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O caso do Bispo do Porto em arquivos do Estado

Date post: 20-Jan-2023
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Comunicação ao simpósio Profecia e liberdade em D. António Ferreira GomesFundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 30 de Setembro - 2 de Outubro de 1998. ______________________________________________________ José Barreto O caso do Bispo do Porto em arquivos do Estado Notas de uma investigação em curso I Disse um dia D. António Ferreira Gomes, anos volvidos sobre a morte de um seu antecessor cuja memória sempre enalteceu, D. António de Castro Meireles, Bispo do Porto falecido em 1942, que ele já tinha estátuas, mas ainda não tinha justiça. Dez anos passados sobre a sua própria morte, parece-me que algo de semelhante se pode afirmar a respeito de D. António Ferreira Gomes. Já teve importantes homenagens e solenes provas de reconhecimento público, mas a sua vida e a sua acção em prol da Igreja e do País ainda não tiveram suficiente consagração num plano essencial, o do esclarecimento histórico, investigação, divulgação e debate. É neste sentido que tarda em se lhe fazer justiça. O próprio Bispo o sentia no fim da vida, a julgar por alguns trechos dos seus últimos escritos e entrevistas, onde aflora uma certa amargura diante da memória curta dos seus contemporâneos. Insistia repetidamente na importância de se fazer a história dos tempos recentes, com destaque para a da relação Estado-Igreja. E dava o exemplo do episcopado da Alemanha, que no princípio dos anos 60 criara uma
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Comunicação ao simpósio “Profecia e liberdade em D. António Ferreira Gomes”

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 30 de Setembro - 2 de Outubro de 1998.

______________________________________________________

José Barreto

O caso do Bispo do Porto em arquivos do Estado

Notas de uma investigação em curso

I

Disse um dia D. António Ferreira Gomes, anos volvidos sobre a morte de um

seu antecessor cuja memória sempre enalteceu, D. António de Castro Meireles, Bispo

do Porto falecido em 1942, que ele já tinha estátuas, mas ainda não tinha justiça. Dez

anos passados sobre a sua própria morte, parece-me que algo de semelhante se pode

afirmar a respeito de D. António Ferreira Gomes. Já teve importantes homenagens e

solenes provas de reconhecimento público, mas a sua vida e a sua acção em prol da

Igreja e do País ainda não tiveram suficiente consagração num plano essencial, o do

esclarecimento histórico, investigação, divulgação e debate. É neste sentido que tarda

em se lhe fazer justiça. O próprio Bispo o sentia no fim da vida, a julgar por alguns

trechos dos seus últimos escritos e entrevistas, onde aflora uma certa amargura diante da

memória curta dos seus contemporâneos. Insistia repetidamente na importância de se

fazer a história dos tempos recentes, com destaque para a da relação Estado-Igreja. E

dava o exemplo do episcopado da Alemanha, que no princípio dos anos 60 criara uma

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Comissão para a História Contemporânea. Em 1983, no 50.º aniversário da chegada de

Hitler ao poder, a Comissão tinha já publicado 30 volumes de documentação crítica e

mais 20 monografias sobre a história do catolicismo alemão entre 1933 e 1945. D.

António lamentava-se nas suas Cartas ao Papa (escritas entre 1982 e 1985) que nada de

remotamente semelhante se tivesse feito desde 1974 em Portugal, onde com frequência

ouvia dizer sobre aspectos menos gloriosos da história recente que eram “coisas para

esquecer”! E ainda que o Estado Novo — “um modelo de Estado tradicionalista,

nacionalista, absoluto e ‘católico’, como uma aliança do trono e do altar” — não tivesse

tido uma história dramática e terrível como a do nazismo, observava D. António que

“não teria menor interesse a nossa história, objectiva e criticamente estudada, antes pelo

contrário”.

Hoje não é preciso fazer a reabilitação de D. António Ferreira Gomes. A simples

passagem dos anos se foi encarregando, desde os anos 50 até à sua morte, de lhe dar

sucessivamente razão aonde antes lha haviam negado. Isto não prova, é claro, a

habilidosa tese de que D. António tenha tido “razão antes do tempo”, como em

desespero de causa se chega a sustentar, pois ele teve-a quando mais importava, quando

era oportuno e corajoso tê-la, quando outros cultivavam o silêncio e a omissão. Em todo

o caso, o “tempo” apenas costuma salientar aspectos já antes perceptíveis, deixando na

penumbra e na escuridão outros que, em geral, só a investigação pode revelar, quando

pode. Por outro lado, é um facto que a imagem de D. António Ferreira Gomes foi a um

tempo muito maltratada e que depois do 25 de Abril, por motivos e circunstâncias

diversas, a que também não foi alheia a resolução de D. António de deixar correr águas

passadas e a recusa de compor ele próprio o seu retrato para a história, acabou por ficar

insuficientemente conhecida e reconhecida pela generalidade dos seus contemporâneos

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uma certa dimensão da sua acção, que envolvia maior melindre, nomeadamente dentro

da instituição eclesiástica.

Persiste ainda hoje uma névoa em torno da sua figura feita de restos de velhas

recriminações e suspeições à mistura com sentimentos mais recentes de incomodidade

diante da tarefa, algo dolorosa para toda a Igreja, sem dúvida, de reflectir e tirar lições

de um passado que não se pode mudar. Persiste sobretudo uma falta de esclarecimento.

Com o passar do tempo, em todo o caso, parece dissiparem-se gradualmente as

circunstâncias que há dez ou vinte anos atrás ainda opunham sensível resistência a uma

avaliação justa e objectiva da estatura de D. António como figura da Igreja e da vida

nacional no século XX. Este simpósio significará certamente um passo importante nesse

sentido. Pela minha parte, independentemente da admiração que a figura do Bispo me

merece, desejo apenas que mais tarde se não possa dizer que os historiadores actuais

desleixaram o seu trabalho.

O caso do Bispo do Porto foi durante longos anos assunto tabu nacional, nem

podia deixar de o ter sido. Salazar foi o grande cultor e mestre político do tabu neste

século em Portugal. Basta contemplar aqueles vestígios da realidade portuguesa

sistematicamente escondida dos olhos do público, parcialmente conservados e

acessíveis hoje sob a forma de documentação histórica no Arquivo Salazar, no Arquivo

da PIDE e no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, entre outros, para se

poder constatar como o silêncio absoluto imposto em torno de numerosas pessoas,

factos e aspectos da vida social e política era um dos principais ingredientes da

governação corrente de Salazar, prática que pouco ou nada tinha a ver com a defesa ou a

segurança do Estado e tudo tinha a ver com a manutenção da ditadura ou do regime

autoritário. Esse pesado silêncio abateu-se também sobre o Bispo do Porto para,

juntamente com uma série de acusações e distorções sem réplica possível, contribuir

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para abafar a onda de apoio que a divulgação da sua célebre carta a Salazar, em Julho de

1958, tinha desencadeado entre católicos e não católicos.

A carta — divulgada fortuitamente ou não, pouco importa, dado o carácter

extraordinário do seu conteúdo e a evidente ruptura com o ditador que ela não podia

deixar de significar por parte de um dos mais destacados elementos da hierarquia

católica — ameaçava pôr a nu uma realidade terrível de consequências para o chefe do

governo, uma realidade tabu. A saber, que não era afinal a Igreja, nem os católicos, nem

sequer uma maioria esmagadora do clero, quem apoiava e estava realmente aliada com

o regime, mas sim e principalmente a hierarquia, ou melhor, a maioria do episcopado,

onde pontificavam como doutrinadores e figuras tutelares, como os católicos sabiam, o

Patriarca de Lisboa, Cardeal Cerejeira e o Arcebispo de Évora, D. Manuel Trindade

Salgueiro. Manter, pois, semelhante carta apenas no conhecimento do seu autor e do seu

destinatário, como sustentaram e ainda hoje sustentam certas boas almas que na relação

com o poder prezam acima de tudo o “respeito” e a discrição, mantê-la secreta seria,

além de hipocrisia, o mesmo que a não escrever e o mesmo que a não pensar. Por isso,

D. António enviou exemplares policopiados da carta, num total de cerca de 50, aos seus

pares do episcopado e a personalidades católicas das suas relações, com pedido de

discrição. Foi um acto de coerência e lucidez. Além do mais, se o não tivesse feito logo,

o governo de Salazar tê-lo-ia impedido de o fazer mais tarde, sobre o que não podem

restar dúvidas a ninguém.

Em 1958, o primeiro grande sinal de alarme para o regime fora accionado pelo

candidato a Presidente general Humberto Delgado que, oriundo embora das fileiras

militares conotadas com a instauração e a sustentação do regime, arrastara nesse ano

multidões nunca vistas ao centro do Porto e outras cidades do País, massas humanas

desejosas de liberdade e de um líder político que as libertasse em primeiro lugar do

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medo, outro grande ingrediente da governação corrente de Salazar. O governo tentou

recompor-se do forte abalo que a campanha eleitoral presidencial de 1958 provocara —

pela última vez, pois que a revisão constitucional de 1959, como alguém escreveu,

fecharia o círculo do poder a novas surpresas dessas, acabando com a eleição directa do

presidente da República. Ia porém surgir a breve trecho nova grande surpresa. Era o

pastor da diocese do Porto, há muito já referenciado pelo poder como avançado e

"imprudente”, que, sob o lema do descomprometimento da Igreja com o regime, abria a

cancela do redil e parecia incitar à dispersão do rebanho católico integrado na chamada

frente nacional — termo com que Salazar designou em Dezembro desse ano de 1958 a

base de apoio do seu regime, na qual expressa e publicamente dava por incluída a Igreja

Católica. Ora a carta do Bispo punha precisamente em cheque tal frente, como toda a

gente sentiu, incluindo o governo e a oposição, esta então ainda reunida atrás de

Humberto Delgado.

Salazar descreveu assim o efeito da carta, num protesto diplomático confidencial

para a Santa Sé: “Nos meios hostis ao regime a carta foi naturalmente recebida com

alvoroço e entusiasmo: o Senhor Bispo do Porto começou a ser considerado um bispo

das oposições; a Igreja em Portugal não só teria pela sua voz rompido com ligações que

a comprometiam, como se declarava solidária com modos de ver defendidos pelas

oposições na última campanha eleitoral”. Num aparte, deve observar-se que esta é

aparentemente a primeira vez que se divulga um comentário directo de Salazar sobre o

caso do Bispo do Porto. É que ele nunca os fez publicamente. Fazia parte da regra do

silêncio, do tabu: não fazer referência pública às opiniões contrárias, não pronunciar

sequer o nome do adversário, o nome de quem se discorda.

A carta do Bispo fez naturalmente furor em Portugal e no estrangeiro. No Brasil,

o escritor portuense exilado Adolfo Casais Monteiro saudou com entusiasmo no jornal

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Estado de S. Paulo aquilo que ele via como “o despertar da Igreja em Portugal” e

acrescentava que a Igreja portuguesa podia, melhor que as Forças Armadas, derrubar a

ditadura de um momento para o outro. Fazia votos para que isso se realizasse pois que,

segundo ele, assim se poderia talvez conseguir um processo de transição pacífica e

controlada para uma democracia, evitando a subversão generalizada que se temia e que,

dizia Casais Monteiro, o Bispo do Porto não fora o primeiro a prever em Portugal

(alusão à previsão por D. António na carta a Salazar de uma “tremenda erupção anarco-

social-comunista” se o imobilismo político e social do regime se mantivesse,

incapacitando-o para “aguentar o embate” que se perfilava no futuro). A carta de D.

António obviamente não deitou o governo abaixo, como lá fora se chegou a acreditar

que pudesse acontecer, mas causou uma certa comoção pelo país fora.

Mal se constatou que, por acção da oposição (e, em particular, do aparelho

eleitoral de Humberto Delgado, que teve a parte talvez maior na divulgação da carta), o

choque podia alastrar perigosamente ao país católico e não católico, o ditador o governo

mandou agitar o espantalho do comunismo, encarregou um panfletista medíocre de

chamar “bispo vermelho” a D. António Ferreira Gomes, pôs o paço episcopal e a

diocese do Porto sob vigilância policial, mandou o Governo Civil do Porto interrogar o

Bispo sobre as causas da divulgação da carta, intimou publicamente as autoridades

eclesiásticas nacionais a meterem a Acção Católica e o clero na ordem (ao que as ditas

autoridades anuíram o melhor que puderam), apelou aos Estados amigos de Portugal,

entre os quais a Santa Sé, e debelou a crise pelas habituais medidas de repressão. A

retirada do bispo da diocese passou a ser reclamada ou sugerida confidencialmente, quer

através da embaixada portuguesa no Vaticano, quer em cartas de Salazar ao Núncio

Fernando Cento, sob ameaças pouco veladas de dissolução da Acção Católica e até

contra a própria Concordata. O embaixador português, Vasco Cunha, chegou em 1959

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como que a reivindicar da secretaria de Estado da Santa Sé que a retirada de D. António

fosse concedida por Roma a exemplo do abandono de um bispo cubano da sua diocese

em Cuba por imposição do recém-instaurado regime castrista. Ou seja, o campeão do

anticomunismo Salazar não se importava de enfileirar em causa comum ao lado de

comunistas — desde, claro, que isso não se soubesse publicamente — para coarctar a

independência e a liberdade da Igreja. Ao fim de um ano de trabalhos, pressões e

insistências, Salazar conseguiria conduzir o Bispo para fora do território nacional, com a

ajuda decisiva, como adiante se verá, de um destacado membro do episcopado

português, D. José da Costa Nunes (Arcebispo resignatário de Goa, ex-Patriarca das

Índias, Arcebispo in partibus de Odessus e vice-camarlengo na Cúria romana),

averbando assim uma primeira vitória parcial contra o Bispo do Porto. O ditador estava

decerto longe de imaginar que seria também a última.

Quanto à Igreja e aos católicos, se a carta do Bispo, como Salazar dizia, tinha

semeado a discórdia nos seus espíritos que antes estariam tranquilos, muito maior ia ser

a onda de reprovação suscitada no meio católico contra o governo no seguimento da

expulsão do Bispo do Porto e do regresso da Igreja e do país à velha normalidade. Um

regresso à normalidade muito relativo, pois que nos dois ou três anos seguintes houve

forte instabilidade política em Portugal, desde tentativas de golpe de Estado palacianos

e intentonas armadas, até à eclosão dos movimentos independentistas e da guerra em

África, passando pelo início da agitação estudantil, etc. A partir da expulsão de D.

António, um dos maiores motivos de mobilização política dos católicos e da sua divisão

entre apoiantes e opositores do regime, terá precisamente sido o longo exílio forçado do

Bispo do Porto ao qual nem Salazar nem Franco Nogueira iriam conseguir que lhe fosse

retirada a Diocese.

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O regresso do Bispo do exílio em 1969, nas circunstâncias em que se verificou,

não exigiu que se quebrasse o tabu senão numa extensão bem delimitada. Não houve

explicações públicas por parte do novo governo sobre as causas do exílio forçado do

Bispo durante dez anos ou da decisão de autorizar o seu regresso (em Junho de 1969 e

não antes, já que o governo de Marcelo Caetano a partir de Setembro de 1968 mandou

reforçar pelo menos quatro vezes as ordens dadas à PIDE das fronteiras para não

permitir a sua entrada no país). O Patriarca de Lisboa e a maioria dos bispos tinham

achado melhor que D. António não regressasse do exílio para que se não perturbasse

uma vez mais a boa harmonia Igreja-Estado Novo. Quando o Bispo do Porto, não

obstante, obteve luz verde de Paulo VI para, se assim o desejasse, tentar regressar a

Portugal e à diocese de que continuava titular, e quando depois disso regressou

realmente, o episcopado, dando forte impressão de simplesmente se conformar com o

facto, não tornou pública qualquer posição de regozijo ou de boas vindas, antes manteve

o seu velho silêncio oficial sobre o caso. Um dos bispos de então tentou posteriormente

— numa obra memorialística recente — explicar que, permanecendo D. António dez

anos no exílio, concorrera mais eficazmente para a evolução da sociedade portuguesa,

através duma maior mobilização dos católicos em seu torno, do que com a sua eventual

presença no País. Uma tese no mínimo curiosa, pela maneira algo rebuscada como

retrospectivamente parece pretender justificar uma posição dificilmente justificável.

Enfim, a Santa Sé e o próprio Paulo VI foram tão cautelosos que deixaram que D.

António regressasse primeiro ao País e só uma semana depois, mercê de várias pressões

e démarches de bastidores, é que o Administrador Apostólico D. Florentino Andrade e

Silva foi persuadido ou pressionado pela Nunciatura para que abandonasse a diocese. D.

António não julgou nada favoravelmente este excesso de diplomacia da Santa Sé.

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O 25 de Abril passou aparentemente muito ao largo do caso do Bispo do Porto,

por isso as questões tabu nunca esclarecidas começaram a ser transferidas para o

departamento do esquecimento. Numa pastoral colectiva intitulada “O Contributo dos

Cristãos para a Vida Social e Política”, datada de 16 de Julho de 1974, com o País já a

dar a impressão de caminhar para a revolução anarco-social-comunista que D. António

e muitos democratas tinham profetizado para o caso de não se iniciar uma decidida

transição de regime, os bispos aceitaram confessar que tinha de facto havido certos

paralelismos evolutivos entre a Igreja e o Estado Novo, mas (e cito) “sem prejuízo da

clara distinção das respectivas competências”. O então Bispo de Aveiro e presidente da

Conferência Episcopal, D. Manuel Almeida Trindade, relatou nas suas memórias que D.

António fizera “finca-pé” (é o termo utilizado nessa obra) para que os bispos pedissem

colectivamente perdão ao povo português. De facto, não pediram. Apenas declararam

assumir as suas responsabilidades por eventuais erros e omissões, sempre possíveis em

seres humanos e atribuíveis às “vicissitudes e limitações da condição terrena”. Foi tudo

o que D. António Ferreira Gomes conseguiu que os seus pares unanimemente

subscrevessem em 1974. Nem uma palavra nessa carta pastoral colectiva do episcopado

português sobre, por exemplo, a expulsão do país e o exílio forçado durante dez anos de

um dos seus.

Um quarto de século passou entretanto e ainda hoje não se sabe, apesar da tal

“clara distinção das respectivas competências”, por exemplo, quantos bispos indigitados

pela Santa Sé através da Nunciatura foram vetados durante o governo de Salazar e por

que razões políticas concretas. Note-se que, normalmente, o ditador nem precisava de

chegar à situação crítica da recusa do indigitado, bastava dar previamente a conhecer os

seus humores pelas vias mais apropriadas, nomeadamente eclesiásticas. Apesar disso,

são conhecidos três ou quatro casos de recusa. Não se sabe se houve mais. No entanto, o

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clausulado da Concordata nem sequer conferia esse poder de veto ao chefe do governo

— como entre outros o sustentou o jesuíta Prof. António Leite — mas sim e apenas um

direito de pré-notificação, que lhe permitia levantar de facto “objecções de carácter

político geral” contra os indigitados, mas sem poder eliminativo. A Concordata garantia,

sim, o secretismo das diligências de indigitação e pré-notificação, ambiente de eleição

para as manobras com que o manhoso chefe do governo obtinha o que queria. Digo

manhoso, mas o Bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, dizia “manhoso e

terrível”, numa carta enviada de Moçambique ao Bispo do Porto em 1958,

comunicando-lhe o seu apoio na questão da carta a Salazar. A missiva do Bispo da

Beira para o Porto foi interceptada pela PIDE e facultada a leitura de uma cópia ao

ditador. Pode agora consultar-se no Arquivo Salazar, pois parece que continua inédita.

Quatro anos depois de ter escrito essa carta, o Bispo da Beira viu em 1963 ser rejeitada

por Salazar a sua nomeação para Arcebispo de Braga.

Entre as mistificações que mais perduram em torno da figura de D. António

Ferreira Gomes, pode apontar-se aquele rótulo ou labéu de “Bispo político” que lhe foi

colado e que, ao longo dos anos, nunca se viu ninguém da Hierarquia da Igreja, além do

próprio D. António, desmentir, desmistificar ou, ao menos, relativizar. Para isso teria

tido de se fazer compreender doutrinariamente aos anestesiados pelo nacionalismo

católico de Salazar, algumas coisas hoje talvez comezinhas. Em primeiro lugar, que a

política não é o pecado da Igreja (como um dia, se bem me recordo, escreveu D.

António Ferreira Gomes); em segundo lugar, que a Igreja, não sendo alheia nem

distante em relação à política do poder, não pode ser alheia nem distante em relação à

política do povo; em terceiro lugar, que os papas e os bispos à sua especial maneira

também sempre fizeram política, nos bastidores ou a céu aberto, com partidos, sem

partidos, ao lado dos partidos e até contra os partidos. Assim, talvez se pudesse concluir,

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numa segunda etapa, que António Ferreira Gomes não foi certamente mais político do

que Manuel Trindade Salgueiro, nem Manuel Gonçalves Cerejeira foi decerto menos

político do que Sebastião Soares de Resende. As políticas de cada um deles é que

diferiam muito entre si, tanto na substância social e humana, como na proximidade e

identidade com o poder autoritário e no grau de receptividade ao valor da liberdade.

Não se pode dizer que tanto o episcopado como Salazar, em virtude da sua

eventual formação católica tradicionalista, estivessem na ignorância da doutrina de

Bento XV — que, aliás, o próprio Salazar explicara, em 1922, num livro dirigido aos

católicos politicamente organizados. O dever de acatamento pelos católicos dos poderes

constituídos e de obediência às autoridades e leis vigentes, dever que também não era

absoluto e sem excepção, pois em certos casos a sedição e rebelião não eram proibidas

pela Igreja, esse dever (cito do referido livro) “não se confunde com a adesão ao regime,

que Sua Santidade não impõe nem sequer aconselha em parte alguma”. Esta doutrina

anti-integrista sabia-a muito bem Salazar para a aplicar às relações dos católicos

monárquicos com a Primeira República, isto é, para lhes lembrar que não tinham de dar

a sua adesão ao regime republicano, mesmo que aceitassem tomar lugar no seu

parlamento ou no seu governo. Mas esqueceu-se dela posteriormente, para a aplicar às

relações dos católicos não salazaristas com o Estado Novo.

Além de “Bispo político”, quantas outras acusações, sem contar as puras

calúnias, não foram pronunciadas a partir de 1958, quer no seio da Igreja quer pelo

governo autoritário, ficando a pairar até hoje, como que por inércia, sobre a figura e a

memória de D. António, sem que desde a instauração das liberdades em Portugal a

partir de 1974 — incluindo a instauração de algumas liberdades inéditas da Igreja —

essas acusações e sentenças tenham jamais sido debatidas em profundidade? Na maioria

dos casos, recorde-se, não houve para o acusado a mínima possibilidade de defesa

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pública no momento oportuno. Depois o próprio Bispo se foi desinteressando, por falta

de oportunidade e por motivos relacionados com a nova fase histórica vivida a partir de

1974, de exigir ou prestar os esclarecimentos definitivos em relação com o seu caso —

que, diga-se, nunca foi um mero caso pessoal, como alguns pretenderam com o intuito

transparente de o representarem como um caso marginal, isto é, como o caso de um

bispo cismático nos dois sentidos que o dicionário de português dá para esta palavra.

Hoje pode não parecer necessário perder muito tempo a averiguar se realmente

D. António terá merecido o epíteto absurdo de “bispo vermelho” ou outras infâmias que

lhe eram lançadas pelos panfletistas ao serviço do ditador. Poderá também parecer

ocioso darmo-nos ao trabalho de ir verificar se o que o Bispo do Porto pretendia em

1958 era mesmo, como Salazar denunciou para Roma, transformar a Acção Católica

num partido político ou no germe de um partido político.

Não é certamente em torno dessas e de outras acusações, que o ditador nem

sequer tinha a coragem de repetir pessoalmente na praça pública, que a injustiça em

torno da figura de D. António pode perdurar. Tais acusações caíram ou caem por si

mesmas. Mas há o risco de, se não se esclarecer tanto quanto possível todo o caso, as

futuras gerações não entenderem sequer em que residia afinal a pesada acusação de

“fazer política” e porque é que ela soava tão patética e sinistramente quando dirigida a

um bispo e vinda de um governante tido por catolicíssimo, no país que se dizia ter a

Concordata mais favorável e o governo supostamente mais carinhoso e protector para a

Igreja católica.

Quero fazer aqui uma referência ou um comentário aos três arquivos de Estado

que figuram entre as principais fontes da minha investigação — Arquivo Histórico do

Ministério dos Negócios Estrangeiros, Arquivo Salazar e Arquivo da PIDE/DGS.

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A imediata constatação que o historiador pode fazer sobre a documentação

guardada nos arquivos referidos — apesar de ser bem visível que foram oportunamente

expurgados das peças mais comprometedoras — é a de um estilo de governação e de

uma concepção minimalista dos direitos humanos que deitam completamente por terra

as famosas pretensões do Estado Novo a considerar-se limitado pelo Direito e pela

moral cristã, as tais pretensões ainda hoje levadas demasiado a sério por certos

politólogos e historiadores empenhados em afastar do salazarismo qualquer leve

suspeita de totalitarismo. A devassa da correspondência privada — para já não falar dos

outros métodos de rapina das liberdades individuais — processada em grande escala,

constituía um instrumento corrente de informação da governação, usado, repito, maciça

e permanentemente, e não, como a legislação de 1934 em diante previa, só em casos de

ameaça à segurança do Estado. O próprio clero, em princípio integrado na frente

nacional, como Salazar lhe chamava, não era poupado por essa devassa maciça de

correio. Pelo menos nas pastas do Arquivo Salazar e do Arquivo da PIDE relativas ao

caso do Bispo do Porto encontrei cartas de numerosos párocos e prelados, além das de

D. António Ferreira Gomes. As cartas eram interceptadas nos correios, abertas,

transcritas, fotocopiadas e, até, simplesmente confiscadas.

Era o próprio Salazar quem, travestido momentaneamente em autoridade

eclesiástica suprema, lia pessoalmente essa correspondência trocada entre membros do

clero, incluindo entre membros do episcopado, não se esquecendo de sublinhar as partes

para ele mais interessantes a lápis e de distribuir eloquentes pontos de interrogação a

quem não pensava como ele. Assim, quando em 1959 os bispos, um a um, responderam

à circular que lhes tinha sido enviada em Maio desse ano por D. António Ferreira

Gomes, Salazar ficou a saber exactamente o que pensava cada um dos membros do

episcopado, incluindo os de África, sobre o caso do Porto — e quem diz sobre o caso do

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Porto diz sobre as relações Estado-Igreja em Portugal. Correspondência de bispos

portugueses para Roma foi interceptada pela PIDE e lida pelo ditador, o mesmo

acontecendo a correspondência chegada por via postal normal para a Nunciatura em

Lisboa, que era para todos os efeitos uma legação diplomática dum Estado estrangeiro.

Como dizia D. António, a Santa Sé era um Estado sui generis, dado que jamais

teria bombas atómicas. Porquê devassar a correspondência de e para a Santa Sé e seus

representantes? Roma não tinha, de facto, bombas nem exército. Mas tinha algo mais

perigoso, do ponto de vista do catolicíssimo Salazar. Em primeiro lugar, Roma tinha

uma Igreja universal, muito diferente, já antes do Concílio, daquela que ao Estado Novo

e ao Império português mais convinha, a saber, uma Igreja nacional e nacionalista com

bons ofícios na Cúria romana e com a missão de estender uma influência cristianizadora

paralela da colonizadora, uma influência de âmbito quase planetário através do

continente negro e, pelo padroado do Oriente, até à longínqua e independente União

Indiana, que já tinha democracia quando nós ainda só tínhamos Salazar, como lembrava

uma grande figura política do século XX, o Eng.º Francisco da Cunha Leal. Em

segundo lugar, Roma já deixara de acreditar na supremacia do colonizador, Pio XI quis

pregar a unidade do género humano mesmo aos nazis e o Papa Montini, Paulo VI,

pressionava o governo português para que aceitasse a nomeação de um bispo negro. Em

terceiro lugar, Roma afeiçoara-se sob os últimos pontificados, sobretudo o de Pio XII,

às instituições democráticas, franzia o sobrolho ao nacionalismo, encorajava ou

promovia a democracia-cristã em Itália e noutros países europeus, abençoava as

liberdades individuais, preconizava sindicatos cristãos e (ou) liberdade sindical e

admitia as justas lutas reivindicativas dos trabalhadores, inclusive a greve, duma forma

muito mais evidente do que o corporativista cristão Leão XIII o admitira no final do

século passado.

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Para Salazar, tudo isto e mais alguma coisa — como, por exemplo, os estudos

julgados subversivos que os jovens padres portugueses iam fazer a Roma ou a Lovaina e

as ideias sociais e políticas perniciosas infiltradas em Portugal através dos contactos da

Nunciatura com o clero e os católicos locais — tudo isto, se não fazia da Santa Sé uma

potência inimiga, era contudo quanto bastava para ser classificada como uma

preocupação permanente. E uma preocupação crescente, porque como temiam o Salazar

e o ministro Franco Nogueira, os papas sucessores de Pio XII tendiam para aquilo que

os governantes portugueses classificavam de “progressismo”, para já não falar do

anticolonialismo.

Para encerrar por aqui este breve panorama da duvidosa harmonia Estado-Igreja

(Igreja aqui no sentido próprio, e não apenas como hierarquia ou clero) e do duvidoso

espírito concordatário que presidiam ao relacionamento do governo de Salazar com a

Igreja Católica, ainda uma pequena ilustração colhida na Torre do Tombo. Existe no

Arquivo da PIDE e no Arquivo Salazar uma insólita colecção de extractos de homilias

que foram recolhidos nas igrejas do Porto em diferentes datas por informadores da

PIDE ou do ditador, que andavam pelas missas a registar o que o celebrante dizia e se,

porventura, pedia aos fiéis para rezarem pelo Bispo titular, que fora já expulso do País.

Numa dessas informações, que tive a oportunidade de consultar, datada de 2 de Agosto

de 1959, registou-se que o padre celebrante tinha declarado que “a missão do Padre era

pregar sempre a verdade em toda a parte, ainda que diante dos tribunais e dos falsos

detentores da autoridade”. Este trecho — que não acusava nada nem ninguém em

concreto, a não ser talvez o próprio indivíduo que se encontrava dentro do templo a

registar a frase — ficou sublinhado pelo próprio punho do ditador na informação em

causa e tem por isso, muito provavelmente, uma qualquer relação com a destituição

(destituição por via eclesiástica, claro) verificada pouco depois do padre em questão,

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dos cargos de professor e vice-reitor de um seminário. Esse padre foi muito mais tarde

um eminente bispo [D. Manuel Martins, Bispo de Setúbal] e está aqui hoje connosco

nesta sala.

Que dizer sobre esta violação pelo governo das barreiras de separação garantidas

pela Concordata, sobre estas formas implacáveis de perseguição estatal a membros do

clero, sobre esta falta de decência e, penso eu, de espírito cristão por parte do chefe do

governo? Que eram tão despóticas e condenáveis como as perseguições que, sem a

colaboração dos respectivos episcopados, se faziam nos Estados que professavam

filosoficamente o ateísmo? Ou que eram pecadilhos, coisas benignas, que no cômputo

geral eram anuladas pelo saldo positivo, pelo superavit, como lhe chamava em 1959 o

então Arcebispo de Mitilene?

II

Não é possível fazer aqui um historial completo do caso do Bispo do Porto.

Optei por destacar dois episódios ou aspectos do caso sobre os quais reuni alguma

documentação inédita e plausivelmente desconhecida, proveniente dos arquivos de

Estado que já mencionei.

Um primeiro episódio, que quero desenvolver de seguida, tem a ver com o

desafio do Bispo do Porto a Salazar, na sua célebre carta de Julho de 1958, para que

deixasse os católicos livremente definirem e propagarem o seu “programa ou programas

políticos” e para que os deixasse organizarem-se politicamente e apresentarem-se às

eleições legislativas seguintes (as próximas eleições eram em 1961, dali a três anos).

Surgia este desafio parcialmente em resposta a um passo do discurso de Salazar de 31

17

de Maio de 1958, lido em plena campanha eleitoral para a presidência da República,

discurso a que o Bispo do Porto aludia repetidamente ao longo da sua carta, replicando a

pontos sucessivos que ia citando. Pode dizer-se que a carta de D. António foi toda ela

uma resposta ao discurso de Salazar acima referido. A dado ponto do seu discurso,

Salazar referira-se displicentemente, como de costume, aos diversos partidos políticos

que a oposição queria ter a liberdade de poder organizar, e mencionara entre eles, coisa

estranha e inédita, um partido da democracia-cristã. Numa frase vaga e enigmática,

como era seu apanágio ao tratar de opiniões divergentes da sua e outros assuntos

desagradáveis, o chefe do governo deixava entender que haveria quem julgasse

necessário esse partido em Portugal, provavelmente “para melhor assegurar a defesa da

Igreja”, acrescentava Salazar, parece que com alguma intenção irónica, por seguramente

duvidar que alguém melhor do que ele pudesse defender os interesses da Igreja.

Na sua carta D. António Ferreira Gomes respondia-lhe que se tal partido era

reclamado, não seria decerto principalmente ou imediatamente para assegurar a defesa

da Igreja. O problema era outro, segundo D. António, era de ordem civil e social. E

recomendava paternalmente a Salazar que ultrapassasse a mentalidade de Centro

Católico — organização política a que Salazar e Cerejeira haviam pertencido e que sob

a I República defendia os interesses da Igreja num ambiente político e legislativo que se

tornara muito mais adverso a ela do que antes do 5 de Outubro. O que o Bispo lhe

estava a dizer era que o tal partido de democracia-cristã, posto em causa no discurso de

Salazar, provavelmente não pretenderia ser um órgão de resistência, uma catacumba ou

um simples lobby da Igreja em Portugal, como fora o Centro Católico, mas talvez um

partido popular, um partido de massas, com um programa social e político autónomo,

obviamente para a competição democrática em eleições com outras forças e outros

programas. Por consequência, o que o Bispo indirectamente reclamava ao defender os

18

direitos da democracia-cristã era também uma democracia pluripartidária. Não o fazia

directamente, a meu ver, porque como homem da Igreja, D. António preferia falar antes

de mais em nome dos católicos. E diante de Salazar só nessa qualidade podia

manifestar-se.

A réplica de Salazar sobre o ponto da democracia-cristã já não foi dada ao

Bispo, mas a Roma, através do Núncio, que era Mons. Fernando Cento. Numa carta de

protesto diplomático enviada em 18 de Setembro de 1958 para o Núncio, que se

encontrava então no Vaticano a aguardar instruções de Pio XII, o chefe do governo

português lembrava-lhe que: “A doutrina que informa a Constituição [de Portugal] é

hostil à existência de partidos políticos que, por isso, não são reconhecidos”. Note-se

que, tanto quanto sei ou me lembro, Salazar nunca afirmara isto de forma tão categórica

como nesta passagem desta carta, cuja leitura se deve recomendar àqueles que

concedem uma relevância particular ao facto de nem a Constituição de 1933 nem a lei

avulsa proibir expressamente a criação de partidos. De seguida, Salazar, metendo à viva

força a organização da Acção Católica na questão (quando ela não estava originalmente

na carta do Bispo, pelo menos no contexto da questão partidária), Salazar acrescentava

que se a Acção Católica (cito) “sob a influência de exemplos alheios cuja legitimidade

não discuto, [...] se transforma ou pretende ser o germe de um partido político ou se

destina a formar uma força política e os quadros já expressa e intencionalmente

destinados a um partido político, então, porque contrária à Constituição, a situação [da

Acção Católica] terá de ser revista”. Com isto queria Salazar dizer muito claramente, de

acordo com o restante teor da carta, que a existência da Acção Católica ficava em causa,

isto é, que teria de ser dissolvida.

Com esta manobra e esta ameaça, o chefe do governo — que parecia saber mais

sobre a Acção Católica do que aquilo de que a acusava concretamente — criava um

19

meio de pressão e uma moeda de troca na sua discussão com a Santa Sé, a saber, a

existência ou não existência da Acção Católica em Portugal, cuja manutenção ele

declarava dependente da sua benevolência. Ao mesmo tempo desviava o contencioso

inicial com o Bispo para um assunto que nada tinha a ver com a questão essencial de

saber o que viria em Portugal após o salazarismo. Na resposta enviada a Salazar através

do Núncio Cento, Mons. Tardini, pró-secretário de Estado da Santa Sé, não falava nem

de representação política dos católicos portugueses, nem de programa ou programas

políticos dos católicos a apresentar às próximas eleições, nem de democracia-cristã,

nem de partido democrata-cristão, nem do pós-salazarismo. De certo modo a resposta de

Roma mordia, talvez voluntariamente, o isco que Salazar lhe estendera, ao contestar

apenas a ameaça de Salazar à Acção Católica e a interpretação que a respeito dela o

ditador fazia da Concordata, reconhecendo além disso Tardini, chefe da diplomacia da

Santa Sé, que a divulgação pública da carta do Bispo do Porto fora coisa imprudente e

inoportuna, além de uma falta de consideração para com o destinatário. O Vaticano,

visivelmente, não queria pôr à discussão com Salazar a questão da democracia-cristã,

sabendo que daí nada de bom ou de útil poderia resultar, quer em virtude da

partidofobia exacerbada de Salazar, quer porque as aspirações democratas-cristãs que

começavam a despontar em Portugal procediam de facto, directa ou indirectamente, de

Roma.

Neste ponto temos que nos interrogar: como é que tinha começado a polémica à

volta do partido da democracia-cristã? De onde vinha aquela referência displicente de

Salazar à pretensão que em Portugal alguns católicos alimentavam de constituir um

partido democrata-cristão, alusão a que D. António Ferreira Gomes replicou na sua carta

ao chefe do governo da maneira que acima descrevi? Salazar usava às vezes os seus

discursos para mandar certos recados enigmáticos. A quem teria ele dessa vez destinado

20

essa mensagem? E porque lhe responde o Bispo do Porto? Durante muito tempo não

vislumbrei respostas satisfatórias para estas perguntas, mas um documento encontrado

recentemente no Arquivo Salazar parece fornecer um bom começo de explicação.

Trata-se de uma informação confidencial para o presidente da Comissão

Executiva da União Nacional, João Pinto da Costa Leite, redigida por Ramiro Valadão,

informação que chegou às mãos de Salazar em 3 de Março de 1958, meses antes,

portanto, da campanha eleitoral de Humberto Delgado e de tudo o que se lhe seguiu.

(Todos os participantes neste episódio, que tem 40 anos, já desapareceram, pelo que não

se omitem os respectivos nomes). Nessa nota para Costa Leite o informador relata

detalhadamente uma conversa havida com Mons. Gentile, conselheiro da Nunciatura em

Lisboa, de quem refere que tinha sido colaborador na secretaria de Estado da Santa Sé

de Mons. Montini (o futuro Papa, naquele momento Arcebispo de Milão) e que as suas

opiniões reflectiam o pensamento da Nunciatura, isto é, do Núncio Fernando Cento.

(Num parêntese, diga-se que o Núncio Cento, quando, em 1959, deixou Lisboa já

purpurado, foi para Roma elogiar em conversas privadas a “carta histórica” do Bispo do

Porto a Salazar e compará-la a uma famosa carta de Cavour ou de Alessandro Manzoni

ao rei de Itália). Mons. Gentile era pois, segundo diz Valadão, um entusiasta do sistema

político italiano, que achava que deveria constituir modelo para outros países. Nesse

sistema político-partidário, segundo Mons. Gentile, o papel de núcleo central era

desempenhado pela democracia-cristã, que fazia reverter a seu favor a fragmentação

partidária existente no país, tirando daí o seu prestígio e o seu poder. Para a Santa Sé, os

partidos eram uma necessidade das sociedades modernas, pelo que Portugal também a

isso se não poderia furtar depois de Salazar. Contra o chefe do governo, Mons. Gentile

não tinha nada a dizer: o Sr. Dr. Oliveira Salazar era a realidade que havia em Portugal,

alguém que ele respeitava “como estadista e como católico”, embora pensasse que o

21

“raramente o católico influenciava o estadista”. (Diga-se aqui, num aparte, que Pio XII

tinha Salazar na consideração de um “iluminado estadista”, segundo o testemunho de

Mons. Moreira das Neves, o dilecto colaborador e biógrafo do Cardeal Cerejeira). Para

Mon. Gentile o salazarismo era uma acção diária de governação e “não um corpo

doutrinário a projectar-se no futuro”, como a democracia-cristã era em Itália e noutros

países. Se em Portugal não existiam partidos era porque Salazar e a prática garantida

diariamente pela sua vontade os dispensavam. Mas logo que essa vontade de Salazar

desaparecesse, era necessário que tudo regressasse à “normalidade”.

Depois desta análise inquietante, Mons. Gentile informou um Valadão

crescentemente apreensivo que em Portugal havia muito quem assim pensasse, embora

no episcopado houvesse uns bispos velhos e ultrapassados com os quais já não era

possível contar para a acção futura, caso de Cerejeira e de Trindade Salgueiro. Entre os

leigos, haveria gente de muito maior valia e merecimento (e nomeou dois conhecidos

académicos católicos, de feição política aliás bastante conservadora, um deles ex-

ministro da Justiça, Cavaleiro Ferreira, o outro futuro reitor da Universidade de

Coimbra, Braga da Cruz, que anos antes haviam tomado posições favoráveis às

pretensões da Igreja em matéria de ensino e reforma do sistema escolar em Portugal,

numa perspectiva de aplicação do ensinamento dos papas nesse domínio). Quanto ao

Bispo do Porto, Mons. Gentile apontava-o como o membro do episcopado em quem

depositava as suas maiores esperanças para o futuro, não mencionando sequer qualquer

outro. Antes de terminar, Mons. Gentile ainda sondou candidamente Valadão sobre a

possibilidade de futuramente os filiados na União Nacional virem a ingressar em massa

na democracia-cristã ou, pelo contrário, de se manterem fiéis à inexistência de partidos

ou preferirem organizar-se à parte.

22

À luz deste documento que, como se disse, foi imediatamente comunicado a

Salazar, percebe-se melhor o “recado” do chefe do governo no seu discurso de

campanha eleitoral e quem seria o seu destinatário. É porém bastante provável que o

ditador dispusesse de dados mais amplos, completados, por exemplo, com informações

eclesiásticas ou policiais sobre certos militantes da Acção Católica, correspondência

destes para o Bispo do Porto, etc. É significativo que três meses depois, no seu discurso

de 31 de Maio, Salazar pareça rejeitar liminarmente qualquer hipótese de preparação

dos católicos para uma fase de transição política em Portugal, que era precisamente o

que constituía a preocupação nuclear do Bispo do Porto. Quanto às posições de Mons.

Gentile, sublinhe-se o elevado conceito em que na Nunciatura se tinha D. António

Ferreira Gomes, considerado como a grande esperança do episcopado português. No

que respeita à carta de D. António Ferreira Gomes a Salazar, parece agora muito mais

claro sobre que pano de fundo e em que grau de sintonia com a representação da Santa

Sé em Lisboa formulara as suas ideias e propostas ao ditador. E compreende-se melhor

que o Bispo tenha sentido recair sobre si a tarefa de responder ao discurso de 31 de

Maio do chefe de governo.

Creio que poderá assim aparecer sob uma luz algo diferente a iniciativa de D.

António, que alguns seus pares descreviam como um bispo isolado, imprudente,

tomando iniciativas por sua conta e risco. O Arcebispo de Évora, por exemplo, chegou a

retratá-lo como um doutrinador ardente e erudito, com muita leitura e meditação, mas

vivendo afastado das realidades, num mundo construído com categorias de filósofo, e

que, de forma alegadamente isolada dentro da própria Igreja, um dia se tinha aventurado

a ir para a praça pública falar ao detentor do poder em nome de toda a Igreja. Ora a

ligação de D. António não era apenas com os católicos e o clero da sua diocese, mas

também com a Nunciatura, isto é, com Roma ou, pelo menos, com uma corrente de

23

pensamento muito influente na Cúria romana, enquanto o seu verdadeiro isolamento só

se verificava mais ao nível do episcopado, com o qual a colaboração se fora revelando

ao longo de dez anos muito difícil e problemática, em virtude de posições irredutíveis

de parte a parte. Na carta que citei, o Arcebispo de Évora, Trindade Salgueiro, acusava

D. António de defender os seus pontos de vista “com exagerado vigor, que podia ir até à

obstinação”, o que dá bem a medida dos desacordos entre eles, talvez os dois principais

bispos doutrinadores em Portugal nesse período.

Convém aqui dizer, em jeito de epílogo ao episódio acima relatado, que Mons.

Gentile, após a divulgação da carta do Bispo do Porto, perante a gravidade do incidente

que Salazar ameaçava precipitar com a Santa Sé e com o próprio Núncio (prestes a

despedir-se de Portugal) e perante as repercussões que a carta teve no país no

seguimento e continuação da agitada campanha eleitoral de Delgado, mudou totalmente

de posição, declarou-se a Valadão arrependido do “erro” cometido — provável

referência aos seus planos de democracia cristã para Portugal e aos seus eventuais

incitamentos à acção do Bispo do Porto — e censurou D. António por querer a sua

própria perda e, com ela, arrastar a Igreja e o país para uma catástrofe. Manifestamente

assustada com o clima de agitação introduzido pela candidatura de Delgado e pelo

aproveitamento que para essa agitação se fazia da carta do Bispo, a Nunciatura passou a

considerar que era o governo que tinha de ser apoiado pela Igreja, para se evitar a

perdição de ambos. Na sua nova informação, desta vez para o ministro da Presidência

Pedro Teotónio Pereira e para Salazar, já em 1959, Ramiro Valadão comentava: “A

evolução do pensamento de Mons. Gentile parece-me acontecimento de interesse”.

Perante isto, não se pode evidentemente concluir que, antes e depois deste

episódio de vaga promoção da democracia-cristã em Portugal, a Santa Sé havia sido e

iria continuar a ser em Portugal um sustentáculo do regime salazarista. Não é lícito

24

concluí-lo, apesar do conceito de “iluminado estadista” que Pio XII tinha de Salazar.

Mas voltam-nos sempre ao espírito as palavras de Casais Monteiro em 1959 no Estado

de S. Paulo, palavras sem aparente carga de anticlericalismo, com que expunha a sua

convicção de que em Portugal era a Igreja, mais que os generais, quem podia provocar o

derrube do regime dum momento para o outro e quem mais possibilidades tinha de

inspirar uma transição democrática que não tombasse no caos revolucionário.

III

O outro episódio a que queria dar também algum desenvolvimento é o do

processo de expulsão de D. António Ferreira Gomes do território nacional.

Depois de já em 1958, por meias palavras, ter sugerido ao Núncio a retirada do

Bispo do Porto da sua diocese, Salazar passou em 1959 a exigi-lo expressamente de

Roma, ainda que a coberto da confidencialidade dos canais diplomáticos. Praticamente

desde o início da crise, em Agosto-Setembro de 1958, que o ditador se persuadira de

não existir outra solução para ela, senão o afastamento do prelado. Todavia, para além

da consabida prudência e lentidão da diplomacia vaticana, várias circunstâncias

excepcionais concorreram para um certo arrastamento do processo. Entre outros factos,

podem citar-se a morte do Papa e a eleição do seu sucessor, o termo da nunciatura de

Fernando Cento e a elevação deste ao cardinalato, bem como uma enfermidade

prolongada de Salazar. A acrescentar a isto, em Outubro de 1958, antes da eleição de

João XXIII, Salazar foi informado pelo antigo embaixador português na Santa Sé, o seu

amigo pessoal José Nosolini, que, segundo este ouvira em Roma do Cardeal Ciriaci,

antigo Núncio em Lisboa, Cerejeira teria “grandes probabilidades” de ser eleito papa se

25

o Conclave se decidisse por um Cardeal não italiano. É muito difícil a avaliação das

possíveis repercussões de tal eventualidade, que hoje parece algo excêntrica e

inverosímil, mas cujas consequências não seriam forçosamente favoráveis ao regime de

Salazar.

O caso do Bispo do Porto tinha começado ainda sob o pontificado de Pio XII,

que morreu a 9 de Outubro de 1958, exactamente uma semana depois da primeira

resposta que a Santa Sé deu, por Mons. Tardini, ao primeiro protesto diplomático de

Salazar. Semanas antes de morrer, Pio XII teria comentado negativamente, como uma

grave indelicadeza do Bispo, a divulgação pública da carta a Salazar. Em fins desse

mês, D. António Ferreira Gomes dirigiu-se a Roma a pretexto de assistir à coroação de

João XXIII, mas decidido a apresentar-lhe a renúncia à diocese, dadas as reacções de

enorme desagrado que recebera por parte do poder e a total falta de solidariedade por

parte da maioria do episcopado. Além disso, o Cardeal Cerejeira acusara-o numa carta

pessoal de não ter respeitado uma resolução colectiva tomada pelos bispos nesse ano em

Fátima — resolução essa que não autorizaria o Bispo do Porto a tratar com Salazar dos

assuntos que abordara na sua polémica carta. Na véspera do pedido de audiência a João

XXIII para lhe apresentar a renúncia, o secretário de Estado do Vaticano, Mons. Tardini

— prevenido pelo Cardeal Cerejeira, que assim se interpôs, sem direito para o fazer,

entre o Bispo do Porto e o Papa — persuadiu D. António a desistir da sua ideia e a

tentarem, os três em conjunto, aplacar o ânimo vingativo do chefe do governo, o que foi

aceite também por Cerejeira.

Em 20 de Novembro de 1958, porém, já o governo português, com Salazar

secundado por Marcelo Matias, novo Ministro dos Negócios Estrangeiros (por sinal, um

velho companheiro das lides diplomáticas em Paris de Angelo Roncalli, o novo Papa),

dava secretas instruções para o embaixador no Vaticano no sentido de na primeira

26

ocasião propícia fazer chegar pessoalmente a João XXIII uma mensagem urgente. O

ideal, segundo o telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Roma, seria

aproveitar logo a primeira recepção aos diplomatas dada pelo novo Papa para lhe

transmitir a mensagem, caso viesse a talho de foice numa conversa a dois e sem quebra

do rigoroso protocolo do Vaticano. A mensagem, com esta aparência de urgência

desesperada, era a seguinte: não era mais possível manter-se em funções o Bispo do

Porto, dado o “escândalo público” causado pela sua carta, “comprometendo o carácter

apolítico e a isenção do seu cargo e transformando-se num símbolo de agitação

partidária e perturbação nos próprios meios católicos”. Isto era uma transparente

tentativa de, contornando o Núncio Cento e o secretário de Estado Tardini, considerados

ambos adversos ao governo de Salazar, tentar obter directa e rapidamente do novo Papa

a decisão ansiada pelo chefe do governo português, a retirada do Bispo da diocese do

Porto. Não teve êxito tal tentativa de falar directamente ao Papa, mas diz bem da ânsia

em que Salazar se encontrava já em Novembro de 1958 de acabar com a presença de D.

António à frente da sua diocese.

Dá-se depois disso o episódio, muito pouco conhecido até data recente, da

tentativa inútil de acalmar o ditador enviando-lhe uma segunda carta, assinada pelo

Bispo do Porto, mas realmente escrita pelo Arcebispo D. José da Costa Nunes, que

habitualmente residia em Roma com um cargo meramente simbólico na Cúria (vice-

camarlengo). Essa segunda carta ensaiava uma espécie de pedido de desculpas ou de

retractação do Bispo perante Salazar, mas que acabava por não sê-lo nem claramente

nem suficientemente. A assinatura de D. António numa carta redigida por outrem — por

sinal um entusiástico apoiante e admirador de Salazar, como hoje sabemos pela leitura

da sua correspondência para o ditador — representou certa humilhação para o Bispo do

Porto, mas que ele aceitou certamente na convicção de que cumpria instruções da Santa

27

Sé, de que D. José da Costa Nunes seria o portador. A intenção era fornecer a Salazar

um documento que ele poderia publicar, se o julgasse útil, como contraponto da

primeira carta, que fora divulgada sem assentimento do seu autor. Foi contrariado que

D. António Ferreira Gomes anuiu a colaborar nessa diligência de Costa Nunes,

preparada aliás com conhecimento prévio de Salazar, que não escondera não acreditar

no seu êxito. Na verdade, a diligência não deu nem podia ter dado nenhuma satisfação

ao governante, já apostado, como vimos, desde Novembro em pedir a retirada do Bispo.

É a aparente inadequação de tal tentativa de solução ao ambiente político português da

época que faz pensar que a ideia da diligência terá partido realmente do Vaticano.

Em Setembro de 1958, meses antes desta segunda carta a Salazar ter sido

engendrada, já D. António tinha tentado, então sem qualquer espécie de quebra da sua

dignidade episcopal, demarcar-se publicamente do aproveitamento e da divulgação do

seu escrito pela oposição, através da publicação de uma missiva ao responsável pela

campanha de candidatura de Humberto Delgado, Arquitecto Artur Vieira de Andrade.

Nessa “Carta ao Arquitecto”, como ficou referenciada para a história, mas que ainda

não foi publicada em lado algum até hoje, o Bispo do Porto declarava não poder receber

o destinatário na sua qualidade de representante de Delgado, acrescentando considerar

criminoso abuso de imprensa a divulgação que fora dada ao escrito que, sob a sua

autoria declarada, corria impresso, de fabrico e distribuição clandestina. Tentava

também esclarecer a sua posição que confirmava ser de independência política e

partidária, protestando contra a ideia que os autores da divulgação não autorizada do seu

escrito estariam a tentar difundir na consciência do público, de que "a um alegado

clericalismo apenas se pretende substituir outro clericalismo " (isto é, de que em

alternativa à aliança da Igreja com o salazarismo se propusesse agora o

comprometimento da Igreja com a opção política representada pela candidatura de

28

Delgado). Não havia nesta carta retractação de espécie alguma, nem na essência nem na

aparência, mas tão-somente a acostumada postura direita do Bispo do Porto, bem como

a reafirmação corajosa do seu pensamento. Como era de esperar, D. António não

conseguiu publicar a “Carta ao Arquitecto” nem no diário Novidades, órgão do

episcopado e dependente do Cardeal Cerejeira, que o recusou, nem em qualquer outro

periódico, incluindo um modesto boletim paroquial do Porto, onde a censura o foi

cortar.

Salazar estava convencido, e fê-lo saber numa carta de Dezembro ao Núncio

Cento, que nenhuma explicação pública do Bispo do Porto sanaria o caso. Não haveria

ali uma simples questão pessoal, fácil de esquecer, tratando-se antes "da orientação que

alguns sectores pretendem dar ou têm mesmo dado à Acção Católica, orientação que

pareceu a todos abertamente perfilhada por Sua Ex.ª Revm.ª [o Bispo do Porto]. E como

essa orientação servia o interesse das oposições, estas exploraram-na e converteram Sua

Ex.ª Revm.ª num prestigioso chefe das forças oposicionistas".

No mesmo dia em que escreveu esta carta, Salazar pronunciou um discurso na

posse da Comissão Executiva da União Nacional em que, sem nenhuma alusão directa

ao caso do Bispo do Porto, mas de cabeça um tanto perdida, como não era seu costume,

fazia pairar ameaças sobre a Concordata e o futuro das relações entre o Estado e a

Igreja, ao mesmo tempo que, com uma violência ainda mais rara, instava as autoridades

eclesiásticas competentes a fazerem acatar com inteira fidelidade pelos organismos

católicos onde houvesse desvios e "repetindo-a quantas vezes forem necessárias" a

verdadeira doutrina da Igreja, que ele dizia conhecer bem, e que implicitamente deixava

supor que conhecia pelo menos tão bem ou melhor do que os bispos.

No meio deste clima de invulgar irritação contra a Igreja e de fúria contra

aqueles católicos que, segundo Salazar, estavam a pretender abandonar a frente

29

nacional em que assentava o regime por ele chefiado, frente com a qual os católicos

estariam genericamente comprometidos, a Conferência Episcopal presidida por

Cerejeira publicou enfim, em Janeiro de 1959, uma pastoral colectiva da qual o governo

esperava que fosse uma desautorização insofismável das teses do Bispo do Porto, que

desencadeasse por si só ou a renúncia de D. António ou o seu afastamento por outra via

da diocese do Porto. Mas afinal as coisas não se passaram assim: a redacção da pastoral

por um Cerejeira muito conciliador contara afinal com a colaboração e a concordância

de D. António. Apesar de a interpretação do documento pela imprensa portuguesa ter

seguido fielmente as indicações e as preocupações do governo, que queria a imediata

retirada do Bispo como consequência lógica da pastoral, no estrangeiro interpretou-se a

posição unânime do episcopado português como uma afirmação de independência em

relação ao poder e até, num jornal católico inglês, como a adequada resposta dos bispos

portugueses ao irritado discurso de Salazar de Dezembro de 1958.

Cansado, pois, de esperar uma reacção espontânea de Roma a seu contento, em

fins de Janeiro o governo passou a exigir pelos canais diplomáticos, em Lisboa e no

Vaticano, o fim da presença do Bispo à frente da diocese. Dias depois, em Roma o

cardeal secretário de Estado Tardini informou o embaixador português Vasco Cunha de

que "a Santa Sé nunca aceitaria a imposição dum governo para a retirada dum bispo".

Acrescentou mesmo, com os seus modos um tanto bruscos, que em 36 anos de serviço

na secretaria de Estado do Vaticano nunca vira uma tentativa assim por parte de um

governo. Começou então a constar ao embaixador português no Vaticano, que o Bispo

do Porto tinha amizades na Secretaria de Estado e até, talvez, um aliado no Cardeal

Tardini. Passaram-se meses de espera por parte de Lisboa sem resultados, apesar das

achas que Salazar continuou a fornecer para o fogo da argumentação e das pressões do

embaixador no Vaticano. Em Abril de 1959 o chefe do governo disse para Roma que o

30

Bispo do Porto, que agora descrevia como um "chefe político", constituía um problema

já não só da sua diocese, mas de todas as demais, onde sacerdotes e leigos se iam

furtando às autoridades eclesiásticas locais para seguirem D. António. A participação de

militantes da Acção Católica e de um padre na intentona de Março desse ano (“golpe da

Sé”) era apontada por Salazar como um dado particularmente alarmante. Só via dois

caminhos: ou a Santa Sé retirava a diocese ao Bispo do Porto e se tentava restabelecer a

disciplina hierárquica nas demais dioceses, ou o governo teria que denunciar factos e

tomar as providências ao seu alcance, que trariam consequências de enorme gravidade,

como o surgimento duma questão religiosa no País. O homem que dizia ter resolvido a

questão religiosa em Portugal vinha agora ameaçar com a sua ressuscitação.

Entretanto, em Maio, começaram enfim a dar-se passos que o embaixador em

Roma atribuía à acção pessoal do Papa João XXIII que, contra a alegada má vontade de

Tardini, mostrava agora uma disposição mais favorável às pretensões do governo

português. Em resultado dessa nova evolução, o ex-Patriarca das Índias Costa Nunes

obtivera pessoalmente do Papa a missão confidencial de se deslocar a Portugal para,

com o fim aparente de assistir à inauguração do monumento a Cristo-Rei, realizar, na

verdade, um inquérito ao caso do Bispo do Porto e à respectiva diocese. O embaixador

Vasco Cunha avisava desde logo o governo que Costa Nunes, então ainda em Roma, se

iria encontrar em breve em Lisboa com Salazar e com o ministro dos Negócios

Estrangeiros, Marcelo Matias. O inquérito de Costa Nunes deveria tomar cerca de um

mês, findo o qual teria de elaborar um relatório com uma proposta de solução para

apresentar pessoalmente ao Papa.

Não há informação de quantas vezes Costa Nunes foi recebido nesse período em

Lisboa por Salazar, mas a 16 de Junho de 1959, o chefe do governo recebeu Costa

Nunes, a pedido deste, que lhe ia apresentar as suas despedidas, estando já de partida

31

para Roma dali a poucos dias. Deste encontro entre os dois existe no Arquivo do MNE

um relato-resumo escrito na primeira pessoa por Salazar. Depreende-se do relato do

diálogo entabulado que existia da parte de Roma — isto é, da parte do Papa e de alguma

sua entourage, à provável excepção de Tardini — desde antes da partida de Costa

Nunes para Portugal, o desejo de que o Bispo do Porto saísse do País de uma "maneira

doce", segundo as próprias palavras do mesmo Costa Nunes reproduzidas por Salazar.

Este, pela sua parte, quis deixar claro que o governo português só consideraria que havia

sido dada solução ao caso quando D. António Ferreira Gomes deixasse de ser bispo

dessa diocese. E acrescentou ao enviado confidencial de João XXIII: "O Governo deseja

que a Santa Sé não tenha dúvidas sobre um ponto: quer o senhor Bispo saia do país de

passeio, de licença, chamado a Roma ou por qualquer outra forma, tem de pôr-se

inteiramente de lado a sua reentrada no País". Neste ponto Costa Nunes retorquiu que,

de facto, "não conviria de modo nenhum ao governo português a presença do senhor

Bispo no nosso território, mesmo sem jurisdição episcopal". Já a fazer contas para o

futuro, Costa Nunes falou ainda nas reformas que era necessário fazer no governo da

diocese do Porto e em matéria de seminários, formação de clero, etc. O encontro entre

Salazar e o enviado secreto do Papa terminou com uma conversa sobre as dificuldades

que a Igreja encontrava então por toda a parte...

Apesar do que consta neste relato, que é aliás confirmado pelo teor de outros

documentos do Arquivo do MNE, Costa Nunes criou a lenda de que foi enganado por

Salazar e que, na sua boa-fé, acreditara que o ditador só desejava que o Bispo fosse

passar uma temporada ao estrangeiro, integrado uma peregrinação ou algo semelhante.

O Embaixador Eduardo Brazão contou nas suas memórias que ouviu esta mesma versão

da boca de Costa Nunes, na altura já elevado a Cardeal, e que acreditou nela. Também

32

D. António Ferreira Gomes contou ter ouvido de Costa Nunes a mesma lenda, em que

naturalmente não acreditou.

A 10 de Julho de 1959 o embaixador Vasco Cunha informava para Lisboa que

D. José da Costa Nunes ia entregar dentro de dias ao Papa o relatório do inquérito

realizado à diocese do Porto. Pormenor com um certo picante é que este relatório de um

enviado confidencial de João XXIII estava a ser traduzido para italiano na Embaixada

portuguesa no Vaticano por um funcionário da dita. Adiantava ainda o embaixador

Vasco Cunha para Lisboa que a solução proposta pelo relatório — de que pelos vistos

ele teve conhecimento antes do Papa, a quem o documento se destinava — era não a

destituição imediata, que Costa Nunes considerava inaceitável pela Santa Sé por razões

que não fossem exclusivamente de natureza religiosa, mas sim a saída imediata de

Portugal do Bispo em férias, ao que D. António já lhe dera o seu assentimento em

Portugal. A saída era pois com o pretexto de o Bispo gozar a licença de três meses

prevista pelo Código canónico, licença que seria sucessivamente prolongada até ao

prazo máximo de um ano, altura em que, segundo Costa Nunes afirmara ao embaixador,

se passaria então à destituição do Bispo. Entretanto podia ir-se nomeando um bispo

coadjutor para o Porto, achava Costa Nunes.

A 23 de Julho de 1959 o Bispo do Porto deixava o País oficialmente em gozo de

férias. A notícia foi cortada nos jornais portugueses pela censura. Semanas depois, o

jornal italiano Paese Sera titulava: "O Vaticano cedeu perante o ditador". E a notícia

dizia a dado passo: "Acaba assim, com a vergonhosa partida de um jovem bispo

corajoso, a oposição larvar que os católicos tinham procurado fazer ao regime católico-

corporativo de Salazar".

Não vou fazer aqui comentários a estes factos, que ficam assim em bruto, para

cada um os apreciar. Mas uma coisa parece ficar bem nítida: se D. António foi expulso

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do território nacional por vontade e decisão de Salazar, foi um bispo português, D. José

Costa Nunes, que desbloqueou, conduziu e facilitou o processo de execução dessa

vontade e foi um papa, João XXIII, que deu luz verde à operação — provado como fica,

além do mais, que o pontífice teve conhecimento antecipado da recusa do ditador

português em deixar regressar o Bispo do Porto ao País, caso ele saísse. A menos,

obviamente, que Costa Nunes tenha ocultado a João XXIII a mensagem de Salazar

acima transcrita.

Lisboa, 30 de Setembro de 1998


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