodorow (1979) e Gilmore (1990), a identidade masculina não é algo

naturalmente conferido a um menino, mas que deve ser conquistado por ele,

através de demonstrações públicas de determinadas condutas socialmente

atribuídas ao "ser homem" em cada sociedade. Segundo Gilmore (1990), estas

características associadas à posse da identidade masculina podem colocar a

masculinidade em termos de uma escala hierárquica, cujos parâmetros de

mensuração variam para cada sociedade, mas que são exigidos dos homens

através de determinados "jogos", formas lúdicas que manifestam quais atributos

serão exigidos dos homens, e onde se pode estabelecer este ranking simbólico da

masculinidade. Assim, uma das "medidas" – seguramente não a única – desta

identidade masculina em nossa sociedade já é a própria aceitação do risco: entrar

em campo, aceitar uma aposta ou entrar num ringue, são, neste sentido,

demonstrações públicas desta identidade masculina, construída por sobre a

capacidade do indivíduo de correr riscos. O risco de ser derrotado é sempre

presente a quem entra em um jogo. Relativizando a interpretação antropológico-

psicanalítica de Dundes (1994), vimos que a derrota em uma competição em que

o valor "identidade masculina" esteja simbolicamente em jogo não implica em

uma necessária "feminilização" do derrotado. Na minha opinião, esta

167

"feminilização" simbólica ocorre quando um dos contendores manifesta a perda

de sua "dignidade" (no sentido empregado por Leal (1994), significando coragem

e estoicismo) ao fugir do confronto com o adversário. No caso do full-contact,

este comportamento pode tomar a forma de "fugir da luta" ao "dar as costas" ao

oponente ou então "ficar de agarramento" com ele, evitando os seus golpes

segurando-se no seu corpo o tempo todo. Como vimos, tanto "dar as costas"

como "ficar de agarramento" são termos com um sentido dúbio que permitem

uma interpretação destes termos como referências a uma prática homossexual

simbólica, "feminilizante", neste caso.

Quando um lutador "perde lutando", entretanto (e vem daí minha

discordância da abordagem de Dundes), seu valor pessoal não é colocado em

questão, bem como sua honra e sua identidade masculina. Ao contrário, um

lutador que, mesmo perdendo uma luta, não deixa de enfrentar o seu oponente,

opondo resistência até o soar do gongo será reconhecido como "valente" pelo

público e pelos colegas, um valor claramente masculinizante, associado a

coragem e estoicismo, a "dignidade". Em relação às rinhas de galos, Leal (1994)

afirma o mesmo, um lutador (no caso, um galo) que perde lutando não tem sua

honra ameaçada, nem o seu possuidor, e sua derrota é respeitada pelo silêncio da

platéia. A "feminilização" ocorre quando o galo "pia feito galinha" ou um lutador

foge do adversário durante o combate, o que nem sempre acontece.

Na minha opinião, o conteúdo simbólico mais associado à derrota em

um combate é a morte do oponente derrotado. Por vezes esta "morte simbólica" é

quase explícita, como no caso de uma derrota por nocaute.

Mesmo em uma derrota por pontos, a declaração pública do vencedor

por parte do árbitro, levantando o braço do vencedor e mantendo baixo o braço

do derrotado pode ser associado à dicotomia "potência/impotência" ou, como

proponho, "vida/morte". O conteúdo da derrota no jogo implicando na "morte" do

168

derrotado é freqüente em diversos mitos, conforme Lévi Strauss (1976).

Considero que o conteúdo simbólico da "morte" do derrotado manifesta-se pela

alusão à "impotência" do vencido. Este conteúdo é particularmente manifesto no

gesto que assinala a vitória em um combate: o braço/arma/falo do vencedor

erguido em público, e o do derrotado mantido abaixado, "impotente" perante a

vitória de seu adversário.

Outro aspecto desta construção social da masculinidade que abordo é a

competitividade. Como foi visto, a prática de disputas e competições é um

aspecto fundamental na construção desta identidade masculina nas mais diversas

sociedades. Na nossa sociedade, um espaço privilegiado para a realização de

competições é a prática de modalidades esportivas. Cada modalidade cria uma

hierarquia de valor referente a um certo quesito, como velocidade, força,

habilidade com a bola, etc. Em um combate de full-contact, o valor que se afere é

a capacidade de luta de cada contendor. Os praticantes referem-se basicamente a

dois grupos básicos de valores necessários a um lutador: sob o valor denominado

"força", além da força física propriamente dita, estão incluídas a resistência física

do lutador e sua "garra", que significa a determinação do lutador de prosseguir

mesmo sob resultado adverso; associo este grupo de valores ao domínio do

"corpo", ligado ao universo da "natureza". O segundo valor é denominado

"técnica", e se refere à habilidade, velocidade e variabilidade do repertório de

golpes usados por um lutador, além de uma série de atributos associados ao "usar

a cabeça", como inteligência e sagacidade; associo este grupo de valores ao

domínio da "mente", valor ligado fundamentalmente ao universo da "cultura".

Os praticantes de full-contact aprendem técnicas de luta bastante

perigosas que, em princípio, deveriam ficar restritas ao recinto da academia. Por

vezes, entretanto, acontece de se usar destas técnicas em brigas de rua, numa

manifestação pública do poder adquirido na academia. A legislação a respeito

169

considera a prática de artes marciais como uma circunstância agravante ao crime

de lesões corporais. Os professores e vários alunos têm consciência deste fato e

estabelecem um limite simbólico para a sua ação agonística fora do recinto da

academia: o contato físico. Os praticantes são instruídos a não reagirem a

provocações, mas, se houver contato físico ("se alguém encostar um dedo em ti,

aí tu desmonta", segundo a frase citada de um praticante) a agressão ao oponente

passa a configurar legítima defesa. No discurso dos praticantes aparece por vezes

o desejo velado de ver o limite ultrapassado para poder usar das técnicas de

combate em público.

A respeito da construção do corpo entre os praticantes de full-contact,

são notáveis três aspectos: a utilização do corpo para a luta, o desprezo à dor e a

aceitação incondicional das regras. O corpo de um lutador é construído com

exercícios próprios para fortalecer os grupos musculares responsáveis pelo ataque

e defesa na luta. Assim, além de um trabalho de alongamento e abertura das

pernas visando à máxima eficiência nos chutes, os praticantes também realizam

longas séries de quatrocentos a quinhentos exercícios abdominais por sessão de

treino, visando enrijecer a musculatura ventral para proteger os órgãos internos

dos golpes do oponente, formando uma espécie de "escudo" muscular cuja função

é sofrer o golpe adversário e resistir. Este trabalho, como o de alongamento e

abertura das pernas, é freqüentemente doloroso, e os praticantes constróem, por

sobre a dor, um corpo preparado para o combate.

Desprezar a dor é um dos símbolos de masculinidade mais freqüentes

nas mais diversas sociedades. Para muitas sociedades, o ritual de iniciação dos

meninos inclui torturas a que os jovens devem se submeter sem manifestar a dor

de forma alguma, sob pena de cair em desonra perene, ele e os de sua linhagem

(Gilmore, 1990). No full-contact, como em quase todas as artes marciais, um

lutador é incentivado a não manifestar a dor, e "assimilar um golpe" (uma das

170

qualidades valorizadas num lutador) nada mais é do que agir como se o golpe não

tivesse ocorrido, ou seja, desprezar a dor. Freqüentemente, os praticantes

referem-se a contusões e lesões diversas derivadas do combate, mas com um

vago desinteresse, e mostram as cicatrizes obtidas na luta com orgulho, como

medalhas de guerra, emblemas de uma atitude masculinizante.

O respeito incondicional às regras está presente não só no full-contact

como também na maioria das artes marciais. Ele implica em aceitar as ordens do

professor durante os treinos, e, no ringue, em aceitar lutar contra qualquer

adversário que se apresente. A atitude de submissão dos alunos perante as regras

pode ser relacionada à construção da identidade masculina na medida em que

reclamar das regras ou pretender escolher um adversário "mais fácil" é, de uma

certa forma, pedir a proteção do professor ou do organizador da luta. Como

vimos, a atitude submissa de solicitar a proteção de outrem fere o princípio social

que associa a atitude masculina com a busca por autonomia. Ao agir no sentido

inverso, um praticante estaria se expondo à possibilidade de ter sua conduta

masculina colocada em dúvida, pela acusação de "homossexualidade". O próprio

grupo, em geral, pela via do chiste, se encarrega de evitar este tipo de atitude,

numa forma jocosa de coerção.

Assim, vemos como a construção da identidade do gênero masculino

em nossa sociedade pode encontrar em uma prática esportiva um campo fértil

para desenvolver e valorizar os atributos socialmente considerados como

masculinos. Um ringue de full-contact, desta forma, mais do que um simples

espaço de jogo, é também uma possível "arena simbólica" onde homens provam e

defendem publicamente a sua própria masculinidade.

171

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Índice Remissivo

Aacademia

descrição etnográfica, 58-62relação dos nomes, 49

Apinayé, 113Aranguren, J. L., 115; 117Arapesh, 111artes marciais

diferença dos esportes de combate, 26esportivização, 22; 43; 161etimologia, 19história, 19jiu jitsu, 51judô, 23karatê, 24; 161na indústria cultural, 28organização política, 43orientais, 21shaolin, 21; 61taekwondo, 161zen-budismo nas, 26

BBallery, L., 20; 107; 115Benach, J. A., 42Boltanski, L., 42; 151Bourdieu, P., 36; 40; 42; 152Brandes, S., 96; 103brigas de galo

"piar feito galinha", 141; 144comparação com o boxe, 139

Bruce Lee, 61buanyin, 111

CCaillois, R., 118; 123campo esportivo, 37Carvalho, J. J., 99; 119Chodorow, N., 56; 93; 98; 100; 130;

144; 166Chulupi, 112Clastres, P., 19; 112; 130; 158clinch, 134

combatecom um amigo, 108descrição etnográfica, 86-91fora da academia, 106

Cook, H. B., 139; 141cumprimento, 109; 142

DDa Matta, R., 96; 113Denich, B. S., 95derrota

"perder lutando", 135; 144amenização da, 75como "feminilização simbólica", 143;

147como "morte simbólica", 125; 131;

167desvalorização da feminilidade, 99;

130; 144dignidade, 141; 144; 148; 167dojô, 60; 66dor

controle da, 70; 73desprezo à, 157-61desprezo como índice de

masculinidade, 158; 169visando "abertura", 70

Douglas, M., 151Duarte, L. F. D., 101Dundes, A., 57; 139; 141; 143; 144;

149; 166Durantez, C., 21; 116

Eesporte

ascensão social através do, 53e origem social, 42

esportes de combateboxe, 24; 26; 27; 51como destruição simbólica, 125diferença das artes marciais, 27história, 20

Evans-Pritchard, E. E., 113

Ffair play, 40; 109faixas

hierarquia, 138; 161

179

teste para passagem de, 159

183

Jardim, D. F., 73; 98; 115; 136Jean Claude Van Damme, 30; 32; 35;

61jogos

bolinhas de vidro, 120de competição, 118e hierarquia, 123teoria dos, 111-19

Jogos OlímpicosEstocolmo, 1912, 41pancrácio e pugilato, 115técnicas marciais nos, 20

KKlein, A. M., 70; 99; 122Kregel, W., 42

LLeal, O. F., 101; 114; 116; 120; 126;

139; 141; 143; 167Leczneiski, L., 80Lévi-Strauss, C., 114; 123; 125lutadores

"valentia", 126; 132; 144construção dos, 142covardia, 134descrição etnográfica, 83-86equipamentos, 86-89interações, 85-86relação com os treinadores, 82; 142relação vitória/derrota, 110

MMagnane, G., 42; 120; 153Malinowski, B., 8Mauss, M., 112; 150Mead, M., 111Mehinaku, 96; 126Muggiati, R., 22; 29

NNambikwara, 114Nuer, 113nunchaku, 62

OOrtner, S., 93

Ppapéis sexuais, 92Parlebas, P., 124Pirsig, R., 26Pitt-Rivers, J., 95; 102; 126; 146potlatch, 112Proni, M., 22público

conduta, 78interações, 82

RRadcliffe-Brown, A. R., 102Rapoport, A., 27; 37; 115regressão, 97revanche, 108Rodrigues, J. C., 151Rosaldo, M., 92

SSchüler, D., 115Schutz, A., 52sensei, 162Suárez-Orozco, M. M., 101; 145

TTchambuli, 112técnica

como valor êmico, 136relação com o âmbito da cultura, 137

técnicas corporais, 150; 164Teixeira, S. A., 139; 141Timbira, 113Toba, 112treinadores

e a construção dos lutadores, 142relação com os lutadores, 82; 142vitória de seus lutadores, 143

treinoabdominais, 70descrição etnográfica, 64-74exercícios físicos, 69

Trukeses, 132Turner, V., 119Turner, V. W., 88

V

184

Van Gennep, A., 88; 157Velho, G., 52Virgílio, S., 27; 161

WWacquant, L. J. D., 68; 100; 154

ZZen-budismo, 26; 161

Anexo: Glossário de Termos Usuais no Full-Contact

ASHIBARAI: Golpe que consiste em uma rápida rasteira pelo lado interno do pé

do oponente, aplicado no pé que está à frente do lutador. É usado visando

provocar uma queda por desequilíbrio.

ASSALTO: ver ROUND

CANTO NEUTRO: O ringue tem quatro cantos. Em dois deles, diametralmente

opostos, ficam o treinador e o "segundo" (v.) de cada lutador. Os outros dois

são os cantos neutros, para onde vão os lutadores quando se abre uma

contagem protetora. (v.)

CHUTE GIRATÓRIO: É um chute alto, aplicado com o peito do pé, que atinge o

adversário após o lutador completar uma volta completa sobre si mesmo, de

modo a acrescentar velocidade ao chute.

CHUTE GIRATÓRIO COM SALTO: Semelhante ao anterior, com a diferença

que o lutador, antes de começar o giro, salta, de modo a realizar todo o

movimento enquanto está no ar. Golpe difícil de ser aplicado com sucesso.

CHUTE POR COBERTURA: Consiste em um chute alto, com um pé apoiado no

chão. O pé que chuta descreve um movimento circular lateral, visando atingir

o adversário com a lateral do pé.

CLINCH: Recurso de defesa que consiste em "abraçar" o adversário, agarrando

seu corpo e braços de modo a evitar a continuação de um ataque ou para

quebrar o ritmo de uma luta.

CONTAGEM PROTETORA: Interrupção de uma luta pelo árbitro, quando um

lutador é derrubado ou está sem condições de se proteger do ataque

adversário. Os lutadores são levados para os "cantos neutros" (v.) do ringue e

o árbitro conta de um até oito. Se, ao chegar a oito, o lutador manifestar

condições de prosseguir na luta, erguendo os punhos, a luta prossegue. Caso

contrário, é declarado o nocaute (v.)

186

CRUZADO: Soco que se aplica em diagonal, por exemplo, o braço direito

cruzando à esquerda. Em geral, visa o rosto do adversário.

DIRETO: Soco que se aplica em linha reta, com a mão que, em relação à linha

dos ombros, está atrás, visando o rosto do adversário.

FULL-CONTACT: Expressão em inglês que significa "contato pleno". Como

termo genérico, refere-se a modalidades de luta em que os golpes são

aplicados com toda a potência possível, visando atingir efetivamente o

adversário. O termo é também usado para denominar uma das modalidades de

Kickboxing (v.)

GUARDA: Posicionamento defensivo de um lutador durante o combate. Consiste

em colocar os antebraços unidos, do cotovelo ao punho, de modo a proteger o

rosto e o abdômen dos ataques adversários.

HOOK: Soco baixo e curto que visa o abdômen do adversário. É aplicado com as

costas da mão para baixo, e é empregado em lutas a curta distância.

ISKA: International Sports Karate Association, uma das entidades internacionais

que organizam a prática do full-contact.

JAB: Soco alto, aplicado em linha reta com o braço que, em relação à linha dos

ombros, está na frente. É usado para manter a distância do adversário, ou em

seqüências, para acertar a distância correta.

KICKBOXING: É toda a modalidade de luta esportiva que empregue mãos

enluvadas e golpes com as pernas, como o full-contact, o muai-thai, (boxe

tailandês) e o savate, (boxe francês).

KICKBOXER: Praticante de kickboxing (v.)

KNOCKDOWN: É uma queda causada por um golpe adversário, na qual se abre

a contagem protetora (v.) mas que não resulta em nocaute (v.).

LOW KICK: Uma modalidade de kickboxing (v.) na qual são válidos chutes

abaixo da linha de cintura, pelo lado de fora da coxa do adversário.

LUVA, FAZER: "Fazer luva" é uma expressão que indica praticar a luta "real",

com todos os equipamentos de proteção e golpes "full". É usada em oposição

a "fazer sombra". (v.)

NOCAUTE: Grafia portuguesa de "knockout". Significa que, em conseqüência

dos golpes recebidos, um lutador não tem mais condições de prosseguir em

um combate.

187

ROUND: Intervalo de tempo em que acontece o combate. É também chamado de

"assalto". No full-contact, um round dura três minutos, seguido por um minuto

de intervalo.

SEGUNDO: Auxiliar de um lutador, que fica fora do ringue durante o combate e

entra nos intervalos, para lavar o protetor de dentes, dar água, secar o suor e

reanimar o lutador.

SEMI-CONTACT: Termo que se refere a determinadas modalidades de luta em

que o contato entre os lutadores é apenas indicado pelo toque no corpo do

adversário. Os jurados avaliam, neste caso, a virtualidade dos golpes.

SEQÜÊNCIA: É uma combinação de golpes diferentes com socos e chutes

combinados. São treinados juntos, para, na hora do combate, terem sua

eficiência aumentada pela velocidade resultante.

SOCO GIRATÓRIO: É um soco aplicado com as costas da mão, que atinge o

adversário após o corpo do lutador ter dado uma volta completa sobre si

mesmo.

SOMBRA, FAZER: "Fazer sombra" significa praticar o combate com um colega

sem os equipamentos de proteção e sem contato físico. A distância entre os

lutadores é maior e é usada como treino antes de "fazer luva" (v.)

UPPERCUT: É um soco curto e rápido, similar ao hook, mas aplicado de baixo

para cima, que, entrando por baixo da guarda (v.) do adversário, visa atingir o

seu queixo.

WAKO: World Association of Kickboxing Organizations, uma das entidades

internacionais que organizam a prática do full-contact.


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