Comunicação ao simpósio “Profecia e liberdade em D. António Ferreira Gomes”
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 30 de Setembro - 2 de Outubro de 1998.
______________________________________________________
José Barreto
O caso do Bispo do Porto em arquivos do Estado
Notas de uma investigação em curso
I
Disse um dia D. António Ferreira Gomes, anos volvidos sobre a morte de um
seu antecessor cuja memória sempre enalteceu, D. António de Castro Meireles, Bispo
do Porto falecido em 1942, que ele já tinha estátuas, mas ainda não tinha justiça. Dez
anos passados sobre a sua própria morte, parece-me que algo de semelhante se pode
afirmar a respeito de D. António Ferreira Gomes. Já teve importantes homenagens e
solenes provas de reconhecimento público, mas a sua vida e a sua acção em prol da
Igreja e do País ainda não tiveram suficiente consagração num plano essencial, o do
esclarecimento histórico, investigação, divulgação e debate. É neste sentido que tarda
em se lhe fazer justiça. O próprio Bispo o sentia no fim da vida, a julgar por alguns
trechos dos seus últimos escritos e entrevistas, onde aflora uma certa amargura diante da
memória curta dos seus contemporâneos. Insistia repetidamente na importância de se
fazer a história dos tempos recentes, com destaque para a da relação Estado-Igreja. E
dava o exemplo do episcopado da Alemanha, que no princípio dos anos 60 criara uma
2
Comissão para a História Contemporânea. Em 1983, no 50.º aniversário da chegada de
Hitler ao poder, a Comissão tinha já publicado 30 volumes de documentação crítica e
mais 20 monografias sobre a história do catolicismo alemão entre 1933 e 1945. D.
António lamentava-se nas suas Cartas ao Papa (escritas entre 1982 e 1985) que nada de
remotamente semelhante se tivesse feito desde 1974 em Portugal, onde com frequência
ouvia dizer sobre aspectos menos gloriosos da história recente que eram “coisas para
esquecer”! E ainda que o Estado Novo — “um modelo de Estado tradicionalista,
nacionalista, absoluto e ‘católico’, como uma aliança do trono e do altar” — não tivesse
tido uma história dramática e terrível como a do nazismo, observava D. António que
“não teria menor interesse a nossa história, objectiva e criticamente estudada, antes pelo
contrário”.
Hoje não é preciso fazer a reabilitação de D. António Ferreira Gomes. A simples
passagem dos anos se foi encarregando, desde os anos 50 até à sua morte, de lhe dar
sucessivamente razão aonde antes lha haviam negado. Isto não prova, é claro, a
habilidosa tese de que D. António tenha tido “razão antes do tempo”, como em
desespero de causa se chega a sustentar, pois ele teve-a quando mais importava, quando
era oportuno e corajoso tê-la, quando outros cultivavam o silêncio e a omissão. Em todo
o caso, o “tempo” apenas costuma salientar aspectos já antes perceptíveis, deixando na
penumbra e na escuridão outros que, em geral, só a investigação pode revelar, quando
pode. Por outro lado, é um facto que a imagem de D. António Ferreira Gomes foi a um
tempo muito maltratada e que depois do 25 de Abril, por motivos e circunstâncias
diversas, a que também não foi alheia a resolução de D. António de deixar correr águas
passadas e a recusa de compor ele próprio o seu retrato para a história, acabou por ficar
insuficientemente conhecida e reconhecida pela generalidade dos seus contemporâneos
3
uma certa dimensão da sua acção, que envolvia maior melindre, nomeadamente dentro
da instituição eclesiástica.
Persiste ainda hoje uma névoa em torno da sua figura feita de restos de velhas
recriminações e suspeições à mistura com sentimentos mais recentes de incomodidade
diante da tarefa, algo dolorosa para toda a Igreja, sem dúvida, de reflectir e tirar lições
de um passado que não se pode mudar. Persiste sobretudo uma falta de esclarecimento.
Com o passar do tempo, em todo o caso, parece dissiparem-se gradualmente as
circunstâncias que há dez ou vinte anos atrás ainda opunham sensível resistência a uma
avaliação justa e objectiva da estatura de D. António como figura da Igreja e da vida
nacional no século XX. Este simpósio significará certamente um passo importante nesse
sentido. Pela minha parte, independentemente da admiração que a figura do Bispo me
merece, desejo apenas que mais tarde se não possa dizer que os historiadores actuais
desleixaram o seu trabalho.
O caso do Bispo do Porto foi durante longos anos assunto tabu nacional, nem
podia deixar de o ter sido. Salazar foi o grande cultor e mestre político do tabu neste
século em Portugal. Basta contemplar aqueles vestígios da realidade portuguesa
sistematicamente escondida dos olhos do público, parcialmente conservados e
acessíveis hoje sob a forma de documentação histórica no Arquivo Salazar, no Arquivo
da PIDE e no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, entre outros, para se
poder constatar como o silêncio absoluto imposto em torno de numerosas pessoas,
factos e aspectos da vida social e política era um dos principais ingredientes da
governação corrente de Salazar, prática que pouco ou nada tinha a ver com a defesa ou a
segurança do Estado e tudo tinha a ver com a manutenção da ditadura ou do regime
autoritário. Esse pesado silêncio abateu-se também sobre o Bispo do Porto para,
juntamente com uma série de acusações e distorções sem réplica possível, contribuir
4
para abafar a onda de apoio que a divulgação da sua célebre carta a Salazar, em Julho de
1958, tinha desencadeado entre católicos e não católicos.
A carta — divulgada fortuitamente ou não, pouco importa, dado o carácter
extraordinário do seu conteúdo e a evidente ruptura com o ditador que ela não podia
deixar de significar por parte de um dos mais destacados elementos da hierarquia
católica — ameaçava pôr a nu uma realidade terrível de consequências para o chefe do
governo, uma realidade tabu. A saber, que não era afinal a Igreja, nem os católicos, nem
sequer uma maioria esmagadora do clero, quem apoiava e estava realmente aliada com
o regime, mas sim e principalmente a hierarquia, ou melhor, a maioria do episcopado,
onde pontificavam como doutrinadores e figuras tutelares, como os católicos sabiam, o
Patriarca de Lisboa, Cardeal Cerejeira e o Arcebispo de Évora, D. Manuel Trindade
Salgueiro. Manter, pois, semelhante carta apenas no conhecimento do seu autor e do seu
destinatário, como sustentaram e ainda hoje sustentam certas boas almas que na relação
com o poder prezam acima de tudo o “respeito” e a discrição, mantê-la secreta seria,
além de hipocrisia, o mesmo que a não escrever e o mesmo que a não pensar. Por isso,
D. António enviou exemplares policopiados da carta, num total de cerca de 50, aos seus
pares do episcopado e a personalidades católicas das suas relações, com pedido de
discrição. Foi um acto de coerência e lucidez. Além do mais, se o não tivesse feito logo,
o governo de Salazar tê-lo-ia impedido de o fazer mais tarde, sobre o que não podem
restar dúvidas a ninguém.
Em 1958, o primeiro grande sinal de alarme para o regime fora accionado pelo
candidato a Presidente general Humberto Delgado que, oriundo embora das fileiras
militares conotadas com a instauração e a sustentação do regime, arrastara nesse ano
multidões nunca vistas ao centro do Porto e outras cidades do País, massas humanas
desejosas de liberdade e de um líder político que as libertasse em primeiro lugar do
5
medo, outro grande ingrediente da governação corrente de Salazar. O governo tentou
recompor-se do forte abalo que a campanha eleitoral presidencial de 1958 provocara —
pela última vez, pois que a revisão constitucional de 1959, como alguém escreveu,
fecharia o círculo do poder a novas surpresas dessas, acabando com a eleição directa do
presidente da República. Ia porém surgir a breve trecho nova grande surpresa. Era o
pastor da diocese do Porto, há muito já referenciado pelo poder como avançado e
"imprudente”, que, sob o lema do descomprometimento da Igreja com o regime, abria a
cancela do redil e parecia incitar à dispersão do rebanho católico integrado na chamada
frente nacional — termo com que Salazar designou em Dezembro desse ano de 1958 a
base de apoio do seu regime, na qual expressa e publicamente dava por incluída a Igreja
Católica. Ora a carta do Bispo punha precisamente em cheque tal frente, como toda a
gente sentiu, incluindo o governo e a oposição, esta então ainda reunida atrás de
Humberto Delgado.
Salazar descreveu assim o efeito da carta, num protesto diplomático confidencial
para a Santa Sé: “Nos meios hostis ao regime a carta foi naturalmente recebida com
alvoroço e entusiasmo: o Senhor Bispo do Porto começou a ser considerado um bispo
das oposições; a Igreja em Portugal não só teria pela sua voz rompido com ligações que
a comprometiam, como se declarava solidária com modos de ver defendidos pelas
oposições na última campanha eleitoral”. Num aparte, deve observar-se que esta é
aparentemente a primeira vez que se divulga um comentário directo de Salazar sobre o
caso do Bispo do Porto. É que ele nunca os fez publicamente. Fazia parte da regra do
silêncio, do tabu: não fazer referência pública às opiniões contrárias, não pronunciar
sequer o nome do adversário, o nome de quem se discorda.
A carta do Bispo fez naturalmente furor em Portugal e no estrangeiro. No Brasil,
o escritor portuense exilado Adolfo Casais Monteiro saudou com entusiasmo no jornal
6
Estado de S. Paulo aquilo que ele via como “o despertar da Igreja em Portugal” e
acrescentava que a Igreja portuguesa podia, melhor que as Forças Armadas, derrubar a
ditadura de um momento para o outro. Fazia votos para que isso se realizasse pois que,
segundo ele, assim se poderia talvez conseguir um processo de transição pacífica e
controlada para uma democracia, evitando a subversão generalizada que se temia e que,
dizia Casais Monteiro, o Bispo do Porto não fora o primeiro a prever em Portugal
(alusão à previsão por D. António na carta a Salazar de uma “tremenda erupção anarco-
social-comunista” se o imobilismo político e social do regime se mantivesse,
incapacitando-o para “aguentar o embate” que se perfilava no futuro). A carta de D.
António obviamente não deitou o governo abaixo, como lá fora se chegou a acreditar
que pudesse acontecer, mas causou uma certa comoção pelo país fora.
Mal se constatou que, por acção da oposição (e, em particular, do aparelho
eleitoral de Humberto Delgado, que teve a parte talvez maior na divulgação da carta), o
choque podia alastrar perigosamente ao país católico e não católico, o ditador o governo
mandou agitar o espantalho do comunismo, encarregou um panfletista medíocre de
chamar “bispo vermelho” a D. António Ferreira Gomes, pôs o paço episcopal e a
diocese do Porto sob vigilância policial, mandou o Governo Civil do Porto interrogar o
Bispo sobre as causas da divulgação da carta, intimou publicamente as autoridades
eclesiásticas nacionais a meterem a Acção Católica e o clero na ordem (ao que as ditas
autoridades anuíram o melhor que puderam), apelou aos Estados amigos de Portugal,
entre os quais a Santa Sé, e debelou a crise pelas habituais medidas de repressão. A
retirada do bispo da diocese passou a ser reclamada ou sugerida confidencialmente, quer
através da embaixada portuguesa no Vaticano, quer em cartas de Salazar ao Núncio
Fernando Cento, sob ameaças pouco veladas de dissolução da Acção Católica e até
contra a própria Concordata. O embaixador português, Vasco Cunha, chegou em 1959
7
como que a reivindicar da secretaria de Estado da Santa Sé que a retirada de D. António
fosse concedida por Roma a exemplo do abandono de um bispo cubano da sua diocese
em Cuba por imposição do recém-instaurado regime castrista. Ou seja, o campeão do
anticomunismo Salazar não se importava de enfileirar em causa comum ao lado de
comunistas — desde, claro, que isso não se soubesse publicamente — para coarctar a
independência e a liberdade da Igreja. Ao fim de um ano de trabalhos, pressões e
insistências, Salazar conseguiria conduzir o Bispo para fora do território nacional, com a
ajuda decisiva, como adiante se verá, de um destacado membro do episcopado
português, D. José da Costa Nunes (Arcebispo resignatário de Goa, ex-Patriarca das
Índias, Arcebispo in partibus de Odessus e vice-camarlengo na Cúria romana),
averbando assim uma primeira vitória parcial contra o Bispo do Porto. O ditador estava
decerto longe de imaginar que seria também a última.
Quanto à Igreja e aos católicos, se a carta do Bispo, como Salazar dizia, tinha
semeado a discórdia nos seus espíritos que antes estariam tranquilos, muito maior ia ser
a onda de reprovação suscitada no meio católico contra o governo no seguimento da
expulsão do Bispo do Porto e do regresso da Igreja e do país à velha normalidade. Um
regresso à normalidade muito relativo, pois que nos dois ou três anos seguintes houve
forte instabilidade política em Portugal, desde tentativas de golpe de Estado palacianos
e intentonas armadas, até à eclosão dos movimentos independentistas e da guerra em
África, passando pelo início da agitação estudantil, etc. A partir da expulsão de D.
António, um dos maiores motivos de mobilização política dos católicos e da sua divisão
entre apoiantes e opositores do regime, terá precisamente sido o longo exílio forçado do
Bispo do Porto ao qual nem Salazar nem Franco Nogueira iriam conseguir que lhe fosse
retirada a Diocese.
8
O regresso do Bispo do exílio em 1969, nas circunstâncias em que se verificou,
não exigiu que se quebrasse o tabu senão numa extensão bem delimitada. Não houve
explicações públicas por parte do novo governo sobre as causas do exílio forçado do
Bispo durante dez anos ou da decisão de autorizar o seu regresso (em Junho de 1969 e
não antes, já que o governo de Marcelo Caetano a partir de Setembro de 1968 mandou
reforçar pelo menos quatro vezes as ordens dadas à PIDE das fronteiras para não
permitir a sua entrada no país). O Patriarca de Lisboa e a maioria dos bispos tinham
achado melhor que D. António não regressasse do exílio para que se não perturbasse
uma vez mais a boa harmonia Igreja-Estado Novo. Quando o Bispo do Porto, não
obstante, obteve luz verde de Paulo VI para, se assim o desejasse, tentar regressar a
Portugal e à diocese de que continuava titular, e quando depois disso regressou
realmente, o episcopado, dando forte impressão de simplesmente se conformar com o
facto, não tornou pública qualquer posição de regozijo ou de boas vindas, antes manteve
o seu velho silêncio oficial sobre o caso. Um dos bispos de então tentou posteriormente
— numa obra memorialística recente — explicar que, permanecendo D. António dez
anos no exílio, concorrera mais eficazmente para a evolução da sociedade portuguesa,
através duma maior mobilização dos católicos em seu torno, do que com a sua eventual
presença no País. Uma tese no mínimo curiosa, pela maneira algo rebuscada como
retrospectivamente parece pretender justificar uma posição dificilmente justificável.
Enfim, a Santa Sé e o próprio Paulo VI foram tão cautelosos que deixaram que D.
António regressasse primeiro ao País e só uma semana depois, mercê de várias pressões
e démarches de bastidores, é que o Administrador Apostólico D. Florentino Andrade e
Silva foi persuadido ou pressionado pela Nunciatura para que abandonasse a diocese. D.
António não julgou nada favoravelmente este excesso de diplomacia da Santa Sé.
9
O 25 de Abril passou aparentemente muito ao largo do caso do Bispo do Porto,
por isso as questões tabu nunca esclarecidas começaram a ser transferidas para o
departamento do esquecimento. Numa pastoral colectiva intitulada “O Contributo dos
Cristãos para a Vida Social e Política”, datada de 16 de Julho de 1974, com o País já a
dar a impressão de caminhar para a revolução anarco-social-comunista que D. António
e muitos democratas tinham profetizado para o caso de não se iniciar uma decidida
transição de regime, os bispos aceitaram confessar que tinha de facto havido certos
paralelismos evolutivos entre a Igreja e o Estado Novo, mas (e cito) “sem prejuízo da
clara distinção das respectivas competências”. O então Bispo de Aveiro e presidente da
Conferência Episcopal, D. Manuel Almeida Trindade, relatou nas suas memórias que D.
António fizera “finca-pé” (é o termo utilizado nessa obra) para que os bispos pedissem
colectivamente perdão ao povo português. De facto, não pediram. Apenas declararam
assumir as suas responsabilidades por eventuais erros e omissões, sempre possíveis em
seres humanos e atribuíveis às “vicissitudes e limitações da condição terrena”. Foi tudo
o que D. António Ferreira Gomes conseguiu que os seus pares unanimemente
subscrevessem em 1974. Nem uma palavra nessa carta pastoral colectiva do episcopado
português sobre, por exemplo, a expulsão do país e o exílio forçado durante dez anos de
um dos seus.
Um quarto de século passou entretanto e ainda hoje não se sabe, apesar da tal
“clara distinção das respectivas competências”, por exemplo, quantos bispos indigitados
pela Santa Sé através da Nunciatura foram vetados durante o governo de Salazar e por
que razões políticas concretas. Note-se que, normalmente, o ditador nem precisava de
chegar à situação crítica da recusa do indigitado, bastava dar previamente a conhecer os
seus humores pelas vias mais apropriadas, nomeadamente eclesiásticas. Apesar disso,
são conhecidos três ou quatro casos de recusa. Não se sabe se houve mais. No entanto, o
10
clausulado da Concordata nem sequer conferia esse poder de veto ao chefe do governo
— como entre outros o sustentou o jesuíta Prof. António Leite — mas sim e apenas um
direito de pré-notificação, que lhe permitia levantar de facto “objecções de carácter
político geral” contra os indigitados, mas sem poder eliminativo. A Concordata garantia,
sim, o secretismo das diligências de indigitação e pré-notificação, ambiente de eleição
para as manobras com que o manhoso chefe do governo obtinha o que queria. Digo
manhoso, mas o Bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, dizia “manhoso e
terrível”, numa carta enviada de Moçambique ao Bispo do Porto em 1958,
comunicando-lhe o seu apoio na questão da carta a Salazar. A missiva do Bispo da
Beira para o Porto foi interceptada pela PIDE e facultada a leitura de uma cópia ao
ditador. Pode agora consultar-se no Arquivo Salazar, pois parece que continua inédita.
Quatro anos depois de ter escrito essa carta, o Bispo da Beira viu em 1963 ser rejeitada
por Salazar a sua nomeação para Arcebispo de Braga.
Entre as mistificações que mais perduram em torno da figura de D. António
Ferreira Gomes, pode apontar-se aquele rótulo ou labéu de “Bispo político” que lhe foi
colado e que, ao longo dos anos, nunca se viu ninguém da Hierarquia da Igreja, além do
próprio D. António, desmentir, desmistificar ou, ao menos, relativizar. Para isso teria
tido de se fazer compreender doutrinariamente aos anestesiados pelo nacionalismo
católico de Salazar, algumas coisas hoje talvez comezinhas. Em primeiro lugar, que a
política não é o pecado da Igreja (como um dia, se bem me recordo, escreveu D.
António Ferreira Gomes); em segundo lugar, que a Igreja, não sendo alheia nem
distante em relação à política do poder, não pode ser alheia nem distante em relação à
política do povo; em terceiro lugar, que os papas e os bispos à sua especial maneira
também sempre fizeram política, nos bastidores ou a céu aberto, com partidos, sem
partidos, ao lado dos partidos e até contra os partidos. Assim, talvez se pudesse concluir,
11
numa segunda etapa, que António Ferreira Gomes não foi certamente mais político do
que Manuel Trindade Salgueiro, nem Manuel Gonçalves Cerejeira foi decerto menos
político do que Sebastião Soares de Resende. As políticas de cada um deles é que
diferiam muito entre si, tanto na substância social e humana, como na proximidade e
identidade com o poder autoritário e no grau de receptividade ao valor da liberdade.
Não se pode dizer que tanto o episcopado como Salazar, em virtude da sua
eventual formação católica tradicionalista, estivessem na ignorância da doutrina de
Bento XV — que, aliás, o próprio Salazar explicara, em 1922, num livro dirigido aos
católicos politicamente organizados. O dever de acatamento pelos católicos dos poderes
constituídos e de obediência às autoridades e leis vigentes, dever que também não era
absoluto e sem excepção, pois em certos casos a sedição e rebelião não eram proibidas
pela Igreja, esse dever (cito do referido livro) “não se confunde com a adesão ao regime,
que Sua Santidade não impõe nem sequer aconselha em parte alguma”. Esta doutrina
anti-integrista sabia-a muito bem Salazar para a aplicar às relações dos católicos
monárquicos com a Primeira República, isto é, para lhes lembrar que não tinham de dar
a sua adesão ao regime republicano, mesmo que aceitassem tomar lugar no seu
parlamento ou no seu governo. Mas esqueceu-se dela posteriormente, para a aplicar às
relações dos católicos não salazaristas com o Estado Novo.
Além de “Bispo político”, quantas outras acusações, sem contar as puras
calúnias, não foram pronunciadas a partir de 1958, quer no seio da Igreja quer pelo
governo autoritário, ficando a pairar até hoje, como que por inércia, sobre a figura e a
memória de D. António, sem que desde a instauração das liberdades em Portugal a
partir de 1974 — incluindo a instauração de algumas liberdades inéditas da Igreja —
essas acusações e sentenças tenham jamais sido debatidas em profundidade? Na maioria
dos casos, recorde-se, não houve para o acusado a mínima possibilidade de defesa
12
pública no momento oportuno. Depois o próprio Bispo se foi desinteressando, por falta
de oportunidade e por motivos relacionados com a nova fase histórica vivida a partir de
1974, de exigir ou prestar os esclarecimentos definitivos em relação com o seu caso —
que, diga-se, nunca foi um mero caso pessoal, como alguns pretenderam com o intuito
transparente de o representarem como um caso marginal, isto é, como o caso de um
bispo cismático nos dois sentidos que o dicionário de português dá para esta palavra.
Hoje pode não parecer necessário perder muito tempo a averiguar se realmente
D. António terá merecido o epíteto absurdo de “bispo vermelho” ou outras infâmias que
lhe eram lançadas pelos panfletistas ao serviço do ditador. Poderá também parecer
ocioso darmo-nos ao trabalho de ir verificar se o que o Bispo do Porto pretendia em
1958 era mesmo, como Salazar denunciou para Roma, transformar a Acção Católica
num partido político ou no germe de um partido político.
Não é certamente em torno dessas e de outras acusações, que o ditador nem
sequer tinha a coragem de repetir pessoalmente na praça pública, que a injustiça em
torno da figura de D. António pode perdurar. Tais acusações caíram ou caem por si
mesmas. Mas há o risco de, se não se esclarecer tanto quanto possível todo o caso, as
futuras gerações não entenderem sequer em que residia afinal a pesada acusação de
“fazer política” e porque é que ela soava tão patética e sinistramente quando dirigida a
um bispo e vinda de um governante tido por catolicíssimo, no país que se dizia ter a
Concordata mais favorável e o governo supostamente mais carinhoso e protector para a
Igreja católica.
Quero fazer aqui uma referência ou um comentário aos três arquivos de Estado
que figuram entre as principais fontes da minha investigação — Arquivo Histórico do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, Arquivo Salazar e Arquivo da PIDE/DGS.
13
A imediata constatação que o historiador pode fazer sobre a documentação
guardada nos arquivos referidos — apesar de ser bem visível que foram oportunamente
expurgados das peças mais comprometedoras — é a de um estilo de governação e de
uma concepção minimalista dos direitos humanos que deitam completamente por terra
as famosas pretensões do Estado Novo a considerar-se limitado pelo Direito e pela
moral cristã, as tais pretensões ainda hoje levadas demasiado a sério por certos
politólogos e historiadores empenhados em afastar do salazarismo qualquer leve
suspeita de totalitarismo. A devassa da correspondência privada — para já não falar dos
outros métodos de rapina das liberdades individuais — processada em grande escala,
constituía um instrumento corrente de informação da governação, usado, repito, maciça
e permanentemente, e não, como a legislação de 1934 em diante previa, só em casos de
ameaça à segurança do Estado. O próprio clero, em princípio integrado na frente
nacional, como Salazar lhe chamava, não era poupado por essa devassa maciça de
correio. Pelo menos nas pastas do Arquivo Salazar e do Arquivo da PIDE relativas ao
caso do Bispo do Porto encontrei cartas de numerosos párocos e prelados, além das de
D. António Ferreira Gomes. As cartas eram interceptadas nos correios, abertas,
transcritas, fotocopiadas e, até, simplesmente confiscadas.
Era o próprio Salazar quem, travestido momentaneamente em autoridade
eclesiástica suprema, lia pessoalmente essa correspondência trocada entre membros do
clero, incluindo entre membros do episcopado, não se esquecendo de sublinhar as partes
para ele mais interessantes a lápis e de distribuir eloquentes pontos de interrogação a
quem não pensava como ele. Assim, quando em 1959 os bispos, um a um, responderam
à circular que lhes tinha sido enviada em Maio desse ano por D. António Ferreira
Gomes, Salazar ficou a saber exactamente o que pensava cada um dos membros do
episcopado, incluindo os de África, sobre o caso do Porto — e quem diz sobre o caso do
14
Porto diz sobre as relações Estado-Igreja em Portugal. Correspondência de bispos
portugueses para Roma foi interceptada pela PIDE e lida pelo ditador, o mesmo
acontecendo a correspondência chegada por via postal normal para a Nunciatura em
Lisboa, que era para todos os efeitos uma legação diplomática dum Estado estrangeiro.
Como dizia D. António, a Santa Sé era um Estado sui generis, dado que jamais
teria bombas atómicas. Porquê devassar a correspondência de e para a Santa Sé e seus
representantes? Roma não tinha, de facto, bombas nem exército. Mas tinha algo mais
perigoso, do ponto de vista do catolicíssimo Salazar. Em primeiro lugar, Roma tinha
uma Igreja universal, muito diferente, já antes do Concílio, daquela que ao Estado Novo
e ao Império português mais convinha, a saber, uma Igreja nacional e nacionalista com
bons ofícios na Cúria romana e com a missão de estender uma influência cristianizadora
paralela da colonizadora, uma influência de âmbito quase planetário através do
continente negro e, pelo padroado do Oriente, até à longínqua e independente União
Indiana, que já tinha democracia quando nós ainda só tínhamos Salazar, como lembrava
uma grande figura política do século XX, o Eng.º Francisco da Cunha Leal. Em
segundo lugar, Roma já deixara de acreditar na supremacia do colonizador, Pio XI quis
pregar a unidade do género humano mesmo aos nazis e o Papa Montini, Paulo VI,
pressionava o governo português para que aceitasse a nomeação de um bispo negro. Em
terceiro lugar, Roma afeiçoara-se sob os últimos pontificados, sobretudo o de Pio XII,
às instituições democráticas, franzia o sobrolho ao nacionalismo, encorajava ou
promovia a democracia-cristã em Itália e noutros países europeus, abençoava as
liberdades individuais, preconizava sindicatos cristãos e (ou) liberdade sindical e
admitia as justas lutas reivindicativas dos trabalhadores, inclusive a greve, duma forma
muito mais evidente do que o corporativista cristão Leão XIII o admitira no final do
século passado.
15
Para Salazar, tudo isto e mais alguma coisa — como, por exemplo, os estudos
julgados subversivos que os jovens padres portugueses iam fazer a Roma ou a Lovaina e
as ideias sociais e políticas perniciosas infiltradas em Portugal através dos contactos da
Nunciatura com o clero e os católicos locais — tudo isto, se não fazia da Santa Sé uma
potência inimiga, era contudo quanto bastava para ser classificada como uma
preocupação permanente. E uma preocupação crescente, porque como temiam o Salazar
e o ministro Franco Nogueira, os papas sucessores de Pio XII tendiam para aquilo que
os governantes portugueses classificavam de “progressismo”, para já não falar do
anticolonialismo.
Para encerrar por aqui este breve panorama da duvidosa harmonia Estado-Igreja
(Igreja aqui no sentido próprio, e não apenas como hierarquia ou clero) e do duvidoso
espírito concordatário que presidiam ao relacionamento do governo de Salazar com a
Igreja Católica, ainda uma pequena ilustração colhida na Torre do Tombo. Existe no
Arquivo da PIDE e no Arquivo Salazar uma insólita colecção de extractos de homilias
que foram recolhidos nas igrejas do Porto em diferentes datas por informadores da
PIDE ou do ditador, que andavam pelas missas a registar o que o celebrante dizia e se,
porventura, pedia aos fiéis para rezarem pelo Bispo titular, que fora já expulso do País.
Numa dessas informações, que tive a oportunidade de consultar, datada de 2 de Agosto
de 1959, registou-se que o padre celebrante tinha declarado que “a missão do Padre era
pregar sempre a verdade em toda a parte, ainda que diante dos tribunais e dos falsos
detentores da autoridade”. Este trecho — que não acusava nada nem ninguém em
concreto, a não ser talvez o próprio indivíduo que se encontrava dentro do templo a
registar a frase — ficou sublinhado pelo próprio punho do ditador na informação em
causa e tem por isso, muito provavelmente, uma qualquer relação com a destituição
(destituição por via eclesiástica, claro) verificada pouco depois do padre em questão,
16
dos cargos de professor e vice-reitor de um seminário. Esse padre foi muito mais tarde
um eminente bispo [D. Manuel Martins, Bispo de Setúbal] e está aqui hoje connosco
nesta sala.
Que dizer sobre esta violação pelo governo das barreiras de separação garantidas
pela Concordata, sobre estas formas implacáveis de perseguição estatal a membros do
clero, sobre esta falta de decência e, penso eu, de espírito cristão por parte do chefe do
governo? Que eram tão despóticas e condenáveis como as perseguições que, sem a
colaboração dos respectivos episcopados, se faziam nos Estados que professavam
filosoficamente o ateísmo? Ou que eram pecadilhos, coisas benignas, que no cômputo
geral eram anuladas pelo saldo positivo, pelo superavit, como lhe chamava em 1959 o
então Arcebispo de Mitilene?
II
Não é possível fazer aqui um historial completo do caso do Bispo do Porto.
Optei por destacar dois episódios ou aspectos do caso sobre os quais reuni alguma
documentação inédita e plausivelmente desconhecida, proveniente dos arquivos de
Estado que já mencionei.
Um primeiro episódio, que quero desenvolver de seguida, tem a ver com o
desafio do Bispo do Porto a Salazar, na sua célebre carta de Julho de 1958, para que
deixasse os católicos livremente definirem e propagarem o seu “programa ou programas
políticos” e para que os deixasse organizarem-se politicamente e apresentarem-se às
eleições legislativas seguintes (as próximas eleições eram em 1961, dali a três anos).
Surgia este desafio parcialmente em resposta a um passo do discurso de Salazar de 31
17
de Maio de 1958, lido em plena campanha eleitoral para a presidência da República,
discurso a que o Bispo do Porto aludia repetidamente ao longo da sua carta, replicando a
pontos sucessivos que ia citando. Pode dizer-se que a carta de D. António foi toda ela
uma resposta ao discurso de Salazar acima referido. A dado ponto do seu discurso,
Salazar referira-se displicentemente, como de costume, aos diversos partidos políticos
que a oposição queria ter a liberdade de poder organizar, e mencionara entre eles, coisa
estranha e inédita, um partido da democracia-cristã. Numa frase vaga e enigmática,
como era seu apanágio ao tratar de opiniões divergentes da sua e outros assuntos
desagradáveis, o chefe do governo deixava entender que haveria quem julgasse
necessário esse partido em Portugal, provavelmente “para melhor assegurar a defesa da
Igreja”, acrescentava Salazar, parece que com alguma intenção irónica, por seguramente
duvidar que alguém melhor do que ele pudesse defender os interesses da Igreja.
Na sua carta D. António Ferreira Gomes respondia-lhe que se tal partido era
reclamado, não seria decerto principalmente ou imediatamente para assegurar a defesa
da Igreja. O problema era outro, segundo D. António, era de ordem civil e social. E
recomendava paternalmente a Salazar que ultrapassasse a mentalidade de Centro
Católico — organização política a que Salazar e Cerejeira haviam pertencido e que sob
a I República defendia os interesses da Igreja num ambiente político e legislativo que se
tornara muito mais adverso a ela do que antes do 5 de Outubro. O que o Bispo lhe
estava a dizer era que o tal partido de democracia-cristã, posto em causa no discurso de
Salazar, provavelmente não pretenderia ser um órgão de resistência, uma catacumba ou
um simples lobby da Igreja em Portugal, como fora o Centro Católico, mas talvez um
partido popular, um partido de massas, com um programa social e político autónomo,
obviamente para a competição democrática em eleições com outras forças e outros
programas. Por consequência, o que o Bispo indirectamente reclamava ao defender os
18
direitos da democracia-cristã era também uma democracia pluripartidária. Não o fazia
directamente, a meu ver, porque como homem da Igreja, D. António preferia falar antes
de mais em nome dos católicos. E diante de Salazar só nessa qualidade podia
manifestar-se.
A réplica de Salazar sobre o ponto da democracia-cristã já não foi dada ao
Bispo, mas a Roma, através do Núncio, que era Mons. Fernando Cento. Numa carta de
protesto diplomático enviada em 18 de Setembro de 1958 para o Núncio, que se
encontrava então no Vaticano a aguardar instruções de Pio XII, o chefe do governo
português lembrava-lhe que: “A doutrina que informa a Constituição [de Portugal] é
hostil à existência de partidos políticos que, por isso, não são reconhecidos”. Note-se
que, tanto quanto sei ou me lembro, Salazar nunca afirmara isto de forma tão categórica
como nesta passagem desta carta, cuja leitura se deve recomendar àqueles que
concedem uma relevância particular ao facto de nem a Constituição de 1933 nem a lei
avulsa proibir expressamente a criação de partidos. De seguida, Salazar, metendo à viva
força a organização da Acção Católica na questão (quando ela não estava originalmente
na carta do Bispo, pelo menos no contexto da questão partidária), Salazar acrescentava
que se a Acção Católica (cito) “sob a influência de exemplos alheios cuja legitimidade
não discuto, [...] se transforma ou pretende ser o germe de um partido político ou se
destina a formar uma força política e os quadros já expressa e intencionalmente
destinados a um partido político, então, porque contrária à Constituição, a situação [da
Acção Católica] terá de ser revista”. Com isto queria Salazar dizer muito claramente, de
acordo com o restante teor da carta, que a existência da Acção Católica ficava em causa,
isto é, que teria de ser dissolvida.
Com esta manobra e esta ameaça, o chefe do governo — que parecia saber mais
sobre a Acção Católica do que aquilo de que a acusava concretamente — criava um
19
meio de pressão e uma moeda de troca na sua discussão com a Santa Sé, a saber, a
existência ou não existência da Acção Católica em Portugal, cuja manutenção ele
declarava dependente da sua benevolência. Ao mesmo tempo desviava o contencioso
inicial com o Bispo para um assunto que nada tinha a ver com a questão essencial de
saber o que viria em Portugal após o salazarismo. Na resposta enviada a Salazar através
do Núncio Cento, Mons. Tardini, pró-secretário de Estado da Santa Sé, não falava nem
de representação política dos católicos portugueses, nem de programa ou programas
políticos dos católicos a apresentar às próximas eleições, nem de democracia-cristã,
nem de partido democrata-cristão, nem do pós-salazarismo. De certo modo a resposta de
Roma mordia, talvez voluntariamente, o isco que Salazar lhe estendera, ao contestar
apenas a ameaça de Salazar à Acção Católica e a interpretação que a respeito dela o
ditador fazia da Concordata, reconhecendo além disso Tardini, chefe da diplomacia da
Santa Sé, que a divulgação pública da carta do Bispo do Porto fora coisa imprudente e
inoportuna, além de uma falta de consideração para com o destinatário. O Vaticano,
visivelmente, não queria pôr à discussão com Salazar a questão da democracia-cristã,
sabendo que daí nada de bom ou de útil poderia resultar, quer em virtude da
partidofobia exacerbada de Salazar, quer porque as aspirações democratas-cristãs que
começavam a despontar em Portugal procediam de facto, directa ou indirectamente, de
Roma.
Neste ponto temos que nos interrogar: como é que tinha começado a polémica à
volta do partido da democracia-cristã? De onde vinha aquela referência displicente de
Salazar à pretensão que em Portugal alguns católicos alimentavam de constituir um
partido democrata-cristão, alusão a que D. António Ferreira Gomes replicou na sua carta
ao chefe do governo da maneira que acima descrevi? Salazar usava às vezes os seus
discursos para mandar certos recados enigmáticos. A quem teria ele dessa vez destinado
20
essa mensagem? E porque lhe responde o Bispo do Porto? Durante muito tempo não
vislumbrei respostas satisfatórias para estas perguntas, mas um documento encontrado
recentemente no Arquivo Salazar parece fornecer um bom começo de explicação.
Trata-se de uma informação confidencial para o presidente da Comissão
Executiva da União Nacional, João Pinto da Costa Leite, redigida por Ramiro Valadão,
informação que chegou às mãos de Salazar em 3 de Março de 1958, meses antes,
portanto, da campanha eleitoral de Humberto Delgado e de tudo o que se lhe seguiu.
(Todos os participantes neste episódio, que tem 40 anos, já desapareceram, pelo que não
se omitem os respectivos nomes). Nessa nota para Costa Leite o informador relata
detalhadamente uma conversa havida com Mons. Gentile, conselheiro da Nunciatura em
Lisboa, de quem refere que tinha sido colaborador na secretaria de Estado da Santa Sé
de Mons. Montini (o futuro Papa, naquele momento Arcebispo de Milão) e que as suas
opiniões reflectiam o pensamento da Nunciatura, isto é, do Núncio Fernando Cento.
(Num parêntese, diga-se que o Núncio Cento, quando, em 1959, deixou Lisboa já
purpurado, foi para Roma elogiar em conversas privadas a “carta histórica” do Bispo do
Porto a Salazar e compará-la a uma famosa carta de Cavour ou de Alessandro Manzoni
ao rei de Itália). Mons. Gentile era pois, segundo diz Valadão, um entusiasta do sistema
político italiano, que achava que deveria constituir modelo para outros países. Nesse
sistema político-partidário, segundo Mons. Gentile, o papel de núcleo central era
desempenhado pela democracia-cristã, que fazia reverter a seu favor a fragmentação
partidária existente no país, tirando daí o seu prestígio e o seu poder. Para a Santa Sé, os
partidos eram uma necessidade das sociedades modernas, pelo que Portugal também a
isso se não poderia furtar depois de Salazar. Contra o chefe do governo, Mons. Gentile
não tinha nada a dizer: o Sr. Dr. Oliveira Salazar era a realidade que havia em Portugal,
alguém que ele respeitava “como estadista e como católico”, embora pensasse que o
21
“raramente o católico influenciava o estadista”. (Diga-se aqui, num aparte, que Pio XII
tinha Salazar na consideração de um “iluminado estadista”, segundo o testemunho de
Mons. Moreira das Neves, o dilecto colaborador e biógrafo do Cardeal Cerejeira). Para
Mon. Gentile o salazarismo era uma acção diária de governação e “não um corpo
doutrinário a projectar-se no futuro”, como a democracia-cristã era em Itália e noutros
países. Se em Portugal não existiam partidos era porque Salazar e a prática garantida
diariamente pela sua vontade os dispensavam. Mas logo que essa vontade de Salazar
desaparecesse, era necessário que tudo regressasse à “normalidade”.
Depois desta análise inquietante, Mons. Gentile informou um Valadão
crescentemente apreensivo que em Portugal havia muito quem assim pensasse, embora
no episcopado houvesse uns bispos velhos e ultrapassados com os quais já não era
possível contar para a acção futura, caso de Cerejeira e de Trindade Salgueiro. Entre os
leigos, haveria gente de muito maior valia e merecimento (e nomeou dois conhecidos
académicos católicos, de feição política aliás bastante conservadora, um deles ex-
ministro da Justiça, Cavaleiro Ferreira, o outro futuro reitor da Universidade de
Coimbra, Braga da Cruz, que anos antes haviam tomado posições favoráveis às
pretensões da Igreja em matéria de ensino e reforma do sistema escolar em Portugal,
numa perspectiva de aplicação do ensinamento dos papas nesse domínio). Quanto ao
Bispo do Porto, Mons. Gentile apontava-o como o membro do episcopado em quem
depositava as suas maiores esperanças para o futuro, não mencionando sequer qualquer
outro. Antes de terminar, Mons. Gentile ainda sondou candidamente Valadão sobre a
possibilidade de futuramente os filiados na União Nacional virem a ingressar em massa
na democracia-cristã ou, pelo contrário, de se manterem fiéis à inexistência de partidos
ou preferirem organizar-se à parte.
22
À luz deste documento que, como se disse, foi imediatamente comunicado a
Salazar, percebe-se melhor o “recado” do chefe do governo no seu discurso de
campanha eleitoral e quem seria o seu destinatário. É porém bastante provável que o
ditador dispusesse de dados mais amplos, completados, por exemplo, com informações
eclesiásticas ou policiais sobre certos militantes da Acção Católica, correspondência
destes para o Bispo do Porto, etc. É significativo que três meses depois, no seu discurso
de 31 de Maio, Salazar pareça rejeitar liminarmente qualquer hipótese de preparação
dos católicos para uma fase de transição política em Portugal, que era precisamente o
que constituía a preocupação nuclear do Bispo do Porto. Quanto às posições de Mons.
Gentile, sublinhe-se o elevado conceito em que na Nunciatura se tinha D. António
Ferreira Gomes, considerado como a grande esperança do episcopado português. No
que respeita à carta de D. António Ferreira Gomes a Salazar, parece agora muito mais
claro sobre que pano de fundo e em que grau de sintonia com a representação da Santa
Sé em Lisboa formulara as suas ideias e propostas ao ditador. E compreende-se melhor
que o Bispo tenha sentido recair sobre si a tarefa de responder ao discurso de 31 de
Maio do chefe de governo.
Creio que poderá assim aparecer sob uma luz algo diferente a iniciativa de D.
António, que alguns seus pares descreviam como um bispo isolado, imprudente,
tomando iniciativas por sua conta e risco. O Arcebispo de Évora, por exemplo, chegou a
retratá-lo como um doutrinador ardente e erudito, com muita leitura e meditação, mas
vivendo afastado das realidades, num mundo construído com categorias de filósofo, e
que, de forma alegadamente isolada dentro da própria Igreja, um dia se tinha aventurado
a ir para a praça pública falar ao detentor do poder em nome de toda a Igreja. Ora a
ligação de D. António não era apenas com os católicos e o clero da sua diocese, mas
também com a Nunciatura, isto é, com Roma ou, pelo menos, com uma corrente de
23
pensamento muito influente na Cúria romana, enquanto o seu verdadeiro isolamento só
se verificava mais ao nível do episcopado, com o qual a colaboração se fora revelando
ao longo de dez anos muito difícil e problemática, em virtude de posições irredutíveis
de parte a parte. Na carta que citei, o Arcebispo de Évora, Trindade Salgueiro, acusava
D. António de defender os seus pontos de vista “com exagerado vigor, que podia ir até à
obstinação”, o que dá bem a medida dos desacordos entre eles, talvez os dois principais
bispos doutrinadores em Portugal nesse período.
Convém aqui dizer, em jeito de epílogo ao episódio acima relatado, que Mons.
Gentile, após a divulgação da carta do Bispo do Porto, perante a gravidade do incidente
que Salazar ameaçava precipitar com a Santa Sé e com o próprio Núncio (prestes a
despedir-se de Portugal) e perante as repercussões que a carta teve no país no
seguimento e continuação da agitada campanha eleitoral de Delgado, mudou totalmente
de posição, declarou-se a Valadão arrependido do “erro” cometido — provável
referência aos seus planos de democracia cristã para Portugal e aos seus eventuais
incitamentos à acção do Bispo do Porto — e censurou D. António por querer a sua
própria perda e, com ela, arrastar a Igreja e o país para uma catástrofe. Manifestamente
assustada com o clima de agitação introduzido pela candidatura de Delgado e pelo
aproveitamento que para essa agitação se fazia da carta do Bispo, a Nunciatura passou a
considerar que era o governo que tinha de ser apoiado pela Igreja, para se evitar a
perdição de ambos. Na sua nova informação, desta vez para o ministro da Presidência
Pedro Teotónio Pereira e para Salazar, já em 1959, Ramiro Valadão comentava: “A
evolução do pensamento de Mons. Gentile parece-me acontecimento de interesse”.
Perante isto, não se pode evidentemente concluir que, antes e depois deste
episódio de vaga promoção da democracia-cristã em Portugal, a Santa Sé havia sido e
iria continuar a ser em Portugal um sustentáculo do regime salazarista. Não é lícito
24
concluí-lo, apesar do conceito de “iluminado estadista” que Pio XII tinha de Salazar.
Mas voltam-nos sempre ao espírito as palavras de Casais Monteiro em 1959 no Estado
de S. Paulo, palavras sem aparente carga de anticlericalismo, com que expunha a sua
convicção de que em Portugal era a Igreja, mais que os generais, quem podia provocar o
derrube do regime dum momento para o outro e quem mais possibilidades tinha de
inspirar uma transição democrática que não tombasse no caos revolucionário.
III
O outro episódio a que queria dar também algum desenvolvimento é o do
processo de expulsão de D. António Ferreira Gomes do território nacional.
Depois de já em 1958, por meias palavras, ter sugerido ao Núncio a retirada do
Bispo do Porto da sua diocese, Salazar passou em 1959 a exigi-lo expressamente de
Roma, ainda que a coberto da confidencialidade dos canais diplomáticos. Praticamente
desde o início da crise, em Agosto-Setembro de 1958, que o ditador se persuadira de
não existir outra solução para ela, senão o afastamento do prelado. Todavia, para além
da consabida prudência e lentidão da diplomacia vaticana, várias circunstâncias
excepcionais concorreram para um certo arrastamento do processo. Entre outros factos,
podem citar-se a morte do Papa e a eleição do seu sucessor, o termo da nunciatura de
Fernando Cento e a elevação deste ao cardinalato, bem como uma enfermidade
prolongada de Salazar. A acrescentar a isto, em Outubro de 1958, antes da eleição de
João XXIII, Salazar foi informado pelo antigo embaixador português na Santa Sé, o seu
amigo pessoal José Nosolini, que, segundo este ouvira em Roma do Cardeal Ciriaci,
antigo Núncio em Lisboa, Cerejeira teria “grandes probabilidades” de ser eleito papa se
25
o Conclave se decidisse por um Cardeal não italiano. É muito difícil a avaliação das
possíveis repercussões de tal eventualidade, que hoje parece algo excêntrica e
inverosímil, mas cujas consequências não seriam forçosamente favoráveis ao regime de
Salazar.
O caso do Bispo do Porto tinha começado ainda sob o pontificado de Pio XII,
que morreu a 9 de Outubro de 1958, exactamente uma semana depois da primeira
resposta que a Santa Sé deu, por Mons. Tardini, ao primeiro protesto diplomático de
Salazar. Semanas antes de morrer, Pio XII teria comentado negativamente, como uma
grave indelicadeza do Bispo, a divulgação pública da carta a Salazar. Em fins desse
mês, D. António Ferreira Gomes dirigiu-se a Roma a pretexto de assistir à coroação de
João XXIII, mas decidido a apresentar-lhe a renúncia à diocese, dadas as reacções de
enorme desagrado que recebera por parte do poder e a total falta de solidariedade por
parte da maioria do episcopado. Além disso, o Cardeal Cerejeira acusara-o numa carta
pessoal de não ter respeitado uma resolução colectiva tomada pelos bispos nesse ano em
Fátima — resolução essa que não autorizaria o Bispo do Porto a tratar com Salazar dos
assuntos que abordara na sua polémica carta. Na véspera do pedido de audiência a João
XXIII para lhe apresentar a renúncia, o secretário de Estado do Vaticano, Mons. Tardini
— prevenido pelo Cardeal Cerejeira, que assim se interpôs, sem direito para o fazer,
entre o Bispo do Porto e o Papa — persuadiu D. António a desistir da sua ideia e a
tentarem, os três em conjunto, aplacar o ânimo vingativo do chefe do governo, o que foi
aceite também por Cerejeira.
Em 20 de Novembro de 1958, porém, já o governo português, com Salazar
secundado por Marcelo Matias, novo Ministro dos Negócios Estrangeiros (por sinal, um
velho companheiro das lides diplomáticas em Paris de Angelo Roncalli, o novo Papa),
dava secretas instruções para o embaixador no Vaticano no sentido de na primeira
26
ocasião propícia fazer chegar pessoalmente a João XXIII uma mensagem urgente. O
ideal, segundo o telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Roma, seria
aproveitar logo a primeira recepção aos diplomatas dada pelo novo Papa para lhe
transmitir a mensagem, caso viesse a talho de foice numa conversa a dois e sem quebra
do rigoroso protocolo do Vaticano. A mensagem, com esta aparência de urgência
desesperada, era a seguinte: não era mais possível manter-se em funções o Bispo do
Porto, dado o “escândalo público” causado pela sua carta, “comprometendo o carácter
apolítico e a isenção do seu cargo e transformando-se num símbolo de agitação
partidária e perturbação nos próprios meios católicos”. Isto era uma transparente
tentativa de, contornando o Núncio Cento e o secretário de Estado Tardini, considerados
ambos adversos ao governo de Salazar, tentar obter directa e rapidamente do novo Papa
a decisão ansiada pelo chefe do governo português, a retirada do Bispo da diocese do
Porto. Não teve êxito tal tentativa de falar directamente ao Papa, mas diz bem da ânsia
em que Salazar se encontrava já em Novembro de 1958 de acabar com a presença de D.
António à frente da sua diocese.
Dá-se depois disso o episódio, muito pouco conhecido até data recente, da
tentativa inútil de acalmar o ditador enviando-lhe uma segunda carta, assinada pelo
Bispo do Porto, mas realmente escrita pelo Arcebispo D. José da Costa Nunes, que
habitualmente residia em Roma com um cargo meramente simbólico na Cúria (vice-
camarlengo). Essa segunda carta ensaiava uma espécie de pedido de desculpas ou de
retractação do Bispo perante Salazar, mas que acabava por não sê-lo nem claramente
nem suficientemente. A assinatura de D. António numa carta redigida por outrem — por
sinal um entusiástico apoiante e admirador de Salazar, como hoje sabemos pela leitura
da sua correspondência para o ditador — representou certa humilhação para o Bispo do
Porto, mas que ele aceitou certamente na convicção de que cumpria instruções da Santa
27
Sé, de que D. José da Costa Nunes seria o portador. A intenção era fornecer a Salazar
um documento que ele poderia publicar, se o julgasse útil, como contraponto da
primeira carta, que fora divulgada sem assentimento do seu autor. Foi contrariado que
D. António Ferreira Gomes anuiu a colaborar nessa diligência de Costa Nunes,
preparada aliás com conhecimento prévio de Salazar, que não escondera não acreditar
no seu êxito. Na verdade, a diligência não deu nem podia ter dado nenhuma satisfação
ao governante, já apostado, como vimos, desde Novembro em pedir a retirada do Bispo.
É a aparente inadequação de tal tentativa de solução ao ambiente político português da
época que faz pensar que a ideia da diligência terá partido realmente do Vaticano.
Em Setembro de 1958, meses antes desta segunda carta a Salazar ter sido
engendrada, já D. António tinha tentado, então sem qualquer espécie de quebra da sua
dignidade episcopal, demarcar-se publicamente do aproveitamento e da divulgação do
seu escrito pela oposição, através da publicação de uma missiva ao responsável pela
campanha de candidatura de Humberto Delgado, Arquitecto Artur Vieira de Andrade.
Nessa “Carta ao Arquitecto”, como ficou referenciada para a história, mas que ainda
não foi publicada em lado algum até hoje, o Bispo do Porto declarava não poder receber
o destinatário na sua qualidade de representante de Delgado, acrescentando considerar
criminoso abuso de imprensa a divulgação que fora dada ao escrito que, sob a sua
autoria declarada, corria impresso, de fabrico e distribuição clandestina. Tentava
também esclarecer a sua posição que confirmava ser de independência política e
partidária, protestando contra a ideia que os autores da divulgação não autorizada do seu
escrito estariam a tentar difundir na consciência do público, de que "a um alegado
clericalismo apenas se pretende substituir outro clericalismo " (isto é, de que em
alternativa à aliança da Igreja com o salazarismo se propusesse agora o
comprometimento da Igreja com a opção política representada pela candidatura de
28
Delgado). Não havia nesta carta retractação de espécie alguma, nem na essência nem na
aparência, mas tão-somente a acostumada postura direita do Bispo do Porto, bem como
a reafirmação corajosa do seu pensamento. Como era de esperar, D. António não
conseguiu publicar a “Carta ao Arquitecto” nem no diário Novidades, órgão do
episcopado e dependente do Cardeal Cerejeira, que o recusou, nem em qualquer outro
periódico, incluindo um modesto boletim paroquial do Porto, onde a censura o foi
cortar.
Salazar estava convencido, e fê-lo saber numa carta de Dezembro ao Núncio
Cento, que nenhuma explicação pública do Bispo do Porto sanaria o caso. Não haveria
ali uma simples questão pessoal, fácil de esquecer, tratando-se antes "da orientação que
alguns sectores pretendem dar ou têm mesmo dado à Acção Católica, orientação que
pareceu a todos abertamente perfilhada por Sua Ex.ª Revm.ª [o Bispo do Porto]. E como
essa orientação servia o interesse das oposições, estas exploraram-na e converteram Sua
Ex.ª Revm.ª num prestigioso chefe das forças oposicionistas".
No mesmo dia em que escreveu esta carta, Salazar pronunciou um discurso na
posse da Comissão Executiva da União Nacional em que, sem nenhuma alusão directa
ao caso do Bispo do Porto, mas de cabeça um tanto perdida, como não era seu costume,
fazia pairar ameaças sobre a Concordata e o futuro das relações entre o Estado e a
Igreja, ao mesmo tempo que, com uma violência ainda mais rara, instava as autoridades
eclesiásticas competentes a fazerem acatar com inteira fidelidade pelos organismos
católicos onde houvesse desvios e "repetindo-a quantas vezes forem necessárias" a
verdadeira doutrina da Igreja, que ele dizia conhecer bem, e que implicitamente deixava
supor que conhecia pelo menos tão bem ou melhor do que os bispos.
No meio deste clima de invulgar irritação contra a Igreja e de fúria contra
aqueles católicos que, segundo Salazar, estavam a pretender abandonar a frente
29
nacional em que assentava o regime por ele chefiado, frente com a qual os católicos
estariam genericamente comprometidos, a Conferência Episcopal presidida por
Cerejeira publicou enfim, em Janeiro de 1959, uma pastoral colectiva da qual o governo
esperava que fosse uma desautorização insofismável das teses do Bispo do Porto, que
desencadeasse por si só ou a renúncia de D. António ou o seu afastamento por outra via
da diocese do Porto. Mas afinal as coisas não se passaram assim: a redacção da pastoral
por um Cerejeira muito conciliador contara afinal com a colaboração e a concordância
de D. António. Apesar de a interpretação do documento pela imprensa portuguesa ter
seguido fielmente as indicações e as preocupações do governo, que queria a imediata
retirada do Bispo como consequência lógica da pastoral, no estrangeiro interpretou-se a
posição unânime do episcopado português como uma afirmação de independência em
relação ao poder e até, num jornal católico inglês, como a adequada resposta dos bispos
portugueses ao irritado discurso de Salazar de Dezembro de 1958.
Cansado, pois, de esperar uma reacção espontânea de Roma a seu contento, em
fins de Janeiro o governo passou a exigir pelos canais diplomáticos, em Lisboa e no
Vaticano, o fim da presença do Bispo à frente da diocese. Dias depois, em Roma o
cardeal secretário de Estado Tardini informou o embaixador português Vasco Cunha de
que "a Santa Sé nunca aceitaria a imposição dum governo para a retirada dum bispo".
Acrescentou mesmo, com os seus modos um tanto bruscos, que em 36 anos de serviço
na secretaria de Estado do Vaticano nunca vira uma tentativa assim por parte de um
governo. Começou então a constar ao embaixador português no Vaticano, que o Bispo
do Porto tinha amizades na Secretaria de Estado e até, talvez, um aliado no Cardeal
Tardini. Passaram-se meses de espera por parte de Lisboa sem resultados, apesar das
achas que Salazar continuou a fornecer para o fogo da argumentação e das pressões do
embaixador no Vaticano. Em Abril de 1959 o chefe do governo disse para Roma que o
30
Bispo do Porto, que agora descrevia como um "chefe político", constituía um problema
já não só da sua diocese, mas de todas as demais, onde sacerdotes e leigos se iam
furtando às autoridades eclesiásticas locais para seguirem D. António. A participação de
militantes da Acção Católica e de um padre na intentona de Março desse ano (“golpe da
Sé”) era apontada por Salazar como um dado particularmente alarmante. Só via dois
caminhos: ou a Santa Sé retirava a diocese ao Bispo do Porto e se tentava restabelecer a
disciplina hierárquica nas demais dioceses, ou o governo teria que denunciar factos e
tomar as providências ao seu alcance, que trariam consequências de enorme gravidade,
como o surgimento duma questão religiosa no País. O homem que dizia ter resolvido a
questão religiosa em Portugal vinha agora ameaçar com a sua ressuscitação.
Entretanto, em Maio, começaram enfim a dar-se passos que o embaixador em
Roma atribuía à acção pessoal do Papa João XXIII que, contra a alegada má vontade de
Tardini, mostrava agora uma disposição mais favorável às pretensões do governo
português. Em resultado dessa nova evolução, o ex-Patriarca das Índias Costa Nunes
obtivera pessoalmente do Papa a missão confidencial de se deslocar a Portugal para,
com o fim aparente de assistir à inauguração do monumento a Cristo-Rei, realizar, na
verdade, um inquérito ao caso do Bispo do Porto e à respectiva diocese. O embaixador
Vasco Cunha avisava desde logo o governo que Costa Nunes, então ainda em Roma, se
iria encontrar em breve em Lisboa com Salazar e com o ministro dos Negócios
Estrangeiros, Marcelo Matias. O inquérito de Costa Nunes deveria tomar cerca de um
mês, findo o qual teria de elaborar um relatório com uma proposta de solução para
apresentar pessoalmente ao Papa.
Não há informação de quantas vezes Costa Nunes foi recebido nesse período em
Lisboa por Salazar, mas a 16 de Junho de 1959, o chefe do governo recebeu Costa
Nunes, a pedido deste, que lhe ia apresentar as suas despedidas, estando já de partida
31
para Roma dali a poucos dias. Deste encontro entre os dois existe no Arquivo do MNE
um relato-resumo escrito na primeira pessoa por Salazar. Depreende-se do relato do
diálogo entabulado que existia da parte de Roma — isto é, da parte do Papa e de alguma
sua entourage, à provável excepção de Tardini — desde antes da partida de Costa
Nunes para Portugal, o desejo de que o Bispo do Porto saísse do País de uma "maneira
doce", segundo as próprias palavras do mesmo Costa Nunes reproduzidas por Salazar.
Este, pela sua parte, quis deixar claro que o governo português só consideraria que havia
sido dada solução ao caso quando D. António Ferreira Gomes deixasse de ser bispo
dessa diocese. E acrescentou ao enviado confidencial de João XXIII: "O Governo deseja
que a Santa Sé não tenha dúvidas sobre um ponto: quer o senhor Bispo saia do país de
passeio, de licença, chamado a Roma ou por qualquer outra forma, tem de pôr-se
inteiramente de lado a sua reentrada no País". Neste ponto Costa Nunes retorquiu que,
de facto, "não conviria de modo nenhum ao governo português a presença do senhor
Bispo no nosso território, mesmo sem jurisdição episcopal". Já a fazer contas para o
futuro, Costa Nunes falou ainda nas reformas que era necessário fazer no governo da
diocese do Porto e em matéria de seminários, formação de clero, etc. O encontro entre
Salazar e o enviado secreto do Papa terminou com uma conversa sobre as dificuldades
que a Igreja encontrava então por toda a parte...
Apesar do que consta neste relato, que é aliás confirmado pelo teor de outros
documentos do Arquivo do MNE, Costa Nunes criou a lenda de que foi enganado por
Salazar e que, na sua boa-fé, acreditara que o ditador só desejava que o Bispo fosse
passar uma temporada ao estrangeiro, integrado uma peregrinação ou algo semelhante.
O Embaixador Eduardo Brazão contou nas suas memórias que ouviu esta mesma versão
da boca de Costa Nunes, na altura já elevado a Cardeal, e que acreditou nela. Também
32
D. António Ferreira Gomes contou ter ouvido de Costa Nunes a mesma lenda, em que
naturalmente não acreditou.
A 10 de Julho de 1959 o embaixador Vasco Cunha informava para Lisboa que
D. José da Costa Nunes ia entregar dentro de dias ao Papa o relatório do inquérito
realizado à diocese do Porto. Pormenor com um certo picante é que este relatório de um
enviado confidencial de João XXIII estava a ser traduzido para italiano na Embaixada
portuguesa no Vaticano por um funcionário da dita. Adiantava ainda o embaixador
Vasco Cunha para Lisboa que a solução proposta pelo relatório — de que pelos vistos
ele teve conhecimento antes do Papa, a quem o documento se destinava — era não a
destituição imediata, que Costa Nunes considerava inaceitável pela Santa Sé por razões
que não fossem exclusivamente de natureza religiosa, mas sim a saída imediata de
Portugal do Bispo em férias, ao que D. António já lhe dera o seu assentimento em
Portugal. A saída era pois com o pretexto de o Bispo gozar a licença de três meses
prevista pelo Código canónico, licença que seria sucessivamente prolongada até ao
prazo máximo de um ano, altura em que, segundo Costa Nunes afirmara ao embaixador,
se passaria então à destituição do Bispo. Entretanto podia ir-se nomeando um bispo
coadjutor para o Porto, achava Costa Nunes.
A 23 de Julho de 1959 o Bispo do Porto deixava o País oficialmente em gozo de
férias. A notícia foi cortada nos jornais portugueses pela censura. Semanas depois, o
jornal italiano Paese Sera titulava: "O Vaticano cedeu perante o ditador". E a notícia
dizia a dado passo: "Acaba assim, com a vergonhosa partida de um jovem bispo
corajoso, a oposição larvar que os católicos tinham procurado fazer ao regime católico-
corporativo de Salazar".
Não vou fazer aqui comentários a estes factos, que ficam assim em bruto, para
cada um os apreciar. Mas uma coisa parece ficar bem nítida: se D. António foi expulso
33
do território nacional por vontade e decisão de Salazar, foi um bispo português, D. José
Costa Nunes, que desbloqueou, conduziu e facilitou o processo de execução dessa
vontade e foi um papa, João XXIII, que deu luz verde à operação — provado como fica,
além do mais, que o pontífice teve conhecimento antecipado da recusa do ditador
português em deixar regressar o Bispo do Porto ao País, caso ele saísse. A menos,
obviamente, que Costa Nunes tenha ocultado a João XXIII a mensagem de Salazar
acima transcrita.
Lisboa, 30 de Setembro de 1998