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LIVRO PROPRIETARIO Direito Penal

Date post: 15-Nov-2023
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DIREITO PENAL
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DirEiTo PENAL

DirEiTo PENAL

2015

ISBN 978-85-02-63541-8

Direito penal : parte geral / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia e Thaís de Camargo Rodrigues. – São Paulo : Saraiva, 2015.

1. Direito penal 2. Direito penal - Brasil I. Curia, Luiz Roberto. II. Rodrigues, Thaís de Camargo. III. Título.

CDU-343 (81)

Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil: Direito penal 343 (81)

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Saraiva.A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Data de fechamento da edição: 7-7-2015

Dúvidas? Acesse www.editorasaraiva.com.br/direito

Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César – São Paulo – SPCEP 05413-909PABX: (11) 3613 3000SAC: 0800 011 7875De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30www.editorasaraiva.com.br/contato

Direção editorial Luiz Roberto CuriaGerência editorial Thaís de Camargo Rodrigues

Coordenação geral Clarissa Boraschi MariaPreparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e

Ana Cristina Garcia (coords.) Willians Calazans de Vasconcelos de Melo

Projeto gráfico Isabela Agrela Teles VerasArte e diagramação Isabela Agrela Teles Veras

Claudirene de Moura Santos SilvaRevisão de provas Amélia Kassis Ward e

Ana Beatriz Fraga Moreira (coords.) Rita de Cássia Sorrocha Pereira

Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva Kelli Priscila Pinto Marília Cordeiro

5

Sumário

1. A CIÊNCIA PENAL

1.1. História do Direito Penal, 12

1.1.1. História do Direito Penal no Brasil, 13

1.2. Controle Social, Ciências Penais e Estado Democrático de Direito,

16

1.3. O Direito Penal, 16

1.3.1. Conceito, características e funções, 16

1.3.2. Fontes, 16

1.3.2.1. Analogia em Direito Penal, 17

1.3.3. O Direito Penal e as demais Ciências Jurídicas, 18

2. PRINCÍPIOS NORTEADORES, GARANTIDORES

E LIMITADORES DO DIREITO PENAL

2.1. Princípios constitucionais e infraconstitucionais, 22

3. TEORIA DA NORMA JURÍDICO-PENAL

3.1. Teoria da Norma. A Norma Jurídico-Penal, 28

3.2. Classificação, 28

3.3. Norma penal do mandato em branco – confronto com o Princípio

da Legalidade, 29

3.4. Conflito aparente de normas, 29

3.4.1. Princípio da especialidade (lex specialis derogat generalis), 30

3.4.2. Princípio da subsidiariedade (lex primaria derogat legi subsi-

diariae), 31

3.4.3. Princípio da consunção ou da absorção (lex consumens dero-

gat legi consumptae), 31

3.4.4. Princípio da alternatividade, 32

4 . VALIDADE E EFICÁCIA DA LEI PENAL

NO TEMPO E NO ESPAÇO

4.1.Conflito de leis penais no tempo, 34

4.2. Leis excepcionais e leis temporárias, 34

4.3. Tempo do crime, 35

4.3.1. A questão do crime continuado, 36

6

4.4. A lei penal no espaço, 36

4.4.1. Foro competente, 36

4.4.2. Territorialidade da lei penal (CP, art. 5º), 37

4.4.3. Extraterritorialidade da lei penal (CP, art. 7º), 37

4.4.3.1. Condições aplicáveis aos casos de extraterritorialidade

condicionada, 39

4.4.3.2. Extraterritorialidade na Lei de Tortura, 39

4.4.3.3. Princípio do non bis in idem (CP, art. 8º), 39

5. TEORIA DO DELITO

5.1. O caráter fragmentário do Direito Penal, 42

5.2. Conceito de crime, 42

5.2.1. Conceito material e formal, 42

5.2.2. Conceito analítico, 42

5.3. Sistemas penais e os elementos constitutivos do crime, 44

5.4. O sistema clássico (ou sistema “Liszt/Beling/Radbruch”), 44

5.4.1. Críticas ao sistema clássico, 45

5.4.2. Resumo dos elementos do crime para os “clássicos”, 47

5.5. Sistema neoclássico (Frank/Mezger), 48

5.5.1. Resumo dos elementos do crime para os “neoclássicos”, 49

5.6. Sistema fi nalista (Hans Welzel), 49

5.6.1. Teoria finalista da ação, 51

5.6.2. Estrutura do crime no sistema finalista, 51

5.6.2.1. Fato típico, 51

5.6.2.2. Ilicitude, 52

5.6.2.3. Culpabilidade, 52

5.6.3. Teoria social da ação (Wessels e Jescheck), 52

5.7. Sistema funcionalista, 53

5.7.1. Introdução, 53

5.7.2. Imputação objetiva, 54

5.7.2.1. Conceito, 54

5.7.2.2. Origem, 54

5.7.2.3. Substituição da relação de causalidade material, 55

5.7.2.4. Insuficiência das teorias tradicionais, 56

5.7.2.5. Natureza jurídica, 57

5.7.3. Linhas mestras da imputação objetiva segundo Roxin, 58

Direito Penal

7

5.7.3.1. Criação de um risco relevante e proibido, 58

5.7.3.2. Realização do risco proibido e relevante no resultado, 59

5.7.3.3. Risco compreendido no alcance do tipo, 60

5.7.4. A imputação objetiva segundo Jakobs, 60

5.7.4.1. A imputação objetiva é vinculada a uma sociedade

concretamente considerada, 60

5.7.4.2. O contato social gera riscos, 61

5.7.4.3. A imputação objetiva enfoca apenas comportamentos

que violam determinado papel social, 61

5.7.4.4. Fundamentos da imputação objetiva, 61

5.7.5. Diferenças entre Roxin e Jakobs no contexto da teoria da im-

putação objetiva, 63

5.7.6. Regras extraídas da imputação objetiva (Damásio de Jesus), 63

5.7.6.1. Princípios auxiliares, 64

6. DO FATO TÍPICO E SEUS ELEMENTOS

6.1. Fato típico, 66

6.2. Conduta, 66

6.3. Resultado, 66

6.3.1. Classificação dos crimes quanto ao resultado naturalístico, 67

6.3.2. Classificação dos crimes quanto ao resultado jurídico, 67

6.4. Relação de causalidade, 68

6.4.1. Causas dependentes e independentes, 69

6.5. Tipo penal, tipicidade e adequação típica, 71

6.5.1. Conceito, 71

6.5.2. Adequação típica, 72

6.5.3. Tipicidade conglobante, 73

6.6. Dolo, 73

6.7. Culpa, 74

7. ILICITUDE

7.1. Conceito, teorias, 76

7.2. Causas de justificação. Descriminantes legais, supralegais e putativas, 76

7.3. Estado de necessidade, 77

7.3.1. Teorias, 77

7.3.2. Faculdade ou direito, 77

7.3.3. Requisitos, 77

8

7.3.4. Classifi cação, 79

7.4. Legítima defesa, 80

7.4.1. Requisitos, 80

7.4.2. Commodus discessus, 83

7.4.3. Excesso, 83

7.4.4. Classificação, 83

7.4.5. Ofendículos, 84

7.4.6. Diferenças entre legítima defesa e estado de necessidade, 84

7.5. Estrito cumprimento de dever legal, 85

7.6. Exercício regular de direito, 85

8. CULPABILIDADE

8.1. Conceito, natureza e fundamento jurídico, 88

8.2. Elementos da culpabilidade na concepção fi nalista, 88

8.2.1. Imputabilidade, 88

8.3. Causas de exclusão da culpabilidade, 89

8.4. A inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de ex-

clusão da culpabilidade, 92

9. TEORIA DO ERRO

9.1. Conceito de erro. Distinção entre erro de tipo e erro de proibição:

natureza jurídica e efeitos, 96

9.2. Erro de tipo essencial e acidental, 96

9.2.1. Erro de tipo essencial, 97

9.2.2. Erro de tipo incriminador (art. 20, caput) e permissivo (art.

20, § 1º). Diferença, 97

9.3. Descriminantes putativas e as teorias extremada e limitada da cul-

pabilidade, 97

9.4. Erro provocado por terceiro, erro sobre o objeto, erro sobre pessoa,

erro na execução (aberratio criminis), 98

9.5. Resultado diverso do pretendido (aberratio criminis), 100

9.6. Erro de proibição, 101

9.6.1. Coação moral irresistível putativa e obediência hierárquica

putativa, 101

9.6.2. Erro sobre a inimputabilidade, 101

10. CONCURSO DE PESSOAS

10.1.Conceito e nomenclatura, 104

Direito Penal

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10.2.Teorias e requisitos do concurso de pessoas, 104

10.3. Autoria, 105

10.4. Participação, 106

10.5. Concursos em crimes culposos, 106

10.6. Homogeneidade de elementos subjetivos, 107

10.7. Participação de menor importância e dolosamente distinta, 107

10.8. Autoria colateral e autoria incerta, 108

10

1 A Ciência Penal

12

1.1 HiSTÓriA Do DirEiTo PENAL

Desde a Antiguidade até hoje verifi camos grandes mudanças nos

institutos criminais. Se analisarmos a pena, por exemplo, podemos tra-

çar a seguinte evolução: perda da paz ou vingança indeterminada, vin-

gança limitada pela lei do talião, composição voluntária, composição

legal e pena pública (BRUNO, 1956, p. 70 e 71).

Conforme ensina Aníbal Bruno, nas sociedades antigas, onde

ainda não havia um órgão que exercesse a autoridade coletiva, o res-

peito às normas era baseado no temor religioso ou até mesmo má-

gico. E a punição, que era a vingança, visava aplacar a ira dos deuses

(BRUNO, p. 66).

A religião sempre esteve muito presente no Direito Penal. Algumas

normas podem servir de exemplo: Leis de Manu, Índia, sécs. 12 ou 13

a.C., e Pentateuco ou Torá, dos hebreus, 1250 a.C. Até hoje normas com

cunho religioso são utilizadas pelo Direito Penal de inúmeros países, em

especial os orientais.

Remontando às sociedades mais primitivas, a vingança privada era

um ato de guerra entre tribos e não uma pena (BRUNO, p. 68). Entre os

membros do grupo a pena era a expulsão, e essa pena equivalia à pena

de morte, pois difi cilmente o indivíduo conseguiria sobreviver fora dos

domínios de proteção e cooperação de seu clã.

Procedendo dessa maneira poderia haver a completa dizimação de

grupos inteiros. Surge, assim, a lei do talião, visando aplicar certa pro-

porcionalidade ao Direito Penal. Como exemplo, podemos citar o Códi-

go de Hamurabi, Babilônia, 2.083 a.C.

Da vingança o Direito Penal evoluiu para a composição. Por esse

método o autor do delito “comprava” a sua liberdade. Em vez da vin-

gança de sangue era oferecido um valor sufi ciente para “cobrir” os danos

sofridos pela vítima.

Podemos afi rmar que o Direito Penal surge com o homem e o acompanha através dos tempos. No início era apenas uma realidade sociológica, instintiva. Não havia qualquer regulamentação e a punição por um crime era baseada na vingança privada. A reação da vítima, de sua família ou até de sua tribo ou clã, atingia não apenas o ofensor, mas todo o seu grupo, sem qualquer proporção. Com o passar do tempo surge a lei do talião, baseada no “olho por olho, dente por dente”, buscando equilíbrio entre crime e castigo. Ao longo dos séculos a evo-lução foi lenta. Apenas após o século XVIII, Período Humanitário, é que o Direito Penal passa a tomar os contornos do que conhecemos hoje.

CurioSiDADE

Detalhe do Monólito com o Código de Hamurabi (Museu do Louvre, França)

Vigiar e Punir, Mi-chel Foucault. Pu-blicado original-mente em 1975, na França, é de-dicado à análise da vigilância e da

punição, que se encontram em várias entidades estatais (hospitais, prisões e escolas). Leva à discus-são sobre os suplícios, a tortura e as formas modernas de prisão.

Dos delitos e das pe-nas, Cesare Beccaria. A obra é um marco do

Direito Penal, rompendo com a arbitrariedade e a crueldade e abrindo as portas para o período humanitário.

BiBLioTECA

o segredo dos seus olhos, direção de Juan José Campa-nella, 2009. O fi lme trata de um crime bárbaro, levando à refl exão sobre

punição estatal, proporcionalida-de e vingança privada.

CiNEmATECA

Direito Penal

13

Porém, todos esses métodos são de ordem privada. Com a evolução

social e uma maior organização estatal, aproximadamente a partir do

séc. XII, o Estado afastou a vingança privada e assumiu o poder-dever de

aplicar a vingança pública. Torna-se dever do Estado manter a ordem e

fazer justiça.

As partes envolvidas perdem o direito de buscar por si próprias

uma solução. A nova postura é submeter-se a um poder externo, que é o

Estado. Este substitui a vítima durante o processo.

Até o advento do período humanitário, essa justiça estatal era mar-

cada pela influência religiosa, pela arbitrariedade dos processos e pela

crueldade das penas.

Durante a Idade Média e a Moderna, o direito visava a proteção

do príncipe e da religião. Suas práticas eram baseadas no arbítrio e na

crueldade, criando uma “atmosfera de incerteza, insegurança e justi-

ficado terror” (BRUNO, p. 86). O direito era instrumento para que a

nobreza e o clero permanecessem no poder político e econômico.

A ausência de proporcionalidade ou respeito à dignidade humana

era vista na desigualdade de punição entre nobres e plebeus, na inde-

terminação das penas e na definição dos crimes, na falta de publicidade

no processo, na ausência de defesa e nos meios inquisitoriais (BRUNO,

p. 86).

Esses excessos criaram na consciência comum a exigência da ime-

diata reforma das leis penais, e assim inicia-se o período humanitário.

Personagem mais importante desse período é sem dúvida Cesare

Beccaria, que publicou em 1764 a obra Dos delitos e das penas. Essa obra

é um marco no Direito Penal, pois visava romper com o direito vigente,

baseado em suplícios e no arbítrio dos reis.

Vivendo sob a égide do Iluminismo – de cunho racionalista e jus-

naturalista – podemos afirmar que Beccaria sofreu a influência de filó-

sofos como Locke, D’Alembert, Diderot, Hume, Montesquieu, Rousseau

e Voltaire.

Beccaria propunha um direito baseado no respeito à personalidade

humana. Ele defendia a elaboração de leis claras e precisas, penas pro-

porcionais e o fim da pena de morte e da tortura.

As ideias de Beccaria foram aceitas e incluídas, mesmo que de modo

ainda embrionário, na legislação de diversos países, como Rússia (1767),

Toscana (1786), Áustria (1787), França (1791 e 1810) e na Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) (FRAGOSO, 1959, p. 43

e 44).

1.1.1 História do Direito Penal no Brasil

O Direito Penal brasileiro sempre recebeu influência do direito pe-

nal europeu, em especial dos italianos e alemães.

Sombras de Goya, dire-ção de mi-los Forman, 2007. O filme retrata o di-reito penal do período das inquisi-ções, com

completo desrespeito aos princí-pios penais, especialmente da dig-nidade humana e da legalidade.

As Bruxas de Salem, direção de Nicholas Hytner, 1996. O filme mostra a influência da religião no Di-reito, quando algumas jo-

vens são acusadas de bruxaria. O filme se passa em Salem, Massa-chusetts, 1692.

CiNEmATECA

ordália, prática comum du-rante a Idade Média, é um tipo de prova arbitrária e cruel usada para determinar a culpa ou a inocên-cia do acusado, cujo resultado é interpretado como um juízo divino. Exemplo: o acusado precisava an-dar sobre a brasa ou pegar um fer-ro incandescente. Se não se quei-masse, seria considerado inocente.

CurioSiDADE

VoCABuLário

suplícios: punição corporal que pode levar à morte por meio de grande tortura; castigo ele-vado.

sob a égide: sob a proteção, amparo ou patrocínio.

14

O Livro V das Ordenações Filipinas, de 1603, foi a legislação

penal utilizada no Brasil durante o período colonial. Essa legislação

refletia o espírito dominante à época, que não distinguia o direito da

moral e da religião.

Outra característica das Ordenações é a extrema crueldade das pe-

nas, que também eram um refl exo da época, duramente combatida por

Beccaria e outros iluministas.

Como se viu acima, a pena para sodomia, por exemplo, era extre-

mamente desumana. O texto original dizia: “Toda a pessoa, de qualquer

qualidade que seja, que peccado de sodomia per qualquer maneira comet-

ter, seja queimado, e feito per fogo em pó, para que nunca de seu corpo e

sepultura possa haver memória”.

No Brasil temos o exemplo de Tiradentes, que foi condenado à

morte pelo crime de lesa-majestade, e, após ser enforcado, teve seu cor-

po esquartejado e seus membros fi ncados em postes e colocados à beira

das estradas como “exemplo” para os demais súditos da coroa. Era a in-

timidação pelo terror.

O Direito Penal desse período era visto como primeira ou única

opção. As condutas hoje abarcadas por outras áreas do direito, como o

administrativo ou civil, recebiam tratamento penal. Ex. Título LXXXI –

Dos que dão música de noite (pena de prisão por 30 dias, multa e perda

dos instrumentos musicais e armas).

Outra característica que merece ser comentada é a interferência da

qualidade do autor na defi nição da pena. Ex. Título XXXIII – Dos ru-

fi ões e mulheres solteiras. A pena era de açoite, multa e degredo para

a África. Porém, se o homem fosse escudeiro, a pena seria de multa e

degredo para fora da vila. Resta assim evidente o total desrespeito ao

princípio da igualdade.

Com a proclamação da independência em 1822 se fez necessária a

revisão de toda a legislação vigente no país, que era de origem portugue-

sa. Em 1824 foi outorgada a primeira Constituição do Brasil, e em 1830

foi promulgado o primeiro Código Criminal brasileiro.

A Constituição de 1824, elaborada sob o ideário liberal e humanis-

ta, trazia em seu art. 179 direitos e garantias individuais que infl uencia-

ram sobremaneira a elaboração do Código Criminal.

O Código de 1830 foi o primeiro código autônomo da América

Latina, e de tão elogiado, serviu de modelo para outros códigos, tanto na

América quanto na Europa.

O projeto aprovado foi de Bernardo Pereira de Vasconcelos, for-

mado em Coimbra e atualizado com os ideais do Iluminismo e da Re-

volução Francesa.

Uma questão que deu margem a dissídio no Parlamento durante

a aprovação do projeto foi a pena de morte (na forca). Os conservado-

res queriam mantê-la no Código, e os liberais, extirpá-la. Venceram os

Vejam alguns exemplos de crimes previstos nas Ordenações Filipinas, da forte infl uência da re-ligião e da intromissão do Estado na vida privada:

▪ Título I – Dos hereges e após-tatas (as penas – corporais e de confi sco – eram determinadas pe-los juízes eclesiásticos e executa-das pelo governo civil).

▪ Título III – Dos feiticeiros (pena de morte).

▪ Título XIII – Dos que come-tem pecado de sodomia e com alimárias (pena de morte na fo-gueira, confi sco de bens, e fi lhos e netos considerados infames).

▪ Título XXV – Do que dorme com mulher casada (pena de morte).

▪ Título XCIV – Dos mouros e ju-deus que andam sem sinal (pena pecuniária).

CurioSiDADE

milk, direção de Gus Van Sant, 2008. É baseado na vida do polí-tico e ativista gay Harvey Milk, que foi o primeiro ho-mossexual de-

clarado a ser eleito para um cargo público na Califórnia. O fi lme mos-tra a luta e o preconceito sofrido pelos homossexuais quatro séculos após as Ordenações Filipinas.

CiNEmATECA

VoCABuLário

sodomia: relacionamento sexual entre pessoas do mesmo sexo ou sexos opostos, com cópula anal.

degredo: pena que consiste no afastamento compulsório da terra natal por tempo determi-nado ou indeterminado.

Direito Penal

15

primeiros, sob o argumento de que os escravos não temeriam nenhum

outro castigo.

Não obstante os elogios recebidos, esse Código mantinha resíduos

de uma sociedade escravocrata. A crítica da sociedade da época era que

o caráter liberal do Código contribuía com o aumento da criminalidade,

o que levou à posterior elaboração de leis de cunho retrógrado, princi-

palmente contra escravos (TOLEDO, 2002, p. 59).

Com o fim da escravidão e o advento da República, novamente

se fazia necessária a ruptura com o velho, e, assim, a elaboração de

novos diplomas legais. Em 1890 foi promulgado o Código Penal, antes

mesmo da primeira Constituição da República, promulgada apenas

em 1891.

Ao contrário do Código Criminal do Império, o Código Penal de

1890, foi elaborado às pressas, e apresentava, além de defeitos técnicos,

um posicionamento atrasado em face da ciência de seu tempo.

Não obstante as críticas, cabe ressaltar que esse código aboliu a

pena de morte e instalou o regime penitenciário de caráter correcional.

Tendo em vista as sucessivas alterações processadas no texto do có-

digo, em 1932 foi adotada a Consolidação das Leis Penais de Vicente

Piragibe, publicadas sob a denominação de Código Penal Brasileiro, pelo

Decreto n. 22.213/1932.

Entre o final do séc. XIX e início do séc. XX houve um grande desen-

volvimento da ciência penal. Muitos conceitos haviam sido discutidos e

estabelecidos e novamente se mostrava necessário um novo Código. O

Código Penal de 1940 foi originado no projeto de Alcântara Machado,

revisado por uma Comissão de que participavam Nelson Hungria, Ro-

berto Lyra, Costa e Silva, entre outros. O Código foi inspirado no Código

Rocco de 1930, porém sem adotar a pena de morte e de prisão perpétua,

e no Código Suíço de 1937.

Nasce no período entre guerras, em pleno Estado Novo, de índole

ditatorial, onde Getúlio Vargas detém os Poderes Executivo e Legis-

lativo. Mas, conforme leciona Francisco de Assis Toledo (TOLEDO,

p. 63), “o curioso é que, fruto de um Estado Ditatorial e influenciado

pelo código fascista, manteve a tradição liberal iniciada com o Código

do Império”.

Em 1984, a Lei n. 7.209 substituiu toda a Parte Geral do Código Pe-

nal, alterando profundamente certos institutos como o erro, as penas e o

concurso de agentes. Com o advento da Constituição Federal em 1988,

houve outras alterações e adequações, como a Reforma no Título dos

Crimes contra a Dignidade Sexual, visando obedecer aos novos preceitos

constitucionais.

Jornada pela Liber-dade (Amazing Gra-ce), direção de mi-chael Apted, 2006. Filme sobre a cam-panha contra a es-

cravidão liderada por William Wil-berforce, um famoso abolicionista inglês, responsável por levar ao Parlamento Britânico a legislação antiescravagista.

12 Anos de Escravi-dão, direção de Ste-ve mcQueen, 2013. Adapta a autobio-grafia de 1853 de So-lomon Northup, um

negro livre nascido no Estado de Nova Iorque que foi sequestrado em Washington, D.C. em 1841, e vendido como escravo.

Amistad, direção de Steven Spielberg, 1997. Após uma re-belião, um navio ne-greiro é tomado por seus escravos. Cap-

turados, param em terras nor-te-americanas, onde geram uma enorme discussão jurídica sobre posse, abolição e liberdade.

A Vida de David Gale, direção de Alan Parker, 2003. Advogado e ativista contra a pena de morte, é preso, acu-sado de estuprar e

assassinar uma colega. No corre-dor da morte, ele pede que uma jovem jornalista faça e publique sua última entrevista.

CiNEmATECA

No Brasil há previsão de pena de morte apenas em caso de guerra declarada, conforme pre-visto no art. 5º, XLVII, da Consti-tuição Federal. Sobre a questão, consulte também o Código Penal Militar, de 1969.

CurioSiDADE

16

1.2 CoNTroLE SoCiAL, CiÊNCiAS PENAiS E ESTADo DEmoCráTiCo DE DirEiTo

O controle social pode ser formal e informal. O informal é aquele

aplicado pela família, escola, igreja, partido político, opinião pública, vi-

zinhos, clube. Nem sempre será sufi ciente para solucionar confl itos mais

complexos ou graves.

Das necessidades humanas decorrentes da vida em sociedade sur-

ge o Direito, que visa garantir condições indispensáveis à coexistência

pacífi ca.

O fato que contraria a norma legal, ofendendo ou pondo em perigo

um bem jurídico tutelado, é um ilícito jurídico e poderá ter consequên-

cias em vários ramos do Direito.

O Direito Penal constitui uma das espécies do sistema de controle

social formal. Possui regras e princípios especiais, devendo ser utilizado

apenas como ultima ratio, ou seja, para os casos de ofensas graves aos

bens jurídicos fundamentais, os mais sensíveis à sociedade.

Os princípios penais decorrem da Constituição Federal de 1988

que deu forma, na República Federativa do Brasil, a um tipo de estado

designado como Estado Democrático de Direito.

A Constituição Federal estabelece como fundamento do Estado

Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). No

art. 5º determina que são invioláveis os direitos à liberdade, à vida, à

igualdade, à segurança e à propriedade. Dessa forma, a limitação a esses

direitos ou garantias constitucionais somente se justifi ca quando a ofen-

sa ou a ameaça sejam proporcionais à intervenção do Direito Penal e a

aplicação da pena ou medida de segurança.

1.3 o DirEiTo PENAL

1.3.1 Conceito, Características e FunçõesO Direito penal é o ramo do direito público que se encarrega de

selecionar condutas atentatórias aos mais importantes bens jurídicos —

justamente aqueles considerados essenciais para a vida em sociedade —,

sancionando-as com uma pena criminal ou medida de segurança. Tem por função primordial servir como modelo orientador de condutas ade-quadas, promovendo o normal funcionamento da vida em sociedade.

1.3.2 FontesAs fontes do direito subdividem-se em fontes materiais, substan-

ciais ou de produção e em fontes formais, de conhecimento ou de cog-

VoCABuLário

ultima ratio: expressão latina que signifi ca “último recurso”.pena criminal: é a sanção im-posta a quem comete os crimes previstos em nosso ordenamento jurídico. São elas: privativas de li-berdade (reclusão e detenção), restritivas de direito (ex.: presta-ção pecuniária, limitação de fi m de semana, prestação de servi-ços à comunidade) e multa.medida de segurança: é a san-ção imposta aos inimputáveis (art. 26 do CP).As medidas de segurança são de internação em hospital de custódia e tratamento psiqui-átrico ou de sujeição a trata-mento ambulatorial.

direito público: Direito concer-nente às relações jurídicas de natureza pública.

Uma única conduta pode gerar um ilícito civil e um ilícito pe-nal. A lesão corporal, por exem-plo, é punida criminalmente com a aplicação da pena de deten-ção ou reclusão, dependendo da gravidade. Na esfera civil, a vítima pode solicitar uma indenização dos valores pagos com o trata-mento médico ao autor da lesão.

CurioSiDADE

Direito Penal

17

nição. As fontes materiais indicam o órgão

encarregado da produção do direito penal.

Em nosso ordenamento jurídico, somente a União possui competência legislativa para

criar normas penais (CF, art. 22, I). No-

te-se que o parágrafo único do dispositivo

constitucional citado prevê que lei comple-

mentar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas

acerca de matérias penais.

As fontes formais, por sua vez, subdividem-se em imediatas e me-

diatas. Somente a lei pode servir como fonte primária e imediata do

direito penal, porquanto não há crime sem lei anterior que o defina, nem

pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5º, XXXIX, e CP, art. 1º). Ad-

mitem-se, no entanto, fontes secundárias ou mediatas: são os costumes

(“conjunto de normas de comportamento a que pessoas obedecem de

maneira uniforme e constante pela convicção de sua obrigatoriedade”

— Damásio de Jesus, Direito penal: parte geral, v. 1, p. 27) e os princípios

gerais de direito (“premissas éticas que são extraídas, mediante indução,

do material legislativo” — idem, p. 29).

Tais fontes formais sofrem importante limitação como decorrência

do princípio da legalidade (CF, art. 5º, XXXIX, e CP, art. 1º). Não se ad-

mite que de seu emprego resulte o surgimento de crimes não previstos

em lei ou, ainda, a agravação da punibilidade de delitos já existentes. Os

princípios gerais do direito e os costumes, portanto, somente incidem na

seara da licitude penal, ampliando-a. Os trotes acadêmicos, por exem-

plo, traduzem uma prática reconhecida e costumeira, de modo que pos-

síveis infrações, como injúria (ex.: referir-se ao calouro como “bicho”)

ou constrangimento ilegal (ex.: obrigar o novato a fazer “pedágio”), são

consideradas permitidas à luz do art. 23, III, do CP (exercício regular de

um direito).

Os costumes, além disso, representam importante recurso inter-

pretativo, sobretudo no tocante aos elementos normativos presentes em

alguns tipos penais (p. ex., a expressão “ato obsceno” no art. 233 do CP).

Anote-se também que os costumes não revogam lei penal (art. 2º,

§ 1º, da LINDB).

1.3.2.1 Analogia em Direito PenalA analogia é uma forma de suprimento (preenchimento) de

lacunas (brechas) legislativas. Consiste em “aplicar, a um caso não

contemplado de modo direto ou específico por uma norma jurídi-

ca, uma norma prevista para uma hipótese distinta, mas semelhante

ao caso não contemplado” (DINIZ, Lei de Introdução às Normas do

Direito Brasileiro, p. 108). Para utilizá-la, portanto, é preciso que se

verifiquem dois pressupostos: 1º) existência de uma lacuna na lei; 2º)

encontro no ordenamento jurídico de uma solução legal semelhante,

"não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia comi-nação legal"

Apenas a União, por meio do Congresso Nacional, é autorizada a legislar sobre o Direito Penal. Isso significa que os governadores e prefeitos não podem criar novos crimes ou revogar os existentes.

ATENÇÃo

Muitas vezes há excessos nos trotes, podendo configurar crime. Vai além do que seria ad-mitido pelo costume. Veja: “Trote Humilhante - Ausência de con-cordância da vítima - Constran-gimento ilegal configurado”. ACR 3052720058070005 DF.

CurioSiDADE

A analogia visa deixar o Direi-to mais justo? Imagine a seguinte situação: o art. 128, II, do CP admi-te o aborto praticado por médico em caso de estupro. No caso do aborto realizado por enfermeiro, havendo a impossibilidade de atendimento médico, há o crime?

rEFLEXÃo

18

vale dizer, uma regra jurídica que tenha sido estipulada para regular

caso análogo. Funda-se a analogia no princípio ubi eadem legis ratio,

ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão legal, aplica-se o mesmo

dispositivo).

Em direito penal, contudo, somente se admite a analogia in bonam

partem, ou seja, aquela utilizada em benefício do sujeito ativo da in-

fração penal. Exemplo: o Código Penal somente autoriza a reação em

estado de necessidade, afastando o caráter criminoso da conduta, se o

sujeito busca afastar um perigo “atual”, nada dispondo sobre a excluden-

te de ilicitude se o agente visava escapar de um perigo “iminente”; este,

contudo, também se considera abrangido pela norma permissiva, por

analogia in bonam partem.

Proíbe-se, de outra parte, a analogia in malam partem, isto é, em

prejuízo do sujeito ativo da infração penal, justamente por importar

a criação de delitos não previstos em lei ou no agravamento da puni-

ção de fatos já disciplinados legalmente, atentando contra o princípio

da legalidade. Acompanhe os exemplos: o art. 63 do CP defi ne como

reincidente aquele que comete crime depois de ter sido condenado

com trânsito em julgado por outro crime, no Brasil ou no estrangeiro.

O art. 7º da Lei das Contravenções Penais, por sua vez, estipula ser reincidente o agente que pratica uma contravenção penal depois de ter sido condenado defi nitivamente por outro crime, no Brasil ou no estrangeiro, ou por outra contravenção penal no Brasil. Na combina-ção dos dispositivos nota-se uma lacuna: não é reincidente o autor de um crime praticado após ter sido ele irremediavelmente condenado por uma contravenção penal. Em suma, se o agente for condenado de modo defi nitivo por uma contravenção penal e, após, cometer outra contravenção, será reincidente, mas, se praticar um crime, será pri-mário! Tal omissão do legislador gera uma situação injusta, que não pode ser corrigida pelo emprego da analogia, causando reincidência em ambas as situações, sob pena de agravar a punição de um fato sem expressa previsão legal.

Há duas espécies de analogia:

1ª) analogia “legis”: dá-se com a aplicação de uma norma existente

a um caso semelhante;

2ª) analogia “juris”: ocorre quando se baseia num conjunto de nor-mas, visando retirar elementos que possibilitem sua aplicabilidade ao caso concreto não previsto (p. ex. trata-se do encontro e aplicação de princípios gerais do direito).

1.3.3 o Direito Penal e as demais Ciências JurídicasO Direito Penal é apenas um dos objetos de estudo das Ciências

Penais. Há a dogmática penal, a criminologia, a política criminal, psi-

quiatria e psicologia forense, dentre outras.

Dogmática penal é a “disciplina que se ocupa da interpretação,

sistematização e desenvolvimento (...) dos dispositivos legais e das

Última para-da 174, dire-ção de Bruno Barreto, 2008. Conta a histó-ria de Sandro, morto pela po-lícia quando sequestrou o

famoso ônibus 174, no Rio de Ja-neiro. Mostra a história por outro ângulo, contando a vida de San-dro desde o nascimento até o dia do crime. Esse olhar é comum na criminologia.

CiNEmATECA

Direito Penal

19

opiniões científicas no âmbito do direito penal” (Claus Roxin, Funcio-nalismo e imputação objetiva no direito penal, p. 186-187). Este livro, portanto, representa um trabalho eminentemente relacionado à dog-mática penal.

“A criminologia tradicional é uma ciência que procura uma expli-cação causal do delito como obra de um autor determinado” (Enrique Bacigalupo, Direito penal: parte geral, Capítulo I, § 7º). Com os resul-tados das investigações criminológicas, visa tal ciência auxiliar o direito penal a encontrar uma solução para as causas que levaram o delinquente ao delito.

A política criminal, por sua vez, corresponde à que deve ser imple-mentada no combate à criminalidade. Discute-se se ela deve servir ex-clusivamente ao legislador, como critério de orientação na construção de normas penais e suas consequências jurídicas (posição tradicional), ou se, além disso, deveria também orientar o aplicador do direito dian-te da norma posta (posição moderna). Em outras palavras, poderiam os juristas valer-se de critérios de política criminal para interpretar o alcance e a aplicabilidade de normas penais? A moderna teoria fun-cionalista (Claus Roxin e Günther Jakobs) entende que sim, susten-tando deva o tecnicismo “ceder espaço à política criminal e à função pacificadora e reguladora do tipo” (Fernando Capez, Consentimento do ofendido e violência desportiva: reflexos à luz da teoria da imputação objetiva, p. 49).

O direito penal pertence ao direito público, pois seu objeto refere-se primordialmente às relações do Estado com particulares em razão de seu poder soberano, atuando na tutela do bem-estar coletivo.

É possível dividir o direito penal em objetivo e subjetivo. O primeiro consiste no próprio ordenamento jurídico-penal, isto é, no conjunto de normas jurídicas que perfazem o sistema penal. O segundo, também cha-mado de jus puniendi estatal, corresponde ao direito de punir do Estado. Em sentido abstrato, traduz-se no direito de exigir de todos que se abste-nham de praticar condutas delitivas, e, em sentido concreto, no interesse de aplicar a sanção cominada ao delito àquele que violou a norma penal.

Dependendo de quem se trate o sujeito passivo, é possível que o Direito Penal assuma uma outra velocidade, ou uma outra forma de atu-ação. Trata-se de concepção criada por Günther Jakobs em que o direito penal do cidadão teria como escopo garantir a vigência da norma (o indivíduo que comete o crime desrespeita a norma, a qual, por meio da pena aplicada, mostra que permanece incólume), e o direito penal do inimigo (como o de indivíduos que reincidem constantemente na prática de delitos ou praticam fatos de extrema gravidade, como ações terroristas) tem como finalidade combater perigos. Neste, o infrator não é tratado como pessoa, mas como inimigo a ser eliminado e privado do convívio social.

Cuida-se de concepção polêmica, rejeitada pela maioria dos auto-

res, os quais sustentam que jamais se pode deixar de considerar um in-

divíduo como pessoa.

VoCABuLário

tecnicismo: corrente doutrinária que reduz o direito à técnica.

Claus roxin, nasci-do em 15-5-1931, em Ham bur go, é um dos mais influ-entes dog máti cos do direito penal alemão, tendo

con quistado reputação nacio-nal e internacional nesse ramo. É detentor de inúmeros doutora-dos honorários e já proferiu pa-

lestras no Brasil. Günther Jakobs, nascido em Mön-chengladbach, em 26-7-1937, é catedrático emérito de Direi-

to Penal e Filosofia do Direito pela Universidade de Bonn, Alemanha. É autor do polêmico livro Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht).

AuTor

A vila, dire-ção de m. Ni-ght Shyamalan, 2004. O medo como forma de controle social utilizado no filme

pode ser utilizado como analogia para interpretar o mundo pós 11 de setembro.

CiNEmATECA

20

2Princípios Norteadores,

Garantidores e Limitadores do

Direito Penal

22

2.1 PriNCíPioS CoNSTiTuCioNAiS E iNFrACoNSTiTuCioNAiS

Os princípios constitucionais possuem a função de orientar, orga-

nizar e estruturar o ordenamento jurídico, especialmente quanto a apli-

cação do direito e interpretação da norma jurídica.

Neste sentido, aliás, já se disse que “os princípios constitucionais

(tragende Konstitutionsprizipien) e as garantias individuais devem atuar

como balizas para a correta interpretação e o justo emprego das normas

penais, não se podendo cogitar de uma aplicação meramente robotiza-

da dos tipos incriminadores...” (Edilson M. Bonfi m e Fernando Capez,

Direito penal: parte geral, p. 114).

Diversos são os princípios de Direito Penal que estão assegurados

na Constituição. Vejamos:

a) Princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se do mais

importante dos princípios penais e constitui um dos fundamentos da

República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III). Proíbe a incriminação

de comportamentos socialmente inofensivos, isto é, que não provoquem

dano efetivo ou lesão ao corpo social (ex.: incriminar o ato de manifes-

tar publicamente admiração por pessoas queridas). Impede, ademais,

que a aplicação das normas penais ocorra de maneira totalmente divor-

ciada da realidade.

b) Princípio da legalidade. Não há crime sem lei anterior que o

defi na, nem pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5º, XXXIX, e CP,

art. 1º).

c) Princípio da anterioridade da lei penal. A lei penal não retroagi-

rá, salvo para benefi ciar o réu (CF, art. 5º, XL, e CP, art. 2º).

d) Princípio do ne bis in idem. Ninguém pode ser condenado pelo

mesmo fato mais de uma vez; além disso, uma única e determinada cir-

cunstância fática não pode ser utilizada mais de uma vez, seja para agra-

var, seja para benefi ciar o agente.

e) Princípio da insignifi cância ou da bagatela. Foi desenvolvido

por Claus Roxin. Para o autor, a fi nalidade do Direito Penal consiste na

proteção subsidiária de bens jurídicos. Logo, comportamentos que pro-

duzam lesões insignifi cantes aos objetos jurídicos tutelados pela norma

penal devem ser considerados penalmente irrelevantes. A aplicação do

princípio produz fatos penalmente atípicos.

Na atualidade, a aceitação deste princípio é praticamente unânime.

A divergência consiste, no mais das vezes, em defi nir, no caso concreto,

se a lesão ao bem jurídico foi diminuta (e, portanto, penalmente rele-

vante) ou insignifi cante (logo, atípica).

Ninguém dirá que a subtração de uma folha de papel ou de um

dente de alho deve ser considerada como crime de furto. Outros pode-

rão afi rmar, ainda, que a subtração de um objeto avaliado em um quarto

Princípios básicos de Direito Penal, Francisco de Assis Toledo, Editora Saraiva. Obra clássica, discute princípios e de-mais temas relevantes

da dogmática penal.

os miseráveis, Victor Hugo. O personagem principal Jean Valjean, pretendendo saciar a fome de uma criança, furta um pedaço de pão,

e, por essa razão, passa muitos anos preso. Após várias tentativas de fuga, consegue a liberdade, porém passa a vida toda sendo perseguido pelo ins-petor de polícia Javert. Seu crime é um exemplo de aplicação do princípio da insignifi cância, e a leitura da obra deixa clara sua importância prática.

BiBLioTECA

CurioSiDADE

o Julgamento de Nu-remberg, direção de Stanley Kramer, 1961. O Tribunal de Nuremberg foi o Tribunal Militar In-ternacional criado com a fi nalidade de julgar

prisioneiros de guerra nazistas. O fi l-me leva à refl exão sobre a violação de princípios penais, especialmente o princípio da legalidade.

CiNEmATECA

Em agosto de 2008, o STF enfren-tou um caso emblemático de afronta ao princípio da dignidade humana. Um pedreiro foi condenado por ho-micídio qualifi cado e contestou sua sentença no Supremo alegando que permaneceu algemado durante todo o julgamento e que isso lhe causou constrangimento, além de ter infl uen-ciado negativamente os jurados. O STF acolheu os argumentos e editou a Súmula vinculante n. 11.

Direito Penal

23

do salário mínimo é insignificante, mas, certamente, num caso deste,

haverá intenso debate no processo sobre a caracterização do princípio.

O Supremo Tribunal Federal vem adotando critérios que nos pa-

recem ajustados para a verificação, em cada caso, sobre a possibilidade

de aplicar o princípio. São eles: (i) a mínima ofensividade da conduta

do agente, (ii) a nenhuma periculosidade social da ação, (iii) o reduzido

grau de reprovabilidade do comportamento e (iv) a inexpressividade da

lesão jurídica provocada (HC 84.412/SP).

O STF, ainda, tem travado interessante discussão sobre a aplicação

do princípio ao crime de porte de droga para consumo pessoal. As duas

Turmas do STF têm divergido a respeito do assunto. Assim, enquanto

a 1ª Turma tem negado a incidência do princípio ao crime de porte de

droga para consumo próprio (v. HC 91.759, rel. Min. Menezes Direito,

DJU, 30-11-2007, p. 547), a 2ª Turma o tem admitido (v. STF, HC 92.961,

rel. Min. Eros Grau, DJU, 22-2-2008, p. 925 e HC 94.809, DJU, 30-5-

2008, rel. Min. Celso de Mello).

f) Princípio da alteridade ou da transcendentalidade. Proíbe a

incriminação de atitude meramente subjetiva, que não ofenda bem ju-

rídico alheio. Também foi desenvolvido por Claus Roxin. A ação ou

omissão puramente pecaminosa ou imoral não apresenta a necessária

lesividade que legitima a intervenção do direito penal. Por conta desse

princípio, não se pune a autolesão, salvo quando se projeta a prejudi-

car terceiros, como no art. 171, § 2º, V, do CP (autolesão para fraudar

seguro); a tentativa de suicídio (nosso CP somente pune a participa-

ção no suicídio alheio — art. 122); o uso pretérito de droga (o porte

é punido porque, enquanto o agente detém a droga, coloca em risco a

incolumidade pública).

g) Princípio da ofensividade. Não há crime sem lesão efetiva ou

ameaça concreta ao bem jurídico tutelado — nullum crimen sine inju-

ria. Daí resulta serem inconstitucionais os crimes de perigo abstrato

(ou presumido), nos quais o tipo penal descreve determinada conduta

sem exigir ameaça concreta ao bem jurídico tutelado. Note-se, entre-

tanto, que a jurisprudência dominante tende a admitir como válidos

os delitos de perigo abstrato, por constituírem uma forma legítima de

punição de infrações penais em sua fase embrionária (opinião com a

qual concordamos).

h) Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos (ou princípio

do fato). Deriva, como muitos, do princípio da dignidade da pessoa hu-

mana e do fato de o Brasil ser um Estado Democrático de Direito (i. e.,

todos se submetem ao império da lei, que deve possuir conteúdo e ade-

quação social). Dele decorre que o direito penal não pode tutelar valores

meramente morais, religiosos, ideológicos ou éticos, mas somente atos

atentatórios a bens jurídicos fundamentais e reconhecidos na Consti-

tuição Federal. “Caso isso não ocorra, o tipo deverá ser excluído do or-

denamento jurídico por incompatibilidade vertical com o Texto Cons-

titucional. Assim, toda norma penal em cujo teor não se vislumbrar um

Q u e b r a n d o o tabu, dire-ção de Fer-nando Gros-tein Andrade, 2011. Com várias perso-n a l i d a d e s , como Fer nan-

do Henrique Cardoso, o filme sai ao encontro de soluções, princí-pios e conclusões, mantendo o foco das discussões em torno da descriminalização das drogas. Bill Clinton, Jimmy Carter e ex-chefes de Estado, como da Colômbia, do México e da Suíça, mostram o motivo de suas opiniões. É captu-rado o relato de pessoas comuns, que tiveram suas vidas atingidas pela Guerra às Drogas, até expe-riências de Drauzio Varella, Paulo Coelho e Gael Garcia Bernal.

CiNEmATECA

A Política Mundial de Drogas, tra-duzida no modelo proibicionis-ta-belicista que se convencionou designar como “war on drugs”, vem recebendo duras críticas dos mais variados setores e atores, na-cionais e internacionais, que se ocupam da “questão das drogas”, havendo um relativo consenso no sentido de que o proibicionismo fracassou. Você concorda?

Sobre o tema:

Drogas e redução de danos: direitos das pessoas que usam drogas, Maurides de Melo Ribeiro.

A política criminal de drogas no Brasil: es-tudo criminológico e dogmático, Salo de Carvalho.

rEFLEXÃo

24

bem jurídico claramente defi nido e dotado de um mínimo de relevância social será considerada nula e materialmente inconstitucional. (...). Sem bem jurídico não existe infração penal” (Edilson M. Bonfi m e Fernando Capez, Direito penal: parte geral, p. 133).

i) Princípio da intervenção mínima. Somente se deve recorrer à intervenção do direito penal em situações extremas, como a última saída (ultima ratio). A princípio, portanto, deve-se deixar aos demais ramos do direito a disciplina das relações jurídicas. A subtração de um pacote de balas em um supermercado, já punida com a expulsão do cliente do estabelecimento e com a cobrança do valor do produto ou sua devo-lução, já foi resolvida por outros ramos do direito, de modo que não necessitaria da interferência do direito penal.

j) Princípio da fragmentariedade. Trata-se, na verdade, de uma característica do direito penal, mencionada por alguns autores também sob a forma de princípio, estabelecendo que as normas penais somente se devem ocupar de punir uma pequena parcela, um pequeno fragmen-to dos atos ilícitos, justamente aquelas condutas que violem de forma mais grave os bens jurídicos mais importantes.

k) Princípio da adequação social. O fato deixará de ser típico quando aceito socialmente. Acompanhe esse exemplo extraído da juris-prudência: “Contravenção Penal — ‘jogo do bicho’ — Perda do mono-pólio do Estado às empresas de comunicações na exploração de jogos e loterias aliada a ausência de reprovabilidade na consciência da absoluta maioria dos cidadãos — Punição afastada pela aplicação do princípio da adequação social — Inaplicabilidade do art. 58 do Dec.-Lei 6.259/44. Convence que a adequação social supera contravenção denunciada. Em vez de punir um fato por ser típico, devemos adequá-lo à realidade vi-gente, aos costumes sociais, enfi m, à consciência coletiva. A lei deveria ser interpretada pro societate, e, ao que tudo indica, a coletividade não se interessa pela punição dos ‘bicheiros’. Ao contrário, já inseriu o jogo do bicho em seu dia a dia” (TARS, RT, 753/699).

Tal princípio não tem merecido acolhida da maioria da jurispru-dência, uma vez que sua aceitação implicaria a conclusão de que os cos-tumes teriam força para revogar lei penal, o que é inadmissível em face do art. 22, I, da CF, e art. 2º, § 1º, da LINDB.

l) Princípio da humanidade. As normas penais devem sempre dis-pensar tratamento humanizado aos sujeitos ativos de infrações penais, vedando-se a tortura, o tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5º, III), penas de morte, de caráter perpétuo, cruéis, de banimento ou de trabalhos forçados (CF, art. 5º, XLVII).

m) Princípio da proporcionalidade. “Quando a criação do tipo penal não se revelar proveitosa para a sociedade, estará ferido o prin-cípio da proporcionalidade, devendo a descrição legal ser expurgada de nosso ordenamento jurídico por vício de inconstitucionalidade. Além disso, a pena, isto é, a resposta punitiva estatal ao crime, deve guardar proporção com o mal infl igido ao corpo social” (Edilson M. Bonfi m e Fernando Capez, Direito penal: parte geral, p. 130).

os miseráveis, direção de Tom Hooper, 2012. O fi lme faz uma adaptação da obra escrita pelo francês Victor Hugo, publicada em 1862. Trata-se

da história de um homem do século XIX, que foi condenado injustamen-te por ter roubado um pedaço de pão, fi cando em clausura por 20 anos. Passado o tempo de reclu-são, o personagem Jean Valjean (Hugh Jackman) sai em liberdade condicional, tornando-se um ho-mem honrado e honesto, porém continua sofrendo os refl exos das injustiças sofridas no passado, sen-do perseguido pelo inspetor Javert (Russell Crowe), que não acredita em sua reabilitação. No decorrer da trama, vemos lacunas do siste-ma penal e a violação de princípios como o da intervenção mínima, humanidade, fragmentariedade, proporcionalidade e da bagatela.

Papillon, dire-ção de Franklin J. Schaffner, 1973. Trata-se da história de Henri Charrière (Papillon), que viveu nos anos de 1930, con-

denado a prisão perpétua, fi can-do recluso na Guiana Francesa, Ilha do Diabo, sob um sistema extremamente rigoroso e cruel. O fi lme retrata os abusos do sistema carcerário por meio de penas de-sumanas e humilhantes.

CiNEmATECA

Direito Penal

25

n) Princípio da autorresponsabilidade ou das ações a próprio ris-co. Aquele que, de modo livre e consciente, e sendo inteiramente res-

ponsável por seus atos, realiza comportamentos perigosos e produz re-

sultados lesivos a si mesmo arcará totalmente com seu comportamento,

não se admitindo nenhum tipo de imputação a pessoas que o tenham

eventualmente motivado a praticar tais condutas perigosas (ex.: o agente

que incentiva desafeto a praticar “esportes radicais” não responde pelos

acidentes sofridos pela vítima, que optou por fazê-lo livremente).

o) Princípio da confiança. Uma pessoa não pode ser punida quan-

do, agindo corretamente e na confiança de que o outro também assim

se comportará, dá causa a um resultado não desejado (ex.: o médico

que confia em sua equipe não pode ser responsabilizado pela utiliza-

ção de uma substância em dose equivocada, se para isso não concorreu;

o motorista que conduz seu automóvel cuidadosamente confia que os

pedestres se manterão na calçada e somente atravessarão a rua quando

não houver movimento de veículos, motivo pelo qual não comete crime

se atropela um transeunte que se precipita repentinamente para a via

trafegável).

p) Princípio do estado de inocência ou presunção de não culpabi-lidade. “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de

sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII).

q) Princípio da culpabilidade. Como decorrência do princípio da

dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e da presunção de não

culpabilidade (CF, art. 5º, LVII), exsurge esse princípio, segundo o qual:

a) não se admite responsabilidade penal objetiva, ou seja, desprovida de

dolo ou culpa (v. art. 19 do CP) ou carente de culpabilidade (v. arts. 21 a

28 do CP); b) a pena há de ser dosada segundo o grau de reprovabilidade

da conduta do agente.

Estação Ca-randiru, dire-ção de Héc-tor Babenco, 2003. Baseado na obra escri-ta pelo mé-dico Drauzio

Varella, o filme faz uma radiogra-fia do sistema carcerário no Bra-sil, tendo como pano de fundo o massacre ocorrido na década de 90, que culminou na morte de 111 presos.

CiNEmATECA

O Supremo Tribunal Federal é o órgão de cúpula do Poder Judi-ciário, e a ele compete a guarda da Constituição Federal. O tribunal é composto por onze Ministros, brasileiros natos, escolhidos dentre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada, e nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.

CurioSiDADE

26

3 Teoria da Norma Jurídico-Penal

28

3.1 TEoriA DA NormA. A NormA JuríDiCo-PENAL

A norma jurídica se apresenta com diversas características, confor-

me a área do Direito que se está analisando. No direito penal, reveste-se

das seguintes características:

a) imperatividade: impõe-se a todos independentemente de sua

vontade ou concordância;

b) exclusividade: somente a ela cabe a tarefa de defi nir infrações

penais;

c) generalidade: incide sobre todos, generalizadamente;

d) impessoalidade: projeta-se a fatos futuros, sem indicar a puni-

ção a pessoas determinadas.

É possível diferenciar lei penal de norma penal. A primeira designa

o enunciado legislativo, ou seja, o fato descrito e a pena a ele cominada

(ex.: no crime de homicídio na forma simples — art. 121, caput, do CP

— a lei penal é: “Matar alguém. Pena — reclusão, de seis a vinte anos”).

A segunda refere-se ao comando normativo implícito na lei, isto é, a

norma de conduta imposta a todos (ex.: no caso do homicídio simples:

“não matarás”).

3.2 CLASSiFiCAÇÃo

Quanto à classifi cação das normas penais, é possível classifi cá-las

como incriminadora e não incriminadora.

A primeira compreende todos os dispositivos penais que descrevem

condutas e lhes cominam uma pena. Compõe-se do preceito ou preceito

primário — descrição da conduta proibida — e da sanção ou preceito

secundário — quantidade e qualidade da(s) pena(s) aplicável(eis). Seu

comando normativo pode ser proibitivo ou mandamental. Nos crimes

comissivos, a lei penal descreve e pune uma ação esperando que todos

se abstenham de praticá-la; trata-se de uma norma proibitiva (ou seja, a

ação prevista em lei é proibida, sob ameaça de pena). Nos crimes omis-

sivos, a lei penal descreve uma omissão (um não fazer), porque espera

de todos, naquela determinada situação, um comportamento ativo;

trata-se de uma norma mandamental (ex.: a lei penal manda agir, sob

pena de, omitindo-se, receber uma pena).

A norma penal não incriminadora, por sua vez, subdivide-se em

explicativa ou complementar, quando fornece parâmetros para a apli-

cação de outras normas (ex.: o conceito de funcionário público para

fi ns penais do art. 327 do CP), e permissiva, quando aumenta o âmbito

Direito Penal

29

de licitude da conduta (e, a contrario sensu, restringe o direito de punir

do Estado).

3.3 NormA PENAL Do mANDATo Em BrANCo – CoNFroNTo Com o PriNCíPio DA LEGALiDADE

Trata-se da lei cujo preceito primário é incompleto, embora o pre-

ceito secundário seja determinado. Tal lei tem de ser completada por

outra, já existente ou futura, da mesma hierarquia ou de hierarquia in-

ferior.

Exemplo: os tipos penais da Lei n. 11.343/2006 são leis penais em

branco, uma vez que punem condutas relacionadas com drogas ilícitas

sem descrever quais seriam essas substâncias (tal informação se encon-

tra em ato administrativo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária

— ANVISA); o art. 237 do CP pune a conduta daquele que contrai ca-

samento tendo ciência da existência de impedimento que lhe cause nu-

lidade absoluta, sendo que tais nulidades não são definidas pelo CP, mas

constam do Código Civil.

É possível classificar a norma penal em branco em sentido lato ou

homogênea e em sentido estrito ou heterogênea.

Entende-se por lei penal em branco homogênea aquela cujo com-

plemento se encontra descrito numa fonte formal da mesma hierarquia

da norma incriminadora, ou seja, quando o complemento também está

previsto numa lei ordinária (ou outra espécie normativa equivalente).

Exemplo: art. 237 do CP (“Contrair casamento, conhecendo a existência

de impedimento que lhe cause a nulidade absoluta”), cujo complemento

se encontra no Código Civil, o qual enumera as causas de nulidade do

matrimônio nos arts. 1.521, 1.517, 1.523 e 1.550.

Em sentido estrito ou heterogênea é aquela cujo complemento está

descrito em fonte formal distinta daquela do tipo penal incriminador.

Exemplo: Lei n. 11.343/2006, art. 33 (tráfico ilícito de drogas), que não

indica quais são as “drogas ilícitas”, delegando tal função a normas admi-

nistrativas (portarias da ANVISA); com efeito, o art. 1º, parágrafo único,

desta Lei dispõe que: “... consideram-se como drogas as substâncias ou os

produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou

relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo

da União”.

3.4 CoNFLiTo APArENTE DE NormAS

Um mesmo fato concreto não pode ser enquadrado em vários tipos

penais, sob pena de afronta ao princípio do non bis in idem (ou ne bis in

Em 6-12-2000 a Anvisa publi-cou a Resolução n. 104 e retirou o cloreto de etila (lança-perfu-me) da Lista F2 (substâncias en-torpecentes ou psicotrópicas), colocando-o na Lista D2 (insumos químicos precursores, que não são proibidos, mas apenas con-trolados pelo Ministério da Jus-tiça). Após uma semana houve a retificação, mas, durante esse período, foi eliminado o caráter criminoso do cloreto de etila. Essa falha da ANVISA gerou a extinção da punibilidade de acusado de comercializar lança-perfume nes-se período pela 2ª Turma do STF (HC 94397).

CurioSiDADE

30

idem). Portanto, se aparentemente ocorrer a incidência de mais de um

tipo penal a um mesmo fato, caberá ao intérprete, socorrendo-se dos

princípios da especialidade, consunção, subsidiariedade ou alternativi-

dade, resolver o confl ito, apontando o correto enquadramento.

Muito embora não exista dispositivo legal tratando do tema ou

consenso doutrinário acerca do assunto (salvo no tocante ao princípio

da especialidade), admitem-se comumente os princípios acima mencio-

nados.

Importante acentuar que só haverá confl ito aparente de normas se

houver um só fato ao qual aparentemente se apliquem várias normas

penais incriminadoras (todas vigentes). Na hipótese de serem vários os

fatos, ter-se-á concurso de crimes (arts. 69 a 71 do CP). Além disso, to-

dos os dispositivos penais aparentemente aplicáveis devem estar simul-

taneamente em vigor, caso contrário surgirá um confl ito de leis penais

no tempo.

3.4.1. Princípio da especialidade (lex specialis derogat generalis)

Dá-se quando existir, entre as duas normas aparentemente inci-

dentes sobre o mesmo fato, uma relação de gênero e espécie. Será espe-

cial e, portanto, prevalecerá a norma que contiver todos os elementos

de outra (a geral), além de mais alguns, de natureza subjetiva ou ob-

jetiva, considerados especializantes. “Toda a ação que realiza o tipo do

delito especial realiza também necessariamente, e ao mesmo tempo,

o tipo do geral, enquanto que o inverso não é verdadeiro” (Jescheck,

Tratado de derecho penal, trad. Mir Puig e Muñoz Conde, Barcelona:

Bosch, 1981, p. 1035, apud Cezar Roberto Bitencourt, Manual de direi-

to penal: parte geral, v. 1, p. 130). Assim, se a mãe mata o fi lho durante

o parto, sob a infl uência do estado puerperal, incorre, aparentemente,

nos arts. 121 (homicídio) e 123 (infanticídio). No primeiro, porque

matou uma pessoa; no segundo, porque essa pessoa era seu fi lho e a

morte se deu no momento do parto, infl uenciada pelo estado puerpe-

ral. O infanticídio contém todas as elementares do homicídio (“matar”

+ “alguém”), além de outras especializantes (“o próprio fi lho” + “du-

rante o parto ou logo após” + “sob a infl uência do estado puerperal”),

o que o torna especial em relação a esse. Percebe-se, então, que toda

ação que realiza o tipo do infanticídio realiza o do homicídio, mas nem

toda ação que se subsume ao homicídio tem enquadramento no tipo

do infanticídio.

Note que esse confl ito se resolve abstratamente, isto é, basta a com-

paração entre as duas normas, em tese, para saber qual delas é a especial

e, por via de consequência, a aplicável. Também é interessante notar que

na relação de especialidade é indiferente se a norma especial é mais ou

menos grave. Acrescente-se que a relação de especialidade se dá entre

tipos fundamentais e secundários (ex.: roubo simples — art. 157, caput,

e roubo agravado — art. 157, § 2º).

VoCABuLário

puerperal: relacionado ao par-to; período que ocorre seguido ao parto.

Direito Penal

31

3.4.2. Princípio da subsidiariedade (lex primaria derogat legi subsidiariae)

A relação de subsidiariedade pressupõe que haja entre as normas aparentemente aplicáveis uma relação de conteúdo a continente. Há uma norma mais ampla (norma primária), porque descreve um grau maior de violação ao bem jurídico, e uma norma menos ampla (norma subsidiária), pois descreve um grau inferior de violação a esse mesmo bem. Ensinava Hungria que “a diferença que existe entre especialidade e subsidiariedade é que, nesta, ao contrário do que ocorre naquela, os fatos previstos em uma e outra norma não estão em relação de espécie e gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa, a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como ‘soldado de reserva’ e aplicar-se pelo residuum” (Comentários ao Código Penal, v. 1, t. 1, arts. 1º a 10, p. 147).

A norma aplicável será sempre a que previr o maior grau de viola-ção (lei primária). Assim, por exemplo, o crime de estupro (art. 213 do CP) contém o de constrangimento ilegal (art. 146 do CP). Se alguém constrange mulher à conjunção carnal, haverá estupro.

Há duas espécies de subsidiariedade:

1ª) expressa: se a norma expressamente declarar que só terá aplica-ção “se o fato não constituir crime mais grave” (a norma se autoprocla-ma “soldado de reserva”) — ex.: art. 132 do CP;

2ª) tácita: verifica-se quando o crime definido por uma norma é elemento ou circunstância legal de outro crime — ex.: art. 304 do CTB (omissão de socorro em acidente de trânsito) em relação ao homicídio culposo na direção de veículo automotor, qualificado pela omissão de socorro (art. 302 c/c o art. 303, parágrafo único, do CTB).

3.4.3. Princípio da consunção ou da absorção (lex consumens derogat legi consumptae)

“Ocorre a relação consuntiva, ou de absorção, quando um fato de-finido por uma norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, bem como quando constitui conduta anterior ou posterior do agente, cometida com a mesma finali-dade prática atinente àquele crime (...). Os fatos não se apresentam em relação de espécie e gênero, mas de minus a plus, de conteúdo a conti-nente, de parte a todo, de meio a fim, de fração a meio” (Damásio de Jesus, Direito penal: parte geral, v. 1, p. 114). Na síntese de Jiménez de Asúa, citado por Damásio (idem, ibidem), a consunção se dá:

“a) quando as disposições se relacionam de imperfeição a perfeição (atos preparatórios puníveis, tentativa — consumação);

b) de auxílio a conduta direta (partícipe — autor);

c) de minus a plus (crimes progressivos);

d) de meio a fim (crimes complexos); e

e) de parte a todo (consunção de fatos anteriores e posteriores) — antefato e post factum impuníveis”.

VoCABuLário

consuntiva: ato ou efeito de consumir, absorver.

32

Convém deter-se na letra e, em que ocorre a relação de parte a todo,

ou a chamada “progressão criminosa”. Em sentido lato, a progressão cri-

minosa inclui:

a) Progressão criminosa em sentido estrito: o agente inicia o iter

criminis com o objetivo de provocar determinada lesão a um bem jurí-

dico; após conseguir seu intento, muda de ideia e busca provocar um

grau maior de violação ao mesmo bem jurídico. Exemplo: o sujeito pre-

tendia lesionar seu desafeto, mas, em meio aos socos e pontapés, decide

tirar-lhe a vida e leva-o a óbito. Só responde pelo homicídio, fi cando as

lesões corporais por ele consumidas.

b) Antefactum impunível: quando um fato anterior menos grave é

praticado como meio necessário para a realização de outro (ex.: o porte

de arma em relação ao homicídio cometido com tal instrumento; o cri-

me de falsidade exclusivamente utilizado com o fi m de cometer estelio-

nato, nos termos da Súmula 17 do STJ).

c) Post factum impunível: quando o agente, após praticar o fato,

provoca nova violação ao mesmo bem jurídico, pertencente ao mesmo

sujeito passivo (ex.: furto e posterior danifi cação ou venda do objeto).

3.4.4. Princípio da alternatividadeEste princípio tem lugar nas infrações penais de ação múltipla ou

conteúdo variado, que são aqueles tipos penais que possuem diversos

núcleos (verbos), separados pela conjunção alternativa “ou”.

Quando alguém pratica mais de um verbo do mesmo tipo penal,

num mesmo contexto fático, só responde por um crime (e não pelo

mesmo crime mais de uma vez). Exemplos: a) aquele que expõe à venda

e, em seguida, vende substância entorpecente pratica um só crime de

tráfi co ilícito de entorpecentes (Lei n. 11.343/2006, art. 33); b) quem

induz e instiga outrem a se suicidar, vindo a vítima a falecer, incorre

uma só vez no delito de auxílio ao suicídio (art. 122 do CP). Anote-se,

entretanto, que em tais casos o juiz deve considerar a incursão em mais

de uma ação nuclear na dosagem da pena, de modo a exacerbar a sanção

imposta ao agente.

VoCABuLário

iter criminis: expressão latina que significa “caminho do cri-me”.

4 Validade e Eficácia da Lei Penal no Tempo

e no Espaço

34

4.1 CoNFLiTo DE LEiS PENAiS No TEmPo

Quando várias leis penais que tratam do mesmo assunto de modo distinto se sucedem no tempo, deve o intérprete defi nir qual delas será aplicada ao fato. A regra é que a lei que deve ser aplicada é a vigente ao tempo da prática do fato criminoso, de acordo com o princípio do tempus regit actum. Contudo, existem exceções e elas se dividem em re-troatividade (aplicação da lei a fatos cometidos antes da sua vigência quando for mais benéfi ca) e ultra-atividade (a lei penal revogada pode ser aplicada após sua revogação, quando o ilícito praticado durante a sua vigência for sucedido por lei mais severa).

Confi ra abaixo as hipóteses de confl ito da lei penal no tempo:

Hipótese prática Significado Solução

Novatio legis

incriminadora

Lei posterior incrimina conduta que era lícita (cria um novo crime)

Irretroatividade

Abolitio criminis Lei posterior descriminaliza con-dutas, tornando-as atípicas

Retroatividade

Novatio legis in

pejus

Lei posterior, mantendo a incri-minação do fato, torna mais grave a situação do réu (ex.: aumenta a pena cominada ao crime)

Irretroatividade

Novatio legis in mellius

Lei posterior, sem suprimir a in-criminação do fato, beneficia de algum modo o agente (ex.: diminui a pena cominada ao crime)

Retroatividade

Em suma, a lei penal mais benéfi ca retroage para atingir os fatos passados (retroatividade) e a lei revogada será aplicada aos fatos cometi-dos durante a sua vigência mesmo quando não estiver mais em vigor e a conduta for regulamentada por lei mais severa (ultra-atividade).

4.2 LEiS EXCEPCioNAiS E LEiS TEmPoráriAS

De acordo com o art. 3º do CP, “A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstân-cias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigên-cia”. É considerada excepcional a lei elaborada para incidir sobre fatos havidos somente durante determinadas circunstâncias excepcionais, como situações de crise social, econômica, guerra, calamidades etc. E temporária aquela elaborada com o escopo de incidir sobre fatos ocorri-dos apenas durante certo período de tempo.

A doutrina costuma afi rmar que as leis excepcionais e temporárias são leis ultrativas, ou seja, que produzem efeitos mesmo após o término

de sua vigência. Na verdade, não se trata do fenômeno da ultratividade,

A súmula 711 do STF diz: “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continui-dade ou da permanência”. Ou seja, se crime cometido na vigên-cia da lei menos grave, mas cuja execução se prolongue até a en-trada em vigor da lei mais grave, poderá ser aplicada esta última. Não há nisso nenhuma violação ao princípio basilar da absoluta irretroatividade gravosa. De fato, a lei mais grave está sendo apli-cada simplesmente porque o cri-me ocorreu durante sua vigência. Embora parte da doutrina discor-de da súmula, ela atualmente é posição majoritária.

ATENÇÃo

Recentemente foi sancio-nada a Lei n. 12.663, de 5 de ju-nho de 2012, conhecida como Lei Geral da Copa. Foi defi nida como temporária porque os tipos penais por ela criados tinham um prazo certo de vigência (até 31-12-2014).

CurioSiDADE

Direito Penal

35

uma vez que, com o passar da situação excepcional ou do período de

tempo estipulados na lei, ela continua em vigor, embora não mais seja

aplicável. O art. 2º, VI, da Lei n. 1.521/51 (Lei dos Crimes contra a Eco-

nomia Popular e contra a Saúde Pública), que vigorou de fevereiro de

1952 a dezembro de 1991, definia como crime a conduta do comerciante

que vendia ou expunha à venda produto acima do preço definido em

tabela oficial (“tabela de congelamento de preços”). Tal dispositivo, que

vigorou por quase 40 anos, permaneceu, durante muito tempo, inaplicá-

vel, salvo em algumas épocas, como na década de 1980, durante o perí-

odo de “congelamento” de preços decorrente do “Plano Cruzado”. Nesse

período, o tipo penal em questão tornou-se aplicável; assim, vários co-

merciantes flagrados vendendo produtos acima do preço oficial foram

investigados e processados criminalmente; superado o período do tabe-

lamento oficial, os processos já instaurados continuaram em andamen-

to, uma vez que a norma não fora, então, revogada: a ação de vender ou

expor à venda produtos acima do preço oficial continuou sendo crime

até sua revogação pelo art. 6º, I, da Lei n. 8.137/90, o qual pune conduta

semelhante, mas com pena maior. O fim do “congelamento” ocorrido

na década de 1980 assinalou, portanto, apenas o término do período de

aplicabilidade da lei, impedindo que fato posterior pudesse ser apenado

com base no dispositivo.

Não se há de falar, portanto, em ultratividade, de modo que fica

superada qualquer alegação de violação ao princípio da retroatividade

benéfica da lei penal (CF, art. 5º, XL). Aliás, nesse sentido já se mani-

festaram consagrados penalistas (v., por todos, José Frederico Marques,

Tratado de direito penal, v. 1, p. 268).

A regra constante do art. 3º do CP tem ainda uma razão prática

evidente, declarada na Exposição de Motivos da Parte Geral do CP: “Esta

ressalva visa impedir que, tratando-se de leis previamente limitadas no

tempo, possam ser frustradas as suas sanções por expedientes astuciosos

no sentido do retardamento dos processos penais”.

4.3 TEmPo Do CrimE

Dentre as três teorias possíveis na matéria: teoria da atividade, teo-

ria do resultado e teoria da ubiquidade (ou mista), o CP adotou a pri-

meira, conforme podemos observar no artigo 4º do Código Penal. Assim

sendo, considera-se praticado o crime ao tempo da ação ou omissão, ainda que outro seja o do resultado.

É fundamental compreender a importância do dispositivo, cuja uti-

lidade se dá para:

a) Delimitação da responsabilidade penal: com base na regra do

art. 4º do CP torna-se possível delimitar o exato momento em que o

agente passará a responder criminalmente por seus atos — isso se dará

somente se a ação ou omissão houver sido praticada quando ele já tiver

Existe um método mnemôni-co que ajuda a decorar as teorias de tempo do crime e o lugar do crime. É só memorizar a palavra LuTA (Lugar do crime, teoria da Ubiquidade e Tempo do crime, teoria da Atividade).

CurioSiDADE

O art. 4º do CP não se apli-ca ao prazo prescricional, que, por força de regra própria (CP, art. 111, I), começa a ser conta-do, em geral, do momento da consumação do crime (e não ao tempo da ação ou omissão). Também não se aplica aos casos em que é possível diminuir a pres-crição pela metade (art. 115 do CP) e para a aplicação da ate-nuante genérica (art. 65 do CP) no caso de o agente ser maior de 70 anos (considera-se a idade no momento da sentença).

ATENÇÃo

36

completado 18 anos de idade (o que ocorre no primeiro minuto de seu

18º aniversário).

b) Delimitação da lei penal aplicável: nos crimes materiais ou de

resultado, a conduta pode ocorrer num momento, e o resultado, depois.

Exemplo: o agente, pretendendo matar seu desafeto, arquiteta uma em-

boscada e, colhendo-o de surpresa, descarrega os projéteis do tambor do

revólver, atingindo gravemente a vítima, a qual passa dois meses inter-

nada em hospital, vindo a falecer (consumando o crime de homicídio

qualifi cado). Imagine que o ofendido tenha sido hospitalizado durante

a entrada em vigor da Lei n. 8.930/94 (que transformou o crime de ho-

micídio qualifi cado em hediondo). Seria, então, de perguntar: o agente

responderá pelo homicídio qualifi cado como crime hediondo ou não?

Observe que no momento da ação (disparos) o delito não era hediondo,

mas ao tempo do resultado (morte), sim. Qual a solução? Por força do

art. 4º do CP, deve-se considerar o momento da conduta; logo, o agente

não terá de sofrer os efeitos penais gravosos da Lei n. 8.072/90 com a

alteração da Lei n. 8.930/94 (crimes hediondos).

4.3.1. A questão do crime continuadoO agente pratica dois fatos quando menor de 18 anos e um terceiro

quando maior, todos em continuidade delitiva. Aos dois primeiros fatos

aplicar-se-á o ECA, e ao último, o CP.

4.4 A LEi PENAL No ESPAÇo

O CP defi niu no art. 6º o lugar do crime, adotando a teoria da ubi-

quidade ou mista, segundo a qual o crime se considera praticado tanto

no lugar da conduta quanto naquele em que se produziu ou deveria pro-

duzir-se o resultado. A preocupação do legislador foi estabelecer quais

crimes podem ser considerados como ocorridos no Brasil e, por via de

consequência, a quais delitos se aplica a lei penal brasileira.

A regra em estudo só terá relevância nos chamados crimes a dis-

tância ou de espaço, que são aqueles cuja execução se inicia no território

de um país e a consumação se dá ou deveria dar-se em outro. Imagine

a hipótese de um agente iniciar a execução de um crime na Argentina,

visando produzir o resultado no Brasil, ou o inverso. Em ambos os casos,

os delitos serão considerados como ocorridos em território nacional, de

modo que a lei penal brasileira a eles se aplicaria. Como dizia Hungria,

basta que o crime tenha “tocado” o território nacional para que nossa lei

seja aplicável.

4.4.1. Foro competenteEm se tratando de determinação de competência territorial (“foro

competente”), deve-se observar a regra do art. 70 do CPP, que considera

Em se tratando de crime per-manente (aquele cuja consuma-ção se prolonga no tempo, como ocorre com o delito de extorsão mediante sequestro — art. 159 do CP), deve-se fazer uma ob-servação: mesmo tendo a ação ou omissão se iniciado antes da maioridade penal, se o agente a prolongou conscientemente ao período de sua imputabilidade penal, terá aplicação o CP.

Juízo, Direção de maria Au-gusta ramos, 2007. Da mes-ma diretora do documentário Justiça, Juízo retrata o julga-mento de ado-

lescentes em confl ito com a lei.

CiNEmATECA

No Brasil a imputabilidade penal se dá aos 18 anos. Quando o indivíduo entre 12 e 17 anos co-meter uma das condutas descri-tas no Código Penal, aplicam-se as medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (são as medidas socioeducativas: ad-vertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semi-liber-dade; internação em estabeleci-mento educacional).

ATENÇÃo

ComENTário

Direito Penal

37

competente o foro do local em que o crime se consumou (ou, no caso de

tentativa, o do local em que se deu o último ato executório).

4.4.2. Territorialidade da lei penal (CP, art. 5º)Dá-se o fenômeno da territorialidade quando a lei penal se aplica

ao fato cometido dentro do território nacional. Conforme dispõe o art. 5º do CP, a lei penal brasileira aplica-se em todo o território nacio-nal, ressalvado o disposto em tratados, convenções ou regras de direito internacional. Trata-se do princípio da territorialidade temperada ou mitigada.

Por território, no sentido jurídico, deve-se compreender todo o es-

paço em que o Brasil exerce sua soberania, que abrange:

a) os limites compreendidos pelas fronteiras nacionais;

b) o mar territorial brasileiro (faixa que compreende o espaço de 12

milhas contadas da faixa litorânea média — art. 1º da Lei n. 8.617/93);

c) todo o espaço aéreo subjacente ao nosso território físico e ao mar

territorial nacional (princípio da absoluta soberania do país subjacente

— Código Brasileiro de Aeronáutica, art. 11, e Lei n. 8.617/93, art. 2º);

d) as aeronaves e embarcações:

— brasileiras privadas, em qualquer lugar que se encontrem, salvo

em mar territorial estrangeiro ou sobrevoando território estrangeiro;

— brasileiras públicas, onde quer que se encontrem;

— estrangeiras privadas, no mar territorial brasileiro.

Como se viu inicialmente, há crimes que, embora praticados den-

tro do território nacional, não se sujeitam à lei brasileira (em função de

ressalvas previstas em tratados ou convenções internacionais): isso se dá

nos casos de imunidade diplomática. Note-se que a embaixada de um

país no Brasil não é considerada território estrangeiro, de modo que, se

um crime ali for praticado, a ele será aplicável a nossa lei, a não ser que

ocorra um caso de imunidade diplomática.

4.4.3. Extraterritorialidade da lei penal (CP, art. 7º)Extraterritorialidade é o fenômeno pelo qual a lei penal brasileira

se aplica a fatos ocorridos fora do território nacional. Subdivide-se em

extraterritorialidade condicionada ou incondicionada. Nesta, a lei bra-

sileira aplicar-se-á ao crime praticado no exterior, independentemente

do preenchimento de qualquer requisito ou condição (art. 7º, I e § 1º).

Naquela, o fenômeno depende da conjugação de uma série de fatores

(art. 7º, II e §§ 2º e 3º).

Fala-se em extraterritorialidade incondicionada nas seguintes hi-

póteses:

a) crime contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;

b) crime contra o patrimônio ou contra a fé pública da União, do

Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios ou dos Territórios, ou suas

Uma das questões mais co-muns em provas e concursos é a que versa sobre a questão do tempo e lugar do crime e a te-oria adotada a respeito. Então, não se esqueça: a) TEMPO DO CRIME: ATIVIDADE; b) LUGAR DO CRIME: UBIQUIDADE; c) FORO COMPETENTE: RESULTADO.

ATENÇÃo

VoCABuLário

mitigada: diminuída; ameniza-da; atenuada.

O Brasil é signatário do Estatu-to de Roma do Tribunal Penal In-ternacional (Decreto n. 4.388, de 2002). O art. 1º do Estatuto dispõe: “(...) O Tribunal será uma institui-ção permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdi-ções penais nacionais”. Os crimes tutelados pelo TPI são: genocí-dio, crimes contra a humanida-de, crimes de guerra e crime de agressão (art. 5º).

Sede do Tribunal Penal Internacional - TPI, Haia, Holanda

CurioSiDADE

38

autarquias, das empresas públicas, das sociedades de economia mista ou

das fundações instituídas pelo Poder Público;

c) crime contra a administração pública brasileira por quem está a

seu serviço;

d) crime de genocídio, se o agente for brasileiro ou domiciliado

no Brasil.

A extraterritorialidade condicionada ocorre em relação às seguin-

tes infrações:

a) crimes previstos em tratado ou convenção internacional que o

Brasil se obrigou a reprimir;

b) crimes praticados por estrangeiro contra brasileiro, fora do nos-

so território (se não foi pedida ou se foi negada a extradição e se houve

requisição do Ministro da Justiça);

c) crimes praticados por brasileiro;

d) crimes praticados a bordo de navio ou aeronave brasileiros pri-

vados, quando praticados no exterior e ali não forem julgados.

A doutrina costuma apontar uma série de princípios que inspira-

ram o legislador a eleger os casos em que a lei de um país deve ser apli-

cada a fatos que se deram no estrangeiro:

a) Princípio da justiça penal universal ou cosmopolita: refere-se a

hipóteses em que a gravidade do crime ou a importância do bem jurídi-

co violado justifi cam a punição do fato, independentemente do local em

que praticado e da nacionalidade do agente. Foi adotado nas letras d da

extraterritorialidade incondicionada e a, da condicionada.

b) Princípio real, da proteção ou da defesa: justifi ca a aplicação da lei penal brasileira sempre que no exterior se der a ofensa a um bem

jurídico nacional de origem pública. Foi adotado nas letras a até c da

extraterritorialidade incondicionada.

c) Princípio da personalidade ou nacionalidade ativa: como cada país tem interesse em punir seus nacionais, a lei pátria se aplica aos bra-sileiros, em qualquer lugar que o crime tenha sido praticado. Foi adota-

do na letra b da extraterritorialidade condicionada.

d) Princípio da personalidade ou nacionalidade passiva: se a víti-ma for brasileira, nosso país terá interesse em punir o autor do crime. Foi

adotado na letra b da extraterritorialidade condicionada (v. CP, art. 7º).

Obs.: ao contrário do que sustentam alguns autores, esse princípio não se confunde com o princípio da proteção, que se refere a bens pú-blicos, o que não ocorre aqui.

e) Princípio da representação ou da bandeira: a lei brasileira se aplica às embarcações ou aeronaves que carreguem nossa bandeira. Foi

adotado na letra d da extraterritorialidade condicionada.

Direito Penal

39

4.4.3.1 Condições aplicáveis aos casos de extraterritorialidade condicionada

São as seguintes:

a) entrada do agente no território nacional (condição de procedi-bilidade);

b) ser o fato punível também no país em que cometido;

c) estar o crime entre aqueles a que a lei brasileira admite a extra-dição;

d) não ter sido o agente absolvido ou não ter cumprido pena no

estrangeiro;

e) não ter sido perdoado e não se tiver extinguido sua punibilidade,

segundo a lei mais favorável (condições objetivas de punibilidade).

4.4.3.2 Extraterritorialidade na Lei de TorturaA Lei n. 9.455, de 1997, que tipifica o delito de tortura (“constranger

alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofri-

mento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração

ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou

omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou

religiosa”), estabelece que seus dispositivos se aplicam “ainda quando o

crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima

brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira”

(art. 2º). Cuida-se, portanto, de situação de extraterritorialidade prevista

em lei especial.

4.4.3.3 Princípio do non bis in idem (CP, art. 8º)Nas hipóteses de extraterritorialidade incondicionada é possível,

em tese, que o agente responda por dois processos pelo mesmo fato, um

no exterior, outro no Brasil, sobrevindo duas condenações. Se isso ocor-

rer, aplicar-se-á o art. 8º, que se funda no princípio do non bis in idem

(o qual proíbe seja alguém condenado duas vezes pelo mesmo fato).

Sendo assim, a pena cumprida no estrangeiro: a) atenua a pena imposta

no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas; ou b) nela é computada,

quando idênticas (detração).

Recentemente há casos cé-lebres de discussão de extradição no Brasil. Em 2015, foi aplicada a pena de morte a dois brasileiros condenados por tráfico de dro-gas na Indonésia, Rodrigo Gularte, de 42 anos, e Marco Moreira, 53 anos. O país negou a extradição. O Brasil também negou a extra-dição de Cesare Battisti, que foi condenado na Itália à prisão per-pétua por homicídio, quando in-tegrava o grupo Proletariados Ar-mados pelo Comunismo. Em 2004, fugiu para o Brasil. Foi preso em 2007. A Itália pediu a extradição, e o STF concordou, mas destacou que extradição é competência do presidente da República. Em 2010, o então presidente Luiz Iná-cio Lula da Silva considerou Bat-tisti alvo de perseguição e negou a extradição. O Supremo voltou a discutir o caso, mas considerou que a decisão do presidente tinha que ser respeitada. (Fonte: G1)

CurioSiDADE

40

5 Teoria do Delito

42

5.1 o CAráTEr FrAGmENTário Do DirEiTo PENAL

Uma das principais características do direito penal reside em sua

fragmentariedade. Apesar da multiplicidade de atos ilícitos existentes,

apenas uma pequena parcela interessa a esse ramo do direito; tal parcela

compreende os atos que ofendem de modo mais grave os bens jurídi-

cos considerados essenciais para o convívio em sociedade. As infrações

penais, portanto, correspondem a um pequeno fragmento extraído da

vasta gama de atos ilícitos.

5.2 CoNCEiTo DE CrimE

Nossa legislação não apresenta, atualmente, um conceito de crime,

como ocorria nos Códigos anteriores (1830 e 1890). Há tempos o legis-

lador se deu conta de que a tarefa de defi nir esse importante instituto

jurídico cabe à doutrina. Os penalistas, então, na tentativa de cumprir

essa árdua missão, apresentam uma série de conceitos, ora enfatizando

o aspecto puramente legislativo (conceitos formais), ora procurando in-

vestigar a essência do instituto (conceitos materiais), ora verifi cando os

elementos constitutivos do crime (conceitos analíticos).

Tradicionalmente, os conceitos analíticos têm sido o foco central da

preocupação dos juristas brasileiros.

5.2.1. Conceito material e formalDo ponto de vista material, crime pode ser defi nido como toda

ação ou omissão consciente, voluntária e dirigida a uma fi nalidade, que

cria um risco juridicamente proibido e relevante a bens considerados

essenciais para a paz e o convívio em sociedade.

Formalmente, crime é a conduta proibida por lei, com ameaça de

pena criminal (prisão, pena alternativa ou multa).

5.2.2. Conceito analíticoComo se antecipou acima, boa parte de nossa doutrina tem subli-

nhado a importância do conceito analítico. Sob o pretexto de investigar

quais os elementos constitutivos do crime, duas grandes teorias despon-

tam no Brasil, a primeira defendendo que crime é o fato típico, antijurí-

dico (ou ilícito) e culpável (teoria tripartida); a outra sustentando ser tal

ilícito o fato típico e antijurídico (ou ilícito) (teoria bipartida).

Não se pode ignorar a existência de autores asseverando que crime

é o fato típico, antijurídico, culpável e punível. Essa visão, contudo, tem

pouco prestígio na doutrina, porquanto se assenta em uma premissa

Para entender a teoria do deli-to, é importante estudar a sua evolução ao longo dos anos. Se for o seu primeiro contato com o assunto, recomendamos a leitu-

ra do capítulo 5 da obra manual de Direito Penal: Parte Geral, Gus-tavo Junqueira e Patricia Vanzolini ou, para um es-tudo mais apro-fundado, a par-tir do capítulo 12 da obra Tra-tado de Direito Penal, volume 1, de Cezar Rober-to Bitencourt.

BiBLioTECA

ATENÇÃo

CrimE = FATO TÍPICO + ANTIJURÍDICO

(Teoria bipartida)

CrimE = FATO TÍPICO + ANTIJURÍDICO + CULPÁVEL

(Teoria tripartida)

Direito Penal

43

frágil: a punibilidade não pode ser considerada elemento do crime, já

que lhe é algo exterior. Note que por punibilidade entende-se a possibi-

lidade jurídica de aplicação da sanção penal. É possível, diante disso, que

um crime tenha ocorrido, mas, por fatores alheios à conduta delitiva,

não se possa aplicar a correspondente sanção. Assim, se um crime foi

cometido há muito tempo, provavelmente o seu responsável não mais

possa ser punido porque o fato terá sido atingido pela prescrição (causa

extintiva da punibilidade — art. 107, IV, do CP). O crime, entretanto,

subsiste, apesar da extinção da punibilidade. Para melhor compreender,

acompanhe este exemplo: A mata B em 1980, mas a autoria desse delito

só vem a ser descoberta em 2005. O homicídio prescreve em 20 anos (CP,

art. 109, I); logo, essa descoberta tardia impedirá a punição do culpado

(A). A prescrição obsta a aplicação da pena, na medida em que extingue

a punibilidade, mas não apaga o crime, que inegavelmente ocorreu (ou

será possível afirmar que, com a prescrição, o homicídio deixou de exis-

tir, ressuscitando a vítima!).

Resta, agora, considerar as duas teorias mais aceitas no Brasil. An-

tes, porém, cabe uma advertência. Costuma-se designar como “clássico”

o autor que diz ser o crime fato típico, ilícito e culpável, e “finalista”

aquele que afirma ser fato típico e ilícito. Embora tais designações sejam

correntes, não são precisas. A aceitação da teoria finalista da ação (que

revolucionou o direito penal da metade do século passado) não implica

necessariamente a conclusão de que o crime é fato típico e antijurídico.

Há, nesse sentido, diversos “finalistas” que defendem ser o crime fato

típico, antijurídico e culpável; dentre eles, Hans Welzel, o precursor da

teoria citada.

Por esse motivo, devem-se reservar as qualificações “clássicos” e

“finalistas” para se referir aos adeptos, respectivamente, da teoria cau-

sal ou naturalista da ação (e psicológica da culpabilidade) e da teoria

finalista da ação (e normativa pura da culpabilidade), que serão estu-

dadas abaixo.

No Brasil, seguindo o caminho inicialmente trilhado por René Ariel

Dotti e Damásio de Jesus, há vários juristas, como Julio Fabbrini Mira-

bete, Luiz Flávio Gomes e Fernando Capez, que se filiam ao entendi-

mento segundo o qual crime é o fato típico e antijurídico.

Outros, porém, como Heleno Cláudio Fragoso, Cezar Roberto Bi-

tencourt e Francisco de Assis Toledo, estão entre os adeptos da tese se-

gundo a qual crime é fato típico, antijurídico e culpável.

O conceito tripartido, elaborado da seguinte forma: fato típico, an-

tijurídico e culpável, é o predominante na doutrina, apesar de haver vá-

rios adeptos da corrente bipartida no Brasil. Quase a totalidade absoluta

dos manuais de Direito penal adota esse sistema.

Importante notar que os efeitos da opção pelo conceito tripar-

tido ou bipartido são muito mais teóricos do que práticos; pois para

ambas as correntes se não houver a culpabilidade não haverá a impo-

sição de pena.

O alemão Hans We l ze l (1904 -1 9 7 7 ) é c o n s i d e r a d o o pai da Teo-ria Finalista da Ação, adotada pela reforma da

Parte Geral do Código Penal Bra-sileiro de 1984. Em virtude de a Teoria Finalista da Ação ter sido recepcionada amplamente por ordenamentos jurídicos fora da Ale-manha, esse pensador é um dos mais famosos estudiosos do Direito Penal Alemão.

AuTor

rEFLEXÃo

Você adota a corrente que defende a teoria bipartida ou a teoria tripartida?

44

5.3 SiSTEmAS PENAiS E oS ELEmENToS CoNSTiTuTiVoS Do CrimE

A expressão “sistemas penais” é pouco utilizada pela doutrina bra-

sileira. Muitos preferem referir-se a “teorias penais”. Assim, por exemplo,

diz-se com mais frequência “teoria clássica” do que “sistema clássico”. A

terminologia “sistema”, entretanto, afi gura-se mais adequada. Na defi -

nição de Kant, sistema é a “unidade dos múltiplos conhecimentos sobre

uma ideia” ou “uma totalidade de conhecimentos ordenada sob princí-

pios”. Sistema penal, portanto, indica um conjunto de teorias intrinse-

camente relacionadas, desenvolvidas durante determinado período da

evolução da dogmática penal.

Atualmente, apontam-se os seguintes sistemas penais:

a) sistema clássico (ou sistema “Liszt/Beling/Radbruch”), que re-

monta ao início do século XX;

b) sistema neoclássico (conhecido também como normativista.

Corresponde ao anterior, acrescido da teoria de Reinhard Frank), sur-

gido em 1907;

c) sistema fi nalista (ôntico-fenomenológico), difundido a partir

da década de 1930;

d) sistema funcionalista (teleológico-racional), que se divide em:

funcionalismo sistêmico (Jakobs) e teleológico (Roxin), dentro dos

quais se desenvolveu a (moderna) teoria da imputação objetiva.

5.4 o SiSTEmA CLáSSiCo (ou SiSTEmA “LiSZT/BELiNG/rADBruCH”)

No fi nal do século XIX, inicialmente com Franz von Liszt, depois

com Beling e Radbruch, surgiu o sistema clássico. Graças às suas teorias,

grandes avanços foram conquistados. Um dos mais marcantes foi afastar

de vez a responsabilidade penal objetiva, já que esses penalistas erigiram o

dolo e a culpa a elementos essenciais do crime, sem os quais ele não existe.

Essa doutrina teve grande infl uência do positivismo científi co, na

medida em que buscava examinar o crime sob um enfoque puramente

jurídico, desprovido de qualquer interferência de outras ciências, como

a sociologia, a fi losofi a ou a psicologia.

No dizer de Roxin, “o conceito clássico de delito (...) estava infl uen-

ciado de modo decisivo pelo naturalismo do fi nal do séc. XIX, que de-

sejava submeter as ciências humanas ao ideal de exatidão das ciências

naturais, alicerçando, em razão disso, o sistema jurídico-penal em dados

da realidade mensuráveis e empiricamente comprováveis” (Funcionalis-

mo e imputação objetiva no direito penal, p. 201).

Franz ritter von Liszt (1851-1919) ju-rista alemão, crimi-nologista e reforma-dor do direito inter- nacional, foi o pro-ponente da escola

jurídica sociológica e histórica. De 1898 até 1917, foi professor de Di-reito Penal e Internacional da Uni-versidade de Berlim.

AuTor

VoCABuLário

erigir: construir, instituir.

Direito Penal

45

O sistema em questão resultou da conjugação de duas importantes

teorias: 1ª) teoria causal ou naturalista da ação; 2ª) teoria psicológica

da culpabilidade. A primeira vê a ação como a inervação muscular, pro-

duzida por energias de um impulso cerebral, que provoca modificações

no mundo exterior (von Liszt). A segunda entende que a culpabilidade

é o vínculo psicológico que une o autor ao fato praticado, por meio do

dolo ou da culpa.

Os penalistas clássicos subdividiam o crime em dois aspectos:

1º) aspecto objetivo: fato típico e antijuridicidade;

2º) aspecto subjetivo: culpabilidade.

O fato típico, para os clássicos, era composto de: ação; tipicidade

(ou seja, adequação perfeita entre o fato humano e o modelo legal abs-

trato — Beling); resultado (visto como modificação causal no mundo

exterior provocada pela conduta); e nexo de causalidade (vínculo que

une a conduta ao resultado).

A ilicitude ou antijuridicidade era consequência inerente à tipicidade

(todo fato típico presume-se ilícito); aquela, contudo, não ocorria quan-

do o fato típico fosse cometido sob o amparo de alguma causa excludente

de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento

do dever legal ou exercício regular de um direito). Além disso, entendia-

-se que tais excludentes, por serem exclusivamente objetivas, dispensa-

vam, para sua constatação, a presença de elementos subjetivos, vale dizer,

agia em legítima defesa mesmo aquele que desconhecesse totalmente a

existência de uma agressão injusta contra si ou terceiro. Por exemplo: A

mata B por vingança, justamente no momento em que este se encontrava

prestes a matar C, fato desconhecido pelo homicida A; embora objetiva-

mente A tenha salvado a vida de C, não matou por ciência, mas por pura

vingança; para os clássicos, A teria agido em legítima defesa de terceiro,

porquanto é irrelevante para tais fins verificar sua intenção.

A culpabilidade era vista como o vínculo psicológico que une o

autor ao fato, por meio do dolo ou da culpa. Tinha como pressuposto

a imputabilidade, entendida à época como capacidade de ser culpável

(ou seja, de reunir maturidade intelectual suficiente para agir dolosa ou

culposamente). Era o liame subjetivo que justificava a punição do autor.

A limitação da culpabilidade à constatação de dolo ou culpa dei-

xava sem resposta inúmeras situações em que a pena não se justificava,

apesar de o agente ter cometido o fato dolosa ou culposamente.

5.4.1. Críticas ao sistema clássicoMuitas das ideias elaboradas pelos clássicos ainda são defendidas

nos dias de hoje, dentre elas a negação da responsabilidade penal obje-

tiva. Outras, no entanto, foram alvo de críticas e acabaram sendo aper-

feiçoadas. Vejamos:

Composição do Fato Típico para os clássicos:l açãol tipicidadel resultadol nexo causal

ATENÇÃo

autor

dolo ou culpa

Culpabilidade(vínculo

psicológico)

Culpabilidadepara os clássicos:

fato

ATENÇÃo

46

a) Os autores clássicos entendiam que a ação, em sentido amplo,

subdividia-se em ação em sentido estrito (ex., um fazer) e omissão (não

fazer). Ambas eram consideradas causais (teoria causal ou naturalista da

ação), ou seja, tanto a ação propriamente dita (fazer) quanto a omissão

(não fazer) geravam relações de causa e efeito. A omissão, contudo, não

dá ensejo a relações de causalidade. Trata-se de um nada, e do nada,

nada vem (ex nihilo, nihil). Não se pode dizer que o não agir é causa real

e efetiva de algum evento. Quem não age, quando muito, deixa de inter-

ferir numa relação de causalidade preexistente, mas não cria uma por si

só. A pessoa que assiste a um homicídio praticado por desconhecido e

nada faz, seja por medo, seja por indiferença, não pode ser considerada

responsável pela morte da vítima, a não ser que possua algum dever ju-

rídico de impedir esse resultado (como o policial). Essa pessoa não cria

a relação de causalidade que leva ao óbito, embora possa nela intervir

de algum modo (ex.: gritando por socorro, empurrando o atirador para

que erre o alvo etc.). Ao policial, entretanto, será imputada a responsabi-

lidade criminal pela morte no momento de sua omissão. O que diferen-

cia a pessoa comum do policial nessa situação não é o comportamento, pois ambos podiam agir e se omitiram, mas o fato de o agente da lei, diferentemente das demais pessoas, ter o dever jurídico de agir e de evi-tar o resultado. A omissão penalmente relevante, portanto, não é causal, mas normativa, é dizer, funda-se na existência de um dever jurídico (ou normativo) de agir visando afastar o resultado.

b) Os clássicos somente examinam a intenção (dolo) do agente no âmbito da culpabilidade, ignorando-a quando da verifi cação da ação.

Ocorre que, ao separarem a intenção da conduta, estão separando, na

teoria, algo indissociável na prática. Todas as pessoas, em função de seus

conhecimentos prévios sobre as relações de causa e efeito, podem ante-

ver, dentro de certos limites, as consequências possíveis de seus atos, diri-

gindo-os a uma fi nalidade que pretendam atingir. Sabemos que ninguém

age sem ter, por detrás, alguma intenção, por mais singela que seja. O

fato de alguém estar lendo esse texto demonstra que toda ação humana

é dirigida a uma fi nalidade. Quem pretende a aprovação num exame ou

concurso público (fi nalidade) sabe que somente com estudo (conduta)

se atinge a meta escolhida. Diante disso, dirige sua ação (estudando) para

alcançar o objetivo a que se propôs (passar no exame). Sendo assim, não

se concebe como a conduta humana penalmente relevante possa ser ana-

lisada sem a intenção que a moveu. Os clássicos incorriam nesse equívo-

co quando reservavam o exame do dolo para a culpabilidade.

c) Como consequência da crítica anterior, essa teoria encontra di-

fi culdades para explicar o crime tentado. Se uma pessoa é fl agrada pu-

lando o muro de uma residência, nela adentrando e pondo suas mãos

sobre um objeto, como é possível enquadrar sua ação num tipo penal

sem saber qual sua intenção? Se o fato é típico, independentemente do

exame do dolo (da maneira como sustentam os clássicos), como saber

qual o fato típico praticado? Violação de domicílio ou tentativa de furto?

Será impossível determinar sem perquirir o propósito do agente. Será

Direito Penal

47

que ele pretendia subtrair aquele objeto que tocou ou somente o admi-

rava para, em seguida, devolvê-lo? Essas considerações são fundamentais

para sabermos qual o fato típico. Sem o exame da intenção, portanto,

não há como descobrir que fato típico houve, e, por vezes, nem sequer

é possível determinar se ocorreu ou não fato típico (como se verá na

próxima crítica).

d) Os elementos subjetivos do injusto. A doutrina havia-se aper-

cebido do fato de que, em determinadas situações, era absolutamente

indispensável examinar a intenção do sujeito (o elemento subjetivo do

injusto) para descobrir se houve crime. Assim, quando um médico passa

suas mãos nas partes pudendas de uma mulher, não temos como saber

se ocorreu algum delito se não analisarmos sua intenção. Se o profissio-

nal estiver realizando um exame ginecológico de rotina, não há ilícito

penal algum, mas se estiver aproveitando-se para dar vazão à sua lascí-

via, ocorre violação sexual mediante fraude (CP, art. 215, com a redação

dada pela Lei n. 12.015, de 2009). O que separa as duas condutas, uma

lícita e outra criminosa, é, tão só, a intenção do sujeito.

e) Para os clássicos, a culpa tem natureza psicológica, quando, na

verdade, tem caráter normativo, já que seu exame demanda um juízo

de valor, por meio da comparação a ser feita pelo juiz entre a conduta

do agente e a de uma pessoa de mediana prudência e discernimento, na

situação em que ele se encontrava.

f) Essa teoria não explica os casos de coação moral irresistível e

obediência hierárquica (em nosso CP, v. art. 22). Se uma pessoa é obri-

gada a produzir um documento falso, sob a mira de uma arma de fogo

municiada, não deve ser condenada pelo crime de falsificação de do-

cumento (não teria cabimento a lei preferir que alguém cedesse a sua

vida a que fabricasse um documento falso). Dessa conclusão ninguém

diverge. Ocorre que, aplicando as teorias sustentadas pelos clássicos, não

há como fundamentar uma decisão absolutória.

5.4.2. resumo dos elementos do crime para os “clássicos”

SISTEMA CLÁSSICO

Aspecto objetivo do crime Aspecto subjetivo do crime

Fato típico (elementos que o compõem)

Ilicitude ou antijuridicidade

Culpabilidade (pressu-posto: imputabilidade)

1) Conduta (ação)

2) Resultado

3) Nexo de causalidade

4) Tipicidade

Estará sempre presen-te, salvo quando o fato típico for praticado sob o abrigo de alguma excludente de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade etc.)

Subdivide-se em duas espécies:

a) dolo, ou b) culpa

48

5.5 SiSTEmA NEoCLáSSiCo (FrANK/mEZGEr)

Muitos dos equívocos acima destacados foram desde logo percebi-

dos pela doutrina alemã, que procurou reelaborar alguns conceitos com

vistas a aperfeiçoar a teoria do crime. Nesse sentido, Reinhard Frank re-

formulou a noção de culpabilidade, visando melhor adequá-la aos pro-

blemas concretos, notadamente às situações de coação moral irresistível

e obediência hierárquica. Esse autor vinculou a culpabilidade à ideia de

reprovabilidade, defendendo que só se pode considerar culpável a con-

duta reprovável socialmente, ou seja, digna de censura. A pessoa que

falsifi ca um documento sob ameaça de morte exercida com emprego de

arma de fogo, embora cometa um crime e aja dolosamente (de modo

consciente e voluntário), não tem escolha na situação concreta, pois, se

não agir dessa forma, morrerá. Em função disso, não se pode exigir do

agente comportamento distinto. Como poderíamos condenar alguém

que agiu exatamente como qualquer um agiria em determinada situa-

ção? Não podemos exigir do réu um comportamento diferente (ou seja,

que não cometa o crime), quando, na situação em que ele se encontrava,

teríamos agido do mesmo modo. Nessas situações excepcionais, o réu

deve ser absolvido, entendendo-se que sua conduta não foi censurável.

Estruturalmente, a teoria desenvolvida por Frank resultou na com-

preensão de que a culpabilidade deveria ser composta por um novo ele-

mento: a exigibilidade de conduta diversa (só age culpavelmente quem,

na situação concreta, poderia ter-se comportado de outro modo).

Ao lado do novo elemento, havia outros dois conhecidos: dolo ou

culpa e imputabilidade (antes vista como pressuposto da culpabilidade,

passa agora a ser considerada seu elemento).

Em resumo, de acordo com a teoria de Frank, denominada “psi-

cológico-normativa da culpabilidade” ou “normativa da culpabilidade”,

uma das bases do sistema neoclássico, a culpabilidade tem os seguintes

elementos: a) imputabilidade; b) dolo ou culpa; c) exigibilidade de con-

duta diversa.

Note-se que o sistema neoclássico tem como pilares, além da nova

teoria da culpabilidade citada, a teoria causal ou naturalista da ação

(oriunda do sistema clássico, até então inalterada).

Com isso percebe-se que Frank solucionou apenas um dos proble-

mas encontrados no sistema clássico, justamente a necessidade de ex-

plicar lógica e juridicamente a absolvição nos casos de coação moral

irresistível e obediência hierárquica; as demais críticas, no entanto, sub-

sistiam.

Procurou-se, ainda, resolver a questão do erro de proibição (o qual

ocorre quando uma pessoa pratica um ato desconhecendo totalmente

que a lei o proíbe; p. ex., alguém se apodera de um relógio perdido na

rua acreditando ter o direito de se apropriar do bem, com base no dito

reinhard Frank (1960-1934), pro-fessor alemão de direito penal e direito interna-cional, foi um dos principais respon-sáveis pela refor-

ma do Código Penal alemão.

AuTor

Edmund mezger e o Direito Penal de seu tempo, de Francisco Muñoz Conde. A obra trata da relação de Mezger com a questão políti-

co-criminal nacional-socialista.

BiBLioTECA

Elementos da Culpabilidade no sistema neoclássico:

• imputabilidade• dolo ou culpa• exigibilidade de conduta

diversa

ATENÇÃo

Direito Penal

49

popular “achado não é roubado”, desconhecendo que a lei pune esse ato,

que configura o crime de apropriação de coisa achada — art. 169, pará-

grafo único, II, do CP). No sistema anterior não havia solução satisfató-

ria para tal situação. Com o escopo de dar uma resposta a esse proble-

ma, alguns autores integrantes do sistema neoclássico “ressuscitaram”

a teoria do dolus malus e, com uma roupagem atualizada para a época,

criaram o chamado “dolo híbrido ou normativo”. Trata-se do dolo que

exige a presença de três elementos: consciência, vontade e consciência da

ilicitude do comportamento. Assim, aquele que age sem ter consciência

da ilicitude de sua conduta não age dolosamente. No exemplo acima

proposto, o agente seria absolvido por falta de dolo. Tal solução, todavia,

não ficou isenta de questionamentos.

Ao afirmar que o dolo contém a consciência da ilicitude, corre-se

o sério risco de tornar impunes criminosos habituais e demais delin-

quentes profissionais. Imagine uma pessoa criada numa grande favela,

que não teve acesso à educação e viveu no meio da violência e da mar-

ginalidade como se isso fosse o normal. É possível que ela não veja mal

algum na venda de certa quantidade de droga para se sustentar. Pode

até considerar esse comportamento correto, segundo seus padrões in-

dividuais. Esse sujeito, então, nunca seria punido criminalmente pelo

tráfico de drogas que cometesse, pois a falta de consciência individual

da ilicitude conduziria, consoante a teoria acima exposta, à ausência de

dolo em suas condutas.

5.5.1. resumo dos elementos do crime para os “neoclássicos”

SISTEMA NEOCLÁSSICO

Aspecto objetivo do crime Aspecto subjetivo do crime

Fato típico (elementos que o compõem)

Ilicitude ou antijuridicidade

Culpabilidade (elemen-tos que a compõem)

1) Conduta

2) Resultado

3) Nexo causal

4) Tipicidade

Estará sempre presente, salvo quando o fato típico for praticado sob o abrigo de alguma excludente de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade etc.)

1) Imputabilidade

2) Dolo ou culpa

3) Exigibilidade de conduta diversa

5.6 SiSTEmA FiNALiSTA (HANS WELZEL)

Em 1931, em sua obra Causalidade e Omissão, Welzel rompe defi-

nitivamente com os sistemas anteriores. Partindo de uma premissa ex-

50

traída de lições da psicologia, Welzel percebe que a fi nalidade constitui a espinha dorsal da conduta humana.

Como já se destacou acima, as pessoas, em função de seus conheci-mentos prévios sobre as relações de causa e efeito, podem antever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de seus atos, dirigindo-os a uma fi nalidade que pretendam atingir. Ninguém age sem ter, por detrás, alguma intenção, por mais singela que seja. Sendo assim, não se concebe como a conduta humana penalmente relevante possa ser analisada sem a intenção que a moveu (esse o fundamento da teoria fi nalista da ação). Os clássicos incorriam nesse equívoco quando reservavam o exame do dolo para a culpabilidade, e foi justamente isso que Welzel corrigiu.

O dolo, elemento indicativo da intenção perseguida pelo agente, não pode ser analisado somente no âmbito da culpabilidade, de modo destacado da ação ou omissão a que se vinculou. Se a fi nalidade é a alma da conduta humana, ele deve ser analisado em conjunto na teoria do crime.

Como consequência, o penalista mencionado passou a sustentar que o dolo e a culpa deveriam fazer parte do fato típico, e não da culpa-bilidade. Assim, grafi camente:

SISTEMA FINALISTA

Fato típico (elementos que o compõem)

Ilicitude ou antijuridicidade

Culpabilidade (elemen-tos que a compõem)

1) Conduta DOLOSA OU CULPOSA

2) Resultado

3) Nexo causal

4) Tipicidade

(...) 1) Imputabilidade

2) (...)

3) Exigibilidade de con-duta diversa

Hans Welzel notou, também, que o dolo deve possuir apenas dois elementos: consciência e vontade (“dolo natural” ou “dolo neutro”). A consciência da ilicitude deve ser retirada do dolo e mantida na culpabi-lidade, mas não como consciência atual (individual), e sim como cons-ciência potencial da ilicitude, como se explicará mais adiante.

Dolo e culpa, como se observa, deslocaram-se para o fato típico, o que motivou o surgimento de um fato típico de crime doloso e outro de crime culposo.

Interessante notar que o próprio Welzel afi rmava não ter trazido nenhum elemento novo à estrutura do crime, apenas os teria distribuí-do corretamente.

As ideias desse autor resultaram em duas novas teorias: teoria fi -nalista da ação e teoria normativa pura da culpabilidade, os pilares do sistema fi nalista.

Antes de prosseguir, convém uma última e breve advertência: rotu-lar alguém de “clássico” ou “fi nalista”, portanto, equivale a identifi cá-lo como seguidor da teoria causal da ação e psicológica da culpabilidade

ou da teoria fi nalista da ação e normativa pura da culpabilidade.

A teoria fi nalista de Welzer “retira” dolo e culpa da culpabi-lidade e a torna componente do fato típico.

ATENÇÃo

Direito Penal

51

5.6.1. Teoria finalista da açãoSustenta que a ação não é mero acontecer causal, mas sim um acon-

tecer final. A finalidade está sempre presente porque o homem, graças ao

seu saber causal (conhecedor das leis da causa e efeito), pode direcionar

sua ação para a produção de um resultado querido. Ação e finalidade

são inseparáveis. A teoria causal, ao separar o dolo da ação, separa juri-

dicamente o que é inseparável no mundo real. Acompanhe o exemplo a

seguir, confirmando que o dolo está na ação e não na culpabilidade. O

art. 124 do CP tipifica o crime de autoaborto. Trata-se de delito punido

apenas na forma dolosa. Logo, se uma gestante ingere, acidentalmente,

um comprimido, desconhecendo seu efeito abortivo, não responderá

pelo crime. Pergunta-se, então, por quê? E a resposta evidente é: porque

o fato é atípico (a lei não pune o aborto culposo). Adotando-se o sistema

clássico, entretanto, teríamos um fato típico e antijurídico, pois a falta de

dolo, nesse sistema, não conduz à atipicidade do comportamento, mas leva à exclusão da culpabilidade. Na prática, significa que o Ministério Público, por esse sistema, mesmo após constatar com absoluta seguran-ça que a mãe não agiu dolosamente, deveria denunciá-la pelo crime do art. 124 do CP, cabendo ao juiz (com base no art. 415 do CPP) ou ao Júri absolvê-la. Com o sistema finalista, entretanto, tal absurdo pode ser evitado. Quando o membro do MP conclui categoricamente que não houve dolo, tem diante de si um fato atípico, com base em que pode validamente postular o arquivamento do inquérito policial.

5.6.2. Estrutura do crime no sistema finalista

5.6.2.1. Fato típicoGraças à teoria finalista, foi possível diferenciar um fato típico de

crime doloso e outro de crime culposo (afinal, o dolo e a culpa saíram da culpabilidade e se agregaram ao fato típico, ao lado da conduta, que pode ser dolosa ou culposa).

FATO TÍPICO

Crime doloso Crime culposo

Conduta dolosa Conduta voluntária

Resultado voluntário (nos crimes materiais)

Resultado involuntário

Nexo de causalidade (entre conduta e resultado, nos crimes materiais)

Nexo de causalidade (entre conduta e resultado)

Tipicidade Tipicidade

Quebra do dever de cuidado obje-tivo (imprudência, negligência ou imperícia)

Previsibilidade objetiva do resultado

No Brasil os únicos crimes jul-gados pelo Tribunal do Júri são os dolosos contra a vida: homicídio, infanticídio, aborto e induzimento, instigação ou auxílio a suicídio.

CurioSiDADE

52

5.6.2.2. IlicitudeNo âmbito da ilicitude, destaca-se a seguinte inovação: com a im-

portância conferida à fi nalidade da conduta, passou-se a sustentar que todas as causas excludentes de ilicitude possuem um elemento subjeti-vo, ao lado dos requisitos objetivos exigidos por lei. Assim, na legítima defesa, além da existência de uma agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio, que se refute moderadamente com os meios necessários (CP, art. 25), é preciso que a pessoa aja com a intenção de defender-se ou de defender terceiro.

5.6.2.3. CulpabilidadeComo se viu, a retirada do dolo e da culpa da culpabilidade pro-

moveu sua reestruturação, passando ela a conter os seguintes elementos:

a) imputabilidade; b) exigibilidade de conduta diversa; e c) potencial

consciência da ilicitude.

Segundo a teoria de Welzel, todos os elementos da culpabilidade

têm natureza normativa, porquanto implicam um juízo de valor (daí o

nome teoria normativa pura da culpabilidade).

O elemento potencial consciência da ilicitude não constitui, pro-

priamente, uma novidade. De fato, foi ele destacado do dolo, onde se

encontrava até então. No sistema anterior, o dolo compunha-se de cons-

ciência e vontade (elementos psicológicos), e consciência da ilicitude

(elemento normativo) (“dolo híbrido ou normativo”). A partir do fi -

nalismo, passou a conter somente os dois primeiros elementos (“dolo

natural” ou “neutro”). A consciência da ilicitude, por sua vez, permane-

ceu na culpabilidade, porém não como consciência atual, mas potencial.

Com outras palavras, a simples falta de compreensão acerca do caráter

ilícito do fato não mais é sufi ciente para isentar o agente de respon-

sabilidade penal. Quando isso ocorrer, justifi car-se-á tão somente uma

redução da pena. Só haverá isenção total da pena quando a pessoa, além

de desconhecer a ilicitude de comportamento, nem sequer possuir con-

dições, em função da realidade em que viveu e foi criada, de alcançar tal

compreensão. Da mesma forma: se o sujeito não sabia que agia ilicita-

mente, mas tinha condições de sabê-lo, merecerá uma pena menor; se,

contudo, essa pessoa, por mais inteligente e atenta que fosse, nunca teria

tido condições de perceber a ilicitude do comportamento, não respon-

derá criminalmente pelo ato. Nossa legislação adotou essa sistemática,

como se constata no art. 21 do CP.

5.6.3. Teoria social da ação (Wessels e Jescheck)

A teoria social da ação pode ser enquadrada dentro do sistema

fi nalista, uma vez que incorpora boa parte de seus postulados. Foi con-

cebida visando suplantar o conceito fi nalista e, por essa razão, agregou

um elemento até então inexistente ao conceito de ação, qual seja, a

Conteúdo da Culpabilidade no Finalismo:

• imputabilidade• exigibilidade de conduta

diversa • potencial consciência da

ilicitude

ATENÇÃo

Para aprofundar os conhecimen-tos sobre o com-plexo universo da Culpabilida-de sugerimos: Culpabilidade, de Davi de Paiva

Costa Tangerino, Editora Saraiva.

BiBLioTECA

Direito Penal

53

relevância social. Desse modo, a ação passa a ser entendida como a

conduta socialmente relevante, dominada ou dominável pela ação e

dirigida a uma finalidade. Tal concepção não angariou muitos adep-

tos, dentre outros motivos, pelo fato de que a teoria social da ação faz

com que condutas socialmente aceitas constituam irrelevantes penais,

o que, em última análise, significa a revogação de uma lei penal por um

costume social.

5.7 SiSTEmA FuNCioNALiSTA

5.7.1. introduçãoNo direito penal moderno tem-se travado um debate ainda sem so-

lução definitiva: deve a dogmática penal ser entendida à luz da função

(missão) do direito penal (funcionalismo) ou deveria ela ser estruturada

a partir de dados empíricos (causalismo e finalismo)?

A última opção, além de ser aquela tradicionalmente aceita, tem a

seu favor a segurança jurídica que advém de seus critérios bem definidos

(ação, nexo causal, dolo e culpa). Contra ela se aduz a injustiça de algu-

mas de suas soluções (ex.: regressus ad infinitum), adotadas em nome da

“harmonia do sistema”.

A primeira revoluciona o direito penal e propõe que mais impor-

tante que a “beleza estética” do sistema é a busca de soluções justas.

É a mais aceita na Europa e tem ganhado corpo na América Latina.

Pesa contra ela a crítica de que se apoia em critérios fluidos, por vezes

não delimitados completamente (ex.: risco permitido). Essa concepção

é denominada funcionalismo, isto é, a tese segundo a qual a dogmática

deve ser interpretada à luz da função do direito penal. No seu contexto

é que se deu o desenvolvimento da teoria da imputação objetiva: “A im-

putação objetiva, ao considerar a ação típica uma realização de um ris-

co permitido dentro do alcance do tipo, estrutura o ilícito à luz da fun-

ção do direito penal. Esta teoria utiliza-se de valorações constitutivas da

ação típica (risco não permitido, alcance do tipo), abstraindo de suas

variadas manifestações ônticas” (Claus Roxin, Sobre a fundamentação

político-criminal do sistema penal, in Estudos de direito penal, trad. Luís

Greco, p. 79-80).

Seus principais seguidores são Claus Roxin (funcionalismo racional-

-teleológico) e Günther Jakobs (funcionalismo sistêmico). Esses penalis-

tas divergem, entretanto, quanto à função do direito penal, o que reflete

decisivamente em seu modo de pensar a dogmática penal (embora sejam

ambos adeptos da teoria da imputação objetiva, com pequenas variações).

A grande distinção entre as teorias de Roxin e Jakobs funda-se no

fato de que aquele propõe limitações expressas ao direito de punir esta-

tal, o que não se vê neste.

54

Comparem-se, abaixo, as palavras de cada um dos citados autores:

Roxin: “Os limites da faculdade estatal de punir só podem resultar da

fi nalidade que tem o direito penal no âmbito do ordenamento estatal.

(...). Penso que o direito penal deve garantir os pressupostos de uma

convivência pacífi ca, livre e igualitária entre os homens, na medida

em que isso não seja possível através de outras medidas de controle

sociopolíticas menos gravosas” (Claus Roxin, Que comportamentos

pode o Estado proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das

proibições penais, in Estudos de direito penal, trad. Luís Greco, p. 32).

Complementa o autor: “... a fi nalidade do direito penal (...) é carac-

terizada como ‘proteção subsidiária de bens jurídicos’. São chamados

bens jurídicos todos os dados que são pressupostos de um convívio

pacífi co entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade; e sub-

sidiariedade signifi ca a preferência de medidas sociopolíticas menos

gravosas” (p. 35).

Jakobs: “... a garantia jurídico-penal da norma deve garantir a segu-

rança de expectativas”. Nesse sentido, “a pena deve reagir mediante

um comportamento que não possa ser interpretado como compatível

com um modelo de mundo esboçado pela norma” (Günther Jakobs,

A proibição de regresso nos delitos de resultado, in Fundamentos do

direito penal, trad. André Luís Callegari, p. 93). Em outras palavras, “a

fi nalidade da pena é a manutenção estabilizada das expectativas so-

ciais dos cidadãos. Essas expectativas são o fundamento das normas,

ou seja, dos modelos de conta orientadores do contato social. A pena,

consequentemente, tem a função de contradizer e desautorizar a deso-

bediência da norma. O direito penal, portanto, protege a validade das

normas e essa validade é o ‘bem jurídico do direito penal’” (Enrique

Bacigalupo, Direito penal: parte geral, trad. André Estefam, p. 184).

5.7.2. imputação objetiva

5.7.2.1. ConceitoA imputação objetiva constitui uma teoria, fundada em sua con-

cepção moderna por Claus Roxin, por meio da qual se sustenta que um

resultado só pode ser atribuído a quem realizou um comportamento ge-

rador de um risco relevante e proibido, que se produziu neste resultado.

Luís Greco a defi ne como “o conjunto de pressupostos que fazem

de uma causação uma causação típica, a saber, a criação e realização

de um risco não permitido em um resultado” (A teoria da imputação

objetiva — uma introdução, in Claus Roxin, Funcionalismo e imputação

objetiva no direito penal, p. 15).

5.7.2.2. OrigemHá uma “genealogia ofi cial” da imputação objetiva, construída por

seu criador (Claus Roxin), que assim se segue:

AuTor

Sobre a impu-tação objetiva recomendamos: Tratado de Direito Penal, vol. 1, de Cezar Roberto Bi-tencourt, Editora Saraiva.

um Panorama da Teoria da imputa-ção objetiva, de Luís Greco.

BiBLioTECA

Claus roxin, nasci-do em 15-5-1931, em Ham bur go, é um dos mais infl u-entes dog máti cos do direito penal alemão, tendo

con quistado reputação nacio-nal e internacional nesse ramo. É detentor de inúmeros doutora-dos honorários e já proferiu pa-

lestras no Brasil. Günther Jakobs, nascido em Mön-chengladbach, em 26-7-1937, é catedrático emérito de Direi-

to Penal e Filosofi a do Direito pela Universidade de Bonn, Alemanha. É autor do polêmico livro Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht).

Direito Penal

55

— Karl Larenz, em 1927, define o conceito de imputação para o

direito em sua tese de doutorado, intitulada A teoria da imputação de

Hegel e o conceito de imputação objetiva. O problema básico que se

procura resolver é o seguinte: quais são os critérios adequados para se

distinguir entre as consequências de nossos atos que nos podem ser atri-

buídas como obra nossa e quais são mera obra do acaso?

— Richard Honig, em 1930, transporta para o direito penal a con-

cepção de Larenz, por meio de seu ensaio intitulado Causalidade e im-

putação objetiva. Partindo da antiga polêmica entre a teoria da equiva-

lência dos antecedentes e a teoria da causalidade adequada (v. Cap. V,

item 4, abaixo), no sentido de estabelecer o critério mais acertado para

se atribuir a uma pessoa um resultado, Honig conclui que não se pode

admitir seja a comprovação de uma relação de causalidade material o

aspecto mais importante da teoria do crime. Deve-se, ao revés, verificar

quais são as exigências jurídicas para que se estabeleça um liame entre

ação e resultado.

— Claus Roxin, em 1970, elabora o ensaio Reflexões sobre a pro-blemática da imputação no Direito Penal, publicado em obra que co-memorava os 70 anos de Honig, em que resgata o ponto de partida deste autor (rejeição da importância da causalidade material) e elabora as bases da “moderna” teoria da imputação objetiva (fundada no prin-cípio do risco).

Importante acrescentar que Günther Jakobs também se inclui entre os adeptos da imputação objetiva, embora discorde de Roxin quando este sustenta que se deve abandonar o nexo de causalidade fundado na teoria da equivalência dos antecedentes. Para Jakobs, a imputação de um resultado a uma conduta dá-se em duas etapas: 1ª) verifica-se se houve nexo causal; 2ª) analisa-se a existência de imputação objetiva entre a conduta e o resultado, de modo que esta teoria atua como um freio (e não como substituta) da relação de causalidade material.

5.7.2.3. Substituição da relação de causalidade material

Claus Roxin procura elaborar uma teoria geral da imputação obje-tiva, aplicável aos crimes materiais. Para o autor, a imputação objetiva deve substituir a relação de causalidade, abandonando-se o “dogma da causalidade”. No Brasil, Damásio de Jesus segue a mesma orientação.

Para Günther Jakobs, contudo, não há como abrir mão de um míni-mo de causalidade material na aferição da responsabilidade penal. A im-putação objetiva serviria, então, para restringir o alcance do nexo causal fundado na teoria da equivalência. É a opinião, entre outros, de Enrique Bacigalupo e Juarez Tavares.

Vê-se, portanto, que, enquanto Roxin propõe a substituição da re-lação de causalidade material pela imputação objetiva, Jakobs assevera que não se deve abrir mão da relação de causalidade física, servindo a imputação objetiva como uma espécie de freio.

56

Parece-nos que, em face de nosso ordenamento jurídico, notada-

mente por conta do art. 13, caput, do CP, deve-se preferir a concepção

de Jakobs.

“A sequência da comprovação da imputação objetiva exige que, de

início, se estabeleça uma relação de causalidade entre o resultado tí-

pico (por exemplo, interrupção do estado de gravidez, no crime de

aborto) e uma determinada ação. Em seguida, deve-se verifi car: 1º)

se essa ação no momento de sua execução constituía um perigo ju-

ridicamente proibido (se era socialmente inadequada); e 2º) se esse

perigo é o que se realizou no resultado típico produzido” (v. Enrique

Bacigalupo, Direito penal: parte geral, trad. André Estefam, p. 248).

Em suma: deve-se determinar, primeiramente, a relação de causa-

lidade, nos termos (inafastáveis) do art. 13, caput, do CP. Em seguida,

deve-se verifi car a relação de imputação objetiva.

Importante ressaltar que a adoção da teoria não depende de refor-

ma legislativa, porquanto a relação de imputação objetiva caracteriza

elemento normativo implícito de todo tipo penal, podendo, assim, ser

extraída do princípio constitucional da legalidade (art. 5º, XXXIX).

5.7.2.4. Insuficiência das teorias tradicionaisA relação de imputação objetiva dá-se quando for possível atribuir

a alguém a criação de um risco juridicamente proibido e relevante e a

produção de um resultado jurídico, como consequência daquele.

A preocupação central da teoria é identifi car os critérios jurídicos

para que alguém possa ser considerado o responsável por determina-

do resultado jurídico, não do ponto de vista meramente causal (relação

causa-efeito), mas sob um aspecto valorativo, vale dizer, quando é justo

considerar alguém como o verdadeiro responsável por determinada le-

são ou ameaça de lesão a algum bem jurídico.

A teoria da imputação objetiva (na concepção que adotamos) bus-

ca restringir o alcance no nexo de causalidade, fundado na teoria da

equivalência dos antecedentes, cuja extensão conduz a situações injustas

e, às vezes, absurdas: afi rmar a existência de nexo de causalidade entre a

ação do vendedor de uma arma de fogo (ou até do fabricante!) e a morte

provocada com o tiro do revólver confi gura demasiado exagero.

Tradicionalmente, apesar da existência da relação de causalidade,

diz a doutrina que nem o vendedor nem o fabricante respondem pela

morte, pela falta de imputação subjetiva (ex.: falta de dolo). A solução

proposta é justa, mas não resolve todas as situações. E se o vendedor

agisse com dolo? Imagine que A, pretendendo matar B, conhecido polí-

tico, dirija-se à loja de C para comprar um revólver (apresentando toda

a documentação necessária). O vendedor C, coincidentemente, toma

conhecimento da intenção de A, porque o ouve conversando ao tele-

fone. Ao vender a arma de fogo, o comerciante C deseja e espera que o

crime se consume, já que considera o político B um corrupto. Pois bem,

Direito Penal

57

apura-se que B fora morto por A, o qual se utilizou do instrumento bé-

lico vendido por C. Nesse exemplo há, indubitavelmente, nexo objetivo

entre a venda e o homicídio; afinal, sem o negócio jurídico a morte não

ocorreria da maneira como se deu, de sorte que a ação do comerciante

C é causa do resultado. Há, também, vínculo subjetivo, de modo que

o vendedor deveria ser responsabilizado pelo homicídio doloso! Nada

mais absurdo, sobretudo diante de tantos fatores, alheios à conduta do

vendedor, que interferiram no desfecho letal. Este não possuía domínio

algum sobre o desenrolar causal dos fatos; além disso, o controle sobre o

uso do revólver por seu adquirente extrapola, em muito, o papel social

que se espera do vendedor. Ao concluir pela responsabilidade do vende-

dor estaríamos punindo sua ideia!

Qual a diferença, do ponto de vista prático, entre a atitude do ven-

dedor que realiza o negócio sabendo ou esperando o resultado e a da-

quele que faz exatamente a mesma coisa, sem ter o menor conhecimen-

to do destino do bem? Apenas o pensamento diferencia uma situação

da outra. Quando um comerciante vende arma de fogo a um policial,

mesmo sabendo que o adquirente é um agente da lei e esperando que

faça bom uso do revólver, se efetivamente várias vidas forem salvas em

serviço graças ao instrumento bélico, nenhum mérito ou crédito terá o

vendedor. Se a ele não se atribuem os louros, também não deve arcar

com os ônus.

Aplicando-se a esse problema a teoria da imputação objetiva, che-

ga-se a um resultado justo e convincente. Com ela, exige-se que a condu-

ta do vendedor do automóvel tenha criado um risco juridicamente proi-

bido e relevante ao bem jurídico lesado (no caso, a vida do político B). O

comportamento do vendedor, no entanto, não gera nenhum perigo (ou

risco) proibido à vida de terceiros. Não faz parte de seu papel social zelar

pelo bom ou mau uso do veículo por seu adquirente. Por esse motivo,

embora haja nexo causal e dolo, ele não responde pela morte, pela falta

de imputação objetiva. Acrescente-se que uma conduta inicial lícita não

conduz seu autor à responsabilidade por ações posteriores ilícitas prati-

cadas por terceiro (princípio da proibição do regresso).

5.7.2.5. Natureza jurídicaA relação de imputação objetiva constitui elemento do fato típi-

co (elemento normativo implícito), cuja função é servir como critério

limitador à relação de causalidade material. Serve para barrar aquelas

situações injustas, em que a aplicação rigorosa da teoria da equivalência

dos antecedentes conduz a soluções absurdas.

O sistema funcionalista, dentro do qual se insere a teoria da impu-

tação objetiva, opõe-se ao finalismo quanto ao seu método. Ontologicis-

ta (ou empírico) neste e normatizante naquele.

Esquematicamente, o fato típico, nessa nova concepção, conteria os

seguintes elementos: a) conduta (dolosa ou culposa); b) resultado (nos

A teoria da imputação obje-tiva cada vez mais é a citada em nossos tribunais:

“À luz da teoria da impu-tação objetiva, assentou que o modo de agir da ré não criara situação de risco não permitido, apta a vislumbrar, se comprova-do pelo parquet, o relevo penal do comportamento, quer sob o ângulo da autoria, quer sob o da participação”. AP 470/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, 10, 12 e 13-9-2012. (AP-470). Informativo STF 679/2012.

CurioSiDADE

58

crimes materiais ou de resultado); c) nexo de causalidade (nos crimes materiais ou de resultado); d) tipicidade; e) imputação objetiva (ele-mento normativo implícito), o qual se desdobra no exame da criação de um risco proibido e na realização do risco no resultado.

A ilicitude e a culpabilidade não são afetadas dentro do novo sis-tema. É certo, porém, que muitos problemas penais que antes eram so-lucionados sob o prisma da licitude passam a ser tratados, com a apli-cação da teoria da imputação objetiva, como fatos atípicos (é o caso da violência desportiva, das intervenções cirúrgicas e do consentimento do

ofendido).

5.7.3. Linhas mestras da imputação objetiva segundo roxin

Roxin afi rma que a imputação objetiva possui as seguintes linhas mestras (que correspondem a três níveis de imputação): criação de um risco relevante e proibido + realização do risco no resultado + resultado dentro do alcance do tipo.

5.7.3.1. Criação de um risco relevante e proibidoPara que exista imputação objetiva o agente tem de produzir (ou au-

mentar) um risco relevante e proibido, caso contrário (i. e., riscos irrele-vantes, permitidos ou diminuídos), ter-se-á um fato penalmente atípico.

a) Riscos irrelevantes

Os riscos gerais da vida são irrelevantes penalmente. Quem se apro-veita de tais riscos não pode ser considerado como responsável pelo re-sultado. Este não será obra sua, mas desses riscos gerais da vida (ex.: aquele que instiga alguém a praticar um esporte radical ou a fazer uma viagem de carro numa estrada perigosa não pode ser responsabilizado pela morte da pessoa, ainda que tenha desejado esse resultado).

b) Riscos permitidos

A criação de riscos permitidos afasta a imputação objetiva do re-sultado (e, como consequência, a responsabilidade penal). Assim, por exemplo, os riscos autorizados em face de sua utilidade social, como o decorrente do tráfego de automóveis (de acordo com as regras de trânsi-to), a correta utilização da lex artis (no caso da Medicina, da Engenharia etc.), a prática de esportes, entre outros.

Também se entendem por risco permitido as situações às quais se aplica o princípio da confi ança:

I) confi ança de que a conduta de terceiros realizada na sequência será conforme o direito. Exemplo: o motorista que conduz pela via pre-ferencial confi a que o outro irá aguardar sua passagem; se isso não acon-tece, não se pode imputar àquele que trafegava na via principal respon-sabilidade alguma pelo acidente, ainda que fosse possível a ele evitá-lo, por exemplo, dando a passagem ao outro motorista;

II) confi ança de que aquele que realizou uma conduta preceden-te cumpriu corretamente seu papel. Exemplo: o médico que utiliza um

Direito Penal

59

material cirúrgico confia que seus assistentes o esterilizaram correta-mente; caso isso não tenha ocorrido, o médico não poderá responder pela infecção contraída, cabendo tal responsabilidade exclusivamente aos seus assistentes.

c) Diminuição do risco

Quando alguém realiza um comportamento que diminui um risco proibido e relevante gerado por terceiro, não age de modo contrário ao direito e, por óbvio, não será responsabilizado criminalmente por sua conduta. Exemplo: a pessoa que consegue convencer um ladrão a sub-trair mil reais em vez de cinco mil não responde por furto, embora tenha

influenciado no ato do furtador.

5.7.3.2. Realização do risco proibido e relevante no resultado

Quando houver a criação de um risco relevante e proibido, será pre-

ciso verificar se ele efetivamente se produziu no resultado, a fim de que este possa ser imputável objetivamente ao autor.

a) Causas imprevisíveis (cursos causais extraordinários) Não se pode imputar a alguém um resultado quando o agente não tinha con-trole sobre o desenrolar causal dos acontecimentos. O responsável pelo atropelamento de um pedestre não responde pela morte deste se ela se deu por conta de um incêndio no hospital. Esta hipótese é expressamen-te solucionada em nosso CP, no art. 13, § 1º.

b) Riscos que não tiveram nenhuma influência no resultado (que teriam ocorrido de qualquer maneira)

Quando se verifica que o resultado teria ocorrido de qualquer modo, ainda que o agente empregasse a diligência recomendada, não se pode imputar a este objetivamente o resultado produzido. Exemplo: o fabricante de um pincel com pelo de cabra deixa de fornecer equipa-mentos adequados de proteção individual a seus funcionários que vêm a contrair uma infecção letal; comprova-se, posteriormente, que se tratava de um bacilo até então desconhecido, cujo contágio seria inevitável, ain-da que todos os equipamentos e normas técnicas de segurança fossem observados.

c) Resultados não compreendidos no fim de proteção da norma

É preciso verificar qual a finalidade da norma de cuidado, vale dizer, o que ela visava proteger. Para que haja imputação objetiva, será preciso que o agente tenha produzido um resultado compreendido dentro do fim de proteção da norma. Exemplo: há uma norma que exige dos ciclis-tas, durante à noite, que se utilizem de um farol. Essa norma tem como finalidade evitar acidentes pessoais. Se dois ciclistas andam com farol apagado, e o que vai à frente é abalroado por um caminhão, não se pode imputar esse resultado ao outro ciclista, ainda que se demonstrasse que o fato de ele ter utilizado o farol evitaria a morte do ciclista que seguia à frente. A norma de proteção visa evitar acidentes pessoais, e não de terceiros.

60

5.7.3.3. Risco compreendido no alcance do tipo

Há casos em que, mesmo tendo-se verifi cado a realização de um

risco proibido no resultado, constata-se que, no caso concreto, “o al-

cance do tipo, o fi m de proteção da norma inscrita no tipo (ou seja, da

proibição de matar, ferir, danifi car etc.) não compreende resultados da

espécie do ocorrido, isto é, quando o tipo não for determinado a im-

pedir acontecimentos de tal ordem. Esta problemática é relevante em

especial nos delitos culposos” (Claus Roxin, Funcionalismo e imputação

objetiva no direito penal, trad. Luís Greco, p. 352). Em termos de crimes

dolosos, há três hipóteses em que se aplica o critério ora exposto: a)

autocolocação dolosa em perigo; b) heterocolocação consentida em pe-

rigo; c) âmbito de responsabilidade de terceiros.

a) Autocolocação dolosa em perigo

A vítima que se coloca dolosamente numa situação de perigo ex-

clui, com essa atitude, a responsabilidade de terceiros pelas lesões que

vier a sofrer. Exemplo: a pessoa que pratica contato sexual desprotegida

com um portador do vírus HIV, ciente dessa circunstância, afasta a res-

ponsabilidade do parceiro decorrente do contágio venéreo.

b) Heterocolocação consentida em perigo

A mesma solução se aplica quando a vítima consente em que ou-

trem a coloque numa situação de perigo, como no caso de quem pede

carona a um motorista visivelmente embriagado, vindo a ferir-se num

acidente automobilístico.

c) Responsabilidade de terceiros

A responsabilidade de terceiros no resultado afasta a imputação ob-

jetiva de quem deu início ao processo causal. É o caso do erro médico.

Para Roxin, quando o erro substitui o perigo gerado, só o médico res-

ponde pelo resultado (ex.: a morte do paciente por choque anafi lático

afasta a responsabilidade pelo óbito de quem havia lesionado o falecido).

Quando, por outro lado, o erro não impede a realização do resultado, é

preciso distinguir se o médico agiu com culpa leve (hipótese em que

haverá responsabilidade do médico e da pessoa que havia provocado as

lesões no falecido) ou culpa grave (só o médico responde).

5.7.4. A imputação objetiva segundo JakobsGünther Jakobs estrutura a teoria da imputação objetiva a partir

das seguintes premissas:

5.7.4.1. A imputação objetiva é vinculada a uma sociedade concretamente considerada

Jakobs afi rma que a imputação, enquanto forma, isto é, a tarefa de

determinar quando alguém deve responder por seus atos, sempre acom-

panhou a humanidade, como já se via no exemplo bíblico de Adão e Eva,

Direito Penal

61

em que aquele procurou justificar-se perante Deus, dizendo que a maçã

que havia comido lhe fora dada pela mulher que Ele havia criado (ou

seja, num misto de relato e defesa, tentava eximir-se de responsabilidade

alegando que o fizera confiando na mulher que o próprio Criador lhe

enviara).

O conteúdo da imputação, vale dizer, os critérios para atribuir a al-

guém a responsabilidade por seus atos, depende de uma sociedade con-

cretamente considerada.

5.7.4.2. O contato social gera riscosTodo contato social gera algum risco, sendo este inerente à vida

em sociedade. Isso se vê num simples aperto de mão (que pode trans-

mitir germes), no ato de servir uma comida (que pode estar estraga-

da), em atitudes como deixar que os filhos pequenos brinquem com

os amigos, servir bebidas alcoólicas, fabricar carros, produzir bens de

consumo etc.

A eliminação desses riscos é absolutamente impossível, sob pena de

engessar a sociedade. O que se deve esperar das pessoas, nesse sentido,

não é a total eliminação de riscos (algo inatingível), mas que cumpram

corretamente seu papel social. Assim, não se pode impedir que um bar-

man sirva bebidas alcoólicas a seus fregueses, mas pode-se exigir dele

que não o faça a menores de 18 anos. É impossível impedir a fabricação

de carros, mas pode-se exigir de seus fabricantes que observem as nor-

mas técnicas e os construam dentro dos padrões de segurança. Não há

como evitar que restaurantes sirvam comida, mas é possível estabelecer

a obrigatoriedade de observarem condições mínimas de higiene.

5.7.4.3. A imputação objetiva enfoca apenas comportamentos que violam determinado papel social

Não se pode exigir de um mecânico que, mesmo sabendo que o

dono do automóvel costuma andar em alta velocidade, deixe de con-

sertá-lo. Seu papel social consiste em arrumar os defeitos dos veículos,

mantendo-os dentro de suas especificações regulares, nada mais que

isso. Não se pode atribuir a esse mecânico, que se limitou a exercer seu

papel social, a responsabilidade pela morte do proprietário do veículo

num acidente de trânsito.

Um barman que serve bebida alcoólica a um motorista não pode ser

responsabilizado pelo acidente automobilístico posteriormente causado,

já que se limitou a cumprir seu papel social.

5.7.4.4. Fundamentos da imputação objetivaA imputação objetiva assenta-se nas premissas acima resumidas e

não se fará presente, segundo Jakobs, nas hipóteses abaixo:

62

1ª) Criação de um risco permitido

Aquele que realiza um risco permitido não pode responder juridi-

camente pelo resultado produzido.

O risco permitido dá-se nas seguintes situações:

a) normas jurídicas que autorizam comportamentos perigosos (ex.:

regras de trânsito, práticas desportivas autorizadas, normas técni-

cas de atividades industriais);

b) fatos socialmente adequados (ex.: um passeio de automóvel

com amigos, o ato de levar um adolescente a um passeio numa

montanha);

c) lex artis: a observação das regras técnicas de determinada ativi-

dade, como a Medicina ou a Engenharia;

d) autorizações contidas em normas extrapenais. Jakobs desenvolve,

ainda, conceitos de compensação do risco e de variabilidade do risco.

A compensação de um risco pode ser levada em conta quando a

lei não estabelece determinado padrão (porque, se o faz, é justamente

por não admitir nenhum tipo de compensação). Assim, se um motorista

conduz seu automóvel sob efeito de álcool acima do limite permitido,

não pode compensar essa atitude por sua experiência ao volante.

A variabilidade do risco signifi ca que o mesmo comportamento

produtor de risco pode variar conforme o papel social do agente. Uma

mãe que trata a ferida do fi lho com um pano não esterilizado não come-

te delito, ainda que isso resulte num agravamento da lesão. Um médico,

contudo, não pode agir da mesma maneira, sob pena de responder pe-

nalmente por sua conduta.

2ª) Princípio da confi ança

Na vida em sociedade, as pessoas não podem ser obrigadas a des-

confi ar das demais, supondo constantemente que os outros não cumpri-

rão seu papel. Daí a exclusão da responsabilidade penal quando alguém

agiu na confi ança de que o outro o cumpriu (ou cumpriria).

O princípio da confi ança (que para Roxin faz parte do conceito de

risco permitido) também se projeta de duas formas, como visto acima.

3ª) Proibição do regresso

Por este princípio, uma conduta lícita não gera responsabilidade

por atos ilícitos praticados posteriormente por terceiros. O motorista

de táxi que conduz um passageiro até o seu destino não pode ser res-

ponsabilizado pelas atitudes deste (ex.: matar alguém), ainda que tenha

conhecimento delas no trajeto.

4ª) Capacidade da vítima

O consentimento do ofendido a agressões a bens jurídicos a ele per-

tencentes deve excluir a responsabilidade penal, quando a vítima tinha

capacidade para entender e anuir com a lesão. Assim, por exemplo, aque-

le que realiza um contato sexual voluntário com uma pessoa portadora

do vírus HIV, ciente dessa circunstância, e, conscientemente, não toma

Direito Penal

63

nenhuma precaução para evitar o contágio deve ser o único responsável pela transmissão da doença, eximindo de responsabilidade o parceiro.

5.7.5. Diferenças entre roxin e Jakobs no contexto da teoria da imputação objetiva

Diversas diferenças poderiam ser apontadas entre as teorias da im-putação objetiva sustentadas por Claus Roxin e Gunther Jakobs; duas delas, entretanto, merecem destaque:

a) A missão da causalidade material

Roxin constrói uma teoria geral da imputação objetiva para os cri-mes materiais, de modo a substituir a relação de causalidade, abando-nando-se o que ele denomina “dogma da causalidade”.

Jakobs, por sua vez, sustenta que não há como abandonar um míni-mo de causalidade na aferição da responsabilidade penal, de modo que a imputação objetiva serviria para restringir o alcance do nexo causal.

b) Os níveis de imputação objetiva

A “principal peculiaridade do sistema de Roxin em face da doutrina

dominante” é a “existência de um terceiro nível de imputação, a saber,

o alcance do tipo” (Luís Greco, A teoria da imputação objetiva — uma

introdução, in Claus Roxin, Funcionalismo e imputação objetiva no di-

reito penal, p. 116).

A maioria dos autores define a imputação objetiva em dois níveis:

a criação de um risco proibido e relevante e sua realização no resultado.

Jakobs, de sua parte, estrutura o risco juridicamente relevante e

proibido em quatro subníveis: risco permitido, princípio da confiança,

proibição do regresso e capacidade da vítima.

5.7.6. regras extraídas da imputação objetiva (Damásio de Jesus)

Não há imputação objetiva (e o fato será atípico) quando: a) o su-

jeito não criou o risco com sua conduta; b) o risco, embora criado pela

conduta, era permitido ou irrelevante (princípio da insignificância); c)

o risco criado não produziu resultado jurídico (o que conduz à atipici-

dade ou à responsabilização pelo crime na forma tentada); d) não há

relação direta entre a conduta, o risco criado e o resultado ocorrido (ex.:

atropelamento culposo e morte por infecção hospitalar. Pela doutrina

tradicional, o agente responde pelo resultado, considerado como dentro

do desdobramento causal esperado de sua conduta. Pela teoria da im-

putação objetiva, a morte não será imputada ao motorista, pela falta de

relação direta entre sua conduta e o evento fatal).

Haverá, porém, imputação objetiva se o sujeito aumentou o risco

ao bem jurídico ou extrapolou o risco juridicamente permitido (ex.:

entende-se tradicionalmente não configurar crime a conduta daquele

que polui águas já corrompidas; com a teoria, há crime, pois o sujeito

aumentou o risco ao bem jurídico).

imputação obje-tiva, de Damásio de Jesus, Editora Saraiva.

BiBLioTECA

64

5.7.6.1. Princípios auxiliaresA teoria da imputação objetiva enseja a admissão de uma série de

princípios:

a) Princípio da confi ança: uma pessoa não pode ser punida quan-

do, agindo corretamente e na confi ança de que o outro também assim

se comportará (i. e., cumprirá o seu papel), dá causa a um resultado

não desejado (ex.: o médico que confi a em sua equipe não pode ser res-

ponsabilizado pela utilização de uma substância em dose equivocada,

se para isso não concorreu; o motorista que conduz seu automóvel cui-

dadosamente confi a que os pedestres se manterão na calçada e somente

atravessarão a rua quando não houver movimento de veículos, motivo

pelo qual não comete crime se atropela um transeunte que se precipita

repentinamente para a via trafegável).

b) Princípio da insignifi cância: quando a conduta do agente pro-

duzir lesões insignifi cantes aos bens jurídicos, o fato será penalmente

atípico (ex.: furto de uma caixa de fósforos).

c) Princípio da proibição do regresso: uma conduta inicialmente

lícita não pode conduzir à responsabilização do agente por resultados

ilícitos posteriores cometidos por terceiros (ex.: venda de um veículo

automotor posteriormente utilizado em atropelamento).

d) Princípio da autorresponsabilidade ou das “ações a próprio

risco”: aquele que, de modo livre e consciente, e sendo inteiramente res-

ponsável por seus atos, realiza comportamentos perigosos e produz re-

sultados lesivos a si mesmo arcará totalmente com as consequências de

seus atos, não se admitindo qualquer tipo de imputação a pessoas que o

tenham eventualmente motivado a praticar tais condutas perigosas (ex.:

agente que incentiva desafeto a praticar “esportes radicais”).

6 Do Fato Típico e seus Elementos

66

6.1 FATo TíPiCo

Fato típico é o fato humano que se adequa perfeitamente ao tipo

penal. O fato típico consubstancia o primeiro dos elementos estruturais

do delito e sua composição varia em função da espécie de crime.

Nos dolosos são: a) conduta dolosa; b) resultado (nos crimes ma-

teriais); c) nexo causal (nos crimes materiais); d) tipicidade; e) relação

de imputação objetiva (elemento normativo implícito do fato típico).

Nos culposos, por outro lado: a) conduta voluntária; b) resultado

involuntário; c) nexo causal; d) tipicidade; e) relação de imputação ob-

jetiva (elemento normativo implícito do fato típico); f) quebra do dever

de cuidado objetivo; g) previsibilidade objetiva.

6.2 CoNDuTA

A conduta deve ser entendida como a ação ou omissão huma-

na, consciente e voluntária dirigida a uma fi nalidade. Seus elementos

são: exteriorização, consciência e voluntariedade. Faltando um desses

elementos, não há falar em conduta. As formas de conduta, como vi-

mos acima, são duas: ação e omissão. Ação é a conduta positiva que

se manifesta por um movimento do corpo humano (“matar”, “cons-

tranger”, “subtrair”, etc.). Omissão é a conduta negativa que consiste

na abstenção de um movimento. É o deixar de fazer algo penalmente

relevante. Há duas espécies de crimes omissivos: crimes omissivos pró-

prios e crimes omissivos impróprios (comissivos por omissão). Os cri-

mes omissivos próprios são crimes de mera conduta, o tipo penal nem

sequer faz uma referência à ocorrência de um resultado no mundo

exterior, ou seja, basta o sujeito se omitir para estar confi gurado o tipo

(ex.: arts. 135, 244 e 269 do CP). Nos crimes omissivos impróprios

(omissivos por omissão), o tipo penal descreve uma conduta positiva,

ou seja, uma ação. O sujeito responde pelo crime porque estava juridi-

camente obrigado a impedir a ocorrência do resultado. Atenção: para

que alguém responda por um crime comissivo por omissão é necessá-

rio que, nos termos do art. 13, § 2º, do CP, tenha o dever jurídico de

evitar o resultado.

6.3 rESuLTADo

Há duas teorias que se debatem na conceituação do resultado para

fi ns penais:

1ª) teoria naturalística: resultado é a modifi cação no mundo exte-

rior provocada pela ação ou omissão;

Aprofunde seus conhecimen-tos com a leitura do artigo “O que é a tipicidade penal hoje”, de Paulo Queiroz, disponível em: http://emporiododireito.com.br/ o-que-e-tipicidade-penal-hoje/

SAiBA mAiS

Direito Penal

67

2ª) teoria jurídica: resultado é a lesão ou ameaça de lesão ao bem

jurídico tutelado pela norma penal.

Há crime sem resultado? De acordo com a teoria naturalística, isso

ocorre nos crimes de mera conduta. Para a teoria jurídica, não há crime

sem resultado jurídico, de modo que, se a conduta não provocou uma

afetação (lesão ou ameaça de lesão) a algum bem jurídico penalmente

tutelado, não houve crime.

6.3.1. Classificação dos crimes quanto ao resultado naturalístico

a) Materiais ou de resultado: o tipo penal descreve a conduta e um

resultado material, exigindo-o para fins de consumação. Exemplos: ho-

micídio (CP, art. 121), furto (CP, art. 155), roubo (CP, art. 157), estelio-

nato (CP, art. 171).

b) Formais: o tipo penal descreve a conduta e o resultado material,

porém não o exige para fins de consumação. Exemplos: extorsão (CP,

art. 158), extorsão mediante sequestro (CP, art. 159), sequestro qualifi-

cado pelo fim libidinoso (CP, art. 148, § 1º, V).

c) De mera conduta: o tipo penal não faz nenhuma alusão a re-

sultado naturalístico, limitando-se a descrever a conduta punível inde-

pendentemente de qualquer modificação no mundo exterior. Exemplos:

omissão de socorro (CP, art. 135), violação de domicílio (CP, art. 150).

Alguns autores afirmam que o tipo penal nos crimes formais é in-

congruente, porquanto descreve conduta e resultado, mas se contenta

com aquela para que ocorra a consumação, vale dizer, exige menos do

que aquilo que está escrito na norma penal.

6.3.2. Classificação dos crimes quanto ao resultado jurídico

a) De dano ou de lesão: quando a consumação exige efetiva lesão

ao bem tutelado. Exemplos: homicídio (CP, art. 121), lesão corporal (CP,

art. 129), furto (CP, art. 155).

b) De perigo: caso a consumação se dê apenas com a exposição do

bem jurídico a uma situação de risco. Exemplos: perigo de contágio ve-

néreo (CP, art. 130), perigo à vida ou saúde de outrem (CP, art. 132).

Estes se subdividem em crimes de perigo concreto (o risco deve

ser demonstrado) e de perigo abstrato (a prática da ação ou omissão

gera uma presunção absoluta de que o bem jurídico sofreu um risco).

Há polêmica na doutrina acerca da constitucionalidade dos crimes de

perigo abstrato. Para Luiz Flávio Gomes, tais delitos seriam inconstitu-

cionais por violação ao princípio da ofensividade (nullum crimen sine

injuria) (Princípio da ofensividade no direito penal). Fernando Capez, por

outro lado, entende subsistir a “possibilidade de tipificação de crimes de

perigo abstrato em nosso ordenamento legal, como legítima estratégia

Nova Lei Seca – comentários à Lei n. 12.760, de 20-12-2012, de Luiz Flávio Go-mes e Leonardo Schmitt de Bem,

Editora Saraiva.

Tóxicos: Lei de Drogas anota-da e interpreta-da, de Renato Marcão, Editora Saraiva.

BiBLioTECA

68

de defesa do bem jurídico contra agressões em seu estado embrionário,

reprimindo-se a conduta antes que ela venha a produzir um perigo con-

creto ou dano efetivo”. Afi rma o autor que se trata de “cautela reveladora

de zelo do Estado em proteger adequadamente certos interesses” (Con-

sentimento do ofendido e violência desportiva: refl exos à luz da teoria da

imputação objetiva, p. 87). Na jurisprudência predomina amplamente o

entendimento no sentido da constitucionalidade de tais delitos (v. STJ,

HC 23.969/RJ, rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 9-9-2003, Informativo

STJ, n. 183).

6.4 rELAÇÃo DE CAuSALiDADE

Dispõe o art. 13, caput, parte inicial, do CP: “O resultado, de que de-

pende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa”.

O resultado a que alude o dispositivo é o naturalístico ou material, isto é,

a modifi cação no mundo exterior provocada pela conduta.

A grande maioria dos tipos penais não se limita a descrever uma

ação ou omissão, exigindo também, para fi ns de consumação, que ocor-

ra um resultado material. Nesses casos, o art. 13 condiciona a existência

do crime à constatação de um liame causal entre a conduta e o resultado

por ela supostamente produzido.

Nexo de causalidade consiste justamente nesse vínculo ou liame

que une a conduta ao resultado nos crimes materiais.

Várias teorias se preocupam em defi nir o critério para constatar o

nexo causal:

a) teoria da equivalência dos antecedentes ou da conditio sine qua

non: sustenta que todo fator que de forma direta ou indireta exerceu

alguma infl uência no resultado deve ser considerado como sua causa;

b) teoria da causalidade adequada: apenas se reputa causa do

resultado a circunstância mais adequada a produzi-lo, segundo um

juízo de probabilidade (ou “prognose póstuma-objetiva”: verifi ca-se

se um homem dotado de conhecimentos medianos poderia antever o

resultado como provável ou possível na situação em que o agente se

encontrava);

c) teoria da imputação objetiva do resultado: defende que a cau-

salidade natural, fundada na teoria da equivalência dos antecedentes,

leva a exageros que devem ser limitados pela verifi cação da existência

de relação de imputação objetiva entre a conduta e o resultado. Além da

causalidade material, portanto, é preciso que a atitude do agente tenha

produzido um risco juridicamente relevante e proibido ao bem jurídico.

Nosso CP adotou expressamente a teoria da equivalência dos ante-

cedentes (art. 13, caput, parte fi nal), ao estabelecer: “Considera-se causa

a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Tudo

o que contribuir para o resultado, portanto, deve ser considerado sua

VoCABuLário

conditio sine qua non: é uma expressão latina que signifi ca “sem a qual não”.

Direito Penal

69

causa, seja uma conduta humana, seja um fator natural. A doutrina,

em face de tal definição, construiu um procedimento para determinar

qual fator é ou não causa de um resultado: trata-se do processo ou juízo

de eliminação hipotética, pelo qual basta excluir mentalmente algum

antecedente do resultado para saber se ele é ou não sua causa (Julius

Glasser foi seu precursor, conforme assinalou, entre outros, Tobias Bar-

reto, em seus Comentários ao Código Criminal do Império, in Estudos

de direito). Se após a exclusão mental do antecedente se concluir que

o resultado teria ocorrido da maneira como ocorreu, será sinal de que

o antecedente excluído não foi causa do resultado. Se, por outro lado,

se perceber que sem o fator examinado o resultado não teria ocorrido

daquela maneira, significará que o antecedente foi causa do resultado.

Exemplo: A, pretendendo matar B, dirige-se à residência da vítima à

noite e, vendo seu corpo deitado sobre a cama, efetua disparos de arma

de fogo. Constata-se, posteriormente, que B havia falecido duas horas

antes dos tiros, em virtude de um ataque cardíaco. Os disparos que

A efetuou, nesse caso, não foram causa da morte de B. Basta excluir

mentalmente a conduta do atirador para concluir que o resultado teria

ocorrido exatamente como ocorreu.

O problema do regressus ad infinitum. Uma das críticas mais vee-

mentes contra a teoria da conditio sine qua non diz respeito à questão

do regresso ao infinito. De fato, por essa teoria pode-se concluir que

o mais remoto antecedente deverá ser considerado causa do resultado.

No conhecido exemplo do homicídio com emprego de arma de fogo, a

conduta daquele que vendeu a arma ao homicida e até a do fabricante do

instrumento bélico serão consideradas causa do resultado. Em casos tais,

porém, apesar da existência do nexo físico entre a conduta do fabricante

e do vendedor e o resultado morte, eles não responderão criminalmente

pelo homicídio. A doutrina, de há muito, sustenta a não responsabili-

zação penal do fabricante da arma ou do vendedor com base na teoria

da ausência do dolo. Vale dizer, apesar do nexo objetivo entre conduta e

resultado, não há liame subjetivo, psicológico. Pondere-se, contudo, que

a teoria da ausência do dolo não é suficiente para responder satisfatoria-

mente a todos os casos (a teoria mais adequada para fazê-lo é a teoria da

imputação objetiva).

6.4.1. Causas dependentes e independentesDeterminados fatores podem interpor-se no nexo de causalidade

entre a conduta e o resultado, de modo a influenciar no liame causal.

Tais fatores são chamados de “concausas” ou simplesmente “causas”,

como prefere atualmente a maioria dos autores.

Dividem-se em causas dependentes e independentes. Aquelas são

as que se originam na conduta do agente e se inserem dentro da sua

linha de desdobramento causal natural, esperado. Trata-se daquilo que

normalmente acontece (quod plerumque accidit), constituindo, assim,

VoCABuLário

ad infinitum: é uma expressão em latim que significa “até o in-finito”, “sem limite ou sem fim”, para indicar um processo ou operação que continua indefi-nidamente.

70

decorrências corriqueiras da conduta (ex.: a morte por choque hemor-

rágico subsequente a um ferimento perfuroinciso profundo confi gura

evento esperado; para a jurisprudência, a morte em virtude de infecção

hospitalar é considerada decorrência esperada de uma internação). As

independentes, de sua parte, são as que, originando-se ou não da condu-

ta, produzem por si sós o resultado e confi guram algo que normalmente

não acontece. São eventos inusitados, inesperados (ex.: uma pequena

ferida incisa, normalmente, não é capaz de levar à morte, mas isso pode

ocorrer se a vítima for hemofílica).

Em se tratando de causas dependentes, o agente responderá por todos os seus desdobramentos.

Quanto às causas independentes, é preciso distinguir entre as cau-sas absoluta e as relativamente independentes da conduta do agente.

1) Causas absolutamente independentes: são as que produzem por si sós o resultado e não têm qualquer origem ou relação com a conduta praticada pelo sujeito. Como nesse caso o resultado ocorreria de qual-quer maneira, com ou sem o comportamento realizado, fi ca totalmente afastado o nexo de causalidade, motivo por que o agente não responderá pelo resultado.

Subdividem-se em preexistentes (se anteriores à conduta do agen-te), concomitantes (quando ocorrem ao mesmo tempo) ou superve-nientes (se posteriores).

Exemplos:

a) efetuar disparos de arma de fogo, com intenção homicida, em pessoa que falecera minutos antes (causa preexistente);

b) atirar em pessoa que, no exato momento do tiro, sofre ataque

cardíaco fulminante que não guarda relação alguma com o disparo

(causa concomitante);

c) ministrar veneno na comida da vítima, que, antes que a peçonha faça efeito, vem a ser atropelada (causa superveniente; nesse caso, o agen-te só responde pelos atos praticados, ou seja, por tentativa de homicídio).

Lembre-se de que em todas as causas absolutamente independentes fi cará afastada a relação de causalidade entre a conduta do sujeito e o resultado produzido, razão pela qual o sujeito apenas responderá pelos atos praticados, não sendo possível imputar-lhe o resultado fi nal (nos exemplos acima: a morte da vítima).

2) Causas relativamente independentes: são as que, somadas à con-duta do agente, produzem o resultado. De regra, não se exclui o nexo de causalidade, de forma que o resultado poderá ser atribuído ao agente, que por ele responderá.

Também se subdividem em preexistentes, concomitantes ou super-venientes.

Exemplos de causas relativamente independentes: a) Efetuar feri-mento leve, com instrumento cortante, num hemofílico, que sangra até a morte (a hemofi lia é a causa preexistente que, somada à conduta do agente, produziu a morte). Note que nesse exemplo se pressupõe que o

a) as causas absolutamente independentes sempre rompem o nexo causal, de modo que o agente nunca responderá pelo resultado; somente pelos atos praticados; b) as causas relativa-mente independentes não rom-pem o nexo causal, motivo por que o agente, se a conhecia ou se, embora não a conhecendo, podia prevê-la, responde pelo resultado (salvo na causa super-veniente).

ATENÇÃo

Direito Penal

71

sujeito tenha efetuado um golpe leve no ofendido, que não produziria a morte de uma pessoa saudável.

b) Efetuar disparo contra a vítima que, ao ser atingida pelo projétil,

sofre ataque cardíaco, vindo a morrer, apurando-se que a soma desses

fatores produziu a morte (considere, nesse caso, que o disparo, isolada-

mente, não teria o condão de matá-la, o mesmo ocorrendo com relação

ao ataque do coração — causa concomitante).

c) Após um atropelamento, a vítima é socorrida com algumas lesões

ao hospital; no caminho, a ambulância explode, ocorrendo a morte (a

explosão da ambulância é a causa superveniente que, aliada ao atropela-

mento, deu causa à morte do ofendido).

Nestes três últimos exemplos, há nexo causal entre a conduta e o

resultado. O agente, contudo, só responderá pelo resultado se a causa

preexistente ou concomitante for conhecida (o que conduz à responsa-

bilização a título de dolo) ou, ao menos, previsível (indicativo de culpa).

Nas concausas relativamente independentes supervenientes não há, por

força de lei, nexo causal (CP, art. 13, § 1º). Trata-se de uma exceção le-

gal à teoria da equivalência dos antecedentes. Isso se aplica ao exemplo

da explosão da ambulância. Seria, efetivamente, um exagero imputar ao

sujeito culpado pelo atropelamento a morte da vítima, que ocorreu em

razão da explosão.

6.5 TiPo PENAL, TiPiCiDADE E ADEQuAÇÃo TíPiCA

6.5.1. ConceitoTipicidade é a relação de subsunção entre um fato concreto e um

tipo penal previsto abstratamente na lei. Trata-se de uma relação de en-

caixe, de enquadramento. É o adjetivo que pode ou não ser dado a um

fato, conforme ele se enquadre ou não na lei penal.

O conceito de tipicidade, como se concebe modernamente, pas-

sou a ser estruturado a partir das lições de Beling (1906), cujo maior

mérito foi distingui-la da antijuridicidade e da culpabilidade. Seus

ensinamentos, entretanto, foram aperfeiçoados até que se chegasse à

concepção vigente.

Jiménez de Asúa sistematizou essa evolução, dividindo-a em três

fases:

1ª) Fase da independência (Beling — 1906): a tipicidade possuía

função meramente descritiva, completamente separada da ilicitude e da

culpabilidade (entre elas não haveria nenhuma relação). Trata-se de ele-

mento valorativamente neutro. Sua concepção não admitia o reconheci-

mento de elementos normativos ou subjetivos do tipo.

subsunção: é a ação ou efeito de subsumir, isto é, incluir (al-guma coisa) em algo maior. Como definição jurídica, confi-gura-se a subsunção quando o caso concreto se enquadra à norma legal em abstrato.

VoCABuLário

72

2ª) Fase do caráter indiciário da ilicitude ou da ratio cognoscendi

(Mayer — 1915): a tipicidade deixa de ter função meramente descriti-

va, representando um indício da antijuridicidade. Embora se mantenha,

admite-se ser uma indício da outra. Pela teoria de Mayer, praticando-se

um fato típico, ele se presume ilícito. Essa presunção, contudo, é relativa,

pois admite prova em contrário. Além disso, a tipicidade não é valorati-

vamente neutra ou descritiva, de modo que se torna admissível o reco-

nhecimento de elementos normativos e subjetivos do tipo penal.

3ª) Fase da ratio essendi da ilicitude (Mezger — 1931): Mezger atri-

bui ao tipo função constitutiva da ilicitude, de tal forma que, se o fato

for lícito, será atípico. A ilicitude faz parte da tipicidade. O tipo penal do

homicídio não seria matar alguém, mas matar alguém fora das hipóteses

de legítima defesa, estado de necessidade etc.

Concepção dominante: a de Mayer.

6.5.2. Adequação típicaÉ o mesmo que tipicidade, ou seja, a relação de subsunção entre o

fato e a norma penal. Há quem pense de modo diverso, afi rmando que

tipicidade seria a mera correspondência formal entre o fato e a norma,

enquanto a adequação típica, a correspondência que levaria em conta

não apenas uma relação formal de justaposição, mas a consideração de

outros requisitos, como o dolo ou a culpa.

Há duas modalidades de adequação típica:

1ª) Adequação típica por subordinação imediata ou direta: dá-se

quando a adequação entre o fato e a norma penal incriminadora é ime-

diata, direta; não é preciso que se recorra a nenhuma norma de extensão

do tipo. Exemplo: alguém efetua dolosamente vários disparos contra a

vítima — esse fato se amolda diretamente ao tipo penal incriminador

do art. 121 do CP.

2ª) Adequação típica por subordinação mediata ou indireta: o en-

quadramento fato/norma não ocorre diretamente, exigindo-se o recurso

a uma norma de extensão para haver subsunção total entre fato concreto

e lei penal. Exemplo: se alguém, com intenção homicida, efetua vários

disparos de arma de fogo contra outrem e foge, sendo a vítima socorrida

e salva a tempo, esse fato não se amolda ao tipo penal do art. 121 (não

houve morte). Também não se enquadra no art. 129 (lesões corporais)

porque o sujeito agiu com animus necandi (o art. 129 pressupõe animus

laedendi). Seria o fato atípico? Não. Para que ocorra o perfeito enqua-

dramento da conduta com a norma, contudo, será preciso recorrer a

uma norma de extensão; no caso, o art. 14, II, que descreve a tentativa.

O mesmo se verifi ca quando alguém empresta arma de fogo a um ho-

micida, que a utiliza posteriormente para cometer o crime. Sua conduta

não encontra correspondência direta com o art. 121 do CP. Novamente

é preciso, então, socorrer-se de uma norma de extensão; nesse caso, o art.

conduta(ação ou omissão)

FATo TíPiCo

Nexo causal

Tipici-dade

Resul-tado

ATENÇÃo

Direito Penal

73

29, caput, que pune a participação1.

6.5.3. Tipicidade conglobanteTrata-se de um dos aspectos da tipicidade penal, que se subdividiria

em tipicidade legal (adequação do fato com a norma penal, segundo

uma análise estritamente formal) e tipicidade conglobante. Por meio

desta, deve-se verificar se o fato, que aparentemente viola uma norma

penal proibitiva, não é permitido ou mesmo incentivado por outra nor-

ma jurídica (como no caso das intervenções médico-cirúrgicas, violên-

cia desportiva, estrito cumprimento de um dever legal etc.). Não teria

sentido, dentro dessa perspectiva, afirmar que a conduta do médico que

realiza uma cirurgia no paciente viola a norma penal do art. 129 do CP

(não ofenderás a integridade corporal alheia) e, ao mesmo tempo, aten-

de ao preceito constitucional segundo o qual a saúde é um direito de

todos (não é lógico dizer que ele viola uma norma e obedece a outra, ao

mesmo tempo).

Por meio da tipicidade conglobante (análise conglobada do fato

com todas as normas jurídicas, inclusive extrapenais), situações consi-

deradas tradicionalmente como típicas, mas enquadráveis nas excluden-

tes de ilicitude (exercício regular de um direito ou estrito cumprimento

de um dever legal), passariam a ser tratadas como atípicas, pela falta de

tipicidade conglobante. Com a adoção da teoria da imputação objetiva,

tais resultados (atipicidade de fatos então considerados típicos, porém

lícitos) são atingidos sem necessidade dessa construção, que se torna su-

pérflua.

6.6 DoLo

Dolo é a vontade de concretizar as características objetivas do tipo

(Damásio de Jesus). Trata-se de elemento subjetivo implícito da conduta.

O dolo possui elementos, quais sejam:

a) Cognitivo ou intelectual, que é a representação, a consciência da

conduta, do resultado e do nexo causal entre eles;

b) Volitivo, que é a vontade de realizar a conduta e produzir o re-

sultado.

1. Na tentativa (art. 14, II), há extensão temporal da figura típica; na participação, extensão espacial e pessoal. Há outros exemplos de norma de extensão, como o art. 9º do CPM: nos crimes militares impróprios, o processo de adequação típica dá-se por subordinação indireta porque, além da subsunção fato/tipo penal, requer-se a presença de uma das hipóteses previstas nesse dispositivo, dentre as quais ser o fato praticado em situação de serviço. Assim, por exemplo, para que um estupro seja considerado crime militar, além da prática das elementares previstas no art. 232 do CPM, deverá ser cometido em situação de serviço.

74

6.7 CuLPA

O crime culposo está previsto no artigo 18, II, do Código Penal

Brasileiro com a seguinte redação:

Art. 18 — Diz-se o crime:

(...)

II — culposo, quando o agente deu causa ao resultado por impru-

dência, negligência ou imperícia.

Para determinar quando surge a imprudência, negligência ou im-

perícia, é necessária a noção de dever de cuidado objetivo. Este corres-

ponde ao dever, que a todos se impõe, de praticar os atos da vida com as

cautelas necessárias, para que do seu atuar não decorram danos a bens

alheios.

A imprudência é uma conduta positiva, que se dá com a quebra

de regras de conduta ensinadas pela experiência. Exemplo: dirigir em

excesso de velocidade e atropelar um pedestre. A negligência ocorre

quando o sujeito se porta sem a devida cautela; é uma conduta negativa,

uma omissão quando o caso impunha uma ação preventiva. Exemplo:

mãe que deixa um veneno perigoso à mesa, permitindo que seu fi lho

pequeno o ingira e morra. Imperícia é a falta de aptidão para o exercício

de arte ou profi ssão. A imperícia pressupõe sempre a qualifi cação ou ha-

bilitação legal para o ofício. Exemplo: um médico, durante uma cirurgia,

secciona uma artéria e causa hemorragia seguida de morte.

moDALiDADES DE CrimE CuLPoSo

imprudêncianegligênciaimperícia

ATENÇÃo

7 Ilicitude

76

7.1 coNcEIto, tEoRIas

Trata-se da contrariedade do fato com o ordenamento jurídico (en-

foque puramente formal ou “ilicitude formal”), por meio da exposição

a perigo de dano ou da lesão a um bem jurídico tutelado (enfoque ma-

terial ou “ilicitude material”).

A antijuridicidade da conduta deve ser apreciada objetivamente,

vale dizer, sem se questionar se o sujeito tinha consciência de que agia

de forma ilícita. Por essa razão, pode perfeitamente ser considerada ilí-

cita eventual conduta de um inimputável, ainda que ele não tenha ca-

pacidade de avaliar a antijuridicidade de seu comportamento. Ele pode

cometer, portanto, um fato típico e antijurídico (mas não receberá pena

por ausência de culpabilidade).

A doutrina classifi ca a ilicitude em genérica e específi ca. Aquela

corresponde à contradição do fato com a norma abstrata, por meio da

afetação a algum bem jurídico. Esta consiste na ilicitude presente em

determinados tipos penais, os quais empregam termos como “sem justa

causa”, “indevidamente”, “sem autorização ou em desacordo com deter-

minação legal ou regulamentar”. Na verdade, dessas, só a primeira real-

mente trata-se de ilicitude. A chamada antijuridicidade específi ca nada

mais é do que uma designação equivocada para determinados elemen-

tos normativos de alguns tipos penais.

7.2 causas dE JustIFIcaÇÃo. dEscRImINaNtEs LEgaIs, supRaLEgaIs E putatIvas

Nossa legislação dispõe sobre quatro excludentes: estado de neces-

sidade, legítima defesa, exercício regular de um direito e estrito cum-

primento de um dever legal. Sendo o fato praticado nessas circunstân-

cias, não haverá crime (CP, art. 23).

Apesar de o leque legal ser abrangente, a doutrina admite a exis-

tência de causas supralegais (ex.: não previstas em lei) de exclusão da

ilicitude, fundadas no emprego da analogia in bonam partem, suprindo

eventuais situações não compreendidas no texto legal. É o que ocor-

re com o consentimento do ofendido nos tipos penais em que o bem

jurídico é disponível (ex.: crime de dano — art. 163 do CP) e o sujeito

passivo, agente capaz. Importante advertir que, em certos casos, o tipo

penal prevê o dissenso da vítima como elementar; se isso ocorrer, seu

consentimento fi gurará como causa excludente de tipicidade (ex.: viola-

ção de domicílio — art. 150 do CP).

NÃo HÁ cRImE quando o fato é praticado em:• estado de necessidade;• legítima defesa;• exercício regular de um direito;• estrito cumprimento de um de-

ver legal.

atENÇÃo

Direito Penal

77

7.3 Estado dE NEcEssIdadE

Diz o CP no art. 24: “Considera-se em estado de necessidade quem

pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua von-

tade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo

sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”.

A situação de necessidade pressupõe, antes de tudo, a existência de

um perigo (atual) que ponha em conflito dois ou mais interesses legíti-

mos, que, pelas circunstâncias, não podem ser todos salvos (na legítima

defesa, como se verá adiante, só existe um interesse legítimo). Um deles,

pelo menos, terá de perecer em favor dos demais. O exemplo caracterís-

tico é o da “tábua de salvação”: após um naufrágio, duas pessoas se veem

obrigadas a dividir uma mesma tábua, que somente suporta o peso de

uma delas. Nesse contexto, o direito autoriza um deles a matar o outro,

se isso for preciso para salvar sua própria vida.

7.3.1 teoriasa) Diferenciadora: afirma que, se o bem salvo for mais importante

que o sacrificado (ex.: salvar a vida e danificar patrimônio alheio), ex-

clui-se a ilicitude (“estado de necessidade justificante”), ao passo que,

se os bens em conflito forem equivalentes (ex.: salvar a própria vida em

detrimento da vida alheia), afasta-se a culpabilidade (“estado de neces-

sidade exculpante”).

b) Unitária: em quaisquer das hipóteses acima analisadas há exclu-

são da ilicitude. Foi a teoria adotada no CP/46.

7.3.2 Faculdade ou direitoA doutrina tradicional via no estado de necessidade uma faculdade

do agente, e não um direito. Argumentava-se: no estado de necessidade

há um conflito entre dois ou mais bens ou interesses legítimos, sendo to-

dos protegidos pelo direito. Diante do perigo, o titular de um bem, para

salvá-lo, ofende bem de terceiro, o qual não tem obrigação de permitir o

perecimento de seu bem, pois também dispõe de um interesse legítimo.

Se a todo direito corresponde uma obrigação, e se o terceiro não está

obrigado a deixar seu bem ser lesionado, ninguém tem direito de agir em

estado de necessidade, mas mera faculdade legal. Para a doutrina mo-

derna, o sujeito tem direito de agir em estado de necessidade. O sujeito

passivo dessa relação jurídica não é, como se pensava, o terceiro titular

do bem perecido, mas sim o Estado, que tem a obrigação de reconhecer

a licitude da conduta do agente

7.3.3 RequisitosHá requisitos vinculados à situação de necessidade, que justificam

a excludente, e outros ligados à reação do agente. Entre os primeiros

crime e casti-go, de Fiodor M. Dostoievski. Um dos maio-res romances de todos os tempos, nar-ra a história do estudante

Raskôlnikov, que, vendo-se na mi-séria, assassina uma velha usurária e não consegue livrar-se do peso do remorso. Para refletir: Raskôlni-kov agiu acobertado pelo estado de necessidade?

o caso dos explorado-res de ca-vernas, de Lon L. Fuller. A obra ori-ginal esta-dun idense é de 1949. Depois de

um acidente, cinco cientistas acabam presos em uma caverna. São informados pelas equipes de resgate que a demora pode le-vá-los a morrer de fome. Um dos exploradores convence os outros de que um deve ser morto para servir de comida aos demais e propõe um sorteio para escolher o sacrificado. Depois do resgate, os quatro sobreviventes vão a julga-mento por homicídio. Para refletir: há exclusão de ilicitude baseada no estado de necessidade?

BIBLIotEca

78

temos: a) existência de um perigo atual; b) perigo que ameace direi-

to próprio ou alheio; c) conhecimento da situação justifi cante; d) não

provocação voluntária da situação de perigo. Com relação à reação do

agente, temos: a) inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado (pro-

porcionalidade dos bens em confronto); b) inevitabilidade do perigo; c)

inexistência do dever legal de enfrentar o perigo.

a) Perigo atual

Perigo é a probabilidade de dano. Embora a lei só se refi ra ao perigo

atual, deve-se admitir o estado de necessidade quando iminente o peri-

go (analogia in bonam partem). Não se admite a excludente, entretanto,

quando passado o perigo ou quando este ainda está por vir.

b) Ameaça a direito próprio ou alheio

Age em estado de necessidade não somente quem salva direito pró-

prio (ex.: a “tábua de salvação”) mas também quem defende direito de

terceiro (ex.: médico que quebra sigilo profi ssional revelando que um

paciente é portador do vírus HIV para salvar terceira pessoa que seria

contaminada). A excludente, ademais, aplica-se quaisquer que sejam os

direitos em jogo. Se o interesse for tutelado pelo ordenamento jurídico,

poderá ser protegido diante de uma situação de necessidade.

c) Conhecimento da situação justifi cante

É fundamental que o sujeito tenha plena consciência da existência

do perigo e atue com o fi m de salvar direito próprio ou alheio. Por essa

razão, o médico que realiza aborto por dinheiro não age em estado de

necessidade, mesmo se constatando, após, a existência de risco atual à

vida da gestante.

d) Perigo não provocado voluntariamente pelo sujeito

O provocador do perigo não pode benefi ciar-se da excludente, a não

ser que o tenha gerado involuntariamente. Em outras palavras, aque-

le que por sua vontade produz o perigo não poderá agir em estado de

necessidade. Provocar voluntariamente signifi ca provocar dolosamen-

te. Dessa forma, se o agente provocou culposamente o perigo, poderá

ser benefi ciado pela excludente. Há quem entenda de maneira diversa,

equiparando a provocação voluntária tanto à dolosa como à culposa.

Argumenta-se que o provocador do risco teria sempre o dever jurídico

de impedir o resultado (i. e., salvar o bem alheio em detrimento do seu),

independentemente de dolo ou culpa, com base no art. 13, § 2º, c, do CP.

Esse dispositivo, contudo, não se aplica ao estado de necessidade, pelo

princípio da especialidade; isso porque o art. 24, § 1º, do CP estipula que

só não pode alegar estado de necessidade quem tem o dever legal de en-

frentar o perigo (situação retratada no art. 13, § 2º, a, do CP). Portanto,

das pessoas arroladas no art. 13, § 2º, somente aquela da alínea a não

pode agir amparada pela excludente; já as demais (letras b e c) podem.

e) Inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado (princípio da

ponderação de bens)

Sobre o estado de necessidade, em síntese, temos:Requisitos:

a) Perigo atual.b) Ameaça a direito próprio

ou alheio.c) Conhecimento da situa-

ção justifi cante.d) Perigo não provocado vo-

luntariamente pelo sujeito.e) Inexigibilidade do sacrifício

do bem ameaçado (prin-cípio da ponderação de bens).

f) Inevitabilidade do perigo.g) Inexistência de dever legal

de arrostar o perigo (art. 24, § 1º).

Classifi cação:• Estado de necessidade de-

fensivo.• Estado de necessidade

agressivo.• Estado de necessidade jus-

tifi cante.• Estado de necessidade ex-

culpante.• Estado de necessidade pró-

prio.• Estado de necessidade de

terceiro.• Estado de necessidade

real.• Estado de necessidade pu-

tativo.

atENÇÃo

Direito Penal

79

Na situação concreta deve-se fazer uma análise comparativa entre o

bem salvo e o bem sacrificado (ponderação de bens). Haverá estado de

necessidade quando aquele for de maior importância que este, ou, ain-

da, quando se equivalerem (ex.: ofender o patrimônio de terceiro para

salvar a vida ou matar para salvar a própria vida). É evidente que essa

comparação não pode ser feita de acordo com um critério milimétri-

co. Caso o bem salvo seja de menor importância que o sacrificado, não

haverá estado de necessidade (ex.: para evitar que um navio afunde, o

capitão ordena que a tripulação se jogue em alto-mar). Nesse caso, to-

davia, deve-se aplicar o § 2º do art. 24 (causa obrigatória de diminuição

de pena, de 1 a 2/3).

f) Inevitabilidade do perigo

Se o conflito estabelecido entre os bens puder ser solucionado de

modo diverso, como por um pedido de socorro a terceira pessoa ou pela

fuga do local do perigo, o fato não se considerará justificado, pois a con-

duta lesiva deve ser o único meio de salvar o bem do perigo.

g) Inexistência de dever legal de afastar o perigo (art. 24, § 1º)

Quem tem dever legal de enfrentar o perigo não pode invocar es-

tado de necessidade. Isso ocorre com algumas funções ou profissões:

bombeiro, policial etc. Assim, o bombeiro não pode eximir-se de salvar

uma pessoa num prédio em chamas sob o pretexto de correr risco de

se queimar. Evidentemente que não se exige heroísmo (ex.: bombeiro

ingressar em uma casa totalmente em chamas para salvar algum bem

valioso, sendo improvável, na situação, que ele sobreviva, apesar de todo

o seu treinamento).

7.3.4 Classificaçãoa) Estado de necessidade defensivo: a conduta do sujeito que age

em necessidade se volta contra a coisa de que provém o perigo — se o

perigo foi causado por alguém, contra este é que se dirige a conduta, le-

sionando um bem de sua titularidade (ex.: um náufrago disputa a tábua

de salvação com outro, que é o responsável pelo afundamento do navio).

b) Estado de necessidade agressivo: a conduta do sujeito que age

em necessidade se volta contra outra coisa, diversa daquela que originou

o perigo, ou contra terceiro inocente (ex.: um náufrago disputa a tábua

de salvação com outro, sendo que ambos não tiveram nenhuma respon-

sabilidade no tocante ao afundamento do navio).

A distinção acima não tem relevância para o direito penal (ambos

excluem a ilicitude), mas repercute na órbita cível. O sujeito que age em

estado de necessidade agressivo deverá reparar o dano causado ao ter-

ceiro inocente pela sua conduta, tendo direito de regresso contra o cau-

sador do perigo. O reconhecimento do estado de necessidade defensivo,

por outro lado, afasta até mesmo a obrigação de reparar o dano causado

pelo crime (a sentença penal que o reconhecer impedirá eventual ação

civil ex delicto).

80

c) Estado de necessidade justifi cante: afasta a ilicitude da conduta.

d) Estado de necessidade exculpante: exclui a culpabilidade do agente (não foi adotado pelo CP).

e) Estado de necessidade próprio: salva-se bem próprio.

f) Estado de necessidade de terceiro: salva-se bem alheio.

g) Estado de necessidade real: é aquele defi nido no art. 24 do CP.

h) Estado de necessidade putativo: trata-se do estado de necessida-de imaginário (afasta o dolo — art. 20, § 1º, do CP, ou a culpabilidade — art. 21 do CP, conforme o caso).

7.4 LEgítIma dEFEsa

Diz o CP, no art. 25: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Trata-se de um dos mais bem desenvolvidos e elaborados institutos do direito penal. Sua construção teórica surgiu vinculada ao instinto de sobrevivência (“matar para não morrer”) e, por via de consequência, atrelada ao crime de homicídio. Atualmente, permite-se seu reconheci-mento como meio de tutelar qualquer direito, não somente a vida ou a integridade física.

7.4.1 RequisitosSão os seguintes: a) existência de uma agressão; b) atualidade ou

iminência da agressão; c) injustiça dessa agressão; d) agressão contra direito próprio ou alheio; e) conhecimento da situação justifi cante (ani-mus defendendi); f) uso dos meios necessários para repeli-la; g) uso mo-derado desses meios. Vejamos abaixo:

a) Agressão

É sinônimo de ataque, ou seja, a conduta humana que lesa ou expõe a perigo bens jurídicos tutelados. A mera provocação não dá ensejo à defesa legítima. Ao reagir a uma provocação por parte da vítima, o agen-te responderá pelo crime, podendo ser reconhecida em seu favor uma atenuante genérica (CP, art. 65, III, b) ou um privilégio, como no crime de homicídio (CP, art. 121, § 1º).

A agressão deve ser humana. Contra agressão de animal cabe esta-do de necessidade (a não ser que alguém provoque deliberadamente o animal, de modo que ele sirva como instrumento do ataque de um ser humano).

b) Atualidade ou iminência

Atual é a agressão presente, que está em progressão, que está acon-tecendo. Iminente, quando está prestes a se concretizar. “A legítima de-fesa não se funda no temor de ser agredido nem no revide de quem já o foi” (Noronha). Reação contra agressão passada é vingança; em vez de

tempo de ma-tar, direção de Joel schu-macher, 1996. Em Canton, no Mississipi, dois brancos espancam e estupram uma

menina negra de dez anos. Eles são presos, mas, quando estão sendo levados ao tribunal para ter o valor da sua fi ança decretada, o pai da garota (Samuel L. Jack-son) decide fazer justiça com as próprias mãos e mata os dois na frente de diversas testemunhas, além de acidentalmente ferir se-riamente um policial. Para refl etir: seria o caso de legítima defesa da honra?

cINEmatEca

Direito Penal

81

lícita, é, como regra, mais severamente punida (motivo fútil ou torpe).

Se a agressão for futura, o agente também comete crime.

c) Injustiça da agressão

Injusta é a agressão ilícita (não precisa ser criminosa). São exemplos

de agressões justas: cumprimento de mandados de prisão ou efetivação

de prisão em flagrante (v. arts. 284 e 292 do CPP), defesa da posse, vio-

lência desportiva e penhora judicial. Nesses casos, quem reagir não esta-

rá em legítima defesa.

É possível legítima defesa de legítima defesa? Simultaneamente,

não. Se uma das pessoas se encontra em legítima defesa, sua conduta

contra a outra será justa (lícita), e, por consequência, o agressor nunca

poderá agir sobre o amparo da excludente. É possível, no entanto, que

uma pessoa aja inicialmente em legítima defesa e, após, intensifique des-

necessariamente sua conduta, permitindo que o agressor, agora, defen-

da-se contra esse excesso (legítima defesa sucessiva). Devem-se lembrar,

também, as seguintes situações possíveis: legítima defesa real contra legí-

tima defesa putativa ou, ainda, duas pessoas agindo, uma contra a outra,

em legítima defesa putativa.

Age em legítima defesa quem se defende de agressão de inimputá-

veis (menores, doentes mentais etc.)? Para a doutrina prevalente a res-

posta é afirmativa, uma vez que a injustiça da agressão deve ser aferida

objetivamente, ou seja, sem cogitar se o agressor detinha capacidade de

entender o caráter ilícito de sua agressão. Essa interpretação, no entanto,

pode redundar em situações absurdas, porquanto na legítima defesa não

se exige que a agressão seja inevitável. O que dizer, então, da hipótese

em que uma criança de 5 anos se mune de um bastão para agredir um

adulto, que, nas circunstâncias, poderia simplesmente desviar do golpe?

O adulto, se quiser, poderá reagir ainda na iminência de ser atingido,

ferindo a criança (legítima defesa contra agressão iminente). Para evitar

tal conclusão, deve-se entender que contra agressões de inimputáveis só

é cabível estado de necessidade, em que se exige que o perigo seja ine-

vitável. Aplicando tal solução ao exemplo acima, o adulto que ferisse a

criança responderia pelas lesões nela provocadas, pois poderia evitar o

golpe, dele desviando. Como argumento de reforço, cabe recordar que

contra ataques de animais aplicam-se os princípios do estado de neces-

sidade (mais restritos) e não os da legítima defesa (a não ser que o se-

movente seja açulado por alguém). Isso significa afirmar que diante da

investida de um cão bravio, de regra, só poderemos reagir se não houver

outro meio de escapar (inevitabilidade do perigo). Não se pode admitir

que a repulsa contra o golpe evitável de uma criança seja lícita e a reação

contra o ataque evitável de um animal seja crime. O direito estaria dan-

do mais proteção ao ser irracional que ao infante (nesse sentido: Enrique

Bacigalupo, Direito penal: parte geral, Capítulo VII, § 710).

d) O direito defendido

Qualquer direito pode ser defendido pela excludente: vida, liber-

dade, honra, integridade física, patrimônio etc. Age em legítima defesa

Sobre a legítima defesa, em síntese, temos:1. Requisitos:

a) Agressão.b) Atualidade ou iminência.c) Injustiça da agressão.d) O direito defendido.e) Elemento subjetivo — co-

nhecimento da situação justificante.

f) Meios necessários.g) Moderação.

2. Classificação: • Legítima defesa recíproca. • Legítima defesa sucessiva. • Legítima defesa real. • Legítima defesa putativa. • Legítima defesa própria. • Legítima defesa de terceiro. • Legítima defesa subjetiva. • Legítima defesa com aber-

ratio ictus.

atENÇÃo

82

aquele que defende direito próprio (legítima defesa própria) ou alheio

(legítima defesa de terceiro).

e) Elemento subjetivo — conhecimento da situação justifi cante

Constitui requisito fundamental para a existência da excludente. O

agente deve ter total conhecimento da existência da situação justifi cante

para que seja por ela benefi ciado. “A legítima defesa deve ser objetiva-

mente necessária e subjetivamente orientada pela vontade de defender-

-se” (Cezar Roberto Bitencourt, Manual de direito penal, v. 1, p. 264).

Imagine a seguinte situação e questione se houve ou não legítima defesa:

A pretende vingar-se de seu inimigo B e passa a andar armado. Certo

dia, avista-o. Ocorre que somente enxerga sua cabeça, pois B se encon-

tra atrás de um muro alto. A não sabe o que está acontecendo do outro

lado do muro. Como tencionava matar seu desafeto, saca sua arma e

efetua um disparo letal na cabeça de B. Posteriormente, apura-se que,

do outro lado do muro, B também estava com uma arma em punho,

prestes a matar injustamente C. Constata-se, ainda, que o tiro disparado

por A salvou a vida de C. Enfi m, A deve ou não ser condenado? Agiu em

legítima defesa de terceiro? Não, uma vez que só age em legítima defesa

(e isso vale para as demais excludentes de antijuridicidade) quem tem

conhecimento da situação justifi cante e atua com a fi nalidade/intenção

de defender-se ou defender terceiro.

Presentes os requisitos vistos até então, tem-se uma situação de le-

gítima defesa, de modo que a repulsa contra a agressão será lícita. No

entanto, a reação deve pautar-se pelo necessário e sufi ciente para salvar

o direito ameaçado ou lesionado. Excedendo-se, extrapola o agente os

limites da defesa, acarretando excesso, pelo qual o sujeito responderá,

se no tocante a ele atuar dolosa ou culposamente (CP, art. 23, parágrafo

único).

f) Meios necessários

É o meio menos lesivo que se encontra à disposição do agente, po-

rém hábil a repelir a agressão. Havendo mais de um meio capaz de evi-

tar o ataque ao alcance do sujeito, deve ele optar pelo menos agressivo.

Evidentemente essa ponderação, fácil de ser feita com espírito calmo e

refl etido, pode fi car comprometida no caso concreto, quando o ânimo

daquele que se defende encontra-se totalmente envolvido com a situa-

ção. Por isso que se diz, de forma uníssona, que a necessidade dos meios

(bem como a moderação, que se verá em seguida) não pode ser aferida

segundo um critério milimétrico, mas sim tendo em vista o calor dos

acontecimentos. Assim, exemplifi cativamente, a diferença de porte físico

legitima, conforme o caso, agressão com arma.

g) Moderação

Não basta a utilização do meio necessário, é preciso que esse meio

seja utilizado moderadamente. Trata-se da proporcionalidade da reação,

a qual deve dar-se na medida do necessário e sufi ciente para repelir o

ataque. Como já lembrado, a moderação no uso dos meios necessários

deverá ser avaliada levando-se em conta o caso concreto.

Direito Penal

83

7.4.2. Commodus discessusConsiste na fuga do local, evitando a agressão que ensejaria a le-

gítima defesa. O CP não exige que a agressão causadora da legítima

defesa seja inevitável, de modo que o agente não está obrigado a pro-

curar uma cômoda fuga do local, em vez de repelir a agressão injusta.

Em outras palavras, ainda que tenha o sujeito condições de retirar-se

ileso do local, evitando a agressão, agirá em legítima defesa se optar

por ali permanecer e reprimir a agressão injusta, atual ou iminente, a

direito seu ou de outrem, desde que o faça moderadamente e use dos

meios necessários.

7.4.3. ExcessoTrata-se da desnecessária intensificação de uma conduta inicial-

mente legítima. Predomina na doutrina o entendimento de que o ex-

cesso decorre tanto do emprego do meio desnecessário como da falta

de moderação (nesse sentido, entre outros, Julio F. Mirabete, Manual de

direito penal: parte geral, v. 1, p. 183; Fernando Capez, Curso de direito

penal: parte geral, v. 1, p. 237).

Há duas formas de excesso:

a) intencional ou voluntário, quando o agente tem plena consciên-

cia de que a agressão cessou e, mesmo assim, prossegue reagindo visando

lesar o bem do agressor; nesse caso, o agente responderá pelo resultado

excessivo a título de dolo (é o chamado “excesso doloso”);

b) não intencional ou involuntário, o qual se dá quando o sujeito,

por erro na apreciação da situação fática, supõe que a agressão ainda

persiste e, por conta disso, continua reagindo sem perceber o excesso

que comete. Se o erro no qual incorreu for evitável (i. e., uma pessoa de

mediana prudência e discernimento não cometeria o mesmo equívoco

no caso concreto), o agente responderá pelo resultado a título de culpa,

se a lei previr a forma culposa (“excesso culposo”). Caso, contudo, o erro

seja inevitável (qualquer um o cometeria na mesma situação), o sujeito

não responderá pelo resultado excessivo, afastando-se o dolo e a culpa

(“excesso exculpante” ou “legítima defesa subjetiva”).

7.4.4. Classificaçãoa) Legítima defesa recíproca: é a legítima defesa contra legítima de-

fesa (inadmissível, salvo se uma delas ou todas forem putativas);

b) legítima defesa sucessiva: é a reação contra o excesso;

c) legítima defesa real: é a que exclui a ilicitude;

d) legítima defesa putativa: é a imaginária, trata-se de modalidade

de erro (CP, arts. 20, § 1º, ou 21);

e) legítima defesa própria: quando o agente salva direito próprio;

f) legítima defesa de terceiro: quando o sujeito defende direito

alheio;

84

g) legítima defesa subjetiva: dá-se quando há excesso exculpante (decorrente de erro inevitável);

h) legítima defesa com aberratio ictus: o sujeito, ao repelir a agressão injusta, por erro na execução, atinge bem de pessoa diversa da que o agredia. Exemplo: A, para salvar sua vida, saca uma arma de fogo e atira em direção ao seu algoz, B; no entanto, erra o alvo e acerta C, que apenas passava pelo local. A agiu sob o abrigo da excludente e deverá ser absolvido criminalmen-te; na esfera cível, contudo, deverá responder pelos danos decorrentes de sua conduta contra C, tendo direito de regresso contra B, seu agressor.

7.4.5. ofendículosCompreendem todos os instrumentos empregados regularmente, de

maneira predisposta (previamente instalada), na defesa de algum bem ju-rídico, geralmente posse ou propriedade. Há autores que distinguem os ofendículos da defesa mecânica predisposta. Os primeiros seriam apara-tos visíveis (cacos de vidro nos muros, pontas de lança etc.); os segundos, ocultos (cercas eletrifi cadas, armadilhas etc.). De qualquer modo, a juris-prudência recomenda que o aparato seja sempre visível e inacessível a ter-ceiros inocentes (em se tratando de defesa mecânica predisposta, é preciso a existência de alguma advertência visível, p. ex., “cuidado, cão bravo” ou “atenção, cerca eletrifi cada”, além da inacessibilidade a terceiros inocen-tes). Presentes esses requisitos, o titular do bem protegido não responderá criminalmente pelos resultados lesivos dele decorrentes. Quando atingir o agressor, terá agido em legítima defesa (preordenada); se atingir terceiro inocente, será absolvido com base na legítima defesa putativa.

Embora haja dissenso doutrinário a respeito da natureza jurídica dos ofendículos (legítima defesa ou exercício regular de um direito), prevalece o entendimento de que sua preparação confi gura exercício re-gular de um direito, e sua efetiva utilização diante de um caso concreto, legítima defesa preordenada. Pela teoria da imputação objetiva, no en-tanto, a instalação dos ofendículos constitui fato atípico, pois se trata de exposição de bens jurídicos a riscos permitidos.

7.4.6. Diferenças entre legítima defesa e estado de necessidade

a) A legítima defesa pressupõe agressão, e o estado de necessidade, perigo;

b) nela, só há uma pessoa com razão; no estado de necessidade, todos têm razão, pois seus interesses ou bens são legítimos;

c) há legítima defesa ainda quando evitável a agressão, mas só há estado de necessidade se o perigo for inevitável;

d) não ocorre legítima defesa contra ataque de animal (salvo quan-do ele foi instrumento de uma agressão humana), mas existe estado de necessidade nessas situações.

Diferenças entre legítima defesa e estado de necessidade

Legítima defesa Estado de necessidade

Pressupõe agressão. Pressupõe perigo.

Direito Penal

85

O direito só ampara o comportamento de um dos envolvidos (aquele que se defende).

Todos são amparados pelo direito, pois seus interesses ou bens são legítimos.

A agressão pode ser evitável. O perigo deve ser inevitável.

Não ocorre legítima defesa contra ata-que de animal (salvo quando ele foi instrumento de uma agressão humana).

Existe estado de necessidade contra ataque de animal.

7.5 EstRIto cumpRImENto dE dEvER LEgaL

Por vezes, a própria lei obriga um agente público a realizar condutas,

dando-lhe poder até de praticar fatos típicos para executar o ato legal.

Para que o cumprimento do dever legal exclua a ilicitude da condu-

ta é preciso que obedeça aos seguintes requisitos:

a) existência de um dever legal, leia-se: de uma obrigação imposta

por norma jurídica de caráter genérico, não necessariamente lei no sen-

tido formal; o dever poderá advir, inclusive, de um ato administrativo

(de conteúdo genérico). Se específico o conteúdo do ato, poder-se-á falar

em obediência hierárquica;

b) atitude pautada pelos estritos limites do dever;

c) conduta, como regra, de agente público e, excepcionalmente, de

particular. Como exemplo de dever legal incumbido a particular costu-

ma-se lembrar do dever dos pais quanto à guarda, vigilância e educação

dos filhos.

Exemplos de atos lesivos a bens jurídicos penalmente tutelados que

são permitidos em lei e se enquadram na excludente em estudo:

a) CPP, art. 292: violência para executar mandado de prisão;

b) CPP, art. 293: execução de mandado de busca e apreensão e ar-

rombamento;

c) oficial de justiça que executa ordem de despejo;

d) soldado que fuzila o condenado por crime militar em tempo de

guerra, cuja sanção é a pena de morte;

e) agente policial infiltrado com autorização judicial que se vê obri-

gado a cometer delitos no seio da organização criminosa (art. 2º, V, da

Lei n. 9.034/95).

Como em todas as excludentes, também é possível que ocorra ex-

cesso (doloso, culposo ou exculpante).

7.6 ExERcícIo REguLaR dE dIREIto

Todo aquele que exerce um direito assegurado por lei não prati-

ca ato ilícito. Quando o ordenamento jurídico, por meio de qualquer

de seus ramos, autoriza determinada conduta, sua licitude reflete-se na

Estação Ca-randiru, de Drauzio Va-rella. A obra discorre sobre sua experiên-cia como mé-dico voluntário na Casa de Detenção de

São Paulo, conhecida como Ca-randiru. Ela traz o relato dos presos sobre o massacre que ocorreu em 1992. Para refletir: os policiais agi-ram acobertados pelo estrito cum-primento do dever legal?

BIBLIotEca

86

seara penal, confi gurando excludente de ilicitude: exercício regular de

um direito (CP, art. 23, III). A esfera de licitude penal, obviamente, só

alcança os atos exercidos dentro do estritamente permitido. O agente

que inicialmente exerce um direito, mas o faz de modo irregular, trans-

bordando os limites do permitido, comete abuso de direito e responde

pelo excesso, doloso ou culposo (não se podendo excluir a possibilidade

do excesso exculpante).

Interessante assinalar que a excludente pode fundar-se não só em

normas jurídicas mas também nos costumes, como ocorre no caso dos

conhecidos trotes acadêmicos. É certo, por óbvio, que os trotes, se exces-

sivos, constituirão crime.

Os exemplos mais comuns de incidência da excludente em apreço

são:

a) intervenção médico-cirúrgica (a intervenção cirúrgica não prati-

cada por profi ssional habilitado apenas será autorizada em casos de es-

tado de necessidade); note que o médico deverá colher o consentimento

do paciente, ou de seu representante, se menor, somente se podendo

cogitar de cirurgia independentemente de autorização do paciente nos

casos de estado de necessidade;

b) violência desportiva, desde que o esporte seja regulamentado

ofi cialmente e a lesão ocorra de acordo com as respectivas regras;

c) desforço imediato na defesa da posse;

d) fl agrante facultativo (CPP, art. 301), que constitui a faculdade

conferida por lei a qualquer do povo de prender quem esteja em situa-

ção de fl agrante delito.

Imputação objetiva

Cabe enfatizar que, segundo a teoria da imputação objetiva, o exer-

cício regular de um direito deixa de existir como excludente de ilicitude,

sendo suas hipóteses tratadas no âmbito do fato típico, como afastado-

ras da relação de imputação objetiva, tendo em vista que o risco criado

pelo agente nesses casos seria um risco permitido.

8 Culpabilidade

88

8.1 CoNCeiTo, NaTuReZa e FuNdaMeNTo JuRÍdiCo

Trata-se do pressuposto necessário para a aplicação de uma pena ao

agente que cometeu um crime (fato típico e antijurídico). Dá-se quando

o sujeito for imputável, detiver possibilidade de compreensão da ilici-

tude de sua conduta e se puder dele exigir comportamento diferente na

situação em que se encontrava. Embora haja autores que sustentem ser

a culpabilidade requisito do crime, não é essa a conclusão que decorre

do exame de nossa legislação, a qual afi rma, nas hipóteses de falta de

culpabilidade, ser o agente isento de pena (v. CP, arts. 21, 22, 26 e 28),

em vez de declarar não haver crime, como faz no caso das excludentes

de ilicitude (v. CP, art. 23).

No sistema clássico, a culpabilidade era vista como mero vínculo

psicológico entre autor e fato, por meio do dolo e da culpa, que eram

suas espécies (teoria psicológica da culpabilidade). No sistema neoclás-

sico, agregou-se a ela a noção de reprovabilidade, resultando no entendi-

mento de que a culpabilidade somente ocorreria se o agente fosse impu-

tável, agisse dolosa ou culposamente e se se pudesse dele exigir compor-

tamento diferente (teoria psicológico-normativa ou normativa da cul-

pabilidade). Já se tratava de um grande avanço, mas o aperfeiçoamento

defi nitivo só veio com o sistema fi nalista, pelo qual ela se compunha de

imputabilidade, possibilidade de compreensão da ilicitude da conduta e

de exigir do agente comportamento distinto (teoria normativa pura da

culpabilidade).

A teoria normativa pura, hoje prevalente, subdivide-se em: teoria

limitada e teoria extremada da culpabilidade, as quais são absolutamen-

te coincidentes em todos os seus postulados, salvo no tocante à natureza

das descriminantes putativas.

8.2 eleMeNTos da Culpabilidade Na CoNCepÇão FiNalisTa

Para que alguém possa considerar-se culpável é preciso que tenha

imputabilidade, possibilidade de consciência da ilicitude da conduta e

que dele possa exigir-se comportamento diverso.

8.2.1 imputabilidadeÉ a capacidade mental de compreender o caráter ilícito do fato (vale

dizer, de que o comportamento é reprovado pela ordem jurídica) e de

determinar-se de acordo com esse entendimento (ou seja, de conter-

se), conforme se extrai do art. 26, caput, interpretado a contrario sensu.

Em outras palavras, consiste no conjunto de condições de maturidade e

Os dois fi lmes abaixo mostram as mazelas do sistema carcerário bra-

sileiro destinado aos considerados inimputáveis, tra-çando um para-lelo com o mundo das drogas.bicho de sete Ca­beças, direção de laís bodanzky, 2005.Meu nome não é Johnny, direção de Mauro lima, 2008. o estranho no Ni­nho, direção de Miloš Forman, 1975. O longa faz uma releitura da obra de Ken Ke-sey, com o enfo-que na real situ-

ação das pessoas que vivem em um sanatório. Narra a história de um homem que comete um crime, mas devido a seu comportamen-to, passa o período de reclusão em um sanatório. No decorrer do fi lme, é abordada a rígida rotina a que os pacientes são submetidos, com intenso uso de medicamen-tos e humilhações, o que reforça a necessidade de repensarmos a forma correta de tratamento para pessoas nessa situação.

CiNeMaTeCa

biblioTeCa

inimputabilidade e processo penal, de Antonio Carlos da Ponte, Editora Saraiva. Obra mul-tidisciplinar, discu-te as implicações na inimputabilida-

de durante o processo penal.

Direito Penal

89

sanidade mental, a ponto de permitir ao sujeito a capacidade de compre-

ensão e de autodeterminação.

Diferença em relação à responsabilidade penal: esta equivale à obri-

gação de sujeitar-se às consequências do crime. O doente mental que

praticar o fato típico e ilícito nas condições do art. 26, caput, do CP será

considerado inimputável, mas ainda assim deverá sujeitar-se a uma me-

dida de segurança, como consequência de seu ato. Nesse caso, inexiste

imputabilidade, mas há responsabilidade penal.

8.3 Causas de exClusão da Culpabilidade

No nosso ordenamento jurídico haverá exclusão da imputabilida-

de penal nas seguintes hipóteses: a) doença mental ou desenvolvimento

mental incompleto ou retardado (CP, art. 26); b) embriaguez completa

e involuntária — decorrente de caso fortuito ou força maior (CP, art. 28,

§ 1º); c) dependência a substância entorpecente (Lei n. 11.343/2006, art.

45, caput); d) intoxicação involuntária por substância entorpecente (Lei

n. 11.343/2006, art. 45, caput); e) menoridade (CP, art. 27, e CF, art. 228).

As quatro primeiras fundam-se no chamado sistema (ou critério)

biopsicológico. A última, no biológico.

Sistema biopsicológico: além da causa (“bio”), é necessário o efeito

(“psico”). Explica-se: além de o sujeito ser doente mental, estar com-

pleta e involuntariamente embriagado etc. (que é a causa ou origem do

problema), é preciso que, ao tempo da conduta (ação ou omissão), não

tenha capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-

-se de acordo com esse entendimento (como consequência do problema).

Sistema biológico ou etiológico: a última causa de exclusão da im-

putabilidade — a menoridade — é puramente biológica. Isso porque é

de todo indiferente pesquisar o efeito, bastando identificar-se a causa;

ou seja, basta que o sujeito seja menor de 18 anos para que se considere

inimputável, sendo totalmente irrelevante investigar se o sujeito sabia o

que fazia (tinha noção de certo e errado) e podia controlar-se (capacida-

de de autodeterminação).

Sistema psicológico: por meio desse sistema, que não foi adotado

entre nós, bastaria o efeito para caracterizar a inimputabilidade; o por-

quê seria irrelevante.

Todas as causas de exclusão da imputabilidade devem fazer-se pre-

sentes no exato momento da conduta. O requisito temporal é funda-

mental. Em tese, portanto, é possível que alguém seja são no momento

da conduta e, depois, tenha suprimida, em virtude de doença mental, a

capacidade de entender e querer. Responderá normalmente pelo crime.

O exame do requisito temporal dá ensejo a outro questionamento.

Qual a solução quando alguém propositadamente se coloca numa situ-

biblioTeCa

Para aprofundar o tema da me-noridade, indicamos as obrasCurso de direi­to da Criança e do adoles­cente: aspectos teóricos e prá­ticos, coorde-nado por Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, Editora Saraiva.

estatuto da Crian­ça e do ado­lescente: lei n. 8.069/1990 co­mentada artigo por artigo, de Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore e Rogério San-ches Cunha, Editora Saraiva.

direito penal de adolescentes: elementos para uma teoria ga­rantista, de Kary-na Batista Spo-sato.

VoCabulÁRio

inimputabilidade é a ausência de características pessoais ne-cessárias para que possa ser atribuída a alguém a responsa-bilidade por um ilícito penal.

90

ação de inimputabilidade para cometer o crime, considerando que, no momento da conduta, terá afastada a capacidade de autodeterminar-se? É o caso do sujeito que voluntariamente se deixa hipnotizar para o fi m de cometer o crime, ou se embriaga com esse mesmo propósito. Aplica-se a teoria da actio libera in causa (ação livre na causa), pela qual o agente responde pelo resultado produzido, uma vez que, ao se autocolocar no estado de inimputabilidade, tinha plena consciência do que fazia. Im-portante advertir que o sujeito só responderá pelo crime se na causa (ação livre) estiver presente o dolo ou a culpa ligados ao resultado. Em outras palavras, o resultado posterior que se pretende imputar ao agente deve ter sido, ao menos, previsível quando da ação livre (hipnose ou embriaguez, p. ex.).

Como ensina Damásio de Jesus: “A moderna doutrina penal não aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa à embriaguez comple-ta, voluntária ou culposa e não preordenada, em que o sujeito não pos-sui previsão, no momento em que se embriaga, da prática do crime. Se o sujeito se embriaga prevendo a possibilidade de praticar o crime e acei-tando a produção do resultado, responde pelo delito a título de dolo. Se ele se embriaga prevendo a possibilidade do resultado e esperando que ele não se produza, ou não o prevendo, mas devendo prevê-lo, responde pelo delito a título de culpa. Nos dois últimos casos, é aceita a aplicação da teoria da actio libera in causa. Diferente é o primeiro caso, em que o sujeito não desejou, não previu, nem havia elementos de previsão da ocorrência do resultado” (Direito penal: parte geral, v. 1, p. 513).

a) Doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou re-tardado (CP, art. 26)

A doença mental, ou desenvolvimento mental incompleto ou re-tardado, se aliada à falta de capacidade de compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, produz a inimputabilidade.

Três são os requisitos: biológico (a causa, ou seja, a doença mental etc.); psicológico (o efeito, ex., a supressão das capacidades de entendi-mento ou autodeterminação); temporal (ocorrência dos requisitos an-teriores no exato momento da conduta).

O sujeito que, nessa hipótese, praticar um crime será absolvido. Trata-se de absolvição imprópria, pois a ele se aplicará uma medida de segurança.

Se, por outro lado, presente a causa, o agente não tiver suprimida mas simplesmente diminuída a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de autodeterminar-se, aplica-se o parágrafo único do art. 26 (“semi-imputável”). A ele poderá ser imposta a pena pelo crime pratica-do, diminuída de 1 a 2/3, ou uma medida de segurança (art. 98), confor-me se afi gure mais adequado ao juiz, em função da necessidade ou não de especial tratamento curativo.

O silvícola inadaptado ao convívio com a civilização, assim como o surdo-mudo alijado da cultura, pode enquadrar-se no art. 26, caput ou

parágrafo único, de acordo com o caso concreto.

VoCabulÁRio

silvícola é que ou quem nasce ou vive na selva, selvagem.

Direito Penal

91

Obs.: a expressão “semi-imputável”, apesar de corrente, não é ade-quada; isso porque se o agente possui, ainda que reduzidamente, a capa-cidade de entendimento ou de autocontrole, é imputável, embora com culpabilidade diminuída (daí o fato de a lei determinar que ele receba pena reduzida e, excepcionalmente, no caso de necessidade de tratamen-to, uma medida de segurança).

b) Embriaguez completa e involuntária (decorrente de caso fortuito ou força maior) (CP, art. 28)

Somente a embriaguez (intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool) completa e involuntária exclui a culpabilidade. Há três es-tágios de embriaguez: 1º) excitação; 2º) depressão; 3º) sono (letargia). Considera-se completa a embriaguez nas duas últimas fases, pois ela re-tira por completo a capacidade de discernimento do agente.

O sujeito pode embriagar-se voluntariamente (quando tem a inten-ção de fazê-lo) ou de forma culposa (excesso imprudente no consumo de bebida alcoólica). Nessas hipóteses não incide o dispositivo em exame, que pressupõe embriaguez involuntária, ou seja, oriunda de caso fortui-to (quando se ingere substância cujo efeito inebriante era desconhecido) ou força maior (quando se é fisicamente forçado a consumir álcool ou substância de efeitos análogos). Aos casos de embriaguez voluntária, do-losa ou culposa, aplica-se a teoria da actio libera in causa.

Juridicamente, a embriaguez completa e involuntária enseja absol-vição própria, por exclusão da culpabilidade. Se o comprometimento da capacidade de compreensão ou autodeterminação for apenas parcial, incidirá uma causa de diminuição de pena, de 1 a 2/3 (CP, art. 28, § 2º).

A embriaguez pode, ainda, ter os seguintes efeitos: a) imposição de medida de segurança, no caso de embriaguez patológica (o alcoolismo é equiparado a doença mental, sendo tratado na forma do art. 26 do CP); b) imposição de agravante genérica (CP, art. 61, II, l), quando houver embriaguez preordenada (o agente se embriaga propositadamente para cometer o crime).

c) Dependência ou intoxicação involuntária por substância entor-pecente

O art. 45, caput, da Lei de Tóxicos (Lei n. 11.343/2006) dispõe: “É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determi-nar-se de acordo com esse entendimento”. Nesse caso, “quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste arti-go, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado” (parágrafo único).

d) Menoridade (CP, art. 27, e CF, art. 228)

Os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, aplicando- -se-lhes a legislação pertinente: Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA).

biblioTeCa

penas e Medi­das de segu­rança no direito penal brasileiro, de Salo de Car-valho, Editora Saraiva. O livro aborda os pro-blemas nucleares da justificação e da aplicação das penas e das medidas de segurança.

92

O adolescente (pessoa com mais de 12 e menos de 18 anos comple-

tos) que pratica um fato defi nido como crime ou contravenção penal

incorre, nos termos do ECA, em ato infracional, sujeito às chamadas

medidas socioeducativas (internação, semiliberdade etc.).

“O limite de idade deve ser fi xado de acordo com a regra do art. 10,

1ª parte: ‘O dia do começo inclui-se no cômputo do prazo’. Se o fato

é cometido no dia em que o sujeito comemora 18 anos, responde por

crime, pois não se indaga a que hora completa a maioridade penal. A

partir do primeiro instante do dia do aniversário surge a maioridade”

(Damásio de Jesus, Direito penal: parte geral, v. 1, p. 506).

8.4 a iNexiGibilidade de CoNduTa diVeRsa CoMo Causa supRaleGal de exClusão da Culpabilidade

Estamos agora diante do último elemento da culpabilidade. Para

dizer que alguém praticou uma conduta reprovável, é preciso que se

possa exigir dessa pessoa, na situação em que ela se encontrava, uma

conduta diversa. Muitas vezes, as pessoas se veem em situações nas quais

não têm escolha: ou agem de tal forma, ou um mal muito maior lhes

acontecerá. Veja o seguinte caso: para obter declaração falsa e assinatura

em um contrato, um sujeito aponta arma de fogo contra a cabeça da

vítima, exigindo que redija e assine o documento. Evidente que a vítima

pode recusar-se a assiná-lo, no entanto, se o fi zer, morrerá. Nesse caso,

não se pode exigir do ofendido que assinou o documento falso compor-

tamento diferente.

Nosso CP prevê duas causas em que não é exigível conduta diversa:

coação moral irresistível e obediência hierárquica (art. 22).

a) Coação moral irresistível

De início é importante lembrar que a culpabilidade só estará exclu-

ída quando se tratar de coação moral. Havendo coação física, afasta-se a

ação ou omissão, gerando um fato atípico.

Requisito da coação moral (ameaça): deve ser irresistível. E a “irre-

sistibilidade da coação deve ser medida pela gravidade do mal ameaça-

do (...) Somente o mal efetivamente grave e iminente tem o condão de

caracterizar a coação irresistível prevista pelo art. 22 do CP. A iminência

aqui não se refere à imediatidade tradicional, puramente cronológica,

mas signifi ca iminente à recusa, isto é, se o coagido recusar-se, o coator

tem condições de cumprir a ameaça em seguida, seja por si mesmo, seja

por interposta pessoa” (Cezar R. Bitencourt, Manual de direito penal:

parte geral, v. 1, p. 310).

Quando alguém pratica o fato sob coação moral irresistível, só é

punível o autor da coação. O coagido estará isento de pena. Apesar de

haver duas pessoas envolvidas na consecução do fato — o coator e o

Direito Penal

93

coagido — não se há de falar em concurso de pessoas. O coagido é mero

instrumento nas mãos do coator. Por isso fala-se em autoria mediata.

Aliás, cumpre observar que o coator terá contra si uma circunstância

agravante (CP, art. 62, II).

Coação resistível: se resistível a coação, ambos respondem pelo fato

— coator e coagido; este com uma atenuante (art. 65, III, c, 1ª figura) e

aquele com a agravante acima mencionada.

b) Obediência hierárquica

Requisitos: a) relação de direito público (hierarquia); b) ordem do

superior; c) ordem ilegal, mas cuja ilegalidade não seja manifestamente

evidente. O superior hierárquico que profere a ordem ilegal responde

pelo crime com uma circunstância agravante (CP, art. 62, III); seu subor-

dinado será isento de pena (trata-se de outro caso de autoria mediata).

Discute-se a possibilidade de admitir a existência de causas suprale-

gais (não previstas em lei) de inexigibilidade de conduta diversa.

Primeiro deve-se lembrar que estamos no campo das normas pe-

nais permissivas, para as quais é perfeitamente admissível o emprego

da analogia (in bonam partem). Além disso, a não exigibilidade corres-

ponde a um princípio geral de exclusão de culpabilidade. Não há óbice,

portanto, à aplicação de causas supralegais de exclusão da culpabilidade.

A emoção e a paixão não excluem o crime (CP, art. 28). Seria um

absurdo se isso ocorresse, já que, por mais amoral que seja o criminoso,

ele sempre estará sentindo alguma emoção (tensão, apreensão, nervosis-

mo, alegria, prazer, irritação, ansiedade etc.).

Por emoção entende-se a forte e transitória perturbação da afetivi-

dade ou a viva excitação do sentimento. A emoção corresponde a um es-

tado momentâneo, e a paixão, a um estado duradouro. A emoção pode,

eventualmente, influenciar na quantidade da pena (v. arts. 65, III, c, 121,

§ 1º, e 129, § 4.º)

Em relação à obediência hie-rárquica, a situação dos militares é diferente dos funcionários civis. O Código Penal Militar prevê o crime de insubordinação (art. 163, CPM), que inviabiliza discutir a le-galidade de uma ordem pelo de-ver de obediência. Nesses casos, se houvesse crime, só o autor da ordem responderia, o subalterno não.

É importante notar que o Có-digo Penal Militar fala em ordem manifestamente criminosa (art. 38, § 2º, CPM). A ordem manifes-tamente criminosa é diferente da ordem manifestamente ilegal do Código Penal, pois a ilegalidade manifesta é relativa a formalida-des que não foram cumpridas e falta de legitimidadde do superior para dar a ordem. Já a ordem manifestamente criminosa tem por objeto a prática de ato mani-festamente criminoso.

obseRVaÇão

94

9 Teoria do Erro

96

Para aprofundar o conhecimento sobre o tema, su-gerimos a leitura da obra clássica: Erro de Tipo & Erro de proibição, de Cezar Roberto Bi-tencourt, Editora Saraiva.

9.1 concEiTo DE Erro. DisTinÇÃo EnTrE Erro DE Tipo E Erro DE proibiÇÃo: naTurEZa JurÍDica E EFEiTos

Erro, em direito penal, corresponde a uma falsa percepção da rea-

lidade, que tanto pode incidir sobre situação fática prevista como ele-

mentar ou circunstância do crime (erro de tipo) como sobre a ilicitude

da conduta (erro de proibição). Conforme lição clássica de Hans Welzel,

a pessoa que subtrai coisa de outra, acreditando ser sua, encontra-se em

erro de tipo (não sabe que subtrai coisa alheia); contudo, se acredita ter

o direito de subtrair coisa alheia, como o caso do credor em relação ao

devedor inadimplente, há erro de proibição; ou, ainda, na lição de Da-

másio de Jesus, quando alguém tem cocaína em casa, na crença de que

constitui outra substância, inócua (ex.: talco), comete erro de tipo (art.

20); mas se souber da natureza da substância, a qual mantém por supor

equivocadamente que o depósito não é proibido, incide no erro de proi-

bição (art. 21).

O erro de tipo dá-se quando o equívoco recai sobre situação fática

prevista como elemento constitutivo do tipo legal de crime (art. 20 do CP).

Nele, o agente realiza concretamente todos os elementos de um tipo

penal incriminador, sem, contudo, o perceber. Ele até sabe que uma atitu-

de como a que pratica confi gura, em tese, ilícito penal, porém não percebe

o que está fazendo, pois algum dado da realidade (que constitui elemento

do tipo) refoge à sua percepção. Exemplo: um aluno, ao fi nal da aula, inad-

vertidamente, coloca em sua pasta um livro de um colega, pensando ser o

seu. Esse aluno tem plena noção de que a subtração de coisa alheia móvel

é crime; acredita equivocadamente, todavia, que o bem lhe pertence.

Além da estudada acima, há outras modalidades de delito putativo

ou crime imaginário, que são:

a) Delito putativo por erro de proibição: o sujeito realiza um fato

que, na sua mente, é proibido pela lei criminal, quando, na verdade, sua

ação não caracteriza ilícito penal algum. Exemplo: incesto.

b) Delito putativo por obra do agente provocador: dá-se quando o

agente pratica uma conduta delituosa induzido por terceiro, o qual assegura

a impossibilidade fática de o crime se consumar. Exemplo: policial à paisa-

na fi nge-se embriagado para chamar a atenção de um ladrão, que decide

roubá-lo; ao fazê-lo, contudo, é preso em fl agrante (v. Súmula 145 do STF).

9.2 Erro DE Tipo EssEncial E aciDEnTal

O erro de tipo pode ser: a) essencial, que se subdivide em erro de

tipo incriminador e permissivo; b) acidental, compreendendo o erro so-

bre o objeto material, o erro na execução e o erro sobre o nexo causal.

Espécies de erro de tipo• Essencial: subdivide-se em erro

de tipo incriminador e permissivo.a) Erro de tipo incriminador (art.

20, caput): Exemplos: contrair casamento com pessoa casa-da, desconhecendo comple-tamente o matrimônio anterior válido (o agente não será con-siderado bígamo — art. 235 do CP); subtrair coisa alheia, supon-do-a própria (não ocorre o cri-me de furto — art. 155 do CP).

b) Erro de tipo permissivo (art. 20, § 1º): Exemplo: numa comarca do interior, uma pessoa é con-denada e promete ao juiz que, quando cumprir a pena, irá matá-lo. Passado certo tempo, o escrivão alerta o magistrado de que aquele réu está prestes a ser solto. No dia seguinte, o juiz caminha por uma rua escura e se encontra com seu algoz, que leva a mão aos bolsos de ma-neira repentina. O juiz, supondo que está prestes a ser alvejado, saca de uma arma, matando--o; apura-se, em seguida, que o morto tinha nos bol sos apenas um bilhete de desculpas (legíti-ma defesa putativa).

• Acidental: compreende o erro sobre o objeto material, o erro na execução e o erro sobre o nexo causal.

aTEnÇÃo

biblioTEca

Direito Penal

97

9.2.1 Erro de tipo essencialÉ o que retira do agente a capacidade de perceber que pratica deter-

minado crime. Pode ser inevitável ou evitável. Em função dele, o sujeito crê

não cometer ilícito algum (como no exemplo da pessoa que guarda cocaína

em casa acreditando tratar-se de açúcar) ou, ao menos, que comete outro

crime, diverso do que efetivamente pratica (p. ex., alguém ofende a digni-

dade de uma pessoa desconhecendo que se trata de funcionário público

no exercício de sua função; apenas se dá conta, nesse caso, de uma situação

ensejadora de crime de injúria — art. 140 do CP, por ele respondendo, e

não por desacato — art. 331 do CP).

O erro de tipo essencial, seja ele evitável ou não, sempre exclui o dolo. Quando inevitável dolo, afasta a culpa. Tal erro ocorre quando o equívoco (ex., a falsa percepção da realidade) no qual o agente incor-reu seria cometido por qualquer pessoa de mediana prudência e dis-cernimento, na situação em que ele se encontrava. Exemplo: o caçador atira contra um arbusto ferindo uma pessoa que se fazia passar por animal bravio. O erro essencial pode, ainda, ser evitável, caso pudesse ter sido evitado por alguém de mediana prudência e discernimento. Embora afaste o dolo, enseja a punição por crime culposo, se previsto em lei. Exemplo: o caçador atira contra uma pessoa há poucos metros de distância porque, estando sem os seus óculos, a confundiu com um animal1.

9.2.2. Erro de tipo incriminador (art. 20, caput) e permissivo (art. 20, § 1º). Diferença

O erro de tipo essencial subdivide-se, ainda, em erro de tipo incri-minador e erro de tipo permissivo:

a) erro de tipo incriminador: a falsa percepção da realidade incide sobre situação fática prevista como elementar ou circunstância de tipo penal incriminador (daí o nome);

b) erro de tipo permissivo: o erro recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação (ex., excludente de ilicitude, que se encon-tra em tipos penais permissivos).

9.3 DEscriminanTEs puTaTivas E as

TEorias ExTrEmaDa E limiTaDa Da culpabiliDaDE

Como se viu acima, apesar da rubrica imprecisa do art. 20, § 1º, há

1. Note que em se tratando de crime no qual só é prevista a forma dolosa, torna-se irrelevante apurar se o erro foi vencível ou invencível, uma vez que, com a exclusão do dolo, o fato sempre será atípico.

aTEnÇÃo

Erro de tipo incriminador: recai sobre a elementar ou

circunstâncias do tipo de injusto

Escusável ou Inevitável:

exclui a tipicidade dolosa ou culposa.

Vencível, Inescusável

ou Evitável: exclui a tipicidade

dolosa. Permite a punição por

culpa se houver previsão legal.

98

duas espécies de descriminantes putativas: por erro de tipo e por erro de proibição:

a) por erro de tipo: dá-se quando o equívoco incide sobre os pres-supostos de fato da excludente;

b) por erro de proibição: verifi ca-se quando a falsa percepção da realidade incide sobre os limites legais (normativos) da causa de justifi -cação. O agente sabe exatamente o que está fazendo, percebe toda a si-tuação; desconhece, no entanto, que a lei proíbe sua conduta. Pensa que age de forma correta, quando, na verdade, sua conduta é errada, proibi-da, censurada pelo ordenamento penal. É o chamado erro de proibição indireto, que será estudado dentro da culpabilidade. Exemplo: “Um ofi -cial de justiça realiza uma penhora. O executado, por erro, supõe que a diligência é injusta e reage em imaginária legítima defesa. O erro deriva não da má apreciação das circunstâncias do fato, mas de incorreta con-sideração da qualidade da agressão. Esta existe, mas é justa. O executado a supõe injusta. Aplica-se o art. 21: se o erro é invencível, há exclusão da culpabilidade, se vencível, não há exclusão da culpabilidade e sim dimi-nuição de pena” (Damásio de Jesus, Novas questões criminais, p. 136).

A natureza jurídica das descriminantes putativas varia de acordo com a teoria da culpabilidade adotada (extremada ou limitada, que são variações da teoria normativa pura da culpabilidade). São teorias que coincidem em praticamente todos os pontos, exceto em um: justamente sobre a natureza das descriminantes putativas.

Para a teoria extremada, todas as descriminantes putativas, seja as que incidam sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justifi cação, seja as que recaiam sobre os limites autorizadores de uma excludente de ilicitude, são tratadas como erro de proibição (só haveria, portanto, des-criminantes putativas por erro de proibição). Já para a teoria limitada da culpabilidade, quando o erro do agente recai sobre os pressupostos fáticos, há erro de tipo (erro de tipo permissivo), ao passo que, se incidir sobre os limites autorizadores, há erro de proibição (erro de proibição indireto).

Nosso CP adotou a teoria limitada da culpabilidade (v. item 17 da Exposição de Motivos da Parte Geral do CP).

Em resumo: a) teoria extremada da culpabilidade — as descrimi-nantes putativas sempre têm natureza de erro de proibição; b) teoria limitada da culpabilidade — se o equívoco reside na má apreciação de circunstância fática, há erro de tipo; se incidir nos requisitos normativos da causa de justifi cação, erro de proibição.

9.4

Erro provocaDo por TErcEiro, Erro sobrE o obJETo, Erro sobrE pEssoa, Erro na ExEcuÇÃo (ABERRATIO CRIMINIS)

Dá-se quando a falsa percepção da realidade incide sobre dados ir-

Descriminantes putativas• Espéciesa) por erro de tipo: dá-se quan-

do o equívoco incide sobre os pressupostos de fato da exclu-dente.

b) por erro de proibição: verifi ca--se quando a falsa percepção da realidade incide sobre os limites legais (normativos) da causa de justifi cação. Exemplo: um executado reage à penho-ra feita por um ofi cial de justiça, por entendê-la, equivocada-mente, injusta.

• Natureza jurídica1) Para a teoria extremada da

culpabilidade, ambas consti-tuem erro de proibição.

2) Para a teoria limitada da culpa-bilidade, a descriminante puta-tiva por erro de tipo confi gura erro de tipo, e a outra, erro de proibição.

Teoria adotada pelo CP: limi-tada da culpabilidade (item 17 da Exposição de Motivos da Parte Geral do CP).

aTEnÇÃo

Direito Penal

99

relevantes da figura típica. Encontra-se previsto nos arts. 20, § 3º, 73 e 74

do CP.

Subdivide-se em: a) erro sobre o objeto material, que pode ser erro

sobre a pessoa ou erro sobre a coisa; b) erro na execução, que pode ser

aberratio ictus ou aberratio criminis; e c) erro sobre o nexo de causalidade.

Nesses casos, o agente, apesar do equívoco, percebe que pratica o

crime; justamente por esse motivo, o erro não o beneficia.

Erro sobre o objeto material

O objeto material do crime é a pessoa ou coisa sobre a qual recai a

conduta. Há, portanto, erro sobre a pessoa (error in persona) e erro sobre

o objeto (error in objecto).

a) Erro sobre a pessoa

Pressuposto: o agente atinge pessoa diversa da que pretendia ofen-

der (vítima efetiva), pois a confunde com outra (vítima visada). Exem-

plo: o sujeito mata um sósia do inimigo, pensando tratar-se de seu algoz.

Efeito: não beneficia o agente, devendo ele responder como se tives-

se atingido a vítima visada (CP, art. 20, § 3º). Assim, se pretendia matar

seu pai, mas atingiu desconhecido (porque o confundiu com seu geni-

tor), responde pelo crime de homicídio (simples ou qualificado, confor-

me o caso), com a agravante genérica do art. 61, II, e, do CP.

b) Erro sobre o objeto

Pressuposto: a conduta do sujeito recai sobre coisa diversa da ima-

ginada. Exemplo: alguém subtrai sacas de arroz acreditando tratar-se

de milho.

Efeito: não beneficia o agente, respondendo ele pelo crime praticado.

c) Erro na execução do crime

Há duas modalidades de erro na execução: aberratio ictus e aberra-

tio criminis.

1ª) Aberratio ictus (erro na execução ou desvio no golpe) — art. 73

do CP. Característica: o sujeito erra nos meios de execução (“erro-inabi-

lidade”), de tal forma que atinge pessoa diversa da pretendida.

Espécies:

a) com unidade simples ou resultado único: em face do erro na exe-

cução, o agente acaba por atingir apenas pessoa diversa da pretendida (a

pessoa que queria atingir é chamada de vítima virtual e a pessoa atingida

é chamada de vítima efetiva);

— consequência: a solução é a mesma do art. 20, § 3º, ou seja, o

agente responde pelo crime como se tivesse atingido a vítima pretendida

(vítima virtual);

b) com unidade complexa ou resultado duplo: o agente, além de

atingir a vítima efetiva, atinge a vítima virtual;

— consequência: aplica-se a regra do concurso formal. Apura-se

a capitulação jurídica de cada crime, segundo o elemento subjetivo do

agente, e faz-se a exasperação das penas.

Para falar em aberratio ictus com resultado duplo, pressupõe--se que a pessoa diversa da pre-tendida tenha sido atingida por erro (culpa), pois, se houver dolo, ainda que eventual, não se estará diante da figura do art. 73.

curiosiDaDE

Erro de tipo acidental: dá-se quando a falsa percepção da realidade incide sobre dados irre-levantes da figura típica. Encon-tra-se previsto nos arts. 20, § 3º, 73 e 74 do CP.• Subdivide-se em: a) Erro sobre o objeto material,

que pode ser erro sobre a pes-soa (art. 20, § 3º, do CP) ou so-bre a coisa.

b) Erro na execução, que pode ser aberratio ictus ou aberratio criminis (arts. 73 e 74 do CP).

c) Erro sobre o nexo de causalida-de.

• Efeito: nesses casos, o agente, apesar do equívoco, percebe que pratica o crime; justamente por esse motivo, o erro não o be-neficia.

aTEnÇÃo

As modalidades de erro so-bre a execução e sobre o nexo causal são chamadas pela doutri-na de delitos aberrantes.

curiosiDaDE

100

Diferença entre o erro sobre a pessoa e a aberratio ictus (erro na

execução): “O erro sobre a pessoa surge no momento da formação

da vontade e nisso se distingue da aberratio ictus, que surge no mo-

mento da execução da vontade” (Paulo José da Costa Júnior, Comen-

tários ao Código Penal, p. 380-382, apud Luiz Flávio Gomes, Erro de

tipo e erro de proibição, p. 126). Além disso, no erro sobre a pessoa,

a vítima visada nem sequer chega a ser ameaçada com a conduta do

agente.

2ª) Aberratio criminis (resultado diverso do pretendido) — art. 74

do CP

Pressuposto: o erro do agente também está nos meios executórios.

No entanto, em vez de atingir pessoa diversa da pretendida, acaba por

atingir bem jurídico diverso do pretendido (daí o nomen iuris: resultado

diverso do pretendido).

Exemplo: o agente atira uma pedra contra uma vidraça e acerta

uma pessoa (só responde por lesão corporal culposa, fi cando absorvida

a tentativa de dano).

Espécies:

a) com unidade simples ou resultado único: só atinge o bem jurídi-

co diverso do pretendido; para falar em aberratio criminis pressupõe-se

que o bem jurídico diverso tenha sido atingido por erro (leia-se: culpa),

pois, se houve dolo, ainda que eventual, deve o agente responder pelo

crime na forma dolosa, não se aplicando o art. 74;

— consequência: só responde pelo resultado produzido e, mesmo

assim, se previsto como crime culposo;

b) com unidade complexa ou resultado duplo: atinge o bem jurí-

dico que almejava e outro, diverso do pretendido, por erro na execução;

— consequência: concurso formal.

9.5 rEsulTaDo DivErso Do prETEnDiDo (ABERRATIO CRIMINIS)

Dá-se quando o agente pretende atingir determinado resulta-

do, mediante dada relação de causalidade, porém obtém seu intento

mediante um procedimento causal diverso do esperado, mas por ele

desencadeado e igualmente eficaz. Exemplo: João, pretendendo ma-

tar seu inimigo, joga-o de uma ponte, na esperança de que, caindo

no rio, morra por asfixia decorrente de afogamento; a vítima, no

entanto, falece em virtude de traumatismo cranioencefálico, pois,

logo após ser lançada da ponte, sua cabeça colide com um dos ali-

cerces da estrutura.

Se o resultado diverso do pre-tendido não for previsto em lei como crime culposo ou for me-nos grave que a conduta em si, não se aplica a regra do art. 74. Exemplo: o agente atira na vítima e não a acerta, atingindo apenas uma vidraça. Aplicando-se a re-gra do art. 74, deveria responder somente pelo resultado, se previs-ta a forma culposa. Ocorre que não há crime de dano culposo no CP, de modo que isso implicaria a não responsabilização do agen-te. Nesse caso, a ele deve ser im-putada uma tentativa branca de homicídio. Se assim não fosse, um fato atípico (dano culposo) ab-sorveria um fato típico (tentativa de homicídio).

aTEnÇÃo

Direito Penal

101

9.6 Erro DE proibiÇÃo

9.6.1 Coação moral irresistível putativa e obediência hierárquica putativa

Um funcionário público recebe uma carta ameaçadora dizendo-

-lhe que não realize ato de ofício; amedrontado, omite-se; depois, per-

cebe que a carta era endereçada a outro funcionário com atribuição

semelhante à sua. Responde o agente por prevaricação? A resposta é

negativa, devendo aplicar-se os princípios relativos ao erro de proibição

(CP, art. 21).

O agente, supondo existente uma ordem, não manifestamente ile-

gal, de superior hierárquico, pratica uma conduta. Na verdade, contu-

do, a ordem não foi dada. Responde pelo crime cometido? Não pode

ser aplicado o art. 22 porque não havia ordem. É o caso de aplicar o art.

21: erro de proibição. O agente supôs que sua conduta era lícita porque

agiu na crença de que havia uma ordem de autoridade superior, a qual

lhe pareceu legal (e cuja ilegalidade, à vista do homem médio, não era

manifesta).

9.6.2 Erro sobre a inimputabilidadeConsidere uma pessoa humilde, que não teve seu nascimento regis-

trado em cartório, acreditando ter 17 anos, quando, na verdade, possui

18 (circunstância apurada mediante perícia). Também aqui devem ser

aplicados os princípios relativos ao erro de proibição.

vocabulÁrio

ato de ofício: é aquele que a Administração Pública faz inde-pendentemente de pedido do interessado. Não há necessida-de de provocação.

102

10 Concurso de Pessoas

104

Não confundir bigamia (con­trair alguém, sendo casado, novo casamento) com adultério. O cri­me de adultério (art. 240 do CP) foi revogado em 2005, fi cando a sua disciplina apenas no âmbito civil.

CURIOSIDaDE

Ressalte­se que, no crime de rixa, em que pese o fato de os contendores serem sujeitos ativos e passivos a um só tempo, não há vio­lação ao princípio da alteridade, pois o delito pressupõe agressões recíprocas dos rixosos, e, portanto, ocorrem lesões a bens alheios.

aTENçãO

10.1 CONCEITO E NOMENCLaTURa

Uma infração penal, na grande maioria das vezes, é obra de uma

só pessoa. Casos há, entretanto, em que várias pessoas reúnem esforços,

materiais ou intelectuais, com o fi m de cooperar para o mesmo delito.

Como regra, os crimes podem ser praticados por uma só pessoa

ou por várias, em coautoria ou participação (v. item 10.4, abaixo). Tais

delitos denominam-se unissubjetivos, monossubjetivos ou de concurso

eventual.

Outros, contudo, apenas podem ser cometidos por várias pessoas

reunidas; são casos em que a pluralidade de sujeitos ativos aparece como

condição para a existência do ilícito penal. Esses crimes chamam-se plu-

rissubjetivos ou de concurso necessário. Neles, não se fala em coautoria

ou participação, pois todos os concorrentes são considerados autores do

crime. A doutrina subdivide-os em: a) crimes plurissubjetivos de con-

dutas paralelas (ex.: CP, art. 288 — associação criminosa); b) de condu-

tas convergentes (ex.: CP, art. 235 — bigamia); e c) de condutas contra-

postas (ex.: CP, art. 137 — rixa ).

De qualquer modo, quando mais de uma pessoa concorre para a

mesma infração penal, fala-se em codelinquência, concurso de agentes

ou concurso de pessoas.

10.2 TEORIaS E REQUISITOS DO CONCURSO DE PESSOaS

Há três teorias a respeito do tema: 1ª) monista, monística ou unitá-

ria; 2ª) dualista ou dualística; e 3ª) pluralista ou pluralística.

A primeira, adotada como regra em nossa legislação (CP, art. 29,

caput), determina que todo aquele que concorre para o crime responde

pelas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. Assim,

exemplifi cativamente, respondem pelo crime de latrocínio (CP, art. 157,

§ 3º, última fi gura) tanto o agente que empunha a arma e efetua o dis-

paro quanto o que, ciente de tudo, limita-se a dar-lhe cobertura (v. TJSP,

RT, 776/576).

Já para a teoria dualista, os coautores incorrem em determinado

crime, e os partícipes, em outro.

Não foi adotada em nossa legislação, embora se possa afi rmar que

o art. 29, § 1º, que trata da participação de menor importância, pos-

sui solução assemelhada à proposta pela presente teoria (o autor será

enquadrado diretamente no tipo penal incriminador, p. ex., art. 121, e

aquele que contribuiu de modo reduzido, no 121 c/c o art. 29, § 1º, im-

pondo-se-lhe pena menor).

Na visão da última delas, ou seja, da pluralista, para cada agente,

A teoria unitária (CP, art. 29, caput) guarda profunda relação com a teoria da equivalência dos antecedentes (CP, art. 13, caput), segundo a qual se considera cau­sa do resultado todo e qualquer fator que para ele tenha contri­buído, ainda que minimamente. De modo semelhante, a infração considera­se produto da conduta de cada um, independentemen­te do ato praticado, desde que ele tenha tido alguma relevância causal para o resultado.

Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n. 12.850/ 2013, de Cezar Roberto Bi­tencourt e Paulo César Busato, Edi­

tora Saraiva. De maneira didáti­ca a obra traz comentários à Lei, abordando os pontos de maior relevância, contribuindo para es­clarecer as alterações normativas sobre o tema.

CURIOSIDaDE

BIBLIOTECa

Direito Penal

105

um delito diferente. Há exemplos excepcionais dessa teoria em nosso CP,

como na corrupção (o corruptor comete corrupção ativa — art. 333 —,

e o funcionário corrompido, corrupção passiva — art. 317), no aborto

(a gestante incorre no tipo do art. 124, e o médico que pratica o aborto,

nos arts. 125 ou 126). Pode-se citar, ainda, o art. 29, § 2º, que cuida da

participação dolosamente distinta.

Quanto aos requisitos, são os seguintes:

a) pluralidade de agentes;

b) relevância causal da conduta de cada um dos participantes (as-

sim, aquele que, querendo contribuir com o homicídio alheio, empresta

instrumento letal, que não vem a ser utilizado na execução do fato e

não influi psicologicamente na conduta do agente, não responde pelo

delito); e

c) vínculo subjetivo (logo, se uma pessoa, p. ex., em virtude de sua

falta de atenção, deixa aberta a porta da casa de um amigo, facilitando a

ação do furtador, não responde pelo crime).

Importante lembrar que a lei não requer acordo prévio (pactum

sceleris) entre os agentes, sendo suficiente a consciência por parte das

pessoas que de algum modo contribuem com o fato.

Como consequência da presença dos requisitos acima, todos os

agentes responderão pelo mesmo crime, na medida de sua culpabilidade

(i. e., haverá identidade de infração penal), nos termos do art. 29, caput.

10.3 aUTORIa

Há uma série de concepções diferentes acerca da autoria:

a) Conceito amplo ou extensivo de autor: todo aquele que concorre

para o crime é seu autor, mostrando-se suficiente a relevância causal e o

vínculo psicológico. Como resultado, essa teoria não distingue o autor

do partícipe.

b) Conceito restritivo ou restrito de autor: autor é aquele que rea-

liza a conduta descrita no tipo penal, ou seja, executa a ação consubs-

tanciada no verbo núcleo do tipo. O partícipe, por sua vez, apenas coo-

pera com o delito, induzindo, instigando ou auxiliando materialmente

seu autor.

c) Teoria do domínio do fato: autor é todo aquele que tem o domí-

nio do fato, isto é, seu controle final. Essa teoria permite a punição do

autor mediato, vale dizer, da pessoa que, sem executar a conduta típica,

controla ou manipula terceiro para que cometa o crime, utilizando-o

como instrumento de sua vontade. Exemplos: 1) quando alguém se vale

de um inimputável para a prática do crime; 2) quando provoca uma

pessoa a agir em erro de tipo (art. 20, § 2º); 3) quando comete uma coa-

ção moral irresistível ou, sendo autoridade superior, expede ordem não

manifestamente ilegal a um subordinado (CP, art. 22).

Teoria do domí­nio do fato, de Pablo Rodrigo Al­flen, Editora Sarai­va. A obra apre­senta uma expo­sição aprofunda­da da teoria do domínio do fato.

O autor, de forma instigante, abor­da as principais vertentes da teoria, seus critérios e sua aptidão para dar respostas à complexa deman­da penal contemporânea.

BIBLIOTECa

Cidade de Deus, direção de Fer­nando Meirelles, 2002. O filme trata da história do con­junto habitacional Cidade de Deus,

criado pelo governo do Rio de Ja­neiro na década de 1960 e que se tornou um dos maiores polos do controle do tráfico na região. É um exemplo de crime que exige concurso de agentes.

Os suspeitos, di­reção de Bryan Singer, 1995. Após um crime que dei­xa vários mortos, a polícia prende cin­co suspeitos de te­

rem cometido o crime. A história mostra como os cinco criminosos foram unidos para um mesmo tra­balho e como um lendário mestre do crime está por trás de tudo. O filme pode levar à reflexão sobre concurso de agentes e teoria do domínio do fato.

CINEMaTECa

106

Dessas, o CP adotou a teoria restritiva: autor, portanto, será aquele

que praticar a ação nuclear; coautores, os que cooperarem na execução

do delito; partícipes, por fi m, todas as pessoas que prestarem auxílio

moral (induzimento ou instigação) ou material. A doutrina, porém, sus-

tenta deva ser aceita no Brasil a teoria do domínio do fato como solução

aos casos de autoria mediata.

10.4 PaRTICIPaçãO

Todo aquele que, mesmo não praticando a conduta descrita no tipo

penal, coopera com o crime responde pelas penas a este cominadas, sen-

do considerado seu partícipe.

Na participação, o procedimento de adequação típica não se dá di-

retamente, ou seja, o ato do partícipe não se enquadra no tipo incrimi-

nador. O art. 121 do CP, isoladamente considerado, pune quem mata al-

guém, mas não aquele que, por exemplo, lhe empresta a arma do crime.

Essa ação, entretanto, também é penalmente relevante por força do art.

29 do CP (norma de extensão pessoal da fi gura típica).

Discute-se a natureza jurídica da participação. A conduta nela

substanciada, inequivocamente, é acessória em relação à do autor, de tal

forma que o partícipe só será punido se o autor também o for (v. art. 31

do CP). O nível dessa acessoriedade, entretanto, é controverso:

a) teoria da acessoriedade mínima: a conduta do autor precisa ser,

pelo menos, típica, a fi m de que se puna o partícipe (crítica: se alguém

induzir uma pessoa à prática de um homicídio em legítima defesa, co-

meterá crime);

b) teoria da acessoriedade limitada: exige que a conduta do autor

seja típica e ilícita (é a melhor teoria);

c) teoria da acessoriedade extrema: a conduta do autor deve ser tí-

pica, ilícita e culpável (crítica: quando se induz menor a matar, ninguém

responde pelo crime — o menor, por ser inimputável; o partícipe, por-

que auxiliou numa conduta sem culpabilidade);

d) teoria da hiperacessoriedade: sustenta que o fato deve ser típico,

ilícito e culpável, acrescentando que o partícipe responderá pelas agra-

vantes e atenuantes pessoais do autor.

10.5 CONCURSOS EM CRIMES CULPOSOS

Segundo orientação majoritária, em matéria de crimes culposos,

admite-se somente a coautoria, mas nunca participação, inclusive por-

que os tipos penais desses delitos são abertos (que abarcam toda e qual-

quer forma de contribuição ao resultado, tornando desnecessária a utili-

zação do art. 29 do CP). Assim, se dois trabalhadores, numa construção,

Veja exemplo de participa­ção no crime de latrocínio: Recur-so em Habeas Corpus n. 58.328, STJ, Relator Ministro Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador convocado do TJPE). “2 (dois) cor­réus, que fi ndaram apenados por latrocínio, tudo com o auxílio de um terceiro réu, condenado como incurso nas sanções do art. 348 do CP, (...) agindo como motorista do bando”. Trecho da Ementa.

aTENçãO

Laranja Mecâ­nica, dirigido por Stanley Ku­brick, 1978. O fi lme trata da história de Alex, líder de uma gangue de de­

linquentes que matam, roubam e estupram até serem presos. O fi lme é um exemplo rico de con-curso de pessoas com a fi nalidade de cometer crimes, além da análi­se de questões morais sobre os im­pulsos destrutivos do ser humano.

CINEMaTECa

Direito Penal

107

lançam uma tábua e matam um transeunte, respondem por homicídio

culposo, em coautoria.

10.6 HOMOgENEIDaDE DE ELEMENTOS SUBjETIvOS

Só há participação dolosa em crime doloso (homogeneidade de elemento subjetivo). Não é possível, como consequência, participação dolosa em crime culposo ou participação culposa em crime doloso. Exemplos: a) um médico, por descuido, entrega à enfermeira uma in-jeção que contém substância letal. Ela, por sua vez, percebendo essa circunstância, dela se aproveita para matar o paciente (dolosamente). Seria o médico partícipe do homicídio doloso praticado pela enfer-meira? Não, em face da diversidade de elemento subjetivo. O médico, nesse caso, deve responder pelo resultado a título de culpa, ou seja, por homicídio culposo, e a enfermeira, por homicídio doloso (há dois crimes, um para cada um dos agentes, e não um só crime em con-curso); b) alguém entrega uma arma verdadeira e carregada a outra pessoa, fazendo-a acreditar que se trata de arma de brinquedo. Em seguida, passa a incentivá-la a apertar o gatilho contra um terceiro. A pessoa, inadvertidamente, pressiona o gatilho, supondo tratar-se de arma finta, e acaba por matar a vítima, praticando um homicídio cul-poso. Aquele que lhe entregou a arma é partícipe desse crime? Não. É autor de um crime doloso (autoria mediata).

10.7 PaRTICIPaçãO DE MENOR IMPORTâN CIa E DOLOSaMENTE DISTINTa

a) CP, art. 29, § 1º: ao agente que tiver participação de menor impor-tância, a pena pode ser diminuída de 1/6 a 1/3. Advirta-se que o disposi-tivo só se aplica aos partícipes, não aos coautores. Exemplo: o agente que, ciente da intenção homicida de alguém, limita-se a indicar-lhe o local para a aquisição de uma arma, pratica conduta que, embora tenha algu-ma relevância causal, pode ser considerada como participação de me-nor importância.

b) CP, art. 29, § 2º: se o agente quis participar de crime menos gra-ve, ser-lhe-á aplicada a pena deste, que será aumentada da metade se o resultado mais grave era previsível. Exemplo: duas pessoas combinam praticar um furto e uma delas, sem o conhecimento da outra, leva con-sigo uma arma de fogo, que vem a ser utilizada, matando o ofendido. O atirador comete latrocínio, e o comparsa, furto qualificado pelo concur-so de duas pessoas.

vOCaBULÁRIO

transeunte: significa passante, pessoa que passa pela rua.

golpe Duplo, di­reção de glenn Ficarra e john Requa, 2015. O filme mostra o personagem do ator Will Smith, que é um tra­

pas seiro profissional, treinando uma novata a cometer crimes patrimoniais. Em várias cenas ela aparece colocando em prática o que lhe foi ensinado, enquanto ele tem pequenas participações no ato. É um bom exemplo de concurso de pessoas e participa­ção de menor importância.

CINEMaTECa

108

10.8 aUTORIa COLaTERaL E aUTORIa INCERTa

Dá-se a autoria colateral quando duas pessoas concorrem para um

mesmo resultado, sem que haja entre elas vínculo subjetivo. Exemplo:

dois atiradores efetuam disparos contra uma mesma pessoa sem que um

saiba da conduta do outro.

A autoria incerta, de sua parte, ocorre quando, diante de uma hipó-

tese de autoria colateral, é impossível determinar quem foi o responsá-

vel pelo resultado. Se no exemplo acima não houver condições de aferir

qual o disparo causador da morte, ambos os atiradores devem respon-

der por tentativa de homicídio


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