+ All Categories
Home > Documents > MÍMICA NO AQUÁRIO PREDILETO - Editora IFSP

MÍMICA NO AQUÁRIO PREDILETO - Editora IFSP

Date post: 07-Apr-2023
Category:
Upload: khangminh22
View: 0 times
Download: 0 times
Share this document with a friend
350
MÍMICA NO AQUÁRIO PREDILETO LINCOLN AMARAL
Transcript

MÍMICA NO AQUÁRIO PREDILETO

LINCOLN AMARAL

MÍMICA NO AQUÁRIO

PREDILETO

L INCOLN AMARAL

2ª EDIÇÃO

Publicado por EDIFSP - Editora do Instituto Federal de Educação,

Ciência e Tecnologia de São Paulo

ReitorEduardo Antonio Modena

Coordenador da EditoraRubens Lacerda de Sá

RevisãoLarissa Silva Costa e

Nathalia Rafaella Marcondes Camargo

Diagramação Larissa Silva Costa e

Nathalia Rafaella Marcondes Camargo

ISBN 978-65-5823-084-7

Amaral, Lincoln.Mímica no aquário predileto [recurso eletrônico] / Lincoln

Amaral. -- 2. ed. -- São Paulo, SP : EDIFSP, 2021.351 p. : il. ; PDF ; 2 Mb – (Coleção Selo Teses &

Dissertações).

E-book.Inclui bibliografia.ISBN 978-65-5823-084-7

1. Corrupção. 2. Administração Pública Federal. 3. Conceituação. 4. Análise. I. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). II. Título. III. Coleção.

CDD B869CDU 869.0(81)

i Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)

A485m

Elaborada por Aline Ap. da Silva Quintã Dupin – CRB 8/8429

AGRADECIMENTOS

A Maria Emilia e Paula; todo o meu amor.

Aos amigos oceânicos que tramaram elos das paixões, fazendo-me semente, ponte na trilha dos sentidos.

A Emília (Bia), tradutora de sonhos, adesão e sensibilidade.

Aos que nadaram comigo nas águas generosas daquele “aquário”.

Ainda ouço suas vozes e sinto os aromas de pinho.

Ao grito interior de dor-delícia suspenso no coração das bandeiras de luta e dos enlaces mágicos.

PREFÁCIO

A leitura deste livro pode oferecer pistas para quem busca alternativas que auxiliem na superação da crise ambiental contemporânea.

Crise civilizatória a exigir de cada um de nós e de todos coletivamente, diagnósticos aprofundados das suas causas e consequências. Arqueologia virtual do presente, como escreve Boaventura de Souza Santos, a nos lembrar que precisamos mergulhar profundamente em nós próprios para compreendermos quem somos, onde estamos e para onde vamos. Questionamentos juvenis, dúvidas adolescentes que precisam fazer-se presentes para toda humanidade.

“República, república, aí que saudades dos meus tempos de república”, dos meus tempos de estudante, da minha juventude. Saudades alegres, que brotam nos re-encontros com jovens ex-jovens que compartilharam momentos intensos e densos de nossas vidas.

Densidade relacional. Entrega ao outro, ao diálogo de corpo e alma. Se Martin Buber tivesse vivido em repúblicas de São Carlos, provavelmente as teria incluído em seu livro “Eu-Tu”, como exemplos de aprendizado afetivo e comprometido, de atenção profunda que busca a compreensão de si e do outro, da sociedade e da vida.

Repúblicas dos anos 70 e início dos 80. Certamente alguns dirão, mas as dos anos 80 e 90 também. E outros também nos chamarão para a razão e complementarão

que ainda hoje é assim, a vida estudantil e a juventude, são repletas de emoções fortes, de relacionamentos afetivo-amorosos, de descoberta dos próprios sonhos e de buscas para realizar as utopias sociais relacionadas ao bem-comum.

Talvez o individualismo que se acentua nos dias atuais, coetâneo ao ceticismo generalizado em relação à política e aos políticos, à religião e religiosos e mesmo às expectativas que nossos antepassados depositaram na ciência e nos cientistas, como disso nos fala Roger Garaudy em Apelo aos Vivos, seja um elemento diferenciador daquela época em que se lutava contra a ditadura militar e não se estava tão imerso nos processos de globalização que homogeneízam sentimentos, saberes e sabores.

A leitura de Mímica no Aquário Predileto, de Lincoln Amaral, possibilita rememorar ou descobrir certas características das repúblicas, da vida estudantil e da juventude de São Carlos, do período que ali as vivenciamos. Torna-se prudente visitá-las, conhecê-las, analisá-las, em momentos de tão significativa crise no projeto de humanidade que vem sendo construído há quase 500 anos, ganhando os atuais contornos após a segunda grande guerra mundial.

“A beleza da rosa está na união das pétalas”, uma proposta de gestão sem hierarquia, para o DCE-Livre da UFSCar, fundamentada em ideais libertários e em comunas de trabalhos. O “pula-roletas”, levando estudantes e os demais usuários dos ônibus de São Carlos, animados pelas propostas de Ação Direta, de José Oiticica, a não

pagarem as passagens para conquistar melhorias no transporte público da cidade.

As ocupações da reitoria e do restaurante universitário em defesa da autonomia da instituição, as assembleias e greves por ensino público, gratuito e de qualidade compreendidas como oportunidades de aprendizados compartilhados. As atividades de educação ambiental e a criação de uma entidade ambientalista, anunciando visionariamente, há mais de trinta anos, uma agenda que viria para o coração da humanidade e permaneceria incorporada ao cotidiano da região. São apenas alguns exemplos de ações que marcaram a trajetória de jovens que acreditaram que podiam sonhar e construir um mundo diferente.

Jovens que enunciavam seus sonhos em diálogos nas repúblicas. Estudavam em grupos extra-curriculares procurando qualificar suas utopias (agradeço a Bento Prado Junior, Flávio Luizeto, Tartaglia e outros professores e professoras que acolhiam e fortaleciam as iniciativas estudantis fora das disciplinas e currículos, sabendo que nelas residiam oportunidades de aprendizagem e de conhecimentos que ajudariam a forjar uma nova universidade ou “pluriversidade”). Debatiam-nas, as utopias, seriamente nas assembleias, onde falavam sobre solidariedade internacional e construíam estratégias e táticas para caminhadas no sentido de sua concretização. Buscavam e cultivavam valores, comportamentos e atitudes que podem ser úteis na compreensão das causas da crise socioambiental contemporânea.

Dentre essas causas pode-se apontar a erosão dos valores e sentimentos comunitários (identidade, pertença, diálogo, solidariedade, partilha, cooperação), a impotência de ação e a redução da felicidade ao consumo, gerando individualismo, competição e outros males diretamente relacionados à degradação humana, social e ambiental. Nesse exercício de vida comunitária, polifônica e polissêmica, apresentada neste livro, pode-se encontrar trilhas importantes de serem percorridas por aqueles que buscam respostas ou pelo menos perguntas mais profundas.

Comunidades interpretativas, de aprendizagem e prática, instituintes de formatos organizacionais que abrigam e incentivam a criatividade e a iniciativa, a inovação e a solução de problemas, os sonhos e o debate crítico sobre caminhos para realizá-los, são hoje, mais do que nunca necessárias.

A vida estudantil, a disponibilidade da juventude para o outro, para o diálogo profundo, a inquietação e irreverência, a busca por conhecimentos não alienados e sentidos existenciais, para além dos trotes e baladas, pode se constituir em oportunidade para cultivarmos novas formas de ser e estar no Planeta.

Precisamos disto! Que as lembranças de Lincoln propiciem a busca por aprendizados na e com a juventude e que isso nos auxilie na travessia do momento atual.

Marcos Sorrentino

(Ambientalista e Professor Titular do departamento de Ciências Florestais da ESALQ/USP)

10

SUMÁRIO

Capítulo 1: Mímica no aquário predileto 13

Capítulo 2: Néctar para o beija-flor 22

Capítulo 3: Trilhas de arribação 26

Capítulo 4: Longo percurso 29

Capítulo 5: Encantamento 32

Capítulo 6: Capi 37

Capítulo 7: Canções ideológicas 41

Capítulo 8: Profeta e o ME 46

Capítulo 9: Gatinho em jaula de leões 53

Capítulo 10: Reminiscências biológicas 56

Capítulo 11: Centrinho... 60

Capítulo 12: Noites quentes de São Carlos 66

Capítulo 13: Peixe para Afrodite 70

Capítulo 14: Nicho-Cante 74

Capítulo 15: Espaço para o amor 81

Capítulo 16: Jânio e Ibrahim 84

Capítulo 17: Xadrez 90

Capítulo 18: João Herrman 98

Capítulo 19: Dentinho e Lond-Dong 103

Capítulo 20: Passeata dos pelados 106

Capítulo 21: Bichos indigestos 111

Capítulo 22: Ousar lutar... Ousar vencer! 114

Capítulo 23: Cova da aranha 117

Capítulo 24: Enterro aracnídeo 122

Capítulo 25: Vida e morte 127

Capítulo 26: CAASO 129

11

Capítulo 27: Cezão e Rafaella 135

Capítulo 28: Cavaleiro da esperança 138

Capítulo 29: Broa 143

Capítulo 30: Hirata 147

Capítulo 31: Maia 150

Capítulo 32: “Bacaiaus” 153

Capítulo 33: Óculos escuros 161

Capítulo 34: Beladonna 166

Capítulo 35: Despertando a videira 170

Capítulo 36: A beleza da rosa está na união das pétalas 176

Capítulo 37: Deliriośk 184

Capítulo 38: Dor bipolar 190

Capítulo 39: Delírios da paixão 196

Capítulo 40: CPC 201

Capítulo 41: Co-gestão 204

Capítulo 42: Tusca 209

Capítulo 43: Tigresas 217

Capítulo 44: Hinos de guerra 225

Capítulo 45: Zé Jorge 235

Capítulo 46: Lula-Lá 240

Capítulo 47: Sessão Maldita 243

Capítulo 48: 6733 248

Capítulo 49: É da lata 251

Capítulo 50: Greve 260

Capítulo 51: Docência 264

Capítulo 52: Avanços e recuos 270

Capítulo 53: Seio 274

Capítulo 54: Violência e intimidação 277

12

Capítulo 55: Pilares 280

Capítulo 56: Fora Ferri 283

Capítulo 57: Amílcar 286

Capítulo 58: Adeus ao Canário 289

Capítulo 59: O pôr do sol é de quem o vê 294

Capítulo 60: Invasão 298

Capítulo 61: Itamar 304

Capítulo 62: Não cortaram a voz 309

Capítulo 63: Volver 316

Capítulo 64: Munir 324

Capítulo 65: Lágrimas de um pierrô 331

Capítulo 66: Sucessão 338

Capítulo 67: (Des)enlace 343

Glossário 345

13

MÍMICA NO AQUÁRIO PREDILETO

Tony mergulhou para processar a montanha de novidades. Encontrava-se frente à comida do restaurante universitário (RU). O sabor da primeira refeição iludia o paladar dos calouros. Após encarar diariamente o bife “detetive”, duro, frio e com nervos de aço, sua opinião sobre aquele rango mudaria de modo radical. A carne vinha acompanhada pelo arroz “carnavalesco”, servido sempre em blocos, complementado pelo feijão “Lorenzetti”, que levava apenas um banho de água quente.

Ouviu pessoas cantando alegremente:

…Gererê, gererê e LSD… Gererê, gererê e LSD…

Eu ontem tive um sonho, um sonho esquisito

Sonhei que tava pondo na bunda de um mosquito…

…Gererê, gererê e LSD… Gererê, gererê e LSD…

A profusão de cartazes no refeitório convocava a galera para reuniões políticas e filmes de arte, na “Sessão Maldita”, o grupo de educação ambiental etc. Grandes festas aconteciam no DCE da UFSCar e no CAASO da USP, as entidades estudantis das Universidades de São Carlos. O jovem rapaz era uma esponja tentando absorver tudo em seu entorno.

14

Estudantes revezavam-se na mesa de Tony; alguns descartavam os restos das bandejas, enquanto outros tomavam seus lugares. Havia conversas animadas e interessantes, discussões e debates variados, por toda parte.

Um grupo de estudantes despertou a atenção de Tony. Contavam piadas e falavam sobre tendências do rock e da filosofia. Discutiam fatos da política ao futebol, de modo interessante e envolvente. Destacavam-se duas figuras inusitadas, que o saudaram com entusiasmo.

Tony percebeu que um deles também era bicho, o lustre em sua careca não deixava dúvidas. Espontaneamente surgiu entre ambos cumplicidade e afeto. O calouro combinava fala mansa com personalidade arrojada, articulada e sensível.

Era tradição na Federal batizar os bichos com apelidos sugestivos e engraçados, retratando suas características pessoais. Para decepção de Tony, ele não ganharia nenhuma designação especial, sendo chamado simplesmente pelo seu nome de batismo.

O bicho de fala mansa recebeu a alcunha de “Profeta”. Estava acompanhado pelo colega veterano, uma figura antológica da Universidade, conhecida como “Serafim”. Moravam na tradicional república “Conde Nabeau”.

Outros estudantes, simpáticos e espirituosos, chegaram e engrossavam a roda. Quando Tony começou a entender a conversa, Serafim o interrompeu com o comentário:

15

— Chiii...! Começou cedo. Lá vem a Convergência de novo com o seu blá, blá, blá... Será que hoje vai ter trenzinho da alegria pros bichos?

Tony não entendeu a observação, a turma gargalhou e logo todos se calaram para ouvir o informe. No meio do refeitório, um estudante mais velho, de barbas espessas, subiu na cadeira e gritou a plenos pulmões. Sua voz reverberou clara e sonora por todo o amplo salão:

— Companheiros! Vamos participar hoje da reunião no DCE. Discutiremos os rumos de nossa mobilização, o “Pulo a roleta”. Esse movimento é uma reação à ganância dos empresários do setor de transportes. Eles só desejam aumentar seus lucros e explorar as classes estudantis e operárias...

Durante uma respiração mais prolongada do orador, Profeta cochichou com Tony o nome do líder que estava discursando: “Canário”.

— Precisamos avançar em nossa organização política, para que cada vez mais pessoas da população pulem as catracas. Tarifa zero, enquanto os vampiros do capitalismo não aplicarem valor justo às passagens.

Serafim em tom de deboche comentou sobre o estilo dramático e empostado da fala de Canário, a quem também chamou de caudilho.

— Chegam notícias de que os motoristas, em caso de Pulo a Roleta, conduzirão os ônibus à delegacia. A polícia está à serviço dos empresários, ameaça prender

16

nossas lideranças e enviá-las ao DOPS. Vamos articular o comitê de mobilização para lutar contra a repressão.

Tony interessou-se pela argumentação de Canário. Jamais testemunhara tamanho exemplo de liderança. Contudo, percebeu no encaminhamento da questão que havia uma tentativa de manipulação autoritária. O orador concluiu seu raciocínio:

— Para que o movimento ganhe representatividade, contamos com a presença de todos. A Convergência Socialista quer marcar posição. Pelo fim do regime militar! Fora FMI! Por uma Universidade Autônoma e Livre! Viva o Socialismo e a Luta de Classes! Até a vitória, companheiros!

O que se ouviu depois foi o som ensurdecedor de garfos e facas batendo ritmicamente nas bandejas. A reação seria sinal de aprovação ou descontentamento dos ouvintes?

Tony ficou encantado com a perspectiva de engajar-se naquela mobilização. O movimento favoreceria inclusive seus próprios interesses, já que a redução das tarifas proporcionaria importante economia a ele.

Canário desceu da cadeira e reuniu-se com o grupo de militantes. Assemelhando-se a uma tribo adornada, usavam camisetas repletas de palavras de ordem e imagens de figuras de esquerda, como Marx, Lênin e Trotsky. Usavam flâmulas presas às calças jeans e bolsas a tira-colo.

17

Distribuíram panfletos convocando as pessoas para a reunião anunciada por Canário. Tony viveria longa e densa história com essa tendência política.

Nesse ínterim, um indivíduo vestido de arlequim chamou a atenção de Tony. A figura singular deslocava-se com passos de bailarino pelo RU, sua face estava maquiada de branco. Dela caía grossa lágrima, ressaltada pelo contorno desenhado com lápis preto de olho.

A longa touca branca com estrelas azuis enfeitava a cabeça do artista. Extenso prolongamento da peça pendia sobre suas costas, de onde sobressaía o chamativo chumaço felpudo lilás.

Aquele menestrel trajava túnica dourada cobrindo as pernas. Deixava à mostra apenas o surrado tênis conga, único indício de que era estudante da Universidade.

O turbilhão foi interrompido por uma Afrodite sorridente que se apresentou:

— Oi, tudo bem? Meu nome é Anne, faço curso de Enfermagem. Você é bicho, né…

Aqueles olhos azuis da moça resplandeceram, pedras brutas de cristal. Suave aroma de almíscar fluiu dos longos cabelos, ligeiramente dourados, os lábios eram delicados e grossos. Uma beleza desconcertante, pela qual Tony ficou extasiado.

O coração do rapaz disparou quando a coxa da Afrodite roçou a sua. Viu de relance os seios dela pelo decote da camisa entreaberta. Mal podia falar, gaguejou

18

algo incompreensível. Ela, rápida e articulada, resolveu o impasse:

— Olha, estou organizando a célula do partido com os bichos e gostei de você. Agora não vai dar pra gente conversar, fique com esse jornal. Vamos assistir ao show do Paco que é muito legal, você vai gostar. Tchau.

Após um selinho na boca do rapaz, desapareceu na multidão.

Tony fascinou-se pelo espetáculo a que assistiu, de repente, sem anúncio ou estardalhaço. Era apenas mais um dia comum, se é que eles existiram, naquele lugar que estava se transformando em seu aquário predileto.

A figura fantasiada se pôs a fazer expressões mímicas entre as mesas dos estudantes, que a rodearam atentos.

Tony notou que não se tratava de uma apresentação banal, ela contava uma história consistente. O artista simulava a trama por meio da qual Deus inventou o homem e a mulher.

Primeiro, Deus surgiu no paraíso, cercado por arcanjos e outras entidades celestes, entediado com a falta de novidades.

Aí, com barro e formão, esculpiu um corpo perfeito de homem. Os detalhes anatômicos sugeridos por aqueles gestos eram precisos e impressionantes.

Um dia, a criatura suplicou ao criador que inventasse a mulher, abrindo mão da própria costela pela realização desse desejo. Após cenas cômicas e conflituosas, Deus atendeu ao homem e criou a mulher.

19

No gran finale, foi adicionado o inevitável toque de humor. O homem, excitado ao ver a mulher, iniciou gestos repetitivos com o formão de Deus. O objeto escapou de suas mãos, mas os movimentos compulsivos continuaram, sugerindo vigorosa masturbação.

Deus, aflito, tentou intervir. Aconteceu então a última cena, o altíssimo limpando a face depois da súbita ejaculação do homem...

Após a bela performance, o artista arqueou elegantemente o corpo em agradecimento. A moçada aplaudiu e vibrou de alegria, dispersando-se lentamente, em direção aos afazeres da tarde.

A não ser Tony, que se sentou e começou a degustar a sobremesa, maravilhado e perplexo com o espetáculo.

Para aumento de seu assombro, surgiu um estudante com o rosto ainda manchado pela maquiagem retirada às pressas. Segurando o bandejão, pediu licença a Tony para sentar-se. O calouro não acreditou, era o artista que acabara de apresentar-se.

Tony ainda era um bicho assustado em seu primeiro dia de Universidade. Entretanto, não se fez de rogado e puxou conversa. Ambos deram-se muito bem, o papo fluiu naturalmente. Aquele modo informal e leve de relacionamento entre os estudantes em breve seria rotina para ele.

O mímico chamava-se Paco e cursava Engenharia de Materiais na UFSCar. Sua família era de origem circense. Contou que, quando adolescente, numa temporada de

20

férias, aperfeiçoou técnicas mímicas na França, durante turnê familiar pela Europa.

Desde então ficou apaixonado por aquela arte, na qual se aprofundou como autodidata, apresentou-se em vários teatros e circos brasileiros, na mesma rota da linhagem mambembe.

Aos trancos e barrancos concluiu o Ensino Médio no Rio de Janeiro, onde morou com um rígido tio paterno. Apesar de seu amor à arte, traumatizou-se com a insegurança do histórico doméstico, sem lar fixo ou ancoragem em qualquer setor da vida.

Por isso, decidiu fazer Engenharia e assumir seriamente a futura profissão. Todavia, as luzes da ribalta corriam fortes ainda em suas veias. Assim, às vezes, precisava atuar de novo sem programações antecipadas.

Paco permanecia submerso meses em sua rotina escolar. Quando ninguém esperava, ressurgia de surpresa na praça pública, em uma festa, no ginasião da Universidade, de madrugada no bar lotado. A cada nova apresentação, a maquiagem, o figurino e as histórias eram sempre originais. Quando o grande artista emergia do subterrâneo todas as tribos paravam, embevecidas.

O tempo de conversa entre os estudantes acabou. Sentiram que a partir dali seriam amigos, irmãos. Paco e Tony, duas histórias tão distintas, unidas agora no mesmo aquário predileto.

21

Após a saída do artista, Tony continuou a refletir. Apesar de muito jovem estava aprendendo profundas lições. Em suas atuações, Paco proporcionava fantasia e lirismo às pessoas que, por outro lado, davam-lhe o carinho e o reconhecimento de que tanto precisava.

Dispensavam-se assim agradecimentos, a água e o oxigênio eram comuns e compartilhados naquele aquário.

22

NÉCTAR PARA O BEIJA-FLOR

Enquanto se acostumava às refeições no bandejão do RU, do picadinho de carne inodoro com arroz à salada de vegetais indecifráveis, Tony sabia que penetrara numa atmosfera de luz.

Sua vida estava radiante. Tudo naquela cidade, naquele campus, era inusitado, misterioso, seduzia-o um fascínio que nunca vivenciara, néctar à frente do beija-flor em seu primeiro vôo.

O desenrolar dos fatos foi repentino, naquele início dos anos 80. Há poucos dias Tony ainda morava com os pais e andava cabisbaixo por não ter passado no vestibular.

Havia prestado a FUVEST, Biologia na USP, única opção escolhida pelo teimoso rapaz, contra conselhos de parentes e amigos. Dito e feito, não foi aprovado.

Restou-lhe ajudar o pai durante o dia no modesto restaurante da família. Frequentava um curso de datilografia para arrumar um emprego melhor e fazia cursinho noturno.

A barra pesou. Ele detestava suas atividades. As tarefas enfadonhas e repetitivas do restaurante. O curso de datilografia era tão monótono quanto uma

23

pornochanchada sem sexo. O moedor de carne do cursinho, as piadas sem graça dos professores.

No primeiro semestre, Tony desencanou do curso superior. Queria muito mais do que isso. Sonhava em descobrir o mundo longe da casa dos pais. Experimentar as surpresas que a vida poderia oferecer, contemplar todas as possibilidades pelas quais sua alma inquieta clamava.

Para piorar as coisas, a família atravessava graves problemas. Seus irmãos estudavam fora e ficava evidente a impossibilidade dos pais sustentarem mais um filho nessas condições. Mas a questão mais sensível e imediata era a gravidade da doença de Dona Gertrudes, a mãe de Tony.

Essa conjuntura dilacerava o rapaz. O desejo de liberdade e a consciência da necessidade de cuidar da mãe e auxiliar financeiramente a família foi um paradoxo com o qual conviveu por muitos anos.

Nesse compasso, o tempo foi passando. No meio daquele ano, Tony soube sobre o vestibular da Universidade Federal de São Carlos.

Resolveu prestá-lo e sem graça comunicou o pai. Ele compreendeu, com expressão de dor dissimulada na face. O garoto disfarçou, evitou vacilar naquela hora decisiva e fez a inscrição.

Haja teimosia! Foi o único vestibular que prestou com apenas uma opção na cabeça: Ciências Biológicas na UFSCar.

24

Saiu o resultado, Tony não encontrou seu nome na lista de aprovados, o que se repetiu mais uma vez. Rememorou a frase de seu ídolo maior assassinado no ano anterior, John Lennon: O sonho acabou!

O clima para Tony era de adeus às próprias pretensões, precisava conformar-se. Ruminar o cotidiano buscando traçar novos mapas para o futuro. Perspectivas? Tentar novamente a FUVEST no final do ano.

Ao sair após uma tarde bovina da aula de datilografia, Tony chegou em casa, trocou de roupa e pegou o material para ir ao cursinho. Foi interrompido pelo pai em lágrimas com envelope na mão:

— Chegou hoje esse telegrama, você entrou…Parabéns… Parabéns, meu filho… Que orgulho, aprovado em Universidade Federal.

Sim, era verdade. Tony entrou na UFSCar na lista de terceira chamada, o fato era tão atípico que fora comunicado por telegrama. A mensagem dizia que deveria confirmar sua matrícula no prazo máximo de três dias.

Ficou desconcertado. A oportunidade estava ali na sua frente, mas logo a voz da consciência se fez ouvir:

Como ir e deixar minha mãe doente? A situação financeira vai pesar ainda mais. Não é possível partir nessa situação.

Tony, muito aflito, expôs suas preocupações à mãe, que falou, generosa e decidida:

25

— Tony, você vai, isso não se discute, é o seu futuro. Eu vou me cuidar, tenho seu pai para me ajudar. Quanto às despesas, você vai se virar com o pouco que temos.

Pronto, tudo estava aparentemente resolvido, embora Tony soubesse como ninguém que não era bem assim.

Refletiu sobre a atitude de sua mãe, se perguntando se algum dia teria o desprendimento e a coragem daquela mulher.

Se qualquer pessoa tem dificuldade de esperar aos 17 anos os chamados da vida, para Tony, isso era insuportável. Ele precisava angustiantemente de autonomia e liberdade.

Queria poder andar sem rumo na chuva ao relento e cumprimentar o universo, escolher os melhores amigos da família humana, fazer suas próprias opções políticas e ideológicas, amar a mulher que jamais imaginou estar em seus sonhos, tocar a flor da cultura e da sensibilidade, viajar nas janelas de percepções lisérgicas, ouvir de perto a voz luminosa da ciência da vida. Ser ator, protagonista e espectador ao mesmo tempo.

Tudo isso e muito mais faria parte, em breve, do cotidiano de Tony.

26

TRILHAS DE ARRIBAÇÃO

Tony sentia-se como ave, pronto a arribar, procurando novos habitats. Estranhos sentimentos afloraram com a partida de casa. Às vezes parecia que a felicidade esvaía-se pelos dedos, mas também poderia ser agarrada por eles. Com prematura saudade da infância, lá se foi ele.

Recordou-se de sua chegada em São Carlos. A despedida dos pais não fora fácil, como nunca é. Muita comoção, viagem cheia de expectativas, coração em sobressaltos sobre o que estaria por vir.

Trazia apenas o fino colchonete amarrado com barbante e a mochila repleta de pertences. Pouco dinheiro, por milagre ficaria no máximo uns quinze dias na cidade.

Logo aprendeu truques para a sobrevivência. Pegar carona, levar frutas servidas no RU para a república, fazer bicos e conseguir trocados extras.

Aquele turbilhão de sentimentos da viagem noturna intensificou-se com uma estudante da Federal que sentara ao seu lado. A conversa foi rápida, logo se atracaram no reduzido espaço das poltronas do ônibus.

27

Como a moça era desinibida, o casal mudou-se para o fundo. As cortinas foram fechadas escurecendo o ambiente.

Quando chegaram, Tony recebeu o convite de dormir na casa da garota, mas não aceitou. Ficaria alojado numa república de rapazes de sua cidade. Despediu-se dela com longo beijo, após combinarem um reencontro.

Sua recepção foi fria na república dos “Engenheiros Babacas”. Jefinho, o mais intolerante, propôs que Tony pagasse um “ágil” para ingressar na comunidade, o que constrangeu o rapaz.

Cezão, que cursara o Ensino Médio com Tony, com sua voz de trovão encerrou o assunto, dizendo:

— Porra, Jefinho, deixa disso! O cara acabou de chegar, depois a gente discute o caso. Relaxa, meu!

Tony estava com fome. Pouco à vontade, foi à cozinha e abriu a geladeira para tomar água. Em letras garrafais, nas cascas dos ovos, constavam os nomes de cada morador.

Observou nas prateleiras o saco plástico de batatas onde estava escrito Jefinho, os outros embrulhos de comida mantinham-se vedados e etiquetados. Tony pensou: meu Deus, é o fim! O que estou fazendo aqui? Tenho que sair rapidamente!

Mas ficaria mais algumas semanas naquele inferno até encontrar o lugar ímpar que o destino lhe reservara como lar definitivo.

28

Olhou atentamente a garrafa de água, certificando-se de que ela não era de ninguém. Mais calmo, matou a sede e acomodou no chão do quarto o colchonete ao reduzido espaço entre as camas de Jefinho e Cezão. Dormiu pesadamente uma noite sem sonhos.

29

LONGO PERCURSO

Na manhã seguinte, Tony despertou bem cedo e antes de todos. Trocou-se rapidamente e saiu. Não queria chegar ao seu primeiro dia de Universidade acompanhado por aquelas pessoas.

Andou dois quarteirões até a Avenida São Carlos e plantou-se no ponto para aguardar o ônibus, com a papelada nas mãos, aflito para fazer a matrícula.

O circular parou ao sinal de Tony e outros gatos pingados. Ao subir deparou-se com três estudantes, entre os quais Magali, sobre quem passou seu radar rastreador.

Morena com sorriso contagiante e olhos rasgados, usava bata indiana sobre a esgarçada calça jeans. Suas axilas denunciavam tratar-se de uma das famosas “peludas” da Federal, feministas ferrenhas, politizadas e ardentes amantes. Magali fez um discurso de convocação:

— Aí cara, tudo bem? Seja bem-vindo! Precisamos reduzir o preço das passagens. Para isso, a galera está pulando a catraca até que esses empresários filhos da puta revejam o absurdo aumento de 25%. Eles elevaram as tarifas de surpresa, durante as nossas férias.

30

Tony ficou apreensivo e sem saber o que fazer. Considerou o convite justo e atraente, porém estava ressabiado com as consequências. Magali insistiu:

— A população de São Carlos também está aderindo, veja aquela senhora. Isso começou espontaneamente, foi ação direta mesmo. Alguns estudantes sem grana, revoltados com a situação, iniciaram o pulo a roleta. O movimento ganhou corpo e estamos aqui. O que você acha? Está com a gente?

Nesse ínterim, Tony observou pessoas pulando a roleta, inclusive uma senhora com idade avançada.

O rapaz avaliou sua posição. Ele nem estava matriculado, poderia ser preso ao aderir e perder a sonhada vaga. Voltaria para casa desmoralizado, seria uma vergonha para a família…

Refletiu melhor, o Brasil vivia a plenitude da ditadura militar. Apesar da censura, Tony não era desinformado e sabia do destino de quem desafiasse as leis e o regime. Não havia garantias para ninguém. Um delegado de polícia acumulava poderes imperiais, poderia encaminhá-lo para órgãos de segurança secretos, onde a tortura ainda era prática corrente.

A família não teria recursos para contratar um advogado que, mesmo assim, pouco poderia fazer. Seria loucura atender aos seus impulsos. Estava entre a cruz e a espada. Deveria ser prudente e pagar a passagem, garantindo sua permanência na Universidade? Ou mandar tudo às favas, mergulhar de

31

cabeça num movimento que não conhecia, assumindo todos os riscos?

Numa atitude impulsiva, abriu fortemente o compasso das pernas. Apoiou-se na barra superior da catraca e transpôs o obstáculo, sem pagar nem um tostão.

O cobrador deu de ombros e assistiu à cena indiferente. Provavelmente estava acostumado à situação. Tony sentou-se rápido perto do motorista.

Aquele percurso até o campus pareceu ao rapaz o mais demorado que jamais faria.

32

ENCANTAMENTO

Para alívio de Tony o veículo transpôs o belo portal florido da Universidade e ele desembarcou ileso. Havia escolhido a melhor opção para sua consciência e não sofrera nenhuma punição.

Atravessou o imponente gramado em declive e dirigiu-se ao “Forte Apache”, um local de localização estratégica entre prédios de vários cursos, com a lanchonete, onde os estudantes tomavam café-da-manhã a preços subsidiados.

Ao lado do Forte Apache localizava-se a Atlética, associação que organizava os torneios esportivos e a bateria dos jogos. Ali aconteciam intermináveis jogatinas que começavam de manhã e não tinham hora para acabar. Às vezes, o carteado seguia por semanas a fio.

Encostado à Atlética ficava o pequeno teatro onde o coral universitário, grupos teatrais e outros artistas ensaiavam e se apresentavam.

Com o copo de café com leite e o pão na chapa, Tony sentou-se na mureta para fazer o desjejum.

Em frente ao Forte Apache, havia uma banca de xerox e a desorganizada sala do DCE, o pequeno cômodo recoberto por cartazes políticos, no qual se produziam

33

as moções, os informes e se estabeleciam os contatos com a UNE, parlamentares e entidades da sociedade civil.

Grandes articulações e conchavos, inúmeras eleições de diretoria, além de muito xaveco, papo furado e outras tramoias, ocorreram naquela sala. A sede do DCE localizava-se no centro de São Carlos, onde aconteciam as festas e reuniões políticas.

Alguns sinais do passado foram preservados no campus. O antigo paiol mantinha intactas as vigorosas madeiras de lei. Tony podia sentir, em cada palmo da Universidade, o fio condutor dos costumes, traduzido naquele clima campestre pós-moderno.

A paisagem à sua frente ainda mantinha intactas algumas áreas de Mata Virgem, as quais se somavam outras, plantadas com grandes pinheiros. A vegetação convivia com prédios novos e sofisticados, com avançada tecnologia, em várias áreas do saber.

Ele observou os novos colegas sentados entre as belas árvores do gramado, dispostas ao lado da agência do Banco do Brasil. Aproveitavam o frescor do sol matinal para relaxar, deitar falação sobre vários assuntos e espreguiçar gostoso antes do início das aulas.

Abaixo do Forte Apache, atrás da gigantesca ramagem de bambus, resplandecia o “ginasião”, palco gregário dos torneios esportivos e eventos culturais, onde aconteciam amplas assembleias.

34

À direita de quem chegava à UFSCar, havia uma biblioteca magnífica, próxima aos prédios da Área da Saúde que aglutinava cursos de Fisioterapia, Enfermagem e Terapia Ocupacional.

Essa área, caracterizada por um público predominantemente feminino, era assediada. Na Federal da época, predominava cursos de exatas, majoritariamente compostos por homens.

Do lado esquerdo do gramado, em frente à gigantesca bandeira do Brasil, localizava-se a imponente Reitoria. Abaixo dela, ocupando grande área, o departamento de Ciências Biológicas.

Cada detalhe do campus surpreendia Tony por sua diversidade e riqueza. Após confirmar sobriamente a matrícula, aproveitou o final da manhã para conhecer a Universidade.

Desceu ao ginasião que estava vazio e tinia de limpeza. Contemplou a quadra esportiva coberta, com arquibancadas amplas e piso de madeira bem cuidado.

Tony, que amava basquete, viu uma bola parada no meio do ginásio. Era muita tentação, não resistiu… Abriu o portal metálico do alambrado e começou a jogar.

Não notou o tempo passar, os acessórios esportivos eram novos e de excelente qualidade. Adorou o som de “chuá” quando a bola entrava na redinha da cesta, sem quicar no aro, o deslocamento fácil de seu velho tênis no piso que reduzia o atrito, a aderência especial

35

da bola em suas mãos. A camiseta ficou ensopada de suor, depois a secaria ao vento. Absorvido no prazer do jogo ouviu a voz rouca:

– Bisso, pudemos djogar cuntigo?

Com encorpado sotaque, o gringo de cabelos encaracolados tentou falar um “portunhol” compreensível. Alejandro, de vasto bigode, era Nicaraguense e estudante de Química.

Estava com outros dois companheiros estrangeiros. Vitorino, angolano negro e forte e Valdez, um boliviano atarracado. Tony aceitou de bom grado o convite e jogaram várias partidas de vinte e um.

Tony conversou longamente com eles. Contaram de seus países com saudade. Logo seria aceito como membro flutuante da comunidade dos gringos, até certos limites tolerados pela restrita confraria. Depois da diversão, despediram-se.

Tony caminhou no entorno do ginasião para pegar a brisa e descansar. Sentou-se no gramado e fumou lentamente um cigarro. Reparou num grupo bizarro de estudantes jogando futebol.

O magérrimo Natã estava sem camisa, vestia um short mínimo e gritava estridente, quando a longa cabeleira permitia, ao lado de Pintassilgo, com sua barba vermelha de papai Noel, além de outras figuras raras.

Tratava-se de uma partida peculiar, sem gols nem times definidos. Os rapazes caíam uns sobre os outros e gargalhavam quando a bola era chutada longe, próxima

36

ao lago. Imbatível no uso de trajes exóticos, Karl usava tênis conga com meia social esfarrapada, bermuda larga e mangas de camisa.

Tony não conseguia tirar os olhos daquela turma singular da Estatística. Naquele jogo não se cultivava a competitividade física, apenas o prazer da brincadeira.

Muito interessante, precisava conhecê-los. Após o jogo, Karl chegou e sentou-se ao lado de Tony. Acenderam mais um cigarro e começaram um papo que não cessou jamais…

37

CAPI

Tony não estava satisfeito. Em sua voracidade de explorar o novo aquário desceu o gramado atrás do ginasião, em direção às margens do grande lago. O reservatório d’água estendia-se por cerca de um quilômetro de comprimento por 30 metros de largura, soprava uma brisa fresca e reconfortante.

Na margem oposta, pairava a imponente floresta de pinheiros. À esquerda da grande lagoa, a ponte dava acesso à rampa do RU. Abaixo dela, a água era drenada pelo reduzido sumidouro, formando um pequeno regato.

Tony intuiu que pertencia àquele lugar. Podia senti-lo como parte do próprio corpo, simbiose total. Ali não havia contradição possível. Dona Gertrudes parecia saudável, sua família sem problemas financeiros, não precisava torturar-se. Assim entorpecido, recebeu o convite:

— Bicho, vem com a gente, vamos dar uma “bolta” no parque ecológico antes do almoço! Vem?

A voz melodiosa era da ruiva Mariza, com seus longos e revoltos cabelos, o símbolo da paz e amor no grande medalhão acima da bata estampada de algodão cru. Pés branquinhos sob os chinelos de couro.

38

Tony regressou abruptamente da viagem interna, imaginou-se sonhando ao encarar a garota, ela parecia um anjo psicodélico. Acompanhando Mariza, um sujeito magro vestia blusa xadrez, de mangas arregaçadas. Seus óculos com aros de tartaruga escondiam delicadas feições:

— Vamos lá meu, o sol está bonito… O convite é bom, a caminho da perda de sanidade… O pinheiral faz bem pra gente, deixa as ideias mais claras e o coração atento.

O cara falava a língua cantada dos paulistanos:

— Ôrra meu!

Procedia de bairros italianos da capital. Era conhecido como “Capi”, uma figura doce e maluca.

Dentro do pinheiral, caminharam na estreita trilha de terra batida que margeava o lago. O dossel das grandes árvores sombreava tão intensamente o percurso a ponto de escurecê-lo.

O ambiente era frio, úmido e perfumado pelas essências de pinho. Mariza enrolou com maestria o baseado perfeito, assemelhado a uma cigarrilha. Ela falava e ria sem parar, enquanto fumava e socializava a bagana. Para relaxar, adorava vir dar essa bolta digestiva no pinheiral.

Especialista em astrologia e tarô, pretendia ir de carona para Machu Picchu. Capi a ouvia com significativo silêncio, ela sabia que o rapaz a compreendia acima das palavras e representações, tocava no âmago das pessoas sem invadi-las.

39

Os três recém-convertidos amigos venceram o caminho de terra batida alcançando o parque ecológico, um local paradisíaco. Avistaram diversas trilhas na preservada vegetação de brejo, cerrado e mata de galeria.

Vários animais selvagens como macacos, lobos guarás, tatus e jacarés viviam soltos no local, que também abrigava a bem cuidada área de piscicultura. Havia cultivos vegetais esparsos com hortas e estufas.

Com alegria contagiante despiram-se e nadaram num regato tributário de águas límpidas que desaguava no lago. Quando o sol estava quase a pino, retornaram ao RU para almoçar.

Ao chegarem, Mariza despediu-se dos rapazes, iria a rodovia pegar carona para São Paulo. Confidenciou a eles que pretendia se juntar a um grupo Hare Krishna. Ao partir, disse, sorrindo:

— Maninhos, algum dia uma borboleta azul pousará pertinho dos dois. Peguem uma flor do cerrado e nadem com ela no Parque Ecológico, essa borboleta sou eu. Amo vocês, a gente se encontra na poeira da estrada.

Partiu com a coragem e a certeza de quem não voltaria mais. Tony e Capi cumpririam o ritual de nadar no Parque à procura daquela borboleta.

Tony conheceu os cursos de Exatas na região norte do campus. Visitou a biblioteca e a arborizada pista da saúde, onde a moçada corria e fazia caminhadas.

40

Percorreu também o campo de futebol oficial, ao lado da piscina olímpica.

O final da tarde aproximava-se rapidamente. O céu adquiriu tonalidade cor de fogo escura, antes do belo pôr do sol. Frente àquela pintura, sua sensibilidade começou a assumir o papel de aprendiz, revendo crenças arraigadas, abrindo-se a novas percepções. Olhou mais uma vez para o imenso jardim ao seu redor. Imunizado contra as próprias amarras, sem cercas e limites, desejou de corpo e alma integrar-se àquela bucólica comunidade.

O conjunto das experiências vivenciadas naquele dia fez Tony associar o clima de paz de seu aquário predileto aos famosos festivais de rock da década de 60. Ele era lindo, como em Woodstock…

41

CANÇÕES IDEOLÓGICAS

Tony queria ficar o menor tempo possível na república dos Engenheiros Babacas. Jantou bem cedo no RU e chegou antes dos outros, tomou banho e trocou-se rapidamente. Um compromisso noturno o aguardava, a reunião política convocada pela Convergência.

A sede do DCE era um grande sobrado, o bar ficava no andar térreo ao lado da sala de televisão e de jogos com mesas de bilhar e pebolim. O amplo salão de festas, onde as baladas rompiam a madrugada, localizava-se no andar superior.

Tony encostou-se no balcão para fazer hora e foi abordado pelo senhor grisalho de barriga proeminente. Ele fumava um grosso e malcheiroso cigarro de palha. Sem nada perguntar, abriu a cerveja estupidamente gelada e colocou em frente ao rapaz, afirmando:

— Bicho, pode me chamar de “Cacique” e nunca pergunte meu nome verdadeiro! Trabalho aqui no bar do DCE e sou patrimônio desta porra, só falta a plaquinha. Por tradição, esta primeira cerveja é na faixa. Mas, a partir de agora,você paga à vista! Com o Cacique aqui não tem boi nem pindura!

42

Sem discutir Tony agradeceu a oferta e tomou a primeira da noite. Aos poucos os estudantes foram chegando. Mário Japa, com violão em punho e voz aveludada, cantou algumas canções:

…Gererê, gererê, e LSD… Gererê, gererê, e LSD…Tomara que chova uma chuva bem fininha, que molhe

sua cama e você venha pra minha. Eu sem a cueca e você sem a calcinha… Gererê, gererê, e LSD…

Era acompanhado no pandeiro por “Fóssil”, estudante folclórico que tentava formar-se há mais de dez anos. Todo semestre era a mesma coisa, Fóssil começava sério, barba feita, caderno e livros à tiracolo. No entanto, sem explicação, de uma hora para outra degringolava. Abandonava tudo e levava pau na maioria das disciplinas.

A roda engrossou em torno da sessão musical, as pessoas cantavam, bebiam e conversavam animadamente. No intervalo da música, Cacique, entre as espremidinhas de limão que produzia em série, soltou a provocação pública:

— E aí, Fóssil, esse canudo sai ou não sai? Meu filho, desse jeito você só vai se formar com a minha idade!

A gargalhada foi geral. Fóssil de bate pronto retrucou a Cacique, dirigindo-se a ele pelo seu nome de batismo, do qual aquele senhor detestava ser chamado:

— Olha, seu Ambrósio, nem fodendo. Eu sou igual ao meu Corinthians e não desisto nunca. Vou formar em breve, mandar fazer um quadro bem bonito e pendurar o diploma aí atrás de você. Se não arranjar

43

emprego, venho aqui trabalhar para te ensinar a fazer caipirinhas, porque essas estão uma merda.

A gozação recíproca espraiou-se. Dois estudantes com idade mais avançada destacavam-se no ambiente. Eles não bebiam ou divertiam-se como os outros, estavam ali para trabalhar.

“Tarefero”, sujeito louro de porte baixo, vestia camisa social impecavelmente engomada e estilosa boina negra. Destoava na indumentária e no tom grave com que conversava principalmente com os bichos.

Estava acompanhado por “Calango”, pernambucano de barba comprida e arrastado sotaque nordestino. Ambos seguravam uma pilha de jornais e matraqueavam sem parar.

Tony foi ao banheiro e voltou apressadamente para continuar curtindo a roda musical. Tarefero o interrompeu e engatou o discurso decorado que parecia uma cartilha de alfabetização:

— Olá, tudo bem? Você já ouviu falar do MR-8? Somos uma corrente clandestina de esquerda. Participamos do combate armado ao regime militar e temos como objetivo a instalação de um estado Socialista no Brasil.

Tony sentiu-se invadido com a selvagem tentativa de doutrinação. A falta de cerimônia de Tarefero o irritou, afinal nem o conhecia. Porém, o “arauto da cortina de ferro” parecia não se importar com o mal-estar.

— Estou te passando nosso jornal “Hora do Povo”, aqui estão nossas principais teses. Cuidado com a

44

Convergência! A pretexto de organizar o movimento, querem capitalizar em cima da mobilização. Desejam utilizá-los como massa de manobra e pretendem apenas aumentar seus quadros.

Tony tentou argumentar que ainda não conhecia as tendências políticas do movimento estudantil (ME). Assim, ficava difícil para ele avaliar qualquer uma delas. O apóstolo vermelho utilizou desta vez tom professoral:

— Por isso mesmo, cuidado! A convergência utiliza tramoias pra aliciar os bichos. Estratégias de sedução, inclusive o “método cama”. Você já ouviu falar do trenzinho da alegria? Pois é verdade. As moças da Convergência transam com os bichos para eles ingressarem no partido, pode? Não caia nessa!

Tony lembrou-se de seu encontro com Anne no RU. Ela era da Convergência e aquele selinho estava gravado na memória do rapaz. Pretendia seduzi-lo e usar o método cama com ele? Torceu para que sim. Seria capaz de ler “O Capital”, de Marx, de trás pra frente por uma noite com ela.

Calango, foi mais simpático e pedagógico:

— Grande bicho, não se aperreie, não. Eu sei que é muita informação para processar. Notei que você é um cara interessado em política. Com calma e sem pressão, logo saberá quem é quem nessa zona.

Embora Tony quisesse se desvencilhar do papo e voltar rapidamente à roda de música, Calango insistiu.

45

— Dá licença que eu agora vou vender meu peixe. Também sou filho de Stalin, mas do PCdoB, racha do velho partidão, o PCB. Pegue o nosso jornal “Tribuna da Classe Operária”. Estamos organizando uma chapa alternativa à da Convergência, para disputar as eleições da diretoria do DCE.

A cabeça do bicho ficou confusa, diante daquele caminhão de siglas ideológicas. Calango percebeu e buscou emplacar a última cartada de cooptação.

— A coisa é simples. Aqui todos os gatos são vermelhos, o que muda é a orientação teórica para alcançar o Socialismo. Nós somos Stalinistas, acreditamos na instalação progressiva do regime em cada país, enquanto eles equivocamente são Trotskistas e internacionalistas, ou seja, um bando de porra loucas, fora da realidade.

Os dois militantes “profissionais” se foram, mas voltaram a “pescar” os bichos antes da reunião, tentando minar a articulação da Convergência.

Tony surpreendeu-se ao perceber que o relacionamento entre estudantes de grupos rivais era amistoso. Trocavam farpas em clima de brincadeira e companheirismo. Alguns, pertencentes a tendências diferentes, moravam na mesma república, compartilhando necessidades materiais, afetivas e humanas.

Meio desconfiado, sacou que era “carne fresca no pedaço”. Não gostava de fazer aquele papel de vitrine alienada, peça de manipulação que se enrosca como isca nas tramas dos discursos ideológicos.

46

PROFETA E O ME

Apesar do fascínio que a militância exercia em Tony, ele percebeu o acentuado autoritarismo daqueles partidos, relacionando-o à situação de ilegalidade e repressão em que se formaram.

Tentou resistir ao destino de presa ideológica fácil, sem armas de defesa diante desses métodos de cooptação política, foi salvo da fragilidade pelos esclarecimentos daquele que se tornaria seu confidente, o rapaz de fala mansa, inteligente e de sensibilidade aguçada.

Profeta sempre estava rodeado de amigos, transitava com desenvoltura nos grupos de qualquer orientação ou bandeira. Aproximou-se de Tony, e, bem-humorado, ofereceu-lhe um trago da macia caninha mineira:

— E aí, como está se saindo com todo esse assédio do escroto processo de doutrinação? Já aprendeu a cantar o hino da Internacional Socialista? Pois é, esses caras pegam pesado, não dão trégua para nós. Somos a salsicha do cachorro-quente deles.

Tony identificou-se com o comentário. Profeta, com seu modo despojado, conseguiu verbalizar sua angústia.

— Já te deram até os jornalecos… O conteúdo é discutível, mas o papel é bom para enrolar umas

47

baganas. Pelo menos pra isso serve essa bíblia do proletariado. Estamos lidando com os fundamentalistas da política. Pra mim, no momento, o movimento que mais interessa é o de quadris.

Tony gargalhou e ficou aliviado por poder discutir o assunto sem tensão, com alguém próximo. Assim, arriscou o comentário:

— Falando nisso, também recebi o jornal “Alicerce” da Convergência. Vou ler detalhadamente todas as teses deles. Quem sabe assim tenho mais assunto pra praticar movimento de quadris com as militantes? Comigo elas podem aplicar sem medo o método cama.

Estava selada a afinidade entre ambos. Trocaram as experiências mais relevantes, confirmando o sentimento de que seriam companheiros inseparáveis.

Para juízos apressados, o modo irônico de Profeta interpretar os fatos poderia deixar passar despercebida a sua sólida formação. A conversa tornou-se compulsiva. Concordaram que os estudantes tinham importante papel político no país, embora faltasse unidade ao ME.

Os rachas teóricos nas discussões conjunturais levaram à multiplicação de tendências com orientações antagônicas.

Tony bebia as palavras de Profeta como fontes preciosas de conhecimento.

De acordo com ele, no início dos anos 60, a UNE foi dirigida pela Ação Popular, grupo vinculado à esquerda da igreja Católica.

48

O quadro mudou em 1965, quando a ditadura militar baniu a existência dos partidos políticos. Houve reação e algumas facções estudantis avaliaram ser possível tomar o poder por meio do enfrentamento armado ao regime.

Entre elas, a partir de cisão do PCB, criou-se o PCdoB, que organizou a guerrilha no Araguaia, a Vanguarda Popular Revolucionária do capitão Lamarca e a Aliança Libertadora Nacional, comandada por Carlos Marighella.

Na década de 70, a repressão imposta pela ditadura esmagou essas organizações. Seus militantes foram assassinados, presos ou deportados. Os grupos destroçados fundiram-se a partidos tradicionais e organizados nacionalmente.

Sobreviveram o PCdoB, que no ME era representado pela corrente “Caminhando”, a Ação Popular, o MR-8 (“Refazendo”) e o PCB (“Unidade”). Nesse período, cresceram as tendências trotskistas, compostas pela Convergência Socialista (“Novo Rumo”) e a Liberdade e Luta (“Libelu”).

Profeta martelou a análise de conjuntura. A avaliação ganhou maior interesse, pois chegou ao período em que eles viviam. Tony ficou agradecido por começar a entender o fio da meada.

Em 1980, ocorreu a reestruturação do pluripartidarismo. A grande novidade para o ME foi o surgimento do Partido dos Trabalhadores, que resultou da fusão de várias tendências dos movimentos sociais e estudantis.

49

As correntes trotskistas como a Convergência

Socialista, o grupo mais organizado em quadros e

militância, dominando o cenário do ME na UFSCar,

migraram em peso as bases do PT.

O problema, segundo Profeta, era que o PCdoB,

desde a reconstrução da UNE, em 1979, comandava

com hegemonia a entidade maior dos estudantes. A

“Viração” ocupava também as diretorias da maioria

das UEEs do país.

Assim, havia um pano de fundo mais amplo em

jogo naquela disputa pela diretoria do DCE. Profeta

sintetizou seu raciocínio:

— Tony, o que estamos assistindo é a guerra de

cachorros grandes pelo poder. Tarefero e Calango

representam o MR-8 e o PCdoB, que apoiam interesses

do PMDB. São como satélites orbitando ao redor da

grande agremiação que os acolhe.

Tony soube que Profeta militara na Libelu no

movimento secundarista. Ficou impressionado com a

visão global que possuía a respeito daquele complexo

cenário político.

— Acho que eles ficaram vacinados com a derrota da

luta armada. Agora são mais pragmáticos e cautelosos.

Já a Convergência procura formar uma aliança estudantil

e sindical com o PT. Ela quer ampliar a penetração e a

representatividade do partido dentro do ME.

50

Tony percebeu que boa parte da fluência do amigo foi adquirida na Conde Nabeau, palco de várias articulações, onde moravam veteranos experientes.

Perguntou a Profeta:

— Eu vi no RU um cartaz da Juventude Católica Universitária (JCU), esse grupo é remanescente da Ação Popular?

— Nada a ver. São carolas à procura de crucifixos para satisfazer suas fantasias sexuais. A esquerda da igreja debandou para o PT. Há boatos de que a JCU poderia aliar-se a grupos de direita da Federal para concorrer ao DCE. Eu não acredito, a direita aqui é inexpressiva.

Profeta contou sobre o fenômeno que estava alterando o equilíbrio de forças políticas da Universidade. O surgimento dos “independentes”. Eles não eram vinculados a partidos e acreditavam na ação direta, estratégia com influência anarquista.

Defendiam o ME autônomo, sem interferência das tendências. O Pulo a Roleta surgiu com este tipo de ação direta. Alguns estudantes decidiram pular a catraca dos ônibus como sinal de protesto. Foi uma reação espontânea e criativa ao aumento das tarifas, sem consulta prévia às correntes partidárias.

No início, as tendências criticaram a forma de luta. Mas a realidade atropelou a lenta dinâmica dos partidos. Como dinossauros, eram morosos para responder às questões impostas pela realidade.

51

Os estudantes e a população aderiram ao movimento. Assim, a ação direta conseguiu, sem discursos ideológicos, organizar as pessoas em torno de uma reivindicação pontual. Profeta foi sarcástico:

— A ação direta não usou manjadas palavras de ordem, centralismo democrático nem a rigidez arcaica dos partidos. Conseguiu sem alarde fazer o que todos eles sonham e não conseguem com seus métodos antiquados. Mobilizou os estudantes e a população para uma causa comum.

Tony não entendeu por que a Convergência veio a apoiar a mobilização, já que era inicialmente contrária. Profeta deu seu recado:

— Como diz o ditado: “Em lagoa que tem piranha, jacaré nada de costas”. Eles perceberam que ficariam isolados se não respaudassem o Pulo a Roleta. Agora pretendem apropriar-se da mobilização. Todos eles MR-8, PCdoB e Convergência, são farinhas do mesmo saco.

Tony questionou o pessimismo ou realismo extremado do amigo:

- Bem ou mal é necessário construir uma liderança mínima para centralizar o movimento. Os partidos podem ter suas limitações e problemas, mas cumprem esse papel fundamental. Você não acha?

Profeta concordou a contragosto com o ingênuo raciocínio do rapaz, afirmando:

52

— Tudo bem, beleza. Acho que você pode ser então uma alternativa para isso. Se não for assim, afinal, o que estamos fazendo aqui? Apenas assistido como lambaris a uma reunião de tubarões?

53

GATINHO EM JAULA DE LEÕES

A conversa entre Tony e Profeta foi interrompida pelo burburinho. Os estudantes ocuparam cadeiras dispostas em círculo, a reunião estava prestes a começar.

Tony procurou Anne e ficou sabendo que ela não iria comparecer. Estava hospitalizada fazendo um tratamento médico, não lhe contaram maiores detalhes do caso. Estudantes de diferentes orientações lotaram a reunião, inclusive alguns desgarrados, como Tony. O quórum foi altamente significativo para aquela primeira discussão de formação de chapa.

Canário destacava-se no agitado grupo da Convergência. Ao seu lado Kin, experiente militante originária do movimento sindical. “Carioca”, outro determinado soldado da tendência, secretariou inscrições e o controle do tempo das intervenções.

Kin abriu a reunião:

— Estamos iniciando a discussão para a formação da chapa “Alicerce”. Após os informes de Canário, abriremos inscrições para os companheiros que quiserem falar. Vamos respeitar o teto de dez minutos para cada intervenção.

54

Canário fez prolongada análise sobre o Pulo a Roleta. Após quarenta minutos, Tony percebeu a manobra, não houve limite ao tempo da primeira fala.

O líder deu a entender sutilmente que o movimento seria centralizado pela Convergência. Após muita verborragia, formulou sua proposta:

— Devemos, em caráter de urgência, formar uma comissão de mobilização suprapartidária, para definir os rumos do Pulo a Roleta. Proponho que ela seja eleita nesta reunião.

O mote sugerido foi discutido à exaustão. Antes da votação definiu-se que a comissão seria composta de oito membros. Somente nessa fase, quinze estudantes levantaram outras propostas de encaminhamento e questões de ordem.

Durante a inscrição dos candidatos, Profeta falou baixinho algumas palavras no ouvido de Carioca.

Canário recebeu a relação de inscritos e pediu que se posicionassem ao seu lado. Tony ficou surpreso quando seu nome foi chamado, pensou tratar-se de outro estudante homônimo. Profeta comentou com sorriso maroto:

— Sabe o que estamos fazendo aqui? Perdão! Fiz sua inscrição para a eleição. Você nos representará nessa geleia geral, cara! Vamos anda, levanta e vai lá que a galera está te esperando!

O rapaz com o coração acelerado reuniu-se aos outros candidatos. Ficou mais calmo ao supor que não

55

seria eleito, logo ele, um simples bicho desconhecido! Profeta engoliria sua atitude imprudente.

Dentre os eleitos, cinco eram simpatizantes da Convergência. As outras duas vagas foram preenchidas por Calango e o incógnito bicho Karl, com sua exótica vestimenta. A última vaga foi a de Tony, que se sentiu na pele de um indefeso gatinho entrando na jaula de leões famintos.

O esquema estava armado, pegava bem a presença de bichos não alinhados na comissão. Eles depois poderiam ser facilmente cooptados. Em caso de rebeldia, não havia problema, a maioria dos votos já estava mesmo garantida nas mãos da Convergência. Porém, aqueles bichos não seriam facilmente domesticados.

Perspicaz e exímio articulador, Karl surpreendia nas táticas políticas, recheadas de ironia. Trazia consigo a marca registrada de profunda sensibilidade social.

Aquele momento propiciou entre dois destinos uma identidade única, acima das contradições. Tony e Karl não aderiam a imposições de quaisquer naturezas, eram idealistas, jovens e nutriam fome selvagem de vida e transformação.

56

REMINICÊNCIAS BIOLÓGICAS

Tony admirava a bela vegetação que veste a terra. Para ele o fenômeno da vida, em suas múltiplas expressões, era a essência do planeta. Tinha a pretensão de compreender alguns de seus elos.

Vivenciou a primeira aula de Biologia da UFSCar, com o fascínio das aventuras da infância, buscou dentro de si a paixão daquele menino do passado, como quem saboreia o crocante sabor do primeiro lambari pescado.

Ao entrar na sala de aula da turma composta de quarenta alunos, com prazer reencontrou-se com Profeta e Capi, descobrindo que os dois também eram bichos da Biologia.

As “panelas” da classe formaram-se por relação de amizade e afinidade. A escolha de Tony foi imediata, sentou-se no “fundão” com destacados membros da galera do barulho: Capi, Profeta, Zoom, Jararaca, Abobrinha, Gustavo, Olívia, Marilin, Silvinha, Gueixa e Virgínia.

Em tom grave, com o comprido e amassado jaleco e atrás das lentes dos óculos engordurados, o instruído e pouco comunicativo professor de botânica iniciou sua densa aula teórica:

57

— Bom dia, hoje eu discutirei alguns aspectos relevantes da sistemática de Chrysophyceae…

Após duas horas de intensa explanação em que o mestre expôs densas informações, Tony não se conteve e perguntou a Jararaca:

— Ô cobra, peguei o bonde andando, meu. O mestre deu muita matéria nas semanas iniciais? É verdade que a bibliografia disponível na biblioteca é toda em língua estrangeira? Cara! Eu não entendo picas nenhuma de inglês. Afinal de contas, sobre o que ele está falando?

Jararaca fez cara de sabichão e com seu vasto conhecimento respondeu:

— Ora bicho, é tão simples. Por que você não entendeu? Ele tá falando das crisofíceas, ué, — Tony perdeu a paciência:

— Tudo bem, mas que tipo de ser vivo é uma crisofícea? Caralho!

Jararaca sem perder a pose replicou:

— São seres vivos chamados de crisofíceas, que conheço apenas por esse nome. Sei também que se reproduzem e isto basta.

Tony conformou-se e entendeu que não deveria perguntar mais nada. No intervalo a turma foi ao Forte Apache. Nos corredores da Biologia, avistaram um veterano do curso que tinha fama de figuraça. Era conhecido pelo apelido de “Ovário” que gritava sem parar:

— Pega, pega, pega… Depressa, pega o réptil! Eu o vi sair do banheiro pulando!

58

Todos gargalharam ao perceberem que o tal “réptil” perseguido por Ovário, não passava de uma rã assustada em fuga.

Ovário havia sido um aluno excepcional, diferenciado nos estudos e pesquisas, o primeiro da turma. Desenvolveu trabalho inovador sobre efeitos neurológicos provocados por fungos alucinógenos, para o qual se expunha como cobaia experimental.

Porém, após alguns meses o rapaz degringolou. Pirou bonitinho pela excessiva ingestão de chá de cogumelo. Esperava a chuva fina cair e depois de uma semana, corria ao pasto da Federal para coletar “cogus” que cresciam em profusão sobre o estrume do gado. Sabia identificá-los como ninguém.

Diziam que sofreu overdose nessas viagens, das quais não retornou mais à razão, transformando-se naquela figura errante, divorciada da própria personalidade.

Sua família lutou para mantê-lo na Universidade, pois ele era resistente aos tratamentos e rebelava-se contra outra opção de vida. A direção do curso, parcimoniosa com a situação do rapaz, abriu exceção para ele, mantendo sua matrícula extra-oficialmente.

Seu apelido surgiu na palestra sobre métodos anticoncepcionais. O anfiteatro lotado recebeu com pompa a visita de um doutor prestigiado da Medicina da UNICAMP. Ovário interrompeu a exposição do especialista e expôs veementemente seu ponto de vista:

59

— Sou contra a vasectomia! Se minha mãe tivesse feito, eu não teria nascido!

No Forte Apache Tony reuniu-se com a comissão do Pulo a Roleta. Ficou incumbido de passar informes sobre a mobilização aos estudantes da Biologia. Para sua decepção, Anne não estava na Universidade.

A morosa e incompreensível aula de botânica seguiu o mesmo rumo até exaurir-se como uma lesma desconfortável dentro da própria concha.

Tony foi almoçar na companhia de Zoom, Jararaca e Marilin. Precisava rapidamente tomar pé do curso, cujo alto nível de exigência, percebera na demonstração daquela manhã.

A graduação era mais apertada do que imaginou. Período integral, todas as manhãs e tardes da semana preenchidas. Oito aulas por dia, com quatro disciplinas específicas, dividindo-se entre aulas teóricas e práticas: Biologia Celular, Botânica, Anatomia e Invertebrados.

Mas os biólogos “gemiam na rampa” de verdade nos cursos de Exatas, como Cálculo Diferencial e Integral, que funcionavam como pré-requisitos para disciplinas do semestre subsequente.

Tony ficou sabendo que a área de Ecologia era o carro chefe nas pesquisas da Biologia. Marilin comentou que a Limnologia estava precisando de estagiários, que disputariam bolsas de iniciação científica. Com eternos problemas financeiros, interessou-se imediatamente.

60

CENTRINHO

Após o almoço, o pessoal da Biologia dispersava-se. Alguns caminhavam pelo pinheiral para fumar um “digestivo” e relaxar, outros seguiam diretamente à biblioteca. Lá resolviam listas de exercícios, estudavam e aprofundavam pesquisas.

Muitos estudantes faziam a digestão no gramado em frente à Biologia, descansando na sombra de árvores frondosas, até o início das aulas vespertinas.

Cochilavam no arvoredo com a cabeça recostada no colo das colegas. Formavam-se rodas de veteranos, bichos e alunos mais avançados de mestrado e doutorado.

A convivência estreitava-se naquele refúgio onde havia muita troca. Casais eram formados, grupos aglutinavam-se por temas de interesse, amizades e parcerias aconteciam.

Embora cada curso organizasse seu próprio centro acadêmico, os centrinhos, o DCE era a organização estudantil mais representativa.

As reuniões do centrinho, mais leves e descontraídas do que as realizadas no DCE, priorizavam aspectos da formação e atuação profissional dos biólogos.

61

Naquele dia Tony conheceu “Gaio” e “Bia”, estudantes que fariam parte da vanguarda do movimento ambientalista brasileiro. Calmo, amistoso e carismático, Gaio divulgou atividades pioneiras de Educação Ambiental.

Ele incorporava a antítese dos militantes das tendências. Primava pela inovação e delicadeza na organização de grupos, cujas ações resultavam de discussão coletiva, sem imposição de ideias pré-estabelecidas.

Faltava pouco para formar-se em duas graduações. Sua notável habilidade de organizar processos, amadureceu por meio de pesquisas que aliavam estratégias pedagógicas revolucionárias ao que havia de mais moderno no discurso ecológico da Biologia.

Bia era morena, esguia, rosto fino e sorriso enigmático. Trançava os longos cabelos, quando falava as palavras certas, como quem planta uma semente. Era da turma de 1976 da Biologia, a mesma de Gaio. Atuavam conjuntamente na construção de um trabalho discreto e eficaz.

Organizaram um programa modelar que se tornaria referência no país. Deste trabalho participaram várias outras figuras carimbadas do curso, como Cereja, Spock, Abílio, Ritoca, Rose Bacalhau, João Só, Vera, Marilin, Nancy, Dulcinéia, Anelli, Baiano, Aninha, Rincão, entre outros.

Sem alarde e histeria, numa época em que a sustentabilidade não estava na ordem do dia,

62

reestruturaram currículos de diversos cursos, que incorporaram a temática ambiental. Desenvolveram também ações para racionalizar os recursos naturais e energéticos do campus.

Sabiam cooptar docentes e estabelecer parcerias com a administração da Universidade. Assim, aos poucos, foram ganhando adeptos para negociar suas reivindicações, que incluíram a reutilização de água, a conservação de energia e a coleta seletiva de resíduos. Este programa atuou como pedra angular na criação da Coordenadoria Especial para o Meio Ambiente da UFSCar.

Mas não agiam apenas no campus. Organizaram cursos de Educação Ambiental para as escolas públicas do município. Fundaram a Associação de Proteção Ambiental de São Carlos, pioneira na organização de cooperativas de catadores de lixo.

Naquela reunião do centrinho, Tony, após as belas colocações de Gaio e Bia, passou informes do movimento Pulo a Roleta. A mobilização ganhava múltiplas adesões. No entanto, a reação articulada entre empresários, polícia e Exército estava se esboçando.

Um grupo de estudantes e populares fora detido. Porém, como o número de prisioneiros extrapolou as acomodações da cadeia, foram liberados pouco depois, sem maiores problemas.

Estudantes de Pirassununga informaram ao DCE que a tropa de choque do Exército encontrava-se em estado de prontidão. Com apreensão esperava-se uma

63

intervenção armada no campus. Assim, se desejavam vencer, precisariam continuar unidos e mobilizados.

Antes da dispersão ao final da reunião, Tony se aproximou de Gaio e tentou impressioná-lo:

— Parabéns pelas intervenções e iniciativas. Admiro pessoas com sua coragem e capacidade de liderança, prontas a enfrentar o arbítrio.

Gaio colocou o braço no pescoço de Tony e falou mansamente:

— Eu não sou líder nem acredito em vanguardas messiânicas. Nossas propostas são libertárias, desprovidas de disputas pelo poder. As pessoas participam sem hierarquias nem regras ditadas pelas tendências.

Tony surpreendeu-se com a naturalidade com que Gaio quebrou o gelo de sua abordagem forçada.

— Ouvi com atenção seu informe, você parece diferente deles. Quem sabe poderemos conversar em breve sobre aplicação de ação direta no DCE? Por enquanto, se quiser, fique com esse livro.

O livro de Lucy Parsons chamava-se “Princípios do Anarquismo”. Após cordiais despedidas, Tony o abriu aleatoriamente e leu um trecho significativo:

“Os anarquistas sabem que um longo período de educação precisa preceder qualquer grande mudança fundamental na sociedade, uma vez

que não acreditam na miséria do voto, nem em campanhas políticas, mas sim no desenvolvimento

de indivíduos com pensamento autônomo.”

64

À tarde Tony teve a sua primeira aula prática. O laboratório de Citologia era amplo e disponibilizava um microscópio por aluno. Corantes, fixadores, lâminas, lamínulas, micrótomo, água destilada, conta-gotas e outros apetrechos encontravam-se nas bancadas.

Gomes, o jovem professor que concluíra pós-doutorado na Inglaterra, organizou os trabalhos. Diferenciava-se do perfil da maioria dos colegas, que valorizavam mais a pesquisa que a docência.

Zoom resumia assim a pouca habilidade pedagógica do corpo docente:

— Saber, eles sabem. Mas daí a passar isso pra nós vai um abismo imenso!

Cada aluno deveria montar seis lâminas com protocolos específicos, observadas em detalhe no microscópio. Depois, por meio de desenhos esquemáticos, seriam transcritas para relatórios individuais.

Não dava para piscar nessas aulas. Se o aluno cometesse algum engano, comprometiam-se observação e registro. Por equívocos na manipulação do microscópio, comuns entre os bichos, as lâminas eram quebradas e o procedimento recomeçava.

Para evitar falcatruas, Gomes selecionava diferentes observações por aluno. Tony não assistira às orientações para uso do microscópio. Para aumentar a ansiedade, o relatório deveria ser entregue até às 18:00 horas.

Não bastasse toda essa pressão, desvencilhou-se dos colegas da comissão do Pulo a Roleta que foram

65

procurá-lo, em caráter de urgência, para que participasse de uma reunião com outras entidades da cidade.

Não aceitou a intimação. Argumentou que não poderia perder a aula e detectou censura e crítica nos olhares dos “Convergentes”. Percebeu uma crescente incompatibilidade entre a militância e as responsabilidades da vida acadêmica.

Contudo, para sua salvação, a turma do barulho era unida e o auxiliou nas etapas do trabalho. Zoom deu dicas sobre a preparação do laminário. Explicou como fazer os finos cortes citológicos e o ajuste da lamínula sobre a lâmina.

Jararaca ensinou-o a manipular o microscópio. Marilin ajudou na parte teórica. Silvinha interpretou com ele as imagens microscópicas e a identificação das estruturas visualizadas.

Os desenhos esquemáticos eram o que Tony mais gostava. Sentia-se relaxado como numa terapia, ao passar horas de dedicado prazer proporcionado pela tarefa.

Afinal, deu tudo certo! Entregou o relatório em cima da hora. Compreendeu que não prosperaria no curso cultivando apenas o amor à natureza, originário de sua infância. Estava entre profissionais do estudo da vida e precisaria encará-la também pelos seus aspectos técnicos e científicos.

66

NOITES QUENTES DE SÃO CARLOS

Dizem que há milhões de anos, o perímetro hoje ocupado pela cidade de São Carlos localizava-se no topo de um grande vulcão, razão pela qual é conhecida como a cidade do clima, onde a temperatura amena impera na maior parte do ano.

Por outro lado, Zoom, comentava com graça a frequência com que as quatro estações podiam aparecer no mesmo dia:

— Olha cara, aqui é o seguinte. Se for sair de casa, leve um kit: camiseta, guarda-chuva, blusa de frio e capa.

Para os estudantes, as noites quentes de São Carlos eram tema de músicas que se referiam ao movimento dos bares, festas e agitos que rolavam na vida noturna da cidade.

Alguma coisa acontece no meu coração… Que só quando cruza a São Carlos e a São Sebastião…

Tony estava curioso para conhecer aquelas noites. Descansou na república dos Engenheiros Babacas e preparou-se para sair.

67

Enquanto os outros moradores estavam assistindo televisão, foi abordado por Jefinho, que lhe aplicou inesperado esporro público:

— Estou preocupado contigo, toda noite virou balada? Você chega de madrugada, não estuda com a gente e está envolvido com os comunistas da Federal. O que está acontecendo, pode me explicar?

Tony percebeu que todos eles, exceto Cezão, apoiaram o sermão. Não se conteve e explodiu:

— Escuta aqui, seu filho da puta. Eu saio direto desta merda de república pra não olhar essa sua cara de cuzão. Não se meta na minha vida, pegue a sua opinião e enfie no rabo.

Tirou a carteira do bolso, amassou cédulas de dinheiro e jogou na cara de Jefinho, gritando:

— Pegue, seu bosta, pegue o dinheiro! Essa é a única linguagem que você entende mesmo, seu hipócrita!

Partiu para cima do rapaz com o punho cerrado. Jefinho apavorado refugiou-se no quarto. Os colegas apartaram a briga e Tony acalmou os ânimos. Ao se recompor, despediu-se apenas de Cezão. Estava ansioso para sumir daquele baixo astral.

A partir daquele momento, passou a ser tratado com respeito e até deferência na república. Jefinho nunca mais encarou diretamente seu olhar. Aquele lugar, onde os pobres moradores vigiavam-se, parecia adotar normas ocultas de um presídio.

68

A Avenida São Carlos era a principal artéria da cidade, cortando-a de fora a fora. Destacava-se pelos declives acentuados, refletindo o relevo regional. Nesta avenida, cravada no centro da cidade, localizava-se a sede do São Carlos Clube, agremiação que reunia a mais fina flor da burguesia local.

Um tradicional “boteco”, que ocupava um velho prédio acima do São Carlos Clube, foi eleito pelos estudantes como principal ponto de encontro noturno. Chamava-se “Café do Centro”.

Não se sabe exatamente por que o local aglutinava tanto a moçada. Um ponto forte a seu favor era a localização estratégica, perto dos cinemas, de um mar de repúblicas, da sede do DCE e não muito longe do campus da USP.

A bodega abria cedo e servia caprichado café ao heterogêneo público matutino, além das primeiras caninhas do dia aos alcoólatras insones mais convictos.

Vidal era frequentador típico dos horários alternativos aos preferidos pela boemia tradicional. Andava costumeiramente de chapéu coco, vestindo camisa social florida por fora da calça de tergal. Seu sapato branco, impecável, fora usado no passado em bailes de gafieira.

A rotina de Vidal era obsessivamente periódica e regular, denunciando características de sua rígida personalidade. Foi membro de destaque no comércio local. Entretanto, a esposa pela qual era perdidamente

69

apaixonado, fugira com seu sócio, após um grande desfalque, sem deixar vestígios.

Como tantas histórias de entrega ao vício etílico, aquela tinha por enredo a desilusão amorosa. Ele chegava todos os dias ao amanhecer, antes do bar abrir. Sentava-se no banquinho lateral e, com modos refinados, pegava a palha e a alinhavava meticulosamente para fazer o pito.

Quando o tremor das mãos permitia, o fumo de corda era cuidadosamente picado e moído pelos seus dedos experientes. Enrolava o “paierinho” com maestria e a dignidade de um lorde.

Consumia a manhã conversando com quem se dispusesse a ouvi-lo. Saía do bar, sentava na praça e jogava baralho com seus camaradas. Era uma boa alma, gentil e atencioso. Para alguns observadores atentos, Vidal tomava mais de vinte doses de cachaça por dia.

Nunca perdia o controle ou participava de confusões. À noitinha, antes de recolher-se no mesmo horário, distribuía candidamente seus cheirosos “paieros” para aqueles poucos estudantes que davam atenção às suas histórias.

70

PEIXE PARA AFRODITE

Tony desceu a Avenida São Carlos e parou no Café do Centro para tomar cerveja e jogar conversa fora com seus amigos, Profeta, Karl, Jararaca, Capi e Zoom. Não havia dia fixo, de segunda-feira a domingo, no final da tarde, o burburinho do bar ressoava.

Os estudantes chegavam aos poucos e sentavam nas mesinhas internas. Com o avanço da noite, a calçada ficava completamente tomada de pessoas. Era difícil circular sem esbarrar, as filas para o banheiro avolumavam-se.

A fauna noturna diversificava-se no boteco, propiciando encontros inusitados. Ébrios de toda estirpe, prostitutas, policiais, trabalhadores, desempregados e até playboys e patricinhas do São Carlos Clube, lá entravam, por engano ou curiosidade.

Tony conversava descontraído quando avistou a deslumbrante loura Anne. Estava com um companheiro de partido que falava e gesticulava sem parar. Parecia um cowboy atirando com as duas mãos. Tony fixou a atenção e notou que a moça estava chorando.

Serafim sentou-se à mesa dos rapazes, Tony checou com ele informações de seu interesse. Suas piores previsões confirmaram-se. Anne e “Faroeste”, apelido

71

do namorado da Afrodite, moravam juntos. Ela fora recentemente internada para fazer aborto de um filho dele.

Tony não deixaria passar essa oportunidade. Criaria um fato qualquer para marcar posição com Anne. Em seu imaginário duelou com Faroeste, pessoa com a qual antipatizou instantaneamente. Mas não se importaria com o “marido”, queria acontecer apenas para ela.

Já meio embriagado, suplicou aos amigos:

— Ahhh… Anne. Hoje ela vai se apaixonar por mim! É caso de vida ou morte. Será que na Conde Nabeau tem um mimo pra eu presenteá-la? — Esta república era uma das que ficavam perto do Café do Centro.

Serafim começou a gostar da história e colocou mais lenha na fogueira:

— Olha, bicho, você é um cara de pau do caralho. Você tem a manha de dar um peixe do aquário lá de casa pra ela, na frente de todo mundo?

Tony respondeu sem pestanejar:

— Fechado! Depois eu reponho o bichinho pra vocês.

Após dez minutos, Serafim voltou trazendo em baixo do casaco o saco vedado com elástico, no qual nadava um pequeno peixe vermelho.

— Bom, fiz minha parte. Agora quero ver a macheza. Vai ou não vai? Esse peixe é do Luiz Canibal. Se ele ficar sabendo, estou morto.

72

O rapaz ponderou:

— Peraí, Serafim, sem pressão, já vou. Só um tempinho para escolher o melhor momento e não correr risco de levar tábua. Como diria meu avô: “Morro teso, mas não perco a pose!”

A moçada gargalhava e as apostas começaram. Zoom apostou dez passes de ônibus com Serafim que Tony teria sucesso na abordagem. Apertaram as mãos e firmaram o compromisso. Nerso, o antológico garçom do Café do Centro, penhorou meia dúzia de cervejas com Profeta, arriscando o palpite de que a “chegada” daria com os burros n’água.

Quando Faroeste foi ao banheiro, surgiu a oportunidade de Tony. Aproximou-se acanhado com o saquinho nas mãos. Resolveu chegar, chegando… E sentou-se ao lado de Anne. As palavras improvisadas brotaram com facilidade de sua boca:

— Oi, não gosto de ver mulher bonita chorar. Por isso, trouxe esse presentinho. Desde que te vi não consigo pensar em mais nada. Hoje à tarde passei em uma loja e vi esse peixe. É uma fêmea, linda e a batizei com o nome de Afrodite. Ela me lembra você. Por favor, aceite.

A expressão de Anne foi de surpresa, Tony ficou apreensivo. No entanto, suas lágrimas secaram imediatamente. Os olhos azuis readquiriram luminoso brilho e abriu um sorriso encantador. Segurando carinhosamente as mãos do rapaz, falou com voz rouca e emocionada:

73

— Obrigada, que gesto delicado. Estou tão frágil agora… Guardarei a Afrodite com carinho, nunca recebi um presente tão carinhoso. Vou arrumar a casa, alimentar esse peixe e reencontrar você quando as feridas cicatrizarem.

Tony beijou as mãos de Anne, acariciou seus cabelos e despediu-se:

— Vou te esperar.

Voltou à mesa, onde foi festejado pelos amigos. A euforia geral ganhou combustível extra quando Nerso abriu as cervas que havia perdido na aposta. Tony viu o retorno de Faroeste e a forma sombria como eles saíram do bar, marca nítida de crise conjugal.

Entre goles de cerveja, bravatas e gargalhadas, Tony, muito nervoso, perguntou:

— Afinal, qual é o sexo daquele peixe? Será que o Luiz Canibal sabe?

Ninguém entendeu a pergunta.

74

NICHO-CANTE

Um conhecido adágio professa que o tempo foi inventado para que as coisas não aconteçam todas de uma vez. Tony era a contradição viva do provérbio, parecia que tudo resolveu acontecer ao mesmo tempo.

O envolvimento com o curso estava cada vez maior e exigia dedicação exponencial. Conseguiu o estágio de Limnologia e participava de coletas na represa do Lobo (Broa), próxima a São Carlos. Realizava a triagem e análise do material coletado, no laboratório de Ecologia Aquática da Universidade.

Nessa rotina, buscava atualizar-se sobre a produção científica da área. Assim, choviam periódicos em inglês para ler, resumir e estudar.

Sua militância dividia-se em dois pólos. Atuava nas articulações para a eleição do DCE e lançou uma chapa ao centrinho da Biologia. Começou a participar também do grupo de Educação Ambiental.

Confuso quanto a sua opção ideológica, aceitava todos os convites para reuniões de células partidárias. Textos sobre leninismo, maoísmo, trotskismo e anarquismo, avolumavam-se em sua prateleira, embora não conseguisse disciplina para absorvê-los.

75

Circulava mais à vontade em vários segmentos da Universidade e desejava vivenciá-los intensamente. Gostava de sentir-se como “embaixador” de si mesmo. Frequentou repúblicas e era convidado para as festas. Comparecia aos eventos promovidos pelo DCE e CAASO.

Tinha a sensação de que o tempo voava. As semanas pareciam durar dias, e os meses, semanas. As atividades eram intensas e prazerosas, porém, às vezes, ligava aos pais com preocupação e culpa.

No intervalo de mais um dia daquela marcha veloz, foi dar uma volta no pinheiral para relaxar, ficava calmo e desacelerado no local.

Tony era uma pessoa peculiar, pescador de relacionamentos intensos e plurais. Mas, em certas ocasiões, precisava parar tudo e ficar consigo mesmo.

Estava assim perdido nos próprios pensamentos, quando ouviu o chamado dos companheiros.

Capi, Profeta, Zoom e Jararaca procuravam por ele. Como o encontraram naquela hora de reclusão? Vinham afobados em sua direção. Parou e caminhou ao encontro deles. Quem falou primeiro foi Profeta:

— Tony, é o seguinte. Lembra aquela nossa conversa sobre montar uma república? Pois é, a coisa tá rolando. O Jararaca encontrou uma casa legal pra gente alugar. Você tá nessa?

Tony sem hesitação concordou:

— Demorou… Só se for agora!

76

Acertaram os detalhes. Além deles, os colegas Renato e Gustavo, da Biologia, fariam parte da república. Foram conhecer o sobrado sugerido por Jararaca e gostaram do velho imóvel com grandes janelas, portas e batentes. Após compromissos burocráticos tediosos, tomaram posse.

A despedida de Tony da república dos Engenheiros Babacas foi breve e lacônica. Antes de partir colocou no bolso de Cezão o papel com o novo endereço. Juntou seus poucos pertences, acertou despesas pendentes e, dando de ombros, disse:

— Obrigado por tudo, sejam felizes!

O sobrado ficava na Geminiano Costa, rua transversal à Avenida São Carlos e próxima ao Mercado Municipal. Localizava-se numa região comercial.

No térreo, havia uma loja de calçados. Pelo portão lateral, dois lances de escada levavam ao andar superior da casa. No topo da escada ficavam o banheiro e o quintal, que parecia um observatório do qual era possível avistar boa parte da cidade, além das grossas amuradas da Catedral.

Dentro da república, um estreito corredor levava a três cômodos. Zoom e Renato ocuparam o quarto da frente. No maior, Tony, Jararaca e Gustavo distribuíram suas camas. A porta central do corredor abria-se para a sala ao lado do último quarto, no qual ficaram Profeta e Capi.

77

A casa nasceu com forte espírito comunitário. Herdou o mobiliário das repúblicas de origem deles, que foi socializado sem restrições. Móveis e eletrodomésticos improvisados, compunham bizarra “decoração”.

Profeta trouxe sua antiga geladeira vermelha, que parecia uma peça de museu. Capi contribuiu com a surrada vitrola conectada a potentes caixas de som. Zoom colocou na sala o sofá com o revestimento esburacado. Jararaca levou o fogão engordurado. Renato instalou no banheiro seu chuveiro que dava choques. Gustavo ajeitou na cozinha a mesa com duas cadeiras de plástico.

Ao passarem à noitinha pelo Mercado Municipal, levaram caixas vazias de madeira, com as quais montaram, cuidadosamente empilhadas, as prateleiras da casa, que abrigavam víveres e livros.

Na porta de entrada colaram um grande cartaz, com a imagem de um homem na floresta observado por uma série de animais selvagens. Ele carregava uma metralhadora e trazia colado ao peito o grande cinto de balas. Mirava a arma num alvo branco, com vários círculos pretos concêntricos, disposto entre as árvores.

Abaixo desse cartaz foi escrito em letras grandes o nome provisório daquela república de biólogos: “Nicho-Cante”.

A comunidade era composta por sete moradores, todos com o mesmo nível econômico, ou seja, completamente duros. Usavam o banheiro único da casa, que ficava meses a fio sem faxina.

78

As panelas mofavam sujas na pia da cozinha. Em cima delas, formavam-se curiosas colônias de fungos. Profeta entre risos comentava:

— Somos limpinhos, o problema é que essa indústria incompetente não fabrica panelas descartáveis…

Era hábito corriqueiro, após o retorno das baladas, urinarem ao relento da mureta do quintal. Na vizinhança o local ficou conhecido como “fonte”, devido aos jarros de urina que caíam nas fachadas das lojas, formando belas parábolas na trajetória de cinco metros de altura, antes de atingir o asfalto.

Quando a desorganização ficava insuportável, reuniam-se para combinar esquemas de limpeza e dividir tarefas domésticas. Conseguiam planejar razoavelmente, porém, os planos não se concretizavam. Zoom, o niilista do grupo, elevava a descrença geral:

— Vamos assumir, moçada. Somos um bando de porcos! Chega dessas reuniões, que tal vivermos relaxados e felizes dentro dessa zona mesmo?

Nessas reuniões, às vezes, a porta da sala rapidamente se abria e, para surpresa de todos, Profeta e Tony jogavam nos colegas baldes de água fria que haviam enchido no quintal.

Como a brincadeira pegou, as “reuniões de organização” terminavam em generalizada guerra de água. Por uma questão de sobrevivência mínima, lavavam as roupas à mão, com sabão e escova, no

79

tanque do quintal. Após escorridas, penduravam-nas no varal fabricado às pressas com fios de arame.

Certas peças quaravam por meses ao relento. Algumas viravam trapos, usados depois como pano de chão. Quando recolhidas, as camisetas retesavam no corpo, que ficava com a ingrata tarefa de retirar as curvas amassadas do tecido.

Quando estavam em São Carlos, os amigos conviviam intensamente nos finais de semana. Embora a UFSCar oferecesse almoço aos sábados, a galera não acordava a tempo para a refeição, por causa das puxadas baladas de sexta-feira à noite. Restava então a tarefa de organizar o rango para aquele Exército de famintos.

A desilusão aumentava quando abriam a geladeira, em geral, encontrando apenas uma garrafa d’água e um ovo solitário perdido no vasto ambiente gelado. Juntavam os poucos trocados e dirigiam-se ao mercado para comprar alimentos básicos.

Começava então a preparação coletiva da comida, sendo a preocupação mais urgente fazer uma enorme jarra de caipirinha para inspirar os “Chefs”. O ritual culinário prolongava-se, sempre acompanhado por vasta trilha sonora. Os cozinheiros, após prepararem as “iguarias”, estavam completamente bêbados.

O menu variava entre o intragável macarrão com sardinha e o risoto com ingredientes nada convencionais. Eles não dispunham de recursos suficientes para comer carne nessas refeições, que deviam ser abundantes e baratas.

80

Um dia Zoom chegou com uma “mistura” punk:

— Oi pessoal, beleza? Estava passando na praça e vi essa pomba com as asas quebradas. Peguei a pobrezinha e torci seu pescoço. Ela já estava quase morta mesmo, e, afinal, pra que continuar vivendo sem poder voar? Pensei, não vou deixar essa rica fonte de proteínas para os vermes. Então, dá tempo de prepará-la para acompanhar o risoto?

81

ESPAÇO PARA O AMOR

Com o tempo o pessoal da república aperfeiçoou o esquema de revezamento dos quartos, para acomodar os encontros sexuais dos casais. Embora preferissem ficar nas repúblicas das amantes, nem sempre era possível, já que elas sofriam as mesmas restrições ou problemas mais complexos do universo feminino.

Na época, nenhum daqueles rapazes mantinha relacionamentos fixos. Assim, era frequente voltarem das baladas para o Nicho, acompanhados das princesas. No início o sofá foi o local escolhido para namorar. Entretanto, os “flagras” multiplicaram-se e as parceiras exigiram condições mais dignas para o amor.

Jararaca, para sacanear, chegava com as moças antes dos outros colegas e se trancava no quarto, o que deflagou uma guerra surda pela brevidade da conquista. Quanto mais rápida, garantiria ao galã o privilégio do uso particular do cômodo.

Combinaram que o mais veloz “no gatilho” colocaria os colchões dos colegas na sala, para que todos pudessem dormir em paz. A estratégia fez o rodízio funcionar. Das quintas-feiras aos sábados, crescia a população de convivas que pernoitavam na sala.

Um dia, Tony anunciou:

82

— Moçada, acendeu a luz amarela, peguei chato! Vou enlouquecer com esses bichos nojentos em mim. Mas radicalizei. Raspei os pentelhos e estou passando pó do veneno “Neocid” desta latinha. Qualquer coceirinha estranha que aparecer em alguém por aí é só pedir, a latinha está aqui.

Num domingo à noite Profeta e Capi chegaram acompanhados por uma moça chamada Josian. Retornavam de um congresso em Ribeirão Preto e pegaram carona com aquela figura. Vieram os três em cima da boleia do caminhão.

Jô, como ficou conhecida a garota, após breves cumprimentos, entrelaçou seus braços aos de Capi e falou:

— Vamos?

Trancafiaram-se no quarto. Era impossível ao resto do bando não ouvir os gritos alucinados da moça:

— Vem Capi, mais uma vez. Você me mata de prazer.

Durante três horas, com breves interrupções, para diversão do grupo os gritos se repetiram.

Quase à meia-noite, toda a moçada estava na sala contando novidades do final de semana, quando a porta se abriu abruptamente. Capi, de toalha enrolada no corpo, entrou com o rosto pálido, hematoma vermelho no pescoço e marcas de unhas cravadas nas costas. Comentou, depois de um sorriso tímido:

— Galera, não é fácil! Dá licença, vou dar um tempo e tomar ar lá fora.

83

Jararaca puxou a toalha de Capi e o que se viu foi uma coisa espantosa, o pênis do rapaz era desproporcionalmente grande. Por isso, ele ganhou outros apelidos, como brotoeja de elefante, mastro do Titanic, tronco de andiroba, batom do King Kong e supositório do Cristo Redentor.

A situação prolongou-se sem tréguas por uma semana. Capi não saía do quarto, os colegas voltavam da Universidade e ele lá, na mesma labuta. Fixaram na porta do quarto do rapaz o cartaz com a frase: “Império dos sentidos”.

Um dia Capi pediu e Profeta aceitou o convite de voltar a dormir no quarto deles. Esperava que essa atitude reduzisse o apetite de Jô. Nunca se soube o que aconteceu, mas os gritos continuaram.

À noite, Tony usou seu quarto de forma exclusiva. Ele e a menina do ônibus, em sua primeira viagem a São Carlos, finalmente se reencontraram, agora em condições mais confortáveis.

Foi a vez de Profeta sair do Império dos sentidos, com a toalha enrolada no corpo. Bateu na porta do quarto de Tony, que, contrariado, perguntou:

— Porra, o que você quer!

A resposta foi rápida e objetiva:

— Vai logo, empresta aí a latinha de Neocid. Está coçando, pô!

84

JÂNIO E IBRAHIM

Tony enriqueceu sua cultura musical convivendo com os companheiros de república. O rock era o som que acontecia nas festas da casa. O rapaz, Beatlemaníaco de plantão, trouxe consigo a coleção dos discos em vinil do grupo. Também alguns álbuns solo de John Lennon.

Ele reeducou os ouvidos e gostou da vertente mais pauleira do Rock, defendida com unhas e dentes por Zoom. Conheceu através dele os clássicos do Deep Purple que rolavam na vitrola sem parar, notando a bela melodia da guitarra dissonante em Smoking in the water.

Capi era mais abrangente e curtia o som telúrico de Pink Floyd, The Doors e Led Zeppelin. Profeta, eclético, ouvia de tudo, inclusive MPB. Gostava até das guarânias pantaneiras que Jararaca, originário de Corumbá, de vez em quando se arriscava a pôr para tocar.

Esta trilha sonora marcou a festa de inauguração da casa, regada a muita batida de maracujá. Tudo começou com a ideia de um estudante uruguaio amigo de Tony, chamado Walter. Ele partiria de São Carlos no final daquele semestre e propôs:

85

— Vamos fazer umas pizzas no Nicho-Cante. Tem forno lá, né? Desencana que eu levo tudo, faço a massa e coloco os recheios.

Foram convidados apenas amigos mais chegados e a sacada do sobrado começou a lotar. Como não havia formas, Walter assava e servia as pizzas na tampa das panelas mesmo.

Karl estava distraído conversando numa roda. Nancy, figura angelical de vestido branco rendado, com múltiplas pintas na face vermelha e longos cabelos encaracolados, o encarou fixamente. Os olhares congelaram-se e a química aconteceu. Depois, repentinamente, dispersaram.

Mais tarde, após várias doses de batida, Karl, zonzo, recostou-se na mureta e cochilou. Nancy sentou-se ao lado dele em silêncio. Seus cabelos encaracolados tocaram o rosto do rapaz, ele abriu os olhos sentindo o aroma da delicada fragrância e falou:

— Tô no céu. Vejo um anjo!

Ali nasceu uma grande história de amor, dentre tantas outras, naquela varanda, ao som das badaladas do sino da catedral.

A informação sobre o festejo espalhou-se na cidade. Alguém vazou a notícia no Café do Centro, os bicões chegaram e a casa ficou superlotada.

Como não havia bebida para todos, os próprios convidados tomaram a iniciativa de passar vários chapéus

86

durante a festa. Com o dinheiro angariado, compravam mais “combustíveis” num bar das redondezas.

A vizinhança da república não era composta por casas de família, por isso, o som ficava em volume máximo. As pessoas dançavam em todos os cômodos, inclusive no banheiro, permanentemente ocupado, por casais em franca copulação.

Perto da meia-noite, houve superlotação da festa. O número de pessoas extrapolou as expectativas e não era possível circular mesmo nas escadas. Na frente do imóvel, formou-se uma pequena multidão.

Capi arrumou um pequeno espaço espremido na varanda do quarto e fumou um baseado com Ivanhoé e Franck Japa. Como o público reunido era muito heterogêneo, algo não daria certo. Um grupo de calouras puritanas viu Capi usando drogas…

Uma delas, que era religiosa, nutria profundo sentimento “maternal” pelo rapaz. Caminhou em sua direção, puxando-o para sentar apoiado na parede. O que ele não viu na penumbra é que seus colegas de república ouviram a moça chorando.

— Capi, eu gosto tanto de você. Por favor, pare com essa história de cheirar maconha e fumar cocaína. Sinto-me responsável, amanhã vamos à igreja juntos e tudo isso vai passar.

— Calma, estou bem, não tá vendo? Não vou sair daqui matando ninguém. As coisas não são assim…Abra sua cabeça! O que posso fazer pra você entender?

87

— Tá legal, vou entender. Agora me beija que ajuda, vai?

Para horror de Capi ele ouviu sonoras gargalhadas bem familiares ao seu lado.

O proprietário da casa era um velho senhor, chamado Ibrahim. Usava chapéu clássico e terno pequeno para suas medidas. Não renovava o guarda-roupa, mantendo hábitos espartanos desde sua chegada como imigrante Sírio-Libanês, ainda muito jovem, ao Brasil.

Com a firme determinação de cristão novo, ele começou a vida fazendo biscates no porto de Santos e depois abriu uma tecelagem em São Carlos, na qual fez fortuna. Apesar de receber proventos de mais de trinta propriedades na região, fazia questão de receber os aluguéis pessoalmente.

Todo mês era a mesma coisa. No quinto dia útil, com sol ou chuva, frio ou calor, Ibrahim aparecia e cordialmente falava:

— Bom dia rapazes, sou seu senhorio. Vim receber o aluguel.

Na manhã seguinte, após a grande festa inaugural da república, não foi diferente. Às onze horas ele tocou a campainha. O que ouviu foi o grito alucinado de Zoom, que acabara de acordar assustado:

— Vai embora, que falta de respeito! Isso são horas de acordar as pessoas? Tenha a santa paciência!

Aquele senhor sistemático abriu perigosa exceção e só recebeu o aluguel às três horas da tarde.

88

Um dia, Jararaca estava sozinho na república e Zobaida, a filha do senhorio, foi receber o aluguel no lugar do pai enfermo. Obesa, com verrugas e corcunda, ela não encaixava ao padrão convencional de beleza.

O rapaz convidou-a para tomar café e foi atencioso com ela. Zobaida então começou a aparecer no sobrado à procura dele, que se escondia e pedia aos amigos para mentirem sobre sua presença.

Os colegas, para “ajudá-lo”, convidavam-na a entrar. Esclareciam que Jararaca estava no quarto e logo viria recebê-la. Quando havia pendências sobre os aluguéis, ele era eleito por aclamação para negociá-las.

O pessoal da república cortava o cabelo gratuitamente na escola do SENAC e jantava a preços módicos no restaurante do lugar, além de serem fregueses de um boteco popular chamado Pistelli. Tony e Jararaca gostavam muito do local, onde comiam um lanche honesto e assistiam aos jogos de futebol transmitidos na televisão.

Num destes dias o burburinho no bar foi geral. Jânio Quadros, que retornara do exílio, apareceu por lá. São Carlos era tradicionalmente um reduto janista. O populista, cercado pela multidão de admiradores, pediu uma pinga. Quando o garçom pegou a taça de cristal para servi-lo, replicou:

— Não, meu filho. Eu gosto naquele copinho comum, onde todos bebem.

89

Sem fazer cara feia, de uma talagada só, o político tomou a bebida. A turba aplaudiu de pé. Após testemunhar a cena, Tony avaliou que, se as eleições diretas fossem restabelecidas no Brasil, Jânio teria o voto certo de todos os presentes no bar.

Os rapazes circulavam com desenvoltura pelos diversos ambientes da cidade e da Universidade. Nunca cansavam da própria convivência, pareciam compartilhar entre eles a melhor companhia.

Tal união gerava prazeres e trocas insuperáveis. Tornaram-se companheiros inseparáveis que ficaram conhecidos no campus pelo seu requintado toque de humor, ironia e alegria contagiantes.

Aos poucos adquiriram a marca coletiva que os tornaria quase indistinguíveis. Os amigos de um tornavam-se amigos de todos, repartindo histórias, bandeiras e sonhos comuns.

Havia também muita solidariedade entre eles. Compartilhavam serenamente, como numa comunidade utópica ideal, os poucos recursos financeiros de que dispunham.

Irmanaram-se e construíram identidade única, indestrutível, um poderoso núcleo de felicidade coletiva. Energia radiante que não findou mesmo com o passar de muitos anos.

90

XADREZ

Tony sentia-se especialmente desconfortável naquela vigília, todos na república dormiam e já era alta madrugada. Os pensamentos mais diversos, imprevisíveis e inoportunos, não o abandonavam.

O sol logo iria raiar, teria mais um dia estressante pela frente. Precisava relaxar e repor as energias para poder fluir em sua atividade, que exigia entusiasmo físico e intelectual.

Não tinha jeito, todos os pensamentos para ele apareciam naquele período. Brotavam como pipocas estourando na panela. Ele as queria comer, mas já estava saciado.

O turbilhão de ideias desconexas era mais forte que a razão. O bom senso que martelava em sua cabeça a mesma ordem mental repetida exaustivamente…

— Descanse, descanse, descanse…

Essa dinâmica atiçava ainda mais a excitação. As lembranças, projeções e fantasias que surgiam aleatoriamente, obrigavam-no àquela vigília atordoante de tortura e prazer. Uma orgia de devaneios delirantes.

As horas passavam e mais uma noite se perdia em sua batalha por descanso mínimo. Conhecia as consequências práticas dessa situação para sua produtividade.

91

Mesmo com toda aquela agitação conseguiu conciliar o sono por algumas horas. Quando acordou estava atrasado e um dia não muito promissor o esperava implacavelmente. Seus colegas já tinham saído e, se corresse, conseguiria pegar a aula de Cálculo, após o primeiro intervalo. Essa perspectiva o assustou ainda mais quando refletiu:

Meu Deus, eu não entendo aquela aula mesmo quando chego no horário. Imagine a merda que vai dar ao pegar o bonde andando?

Consolou-se enfiando a cabeça embaixo da ducha fria.

Pegou o ônibus que naquele horário estava quase vazio e sem vacilar pulou a catraca. Permanecia tão mergulhado em pensamentos e na contenção do sono, que não percebeu o motorista subitamente mudar de percurso.

Os demais passageiros agitaram-se quando ouviram as sirenes da viatura que direcionou o veículo para estacioná-lo em frente à delegacia. A taquicardia de Tony aumentou no momento em que os policiais subiram no coletivo. O cobrador apontou os estudantes que pularam a catraca, eram quatro.

Foi algemado, fotografado e tocou “piano” na identificação das digitais. Depois, transferido, entre xingamentos e esbarrões, ao xadrez. Ficou numa cela de 30 m2 acompanhado por onze contraventores do mesmo delito. Todos eram estudantes da UFSCar.

92

Na batida daquela manhã, a polícia deteve apenas homens. Lá estavam Café, Peixe, Capiau, Alfredo, Zé Bahia, Chico Barbicha, Potirendaba, João Drugue, Potrinho, Seio, Tavinho e Tony.

Com voz baixa, Peixe falou aos parceiros:

— Tem um investigador aqui que mora na minha república e eu desconhecia sua profissão. Quando fui trancafiado, conversou discretamente comigo. Pedi para ele ligar no DCE e informar o que está acontecendo. Tenho esperança de que nossos companheiros não vão nos abandonar.

Café era um experiente militante que atuou no movimento sindical, durante o período de maior repressão política. Diziam que havia sido torturado em suas três prisões anteriores. Após trabalhar no sindicato dos metalúrgicos, voltou a atuar no ME, desta vez em São Carlos. Ele calmamente comentou:

— Os meganhas querem confirmar conosco alguns detalhes sobre o Pulo a Roleta que, na verdade, já estão cansados de saber. O problema é que eles precisam passar essas informações, na forma de depoimentos, para a inteligência do Exército em Pirassununga.

Os policiais iniciaram com vontade a pressão psicológica sobre os estudantes. Bateram os cassetetes nas grades de ferro da cela dizendo que eles eram bichas e mereciam apanhar. Ao saírem, Café prosseguiu:

— Prestem atenção! Sem ingenuidade. No interrogatório respondam a todas as perguntas. Existem

93

agentes infiltrados na Universidade. Eles já fotografaram tudo e têm dossiês dos principais participantes do movimento. Há funcionários da própria reitoria que os alimentam com essas informações.

Todos os fantasmas libertaram-se na cabeça de Tony, que se preocupou:

Será que eles já têm o meu dossiê? Agora estou fichado na polícia, como vou arrumar emprego? Avisarão meus pais sobre a prisão? Serei expulso da Universidade? Foi interrompido pelo argumento de Café.

— Ao falar o que eles querem saber, não estaremos como no passado, entregando companheiros que viviam na clandestinidade. Os tempos mudaram, porém, muito cuidado. Se perceberem que estamos ocultando alguma coisa pode sobrar porrada. Eles continuam ignorantes nos seus métodos de convencimento!

O clima de tensão aumentou quando João Drugue aproximou-se de Tony e perguntou dia e hora de seu nascimento. Comentou sobre características da personalidade do rapaz a partir do horóscopo chinês. Tony comentou:

— João, que cabeça fresca, hein cara? Nós aqui nessa saia justa desgraçada e você falando de horóscopo chinês! Fique tranquilo que, com toda essa calma, de infarto você não morre.

Drugue explicou:

— Faço isso, Tony, para não pirar aqui dentro.

94

Bento, o investigador que morava na república de Peixe, retirou-o da cela a pretexto de interrogá-lo numa sala reservada. Quando Peixe retornou ao xadrez, revelou novidades interessantes:

— Gente, ele contou coisas do arco da velha. Os empresários estão com a corda no pescoço. Seus prejuízos aumentam a cada dia, a adesão ao Pulo a Roleta é maior do que pensávamos. Ficou claro que eles fizeram um aumento de tarifas abusivo mesmo e podem reconsiderá-lo.

Um grupo mais tranquilo do que João Drugue sentou-se no fundo da sala e começou a jogar. Potrinho sempre andava com o baralho no bolso e os policiais inexplicavelmente não o revistaram. Ao seu lado Capiau, Seio e Tavinho completaram o carteado. Nisso, Peixe continuou a falar:

— Porém, os políticos da cidade não querem que nossa luta seja vitoriosa. Isso poderia criar uma “cultura” de mobilização muito perigosa. Bento contou que o DCE contratou um advogado, mas o delegado recusou-se a recebê-lo. Estão chegando de Brasília parlamentares para negociar nossa libertação.

Seio era um rapaz magro, mirrado e triste. Sofria crises depressivas constantes e já tentara o suicídio. Seus amigos diziam que essa vulnerabilidade emocional resultava de uma relação conturbada com o pai.

Capiau assumiu o papel de porta-voz dele, uma vez que o rapaz também sofria de timidez crônica e pediu

95

a atenção de todos na cela. Seio, olhando para o chão,

balbuciou com voz reticente:

— Meu pai é general do Exército. Se entrarmos em

contato pode ajudar a nos tirar daqui. Aviso que ele é

uma pessoa complicada. Por favor, ele não pode saber

que eu o procurei e não quero vê-lo em nenhuma

hipótese.

Todos se compadeceram com as palavras sinceras

e generosas de Seio. Combinaram que só procurariam

o general em último caso. Queriam poupar o rapaz do

desgaste que a atitude poderia provocar.

A tarde caiu e a situação não avançava. Três presos

passaram por interrogatório, Alfredo, Zé Bahia e

Tavinho. Usaram a tática do revezamento, intercalando

depoimentos entre os mais jovens e os experientes e

fizeram com eles acareação das perguntas. Peixe foi

o próximo convocado.

Os depoentes avaliaram na cela que a opinião de Café

estava correta. Fizeram o que ele sugeriu e não sofreram

constrangimentos físicos. Eram quatro inquiridores, o

delegado, dois investigadores e um militar. Faziam as

perguntas e o escrivão registrava os apontamentos.

Exigiam aos berros que os detidos assinassem sua

narração dos fatos, ao final do longo interrogatório.

Nenhum deles foi agredido, mas eram constantemente

ameaçados com palavrões.

96

Peixe voltou à cela rápido, seu depoimento mal havia começado. Ele novamente trouxe gratas notícias aos companheiros:

— Estão possessos! Foram informados sobre algo e me mandaram de volta. O Bento disse que lá fora há centenas de estudantes em vigília com velas na mão. Estão em silêncio para evitar provocações da polícia. A multidão está sendo engrossada por populares. Há também dois parlamentares reivindicando reunião com o delegado.

Nesse ínterim, o militar relatou as opções ao delegado. Com um simples telefonema, poderia acionar a tropa de choque do Exército de Pirassununga, posicionada em prontidão na entrada da cidade.

Neste caso, em poucos minutos quinhentos homens com bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes, dispersariam facilmente a multidão.

Ressentido, o delegado aceitou a opção mais racional, uma reunião com os parlamentares, mas desde que mantivesse os estudantes presos e não negociasse com outras pessoas. Ele percebeu que o uso de força seria desastroso. Ali havia mulheres e crianças e a imprensa estava a postos para cobrir os fatos.

O militar não sabia, mas o delegado possuía ambições políticas secretas, que não arriscaria sepultar com o desfecho do episódio. Antes da reunião, a negociação prolongou-se, porque o DCE exigiu a participação de um membro da entidade. O delegado finalmente

97

Capítulou, estabelecendo a bizarra condição de que o representante do DCE fosse uma mulher.

A comissão foi estabelecida, com dois deputados federais, José Genoino do PT e João Herrman Neto do PMDB; além da militante Araceli da Convergência, designada pelo DCE.

98

JOÃO HERRMAN

Passadas três horas daquela reunião dura e morosa, ninguém arredava o pé da aglomeração ao redor da delegacia. Os estudantes mantiveram-se firmes em sua ordeira vigília à luz de velas. O trânsito foi deslocado para vias alternativas e o episódio atraía cada vez mais a curiosidade popular. O delegado não queria retroceder quanto à manutenção da prisão dos estudantes.

Num repente, João Herrman Netto apostou na seguinte estratégia:

— Senhor Delegado, se vossa senhoria mantiver as prisões, ficaremos indefinidamente nesta delegacia. Amanhã, com a manutenção do impasse, desembarcarão de Brasília dez parlamentares em nosso apoio. Depois de amanhã, mais 20 parlamentares.

Com seu 1,90 de altura, toda educação e simpatia que lhe eram peculiares, a ponto de seduzir os adversários mais ferrenhos, João Herrman Netto aprofundou sua tática.

— Também virão representantes da OAB, da ABI, da Arquidiocese de São Paulo e de vários sindicatos. Analise, meu amigo, vocês vão perder e esse processo pode desgastá-lo. Olhe a população lá fora. Quantos

99

votos existem ali, agora? Mas a derrota é muito relativa na política. Ela, se bem conduzida, pode transformar-se em vitória.

Com a astúcia de uma raposa, João Herrman percebeu no brilho do olho do delegado suas pretensões políticas, revertendo os rumos da negociação.

— Proponho um acordo. Vamos sair daqui de mãos dadas com os prisioneiros em liberdade. Faremos declaração conjunta à imprensa esclarecendo que o senhor solucionou a crise, para evitar o confronto desnecessário. Seu nome será confundido com o de um herói.

Araceli também fez sua intervenção:

— Delegado, para chegarmos a um acordo, o DCE não abrirá mão de levar as fichas, fotografias e depoimentos dos presos! Eles não permanecerão fichados na polícia.

Os ventos sopraram a favor dos estudantes. O delegado aceitou os argumentos sedutores do parlamentar. Porém, precisava honrar compromissos assumidos anteriormente com outros setores. Pediu licença ao grupo para dar alguns telefonemas e saiu.

Enquanto isso, Herrman Netto avaliou com Araceli:

— Você viu os olhos dele como brilharam. É fato consumado, vencemos essa guerra. Eu estou com uma fome! Vou falar o que combinamos com a imprensa, conto com o aval de vocês. Afinal, cumpro meus compromissos.

100

Ao voltar, o delegado disse, antes de definir sua posição:

— Redigi esse documento com os principais pontos da negociação. Gostaria que os senhores lessem e, se estiverem de acordo, assinem.

O texto foi assinado e o delegado disse com esperteza:

— Vejam bem, aceito as propostas de vocês. No entanto, se alguém por ventura trair nosso acordo, entrego este documento à imprensa.

Quando os doze prisioneiros saíram acompanhados pela comissão de negociação, a multidão de estudantes, incluindo os companheiros da república de Tony, gritou de alegria, liberando as comportas da tensão reprimida por tantas horas de espera.

Deslocaram-se numa bonita passeata para a sede do DCE. Durante o percurso cantaram abraçados. O clima era de euforia contagiante.

Naquela noite Cacique serviu cerveja de graça para a galera. Uma grande festa de comemoração prolongou-se até alta madrugada. Houve abundante distribuição de carinho no salão de baile.

Perdurou o sentimento generalizado de gratidão pela vitória coletiva. Cada um tinha feito seu papel para construí-la e a utopia parecia tangível.

Os acontecimentos foram significativos para Tony. Ele compreendeu na própria pele a importância da mobilização nas lutas estudantis. Pesando esses fatores, apoiou a chapa da Convergência para o

101

DCE, embora não militasse no partido, apesar de ser cobrado insistentemente para isso.

Naquele ano concorreram três chapas. Uma delas formada por estudantes da Juventude Católica Universitária (JUC), aliados a simpatizantes da organização de direita Tradição, Família e Propriedade (TFP).

Minoritários e sem representatividade entre os estudantes, não colocavam claramente as suas posições. Lançaram a chapa com o sugestivo nome de inspiração cristã, Luz e Vida.

A segunda, denominada Federal é Viração, foi articulada por Tarefero e Calango. Cooptaram meia dúzia de bichos para compor a diretoria, na qual saíram concorrendo, respectivamente, aos cargos de Presidente e Secretário Geral.

A chapa Alicerce, da Convergência, era a mais representativa. Desenvolveu a melhor e mais ampla discussão política. Também capitalizou algumas vitórias do movimento Pulo a Roleta.

Era encorpada, contando com vinte componentes. Entre eles, figuravam membros da direção e importantes quadros do partido, como Canário, Kin, Araceli e Carioca.

Tony participou ativamente do pleito, fez campanha para a chapa Alicerce e foi fiscal na apuração de votos. O resultado foi arrasador.

102

Em terceiro lugar Luz e Vida com 32 votos, em segundo, Federal é Viração, com 221 votos. Em primeiro, com expressiva vitória, a chapa Alicerce, contabilizou 504 votos.

103

DENTINHO E LONG-DONG

Naquela época, o Reitor da UFSCar era nomeado pelo general presidente de plantão. Algumas medidas da reitoria, respaldadas por esse processo antidemocrático, entravam esporadicamente em conflito com os estudantes.

Para organizar as mobilizações, havia quatro entidades no campus. Além do DCE, a Associação dos Docentes (ADUFSCar), a dos Servidores (ASUFSCar) e a dos Pós Graduandos (APG).

Certas formas de luta eram divertidas. O estopim de uma delas ocorreu no pequeno e abafado laboratório de Anatomia Humana. Há algum tempo os estudantes pediam sua reestruturação e ampliação, além de mais cadáveres, uma vez que havia apenas quatro peças anatômicas muito velhas.

Um deles ficou famoso e ganhou o apelido de Dentinho, pois o protuberante dente incisivo destacava-se na face do desgastado cadáver. Solitário, jazia também o grande pênis negro, único representante da genitália humana. A peça foi batizada de Long-Dong-Silver, homenageando um ator de filmes pornográficos da época, avantajado ao ponto de dar nó no próprio falo.

104

Os veteranos discretamente colocavam Long-Dong nas bolsas das calouras. A galera gargalhava quando elas gritavam de pavor, ao retirá-lo inadvertidamente das bolsas, durante almoços no RU.

Como a reitoria engavetou a proposta de reestruturação do laboratório, os estudantes se cansaram e resolveram agir.

Certa manhã, Tony corria para a aula, quando na frente do gramado da Biologia viu a cena inusitada. O perímetro da manifestação estava cercado com fita zebrada. No centro da área, os cadáveres estavam expostos, com a frase:

Eles estão aqui à procura de espaço. Pela imediata ampliação da Anatomia! Reposição já das peças

anatômicas! Exigimos condições dignas de estudo!

As meninas capricharam na preparação das peças anatômicas, agregando realismo e valor estético à exibição. Dentinho ficou sentado na espreguiçadeira, de óculos escuros e o cigarro acoplado ao grande incisivo. Nos seus dedos havia uma bandeirinha, com a legenda:

Por favor! Gente não aguento mais! Preciso de mais companheiros, estou

cansado de trabalhar sozinho.

Ao seu lado, Long-Dong-Silver pairava pendurado, do galho de uma árvore, preso por um barbante. Observadores curiosos o bastante para olhar de perto o cartaz colado ao pênis, leriam a frase:

Vamos racionalizar. Sabendo usar não vai faltar... Mas só eu não consigo dar conta de todas.

105

Para divulgar suas manifestações, os estudantes chamavam a jovem e talentosa repórter Thaís, do jornal “A Tribuna de São Carlos”. Porta-voz das causas estudantis, ela conseguia furar o bloqueio da mídia. Quando havia cobertura, a atitude costumeira dos meios de comunicação da cidade era a de depreciar as mobilizações do DCE.

Mas naquele dia Thaís publicou, com farta documentação fotográfica, uma matéria atraente desde a curiosa manchete:

A grande manifestação dos cadáveres.

Para surpresa geral, após poucas horas do início da manifestação chegou um memorando da reitoria, informando que as propostas de ampliação e reestruturação do laboratório foram aprovadas em caráter de urgência. As obras seriam iniciadas no prazo impreterível de apenas trinta dias.

106

PASSEATA DOS PELADOS

Outro episódio curioso envolveu “Jimmy”, japonês atrapalhado que, para amigos próximos, padeceu de surto ocasional. Porém, a maioria das pessoas achava que ele havia simplesmente pirado geral. Crises desse tipo eram comuns entre alguns estudantes da Federal.

Jimmy morava com Karl na república Morro dos Ventos Uivantes. Cursava Física e sua situação acadêmica começou a ficar insustentável. Participava de jogatinas compulsivas nas mesinhas da lanchonete ao lado do RU, viciou-se nas rodadas de caxeta e pôquer.

Chegava de manhã, tomava café e imediatamente se sentava para jogar. Na hora do almoço, levava o bandejão para a mesa de jogos, sem interromper as apostas. À tarde permanecia na mesma toada, saindo apenas quando o último funcionário desligava as luzes do local, já de noite.

Jimmy dormia no quarto de Karl, fedendo. Não tomava banho nem trocava de roupa há semanas. Karl, após tentar convencê-lo a reagir, tomou uma atitude drástica.

Agarrou o rapaz pelo pescoço e levou-o ao banheiro. Abriu o chuveiro e empurrou-o ainda vestido para dentro do box. Karl aos gritos aconselhava:

107

— Jimmy, sou seu amigo, me escuta. Você precisa se tratar, filho da puta! Acorde dessa leseira. Se continuar assim vou te internar.

Karl o deixou deitado embaixo da água e jogou fora suas roupas e sapatos putrefatos. Após reunirão na república, os colegas decidiram pedir ajuda à família do rapaz. Jimmy suplicou para eles não tomarem essa atitude. Faria qualquer coisa para evitar a humilhação.

No dia seguinte, o japa acordou cedo e se barbeou. Parecendo ter mudado de postura, pegou livros e cadernos há muito encostados. Na Universidade, não foi à roda de jogos, seguiu direto para a aula. Porém, a loucura logo escaparia do controle.

Aquela tarde Jimmy foi ao lotado Forte Apache. Lentamente, despiu-se peça por peça até ficar completamente nu na frente de todos. Caminhou então no meio da multidão que impressionada acompanhava a cena.

— Jimmy, aonde você vai assim?

— Vou assistir aula, ué. Esse é o melhor traje para mim. Os professores querem me escalpelar e assim fica mais fácil.

O pobre rapaz comportou-se como kamikaze naquela batalha. A reitoria apurou o caso e decretou sua expulsão da Universidade. O DCE tentou abrir canais de negociação, mas o reitor mantinha-se irredutível.

Foi convocada uma assembleia para discutir o assunto. Os estudantes estavam de mãos atadas e a reitoria

108

respaldada pelo regimento disciplinar. Somente formas heterodoxas de luta seriam eficazes naquele caso. Nesse contexto, surgiu a proposta inovadora de Néia:

— Eu não entendo muito de política. Mas nosso amigo Jimmy precisa de solidariedade. Ele está passando por uma crise muito séria… Isso não pode ficar assim.

As lideranças partidárias estranharam a intervenção de Néia que nunca havia falado em assembleias.

— Que hipocrisia! Expulsá-lo porque tirou a roupa? Será que o magnífico não tem bunda? Eu combinei com minhas amigas, nós também vamos tirar a roupa. Que tal? Organizar uma grande passeata de pelados em frente à reitoria? Será que ele tem coragem de expulsar todos nós?

A proposta teve o efeito de uma bomba explodindo no meio do ginasião. Os militantes das tendências, por não saberem interpretar aquela sugestão simples e revolucionária, ficaram perdidos consultando suas lideranças.

Era mais um exemplo clássico de ação direta. Ao não ser respaldada pelos partidos, evoluiria espontaneomente à revelia dos líderes. Com a rapidez que o momento exigia, Canário avaliou com o núcleo duro do partido a proposta, e resolveram encampá-la.

Votada e aprovada, a passeata dos pelados aconteceria no dia seguinte, em frente à reitoria. Ficava aos presentes a tarefa de convencer um número expressivo de colegas a aderir àquela forma de luta.

109

Todos superaram arraigados pudores. Ironicamente, líderes moralistas das tendências tentavam convencer seus pupilos da necessidade política de tirar a roupa! Argumentavam que o recato era coisa de pequeno burguês.

Nunca ocorreu manifestação mais pacífica e ordeira. Compunha-se de cerca de 150 estudantes nus, perfilados em frente à reitoria. Pediram a presença do reitor para ouvir sua reivindicação.

O reitor recusou-se recepcionar a comissão de Adãos e Evas. Porém, entendeu o recado dos estudantes e, com o tempo, reviu sua posição. Jimmy recebeu uma reprimenda oficial e não foi expulso.

O insólito marcou aquela manifestação única. Certos estudantes rotulados como “liberados” amarelaram e não apareceram. Já outros, taxados de “reprimidos”, aderiram à luta com ousadia.

Algumas figuras, como Irmã Ângela, marcaram época no ME da UFSCar. Tony a conheceu, aquela franzina aluna da Pedagogia que falava baixinho com sotaque sulino seu português culto. Era sóbria, humilde e oferecia dádivas às pessoas.

Escolheu ainda menina a vida religiosa, em Santana do Livramento, no interior gaúcho. O destino encarregou-se dela fazer o noviciado em São Carlos. Vocacionada em Educação, atuava nas Comunidades Eclesiais de Base, revezando seus afazeres ao curso de Pedagogia da Universidade.

110

Apesar da atração sexual à flor da pele, na Passeata dos Pelados, preponderou o clima de respeito. Tony tentou manter a linha, mas sentiu um calafrio quando delicados dedos subiram em suas costas até tocar a nuca.

Virou-se e viu a cena mais deslumbrante que poderia imaginar. Lá estava ela, Anne, a sua Afrodite nua… Perfeição! Coxas grossas, arredondadas e firmes, com finos pelos louros como adorno. Seios convidativos, curvas generosas. Queria abraçá-la, ela sorriu ao perceber a excitação de Tony:

— Bom te ver. Meu peixe está com saudade… Eu também!

Antes de ele responder, Faroeste aproximou-se. Pegou no braço da moça e o casal dispersou-se entre os manifestantes. Nesse lapso de tempo os dois rivais encararam-se rigidamente. Estava declarado o embate entre eles. Queriam a mesma mulher e lutariam por ela com todas as armas.

Quando Tony se recompôs, viu ao lado a doce irmã Ângela nua, timidamente agitando a bandeira. Olhou para ela desconcertado. Seria a mesma pessoa? A pacata freira que conhecera nas reuniões de Educação Ambiental, despida do hábito?

Ela comentou:

— O que foi guri? Perdeste a fala? Tu não sabes que Jesus morreu quase nu? Eu também trabalho no hospital e vejo muitas pessoas nuas. Não se apegue tanto à carne, mas sim, à alma!

111

BICHOS INDIGESTOS

O movimento Pulo a Roleta continuava forte. O empresariado, para deter a mobilização, reduziu o número de circulares. A medida provocou caos e, no auge da crise, cortaram 90% dos ônibus para a Universidade. A fim de amenizar o problema, o DCE organizou “lotações” com veículos de filiados e docentes.

Os empresários disseminaram o terror distribuindo panfletos apócrifos ameaçadores. Criaram uma central de boatos, informando que a manutenção do movimento implicaria a redução do número de circulares em toda a cidade.

A população, em pânico, aos poucos esvaziou a mobilização, temendo que as ameaças se concretizassem.

Com a vitória da Convergência no DCE, o partido cancelou as reuniões da comissão de mobilização do Pulo a Roleta. Argumentaram que elas não seriam mais necessárias, já que a diretoria da entidade centralizaria a função.

A manobra afastou Tony e Karl da comissão. Isso os levou a conhecer a dinâmica autoritária das tendências que, com seus longos tentáculos, abocanharam o poder, sem dividi-lo com os demais.

112

Os amigos reagiram e procuraram o apoio de Calango. O velho estudante ouviu os argumentos e fez uma avaliação cética da questão:

— É um problema conjuntural. Eles acabaram de vencer as eleições. Com toda essa legitimidade, vão impor seu projeto goela abaixo de todo mundo. Mas estou na oposição, podem contar comigo.

Calango comprometeu-se a ajudá-los. Com essa carta na manga, participaram de reunião fechada com a Convergência, onde estavam presentes, além de outros militantes, Anne e Faroeste. A reunião foi tensa, com enfrentamentos que resvalaram para o terreno pessoal.

O clima esquentou na intervenção de Faroeste, que caminhou em direção a Tony e o olhou fixamente:

— Cuidado, Camaradas! Há vermes pequenos burgueses infiltrados nessa reunião. Assim classifico esses bichos com suas reivindicações absurdas. Estão brincando de política para satisfazer caprichos pueris. Não aceitam a liderança da vanguarda revolucionária e devem ser rechaçados.

Tony ficou louco de ira ao ouvi-lo. Faroeste utilizara a reunião como pretexto para resolver diferenças pessoais. Precisava acalmar-se para responder com veemência àquele inimigo. Apesar de muito nervoso, gostou de ver o constrangimento de Anne. Foi o estímulo de que precisava.

Pensou em algo teatral para impactar a reunião. Com intenção de irritar Faroeste, encarou Anne

113

carinhosamente, e, enquanto falava, não dirigiu nenhum olhar de desdém ao detrator. A proposital indiferença deixou o rival visivelmente irritado.

— Amigos, é um equívoco pensar que eu vim aqui brincar. Por ser membro eleito da comissão de mobilização, esperava negociar com a liderança mais esclarecida do partido. Mas como fui ofendido, recuso-me a discutir na presença desse falsário. Se você quiser Faroeste, podemos resolver nossos problemas em outro local à sua escolha, é só marcar.

O impasse foi estabelecido. Tony e Karl aguardaram em outro ambiente a decisão interna do partido. Foram chamados e Faroeste saiu humilhado da reunião.

Após várias intervenções da Convergência, Karl lançou sua cartada final:

— Nós pretendemos aumentar a representatividade do movimento. Por isso, propusemos reativar e ampliar a comissão de mobilização. Porém, como vocês não aceitam essa proposta, só nos resta criar uma comissão paralela da Diretoria do DCE.

A direção do partido pediu uma trégua para avaliar a situação.

No dia seguinte, a moção do DCE convocou os estudantes a ingressar na nova comissão de mobilização do Pulo a Roleta. Desta feita, não havia limite para o número de componentes.

114

OUSAR LUTAR… OUSAR VENCER!

A nova comissão organizou pequenos grupos de estudantes para reativar o Pulo a Roleta junto à população. Distribuíram-se panfletando os principais itinerários dos ônibus urbanos. Começavam suas atividades muito cedo, buscando adesão do operariado industrial e dos comerciários.

Ágeis, revezavam-se desde a saída dos coletivos do pátio até seu recolhimento. Com o tempo, a população voltou a apoiar o movimento.

Um acontecimento trágico influenciou o processo. Como a oferta de circulares para a Federal continuava pequena, a maioria dos estudantes fazia o percurso do campus para casa à pé. Neste trajeto, atravessavam a pista dupla da rodovia Washington Luís.

Num final de tarde, duas alunas olharam para a pista da rodovia que estava sob intensa neblina. Avaliaram que poderiam transpô-la, mas foram atingidas em cheio por um caminhão que surgiu repentinamente, em alta velocidade. Ambas tiveram morte instantânea.

A grande bandeira do país no gramado do campus ficou a meio pau, anunciando tristemente o ocorrido. As pessoas abraçavam-se emocionadas. Vidas tão jovens destruídas daquela forma tão violenta.

115

As meninas transformaram-se em símbolos, marcos de união moral para a luta. Os estudantes não admitiriam qualquer recuo em nome delas. Após aquele incidente de dor, a participação estudantil nos grupos do Pulo a Roleta aumentou. Criou-se uma gana, uma indignação muito forte!

Com isso, o movimento alastrou-se como nunca. O jornal divulgou que, num certo dia, apenas dez passagens foram pagas. Prejuízos significativos atingiram os empresários do setor, que finalmente resolveram agir de outro modo.

Chegou à sede do DCE uma carta, convocando a entidade para participar de uma rodada de negociações. A resposta foi categórica, os estudantes só sentariam naquela mesa quando o número regular de circulares fosse restabelecido na cidade.

A empresa cedeu. Após verificarem as planilhas de custos apresentadas como justificativas à elevação de preços, os estudantes defenderam a manutenção do valor anterior das tarifas, sem nenhum índice de reajuste.

Transcorreram quatro semanas com o Pulo a Roleta a todo vapor. Após a sexta reunião, a empresa Capítulou e assinou o acordo. Comprometeu-se ainda a não aumentar os preços, sem antes realizar um amplo processo de discussão com as principais entidades representativas do município.

116

Esta foi uma das maiores vitórias da história do ME. Em plena vigência da ditadura, população e estudantes lutaram lado a lado pela mesma causa.

Uma música embalou toda a trajetória do Pulo a Roleta. Sua origem vinha de um hino cantado nos jogos universitários, quando os times da Federal vestiam-se com uniformes vermelhos. Dizia a estrofe mais significativa:

“Alô menina, alô garota,

oi abram alas que eu quero passar.

O vermelhinho, sinal de guerra.

A Federal estremece a Terra!”

No entanto, para Tony, além das flâmulas, palavras de ordem e belos discursos, foram significativos os gestos de pessoas simples em oportunidades inesperadas.

Durante a Passeata dos Pelados, a doce irmã Ângela nua. Quantas renúncias aquela moça fez para abraçar a causa? Despiu-se literalmente de suas convicções mais caras. Quem sabe imaginava-se a pleno galope nos infinitos pampas gaúchos, como fazia quando menina.

Na manifestação, ela sintetizou o espírito da Federal vermelha, que agregava corações e mentes em busca dos ideais mais nobres, igualitários e libertários. Empunhava como uma deusa a bandeira com os dizeres:

“Ousar Lutar… Ousar Vencer!”

117

COVA DA ARANHA

Na viagem de retorno para iniciar o segundo período do curso, imagens vinham à cabeça de Tony sem parar. Como explicar aquele sentimento incoerente de dor-delícia? Vida e morte, início e fim, alegria e tristeza.

Recortes do que o aguardava proporcionavam prazer antecipado. O Café do Centro, as noites quentes de São Carlos, os conchavos políticos, as risadas mais felizes. Após a sessão maldita beber uma pinga com canela, a pele de seda da nova morena baiana com voz de veludo, as festas do DCE, a cantiga desafinada cantada em grupo no violão surrado da república:

“… Disparo balas de canhões na lona, é inútil pois existe um grão-vizir…”

Quando o segundo ano de Universidade começou, Tony teve a sensação de que não era mais apenas um simples bicho desconhecido. Seus cabelos cresceram, tinha conquistado alguma credibilidade em certos grupos políticos e acadêmicos. Ampliava constantemente o universo de novas amizades.

O bom sentimento de retorno reforçava-se na convivência com os amigos de república. Confiava neles para vencer novos desafios de forma divertida e prazerosa, com potencial criativo inesgotável.

118

Apesar dessa coesão, dois moradores da Nicho-Cante saíram da república. Gustavo abandonou a Universidade e Renato mudou-se para um local mais próximo do campus. Os custos aumentaram para quem ficou.

Mudar para outro local mais afastado do centro seria a solução. Em busca de aluguel mais barato, a nova moradia foi encontrada na Rua 24 de maio, próxima à Estação Ferroviária.

A casa era ampla o suficiente para comportar mais moradores e eles ocuparam as vagas rapidamente. O primeiro a entrar foi Karl. A convite de Tony, mudou-se do Morro dos Ventos Uivantes para ser o primeiro não biólogo da república. Encaixou-se como uma luva ao espírito do grupo, adicionando novos e interessantes elementos.

O outro foi um bicho da Biologia conhecido pelo apelido de “Cabaço”. Apaixonado por Zoologia trouxe na bagagem alguns animais de estimação pouco convencionais.

Cabaço expôs cuidadosamente na prateleira do quarto vários bichos, como morcego, feto de gambá, pássaros, sapos e peixes; conservados dentro de frascos de vidro, em álcool e formol.

Alguns eram diafanizados, com vísceras transparentes e esqueleto corado, o que adicionava efeito visual atraente. Cabaço também trouxe animais vivos que foram integrados em perfeita harmonia àquela comunidade. Eram duas aranhas, uma caranguejeira e outra armadeira.

119

O imóvel ficava espremido entre casas de família naquela rua suburbana. Com frente estreita e acentuado comprimento lateral, abrigava cômodos mal distribuídos. A entrada abria-se numa sala ligada ao quarto da frente, cuja janela era voltada para a rua. Ali Tony e Jararaca ficaram instalados.

O antiquado portal em arco comunicava a sala com a ampla copa emendada, sem divisórias, à cozinha. Essa “tripa” comprida, cuja porta levava ao único banheiro, foi adaptada como salão das inúmeras festas que aconteceram naquela casa.

Para horror dos arquitetos, o corredor ligava a cozinha a quartos geminados no fundo da casa. No primeiro e maior deles instalaram-se Profeta e Capi. No segundo, Zoom e Cabaço. No pequeno quintal havia um pequeno sótão que foi ocupado por Karl.

Os insólitos animais de estimação foram abrigados em aquários adaptados na forma de terrários com telas protetoras. No terrário maior e mais vistoso ficou a grande aranha caranguejeira e no outro a armadeira, ambas expostas em região de destaque, na grande copa da casa.

Cabaço instruiu o grupo sobre as necessidades daqueles animais. Precisavam de um pouco de água, manter o calor corporal em épocas frias e capturar presas vivas para alimentar-se, pelo menos uma vez por semana.

Como predadores especializados, as aranhas rejeitavam presas mortas. Entre opções de “ração”,

120

optavam por baratas, insetos facilmente encontrados na casa. Também lagartixas ou pequenos camundongos, mamíferos que eventualmente também visitavam a residência.

Que espetáculo magistral! As cenas de captura, apreensão, paralisação e degustação da presa por parte da aranha caranguejeira eram imperdíveis e apreciadas por todos.

Aproximava-se sorrateiramente da aflita barata e, por meio de um bote rápido e certeiro, posicionava-se por cima do inseto, que não conseguia mais escapar, preso sobre as patas fechadas do aracnídeo. Acionava então as potentes quelíceras e aplicava no corpo da vítima a picada definitiva.

A barata resistia, contorcendo-se para escapar. Porém, o veneno inoculado paralisava seus estímulos. Aos poucos a aranha sugava os líquidos pré-digeridos do corpo da presa, cujo diâmetro corporal era paulatinamente reduzido. Restava no final apenas a fina casca externa do inseto.

Para diminuir o estresse dos animais, Cabaço retirava-os dos terrários e “brincava” com eles. Era comum encontrar o calouro deitado na sala sem camisa com a grande aranha passeando sobre seu tórax. Nenhum outro integrante da república atreveu-se a seguir esse costume.

Jararaca descobriu uma estratégia para aumentar suas conquistas. Combinou com Cabaço para ele libertar os animais quando visitas femininas aparecessem por

121

lá. Jararaca, então, despretensiosamente, sentava-se no sofá como uma ovelha indefesa ao lado das meninas.

Quando elas viam as aranhas no chão da sala, pulavam e abraçavam-se a ele com medo daqueles seres repugnantes. Aí, então, a ovelha indefesa transformava-se em lobo pronto a “abater” a próxima vítima.

Zoom fez mais uma de suas propostas desconcertantes, queria os aracnídeos livres na casa, para criar a “cadeia alimentar natural”:

— Temos barata à vontade nessa casa. Apesar de elas incomodarem não gosto de matá-las e deixo os bichinhos prosseguir sua vidinha. As aranhas precisam comer e a população de baratas está aumentando. Achei a solução! É só soltar as aranhas que o número de baratas vai diminuir, livrando-me da dor moral de matar esses pobres insetos.

A proposta foi sumariamente rejeitada por todos.

Aqueles animais conviveram alegremente com os rapazes durante vários meses e o local ficou conhecido como a república das Aranhas.

122

ENTERRO ARACNÍDEO

Aquele feriado prolongado caiu na época mais fria do ano e os moradores da república de Tony ausentaram-se de casa por alguns dias.

Ao retornarem, perceberam pouco sinal de atividade num dos terrários. A bela aranha caranguejeira estava desidratada, com o corpo atrofiado e tamanho reduzido. O prognóstico foi o pior possível, ela morrera de frio.

O que fazer com a tristeza que tomou conta da casa? Profeta resolveu o impasse:

— Moçada, vamos transformar esse baixo astral em alegria. Nossa querida aranha precisa de enterro digno e nós de uma grande festa para espantar o mau olhado. Que tal?

A ideia emplacou e começaram os preparativos da festa. O cadáver da caranguejeira ficaria à luz de velas, a mesa da copa coberta de flores e mensagens carinhosas de despedidas.

Pediram aos convidados que se vestissem de preto e com roupas leves, bem à vontade para dançar rock e homenagear a finada. As batidas de pinga com maracujá pipocaram na cozinha. Rolou muito som e

123

papo furado no salão da casa, tudo na penumbra, sob a luz bruxuleante de pequenas velas.

Paco apareceu vestido de aranha e fez excelente performance mímica. Nela retratou a trajetória do animal, até sua trágica morte. Tudo com muito realismo e significação, como só ele sabia fazer.

A casa ficou abarrotada de gente, uma multidão de estudantes aderiu àquela rara comemoração. Todos os espaços disponíveis foram ocupados, do quintal à varanda de entrada. Por falta de área útil, vários grupos não conseguiram entrar na festa e voltaram mais tarde.

Dona Thelma, vizinha da república, cuidava da mãe doente, era divorciada e criava três filhos. Muito bonita e educada, aparentava menos idade do que tinha, apesar dos golpes que sofreu na vida.

Tony percebia certa cumplicidade no olhar da vizinha para com eles, uma sutil aprovação ao modo de vida dos rapazes, invejava aquela liberdade que fora subtraída dela ainda jovem.

Na muvuca da festa, Dona Thelma tocou a campainha. Pediu civilizadamente para abaixarem o som, pois a mãe adoecida não conseguia dormir. Capi, o mais sóbrio naquele momento, falou com ela:

— Dona Thelma, por favor, nos desculpe. Eu vou avisar o pessoal pra diminuir a bagunça, mas a senhora está vendo. É difícil frear essa turma. Prometo fazer o possível.

124

Ela sorriu meio sem graça e se despediu:

— Tudo bem, eu compreendo. Vá logo rapaz, volte para a festa e aproveite até o final. Beba a felicidade antes que o copo esvazie por completo.

Capi surprendeu-se com a melancolia daquelas palavras, tentou abaixar o som e transmitir o recado. No entanto, sabia que a tarefa era inútil.

Entre a patuleia, surgiram “Caju” e Laís, um casal de militantes da Convergência. Apesar do filho pequeno, eles aproveitavam como podiam a vida estudantil. Como vários outros casais, mantinham a relação aberta, atraindo novos parceiros sexuais.

Tony estava conversando animadamente numa roda da cozinha quando Laís o abordou sem nenhuma sutileza. Abraçou o rapaz e começou a beijá-lo, queria ir ao quarto transar. Tony topou o convite, quando viu Caju recostado na parede. Desistiu em respeito ao marido, mas ela suplicou obstinada:

— Vamos, não tem problema. O Caju permite que eu me deite com quem quiser.

Tony, excitado, carregou-a para o quarto e amaram-se como animais famintos. Estavam tão entretidos que se esqueceram de trancar a porta, permitindo acesso ao cômodo. Permaneceram assim entrelaçados entre os opacos flashes luminosos das velas.

Mas Tony foi reconhecido por aquele rosto querido. A bela Anne que, sem pronunciar nenhuma palavra, abandonou rapidamente a festa. Antes de partir à

125

procura dela, viu Caju auxiliando a esposa a vestir-se, pedindo que se arrumasse, pois estava na hora de pegar o filho que ficara na casa de amigos.

Aquilo foi demasiado para Tony entender. Como Caju aceitava daquela forma a traição pública da companheira?

A festa continuou bombando e a alegria brotou em cada canto. Os corpos relaxavam a cada passo de dança, todos pareciam felizes com o matraquear interminável das conversas, menos Tony.

O rapaz só pensava em Anne, seus amigos tentaram avisá-lo da chegada da moça à festa, mas não deu tempo e o lamentável desencontro aconteceu.

Tony foi procurá-la em casa, nos bares da cidade, em repúblicas de amigos… Ela desapareceu! Sem êxito, deu-se por vencido e retornou para a festa.

Chegou a tempo de participar do enterro da aranha. O desfile fúnebre da copa ao quintal, onde o animal foi enterrado, começou às quatro horas da manhã.

Cabaço e Profeta transferiram cuidadosamente o corpo da aranha para uma pequena caixa de madeira. O cortejo seguiu até o quintal. Os convidados vinham atrás, cantando impagáveis canções fúnebres.

Colocaram o “caixão” no jardim, dentro de uma cova preparada com antecedência. Discursos bem humorados foram proferidos, enaltecendo “qualidades” do animal. Cabaço, assim, escolheu as palavras:

— Estamos aqui com pesar para nos despedir deste ente querido. Amiga, companheira e amante ardente.

126

Quando solta, roçava suas pernas peludas em meu peito, insinuando-se loucamente. Pena que não fui homem o bastante para ousar mais com ela. Pelo que sei, morreu virgem! Que descanse em paz.

Foi sepultada entre palmas e goles de batida de pinga com maracujá. Depois daquela festa, como não poderia deixar de ser, a república passou a ser chamada pelo seu nome definitivo e inquestionável: “Cova da Aranha”.

127

VIDA E MORTE

No dia seguinte raiou o sol de outono. Karl foi adiantar o trabalho no estágio do Laboratório de Estatística Aplicada da Federal. A informática estava engatinhando no país, ele aprendeu computação no sistema DOS, leitora de cartão perfurado e computadores com grandes telas verdes.

Karl tabulava dados de pesquisa econômica com lavradores. O grupo pretendia delinear o perfil estatístico regional das condições sociais no campo.

Empolgado, contou aos amigos sobre a fabricação do primeiro micro no laboratório da Universidade. Consistia num tubo de televisão preto e branco, teclado de máquina de escrever Remington, ambos conectados pelo emaranhado de fios telefônicos.

São Carlos, a “capital do silício”, matéria-prima da revolução computacional, foi um dos principais polos de tecnologia em informática do Brasil. Muitas empresas instalaram-se na cidade e desenvolveram projetos de cooperação com as Universidades locais.

Após almoçar, Karl voltou à Cova para descansar. Ao passar em frente da casa vizinha ouviu estranho burburinho. Havia muitas pessoas orando no velório

128

da mãe de Dona Thelma, que falecera durante a festa de arromba da noite anterior.

Para piorar a situação, soava o som de rock no último volume emitido da república. Após sofrer olhares reprovadores, o rapaz entrou rapidamente em casa.

Zoom e Capi faziam tarefas domésticas, empolgados pela trilha sonora. Karl desligou a tomada da vitrola e contou o que estava acontecendo na casa vizinha. Ficaram compungidos, depois lentamente e, como único recurso, riram constrangidos daquela situação absurda.

Com o sentimento de dor-delícia batendo forte, Tony refletia sobre a vida e a morte. Por mais que estudasse “cientificamente” a questão, não encontrava respostas sobre o feixe misterioso que animava e apagava a vida.

Pensava em sementes germinando na terra enriquecida pelos corpos decompostos. O feijão reciclado dos cadáveres alimentaria as crianças. Afinal, qual era o fim do ciclo? O início do elo? Vida e morte, começo e fim, alegria e tristeza, conceitos relativos…

Após essa reconfortante conclusão, entendeu que a Cova da Aranha foi uma república com identidade forjada entre dois velórios e uma grande festa.

Este fato significou simbolicamente a transformação de seus integrantes. A partir das experiências únicas proporcionadas pela morada, nunca mais seriam os mesmos. Modificaram-se irreversivelmente em direção à vida nova, ao marco indicador de felicidade e comunhão.

129

CAASO

A chapa de Tony foi eleita para o centrinho da Biologia. Ele estreitou relações com as entidades estudantis. Pela proximidade física e identidade natural, o DCE era a representação co-irmã do centrinho, trabalhavam em parceria refinando métodos de cooperação.

O CAASO tinha dinâmica própria, com sede no campus da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC). Era o cordão umbilical dos estudantes da USP, atando-os a sua história.

Tony conhecia a tradição de lutas daquela entidade, desde sua fundação, em 1953, com os estatutos do Centro Acadêmico Armando de Salles Oliveira, fundador da USP. Respeitava o CAASO como irmão mais velho do DCE e peso pesado do ME, por sua ótima estrutura, pela excelente gestão de recursos, gerados principalmente via gráfica e escola próprias.

No CAASO havia um salão de festas com palco para apresentações artísticas, equipado com sistema de som e iluminação profissionais. No balcão do bar, os garçons serviam bebidas ao público sedento. Grandes portais ligavam o salão à vasta área arborizada do campus, onde os casais, invariavelmente, escolhiam trilhas para namorar.

130

Naquela sexta-feira de pouco movimento, Tony foi passear no CAASO. Recostou-se no balcão e com prazer ouviu as baladas do violão de “Pardal”, estudante da EESC e exímio instrumentista.

A agenda do músico em início de carreira lotou, tornando-se complicado conciliá-la com as exigências da Universidade. Os convites para tocar em bares, restaurantes e eventos da cidade choviam; ele, determinado, atendia a todos.

No dia seguinte, religiosamente, levantava-se cedo e seguia para as aulas. Pardal logo iria se formar e topava a parada, o mais difícil era administrar as raras horas de sono.

Tony encontrou-se com “Coringa” e passaram a beber juntos. Coringa, da diretoria do CAASO, namorava uma amiga de Tony. A ocasião encaixou para eles baterem um bom papo:

- Então, Coringa, o CAASO é mais antigo que o DCE. Já ouvi muitas histórias, mas me conte. Como a entidade reagiu ao golpe militar de 64?

Coringa respondeu com prazer, pois adorava falar sobre o assunto:

— O CAASO, em 1963, organizou passeatas contra o golpe militar que estava em curso. Quando aconteceu, fizemos uma greve permanente de repúdio. Nos anos de chumbo da ditadura, vários estudantes da EESC foram presos, jubilados ou enquadrados na Lei de Segurança Nacional.

131

Coringa questionou Tony:

— Reconheço que hoje o DCE está na vanguarda das mobilizações. Só uma coisa não entra em minha cabeça. Por que vocês administram tão mal os recursos do diretório?

Tony não tinha uma resposta pronta, mas arriscou:

— As tendências xiitas da Federal resistem à ideia de lucro na entidade, isso é uma grande babaquice, mas é assim que acontece.

Tony queria saber mais sobre a história do CAASO:

— Como aconteceu a estruturação financeira da entidade?

— Apesar das perseguições, mantivemos nossa gráfica ativa e com o tempo ela se expandiu. Além disso, angariamos fundos e investimos na remodelação física do CAASO, que ganhou autonomia financeira, mas não é verdade que só visávamos o lucro, o dinheiro serviu de alicerce para nossa ação política.

— Ouvi dizer que a gráfica daqui, em plena vigência da censura, imprimia documentos distribuídos em todo o país. Isso é verdade?

— Investimos na resistência quando outros se calaram. Editamos, em 1968, com recursos próprios, a revista “O CAASO”. Na década de 70, publicamos o “Jornal Mural”, enviado gratuitamente para os DCE’s de todo o país.

Coringa voltou a perguntar:

132

— Os estudantes da Federal conhecem essa história? Qual é a percepção do CAASO entre vocês?

— Existe um desconhecimento absurdo, uma rivalidade idiota… Chupa CAASO, chupa Federal, parece Brasil e Argentina. Acho que a percepção média é de que vocês são um bando de engenheiros elitizados, nem aí para as questões políticas e que só querem comer as menininhas da Federal.

Tony não queria que a conversa tomasse outros rumos e reconduziu as perguntas para o que mais lhe interessava.

— Já ouvi falar muito, mas qual foi do papel do CAASO no enfrentamento da ditadura?

— Na década de 70 um estudante foi assassinado pela repressão. O CAASO, mesmo com ameaças de invasão, realizou missa para homenageá-lo. Organizamos protestos pela autonomia universitária em defesa do ensino público. Denunciamos a morte de Wladimir Herzog. Fizemos greves por assistência estudantil e contra expurgos na Universidade.

— Como o CAASO se envolveu na reconstrução da UNE?

- Utilizamos os Seminários Nacionais de Engenharia, como pano de fundo para reconstruir a UNE. Nesse período, sediamos reuniões clandestinas da entidade. Disponibilizamos nossa gráfica para imprimir documentos secretos da UNE que circularam no Brasil inteiro.

Coringa insistiu em cutucar Tony.

133

— Você não acha que o DCE está à mercê dos interesses das tendências?

— Por um lado isto é positivo, elas mobilizam os estudantes. Mas são centralizadoras e sectárias, sufocando outras vozes. Porém, existe algo novo no ar. Uma corrente de estudantes independentes, que acreditam na ação direta. Esse grupo ainda vai ser uma alternativa interessante ao DCE.

Tony não resistiu e também fez sua provocação ao amigo.

— Tudo bem, o DCE está partidarizado. E o CAASO? Não anda sem orientação política nenhuma? Cadê aquele Centro Acadêmico combativo?

A resposta veio sem demora:

— Ô Tony, espera aí, você está apelando! As coisas mudaram, os estudantes exigem que o CAASO seja apartidário. Isto não significa que a entidade é apolítica. Continuamos defendendo nossas causas. A diferença é que respeitamos a opção ideológica de todos, sem nenhuma distinção.

Tony gargalhou:

— Pois é, Coringa, não tem jeito mesmo. É melhor pararmos por aqui. No final da história sempre acontece o famoso quebra pau entre Federal e USP. E, aliás, só para não esquecer... Chupa CAASO!

Coringa, também rindo, alfinetou:

— Beleza, não esqueça que a grande mágoa de vocês é não terem entrado na USP. Mas tudo bem, eu

134

entendo e Freud explica! Ah, ia também me esquecendo… Chupa Federal!

Despediram-se e seguiram seus caminhos. A conversa havia sido proveitosa para os dois que eram teimosamente convictos de seus pontos de vista.

Amavam aquelas entidades e pretendiam ampliar os horizontes de sua atuação. A fronteira que os separava era tênue, mas persistente. Como o peso da tradição daquelas duas grandes representações estudantis.

135

CEZÃO E RAFAELLA

Tony foi saindo do CAASO quando teve um encontro inesperado. Na sua frente, com os grandes braços abertos em arco, estava Cezão, a única pessoa decente da república dos Engenheiros Babacas.

Tony perguntou espantado, ao perceber a embriaguez do amigo.

— Cezão, que surpresa, cara! O que está fazendo por aqui? Nunca te vi no CAASO. Aconteceu algum problema? Você está bem?

Cezão sempre viajava nos finais de semana para a casa dos pais. Havia algo estranho em sua expressão, estava fora de controle.

— Sabe, Tony, sempre te admirei. Você não tem freios como eu. A gente se gosta, né? Porém, somos muito diferentes, optei por uma vida mais segura e vou fundo nela, até o fim. Minha escolha é simples, quero ficar rico e gozar a vida.

Tony compreendeu o desabafo etílico do rapaz e tentou apaziguá-lo:

— Cezão, você é um cara bom. A gente se respeita e isso basta. Cada um tem sua opção na vida, não

136

julgo ninguém, quem sou eu para isso? Conte-me: o que aconteceu.

— Estava namorando uma moça da alta sociedade. Investi todos os meus finais de semana nela, Tony. Cinema, barzinho, mãozinha dada na casa dos pais, jantares pavorosos em família. O pai dela é dono da maior construtora da cidade, eu vou me formar em Engenharia, tudo aparentemente tratado.

— Aí, a coisa azedou. Ela está saindo com um playboy mais novo do que eu. Seus pais não querem mais me receber e sabe qual é o motivo? A família da cara é podre de rica. Tudo está acabado e eu com uma puta dor de corno! Vamos beber...

A conversa parecia um monólogo. De repente, os olhos de Cezão brilharam para uma moça que entrou no salão. Trajava vestido azul de seda e, pelo “fenótipo”, não era estudante.

Cezão, fugindo ao seu estilo, partiu para a abordagem franca. Após diálogos esparsos, o casal começou a dançar no salão. Tony observava tudo numa distância estratégica, não perderia aquilo por nada.

Cezão fez sinal de que estava precisando de dinheiro. Tony misturou-se entre os casais e enfiou discretamente o bolo de cédulas no bolso do rapaz. Viu quando o casal saiu do portal, procurando, na área arborizada do campus, a trilha que melhor combinasse com seu primeiro beijo.

137

Anos depois Tony descobriu que a moça, uma rica patricinha da sociedade Sãocarlense, chamava-se Rafaella. Naquela noite ela descobriu que o namorado a estava traindo. Para fugir da dor, dirigiu desesperada em alta velocidade e, quando percebeu, havia estacionado em frente ao CAASO.

Entrou no salão e encontrou Cezão. Casaram-se logo depois da formatura do rapaz.

Como o pai de Rafaella era o maior pecuarista da região, Cezão passou a tocar com mão firme todos os negócios da família.

138

CAVALEIRO DA ESPERANÇA

Dias depois, Coringa avisou Tony, sobre a realização de expressivo evento no CAASO.

Luís Carlos Prestes faria uma palestra no anfiteatro da entidade. O comandante rompera com o Partidão e, para surpresa dos comunistas, filiara-se ao PDT, de Leonel Brizola.

O esperado dia chegou. Na plateia lotada, figuras carimbadas do ME, professores e políticos. A mesa foi composta pelo jornalista Paulo Markun e os presidentes do DCE e do CAASO.

Aquele senhor octogenário de terno preto era uma figura forte e marcante. Suas olheiras não escondiam o porte dos grandes líderes. Pareceu a Tony que ele ouviria a história viva da nação.

Falou sobre a organização da mítica coluna Prestes, que percorreu mais de 25.000 quilômetros no interior do Brasil, sem sofrer nenhuma derrota significativa para as tropas governamentais, que perseguiram sem trégua seus 1.500 homens.

Contou a respeito de sua formação marxista na Bolívia, em 1928, e do retorno clandestino do exílio a Porto Alegre, em 1930. Convidado por Getúlio Vargas

139

para comandar a Revolução de 30, recusou-se por discordar do caráter oligárquico daquele movimento.

A seguir, relatou a passagem na União Soviética, em 1931, onde aprofundou estudos marxistas-leninistas, a filiação ao PCB e sua eleição como membro da Internacional Comunista, em 1934.

Prestes detalhou o clandestino retorno ao Brasil, acompanhado da militante alemã Olga Benário. Pretendiam liderar a revolução e contactaram a Aliança Nacional Libertadora, que unia tenentes e comunistas descontentes com o Governo de Getúlio Vargas.

E, também, a organização da Intentona Comunista, em 1935, que contava com tropas do Exército em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Foi minucioso na narração de como a revolta foi derrotada por Vargas, por meio de violento processo repressivo.

Ouviram ainda, outros fatos públicos, que tiverem significado especial para ele. Em 1936, Prestes foi preso e cumpriu longa pena. Sua companheira Olga Benário, grávida, foi deportada para a Alemanha e morreu na câmara de gás no campo de concentração nazista Ravensbrück. Tony notou a face melancólica do velho comandante quando se referiu a ela.

Anistiado da prisão no fim do Estado Novo, elegeu-se Senador, assumindo a secretaria geral do PCB. Porém, mais uma vez o partido foi cassado e voltou à clandestinidade.

140

Com a ditadura militar, seus direitos políticos foram cassados por dez anos. Exilou-se na União Soviética no final dos anos 60, regressando ao Brasil com a lei da Anistia em 1979.

Após essa explanação histórica, explicou as divergências que possuía com o comitê central do PCB, os princípios de sua “Carta aos Comunistas”, na qual defendia uma política de maior enfrentamento ao regime, justificando, por fim, as razões do rompimento com o partido e sua filiação ao PDT.

Foi uma palestra magistral. Tony emocionado aplaudiu de pé o comandante. Paulo Markun organizou as perguntas da plateia para iniciar o debate. A vergonha de Tony começaria ali com a intervenção inoportuna e arrogante de Canário, que naquele momento representava o DCE da Federal:

— Prestes, no final do Estado Novo, não foi uma contradição você ter negociado com Vargas depois dele ter entregado sua esposa aos nazistas?

Tony ficou indignado pelo tom desrespeitoso da pergunta. Chamara aquele ícone nacional, um senhor de idade, de você. Questionara-o sobre delicadas questões pessoais. Prestes não se abateu ou demonstrou qualquer mudança de expressão facial, respondendo de forma firme, calma e resoluta:

— Prezado camarada, sempre coloquei questões políticas acima das pessoais. Essa negociação possibilitou a instalação da Constituinte de 1946, onde lideramos uma bancada comunista de 14 deputados composta

141

por Jorge Amado, Carlos Marighela, João Amazonas e o sindicalista Claudino Silva, único constituinte negro do país.

Sem considerar a presença do mediador, Canário não se deu por vencido e insistiu:

— Como você justifica seu não alinhamento ao Partido dos Trabalhadores, o verdadeiro representante da classe operária do Brasil, e a opção pelo PDT, que se apega ao antigo sindicalismo conservador Getulista?

— Considero o PDT, assim como seu líder, o senhor Leonel Brizola, autênticos representantes da classe operária brasileira. Tenho muito respeito pelo PT, participei de reuniões para sua fundação. O que me incomoda é a demasiada influência da igreja em suas proposições, que considero, em suma, contrarrevolucionárias e reacionárias.

Não foi preciso dizer mais nada, a Convergência murchou após a resposta vigorosa. Seguiram-se outras perguntas mais civilizadas e o debate foi encerrado com grande sucesso. Ao final do evento, Tony conseguiu aproximar-se de Prestes e fez seu pedido:

— Comandante Prestes, posso apertar as suas mãos?

O velho político pegou firme nas duas mãos do rapaz e falou rapidamente:

— Nunca se curve a ninguém. Precisamos de homens eretos para mudar o mundo.

142

A lição estava dada, apertara a mão de sua maior referência política. Estava no CAASO, em São Carlos e as bandeiras cintilavam a sua frente.

Lutar contra a ditadura militar. Por eleições majoritárias, livres e democráticas para todos os níveis de poder. Pela instalação da Assembleia Nacional Constituinte livre e soberana. Eleições diretas para Reitor. Por assistência estudantil e pela garantia do ensino público e gratuito de qualidade.

Tony sentiu que agora sim tinha a chancela e poderia mudar o mundo.

143

BROA

Naquela manhã nublada Tony, Profeta e Marilin chegaram cedo à Universidade. Auxiliaram seu João, experiente técnico do laboratório de Limnologia, a carregar a Kombi com os equipamentos de análise e coleta.

Entre os objetos notaram uma caixa de isopor com tampa transparente, em cujo interior havia seringas e soros antiofídicos. Seu João, notando o temor que surgiu na feição dos estagiários, explicou:

— Calma, gente, isso é só rotina para o caso de acontecer um pequeno acidente. Lá no Broa não aparecem muitas cobras, de vez em quando uma jararacazinha ou coralzinha. Vocês não sabem o que é se embrenhar nas águas do Pantanal e da Amazônia… Lá sim tem bicho de respeito!

Os três estudantes foram participar, junto aos professores Maia e Hirata, de coleta na represa do Lobo (Broa), na cidade de Itirapina, próxima a São Carlos.

Maia já era uma das principais autoridades mundiais em Biologia de água doce, sobrava-lhe disposição para as investigações a campo. Hirata, mais jovem, concluíra pós-doutorado no exterior, tornando-se respeitado especialista, com carreira promissora.

144

A viagem transcorreu tranquila. Desembarcaram na base de apoio às margens da grande represa. Pegaram o barco adaptado para pesquisas e navegaram calmamente pelas águas, em diferentes regiões do açude, onde colheram amostras de material biológico.

O material das finas redes de arrasto foi fixado em solução de formol. Continha principalmente fitoplâncton, de importância fundamental à nutrição daquele ecossistema. Havia também microscópicos animais, o zooplâncton.

Depois fizeram coletas para averiguar as características físicas e químicas da água. Durante os trabalhos, Maia, com humildade e carisma, proferiu aula de campo aos estagiários, que fazia questão de instruir pessoalmente.

À tarde mediram a vazão do veloz regato atrás da pequena e vigorosa queda d’água das comportas da represa. No local havia uma estação geradora de energia elétrica desativada. Escolheram o barranco do regato que Maia achou mais adequado para fazer a medição.

Tony e Profeta ofereceram-se como voluntários para realizar o incômodo trabalho. Maia aceitou a oferta antes de solicitar insistentemente aos rapazes para redobrarem os cuidados a fim de evitar acidentes.

A água estava muito fria e batia na altura da cintura. A força da correnteza era muito grande, obrigando-os a avançar com movimentos lentos e pesados.

145

Com fita métrica de metal unida ao peso pela base, os estagiários mediram diversas profundidades da água em locais determinados por Maia. Marilin anotou os resultados em planilha.

Depois verificaram a distância entre as margens laterais do regato em diferentes profundidades. Cada movimento era penoso, exigindo força muscular para fixar os medidores nos locais corretos.

A linha reta do barbante ficou esticada no nível da água entre as duas margens do barranco. Um metro abaixo do primeiro marco, prendeu-se outro igual. Tony ficou dentro da água junto ao marco superior e Profeta, ao inferior.

Marilin esperava comandos para acionar e desligar o cronômetro. Maia jogou na água o isopor flutuante, quando ele passava no primeiro marco Tony gritava acione. Ao atingir o segundo, Profeta gritava desligue. Repetiram essa medida por mais de vinte vezes.

O trabalho acabou no poente; os rapazes, gelados e esgotados, secaram-se e trocaram de roupa. Maia trouxe cobertores para amenizar o desconforto. Voltaram à base nas margens da represa e fizeram a triagem do material que seguiria ao laboratório.

Num pôr de sol indescritível surgido naquele momento, fizeram a primeira pausa do dia. Maia estava tentando parar de fumar, mas, como de costume, pediu aquele que seria seu último cigarro para Tony e comentou com o grupo:

146

— Olha que cenário maravilhoso! E ainda nos pagam por isso. Nas próximas férias vou prestar uma assessoria na Amazônia. Gostei de vocês. Lá as coletas são bem mais pesadas. O que acham?

Os três estagiários responderam sem pestanejar:

— Vamos!

Maia continuou falando:

— Sabe, acho que a gente deve trabalhar duro como fizemos hoje. Porém, depois do trabalho vem o prazer da comida. Sou descendente de italianos e adoro comer. Gostaria de convidá-los para jantar, poderíamos rir e tomar um bom vinho. Mas hoje não vai dar, tenho um compromisso. Conversei com o Hirata e ele quer convidá-los para jantar na casa dele.

O convite foi aceito, os estudantes estavam enjoados do bandejão e qualquer variação no cardápio era bem-vinda. Foram rapidamente para casa, queriam banhar-se e colocar uma roupa bacana para participar com elegância do jantar.

147

HIRATA

Os convidados estavam em frente à casa de Hirata. Ao entrarem, impressionaram-se com o bom gosto do ambiente em estilo oriental. Possuía decoração refinada, belos tapetes e amplas áreas internas de jardinagem.

Descobriram que Hirata era um requintado solteirão. “Caso raro, né?” Como diria o Japa. Morava sozinho e tinha por passatempo predileto cozinhar, frequentara cursos de culinária no exterior.

Os convidados acomodaram-se na sala de visitas, sentados no chão ao redor da mesa baixa de mármore. Os detalhes preparados pelo educado anfitrião eram primorosos. Taças de cristal, talheres de prata e pratos de porcelana. Hirata iniciou a conversa:

— Sejam bem-vindos! Preparei alguns aperitivos, vocês bebem alguma coisa? Tenho whisky escocês 12 anos, vinho italiano, conhaque francês, saquê japonês, vodka russa e cerveja alemã. Se preferirem, posso também improvisar drinks com frutas exóticas.

Profeta comentou para quebrar o gelo:

— Bebemos tudo, professor, não necessariamente nessa ordem.

148

Hirata adorou a brincadeira, porém, com rigidez oriental interpretou-a literalmente. Começaram com cerveja e o clima ficou mais descontraído. Após o drink ter mudado para vodka, o anfitrião serviu os aperitivos.

Marilin não acreditou no que seus olhos viram. Numa fina peça de cristal estavam o aromático caviar russo, queijos finos, suchis preparados por mãos experientes, corações de alcachofra, aliche italiano e amêndoas.

Ao concluírem copos generosos de whisky, a conversa ficou animada e Profeta preparou perigosas caipirinhas de saquê. Perigosas pela suavidade da bebida, consumida rapidamente como refresco. Conforme o esperado, o saquê, com elevada dosagem alcoólica, provocou generalizada embriaguez.

A etiqueta e polidez inicial da visita foram para o espaço. Tony comia caviar com as próprias mãos. Profeta fazia sanduíches de queijo com aliche e suchi. Marilin devorava alcachofra com torrada.

Hirata pegou taças novas e tomaram conhaque em cima da caipirinha. Ninguém entendeu mais nada. O anfitrião abriu seu armário e trouxe roupas japonesas exóticas para os convidados vestirem.

Enquanto o pato assado queimava no forno, os quatro alegres convivas sambavam desenfreados na sala. Desta feita tomando vinho, ao som de samba enredo.

Tony e Profeta brincavam de luta com espadas de samurai que decoravam a casa. Enquanto isso, o anfitrião com a cabeça recostada no colo de Marilin, vestida com

149

roupa étnica japonesa, ouvia belas histórias litorâneas que só ela sabia contar.

Marilin sentiu forte cheiro de queimado e percebeu a névoa saindo da cozinha. Todos correram para ver o que estava acontecendo. Lá chegando, perceberam a grossa camada de fumaça negra que brotava intermitente, como produzida por uma mina, do forno incandescente.

Hirata desligou o gás e com o auxílio da vassoura abriu a porta do forno. Restava da pobre ave, que há poucas horas era um suculento pato, a carcaça completamente carbonizada. O teto da cozinha era equipado com sensores que disparavam gotejadores de água ao menor sinal de incêndio.

A cena hilária estava formada, quatro pessoas vestidas com roupas japonesas encharcadas na cozinha esfumaçada. Duas delas portando espadas de samurai, ao lado da carcaça escura de onde a fumaça fluía.

Começaram a gracejar lentamente e a gargalhada tornou-se compulsiva. Hirata, mal contendo as lágrimas de tanto rir, fechando a noite, fez a espirituosa observação:

— Lembram-se do convite de Maia. Ele falou que durante o jantar poderíamos tomar um bom vinho e sorrir. Bom, acho que cumprimos à risca as recomendações dele.

150

MAIA

Naquele ano, com a liderança do professor Maia, foi fundada, na Biologia da UFSCar, a Sociedade Brasileira de Limnologia. O grupo de pesquisas, do qual Tony participava, obteve projeção nacional e internacional.

Maia, o grande entusiasta do grupo, defendia o projeto de realizar um Congresso Internacional de Limnologia na UFSCar. Um dia tocou ironicamente no assunto:

— Apresento algumas razões aos colegas estrangeiros para realizarmos o congresso no Brasil: a bacia do Rio Negro tem mais água doce que a Europa. A Amazônica, 25% da água doce do planeta. Os principais tributários do Amazonas são maiores que várias outras bacias hidrográficas. E também, é claro, o patamar de excelência de nossas pesquisas.

Esses e outros argumentos apresentaram-se irresistíveis. Em 1982, realizou-se na UFSCar o Congresso Internacional de Limnologia. Vieram cientistas dos quatro quadrantes do mundo e de todo o Brasil para participar do evento.

Os hotéis da cidade ficaram lotados, o público prestigiou em massa as mesas redondas e palestras com os papas da área. Aconteceram exposições de

151

trabalhos científicos e pôsteres. Tudo correu de forma impecável, incluindo apresentações artísticas e jantares de gala.

Uma das estrelas do congresso chamava-se Smirnov, limnólogo soviético de destaque mundial. Sempre andava acompanhado sob atenta vigilância de dois atléticos agentes da KGB.

A função dos agentes era evitar o suposto pedido de asilo político do cientista ao Brasil, impedindo seu retorno a União Soviética. Na época essa deserção de personalidades, principalmente dos regimes socialistas para os capitalistas, estava se tornando muito comum.

Tony e Profeta não sabiam falar inglês. Um dia, estavam auxiliando Maia a organizar o congresso, quando o professor soube da chegada de Smirnov na Universidade. Foi recebê-lo, em frente ao gramado da Biologia, junto com os rapazes. O soviético, sempre acompanhado à distância pelos agentes, abraçou cordialmente o colega. Os dois maiores expoentes vivos da área conversavam fluentemente em inglês. Maia apresentou os rapazes ao eminente cientista e disse:

— Vamos, aproveitem, falem com ele. Essa oportunidade é muito rara.

Os dois ficaram pasmos e não emitiram nenhum grunhido. Maia, que estava atarefado na organização do congresso, sem fazer a menor cerimônia, solicitou aos pupilos:

152

— Rapazes, preciso de um favor. Entretenham o senhor Smirnov, pois tenho que resolver um problema urgente na secretaria. Levem ele pra conhecer o Laboratório de Limnologia. É rápido e não se preocupem, vocês não precisam falar russo, ele entende inglês perfeitamente. Tchau.

Foram os quinzes minutos mais demorados da vida dos dois universitários. Smirnov procurava comunicar-se com eles, enquanto Profeta por meio de sinais tentava conduzi-lo ao laboratório. Os agentes, estranhando aquela confusão, trocaram frases secas em russo com o pesquisador.

Mas, para alívio de todos, lá vinha Maia salvar a situação, com seu sorriso fácil e a inteligência apurada dos grandes homens da ciência.

153

“BACAIAUS”

Após o término do congresso, Tony canalizou sua energia para a graduação. No ano anterior mais da metade da turma foi reprovada em botânica, ministrada pelo pouco comunicativo e confuso professor Onofre.

A turma do barulho obrigada a ser aprovada para viabilizar a conclusão do curso, matriculou-se na disciplina. Dentre os alunos, estavam “pendurados”, além do Tony, Capi, Profeta, Zoom, Jararaca, Abobrinha, Cereja, Olívia, Marilin, Silvinha, Gueixa e Virgínia.

As moças da galera eram muito amigas do povo da Cova e, como moravam na república das bacaiaus, ficaram conhecidas simplesmente como as bacaiaus. Apesar de serem lindas, desprezavam o culto à beleza e ironizavam as frescuras das patricinhas.

Formavam um grupo coeso e nitidamente identificado. As duas repúblicas conviviam no mesmo núcleo e desenvolveu afeto genuíno, como o de irmãos fraternos. Estavam sempre juntos, adoravam se ver constantemente.

Quando alguém da Cova ficava doente, logo chegava uma bacaiau para cuidar do enfermo e fazer sopinha. Se a casa das garotas precisava de serviços masculinos, um coviano ia imediatamente ajudar.

154

Estudavam e faziam trabalhos em conjunto. Compartilhavam diversões e amores. Porém, nenhum prosperou entre eles, a não ser a eventual “amizade colorida”. Às vezes até surgia uma ponta de ciúmes entre os amigos, mas não havia espaço para o sentimento vingar. Frequentavam as mesmas festas, conviviam em todas as rodas da Biologia e faziam parte do grupo de Educação Ambiental.

O Interbio era um torneio de jogos universitários que agregava vários cursos de Biologia, alguns realizados na UFSCar. Nessas ocasiões, as bacaiaus emprestavam dos rapazes camisetas, shorts, meiões e outras peças esportivas masculinas.

Caprichavam na maquiagem, prendiam os cabelos, colocavam roupas folgadas para disfarçar os seios e as curvas generosas, parecendo boleiras genuínas.

Assim, compunham o divertido time de futebol de salão feminino da Biologia. A Universidade parava para assisti-las jogarem. Faziam poses afetadas antes da partida com aquecimentos estarrecedores, coçadas indiscretas na virilha e gusparadas.

Quando o árbitro apitava o início do jogo, assumiam uma postura caricata de fragilidade feminina. Gritos agudos, quedas abruptas no chão, simulações de choro e discussões com puxões de cabelo. Por incrível que pareça, retocavam a maquiagem e o batom com a bola rolando.

Naquele semestre o professor Onofre pegou pesado. Replanejou o curso em função do expressivo número

155

de repetentes. O que já era confuso transformou-se em caos absoluto. Conteúdos sem sequência, aulas sem pé nem cabeça e maior nível de exigência na disciplina.

Veio a primeira prova prática com materiais diferentes para identificação em esquema de rodízio. Estabeleceu-se o prazo de 20 minutos para que se concluísse a avaliação. O resultado foi desastroso, a turma do barulho em peso ficou com a nota abaixo da média.

Na prova teórica, o aproveitamento não melhorou. Onofre priorizou perguntas complexas que cobravam descrições evolutivas e taxonômicas, num grau de dificuldade não trabalhado em sala de aula. Todos tiveram notas insuficientes.

Tentaram negociar outra avaliação alternativa, mas nenhuma proposta foi aceita. Onofre continuava irredutível. Por trás das grossas e sujas lentes de seus óculos, comentou em tom de desdém:

— Se eu fosse vocês, não perderia mais tempo e começaria a estudar logo pro exame. Vejam bem, se acharam que fui muito rigoroso nas provas regulares, preparem-se, pois serei ainda mais no exame.

O recado estava dado. Precisariam estudar vasta bibliografia em língua estrangeira. O prazo era exíguo, três dias para enfrentar o exame, com pouquíssimas chances reais de aprovação.

Na véspera, Tony, Capi, Profeta, Zoom e Jararaca estavam na biblioteca rachando de estudar. Conseguiram

156

xerocar as provas dos últimos anos e tentavam responder as perguntas cabeludas. Silvinha dirigiu-se à bancada dos rapazes, falando baixinho:

— Nós conseguimos a prova do Onofre, está lá em casa. Vamos logo, pra gente armar um esquema legal.

Zoom, muito estressado, interrompeu o raciocínio da amiga:

— Nós também conseguimos. Veja, estão aqui as provas aplicadas por aquele veado nos últimos cinco anos. Estamos resolvendo as questões e passamos as respostas pra vocês.

Silvinha começou a rir baixinho:

— Presta atenção, cabeção! Conseguimos a prova que será aplicada amanhã, captou?

Os olhos dos rapazes brilharam com a notícia. Levantaram-se no mesmo compasso e seguiram com Silvinha para a república das bacaiaus. Lá chegando, Olívia contou sobre a epopeia:

— Moçada, milagre! O Vírgula, meu namorado, trabalha na Botânica, mas juro por Deus, não pedi nada. Hoje de manhã ele estava no laboratório e viu na mesa da sala do Onofre as provas datilografadas. O morfético saiu e fechou a porta, porém, esqueceu-se de trancá-la com a chave.

Zoom não aguentou ouvir o final da história e comentou o assunto, para gargalhada geral:

157

— Isso que é namorado! Também com esses faróis acesos que você traz embaixo da camiseta, até eu. Quando encontrar o Vírgula, posso dar um beijo na boca dele?

— Fica quieto, ô xarope, deixe-me concluir. Vírgula esperou o laboratório esvaziar e entrou na sala do Onofre. As provas não estavam mais na mesa, mas ele abriu uma gaveta e as encontrou. Saiu, xerocou e colocou os originais de volta no mesmo lugar. Essa é a história.

Eram três provas dissertativas diferentes. Por ironia do destino, o professor produziu o número ampliado de avaliações, com o propósito de evitar colas dos alunos.

Bolaram estratégias para Onofre não desconfiar de nada. Decidiram que cada um deles resolveria apenas um tipo de prova. As respostas não poderiam ser idênticas, fato esse que configuraria cola. Assim, cada qual fez com consulta a prova de sua escolha.

Utilizava-se papel almaço sem cabeçalho nas folhas de respostas das provas aplicadas na Biologia. Compraram o material e passaram a resolvê-las. Mesmo com consulta, demoraram muitas horas para responder as avaliações.

Mas o que fariam se o professor entregasse uma prova diferente da que foi resolvida? Nesse caso, trocariam as folhas de perguntas.

158

Já no final da noite, com todos exaustos, Gueixa levantou a hipótese perturbadora. O que fazer se o nome de cada aluno viesse preenchido previamente nas folhas de perguntas?

Esse é o problema do crime, a tensão que ele gera. Desistiram de pensar nos possíveis problemas e dormiram, precisariam de ânimo para logo mais enfrentar a fera.

A prova foi realizada no laboratório. Onofre posicionou os alunos sentados em trios nas bancadas. Rapidamente a galera do barulho foi esperta o suficiente para ocupar cada bancada com seus membros.

Tony ficou na bancada de Capi e Zoom. As provas foram distribuídas. Zoom foi brindado com a mesma prova que havia resolvido, enquanto Tony e Capi receberam avaliações invertidas. Quando Onofre virou de costas, eles e outros colegas discretamente trocaram as folhas de perguntas. Agora era deixar o tempo correr e simular a escrita das respostas.

Após três horas e meia chegou a fase mais arriscada da burla. Retirar as folhas preenchidas do material e trocá-las com as das respostas simuladas. Tony tremeu quando realizou sorrateiramente a troca, mas teve sucesso.

Onofre pareceu não ter percebido nada. Dois dias depois, chamou os estudantes em sua sala. Pretendia divulgar o resultado individualmente.

159

Contrariando o professor, o pessoal da galera do barulho foi aprovado. No entanto, ele não perderia a oportunidade de fazer seu ato terrorista final. Quando chegou a vez de Tony entrar na sala, Onofre falou em tom irônico:

— Poxa, Tony, você foi bem mesmo nessa prova, hein? Tirou nota oito comigo, que beleza! Estou curioso sobre uma coisa, com todas as suas atividades políticas, deu tempo pra estudar a matéria?

Tony respondeu no mesmo tom:

— Olha, Onofre, deu tempo, sim. Assisti as suas aulas e, como você sabe, elas foram plenamente suficientes pra resolver a prova.

Onofre, furioso, continuou a provocação:

— Calma, ainda não acabou. Você vai sair agora e coletar dez tipos diferentes de liquens nas árvores aqui da frente e trazê-los para mim. Após identificar a espécie de cada um, estará finalmente aprovado.

Tony o encarou e falou:

— Onofre, vamos parar com isso. Tem menina chorando lá fora por causa dessa guerra de nervos. Não vou coletar esses liquens, suas notas já foram passadas na secretaria, isso é assédio moral. Não vai querer receber o centrinho e o DCE aqui na sua porta. Vai?

O diálogo acabou abruptamente e o professor afixou as notas finais no mural em frente ao laboratório. As meninas pararam de chorar, naquela tarde fizeram um

160

delicioso bolo de cenoura e foram comemorar na Cova. Venceram uma importante barreira para se formar. Aquilo era tão bom…

Será? Após formados, haveria depois, de novo, bolos tão gostosos como aquele?

161

ÓCULOS ESCUROS

Tony e os amigos da Cova saíram para sorver até a última gota da noite. Passaram primeiro na república Óculos Escuros onde estava acontecendo um churrasco de “gato”. Lá encontraram-se com seus camaradas: Grão, Capiau, Seio, Jaspion, Tavinho e Traíra.

Aquela casa agregava uma das mais curiosas “faunas” de estudantes da Federal, figuras exóticas e personalidades excêntricas que o destino encarregou-se de unir sob o mesmo teto.

Grão, da Engenharia de Materiais, com sua voz arrastada e tranquila, como quem tinha acabado de fumar um baseado, tentava explicar as coisas com argumentos sérios e comedidos. Porém, atrapalhava-se e caía na risada.

Capiau, da Química, e seu jeito simples, o violão permanentemente preparado para cantar as melhores canções. Apresentava orgulhosamente na estampa da camiseta a frase: “Pequenos cantores de Cássia – MG”.

Seio, da Fisioterapia, oscilava entre momentos de angústia e euforia com grande intensidade. Quando estava eufórico, transbordava inteligência e vivacidade insuperáveis.

162

Jaspion, da Computação, era um exemplo clássico de choque cultural. Nascido na China, emigrou com a família ao Brasil. Embora parecesse rígido em tudo que fazia, no fundo, buscava com sua forma estabanada aprender o “jeitinho brasileiro”.

Tavinho, primeiro da Química, depois da Biologia, parecia o Robert de Niro com seu vasto e bem cuidado bigode. Possuía nobreza gestual e de caráter, como se fosse um antigo Barão do café. No entanto, como todos os outros, era apenas mais um pé rapado.

Traíra, da Engenharia de Materiais, tinha a obstinação de operário padrão que veio de Osasco, sua terra natal. Andava com apenas um cigarro do maço enfiado no bolso da camisa pra ninguém filar. Porém, na meia, escondia o maço titular. Chamava a todas as pessoas de traíra.

No quintal da república havia uma velha piscina desativada e esburacada onde, bem escondidas no matagal, cresciam três pés de Cannabis. Traíra pilotava a grelha da improvisada churrasqueira perfilando cuidadosamente pequenos filés de sardinha que eram assados lentamente.

A roda de cadeiras foi formada em torno da churrasqueira. Numa mesinha central ficaram os copos de caipirinha e o cinzeiro que abrigava as cinzas dos charutos produzidos com matéria-prima da própria casa.

Capiau alegrou o ambiente ao tocar e cantar inúmeras canções, acompanhado pelo desafinado refrão coletivo. Após vários assuntos diluídos, a conversa evoluiu para a política. Grão perguntou a Tony:

163

— Então brother, você apoiou a Convergência para o DCE no ano passado, e aí? Esse ano vai manter o apoio?

Tony saía de seu relaxamento natural quando falava daquele assunto:

— Olha Grão, acho que o grupo do Gaio está articulando. Não sei o que, mas estão pintando importantes novidades por aí. Com a Convergência não fecho mais. Eles manipulam muito a entidade.

Foi a vez de Capiau fazer sua observação:

— Moçada, precisamos nos unir para a próxima eleição. Vamos juntos a Cova e a Óculos. Podemos puxar dezenas de outras repúblicas para o nosso lado.

Profeta, o grande estrategista de bastidores, observou:

— Está chegando a hora de nossa turma representar-se pra valer. Acho que para esse ano ainda é prematuro. Entretanto, no ano que vem, levamos a diretoria do DCE pra onde quisermos.

Jaspion mantinha-se em seu habitual silêncio contemplativo. Para surpresa geral, arriscou uma frase:

— Se quiserem, posso ser um bom soldado, quando nossa hora chegar.

Karl não perdeu aquela oportunidade de cooptação:

— Precisaremos sim, Jaspion, contamos com você na frente do pelotão.

Traíra, que não tinha muita paciência para este tipo de discussão, jogou o balde de água fria na conversa:

164

— Ora, parem com isso, vocês são traíras que só querem o poder. O pessoal do Oito, da Convergência, do PCdoB, da puta que os pariu também. São todos iguais, não querem largar o osso. Depois com um pouquinho de dinheiro, o neguinho abre as pernas. Conheço essa raça.

Zoom, com seu humor niilista, deu um basta no calouro:

— Cala a boca, Traíra. Continue fazendo o churrasquinho aí. Você é só um bicho e vem dar palpite! Vamos lá operário, sirva os seus patrões em silêncio.

Capi quis amenizar o clima:

— Porra pessoal, que conversa chata. Desencana, isso vai demorar muito ainda para acontecer. Ô Seio, passa esse charuto aqui, cara!

Seio concordou plenamente:

— Vamos voltar a cantar, chega de política. Capiau toque agora aí o “Trem Azul”. Capi passa de volta o charuto. Comprou o produto, mano?

Jararaca fez também seu comentário:

— Se algum dia entrar em chapa do DCE vou fazer parte do Departamento Cultural. Pra poder conhecer melhor as menininhas, entende?

Tavinho retribuiu:

— Jararaca, falando nisso, quando vamos pra Corumbá? Estou precisando comprar umas muambas lá perto na fronteira da Bolívia, em Puerto Suarez.

165

Chegaram outros convidados e a turma da Cova despediu-se. Logo mais começaria uma festa junina na fazenda do pai de Dulce, garota nota dez e bicho da Biologia. Cabaço seria o padre da quadrilha e os covianos queriam aproveitar o forfé campestre.

166

BELADONNA

Os rapazes vestiram-se à caráter, com chapéu de palha, calça jeans cheia de retalhos e camisa xadrez. Maquiaram-se com barba e bigodes negros feitos com rolhas queimadas. Calçaram botas e puseram os paieros, que Vidal preparara especialmente para eles, atrás da orelha.

No caminho do DCE, onde pegariam carona com dois bichos motorizados para a fazenda, pararam no Pastelão para lanchar. O churrasco de gato na Óculos Escuros só serviu para aumentar o apetite da galera.

O Pastelão era uma tradicional lanchonete da cidade que fazia grandes sanduíches, prensados numa enorme chapa. Eram bem ao gosto dos estudantes.

Sentaram-se e tomaram cerveja enquanto aguardavam a esperada refeição. “Beladonna” aproximou-se e veio conversar com eles. Ela era uma grande artista, com voz rouca e timbre semelhante ao de Ângela Rô Rô.

Tocara na noite paulistana por quinze anos, principalmente no circuito boêmio do Bexiga. Veio a São Carlos fazer um show do CAASO, apaixonou-se pelo lugar e nunca mais saiu.

167

Beladonna tinha suingue inigualável, tocava de tudo no violão, em festas e outros eventos. Seu solo de rock adicionado à voz rouca e dissonante cativava a todos.

Interpretava sucessos de bandas que estavam iniciando carreira à época, como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Camisa de Vênus, Blitz, Capital Inicial, Inimigos do Rei, Titãs, Ultraje a Rigor, entre outros.

Beladonna era namorada da dona da lanchonete. Aparecia para ajudá-la e agradar os fregueses. Tinha o pavio muito curto e não admitia nenhuma confusão no ambiente, atuando como segurança informal.

Tony nunca viu nenhum homem barbado, grande ou pequeno, encarar qualquer discussão com ela. Quando as pendengas a envolviam, eles pediam desculpa, viravam as costas e iam embora com o rabo entre as pernas.

Quatro militantes da Convergência entraram na lanchonete e sentaram-se à pequena distância da mesa dos rapazes. Um deles era Faroeste, contrariado e furioso, em avançado grau de embriaguez.

Seus acompanhantes eram calouros comovidos com o discurso do líder. Faroeste, quando percebeu a presença de Tony, não conteve sua ira. Apontou o dedo para ele e começou a falar em voz alta com seus companheiros:

— Estão vendo aquele cara ali? É o maior lacaio e traidor que já apareceu por aqui. Um vendido, carreirista, salafrário, membro da direita enrustida e verme da pior espécie.

168

Beladonna levantou-se, quando Tony segurou sua mão e pediu:

— Por favor, eu resolvo essa parada, o problema é comigo. Fique tranquila, se sair porrada, não será aqui dentro.

Tony foi até a mesa de Faroeste que, em fúria, preparou-se para reagir ao provável enfrentamento físico. O diálogo foi seco e ríspido:

— Faroeste... Vamos conversar sobre ela fora daqui!

Os dois saíram e desceram até a praça da igreja. Tony, tentando controlar a indignação, cobrou aos berros:

— Nem te conheço e você já me insultou duas vezes em público. Estou com vontade, mas não bato em homem bêbado. Por que me detesta tanto? O que eu te fiz, porra?

Faroeste mesclou a postura agressiva com uma explosão emocional e, entre lágrimas, disse:

— Ora, não se faça de desentendido. Eu não só te detesto como também quero te matar, seu desgraçado. Desde que aquele peixe infeliz apareceu, nós só brigamos… Não deu mais liga. Ontem saí de casa, estou morando em outro lugar, rompemos definitivamente. Satisfeito?

Tony estava radiante, era tudo o que queria ouvir. A raiva cedeu espaço para a comiseração pela lastimável situação do rapaz. Quis amenizar o assunto e encerrá-lo rapidamente, já arquitetara planos para Anne ainda naquela noite:

169

— Você está se precipitando em suas conclusões, não tive nada com ela.

Faroeste verbalizou sua aflição, apertando o último botão da senha para deixar o caminho totalmente livre para Tony, ao comentar de forma turrona e mal-humorada:

— Mas vai ter!

170

DESPERTANDO A VIDEIRA

Tony desvencilhou-se da conversa com Faroeste. Precisava pensar e agir rapidamente, não esperaria mais, aquela seria a noite decisiva. Subiu ao Pastelão e encontrou Beladonna. Falou sem rodeios:

— Preciso de um grande favor. É caso de amor ou morte, mas não posso te explicar agora. Quero sua motocicleta emprestada até amanhã. Devolvo-a lavada, com tanque cheio e mais cinquenta pratas. Você tem como arrumar outro capacete?

Ela adicionou um jogo de cordas novas para violão à negociação e aceitou a proposta. Tony partiu como um raio para a Conde Nabeau e chamou o Luiz Canibal. Mais uma vez o diálogo foi telegráfico:

— Quanto você quer pelo peixe macho mais bonito do seu aquário?

Seguiu com o coração em sobressaltos tentando equilibrar o saco plástico cheio de água, preso na garupa. Finalmente chegou, com passos de gato abriu o portão e caminhou para a janela do quarto da moça. Deu três pequenas batidas na madeira.

Anne um pouco assustada abriu a janela, avaliou a situação e a noite ficou iluminada com seu belo sorriso:

171

— Tony, é você? Por que está vestido assim? O que é isso na sua mão?

— Oi, Anne, calma… Preciso olhar pra você e respirar só um pouquinho. Vamos por partes. Trouxe esse presente, o nome dele é Dionísio.

— Que coisa mais linda, obrigada. Vou colocá-lo no aquário junto com a Afrodite. Você não quer entrar?

— Não, vim te buscar pra gente ir numa festa junina. Não pense, vai se trocar e coloque uma roupa de caipira.

— Não vá embora… Já volto.

A sensação de liberdade naquela noite fria tornou-se mais nítida pelo vento que cortava o corpo dos motociclistas. O caminho da cidade à fazenda ficou mais admirável à medida que as luzes se afastaram.

A abóbada celeste ganhou milhões de novas estrelas brilhantes quando as mãos de Anne entrelaçaram-se ao abdômen de Tony, e sua face se apoiou delicadamente nas costas do rapaz.

A fazenda era muito bela e propícia às festas juninas. Naquele cenário campestre, prepararam a fogueira de grandes dimensões. Na ampla mesa ao relento panelas de quentão, vinho quente, bombocado, paçoca, canjica, milho-verde, bolo de fubá, pamonha, maçã do amor, pé de moleque e pinhão cozido.

Todos vieram receber alegremente Tony e Anne, que conheceu na festa os amigos do rapaz. As bacaiaus estavam presentes com suas maquiagens exageradas e roupas espalhafatosas.

172

Antes de a quadrilha começar, Cabaço, vestido de batina, realizou o casamento de Dulce, que, fazendo papel de noiva, simulou a enorme barriga de grávida. O “noivo” Luís, também bicho da Biologia, trajava um terno impagável. Cabaço com seu natural sotaque caipira mandou ver no discurso:

— Estamos aqui para celebrar a união forçada desse casar. Como dá pra perceber, ela comeu mandioca braba e o noivo teve que ser pego a facão pra não fugir. Mas agora não tem mais jeito, os decraro marido e muié. Vamo começá a festança, pessoar!

Durante a “cerimônia”, Tony e Anne permaneceram de mãos dadas. Formaram-se os outros casais da quadrilha, Profeta e Olívia, Capi e Silvinha, Zoom e Marilin, Karl e Nancy, Jararaca e Virgínia e Cabaço e Gueixa.

Aquela dança foi um ritual de prazer sublime. Passaram embaixo do túnel, os casais foram trocados, dama dançou com dama e cavalheiro com cavalheiro. Foram ao caminho da roça, assustaram-se com a cobra, fizeram o caracol, formaram a grande roda até a despedida final. Com diversão intensa, o bailado continuou por muito tempo.

Tony e Anne, cansados da explosão de euforia, foram até a mesa tomar vinho quente para espantar o frio. Ele não conseguia pronunciar nenhuma palavra. Apenas olhava para os olhos azuis de cristal da moça, seus longos cabelos dourados, os lábios grossos e provocantes.

173

A música parou de tocar, as pessoas cessaram o riso. Tony não ouviu mais nada. A festa, seus amigos, as estrelas da noite, tudo se diluiu e desapareceu, só havia ela. Ficou paralisado de paixão apenas com a primeira dança. Saiu repentinamente do estado de torpor e pediu:

— Não saia daqui. Antes de você contar até dez estarei de volta, me aguarde.

Voltou com um belo botão de rosa vermelha e entregou a ela.

A moça desmanchou-se. Deu um sorriso sensual e beijou a rosa, cortou o cabo e a colocou atrás da orelha, ressaltando o vasto cabelo de seda.

Ela rearticulou o diálogo com as mãos ainda entrelaçadas nas do rapaz:

— Sabe, vir aqui me fez bem. Esse pessoal seu é muito legal e alto astral. Adorei, fazia tempo que não me divertia assim. É tão bom estar com você, Tony, me sinto feliz. Assim as feridas logo cicatrizam...

O rapaz titubeou, porém, entendeu o recado da moça:

— Anne, você…

Ela interrompeu a frase, colocou o dedo indicador nos lábios dele e suplicou:

— Não diga mais nada, apenas me beije.

A torrente de desejos jorrou como sangue quente nas artérias. Entregaram-se um ao outro sem restrições ou censura. Saíram da festa e voltaram à casa de

174

Anne. Desejavam consumar seu amor há tanto tempo reprimido.

Foi uma noite delicada e frenética, límpida e intensa, mágica e encantada. À luz de velas e ao som de suave melodia. Sob os olhares indiferentes de Afrodite e Dionísio, amaram-se até o amanhecer.

Daquela noite duas melodias marcaram a memória de Tony. No dia seguinte procurou o auxílio especializado de Capi para fazer a identificação e tradução das letras. A primeira era uma música do Led Zeppelin chamada All my love. Escreveu apenas a estrofe que mais lhe interessou:

“Seu é o tecido, minha é a mão que costura o tempo

Dele é a força que repousa por dentro

Nosso é o fogo, todo o calor que podemos encontrar

Ele é uma pena ao vento.”

Após Tony cantarolar, Capi identificou a segunda, Set the controls for the heart of the sun, música da banda Pink Floyd:

“Sobre a montanha, reparando o observador

Rompendo a escuridão

Despertando a videira

Conhecer o amor é conhecer a sombra

O amor é a sombra que amadurece o vinho

Ajuste os controles para o coração do sol.”

175

Tony deitou-se com os versos sobre o peito e fechou os olhos. Tentava ajustar os controles do próprio coração. Tecer na fina malha da mente a reconstituição do tecido dos fatos daquela noite em todos os detalhes, lentamente, como quem degusta o melhor licor da videira.

176

A BELEZA DA ROSA ESTÁ NA UNIÃO DAS PÉTALAS

Mais um processo eleitoral surgiu no campus e articulações embrionárias desenrolaram-se. Aconteceria outra eleição para a nova gestão no DCE.

Quando essa época chegava, a tradição política do ME da UFSCar era colocada à prova. O assunto fervilhava em todas as rodas, alimentando a paixão local pelo tema. Muita gente se envolvia até o pescoço no processo, debatendo teses e tendências.

Havia comprometimento e participação ativa da maioria dos estudantes, que se sentiam responsáveis pela entidade. A dinâmica enriquecia a eleição, melhorava projetos e criava bases para o êxito ou fracasso das chapas.

Mas naquele ano a impressão geral era a de que o cenário político cristalizara-se e não seria modificado. A não ser pela desistência dos setores de “direita” em concorrer novamente.

Assim, esperava-se a formação de duas chapas vinculadas aos interesses partidários das tendências. Uma de orientação Trotskista, com hegemonia da Convergência, e a outra Stalinista, dos tradicionais aliados PCdoB e MR-8.

177

Essa realidade deixava poucas alternativas para abrir novos espaços de atuação. A entidade ficaria atrelada a decisões das cúpulas ideológicas, que nem sempre satisfaziam os anseios dos estudantes.

Ao apoiar a Convergência na eleição anterior, Tony distanciou-se dos independentes. O desencontro impediu alianças entre grupos, que passaram a discutir projetos diferentes.

Tony temia que sua discordância em relação à Convergência pudesse afetar o relacionamento com Anne. Uma noite, expôs o problema:

— Você acha que a política pode nos separar?

— Sinceramente, odeio discutir política com você. Mas não vamos misturar canais. Minha pessoa física te quer, a jurídica milita na Convergência. É simples assim!

Mas Anne não disfarçou uma evidência com seus argumentos evasivos. O partido, apesar de ainda tentar cooptá-lo, tinha sérias resistências a Tony.

Um dia foi convocado para conversar sobre o processo eleitoral com membros da Convergência. Notou que estavam muito confiantes na reeleição por conhecerem o limitado poder de fogo dos opositores Stalinistas. Canário, do alto de sua arrogância, comentou:

— Essa eleição já são favas contadas. Nosso partido é o mais organizado entre os estudantes. O Tarefero e o Calango sabem que não têm bala na agulha pra nos enfrentar. Vão lançar a chapa apenas pra marcar

178

posição. Tony, e o seu grupo, já decidiram? Quem vocês pretendem apoiar?

Tony respondeu após longa pausa:

— Ainda não. O otimismo de vocês não está um pouco exagerado? Muita coisa pode mudar ainda. Eleição só é vencida após a apuração do último voto e às vezes, nem assim. Tem chapa que ganha e não leva.

Kin, que inspirava mais respeito e dignidade do que Canário, deslocou os longos cabelos morenos para trás e com voz segura observou:

— Não achamos que a eleição está ganha. Longe disso, o Canário às vezes fica empolgado, não liga não. Tanto isso é verdade que estamos tentando compor com outros grupos, como o que você representa, dependendo de certas adequações programáticas.

Tony tinha a resposta na ponta da língua:

— É exatamente aí que as coisas emperram. Queremos construir programa amplo, com a maior participação possível dos estudantes. Como vocês já elaboraram o seu, para compor, devemos aceitá-lo sem discutir.

Araceli foi mais incisiva:

— Escuta aqui, meu caro. Você colocou uma situação utópica e fora da realidade. Infelizmente, a maior parte dos estudantes não quer participar da elaboração desse documento. Por isso, nosso programa foi produzido pela vanguarda política mais esclarecida.

Tony revidou:

179

— Não concordo, eles querem participar, abram o processo pra ver. Da forma como vocês agem, os grupos que apoiarem a chapa serão manipulados pelo partido como massa de manobra. Estão cegos? Os estudantes cansaram-se dessa manipulação. Se continuarem assim, correm o risco de perder a eleição!

Foi a vez de Carioca intervir:

— Perder para quem, Tony? Não abriremos mão de nossa liderança. Vamos discutir o que interessa. Se aceitarem nos apoiar, vocês podem indicar um nome da diretoria. Mas que fique claro. A Presidência, Secretaria Geral e Coordenação Política da chapa ficarão com o partido.

Tony finalizou a conversa:

— Realmente, é uma pena! Respeito o trabalho de vocês. Porém, os métodos são lastimáveis e não mudam. Não vim aqui negociar cargo nenhum. Pensei ingenuamente que poderíamos caminhar juntos, entretanto, isto é impossível. Espero que façam uma campanha limpa. Boa sorte.

Tony havia confirmado suas suspeitas sobre as práticas de ação da Convergência. Estava aliviado e livre para procurar outras opções.

As ações do grupo de Educação Ambiental, coordenadas por Gaio e Bia, disseminaram-se por toda a Universidade. Elas contaram com a participação dos centrinhos que desenvolviam projetos comuns.

180

Naquela época a bandeira ambiental começara a estruturar-se no Brasil e não era prioridade dos partidos políticos. Principalmente os de esquerda, que a consideravam uma questão menor. Assim, a diretoria do DCE não reconhecia as ações dos ambientalistas e os tratava com desprezo.

Havia um racha entre a militância partidária e a ambiental, como se as duas pudessem ser separadas. Esta foi a razão central que favoreceu o surgimento dos independentes.

Um número crescente de estudantes pulverizados de diferentes cursos passou a reunir-se. Pretendiam implantar práticas de sustentabilidade na Universidade.

As reuniões desaguaram na inevitável discussão sobre o processo eleitoral. Eles estavam descontentes com a partidarização da entidade e sem alternativas para mudar o quadro.

O grupo nunca havia pensado em concorrer ao DCE, priorizando outros objetivos. Porém, questionamentos evoluíram nesse sentido e faltava apenas uma semana para a eleição. Assim, propuseram algo inédito: a formação daquela grande chapa independente.

Bem ao estilo da ação direta, Gaio percebeu que a corrente não poderia ser contida. A primeira inovação da chapa foi extinguir os cargos de Presidente e Secretário Geral, com o objetivo de quebrar qualquer tipo de organização hierárquica entre os membros do grupo de trabalho.

181

Outra proposta criativa e de grande repercussão foi preencher os postos da entidade com membros de todas as chapas concorrentes, utilizando como critério a votação proporcional de cada uma.

O mote encontrado para representar aquele conjunto de ideias era sugestivo: “A beleza da rosa está na união das pétalas”. O grupo ficou conhecido como Rosa. Dela faziam parte Gaio, Amarílis, Ricardinho, Piu, entre outros.

A chapa foi lançada com estardalhaço, afixou-se na parede lateral do ginasião a faixa contendo suas principais propostas. No meio do lago, uma grande rosa flutuante anunciava a novidade. Durante o almoço panfletos, confeccionados em papel reciclado, foram distribuídos solicitando adesão aquele programa inovador.

Em seu conteúdo político, propunha desvincular a entidade dos interesses partidários, tornando-a pluripartidária e incentivando a participação de todos os estudantes, o que enfraquecia significativamente as tendências.

Esclareceu-se que aquele programa não era definitivo, mas, ao contrário, seria permanentemente reelaborado em sintonia com novas avaliações. Assim, a grande revolução nos costumes políticos estudantis estava anunciada.

Os acomodados Trotskistas, até então tranquilos na perspectiva da vitória segura, ficaram desesperados com o anúncio repentino daquele concorrente de peso.

182

Jamais imaginaram enfrentar adversário com tamanha penetração entre os estudantes.

Iniciaram um ataque político atabalhoado a Rosa. A estratégia desgastou ainda mais o partido. Tentaram impugnar a inscrição da chapa rival alegando que fora articulada na calada da noite e seria um “golpe” à eleição da entidade. A tentativa fracassou pela ausência de argumentos regimentais.

Partiram então para táticas mais agressivas, mobilizando todos seus militantes, inclusive Anne. Iniciaram uma guerra dura para reverter aquele quadro eleitoral.

A intervenção de Canário acima da cadeira em altos brados, durante almoço no RU, estabeleceu a tônica da disputa:

— Fomos surpreendidos com o lançamento dessa chapa ilegítima. Eles se recusaram a participar de nosso processo de discussão. Não se enganem, são traidores, membros da direita travestidos de independentes. Lançaram a chapa a uma semana da eleição, sem realizar discussão aberta no campus. Não apresentam propostas políticas para a entidade.

Os independentes ouviram com tranquilidade a avaliação. Aparentemente sem se importarem com ela, continuaram a distribuir seus panfletos aos ouvintes.

— Pasmem, justamente neste ano, após 22 anos sem eleições diretas para governador, eles defendem que o DCE seja apartidário. Na prática, fazem campanha

183

para Reinaldo de Barros, candidato malufista. Por isso repudiamos esse movimento! Por um DCE partidário! Com propostas políticas claras! Fora independentes! Viva o Socialismo e a luta de classes!

A Convergência tentou capitalizar o momento histórico pelo qual passava o país. Ao rotular os independentes como “apolíticos”, buscou colar neles a marca de reacionários que colaborariam com o retrocesso institucional.

Desde 1974, a ditadura apostara numa transição lenta e gradual, controlada exclusivamente pelos militares. No entanto, novos partidos foram criados e vários políticos que nos anos 60 tiveram seus direitos cassados, iriam participar das eleições para governador, em 1982.

O voto naquele ano seria vinculado, o que tornou obrigatório votar em candidatos da mesma legenda. Isso era terrível para partidos como o PT, que ainda estavam se estruturando no país. Por isso, a principal tarefa da Convergência era angariar votos ao PT na comunidade estudantil.

O argumento usado por Canário continha um grande engodo. Muitos componentes da chapa Rosa eram filiados ao PT e iriam votar no partido. Todavia, defendiam a desvinculação da entidade a interesses partidários específicos.

Com essa divergência crucial, o conflito de ideias, posturas e interesses entre os dois grupos chegou ao auge.

184

DELIRIOŚK

Tony e seus amigos também foram pegos de surpresa com o lançamento da chapa Rosa. Estavam afastados das reuniões do grupo de Educação Ambiental e não participaram das discussões que originaram a proposta.

Viviam num mundo maniqueísta, onde as ideias do bem e do mal tinham territórios bem delimitados, simplificando a realidade.

De um lado, os espiões da KGB; de outro, os agentes da CIA. Tudo era fácil e aparentemente simples; as escolhas, objetivas e descomplicadas.

No entanto, o mundo e a realidade mudavam rapidamente e Tony, a Convergência, o PCdoB e o MR-8 não perceberam. Enquanto a Rosa mantinha-se à frente de seu tempo e mais identificada ao século XXI, as outras correntes se digladiavam com práticas regressivas e autoritárias.

Dizem que um equívoco gera outro e assim por diante. Foi isso que aconteceu naquela reunião improvisada na república Conde Nabeau a apenas quatro dias das eleições.

Tony, apesar de se sentir excluído, decidiu apoiar a Rosa. Gostou do programa da chapa e, mesmo sem entender algumas de suas propostas, confiava nas pessoas do grupo.

185

Durante um jantar no RU, Serafim trouxe ao pessoal da Cova uma carta programa muito escrachada, redigida por estudantes da Escola de Comunicações e Artes da USP de São Paulo.

O teor da carta, segundo suas próprias palavras, era de “esquerdofrenia” galopante com orientação “anarcoide”. A chapa, chamada “Deliriośk”, detonava os partidos de esquerda, denunciando com muito humor as contradições e idiossincrasias de seus militantes.

O nome Deliriośk resultou da fusão em trocadilho das palavras “Solidarność” e “Delírio”. Solidarność, nascido na Polônia, foi a primeira mobilização sindical não-comunista a ser bem sucedida em país comunista.

Aquela chapa não representava alternativa viável para a entidade, mas o grito de repúdio dos estudantes da USP à hegemonia da Libelu, que exercia domínio completo no campus.

Serafim, propôs ao pessoal da Cova:

— Vocês viram… Esses caras da USP são demais, né? Acho que na Federal estamos emparedados. De um lado as correntes doutrinárias, querendo fazer a cabeça de todo mundo. Daqui a pouco constará na carteirinha do DCE a filiação partidária automática do estudante, quanta manipulação! De outro, surgem esses independentes. Independentes de quê? De compromisso também?

Tony tentou alertar Serafim:

186

— Nós conhecemos alguns independentes, os caras são bons. Não está na hora do DCE passar por uma nova experiência política?

Serafim foi convincente em seu argumento:

— Ora, Tony, o que é isso? Em que mundo você vive? Você acha que esses caras sem nenhuma organização vão conseguir dirigir a entidade? Esquece… Vai por mim, se eleitos não terminam o mandato. Serão engolidos pelas tendências.

Seguiram para a Conde Nabeau a convite de Serafim. Iriam naquela noite redigir uma carta programa, ao estilo da Deliriośk, para adicionar pimenta ardida naquele processo eleitoral.

Conversavam freneticamente sobre como redigir a carta. Tony entendeu o espírito da coisa, calou-se e procurou isolamento para passar no papel aquelas proposições. Elas mais pareciam, nas palavras dos participantes, um caminhão de “jogação de bosta” a todas as manifestações políticas da Universidade.

Inseriram também comentários cômicos de conotação política, como na célebre frase do suposto “patrocinador” do programa: “Coma bolachas Lênin, elas Stalin em sua boca, e… Trotsky, Trotsky, Trotsky”.

Ninguém escapou às palavras ferinas da carta, criticaram duramente, sempre em tom pilhérico, os membros de direita, os partidos de esquerda e os independentes. Inscreveram a chapa, também

187

denominada Deliriośk na manhã seguinte, faltando apenas três dias para a eleição.

Como membros da diretoria estavam Serafim, Tony, Profeta, Capi, além de outros estudantes da Cova e da Óculos Escuros.

No ato da inscrição, quase houve embate físico entre militantes da Convergência e o grupo da Deliriośk. Os primeiros ficaram indignados com aquela ousadia e, aos gritos, Carioca desabafou:

— Tony, o que você está fazendo? A eleição já está demarcada, agora essa palhaçada vai dividir ainda mais os estudantes e beneficiar os independentes. Quem mandou você fazer isso? Foi o Gaio? Só pode ser! Seus burguesinhos de merda, a quem estão servindo?

Tony encarou a acusação e revidou:

— Lembra daquele carguinho que vocês me ofereceram? Não precisamos dele, vamos ganhar essas eleições e varrê-los daí. Inscreve logo essa chapa Carioca, pois tenho que fazer campanha.

Anne assistiu a cena muito constrangida e saiu sem dizer nada. O pessoal da Cova correu para imprimir a carta programa, distribuída na hora do almoço. Serafim, Tavinho e Grão fizeram cartazes de divulgação para afixá-los em pontos estratégicos do campus.

Até compor essa chapa, por não se alinhar a grupos que disputavam o poder, Tony mantinha relacionamento civilizado com todos.

188

Mas os embates políticos intensificaram-se e o sossego acabou. Foi duramente cobrado sobre suas posições. Chegava de manhã na Universidade, trabalhava o dia todo na divulgação da chapa e dialogava rispidamente com os opositores.

Porém, surgiram também vários apoios que o estimularam. Percebeu que, mesmo aquela chapa com ideário escatológico, era um meio eficiente para divulgar suas convicções. Ao final do dia extenuante, encontrou Anne chorando na sede do DCE e foi abraçá-la:

— Por favor, aqui não. Encontre-me em casa daqui a meia hora.

Depois do amor, pediu-lhe explicações:

— Anne, porque você estava chorando? O que aconteceu?

Ela como sempre foi sintética e objetiva:

— Por favor, não pergunte. Quem está aqui é minha pessoa física. Vamos comer e dar risada?

Naquele ano de 1982 realizou-se a primeira eleição direta para Governador de Estado, desde 1960. Em São Paulo, concorreram cinco candidatos. O resultado surpreendeu, Franco Montoro do PMDB venceu o pleito, seguido por Reinaldo de Barros, Jânio Quadros, Luis Inácio Lula da Silva e Rogê Ferreira.

No Rio de Janeiro foi eleito Leonel Brizola e, em Minas Gerais, Tancredo Neves. Em breve, aqueles três governadores dos estados mais importantes do Brasil

189

comandariam, entre outras lideranças, a campanha pelas eleições diretas para presidente.

A eleição do DCE trouxe novidades ao ME da UFSCar. Vitória esmagadora da Rosa com mais de 50% dos votos, sintonizando a entidade com os novos ventos da política nacional. Em segundo lugar, a Convergência; em terceiro, a Deliriośk e, em quarto, a chapa Stalinista.

Apesar da derrota, Tony ficou satisfeito. Quase 20% dos estudantes apoiaram sua chapa, com apenas três dias de campanha. E o melhor, o DCE passaria pela representação mais marcante de sua história.

190

DOR BIPOLAR

— Anne! Anne! Anne!

Sua imagem, aroma, sorriso indecifrável. Colou assim, como chiclete derretido… Dor boa de sentir que não queria mais sair, desligar, apartar…

Seus olhos profundos, expressivos, que segredos guardariam? Tony tentara inutilmente desvendá-los. Queria tudo nela, os sentimentos por completo, atenção única, sugar cada essência volátil exalada de seus poros. Possuí-la, tê-la como prêmio de caça em seus delírios de guerra.

Pela primeira vez uma pessoa conseguia satisfazê-lo por completo. Era uma mulher linda, um pouco mais velha e muito mais experiente do que ele.

Naquele momento de reflexão, podia ser franco consigo mesmo, sua vida afetiva sempre fora uma colcha mal acabada de retalhos. Ainda não tinha lastro, longe disso, nesse departamento, sentia-se um píer modesto com a função de atracar transatlânticos.

Porém, a verdade era o que sentia. Os elementos essenciais de sua vida exigiam a imperativa presença de Anne. O ar que inspirava, os nutrientes que comia, sem ela tornavam-se insípidos, dispensáveis. Seu

191

coração vivia descompassado, dependente do olhar e da presença de Anne.

De vez em quando refletia…

“Como é possível querer tanto uma pessoa tão diferente de mim?”

Já ouvira centenas de vezes histórias com características tão ridículas, tão clichês. Mas, fazer o quê? Agora também vivia uma história assim.

Os dois eram pessoas muito diferentes. Ele jogado para a vida, não media palavras, impulsivo, passional, entregue aos instintos e às paixões. Parecia gostar de ser “transparente”, como costumava dizer. Não dissimulava ou tinha a menor ideia de traquejo social, apreciava intimamente o fato de não ser “hipócrita”.

Possuía agudo senso de justiça, que poderia ser confundido com intolerância, truculência. Era rígido nos julgamentos das pessoas e de si mesmo, sem ter jogo de cintura e paciência para entender os outros.

De acordo com essa estrutura mental, posicionava-se frente aos fatos sempre de forma heroica, empunhando bandeiras e espadas.

Durante as manhãs, privar-se da companhia de Anne era tão difícil e pesaroso como ao dependente em período de abstinência. Não redirecionava o pensamento obsessivo para mais nada além de suas fantasias.

Nelas, ora atingia o paraíso nos braços da amada, ora visitava o inferno, onde imaginava Anne em volúpia nos

192

braços de outros homens, muitos deles seus próprios amigos.

Apesar de melodramático e exagerado, vencidas as primeiras barreiras e havendo sintonia, Tony estabelecia relações afetivas significativas. Seu carisma e magnetismo jorravam nessas ocasiões, permitindo a ele capilaridade em todas as tribos.

Todavia, por conta de sua rigidez, também granjeava inimigos. Nessas oportunidades sem a menor sutileza, deixava claro ao desafeto sua reprovação, antipatia ou mesmo um desafio.

Sua origem de menino pobre nunca o abandonava. Irmão caçula, não podia pensar em satisfazer desejos pessoais. Naquela vida espartana, tudo devia ser dividido entre os irmãos. Roupas, doces, brinquedos, quartos com muitas camas…

Era impossível ter individualidade ou receber atenção dos pais, devido à cultura da socialização dos problemas, incluindo-se aspectos afetivos pessoais.

A dinâmica passou a ser o grande valor grupal e esse ritual de convivência sufocava-o. Via-se como pessoa sem rosto, identidade, projeto. Porém, toda essa meninice difícil, também desenvolveu no rapaz uma acentuada sensibilidade social.

Em épocas de crise, quando, para poder “respirar”, afastava-se de Anne, as tardes eram também preenchidas por fantasias cruéis. Dessas que fazem a mente sofrer em

193

ilhas do imaginário, escravizando a pessoa, tornando-a refém de obsessões.

Nessas ocasiões de surto psicológico, que estavam se tornando frequentes, ele era a imagem da figura obscura, distanciada de todos. Não articulava nas rodas de política, passava batido pelo grupo de amigos “bichos-grilos”. Nada de festas, papos e novas amizades.

Nunca assistia a nenhuma aula, faltava aos encontros de Educação Ambiental, desprezava a galera ligada à cultura. Não frequentava as “sessões malditas”, peças de teatro e saraus musicais.

Até seus amigos gringos estranhavam quando ele entrava nessa fase. Ficava apático, quieto, apagado. As gargalhadas sumiam dando lugar a uma figura errante, vagando no campus, como fantasma.

Os companheiros da Cova não entendiam esses transes cíclicos, bipolares. Tony isolava-se no quarto, não socializava com ninguém, sua alegria costumeira submergia. Saía sorrateiramente no início da noite sozinho. Perambulava então a pé pela cidade, na perspectiva única de encontrar Anne em algum barzinho.

Iria procurá-la no DCE ou em alguma festa que rolava nas repúblicas. Na saída de reunião da Convergência que ele não podia mais aparecer, por razões de sectarismo político.

194

No entanto, fingiria estar por lá casualmente. Não passaria na casa dela ou marcaria encontro formal. Seu orgulho era uma enorme onda, impedindo-o de abordá-la diretamente.

Anne era mais racional, polida e afeita aos jogos sociais. Primogênita, foi quem abriu as portas aos outros irmãos, sendo pioneira e guerreira. Com sua simplicidade e tenacidade, ocupava o centro das atenções, em todas as rodas onde emitia luz natural, como um farol.

Por conta de sua resolução precoce em buscar a liberdade pessoal e sexual, em época de grande repressão, rompera violentamente com o pai, com quem não se relacionava há anos. Isso deixou cicatrizes profundas em Anne.

Durante a infância conviveu maravilhosamente com ele, tinha-o como herói de seus sonhos, o modelo de homem ideal, quase um caso clássico de complexo de Édipo.

Na adolescência, o relacionamento entre ambos estremeceu devido ao moralismo exacerbado dele, chegando ao auge da colisão no dia em que, de volta das férias sem avisar, flagrou o pai nos braços de uma amante muito jovem.

Assim, vivia nas relações amorosas a metáfora do toureiro na arena. Parecia uma mulher liberada e resolvida, mas, diante de um homem, dançava com a maestria de um toureiro. Ao titubear ou dar um passo em falso, poderia, em seu imaginário, ser presa fácil dos chifres da fera.

195

No fundo, sentia-se indefesa e confusa em relação ao sexo oposto, apesar de manter o sentimento bem guardado dentro de uma couraça blindada.

Considerava a militância na Convergência essencial para sua vida. Liderou no partido o movimento contra a discriminação das mulheres. Acreditava que o socialismo, por meio da igualdade de classes, superaria vários problemas de gênero vigentes no capitalismo.

Inconscientemente, usava a questão política como muleta para lidar com suas contradições afetivas. Nutria, junto às colegas feministas, sentimento de ódio generalizado ao domínio masculino. O problema era que, na justificável ânsia de atingir a igualdade entre os sexos, às vezes, elas adotavam o mesmo tipo de atitude “masculina” que tanto condenavam.

Estava apaixonada por Tony e, sem entender porque, isso a incomodava sensivelmente. Começara também a ficar dependente dele, planejava suas noites ao seu lado, selecionava os discos e drinks que iriam agradá-lo, separava as lingeries de que ele mais gostava e usava somente o perfume de almíscar predileto do rapaz.

196

DELÍRIOS DA PAIXÃO

Tudo ia tão bem, mas Anne, em seu delírio de paixão, precisava de confirmação maior e definitiva de Tony. Até onde chegaria o seu amor por ela? Ele a aceitaria em quaisquer condições? Qual seria o limite para manter o bem-querer? Testou perigosamente todas essas indagações de uma só vez.

Na semana anterior, Tony, muito gripado, foi para a casa de Anne. Ela ferveu um chá forte com analgésico para o rapaz que, em seu estado febril, começou a delirar. Mesmo assim a envolveu num abraço e fizeram amor.

Quando Tony melhorou, Anne iniciou sua bateria de perguntas e relatos inesperados:

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Ora, você sabe que sim.

— Estou confusa e precisando de um amigo. Você pode ser esse amigo?

— Posso, fale.

— No último final de semana, quando você estava na casa de seus pais, fiquei com o Faroeste.

Tony sentiu um punhal cravar-se em seu coração, a opressão no peito o dominou e a vertigem embaçou-lhe

197

os olhos. Não diferenciava mais a dor emocional dos calafrios de febre que voltaram instantaneamente.

Anne não poderia ter escolhido momento pior para dar aquela notícia. O final de semana fora terrível. Dona Gertrudes, a mãe de Tony, estava internada com profunda anemia. O rapaz voltou para São Carlos gripado, com o coração pesado e carente de solidariedade.

Mesmo assim, tentou contornar a situação:

— Como isso aconteceu? Eu achei que vocês tinham terminado o relacionamento…

— Eu estava carente e precisando de alguém. Você tinha viajado. Pois é, não deu pra segurar!

Ela continuou a falar:

— Agora estou com um problema sério, Tony. Ando confusa e não sei o que fazer… Gosto muito de você e dele também. Preciso de tempo para decidir o que vou fazer.

A cabeça de Tony girava sem parar com aquela notícia inconcebível. Tonturas e enjoo ácido na garganta adicionaram-se à sensação generalizada de mal-estar físico.

Naqueles breves segundos de tortura a revolta venceu qualquer possibilidade de reconciliação. Tony decepcionou-se profundamente com Anne. Como ela poderia ter dúvidas de seu amor por ele? E a recente história que haviam construído? Com o coração partido, respondeu duramente:

198

— Você não vai precisar de tempo algum. Já me decidi por nós dois, fique com ele.

Levantou-se da cama ainda trôpego pela tontura, enquanto Anne tentou argumentar:

— Espere um pouco, Tony. Ouça-me, tenho razões para estar assim. Quero que entenda. Não me abandone dessa forma…

— Não quero ouvir mais nada, deixei minha mãe no hospital para encontrá-la. Que tolice!

Tony saiu apressado, sem dar chance para uma explicação de Anne. Estava atordoado e precisava da solidão para aprumar o fio emocional descompensado. O momento trouxe triste coincidência, as duas grandes mulheres de sua vida estavam partindo.

Com os sintomas da gripe manifestando-se cada vez mais intensamente, vagou durante horas pela noite. Deu-se conta de que esquecera a carteira com todo o dinheiro do mês na casa de Anne. Resistiu o quanto pode à ideia, mas deveria retornar para pegá-la, ou na manhã seguinte não teria recursos para tomar nem um café.

Naquela madrugada fria outonal, Tony caminhou cambaleante sob a garoa fina refletindo sobre o que se passara. Grossas lágrimas deslizaram sobre a sua face, misturando-se à água da chuva. De alguma forma, isso ajudaria a diluir a angústia?

Quando horas antes a encontrara ela vestia aquela camisa branca com bolinhas azuis suaves, da cor

199

de seus olhos, que ele tanto amava. Aliás, amava-a completamente, seu cheiro, sorriso, modo de falar, as curvas em seu corpo, suas secreções.

Tudo em Anne era divino e tornara-se objeto de veneração. Não podia conceber mais a vida sem a sua presença, aprovação, seus lábios nos dele. Aquele calor corporal transformou-se em necessidade física. Estava viciado, dependente, maluco…

Todas as teorias do bom senso esfacelavam-se diante desta constatação. Tony já não procurava mais qualquer tipo de explicação racional, era apenas mais um animal no mundo darwiniano, lutando pela sobrevivência física e emocional.

Porém, o que aconteceu foi muito grave, não admitiria aquela vacilação. Ela escolhera o caminho e Tony agora precisava encontrar energia para desvencilhar-se desse amor doentio. Não recuaria! A decisão estava tomada, mesmo que para isso viesse a sofrer a pior perda de sua vida.

A garganta do rapaz estava muito dolorida, as narinas escoavam abundante muco e o corpo todo doía, quando se dirigiu à janela fechada do quarto de Anne. Já ia chamá-la quando a ouviu chorando compulsivamente e falando sem parar:

— O que foi que eu fiz? Eu te quero… Porque sou assim? Volte, meu bem, me deixa cuidar de você. Fui tão egoísta. Como está a sua mãe? Não vá embora…Não vá embora… Não vá…

200

Tony abaixou a cabeça. O impulso veio forte, queria abrir a janela e jogar-se ao abraço. Aplacar aquele pranto com beijos, esquecer os acontecimentos infelizes e dormir nos braços dela. Precisava protegê-la, ser seu porto seguro, dar-lhe colo e conforto.

No entanto, também com lágrimas nos olhos, girou o corpo e afastou-se silenciosamente. Foi embora sem precisar tomar café no dia seguinte, agora feridas bem mais expostas do que a passageira sensação de fome precisariam destilar sua dor.

201

CPC

Apesar da dor insuportável de Tony, ele buscou se esquecer de Anne, refugiando-se em novas empreitadas políticas.

Naquele dia, após a posse da chapa Rosa, a trama feliz do acaso reuniu várias gerações de estudantes, para amistosa conversa. Afinal, apesar das divergências ocasionais, acirradas na época de campanha eleitoral, eles se respeitavam e eram companheiros de travessia.

Tony gostou daquele encontro. Por que não poderia ser sempre assim? Agregar mentalidades tão ricas em torno da grande causa que os unia. A entidade maior que defendiam. O DCE livre UFSCar!

Café, Gaio, Calango, Amarílis, Araceli, Tarefero e Tony estavam tomando cerveja, reunidos em torno da grande mesa. Café iniciou a conversa:

— Hoje ouvi velhos discos, álbuns de artistas lançados pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Matei a saudade durante horas.

— Café, como era esse movimento artístico dos estudantes? Perguntou Tony, o mais novo da roda.

— Espere aí. Não sou tão velho assim! Conheço algumas histórias e peço que os outros me ajudem

202

a remendar os pedaços. O CPC foi criado no Rio de Janeiro, em 1961, no governo João Goulart.

— A proposta deles era simples. Pretendiam aliar a militância ao engajamento cultural. Quem fundou o CPC foi uma dissidência de atores do grupo paulistano Teatro de Arena. — Completou Araceli

Tony interessava-se cada vez mais pelo assunto:

— Gaio, de que forma eles uniram produções artísticas à militância?

— Construíram um projeto de arte popular. Promoviam eventos acessíveis e baratos, rompendo com a mercantilização da cultura. Publicaram livros, filmes foram autofinanciados e encenaram peças de teatro em portas de fábricas e praças públicas.

Calango comentou:

— Trabalharam com alfabetização de adultos, num projeto inspirado no método Paulo Freire. Faziam excursões na UNE-Volante para manter contatos com entidades camponesas, universitárias e operárias.

Amarílis perguntou a Tarefero sobre as iniciativas do CPC após o golpe militar de 1964.

— Não foi fácil! A repressão prendeu e exilou os principais artistas do CPC e o baniu. Mas aquela experiência inspirou outras iniciativas, como o show Opinião, de Oduvaldo Vianna e Paulo Pontes.

— Os estudantes agitaram o circuito cultural e sua influência permanece. Porém, a repressão mergulhou o Brasil no mais profundo silêncio. Cassaram os

203

movimentos sociais e suas entidades como a UNE, sindicatos e partidos políticos. — Emendou Calango.

Segundo Araceli, os militares não conseguiram calar totalmente a voz clandestina da resistência. As Universidades eram espaços privilegiados onde o CPC continuou atuando.

— Esse foi o espaço originário, em 1967, do tropicalismo, que rompeu padrões musicais e culturais. Caetano Veloso, Gilberto Gil, os Mutantes, Nara Leão e Tom Zé, entre outros, divulgaram seu trabalho principalmente no meio universitário.

Amarílis alfinetou os colegas militantes de esquerda:

— Esse movimento rompeu também dogmas da esquerda. Foi a onda libertária que assimilou a contracultura hippie, modificando o comportamento estético da juventude que fez a revolução sexual.

Calango complementou as palavras de Amarílis:

— É uma pena que o tropicalismo sobreviveu por tão pouco tempo. Apenas cerca de um ano, sendo também duramente reprimido pelos militares. Eles prenderam Caetano e Gil no final de 1968, quando o movimento começou a se esvaziar.

204

CO-GESTÃO

Tarefero redirecionou o assunto da roda para o ME:

— Vamos voltar para a política. Nessa época, a UNE capitalizou insatisfações populares. O ME ocupou as ruas com o “abaixo à ditadura”, e as manifestações foram violentamente reprimidas.

Gaio acrescentou outra visão sobre o assunto:

— Nesse período, o ME denunciou a posição subalterna do Brasil aos EUA, pela assinatura do acordo MEC/USAID, que propôs a privatização do ensino, direcionando a formação acadêmica para necessidades capitalistas.

Calango, entre sorrisos, argumentou:

— Não vem não, Gaio, com essas teses educacionais. Ainda em 1968, a repressão assassinou o estudante Edson Luís, durante manifestação no Rio de Janeiro. Sua morte desencadeou intensas mobilizações contra o regime militar.

Café lembrou-se do episódio:

— É verdade. O cortejo fúnebre foi acompanhado por 50 mil pessoas. No velório houve conflitos entre estudantes e policiais. Soldados investiram contra populares na missa de sétimo dia do rapaz, realizada na igreja da Candelária.

205

Tarefero complementou o colega:

— Nesse ano fatídico de 1968, aconteceu o mais importante protesto popular desde o início da ditadura, reunindo mais de cem mil pessoas. Também houve o Congresso da UNE, num sítio em Ibiúna. O local foi invadido pela repressão. Toda a liderança do ME foi presa e transferida para o DOPS.

Calango destacou aquele momento decisivo para a história do PCdoB:

— Decretou-se o AI-5, com treinamento informal do aparelho repressivo por agentes da CIA. Métodos de tortura foram implantados aos presos políticos.

— A partir disso os grupos estudantis iniciaram a luta armada contra a ditadura? — Perguntou Tony.

— A UNE nos anos de chumbo estava sufocada. Assim, vários militantes de esquerda do ME, migraram para a luta armada, — respondeu Calango.

Cacique trouxe mais cerveja para a mesa e interrompeu a conversa:

— Olha aí, vocês só falam de política? Trabalhar ninguém quer. Como o Brasil pode ir pra frente com esse bando de comunistas vagabundos?

— Ô, seu Ambrósio, se não fosse esse bando de comunistas não haveria DCE. E sem DCE o senhor estaria desempregado.

— Tá bom, Café. Por mim podem ficar o dia inteiro aí com seus sonhos absurdos. Mas não fechem o DCE, hein?

206

Após a saída de Cacique, Café observou:

— É assim que a maioria das pessoas encara a gente. Na luta armada, grande parte da população também era favorável ao milagre econômico. Depois, o povo sentiria na pele os reflexos daquela política que provocou o aumento da inflação, a redução de salários e a concentração de renda.

— A UFSCar foi inaugurada no contexto do milagre econômico, iniciou suas atividades em 1970. O DCE estruturou-se logo depois. Assim, o ME da Federal não existia na década de 60, — acrescentou Araceli.

Tarefero relativizou as observações da colega:

— O DCE organizou-se em termos. A barra era muito pesada, com as entidades estudantis na ilegalidade. O regime venceu a luta armada e o Milagre Econômico entrou em crise. Nessa época, o DCE permanecia clandestino. Ele tornou-se DCE livre apenas nas mobilizações de 1977.

— Não foi fácil construir lideranças após 1974. Somente no final da década de 70 o ME começou a se rearticular. Neste período, a repressão foi menor do que no final da década de 60, onde o pau comia pra valer, — explicou Araceli.

Gaio também fez sua observação:

— Eu entrei na Federal em 76, quando as entidades estudantis voltaram à legalidade. Primeiro organizamos o DCE, depois a UEE e, em 1979, a UNE foi reconstruída.

207

— Veja que coincidência, a Convergência Socialista foi criada em 1978. Três dias depois, vários militantes foram presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Articulou-se campanha internacional pela libertação dos militantes, com grande mobilização do ME, — lembrou Araceli.

Gaio respondeu de bate pronto a ela:

— Não é pura coincidência. A Convergência foi e continua sendo muito importante para o ME, assim como o PCdoB, o MR-8 e todas as outras tendências de esquerda. Não sei se você sabia, mas eu também participei da fundação da Convergência.

Café fez uma delicada observação:

— Gaio, mas então por que a Rosa se desvinculou dos partidos?

— A realidade mudou. No início desta década, o ME perdeu espaço para lideranças tradicionais que voltaram do exílio e o pluripartidarismo foi restabelecido. A UNE aliou-se aos partidos demasiadamente, isto não fortaleceu o ME, e, sim, nos dividiu ainda mais.

Calango reforçou o argumento de Café:

— Olha, Gaio, é preciso tomar cuidado. Sem o suporte dos partidos o DCE pode ficar imobilizado. Estudantes sem causa são estudantes desmobilizados.

— Temos causas concretas pelas quais lutar, a defesa da autonomia universitária e a construção de uma Universidade ambientalmente sustentável. Hoje essas reivindicações agregam mais do que as político-partidárias.

208

Tarefero não se conteve:

— Pense, meu caro, a estrutura dos partidos políticos pode nos auxiliar nessa tarefa, eles são mais estruturados que nós.

- Precisa abrir o leque, o DCE pode contar com todos os partidos, não apenas um ao qual ele se vinculou. Os partidos apenas nos dividem. Porém, cada qual pode e deve ter sua opção ideológica individual.

— A Rosa não caminhará na contramão da UNE e da UEE, que se partidarizaram?, — questionou a pragmática Araceli.

- Não. O DCE pertence a todos nós, como a UEE e a UNE. O problema é esse racha absurdo. As marcas do ME são disposição de luta e rebeldia. Vamos fazer uma opção ousada. Nós da Rosa queremos compartilhar o DCE em sistema de co-gestão com vocês!

O tom informal do encontro evaporou-se. Amarílis, percebendo o impasse no ar, concluiu:

— Calma, não precisamos de uma resposta agora. Façam reuniões de avaliação sem pressa.

Os independentes eram hábeis. Queriam aglutinar todas as forças políticas, para depois propor a abolição dos cargos do DCE, inaugurando uma forma de gestão inédita.

O projeto era simples e inovador. A semente estava lançada, bastava agora adubá-la para germinar. Quando a rosa florescesse, zelar pela união de suas pétalas. Assim, a flor produziria generosos frutos para o futuro.

209

TUSCA

As tardes de sexta-feira suscitavam as mesmas dúvidas prementes para Tony. Pegar carona para visitar os pais ou ficar em São Carlos? Essa decisão dependia das contingências, suscetíveis às razões que mais pesavam no momento.

Às vezes, priorizava os finais de semana para organizar seus compromissos acadêmicos sempre atrasados. Todavia, atravessava uma fase improdutiva e preguiçosa. Ao pegar um livro, as letras diluíam-se e borravam sobre os olhos. Onde se escondera a sua disposição para o trabalho?

No imaginário de Tony surgia então o rosto de Anne. Podia sentir o perfume e a fina maciez de sua pele entre os dedos. Era tomado completamente por ela. Onde estaria? Com quem? Pensaria nele naquele momento? Sentiria também a crise de abstinência da paixão? Não estava disposto a pagar para ver.

Tony já havia ligado para a mãe, tudo corria bem na casa dos pais, ela estaria acompanhada por outros filhos naquele final de semana. Porém, sair de São Carlos poderia fazê-lo esquecer Anne. Ao menos, ficaria impossibilitado de seguir seu impulso de ir procurá-la a qualquer custo, sem medir consequências.

210

O dilema já estava resolvido e sua mochila preparada para a viagem, até aquele momento no meio da tarde no Forte Apache. Durante o cafezinho, Tony percebeu o estridente burburinho em seu entorno.

Rodeando o ginasião inúmeras barracas de camping montadas, cheias de jovens barulhentos. No gramado lotado em frente à lanchonete, ecoava alarido intenso do ginasião.

Muitos rostos desconhecidos passavam por ele, gente nova e bonita, nas camisetas símbolos e brasões da UNICAMP e da USP-Ribeirão Preto. Tony encontrou-se com “Lona”, um ativo membro da atlética da Federal.

— Oi, Tony, o que é isso? Está de mochila pronta por quê? Isso só pode ser brincadeira, não é?

— Que foi, Lona? O que está pegando, cara? Pirou?

— Quem pirou foi você, Tony. Esqueceu que esse final de semana vai ter o “TUSCA” e contamos contigo no time de basquete, meu? Não podemos perder esse ano, cara! Eles vêm com tudo pra cima da gente!

O TUSCA, taça universitária de São Carlos, era um torneio anual entre as duas Universidades públicas da cidade e algumas outras convidadas.

Como poderia ter esquecido? Na semana anterior participou do treino de basquete. Dera sua palavra aos organizadores do time, Xampu e Poti, dissera que contassem com ele nos jogos. Disponibilizou no DCE três vagas na Cova, para alojar estudantes que viessem de fora, quando Jararaca fez a ressalva:

211

— Beleza, Tony. Mas pelo amor de Deus! Essas vagas têm que ser restritas ao público feminino.

Tony desculpou-se com Lona:

— Lona, véio, me desculpe, irmão, não sei o que está acontecendo. Ando distraído demais. Fique frio, já cancelei a viagem. Ficarei para os jogos.

— Ô Tony, boa, é assim que se fala. Hoje você não joga, a estreia do basquete masculino é só amanhã à noite. Mais tarde vai ter uma super festa no DCE com todo mundo, aparece lá. Outra coisa, o Karl e o Jararaca levaram as minas da UNICAMP para a Cova. Elas são bonitas, hein cara? Mas têm uma cara de frescas. Sei lá, valeu! Abração!

Tony mudou os planos. Aquele final de semana prometia coisas novas para sair da angústia que o perseguia. Iria jogar pela sua Federal com o ginasião lotado. Muitas festas no DCE e no CAASO, e, por que não? Visitas femininas na república eram sempre bem-vindas.

Para aquecer os tamborins e entrar no clima foi até o ginasião. No caminho a atmosfera festiva era contagiante. Todos os espaços tomados por centenas de jovens ensaiando o teatro dos encontros naquele local singular.

Ao entrar na grande arena esportiva, viu arquibancadas divididas em territórios cuidadosamente delimitados, adornados com brasões e bandeiras das torcidas.

212

A única que não estava presente era a torcida do CAASO. Tony conhecia a sua arrasadora estratégia de chegada retumbante aos jogos principais, produzindo show à parte ao evento.

Nos jogos, os estudantes da EESC passavam o dia no campus da USP. Bebiam ao som dos hinos que iriam cantar em coro nos jogos do CAASO contra a Federal.

Pintavam-se, maquiavam-se e vestiam-se da forma mais saliente e extravagante possível, para provocar com bom humor a torcida vermelha adversária da UFSCar.

Quando os jogos mais tensos e decisivos começavam, envolvendo partidas diretas entre o CAASO e a Federal, não havia ninguém da torcida da EESC. A torcida da UFSCar empolgava-se, com a bateria sincronizando os compassos dos hinos cantados na voz aguda predominantemente feminina.

De repente, o ginasião parava. De surpresa, dos dois portões laterais da arquibancada, entrava correndo a grande e barulhenta torcida do CAASO. Eles sempre ganhavam na originalidade das roupas, das troças e das músicas.

O ginasião tremia naquele momento. O toque de corneta era a senha para a bateria iniciar o canto da torcida. Cantavam ao som grave de voz masculina, os famosos hinos de guerra esportivos da entidade:

“Você tentou e não conseguiu entrar na melhor escola do Brasil

213

Você tentou e levou pau, Vai estudar lá na Federal

Chupa, chupa Federal, Chupa, chupa Federal, Chupa, chupa, chupa

A cabecinha do meu pau!”

Ocupavam a quadra, no transcorrer do jogo, em fila indiana dentro de um grande “Dragão Sanfonado” de pano, ao som do hino. O dragão era pintado nas cores amarela e preta, símbolos do CAASO.

A cabeça do monstro simulava uma enorme glande de pênis. No interior da grande alegoria, davam várias voltas sinuosas pela quadra, com a bateria atrás e a torcida cantando e dançando sem parar.

No apogeu da catarse direcionavam o dragão para a torcida da Federal, ao som do bis, “Chupa, chupa Federal...”, e com movimentos que imitavam um coito, iam e vinham em direção à torcida vermelha, até simular o forte e definitivo orgasmo.

Depois da entrada triunfal, corriam para a arquibancada oposta e posicionavam-se organizadamente. Torciam, então, independentemente do adversário, para qualquer time que jogasse contra a Federal, só dispersando a turba ao final dos jogos.

Todo ano era a mesma coisa, o problema é que ninguém sabia qual seria o jogo escolhido para a chegada da torcida do CAASO ao torneio.

A torcida vermelha praticamente derrotada, timidamente respondia aquele jogo de cena irresistível:

214

“Caaso... Chupa Caaso... Chupa

Caaso... Vai pra puta que o pariu

Ih, ó”

Se nos jogos olímpicos criou-se a máxima “O importante não é vencer, mas sim competir”, no TUSCA, solene provérbio caracterizava o torneio: “O importante não é competir e sim beber e se divertir”. As festas aconteciam sem parar. Vários “atletas” entravam em quadra embriagados e mais dispostos a participar de apresentações circenses do que de competições esportivas.

Entretanto, havia honrosas exceções à característica festiva do TUSCA. Todos os jogos entre a Federal e o CAASO revestiam-se de grande e mal disfarçada rivalidade. As partidas eram acirradas e competitivas. Os membros da atlética das duas entidades estimulavam essa marca tradicional do torneio.

Tony assistiu a um jogo morno de handbol feminino entre USP-Ribeirão e CAASO. A festa e o show nas arquibancadas ainda não haviam começado. Resolveu jantar mais cedo, ir para casa conhecer as mocinhas da UNICAMP e preparar-se para mais uma festa pauleira no DCE.

Quando subia as escadas, disfarçado pela multidão, viu Anne conversando com Lona. Ela saiu sem perceber a presença do rapaz. Tony estranhou aquele diálogo. Anne com Lona, eles não tinham nada em comum... Aproximou-se do rapaz:

215

— Ô Loninha, beleza? Estou meio sem jeito, mas vou perguntar assim mesmo. O que a Anne queria com você? Pelo que sei vocês nem são tão chegados assim.

— Chiiii rapaz… Detesto fazer esse papel de pombo-correio, me tira dessa! Qual é, Tony, não posso conversar com a moça?

— Pode, claro, eu não tenho nada a ver com isso. Desculpe, é que estou preocupado com ela.

— Preocupado o cacete! Ficar entre um casal é uma merda… Ainda mais este casal pertencente a duas correntes políticas opostas. Como você aguenta? Tá bom, lá vai. Ela perguntou se você vai jogar no TUSCA. Dei o serviço todo, falei hora e local. Sou tão legal que nem comentei sobre as gatinhas que vão ficar na Cova. Você me deve uma, Tony…

— Valeu, Lona, mas não te devo nada não. Eu e ela estamos separados, cada um na sua…

— Estou vendo mesmo, da forma que um pergunta do outro… É, não sei não… Em briga de marido e mulher não se mete a colher. Esteja bem para o jogo de amanhã, é isso que importa.

Tony alegrou-se, ela queria saber notícias dele. Parte de suas perguntas de horas atrás estava respondida. Mas por que ela não o procurava diretamente? O que a impedia de abrir seu coração e tentar uma reconciliação às claras, na luz do dia?

216

Sabia que Anne não estava mais com Faroeste. Porém, no seu juízo, qualquer movimento novo deveria partir dela.

217

TIGRESAS

Tony entrou na Cova e sentiu um aroma diferente e delicado. Vestígios femininos no ar deixaram a atmosfera da casa mais leve e alegre. Imediatamente Jararaca veio contar as novidades:

— Bicho, nós ganhamos na quina. As meninas são umas mais gostosas que as outras. Ruiva, morena e loura. Obrigado, você caprichou na escolha. Estão tomando banho para a festa do DCE. Demos o quarto do Profeta pra elas. Depois da balada, a gente mistura tudo. Parece que fazem Medicina e Nutrição na Unicamp. Agora, não garanto nada não, você foi o último a chegar. Eu, o Karl e o Zoom já estamos na parada há mais tempo.

Tony não tinha escolhido nada e achou mais fácil concordar com o amigo. Depois, ficaria sabendo que elas optaram por ficar numa república masculina. Fazia parte do trato, realizaram a fantasia combinada após várias rodadas de whisky.

A curiosidade da ruiva Bia fez com que escolhessem a Cova. Quando chegaram à Federal, perguntaram sobre vagas em moradias masculinas. Receberam a relação com as disponíveis, Bia gostou do nome da república e fez a escolha.

218

As outras duas eram a morena Luana e a loura Vanessa. Pelo jeito elas caprichavam no visual, trancadas há mais de uma hora no quarto se arrumando. Karl ficou interessado por Bia e Zoom a fim de Vanessa. Jararaca queria ficar com as três ao mesmo tempo.

— Moçada, eu já li filosofia, mostrei a cova da nossa aranha e coloquei dois discos do Deep Purple para a Vanessa. Ela me contou sobre as rodas do Tênis clube de Campinas, dos cavalos do haras de seu pai e de suas viagens para a Europa e Ásia. Acho que agora só falta irmos pra cama. — concluiu Zoom pensativamente.

— Gente, a Bia é legal. Nas últimas férias foi para Aspen esquiar com o namorado. Toca piano clássico na orquestra municipal de Campinas e fala fluentemente quatro idiomas. Quer fazer parte do grupo “Médicos sem Fronteiras”. Ela é virgem e quer continuar assim até o casamento. Mas não pretendo deixar isso acontecer. — Comentou Karl.

Tony perguntou sobre Luana:

— E aí, Jararaca, o que você me diz sobre a morena?

— Não gosto de conversar com mulher antes do abate, se não pega amizade e não rola nada. Amanhã te conto detalhes sobre ela.

Quando as moças chegaram à sala Tony ficou estarrecido. Estavam lindamente vestidas com saias e calças do couro, blusas de renda e finos anéis, pulseiras, colares e brincos.

219

Dos perfumes sofisticados exalavam doces fragrâncias. O perfeito contorno do batom de boa qualidade nos lábios, as cores bem dosadas dos pós faciais, das sombras e blush nas belas maquiagens, ressaltavam ainda mais a beleza dos seus traços.

Tony permaneceu perplexo durante algum tempo apreciando aquelas ninfas maravilhosas. Eram presentes, oferendas aos olhos do mais indiferente observador. Não se conteve e fez a observação:

— Meu Deus, eu não acredito! Vocês são muito lindas, maravilhosas. Estou bobo, passado. Já gostei das três. Expliquem-me, garotas, porque a gente gosta de cara das pessoas bonitas?

Foi a melhor apresentação que elas poderiam ouvir. Todos já estavam arrumados e prontos para sair. Tony pediu para eles irem, ainda iria tomar banho e arrumar-se. Só mais tarde seguiria para a festa do DCE. Antes de saírem, Luana pediu:

— Tchau, não se atrase. Ficarei te esperando...

O rapaz percebeu a mensagem cifrada da morena. Seria um sinal? Ela havia gostado dele ou fora apenas educada? Deixou para conferir mais tarde aquela dúvida e foi ao quarto ouvir um som e relaxar antes do banho.

Lá encontrou as letras das músicas que havia escutado na primeira noite na casa de Anne, recostou-se na cama e refletiu. As refinadas moças que acabara de conhecer não chegavam aos pés dela. Anne, sem

220

maquiagem, perfume ou produção alguma, com suas roupas simples e despojadas, batia facilmente todas as outras.

Anne perguntara dele para Lona. Iria assistir ao jogo? Poderia entrar por aquela porta nos próximos minutos e implorar por sua volta? Ela ainda o queria como antes? Será que algum dia o quis de fato ou sempre esteve em dúvida, com o coração dividido? Segmentado e sem a clareza que ele sempre teve a respeito dela?

Não poderia esperar mais, marcar passo ou aceitar alguém decidir-se por ele. Deu-se conta da profunda fissura no sentimento, uma traição difícil de perdoar. Aquela bela morena deu o sinal, o que estava esperando?

O DCE naquela noite estava fantástico e mais colorido do que o habitual pelo fervilhar de caras novas querendo interagir. Tony acabara de entrar e conversava com amigos, quando foi puxado no canto por Jararaca:

— Oi, fio. O pessoal está lá em cima dançando com as beldades. A morena não está querendo samba comigo, larguei mão. Estou ficando com um tesão na mulher de Ribeirão Preto. Se você quiser fazer sala sobe lá. É capaz dela querer ficar contigo. Perguntou-me várias vezes a que horas você chegaria!

Nesse ínterim, Tony viu Anne entrando no DCE, rodeada por militantes da Convergência. Entre eles pessoas que com ele não simpatizava, como Canário, Olavo, Pernambuco e Faroeste. Tony subiu rapidamente

221

a escadaria de acesso ao salão de baile para evitar

o encontro embaraçoso com ela.

Lá chegando entrou na roda das beldades com Karl e

Zoom. Luana voltou sua atenção para ele e começaram

a dançar freneticamente. Não era possível conversar

naquele alarido musical, apenas a linguagem corporal

imperava no acelerado jogo de sedução que se seguiu.

Tony notou que os olhos de Anne, ao lado da pista

de dança, não desgrudavam dele. A sessão de músicas

eletrizantes deu lugar às baladas românticas. Tony e

Luana encaixaram tão bem seus corpos a ponto de

parecerem tê-los fundido num só, naquele movimento

pendular de passos, seguindo as lentas e sugestivas

canções de amor.

Acariciaram-se como autômatos, a compressão do

enlace tornou-se mais quente e apertada. Palavras

roucas e sem sentido eram proferidas. Um beijo fatal

estava em seu momento iminente, sendo o clima

retroalimentado pelo apetite do casal. No brilho mais

intenso do refletor, de relance, Tony encarou o olhar

triste de Anne observando a cena.

Decidiu partir imediatamente dali. Apesar de tudo,

não conseguiria machucar ela assim, daquela forma

tão crua e repentina.

— Luana, minha querida. Vamos descer e tomar um

drink?

222

De mãos dadas desceram a escadaria. Tony estava aguardando Luana sair do banheiro, queria ir embora. Uma voz familiar o pegou despercebido:

— Oi, estou com saudades de você. Quer dançar comigo? — balbuciou Anne com voz trêmula e gestos inseguros, diferentes da postura centrada costumeira.

— Anne, gostaria muito, mas não posso. Acho que não é assim que as coisas devem ser resolvidas entre nós. Precisamos conversar em outro momento com calma e entender o que está acontecendo.

— Você vai sair com ela, Tony?

— É apenas uma amiga, acabei de conhecer. Ela é de fora e não conhece ninguém, precisa de mim.

— Precisa de você pra quê? Diga-me?

— Não sei. Quem sabe para poder me amar sem dúvidas ou restrições. Preciso de alguém assim, Anne, que não vacile e saiba o que quer, tenha certezas em seu coração.

Anne saiu trôpega daquele diálogo duro e direto. Tony ia correr atrás dela, pediria o seu perdão e faria novamente todas as juras do mundo. Pisaria com sola pesada para enterrar de uma vez por todas seu orgulho atroz. Porém, as mãos suaves de Luana que voltara, o seguraram.

— Eu assisti a cena. Que sorte essa moça tem. Vocês se querem muito, não é? Dá para perceber. Corre Tony, ainda dá tempo de alcançá-la.

223

— A única pessoa que eu quero alcançar é você Luana. Vamos?

— Você não mente muito bem, mas vamos.

Durante o caminho noturno até a Cova conversaram sobre assuntos íntimos e relevantes. Eram duas almas alegres, pela leveza e reconhecimento do encontro. Dançaram na rua, colheram flores, sentaram no banco da praça para que o céu da madrugada embalasse ainda mais seus corpos, que se tocavam cada vez mais intensamente.

Aconteceu a sensação recíproca de bem-querer. Pertenciam a mundos diferentes, ela da fina flor da elite campineira, nascida num berço de ouro. Ele, proveniente de lar humilde do interior, interessado em reformas sociais.

Mesmo assim, absolutamente nada, nenhuma fronteira social, política ou cultural mostrou-se intransponível o suficiente para evitar o fluir daquela interação improvável.

Foram mais longe nas descobertas de um sobre o outro. O desejo sexual tornou-se irresistível, improrrogável. Em seu quarto, Tony admirou a nudez de Luana, sua beleza clássica e delicada contrastando com a volúpia dos instintos à flor da pele. Exploraram-se nus em todos os detalhes até a vinda das vigorosas correntes de prazer.

Ao amanhecer, vestiram-se e foram tomar café na padaria. Os assuntos jorravam tenros e abundantes como ao se conhecerem. Voltaram para casa e abriram espaço

224

para novas conversas. Antes de dormir compreenderam em silêncio que aquele encontro fora único e encerrava-se por ali.

Eram almas demasiadamente gêmeas para a relação estreitar-se. Necessitavam buscar em outros parceiros o contraditório, as diferenças que temperam com sabor o dolorido caldo do amor.

225

HINOS DE GUERRA

Naquela tarde o pessoal da Cova dividiu-se em duas correntes. Tony, Zoom e Karl engrossaram a torcida da UNICAMP, no jogo de vôlei de que as três beldades participaram. Jararaca ficou na arquibancada oposta junto à torcida da USP-Ribeirão, gritando como louco o nome de Paola, sua conquista da noite anterior.

Além de tudo, as ninfas campineiras eram grandes jogadoras e arrasaram as adversárias, ganhando a partida por dois sets a zero. Durante o jogo, Tony ouviu com prazer os amigos:

— Pensei em abrir um puteiro ou uma igreja… Preciso ganhar muito dinheiro e propor casamento para a Vanessa. Ela é demais, estou tarado. Ontem quase me matou, foi a melhor transa que tive na vida. — comentou Zoom, com um grande sorriso nos lábios.

Karl também não se conteve e extravasou os sentimentos:

— Vocês perceberam o detalhe? A Bia é vesguinha, do jeito que eu gosto. Fizemos de tudo na cama, menos a penetração. Rapaz, esse caso está ficando sério. Se ela dormir na Cova hoje, não respondo por mim. Não tenho a grana do namorado dela pra esquiar. Mas se bobear, levo-a pro céu de buzão.

226

A algazarra dos jogos continuava. Porém, estava faltando alguma coisa. A partida de Tony começaria em breve, logo de cara um jogo entre CAASO e Federal. Por enquanto a torcida do CAASO não havia dado o ar da graça e corriam boatos de que ela não participaria do torneio.

Segundo Lona, a diretoria da Atlética brigara com os filiados. Por isso, a tradicional torcida não seria organizada. Esse fato decepcionou a todos, mesmo os torcedores da Federal, que no fundo não viam graça em assistir ao TUSCA sem a participação destrambelhada da torcida amarela e preta.

Momentos antes do início da partida, Xampu e Poti passaram as últimas instruções para o time no vestiário. Tony ficou orgulhoso ao vestir aquela camiseta vermelha, shorts da mesma cor e meias brancas com listras também vermelhas.

O quinteto titular da noite iniciaria o jogo com a seguinte escalação: Poti (armador), Xampu (ala), Tony (ala), Robertão (Pivô) e Doval (Pivô).

Entraram perfilados na quadra e começaram a bater bola para iniciar o aquecimento. A torcida da Federal fez um barulho ensurdecedor, saudando seus jogadores. O som da vaia atingiu a mesma intensidade quando o time do CAASO chegou ao garrafão oposto.

Tony conseguiu ver Anne, que estava discretamente sentada num ponto distante da bateria vermelha. Ela veio assistir o meu jogo! Preciso arrebentar para impressioná-la.

227

No meio da quadra, o juiz estava prestes a levantar a bola entre os pivôs adversários para iniciar a partida. Tony pediu, segundos antes, a Robertão:

— Robertão, você é bem maior do que o pivô deles. Quando o juiz levantar a bola toque ela forte para o ataque. Vou iniciar a corrida antes disso e faço livre a bandeja.

Dito e feito, Robertão subiu e deu um tapa na bola para o ataque. Tony que já havia disparado em correria momentos antes, apenas pegou a bola e inaugurou o marcador, numa bandeja propositadamente estilosa. A torcida vermelha veio abaixo com seus urras e gritos, bumbos e hinos.

A partida continuou tensa. O CAASO não despregava do marcador, o time era forte e jogava duro. Em um contra ataque, Tony abriu nova correria à quadra adversária.

Ao entrar no garrafão, o marcador, vendo que não poderia mais alcançá-lo, deu-lhe um empurrão na altura da cintura. Tony caiu violentamente. Devido ao abundante suor corporal, deslizou no piso de madeira até chocar as costas no alambrado de metal.

Não conseguiu cobrar os arremessos livres abonados na penalidade. Com o auxílio de Doval e Xampu, foi carregado ao banco de reservas. Deitou-se e ficou se contorcendo de dor. A torcida reclamou daquela falta demasiadamente agressiva aos gritos de Cavalo…Cavalo. Tony foi substituído por Vírgula, que entrou no jogo e converteu o segundo lance livre.

228

No final dessa cobrança, o ginásio estremeceu. Repentinamente, a torcida do CAASO invadiu frenética o ambiente. Cantavam em uníssono um hino novo:

“Nós somos lá de São Carlos Viemos aqui pra zonear

No esporte nóis somos bosta Nosso negócio é a cachaça

E mesmo que nóis não ganhe

Que nóis apanhe, vamos brindar A comida dá diarréia

E as mulheres dão gonorréia

A pinga queremos com limão

Mulheres com muito mais tesão Porém se a USP amada precisar da macacada

Puta merda que cagada!

Como é legal calcular a integral

Mesmo sem grafite calculamos o limite Amor de graça pela cachaça

Com a turma nossa Não há quem possa

ENGENHARIA U-S-P.

CAASO, CAASO, botando pra fudê! ENGENHARIA U-S-P.

CAASO, CAASO, botando pra fudê! Federal... Chupa Federal... Chupa

Federupa... vai pra puta que pariu, ih, óh.”

Entraram na quadra com uma novidade: o dragão sanfonado de pano foi substituído pelo grande pênis pintado nas cores amarela e preta. Tony teve que se

229

afastar do banco de reservas para não ser pisoteado pela imensa alegoria. No interior dela, formaram fila indiana e deram as tradicionais voltas sinuosas pela quadra, seguidos pela bateria.

Após detonarem toda a organização do torneio posicionaram-se na arquibancada oposta à da torcida da Federal. O jogo recomeçou, contando com a presença massiva da torcida do CAASO. Cada jogada, ponto ou finta eram comemorados como final de campeonato pelas torcidas rivais.

Tony percebeu que a contusão estava séria e não poderia voltar a jogar logo. Com a dor aumentando foi transferido ao vestiário, sem conseguir andar direito devido à forte pancada na coluna.

Podia ouvir dali todo o barulho do ginásio e pelo jeito a Federal ainda estava na frente no placar. Deitou numa pilastra sem camisa, com toalha úmida encobrindo o rosto, muito vermelho e suado.

Duas mãos de fada familiares começaram a massagear o hematoma que havia se formado em suas costas. Não precisava dizer nada, mesmo com os olhos encobertos, sabia que era ela.

Queria que o mundo parasse naquele momento, ficaria ali para sempre aos seus preciosos cuidados. Um filete de lágrimas correu de sua face quando ela começou a falar:

— Me deixe cuidar de você. Afinal sou quase formada em enfermagem. Essa não é a melhor hora, mas vou

230

te contar. Descobri muita coisa nesse período em que fiz terapia.

Tony continuou calado, ouvindo atentamente cada palavra. Anne aplicou pomada analgésica para reduzir as dores do rapaz.

— Tive grande decepção com o meu pai. Não nos falamos há anos. Eu o amava na infância. Quando cresci, ele construiu uma redoma ao meu redor. Ninguém podia aproximar-se de mim. Todos eram perigosos e queriam somente abusar de sua adorável filhinha.

Tony sentiu uma compressão mais intensa de Anne sobre suas costas, ela estava tensa.

- No início, aceitei essa prisão por amor a ele. Comprei seu discurso moralista e me afastei de todos para satisfazer seus desejos. Um dia cheguei de viagem sem avisar. O peguei na cama com minha colega de colegial. O chão sumiu pra mim, todas as referências foram para o espaço.

Tony tentou aliviar tamanha comoção:

— Anne, chega. Isso não é necessário…

— Preciso continuar essa história, você vai entender. Tudo isso me marcou profundamente. Tenho muitos problemas com o sexo masculino e a paixão. Inconscientemente, por melhor que esteja com alguém, sempre espero a súbita traição. Tenho medo de me entregar e sofrer.

Ela aplicou emplasto com líquido quente nas costas de Tony, que sentiu melhora acentuada da dor.

231

— Comecei a gostar demais de você, isso gerou insegurança. Quando menti a respeito do retorno com Faroeste, desejava testar o seu amor por mim. Errei, eu sei, porque agora te perdi definitivamente. Você é capaz de me perdoar? E aquela moça de ontem no DCE Tony, o que aconteceu?

Anne estava chorando e Tony a abraçou carinhosamente. Concluiu que uma pequena mentira seria o melhor para o momento.

— Cuidado, você vai ficar toda molhada com o meu suor. Como não seria capaz de te perdoar, Anne? Você é minha vida. Não aconteceu nada com aquela moça ontem. Ela apenas ouviu as minhas queixas sobre você.

Permaneceram abraçados por longo período, confortando-se em sua carência mútua de amor.

— Anne, estou me sentindo melhor agora, você me curou. Desculpe, mas preciso voltar ao jogo.

Tony retornou ao jogo na metade do último tempo. Naquela situação bastava ao time da Federal administrar a partida para vencê-la. Foi isso o que fizeram, firmaram-se em forte postura defensiva e gastaram o limite de tempo em todas as jogadas. Só arriscavam arremessar à cesta adversária bolas seguras, sem correr riscos desnecessários.

Começou a contagem regressiva dos dez segundos finais, o cronômetro foi finalmente zerado, vitória incontestável da Federal por 57 a 42. O ginásio veio abaixo com a euforia incontida da torcida vermelha.

232

O time posicionou-se no centro da quadra e chamou a bateria para acompanhá-lo na comemoração. A torcida em peso seguiu a passeata de alegria, foram à frente da torcida do CAASO e iniciaram os gritos de guerra.

Tony ficou arrepiado ao empunhar e tremular na quadra a bandeira vermelha do DCE. Emitiu até a rouquidão completa junto com a galera a canção:

“Se você está afim de estudar se divertir ... Eu conheço o lugar, você não vai resistir!

O Luau, é animal! E no TUSCA sempre a Mil! Vem curtir, na Federal, a melhor do Brasil!

A Federal, não é fraca não, Só tem gostosa e gostosão

E na bosta do CAASO, só tem PUTA E CUZÃO! CAASO, CAASO, Vai toma no cu, Filho da puta!

Ô ÔÔÔÔÔ ... Federal!

Ô ÔÔÔÔÔ ... Federal!“

Os hinos das duas entidades foram cantados por mais de meia hora. Finalmente a torcida amarela e preta calou-se. Ficou a mercê do mar vermelho que venceu fragorosamente os rivais.

Vários membros do CAASO aplaudiram a torcida da Federal enquanto a maior parte dos filiados abandonou rapidamente o ginasião.

Quando a predominância vermelha ficou clara, Fóssil puxou o mais tradicional e antigo grito de guerra da entidade. Tony não abandonava a bandeira do DCE-Livre UFSCar e nessa hora explodiu emocionalmente. Suas

233

lágrimas uniram-se ao suor da face para umidificar o orgulho que sentia.

“Alô menina, alô garota,

oi abram alas que eu quero passar.

O vermelhinho, sinal de guerra.

A Federal estremece a Terra!”

O TUSCA encerrou com a vitória geral do torneio ficando mais uma vez para a Federal. Em seguida, a vida no campus lentamente voltou ao normal, com sua ânsia de produção científica e pedagógica.

Muitas recordações ficaram daquele torneio para inúmeras pessoas. Zoom e Karl corresponderam-se durante algum tempo com Vanessa e Bia, até o ímpeto apagar-se completamente. Ele foi engolido pela realidade de vidas tão opostas.

Tony lembrou-se de sua despedida com Luana, breve e definitiva. Ela retornou para reconciliar-se com seu amor rompido dias antes da viagem a São Carlos.

— Muito obrigado pelo carinho, nunca vou te esquecer. Que sorte seu ex-namorado tem. Corre, Luana, ainda dá tempo de alcançá-lo.

As palavras do rapaz repetiram a fala de Luana naquela noite em que ficaram juntos no DCE. Ela refletiu por um instante e respondeu:

— Não vou mentir como você para mim naquela noite. Vou correr sim para ele. Também te agradeço pelo encontro, foi maravilhoso. Fique bem com a Anne e muito juízo, hein?

234

Tony sentia-se cansado com o passar daquele final de semana atribulado. Contudo, o que mais queria acontecera. Estava de novo, como Luana profetizara, “bem com Anne.”

235

ZÉ JORGE

O DCE encontrava-se aberto, como há muito tempo não ocorria, para a participação estudantil mais ampla naquele início do ano de 1983.

Respirava novos ares e vivia um momento muito especial, com perspectivas de novidades, porque o reitor da UFSCar estava encerrando o mandato de quatro anos.

Apesar das tendências políticas não terem apoiado a chapa rival, com sutileza foram sendo seduzidas pelos independentes. A Rosa não tomava nenhuma atitude sem convocar os estudantes e definir ações consensuais, o que fez com que os partidos se comprometessem com a unidade das causas defendidas pelo DCE.

Tony acompanhou com interesse o cenário político mais amplo do país. O senador Teotônio Vilela propôs eleições diretas para Presidente da República.

Aos poucos, o movimento aglutinou os políticos mais representativos da oposição. Reuniram-se e organizaram grandes comícios populares a favor das Diretas Já. A população aderiu progressivamente à campanha, que mobilizou entidades de classe, igrejas, lideranças civis e sindicatos.

236

Karl e Tony foram ao DCE e se surpreenderam com a participação ativa das tendências. Conversaram com Amarílis e Gaio:

— Oi, Gaio, tudo bem? Estamos à disposição para auxiliá-los no que for preciso. Contem com a gente.

— Obrigado, Karl. Estamos organizando a campanha das Diretas Já em São Carlos. Faremos ato público engrossado com entidades da cidade. Vamos trazer o Lula aqui pra discutir propostas do DCE.

— Você ainda tem a cara de pau de dizer que a chapa é apartidária, né Gaio? — Comentou Calango que sapeava a conversa.

— Ué, Calango, qual o problema? Se você convidar políticos do PMDB, também serão bem recebidos. Seria ótimo comprometer o maior número possível de partidos em defesa das nossas causas. — disse Amarílis.

Tony sabia que a Rosa defenderia a autonomia universitária, aliás, típica da UFSCar.

Amarílis comentou o assunto:

— Gente, esse ano o bicho vai pegar! Será iniciado o processo de sucessão na reitoria e muita coisa pode acontecer no caminho.

— Por que, Amarílis? — perguntou Karl.

— Em 1979, William Saad Hossne, nosso terceiro reitor, consultou as entidades da UFSCar e foi indicado pela nossa comunidade, algo inédito no Brasil desde 1964. Assim, mobilizações importantes aconteceram

237

em sua gestão, tornando os movimentos mais coesos e representativos.

— Pensado num modo de manter ou melhorar o nível, basta indicarmos na lista sêxtupla nomes de consenso da comunidade com perfil semelhante ao do Saad. — Karl concluiu.

— Aí é que está o problema. O governo teme que o processo da UFSCar “contamine” outras universidades. Por isso, em 1979, decretou a Lei 6733, que assegura a indicação de nomes à revelia da lista sêxtupla. Estamos receosos de que isso possa acontecer nessa sucessão. — explicou Gaio.

Antes da posse do novo reitor era praxe a comunidade enviar ao MEC a lista sêxtupla composta com nomes de outras instituições, com os candidatos à sucessão. Isso impedia a participação de lideranças locais, mais comprometidas com reivindicações da Universidade.

Heleno, que era presidente da ADUFSCar, foi ao DCE e falou com Gaio:

— O Conselho Universitário marcou reunião pra indicação da lista sêxtupla. A ASUFSCar também vai participar e estamos aguardando o DCE pra fechar nomes de consenso. A nossa proposta é que o voto continue paritário entre as três entidades.

O professorado organizou, no ano de 1981, sua entidade maior, a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES), que, em 1982, articulou greve nacional pelo fim das demissões e perseguições

238

a docentes, por mais verbas para o ensino e a pesquisa e pela revogação da Lei 6733.

Na UFSCar, a greve foi apoiada pelo DCE e ASUFSCar, criando-se as “Assembleias Universitárias” (AU), abertas aos estudantes, docentes e funcionários. Por isso, as decisões vindas delas eram respaldadas pela comunidade acadêmica, o que fez com que se tornassem marcas registradas dos movimentos políticos da Federal.

Karl, que não perdia oportunidade para ampliar seus horizontes em busca de novos paradigmas, perguntou a Heleno:

— Por que docentes e estudantes lutaram tanto tempo em terrenos separados?

— Nem sempre foi assim. Antes do golpe de 1964, havia um interessante processo de debates sobre a Reforma Universitária, que envolvia docentes, estudantes e funcionários. Porém, a ditadura esmagou essa iniciativa e nos dividiu com seus métodos fascistas.

— Ô Heleno, tudo bem, que lindo a união entre professores e alunos. Mas tem cada docente filho da puta que eu nem te conto! — disse ironicamente “Mel”, uma nova militante da Convergência, cuja característica principal era a franqueza dos comentários.

— Assim como tem estudantes e funcionários filhos da puta também, Mel. Não dá pra generalizar, você já viu num saco de milho de pipoca não ter nenhum piruá? — devolveu Heleno na mesma sintonia.

239

Naquele momento o famoso Zé Jorge, presidente da ASUFSCar, chegou para conversar.

— Pessoal, os funcionários estão unidos pra eleger o próximo reitor.

Zé Jorge era sergipano e tinha 10 filhos. Fumava cigarrinho picadão e ajeitava o chapéu de palha com seu jeito humilde e inteligente. Semianalfabeto, iniciou a militância política como secretário do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Alimentícia de Araraquara, entre 1959 e 1961.

Em 1964, foi preso como subversivo por sua firme atuação política e sindical. No início da década de 70, mudou-se para São Carlos, passando a ser uma das maiores lideranças sindicais da cidade.

Estava no segundo mandato consecutivo na presidência da ASUFSCar, além de também presidir o Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores de São Carlos. Adorava comentar que conhecera Lula antes da fundação do PT.

Zé Jorge era a cara do PT da época. Homem do povo, com fala simples e despojada, sua liderança foi vital na criação da ASUFSCar e da FASUBRA (Federação de Sindicatos de Trabalhadores das Universidades), fundada em 1978.

Enfim, naquele momento reuniram-se no DCE os representantes da “Santíssima Trindade” da UFSCar, as entidades que mudariam o rumo das relações entre Universidade e o Governo Central do país.

240

LULA LÁ

Algumas vezes, os fios da história entrelaçam-se através de circunstâncias favoráveis. O surgimento na UFSCar de uma Comunidade Universitária forte, que pretendia eleger os próprios gestores, conectava-se com a mobilização por eleições presidenciais diretas e o clima de renovação política do país.

Nesse sentido, a maior novidade da década de 80 foi o surgimento de um pequeno partido que nasceu nas bases operárias e obteve a simpatia de intelectuais, artistas e estudantes, o PT.

Lula, o jovem líder sindical do partido, era esperado na UFSCar para divulgar sua plataforma de lutas. Os membros das entidades do campus estavam ansiosos para recebê-lo.

Foi recebido com entusiasmo por Heleno, Gaio e Zé Jorge. Naquela época, Lula ainda não tinha o sorriso fácil e a simpatia quevadquiriu com as inúmeras derrotas eleitorais. Era carrancudo, desconfiado, difícil de iniciar contatos sociais.

Quem quebrou o gelo foi Zé Jorge. Sem nenhuma cerimônia, abraçou o companheiro conhecido de outros tempos e pediu:

241

— Heleno, vamos parar com essa frescura. Leve a gente pra tomar uma caninha, que o companheiro Lula aqui precisa se ambientar.

Dito e feito, os primeiros contatos entre as entidades do campus e Lula estabeleceram-se “sem frescura”, no boteco do bairro mais próximo. Lula voltou mais “ambientado” para a Federal, fumando o cigarro de palha feito no maior capricho por Zé Jorge.

Seus acompanhantes aproveitaram a ocasião e transmitiram a pauta de reivindicações da Universidade. Lula falou mais tarde com a Comunidade Universitária, em evento realizado no ginasião.

Tony, na semana anterior, orgulhoso, avisou ao amigo Coringa do CAASO sobre a realização daquele encontro com Lula.

Se nos contatos sociais Lula ainda tropeçava, nos comícios seu carisma já era forte. Começou com voz baixa e pausada, caminhando no centro da quadra. Parecia olhar diretamente nos olhos de cada pessoa sentada na arquibancada, expressando-se exclusivamente a ela. Seu magnetismo fluiu. Ninguém no ginasião completamente lotado piscou durante o longo discurso.

Falou sobre a organização sindical e a greve histórica em 1978 para reposição salarial, a morte de Santo Dias, as prisões e expurgos, a intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos, sua detenção no DOPS e enquadramento na Lei de Segurança Nacional, por incitação à desordem coletiva.

242

Com refinada percepção e exposição didática de fatos, relacionou sua trajetória as mobilizações universitárias, demostrando que a luta era a mesma.

Fez longa avaliação sobre o processo eleitoral, do qual fora candidato. Ressaltou a influência do poder econômico nas eleições e incentivou a militância popular do PT, como contraponto aos recursos financeiros dos partidos políticos tradicionais.

Aumentando o tom de voz, conclamou a todos a formarem uma corrente pelas Diretas Já. Nesse momento de comoção, comprometeu-se a fazer todos os esforços, a favor das reivindicações da UFSCar.

O discurso chegara ao seu apogeu, foi aplaudido de pé. Naquele momento a Universidade comprometeu-se a fortalecer seu elo com os movimentos sociais, sua sintonia com a sociedade e suas lutas mais relevantes.

243

SESSÃO MALDITA

— A vida é transformação e crescimento em plena expansão na forma de pergunta ao universo. Essas perguntas podem ser respondidas pela razão, emoção e sensibilidade. Qual desses instrumentos você escolhe?

Com a provocação, Juca propunha o primeiro de inúmeros desafios aos alunos que frequentavam seus cursos de História da Arte na Federal. Ele e Naná coordenavam o Centro Cultural da UFSCar.

Se na política os acontecimentos fervilhavam, na área cultural os agitos pareciam acabados de sair de um caldeirão de água fervente. Esse “caldo” temperava com requinte a vida da Comunidade Universitária, propondo-se a atingir também a população de São Carlos.

Havia projetos culturais importantes, como o TUFSCar, um grupo de teatro do campus; a Banda Federal; a equipe de Estudos Afro-Brasileiros; o coral Madrigal; o grupo vocal Sassafrás e o Festival Aberto de Música Popular de São Carlos, organizado pelo DCE.

A maioria deles, acontecia no Espaço Cultural da UFSCar, localizado ao lado do Forte Apache. Oficinas de música e de artes plásticas, espetáculos teatrais,

244

encontros entre agentes culturais, exposições fotográficas e concertos musicais.

O diretor do grupo de teatro TUFSCar chamava-se Coutinho. Tinha a expressão inquieta e inconformista dos verdadeiros artistas, olhar ferino que inquiria as pessoas contra posturas rígidas, o desejo de resgatar sensações e sentimentos reprimidos e mutilados. Era um grande formador de atores e atrizes.

Dirigira um jovem grupo de teatro experimental na cidade de Bauru, chamado Mamulengo, que atingiu fama internacional encenando, num festival na cidade italiana de Palermo, a peça “A Casa de Bernarda Alba”.

Graças às experiências de vanguarda, a peça apresentava inovações estéticas significativas, como cenas de nudez interpretadas em cenário anti-convencional. Devido ao sucesso da peça, o grupo apresentou-se também em Roma, Madri, Lisboa e Londres.

Tony foi convidado pelas Bacaiaus, Marilin e Olívia, a participar dos primeiros ensaios no teatro. Embora não quisesse fazer parte do grupo, um dia, por amizade, submeteu-se ao teste com Coutinho.

— Em primeiro lugar, suba ao palco e encontre o seu lugar.

Ia balbuciar algo, mas desistiu. O olhar do diretor não abria espaço a questionamentos. Sentindo forte onda de timidez dominá-lo, posicionou-se no fundo do palco, e perguntou:

— Aqui tá bom, Coutinho?

245

— Não sei, você precisa encontrar a sua região de conforto e desconforto.

— Ok! Achei o meu lugar, o que faço agora?

— Explique pra gente por que você está tão tenso. Depois, conte uma história triste qualquer e tente nos emocionar.

— Estou tenso porque não tenho talento pra interpretação. Vim por solidariedade às minhas amigas. Não sei o que fazer, nem uma simples piada eu seria capaz de contar agora, estou tremendo. Isso não é uma história triste?

— Tá bom, Tony, desce daí e encontre seu lugar na plateia. Prefiro as pessoas que não querem se enganar, você de fato não tem muito jeito pra coisa. Pode assistir aos ensaios e saiba que está convocado a nos ajudar na divulgação da peça.

Tony lembrou-se dessa história na estreia de “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, que o TUFSCar encenaria aquela noite. Ficou surpreso com as Bacaiaus. Elas tinham se aprimorado rapidamente nas técnicas de interpretação. Refletiu sobre a oportunidade que havia perdido, mas se conformou, assumindo sem maiores problemas essa limitação.

Uma das iniciativas de maior êxito do Centro Cultural da UFSCar foi a criação do Núcleo de Cinema, que lançou a semente para a fundação do cineclube.

Com os cinéfilos da Universidade, Juca e Naná produziram grande acervo de filmes undergrounds,

246

exibidos semanalmente em sessão de cinema especial, às 22:00 horas, a “sessão maldita”.

Inaugurada em 1973, ela proporcionava prazer aos organizadores. No início da semana, definiam o filme a ser exibido no cinema tradicional da cidade, o cine Estúdio I, dele redigiam breve sinopse crítica, impressa na gráfica da Universidade.

Os panfletos, dobrados artesanalmente pelos divulgadores, eram distribuídos nas salas de aula da UFSCar e da EESC, além de ser expostos nos principais locais de encontro dos estudantes.

Graças a esse trabalho e ao fato de o preço dos ingressos ser subsidiado, o cinema ficava completamente lotado, com pessoas sentadas nos corredores das poltronas.

Assim, a comunidade teve a rara oportunidade de conhecer as obras- primas de grandes diretores, como Fellini, Buñuel, Glauber Rocha, Chaplin, Sylvio Back, Visconti, Kurosawa, Woody Allen, Pasolini, Polanski, Hector Babenco, Godard, Antonioni, Ruy Guerra, Hitchcock, Eisenstein, Bergman, Truffaut, entre outros.

Havia ciclos temáticos de apresentações, destacando trabalhos de diretores, períodos do cinema e gêneros cinematográficos. Antes da sessão principal, eram exibidos curtas-metragens históricos.

A cada semana filmes cult revezavam-se com comédias, ficções científicas, romances, suspenses,

247

documentários e dramas. Ao final das projeções, organizavam-se debates e discussões.

A sessão maldita não tinha fins lucrativos e caracterizava-se pela relação democrática entre os membros do Núcleo de Cinema, contribuindo para formar opiniões críticas e autônomas sobre vários assuntos.

248

6733

O Conselho Universitário reuniu-se para indicar a lista sêxtupla da UFSCar, em luta acirrada quanto ao sistema de consulta à Comunidade Universitária.

De acordo com a Lei 6733, a consulta deveria ser indicativa e a nomeação caberia ao general Figueiredo, que poderia não acatar as sugestões do Conselho. Nesse contexto, a indicação paritária, definida pelo voto proporcional de estudantes, docentes e funcionários da UFSCar, já seria uma grande vitória.

A composição do Conselho era heterogênea. Como previsto, membros da direita defendiam posições do regime, enquanto a ala progressista, propostas da comunidade. Quanto aos conselheiros de centro, havia a costumeira oscilação entre as duas posições.

Nos bastidores, o DCE, a ASUFSCar e a ADUFSCar fizeram lobby em defesa da paridade, embora nada estivesse garantido naquela votação. Coube a Heleno fazer a primeira proposta:

— Senhores Conselheiros, consideramos de fundamental importância que a comunidade, de forma democrática e paritária, eleja os nomes da lista sêxtupla.

Clóvis, membro conservador do Conselho, discordou:

249

— Reflitam bem, assim perderemos as rédeas do processo, excluindo a autoridade do atual reitor. Será que os estudantes estão amadurecidos para a escolha? Com suas posições radicais, indicarão nomes inviáveis e assim perderemos credibilidade junto ao Governo Federal.

Instalou-se discussão acalorada. Ao final do debate, o reitor William Saad se pronunciou:

— Digníssimos Conselheiros, respeito a opinião de todos. Mas por que não aproveitar a oportunidade para democratizar os colegiados? Acredito no bom senso do processo de escolha dos nomes. Se a paridade for aprovada, não me sentirei excluído dele ou com a autoridade questionada. Penso inclusive que ela se fortalecerá, com esta forma mais democrática de sucessão.

As palavras do reitor foram decisivas. Num quórum de 30 conselheiros, houve aprovação da paridade, com 15 votos favoráveis, 10 contrários e cinco abstenções.

A comunidade acadêmica em júbilo comemorou aquela vitória, aclamando a intervenção do reitor Saad, maior responsável pela conquista.

Embora o MEC não tenha visto com bons olhos a decisão, o governador Franco Montoro a recebeu bem, situação que refletia a dinâmica da sucessão à presidência da República. O governo Federal não era favorável às eleições diretas em nenhum nível da administração pública.

250

Enfim, as três entidades do campus indicaram um nome de consenso, William Saad Hossne, que recebeu mais de 50% dos votos.

Responsável por uma gestão equilibrada, bom negociador, Saad dosou as reivindicações internas e as deliberações do MEC. Era, então, o grande nome da sucessão; tinha um perfil moderado talhado para o cenário político daquele momento.

A Convergência não gostou da indicação. Fez campanha a favor de um docente filiado ao partido, que teve votação ínfima e nem entrou na lista. Tal resultado levou a corrente a apoiar apenas burocraticamente o processo sucessório.

Tony comentou essa incoerência com Carioca:

— Vocês apoiaram o voto paritário e, como seu candidato não foi indicado numa eleição democrática, parece que não têm nada com isso? Carioca, assim não dá, meu! É muita contradição.

— Tony, entenda a nossa posição. Como vamos apoiar esses candidatos burgueses? Fica difícil. Estamos cozinhando o galo. Mas se o governo atropelar o processo, você verá. Voltaremos a apoiar o movimento.

Infelizmente a previsão de Carioca se confirmou: o general Figueiredo ignorou completamente a lista sugerida pelo Conselho Universitário. Indicou um nome estranho e de sua absoluta confiança, totalmente alheio aos anseios da comunidade da UFSCar.

251

É DA LATA...

Naquela tarde Tony chegou na Cova mais cedo para adiantar afazeres. Profeta, Capi, Zoom e Jararaca o aguardavam com as costumeiras novidades. Profeta adiantou o assunto:

— Oi, Tony, descobrimos que hoje é aniversário do Karl. Ele não contou pra ninguém. E aí, vamos organizar uma surpresa?

— Por incrível que pareça acho que ele nunca fumou a erva venenosa. Mas hoje ele faz a cabeça! - afirmou Capi, obtendo a concordância de todos.

— Que tal depois irmos comer pizza e assistir a Maldita? O que acham? Sugeriu Jararaca, com seu apetite insaciável.

Karl chegou e foi recebido com entusiasmo. Estava sem graça, não sabia como se comportar ao ser homenageado. Após o banho juntou-se aos amigos e percebeu a névoa espessa que dominava o ambiente. Estava rolando mais uma copiosa sessão de baseados tão frequente naquele lar aracnídeo. O som foi adequado ao clima, Itamar Assunção cantando:

“…Eu fico louco, faço cara de mal

Faço o que me vem na cabeça

Me chamam de maluco, etc e tal

Espero que você não se esqueça…”

252

Capi fez o convite iniciático:

— Meu irmão, parabéns. Fume conosco e entre pro privado clube dos malucos da Cova. Você vai gostar…

Karl topou, esquecendo-se dos rigores de sua formação germânica. Pegou o cigarro de papel de seda e tragou fundo, segurando a fumaça dentro dos pulmões pelo maior tempo possível.

O ritual continuou com mais três baseados, enquanto Capi ressaltava as excelentes propriedades do produto:

— Moçada, vamos de leve, essa marofa é aquela “da lata”… Um torpedo pra imaginação.

Corria o boato de que um navio asiático, navegando em águas brasileiras, contrabandeava grande carga de maconha misturada a haxixe. A polícia costeira recebeu denúncia anônima sobre o delito.

Segundo os “bichos-grilos” mais convictos, quando o barco patrulha aproximou-se para abordar o navio, os tripulantes asiáticos lançaram ao mar a carga ilegal.

A droga estava escondida em latas de alumínio, que boiaram e foram levadas para praias brasileiras. Essa era a história responsável pela marofa boa e forte ser chamada de “da lata”.

O som agora na república havia mudado para Raul Seixas. Todos ouviam extasiados:

“…Eu prefiro ser

Esta metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada

Sobre tudo…”

253

A boca de Karl secou, sentia-se leve. Os olhos lacrimejaram e a mente subiu a âncora para devanear. As cores da sala ficaram cintilantes, percebeu que todos comungavam das mesmas sensações. Estava disposto agora a rever algumas de suas opiniões formadas sobre tudo.

Após o prolongado êxtase coletivo a fome generalizou-se. Os amigos sentaram no restaurante bambu e tomaram cerveja para umedecer as gargantas.

Demoraram para fazer o pedido, tudo ficou muito engraçado. Tony pensou que aquela era a erva da alegria, não paravam de rir dos fatos mais banais. Zoom perguntou, ao folhear o cardápio:

— Será que aqui tem pizza de pomba? Sabe, fiquei com saudade de comer aquele bichinho.

— Escolho pizza de bacon com goiabada, salpicada de geleia de aliche com cobertura de caramelo pra espantar a larica. — disse Profeta ao garçom, que começou a olhar feio.

— Aqui faz pizza meio a meio? Ótimo, traga pra mim metade de jacaré e a outra de filé de tuiuiú. Estou com vontade de lembrar a terrinha, falou Jararaca, convincente a ponto de o garçom ameaçar anotar o pedido.

Após muita gozação, optaram pelo costumeiro, as pizzas mais baratas da casa. A conversa fluiu desenfreada e Tony ficou melancólico ao pensar que um dia aqueles encontros iriam acabar.

254

Aquela noite não ficou com Anne para sair com os companheiros, como nos velhos tempos. Sua identidade precisava disso para ser confirmada.

Após comerem, desceram ao DCE para “fazer hora” e viram outros rostos queridos. Cada qual criara contatos fora do circuito da república, mas os amigos de uns se tornavam de todos, na corrente de relações dos rapazes da Cova.

Embora a sessão maldita fosse evento agradável e instrutivo, encontravam-se “altos” para absorver informações complexas, graças ao poder esotérico da erva da lata.

Uma bela estudante estava sentada sozinha. Jararaca animou-se e foi abordá-la. Nesse ínterim, ouvia-se a plateia gritar em coro: “Chega… Chega… Chega”. Jararaca falou alguma coisa no ouvido dela e recebeu um sonoro tapa na cara. Sem perder a pose, levantou-se com o rosto vermelho marcado pelos dedos da moça e falou em alto brado:

— Fique esperta porque da próxima vez você vai apanhar ainda mais! — o cinema veio abaixo com a enxurrada de gargalhadas.

O filme da noite, “Música e Fantasia”, animação italiana do diretor Bruno Bozzetto, parábola de cunho social da animação “Fantasia”, de Walt Disney, adequou-se ao “estado” do grupo.

Tony viajou no trecho em que a música “Bolero”, de Ravel, combinava-se com imagens que pareciam sair da

255

tela. Nele, a partir do líquido de coca-cola, deixado num lugar longínquo por uma nave espacial, desenrolava-se a evolução biológica. Desde os organismos mais simples, a longa escada evolutiva caminhava, crítica e irônica, até o surgimento da espécie humana.

Após o filme, o pessoal da Cova ficou com os olhos vidrados, como vindos de jornada intergaláctica distante. Porém, a viagem estava apenas começando…

Karl foi o primeiro a se manifestar:

— Moçada, que piração… Eu fiz parte daquele filme, virei personagem e me envolvi com cada cena, quadro a quadro. Mas tudo bem, estou voltando ao normal.

Capi, ao ouvir o argumento, imediatamente propôs:

— Bom, eu não voltei ainda. O que é realidade? O que é fantasia? Na dúvida, vamos lá na praça fumar mais um?

Fumaram mais uma grossa bagana que o rapaz, por via das dúvidas, preparara antes de sair. Zoom perguntou a Karl:

— E aí? Como você está se sentindo agora?

— Sei lá, acho que o filme recomeçou.

Profeta fez a desconcertante proposta:

— Ô povo, é o seguinte. Que tal tomarmos todas até amanhã cedo? Vamos fechar todos os bares da cidade?

O silêncio geral indicou que concordaram. Apenas Jararaca fez a realista observação:

256

— Tudo bem, eu topo. O problema é que não temos dinheiro para tomar cerveja até amanhã. E aí?

— Beleza, Jararaca, a gente improvisa.

Foram ao Café do Centro e após longa espera no enxame de estudantes, conseguiram se sentar. Nerso veio servi-los e perguntou:

— E aí, rapaziada? Posso descer duas cervas estupidamente geladas?

— Não, Nerso, hoje o pedido é diferente. Traz pra nós um litro de pinga e uma garrafa de dois litros de soda limonada bem gelada. Também queremos cinco copos americanos, disse Karl com convicção.

— Então, vocês me apresentaram a erva da lata? Pois é, agora conheçam a melhor bebida de pobre do mundo. As insuperáveis… porradinhas!

Karl preencheu a metade dos copos com pinga. Depois explicou:

— Agora é só completar com a soda. Mas o processo tem que ser rápido. Tampem a abertura com as mãos, batam o fundo do copo na coxa com força, depois engulam de uma só vez o líquido efervescente. Se não virarem rápido, a mistura fica intragável. No entanto, antes disso parece mel ou a pamonha de Piracicaba, “o puro creme do milho-verde”.

Quando Tony virou o primeiro copo de porradinha, uma agradável sensação de frescor invadiu-lhe a garganta. A cabeça, porém, parecia ter levado uma porrada daquelas. Foi preciso parar para saber onde

257

ele estava e conseguir dominar a tontura que surgiu imediatamente.

Após quinze minutos mataram o litro de pinga. Resolveram dar um tempinho sem beber, esticando a conversa para espaços sem fronteiras.

Profeta e Tony afastaram-se do grupo e foram mijar na praça. No caminho Profeta fez um comentário pouco discreto para um casal que se aproximava. A mulher abraçada ao rapaz era muito feia e Profeta não se conteve:

— Amigo, você tem porte de armas? Como pode andar com um canhão desses ao seu lado?

O rapaz ficou nervoso e discutiu com Profeta. Tony, que apartou a briga, desculpou-se com o “namorado do dragão”, pedindo a ele para relevar a situação. Como na mente confusa de Profeta o rapaz tentara agredir Tony, afastou o amigo da contenda e falou:

— Você não vai bater no meu camarada!

Com a palma da mão aberta para socar o adversário, Profeta rodopiou no ar e levou um tombo feio. A cena foi tão hilária que o próprio casal começou a gargalhar. Tony desculpou-se com eles e foi socorrer o companheiro, levantando-o do chão:

— Tá vendo, Tony. O que eu não faço por você? Consegui espantar aquele bruto que queria te bater. Você sabe que sou seu amigo, não é?

— Claro, Profeta, eu também gosto demais de você. Agora vamos mijar e parar com essa viadagem?

258

Voltaram ao boteco e reuniram-se aos companheiros. Nerso começou a jogar água no pé dos bêbados. Sempre fazia isso quando queria fechar o bar.

— E agora, pra onde vamos? A noite nem começou ainda, disse Zoom aos colegas.

— Já sei, o Karl apresentou a porradinha que não fez efeito nenhum, é paia. Vamos agora de bar em bar tomar rabo-de-galo? Isso sim é bebida de macho e não essa limonada mal disfarçada — propôs Profeta, tentando demonstrar que estava sóbrio.

Mais uma vez o silêncio coletivo indicou concordância do grupo. Seguiram na procissão ébria consumindo rabos-de-galo, bebida, considerada a pior das piores, pinga barata misturada a vermute.

Conforme os bares iam fechando, a já precária qualidade dos rabos-de-galo caía e a frequência dos ambientes ficava cada vez mais barra pesada. Num destes botecos, quase ao amanhecer, Zoom se engraçou com uma prostituta de idade avançada.

Os amigos não continham as risadas ao ouvirem o xaveco do rapaz:

— Sabe, você é linda, quer se casar comigo? Te amo, te amo, te amo…

Zoom ficou beijando aquela senhora por muito tempo. Depois seguiu com os amigos para outro bar. No caminho comentou:

259

— Gente, eu estou com um gosto ruim na boca, que cheiro é esse? Será que é o que estou pensando? Ai parece…

O jarro de vômito alcançou o meio da rua e ele apagou completamente. Karl não aguentou a cena. Enjoado, com passos trôpegos, também caiu. Restou aos outros carregá-los para casa naquela longa e difícil travessia.

Colocaram ambos na cama, enquanto Profeta observou:

— Bom, agora só nos resta ir ao bar da rodoviária. Ele fica aberto a noite inteira. Quem topa?

Desta vez o silêncio geral soou como resposta negativa. Profeta conformou-se e fez o último comentário da noitada naquele início de manhã:

— Tá bom, vocês venceram, já chega. Gozado, hoje eu não passei muito bem e quase não aguentei acompanhar vocês. Será que isto tem a ver com as duas cápsulas de remédio ansiolítico do Capi que tomei antes de sair?

260

GREVE

Foi inaugurado o belo anfiteatro perto da Química, com piano e excelentes equipamentos de som e iluminação. Os centrinhos organizaram o “Show das quintas”. Toda semana, a partir do meio-dia, os estudantes reuniam-se no local para participar das apresentações artísticas.

Era uma alegria presenciar as apresentações memoráveis da dupla cômica musical “Integral e Derivada”, os painéis desenhados ao vivo por “Tarancón”, os programas de rádio de Menotti e Juliano, as mímicas de Paco e tantos outros estudantes que expunham seus dotes ao público sedento.

Todos paravam os afazeres e corriam para lá. Show leve, divertido e envolvente, momento de prazer que com o tempo se tornou obrigatório. Mas, naquele dia, ao final das apresentações, Gaio trouxe a má notícia:

— Pessoal, recebemos comunicação oficial do Palácio do Planalto. O governo ignorou a lista sêxtupla e indicou um reitor com tradição autoritária. Propomos a suspensão das aulas e convocamos a Assembleia Universitária.

O ginasião lotou. Quem não coube em suas dependências ficou do lado de fora. No centro da quadra encontravam-se Heleno, Gaio e Zé Jorge. A assembleia foi dirigida por Amarílis, do DCE e Maitê, da ADUFSCar.

261

As falas começaram. Estudantes, docentes e funcionários revezavam-se em torno da mesma questão. O que fazer para responder aquela agressão contra a Universidade?

A tese de greve universitária foi aos poucos ganhando consistência. O principal obstáculo à paralisação seria o desgaste que o movimento poderia sofrer com o tempo. Por isso, era necessário manter o campus em estado permanente de mobilização, para evitar confusão entre greve e férias.

Zé Jorge garantiu que os funcionários manteriam as refeições no RU, a ADUFSCar defendeu a continuidade do funcionamento dos laboratórios para não comprometer pesquisas científicas, membros da APG se propuseram a interromper suas atividades, a fim de engrossar o movimento.

Ao DCE coube divulgar o movimento e organizar manifestações para dar maior visibilidade a ele. Por não manterem relações trabalhistas com a União, os estudantes expunham-se mais do que docentes e funcionários.

Assim, era preciso manter os serviços essenciais da Instituição e, ao mesmo tempo, deixar claras as reivindicações do movimento, contra a posse do “interventor” indicado pelo MEC, pelo fim da Lei 6733 e posse imediata de William Saad Hossne.

Contra ações administrativas do interventor, a comunidade decidiu estabelecer a “desobediência civil organizada”, não o reconhecendo como reitor, barrando

262

suas proposições. Enfim, métodos de resistência pacífica e de não violência, propostos por Gandhi, foram postos em prática.

A ADUFSCar comprometeu-se a instruir os docentes a não comparecerem a reuniões com o interventor. A estratégia era bloquear a reitoria, destituindo os poderes do interventor e isolando-o para que ele falasse a língua dos “mudos”. Governaria para si próprio, sem instrumentos reais de ação.

No final da Assembleia a greve ainda não havia sido definida. O momento era tenso. O fracasso daquele movimento poderia colocar a UFSCar como mais uma Universidade que ficaria de joelhos perante a ditadura.

O primeiro a propor a greve foi Gaio, a maior liderança do DCE:

— Estou otimista com a nossa organização. Faremos um movimento que ficará na história. Todos unidos contra a intervenção! Greve já! Sem violência e com determinação venceremos a ditadura. Fora interventor! Pela posse imediata de William Saad. Diretas, urgente! Para reitor e presidente!

O público aplaudiu o bordão. Zé Jorge o reforçou:

— Companheiros, esse clima tá muito bom. Nunca vi a gente falando a mesma linguagem como agora. Ninguém nos segura! Nenhum capacho do Figueiredo irá destruir nossa luta. Pela greve contra a ditadura! Um, dois, três, quatro, cinco mil… Queremos eleger o presidente do Brasil!

263

Heleno pediu a palavra para marcar a posição da ADUFSCar:

— Tenho orgulho dessa comunidade. Nunca descuidamos de lutar pela redemocratização do país, pela carreira e salários dignos dos funcionários e docentes, pelas justas reivindicações dos estudantes. No bojo dessas ações vamos manter a coesão na luta pela posse do reitor Saad. Pela livre escolha dos nossos gestores e extinção da Lei 6733!

Após o turbilhão de gritos de apoio, aplausos e sinais de adesão coletiva, Heleno sentiu que era o momento de encaminhar a votação da greve:

— Para encaminhar! Alguém aqui é contra a instalação da greve? Por favor, quem quiser discordar se pronuncie agora!

Silêncio absoluto nas arquibancadas…

— Só me resta então encaminhar por aclamação a instalação da greve universitária. Quem é a favor da proposta pode levantar as mãos e aplaudir.

Um mar de braços foi esticado, os presentes responderam em uníssono. Depois aconteceu prolongada salva de palmas no ginasião. A greve estava aprovada por consenso das três entidades representativas do campus.

264

DOCÊNCIA

Tony aproveitou a greve para reorganizar a vida.

Apesar do compromisso assumido pelos estudantes, a maior parte deles dispersou, fazendo cursos em outras instituições ou vagabundeando, em ritmo de “férias” improvisadas. Ficou na Universidade apenas a vanguarda; responsável por centralizar as ações do movimento.

Anne iria formar-se no final do ano e resolveu estagiar no hospital da UNICAMP. Tony, na noite de despedida, abraçou a namorada, enquanto Dionísio e Afrodite nadavam tristes no aquário.

Por ironia, aquela separação ocasional serviu como “estágio” ao casal, espécie de prévia do rompimento definitivo.

Na véspera da partida de Anne, Tony ficou calado. Ela, amargurada, na tentativa de quebrar o clima, comentou sem muita convicção:

— Vou escrever todas as semanas. Por favor, não vá querer se consolar durante a minha ausência com as minhas amigas, hein?

Ficaram aconchegados sem planejar o futuro. Após a despedida, Tony percebeu que suas noites seriam bem mais frias.

265

Para quem ficou restava lutar pelas reivindicações universitárias. Havia várias comissões que formavam o “estado maior” da greve. Equipes de trabalho para definir ações políticas, contatos com o MEC, recursos do movimento, divulgação para a imprensa etc.

Os membros da comissão de imprensa, da qual Tony fazia parte, contataram parlamentares para divulgar o movimento nas tribunas. Nos pronunciamentos, exigiam reconsideração do governo sobre o processo sucessório da UFSCar.

O DCE divulgou a greve no jornal “A Tribuna de São Carlos”, através da engajada repórter Thaís, que furou o bloqueio da mídia sobre a mobilização. Saíram notas sobre o assunto nos maiores jornais, como o “Estadão” e a “Folha de São Paulo”.

Tony participou de passeata na Avenida São Carlos. Engajou-se em outras comissões, organizando o pedágio que paralisou a Rodovia Washington Luís para angariar fundos.

Neste episódio, ocorreu confronto entre a polícia e os manifestantes. Contudo, a firme intervenção de Gaio, impedindo que aceitassem as provocações dos PMs, foi decisiva para evitar o pior.

O interventor não conseguira, ainda, implantar nenhuma deliberação na Universidade. A “desobediência civil” barrou suas iniciativas, o que fez com que ficasse desgastado junto ao próprio governo que o indicou.

266

Com a não aprovação da bolsa de iniciação científica do estágio de Tony, sua situação financeira se complicou. Precisava arrumar emprego, não podia continuar dependendo dos pais.

“Eu ouço e esqueço, vejo e lembro, faço e compreendo.” Tentando aplicar essa máxima de Confúcio, Tony participou de aula teste na escola do CAASO, no concurso para contratação de professores de Biologia para “cursinho” pré-vestibular.

Apesar dos professores do CAASO serem estudantes, o curso tinha ótima reputação, pelo alto índice de aprovação de seus alunos no vestibular. A contratação, rigorosa, constava de três etapas. Prova teórica, entrevista e por fim, a aula simulada, fase decisiva do processo.

Tony, nervoso, suava abundantemente, momentos antes de dar a sua aula, cujo tema sorteado foi Fotossíntese.

A plateia, formada por professores, simulava algazarra, a fim de testar a reação do candidato. Tony subiu no tablado sentindo frio na barriga. Não começaria a aula naquela bagunça.

Digão, o simpático japonês da diretoria do CAASO, pediu que o fizesse. Ele respirou fundo e falou timidamente:

— Pessoal, boa tarde, tudo bem? Vamos iniciar nossa aula de hoje?

267

Os “alunos” o ignoraram, continuando a conversar e rir para provocá-lo ainda mais. Tony teve um lampejo:

— Vocês estão com a energia muito reprimida. Isso não é bom. Vamos acalmar essa fúria. Após eu contar até três, gritem e botem os bofes pra fora. Soltem a franga sem medo. Vamos lá? Um… Dois… Três… Agora!

Ouviram-se gritos e urros ensurdecedores. Não era possível conter o alarido, a anarquia tomou conta do ambiente. Tony desesperou, perdera a oportunidade de conquistar o emprego.

Preparou-se para descer do tablado, mas a plateia se acalmou e passou a observar com atenção as próximas atitudes do “professor”.

A catarse coletiva aliviou a tensão. Sem nada a perder, começou a sua aula, que durou vinte minutos. Tomado por eloquência irresistível, teceu interessantes relações, acompanhadas por esquemas bem delineados pelo giz, propostas de avaliações, pesquisas e aprofundamentos do tema.

Encerrou com a tradicional pergunta:

— Vocês têm alguma dúvida?

Digão interrompeu sua fala:

— Tudo bem, Tony, o tempo está esgotado, obrigado. Pode sair e, por favor, avise o próximo candidato para entrar.

Sabendo que os candidatos aguardariam até a última aula teste para serem informados do resultado,

268

Tony foi ao bar do CAASO relaxar. Encontrou-se com Capiau da Óculos Escuros, em intervalo da pesquisa que estava fazendo, na biblioteca da EESC.

— E aí, grande Capiau, tudo joia? Faz tempo que você não aparece na Cova, irmão! Sumiu por quê?

— Oi, Tony, também estou sentindo falta de vocês. O que está pegando é o Seio. Ele entrou numa terrível depressão, nunca vi o cara tão mal assim. Terminou com a namorada. Não queremos deixá-lo sozinho nessa fase. Você sabe que ele é muito frágil, né? Na república sempre fica alguém com ele.

Tony prometeu passar na Óculos para visitá-los. Despediram-se e o rapaz voltou apressadamente ao CAASO, sentando-se junto aos demais candidatos para ouvir o esperado resultado do processo.

Digão, após suspense desnecessário, comunicou a deliberação. Para alegria de Tony, ele foi aprovado e começaria a trabalhar nas próximas semanas. Pegou o material didático e discutiu alguns detalhes burocráticos.

Digão era muito engraçado. Quando aconteciam problemas na escola, repetia as gírias que se tornariam rotina na convivência que desenvolveriam:

— Pois é, no início de sua aula comentei com um professor: credo rapaz, fodeu a bicicleta, acho que o Tony se ferrou. Mas sua sacada foi genial. Professor aqui é assim mesmo, tudo louco, você pegou o espírito da coisa. A escola do CAASO é assim: se cercar vira

269

hospício. Se colocar uma lona, vira circo. E se acender uma luz colorida, vira zona. Falei?

Tony gargalhou, gostou dele logo de cara. Além de muito simpático e espirituoso, o “japa” possuía competência insuperável para formar novos professores.

270

AVANÇOS E RECUOS

A greve continuava a todo vapor e o impasse político era cada vez maior. Após dois meses de posse, o interventor permanecia isolado, sem condições de administrar, na reitoria bloqueada pela comunidade.

Durante sua curta gestão, não dialogou ou sequer negociou para atenuar resistências. Procurou impor autoridade com ameaças repressivas, como a de suspender os salários de docentes e funcionários, enquanto o movimento perdurasse.

A resposta das entidades foi incisiva. Na hipótese de efetivação da medida, a mobilização se radicalizaria. Os salários atrasaram dez dias, mas a manobra não afetou a greve. O MEC recuou e efetuou os pagamentos.

O interventor desmoralizou-se como um boneco de ventríloquo, mero transmissor das ordens do MEC. Com o recuo do Ministério, o ônus político caiu em seu colo.

O país vivia um período importante. Setores da imprensa, com maior liberdade, apoiavam os movimentos sociais. Várias categorias entraram em greve contra a carestia.

A ditadura foi sendo pressionada pelas Diretas Já, movimento que a cada dia ganhava maior adesão

271

popular. O regime, acuado, oscilava entre medidas repressivas e populistas para se fortalecer junto à opinião pública.

Esse contexto favoreceu o desenrolar dos acontecimentos na UFSCar. O interventor, não suportando sua incômoda situação, renunciou ao cargo. A comunidade vencera a primeira batalha.

Mas a transição do processo sucessório ainda permanecia em aberto. O MEC pediu trégua para negociar, desde que a greve fosse interrompida. Convocou-se uma nova Assembleia Universitária.

O comparecimento dos estudantes foi massivo. Dividiram-se entre duas posições antagônicas. Um grupo, capitaneado pela Convergência, defendia a manutenção da greve como única maneira de continuar a pressionar o governo. O outro, aliando-se à posição da ASUFSCar e da ADUFSCar, acreditava que a greve deveria acabar, para que fosse reaberto o diálogo com o MEC.

Naquele clima de divergência, uma tese não poderia vencer sem causar o “racha” do movimento. Tarefero e Calango sugeriram uma alternativa para manter a unidade. Tarefero a expôs:

— Companheiros, nesse momento a divisão será a nossa derrota! Contudo, pensamos numa alternativa conciliatória para manter a mobilização coesa.

A assembleia começara há mais de três horas e as pessoas estavam impacientes. O grupo aliado à

272

Convergência vaiou e hostilizou Tarefero, chamando-o de “conciliador” e “etapista”. Após o breve tumulto, Heleno restabeleceu a ordem:

— Companheiros, o estresse e o cansaço estão nos dominando. Mas, por favor, vamos garantir a ordem e o direito à palavra. Se não conseguirmos manter as regras de nossa democracia, já estamos derrotados!

Calango pode finalmente falar:

— A alternativa para referendar as duas teses discutidas é a instalação do “estado de greve”, mantendo ativas as comissões do movimento, no reinício das aulas. Assim, além de abrirmos o canal de negociações com o MEC, vamos garantir que o “estado de greve” continuará até o final do processo sucessório.

A proposta não era inédita, fora adotada em alguns setores do movimento sindical, mas tinha a virtude de manter a unidade da Comunidade Universitária. Após intensa discussão, foi aprovada.

Aquela assembleia durou mais de cinco horas. Heleno, Gaio e Zé Jorge, de forma habilidosa, só encaminharam a votação final ao perceberem que o consenso seria mantido.

O retorno às aulas foi sacrificado. Disciplinas se condensaram, reposições de aulas foram marcadas à noite e aos sábados, os cursos mantiveram-se até o final de julho.

273

Como antes de renunciar, o interventor ameaçou os estudantes de não validar os créditos naquele período, era questão de honra para a comunidade terminar o semestre com as atividades acadêmicas cumpridas.

274

SEIO

Os dias passavam rapidamente. Tony, além de se dedicar à greve, andava com apostilas e livros para preparar as aulas que daria durante a semana. A correria suavizava a ausência de Anne.

Conseguiu praticar exercícios físicos com frequência. Nadava na piscina da Universidade e corria na pista da Saúde. Também fazia o que mais gostava, jogar basquete na quadra do ginasião.

Enquanto as cartas de Anne chegavam com regularidade impressionante, Tony tentava respondê-las com a mesma disciplina, mas não conseguia. Quando ela reclamava do descuido, ele escrevia as linhas mais belas de amor que conseguia.

Anne estava bem em Campinas, alojara-se numa república de amigas e o estágio superou suas expectativas. Um médico a convidou para trabalhar, depois de formada, em importante hospital da cidade. Também começou a conhecer a noite campineira e gostou dos barzinhos “do setor”.

Tudo acontecera no final da tarde de sábado, sem maiores explicações.

275

Na véspera, Seio decidiu visitar a mãe, que era separada do marido. Capiau e Tavinho incentivaram a viagem, achando que ela o confortaria.

Antes da viagem, fez questão de conversar com todos na república. Muito alegre e comunicativo, agradecia a preocupação dos amigos com ele.

Tavinho e Grão ficaram em São Carlos naquele final de semana e, como de costume, passaram a tarde de sábado jogando sinuca no DCE.

Só depois do fato consumado ficaram sabendo detalhes do ocorrido naquela manhã. De mala arrumada, Seio não foi à rodoviária, mas a Federal, onde visitou os laboratórios da Fisioterapia. Saudou efusivamente a todos que encontrou. Agradeceu a cada um pela chance de tê-los conhecido e convivido com ele.

Ninguém percebeu nada anormal, o rapaz sempre fora muito afetivo. Um funcionário o avistou nas margens do lago fazendo oferenda de flores. Depois, caminhando no parque ecológico.

Os próximos passos de Seio foram calculados meticulosamente numa programação definida dias antes. Voltou à república no horário de lazer dos amigos. Após entrar, constatou que estava sozinho. Dirigiu-se ao quarto e retirou da mala a mensagem deixada em cima da escrivaninha.

Pegou a faixa vermelha de karatê e a amarrou fortemente, já em pé sobre a cadeira, na viga de madeira do teto. Fez o laço reforçado e o colocou no pescoço.

276

Levantou a perna esquerda e chutou a cadeira para longe…

Duas horas depois, Tavinho e Grão chegaram à república e encontraram a porta aberta. Quando entraram no quarto de Seio, viram a cena pavorosa. O corpo inerte do rapaz pendia pendurado pela faixa.

Só depois da presença dos bombeiros e da polícia, Tavinho encontrou a última mensagem de Seio:

— Adeus, amigos. Não se preocupem comigo, estarei bem. Desculpem ter escolhido esse local, foi o único lar que tive na vida.

277

VIOLÊNCIA E INTIMIDAÇÃO

Anne retornou para cursar disciplinas do penúltimo semestre de graduação. Ela conciliou o estágio em Campinas com o curso da UFSCar, o que significava ficar metade da semana em cada cidade. O reencontro do casal foi intenso, embora parecesse ter sido quebrada alguma coisa. Talvez tenham criado defesas contra a dor maior que aconteceria no final do ano.

Quando as coisas vão mal é comum haver divergência sobre fatores externos, em vez de discussão dos aspectos espinhosos do relacionamento. Anne implicou com as amigas de Tony, fazendo cenas de ciúmes contínuas. O rapaz também estava inseguro, ela poderia encontrar um novo amor em Campinas. Quando as explosões dela aconteciam, por falta de paciência, ele se recusava a dar explicações.

Além disso, Tony criticava os amigos dela, sobretudo os da Convergência. Passaram então a discutir política ferozmente, acentuando as diferenças de suas posições. Acabara a sábia separação entre as “pessoas físicas” e “jurídicas”.

Um dia, bateram boca a respeito da mobilização da Federal.

278

— Tony, eu pensei que você fosse mais esclarecido. Como pode apoiar esse estado de greve? Isso é palhaçada! Greve é igual a gravidez, ou a pessoa está grávida ou não. Essa proposta vai destruir o movimento.

— Esta avaliação é desfocada da realidade. Esse seu partido não muda, fica com briguinhas de seitas. A proposta de vocês foi derrotada em assembleia. Os iluminados não aceitam divergências, só “Convergência”…

— Assembleia de pequenos burgueses! Vocês cederam ao recuo da ADUFSCar e ASUFSCar, entidades mais interessadas em garantir as migalhas dos salários do que em se engajar num processo revolucionário com a vanguarda estudantil!

— Anne, acorda, que processo revolucionário? Que vanguarda estudantil? Por que você não larga o estágio? É fácil falar dos outros. Apenas quatro pessoas produzem a linha política do jornal Alicerce. Como você pode estar tão cega e continuar a seguir como boi essa seita burocrática e antidemocrática?

As discussões demoravam horas e não levavam a lugar nenhum. Feriam-se para desabafar a angústia da separação que não tardaria a ocorrer. Queriam ser livres novamente, mas não conseguiam.

O “estado de greve” permaneceu até o final do semestre. Após a trégua proposta pelo MEC, a questão foi protelada.

No plano nacional, os comícios das Diretas Já demonstraram força. Realizaram-se grandes

279

manifestações em Goiânia, Curitiba e São Paulo. Por outro lado, a crise econômica aprofundou-se, com índice inflacionário galopante, arrocho salarial e forte recessão.

Políticos tradicionais da posição articularam bloco dissidente do governo. O general Figueiredo afirmou que as manifestações eram “subversivas” e que tomaria medidas para acabar com a baderna. Talvez o rancor daquele general, que exercera o comando do Sistema Nacional de Informação (SNI), fosse explicado porque agora estava de mãos atadas.

Contudo, a raiva do presidente veio à tona na sucessão da UFSCar. O MEC aguardou a chegada do recesso da Universidade para rejeitar a proposta da Comunidade Acadêmica.

Para superar a situação “anárquica” pela qual a instituição passava, um novo interventor foi indicado ao cargo de reitor, a fim de preservar “condições mínimas para o funcionamento da Universidade”, “dominada pela paralisia resultante dos movimentos subversivos” Isso, segundo aquela alegação, poderia implicar na “ocupação militar do campus” para o restabelecimento da “ordem”.

O regime voltara a sua antiga forma de agir. Uma ala de militares assistia seu poder ser questionado no cenário nacional, podendo testar na UFSCar a eficácia do retorno a práticas costumeiras de lidar com os impasses: a violência e a intimidação.

280

PILARES

Preocupado com a saúde da mãe, que se agravara, Tony angustiou-se ao constatar que os seus pilares afetivos começavam a ruir.

Aquele seria o último semestre de Anne em São Carlos e o tempo passava como sentença de dor com hora marcada. A relação voltou a ficar suave, serena, sem as mazelas de antes. Optaram pela atitude mais sábia, aproveitar intensamente seus últimos meses de contato permanente.

Como um presságio lúgubre, o aquário de Anne ficou contaminado, provocando a morte de Afrodite. Agora Dionísio nadava sozinho. Anne recusou-se a colocar outro peixe no ambiente.

Após um mês de reinício do semestre, Dona Gertrudes foi para São Paulo realizar uma cirurgia de emergência, após a qual, Tony, junto à família, ouviu apreensivo, as palavras do médico:

— Transcorreu tudo bem. O problema é que os “bichinhos” no corpo dela continuam muito fortes. Vamos fazer o possível para controlá-los.

Os “bichinhos” eram bactérias agressivas que provocaram grave infecção na paciente. Quando acordou da anestesia, Dona Gertrudes começou a chorar de

281

dor. Tony entrou no quarto e, ao vê-la, ela enxugou as lágrimas e abriu um doce sorriso:

— Senta aqui, meu filho, me dê sua mão.

O prolongado abraço foi desfeito quando Tony afastou-se para as enfermeiras trabalharem. Não houve despedidas, levaram-na inconsciente ao Centro de Terapia Intensiva.

Naquela madrugada o coração de dona Gertrudes parou de bater. No velório Tony observou, com os olhos úmidos, o semblante sem vida da mãe. Mas o que permaneceu foi o sorriso amoroso dela, que o impregnou como imagem definitiva.

Ela foi generosa até os últimos suspiros. Encantou todo o corpo clínico que a atendeu. Faxineiras, atendentes, enfermeiras e médicos, agora também choravam na sala fúnebre do hospital.

Após alguns dias, Tony retornou a São Carlos. Numa noite, em seu quarto na Cova, contou os acontecimentos para Anne. Dona Maria, a senhora que lavava as roupas do rapaz, chegou para entregar peças limpas a ele.

Anne ouviu pela janela do quarto o diálogo na varanda:

— Tony, eu sinto tanto pela sua mãe. Gosto de você como um filho. Fique em paz e aceite a partida dela.

— Obrigado, Dona Maria. Depois de tanto sofrimento tenho certeza que ela está melhor agora. Hoje vai ter festa no céu pra comemorar a sua chegada.

282

— Ê menino, é isso aí! Tenha fé que tudo entra de novo nos eixos.

— Posso te pedir a benção, Dona Maria?

Tony refletiu sobre os alicerces de sua vida, agora que um pilar importante se rompera. Sentia-se sem guarita para prosseguir, mas grato pelo exemplo da mãe, a força do amor que não cessa com a morte.

Quando retornou, Anne, com carinho, ofereceu conforto. Sentiu-se pleno com sua Afrodite, aquele pilar que também logo desabaria.

283

FORA FERRI

A temperatura política da Universidade recrudesceu com fortes turbulências. O novo interventor escolhido pelo general Figueiredo chamava-se Ferri e foi recebido de modo hostil pela comunidade. Em qualquer aparição pública dele, organizavam-se manifestações com estudantes aos gritos de:

— Fora Ferri… Fora Ferri… Fora Ferri…

O governo preparou medidas repressivas para impor o interventor sem maiores resistências. Decretou que, na hipótese de o movimento grevista recomeçar, seriam canceladas as atividades acadêmicas do semestre.

Ferri alterou a composição e a paridade do Conselho Universitário, extinguindo a representação estudantil. Assim, o colegiado deveria respaldar sem questionamentos as medidas administrativas e políticas da reitoria.

O órgão recebeu exóticas atribuições, como julgar “excessos” cometidos por professores, funcionários e estudantes. Seus membros adquiriram poderes para jubilar, perseguir, demitir e cortar o salário de quem ameaçasse a nova gestão. Nesse arcabouço repressivo, o “reitor” poderia inclusive mobilizar o Exército para garantir a “ordem”.

284

A reação ao “pacote autoritário” não tardou a se manifestar. As entidades reativaram algumas formas de luta. O estado de greve continuou vigente, com as comissões de mobilização. Na Assembleia Universitária, Zé Jorge avaliou:

— Companheiros, corre o boato de que os funcionários não vão aderir às mobilizações. Isto é mentira! Eles os estão pressionando com ameaças de demissões e corte de salários. Porém, a categoria decidiu por consenso resistir à intervenção. Manteremos a unidade de nossa reivindicação: Fora Ferri!

Heleno esclareceu a posição da ADUFSCar:

— Apesar das ameaças, sabemos que a luta tem que continuar. Venceremos ao nos mantermos unidos, numa atitude coletiva e serena de desobediência civil. Não reconheceremos nenhuma medida que saia da mesa do Ferri. Assim ele cairá, é só questão de tempo.

Para selar o pacto, Gaio exemplificou as medidas tomadas:

— Estamos organizando manifestações internas e externas. Contatamos a imprensa, diversos parlamentares e entidades para apoiar a nossa causa. O país está mudando e juntos vamos vencer a ditadura. Pela posse imediata do reitor eleito por nós!

Foi um período curioso, de fato, a comunidade recusou-se a respaldar qualquer medida tomada por Ferri, embora as atividades pedagógicas e científicas prosseguissem normalmente.

285

Naquele ano, tomaram posse os governadores eleitos e a oposição ocupou importantes espaços políticos. O país atravessava (uma) grave crise econômica. A dívida externa atingiu US$ 100 bilhões e a inflação 150% ao ano. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) organizou greve geral inédita.

Estava acontecendo um grave descompasso. Enquanto a sociedade avançava para a democracia, a UFSCAR experimentava o retrocesso.

286

AMÍLCAR

O semestre continuou nesse compasso por alguns meses. As manifestações, passeatas, informes à imprensa, assembleias de avaliação, passaram a fazer parte do cotidiano.

Ferri, alvo de manifestações relâmpago a cada aparição, foi se tornando figura cada vez mais rara. No saguão da reitoria, Tony, com o punho cerrado, gritava junto com os colegas:

— Fora Ferri… Fora Ferri… Fora Ferri…

Aproximou-se do interventor, enquanto este atravessava o “corredor polonês” dos manifestantes. Sem querer, esbarrou no pé dele, que era muito baixinho. O estudante foi encarado com ódio:

— Venha, esbarre de novo que eu assino imediatamente sua expulsão da Universidade.

Tony recuou, mas permaneceu com os punhos cerrados, gritando até a saída do interventor, que discutiu com o Conselho Universitário a adoção de medidas punitivas aos líderes do movimento. Faltando pouco para o final do semestre, as tais medidas aconteceram.

O salário de alguns funcionários pertencentes à ASUFSCar, incluindo-se Zé Jorge, foi cancelado, devido à “agitação” que promoveram no horário de trabalho.

287

Professores “engajados” tiveram promoções postergadas, sem explicações do Conselho. Alguns deles sofreram “multa salarial”. A ata da reunião do Conselho informou ainda sobre a demissão dos envolvidos, caso insistissem na mesma conduta.

O semestre não seria prorrogado em um dia sequer. Assim, paralisações para assembleias e outras manifestações poderiam fazê-los perder os créditos cursados.

Entre os docentes punidos destacava-se um combativo casal, Amílcar e Margarida. Karl tinha contato próximo com ambos, pois Amílcar era orientador do seu estágio.

Karl contou a Tony sobre a corajosa trajetória daquele professor, que conhecera numa noite enluarada, após o término dos trabalhos no laboratório, quando foi convidado para ir à chácara do mestre.

Na varanda da casa, degustou o ótimo vinho e ouviu histórias. Amílcar trabalhou no Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), de onde nasceu seu interesse pela estatística como instrumento para denunciar as desigualdades sociais do país.

Ainda jovem, vinculado a USP, o recém-formado sociólogo tornou-se um dos mais importantes intelectuais do movimento sindical, entre outras medidas porque o DIEESE publicava indicadores econômicos que se contrapunham aos “oficiais”.

288

Amílcar também foi vítima da repressão. Assistiu seus companheiros serem presos, torturados ou mortos. Quando sua prisão foi decretada, fugiu para a França, que lhe concedeu asilo político.

Durante a fuga, aterrissou no Chile, onde permaneceu incógnito alguns dias no país; depois embarcou para Lisboa e finalmente chegou de trem a Paris. Ao longo do exílio, trabalhou em duas universidades europeias. A academia francesa soube aproveitar sua brilhante produção.

Em seu relato, Amílcar enfatizou a solidariedade dos exilados, que nunca perderam a esperança de que a democracia retornaria ao Brasil, acompanhando com avidez a lenta abertura política do regime militar.

Com a Anistia, embora Amílcar pudesse ter ficado em Paris, gozando de excelente situação financeira, decidiu retornar, para reconstruir aqui sua vida. Desejava como nunca trabalhar para mudar a realidade brasileira.

Foi convidado para assumir uma cadeira na UFSCar, que o recebeu com grande carinho. Voltou a direcionar suas pesquisas para os movimentos sociais. Elas serviram como fonte de informações ao DIEESE, onde seus contatos foram restabelecidos.

Amílcar era agora mais uma vez perseguido por suas convicções políticas. Porém, o arbítrio, em vez de intimidar os “guardiões” do campus, serviu como fermento que impulsionaria a radical reação no semestre seguinte.

289

ADEUS AO CANÁRIO

Anne concluiu o estágio, dividida entre Campinas e São Carlos. Formou-se também na Federal, após seis anos de curso. Atribuía os anos extras de graduação à militância política e outras descobertas inadiáveis. Transferiu a maior parte de seus pertences para Campinas, a despedida aproximava-se.

Iniciou o lento e difícil processo de abstinência da Federal, um estado melancólico que atingia os estudantes recém-formados. Os anos de Universidade, muito marcantes, imprimiram marcas profundas neles.

Alguns descartavam fotografias e cartas, tudo o que dissesse respeito a UFSCar, a fim de esquecerem aquele passado feliz e encararem novas opções de vida. Anne precisou desse tempo para se recompor e iniciar sua trajetória profissional.

Outros estudantes, Paco, Araceli, Canário, Kin, Tarefero, Ovário, Faroeste, João Drugue, Lona e Serafim, deixaram a Universidade, o ciclo completara-se, a geração antiga abrindo passagem para a nova, que agora precisaria construir sua história.

Anne não conseguiu despedir-se de Tony. Escreveu-lhe uma carta, deixando em aberto o futuro para eles. O rapaz, emocionado, entendeu que

290

essa era a melhor forma de dizer adeus. Qualquer diálogo teria significado menor diante da grandeza do relacionamento.

A única Afrodite de sua vida foi embora. Ele ficou com o coração aos pedaços, sentindo-se amputado. Nesses momentos de fragilidade, lembrava-se do exemplo de Dona Gertrudes e “segurava a peteca” da melhor forma possível.

Gaio também concluiu a graduação naquele ano. O grande líder, que não gostava de ser reconhecido assim, deixou de representar o DCE e ingressou na pós-graduação da UFSCar. Passou a atuar na APG e continuou a exercer sua militância ambiental.

Em seu período de mestrado, Gaio apoiou e orientou os novos membros do DCE. Era uma mina de experiência e solidariedade, à qual os estudantes podiam recorrer sempre que preciso. Prosseguiu com seus métodos de ação direta, propondo formas de lutas criativas para enfrentar os impasses políticos.

Um dia, foi ao Banco do Brasil da Universidade para receber a primeira mensalidade da bolsa de mestrado, atrasada há mais de quinze dias. O caixa informou que o pagamento ainda não fora depositado e que teria que aguardar.

Gaio sentou-se no chão da agência e ali permaneceu até o final do expediente. Quando o segurança pediu para ele se retirar, respondeu com sua calma típica:

291

— Meu caro, estou fazendo um protesto. Minha bolsa de pesquisa está atrasada e o caixa pediu para eu esperar o depósito. É isso que vou fazer. Mas enquanto ela não sair, ficarei aguardando aqui dentro do Banco. Outra coisa, a partir de agora iniciarei greve de fome.

O manifesto solitário rendeu movimentação inédita na Universidade. Gaio permaneceu na agência sem comer nada e apenas se hidratando. O Banco programou esquema especial para recebê-lo como “hóspede”.

Durante o dia, inúmeros amigos vinham prestar-lhe solidariedade. À noite, dormia em colchonete nas dependências internas da agência. Passados três dias, o dinheiro foi depositado e o estudante fez o saque, encerrando o protesto.

Ao sair do Banco enrolado num cobertor, foi aplaudido pela multidão que aguardava o desfecho. Enquanto Gaio foi aluno da pós-graduação, nunca mais as agências de pesquisa atrasaram, sequer um dia, a bolsa dos estudantes.

Tony recordou-se de sua antológica despedida de Canário, no Café do Centro. Eles não se falavam já há algum tempo, radicalizando a relação, que sempre fora tensa. Canário estava doutrinando jovens militantes da Convergência. Após o discurso, despediu-se friamente, sem abraços, apertos de mão ou saudações. Tony observou discretamente a cena.

292

Canário afirmava que sentimentalismos eram caprichos “pequeno-burgueses”. Assim, mantinha-se coerente em sua típica postura “dura”, alheando-se de qualquer contato humano mais profundo. Subiu então pela última vez a Avenida São Carlos.

Tony correu atrás dele. Aproximou-se vagarosamente, e, temeroso, tocou em suas costas. O que viu foi algo impensável, os olhos do grande líder estavam rasos d’água. Tentou se controlar, mas os soluços pipocaram. Após alguns segundos, conseguiu falar:

— Porra, o que você quer, Tony? Não vê que estou com pressa pra ir embora? Agora vou militar no movimento sindical.

Tony ficou perplexo e pensou em voltar ao bar sem dizer nada. Afinal, aquele cara sempre tinha sido uma pedra no seu sapato, sujeito arrogante, que não merecia qualquer consideração.

Mas o primeiro impulso passou. Percebeu que aprendera muito com ele. Lembrou-se do discurso que ouvira no RU em seu primeiro dia de Universidade. Foi ele quem o fez!

Amoleceu e emocionou-se. Decidido, fez a última tentativa de aproximação:

— Canário, eu sei que você não gosta de mim, mas não poderia deixá-lo partir sem te agradecer por tudo. Aprendi muito com você, um grande líder para todos nós.

293

Canário começou a chorar copiosamente. Apesar de tentar reprimir o sentimento, estava pesaroso e triste por abandonar São Carlos.

Tony arriscou-se ao propor:

— Posso te dar um abraço de despedida?

Abraçaram-se fortemente por alguns segundos. Canário controlou suas emoções e readquiriu a expressão rígida de sempre. Então, balbuciou com firmeza:

— Até a vitória, companheiro Tony.

— Até a vitória, companheiro Canário.

Retomaram seus caminhos com mais leveza e paz no coração e nunca mais se viram.

294

O PÔR DO SOL É DE QUEM O VÊ

A renovação marcou o início de semestre da UFSCar. Uma nova e empolgada geração de estudantes sucedeu a anterior. Ocorreria em breve eleição para a diretoria do DCE. As previsões feitas por Profeta pareciam prestes a se confirmar:

— Está chegando a hora de nossa turma representar-se pra valer… O ano que vem, levamos a diretoria do DCE pra onde quisermos.

O pessoal da Cova e da Óculos Escuros formou uma chapa independente, ao estilo da Rosa. Conseguiram apoio de muitos bichos e outros estudantes de diversos cursos. Tony batizou a chapa com a imagem do campus de que mais gostava “O pôr do sol é de quem o vê”.

Calango, sem o apoio de Tarefero, montou sua chapa com poucos membros. Praticamente todo o comitê central da Convergência saíra da Universidade, restando a Carioca e Zé Colméia a tarefa de reconstruir o partido. Por isso, essa foi uma das chapas mais fracas da história deles…

A gestão da Rosa, bem aceita pelos estudantes, identificava-se com os independentes do Pôr do Sol. Daí, a eleição ter sido “barbada” e a chapa de Tony eleita com expressiva votação.

295

Como grandes quadros tinham saído do ME e, a Universidade continuava sob intervenção, Tony sentiu o peso da responsabilidade. Para não fraquejar, recorria à imagem corajosa de Dona Gertrudes.

A política nacional atravessava um período decisivo. As Diretas Já ganharam impulso. Os governadores de oposição aliaram-se ao bloco de dissidentes governistas. Em sintonia com o clamor popular, lutaram pela aprovação da emenda Dante de Oliveira.

Nos quatro meses que antecederam à votação, aconteceram grandes comícios. O realizado no Rio de Janeiro foi histórico. Na cerimônia final, políticos e artistas, de mãos dadas, cantaram o Hino Nacional, puxado por Fafá de Belém, a “musa” das diretas.

O locutor Osmar Santos comandou o palanque, arrancando entusiasmados coros da multidão:

— Alô, Rio: diretas quando?

— Já! Gritou a multidão.

— Vocês querem indiretas? Perguntou o locutor.

— Não! Responderam em uníssono mais de 500 mil pessoas.

Sobral Pinto, que fora advogado de Luiz Carlos Prestes, aos 90 anos de idade, pronunciou emocionado discurso:

— Este movimento não é contra ninguém. Este movimento é a favor do povo… Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.

296

Aquele comício foi a maior manifestação cívica da história do Rio de Janeiro; de forma ordeira e pacífica, a imensa multidão exerceu seu direito à cidadania, como aconteceu, com grande sucesso, em Goiânia e Porto Alegre. A campanha terminou na cidade de São Paulo, precedendo a votação da emenda Dante de Oliveira.

Neste comício, no Vale do Anhangabaú, estavam muitos estudantes da UFSCar. A campanha recebeu apoio maciço do público, formado por mais de 1,5 milhão de pessoas.

O presidente Figueiredo, temendo “problemas”, adotou medidas de emergência em Brasília. Impediu a imprensa de divulgar informações ao vivo do Congresso Nacional. Tropas do general Newton Cruz reprimiram manifestações populares na Esplanada dos Ministérios.

Apesar de expressivo apoio popular, a emenda foi rejeitada na Câmara dos Deputados. Treze deputados acataram decisão do PDS e não compareceram à sessão. Estava enterrada a causa de uma mobilização política jamais vista no país.

Na UFSCar, a comunidade avaliou as medidas repressivas de Ferri. A ASUFSCar e a ADUFSCar estavam impotentes pela ameaça de demissão de funcionários e docentes envolvidos na luta.

As entidades do campus cotizaram-se para pagar os salários das pessoas punidas. A maioria dos docentes, incluindo-se Amílcar e Margarida, não aceitou o

297

pagamento e enviou os recursos ao movimento anti-intervenção.

O DCE convocou assembleia estudantil para discutir o “Pacote de maldades do Ferri”.

298

INVASÃO

Enquanto docentes e funcionários estavam impedidos de se exporem, essa pressão não afetava os estudantes, que, motivados pelas Diretas Já, iniciaram o ano com grande disposição de luta.

Em assembleia, discutiram como reagir vigorosamente contra a intervenção. Zé Colmeia expressou essa necessidade:

— Companheiros, como agora a única categoria capaz de reagir contra a intervenção somos nós, devemos propor uma nova greve, para impedir o Conselho Universitário de nos ameaçar com jubilamento. Vamos responder às ameaças com mobilização. Greve já! Fora Ferri! Pela imediata posse do reitor eleito!

A nova geração de estudantes começou a demonstrar seu valor, a greve foi praticamente definida por seus representantes. Nesse momento, a aguda percepção de Profeta fez surgir uma alternativa viável para a radicalização do movimento:

— Pessoal, para avançarmos além da greve, proponho a invasão da reitoria, comprometendo a administração do interventor. O vácuo de gestão produzirá crise sem precedentes. Das duas, uma: ou eles nos expulsam de lá, ou a ocupação provocará a queda de Ferri!

299

A proposta foi aclamada por consenso. Profeta surpreendeu até mesmo os militantes mais radicais da Convergência, que aderiram a sua combativa sugestão.

Foi eleito o “comando de mobilização” composto por Tony, Mel, Zé Colmeia, Calango, Carioca, Karl e Grão. Para centralizar as providências práticas do movimento, organizaram-se várias comissões.

A reitoria da UFSCar localizava-se num grande prédio térreo. Grossos portais de vidros blindex davam acesso ao amplo salão perpassado por vigas circulares de concreto. Do saguão, portas de madeira levavam a corredores labirínticos; nos quais ficavam as salas administrativas.

Na lateral esquerda do prédio havia um luxuoso anfiteatro. Nos fundos, a pequena cozinha e muitos banheiros distribuíam-se difusamente.

Naquele final de tarde, centenas de estudantes, carregando colchões, roupas e outros apetrechos, entraram e ocuparam o saguão da reitoria. O DCE divulgou oficialmente a invasão e esclareceu que se manteria por tempo indeterminado, até suas reivindicações serem atendidas.

Exigiam principalmente a imediata destituição do interventor e a posse do reitor eleito pela Comunidade. Durante a invasão, funcionários e gestores não teriam acesso ao local.

Não houve resistência à ocupação, o interventor não estava lá. Na saída dos funcionários do prédio, Tony

300

pegou o grande molho de chaves que permitiria “passe livre” a todas as dependências da reitoria.

As comissões iniciaram seus trabalhos. Karl teve a sensibilidade de conversar com Jaspion, o estudante chinês morador da Óculos Escuros:

— Lembra-se que você disse que quando chegasse à hora seria um bom soldado? O momento é agora, estamos precisando muito.

Jaspion responsabilizou-se pela comissão de segurança. Os estudantes temiam que a reitoria fosse desocupa à força por tropas do Exército. Qualquer pessoa à serviço da repressão poderia “plantar” também equipamentos de escuta, bombas ou outros objetos no prédio. Tornava-se necessário, portanto, garantir a segurança do local, escalonando rondas externas e internas.

Outra preocupação era preservar o patrimônio da reitoria. Mel e Potrinho fizeram a relação completa do mobiliário. Se qualquer objeto fosse subtraído de lá, o fato seria utilizado como argumento para desmoralizar os estudantes.

Jaspion, faixa preta de karatê, radicalizou o cumprimento da missão, apoderando-se da chave de entrada da reitoria. Com seu semblante rígido e determinado, revistava a todos que entravam e saíam do local, mesmo se tratando dos próprios colegas invasores.

301

Passava todas as noites em claro, rondava de forma ininterrupta o espaço até o amanhecer. Convocou meia dúzia de “seguranças” para auxiliar suas rondas e só permitia o relato de qualquer movimento suspeito exclusivamente a ele.

As rodas de jogo, os “fumódromos”, os enlaces de amor entre namorados, as sessões musicais… nenhum local escapava à vigilância atenta de Jaspion. Com o tempo o oriental virou figura folclórica do movimento. Todos alimentavam seu sonho de mocinho e bandido, divertindo-se com a situação. Passou a ter outro apelido, o de “Comandante em Chefe”.

Como aquele batalhão de pessoas passou a morar no local, foi preciso organizar a limpeza e o uso racional dos banheiros. Os estudantes, em esquema de rodízio, davam conta da ingrata tarefa.

Mas o maior desafio foi descobrir o que fazer para alimentar aquela gente toda. O jeito era invadir o RU e as lanchonetes da Universidade, com o consentimento informal de funcionários solidários ao movimento. Formaram-se, então equipes de estudantes que preparavam os desjejuns e as refeições na lanchonete e no RU.

Bem de manhãzinha, um pouco antes de o sol nascer, lá iam eles para a lanchonete. Cortavam montanhas de pães e passavam margarina, faziam baldes de café e esquentavam outros com leite. Depois o café-da-manhã coletivo era degustado com grande alegria por todos.

302

Muitas refeições foram preparadas no RU, grandes macarronadas com salsicha saíram de lá para a invasão, após o término do expediente dos funcionários.

O comando de mobilização ficou preocupado com a sobrecarga dos responsáveis pela comida. Como um relógio, todos os dias as mesmas pessoas cozinhavam. O “time titular” era formado por Karl, Cidoca, Marilin, Gurgel, Celi, Paulinho, Serjão Ruivo, Iracema, Capiau, Amarílis, Capi e Virgínia.

Tony foi conversar com Karl, a fim de tentar “aliviar” o trabalho extenuante do grupo. Ouviu do amigo a explicação:

— Ora, Tony, só você ainda não percebeu? Todo mundo quer fazer parte dessa comissão. Lá no RU vira festa! Alguém corta um queijinho e serve, outro abre a lata de sorvete… E assim vamos nós.

O simpático casal Margarida e Amílcar sempre aparecia para prestar apoio e solidariedade. Ofereciam aos estudantes caldeirões de comida e sacos de frutas da chácara onde moravam. Sentavam e conversavam sobre a importância daquele movimento para o futuro da Universidade.

Também organizaram-se manifestações externas. A grande passeata no centro da cidade interrompeu o fluxo da Avenida São Carlos.

Portando faixas com o slogan “Fora Ferri”, entre cantos e palavras de ordem, os estudantes entregavam panfletos à população e aproveitavam a parada dos

303

carros, a fim de fizer pedágio para o “fundo de greve”. As meninas mais bonitas conseguiram arrecadar maiores recursos.

A comissão financeira organizava bingos, rifas, pedágios, bônus de greve e shows para arrecadar verba que seria utilizada no movimento, além de administrar o dinheiro empregado na mobilização.

Como exemplo de entrega aos ideais da luta, Iracema e Celi, duas grandes amigas de Tony, participaram de um Congresso em Botucatu, onde venderam muitos bônus de greve. Todo o dinheiro arrecadado foi entregue à comissão financeira.

304

ITAMAR

Aconteciam situações inusitadas naquele espaço coletivo. Capi e sua amiga Paulinha, depois de prolongado confinamento na reitoria, foram assistir ao show de Itamar Assumpção. Ninguém sabia se eram de fato um casal. As pessoas mais curiosas, diziam que mantinham uma “amizade colorida”.

Quando o show acabou, Paulinha convidou Capi para acompanhá-la ao camarim do admirável compositor e cantor, por muitos carimbado de “maldito”. Conseguiram falar com ele e fumaram juntos o respeitável baseado da lata. O papo rendeu, e, conversaram sobre vários assuntos, quando se despediram para voltar à reitoria.

Itamar quis saber mais sobre a invasão. Após ouvir todos os detalhes, comentou:

— Sabe, eu nunca estive em um lugar assim. Deve ser interessante...

Capi, aproveitando o momento oportuno, fez o convite:

— Por que não vamos prá lá, então? Neste horário o pessoal já acendeu a fogueira nas margens do lago.

— Fogueira? No lago? Já tô lá… Disse o artista.

Durante a invasão da reitoria, criou-se um hábito noturno prazeroso. Alguns estudantes desciam ao

305

lago e acendiam a grande fogueira à luz das estrelas. Sentavam-se em volta dela e ficavam conversando, fumando a erva da lata e tomando pinga e vinho dos garrafões que circulavam de mão em mão. Sempre havia alguém tocando violão nessas rodas, Mário Japa, acompanhado por Fóssil, cantou a canção:

…Gererê, gererê, e LSD… Gererê, gererê, e LSD…

Maconha no almoço, maconha no jantar.

Maconha tá virando produto alimentar… Gererê, gererê, e LSD… Gererê, gererê, e LSD…

Certa noite, apagaram a fogueira para assistir ao belo eclipse lunar. Aos poucos a lua foi encoberta pela sombra que “comeu” o satélite natural da terra, até ele desaparecer na escuridão. Karl comentou com Tony:

— Estou como a lua, depois que a Nancy partiu da Universidade. A luz em mim também se apagou.

Tony sentia o mesmo em relação a Anne. Tentando convencer a si mesmo, buscou consolar o amigo:

— Observe, agora a luz está voltando lentamente até atingir a claridade total. É isso o que vai acontecer com você. — diferentes da lua, Tony e Karl permaneceram naquela noite no escuro.

Itamar Assumpção chegou de táxi à reitoria junto com Capi e Paulinha. Jaspion criou confusão para deixar o músico entrar, mas ele conversou rapidamente com algumas pessoas e logo pediu:

— Capi, aqui tá muito claro. E a fogueira lá do lago, já tá rolando?

306

Pouco depois, sentado na roda iluminada pela bela lua cheia, o artista pegou o violão e cantou para os estudantes, seus maiores sucessos, surgiram como “Fico Louco”, “Parece que Bebe”, “Beijo na Boca”, “Sutil”, “Milágrimas”, “Vida de Artista”, “Dor Elegante” e “Estropício”.

A roda só acabou com os primeiros raios do sol da manhã. O músico, ao se despedir, disse a Capi:

— Curti essa invasão. Se for sempre assim, podem contar comigo outras vezes.

A notícia espalhou-se. Chegaram estudantes alheios ao movimento com a intenção repentina de aderir. Aos novatos, que imaginaram a mobilização só como festa, sobrou muito trabalho. No entanto, havia também muita festa…

A moçada dormia em colchões esparramados no saguão. Ao lado da porta de vidro, foi instalado o potente sistema de som do DCE. Microfones transmitiam as falas dos oradores nas reuniões diárias de avaliação. Depois disso, o local transformava-se num salão de festas, animadas por música no último volume.

Realizavam-se também apresentações de “números” para a “plateia”, ao estilo do show das quintas. Qualquer entretenimento no show da invasão era bem-vindo. Piadas, apresentações musicais, declamação de poemas, narração de histórias, danças performáticas… Os “artistas” recebiam aplausos calorosos ou copiosas vaias, dependendo da atuação.

307

Formou-se uma curiosa “banda”, que parodiava músicas da época, com divertidas histórias da invasão. A “Banda 6733 e suas interventetes” tinha como participantes Capiau, Profeta, Tony, Tainha e Potrinho.

O interventor ficou isolado na cidade, onde foi alugado o andar inteiro da cobertura de um hotel para acomodá-lo e também ao seu staff. Como não podia entrar na reitoria, fazia os “despachos” de lá.

O Conselho Universitário informou ao campus que os salários de docentes e funcionários iriam atrasar, devido a empecilhos criados pela invasão da reitoria.

Indignados, os membros da ADUFSCar e ASUFSCar começaram a engrossar as manifestações lideradas pelos estudantes. Um dia Tony, Profeta e Zé Colmeia discutiram com Heleno e Zé Jorge os rumos do movimento.

— Não estamos entendendo por que eles ainda não apelaram à violência para desocupar a reitoria, disse Zé Colmeia.

— Nossas entidades estão em contato permanente com parlamentares, imprensa, partidos políticos, setores da Igreja e entidades de peso. Conseguimos com isso até agora blindar a repressão, esclareceu Zé Jorge.

— Eu acho que as medidas de emergência do governo pegaram muito mal junto à opinião pública. As eleições vão acontecer no Colégio Eleitoral do Congresso. Por isso, a ditadura recolheu seus cachorros e rifles. Estão na defensiva, sem mostrar os dentes para reconquistar credibilidade popular, avaliou Tony.

308

— E aí, Heleno, como vocês estão administrando o atraso dos salários, quis saber Profeta.

— A gente já esperava por isso e as entidades capitalizaram-se para enfrentar o problema. Podemos segurar a situação ainda por algum tempo. Adiantamos recursos e cestas básicas aos companheiros mais necessitados. Mas nós também vamos pro pau! Chega de recuo! Contem conosco nas próximas manifestações.

309

NÃO CORTARAM A VOZ

Docentes e funcionários em peso passaram a frequentar a reitoria por solidariedade com os estudantes, a força da unidade interna começou a se esboçar novamente.

Surpresos com o que viram os visitantes ouviam e respaldavam os discursos dos líderes, apoiavam os slogans, estampados nos cartazes e faixas, que também eram seus:

“Fora Ferri! Revogação da Lei 6733! Resistência pacífica até o fim! Pela Autonomia Universitária! Pelo

fim da Ditadura e restauração da Democracia!”

Este momento foi significativo para Tony, pois confirmou suas esperanças naquela comunidade especial. Voltou a sentir o deslumbramento que o campus exercia sobre ele. As belas paisagens com clima bucólico, o espírito de luta da militância, a força das utopias compartilhadas.

Os primeiros sinais de revide da repressão, realizados por agentes incógnitos, começaram a surgir. Inesperadamente o abastecimento de energia elétrica e de água da reitoria foi cortado. Ninguém assumiu a responsabilidade do ato.

Os estudantes iluminaram o saguão da reitoria com um mar de velas e lampiões. Voluntários deslocaram-

310

se transportando tonéis de água aos invasores. Atravessaram aquela noite com os piores presságios.

Para piorar o clima de tensão, durante a madrugada ouviram tiros disparados por três armas diferentes. Jaspion, com seu conhecimento militar enciclopédico, foi quem detectou o número delas.

Corajosamente, saiu correndo em direção aos disparos. Quando alcançou o terreno anexo à reitoria, enxergou o brilho tênue da camionete que arrancou em alta velocidade, entre cantadas de pneus.

Depois desse ato, os estudantes montaram um círculo humano ao redor do perímetro da reitoria. Várias equipes vigiaram o local até o amanhecer.

Dentro do saguão o comando de mobilização tentava acalmar as pessoas. À noite, sob a dança das sombras de velas, ouviam-se soluços dos rebelados.

Na manhã seguinte, apareceram jornalistas de rádio para divulgar as notícias. O incidente também repercutiu na imprensa escrita, como se viu pela manchete de Thaís: “Ato terrorista ameaça estudantes em greve na Federal.”

Tony e Karl registraram boletim de ocorrência na delegacia da cidade e pediram providências contra a agressão. Nenhuma viatura apareceu para investigar a denúncia. Durante o registro, o delegado, demonstrando impaciência e mau-humor, questionou os estudantes:

— Pra mim, vocês é que estão cometendo delito ao invadir as dependências de um prédio público federal.

311

Tony respondeu:

— Senhor delegado, não estamos armados. É uma manifestação pacífica e legítima. Porém, não nos responsabilizamos pelas consequências de outro ato terrorista desse tipo.

O delegado respondeu cinicamente:

— Nem eu...

Os estudantes reforçaram o esquema de vigilância da reitoria. Confirmaram que alguém das “forças ocultas” novamente tentara intimidá-los, fechando os registros de água do prédio, reabertos por Jaspion. Encontraram a fonte elétrica danificada de propósito e o curto-circuito também foi reparado.

Tomadas essas providências, aumentaram sua disposição de luta, incorporando uma nova música às manifestações:

“Cortaram luz e água E a gente não saiu

Só não cortaram a voz

Do movimento estudantil!”

Contudo, Ferri possuía prerrogativas para reprimir o movimento. Nos bastidores, consultou autoridades do Exército e solicitou medidas de força para a desocupação da reitoria.

As respostas inicialmente foram negativas, com o argumento de que não existiam “condições políticas favoráveis” à desocupação. Entretanto, o interventor, junto ao Conselho Universitário, tentou criar factoides

312

para justificar a repressão, contratando agentes para produzir falsas provas e alimentá-las.

Pessoas disfarçadas passaram a rondar a Universidade. Jaspion notou certa vez, indivíduos suspeitos circulando com máquinas fotográficas, mas garantiu que nenhum “infiltrado” entrou na reitoria.

O fato é que diariamente chegava às mãos de Ferri farta documentação sobre os estudantes rebelados. Fotografias revelavam cenas deles entrando à noite no RU, conversando na fogueira do lago, fazendo reuniões e dançando nas festas. Talvez algum estudante tenha sido cooptado pelo interventor.

Como justificativa para respaldar as medidas repressivas, Ferri informou ao Exército que os estudantes depredavam as instalações da reitoria e destruíam importantes documentos.

Uma foto de Tony e Capi selecionando documentos e outra de Zé Colmeia e Mel, arrastando móveis, foram anexadas ao ofício como “provas” da acusação. O objetivo da triagem dos documentos, registrada pela foto, era preservá-los num cofre até o final da invasão, enquanto Zé Colmeia e Mel arrastaram móveis apenas para limpar o local.

O ofício alegou, ainda, que alguns invasores estavam armados e realizaram disparos aleatórios no campus, substituíram a bandeira do Brasil, hasteada em frente à reitoria, pela comunista e confiscavam o patrimônio público, com o consumo ilegal de alimentos do RU.

313

A razão de tantas acusações infundadas é que Ferri estava sendo pressionado pelo governo, entrara num beco sem saída, impotente para agir, em função do recuo tático adotado pelas autoridades locais.

O ofício convenceu o comandante do Exército de Pirassununga, de que um bando de comunistas resistiam, armados, em prédio público, depredando, furtando e desrespeitando símbolos nacionais. Frente a essas ilegalidades, resolveu tomar providências.

Certa tarde, os estudantes interromperam o fluxo da Rodovia Washington Luís para distribuir panfletos e vender bônus de greve aos motoristas, em clima de normalidade.

No entanto, próxima à entrada da Universidade, havia uma formação militar com centenas de soldados portando escudos protetores. Era a tropa de choque do Exército de Pirassununga, que aguardava ordens para dispersar a manifestação.

O comando de mobilização percebeu as manobras e a manifestação foi interrompida. Coube a Karl e Profeta entrarem em contato com Heleno para acionar apoios externos ao movimento.

Telefonemas a parlamentares, entidades civis e partidos políticos informaram sobre a possibilidade iminente da desocupação armada da reitoria, levando ao início de longo e desgastante processo de negociação.

O comandante da tropa solicitou reunião com a liderança estudantil, na reitoria. Profeta sugeriu que o

314

encontro ocorresse duas horas depois, tentando ganhar tempo para que deputados federais e lideranças civis chegassem para auxiliar as negociações.

A tensão apoderou-se dos rebelados, ao perceberem as possíveis consequências dos acontecimentos - violência física, prisão, tortura – o que punha em xeque suas convicções.

Mas nenhum deles abandonou a reitoria.

As horas demoraram a passar, até a trégua esgotar-se. Tony, Karl, Profeta, Capi, Calango, Carioca e Mel dirigiram-se à entrada da Universidade. O Comandante, acompanhado de pequena comitiva, aproximou-se e começou a falar:

— Tenho ordem de desocupação imediata da reitoria. Porém, podemos resolver a situação de forma serena e evitar confrontos desnecessários. Proponho aos senhores uma trégua até amanhã às sete horas. Convençam seus pares a sair pacificamente do local. Finalizado este prazo, seremos obrigados a usar a força para retirá-los.

Calango, que era o estudante mais experiente, antecipou-se aos outros e respondeu:

— Senhor comandante, agradecemos a trégua concedida. No entanto, precisamos de mais tempo para discutir o assunto com nossos companheiros.

— O prazo está definido, você não me ouviu? Minha decisão foi tomada e não vou discutir mais o assunto! Bradou o comandante.

— Mas, senhor, isso é ultimato e não negociação…reclamou Mel impetuosa.

315

— É ultimato sim, perfeitamente! Não vim aqui negociar. A senhora está falando com profissionais de guerra em campanha! Minha paciência está acabando. Lembrem-se, o ato de força já poderia ter sido tomado.

Capi, percebendo o perigo, finalizou a reunião:

— Tudo bem, senhor, entendemos o recado. Podemos nos recolher agora para decidir a questão com nossos outros colegas?

Por meio do sistema de som Tony informou a situação aos colegas. O pânico instalou-se e aumentava a cada minuto. Karl fez a intervenção franca e necessária:

— Companheiros, eu sei que é difícil suportar a pressão. O clima está muito pesado. Mas já resistimos no passado a situações piores do que essa. O DCE contatou apoios externos para nos ajudarem. Se mantivermos nossa posição com serenidade, podemos vencer.

Profeta comunicou a decisão do comando de mobilização:

— O que temos por enquanto são notícias ruins. Mas outros episódios podem mudar totalmente esse quadro. Não queremos iludir ninguém, nada está definido. A posição do comando de mobilização é a de manter a invasão. Cada um aqui fica livre para tomar a atitude individual que julgar mais sensata.

Mais uma vez, nenhum estudante abandonou o local. Como a tensão precisava ser diluída, gritos ensurdecedores e palavras de ordem deixavam claro que o movimento chegara ao máximo de coesão.

316

VOLVER

A insegurança e a aflição aumentavam. A cada volta do ponteiro do grande relógio no hall da reitoria, ouviam-se suspiros na vã tentativa de dispersar a tensão. Já eram 23:00 horas e ainda nenhum auxílio externo chegara.

Tony ligou o som para amenizar a taquicardia generalizada. Potrinho tomado de euforia súbita, contou piadas engraçadas. As gargalhadas eram afetadas e nervosas.

Algumas estudantes disfarçaram as lágrimas escondendo-se no colo dos amigos. Casais procuravam salas reservadas para aliviar o momento com atos sexuais compulsivos. Jaspion e seus “soldados” permaneciam mais atentos do que nunca, rondando a vasta área da edificação.

Nesse estado de coisas, Tony, desviando sua agitação, lembrou-se de que Anne chegara àquela tarde para uma visita surpresa.

Não conseguiu dar nenhuma atenção a ela, pois, logo após encontrá-la, ocorreu algo que o envolveu totalmente: o emissário do Exército chegara para convocar a reunião.

317

Após este fato, procurou saber do paradeiro de Anne. Carioca contou que ela, após ir à cidade, retornara para dormir na reitoria e enfrentar a repressão junto de seus companheiros. Mel disse que estava tomando banho. A pergunta de Tony foi direta:

— Em qual banheiro?

O banheiro não estava trancado. Tony abriu a porta silenciosamente e entrou na atmosfera cheia de vapor circundante. Anne não percebeu a presença do rapaz, estava atrás do box cantando.

Tony despiu-se e a encontrou embaixo do chuveiro. Não disseram nada, os corpos unidos devoraram com fúria a saudade, a felicidade do reencontro, a fome absurda que tinham um do outro.

Depois do prolongado êxtase deram-se conta da realidade e voltaram ao palco de luta. Lá chegando, Tony observou a grande roda em torno de Heleno, Zé Jorge e alguns engravatados recém-chegados.

Novamente os deputados federais João Herrman Neto e José Genoino compareceram para apoiar a mobilização, acompanhados por um advogado da OAB, um jornalista da ABI e um padre que representava a Arquidiocese de São Paulo.

Os estudantes reuniram-se no anfiteatro da reitoria para informá-los sobre o andamento da negociação. O advogado da OAB opinou:

— Fiquem tranquilos, acho pouco provável eles usarem a força. Não há mais clima para isso. Estão

318

blefando para que desistam. Esses atos são realizados agora por grupos paramilitares. Nosso prédio da OAB foi vítima recentemente de incêndio terrorista.

— Concordo com o colega. Um atentado à bomba destruiu também a sede da ABI. Porém, as autoridades não conseguiram identificar os terroristas responsáveis pela agressão. Apesar disso, não são mais realizadas ações oficiais de violência contra a nossa entidade, informou o jornalista.

— Prefiro colocar as barbas de molho e só fazer prognósticos no fim desse impasse. Vamos logo montar a comissão para negociar com o chefe da tropa, propôs realisticamente João Herrman.

José Genoino salientou:

— O João está certo, cada caso é um caso. Inexistem garantias de que a repressão não irá acontecer. Independentemente do resultado da negociação, vamos permanecer de plantão na porta da reitoria. É mais difícil descerem o cacete em deputados e representantes da sociedade civil organizada.

— Podem contar comigo, disse o padre.

A comissão englobou os cinco visitantes, Heleno, Zé Jorge e Tony. Jaspion fez contato para marcar nova reunião com os militares. Chegando próximo à tropa, foi acompanhado por sentinelas até o comandante, que perguntou:

— Pois não? O que o senhor deseja?

319

— Os estudantes estão solicitando uma nova reunião com o senhor. Chegaram à reitoria parlamentares e outras autoridades que gostariam de dialogar sobre o impasse.

— Rapaz, diga a eles que não há impasse. Não voltem mais aqui ou serão detidos e transferidos para interrogatório. Vou cumprir a ordem de desocupação no final da trégua. Transmita esse recado às autoridades. É melhor saírem de lá, não impedirão que eu cumpra meu dever.

Jaspion voltou e transmitiu a ríspida mensagem. O comentário de João Herrman foi o mais engraçado, descontraindo o ambiente:

— Isso vai demorar mais do que imaginamos. Gente, que tal preparar sanduíches e um grande bule de café? Traga cinzeiro pra gente pitar. Genoino, pode tirar o paletó, não tem outra saída. Vamos comer e aguardar.

O advogado da OAB estendeu na entrada do prédio bandeiras do Brasil. Dentro do saguão, os estudantes sentaram de costas nas portas de vidro. Alguns cantavam, outros rezavam e Potrinho, para variar, aproveitou a oportunidade para jogar mais um carteado com os amigos.

Meia hora depois sentiram uma trepidação ritmada avançando na direção dos amotinados. A tropa marchou em linha e posicionou-se na entrada da reitoria. A repórter Thaís registrou as imagens, angariando material para mais uma matéria.

320

Tony, no meio desse campo de guerra, entrou algumas vezes no saguão. A ocasião favoreceu seu diálogo com Anne; ambos não se preocuparam com detalhes dispensáveis, fixando-se no essencial:

— Que saudade. Não suporto sua ausência, vivo triste e cabisbaixo. Volte pra cá, tente pós-graduação aqui. Quem sabe você consegue um emprego legal em São Carlos?

— Eu quase morri sem você. Passei uma borracha em tudo pra reconstruir minha vida. Você vai entender quando partir. Não há nada que me faça esquecer daqui. Olhe essa invasão, as pessoas de mãos dadas cantando com o Exército lá fora pronto pra nos trucidar. Tony, essa união é difícil de encontrar. A Federal continua no meu coração.

Após as juras de amor, Tony voltou para se juntar aos outros. Encarou os olhos frios dos jovens soldados na frente da tropa. Tinham a mesma idade dele.

O dia amanheceu e nada dos amotinados desocuparem a reitoria. A trégua se encerraria em breve. O comandante recebia e transmitia mensagens no rádio transmissor, comunicando-se com vários interlocutores.

João Herrman perguntou aos estudantes quando tomariam café-da-manhã, tinha por costume encher o estômago para dispersar a tensão. Fez outro comentário jocoso:

— Ê moçada boa de conversa. Adorei conversar com todos. Mas escuta aqui, vocês não comem, não? Vamos

321

beliscar alguma coisa e se daqui a pouco apanharmos, pelo menos será de barriga cheia.

Faltavam poucos minutos para a trégua esgotar-se. Enquanto os estudantes cantavam em coro o hino nacional, os negociadores levantaram-se em posição de sentido e colocaram as mãos nos corações.

O confronto ficou mais próximo e parecia irreversível. Deitaram-se todos no chão, teriam que ser carregados à força um por um para fora da reitoria.

Tony percebeu a movimentação da tropa, os soldados empunharam os escudos e marcharam para a reitoria. Forte descarga de adrenalina caiu no sangue dos manifestantes, que se prepararam como podiam para a batalha.

A primeira fileira da tropa adiantou-se, subitamente deu meia volta e subiu a rua lateral da reitoria. As outras fileiras executaram o mesmo movimento.

Tony, assim como os companheiros, não entendeu a manobra. Estariam marchando em sentido contrário para cercar a reitoria? A tensão continuou até que o conjunto de soldados virou à esquerda, em direção à saída da Universidade.

Inacreditável… Muitos demoraram a se convencer de que a tropa havia se retirado do local. A euforia contagiou os estudantes. Mas a grande notícia teria que ser confirmada. Finalmente, souberam que caminhões recolheram os recrutas para conduzi-los de volta ao quartel.

322

O sistema de som foi ligado e ouviram-se discursos ufanistas. Os negociadores foram saudados como heróis. Iniciou-se a grande festa que só acabou de madrugada. Amílcar dançou com Margarida ao lado dos estudantes. Até Jaspion abriu exceção e tomou alguns drinks com os amigos.

Durante a noite anterior, o comandante militar manteve contato com seu oficial superior em Pirassununga. A negociação interna no Exército para autorizar aquela missão foi muito intensa. O oficial do quartel comunicou-se permanentemente com a inteligência militar de Brasília.

Quando Brasília foi informada da presença dos deputados federais e outras autoridades, incluindo um padre, iniciou-se vigoroso debate sobre as repercussões que a ação poderia causar ao governo, o qual avaliou que seria melhor recuar. Porém, mantendo o quanto possível o cerco, a fim de apostar na possível desistência dos manifestantes.

A tática falhara, mas o governo ficou menos exposto e continuou com naturalidade a campanha em busca de apoio ao seu candidato que concorreria no Colégio Eleitoral.

Para comemorar, Fóssil puxou a melodia e Mário Japa o acompanhou no solo de seu velho violão:

…Gererê, gererê, e LSD… Gererê, gererê, e LSD…

Eu vou contar pra vocês uma história legal.

323

Foi no cinema que a menina aprendeu a namorar.

Botando fé no malandro que estava a cochilar.

Mas o malandro acordou.

E de tesão, brochou.

A mancha branca no tapete parecia mingau.

Mas não era mingau.

Era k-suco de pau…

Gererê, gererê, e LSD… Gererê, gererê, e LSD…

324

MUNIR

Anne partiu após aquele final de semana. Saiu direto para a rodoviária. A reitoria transformara-se na “casa” de Tony há mais de quarenta dias. Ele sabia que seus pedidos a Anne eram descabidos, pois ela estava trabalhando num ótimo hospital e precisava continuar sua vida profissional por lá.

Novamente não houve despedidas. Anne acordou bem cedo, deixou um bilhete ao rapaz, pegou suas coisas e foi embora. Tony acordou e sentiu imediatamente a falta dela, depois leu o bilhete:

“Parabéns pela bela vitória política. Quem diria você saindo-se bem no DCE e pra variar

afastado da Convergência. Despedida é demais pra mim, não consegui. Vou embora, deixo

meu coração só pra você. Amor. Anne.”

Tony enxugou uma grossa lágrima e pensou em abandonar tudo para correr atrás dela. Estava esgotado do período prolongado na reitoria, buscava privacidade, impossível de encontrar naquele ambiente. Precisava ficar quieto para colocar o coração em ordem.

Explicitou sua angústia a Karl, que o liberou:

— Tony, você está sobrecarregado, de hoje para amanhã não vai acontecer nenhuma novidade nesta bagaça. Vai pra casa, passeie um pouco, tome uma

325

cerveja e ponha essa cabeça no lugar. Deixe que aqui a gente segura a onda.

Foi direto à Cova, entretendo-se com cada paisagem da janela do ônibus. Sentia-se satisfeito por ficar incógnito e longe do barulho da reitoria. Queria dormir em sua própria cama. Na república, olhou saudoso para os livros que sempre o acompanharam e colocou um disco dos Beatles para relaxar.

Dormiu profundamente e acordou no final da tarde. Tomou um banho gostoso e saiu à noite para passear sozinho. O clima era ameno, típico de “Sanca”, denominação comum da cidade entre os estudantes.

Não queria andar pelos circuitos habituais. Pegou outro caminho ao léu e parou na praça, onde acontecia festa popular tradicional da cidade: a “Festa do Clima”.

Foi atraído ao centro da praça por uma exposição de orquídeas e, embevecido pela elegância de suas variedades exóticas, achou um vaso que “combinava” com Anne. Em seguida, comprou a flor que seria enviada a ela.

Atravessou as barracas que vendiam comidas típicas e recebeu o convite para dançar com a simpática senhora que trajava roupas étnicas italianas. Ao som de tarantelas entregou-se com euforia à dança coletiva, sentindo o prazer de brincar ao relento naqueles amplos espaços.

Depois de bailar alegremente, sentou-se junto a outros moradores da cidade, e comeu frango com polenta acompanhado por chope cremoso. Na conversa

326

com os convivas, descobriu que mais da metade da população de São Carlos era descendente de italianos. Por causa dessa massiva imigração, na Itália a cidade era chamada de “Piccola Italia”.

Tony estava satisfeito, obteve a distração que precisava para relaxar e carregar as baterias desgastadas. Com a cabeça mais leve concluiu que não deveria procurar Anne em Campinas, ela estava à duras penas tentando construir vida nova, sua presença ali só atrapalharia o processo.

Quanto a ele, faltava pouco tempo para se formar e não poderia comprometer seu futuro com aquela aventura. Aquietou-se, percebendo que sofrera uma overdose emocional pela reclusão na reitoria. Aquilo iria passar e sentia-se com “gás” para voltar renovado à cena da luta.

A gestão de Ferri tornava-se cada vez mais complicada. A frustrada tentativa de desocupação da reitoria fragilizou ainda mais o interventor. Seu isolamento ficou insustentável. Vários auxiliares, percebendo o agravamento da crise, abandonaram o Conselho Universitário.

Passados alguns dias, Ferri sofreu grave infarto cardíaco. Depois de socorrido no hospital de São Carlos, foi transferido para São Paulo, a fim de se recuperar ao lado da família.

Com o afastamento dele, a vacância do cargo não poderia perdurar por muito tempo. Por outro lado, as condições para o MEC indicar outro interventor

327

tornaram-se precárias, criou-se um impasse jurídico de difícil solução.

Esther de Figueiredo Ferraz, Ministra da Educação à época, com habilidade costurou negociações no governo, que estava desarticulado e dividido. Apesar das resistências, aprovou a proposta dirigida exclusivamente a UFSCar, que contribuiria para a extinção da Lei 6733.

Com sensibilidade, a ministra sugeriu à Universidade a elaboração de uma nova lista sêxtupla. Em contrapartida, exigiu o fim do movimento grevista e da invasão da reitoria, visando o restabelecimento as atividades acadêmicas, interrompidas há mais de 50 dias.

Heleno e Zé Jorge foram os portadores da notícia. Naquela tarde os estudantes convocaram assembleia na reitoria. A reunião foi emocionante, pois ficaram claros o recuo do regime e a grande vitória do movimento, prestes a se consolidar. Tony fez empolgada intervenção:

— Companheiros, nossa luta não foi em vão! Valeu a pena resistir. Nada foi capaz de calar a nossa voz. Vencemos, as nossas principais reivindicações foram atendidas. A intervenção naufragou. Faremos eleições paritárias para a escolha de nosso reitor. Cada um de nós foi responsável pela vitória, honramos o DCE-LIVRE UFSCar e a tradição de lutas do ME brasileiro.

Os outros discursos tiveram o mesmo tom idealista, os estudantes mereciam comemorar aquele momento de júbilo, que serviu de exemplo aos novos quadros que ocupariam em breve a diretoria do DCE. Além disso,

328

queriam abandonar a reitoria em alto estilo e colher os louros da glória.

Aprovaram por consenso o final da greve e a desocupação da reitoria. William Saad Hossne foi consultado para participar do processo sucessório. O acadêmico recusou o convite, havia assumido novas responsabilidades na UNESP e não poderia abandoná-las.

O Conselho Universitário foi reestruturado e a paridade das representações restabelecida. A comunidade estava pronta para votar os nomes da lista sêxtupla. O candidato aclamado foi Munir Rachid, acadêmico da USP de São Carlos.

Após alguns dias o general Figueiredo indicou o nome de Munir Rachid como reitor da UFSCar. Esse ato foi extremamente significativo, coroando com êxito a união da comunidade que lutou muitos anos por esse resultado.

O pioneirismo da UFSCar, ao eleger os próprios gestores, influenciou as relações políticas entre as universidades públicas e o governo central. Poucos meses depois, a Lei 6733 foi revogada, sendo promulgada a nova Lei, 7.177, que mencionava em um de seus artigos: “Os dirigentes de fundações de ensino superior nomeados pelo Presidente da República na forma da Lei 6733, de 4 de dezembro de 1979, deverão, no prazo mínimo de 6 (seis) e máximo de 8 (oito) meses, a partir do início de vigência da presente Lei, promover a indicação da lista sêxtupla a que se refere o dispositivo legal ora

329

revigorado. Os atuais dirigentes de fundações poderão figurar na lista sêxtupla a que se refere este artigo.”

O texto, além de permitir a livre escolha de reitores pelas comunidades acadêmicas, restaurou a indicação de membros das instituições locais.

Tony acompanhou com grande interesse a ebulição do cenário nacional. Apesar da decepção com a derrota da emenda Dante de Oliveira, o pragmatismo dominou as articulações políticas.

Lideranças do PDS se dividiram na escolha dos nomes que concorreram à sucessão presidencial. Paulo Maluf derrotou Mário Andreazza na convenção do partido e foi indicado como candidato da situação, o que segmentou ainda mais o fragmentado PDS.

Governadores de oposição, junto a outras lideranças, lançaram Tancredo Neves como candidato de consenso à eleição. Receberam o apoio da dissidência do PDS, a Frente Liberal, que indicou José Sarney a vice-presidente da chapa.

Aquela eleição presidencial seria realizada indiretamente no Colégio Eleitoral com os votos de deputados e senadores. O peso político da opinião pública tornou-se fundamental. A oposição organizou comícios em defesa de sua candidatura, ao estilo dos realizados nas Diretas Já.

Entretanto, o PT não participou dos palanques de Tancredo Neves. Decidiu boicotar a votação no Colégio Eleitoral, por considerá-la continuísta.

330

Essa polêmica dividiu opiniões dos estudantes da UFSCar. A Convergência defendeu o argumento do PT. Para a tendência, Tancredo Neves era um político conservador e de confiança do regime militar, recebendo inclusive o apoio informal do general Geisel.

Calango aderiu a Tancredo, ressaltando o apoio popular recebido pelo candidato. Dizia que os estudantes não poderiam ficar alheios, porque essa atitude favoreceria a eleição de Paulo Maluf.

Apesar da orientação nacional do PT, alguns deputados federais do partido, como Aírton Soares, Bete Mendes e José Eudes, declararam o voto para Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. As eleições logo se realizariam com grandes repercussões para o país.

331

LÁGRIMAS DE UM PIERRÔ

Fumaça do fogão à lenha na chaminé da casinha ao pé da serra. Aromáticas secreções das florestas de pinhais, as flores das árvores com cores diversas. Cheiro de terra molhada e de cogumelos frescos crescendo nos galhos mortos cobertos de líquen.

O galope no cavalo com ela na garupa pelas trilhas de chão batido, a paisagem montanhosa refletindo a beleza das antigas fazendas de café. O vapor convertido em fumaça a cada expiração apressada dos seus beijos.

Deitaram-se na cama do chalé. A lareira crepitava lenha em brasa para suavizar o inverno. Tony massageou lentamente as costas dela, estralando cada vértebra e ouviu discretos sussurros, que sinalizavam, no código cifrado dos desejos, o melhor caminho para os seus dedos.

Suas mãos tocaram os quadris desenhados pelas curvas dela. Avançaram para as nádegas, os dedos acariciaram o períneo úmido. Dançaram no frenesi do jogo do amor como tantas vezes fizeram.

Mas dessa vez era diferente, algo pairava no ar, a tristeza embutida em cada gesto, olhar, palavra… A melancolia do adeus preenchendo tudo, estampada em Anne, sinal de desenlace.

332

O passeio aconteceu repentinamente, sem avisos. Qual segredo revelaria? Na véspera, Tony cumpriu tarefas rotineiras. Aulas na Universidade e no CAASO, almoço com amigos no RU, reunião do DCE e, no final da tarde, uma rápida cerveja com Digão.

Ao chegar na Cova, Anne esperava-o. Antes que Tony pudesse manifestar-se ela gaguejou ao falar, denunciando ansiedade:

— Vim te buscar para ficarmos num hotel de campo perto daqui, já fiz as reservas. Desmarque seus compromissos. Preciso que você venha comigo!

O rapaz esquivou-se dos amigos e da família para viajar e aceitou com prazer o convite. Sabia que algo importante acontecera para justificar a inesperada excursão. Enquanto dirigia o carro dela, a conversa foi vaga:

— Estou tão feliz, a gente vai poder ficar alguns dias juntos como nunca fizemos. O hotel é maravilhoso, você vai gostar Tony!

— Que passeio estranho… Parece até um pretexto. Por que tanto mistério?

— Por favor, vou te pedir. Não estrague tudo com essa curiosidade boba. Vamos aproveitar o momento, não pense em mais nada, Tony.

— Tudo bem, mas é difícil não desconfiar de algo errado com essa viagem fora de hora. Confie em mim, pode me contar o que quiser, sem medo.

333

A moça conseguiu escapar das perguntas ao mudar estrategicamente de assunto. Após chegarem, amalgamaram-se saciando a saudade acumulada, o que reacendeu a paixão sufocada pela distância. Riram revivendo a intimidade feliz do casal que não era compartilhada há tempos.

Tony entregou-se de corpo e alma e afagou-a com carinho. Embriagou-se com seu cheiro, atou-se a ela tão fortemente que nenhuma contingência poderia separá-los. Seria inconcebível ficar um dia sequer sem seu abraço. Estava disposto a abrir mão de tudo por ela.

Trancaria o curso na Federal, arranjaria emprego melhor, alugaria uma casa para os dois. Sua decisão foi tomada, até o final do passeio proporia a união permanente com a moça. Aguardava o melhor momento para fazer a decisiva proposta.

Muito felizes eles foram ao baile do hotel, a orquestra tocava marchinhas carnavalescas consagradas. Os olhos azuis de Anne resplandeceram atrás da máscara que a enfeitava. Tony, com máscara de pierrô, dançou com ela por horas seguidas.

Entre serpentinas e outros adereços, não se desgrudaram. Bailaram abraçados em todos os ritmos. Molhados de suor pararam, pegaram um drink e foram passear no lago do hotel. A lua cheia clareava a noite facilitando a caminhada deles ao píer de pesca. Anne comentou enigmaticamente:

— Sonhei tanto com isso, nós juntos, até ficarmos velhinhos. Seria tão bom se fosse possível…

334

— Mas Anne isso é…, a moça interrompeu a fala do rapaz.

— Não importa o que vai acontecer, Tony. Vamos viver tudo hoje. Sou sua… Faça-me acreditar nisso.

— Sempre fui seu, Anne, você é minha mulher.

As horas passaram rapidamente e o clima de paixão aumentava a cada minuto. Mas Anne evitava comentar, mesmo vagamente, o futuro. Tony controlou-se para não fazer especulações. Viveriam aqueles dias inesquecíveis sem alimentar motivos que ameaçassem desmoronar seu castelo de areia.

Mas mesmo dissimulada, a melancolia visitava o semblante dela. Sem razões aparentes, seus olhos ficavam tristes e perdidos, revelando dor irreparável. Porém, ela mudava de tom, antes que o rapaz pudesse questioná-la sobre o sentimento.

Passavam as manhãs na piscina e faziam longos passeios na vasta área do hotel. As tardes eram consumidas no chalé, amavam-se sem horário e preocupações. Pertenciam somente a si mesmos, desfrutando momentos de felicidade.

No final daquela tarde, passearam no lago protegidos do sol por frondosos pinheiros. Para surpresa de Tony, Anne começou a chorar desesperadamente. Depois de prolongado pranto, engoliu os suspiros e falou:

— Querido, estou muito tensa. Agradeço pela sua paciência, precisava desse tempo pra te amar. Agora quero que você me ouça.

335

O arrepio gelado subiu na espinha de Tony. Ele pressentiu que seus temores se confirmariam:

— Nesses meses em que estive fora, conheci um amigo que me confortou nos momentos de fragilidade. Minha saída de São Carlos foi muito difícil. Ficar longe de você… Terrível.

— Quem é ele?

— Calma, Tony, por favor. Prometa que vai me ouvir até o fim. Ele se chama Rogério, é o médico que me indicou o emprego. Foi solidário comigo e nunca tivemos nada além de amizade, até alguns meses atrás…

— Abrevie seus comentários, conte-me logo o que aconteceu!

— Preciso que você entenda, escute pelo amor de Deus! Saímos apenas uma vez. Fomos a um show e no bar do setor. Eu estava muito triste naquela noite…Com saudade de você. Bebi demais e desabafei com ele.

— E aí? Perguntou Tony, que já imaginava o teor resposta.

— Estava carente e embriagada. Dormi num motel com ele.

Lágrimas escorreram da face de Tony, que não entendeu as razões dela. Transar com outra pessoa porque estava com saudade dele? O rapaz recordou-se da história pregressa de Anne e Faroeste, aquela situação não era nova para ele.

Tony pressentiu que Anne apresentava a mesma insegurança do passado, quando blefou sobre o

336

relacionamento com Faroeste para testá-lo. Agarrando-se como louco a essa hipótese antecipou sua impressão:

— Anne, isso já aconteceu entre nós. Nada mais importa, quero ficar com você. Compreendo seu momento de fragilidade. Mas vamos acabar com isso. Quero ficar com você. Se quiser, abandono tudo e mudo para Campinas…

— Tony, não faça isso… Espere eu acabar. Ele interrompeu a moça com agressividade:

— Você quer ou não ficar comigo? Esse passeio é uma brincadeira?

— O que mais desejo é ficar com você. Mas não posso, seria injusto. Eu estou grávida dele. Desta vez não farei aborto, quero essa criança, pode ser minha última chance de ser mãe.

Tony, dominado pela emoção não articulou pensamentos ou palavras coerentes. Permaneceu em silêncio ruminando sua dor. Apenas uma ironia amarga e de mau gosto brotou de sua boca:

— Volte para os braços de seu amado! Já sei. Descobri o mistério… Viemos aqui para você me convidar como padrinho de casamento.

— Entendo sua revolta… Desabafe! Mas saiba, não ficarei com ele, é apenas um amigo. Eu gosto de você, Tony. Desculpe, não fui honesta como deveria. Quis fazer esta viagem para me despedir de você com muito amor. Vou guardar comigo essa lembrança para sempre.

337

A esperança tomou conta do rapaz. Como acreditar nisso? Seria mãe solteira porque ainda era apaixonada por ele? Sentimentos de proteção e cuidado emergiram em Tony, não a deixaria naquela condição:

— Não vamos decidir nada agora… Não vou te abandonar.

— Tony, você é grande, te amo! Obrigada, mas não posso aceitar. O que aconteceu entre nós foi muito bonito. O erro foi meu, você não vai assumir essa responsabilidade. Como é difícil dizer… Cadê meu beijo de adeus, anjo?

Permaneceram abraçados muito tempo antes da partida. Dilacerados nas lágrimas do último enlace. A saudade abriu ferida exposta. Ela foi cicatrizada por outros amores, embora sem eclipsar aquela história, ainda presente em seus corações.

338

SUCESSÃO

O último semestre de Tony, em São Carlos, foi repleto de surpresas na UFSCar, no Brasil e no mundo. A Universidade vivenciou gestão inédita compartilhada entre Comunidade Acadêmica e Reitoria. Os índices de produtividade da Instituição cresceram significativamente.

Novos programas de Mestrado e Doutorado, ampliação da extensão universitária, com maior presença junto à população. A pesquisa desenvolveu-se significativamente e o ensino atingiu metas inesperadas. Enfim, a democracia produziu resultados promissores na UFSCar.

No plano nacional, Tancredo Neves elegeu-se presidente da República, aglutinando esperanças populares, ao propor a Assembleia Nacional Constituinte, no plenário do Colégio Eleitoral.

— Poderemos fazer deste país uma grande nação, disse, citando Tiradentes, sob aclamação dos parlamentares.

Por ironia do destino, adoeceu e foi operado um dia antes de assumir o cargo.

Para substituí-lo, os nomes eram os de, Ulysses Guimarães, presidente da Câmara dos Deputados e o vice-presidente da República José Sarney, cujo apoio

339

do general Leônidas Pires Gonçalves foi decisivo para decidir a questão.

Na cerimônia de posse, Figueiredo recusou-se a transmitir a faixa presidencial e abandonou o local. Mesmo assim, Sarney assumiu o cargo interinamente.

Apesar das turbulências e da morte de Tancredo Neves, que provocou comoção popular, a democracia avançou. O Congresso Nacional promulgou importantes reformas políticas. Analfabetos adquiriram direito de voto, partidos prescritos foram legalizados e as eleições diretas restabelecidas em todos os níveis.

Tony não participou como protagonista daquela nova eleição do DCE. Deixou os grupos se articularem, evitando interferir no processo. Mesmo assim, vários estudantes procuraram seu apoio e conselho.

Sentiu-se velho com o assédio, afinal há pouco tempo era apenas um bicho deslumbrado. Ao ser procurado, percebia nos novos militantes a sua ansiedade de outrora. Acolhia a todos com solidariedade, a mesma que recebeu de pessoas essenciais a sua formação, como Canário, Calango, Tarefero, Kin, Amarílis, Carioca, Gaio…

Os jovens ativistas o surpreenderam com propostas diferentes das que vivenciou com paixão. Teve dificuldades em assimilar as novidades, descobrindo que aquela realidade, como talvez todas as outras, era mutante.

Com a nova conjuntura, havia ampla participação estudantil nos órgãos administrativos da Universidade.

340

Métodos de combate e rebeldia do DCE-Livre UFSCar foram refinados e renovados. Assim, a roda da história caminhava… Tony entendeu as alterações de fundo, sentindo-se como elo entre duas gerações decisivas para a Federal.

Foram formadas três chapas na eleição, uma delas por estudantes autoproclamados independentes, “despreparados” para dirigir a entidade.

Outra era da Convergência. Seus dirigentes articularam representativo processo de discussão, atingindo amplos setores do campus. Tony, discretamente, participou de reuniões dessa chapa.

Os persistentes Stalinistas fecharam a terceira. Partidos como o PCdoB já estavam legalizados e tinham parlamentares atuantes no Congresso Nacional. Tornaram-se governistas, apoiando a gestão Sarney, o que inviabilizou os discursos inflamados do passado.

Calango, o velho militante profissional, abandonou a UFSCar. Foi para Brasília trabalhar como assessor parlamentar. Na despedida, falou com sua marca registrada, o arrastado sotaque nordestino:

— Lembrei de nosso primeiro contato no DCE. Tentei cooptá-lo pela simpatia, mas você não cedeu. Poxa, Tony, participamos de tantas coisas, amigo. Você manteve sua independência; eu, minha opção. Mas caminhamos juntos. Sentirei sua falta…

— Grande Calango, a Federal não será a mesma sem você. Teimoso, chato, obcecado, mas o melhor

341

companheiro que pode haver. Obrigado pelas conversas, esporros e conselhos. Vai em paz, irmão, te admiro, contamos contigo pra mudar o país.

Alguns dias antes das eleições, para espanto de todos, Tony estampou no peito o bóton de apoio à Convergência. Sem fazer campanha ostensiva, tornou pública sua opção. Foi questionado por Profeta:

— Tony, você enlouqueceu? Cadê a coerência? Sempre criticou a partidarização da entidade… E agora? Como explicar isso para as pessoas?

— Porra, Profeta, você nunca patrulhou ninguém. Sobrou pra mim? Cara, as coisas mudaram, a oposição precisa dirigir o DCE. Nós sempre andamos na contramão… Lembra-se? Eles vão vencer, estão mais preparados pra representar nossa rebeldia.

Tony recebeu cumprimentos pela sua posição dos amigos da Convergência. Carioca foi um deles:

— Tony, Tony… Sempre polêmico e com atitudes de efeito. Você é idealista ou camaleão? Que surpresa seu apoio. Após tantas divergências agora estamos juntos. Camarada, nunca é tarde pra tornar-se um verdadeiro revolucionário. Seja bem-vindo.

— Carioca, eu gosto do ditado… “Falem mal, mais falem de mim.” Mas vai com calma, menos arrogância…Não estou me filiando ao partido. Sabe o que aconteceu? Simples, a Convergência agora é a melhor opção. Nada pessoal. Ficarei de olho em vocês. Não adianta falar, mas

342

vai… Parem de formatar os estudantes ideologicamente. Olhem pra base, escutem mais e falem menos.

— Acabou, Tony? Estou pasmo, que gracinha! Você tem fórmulas pra tudo. Parece mais pregador que militante…

— Não é por aí, Carioca. Logo vou embora daqui e desejo que tenham sucesso. Não sou apegado a dogmas. Fiz autocrítica e estou apoiando vocês. Vai me cobrar por isso também?

— Tá bom, meu, calma lá. Só estou surpreso, mas gostei de te ver com esse bóton. Valeu…

O processo eleitoral correu aceleradamente e logo o resultado foi conhecido. Tony estava certo, desenvolvera com o tempo aguda percepção da política estudantil. A Convergência venceu facilmente, colocando-se muito à frente dos adversários.

Tony encarou com alegria a sucessão. Cumpriu seu papel no derradeiro ano de gestão. O bastão foi passado à frente, aos novos entusiastas da utopia.

Começou a matutar sobre outros projetos para o futuro… Longe daquele paraíso.

343

(DES)ENLACE

Despediu-se dos amigos da Cova, porto seguro de sua identidade conquistada, sentado com eles no Café do Centro, onde resgataram suas melhores lembranças, os episódios mais marcantes das histórias individuais e coletivas. Certo de que aqueles anos foram o farol, iluminando corações à deriva.

Naquela manhã fria do campus, disse o agora solitário adeus. Tomou café no Forte Apache, com o gramado lotado de estudantes, como em Woodstock…

Foi ao ginasião bater bola e as lágrimas inundaram sua face. Vieram-lhe à mente imagens dispersas, o alarido da torcida do CAASO, Lula discursando, assembleias memoráveis, sintonia e entrega.

Desceu o gramado até as margens do grande lago. Entrou no pinheiral pela trilha conhecida, fumou com prazer um “digestivo”, abrigou-se do sol nas sombras úmidas do dossel vegetal aspirando essências de pinho para impregná-las na memória.

Ao banhar-se no regato tributário do parque ecológico, viu uma grande borboleta azul. Sabia que era Hare Krishna, a ruiva Mariza, voando de mãos dadas ao lado de Capi. A gente se encontra na poeira da estrada…Anne surgiu no devaneio, insinuando-se como a sereia das águas.

344

Perdeu a noção do tempo. O céu ficou cor de fogo, antes de surgir o belo pôr do sol. Frente àquela pintura, a ansiedade pelo futuro cedeu lugar ao sentimento de ser aprendiz da história.

Sabia que, independentemente do que houvesse pela frente, pertencia àquele lugar. Podia senti-lo como parte do próprio corpo, extensão dos sentidos, simbiose completa.

Compreendeu algo também que carregaria para sempre: o pôr do sol é de quem o vê... De quem tem olhos para enxergar o peixe nadando nas águas de seu aquário predileto.

345

GLOSSÁRIO

ABI – sigla da entidade civil “Associação Brasileira de Imprensa”. Fundada em 1908, com o tempo tornou-se poderoso núcleo de ação política, como centro de militância dos trabalhadores da imprensa. No período da ditadura militar, esta entidade desempenhou relevante papel no processo de redemocratização do país.

Ação Popular Socialista (APS) – uma das principais organizações de esquerda dos anos 60. A AP, como era chamada pelos estudantes, surgiu em 1962 pela fusão de várias tendências socialistas. Constituída também por militantes vinculados à Juventude Católica, obteve expressiva penetração no movimento estudantil. Muitos religiosos da AP foram perseguidos pela repressão, pelo fato de permitirem a realização de reuniões clandestinas de grupos guerrilheiros em igrejas e mosteiros.

Acordo MEC/USAID – união das siglas “Ministério da Educação” (MEC) e “United States Agency for International Development” (USAID). Propunha reforma do ensino público brasileiro sob assessoria de técnicos norte- americanos. O acordo eliminou um ano do programa de Ensino Básico, tornou obrigatório o ensino de Língua Inglesa em todos os níveis educacionais e retirou do currículo matérias como Filosofia, Latim e Educação Política. Embutida no programa havia a proposta de privatização das escolas públicas brasileiras. O movimento estudantil resistiu contra a implementação do Acordo MEC/USAID, por meio de várias mobilizações, reprimidas com violência pela ditadura militar.

Aliança Libertadora Nacional (ALN) – criada em 1935 por dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCB), objetivava lutar contra o avanço do fascismo no país. As principais reivindicações da ANL eram a suspensão do pagamento da dívida externa, a nacionalização das empresas estrangeiras, a reforma agrária e a constituição de um governo popular. Em 1935 a ANL organizou levante militar em Natal (RN). Logo após, o movimento estendeu-se para Recife e Rio de Janeiro. O governo Vargas esmagou as rebeliões e, por meio da repressão, desarticulou a ANL.

Anarquismo – filosofia política contrária a qualquer tipo de organização de poder constituída, propondo a destituição dos governos institucionalizados, por meio de revolução armada. Os anarquistas defendem a organização política através de métodos

346

libertários, sem linhas hierárquicas pré-estabelecidas, o que não significa que defendam o caos, muito menos a ausência de solidariedade na sociedade.

Bagana – gíria que, no contexto desta história, possui o significado de “porção de maconha”.

CAASO – sigla do “Centro Acadêmico Armando Sales de Oliveira”, criado pelos estudantes da USP de São Carlos.

Chrysophyceae – são algas douradas unicelulares representadas principalmente pelas diatomáceas, com células portadoras de carapaça de sílica. Algumas espécies de crisofíceas, sob certas condições ambientais, podem provocar o fenômeno da maré vermelha.

CIA – sigla de “Central Intelligence Agency” (Agência Central de Inteligência) do governo dos EUA. É responsável por informações referentes à segurança nacional. Notabilizou-se pela realização de ações paramilitares e intervenções clandestinas. Sucedeu a Agência de Serviços Estratégicos, que, durante Segunda Guerra Mundial, coordenou atividades de espionagem internacional. Atuou com destaque nos conflitos de interesse entre EUA e URSS, durante a Guerra Fria.

Convergência Socialista – tendência trotskista que existiu de 1978 até 1992. Atuou com destaque no movimento sindical e participou da fundação do Partido dos Trabalhadores. Fortemente inserida no movimento estudantil, foi responsável por vinte mil filiações ao PT, em 1981. Em 1992, foi uma das principais fundadoras do atual Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU).

DCE-Livre-UFSCar – entidade máxima de representação estudantil da UFSCar. A denominação “livre” refere-se à independência financeira e administrativa da agremiação em relação a órgãos públicos e governamentais. O DCE UFSCar tornou-se “livre” em 1977, com forte oposição da reitoria, após prolongada mobilização. Esta autonomia foi importante para a história da entidade, uma vez que lhe possibilitou permanecer desatrelada de influências externas, focando suas lutas em causas de interesse dos estudantes.

DOPS – sigla do “Departamento de Ordem Política e Social”, órgão governamental criado no Estado Novo, para reprimir movimentos sociais e censurar meios de comunicação contrários ao regime. Práticas de tortura a presos políticos foram muito comuns neste

347

órgão nos “anos de chumbo” da ditadura militar. Quem era fichado no DOPS recebia um “atestado ideológico” que causava, entre outros problemas, dificuldades para arrumar emprego.

Emenda Dante de Oliveira – proposta de emenda constitucional formulada pelo parlamentar Dante de Oliveira, em 1984, que defendia a reinstauração das eleições diretas para presidente da República, abolidas pelo regime militar. A pressão popular pela aprovação desta emenda foi um dos fatores responsáveis pela origem do movimento Diretas Já.

Independentes – linha política adotada por estudantes da UFSCar na década de 80. Os independentes eram contrários a filiações político-partidárias no DCE e defendiam a adoção de princípios anarquistas na gestão da entidade. Divergiam do centralismo democrático das tendências e da hierarquização política na diretoria do DCE, valorizando táticas de “ação direta” como formas de mobilizar os estudantes.

KGB – sigla de “Komitet gosudarstveno bezopasnosti” (Comitê de Segurança do Estado). Foi uma agência de informação e segurança da União Soviética que exercia também a função de polícia secreta do governo. Como a CIA, atuou com destaque nos conflitos de interesses entre EUA e URSS, durante a Guerra Fria.

Leninismo – corrente teórica do Socialismo assim chamada para homenagear seu principal líder e fundador, Vladimir Ilitch Lenin. No século XIX, as teorias leninistas romperam com os princípios da social-democracia europeia. O leninismo adaptou a teoria marxista à realidade política e econômica do século XX. Seus preceitos, influenciaram significativamente os rumos do Socialismo.

LIBELU – sigla de “Liberdade e Luta”, uma significativa tendência do movimento estudantil. Surgiu nos anos 70, com orientação trotskista, e editava o jornal “O Trabalho”. Participou de mobilizações decisivas e da reconstrução da UNE e da UEE, na direção de DCEs estratégicos no país. Dela se originaram expressivos militantes do PT. Atualmente, é representada pela corrente “O Trabalho”, no Partido dos Trabalhadores.

Limnologia – também chamada de “ecologia de água doce”, a limnologia é a ciência que estuda as águas interiores. Embora originalmente concebida para investigar ambientes lacustres (lagos), abrange o estudo de todos os tipos de águas interiores.

348

Maoísmo – corrente marxista baseada nos ensinamentos do teórico chinês Mao Tse Tung. Diferentemente dos leninistas, os maoístas preconizavam a revolução armada para implantar o socialismo em todas as sociedades, não apenas as agrárias.

MR8 – sigla da organização de esquerda “Movimento Revolucionário 8 de Outubro”. Inserida no movimento estudantil desde 1966, participou da guerrilha urbana contra o regime militar. Seus militantes clandestinos realizavam assaltos a bancos para angariar fundos “revolucionários”. Organizaram o sequestro do embaixador norte-americano que foi trocado pela libertação de presos políticos. Após a morte ou exílio de seus principais quadros, abandonou a luta armada, reestruturando-se em torno do PMDB.

OAB – sigla da entidade civil “Ordem dos Advogados do Brasil”. Criada em 1930, desempenhou decisivo papel em momentos históricos significativos do país, como a campanha Diretas Já. Na ditadura militar, desenvolveu relevante luta jurídica contra desmandos governamentais repressivos.

PCB – sigla de “Partido Comunista Brasileiro”. Fundado em 1922, apresenta orientação ideológica marxista-leninista, sendo o partido de esquerda mais antigo e tradicional do Brasil. Recusou-se a participar da luta armada contra a ditadura militar. Mesmo assim, a repressão também atingiu fortemente seus quadros. Nos anos 70, um terço do comitê central do PCB foi assassinado, com grande quantidade de militantes perseguidos e torturados.

PCdoB – sigla de “Partido Comunista do Brasil”, fundado em 1962, a partir de uma cisão do PCB. Teve forte penetração no Movimento Estudantil, participando das principais mobilizações da classe. Adotando táticas maoístas, organizou na década de 60 o movimento de guerrilha rural no Araguaia. No início da década de 70 tropas do Exército dizimaram setenta dos guerrilheiros do Araguaia, formados por estudantes, profissionais liberais e operários.

Sanca – nome por meio do qual os estudantes chamavam a cidade de São Carlos, por analogia à música “Sampa”, de Caetano Veloso, lançada em 1978.

SNI – sigla de “Serviço Nacional de Informações”, órgão govername, criado em 1964, que produzia informações utilizadas pelo aparato repressivo da ditadura militar. Idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva, produziu milhares de dossiês com

349

informações sobre lideranças estudantis, políticas e sindicais. Orientado por agentes da CIA, utilizava grampos telefônicos, censura postal e investigações clandestinas para acumular material destinado à produção de dossiês.

Stalinistas – indivíduos alinhados ideologicamente ao ideário de Josef Stalin. Essa vertente política e econômica do Socialismo foi adotada na União Soviética por Stalin, que dirigiu com mãos de ferro o regime por muitos anos. Os críticos consideram tratar-se de um sistema totalitário e anti-marxista. Seus defensores, por outro lado, entendem que as medidas de Stalin salvaram o povo soviético do nazi-fascismo e promoveram grandes progressos políticos e sociais, permitindo a viabilização da revolução socialista.

TFP – sigla de “Tradição, Família e Propriedade”, organização anticomunista, conservadora, tradicionalista e católica. Considerada extremista por suas posições políticas radicais de direita, foi fundada em 1960, por Plínio Correia de Oliveira. No ano de 1985, sofreu graves críticas da ala progressista da Igreja Católica.

Trotskistas – defensores da doutrina marxista derivada das concepções políticas de Leon Trotski. Opunham-se frontalmente à teoria e prática da ideologia estalinista, criticando a burocracia do Estado Soviético, fortalecida no período de Josef Stalin. Trotski era favorável à Revolução Permanente, por meio de tese que defendia a internacionalização do Socialismo, em contraposição ao pensamento de Stalin, favorável à consolidação do socialismo apenas em um país.

UEE – sigla da entidade estudantil “União Estadual dos Estudantes”.

UNE – sigla da entidade estudantil “União Nacional dos Estudantes”.

Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) – corrente de extrema-esquerda que participou junto ao PCdoB da luta armada contra a ditadura militar. Foi fundada em 1966, como fusão da tendência Política Operária (POLOP) com militares do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR). Em 1970, organizou treinamento de guerrilheiros no Vale do Ribeira (SP). Extinguiu-se em 1971, após a morte de seus principais comandantes.

350


Recommended