Date post: | 27-Jan-2023 |
Category: |
Documents |
Upload: | independent |
View: | 0 times |
Download: | 0 times |
LAURA INÊS BREDA DE FIGUEIREDO
GÊNEROS DISCURSIVOS/TEXTUAIS E CIDADANIA: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E OS
PARÂMETROS EM AÇÃO
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PEG – Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL)
São Paulo - 2005
LAURA INÊS BREDA DE FIGUEIREDO
GÊNEROS DISCURSIVOS/TEXTUAIS E CIDADANIA: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS PCN DE LÍNGUA PORTUGUESA E OS
PARÂMETROS EM AÇÃO
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de são Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas, sob a orientação da Profa. Dra. Roxane Helena Rodrigues Rojo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PEG – Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) São Paulo - 2005
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________ Profa. Dra. Roxane Helena Rodrigues Rojo – Orientadora
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
___________________________________________________
Profa. Dra. Ingedore G. Villaça Koch Universidade Estadual de Campinas
___________________________________________________ Prof. Dr. Alípio Casali
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
______________________________________________ Profa. Dra. Jacqueline Peixoto Barbosa
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_______ / _______ / _______
Não interrogamos a natureza e ela não nos responde. Interrogamos a nós mesmos, e nós, de certa maneira, organizamos nossa observação ou nossas experiências a fim de obtermos resposta. (Bakhtin, 1952-1953/1979: 341)
O Universo não é uma idéia minha. A minha idéia de Universo é que é uma idéia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos, A minha idéia da noite é que anoitece por meu olhos. Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos A noite anoitece concretamente E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. (Alberto Caeiro, 1917: 238)
À minha filha Sofia, a quem amo acima de tudo e cujos abraços gostosos foram fundamentais para que eu superasse os momentos de maior ansiedade na elaboração deste trabalho. Ao meu companheiro, Jimmy, pelo apoio e pelas transformações que, juntos, operamos nesse tempo.
AGRADECIMENTOS
Seguindo o pensamento bakhtiniano de que todos os enunciados são sócio-historicamente constituídos, meus agradecimentos vão em ordem cronológica...
Ao meu pai e minha mãe, pois devo a eles muito do que sou e posso fazer.
À Inês, diretora da Escola da Escola Viva, primeira responsável por eu ter chegado até aqui, pois sabiamente me aconselhou a procurar “um curso que fizesse realmente diferença” se eu quisesse voltar a trabalhar com educação.
À Cris Damianovic, professora do primeiro dos cursos que realmente fizeram a diferença para mim.
À Alice Horikawa (conselheira de todas as horas) e Fernanda Moreno (quem primeiro plantou em mim a sementinha do desejo de fazer mestrado), ambas professoras de outro curso mais do que especial no qual fui apresentada aos PCN e a Bakhtin.
A todos os meus colegas da turma de agosto de 2002 – especialmente Any, Célia, Jamilson, Mauricio, Almiro, Siderlene – cujo prazer da companhia me ajudou muito na superação das dificuldades pessoais que passei nos meses iniciais do mestrado.
À Andréa, cuja amizade foi o melhor presente dos últimos tempos.
Ao CNPq pelo indispensável apoio financeiro.
Aos colegas do grupo de orientação, especialmente (em ordem alfabética para não deixar ninguém com ciúmes) Adelma, Cláudia, Lucia, Paulinho, Rossana, Shirley e Simone pelo companheirismo e excelentes contribuições para meu trabalho.
Aos professores do LAEL com quem tive aula: Leila, Mara, Cecilinha, Beth, Sumiko, Orlando, Anna Rachel, Marilia e Alipio. É incrível como posso identificar a contribuição de cada um deles neste meu trabalho.
Às professoras Ingedore Koch e Jacqueline Barbosa pelas excelentes sugestões na qualificação.
À Kátia, grande amiga de tantos e tantos anos, que me deu a maior força na editoração final do texto.
Meu agradecimento especial à Roxane, não só pela confiança e orientação sempre precisa, mas principalmente por me abrir caminhos para que eu pudesse ir da teoria à prática, permitindo que eu finalmente concretizasse meu sonho de voltar a trabalhar com educação.
RESUMO
Publicados em 1998, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa para 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental (PCN) sugerem uma nova abordagem para o ensino de língua materna. Conseqüentemente, antes que suas sugestões sejam seguidas pelos professores, várias ações são imprescindíveis, entre elas a produção de materiais teóricos intermediários para divulgação das novas teorias que os embasam e a introdução dessas teorias no currículo das licenciaturas em Letras.
Outra necessidade urgente é a ampliação e intensificação das práticas já existentes de formação contínua dos professores em serviço, com vistas na discussão e implementação do que se propõe nos PCN. Foi neste sentido que, em 1999, o MEC elaborou os Parâmetros em Ação.
Desnecessário afirmar que, se há interesse em que as sugestões dos PCN de Língua Portuguesa sejam seguidas, os materiais e ações de apoio à sua implementação devem ser coerentes com seus princípios básicos (inclusão social e cidadania) e com as teorias que as embasam (entre elas, a Teoria de Gêneros).
Foi a partir dessa consideração que desenhamos o percurso desta dissertação, tendo como base duas noções centrais: cidadania e gêneros discursivos/textuais.
Assim, a partir da análise do contexto sócio-histórico de produção tanto dos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental quanto dos respectivos módulos do Parâmetros em Ação, bem como a partir da distinção entre as abordagens teóricas que adotam diferentemente as terminologias gêneros de discurso e gêneros textuais, este trabalho se propõe ser uma análise documental, cujo objetivo é comparar ambos os documentos, tomando como base uma visão interacionista e sócio-histórica de língua, de acordo com as teorias bakhtinianas de linguagem.
Como instrumento de apoio, foi utilizada a ferramenta computacional de análise de corpus denominada WordSmith.
O resultado da comparação demonstra que há uma falha no diálogo entre os dois textos, já que os módulos do Parâmetros em Ação incorporam de forma insuficiente o objetivo declarado nos PCN de Língua Portuguesa de se tomarem os gêneros como objeto de ensino-aprendizagem, fazendo recuar o passo adiante que as propostas dos PCN representam em relação às propostas curriculares anteriores a eles e distanciando alunos e professores daquilo que poderia propiciar a formação de um leitor mais crítico e uma educação de fato mais voltada para a cidadania.
ABSTRACT
Published in 1998, the National Curriculum Parameters for the Portuguese Language of the 3rd and 4th cycles of Fundamental Education (NCP) suggest a new approach to teaching the mother tongue. Consequently, before their suggestions can be followed by the teachers, several actions are indispensable, among which are the production of intermediary theoretic material in order to divulge the new theories on which they are based as well as the introduction of these theories in the Language Licentiate curriculum.
Another urgent necessity is the expansion and intensification of existing practices of teacher in-service continuing education, geared to discussing and implementing that which is proposed by the NCP. It was with this intention that the Ministry of Education (MEC) elaborated, in 1999, Parameters in Action.
It is unnecessary to affirm that, if there is interest in following the Portuguese Language NCP, the support material and action towards its implementation must be coherent with its basic principles (social inclusion and citizenship) and with the theories on which it is based (among them, the Genre Theory).
This consideration set the track for designing the course of this dissertation, which is based on two central ideas: citizenship and discourse/text genres.
In this manner, taking into consideration the social and historical context of the production of the NCP of the Portuguese Language for the 3rd and 4th cycles as well as the respective Parameters in Action modules, with attention towards differentiating theoretical approaches that adopt, in different manners, the terminology discourse genres and text genres, this work proposes to be a documental analysis with the objective of comparing both documents, based on an interactional, social and historical viewpoint of language, according to Bakhtin’s theories of language.
A computer tool for corpus analysis called WordSmith was used as a support instrument.
The result of this comparison shows that there are flaws in the dialogue between the two texts since the Parameters in Action modules do not sufficiently incorporate the objectives declared in the NCP for the Portuguese Language, which is that of taking the genre as an object of teaching-learning. This results in pulling back from the step ahead that the NCP proposals represent in regard to previous curricular proposals, and distancing students and teachers from that which could propitiate the forming of a more critical reader and of an education which would in fact be more geared to citizenship.
SUMÁRIO Introdução.......................................................................................................................... 1
1 Gêneros do discurso e gêneros de texto................................................................... 11 1.1 Bakhtin e a língua viva ....................................................................................... 11 1.1.1 Os gêneros do discurso................................................................................... 17 1.2 Interacionismo Sócio Discursivo: a noção de gênero de texto............................ 23 1.2.1 O ISD e o ensino de língua materna: os gêneros de texto na escola .............. 30 1.2.1.1 Gêneros de texto como objeto de ensino-aprendizagem.............................. 31 1.3 Bakhtin e o ISD: aproximações e distanciamento............................................... 44 1.4 Gêneros de texto e gêneros do discurso, uma síntese....................................... 44
2 Linguagem e cidadania: a noção de gênero de discurso/texto na escola .................. 49 2.1 O ensino de língua materna: da gramática ao letramento .................................. 49 2.1.1 Letramento...................................................................................................... 52 2.2 Vygotsky: outra perspectiva de ensino-aprendizagem de língua materna ......... 57 2.3 Voltando ao trilho da história... ........................................................................... 60 2.4 Cidadania........................................................................................................... 64 2.4.1 Cidadania no Brasil ......................................................................................... 67 2.5 Cidadania e educação........................................................................................ 69 2.6 Uma Síntese ...................................................................................................... 73
3 Metodologia .............................................................................................................. 78 4 Parâmetros Curriculares Nacionais: as condições sócio-históricas de sua produção.91
4.1 Neoliberalismo e educação ................................................................................ 91 4.2 Neoliberalismo e globalização............................................................................ 98 4.3 Os Parâmetros Curriculares Nacionais e seus documentos fundantes............. 102 4.4 Vozes nos PCN................................................................................................ 105 4.5.PCN de Língua Portuguesa: trabalho, cidadania e crítica ................................ 106 4.6 Uma breve nota sobre teoria de currículo......................................................... 111
5 Análise de dados: os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries). ................................................................................................ 118
5.1 As palavras mais freqüentes ............................................................................ 118 5.2 A adjetivação da palavra “gênero(s)” ou o gênero como adjetivo ..................... 134 5.3 As noções de discurso e de texto no documento ............................................. 143 5.4 Conhecimentos, mecanismos e aspectos discursivos ...................................... 146 5.5 Competência discursiva, atividade discursiva e cidadania............................... 151 5.6 O adjetivo “textual(ais)” .................................................................................... 155
6 Parâmetros em Ação: os limites de uma ação-resposta.......................................... 159 6.1 Parâmetros em Ação: uma ação-resposta ....................................................... 159 6.2 Parâmetros em Ação: as condições sócio-históricas de sua enunciação ......... 161 6.3 Parâmetros em Ação: análise do documento ................................................... 168 6.3.1 As palavras mais freqüentes ......................................................................... 168 6.3.2 A análise de algumas atividades propostas nos módulos do PA ................... 176
Atividade 1 ......................................................................................................... 176 Atividade 2 ......................................................................................................... 182
Atividade 3 ......................................................................................................... 183 Conclusão...................................................................................................................... 185 Referências Bibliográficas ............................................................................................. 194 Anexo 1 ......................................................................................................................... 203 Anexo 2 ......................................................................................................................... 208 Anexo 3 ......................................................................................................................... 210 Anexo 4 ......................................................................................................................... 216 Anexo 5 ......................................................................................................................... 220 Anexo 6 ......................................................................................................................... 229
2
Introdução
Não é de hoje que a educação brasileira vem sofrendo uma série de críticas.
Fala-se, principalmente, dos altos índices de evasão escolar e dos baixos resultados
apresentados por aqueles alunos que de alguma forma se mantêm na escola. Como
é de se esperar numa sociedade grafocêntrica como a nossa, um dos principais
alvos dessas críticas, sem dúvida, tem sido o ensino de Língua Portuguesa.
Em minha opinião pessoal, a realidade da educação como um todo e, em
particular, do ensino de Língua Portuguesa, seja em termos didáticos, disciplinares
ou de conteúdos ensinados, tem estado realmente aquém do que se possa
considerar ideal. Ainda fruto de uma percepção pessoal – e com o perdão do tom
generalizante –, resumiria da seguinte forma minhas críticas às instituições de
ensino às quais estive vinculada, seja como aluna, seja como professora:
• A escola é desagregadora: provavelmente por uma questão de tradição
hierárquica, grande parte dos professores costuma manter uma postura
pouco aberta para com os alunos, dificultando a interação com eles. Ao
mesmo tempo, a disciplina imposta no ambiente escolar, principalmente
dentro da sala de aula, não permite que os alunos estabeleçam uma relação
de troca entre si. Ou seja, a relação professor/aluno é limitada e a relação
entre os alunos se dá apenas no âmbito pessoal, no pátio da escola,
raramente no âmbito acadêmico, num espaço de discussão de idéias e
verdadeira construção de conhecimento.
Além desses dois níveis de desagregação, outros ocorrem: a desagregação
entre as disciplinas (como se o mundo fosse compartimentado) e o
distanciamento entre o objeto de estudo e o aprendiz, gerado pela falta de
identificação entre a realidade do aluno e os conteúdos ensinados (é esse
tipo de desagregação entre aprendiz e objeto de estudo que faz com que a
escola também seja, como veremos mais adiante, alienante e excludente).
• A escola é alienante: o sujeito alienado não vê sentido naquilo que faz, pois é
impossibilitado, ao mesmo tempo, de se apropriar dos frutos de seu trabalho
(por exemplo: não consegue pôr em prática o que aprendeu) e de
3
desenvolver um senso crítico para se posicionar diante da realidade. Mas
esse não é um problema só do aluno: se, ao ser questionado por um aluno
acerca da utilidade do que se está estudando, o professor responde
laconicamente "um dia você saberá", percebe-se que, na realidade, essa
impossibilidade de dar um sentido ao que se está estudando ou ensinando é
um problema que pertence não só àquele que questiona, mas também ao
professor.
Porém, essa atitude do professor certamente não é voluntária. Sempre
sobrecarregado, em geral, ele tem, além de uma grande quantidade de
prescrições institucionais e obrigações burocráticas que limitam a sua ação,
um currículo (de cuja elaboração ele pouco participou) a cumprir em um
determinado tempo, obedecendo a uma determinada seqüência. Ao cumprir
todas estas prescrições, aquele que deveria ser o objetivo final de seu
trabalho, formar indivíduos e cidadãos, muitas vezes acaba esquecido. Além
disso, esse professor – que normalmente mantém vários empregos diferentes
para poder sobreviver – não tem tempo nem apoio para repensar a sua
prática. E, por isso, segue alienado, fazendo um trabalho involuntariamente
alienante, pois além de manter os alunos distantes da realidade e da prática
existentes fora da escola, não sabe como dar a eles a chance de
desenvolverem uma postura participativa e crítica (portanto, não-alienada)
nas aulas e, conseqüentemente, fora delas.
No que concerne às aulas de Língua Portuguesa, o ensino de tópicos
gramaticais por meio de frases soltas e dissociadas de um contexto é um bom
exemplo dessa alienação. Decorar uma lista de conjunções com o objetivo de
tirar uma boa nota numa prova (e logo depois esquecer tudo o que decorou) é
outro bom exemplo, já que isto não garante que o aluno melhore sua prática
de escrita nem que tenha uma postura crítica diante daquilo que lê. E o que é
pior: mais tarde, quando este aluno estiver interagindo socialmente fora da
escola, será instado a apresentar boa performance nestas práticas, que na
realidade deveriam ter sido o objetivo final das aulas de português, mas não
foram.
4
• A escola é excludente em dois níveis: ao ignorar a realidade dos alunos e ao
querer impor uma determinada ideologia – sem abertura para
questionamentos –, a escola desconsidera as diferenças individuais e
culturais, dificultando a integração ou permanência daqueles que de certa
forma não se encaixam no perfil de aluno idealizado pelo sistema de ensino.
As aulas de "interpretação de textos", centradas apenas numa única leitura
(invariavelmente, a do professor ou a do autor de livro didático), sem admitir
que outras leituras sejam feitas pelos alunos; a imposição da norma culta
como a única aceitável ou a valorização de apenas certas manifestações
culturais em detrimento de outras são também demonstrações dessa prática
excludente, já que não se consideram válidos os valores que os alunos
trazem de fora da escola.
Em última instância, este tipo de educação não cumpre com aquele que
deveria ser seu papel principal, que é contribuir para a formação, ao mesmo
tempo, do indivíduo livre e do cidadão participativo, crítico e capaz de interagir
nas mais diferentes esferas de uma vida em sociedade.
É bem verdade que, a partir do final da década de 1970, começo da de 1980,
já se iniciavam na escola uma série de mudanças positivas. Antes disso, várias
pesquisas no campo da psicologia, da sociologia e do letramento1, passam a
apontar as razões para muitos dos problemas existentes na educação e,
conseqüentemente, caminhos para a sua superação, iniciando um lento processo de
mudanças na escola. Em termos históricos, cabe ressaltar, a escola só passou a ser
criticada a partir do momento em que se percebe que ela não estava conseguindo
acompanhar as mudanças sociais que vinham acontecendo, como, por exemplo, a
ampla democratização do ensino. Mais recentemente, a emergência quase
hegemônica de políticas neoliberais e a maneira como, a partir delas, configuraram-
se fenômenos como a globalização, também acabaram por pressionar ainda mais
mudanças na educação.
1 Falaremos um pouco sobre essas pesquisas no capítulo 1.
5
No Brasil, foi nesse movimento de renovação da escola e de esforços de
melhoria da qualidade do ensino que se passou, a partir principalmente da década
de 1980, a considerar a necessidade de um novo currículo nacional. Nesse sentido,
a elaboração dos PCN representa um avanço, pois é uma iniciativa que visa adaptar
as instituições escolares à nova realidade do século XXI, em que as demandas
sociais são muito diferentes daquelas anteriormente existentes e em que
quantidades cada vez maiores de alunos, das mais diversas origens sócio-culturais,
ingressam na escola, obrigando que se discutam valores como cidadania, inclusão
social e respeito a diversidades culturais.
Com sucesso ou não (historicamente, ainda é cedo para se afirmar), nessa
tentativa de adaptar a educação à nova realidade do século XXI, os PCN, em
particular os de Língua Portuguesa, buscam, então, responder às críticas de uma
educação excludente, apartada da realidade e conseqüentemente alienante, já que
a proposta declarada desse documento é a de uma escola cujo objetivo é formar um
cidadão crítico e autônomo, detentor de saberes lingüísticos necessários para o
exercício da cidadania (Brasil, 1998a: 19).
Ainda em termos de ensino de Língua Portuguesa, várias são as diretrizes
apontadas pelos PCN2 como forma de se alcançar tais saberes, ou seja, para que o
aluno desenvolva a necessária capacidade crítica e discursiva que lhe permita
interagir nas mais diferentes esferas da vida social. No centro dessas diretrizes, os
PCN de Língua Portuguesa propõem que os gêneros discursivos/textuais passem a
ser um dos principais objetos de ensino3, enquanto que os textos passem a ser as
unidades de ensino (Rojo, 2001a: 30).
No entanto, se foram criados para ser uma resposta aos anacronismos e
defeitos de uma escola que vinha se mostrando desagregadora, excludente e
alienante, os PCN ainda têm um longo caminho até sua implementação e, neste
caminho, muitos obstáculos deverão ser transpostos.
2 Doravante, estaremos sempre nos referindo aos PCN de Língua Portuguesa para 3º e 4º Ciclos (5ª
a 8ª séries). 3 Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições da natureza temática, composicional e
estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. (Brasil, 1998a: 23)
6
No que concerne aos PCN de Língua Portuguesa para 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª
séries), uma das principais dificuldades é fruto da complexidade e da novidade de
suas propostas.
A noção de gêneros discursivos, por exemplo. Tomá-la como objeto de
ensino-aprendizagem significa adotar uma noção enunciativa de língua, diversa
daquela que tem sido consenso desde a década de 1970, a língua como um sistema
de comunicação. Uma tal mudança de perspectiva acaba por implicar não só
mudanças nos conteúdos a serem trabalhados em aulas, mas também alterações
de cunho metodológico e didático. Uma significativa ruptura com a tradição.
É de se esperar, portanto, que, num primeiro momento, os professores se
sintam “perdidos” quanto ao como e o quê trabalhar em sala de aula. Por exemplo, o
que se tem observado é que, devido à dificuldade compreender e de implementar as
novas diretrizes, muitos educadores vêm tomando equivocadamente a proposta de
trabalho com gêneros de forma indiferenciada dos trabalhos que adotam tipologias
textuais (Barbosa, 2001a: 88)4.
Para deixar a questão ainda um pouco mais complexa, estudos têm
constatado que, além de ser uma novidade – a noção de gênero voltou a ser
discutida apenas recentemente nos meios acadêmicos e muito em função das
propostas educacionais5 –, ela não é unívoca (Rojo, 2004, no prelo): há diferentes
linhas teóricas abordando essa questão. Basicamente, como veremos no Capítulo 1,
aqui no Brasil, são duas as abordagens predominantes, principalmente no que tange
ao ensino de línguas: uma mais explicitamente comprometida com as teorias de
Bakhtin – e que adota para os gêneros a denominação de gêneros discursivos (ou
gêneros do discurso) – e outra que, partindo das teorias bakhtinianas, mas
mesclando-a com teorias oriundas da teoria da enunciação francesa, da pragmática,
da nova retórica ou da lingüística textual, entre outras, adota, para os gêneros, a
denominação de gêneros textuais (ou gêneros de texto).
4 Sobre isso, falaremos no Capítulo 1. 5 Quanto a essa “reenunciação” da noção de gêneros, tanto no âmbito acadêmico quanto no
educacional e oficial, ver o abrangente trabalho de Gomes-Santos (2004).
7
Evidentemente, a cada um desses enfoques (mais discursivo ou mais textual)
corresponderá um diferente tratamento didático da noção de gênero. Nosso primeiro
desafio neste trabalho será, portanto, verificar a qual dos dois enfoques os PCN
aderem.
Com relação à novidade de se trabalhar na escola a partir de uma visão
histórico-enunciativa de língua e a partir da noção de gêneros, faz-se ainda
necessário que as teorias que embasam tal visão sejam estudadas nos cursos de
formação inicial e continuada. Mas, para que tais teorias tenham ingresso nesses
cursos e para que se garanta mais autonomia tanto aos professores em formação
quanto aos em serviço, também é necessária uma profícua produção e
disponibilização de textos de divulgação dessas teorias6, bem como de materiais
didáticos – para a formação de alunos e também de professores – e paradidáticos
com base nelas7. Quanto a isso, desnecessário afirmar que, se há interesse em que
as sugestões dos PCN sejam seguidas, estes materiais devem ser coerentes com os
princípios básicos (inclusão social e cidadania) e com as teorias que embasam o
documento oficial.
Foi a partir dessas considerações que resolvemos desenhar o percurso desta
dissertação tendo como base duas noções centrais: cidadania e gêneros
discursivos/textuais.
Disso também decorreu nosso segundo desafio neste trabalho: analisar um
material de formação de professores que tivesse por base os PCN de Língua
Portuguesa, a fim de verificar como os princípios e teorias presentes neste estão
sendo interpretados e implementados naquele.
Quanto ao material que escolheríamos para verificar como estão sendo
propostas implementações das sugestões apontadas nos PCN, de início pensamos
em analisar o trecho concernente ao ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa
6 Nesse sentido, Gomes-Santos (2004) mostra que já há uma relativa quantidade de produção
acadêmica que, de uma ou de outra maneira, aborda a noção de gênero. 7 Embora ainda de forma insipiente, cabe aqui dizer que tal produção já começa a acontecer, tanto
em relação a textos de divulgação científica (cf., por exemplo, Rojo (2000) e Dionísio et al. (2002)), quanto em relação a materiais didáticos (cf., por exemplo, Barbosa (2001b) e Takazaki (2002)).
8
presente numa edição especial da Revista Nova Escola8 que abordava exatamente
os PCN e apresentava sugestões de como implementá-lo. Porém, outro material nos
pareceu mais interessante para o nosso intuito: os módulos de Língua Portuguesa
elaborados para o Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado,
denominado Parâmetros em Ação. O fato de estes módulos terem sido igualmente
produzidos pelo MEC e fazerem parte de um programa a princípio mais abrangente
em termos nacionais acabou determinando nossa escolha.
Assim, considerando que noção de gêneros tem especial relevância para as
propostas apresentadas nos PCN de Língua Portuguesa para 3º. e 4º. ciclos e
sabendo, como já apontamos, que esta noção não é unívoca, a fim de verificar de
que forma estão sendo encaminhadas sugestões de implementações das propostas
do documento, por meio de uma comparação entre os PCN e os módulos do
Parâmetros em Ação, elaboramos as seguintes perguntas de pesquisa:
a) que tipo(s) de noção de gênero encontra(m)-se nesses materiais?
b) a(s) noção de gênero adotada(s) pelo primeiro material encontra(m)
reflexo no segundo? Em que medida?
Para responder às duas perguntas, estruturamos esta dissertação da seguinte
forma: no Capítulo 1, apresentaremos nossa base teórica – as teorias bakhtinianas
de linguagem – e, ao mesmo tempo, procederemos à distinção entre as teorias
lingüísticas que adotam diferentemente os termos gêneros discursivos (ou gêneros
de discurso) e gêneros textuais (ou gêneros de texto). Nesse mesmo capítulo,
discutiremos alguns textos que propõem didatizações dessas teorias, a fim de, em
nosso capítulo de análise, verificarmos o que essas propostas têm em comum com
os PCN.
Conforme afirmamos anteriormente, um material que se propõem a efetivar as
propostas dos PCN deve obedecer tanto aos princípios que o norteiam – no caso, a
educação para a cidadania – quanto sua base teórica. Assim, como base para
8 Revista segmentada, voltada para o professor e editada pela Fundação Victor Civita. O volume a
que nos referimos é uma edição especial chamada PCN fáceis de entender, lançada inicialmente em fascículos ao longo de 1999 e, atualmente, disponível na Internet no endereço http://novaescola.abril.com.br/index.htm?PCNs/pcn_indice.
9
verificarmos a coerência entre os módulos dos Parâmetros em Ação e os PCN de
Língua Portuguesa para 3º. e 4º. ciclos, no Capítulo 2, procuraremos demonstrar
de que forma a adoção da noção de gêneros como objeto de ensino-aprendizagem
corresponde ao objetivo de uma educação voltada para a cidadania.
Com relação à metodologia, exposta em nosso terceiro capítulo, sabendo-se
que a cada uma das noções de gênero explicitadas no Capítulo 1 correspondem os
trabalhos de determinados autores e seus temas, a partir do conceito bakhtiniano de
dialogismo e de vozes, procuraremos identificar as vozes presentes nos
documentos, a fim de estabelecer a qual das duas vertentes mencionadas os
documentos aderem. Para tanto, contaremos também com a ajuda da ferramenta
computacional de análise de corpus denominada WordSmith.
Partindo do princípio bakhtiniano de que o sentido de um texto está
intimamente relacionado com seu contexto sócio-histórico de produção, como base
para as análises que serão feitas nos capítulos subseqüentes, o Capítulo 4
procurará apresentar o contexto de emergência dos PCN. O mesmo se fará com os
módulos do Parâmetros em Ação em seu próprio capítulo de análise.
Assim, primeiramente, será feita uma análise dos PCNs – nosso Capítulo 5 –
para, em seguida, o mesmo trabalho ser feito com os Parâmetros em Ação no
Capítulo 6. Na verdade, este trabalho pode ser visto como um jogo de leituras, em
que será interpretado um material (Parâmetros em Ação) que, por sua vez, já
interpreta um outro material (PCN).
Esperamos que, com esta dissertação, possamos contribuir para um maior
esclarecimento das propostas dos PCN de Língua Portuguesa e para a efetivação
de uma educação voltada para a cidadania.
11
1 Gêneros do discurso e gêneros de texto
Este capítulo tem como objetivo apresentar a base teórica sobre a qual se
articularão as análises e discussões desta dissertação. Assim, como, em todos os
níveis de nossas análises, nosso olhar estará sendo guiado pela concepção teórica
de língua e linguagem de Bakhtin, iniciaremos este capítulo apresentando alguns
dos aspectos dessa teoria mais relevantes para o nosso intuito, incluindo,
logicamente, uma exposição sobre a teoria de gêneros, conforme a concebeu o
autor russo.
Em seguida, como nosso tema central é a noção de gêneros, procederemos à
distinção entre as teorias lingüísticas que adotam o termo gênero discursivo (ou
gênero de discurso) e as teorias de extração francófona que optam pela
denominação gêneros textuais (ou gêneros de texto), nomeadamente aquelas que
se filiam ao chamado Interacionismo Sócio-discursivo.
Antes de finalizar, discutiremos alguns textos que propõem didatizações
dessas teorias, a fim de, em nosso capítulo de análise, verificarmos o que essas
propostas têm em comum com os PCN.
Por fim, e também para facilitar nossa futura análise, apresentaremos uma
síntese das diferenças entre as duas abordagens da noção de gêneros
apresentadas no capítulo.
1.1 Bakhtin e a língua viva
Ao pensar a linguagem, a preocupação primeira de Bakhtin é considerá-la de
forma concreta, do ponto de vista do locutor, usuário real da língua, e não do ponto
de vista do lingüista ou do gramático. Contrapondo as duas orientações
predominantes para o estudo sobre a linguagem em sua época – o objetivismo
abstrato e o subjetivismo idealista –, Bakhtin/Volochinov (1929) sugere uma forma
mais ampla de se encarar os fenômenos lingüísticos ao considerá-los produtos de
relações sócio-históricas.
12
O fato de tirar a língua do âmbito do sistema abstrato e também do âmbito do
subjetivismo psicológico faz com que o observador dos fenômenos lingüísticos volte
seu olhos para o contexto em que se insere a linguagem, percebendo, assim, que
ela não é um sistema abstrato, localizado em algum lugar “virtual”, fora da vida
concreta das pessoas – como sugeria o objetivismo abstrato – e tampouco está
enclausurada na mente do indivíduo e dependente apenas dela, conforme
pressupunha o subjetivismo idealista.
Assim, sem invalidar totalmente os estudos acerca da linguagem feitos até
então, segundo Bakhtin, o que faltava a ambas as teorias que criticava era a
consideração do caráter sócio-histórico da linguagem. Para Bakhtin/Volochinov, o
que interessava era estudar a língua viva, funcionando em um contexto; a língua
enquanto instrumento social de interação/interlocução. Quanto a isto, afirmou:
Assim como, para observar o processo de combustão, convém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos (...) no meio social. (Bakhtin/Volochinov, 1929: 70).
Ao considerar a língua como instrumento social de interlocução, Bakhtin tinha
uma idéia de interlocução que ia além do mero diálogo entre dois indivíduos. O
interlocutor, ou melhor, o outro, para Bakhtin, é muito mais do que aquele com quem
estamos em contato imediato. O outro é tudo o que circunda o eu: o meio social em
que vive, a história do indivíduo e a história de seu meio, os textos com os quais este
indivíduo já teve contato, as várias vozes trazidas por esses textos, os textos com os
quais ele ainda terá contato. Ao mesmo tempo, este outro é constitutivo do eu, pois,
segundo esta perspectiva, somos resultado desse confronto entre nossa
individualidade, o meio social em que nos inserimos e a história. Este é o princípio
dialógico de Bakhtin: estamos em constante diálogo com nosso contexto imediato,
assim como estamos sempre dialogando com a história. Portanto, cada um de
nossos atos é uma resposta a atos (lingüísticos ou não) precedentes, o que faz com
que todo enunciado seja uma resposta composta em maior ou menor grau do
próprio enunciado que a suscitou. Assim sendo, Bakhtin (1952-1953/1979: 314)
afirma que nossa fala, isto é, nossos enunciados (...) estão repletos de palavras dos
outros. São essas palavras alheias, constituintes dos enunciados, que se chamam
vozes.
13
Várias são as formas de inserção de vozes num enunciado. Uma delas é a
polifonia, em que, num mesmo enunciado, várias vozes se interpõem em conflito9.
Mais do que vozes, num enunciado polifônico é possível também a existência de
diferentes linguagens sociais. A esse fenômeno, sobre o qual discorreremos um
pouco mais adiante, Bakhtin (1934-35/1975) chama de plurilingüismo.
Sempre tomando a língua como produto de interações sócio-históricas, outro
aspecto salientado por Bakhtin/Volochinov (1929: 69) e não considerado pelos
teóricos da linguagem de sua época era a idéia da língua enquanto código
ideológico, o que o levou a pensar também em questões de significação.
Segundo Bakhtin/Volochinov, apesar de as palavras e as formas da língua
manterem uma certa estabilidade de significação10, elas não possuem um sentido
único, fixo11. As palavras são signos e não sinais. E são signos ideológicos que
apenas ganham sentido no ato da enunciação, ou seja, na interação. Assim, a
palavra, quando não proferida numa interlocução, é destituída de sentido, embora, é
verdade, mantenha um certo grau de significação conferido pela relativa estabilidade
de sentido que adquire em determinados contextos. E mais: a cada nova
enunciação, um signo lingüístico ganha uma nova nuance significação, pois é
proferido cada vez com uma nuance de intenção, num momento histórico e sob
condições muito específicas. Não fosse assim, seria necessário inventarem-se
signos novos a cada nova intenção de comunicação num diferente contexto.
Portanto, o signo lingüístico é sempre aberto a vários e novos sentidos e a
compreensão destes signos por parte do interlocutor pressupõe, dessa forma, uma
negociação que exige tanto considerar os vários contextos em que este signo já
9 Note que, ao contrário do que propõe Ducrot, o conceito de polifonia em Bakhtin pressupõe vozes
em conflito. Para tratar da inserção de diferentes vozes, digamos, concordantes, Bakhtin propõe conceitos como bivocalidade, hibridismo etc.
10 O que permite, por exemplo, a elaboração de um dicionário. 11 Tomemos, por exemplo, a palavra “água”. Sua significação, aquilo que ela mantém de mais estável
em termos de sentido, pode ser, por exemplo, “um tipo específico de líquido”. Mas, dependendo do contexto, essa palavra pode ganhar um sentido totalmente diferente: pense no lutador já derrotado que pede “água” ao adversário (aqui a palavra significa que o lutador está desistindo da luta) . Ou num estrategista militar que combina com seus soldados que, ao ouvirem a palavra “água”, eles devem atacar o inimigo (aqui a palavra significa que os soldados estão autorizados a atacar). Ou ainda, no jogo popularmente conhecido como “batalha naval”, quando um dos adversários diz “água” (aqui a palavra significa que um dos jogadores arriscou um lance errado no jogo).
14
circulou e se estabilizou (a significação) quanto estar atento ao contexto atual em
que este signo está sendo utilizado. É assim que se pode afirmar que a significação
é o caráter mais ou menos estável dos signos, enquanto que o sentido se dá não só
na interação, mas também a partir de um confronto entre o dito e os vários discursos
já ditos. É esse caráter contextual e duplamente dialógico da palavra que faz com
que Bakhtin/Volochinov a considere um signo ideológico:
De fato, a forma lingüística, como acabamos de mostrar, sempre se apresenta aos locutores no contexto de enunciações precisas, o que implica sempre num contexto ideológico preciso. (...) A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. (Bakhtin/Volochinov, 1929: 95)
Ampliando essa noção de sentido – ou seja, passando do âmbito da palavra
para o âmbito dos enunciados –, Bakhtin chega à noção de “tema”.
De acordo com Bakhtin, tema não é sinônimo de “conteúdo temático” nem
de “assunto”. Tema é antes o resultado de uma enunciação como um todo,
portanto só pode ser depreendido a partir da consideração da relação simultânea
entre o enunciado, o locutor, o interlocutor, o suporte, o local e momento da
enunciação, etc. Ou seja, é preciso considerar a enunciação completa, seus
elementos verbais e não verbais para alcançarmos o tema de um enunciado, que,
por depender tão intrinsecamente das condições de enunciação, é tão individual e
não reiterável12 quanto o é toda enunciação (Bakhtin/Volochinov, 1929: 128). A
partir desse conceito, poderíamos dizer então que, se quisermos ler um texto de
forma crítica, é o tema e não o conteúdo que devemos buscar. E isso nos leva à
questão de como se dá o processo de compreensão de textos.
Ainda sob essa perspectiva sócio-histórica e dialógica da linguagem, de
acordo com Bakhtin (1952-1953/1979: 290), o interlocutor deve deixar de ser
12 A título de ilustração, retomemos aqui o mesmo enunciado tomado como exemplo por
Bakhtin/Volochinov (1929: 128) para tratar desse assunto: “Que horas são?”. Alguns temas por trás desse enunciado, dependendo do contexto sócio-histórico de sua enunciação, poderiam ser “Não vejo a hora que chegue a meia noite” ou “Espero que a meia noite nunca chegue”, ou ainda: “Que saco! Não agüento mais esperar!”; “Estou com fome”; “Estou com sono”; “Que papo chato tem esse cara!”; “Ai, meu Deus! Acho que estou atrasado!”; “Aposto que aquele canalha vai me dar o cano de novo!” e assim indefinidamente...
15
considerado um elemento passivo no ato da interação para ser considerado um
agente, da mesma forma que é o locutor. Isto porque, ao entrarmos em contato com
um enunciado (seja ele escrito ou oral), assumimos uma atitude responsiva ativa,
que é, em primeira instância, a forma inicial e preparatória para uma resposta. Nesse
processo, aquele que era ouvinte (ou receptor), procura inicialmente fazer
corresponder às palavras do outro (o locutor) palavras próprias (do ouvinte), para
então concordar ou discordar do que foi dito, executar uma ordem dada, adaptar-se,
completar ou pedir esclarecimentos e passando então a ser o locutor. Assim,
segundo Bakhtin:
A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra. (Bakhtin/Volochinov, 1929: 132)
Mesmo quando lemos um texto ao qual aparentemente não respondemos de
imediato, estamos tendo uma atitude responsiva ativa, pois o próprio esforço de
procurar compreendê-lo já pressupõe uma ação e , conseqüentemente, outras, por
exemplo, de adesão ou não ao que foi lido. Portanto, a responsividade ativa não
precisa ser imediata: “cedo ou tarde, o que foi ouvido [ou lido] e compreendido de
modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do
ouvinte”. (Bakhtin, 1952-1953/1979: 291)
É provavelmente a partir desse conceito de responsividade ou compreensão
ativa que se afirma nos PCN :
A razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio; a razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a interlocução efetiva, e não a produção de textos para serem objetos de correção. (Brasil, 1998a: 19)
Indo ainda mais além na idéia de dialogismo, como todo enunciado é
historicamente uma resposta a um enunciado precedente, o próprio locutor é um
respondente, pois ele não é o primeiro a romper pela primeira vez o eterno silêncio
do mundo. É por isso que Bakhtin (1952-1953/1979: 291) afirma que todo enunciado
é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados. E é dessa forma que se
deve entender o conceito de interdiscursividade (diálogo entre discursos) advindo
das teorias bakhtinianas, conceito que vai além da idéia de intertextualidade, que o
16
senso comum pressupõe como sendo apenas a relação de textos que tratam do
mesmo assunto.
Numa perspectiva bakhtiniana, portanto, ao propormos um trabalho
intertextual nas aulas de Língua Portuguesa, trata-se não só de comparar dois ou
mais textos sobre o mesmo assunto, mas sim de contrapor discursos, como mais
adiante veremos em nosso capítulo de análise dos Parâmetros em Ação.
Em relação à lingüística, tal visão dialógica da língua como algo vivo e
concreto implica também numa importante mudança da unidade de análise dos
fenômenos lingüísticos. Assim, se na lingüística tradicional – mais
especificamente na lingüística estrutural –, a unidade de análise são os fonemas,
as palavras e as frases ou orações, nesta perspectiva da língua enquanto
instrumento vivo de interação, a unidade de análise passa a ser o enunciado, pois
conforme afirma Bakhtin (1952-1953/1979: 297): as pessoas não trocam orações,
assim como não trocam palavras (...), trocam enunciados constituídos com a
ajuda de unidades da língua.
Dessa forma, de acordo com Bakhtin (1952-1953/1979: 295), a oração
poderia ser compreendida como uma unidade da língua, considerada num
sistema abstrato, enquanto que o enunciado seria uma unidade da comunicação
verbal concreta. Ao contrário do enunciado, que deve ser sempre considerado de
forma contextualizada no ato da interação verbal, tanto a palavra quanto as
orações são consideradas abstrações que não carregam nenhum juízo de valor,
nenhuma ideologia e, por isso, para Bakhtin, as palavras e as orações, como
tradicionalmente entendidas, não lhe interessavam.
Tal mudança de foco – do interlocutor passivo para o ativo, da oração para
o enunciado – acaba por afetar o rumo dos estudos lingüísticos e vai, mais tarde,
refletir-se no ensino de língua materna, fazendo com que surjam propostas
didáticas, como acontece nos PCN de Língua Portuguesa, que, a fim de
desenvolver a capacidade leitora dos alunos, preconizam antes o uso de textos
em situações concretas de produção/recepção do que o estudo da gramática.
17
Em síntese, ao voltar-se para a língua viva, concreta, Bakhtin demonstra
que, mais do que em formas lingüísticas, ele está interessado em questões de
sentido, que é para onde a idéia de enunciado nos remete, pois, como já
mencionamos, é dentro de um contexto, no enunciado real, que as palavras ou
orações que o compõem ganham um sentido verdadeiro. Fora do enunciado,
isoladas, tanto palavras como orações não possuem sentido real. Assim, ao lado
da idéia de alteridade e, conseqüentemente, de dialogismo do indivíduo com
esse “outro” maior, a busca de como se constroem os sentidos de um texto é
elemento norteador da obra de Bakhtin.
1.1.1 Os gêneros do discurso
Sempre considerando a língua como instrumento sócio-histórico de
interação, Bakhtin (1952-1953/1979: 279) nota que cada esfera de atividade
humana produz seus próprios tipos de enunciados, que refletem as condições e
as finalidades para as quais eles foram compostos. Portanto, todo enunciado traz
marcas da esfera de comunicação na qual foi forjado. Sendo as esferas de
atividade humana em número extremamente grande e sendo as situações de
enunciação infinitas, para que não seja necessário criarem-se novas formas de
enunciado a cada nova situação, o que dificultaria em muito a comunicação entre
os indivíduos, cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados (Bakhtin, 1952-1953/1979: 279), ou seja, seus gêneros do
discurso.
Em outras palavras, os gêneros são formas relativamente estáveis de
enunciados do ponto de vista temático, composicional e estilístico, dados os
contextos e situações específicas de comunicação. Isto significa que são as próprias
atividades e o contexto em que elas ocorrem que determinam o conteúdo, a forma e
o estilo dos enunciados, o que equivale dizer que cada diferente esfera de atividade
elabora um certo número de gêneros, isto é, formas específicas de se constituírem
os enunciados. É neste sentido que se afirma que há tantos gêneros quanto há
atividades humanas.
Portanto, é importante ressaltar aqui o que afirma Brait (2000: 18):
18
Não se pode falar de gêneros sem pensar na esfera de atividades em que eles se constituem e atuam, aí implicadas as condições de produção, de circulação e de recepção.
Além de sofrer influência das características intrínsecas de cada esfera, cada
texto produzido num certo gênero também sofre influência determinante da
apreciação valorativa do próprio locutor em relação à situação de enunciação. Nesse
sentido, analisando a questão dos gêneros discursivos conforme tratada por
Bakhtin/Volochinov (1929), Rojo (2004, no prelo) conclui que todas as três
dimensões dos gêneros discursivos (temas, forma composicional e estilo) são
determinadas pelos parâmetros da situação dos enunciados e sobretudo (...) pela
apreciação valorativa do locutor a respeito do(s) temas e do(s) interlocutores de seu
discurso.
Podemos dizer então que é a apreciação valorativa que determina ou
organiza os elementos de um enunciado, pois segundo Bakhtin/Volochinov
(1929:134, 135), o valor apreciativo serve antes de mais nada para orientar a
escolha e a distribuição dos elementos mais carregados de sentido da enunciação13.
Não se pode construir uma enunciação sem a modalidade apreciativa.
Conseqüentemente, como bem nota Rojo (2004, no prelo), para se compreender,
produzir ou conhecer os gêneros ou os textos pertencentes a eles, é necessário que
se leve em conta a sua situação social de produção, considerando como elementos
essenciais dessa situação os parceiros da interlocução, as relações sociais,
institucionais e interpessoais dessa parceria, vistas a partir do foco da apreciação
valorativa do locutor e, ao mesmo tempo, considerando as esferas de produção
desses gêneros.
Assim como Vygotsky considerava a aprendizagem um processo
essencialmente social de apropriação da cultura elaborada historicamente pela
humanidade, Bakhtin (1952-1953/1979: 301) afirma que os gêneros nos são dados
da mesma forma que nos é dada a língua materna, ou seja, sócio-historicamente.
Como já dissemos, é porque existem os gêneros que não necessitamos criar novas
formas de expressão a cada vez que falamos. Os gêneros, portanto, ao mesmo
13 Talvez haja, aqui, uma inadequação da tradução. No caso desta citação, a palavra “enunciado”
seria mais bem aplicada ao texto do que a palavra “enunciação” escolhida pelos tradutores.
19
tempo em que são ilimitados (pois além de serem em grande número estão sendo
sempre criados novos gêneros), são econômicos, pois nos poupam deste trabalho
de recriação das formas de expressão.
No entanto, não devemos pensar os gêneros como formas absolutamente
prescritivas de comunicação. Na realidade, como vimos, segundo a perspectiva
bakhtiniana, poderíamos considerar a situação de comunicação (esfera de
circulação, relação entre interlocutores, apreciação valorativa do locutor sobre a
situação e o tema, finalidade da comunicação, tempo e lugar da enunciação) muito
mais prescritiva do que o gênero, já que é ela que o determina (com seus temas,
formas e estilo).
Os gêneros, portanto, sofrem a ação de duas forças opostas: uma delas
poderíamos chamar de “centrífuga”, desestabilizadora, alimentada pelas mudanças
sócio-históricas e pelas diferentes linguagens sociais. Logo, a outra força poderia ser
caracterizada como “centrípeta”, estabilizadora, aquela que garante a unidade e a
padronização da língua nacional (Bakhtin, 1934-35/1975)14.
Dessa forma, caso se queira transpor a noção de gêneros para o âmbito do
ensino de leitura e produção de textos em língua materna, de acordo com a
concepção bakhtiniana, devem-se propor atividades didáticas que incluam uma
análise do contexto de produção para se chegar à reconstrução dos sentidos dos
textos. Quanto à questão de dar sentido aos enunciados, Bakhtin ainda afirma:
O essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular. (Bakhtin/Volochinov, 1929: 93, ênfase adicionada)
Como são sócio-historicamente constituídos, os gêneros possuem um caráter
instável, pois, ao se transformarem as condições sócio-históricas e enunciativas
determinantes da forma composicional, do estilo e dos temas normalmente
expressos por determinado gênero, estes três elementos também se transformarão.
14 É no campo dessa segunda força que encontramos, por exemplo, a escola: tanto na sua
tradicional forma de trabalhar a língua com base numa gramática normativa, quanto nas novas propostas que aceitam um certo plurilingïsmo na sala de aula, mas ainda privilegiam o ensino da norma culta padrão.
20
É assim que os gêneros podem ser considerados como apenas “relativamente
estáveis” e permitem que um enunciado nunca seja igual ao outro.
A partir da percepção de que as esferas de atividade estão em constante
evolução, pois sofrem influências sócio-históricas que acabam por se refletir nos
gêneros e, conseqüentemente, na língua, Bakhtin/Volochinov (1929) vai então
apresentar seu método sociológico de análise do enunciado:
Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser a seguinte:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realizam.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias dos atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal (leia-se, gêneros; ênfase adicionada).
3. A partir daí, exame das formas da língua em sua interpretação lingüística habitual.
É nessa mesma ordem que se desenvolve a evolução real da língua: as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala15 evoluem em conseqüência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua. (Bakhtin/Volochinov, 1929: 124)
O que fica claro com esta citação é que, para se analisarem os gêneros, os
enunciados ou a própria língua, é necessário partir-se de contextos mais amplos,
das esferas ou dos contextos de enunciação, para em seguida analisarem-se as
produções lingüísticas dadas nesses contextos e, finalmente, as formas da língua.
Estando tão intimamente ligados às esferas nas quais emergem e circulam,
alguns gêneros produzem também estilos bastante específicos de linguagem, aos
quais podemos chamar de linguagens sociais. Essas linguagens sociais,
consideradas em conjunto, é o que Bakhtin (1934-35/1975) chama de plurilingüismo.
O plurilingüismo, portanto, é constitutivo das línguas nacionais.
15 Ênfase adicionada.
21
É bom deixar claro, porém, que, quando se fala de plurilingüismo em
Bakhtin, não se deve associá-lo apenas e imediatamente à idéia de dialeto ou de
registro. As linguagens sociais que constituem o plurilingüismo de que fala
Bakhtin englobam os registros e dialetos, mas vão além disso. O que se deve
considerar aqui é também a linguagem diferenciada e específica que cada gênero
– por estar intrinsecamente ligado às diferentes esferas de atuação humana –
pressupõe.
Assim, em se tratando do ensino de língua materna na escola, considerar
o plurilingüismo é aceitar que não existe uma forma única, correta e homogênea,
de se expressar em uma língua nacional. O que há são várias formas de uso e
expressão da língua, adequadas a cada gênero e esfera de comunicação.
Conseqüentemente, isso significa que não há uma forma intrinsecamente melhor
ou pior de expressão geral, há apenas formas diferentes, determinadas por
processos sócio-históricos diferentes, adequadas ou não a cada situação
específica.
A consideração do conceito de plurilingüismo pode ter, dessa forma, um
reflexo importante no ensino de língua materna e em uma educação preocupada
com a cidadania: o fim do preconceito lingüístico16.
Uma passagem do texto Os Gêneros da Discurso (Bakhtin,1952-1953/1979:
303) merece destaque neste trabalho. Ao falar da existência de gêneros mais ou
menos padronizados e da necessidade de se ter um bom domínio dos gêneros para
que eles possam ser utilizados mais livremente, Bakhtin chama a atenção para o
fato de haver pessoas que dominando magnificamente a língua, sentem-se logo
desamparadas em certas esferas da comunicação verbal, precisamente pelo fato de
não dominarem, na prática, as formas do gênero de uma dada esfera. Ou seja, para
cada esfera da comunicação verbal há um certo número de gêneros. Portanto, para
que o cidadão interaja dentro das mais variadas esferas, é necessário que ele
domine os diferentes gêneros que nelas circulam. É provavelmente este um dos
motivos pelos quais os PCN de Língua Portuguesa – cuja proposta fundante é
formar um cidadão crítico e autônomo, detentor de saberes lingüísticos necessários
16 Voltaremos a esse assunto no próximo capítulo.
22
para o exercício da cidadania (Brasil, 1998a: 19) – adotam a noção de gêneros
como um dos objetos privilegiados de estudo de Língua Portuguesa.
Ainda em relação à diversidade de gêneros, Bakhtin distingue-os em dois
grandes grupos: os gêneros primários e os gêneros secundários.
Os gêneros primários são aqueles que surgem de situações cotidianas e
privadas. Embora predominantemente orais, abarcam entre eles também formas
mais triviais de escrita. Os gêneros secundários, próprios das esferas públicas mais
complexas (arte, ciência, jornalismo etc.), seriam re-elaborações dos primários e em
grande parte (porém não exclusivamente) escritos. Dessa forma, pertenceriam aos
gêneros secundários tanto os textos científicos (onde a linguagem escrita é bastante
elaborada e distanciada do oral cotidiano), quanto os debates públicos que, apesar
de orais, são fortemente regrados e normatizados.
Os gêneros secundários, ao contrário dos primários, mantêm uma relação
disjunta com a realidade imediata e por isso se assemelham à escrita sem, no
entanto, manter com ela uma relação de identidade total.
Como se pode notar, tanto nos gêneros primários como nos secundários,
a oralidade e a escrita estão presentes em sociedades complexas e letradas.
Assim, é possível relativizar, ou até abandonar (como propõe Rojo, 2001c), a
dicotomia oral/escrito, para diferenciar uma linguagem mais simples, imediata e
conjunta com a situação de enunciação de outra mais complexa, disjunta da
situação de produção.
Levando tais idéias para o campo de ensino de língua materna, se o que se
propõe é uma educação que prepare o aluno para interagir em diferentes esferas
públicas, a fim de que possa exercer sua cidadania, certamente a escola deverá
se voltar prioritariamente para o trabalho com os gêneros secundários, tanto orais
quanto escritos.
Ao adotar uma posição bakhtiniana sobre a linguagem, está-se, pois, falando
da linguagem como instrumento sócio-histórico de interação – não só dialógico, mas
também ideológico – em que uma noção ampla de alteridade é fundamental. Por se
tratar de instrumento ideológico, a língua é ao mesmo tempo portadora e produtora
23
de valores e significados. Assim sendo, muitos dos demais conceitos desenvolvidos
por Bakhtin – como enunciado, polifonia, tema e outros – vão ter como pano de
fundo essa busca por se desvendar como se constroem os sentidos dos textos.
Com relação ao ensino de língua materna, a transposição didática dos
conceitos bakhtinianos deve, portanto, preconizar uma análise de textos de caráter
enunciativo-discursivo, ou seja, uma análise que procure (re)construir os
sentidos/tema do texto considerando o diálogo entre seus elementos constituintes
(estruturas sintáticas, léxico etc.) e seu contexto de produção, assim como o diálogo
entre o gênero a que o texto pertence e a esfera em que circula, incluindo aspectos
enunciativos (momento histórico, lugar social etc.) e discursivos (por exemplo, a
relação entre interlocutores, o lugar social de cada um deles, as intenções do locutor
etc.), bem como os outros enunciados com os quais o texto dialoga.
Portanto, para dizermos que os PCN adotam uma abordagem mais
bakhtiniana de gêneros, é esse tipo de trabalho que deveremos encontrar no
documento em nosso capítulo de análise.
1.2 Interacionismo Sócio Discursivo17: a noção de gênero de texto
As teorias bakhtinianas da linguagem e, principalmente, a noção de gêneros
vêm, nas últimas décadas, sendo retomadas, com diferentes enfoques, por várias
correntes de estudos dedicados a questões lingüísticas. Assim, de forma mais ou
menos explícita, por exemplo, tanto lingüistas filiados ao que se pode chamar de
lingüística sistêmico-funcional (como Swales, 1990; Bhatia, 1993; Eggins & Martins,
1997; Huckin & Berkenkotter, 1995) quanto aqueles filiados à Análise do Discurso
Francesa (Maingueneau, 1997) de alguma maneira retomam alguns dos conceitos
bakhtinianos e reelaboram-nos para suas teorias. Os primeiros, dentre outros,
costumam adotar a terminologia “gêneros de textos” em suas teorias, enquanto que
o segundo, embora não se declare exatamente um autor bakhtiniano, opta pela
terminologia “gêneros discursivos”, preferencialmente adotada pelo autor russo.
Dessa forma, fica claro que a noção de gêneros não é unívoca.
17 Doravante, ISD.
24
Ao lado dessas correntes, outra que tem como base a teoria bakhtiniana – e
que mais nos interessa aqui por suas ramificações com a didática de língua materna
e sua influência na base teórica dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua
Portuguesa (Rojo, 2004 a) – é o Interacionismo Sócio-Discursivo, que tem como
centro irradiador de suas teorias a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
da Universidade de Genebra, sendo Bronckart – ao lado de Schneuwly e Dolz – o
principal divulgador dos estudos feitos ali.
Tomando como base as teorias bakhtinianas e a idéia marxista de
instrumento, segundo o ISD, a linguagem, instrumento semiótico, nasce a partir da
diversificação e sofisticação das atividades práticas. Dessa forma, a cada novo ou
diferente contexto, as ações de linguagem sofrem adaptações, originando diferentes
espécies de textos (Bronckart et al., 1996).
Dito de outra forma, se a linguagem surge a partir da necessidade da
existência de um instrumento mediador das atividades humanas, a cada diferente
situação surge também uma diferente forma de expressão da linguagem, ou seja,
um diferente texto. Por outro lado, esferas de atividade semelhantes geram espécies
de textos semelhantes – cuja estrutura de certo modo se cristaliza – às quais os
indivíduos recorrem para produzir textos a cada vez que se repetem condições
similares àquelas que deram origem a essas espécies de textos. É a essas espécies
de textos, mais ou menos cristalizadas e adaptadas aos contextos, que o ISD chama
de gêneros de textos18.
Segundo Bronckart (1997), assim como qualquer atividade humana, os
gêneros são objetos permanentes de avaliações sociais, o que lhes confere o
caráter de modelos (1997:149) nos quais o agente de uma ação de linguagem se
baseia para produzir um texto. Dessa forma, entende-se o texto empírico como
sendo o elemento que integra uma ação de linguagem (por exemplo: comunicar-se
com alguém a distância, informar novidades, exposição de idéias, ou seja, ações
mediadas pela linguagem) a um gênero, pois, para concretizar uma ação de
18 Sob o efeito da diversificação das atividades não verbais [non lagagières] com as quais esses
textos estão em interação, eles mesmos se diversificam em gêneros. (Bronckart, 1997: 35)
25
linguagem, o agente seleciona um gênero (carta, notícia, palestra), dentre todos os
disponíveis e por ele conhecidos, e então materializa seu texto. Como vimos, para
Bakhtin, ao contrário, a própria situação e a própria esfera já determinam o gênero.
Não há propriamente uma escolha.
Porém, apesar de resultarem de uma cristalização e de funcionarem como
“modelos”, conforme se modificam as configurações do contexto imediato de
enunciação (o enunciador, o destinatário, o conteúdo etc.), os textos produzidos
dentro da forma modelar de um gênero resultam diferentes, o que faz com que, ao
final de um certo tempo, os próprios gêneros também sejam modificados (Bronckart,
1997: 35).
Mesmo que certos gêneros sejam bastante rígidos e prescritivos, é o caráter
relativamente estável e maleável da maioria deles que permite que os agentes
atuem, sempre influenciados pelo contexto, de forma mais ou menos livre e pessoal
ao tomar determinado gênero para produzir um texto. Isto significa que, no momento
da enunciação, são as representações individuais do agente em relação tanto ao
gênero adotado quanto aos parâmetros da situação que fazem com que cada texto
seja diferente e irrepetível.
Ainda de acordo com Bronckart (1997: 93-94), há dois tipos de
representações dos parâmetros de situação que o agente de uma ação de
linguagem aciona ao produzir um texto: representações acerca do contexto físico da
interação (lugar e momento de produção, o emissor e o receptor), e representações
acerca do contexto sócio-subjetivo. Quanto ao contexto sócio-subjetivo, para
produzir seu texto, o agente vai acionar seus valores em relação ao lugar social da
interação, ao seu próprio papel social, ao papel social do destinatário de seu texto e,
finalmente, vai considerar que efeitos ele pretende produzir em seu destinatário, ou
seja, qual é o objetivo da interação.
Dessa forma, para levar a termo uma ação de linguagem, o agente
desenvolve as seguintes operações: mobilização de representações sobre os
contextos físico e sócio-subjetivo e sobre os conteúdos a serem verbalizados, bem
como a seleção do gênero de texto mais adequado ao contexto e ao conteúdo que
quer transmitir.
26
Além das implicações que tais interferências individuais exercem na
estabilidade dos gêneros, o autor ressalta que se deve considerar que os gêneros
também sofrem influência dos processos sócio-históricos, daí outro motivo para
serem considerados apenas relativamente estáveis, já que, em casos extremos,
certas modificações no contexto sócio-histórico às vezes podem até determinar o
desaparecimento de alguns gêneros, que caem em desuso, ou o surgimento de
novos gêneros (Bronckart, 1997: 72-74).
Como objeto de análise, portanto, os gêneros apresentam dois
problemas: sua diversidade e sua instabilidade, pois ambas as características
dificultam grandemente qualquer esforço classificatório dos gêneros
(Bronckart, 1996b e 1997: 73).
Assim, para o ISD, apesar de se discorrer longamente sobre a noção de
gênero, os gêneros não podem ser objeto de uma análise ou de classificação, por
sua ilimitada variedade e instabilidade: a concepção teórica do método de
análise que é proposto e/ou utilizado por esses autores [do ISD] não toma os
gêneros de textos como uma unidade de análise específica e direta, nem a
descrição deles como seu objetivo maior (Machado, no prelo). Uma vez que o
objetivo principal das teorias do ISD é descrever os processos cognitivos e
lingüísticos envolvidos na sua produção, a unidade de análise passa a ser,
portanto, os textos, vistos como materializações das ações de linguagem.
Pode-se, portanto, facilmente compreender porque os autores ligados
ao ISD adotam a expressão “gêneros de texto” em vez de “gêneros de
discurso”, diferindo da terminologia utilizada preferencialmente por Bakhtin,
cujas teorias formam parte da base do ISD.
Estando mais preocupado com o que chama de “texto empírico”19 do
que com a análise de gêneros ou de questões de significação, Bronckart
(1997: 119) vai descrever então a organização de um texto a partir da
19 Texto empírico é definido como uma unidade concreta de produção de linguagem, que pertence
necessariamente a um gênero, composta por vários tipos de discurso, e que também apresenta os traços das decisões tomadas pelo produtor individual em função da sua situação de comunicação particular (Bronckart, 1997: 77).
27
metáfora de um “folhado”, considerando que, a fim de assegurar a necessária
coerência interna que define um enunciado como sendo um texto (Bronckart,
1997: 71), sua composição se constitui por três camadas superpostas: a
infra-estrutura geral do texto (constituída pelo plano mais geral do texto,
pelos tipos de discurso, articulações entre os tipos e seqüências, por
exemplo, seqüências narrativas, explicativas, argumentativas etc.); os
mecanismos de textualização (conexão, coesão verbal e coesão nominal,
onde se incluem as cadeias anafóricas) e, finalmente, os mecanismos
enunciativos (as formas de inserção de vozes nos textos, as modalizações).
Repare-se que – com exceção dos mecanismos enunciativos – todas
as definições estão fortemente amparadas por conceitos gramaticais ou
advindos da lingüística textual. O que aqui as diferencia é a articulação feita
entre esses aspectos textuais e os contextos de produção dos textos.
No entanto, ao tomar os parâmetros do contexto, o autor parece referir-
se mais ao contexto imediato da produção do texto do que à esfera a que o
texto estaria vinculado. É o que se pode perceber pelas categorias de
ancoragem discursiva “implicado/autônomo” e “conjunção/disjunção”, que
articulam a idéia de mundos discursivos e tipos de discurso.
O mundo discursivo é definido como o resultado de duas ordens de
relações: a relação entre o conteúdo expresso e o lugar/momento da
realização do texto, bem como a relação entre o enunciador e os parâmetros
físicos da ação de linguagem. Repare que ambas as ordens dizem respeito
principalmente ao contexto imediato de enunciação.
É da articulação dessas duas ordens que se estabelecem os quatro
tipos de discurso (narração, relato interativo, discurso teórico e discurso
interativo), que Bronckart resume no seguinte quadro:
28
Coordenadas Gerais dos mundos discursivos
Conjunção Disjunção
EXPOR NARRAR
Implicação Discurso
interativo
Relato interativo
Relação ao ato
de produção
Autonomia Discurso teórico Narração
Quadro 1 – Tipos de discurso (Bronckart, 1997: 157)
Por meio desse modelo, por exemplo, ao se analisar um texto de
História, o que se levará em conta é que o autor do texto (em seu papel
social de historiador) e o conteúdo por ele expresso colocam-se de forma
autônoma e disjunta em relação ao “mundo ordinário” e aos parâmetros
físicos da ação de linguagem, pois não há marcas no texto da implicação do
autor (por exemplo, usa-se apenas pronomes em terceira pessoa) e o tempo
e espaço sobre os quais fala o autor são diferentes daqueles em que ele está
vivendo no ato da anunciação. Portanto, o texto se caracterizaria por
pertencer à ordem no narrar.
O que se vê então é que o tipo de análise decorrente da aplicação das
categorias resumidas nesse quadro, ao não levar em conta, por exemplo, as
relações de força existentes na esfera para a qual o texto foi produzido,
acaba por pouco contribuir para uma compreensão do tema do texto.
Após a apresentação do quadro acima, o autor conclui, afirmando que
os tipos de discurso são formas de organização lingüísticas, com as quais
29
são compostos, em diferentes modalidades, todos os gêneros textuais
(Bronckart, 1997: 250).
Ao contrário dos gêneros, entidades profundamente vagas (Bronckart,
1997: 73), esses tipos de discursos possuem a necessária estabilidade para
que se elabore um quadro teórico a partir deles e, portanto, são eles que
acabam por ser tomados como elementos catalisadores do modelo geral de
produção de discursos proposto pelo autor. Além da estabilidade, os tipos de
discurso, enquanto objeto de análise, também têm a vantagem de ser em
número limitado, em contraposição aos gêneros de texto que existem em
número praticamente infinito.
Assim, voltando à idéia do “folhado”, por um lado, esses tipos de
discurso seriam os principais elementos constituintes da infra-estrutura do
texto e, por outro, os mecanismos de textualização seriam os responsáveis
pela articulação coesa e coerente desses mesmos tipos, presentes no interior
dos textos.
Neste ponto, gostaríamos de acrescentar que tais análises centradas
nos tipos de discurso, e não nos gêneros, demonstram ser bastante
adequadas ao objetivo do autor: elaborar um modelo – daí a busca de
elementos estáveis – de produção de discursos. Porém parecem pouco
contribuir para uma abordagem dos significados ou do tema dos textos.
Dessa forma, sintomaticamente, ao tratar dos mecanismos enunciativos, a
única instância do “folhado” a apontar (sem, no entanto, explorar) para
questões de significação, Bronckart observa que, diferentemente do que
ocorre com os mecanismos de textualização,
a distribuição das funções de modalização assim como a escolha efetiva das unidades que as expressam são relativamente independentes dos tipos de discurso.
E ainda acrescenta:
podemos, entretanto, observar que, enquanto alguns textos estão saturados de unidades de modalização, em outros, essas mesmas unidades são raras ou ausentes. Essas diferenças de freqüência
30
parecem estar relacionadas ao gênero a que pertence o texto. (Bronckart, 1997: 334)
Dessa forma, Bronckart nos permite antever que, para se explorarem
questões mais ligadas à significação, é indicado que nos ocupemos de
analisar os gêneros de forma mais ampla e não apenas limitada a seus
componentes lingüísticos e textuais.
1.2.1 O ISD e o ensino de língua materna: os gêneros de texto na escola
Antes de prosseguirmos, cabe aqui relembrar que o ISD tem sua
origem e principal pólo (porém não único) de desenvolvimento na Faculdade
de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra e fazem
parte desse grupo tanto pesquisadores interessados exclusivamente em
descrever e analisar o funcionamento e aquisição da linguagem quanto
aqueles dedicados a desenvolver metodologias didáticas para o ensino de
línguas. Assim, Bronckart (1997: 88), mais preocupado com a elaboração de
um modelo geral das condições de produção dos textos assim como de sua
organização interna e reconhecendo que o seu tipo de análise talvez não
possa, como tal, ser explorado nos procedimentos didáticos (p. 89), abre
campo para que seus colegas tomem de outros aportes teóricos – como
teorias de ensino e aprendizagem ou de formulação de currículos – e, num
trabalho interdisciplinar, levem os resultados dos estudos interacionistas
discursivos para o ensino de línguas.
Campo aberto, Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz e colaboradores da
equipe de Didática de Línguas se apropriam das teorias acerca de texto e
linguagem do ISD e as reelaboram para aplicá-las em questões de ensino,
especialmente de língua materna. Duas das principais noções articuladas
pelo ISD e aproveitadas pela equipe de Didática de Línguas são a de gênero
como modelo e as de tipos de discurso. Para a transposição didática dessas
noções, também foram tomados os conceitos de capacidades e progressão,
31
estes advindos de outras áreas mais ligadas a questões educacionais20.
Vejamos de que forma se articularam esses conceitos.
1.2.1.1 Gêneros de texto como objeto de ensino-aprendizagem
Schneuwly (1994), retomando e ampliando a noção de gênero
conforme propõe Bronckart, defende a idéia de que os gêneros de textos,
além de serem instrumentos fundamentais para a participação dos indivíduos
nas atividades sociais – o que por si só já justificaria seu ensino nas escolas
–, são também ferramentas para o desenvolvimento das funções psicológicas
superiores. Ou seja, são instrumentos mediadores e constituintes da ação do
homem no mundo e, assim sendo, é necessário que os sujeitos que deles se
apropriam desenvolvam “esquemas de utilização”, esquemas esses que
raramente se apreendem de forma direta, daí mais uma razão para se
tomarem os gêneros de várias esferas como objeto de ensino-aprendizagem
(Barbosa, 2001a: 87).
Nesse sentido, segundo Schneuwly (1994), os gêneros também podem
ser considerados mega-instrumentos, compostos por vários outros
instrumentos menores. Conforme afirma Barbosa (2001), embora o autor
[Schneuwly] não detalhe quais seriam exatamente esses instrumentos
menores, poderíamos considerar que seriam elementos de ordem
enunciativa, textual e gramatical, necessários à produção e à compreensão
de textos. E seriam essas formas de outros níveis lingüísticos que
possibilitariam, dentre outros aspectos, um tratamento didático dos gêneros.
Além isso, de acordo com Dolz & Schneuwly (1996: 51), os gêneros
são resultado de cristalizações das práticas de linguagem e, portanto, podem
ser tomados como modelos de atuação. Em termos didáticos, a análise de
suas [dos gêneros] características fornece uma primeira base de modelização
instrumental para organizar as atividades de ensino que esses objetos de
20 Com o passar do tempo, tal diferença de objetivos acabou por configurar de maneira hoje ainda
mais clara, pela separação das duas equipes em diferentes projetos. Atualmente, as pesquisas da equipe de Bronckart estão principalmente voltadas para questões de psicologia e de trabalho, enquanto que a de Dolz e Schneuwly tem se dedicado cada vez mais a questões de didática de ensino de língua materna, numa abordagem também cada vez mais próxima da bakhtiniana.
32
aprendizagem requerem. Nesse sentido, Schneuwly & Dolz (1997: 81) –
cientes de que ao introduzir na escola gêneros próprios de outras esferas
estes inevitavelmente sofrem uma transformação –, propõem a elaboração
de “modelos didáticos” de gêneros, ou seja, uma variação do gênero de
referência, construída numa dinâmica de ensino-aprendizagem, para
funcionar numa instituição cujo objetivo primeiro é precisamente este. De
qualquer forma, a proposta é que o trabalho com esses gêneros didatizados
seja feito a partir de uma espécie de “ficcionalização”, que proponha ao aluno
condições de produção o mais próximas possível das verdadeiras situações
de comunicação.
Mas a introdução de gêneros não escolares21 na escola impõe ainda
uma nova questão: que gêneros interessa ensinar?
Como vimos acima, Bronckart (1997) afirma que, como objeto de
análise, os gêneros apresentam dois problemas: sua diversidade e sua
instabilidade, alegando que, embora seja possível definir de certa forma os
gêneros como espécies sócio-históricas de textos que emergem de atividades
de linguagem e servem de modelos relativamente estáveis para a
materialização de ações de linguagem, classificá-los é uma tarefa bastante
difícil, na qual, pela diversidade de critérios possíveis envolvidos, nenhum
teórico até agora obteve grande sucesso (Bronckart, 1996b).
No entanto, para além de ser um problema, essa possibilidade de
classificar os gêneros de formas diversas pode também ser um fato positivo,
pois dependendo do objetivo com que se quer abordar a noção de gêneros,
uma diferente forma de classificação pode ser elencada. Neste sentido, por
exemplo, Dolz & Schneuwly (1996), com objetivos didáticos, apresentam um
agrupamento de gêneros, com vistas ao ensino-aprendizagem, baseado em
três critérios principais: nos domínios sociais de comunicação em que os
21 Estamos aqui considerando uma distinção entre gêneros escolares, ou seja, aqueles que circulam
exclusivamente na escola – como, por exemplo, a dissertação ou a descrição à vista de gravura –, e gêneros não escolares: uma infinidade de outros gêneros que, originalmente, circulam fora da escola: cartas, artigos de jornal, editoriais, contratos, receitas, cadastros etc.
33
gêneros circulam, nos seus aspectos tipológicos e nas capacidades de
linguagem dominantes requeridas pelos mesmos.
Observemos o quadro de agrupamento de gêneros proposto pelos autores:
Domínios sociais de comunicação
ASPECTOS TIPOLÓGICOS
Capacidades de linguagem dominantes
Exemplos de gêneros orais e escritos
Cultura literária ficcional
NARRAR
Mimesis da ação através da criação da intriga no domínio do verossímil
conto maravilhoso
conto de fadas
fábula
lenda
narrativa de aventura
narrativa de ficção científica
narrativa de enigma
narrativa mítica
sketch ou história engraçada
biografia romanceada
romance
romance histórico
novela fantástica
conto
crônica literária
adivinha
piada…
Documentação e memorização das ações humanas
RELATAR
Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo
relato de experiência vivida
relato de viagem
diário íntimo
testemunho
anedota ou caso
autobiografia
curriculum vitae
...
notícia
reportagem
crônica social
crônica esportiva
...
histórico
relato histórico
ensaio ou perfil biográfico
biografia
...
34
Discussão de problemas sociais controversos
ARGUMENTAR
Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição
textos de opinião
diálogo argumentativo
carta de leitor
carta de reclamação
carta de solicitação
deliberação informal
debate regrado
assembléia
discurso de defesa (advocacia)
discurso de acusação (advocacia)
resenha crítica
artigos de opinião ou assinados
editorial
ensaio
...
Transmissão e construção de saberes
EXPOR
Apresentação textual de diferentes formas dos saberes
texto expositivo (em livro didático)
exposição oral
seminário
conferência
comunicação oral
palestra
entrevista de especialista
verbete
artigo enciclopédico
texto explicativo
tomada de notas
resumo de textos expositivos e explicativos
resenha
relatório cientifico
relatório oral de experiência
…
Instruções e prescrições
DESCREVER AÇÕES
Regulação mútua de comportamentos
instruções de montagem
receita
regulamento
regras de jogo
instruções de uso
comandos diversos
textos prescritivos
...
Quadro 2 – Proposta provisória de agrupamento de gêneros (Dolz & Schneuwly, 1996: 60,61)
Ao contrário do que sugere, por exemplo, Marcuschi (2002: 23) acerca da
equivalência entre “domínios” e “esferas”, observando o quadro acima, podemos
perceber que faz mais sentido pensar os “Domínios sociais de comunicação” em
termos de finalidade ou motivação para uma atividade lingüística do que em
35
termos de esferas de atividade. Por exemplo: parece ser mais adequado pensar
que “Documentação e memorização das ações humanas” é um objetivo
pragmático que pode ocorrer em diferentes instâncias sociais (por exemplo nas
ciências sociais, no jornalismo, nas relações cotidianas) do que pensar que se
trata de uma “esfera”, conceito que nos remete à idéia de instituições sociais
específicas.
Ainda em relação ao quadro acima, a fim de justificar os critérios de
seleção adotados para o agrupamento, os autores recorrem à descrição de
um esquema sócio-psicológico de funcionamento da linguagem, que parte
das práticas, passa pelas atividades, para chegar às capacidades de
linguagem.
De acordo com os autores, as práticas de linguagem estariam
relacionadas às práticas sociais em geral. Estudá-las como tal implicaria
então analisá-las utilizando critérios construídos socialmente e
individualmente (representações) pelos sujeitos.
A atividade de linguagem, por sua vez, seria orientada por um motivo
que nasce das práticas sociais. Ela funcionaria assim como uma interface
entre o sujeito e o meio (Schneuwly & Dolz, 1997: 73). Além disso, a
atividade de linguagem tem sua origem nas situações de comunicação,
desenvolve-se em zonas de cooperação determinadas e, sobretudo, ela
atribui às práticas sociais um papel determinante na explicação de seu
funcionamento (Schneuwly & Dolz,1997). Tal definição de atividade de
linguagem, a nosso ver, se assemelha bastante a uma possível definição de
texto. A diferença residiria no fato de os textos estarem numa relação de
dependência com os gêneros discursivos e, conseqüentemente, com esferas
sociais específicas e não somente com as práticas, que nos parecem ser uma
categoria muito aberta, não tão socialmente situada. Aproximando os
conceitos apresentados, a analogia que se poderia fazer, portanto, é que as
práticas de linguagem estão para os gêneros assim como as atividades de
linguagem estão para os textos.
36
Continuando num movimento descendente de descrição das relações
entre práticas, atividades, ações e capacidades, os autores vão afirmar que
as atividades de linguagem podem ser decompostas em ações, ou seja, que
a atividade pode ser também definida como um sistema de ações (Schneuwly
& Dolz,1997: 73). Levando adiante a analogia entre atividade de linguagem e
texto, arriscaríamos aqui afirmar ser possível então aproximar o que os
autores chamam de ações de linguagem aos tipos de discurso. Assim, da
mesma forma que os tipos de discurso são considerados elementos de
composição dos textos, as ações de linguagem compõem as atividades de
linguagem. Logo, teríamos as ações de narrar, argumentar, relatar, entre
outras, funcionando como componentes de determinadas atividades de
linguagem, da mesma forma que os tipos de discurso narração, relato,
discurso teórico, discurso interativo compõem de forma livre os textos
pertencentes aos gêneros.
Finalmente, para levar a termo as ações de linguagem – ou seja, as
estruturas de comportamento não diretamente articuladas aos motivos22, mas
orientadas por objetivos intermediários (Schneuwly & Dolz,1997: 73) –, o
sujeito deve desenvolver uma série de capacidades. Segundo os autores,
essas capacidades se constroem a partir de três níveis de operações: a
adaptação do agente às características do contexto e do referente
(capacidades de ação), a mobilização de modelos discursivos (capacidades
discursivas) e o domínio sobre as operações psicolingüísticas e sobre as
unidades lingüísticas (capacidades lingüístico-discursivas). Estas então
seriam as capacidades que a escola procuraria desenvolver nos alunos, a fim
de que eles alcancem cada vez mais uma melhor mestria dos gêneros e das
situações de comunicação que lhes correspondem (Dolz & Schneuwly, 1996:
53), de forma a transferirem essas capacidades desenvolvidas para outros
gêneros.
22 Isto significa que as ações não são orientadas pelos motivos que levaram o sujeito a produzir uma
atividade de linguagem, ou seja, motivos de ordem social, mas sim motivos mais específicos, relacionados ao próprio processo de produção/compreensão do texto.
37
Apesar de todos esses níveis terem sido considerados para o agrupamento
de gêneros acima apresentado, o que se percebe, no entanto, é que os aspectos
tipológicos parecem ser os elementos articuladores da seleção apresentada.
Conforme afirma Barbosa (2001:146), consideramos que parece haver uma solução
de compromisso com propostas tipológicas, o que acaba por determinar que esse
aspecto se constitua no principal critério assumido, sendo os outros dois derivados
desse.
Tal opção pode estar relacionada a dois motivos principais: 1) ao fato de os
gêneros serem considerados muito diversos e instáveis, enquanto que os tipos de
discurso seriam os elementos mais estáveis de composição dos gêneros e, por isso,
prestar-se-iam melhor a uma didatização e à progressão curricular, já que
características de um tipo presente num gênero pode ser transferível a outro gênero
que tenha esse mesmo tipo na sua composição (Dolz & Schneuwly, 1996: 57); 2) à
necessidade de não romper radicalmente com a tradição do ensino de língua
materna, que desde há muito também tem se apoiado em tipologias semelhantes.
Esses motivos são explicitados claramente quando os autores apresentam os
três critérios mais gerais adotados para construir o agrupamento de gêneros acima:
Inserindo-se na tradição didática, é preciso que os agrupamentos: 1. correspondam às grandes finalidades sociais atribuídas ao ensino (...);
2. retomem, de modo flexível, certas distinções tipológicas, da maneira como já funcionam em vários manuais, planejamentos e currículos;
3. sejam relativamente homogêneos quanto às capacidades de linguagem implicadas no domínio dos gêneros agrupados. (Dolz, Noverraz & Schneuwly, 2001: 120)
Mas se, por um lado, o critério de seleção de gêneros foi o dos tipos de
discurso; por outro, o critério para a elaboração das progressões curriculares23 foi o
das capacidades24 de linguagem.
23 Dolz & Schneuwly (1996: 43) definem progressão como “organização temporal do ensino para que
se chegue a uma aprendizagem ótima”. 24 Como no exemplo citado, em alguns textos os autores utilizam o termo “operações” para designar
“capacidades”.
38
Vejamos nas páginas seguintes um exemplo de proposta de progressão
curricular no âmbito do “argumentar”.
39
CICLO
EXEMPLOS DE GÊNEROS DE
TEXTOS QUE PODERIAM SER
ESCOLHIDOS
REPRESENTAÇÃO DO CONTEXTO
SOCIAL ESTRUTURAÇÃO DISCURSIVA DO TEXTO ESCOLHA DE UNIDADES LINGÜÍSTICAS
1-2 ORAL: − dar sua opinião e
justificá-la − debate coletivo em
classe
− dar sua opinião em situações
próximas da vida cotidiana
− dar sua opinião com um mínimo de
sustentação (um ou mais argumentos de apoio)
− perceber as diferenças entre pontos de vista
− utilizar expressões de responsabilização
enunciativa para dar opiniões − utilizar organizadores de causa para sustentar
opiniões − formular questões da ordem do porquê
3-4 ESCRITA: − imprensa (revista
infantil): carta de leitor ORAL:
− defender sua opinião diante da classe
− reconstruir a questão e o assunto
que desencadearam o debate − identificar e levar em conta o
destinatário do texto − precisar a intenção de um texto
argumentativo − levar em conta o lugar e o
momento onde o texto será lido
− hierarquizar uma seqüência de argumentos
(3) em função de uma situação − produzir uma conclusão coerente com os
argumentos precedentes − ligar diferentes argumentos e articulá-los
com a conclusão
− reconhecer e utilizar diversas expressões de
responsabilização enunciativa em uma opinião a favor ou contra
− utilizar organizadores enumerativos − distinguir organizadores que marcam
argumentos dos que marcam conclusão − utilizar fórmulas de interpelação e
fechamento da carta 5-6 ESCRITA:
− imprensa (revista para jovens): carta de leitor
− correspondência: carta de reclamação (destinada a autoridade)
ORAL: − debate público regrado
− representar globalmente uma
situação polêmica (por jogo de papéis) e analisar seus parâmetros: o argumentador e seu papel
social o destinatário e seu papel
social o finalidade: convencer o lugar de publicação do
texto − antecipar as respostas possíveis
do(s) adversário(s)
− adotar a forma de uma carta não oficial e
estar atento à diagramação; idem para carta oficial
− apresentar o tema da controvérsia na introdução
− desenvolver os argumentos, sustentando-os por um exemplo
− formular objeções aos argumentos do adversário
− dar uma conclusão
− utilizar organizadores argumentativos
marcando: o o encadeamento dos argumentos o a conclusão
− utilizar verbos de opinião − utilizar fórmulas para se opor e exprimir
objeções − introduzir: uma experiência pessoal, um
exemplo − formular um título com um grupo nominal
40
CICLO
EXEMPLOS DE GÊNEROS DE
TEXTOS QUE PODERIAM SER
ESCOLHIDOS
REPRESENTAÇÃO DO CONTEXTO
SOCIAL ESTRUTURAÇÃO DISCURSIVA DO TEXTO ESCOLHA DE UNIDADES LINGÜÍSTICAS
7-8 ESCRITA: − imprensa local: carta de
leitor, carta aberta, artigo de opinião
− correspondência: carta de solicitação
ORAL: − diálogo argumentativo − deliberação informal
− discernir as posições
defendidas num texto e delinear a situação polêmica subjacente
− compreender as crenças alheias e atuar sobre elas
− analisar as características do receptor do texto para adaptar-se a elas
− antecipar posições contrárias − citar a palavra alheia − distinguir lugares sociais e
gêneros argumentativos
− escolher um plano de texto adaptado
ao gênero argumentativo trabalhado − definir a tese a defender, elaborar
argumentos e agrupá-los por tema − distinguir entre argumento/não
argumento e entre argumento contra/ contra-argumento
− prever diferentes tipos de argumento e hierarquizá-los em função da finalidade a atingir
− selecionar as palavras alheias que apoiam sua própria tese
− organizar o texto em função da estratégia argumentativa
− utilizar organizadores argumentativos
marcando: refutação, concessão, oposição
− utilizar verbos declarativos neutros, apreciativos, depreciativos
− utilizar fórmulas introduzindo citações − em função da orientação argumentativa:
reconhecer e utilizar diversos meios para exprimir dúvida, probabilidade, certeza (advérbios, verbos auxiliares, emprego dos tempos)
− distinguir modalidades de enunciação: questões retóricas; fórmulas interrogativas; exclamativas
8-9 ESCRITA: − imprensa: editorial − correspondência: carta de
pedido de emprego − publicidade: encarte
publicitário − ensaio, composição de
idéias − réplica de defesa ou
acusação (advocacia) ORAL: − debate público regrado
− levar em conta um destinatário
múltiplo − tomar para si a palavra alheia − discernir restrições institucio-nais
da situação de argumentação − classificar gêneros argumenta-tivos
em função das situações de argumentação
− identificar a faceta argumentativa dos gêneros não argumentativos
− delimitar o objeto da discussão − escolher o gênero e as estratégias
argumentativas − definir as diferentes teses possíveis sobre a
questão − explorar os argumentos e as conseqüências
de cada uma das teses − antecipar e refutar as posições adversárias − elaborar contra-argumentos − adotar um ponto de vista em função do
papel social e escolher o tom adequado − discernir a dimensão dialógica da
argumentação num texto − reconstituir os raciocínios implícitos
− identificar o papel argumentativo de certos
conectivos: já que, se, além disso… − implicar o receptor utilizando dêiticos de
pessoa: eu, nós, a gente, você(s) − inserir diferentes formas de discurso
reportado − utilizar termos apreciativos: pejorativos,
ameliorativos − empregar vocabulário conotativo − utilizar anáforas conceituais − reconhecer e utilizar diversas marcas modais
Quadro 3 – Elementos para uma progressão curricular no domínio “argumentar” – gêneros suscetíveis de serem trabalhados em função dos
ciclos; objetivos para os três níveis de operações de linguagem (Dolz & Schneuwly, 1996: 65, 66)
41
Note-se que estão aí trabalhadas as três capacidades de linguagem
acima apresentadas: as capacidades de ação, que correspondem à coluna
“Representação do contexto social”; as capacidades discursivas, que
correspondem à coluna “Estruturação discursiva do texto” e por fim as
capacidades lingüístico-discursivas, correspondentes à coluna “Escolha de
unidades lingüísticas”. Vejamos alguns dos aspectos tematizados em cada
uma delas.
Com relação às capacidades de ação (adaptação do agente às
características do contexto e do referente) – contempladas no quadro acima
na coluna “Representação do contexto social” –, abordam-se aspectos
recorrentes de uma análise da situação de enunciação. Assim, espera-se
desenvolver nos alunos a percepção de que para ler ou produzir um texto
deve-se analisar o contexto da enunciação, considerando o papel social
daquele que produz o texto e do seu destinatário, bem como o lugar social e
a finalidade da produção, a fim de que o texto a ser produzido se adapte a
essas circunstâncias.
Quanto às capacidades discursivas (ou, conforme o quadro acima,
“Estruturação discursiva do texto”), os aspectos abordados dizem respeito à
mobilização de modelos discursivos, por meio dos quais se fará a escolha de
um plano de texto adaptado ao gênero (ou seja, da infra-estrutura geral do
texto, conforme vimos no capítulo anterior ao tratar de Bronckart), bem como
escolha dos conteúdos que serão privilegiados.
Finalmente, no âmbito das capacidades lingüístico-discursivas (ou seja,
da “escolha de unidades lingüísticas”), trabalha-se com operações de
textualização que garantam principalmente coesão e conexão, principalmente
com os elementos lingüísticos propriamente ditos, tais como os
organizadores textuais, as anáforas, os tempos verbais, os advérbios, as
modalizações etc.
A partir dessa nossa breve apresentação das bases sobre as quais são
propostos trabalhos didáticos que adotam a perspectiva dos Gêneros de
Texto, foi-nos possível perceber que há, por um lado, uma apropriação da
42
noção bakhtiniana de língua como instrumento sócio-histórico de interação, o
que faz com que o ensino-aprendizagem de língua materna torne-se muito
mais significativo, permitindo uma abordagem que trabalhe com a língua em
contextos de uso mais próximos da realidade. Por outro lado, há o
aproveitamento de todo um arcabouço teórico (ISD) que privilegia aspectos
da ordem do texto e da enunciação, porém dá pouco relevo às questões
discursivas que vão além do contexto mais imediato de produção. Uma
evidência disso é a pouca relevância dada à influência das esferas de
circulação dos discursos na composição dos enunciados.
Ao mesmo tempo, o encaminhamento dado às seqüências didáticas faz crer
que gênero é família ou conjunto de textos com características semelhantes – daí a
se prestarem a servir de modelos – mais do que resultado sócio-histórico da
influência de vários aspectos de uma determinada esfera de atividade, diferindo
assim da noção de gênero conforme aparece nas teorias de Bakhtin. Isto pode
significar uma certa limitação de enfoque, pois se vejo o gênero como uma família de
textos, conseqüentemente, o caminho para estudá-lo será trabalhando as
regularidades do conjunto, permitindo que se deixe de fora as especificidades de
cada texto, sua significação e seu tema, bem como a razão de os gêneros serem
como são.
Em geral, essa estratégia de “modelização” de um gênero tem como objetivo
principal a produção de textos orais ou escritos (ver a respeito Dolz et al., 1998 e
Dolz & Schneuwly, 1996b). Questões de leitura são postas apenas na medida em
que elas possam auxiliar na escrita, portanto pouco se fala sobre os processos
envolvidos na construção dos significados dos textos por parte do leitor.
Tal estratégia de ênfase ao ensino-aprendizagem de produção textual não faz
o mesmo sentido aqui, no Brasil, como talvez o faça na Suíça. Como veremos mais
adiante, pensar em uma educação para a cidadania, como o fazem os PCN, não é
possível sem se considerar também enfaticamente a questão da leitura e de como
se constroem os sentidos dos textos. Ou melhor, se é para formar cidadãos críticos
e participativos há que se preocupar também com a formação do leitor crítico,
objetivo fundamental para um país tão cheio de injustiças e desigualdades sociais,
43
onde há um número elevado de adultos iletrados ou com baixíssimo grau de
letramento e onde as avaliações do grau de letramento dos estudantes demonstram
ainda sua uma grande deficiência de capacidade leitora, o que certamente irá se
refletir numa dificuldade de participação social.
Isto não significa, porém, que estamos dando um valor menor para o trabalho
pedagógico com produção textual. A produção de textos – além de ser fundamental
para que o cidadão interaja com os demais, tanto na esfera familiar quanto pública –
quando trabalhada na escola, pode ser um meio de fazer com que o aluno perceba
com clareza as propriedades dos gêneros e reflita sobre os mecanismos de
produção de sentido, o que poderá ser bastante proveitoso quando esse aluno, ao
ler produção alheias, for procurar reconstruir os sentidos dos textos. O que
defendemos, portanto, é que haja um equilíbrio entre trabalho com leitura e com
produção textual.
Apesar de merecerem essas observações, não há como duvidar do grande
mérito das propostas desenvolvidas pela equipe de Didática de Línguas da
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, que
têm se mostrado bastante eficazes nas escolas em que têm sido aplicadas, inclusive
no Brasil25, proporcionando um desenvolvimento real das capacidades dos alunos.
Antes de finalizarmos esta seção, gostaríamos de ressaltar que os textos aqui
resenhados foram principalmente aqueles de Dolz & Schneuwly escritos no final da
década de 1990, já que foram estes que certamente impactaram os PCN de Língua
Portuguesa. Sabemos que, como já salientamos em nota anterior, desde aquela
época até hoje, as pesquisas e trabalhos da equipe de Didática da Universidade de
Genebra continuaram a se desenvolver a se aperfeiçoar, aproximando-se cada vez
mais de uma abordagem mais bakhtiniana de linguagem e gêneros.
25 Com relação ao agrupamento de gêneros apresentado acima, por exemplo, Barbosa (2001: 147)
atesta: tal afirmação [de que o trabalho proposto por Dolz e Schneuwly a partir da noção de gêneros tem se mostrado muito profícuo] provém de experiências com formação de professores e com o desenvolvimento de atividades de assessoria que vimos desenvolvendo junto a algumas escolas. Em todas as experiências, o trabalho com gêneros vem se mostrando bastante produtivo e este agrupamento tem sido uma referência importante para a organização de propostas curriculares.
44
1.3 Bakhtin e o ISD: aproximações e distanciamento
Comparando a noção de gênero tal como a expõe Bakhtin e a noção de
gênero exposta por Bronckart, é possível perceber vários pontos em comum, mesmo
porque Bronckart (1997: 141) declara abertamente ser o autor russo uma de nossas
referências maiores. No entanto, em vários pontos os autores se distanciam.
A razão deste distanciamento dá-se, provavelmente, por causa dos objetivos
epistemológicos de cada um dos autores: enquanto Bakhtin demonstra mais
preocupação com as formas de inserção da ideologia na linguagem e, portanto,
busca a significação, Bronckart, mais preocupado com questões psicológicas
(cognitivas), busca a elaboração de um modelo geral das condições de produção
dos textos assim como de sua organização interna (Bronckart, 1997: 88, ênfase
adicionada), ou seja, está mais preocupado com a descrição das formas dos textos e
com as operações psicológicas exigidas para sua composição.
Como já mencionamos, tal disparidade de objetivos fica clara quando
Bronckart escolhe o termo gêneros de textos em vez de gêneros do discurso para
denominar os tais “tipos de enunciados relativamente estáveis”. Aliás, o autor, ao
optar pela denominação gêneros de texto, deixa de lado o advérbio “relativamente”
(Bronckart, 1997: 142 e 143), utilizado na definição bakhtiniana, e redefine os
gêneros simplesmente como “tipos estáveis” ou “formas estáveis” de enunciados, o
que já anuncia seu interesse em estudar os textos mais na sua materialidade e auto-
suficiência26 do que na perspectiva mais dialógica bakhtiniana, levando-o a se fixar
em aspectos mais estáveis e a concentrar seus estudos mais nas formas
composicionais dos textos do que em questões discursivas, as quais o conduziriam
para um estudo também dos sentidos dos enunciados.
1.4 Gêneros de texto e gêneros do discurso, uma síntese
Rojo (2004, no prelo), a partir de um levantamento feito entre produções
acadêmicas em Lingüística Aplicada de um período recente em nossa instituição de
26 Chamamos de texto toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente
(...). Na medida em que todo texto se inscreve, necessariamente, em um conjunto de textos ou em um gênero, adotamos a expressão gênero de texto em vez de gênero de discurso. (Bronckart, 1997: 75)
45
pesquisa (LAEL/PUC-SP), constata que é possível dividir em duas vertentes
diferentes os trabalhos acadêmicos que de alguma forma se embasam em teorias de
gênero de extração francófona.
De acordo com o levantamento, uma das vertentes se apoiaria no que a
autora denomina de “Teoria dos Gêneros do Discurso”, enquanto que a outra se
apoiaria na “Teoria dos Gêneros de Texto”.
Assim, apesar de, em algumas ocasiões, recorrerem a autores em comum, já
que, por tratarem de gêneros, ambas as vertentes têm, de uma ou de outra maneira,
como elemento fundante, a teoria dos gêneros de Bakhtin, geralmente, cada uma
toma como referência autores que relêem diferentemente esta obra.
Segundo Rojo, a partir de uma análise de textos de Marcuschi (2002),
Bronckart (1997) e Adam (1999), pode-se constatar que os trabalhos mais alinhados
com a Teoria de Gêneros de Texto, ao procederem análises ou aplicarem o conceito
de “gênero”, tendem a recorrer a categorias mais ligadas à estrutura ou forma
composicional dos textos, categorias estas herdadas principalmente da Lingüística
Textual do final da década de 1980, início da de 90 (tipos, protótipos, seqüências
típicas etc.)27.
Por outro lado, os trabalhos que se filiam à Teoria dos Gêneros Discursivos
tendem a selecionar suas categorias de análise focando aqueles aspectos da
materialidade lingüística que são determinados pelos parâmetros da situação de
enunciação em seus aspectos sócio-históricos, ressaltando dessa forma tão
somente as marcas lingüísticas que decorriam de/produziam significação e temas
relevantes no discurso.
27 Nesta dissertação, quando nos referirmos à lingüística textual, estaremos tratando principalmente
das teorias dessa disciplina elaboradas no final da década de 1980 e início da de 90, as quais, ressalte-se, chegaram de certa forma “reduzidas” ou simplificadas à escola. Isto se justifica, pois, como veremos mais adiante, foram tais teorias que influenciaram inicialmente as propostas curriculares oficiais produzidas no Brasil da época, bem como, mais tarde, exerceram influência também nos PCN, por meio dessas mesmas propostas curriculares e também por meio da divulgação de textos de Dolz, Schneuwly e Bronckart. Contudo, conforme nos mostra Koch (2004), desde aquele tempo até hoje, os caminhos trilhados pela lingüística textual têm, cada vez mais, ido em direção a uma maior ênfase nos aspectos discursivos, em suas teorias e análises.
46
Tal constatação abre caminho para que Rojo faça uma distinção mais
detalhada entre as noções de gêneros textuais e gêneros do discurso e discorra
sobre como tal diferença teórica se reflete tanto nos trabalhos dos autores que se
afinam a esta ou aquela noção, como também na aplicação didática de tais teorias.
De acordo com o texto, pode-se resumir da seguinte forma as duas teorias:
TEORIA DOS GÊNEROS TEXTUAIS TEORIA DOS GÊNEROS DO DISCURSO
Ênfase nas formas composicionais. Ênfase na situação de enunciação.
Gênero é uma entidade/noção vaga, que recobre uma família de similaridades e é percebido como um modelo canônico.
Gênero é um universal concreto decorrente das relações sociais e regulador das interações e discursos configurados em enunciados ou textos (Rojo, 2004, no prelo).
A noção de gênero se confunde com a de família de textos.
“Texto” é a materialização do gênero como universal concreto.
Busca descrever a função ou a materialidade do texto/gênero através de unidades estáveis que o compõem, entre estas, as seqüências típicas ou os tipos de discurso.
Busca a significação, a acentuação valorativa e o tema, indiciados pelas marcas lingüísticas, pelo estilo e pela forma composicional do texto.
Apesar de estabelecer uma aproximação com o discurso bakhtiniano, dele se distancia e com ele praticamente rompe, em muitos pontos.
Mantém uma postura crítica e dialógica com as teorias bakhtinianas, sem no entanto se distanciar demasiado delas.
Em termos didáticos, busca definir um gênero colocando paralelamente vários textos supostamente pertencentes a ele e buscando assim regularidades formais ligadas à língua ou à função do gênero, tendo como “pano de fundo” o contexto de produção.
Em termos didáticos, busca definir um gênero a partir de regularidades e similaridades das relações sociais numa esfera de comunicação específica. Portanto, parte-se da análise em detalhe dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa para daí buscar as marcas lingüísticas que refletem esses aspectos da situação.
47
TEORIA DOS GÊNEROS TEXTUAIS TEORIA DOS GÊNEROS DO DISCURSO
Principais autores nos quais se apóiam os trabalhos dentro desta tendência analisados por Rojo : Bronckart (1997), Adam (1998/99), Marcuschi (2002)
Principais autores nos quais se apóiam os trabalhos dentro dessa tendência analisados por Rojo: Bakhtin e seu círculo, Holquist, Silvestre & Blank, Brait, Faraco etc.
Quadro 4 – Teoria dos gêneros textuais e teoria dos gêneros do discurso
Antes de continuarmos, gostaríamos de ressaltar que ambas as correntes (de
origem francófona), de uma forma ou de outra, consideram questões enunciativas
em seus trabalhos e análises. No entanto, como mostra o quadro acima, no que
concerne principalmente à sua aplicação didática, o que as diferencia é a maior ou
menor ênfase dada a esses aspectos.
Dessa forma, a relevância de fazermos tal distinção reside no fato de que
cada uma dessas abordagens pode resultar em diferentes aplicações didáticas e,
conseqüentemente, ter diferentes impactos na formação dos alunos. Conforme já
anunciamos na Introdução, portanto, será a partir dessa distinção que analisaremos
os PCN de Língua Portuguesa para 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries) e a relação com ele
estabelecida pelos Parâmetros em Ação.
49
2 Linguagem e cidadania: a noção de gênero de discurso/texto na escola
A adoção da noção de gênero nas aulas de Língua Portuguesa insere-se na
intersecção de dois percursos históricos: um, advindo da crescente preocupação
com questões relacionadas aos direitos humanos e à cidadania, e outro, fruto da
necessidade de renovação do ensino, principalmente do ensino de língua materna,
que obrigatoriamente deve acompanhar as mudanças sociais, históricas e
científicas. Assim, neste capítulo, pretendemos recuperar esses dois traçados, até
chegar ao ponto em que ambos se entrecruzam e, em seguida, apontar os
desdobramentos dessa intersecção, que acabarão por se refletir nas propostas
teórico-metodológicas presentes nos PCN.
2.1 O ensino de língua materna: da gramática ao letramento
Foi apenas a partir do final do século XIX que se introduziu a disciplina de
Língua Portuguesa nos currículos escolares brasileiros (Bezerra, 2002: 37). Antes
disso, a preocupação da escola era em apenas alfabetizar os alunos, filhos das
classes mais abastadas, que prosseguiam desenvolvendo suas capacidades de
leitura e escrita no próprio meio social altamente letrado em que viviam, onde era
naturalmente utilizada a língua tida como culta, a mesma que a escola usava e
queria ver sendo usada.
A partir dessa primeira mudança curricular, o ensino de Língua Portuguesa
passa a se estender a todas as séries escolares. No entanto, por falta de um
modelo de ensino de língua materna, adota-se o mesmo modelo utilizado para o
ensino do latim (Bezerra, 2002: 37), uma das mais valorizadas disciplinas escolares
da época, cuja exploração da gramática normativa em sua perspectiva analítica e
prescritiva, fruto dos estudos filológicos, servia bem aos propósitos de ensino de
uma língua morta. No entanto, como bem aponta Bakhtin (Bakhtin/Voloshinov, 1929:
98 e 99) ao debruçar-se sobre textos isolados em línguas mortas, um monólogo
morto, o filólogo-lingüista desvincula-se da esfera real de enunciação, ignorando o
caráter dialógico e ideológico da língua e fazendo com que o reconhecimento
predomine sobre a compreensão. E isto se reflete no ensino com base nesses
saberes filológicos.
50
Embora obviamente inadequado para o ensino de uma língua viva (e
materna), esse modelo de ensino não era inadequado nem trazia grandes
dificuldades para os alunos que freqüentavam a escola da época, falantes da norma
culta, já que, como acabou acontecendo mais tarde, não necessitavam ir à escola
para aprender um registro que lhes era estranho e, portanto, tinham as aulas de
português não como um exercício de conhecimento de algo novo, mas de
reconhecimento das regras e funcionamento da norma por eles naturalmente
utilizada. Foi assim que, de forma pelo menos aparentemente pouco traumática, até
por volta da década de 50 do século XX, as aulas de Língua Portuguesa se
apoiaram exclusivamente nos manuais de gramática e nas antologias literárias,
utilizados separadamente.
Nem mesmo depois da década de 50, com a afluência de alunos advindos da
classe média, fruto de uma maior industrialização do país, o ensino apoiado
exclusivamente na gramática da norma culta foi questionado. A manutenção do
ensino de Língua Portuguesa orientado pela perspectiva gramatical ainda parecia
adequado (Brasil, 1998a: 17), dado que a variedade lingüística falada por estes
novos alunos não era tão distante daquela exigida pela escola, embora seu meio
social não fosse tão letrado quando o dos alunos do princípio do século. De qualquer
forma, para fazer frente a esse novo alunado, algumas (poucas) mudanças no
ensino de Língua Portuguesa foram feitas como, por exemplo, a adoção de livros
didáticos em que a gramática dividia parte de seu espaço com exercícios em torno
de textos.
Por volta da década de 60, início da de 70, mudanças maiores ocorreram,
porém ainda muito mais na forma de se ensinar do que no conteúdo: acreditava-se
então que, mantendo o foco na gramática e valorizando a criatividade, garantir-se-ia
o desenvolvimento da eficiência da comunicação e expressão dos alunos (Brasil,
1998a: 17).
Porém, crianças das mais variadas origens sócio-culturais, a maioria filhas de
pais pouco escolarizados, continuaram entrando na escola, preparada apenas para
um determinado tipo de aluno (aqueles de origem urbana, das classes média ou
alta), elevando enormemente os índices de evasão e repetência e expondo a
51
inadequação e a fragilidade dos métodos de ensino utilizados até então. Foi assim
que, a partir do fim da década de 70 até o início dos anos 90 (Geraldi, Silva e Fiad,
1996: 318) apesar de ainda firmemente apoiadas no ensino da gramática, as aulas
de Língua Portuguesa passam a dar mais ênfase à leitura e produção de textos,
bem como à língua como instrumento de comunicação28, incorporando as novas
teorias da lingüística textual e dos processos cognitivos em leitura e produção de
textos29.
Ainda presos aos antigos métodos, na realidade o que acabou ocorrendo é
que os professores passaram a se apoiar em mais uma “gramaticalização” (Rojo,
2001b): a gramática do texto (por exemplo, em vez de se ensinar que uma narrativa
deve ter “começo, meio e fim”, como anteriormente acontecia, passou-se a ensinar
que uma narrativa deve ter um cenário, um personagem que deve ser “preenchido”
com características físicas e psicológicas, um fato que mude o rumo das ações
etc.). De qualquer forma, há um esquema universal e “correto”, independente do
contexto, a ser seguido. Uma outra espécie de gramática...
A década de 90 foi então o período em que as mudanças anteriormente
propostas começaram a ser avaliadas. Percebe-se assim que as novas teorias não
garantiram que uma grande parcela dos alunos alcançasse a performance esperada
quanto ao aprendizado de Língua Portuguesa30. Além disso, novas demandas
sociais no que concerne ao uso da leitura e da escrita passaram a exigir uma nova
forma de se encarar o ensino de Língua Portuguesa. Portanto, novos rumos
deveriam ser tomados e, como veremos adiante, foi a partir desta busca por um
redirecionamento do ensino-aprendizagem de língua materna que se chegou à
proposta dos gêneros como objetos de ensino de Língua Portuguesa.
28 Ver, por exemplo, Vanoye (1973). 29 Nos anos que precederam a publicação dos PCN, alguns dos principais divulgadores dessas
correntes no Brasil foram Kato (1985), Kleiman (1989, 1992), Koch (1989, 1990, 1992), Geraldi (1984, 1991) e Soares (1986).
30 Quanto à aplicação das teorias cognitivistas de produção de textos, Rojo (2003b) afirma: Clara está a decorrência aplicada deste tipo de conclusão: a chave do processo de produção encontra-se alhures: no ensino sistemático e meta-(lingüístico, cognitivo) das estruturas textuais, que passarão então a orientar o processamento cognitivo em produção de textos. As práticas didáticas decorrentes desse tipo de orientação já demonstraram, entretanto, sua ineficácia.
52
Importante ressaltar que tal percepção da necessidade de se implementar
mudanças drásticas no ensino, especialmente de Língua Portuguesa, só foi possível
graças ao contínuo avanço das pesquisas (e conseqüentes elaborações teóricas)
em letramento, lingüística (aplicada) e ensino-aprendizagem, em consonância com
as demandas sociais. Dessa forma, é a partir da explanação de tais teorias que
passo, agora, a traçar o percurso teórico pelo qual a os gêneros discursivos/textuais
acabam por ser adotados como objetos de ensino de Língua Portuguesa pelos PCN.
2.1.1 Letramento
Só recentemente passamos a enfrentar esta nova realidade social em que não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever, saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente – daí o recente surgimento do termo letramento. (Soares, 1998: 20)
Letramento é um conceito que surgiu apenas recentemente no vocabulário
utilizado por educadores e lingüistas, além de sociólogos e antropólogos. Trata-se
de um termo criado (ou “emprestado” do inglês) para que se pudesse diferenciar os
estudos sobre o impacto social da escrita daqueles estudos sobre a alfabetização.
Tal distinção se fez necessária ao se perceber que, ao contrário do que se
acreditava, simplesmente aprender a “tecnologia” do ler e do escrever não garantia
aos sujeitos alfabetizados inserção nas práticas sociais de leitura e escrita. Ou seja,
percebeu-se que uma população com alto índice de alfabetização não
necessariamente seria uma população que incorpora e se beneficia das práticas
sociais de leitura e escrita.
Nesse sentido, é possível afirmar que há sujeitos alfabetizados que não são
letrados, por não terem contato com práticas sociais que envolvem textos, ao
mesmo tempo em que há sujeitos com um certo grau de letramento que são
analfabetos. Estes últimos podem não dominar a tecnologia de codificar e
decodificar textos escritos, mas podem, por outro lado, demonstrar apropriação de
práticas letradas ao ditar uma carta a um escriba ou ao se envolver adequadamente
em práticas sociais de leitura e escrita como, por exemplo, quando “lê” o nome do
ônibus que está chegando no ponto ou quando ouve a leitura de literatura de cordel.
53
Por ser um tema recente e por envolver várias áreas de conhecimento, há
diferentes (e às vezes até contraditórias) visões acerca do conceito de letramento.
Kleiman (1995), seguindo Street (1984), nos mostra que há dois modos mais
freqüentes de se pensar o letramento, presentes nas pesquisas das últimas
décadas: por um lado, há a vertente que adota a idéia denominada de “modelo
autônomo”; por outro, há a vertente de pesquisadores que adota a idéia denominada
de “modelo ideológico”.
Segundo a perspectiva do “modelo autônomo”, a escrita é um produto
completo em si mesmo, independente do contexto de sua produção para ser
interpretada. Seu processo de produção e interpretação estaria ligado então ao
funcionamento lógico interno ao texto escrito, diferentemente da linguagem oral que,
de acordo com essa visão de letramento, estaria muito mais ligada ao contexto da
enunciação, podendo ser formulada, reformulada e interpretada muito mais em
função do momento, do contexto e dos interlocutores.
Esta dicotomia entre o oral e o escrito, em que o primeiro seria mais “fácil” e
menos “elaborado” do que o segundo, deixa transparecer a crença de que o domínio
da escrita pressupõe um domínio maior do raciocínio lógico; assim, quem domina a
escrita raciocina melhor. Daí a idéia preconceituosa de que culturas apoiadas
majoritariamente ou exclusivamente na linguagem oral não favorecem o
aprimoramento do raciocínio de seus indivíduos, de forma a permitir-lhes um maior
desenvolvimento. Conseqüentemente, nesta linha, acredita-se também que se uma
sociedade ainda não desenvolveu uma forma de escrita é porque ainda não
“evoluiu” o suficiente para isto.
Tal visão de letramento acaba por apoiar mitos de que sociedades mais
letradas são, por conseqüência, social, econômica e tecnologicamente mais
desenvolvidas. Porém, não há evidências históricas que atestem tais afirmações.
Outra séria conseqüência do modelo autônomo é focalizar o letramento como
um atributo pessoal e garantia de uma melhor qualidade de vida. Assim, da mesma
forma que as culturas iletradas são consideradas menos desenvolvidas, os
analfabetos são considerandos menos capazes ou menos inteligentes e, o que é
54
pior, eles mesmos não atribuem suas dificuldades de sobrevivência a uma
sociedade que permite, e às vezes até sustenta, os contextos que favorecem esta
difícil condição. Atribuem seus problemas, isto sim, a eles próprios que,
"ventriloquando" o senso comum (ou seria o “equívoco comum”?), afirmam que “não
têm uma vida melhor, porque não tiveram força de vontade ou capacidade para
estudar...”
Sem negar totalmente os resultados dos estudos elaborados sob a
perspectiva autônoma, mas olhando-os sob um ângulo menos “universalizante”, a
contrapartida que se apresentou a esta perspectiva foi a do modelo “ideológico” (ou
“histórico-cultural”, como prefere Rojo, 2001a) de letramento. De acordo com esta
perspectiva, as práticas de letramento são social e culturalmente determinadas e a
relevância de tais práticas deve ser analisada conforme os valores culturais da
sociedade em que estão inseridas. Segundo Soares (1998: 72), letramento é o que
as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto
específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e
práticas sociais.
Uma das principais diferenças entre estes dois modelos é a idéia da dicotomia
entre linguagem oral e escrita. Como já vimos, sob a perspectiva do letramento
individual, linguagem oral e linguagem escrita são distintas. No entanto, sob a
perspectiva sócio-cultural de letramento, estudos são feitos a fim de investigar a
existência de grandes áreas de interface, nos letramentos, entre práticas orais e
escritas (Kleiman, 1995: 21).
Se, por um lado, é comum encontrarmos afirmações de que a escrita
pressupõe mais planejamento que a fala; por outro, uma observação mais atenta
demonstra que há eventos falados mais planejados do que alguns escritos.
Compare-se, por exemplo, a fala preparada e planejada para uma palestra e a
espontaneidade do texto de um bilhete ou de uma carta pessoal.
Dessa forma, adotando a perspectiva dialógica bakhtiniana de linguagem,
segundo a qual qualquer enunciado, seja ele escrito ou oral, é antes de mais nada
uma prática social e, assim sendo, pressupõe que o enunciador está sempre
levando dialogicamente em conta o outro na sua enunciação, torna-se possível uma
55
análise menos generalizadora e abstrata da linguagem, o que nos leva a vislumbrar
mais semelhanças do que diferenças entre a oralidade e a escrita (Kleiman, 1995).
Percebe-se, portanto, que a dicotomia oralidade/escrita é muito relativa,
principalmente, se tomarmos o ponto de vista das intercorrências e semelhanças
existentes entre estas duas formas de expressão e não o das diferenças.
Várias são as conseqüências de não se considerar a linguagem oral e a
escrita como modalidades opostas. Por exemplo, estudos têm mostrado (Rojo, 1995)
que a “aquisição” da linguagem escrita não necessariamente sucede a aquisição da
linguagem falada, como se o processo “natural” fosse primeiro aprender a falar para
depois aprender a escrever. Dependendo do ambiente sócio-cultural da criança, os
dois processos podem se dar quase simultaneamente. A mãe que lê para o filho
pequeno que ainda mal fala está, ao mesmo tempo, desenvolvendo na criança a
linguagem oral e noções de escrita. Jogos como o de “nomear” figuras de um livro
não só auxiliam no aprendizado da fala, mas também, como mostra Rojo (1998),
estão entre os primeiros passos que auxiliam na construção de narrativas, logo, de
letramento. Além disso, “nomear” é discretizar o mundo. E esta será uma habilidade
cognitiva muito valorizada na escola posteriormente. Assim, confirmando a idéia de
que as práticas de letramento são social e culturalmente determinadas, estes
estudos mostram também que a facilidade ou dificuldade encontrada pela criança no
desenvolvimento da linguagem escrita depende dos tipos e níveis de letramento do
ambiente em que ela vive.
Portanto, como pudemos ver, o conceito de letramento sob uma perspectiva
histórico-cultural (ou do modelo “ideológico”) extrapola a questão da aprendizagem
da linguagem escrita. Nesta perspectiva, letramento é qualquer atividade que
envolve o uso de texto, seja ele escrito ou oral, pois na realidade nem sempre é
possível isolar um de outro. A “fala letrada”, por exemplo, é um evento que
pressupõe a escrita, apesar de ser texto falado. Assim, não devemos interpretar
equivocadamente o termo “fala letrada” como a fala que se parece com ou
simplesmente “imita” a escrita (falar mais ou menos como se escreve). Antes de se
parecer com um texto falado, a fala letrada é um evento discursivo oral que se
remete a um texto. Um tipo de evento discursivo bastante presente não só na
56
interação mãe/filho no letramento emergente (Rojo,1998)31, mas que também se
repete, por exemplo, nas interações na sala de aula (Rojo, 2001a e c).
Um importante trabalho a ser destacado sob a perspectiva do modelo
ideológico de letramento é o de Scribner & Cole (1981) com o grupo Vai da Libéria,
citado por Kleiman (1995), no qual se demonstra que aquelas capacidades
cognitivas anteriormente levantadas por pesquisadores apoiados no modelo
autônomo e por estes ligadas à escrita e ao letramento (categorização, classificação,
abstração, generalização, dedução e memorização), na realidade, aparecem ligadas
apenas à escrita escolarizada. Quando se trata de outras formas de escrita ou
eventos de letramento, presentes em contextos diversos, outras capacidades
cognitivas estão relacionadas. Capacidades estas igualmente importantes, porém
diferentes daquelas que emergem de e são valorizadas nos processos de
escolarização.
Ao desfazer o amálgama entre letramento e escolarização, além de pôr
abaixo a crença de que letramento e capacidade de desenvolvimento cognitivo
abstrato estão intrinsecamente ligados, tal constatação abre caminho para a idéia de
que há diferentes práticas de letramento, isto é, diferentes formas de integrar e
interagir com a escrita em práticas sociais, dependendo do contexto em que a
linguagem escrita está sendo utilizada e aprendida (família, igreja, escola, sindicatos
etc.). Podemos então afirmar que, mais do que apenas um tipo de letramento, há
letramentos (assim mesmo, no plural), e o letramento escolar é apenas um deles.
Havendo um letramento que é específico da situação escolar e outros que
encontram lugar fora da escola, ocorre que nem sempre este primeiro encontra
utilidade ou pelo menos acomodação fora de seu espaço de origem32. Não raro,
31 Kleiman (1995) também faz menção a este tipo de letramento, ao citar um evento em que uma mãe
diz para a criança “Olha o que a fada madrinha trouxe hoje!”. Para dizer esta frase e para que ela faça sentido ao filho, mãe e filho já devem antes ter lido alguma história de fadas e por isso esta elocução feita posteriormente à leitura e referente a ela pode ser considerada um evento letrado.
32 O movimento contrário também ocorre, com conseqüências bastantes graves: aqueles que em seu meio social não têm, ou têm pouco, contato com formas escolarizadas de letramento, ao entrarem na escola, encontram enormes dificuldades em se adaptar a ela, pois não lhes é permitido transferir para este novo contexto as práticas de letramento adquiridas fora dele. Daí um dos motivos do alto índice de evasão escolar e repetência em determinadas classes sociais.
57
indivíduos letrados via escolarização encontram dificuldades ao se depararem com
situações de comunicação social que exigem práticas não desenvolvidas no
letramento escolar.
Como afirma Soares (1998: 58), em nossa sociedade grafocêntrica, despertar
para o fenômeno do letramento e incorporá-lo em nosso vocabulário educacional
significa que já compreendemos que nosso problema não é apenas ensinar a ler e a
escrever, mas é, também, e sobretudo, levar indivíduos – crianças e adultos – a
fazer o uso da leitura e da escrita, envolver-se em práticas sociais de leitura e de
escrita.
Portanto, é importante que a escola, além de trabalhar com as formas
tradicionais de letramento escolar, aceite em seu seio outras formas, outros
“letramentos”, abarcando em suas aulas novos conteúdos que propiciem não só a
inclusão de crianças das mais diversas origens socioculturais, mas também a plena
formação de um cidadão letrado, capaz de interagir com a linguagem nas mais
diversas situações sociais.
2.2 Vygotsky: outra perspectiva de ensino-aprendizagem de língua materna
Se, dadas às mudanças sociais instauradas no fim do século passado, uma
diferente noção de letramento demonstrou a necessidade de se mudar o conteúdo
das aulas de Língua Portuguesa, novas teorias de ensino-aprendizagem apontaram
para a necessidade de se mudarem também os métodos de ensino.
Paralelamente e apoiando os estudos sobre letramento, pesquisadores da
área da lingüística aplicada e da educação passaram a se dedicar à leitura de
autores socio-construtivistas, principalmente Vygotsky.
Vygotsky considerava a aprendizagem um processo essencialmente social de
apropriação da cultura elaborada historicamente pela humanidade, o qual ocorre na
interação das crianças com adultos ou – considerando que aprendizagem é um
processo constante –, das pessoas com parceiros mais experientes. Nesse
processo, a linguagem teria um papel fundamental, não só porque é através dela
que a interação acontece, mas também porque, segundo Vygotsky (1934), é por
meio da linguagem que o pensamento abstrato (verbal) se constitui e evolui. Além
58
disso, se é através da linguagem e da interação com o outro que a criança entra em
contato com o conhecimento humano e se apropria da experiência acumulada pela
sociedade no decurso da história, é também a partir da linguagem e da interação
que a criança constrói sua própria individualidade. Isto acontece quando as relações
interpessoais são internalizadas (ou apropriadas) pela criança, passando assim a
fazer parte do seu repertório intrapessoal33.
Nesse sentido, Vygotsky dedicou vários estudos à relação entre pensamento
e linguagem e compreendeu que a significação, considerada como um composto de
significado e sentido, seria a unidade de análise mais adequada para se
compreender o pensamento verbal. Assim, para além do significado das palavras, no
pensamento verbal predominaria seu sentido. Segundo Vygotsky (1934/1987:125), o
significado é apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa. Uma
palavra adquire o seu sentido no contexto34 em que surge; em contextos diferentes,
altera o seu sentido. Portanto, a linguagem utilizada durante experiências vividas
em determinados contextos pelo indivíduo é que faz com que ele atribua diferentes
sentidos às palavras. Conforme já foi exposto no capítulo precedente, esta relação
contexto/sentido também foi analisada e expandida por Bakhtin, levando às noções
de tema e de gêneros.
Tratando dos processos de abreviação da fala oral e da fala interior,
Vygotsky (1934) também escreveu sobre a linguagem escrita. Para ele,
comunicação por escrito baseia-se no significado formal das palavras e requer um
número muito maior de palavras do que a fala oral, já que a escrita, ao contrário da
fala, dirige-se a um interlocutor ausente. Complementando esta idéia, Vygotsky
ainda afirma que a escrita é uma forma de fala mais elaborada. A distinção que se
poderia fazer aí, então, é que a escrita, assim como a fala interior, representam o
monólogo; enquanto que a fala oral, o diálogo. Como vimos anteriormente, apesar
das várias semelhanças entre as posições teóricas dos dois russos, neste caso,
Bakhtin adota uma postura bastante diferente quanto a este assunto, considerando
33 Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social e,
depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica) e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). (Vygotsky, 1933/1978: 64).
34 Ênfase adicionada.
59
que todo processo de interlocução – seja ele oral ou escrito – é sempre dialógico,
mesmo que se apresente de forma monologizada.
Além de estudos acerca do desenvolvimento das funções psicológicas
superiores e da função social e psicológica da linguagem, Vygotsky, interessado em
temas ligados à educação, também dedicou-se a estudar os processos de
aprendizagem escolar .
Por seu caráter social, segundo Vygotsky (1933/1978: 94), o aprendizado das
crianças começa muito antes de elas freqüentarem a escola. Assim, qualquer
situação de aprendizado com a qual a criança se defronta na escola tem sempre
uma história prévia; por isso, pode-se dizer que aprendizado e desenvolvimento
estão inter-relacionados desde o primeiro dia de vida da criança.
Essa aprendizagem pré-escolar, que se origina do contato direto da criança
com as atividades cotidianas, com seu meio social e cultural, servirá de base sobre a
qual os conceitos escolares serão construídos. Portanto, aprendizagem escolar
pressupõe uma espécie de diálogo de duas vias entre a construção de conceitos
cotidianos e a construção de conceitos científicos ou sistemáticos que se dá na
escola (Freitas, 2002), repetindo o modelo proposto pela “psicologia do corpo social”,
em que a superestrutura (aqui representada pela escola) reflete e refrata a infra-
estrutura (o cotidiano), organizando-a. Os conceitos cotidianos então iluminariam e
seriam iluminados pelos conceitos científicos.
Sobre os processos de aprendizagem, Vygotsky (sem data: 65) ainda afirma:
o conhecimento que não passou pela experiência pessoal não é conhecimento coisa
nenhuma. Caberia assim ao professor criar um ambiente desafiador35 e situações
para que os alunos construíssem conceitos de forma significativa e não
simplesmente transmitir conteúdos que seriam absorvidos pelo aluno como uma
esponja absorve água.
35 A educação se faz através da própria experiência do aluno, a qual é inteiramente determinada pelo
meio, e nesse processo o papel do mestre consiste em organizar e regular o meio. (Vygotsky, sem data: 67).
60
Cumpre reiterar que, sempre, ao falar em aprendizagem, Vygotsky está
considerando que ela é uma apropriação de conceitos sócio-historicamente
construídos (como o são os gêneros) e se dá na interação do aprendiz com um par
mais desenvolvido e com seu meio, interação esta feita por meio da linguagem.
2.3 Voltando ao trilho da história...
Os conceitos sócio-históricos vygotskianos de interação, discurso interno e
externo, língua como elemento constitutivo da consciência, aquisição da linguagem
e significação, no entanto, contrastavam com as teorias cognitivistas e lingüísticas
textuais nas quais se baseava o ensino de Língua Portuguesa nas escolas, a partir
do fim da década de 80 do século passado e início da década de 90.
Embora representassem um avanço, por deslocarem o foco do ensino de
Língua Portuguesa da gramática para o ensino-aprendizagem de leitura e escrita de
textos, as práticas didáticas que vigoravam naquela época com base em tais teorias
levavam o professor a uma abordagem que desconsiderava ou dava pouco relevo
às propriedades interativas, discursivas, ou enunciativas dos processos de
compreensão e produção de discursos (Rojo, 2001b). Ou seja, a ênfase era dada ao
próprio objeto textual, sem levar em conta os contextos de sua produção, uma
prática incongruente com a visão sócio-histórica e interacionista da linguagem
presente em Vygotsky e apoiada por estudiosos da lingüística e da educação de
então. A principal insatisfação desses estudiosos residia no fato de que tal postura
didática não propiciava a formação de alunos com uma postura dialógica e crítica
em relação aos textos lidos.
Outro problema que as teorias cognitivistas e lingüísticas (textuais) – da forma
com que chegavam na escola36 – não resolviam era o desdobramento da idéia de
dicotomia entre oralidade e escrita37. Estudos sobre letramento já haviam mostrado
o equívoco que é tentar colocar em pólos opostos as duas formas de linguagem,
36 Veja nota de rodapé 23. 37 Apesar de, desde a década de 1980, já haver dentro da lingüística quem trabalhasse com
linguagem oral (Marcuschi, 1986 e 1987; Castilho e Pretti, 1986; Castilho, 1988) e/ou defendesse a não dicotomia entre oralidade e escrita (leia sobre isso Marcuchi, 2001: 28), tais idéias ainda não encontravam penetração na escola.
61
privilegiando como objeto de ensino exclusivamente a linguagem escrita. No
entanto, conforme mais tarde se afirmou nos PCN:
Nas inúmeras situações sociais do exercício da cidadania que se colocam fora dos muros da escola - a busca de serviços, as tarefas profissionais, os encontros institucionalizados, a defesa de seus direitos e opiniões - os alunos serão avaliados (em outros termos, aceitos ou discriminados) à medida que forem capazes de responder a diferentes exigências de fala e de adequação características próprias de diferentes gêneros do oral. (Brasil, 1998a: 25)
Portanto, a partir das teorias de Vygotsky e das pesquisas acerca do
letramento, novas demandas acabaram sendo impostas para o ensino de Língua
Portuguesa:
a) De que forma é possível apropriar-se da idéia da existência de várias
modalidades de letramento (letramentos), a fim de garantir maior inclusão
de alunos na escola?
b) Como trabalhar oralidade e escrita de forma não dicotômica?
c) Como levar para a escola uma visão de língua tanto sócio-histórica
quanto interacionista, em que a relação com o outro é essencial?
d) Como garantir que a escola seja também formadora de leitores críticos?
É neste ponto que a teoria enunciativa de Bakhtin, especialmente a noção de
gêneros, vem responder essas demandas.
Conforme já tratamos neste capítulo, pesquisas de letramento demonstram
que grande parte dos problemas de insucesso escolar deve-se ao fato de que as
práticas de letramento valorizadas pela escola muitas vezes entram em conflito com
aquelas trazidas do ambiente sócio-cultural de origem do aluno (o que dificulta o
processo de transformação de conceitos cotidianos em conceitos científicos de que
tratamos ao falar de Vygotsky).
Como também já afirmamos anteriormente, uma solução para este problema
seria a inclusão na escola de propostas didáticas que considerassem várias formas
de letramento, isto é, várias formas de se relacionar com os textos.
62
Por um tempo, acreditou-se que, em se trabalhando com uma diversidade de
textos, este problema seria resolvido. Porém, a demanda que se coloca aqui é de
várias formas de se relacionar com os textos e não de várias formas de texto. Assim
é que a noção de gênero vem ao encontro desta questão. Basta lembrar do exemplo
dado por Bakhtin, e anteriormente citado, do sujeito que, dominando bem a sua
língua, apresentava dificuldade em se expressar em certas esferas de comunicação
verbal por não dominar os gêneros pertencentes a elas.
Gênero de discurso não é tipo de texto. O que faz um gênero ser diferente de
outro é seu contexto de produção, sua enunciação. Em cada contexto, um gênero -
com forma, estilo e tema diferente. Logo, um jeito diferente de se relacionar com o
texto. Assim, trabalhar com uma diversidade de gêneros é trabalhar também com a
noção de letramentos (no plural). O que certamente pode contribuir para a
diminuição dos altos índices de insucesso escolar.
Com relação à oralidade e à escrita, ignorando-se os vários trabalhos que há
muito existem sobre esse assunto (veja nota 38), sempre se afirmou que a primeira,
ao contrário da segunda, não precisa ser trabalhada na escola, pois esta seria uma
competência que o aluno já tem totalmente desenvolvida a partir dos sete anos.
Porém, se considerarmos a noção de gêneros primários e secundários,
perceberemos que há uma série de gêneros secundários que, apesar de
apresentarem uma forma de exteriorização oral, não são mais “simples” do que
qualquer forma de escrita nem menos importantes para a construção da cidadania.
Portanto, devem ser trabalhados na escola. É o caso, por exemplo, dos vários
gêneros orais formais e públicos, como os debates, as palestras, os seminários, as
entrevistas de emprego etc.
Assim sendo, a escola deve partir dos gêneros primários (cotidianos,
dialogais) para ir construindo, aos poucos, os secundários (mais complexos ou,
como afirma Bakhtin, frutos de absorção e transmutações dos gêneros primários),
num processo de aquisição de conceitos (em que há uma espécie de simbiose entre
os conceitos cotidianos e científicos) semelhante ao apresentado acima, ao
tratarmos das teorias de Vygotsky.
63
Deslocando o foco do ensino de Língua Portuguesa da palavra/signo para o
enunciado (ou melhor, para suas formas relativamente estáveis: os gêneros) e
considerando principalmente seu caráter dialógico e interacional, leva-se para a
escola uma visão de língua tanto sócio-histórica quanto interacionista, em que a
relação com o outro é essencial.
Pode-se dizer que este dialogismo se manifesta em dois níveis, já que todo
enunciado, ao mesmo tempo que é uma resposta a outros enunciados produzidos
anteriormente, é também construído em função das apreciações de valor que o
locutor faz do outro, seu interlocutor.
Como são sócio-historicamente constituídos, os gêneros possuem um caráter
instável, pois ao se transformarem as condições sócio-históricas e enunciativas
determinantes de sua forma composicional e estilo, estes também se transformarão,
produzindo diferentes temas.
No ensino de língua sob a perspectiva dos gêneros, portanto, há que se
considerar não só o contexto de produção e as condições de enunciação dos
enunciados/textos (a relação entre os interlocutores, suas respectivas posições
sociais, suas apreciações etc.), mas também seu caráter dialógico/polifônico e sua
historicidade (tanto no que concerne aos enunciados precedentes e à apropriação
dos discursos, quanto à gênese dos gêneros), evidenciando o caráter sócio-histórico
e interacional da língua.
Finalmente, a noção de gêneros de discurso advinda das teorias
bakhtinianas, quando aplicada ao ensino de língua materna, pode principalmente
contribuir para a formação de leitores críticos.
Como vimos no capítulo precedente, os gêneros são constituídos por sua
forma composicional, estilo e tema. Portanto, trabalhar com os gêneros implica em
considerar esses três elementos igualmente.
O tema, mais do que mero conteúdo, comporta o acento valorativo ou a
entonação dados ao enunciado. Assim, trabalhar com os gêneros é também
investigar quais são os valores por eles veiculados e de que forma isto é feito, o que
possibilita o desenvolvimento de uma postura crítica do aluno diante do que lê. Ao
64
trabalharmos a partir da noção de gêneros na escola, portanto, o olhar do aluno é
chamado para fora do texto, não só para a situação de interlocução mas também
para as esferas de circulação dos gêneros e as relações de força nelas existentes, o
que acaba por propiciar o desvelamento do caráter ideológico dos enunciados.
Além disso, o trabalho com os gêneros na escola também propicia uma
postura mais reflexiva em relação à língua e ao seu uso, pois ao analisar as formas
composicionais e os estilos constituintes dos gêneros, o aluno estará refletindo sobre
a adequação dos elementos da língua à situação de produção e enunciação que
determinou a utilização ou surgimento do gênero analisado.
Mas a pergunta que fica é: de onde vem essa demanda pela formação de um
leitor crítico?
2.4 Cidadania
Segundo Pinsky (2003), cidadania não é uma definição estanque, mas um
conceito histórico e, como tal, seu sentido varia no tempo e no espaço. Na antiga
sociedade aristocrática grega, por exemplo, consideravam-se cidadãos apenas
aqueles nascidos em terras gregas, e somente para estes havia possibilidade de
usufruir todos os direitos políticos. Os estrangeiros, proibidos de se ocuparem da
política, deveriam então restringir-se às atividades mercantis. Mesmo após a
implantação das Assembléias populares, o poder político da polis continuava
estratificado e nem todos os cidadãos possuíam o mesmo poder ou influência nas
discussões de questões políticas. Isto sem mencionar o regime de escravidão em
que viviam os prisioneiros de guerra e a exclusão das mulheres de qualquer
possibilidade de participação política. Ou seja, o status de cidadão não era conferido
a todos indiscriminadamente e os direitos de cidadania limitavam-se à participação
política. Isto mostra que, na sociedade grega, havia uma discrepância entre
democracia real e o que acreditamos ser ideal, ou seja, defendia-se uma igualdade
de direitos políticos que, de fato, era praticada somente por parcela restrita da
população. A situação semelhante observa-se até hoje, em muitos países.
65
O que queremos discutir aqui é que o conceito de cidadania nem sempre
esteve ligado à idéia de eqüidade como hoje está, o que corrobora a afirmação
acima de que o conceito de cidadania é historicamente determinado.
De um ponto de vista sincrônico, os direitos pressupostos pelo conceito de
cidadania também diferem de sociedade para sociedade. Com relação aos direitos
políticos, por exemplo (e para ficarmos aqui na vizinhança), na Argentina, apenas
cidadãos católicos podem se candidatar à presidência.
Ainda de acordo com Pinsky (2003), na sociedade ocidental moderna, a
cidadania instaura-se a partir de duas lutas de cunho político e social: a
Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. Esses dois eventos
interrompem um ciclo em que os indivíduos viviam submissos a um estado
autoritário e marcam a superação de um tempo em que se vivia regido por deveres
de súditos para uma sociedade regida por direitos do cidadão. Daí em diante, nas
sociedades ocidentais modernas, nunca cessaram os esforços por uma cidadania
cada vez mais inclusiva, sendo eles envidados para que o conceito e a prática da
cidadania se ampliassem indiscriminadamente para todas as pessoas: mulheres,
crianças, minorias raciais, sexuais, etárias. O que temos hoje, por exemplo, são
debates acalorados em vários países sobre os direitos civis dos homossexuais e
uma crescente preocupação, principalmente nos países em desenvolvimento, com a
universalização do direito de acesso aos meios de comunicação digitais. Assim, no
atual estágio do capitalismo, falar em cidadania significa considerar, igualmente, as
próprias mudanças ocorridas na sociedade, nos valores e na educação, inclusive as
inovações proporcionadas por uma nova realidade tecnocientífica (Rezende Filho,
2001). Como conclui Pinsky (2003: 10), nesse sentido pode-se afirmar que, na sua
acepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia.
Conforme o sociólogo inglês T. H. Marshall (1967, apud Gentili, 2001) – que
descreveu uma linha evolutiva da cidadania a qual, mesmo com restrições de vários
teóricos, tem sido até hoje citada como referência clássica acerca do processo
histórico por que passou esse conceito –, se tomarmos a idéia de cidadania na
Idade Moderna, podemos definir sua evolução até nossos dias em três dimensões: a
civil, a política e a social. Dessa forma, no século XVIII, desenvolveu-se a cidadania
66
civil, sendo nessa época que o direito à liberdade de expressão, de pensamento e
de religião ganharam reconhecimento. Ou seja, foi a época de reconhecimento dos
direitos individuais e civis. Criada sobre as bases dos direitos civis, no século XIX,
desenvolve-se a idéia de que os cidadãos possuem direitos políticos, em especial de
participação política. Daí ser possível afirmar que, nesse período, a ênfase era dada
à cidadania política. Finalmente, no século XX, tendo sido consolidados os direitos
civis e políticos, foram criadas as condições que permitiram a extensão da cidadania
para a esfera social (o direito à educação, à saúde, ao bem-estar etc.), ou seja, uma
cidadania social. Portanto, segundo Marshall, essas três dimensões da cidadania se
construíram lenta e seqüencialmente, tendo uma por base a outra.
Esse reconhecimento dos direitos sociais, ainda segundo Marshall, aparece
com a diferenciação classista, sobretudo nos séculos XIX e XX, período no qual a
efervescência dos conflitos sociais gerada pela exacerbação do liberalismo cobrara
do poder público uma atuação no sentido de suavizar o mal que as desigualdades
econômicas causam aos indivíduos, colocando uma rede de proteção de política
social por baixo dos desfavorecidos (Barbalet, 1989: 76, apud Rezende Filho &
Câmara Neto, 2001: sem página).
Esta consciência de que há cidadãos mais ou menos favorecidos – ou seja,
que dentro do status de cidadão há também diferenças de classes –, acentua os
debates sobre a exclusão social, os direitos humanos e mesmo sobre a atuação
política da sociedade civil (Rezende Filho & Câmara Neto, 2001).
Em dezembro de 1948, com a Declaração dos Direitos Humanos, reconhece-
se que todos os indivíduos do planeta devem ter seus direitos respeitados e sua
cidadania reconhecida. No entanto, conforme constantemente nos mostram os
relatórios da ONU e da UNESCO, por motivos diversos – sejam econômicos,
culturais, políticos ou religiosos –, em grande parte das nações esses direitos são
violados. O que se observa é que, embora muitas das sociedades políticas atuais
sejam democráticas, há um contingente enorme de cidadãos que estão à margem
dos processos de decisão política e alienados de seus direitos essenciais (Rezende
Filho, 2001). O esforço que se impõe ainda, portanto, é o de uma forte atuação no
sentido de se reverter esse quadro.
67
2.4.1 Cidadania no Brasil
Até aqui, falamos de forma geral a respeito da cidadania, seus conceitos de
base e sua evolução. O que gostaríamos de expor agora é como essa questão da
cidadania se coloca no Brasil para, em seguida, vermos como ela se reflete na
educação, particularmente no ensino de língua materna.
De acordo com Carvalho (1992), uma das características da cidadania
brasileira é o fato de ela ter se desenvolvido de forma diversa daquela descrita por
Marshall, em que a cidadania civil precedera a cidadania política e esta, a cidadania
social. Assim, segundo o historiador, nossa primeira Constituição, promulgada em
1824, ao instituir direitos políticos – restritos, é bem verdade –, porém admitindo ao
mesmo tempo a escravidão, deixa clara sua fragilidade no que concerne aos direitos
civis, já que estes têm como fundamento a liberdade e a igualdade. Dessa forma,
conclui Carvalho (1992: 36 e 38), a existência dos direitos políticos sem o prévio
desenvolvimento de direitos civis, da convicção única da liberdade individual e dos
limites do poder do Estado, redunda num exercício falho da cidadania política, pois
para que o cidadão político possa ter plena eficácia, ele deve sustentar-se nos
ombros do cidadão civil, consciente de seus direitos e também de suas obrigações.
Esta falha, este defeito de origem, permeia a sociedade de alto a baixo.
Aliás, se, como o historiador, considerarmos direitos civis como igualdade
perante a lei, liberdade e direito à propriedade, poderemos afirmar que, em vários
sentidos, no Brasil, até hoje esses direitos ainda não estão totalmente consolidados.
Basta atentarmos para episódios corriqueiros de truculência policial contra cidadãos,
em geral pobres e mulatos, que antes mesmo de poderem provar sua inocência já
são tratados como criminosos. O mesmo raramente acontece com cidadãos brancos
e abonados que, além de contarem com a deferência da polícia, sabem usar a seu
favor os direitos que lhe são garantidos por lei (Carvalho, 1992). Além disso, a
enorme carência cultural e material, que acaba por afastar grande parte da
população nacional de uma participação social e política mais efetiva, leva-nos a
avaliar que ainda são poucos os verdadeiros cidadãos no Brasil.
Ainda falando dessa “inversão” na ordem de consolidação das três dimensões
da cidadania (civil, política e social), Carvalho (1992) nos lembra da instituição dos
68
direitos trabalhistas, ou seja, direitos da ordem do social que foram implantados,
paradoxalmente, em pleno período da ditadura varguista, em que os direitos
políticos dos cidadãos estavam assim suspensos.
Em seu artigo Gestão pública em busca de cidadania: experiências de
inovação em Salvador, Pinho et al. (1997) citam diversos autores conceituados38
que vão mostrando, sob vários aspectos, a fragilidade ou incompletude de nossa
cidadania. Ao final, apresenta-se a seguinte síntese:
A situação no Brasil tem sido apontada como peculiar visto a emergência dos direitos sociais antes dos políticos e o frágil desenvolvimento dos direitos civis. Mesmo os direitos existentes, no entanto, são considerados em muitos casos “letra morta”. As causas dessa realidade são bem conhecidas: uma escravidão resistente, duradoura, cujos efeitos se fazem sentir ainda hoje nas mentalidades de setores da sociedade brasileira; um Estado Patrimonialista que, de tempos em tempos, mostra que não está superado, entre outras. Se até 1888 tínhamos a escravidão, que afastava da possibilidade de cidadania um vasto segmento da população, depois dessa data e até 1930, “a questão social era um caso de polícia”, o que não abria espaço para a cidadania e, a partir dos anos 40, a implantação do salário mínimo mantém rebaixado o padrão de vida da massa trabalhadora. A seguir, este espaço se abre, mas muito mais como uma iniciativa do Estado, já num regime abertamente tutelar, ditatorial. O interregno democrático de 1946/64 é quando se criam as maiores possibilidades de ampliação da cidadania, não só pela presença do pressuposto básico - o regime democrático -, mas também pelo crescimento econômico sustentado. Com o regime de 1964, de caráter autoritário, centralizador, refluem as expectativas de cidadania. Chegamos aos dias de hoje com um déficit estrutural na questão da cidadania, resultado de uma herança secular. (Pinho et al., 1997: 12)
Apesar do reconhecimento desse “déficit”, em seguida no texto, apontam-se
perspectivas para o desenvolvimento da cidadania no Brasil. Para tanto, mais uma
vez, vários autores são chamados. Destacaremos aqui dois deles, pois tocam
diretamente no ponto que nos interessa: a educação.
Segundo Weffort (1992; apud Pinho et al., 1997: 11), dadas as condições
sociais e econômicas “difíceis” existentes no Brasil, a formação da cidadania vai
além do tema da cidadania. Para ele, esta formação passa pela consolidação das
instituições da cidadania, mas também pelo desenvolvimento econômico e social do
38 Weffort (1992), Da Matta (1992), Cardoso (1992) e Benevides (1994).
69
país, sendo um fenômeno da área de educação, da cultura, da capacidade de
organização das pessoas.
Ao mesmo tempo, Benevides (1994; apud Pinho et al., 1997), ao se perguntar
como, numa sociedade tão marcada por desigualdades e desequilíbrios, é possível
implantar e fazer funcionar as formas mais avançadas de democracia participativa,
aponta como resposta a educação política, entendida como educação para a
cidadania, passando pela garantia da informação e consolidação institucional de
canais abertos para a participação com pluralismo e com liberdade (Benevides,
1994; apud Pinho et al., 1997: 12).
2.5 Cidadania e educação
A cidadania deve ser pensada como um conjunto de valores e práticas, cujo exercício não somente se fundamenta no reconhecimento formal dos direitos e deveres que a constituem, mas também que tende a torná-los uma realidade substantiva na vida cotidiana dos indivíduos. (Pablo Gentili, 2001)
Vimos acima a importância que se dá à educação para a consolidação da
cidadania. Aprofundando um pouco mais esta explanação acerca da cidadania,
vamos agora procurar compreender como as questões acerca desse tema se
refletem na educação.
Pablo Gentili (2001) aponta a dificuldade de se definir o que seria uma
educação para a cidadania.
Considerando que há um vínculo entre educação, cidadania, direito,
sociedade, justiça e democracia, o autor se pergunta: que tipo de educação se
relaciona com que tipo de cidadania, de direito, de sociedade, de justiça ou de
democracia? A educação para o exercício consciente da participação política ou a
educação para o trabalho? Que tipo de aluno esta educação almejaria: o eleitor
responsável, o consumidor inteligente ou o trabalhador competitivo?
Segundo Gentili, uma forma útil de responder a estas perguntas seria afirmar
uma educação que contemplasse todos esses aspectos.
A questão que fica então é: mas como articular esses aspectos e como
entender cada um deles?
70
Para essa articulação, o autor inicia tomando duas dimensões da cidadania: a
condição legal e a atividade desejável.
Como condição legal, a cidadania é reconhecida como o pertencimento a uma comunidade política na qual os indivíduos são portadores de direitos. (Gentili, 2001: 69)
Gentili, porém, embora reconhecendo o valor da acepção da cidadania
como posse de direitos, considera essa visão limitada, pois reduz a questão
da cidadania ao campo jurídico, circunscrevendo-a à esfera da lei e ao
compromisso único de respeitá-la.
O principal problema desse enfoque, de acordo com o autor, é que a visão de
cidadania como meros direitos inerentes a todos os indivíduos e, portanto,
partilhados por todos, pressupõe que, como de lei, tais direitos serão respeitados
saiba-se ou não da existência deles. Porém, o desconhecimento pode nos impedir
de exercitar ou reclamar seu cumprimento. Conseqüentemente, a educação para a
cidadania que se baseasse nessa acepção teria de simplesmente transmitir a todos
os direitos que formalmente lhes são reconhecidos.
No entanto, para o autor, a educação entendida como o mecanismo de
difusão dos direitos existentes não forma ou concede a cidadania, embora a faça
mais consciente (Gentili, 2001: 72).
Propondo um passo adiante dessa visão de cidadania como simples posse de
direitos, Gentili (2001: 72) sugere uma acepção de cidadania mais substancial e
radical, na qual a posse de direitos deve combinar-se com uma série de atributos e
virtudes que fazem dos indivíduos cidadãos ativos em consonância e mais além do
que a lei lhes concede. Assim, ao contrário da idéia de cidadania como simples
posse de direitos – ou seja, da cidadania concedida –, propõe-se uma cidadania
em que os sujeitos estejam indissoluvelmente vinculados a um tipo de ação social
para realização de uma ética cidadã. Esta visão de cidadania em que o sujeito, ele
próprio, imbui-se de qualidades cidadãs e, conseqüentemente, tem uma prática que
reflete essas qualidades é o que se pode chamar de cidadania construída.
71
A cidadania, portanto, estaria vinculada a valores e práticas. Assim, transmitir
esses valores e exercitar-se nessas práticas ocupou lugar de destaque nas reformas
educacionais dos anos 90 do século passado.
No entanto, se considerarmos que os valores e atitudes que definem a
cidadania são frutos de um processo sócio-histórico, isto é, estão em constante
construção, ao tentarmos estabilizar os valores que estão por trás da cidadania para
poder didatizá-los, estaríamos indo contra a sua própria essência.
A partir daí, Gentili (2001: 75) levanta as seguintes questões: que tipo de ação
educativa é coerente com a formação de sujeitos cuja cidadania vai além do mero
reconhecimento formal de direitos?; que tipo de formação humana pode se constituir
em uma barreira para o desenvolvimento ativo dos valores e das práticas que estão
associadas à cidadania substantiva?
O que o autor procura expor aqui é que não se deve educar para a cidadania
através de práticas não cidadãs, ou seja, não se pode, por exemplo, educar para a
liberdade a partir de práticas autoritárias, bem como não se pode educar para a
democracia a partir de práticas autocráticas. Dessa forma, acrescenta:
Pensar na educação da cidadania significa pensar em valores, normas e direitos (não apenas legais, senão também morais) que configuram a práxis cidadã e que, indissoluvelmente, devem constituir a práxis educativa. (Gentili, 2001: 76)
A questão da moralidade tem, assim, grande relevância quando se fala em
cidadania.
O autor chama a atenção para o perigo de se tentar “naturalizar” ou
“universalizar” a moralidade, apartando-a de seu caráter histórico, e afirma: ao ser
de-historizados, os valores normas e direitos morais se tornam uma eficaz
ferramenta de dominação (Gentili, 2001: 82). Tomando-se valores morais como
verdades universais inquestionáveis, o sujeito perde sua liberdade de compreender,
questionar ou alterar os valores, normas e direitos morais que são construídos
socialmente. Daí o perigo de se didatizarem valores.
72
No entanto, isto não significa que podemos aceitar qualquer tipo de moral. Ao
contrário, a luta em favor de nossas crenças tem sentido na medida em que elas não
são fatos “naturais” ou “universais”, mas são, isto sim, produtos culturais,
ideológicos, construídos sócio-historicamente e influenciados por contingências
específicas e, portanto, instáveis. Dessa forma, tais crenças não se sustentam
sozinhas se não forem ativamente reconstruídas, dia a dia, pelos que crêem. E é no
debate e no diálogo com outras crenças ou moralidades que isto pode acontecer.
Desta forma, a moralidade que pressupõe o exercício da cidadania se aceita como sendo contingente, relativa e aberta. Sabendo-se histórica, trata de construir-se e garantir-se como um espaço de diálogo com o outro e de reconhecimento do diferente, com o diferente. Uma moralidade plural que se dispõe a dialogar com outras moralidades sobre o tipo de mundo no qual queremos viver, fundando assim o espaço de uma formação ética na e para a igualdade, a democracia, a autonomia e a liberdade. Princípios que sustentam e informam as práticas sociais e significam o reconhecimento compartilhado de que formamos parte, não apenas formal ou metafórica, de uma comunidade de seres politicamente iguais. A partir e através desses princípios, a cidadania se constrói como uma práxis intersubjetiva, baseada em uma ética pública que lhe atribui significado. (Gentili, 2001: 90)
O autor, então, volta à pergunta inicial: Como então deve ser a educação
baseada nesses princípios?
Não há dúvidas de que a escola seja uma agência moral formadora de
sujeitos, mas a escola educa moralmente não só porque os professores “transmitem”
conteúdos morais em suas aulas. Ela é uma agência moral principalmente porque as
práticas que nela circulam (as formas de avaliação, as relações de poder, as
normas etc.) acabam por influenciar na formação moral dos alunos. O mesmo ocorre
em outras instâncias institucionais como a família, a igreja, o mercado, os meios de
comunicação. É por isso que se afirma que não adianta a escola trabalhar o discurso
da democracia se suas práticas forem autoritárias ou o discurso da tolerância às
diversidades se sua prática for homogeneizante.
Portanto, o que distingue uma moralidade de outra não são apenas o seus
conteúdos, mas também os procedimentos que a constituem. Assim, a moralidade
da democracia e da cidadania se forma apenas mediante e através de práticas que
pressupõem um sujeito autônomo, livre e democrático. É nesse sentido que Gentili
afirma que não adianta a escola tratar do tema cidadania de forma autoritária, por
73
exemplo, apenas impondo a idéia de que a prática democrática é melhor e
praticamente obrigando os alunos a serem participativos ou solidários.
A formação para a cidadania requer, por conseguinte, a criação de espaços
educativos em que os alunos possam livremente questionar, pensar, assumir e
criticar valores, normas e direitos, inclusive aqueles tidos como os mais
democráticos e justos.
Sendo assim, para que os alunos não formem sua própria moralidade
simplesmente decalcada na moralidade da escola ou dos professores, ou seja, para
que eles formem, livre e autonomamente, sua própria moralidade (e isso sim seria
um exercício democrático), a escola deve se preocupar em oferecer oportunidades
pedagógicas para que seus alunos e alunas possam compreender criticamente os
componentes constitutivos das moralidades vigentes (...), seus elementos evidentes
e suas razões ocultas, seus significados explícitos e seus silêncios, suas promessas
e suas ameaças (Gentili, 2001: 95).
Em relação ao ensino de Língua Portuguesa, cremos que é apenas por meio
de uma postura crítica diante dos fatos, das interações e, portanto, dos textos que o
indivíduo pode ganhar autonomia e pôr em prática o verdadeiro sentido de liberdade
e democracia, valores tão caros à cidadania. E isto responde à questão que fechou
o segmento anterior deste capítulo: Mas de onde vem essa demanda pela formação
de um leitor crítico? Vem de um anseio por uma educação para a cidadania, anseio
pela formação de um cidadão crítico, livre e participativo, co-construtor de uma
sociedade mais justa.
Dessa forma, conforme anunciamos no início do capítulo, é neste ponto que
a trajetória do ensino de língua materna se encontra com a da evolução da idéia de
cidadania.
2.6 Uma Síntese
A fim de fazermos uma síntese do que vimos até agora e, ao mesmo tempo,
complementarmos nossa reflexão acerca da relação entre ensino de Língua
Portuguesa e cidadania, ainda há mais dois aspectos que necessitam ser
74
abordados, sem os quais não é possível pensar em educação para a cidadania: a
universalização da escola e a formação para a ação cidadã.
Não se pode pensar em cidadania sem considerar a universalização do
ensino. Universalizar a educação significa acolher na escola todos os tipos de
alunos, de todas as idades e classes sociais, oriundos de comunidades com os mais
diferentes valores e pautas culturais. Assim, em se tratando de ensino de Língua
Portuguesa, a questão da universalização do ensino passa obrigatoriamente pela
aceitação, por parte da escola, da diversidade lingüística, ou seja, pelo
reconhecimento de que, no interior de uma mesma língua, há uma grande variedade
de outras línguas e linguagens convivendo ao mesmo tempo (línguas estrangeiras,
jargões, regionalismos, dialetos sociais etc.) – todas elas reflexo das particularidades
da esfera e conseqüentemente do gênero em que se inserem –, fenômeno a que
Bakhtin chamou de plurilingüismo e sobre o qual tratamos no capítulo precedente.
O reconhecimento de que tal diversidade é constitutiva de qualquer língua
pode (e deve) resultar no fim da crença de que existe uma linguagem melhor ou
mais correta do que outra e, conseqüentemente, deve resultar no fim do preconceito
lingüístico, o que implica que a escola, nas aulas de Língua Portuguesa, assuma
uma postura menos “normativa”, aceitando as diferentes formas de expressão
oriundas de diferentes contextos sociais.
Quanto a este aspecto da variação lingüística, os PCN lhe dedicam especial
atenção, apontando a necessidade de se valorizarem todas as variedades (p. 64) e
sustentando que, mais do que trabalhar a noção de erro, a escola deve desenvolver
nos alunos a capacidade de adequarem as diferentes variedades às distintas
circunstâncias de uso (p. 31), capacidade esta designada como “competência
lingüística”.
Esta valorização de todos os tipos de linguagem social, desde que adequadas
à situação de comunicação, encontra respaldo nos estudos acerca de letramento –
já descritos anteriormente por nós como pertencentes à perspectiva conceitual que
se denomina letramento ideológico –, segundo os quais as práticas de letramento
são social e culturalmente determinadas e a relevância de tais práticas deve ser
analisada conforme os valores culturais da sociedade em que estão inseridas.
75
Teorias lingüístico-enunciativas, como as de Bakhtin, também tratam de
desmitificar a idéia de que haja uma única forma, melhor, mais correta e, portanto,
modelar de utilização da língua. Ao criticar aqueles que consideram a língua como
um sistema de formas normativas, o autor russo afirma que só se pode falar em
correção se a língua em questão for uma língua morta, estática. Caso contrário, se
estamos falando de uma língua viva, situada e em constante evolução, este critério
não se aplica (Bakhtin/Volochinov, 1929: 127).
Ao mesmo tempo, se o papel da escola é, mais do que reforçar habilidades e
comportamentos já existentes, contribuir para que o aluno desenvolva novas
capacidades – úteis tanto para seu crescimento pessoal quanto para sua atuação
em sociedade – e, paralelamente, admitindo-se que há, sim, uma linguagem nem
melhor nem pior que as outras, mas realmente mais prestigiada, para que o aluno
tenha possibilidade de interagir de forma adequada frente a textos de diferentes
esferas sociais e, principalmente, nas situações das quais tal linguagem é
constituinte, a escola não pode se furtar de ensinar a língua padrão em norma culta,
pois é ela que está presente nas situações formais públicas, nas entrevistas de
emprego, nos meios de comunicação, nas esferas políticas etc.
Em relação a essa questão, Soares (1997), a partir dos termos
diferença/deficiência, compara estudos feitos por Bernstein, Labov e Bourdieu
acerca da relação entre linguagem, meio social e aproveitamento escolar e
apresenta uma proposta de educação escolar na qual o ensino do dialeto de
prestígio (língua padrão) deve servir de instrumento para a luta contra as
desigualdades econômicas e sociais, ou seja, luta para a ampliação da cidadania.
Claro deve ficar que, segundo esta proposta, valorizar o ensino do dialeto das
classes dominantes não significa desprestigiar o dialeto das classes dominadas. Ao
contrário, o que a autora propõe é um bidialetismo na escola: não um bidialetismo
funcional – em que apenas se aceita o dialeto de menos prestígio –, mas um
bidialetismo para a transformação.
Em termos metodológicos, para escapar a este aparente paradoxo – acolher
as diferentes linguagens e desenvolver habilidades dentro da língua padrão –, a
escola pode trabalhar o ensino da língua materna, conforme já mencionamos
76
anteriormente, considerando o que Vygotsky (1933/1978: 94) defende quando afirma
que, como o aprendizado possui um caráter social, ele se inicia muito antes de as
crianças entrarem na escola. Dessa forma, todo conhecimento construído no âmbito
escolar tem como base experiências prévias vividas no cotidiano dos alunos.
Aplicando tal idéia ao ensino de língua materna na escola, pode-se então
dizer que a construção da língua padrão pelo aluno deve se dar a partir da própria
linguagem e dos gêneros de que a criança se utiliza em seu meio social cotidiano
fora da escola. Como afirmam Rojo & Batista (2003: 21), citando Oswald de
Andrade, há de se chegar à química, pelo chá de erva-doce, ou seja, há de se
ensinar a língua padrão a partir da linguagem cotidiana dos alunos.
Em síntese, nas aulas de Língua Portuguesa, o fortalecimento da cidadania
pode ser alcançado de várias formas: uma delas é abordando-se ao mesmo tempo
questões de variação lingüística e trabalhando-se a língua culta padrão. Além disso
– e principalmente –, exercício da cidadania, como vimos, pode ainda ser garantido
e ampliado com o desenvolvimento do senso crítico também proporcionado por um
ensino com base numa noção sócio-histórica e discursiva da língua e dos gêneros.
78
3 Metodologia
Conforme já anunciado em nossa introdução, o objetivo desta dissertação é –
partindo da distinção entre as teorias e autores que abordam a noção de gêneros de
forma mais discursiva ou mais textual, analisar qual ou quais são as abordagens da
noção de gêneros preferencialmente adotadas tanto pelos PCN de Língua
Portuguesa para o 3º e o 4º ciclos (5ª a 8ª séries) do Ensino Fundamental quanto
pelos Parâmetros em Ação, a fim de verificar até que ponto esses documentos
dialogam. Também vimos nos capítulos anteriores que a relevância de tal distinção
reside no fato de que a opção preferencial por uma ou outra abordagem pode
motivar diferentes propostas didáticas e uma maior ou menor aproximação da
educação com a formação de cidadãos críticos.
De acordo com o princípio amplo do dialogismo, tomado a partir de uma visão
bakhtiniana da linguagem – também já tratado por nós anteriormente –, cada
enunciado é um elo na grande e ininterrupta cadeia de comunicação verbal. Além
disso, ainda segundo Bkahtin (1952-1953/1979: 342), “o sentido se distribui entre as
diversas vozes”, portanto é possível afirmar que um texto tem seu sentido revelado
quando em relação com outros textos, outras vozes.
Sabendo-se que às diferentes abordagens da noção de gêneros acima
explicitadas correspondem os trabalhos de determinados autores e seus temas –
como apontado no Capítulo 1 desta dissertação –, um dos recursos de que
utilizaremos para dar sentido aos nossos objetos de análise será procurar identificar
as vozes presentes nos documentos. Identificando essas vozes, será possível
termos pistas em relação a qual das abordagens mencionadas adere cada um dos
documentos em questão.
Considerando que os módulos do Parâmetros em Ação foram elaborados a
partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais, procuraremos então, inicialmente,
rastrear quais são as vozes presentes neste documento para, em seguida,
verificarmos em que medida elas se repetem naquele ou, para utilizar um termo de
Bakhtin (1952-1953/1979: 299), em que medida um enunciado é “reação-resposta”
do outro. O grau de coincidência ou a ausência de certas vozes, bem como a
79
presença de vozes outras, indicar-nos-ão o funcionamento do dialogismo entre os
dois documentos.
No entanto, também de acordo com uma visão bakhtiniana de linguagem, a
relação dialógica com outros enunciados não é suficiente para determinar os
sentidos de um texto. Como vimos desenhando até agora, tanto os textos com que o
enunciado em questão dialoga quanto o seu contexto sócio-histórico de produção
são elementos fundamentais para a afirmação de seu significado.
Assim, além das noções de vozes, intertextualidade, interdiscursividade e de
dialogismo emprestadas da teoria de Bakhtin, utilizaremos também as noções de
interação autor-leitor (já que cada um dos documentos a ser analisado foi
supostamente escrito para interlocutores diferentes) e, fundamentalmente, de
contexto e situação de produção/interação, dentre outras categorias retiradas da
teoria de enunciação bakhtiniana e já apresentadas em nossos capítulos teóricos.
Serão, portanto, principalmente sete os conceitos bakhtinianos que
tomaremos como instrumento de análise: gêneros discursivos, dialogismo, vozes,
intertextualidade, interdiscursividade, contexto de produção e interação autor-leitor.
Dessa forma, podemos então ressignificar nossas perguntas de pesquisa,
recolocando-as39 da seguinte forma:
Numa comparação entre os Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa
para 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries) do Ensino Fundamental e os módulos de
Língua Portuguesa dos Parâmetros em Ação:
a) Qual é a condição de produção de cada um dos documentos objeto de
nossa análise?
b) Qual é o leitor visado de cada um dos documentos?
c) Que vozes podem ser neles identificadas?
39 Na introdução, expusemos as seguintes perguntas: “a) que tipo(s) de noção de gênero encontra(m)-se nesses materiais?” e “b) a(s) noção(ões) de gênero adotada(s) pelo primeiro material encontra(m) reflexo no segundo? Em que medida?”.
80
d) Que enfoque da noção de gêneros é o preferencialmente adotado em
cada um os documentos?
e) Que nível de diálogo estabelecem entre si?
Para complementar os recursos dos quais lançaremos mão para atingir nosso
objetivo, recorreremos também à utilização de um software de análise lingüística
denominado WordSmith Tools (WS Tools)40. Embora este seja um programa criado
para analisar grandes corpora lingüísticos, veremos que ele pode se mostrar
bastante útil também para pequenos corpora, como é o caso dos nossos textos.
O WS Tools oferece três ferramentas de análise: WordList, Concord e
KeyWords.
Importa desde já esclarecer que, apesar de tais ferramentas oferecerem uma
série de instrumentos de análise, apenas alguns poucos serão utilizados nesta
dissertação, uma vez que esse programa está sendo utilizado apenas como apoio
complementar de entrada nos textos e que nosso objetivo principal é mais uma
análise temática e discursiva de documentos isolados do que quantitativa, não se
tratando, portanto, da análise detalhada de um grande corpus ou vários corpora
como pressupõe uma tal ferramenta computacional.
Dessa forma, por exemplo, não recorreremos à ferramenta Keyword.
Segundo definição do próprio manual de ajuda do WS Tools, essa ferramenta foi
elaborada para comparar duas listas de palavras pré-existentes, que devem ser
criadas utilizando-se a ferramenta Word List. Uma dessas listas deve ser
significativamente maior que a outra e funcionará como um arquivo de referência. A
outra lista deverá ser menor e baseada no texto que se quer estudar. O objetivo do
Keyword é encontrar quais palavras caracterizam o texto no qual se está
interessado.
Embora essa ferramenta tenha sido desenhada, entre outras funções, para a
análise temática de textos, preferimos não trabalhar com ela principalmente por um
40 Word Smith Tools é um software de análise lingüística, criado há aproximadamente 10 anos por
Mike Scott e publicado pela Oxford University Press (Berber-Sardinha, 1999).
81
motivo: não faz sentido utilizar o Keyword em textos isolados, isto é, em textos que
ainda não sejam pertencentes a algum determinado corpus. Faria sentido, por
exemplo, se, num corpus composto por textos retirados de boletins policiais,
quiséssemos investigar qual é o tema específico de um ou alguns dos textos desse
corpus. Como não temos um corpus de referência formado por vários parâmetros
curriculares nacionais de Língua Portuguesa, não faz sentido utilizarmos o Keyword,
por exemplo, para nosso único Parâmetro.
De acordo com Bakhtin (1952-1953/1979: 312), os enunciados recebem dos
gêneros uma expressividade determinada, típica, própria e conclui: no gênero, a
palavra comporta certa expressão típica. Assim, seria um equívoco se nos
dispuséssemos a arriscar a utilização do Keyword tomando como referência um
corpus disponível, por exemplo, em algum departamento de Lingüística de
determinada Universidade. Em geral, esses corpora abarcam assuntos e gêneros
muito variados e o nosso objeto de análise trata de um tema e um gênero muito
específicos. Apesar de fazer uso de palavras comuns, como texto, aluno, gênero,
por exemplo, os documentos que iremos analisar tratam de um assunto bastante
particular e pertencem a um gênero também particular, portanto, neles esses termos
também ganham um significado específico. Pôr em relação nossos documentos com
textos variados de imprensa, por exemplo, poderia então resultar uma lista de
keywords com algumas distorções. Sendo assim, preferimos basear nossa análise
nas palavras mais freqüentes em nossos objetos de estudo.
Vejamos, então, quais serão as ferramentas e instrumentos disponíveis no
WS Tools que serão empregados em nossa análise.
WordList: ferramenta que elabora lista de palavras. A partir de um
determinado texto ou corpus, o WordList elabora três tipos de listas: a) com
estatísticas simples a respeito desses dados, como, por exemplo, qual o total de
palavras existentes no corpus e qual o tamanho dessas mesmas palavras, em
termos de toques; b) com todas as palavras do corpus ou texto(s) selecionado(s),
por ordem alfabética e c) com todas as palavras do corpus ou texto(s)
selecionado(s), por ordem decrescente de freqüência.
82
Como, por razões óbvias, os dois primeiros tipos de lista pouco se prestam
para uma análise temática, neste nosso trabalho, utilizaremos basicamente o último
tipo de lista. Vejamos abaixo um exemplo de parte da lista por ordem decrescente de
freqüência, feita a partir do documento PCN de Língua Portuguesa para 3º e 4º
Ciclos (5ª a 8ª séries) 41.
n word freq. % 1 de 1.914 6,11 2 a 1.112 3,55 3 e 1.110 3,54 4 que 804 2,56 5 o 755 2,41 6 da 512 1,63 7 do 490 1,56 8 se 434 1,38 9 para 404 1,29 10 em 403 1,29 11 os 342 1,09 12 ï 287 0,92 13 dos 270 0,86 14 textos 260 0,83 15 as 236 0,75 16 um 228 0,73 17 não 211 0,67 18 no 209 0,67 19 é 195 0,62 20 texto 194 0,62 21 como 189 0,60 22 com 188 0,60 23 ou 180 0,57 24 das 179 0,57 25 na 174 0,56 26 por 167 0,53 27 uma 155 0,49 28 ao 153 0,49 29 linguagem 148 0,47 30 leitura 143 0,46 31 língua 135 0,43 32 aluno 134 0,43 33 ensino 131 0,42 34 alunos 120 0,38 35 são 117 0,37 36 produção 111 0,35 37 sobre 105 0,33 38 diferentes 103 0,33 39 mais 100 0,32
41 O que apresentamos aqui são apenas as 45 primeiras entradas da lista, de um total de 4.453. Veja
a lista completa no CD anexo.
83
40 escrita 99 0,32 41 à 94 0,30 42 ser 93 0,30 43 conteúdos 87 0,28 44 sua 83 0,26 45 professor 78 0,25
Quadro 1 – Exemplo de lista de palavras individuais por ordem de freqüência.
Com o auxílio da ferramenta WordList e da lista de palavras individuais por
ordem de freqüência disponibilizada, procuraremos principalmente levantar pistas
sobre os temas que circulam em nosso objeto de análise. Para tanto, considerando
que alguns vocábulos têm função essencialmente gramatical e outros, como os
substantivos e adjetivos, são mais propícios para a veiculação do tema de um
enunciado, editaremos a lista, a fim de que nela permaneçam apenas os
substantivos e adjetivos mais freqüentes, eliminando os vocábulos mais “funcionais”.
Segundo Bechara (1999), adjetivos e substantivos caracterizam-se por serem
portadores de significado lexical, ou seja, de significado que corresponde ao quê da
apreensão do mundo extralingüístico (Bechara, 1999: 109). Por outro lado, os
vocábulos pertencentes às demais classes de palavras, ainda segundo Bechara,
caracterizam-se por outros tipos de significados que veiculam, ou seja, significados
mais funcionais, a saber: significado instrumental ou significado categorial. Assim, o
gramático divide as palavras em lexemáticas (substantivo, adjetivo, verbo e
advérbio), categoremáticas (pronome e numeral) e morfemáticas (artigo, preposição
e conjunção).
Dessa forma, pareceu-nos mais adequado recorrermos apenas aos
substantivos e adjetivos para a busca do tema de um texto42. Conseqüentemente, as
listas e quadros apresentados nos próximos capítulos de análise já virão editadas,
42 Optamos também por eliminar os verbos por dois motivos: primeiro pela baixa freqüência em que
aparecem no texto: entre as 100 palavras mais freqüentes, aparecem apenas 4 verbos (“é”, “ser”, “pode” e “deve”), sendo os dois primeiros normalmente considerados, em termos semânticos, apenas relacionais e, portanto, com um significado léxico muito amplo e vago (Bechara, 1999: 209), ou seja, pouco relevantes para uma análise lexical. É bem verdade que os outros dois verbos exercem uma forte influência em termos de modalização dos discursos. Mas acreditamos que, como nosso trabalho não ficará restrito às palavras isoladas e sim se estenderá para enunciados completos, tais questões de modalização ou de relação entre os vocábulos da rede lexical que trama nossos objetos de análise serão apreendidas na análise desse contexto mais amplo.
84
apresentando apenas os vocábulos pertencentes a essas classes de palavras. Além
disso, como o que nos interessa é o significado das palavras e não a sua função
sintática, eliminaremos também as distinções de gênero e número desses
vocábulos, o que acarretará que cada entrada da lista resultante estará somando
todas as formas – flexionadas ou não – de cada um desses vocábulos.
Da lista acima, por exemplo, eliminaremos as palavras sombreadas e
consideraremos a palavra “texto” e o seu plural “textos” como um único vocábulo. O
mesmo poderá acontecer, por exemplo, com as palavras “aluno”, “alunos”, “aluna” e
“alunas”, bem como com os adjetivos e suas possíveis flexões de gênero e número.
Concord: ferramenta que apresenta uma palavra previamente selecionada
(também chamada de palavra de busca ou nódulo, de acordo com Berber-Sardinha,
1999) em sua relação com as demais palavras do texto ou corpus. Dentre os
instrumentos de análise que o Concord pode fornecer, trabalharemos basicamente
com dois: a concordância (“concordance”) e a colocação (“collocates”).
Quando solicitamos ao programa uma lista de concordância, é-nos fornecida
uma lista com excertos do texto nos quais a palavra selecionada aparece. Dessa
forma, em um “co-texto”, é possível precisar melhor em qual ou em quais sentidos a
palavra de busca está sendo tomada. Conforme bem nota Bakhtin (1952-
1953/1979: 311), apenas o contato entre a língua e a realidade – que se dá no
enunciado43 – provoca o lampejo de expressividade.
A partir da lista de palavras por ordem de freqüência do texto dos PCN de
Língua Portuguesa para 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries), tomemos, a título de exemplo,
o vocábulo “conhecimentos”44.
N Concordance
1 flexão tanto sobre os conhecimentos construí
2 nstituir um repertório de conhecimentos que cont
3 ivamente, o conjunto de conhecimentos discursi
4 ematização teórica dos conhecimentos lingüístic
43 Ênfase adicionada. 44 Entrada número 109 da lista por ordem decrescente de freqüência.
85
5 sujeito aprendiz e aos conhecimentos por ele j
6 rofessor 49 abordar os conhecimentos lingüístic
7 olocadas; os possíveis conhecimentos comparti
8 ue estão investidos nos conhecimentos com os
9 o e sistematização dos conhecimentos, formula
10 da tarefa refere-se aos conhecimentos de natur
11 eração nas quais esses conhecimentos sejam c
12 textos que demandem conhecimentos familiare
13 rmações textuais com conhecimentos prévios.
14 temático dos diferentes conhecimentos construí
15 enções do locutor, dos conhecimentos que acre
16 em relação a idéias e conhecimentos express
17 s entre o texto e seus conhecimentos prévios o
18 rmações do texto e os conhecimentos ativados
19 nstitua um conjunto de conhecimentos sobre o
20 áveis 5 : ï o aluno; ï os conhecimentos com os
21 conhecimento, são os conhecimentos discursiv
22 s variedades; ï usar os conhecimentos adquirid
23 itor); ï articulação entre conhecimentos prévios e
24 elos interlocutores, os conhecimentos presumi
25 as para o ensino e dos conhecimentos que prec
26 apresentação linear de conhecimentos, mas do
27 rticulação entre seus conhecimentos prévios e
28 ão determinadas pelos conhecimentos já constr
29 aliar a apropriação dos conhecimentos pelo alu
30 o, o aluno incorpore os conhecimentos discutid
31 afar o texto, articulando conhecimentos lingüístic
32 para adquirir e construir conhecimentos; ï questi
33 acesso ao conjunto de conhecimentos socialm
34 , apoiando-se em seus conhecimentos prévios s
Quadro 2 – Exemplo de lista de concordância
O instrumento Concordance (ou Concordância) possui ainda um recurso
(denominado grow) que possibilita que se visualizem trechos cada vez mais amplos
em que a palavra aparece. Vejamos os sete primeiros itens da lista acima com este
recurso aplicado:
86
N Concordance
1 em. A avaliação precisa acontecer num contexto em que seja possibilitada ao aluno a reflexão tanto sobre os conhecimentos construídos - o que sabe -, quanto sobre os processos pelos quais isso ocorreu - como conseguiu aprender. Ao identificar o que sabe,
2 ssor pode antecipar algumas informações sobre o tema que será tratado de modo a constituir um repertório de conhecimentos que contribua para melhor compreensão dos textos e oriente o processo de tomar notas. ï Preparação dos alunos para a escuta ativa e crítica dos te
3 no processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno: ï amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto; ï reconheça a contribuição complementar dos
4 compreendidas em sua dimensão histórica e em que a necessidade de análise e sistematização teórica dos conhecimentos lingüísticos decorra dessas mesmas práticas. Entretanto, as práticas de linguagem que ocorrem no espaço escolar diferem das demais porque
5 s, entre outros). A complexidade de determinado objeto deve ser considerada em relação ao sujeito aprendiz e aos conhecimentos por ele já construídos a respeito. Também não é homogênea: tanto diferentes aspectos de um mesmo objeto podem ter graus de complexid
6 como de sua possibilidade de tratar dados com abstração crescente, permitem ao professor 49 abordar os conhecimentos lingüísticos de forma diferenciada. Se, nos ciclos anteriores, priorizavam-se as atividades epilingüísticas, havendo desequilíbrio claro ent
7 e organizarão e as restrições e possibilidades disso decorrentes; as finalidades colocadas; os possíveis conhecimentos compartilhados e não compartilhados pelos interlocutores ñ coloca-se como aspecto fundamental a ser tematizado, dado que a po
8 ...
Quadro 3 – Exemplo de lista de concordância com itens ampliados
É possível ampliar progressivamente o contexto em que a palavra aparece
até que se alcancem aproximadamente45 dois parágrafos.
A ferramenta Concord oferece ainda um outro instrumento que aponta quais
são as palavras que mais freqüentemente aparecem próximas a um determinado
vocábulo de busca. Este instrumento é denominado Collocates (ou Colocados). 45 O manual descritivo que acompanha o programa não especifica exatamente o tamanho máximo de
texto disponibilizado pelo Concord. A medida de dois parágrafos, portanto, é apenas uma estimativa que fizemos por meio de observação das listas.
87
Mais uma vez tomando a palavra “conhecimentos” como exemplo, vejamos abaixo o
que acontece ao utilizarmos este instrumento.
n word total left right L5 L4 L3 L2 L1 * r1 r2 r3 r4 r5 1 conhecimentos 34 0 0 0 0 0 0 0 34 0 0 0 0 0 2 que 9 2 7 0 1 0 1 0 0 3 0 1 3 0 3 construídos 6 0 6 0 0 0 0 0 0 2 2 0 2 0 4 dos 6 6 0 0 0 0 1 5 0 0 0 0 0 0 5 prévios 5 0 5 0 0 0 0 0 0 5 0 0 0 0 6 texto 5 4 1 1 0 2 1 0 0 0 0 0 0 1
Quadro 4 – Exemplo de quadro de colocações mais freqüentes46
A partir desse quadro, podemos depreender quais são as palavras mais
freqüentemente próximas e quais suas posições em relação ao vocábulo de busca.
Para tal, devemos considerar que L5 é a quinta palavra à esquerda do vocábulo
selecionado, L4 é a quarta e assim por diante. Do mesmo jeito, r1 é a primeira
palavra à direita do vocábulo, r2 é a segunda, r3 é a terceira e assim
sucessivamente.
Sendo assim, o quadro acima pode ser interpretado da seguinte maneira: a
palavra “conhecimentos” aparece 34 vezes no texto ou corpus que está sendo
analisado. Os 5 vocábulos mais freqüentemente próximos a “conhecimentos” são:
“que”, “construídos”, “dos”, “prévios” e “texto”47.
A partir da coluna “total”, percebe-se que o substantivo ”texto”, por exemplo,
ocorre 5 vezes próximo a “conhecimentos”. Ao mesmo tempo, as colunas “left” e
“right” demonstram que, dessas 5 ocorrências, 4 se dão à esquerda (left) da palavra
de busca e uma se dá à direita (right).
Além disso, ainda em relação à palavra de busca “conhecimentos”, as
colunas L5 a L1 e r1 a r5 apontam que a palavra “texto” aparece colocada uma vez
46 Segundo Berber-Sardinha (1999), este tipo de quadro deveria se chamar quadro de colocados; no
entanto, preferimos denominá-lo de quadro de colocações mais freqüentes por considerarmos que este nome descreve melhor a utilização que estaremos fazendo desse tipo de dados no presente trabalho.
47 O default do programa considera para o quadro de colocações apenas as palavras que aparecem em determinada posição numa freqüência igual ou superior a 5. Dessa forma, por exemplo, se a palavra “lingüísticos” aparece três ou quatro vezes próxima à “conhecimento”, ela não será considerada para inserção no quadro de colocações, a não ser que o usuário do programa decida alterar as configurações default (o que é possível). Em nossa análise, mantivemos o default.
88
na posição L2, duas vezes na posição L3 e mais uma vez na posição L5. Voltando-
se à lista de concordâncias, vemos que, na posição L3, a palavra “conhecimentos”
forma com a palavra “texto” as expressões “textos que demandem conhecimentos” e
“texto e seus conhecimentos prévios”.
Nas análises subseqüentes, assim como faremos com a lista de palavras
mais freqüentes, eliminaremos dos quadros de colocações as palavras que tenham
função estritamente gramatical.
O instrumento “Colocates” ser-nos-á útil, por exemplo, para determinar em
qual posição aparecem as palavras “textuais” e “discursivos” em relação à palavra
“gêneros”.
É possível que se diga que os dados analisados dessa forma quantitativa não
possam nos fornecem muitas informações relevantes em termos de análise dos
significados dos textos, porém ao cruzarmos esses dados com outros como as
condições enunciativas e discursivas de produção de nossos objetos de análise, as
possíveis relações intertextuais entre esses textos e outros, entre outros,
perceberemos que nossas conclusões ganharão maior consistência e credibilidade.
Como afirma Berber-Sardinha (1999), citando Stubbs (1996), a incorporação do
computador à análise da linguagem pode ser comparada à introdução do
microscópio nas ciências, séculos atrás, já que uma das vantagens do uso de
programas computacionais em análise lingüística é que se abrem possibilidades de
descoberta de fatos novos, ou mesmo de contestação de opiniões e crenças
estabelecidas.
Cabe aqui mais uma vez explicitar que a análise a que nos propomos efetuar
será de tipo enunciativo-discursivo com base nas categorias bakhtinianas já citadas.
A ferramenta computacional WordSmith funcionará somente como auxiliar na
análise. Assim, com o complemento da ferramenta computacional e de seus
instrumentos descritos acima, analisaremos os documentos em dois níveis que se
interligam: o das palavras em seu cotexto e o do texto em seu contexto.
89
Em busca de respostas às nossas perguntas de pesquisa, nos próximos
capítulos, apresentaremos as análises feitas a partir das metodologias aqui
expostas.
91
4 Parâmetros Curriculares Nacionais: as condições sócio-históricas de sua produção.
Ao discorrermos sobre as teorias bakhtinianas da linguagem, no Capítulo 1,
vimos que todo discurso se insere numa ampla cadeia de discursos, todos eles
sócio-historicamente determinados. Neste capítulo, a fim de respondermos nossa
primeira pergunta de pesquisa48, procuraremos descrever o contexto sócio-histórico
de produção dos PCN, bem como alguns dos documentos que tecem a rede
intertextual e interdiscursiva na qual eles se inserem.
Nesse sentido, sabendo que processos sociais e culturais produzidos por
instituições cristalizadas historicamente não podem ser plenamente entendidos se
desvinculados das transformações na base produtiva, para se compreender as
propostas educacionais trazidas pelos PCN, far-se-á necessário abordar, ainda que
superficialmente, questões de política econômica. Daí iniciarmos o capítulo com uma
breve revisão do que é o neoliberalismo, ideologia hoje hegemônica, cuja origem se
dá em teorias econômicas, mas que acaba por se infiltrar em todos os níveis da vida
pública, determinando, inclusive, novas posturas na vida privada dos indivíduos.
Em seguida, trataremos de alguns dos documentos oficiais com os quais os
PCN possivelmente dialogam.
O que será possível perceber, ao final do capítulo, é que os PCN surgem num
momento de tensão entre a disseminação de políticas neoliberais e a resistência de
grupos de educadores preocupados com a defesa da escola pública e de uma
educação mais voltada para a cidadania.
4.1 Neoliberalismo e educação
Como vimos no capítulo precedente, no século XX consolida-se a idéia de
cidadania social, segundo a qual todo ser humano tem direito, entre outros, à justiça,
à saúde, à educação e ao bem-estar. Foi a partir, principalmente, da grande
depressão de 1930, fruto da exacerbação das políticas capitalistas liberais do início
do século, que tais direitos passam a ser mais intensamente cobrados e 48 “Qual é a condição de produção de cada um dos documentos objeto de nossa análise?”
92
incorporados por governos, como forma de compensar os grandes desníveis sociais
causados por tais políticas de acúmulo de capital.
É nessa época, portanto, que surge a idéia de “Estado de bem-estar”,
segundo a qual o Estado deveria intervir na economia para oferecer e garantir aos
cidadãos direitos como saúde, educação e pleno emprego. Nessa perspectiva, o
desenvolvimento econômico da nação ocupava lugar intermediário, sendo como que
conseqüência do desenvolvimento social.
As políticas de Estado de bem-estar predominaram, principalmente na
Europa, por pelo menos trinta anos, atingindo seu auge nos anos de ouro das
décadas de 1950 e 1960. Nos anos 70, no entanto, surgem os efeitos dessa política:
o endividamento público, a inflação e baixas taxas de crescimento econômico. E é
nesse cenário que finalmente o neoliberalismo encontra espaço para se impor e
fixar.
Paradoxalmente, foi em 1944 – ao mesmo tempo em que predominava, com
sucesso, nos países ocidentais, essa política de Welfare State –, que Friedrich
Hayek lança as bases do neoliberalismo com seu texto O caminho da Servidão.
Nadando contra a corretente do senso comum da época, o autor então declara que
políticas estatais intervencionistas eram uma ameaça à liberdade individual e abriam
espaço para governos autoritários, como ocorrera com o nazismo. Ou seja, de
acordo com Hayek, sem liberdade de ação econômica não haveria liberdade política
nem social. Tal pensamento tinha como base a convicção de que o mundo é regido
por leis cuja compreensão os homens não podem alcançar e, portanto, tentar impor
uma ordem a ele (e, conseqüentemente, à economia) seria uma “vaidade fatal” dos
intelectuais (Negrão, 1996). Assim, esperava-se que a economia, por meio da livre
concorrência, por si só, sem a intervenção do Estado, se regulasse e promovesse o
desenvolvimento das nações. Ao contrário da ideologia predominante de então, para
Hayek, a desigualdade seria assim considerada um fator positivo que estimularia a
concorrência e desistimularia a injusta distribuição de privilégios a alguns, a fim de
que se alcançasse a igualdade entre todos.
Em 1947, após a vitória do partido trabalhista inglês e conseqüente impulso
ganho nas políticas de Estado de bem-estar, Hayek convoca uma reunião com
93
pensadores que tinham orientações intelectuais próximas às suas, entre eles o
mentor do neoliberalismo americano Milton Friedman. A partir de então, tais reuniões
têm-se repetido sistematicamente, sob a chancela de “Sociedade de Mont Pelérin” e
seus membros, após o malogro das políticas de welfare state que se consumou a
partir da década de 1970, desempenharam e têm desempenhado funções
importantes em vários governos europeus e americanos (Negrão, 1996).
Segundo Gentili (1996), após a derrocada das políticas do welfare state, o
neoliberalismo passa então, a partir da década de 1980, por “um complexo
processo de construção hegemônica”, que engloba uma estratégia de poder que,
por meio de diagnósticos particulares sobre a crise do estado capitalista, propõe
reformas nos planos econômico, político, jurídico e educacional, as quais acabam
por construir novos significados sociais a partir dos quais essas reformas passam a
ser entendidas como as únicas possíveis de ser aplicadas no atual contexto histórico
de nossas sociedades. Cria-se assim um “senso comum”, construído
competentemente por intelectuais neoliberais, que explica a crise e oferece um
marco geral de respostas e estratégias para sair dela (Gentili, 1996).
Grosso modo, o neoliberalismo proposto por esses pensadores, apoia-se
basicamente nas seguintes concepções, entre outras:
• o pleno emprego e os gastos excessivos do governo acarretam um
aumento de circulação de moeda, um elevado consumo e a conseqüente
e nefasta inflação;
• um certo nível de desemprego, portanto, equilibra a economia, pois regula
salários e os custos de produção;
• um Estado mínimo oferece mais garantias de liberdade individual do que
um Estado controlador;
• a democracia pode ser um perigo à liberdade individual e ao
empreendedorismo, uma vez que o indivíduo pode ser obrigado, contra
94
seu interesses, a se submeter à vontade da maioria49. Isto explica porque
políticas neoliberais funcionam tanto sob regimes ditatoriais, como
aconteceu no Chile sob Pinochet, quanto em estados democratas, como o
da Inglaterra.
• a livre concorrência estimula o desenvolvimento de produtos melhores e
mais baratos, frutos de processos produtivos mais eficazes;
• a livre concorrência, dessa forma, premia os mais competentes,
estimulando o indivíduo a alcançar a sua melhor performance.
As palavras-chave do neoliberalismo são, portanto: desemprego, Estado
mínimo, auto-regulação, individualismo, livre concorrência, competitividade,
competência e eficácia.
Acontece que essa livre concorrência pressupõe o triunfo de alguns e o
fracasso de outros. E pior: o pressuposto é que só os mais bem preparados, os mais
“capazes”, eficientes e eficazes é que alcançarão sucesso. E isto se aplica tanto a
instituições quanto aos indivíduos. Tal idéia seria uma espécie de reedição da teoria
darwinista de seleção natural (Rosemberg, 2002: 20). Assim, com a hegemonia do
neoliberalismo, tanto a vida subjetiva quanto a social também passam a ser
influenciadas pela soberania do mercado e palavras como “sucesso” e “fracasso”,
numa acepção bastante materialista, passam a governar a vida dos indivíduos.
Gentili (1996: 23) coloca muito bem essa questão, quando afirma que,
segundo os neoliberais, a “ideologia dos direitos sociais e a falsa promessa de uma
suposta condição de cidadania nos coloca a todos em igualdade de condições para
exigir o que só deveria ser outorgado àqueles que, graças ao mérito e ao esforço
individual, se consagram como consumidores empreendedores”.
49 Segundo Negrão (1996: 18): Este temor à ‘ditadura democrática’ deriva da visão heyekiana do
homem, concepção que herda do liberalismo clássico e que é comum a todos os neoliberais: um indivíduo lançado num mundo cruel que luta, por todos os meios, para se impor e sobreviver. Podemos precisar aqui então um contraponto ontológico entre liberalismo e democracia: é possível, com Bobbio, afirmar que as relações do indivíduo com a sociedade são vistas pelo liberalismo e pela democracia de modo diverso. Enquanto aquele separa o indivíduo do corpo orgânico da sociedade e o coloca num mundo repleto de hostilidades (...), a segunda o reúne a outros homens singulares para a construção artificial de um espaço partilhado.
95
Assim, ainda de acordo com Gentili (1996: 20), os neoliberais acreditam que:
De certa forma, a crise é produto da difusão (excessiva, aos olhos de certos neoliberais atentos) da noção de cidadania. Para eles, o conceito de cidadania em que se baseia a concepção universal e universalizante dos direitos humanos (políticos, sociais, econômicos, culturais etc.) tem gerado um conjunto de falsas promessas que orientaram ações coletivas e individuais caracterizadas pela improdutividade e pela falta de reconhecimento social no valor individual da competição.
Neoliberalismo e cidadania seriam, assim, termos excludentes para os críticos
desse sistema.
Como afirma Frigotto (apud Del Pino, 2001: sem página), o resultado do
neoliberalismo é que já não há políticas de emprego e renda dentro de um projeto de
desenvolvimento social, mas indivíduos que devem adquirir competências ou
habilidades no campo cognitivo, técnico, de gestão e atitudes para se tornarem
competitivos e empregáveis.
Em termos de propostas educacionais, conseqüentemente, mais do que para
a cidadania, a educação sob a égide do neoliberalismo deve voltar-se para formar
indivíduos que possam atender às necessidades do mercado de trabalho e, se esse
mercado atualmente está em constante transformação, espera-se que a escola
forme indivíduos flexíveis para corresponder a essas demandas. A função social da
escola seria, portanto, tão somente garantir a empregabilidade futura dos alunos.
O principal perigo dessa visão é responsabilizar única e exclusivamente o
indivíduo por sua “empregabilidade”50 e conseqüente sucesso, pois como afirma Del
Pino (2001: sem página):
É ingênuo acreditar que é possível corrigir distorções do mercado em função da qualificação dos trabalhadores e trabalhadoras: (...) não é possível resolver a crise de emprego dentro da escola.
E não é possível resolver a crise de emprego na escola simplesmente porque,
como vimos, o desemprego é estrutural, constituinte, das políticas neoliberais51.
50 Termo bastante usado ultimamente, “empregabilidade” seria a capacidade flexível de adaptação
individual às inconstantes demandas do mercado de trabalho.
96
Tal falácia de que o esforço e competências individuais são suficientes para a
garantia de emprego parece ser de mesmo tipo daquela que discutimos no capítulo
anterior, ao tratar das teorias de letramento autônomo: ao indivíduo e não às
condições externas adversas é imputada a responsabilidade de seu iletrismo e, no
caso da empregabilidade, de seu “fracasso”. Nem é preciso comentar a crueldade
dessa idéia e o prejuízo à auto-estima dos cidadãos acometidos pelos resultados
dessa ideologia.
Em síntese, como conseqüência de uma política hegemônica neoliberal, em
que inevitavelmente as regras de mercado regulam tanto a vida econômica do país
quanto questões sociais e até pessoais e em que liberdade rima apenas com
individualidade, em termos educacionais, temos:
• a escola deve ser vista e administrada como uma empresa e, como tal,
antes de qualquer coisa, deve habilitar seus alunos para participarem da
moderna economia de mercado globalizado;
• já que a vida é uma grande competição, cabe à escola desenvolver
competências, por meio de treinamento;
• já que tudo muda rapidamente em função de interesses individuais e/ou
comerciais, cabe à escola ser flexível e desenvolver nos alunos essa
mesma flexibilidade;
51 Com relação às demandas atuais do mercado de trabalho, cabe aqui um parêntese. Barato (2004)
discute essa questão com bastante propriedade e nos chama a atenção para o fato de que é questionável a exigência de níveis cada vez maiores de escolaridade para certos tipos de trabalho que, graças aos avanços tecnológicos, estão cada vez mais simples. Segundo o autor, numa realidade em que a oferta de empregos está cada vez mais escassa, tal exigência, mais do que uma necessidade, é uma forma de diminuir o número de candidatos às poucas vagas disponíveis, gerando ainda mais a exclusão social dos menos favorecidos. Quanto a isso, por outro lado, ainda gostaríamos de acrescentar que, numa situação ideal, mesmo o indivíduo exercendo profissões menos complexas, isso não justifica que ele tenha uma baixa escolaridade, pois acreditamos que a escola deve sim procurar desenvolver nos alunos as competências básicas requeridas para trabalhos mais complexos, mas de forma alguma deve se resumir a isso. Antes de ser mera formadora de trabalhadores que respondam às necessidades do mercado de trabalho, a escola fundamental deve propiciar aos alunos que eles se tornem cidadãos atuantes e capazes de fazer opções livremente (para até, quem sabe – como certa vez considerou o professor Alípio Casali em uma de suas aulas –, poderem exercer, se lhes aprouver, seu “direito de exclusão”, escolhendo, consciente e espontaneamente, excluir-se da maioria), pois podem compreender o mundo que lhes cerca de forma ampla e crítica. Assim, mesmo para o varredor de rua, por exemplo, uma boa escolaridade – que trate de temas significativos – é importante, não para que ele seja mais “empregável”, mas para que ele seja mais cidadão.
97
• já que a escola não é eterna e o mundo está em constante e rápida
transformação, deve-se desenvolver nos alunos a capacidade de
aprender a aprender;
• já que o indivíduo é, antes de mais nada, consumidor, a escola, em seu
status de empresa fornecedora, deve oferecer o que seu consumidor
deseja: técnicas que lhe tragam benefícios imediatos (desenvolver
competências, passar num exame, conseguir um emprego);
• os valores que valem a pena serem desenvolvidos são aqueles que
serão úteis para o trabalho: planejamento, disciplina e trabalho em
equipe.
Diante desses objetivos e da competição feroz em que se transforma a vida
sob o neoliberalismo, fica de fora, portanto, uma educação mais humanista e plural,
uma educação não homogeneizante – nada interessante para o mercado de
trabalho –, uma educação em que interesses meramente individuais não sejam os
mais valorizados, uma educação realmente preocupada com a cidadania e que
promova a liberdade de cada indivíduo de constituir-se livre, crítico, diverso.
Tendo-se firmado a partir do malogro das políticas de “bem-estar”, a partir da
década de 90, percebe-se que o neoliberalismo, além de agravar problemas de
ordem social, foi incapaz de resolvê-los. Assim, surge no horizonte uma proposta
alternativa que teria como objetivo aliar a crença na economia de mercado ao
discurso da cidadania: a Terceira Via. Mas há também quem considere essa
alternativa uma falácia:
Na verdade, o que se pode ver nas entrelinhas da exaltação ao Terceiro Setor é que o seu “sucesso” é um novo recurso de Estado, cujos interesses expressos é a aceitação da desigualdade como natural e, até mesmo, desejável. (...) Como defende Montaño (2002), as apologias sobre o papel do Terceiro Setor no trato das questões sociais é sintoma da hegemonia do ideário neoliberal, e não o seu contrário. (...)
98
São, desta forma, discursos que justificam, estimulam e escamoteiam a retirada das políticas estatais de universalização compulsória de acesso e financiamento dos direitos sociais (principalmente educação, saúde e segurança) em prol da proliferação de agentes privados que executam políticas sociais mitigadas. (Oliveira, 2003)
Pode-se dizer, dessa forma, que o discurso da Terceira Via acaba por atribuir
novos significados aos velhos ideais. Em termos educacionais, conforme bem nota
Shiroma et al. (2002: 52) ao comentar o texto da LDBEN 9394/96, ocorrem as
seguintes ressignificações: capacitação de professores passa a ser traduzida como
profissionalização; participação da sociedade civil como articulação com
empresários e ONGs; descentralização como desconcentração da responsabilidade
do Estado; autonomia como liberdade para captação de recursos; igualdade como
eqüidade; cidadania crítica como cidadania produtiva.
Ou seja, o neoliberalismo também começa, a seu modo, a falar de cidadania,
ressignificando-a. Eis aqui um perfeito exemplo do que Bakhtin (1929: 46) queria
dizer ao afirmar que o signo é uma arena onde se desenvolve a luta de classes.
4.2 Neoliberalismo e globalização
Embora apenas recentemente tem se falado em globalização, este é um
fenômeno que se vem construindo desde os primórdios da humanidade, sendo mais
fortemente marcado a partir do século XVI, com o advento da expansão marítimo-
comercial européia, que, mais tarde, acabou por ampliar as fronteiras do próprio
capitalismo. Hoje, com as facilidades de comunicação a distância, esse processo
ganha nova dimensão e, como não poderia deixar de ser, as políticas econômicas
neoliberais têm tirado bom partido dessa circunstância, aproveitando para expandir
mercados e explorar mão de obra barata, uma vez que as trocas comerciais entre
nações estão cada vez mais fáceis de se concluir.
Uma das principais conseqüências dos rumos tomados pela globalização é a
crescente dependência econômica que os países passam a ter um em relação ao
outro: uma crise no oriente pode afetar os mercados e a vida dos cidadãos do
ocidente; uma política protecionista em certos países pode mudar a configuração
produtiva de outros e assim por diante. Dessa forma, como em qualquer sociedade
de mercado, instaura-se uma relação de dominação entre os países.
99
A dominação que se instaura hoje entre nações difere daquela da época
colonial, em que o país dominante “vampirizava” até o limite o dominado. Hoje,
interessa aos países dominantes que haja um certo equilíbrio social nos mercados
dominados. O que provavelmente está por trás desse discurso competente do
neoliberalismo é o seguinte: é positivo que, até certo ponto, os países onde impera a
pobreza se desenvolvam. Amplia-se, assim, o número de consumidores e, ao
mesmo tempo, cria-se mão de obra barata e satisfatoriamente qualificada para os
postos produtivos, o que pode aumentar a lucratividade das empresas e o seu poder
de barganha com os sindicatos52. Além disso, como afirma Del Pino (2001: sem
página), um rebaixamento das condições de vida até níveis inferiores aos aceitáveis
pode levar ao reaquecimento das lutas de classe a patamares difíceis de governar.
No entanto, o limite recomendado desse desenvolvimento deve se
estabelecer no ponto em que os países dominados não criem total autonomia por
meio de uma independência financeira e intelectual. Daí a maioria das propostas
educacionais advindas de órgãos internacionais, ao tratarem de ensino médio e
superior, apoiarem antes uma educação “profissionalizante”, técnica, do que uma
formação mais ampla, que dê uma base mais consistente aos estudantes,
proporcionando-lhes a possibilidade de uma autonomia intelectual.
Como se vê, diante desse quadro de economia globalizada, organismos
internacionais passam a ter uma importância cada vez mais crescente na regulação
desse mercado: Organização Mundial de Comércio (OMC), Fundo Monetário
Internacional (FMI), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco
Mundial (BM) são apenas alguns dos órgãos existentes cujo objetivo é regular os
interesses econômicos internacionais.
Uma das formas de regulação encontrada por esses órgãos é a promoção de
programas de desenvolvimento social. O objetivo declarado desses programas seria
52 Tomemos um caso recente, a título de exemplo: na década de 1980, numa tentativa de elevar a
oferta de empregos, por pressão dos sindicatos, alguns países da Europa diminuíram a carga semanal de trabalho para 35 horas. Como essa política não surtiu o efeito esperado, para se voltar à antiga jornada sem que se aumentem os salários, tem-se agora utilizado o argumento de que os produtos europeus, por causa da baixa produtividade e altos custos trabalhistas, estão perdendo competitividade em relação aos produtos vindos da China e da Coréia, países onde a mão de obra hoje é qualificada e muito mais barata. (fonte: Revista Veja, edição 1865, de 4 de agosto de 2004, página 96)
100
auxiliar o desenvolvimento econômico das nações menos desenvolvidas e prepará-
las para as crescentes exigências do novo milênio. Dentre esses programas,
portanto, destacam-se aqueles voltados para a educação.
O Banco Mundial, por exemplo, foi um dos patrocinadores da Conferência
Mundial de Educação para Todos, ocorrida em Jomtiem, Tailândia, em 1990, de
onde saiu uma Declaração a partir da qual os vários países signatários, dentre eles o
Brasil, comprometiam-se a adotar as ações ali sugeridas, em prol da erradicação do
analfabetismo e da universalização da educação.
Outro órgão internacional voltado para questões econômicas que elaborou um
documento apontando diretrizes educacionais foi a CEPAL (Comissão Econômica
para a América Latina e Caribe). Juntamente com a UNESCO, publicou o
documento Educación y Conocimiento: Eje de la Transformación Productiva con
Equidad (Shiroma, 2002), que serviu de base para políticas educacionais de alguns
países da América Latina.
Também voltado para o desenvolvimento da América Latina, o Plano de
Acesso Universal à Educação, organizado e dirigido pelo governo dos EUA, é mais
um documento que procura traçar diretrizes para a educação da região. Este
documento também tem norteado programas educacionais de vários governos
latino-americanos (Torres, 2001).
A partir da crença de que a educação pode afetar sobremaneira o
desenvolvimento econômico, esses documentos e mais outros tantos oriundos de
fóruns, comissões e reuniões internacionais afins têm em comum, portanto, o
patrocínio de órgãos ligados a questões econômicas e a preocupação de garantir
uma educação adaptada às novas necessidades de um mercado globalizado,
estendendo-a ao maior número possível de cidadãos em todas as nações. Além
disso, as propostas desses documentos também compartilham a sugestão de
reformas administrativas por meio das quais o Estado deve passar a dividir com
outras instituições sociais (ONGs, empresas privadas, universidades, família, grupos
religiosos etc.) a responsabilidade pela educação de seus cidadãos, assumindo o
papel de mero agente regulador e avaliador das ações educacionais (Shiroma et al.,
2002).
101
Por esse caráter descentralizador e “privatizante”, típico de políticas
neoliberais, muitas das propostas advindas a partir de iniciativas de órgãos
internacionais desse tipo são vistas com ressalvas por vários educadores e
sociólogos (Shiroma et al., 2002; Rosemberg, 2002; Saviani, 1997; Del Pino, 2001),
o que talvez explique o sucesso relativo dessas propostas na América Latina, como
bem nota Torres (2001) num balanço feito para avaliar os resultados de Jomtien na
região, após dez anos do evento:
Teacher unions associated EFA specifically to the World Bank and opposed it from the start. (…) There is disappointment with the meager results of national reform efforts over the 1990s, globally and in this region in particular. The regional comparative evaluation of learning achievement (in language and mathematics among third and fourth graders) conducted in 1997 by UNESCO-OREALC in 13 Latin American countries, showed Cuba having the highest results (UNESCO-OREALC, 1998, 2000). Coincidentally, Cuba is the only country in the region that has not requested loans for its education reform and did not follow standard education reform recommendations. (…) There is disbelief in international commitments and agreements. The mechanism itself – international agreements, global plans – was put into question during the final decade assessment meeting of the nine most populous countries initiative, held in Recife, Brazil in February 2000. 53 (Torres, 2001: sem página)
Cabe aqui ressaltar que a globalização como hoje a conhecemos não é uma
conseqüência necessária do desenvolvimento tecnológico. Em benefício próprio, as
políticas neoliberais acabaram por se aproveitar das novas tecnologias para
53 Os sindicatos de professores associaram EPT especialmente ao Banco Mundial e se opuseram a
isto desde o princípio. (…)
Há uma decepção com os parcos resultados obtidos a partir dos esforços feitos para uma reforma nacional nos anos 1990, globalmente e nessa região em particular [América Latina]. A avaliação regional e comparativa acerca de aprendizagem (em língua e matemática, entre alunos das terceiras e quarta séries), conduzida em 1997 pela UNESCO-OREALC em 13 países latino-americanos, aponta Cuba como tendo os melhores resultados (UNESCO-OREALC, 1998, 2000). Coincidentemente, Cuba é o único país da região que não solicitou empréstimos para sua reforma na área de educação e também não seguiu os padrões recomendados para as reformas educacionais. (...) Há uma descrença em compromissos e acordos internacionais. O próprio mecanismo – acordos internacionais, planos globais – foi posto em discussão durante o encontro para avaliação de final de década, ocorrido entre os nove países mais populosos, em Recife, Brasil, em fevereiro de 2000. (Tradução nossa)
102
desenhar uma globalização centrada mais no desenvolvimento de mercados do que
centrada no desenvolvimento de melhores condições de vida do ser humano. Em
contraposição a essa globalização neoliberal, diversos fóruns e encontros
internacionais têm procurado defender a idéia de uma outra possibilidade de
globalização, em que diversos recursos – entre eles, obviamente, os tecnológicos -
são postos a favor da defesa dos direitos humanos e das diferenças culturais e em
que as facilidades de troca entre países resultem em ações solidárias e igualmente
benéficas para todas as nações.
4.3 Os Parâmetros Curriculares Nacionais e seus documentos fundantes
Antes de poder prever que o resultado esperado a partir do compromisso
firmado em Jomtien não seria alcançado na maior parte dos países da América
Latina, nosso Ministério da Educação elaborou o Plano Decenal de Educação para
Todos (1993 – 2003), cuja implementação trouxe alguns avanços para a educação
nacional. Segundo balanço publicado pela Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério em 2002, em apenas 5 anos (1994 a 1999), a taxa de atendimento à
população de 7 a 14 anos subiu de 92,7% para 97,0% e a de 15 a 17 anos, de
68,7% para 84,5%.
Como se pode perceber com esses números, para o ensino fundamental, o
acesso à escola era um problema, porém não o maior deles (já que mais de 90%
tinha acesso e, hoje, estamos perto dos 100%). O grande desafio era, e ainda é, a
permanência dos alunos na escola e a qualidade do ensino por ela oferecido. Logo,
além de se favorecer a ampliação do número de vagas, paralelamente era preciso
implementar ações que pudessem garantir a permanência do aluno na escola e um
ensino de melhor qualidade54.
54 Segundo relatório da Unesco divulgado para imprensa em 8/11/2004, das quatro metas que
compõem o Índice de Desenvolvimento de Educação, o Brasil se sai pior na área de qualidade de ensino -medida pela taxa de permanência de estudantes até a 5a série do ensino fundamental-, ficando na 87ª posição. O melhor desempenho do país acontece na meta de educação primária universal, em que o Brasil fica na 32ª colocação. (fonte: Uol/ agência Reuters - http://noticias.uol.com.br/educacao/ultnot/reuters/2004/11/08/ult2635u2.jhtm
103
Foi em busca desse objetivo, também previsto pelo Plano Decenal, e em
obediência à Constituição de 198855, que a Secretaria de Educação Fundamental do
Ministério da Educação iniciou, em 1995, a elaboração dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, dentre outros programas, principalmente voltados à avaliação.
O início do processo de elaboração desses Parâmetros incluiu a análise dos
currículos vigentes durante os dez anos anteriores, em 22 estados, alguns
municípios de capitais e no Distrito Federal. A partir da análise desses currículos, a
maioria deles elaborada na década de 1980, publicou-se o documento Propostas
Curriculares Nacionais. Um dos aspectos revelados por esse documento foi a
tendência, expressa em várias propostas curriculares, de adoção de pressupostos
construtivistas, associados, em distintos graus, à perspectiva sociointeracionista. Ao
mesmo tempo, foi possível perceber também várias propostas de trabalho
pedagógico que contemplavam a interdisciplinaridade e questões sociais relevantes
como meio ambiente, ética, pluralidade cultural, entre outros temas. Finalmente,
outro aspecto revelado pela análise das propostas foi a tentativa geral de resgate da
função social da escola. Foi o resultado desse trabalho que acabou apontando o
caminho para a elaboração dos PCN (MEC/SEF, 2002: 30-31).
Em termos de ensino de Língua Portuguesa, por seu pioneirismo e provável
influência sobre as propostas curriculares de vários estados nacionais, um dos
documentos que certamente exerceu grande influência na elaboração dos PCN foi a
Proposta Curricular de Ensino de Língua Portuguesa do Estado de São Paulo, cuja
primeira edição data de 1985 e a última, de 1991.
Segundo Geraldi et al. (1996: 324), tais propostas curriculares de Língua
Portuguesa de diferentes estados, elaboradas em meados dos anos 1980 e início
dos 1990, traziam alguns tópicos recorrentes:
55 Artigo 210 da Constituição: Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de
maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
104
A concepção sócio-interacionista ou sócio-histórica de linguagem inspirando
as atividades de ensino; a noção de texto, como um produto do trabalho
interativo com vínculos às suas condições discursivas de produção; a noção
de variedade lingüística como própria de qualquer língua, deslocando a noção
de certo/errado e definindo-se pelo ensino da chamada língua padrão; e a
organização das práticas de sala de aula em torno da leitura, da produção de
textos e da análise Lingüística.
Ainda de acordo com autor, essas propostas tinham como base
principalmente três correntes da Lingüística (Geraldi et al.,1996: 325): a Lingüística
da Enunciação, associada às noções de sujeito discursivo elaboradas no interior do
marxismo bakhtiniano e vygotskyano (de onde viria a noção de língua adotada); a
Lingüística Textual (da qual teriam sido emprestados os conceitos de coesão,
coerência, informatividade, textualidade e intertextualidade com os quais se
propunha trabalhar o estudo de textos) e, finalmente, a Sociologia da Linguagem.
Se o início do processo de elaboração dos PCN foi a análise que resultou no
documento Propostas Curriculares Nacionais, sua continuação se deu com a
elaboração de uma proposta preliminar – fruto do trabalho de uma equipe formada
por professores, especialistas, técnicos em educação, além de consultores nacionais
e internacionais –, que, posteriormente, foi enviada a 700 pareceristas, a fim de que
estes avaliassem a proposta e sugerissem alterações (MEC/SEF, 2002: 30-31).
Do exposto até agora temos, portanto, que a ideologia política e econômica
predominante à época da elaboração dos PCN era o neoliberalismo, talvez já sob a
influência da chamada Terceira Via, e alguns dos documentos fundantes desses
Parâmetros seriam o Plano Decenal de Educação para Todos (fortemente
influenciado pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos), a Constituição
de 1988 e as propostas curriculares elaboradas na década de1980 e vigentes até a
década de 1990 em alguns estados e municípios nacionais.
105
4.4 Vozes nos PCN
Tendo já discorrido o suficiente sobre neoliberalismo, tratemos agora dos
documentos com os quais os PCN dialoga mais diretamente, iniciando com a
Constituição de 1988.
A partir de diagnósticos que apontavam várias deficiências no sistema
educacional nacional, desde meados dos anos 1970, associações científicas e
sindicais da área de educação – como a ANPEd, a ANDES, a SBPC –, apesar do
sistema político fechado, já reivindicavam uma série de mudanças, a fim de
proporcionar uma melhoria na educação: constituição de um sistema nacional de
educação orgânico; educação pública e gratuita como direito público subjetivo; dever
do Estado concedê-la; “erradicação do analfabetismo e universalização da escola
pública visando a formação de um aluno crítico” (Shiroma et al., 2002: 47, ênfase
adicionada). Para tanto, os educadores de então propunham, por exemplo: melhoria
da qualidade da educação por meio, entre outros, de alterações nos conteúdos e
concepções curriculares; valorização e qualificação dos profissionais da educação;
democratização da gestão da educação; exclusividade de verbas públicas para a
escola pública e, finalmente, a ampliação da oferta educacional para o período de 0
a 17 anos (Shiroma et al., 2002: 47 - 50).
Nos anos 1980, com o retorno do país à democracia e com a eleição direta de
muitos políticos de oposição, esse ideário encontrou em várias secretarias de
estados e municípios possibilidades – maiores ou menores – de implementação
(Shiroma et al., 2002: 49). E foram provavelmente os documentos produzidos nessa
época aqueles que, conforme aludimos logo acima, serviram de inspiração para os
PCN.
Posteriormente, em 1986, ao final da IV Conferência Brasileira de Educação,
é produzido um documento síntese das sugestões de mudanças na educação
levantadas durante o encontro. Denominado Carta de Goiânia, esse documento foi
incorporado, quase na íntegra, ao capítulo Educação da Constituição de 1988
(Shiroma et al. 2002: 50).
106
Dessa forma, a chamada “Constituição Cidadã”, conforme afirmam Shiroma et
al. (2002: 50), respeitava a direção indicada pelo consenso produzido entre os
educadores a partir de meados da década de 1970 e que encontraram, nos anos de
1980, as condições para florescer.
Mas um tempo significativo se passou entre a elaboração das propostas dos
anos 1980, a promulgação da Constituição e a elaboração dos PCN. Tempo
suficiente para o ideário hegemônico neoliberal (já transmutado em Terceira Via)
encontrar aceitação também entre respeitados intelectuais e educadores brasileiros.
Por exemplo, o que se nota na leitura de Saviani (1997: 196) é que a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996 – ou seja,
contemporânea dos PCN – decepcionou-o não só por ser caracteristicamente
neoliberal no seu conteúdo e no seu formato enxuto, mas também por ter sido
elaborada e apresentada no Senado por um intelectual “com um passado político
identificado com as forças progressistas” como Darcy Ribeiro.
Por um lado, é bem verdade que a LDBEN 9394/96, ao propor, por exemplo,
a descentralização da gestão educacional e sistemas de avaliação para garantir um
certo nível de qualidade da educação, responde a parâmetros neoliberais. Mas, por
outro lado, esse movimento de descentralização, no qual o MEC passa a ser
instância “coordenadora” da política nacional de educação, enquanto que os
Estados e Municípios seriam seus agentes colaboradores, também pode ser visto
como algo positivo, no sentido de se respeitarem as diversidades culturais, já que
essa forma descentralizada permite que se elaborem políticas e se implementem
ações considerando as peculiaridades de cada região.
4.5. PCN de Língua Portuguesa56: trabalho, cidadania e crítica
Embora pareça ser consenso que os PCN de Língua Portuguesa são
resultado de políticas neoliberais (Jurado (2003), Barbosa (2001), Gomes-Santos
(2004), Marinho (2001), Shiroma et al. (2002)), com base no exposto acima,
arriscaríamos afirmar que, na realidade, eles são fruto de uma tensão entre o ideário
56 Doravante, estaremos nos referindo sempre aos PCN de Língua Portuguesa para 3º e 4º ciclos (5ª
a 8ª séries).
107
neoliberal dos anos 1990 e outro mais “social-democrata”, voltado para questões de
uma cidadania crítica, provavelmente oriundo das discussões e posições que
vigoram entre grande parte dos educadores brasileiros desde a década de 1980 57.
Com isso, estariam postos no documento dois compromissos: um com a educação
para o trabalho e outro com a educação para a cidadania.
Um levantamento do léxico desse documento talvez possa nos demonstrar
isso. Por exemplo, a contagem das palavras mais freqüentes do texto dos PCN de
Língua Portuguesa para 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries), objeto desta pesquisa, feita
pela ferramenta computacional WordSmtih, demonstra que a palavra trabalho
aparece 62 vezes no documento; porém, em apenas quatro vezes o substantivo
refere-se a trabalho no sentido profissional, a trabalho como meio de subsistência.
Nas outras 58 vezes, o vocábulo está inserido num cotexto em que se trata de
“trabalho pedagógico” com a língua58.
Por outro lado, com relação à palavra cidadania, ela aparece apenas 14
vezes, porém quase sempre de forma unívoca. Em 11 das 14 vezes, o vocábulo
compõe a expressão “exercício da cidadania”59, definido pelos próprios PCN de
Língua Portuguesa (p.07) como participação social e política, assim como exercício
de direitos e deveres políticos, civis e sociais, segundo o qual os alunos do ensino
fundamental devem adotar no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e
repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito.
Esta é uma definição bastante diferente daquela da cidadania neoliberal, ou
da sua versão light, a Terceira Via: para estes a cidadania não é repúdio às
injustiças – o que exigiria uma consciência mais crítica e uma ação transformadora –
, mas sim, ação filantrópica para suprir aos “carentes” aquilo que o estado está
deixando de oferecer.
Ao mesmo tempo, seria ingênuo afirmar que a preocupação com a formação
de indivíduos aptos para responder às demandas atuais de trabalho não esteja
57 Sobre essa tensão ideológica característica desse documento oficial, ler o interessante e bem
humorado artigo de Corazza (2001). 58 Ver Anexo 1. 59 Ver Anexo 2.
108
também no cerne das preocupações desses Parâmetros. Mesmo porque, o exercício
pleno da cidadania pressupõe que o indivíduo tenha um trabalho digno que lhe
garanta a sobrevivência. Além disso, historicamente, toda a educação é um reflexo
do que a sociedade espera de seus cidadãos e, numa sociedade capitalista, é de se
esperar que a ênfase no desenvolvimento de capacidades interessantes para o
mercado de trabalho esteja sempre presente. Dessa forma, ainda que em relação a
questões de leitura, de produção de textos orais e escritos e de reflexão lingüística,
os PCN de Língua Portuguesa também falam, por exemplo, de competência (23
entradas na lista de palavras mais freqüentes) e qualidade (13 entradas), léxico
bastante característico destes tempos neoliberais e atributos necessários para se
garantir a empregabilidade.
Mas como bem aponta Marinho (2001: 147), segundo os PCN, esses
atributos também estão ligados ao exercício da cidadania, pois com essas
orientações [de eficácia e de competência lingüística e discursiva], o aluno sairá da
escola apto a exercer a sua cidadania, porque será capaz de assumir a palavra, de
produzir textos adequados às mais variadas situações e gêneros, e, principalmente,
porque será capaz de refletir sobre a atividade lingüística e de monitorá-la.
No entanto, parece-nos que os PCN vão um pouco além disso. Da forma
como está posto acima, o discurso dos PCN parece estar mais ajustado à noção de
cidadania neoliberal, acrítica, e à educação voltada mais para o trabalho do que
realmente à cidadania crítica.
Quanto a isso, Marinho (2001: 151) também observa:
No momento em que esse discurso oficial projeta o conhecimento lingüístico como a ferramenta básica para o exercício da cidadania, corre-se o risco de minimizar os aspectos políticos que envolvem o discurso, a linguagem, no sentido de que não basta possuir “as ferramentas” lingüísticas, as regras do jogo interativo (se é que elas podem ser possuídas previamente...), pois existem restrições sociais que governam a interação lingüística. Baseando-me nesse pressuposto, tendo a ver nesse discurso resquícios de uma teoria da escola redentora, que há mais ou menos três décadas acreditava que a escola pudesse oferecer, através do ensino “do dialeto padrão”, a possibilidade de ascensão social. Quero crer que a escola pode e deve formar competências, inclusive uma competência lingüística, mas essa competência não é intrinsecamente garantia de inserção e ascensão social.
109
Realmente, competência lingüística ou discursiva não é suficiente para o
exercício da cidadania. Mas então, o que estaria faltando?
Tomemos os Objetivos gerais de Língua Portuguesa, à página 32 dos PCN:
No processo de ensino-aprendizagem dos diferentes ciclos do ensino fundamental, espera-se que o aluno amplie o domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de participação social no exercício da cidadania. Para isso, a escola deverá organizar um conjunto de atividades que, progressivamente, possibilite ao aluno: • utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na leitura e
produção de textos escritos de modo a atender a múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e considerar as diferentes condições de produção do discurso;
• utilizar a linguagem para estruturar a experiência e explicar a realidade, operando sobre as representações construídas em várias áreas do conhecimento:
* sabendo como proceder para ter acesso, compreender e fazer uso de informações contidas nos textos, reconstruindo o modo pelo qual se organizam em sistemas coerentes;
* sendo capaz de operar sobre o conteúdo representacional dos textos, identificando aspectos relevantes, organizando notas, elaborando roteiros, resumos, índices, esquemas etc.;
* aumentando e aprofundando seus esquemas cognitivos pela ampliação do léxico e de suas respectivas redes semânticas;
• analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive o próprio60, desenvolvendo a capacidade de avaliação dos textos:
* contrapondo sua interpretação da realidade a diferentes opiniões;
* inferindo as possíveis intenções do autor marcadas no texto;
* identificando referências intertextuais presentes no texto;
* percebendo os processos de convencimento utilizados para atuar sobre o interlocutor/leitor;
* identificando e repensando juízos de valor tanto socioideológicos (preconceituosos ou não) quanto histórico culturais (inclusive estéticos) associados à linguagem e à língua;
* reafirmando sua identidade pessoal e social;
60 Ênfase adicionada.
110
• conhecer e valorizar as diferentes variedades do Português, procurando combater o preconceito lingüístico;
• reconhecer e valorizar a linguagem de seu grupo social como instrumento adequado e eficiente na comunicação cotidiana, na elaboração artística e mesmo nas interações com pessoas de outros grupos sociais que se expressem por meio de outras variedades;
• usar os conhecimentos adquiridos por meio da prática de análise lingüística para expandir sua capacidade de monitoração das possibilidades de uso da linguagem, ampliando a capacidade de análise crítica.
Como se pode notar, os dois primeiros itens desses objetivos dizem respeito
ao uso social da língua ou o que os PCN chamam de “competência discursiva”61. O
terceiro e o sexto itens falam especificamente da formação do leitor crítico.
Finalmente, o quarto e o quinto itens tratam da questão da diversidade lingüística.
Sintetizando ainda mais esses objetivos, podemos chegar a três pontos
fundamentais: i) competência lingüística e discursiva; ii) leitura crítica e iii)
valorização das diferentes variedades da língua.
Ainda segundo Marinho (2001: 143), o objeto de ensino da disciplina, ou
melhor, da “área” de Língua Portuguesa, organiza-se em torno da relação do
conteúdo lingüístico e um conteúdo social, preferencialmente através das categorias
de competência discursiva, gêneros discursivos, texto e cidadania62.
Dessa forma, talvez o que falte nas afirmações de Marinho citadas acima seja
a consideração de que os PCN apontam que, além da competência discursiva e
lingüística, o aluno, para exercer a cidadania, também deve desenvolver sua
capacidade de leitor crítico, bem como deve adotar uma perspectiva plural e de
respeito à diferença no que tange às linguagens sociais.
61 Segundo os PCN (Brasil, 1998a: 23), competência discursiva refere-se a um ‘sistema de contratos
semânticos’ responsável por uma espécie de ‘filtragem’ que opera os conteúdos em dois domínios interligados que caracterizam o dizível: o universo intertextual e os dispositivos estilísticos acessíveis à enunciação dos diversos discursos. A competência discursiva englobaria, assim, outros dois tipos de competência: a competência lingüística – que seria o conhecimento que o falante possui sobre sua própria língua, independentemente da norma padrão, escolar ou culta – e a competência estilística, definida como a capacidade de o sujeito escolher os recursos expressivos da língua que mais convêm às suas finalidades enunciativas.
Grosso modo, portanto, “competência discursiva” seria a capacidade do sujeito de adaptar sua linguagem à situação em que se encontra, porém vai além da capacidade de escolha do registro (formal e informal), englobando principalmente o domínio de diversos gêneros discursivos. Ver, a respeito, Baltar (2004).
62 Ênfase adicionada.
111
Assim, num enfoque um pouco diverso do dado por Marinho (2001), pode-se
dizer, conforme a síntese acima, que as sugestões didáticas e de conteúdo dos
PCN são regidas não só pelos princípios da competência discursiva e lingüística,
mas também da variedade lingüística e do senso crítico. Ou seja, às capacidades
mais caracteristicamente voltadas para o trabalho (competência e eficácia,
garantidas por uma abordagem mais textual/gramatical da linguagem63), somam-se
outras coerentes com uma educação para a cidadania (senso crítico) e a diversidade
cultural (variedade lingüística). E, como vimos no capítulo anterior, é por meio de
uma abordagem mais discursiva e, conseqüentemente, sócio-histórica de língua e
dos textos – como aliás também propõem os PCN64 – que o princípio da crítica e
da heterogeneidade, um bom caminho para se construir uma verdadeira cidadania,
encontrará, senão possibilidades plenas, alguma possibilidade de efetivação.
Isto demonstra a tensão de que os PCN são resultado. Para um documento
oficial, a incorporação dessa tensão é um grande avanço. Cabe, agora, aos
educadores escolher a qual dos dois lados será dada mais relevância. Foi deixada
uma brecha, agora a questão é explorá-la ou não. Certamente os programas de
formação inicial e continuada de professores, bem como os livros didáticos que já
foram ou serão postos em circulação a partir da leitura dos PCN serão reflexo e,
prospectivamente, terão influência decisiva em tal opção. Daí a importância de
estarmos atentos aos documentos produzidos com base nesses Parâmetros.
Em nossos capítulos de análise, portanto, investigaremos qual das duas
abordagens (mais textual ou mais discursiva) é a preferencialmente adotada pelos
PCN e pelos Parâmetros em Ação.
4.6 Uma breve nota sobre teoria de currículo
Sendo este um trabalho de análise de currículo que se inscreve dentro da
área da Lingüística Aplicada, a qual se define por sua característica transdisciplinar,
63 Tal abordagem também contribui para uma certa “homogeneização” dos discursos. 64 Um texto produzido é sempre produzido a partir de algum lugar, marcado por suas condições de
produção. Não há como separar o sujeito, a história e o mundo das práticas de linguagem. Compreender um texto é buscar as marcas do enunciador projetadas nesse texto, é reconhecer a maneira singular de como se constrói uma representação a respeito do mundo e da história, é relacionar o texto a outros textos que traduzem outras vozes, outros lugares. (Brasil, 1998a: 40).
112
acreditamos ser conveniente apresentar, ainda que brevemente, as idéias de
algumas das teorias de currículo nas quais se podem encaixar as diferentes formas
de se conceber um currículo. Com o perdão talvez de um excesso de reducionismo
– justificável por nosso foco estar mais centrado em questões lingüísticas que
curriculares –, nosso intuito com esta suscinta apresentação é complementar nossa
contextualização histórica dos PCN, buscando encaixá-los dentro de alguma(s)
linhas de pensamento mais ligadas à educação.
A partir da idéia de que o discurso, ao se referir aos objetos também os
constitui e, conseqüentemente, de que cada teoria constitui aquilo que descreve,
Silva (1999), dentro de uma perspectiva histórica, nos apresenta três grandes linhas
teóricas que de alguma forma analisam e, portanto, compõem currículos: as teorias
tradicionais, as teorias críticas e as teorias pós-críticas.
A primeira linha descrita é a da chamada teorias tradicionais. Tais teorias,
segundo o autor, seriam fruto de uma visão de mundo segundo a qual a realidade
esconde uma essência ou uma verdade, sendo apenas necessária uma teoria
“neutra” ou científica que nos ajude a descobri-la. Nessa perspectiva, o que se
chama de currículo seria algo que precede a teoria, a qual só teria como função
descobri-lo, descrevê-lo e explicá-lo. Ao se basear na crença da existência de uma
verdade essencial, inquestionável, as teorias tradicionais de currículo acabam
aceitando mais facilmente os conhecimentos e saberes dominantes como sendo
esses os que interessam ser transmitidos pela escola (afinal, tais saberes são a
expressão da “verdade”), restando como preocupação central apenas questões
técnicas de “como” transmiti-los.
Doutra parte, tanto as teorias críticas quanto as pós-críticas de currículo
partem do princípio que nenhuma teoria, inclusive as de currículo, é neutra, científica
ou desinteressada, mas que está inevitavelmente, implicada em relações de poder
(Silva, 1999: 16) e – acrescentaríamos nós, seguindo Geertz (1989) e Casali (2001)
– implicadas em relações de cultura. Isto porque toda teoria de currículo, ao buscar
responder “o que” deve ser ensinado, antes já teve de considerar o “para quem” e o
“para que”. Ou seja, ao escolher que tipo de pessoa o currículo deve se preocupar
113
em formar e com que objetivo, estamos lidando com questões de cultura e
identidade tanto quanto com questões de poder.
Grosso modo, o que distinguiria as teorias críticas e pós-críticas das teorias
tradicionais seria o fato de as primeiras (críticas) deslocarem a ênfase aos conceitos
pedagógicos de ensino e aprendizagem para os conceitos de ideologia e poder,
enquanto que as segundas (pós-críticas) deslocam o foco do
“essencial/verdadeiro/universal/único” para o particular/cultural/diverso, enfatizando
o conceito de discurso em vez do conceito de ideologia.
As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as
conexões entre saber, identidade e poder. (Silva, 1999: 16)
Disso decorre que, ainda de acordo com Silva (1999), ao centrarem-se na
busca de um entendimento dos motivos que determinaram as escolhas que
constituem esse ou aquele currículo, o questionamento principal das duas últimas
teorias não é tanto o “o que ensinar” ou o “como”, mas sim o “por quê”.
Como uma espécie de estratégia de antecipação para a leitura dos capítulos
subseqüentes de seu livro, Silva (1999) lista algumas palavras que correspondem
aos principais conceitos articuladores de cada uma das três referidas teorias:
Teorias tradicionais: ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência, objetivos. Teorias críticas: ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto, resistência. Teorias pós-críticas: identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade, multiculturalismo. (Silva, 1999: 17)
Uma olhada no sumário do volume de Introdução aos PCN podem nos dar
uma primeira idéia de em qual das teorias esse documento se encaixaria melhor.
Para tanto, consideremos que as palavras iluminadas com cor amarela sejam
aquelas que combinariam melhor com as teorias tradicionais de currículo; as
palavras iluminadas com a cor azul, podem indicar alguma adesão às teorias críticas
114
e, finalmente, as palavras iluminadas com a cor verde podem indicar alguma
proximidade com as teorias pós-críticas:
Apresentação
1a PARTE Educação e cidadania uma questão mundial Educação e cidadania uma questão brasileira Alguns dados recentes sobre a educação brasileira A questão do analfabetismo Taxas de escolarização Desempenho de alunos medido pelo SAEB Professores e sua formação A escola de oito anos As transformações necessárias na educação brasileira Ensino fundamental é uma prioridade Papel da escola Acolhimento e socialização dos alunos Interação escola e comunidade Culturas locais e patrimônio universal Relações entre aprendizagem escolar e trabalho 2a PARTE Parâmetros Curriculares Nacionais A importância de um referencial curricular nacional para o Ensino Fundamental Abrangência nacional Níveis de concretização Estrutura organizacional dos Parâmetros Curriculares Nacionais Objetivos do Ensino Fundamental A contribuição das diferentes áreas de conhecimento Língua Portuguesa Matemática História Geografia Ciências Naturais Educação Física Arte Língua Estrangeira A abordagem de questões sociais urgentes: os Temas Transversais Ética Saúde Orientação Sexual Meio Ambiente Trabalho e Consumo Pluralidade Cultural A constituição de uma referência curricular Concepção de ensino e de aprendizagem Objetivos 73 Conteúdos Critérios de avaliação Orientações didáticas 3a PARTE Os Parâmetros Curriculares Nacionais e o projeto educativo da escola
115
O projeto educativo: concretização dos Parâmetros Curriculares Nacionais na escola Pontos comuns de trabalho da comunidade escolar Autonomia Interação e cooperação Atenção à diversidade Disponibilidade para a aprendizagem Organização do trabalho escolar Gestão do tempo Organização do espaço Seleção de recursos didáticos Decisões sobre avaliação 4a PARTE Escola, adolescência e juventude Adolescencia e juventude na sociedade atual Delimitação do período da juventude e situação legal Juventude: como é vista e vivida A construção de identidades e projetos Vivência da condição juvenil hoje A imagem social da juventude A entrada na juventude Família Trabalho Cultura Lazer e diversão Os estilos A importância de pertencer a Roupas e imagem corporal Mídia O espaço da rua Experimentação, comportamento de risco e transgressão Vida Pública e participação Escola A escola como espaço de construção de identidades e projetos A escola: uma referência importante para adolescentes e jovens Espaços específicos para reflexão sobre questões juvenis 5a PARTE Tecnologias da comunicação e informação Importância dos recursos tecnológicos na sociedade contemporânea Importância dos recursos tecnológicos na educação A tecnologia na vida e na escola Melhoria da qualidade de ensino e aprendizagem Potencialidades educacionais dos meios eletrônicos A televisão O videocassete A videogravadora A câmera fotográfica O rádio O gravador A calculadora O computador Alguns mitos e verdades que permeiam a comunidade escolar Bibliografia ( Brasil, 1998b)
116
Certamente, por sua brevidade, esta não pode ser uma análise conclusiva (e
sim apenas “indiciária”), mas o que as marcas acima parecem indicar é que a
concepção dos PCN, como um todo, aparentemente oscila entre um currículo
tradicional e um currículo pós-crítico, o que mais uma vez caracterizaria esses
documentos como fruto de numa tensão entre forças distintas.
Em termos específicos, o mesmo ocorre com o volume dos PCN de Língua
Portuguesa para 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries). Conforme tratamos neste capítulo e
na síntese do Capítulo 2, a adoção das noções de gêneros e de plurilingüismo como
centrais no documento está muito ligada à questão da universalização da escola e
da diversidade cultural e da cidadania, o que nos permite propor que o currículo de
Língua Portuguesa se inscreva numa linha pós-crítica. Por outro lado, como veremos
no capítulo de análise, há nesse documento elementos que o caracterizariam
também como pertencente a uma linha mais tradicional de currículo, reiterando o
que acima afirmamos em relação ao caráter da tensão que o constitui.
117
Capítulo 5 Análise de dados: os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos
(5ª a 8ª séries)
118
5 Análise de dados: os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries).
Tendo já apresentado tanto o contexto sócio-histórico de emergência dos
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (3º e 4º ciclos) – o que
responde a nossa primeira pergunta de pesquisa –, quanto alguns documentos com
os quais eles dialogam, vamos agora continuar nossa análise, partindo de uma
varredura do texto dos PCN feita com a ferramenta computacional Word Smith.
Primeiramente, iremos verificar quais são as palavras mais freqüentes do documento
– o que de certo modo já nos dará uma idéia do enfoque preferencial do texto. Em
seguida, utilizando os conceitos bakhtinianos de dialogismo, vozes,
intertextualidade, interdiscursividade, contexto de produção e interação autor-leitor,
vamos analisar essas e outras as palavras que fazem parte da rede semântica que
trama os enunciados do documento, a fim de começarmos responder as seguintes
perguntas anteriormente expostas no capítulo de metodologia65:
a) Qual é o leitor visado de cada um dos documentos?
b) Que vozes podem ser neles identificadas?
c) Que enfoque da noção de gêneros é o preferencialmente adotado?
5.1 As palavras mais freqüentes
A lista de palavras individuais que o WordSmith nos fornece a partir do texto
integral dos PCN é bastante extensa, pois nela figuram, além de substantivos e
adjetivos, todas as demais palavras pertencentes a cada uma das classes
gramaticais, com todas as suas flexões.
O total de entradas da lista é de 4.453 palavras, sendo que praticamente
metade delas tem apenas uma ocorrência (veja lista completa no CD anexo).
Conforme já havíamos anunciado em nosso capítulo de metodologia, como neste
momento o que mais nos interessa é buscar o tema do texto e considerando que
65 No caso deste capítulo, portanto, as respostas serão concernentes apenas aos PCN de Língua
Portuguesa 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries). As respostas relativas aos Parâmetros em Ação serão buscadas no capítulo seguinte.
119
substantivos e adjetivos são palavras essencialmente temáticas, retrabalhamos essa
lista e selecionamos inicialmente apenas os 15 substantivos e adjetivos mais
freqüentes66.
A lista resultante é a seguinte:
Substantivo / adjetivo Total
1. texto (s) 454
2. aluno (s) 254
3. linguagem (s) 154
4. leitura 143
5. língua 135
6. ensino 131
7. lingüística(s)(o)(os) 126
8. prática (s) 119
9. produção (ões) 117
10. diferente (s) 111
11. gênero (s)67 106
12. escrita (s) 100
13. conteúdo (s) 108
14. atividade (s) 97
15. oral (is) 93
Quadro 1 – Os quinze substantivos e adjetivos mais freqüentes nos PCN de Língua
Portuguesa 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries).
Representando praticamente 10% de todas as entradas da lista completa, a
palavra “texto(s)” é, com larga vantagem, a mais freqüente de todas. Isto comprova a
tendência que se percebe desde o fim da década de 1970 de se adotar o trabalho
com textos como eixo de ensino de Língua Portuguesa.
Bastante sintomática, portanto, é a grande diferença de freqüência entre a
palavra “língua” (presente 135 vezes no documento) e “texto” (454 vezes). Dois 66 Veja no Anexo 3 a lista com os substantivos e adjetivos com freqüência acima de dez. 67 O WordSmith registra 110 ocorrências da palavra “gênero(s)”, no entanto, por razões óbvias,
eliminamos quatro ocorrências nas quais o vocábulo não tinha a acepção de gênero textual/discursivo.
120
podem ser os prováveis fatores determinantes desse fato: o primeiro diz respeito à
própria história do ensino de Língua Portuguesa. Como vimos no Capítulo 2, a
continuidade dessa disciplina para além da fase de alfabetização dos alunos se dá
inicialmente com base nos métodos utilizados para ensino do Latim e, portanto,
adota-se como objeto prioritário de ensino a descrição normativa da língua e não a
sua utilização conforme ela ocorre realmente. Mais tarde, por volta da década de
1980, percebe-se a ineficiência, para a maior parte dos alunos, desse tipo de
abordagem e, embora sem abandoná-lo, passa-se a valorizar o ensino de língua
baseado em textos, tendência essa que vai se intensificando cada vez mais com o
passar do tempo, até chegar aos dias de hoje, com os PCN elegendo o texto como
“unidade básica de ensino” (p. 23).
O outro fator diz respeito à própria sugestão dos PCN acerca da forma de
organização didática que deve ser dada ao objeto de ensino-aprendizagem de
Língua Portuguesa, na qual se propõe que o eixo da REFLEXÃO lingüística esteja
subordinado ao eixo de USO (pp. 34 e 35). Isto significa subordinar a reflexão sobre
a língua ao seu uso efetivo em práticas sociais, ou seja, o que se sugere não é
deixar de se considerar a língua e suas formas de funcionamento, mas essa reflexão
deixa de ser central – e não necessariamente relacionada à gramática – passando a
servir de apoio para a construção de instrumentos que “possam ampliar a
competência discursiva do sujeito” (p.36).
O ensino de Língua Portuguesa deve se dar num espaço em que as práticas de uso da linguagem sejam compreendidas em sua dimensão histórica e em que a necessidade de análise e sistematização teórica dos conhecimentos lingüísticos decorra dessas mesmas práticas. (Brasil, 1998a: 34)
Considerando ainda as 15 palavras mais freqüentes, as palavras
“linguagem(ns)” (entrada 3) e “lingüística” (entrada 7) – com suas respectivas flexões
– também são léxico esperado num texto que trata de ensino de Língua
Portuguesa, principalmente em se tratando de um documento pós anos 80 do século
passado, quando as teorias lingüísticas passaram a ser incorporadas ao ensino de
língua materna.
Outra palavra presente na lista de mais freqüentes e que também reflete as
teorias e as práticas de ensino-aprendizagem de língua materna que passaram a
121
vigorar depois da década de 1980 é o adjetivo “diferente(s)” (entrada 10). Como já
tratamos anteriormente e retomamos no parágrafo acima, nessa época, com a
constatação do insucesso escolar de uma grande parcela de alunos, o foco
preferencial do ensino de língua materna migra da gramática para o texto. Tendo
como base a idéia de língua como um sistema de comunicação, acreditava-se então
que o contato com uma grande variedade de textos seria suficiente para que os
alunos adquirissem autonomia de leitura e escrita, fato que também depois foi
questionado e acabou por resultar nas propostas de ensino-aprendizagem a partir
da noção de gêneros textuais/discursivos.
Uma mostra de que nosso documento analisado está já a um passo além da
visão de ensino de Língua Portuguesa que vigorou até os anos 1990 – e, em
grande parte, vigora até hoje – é que o adjetivo “diferentes” aparece ali associado
não só à palavra “texto”, mas também, em igual medida, à palavra “gêneros”, como
é possível verificar no quadro de colocações abaixo.
n word total left right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5 1 diferente(s) 125 5 9 2 1 2 0 0 111 4 0 2 0 3 2 texto(s) 15 8 7 1 1 2 4 0 0 3 0 2 1 1 3 gêneros 8 1 7 0 1 0 0 0 0 6 0 0 1 0 4 formas 7 4 3 0 1 0 1 2 0 3 0 0 0 0 5 variedades 7 2 5 2 0 0 0 0 0 4 1 0 0 0 6 leitura 6 6 0 0 2 3 1 0 0 0 0 0 0 0 7 Social(is) 11 6 5 1 0 4 1 0 0 0 3 0 1 1 9 alunos 5 2 3 0 0 1 1 0 0 1 0 0 2 0 10 ensino 5 2 3 0 0 2 0 0 0 0 0 3 0 0 11 fala 5 1 4 1 0 0 0 0 0 0 0 3 1 0 12 lingüísticas 5 3 2 0 2 0 1 0 0 0 2 0 0 0 13 objetivos 5 1 4 1 0 0 0 0 0 3 1 0 0 0 14 situações 5 0 5 0 0 0 0 0 0 4 0 1 0 0
Quadro 2 – “Diferente(s)”: colocações mais freqüentes.
Como apontamos no Capítulo 2, sob o viés da educação para a cidadania, a
emergência da noção de gênero está também muito ligada à questão da
diversidade cultural, pois trabalhar com diferentes gêneros implica considerar
diversas esferas de produção e as relações sociais que dela fazem parte e que
determinam as diferentes formas textuais. Além disso, a adoção dos gêneros
122
textuais/discursivos como objeto de ensino-aprendizagem de língua materna não é
meramente uma opção teórico-metodológica, mas também é resultado de um
movimento em direção à universalização da escola, cuja efetivação depende, dentre
outros fatores, do fim do preconceito lingüístico, do reconhecimento de que cada
língua é, na realidade, formada por várias linguagens sociais – que forjam os
diferentes gêneros –, todas elas com igual valor.
Portanto, como vemos no quadro acima, além de “gêneros” e “textos”, a
associação do adjetivo “diferentes” a vocábulos como “formas”, “situações”,
“social/sociais” e “variedades”, “alunos”, “ensino” reflete esse objetivo de uma
educação aberta à diversidade cultural – e por isso mais inclusiva – e também
demonstra o avanço dos PCN em relação às teorias de ensino de língua materna do
início dos anos 1990, que já abordava a questão da diversidade de textos e de tipos
textuais, mas ainda não privilegiava a relação dos diferentes textos com seus
aspectos enunciativos e discursivos de produção.
Voltando aos dados do Quadro 1, em se tratando de um referencial curricular
que, como vimos no capítulo anterior, oscila entre o tradicional e o pós-crítico, não
surpreende a presença das palavras “aluno” (entrada 2) e “ensino” (entrada 6) e
atividades (entrada 14) entre as mais freqüentes. Porém, como aparentemente o
foco das propostas pedagógicas no documento parece estar centrado no aluno (pelo
menos é o que a alta freqüência da palavra “aluno” sugere), era de se esperar que a
palavra “aprendizagem” fosse mais freqüente do que “ensino”. Ao contrário, o que se
constata a partir da lista é que a palavra “ensino” (sexta mais freqüente) tem o dobro
de ocorrências em relação à palavra “aprendizagem” (vigésima sétima mais
freqüente). Em geral, considera-se que uma prática pedagógica centrada no aluno
dê ênfase à aprendizagem, enquanto que uma prática pedagógica centrada na
transmissão de conteúdos fale mais de ensino. A expectativa, portanto, seria que
paralelamente à palavra “aluno” viesse mais freqüentemente a palavra
“aprendizagem”, o que não ocorre. No entanto, comprovando nossa hipótese de que
deve haver relação entre as palavras aluno/aprendizagem e conteúdo/ensino, a
freqüência da palavra “conteúdo” não é tão menor do que a da palavra “ensino”,
estando ambas entre as 15 mais freqüentes do texto.
123
A menor freqüência da palavra “aprendizagem” talvez se dê pelo próprio
caráter normativo e às vezes tradicional do documento, muito mais voltado para a
sugestão de objetivos e conteúdos que devem ser trabalhados no ensino
fundamental do que com a forma de se trabalhá-los. Tanto é que, num texto de 98
páginas, as “orientações para um trabalho didático com os conteúdos” são
apresentadas apenas a partir do final da página 67. Antes disso, o texto do
documento trata de descrever os conteúdos a serem trabalhados e os objetivos a
serem alcançados, com poucas indicações da forma para se trabalhar com os
alunos.
Podemos ainda propor uma outra justificativa para o fato: as palavras
“atividades/atividade” (décima quarta mais freqüente) estariam de alguma forma
compensando a freqüência abaixo do esperado da palavra “aprendizagem”. Isto
porque as palavras “atividades/atividade” pressupõem um processo de ensino-
aprendizagem em que o aluno é elemento ativo, como bem se pode notar na
citação:
Pode-se considerar o ensino e a aprendizagem de Língua Portuguesa, como prática pedagógica, resultantes da articulação de três variáveis:
• o aluno; • os conhecimentos com os quais se opera nas práticas de
linguagem; • a mediação do professor.
O primeiro elemento dessa tríade – o aluno – é o sujeito da ação de aprender, aquele que age com e sobre o objeto de conhecimento. O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento lingüístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem. (...) Ao professor cabe planejar, implementar e dirigir as atividades didáticas, com o objetivo de desencadear, apoiar e orientar o esforço de reflexão do aluno, procurando garantir aprendizagem efetiva. (Brasil, 1998a: 22)
Por esta citação, percebe-se ainda que o aluno não é visto apenas como mais
um elemento da tríade do processo de ensino-aprendizagem; ele é também um ator
social. Assim, a ação do aluno sai do âmbito da atividade individual “com e sobre”
seu objeto de conhecimento e se transfere para a prática social. Logo, o objeto de
ensino é “o conhecimento lingüístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao
participar das práticas sociais mediadas pela linguagem. Isto também explica por
que a palavra “prática” é a oitava mais freqüente no documento.
124
Relembrando o que expusemos no Capítulo 1 ao tratarmos das propostas de
ensino de língua materna elaboradas pela equipe de Didática de Línguas da
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra,
parece que aqui reverberam suas articulações entre “práticas de linguagem” (ligadas
às práticas sociais em geral), “atividades” (como uma interface entre o sujeito e o
meio) e “gêneros” (instrumentos mediadores entre as práticas e as atividades, entre
o social e o individual). Assim, para os autores, as práticas de linguagem são sempre
socialmente situadas, sempre relacionadas ao uso. Passando por um processo de
cristalização cultural, as práticas são apropriadas pelo indivíduo e, nesse âmbito,
passam a ter status de “atividade”, cuja análise permite-nos uma visão
procedimental. Portanto, quando se fala em prática está-se referindo ao uso social
da linguagem, enquanto que, ao se falar de atividade, o tratamento é mais
procedimental, pois a atividade é a forma com que um sujeito pode atuar em relação
às práticas.
A alta incidência da palavra “prática(s)” também corresponde à concepção
mais sociológica de língua adotada pelo documento, segundo a qual
A língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é aprender não somente palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas (Brasil, 1998a: 20, ênfase adicionada).
Vejamos, então, as colocações da palavra “prática(s)”.
125
n word total left right l5 l4 l3 l2 l1 * r1 r2 r3 r4 r5
1 práticas 66 2 1 1 0 1 0 0 63 0 0 0 1 0
2 prática 61 2 3 0 1 0 1 0 56 0 1 0 1 1
3 linguagem 25 4 21 1 1 2 0 0 0 0 13 5 3 0
4 escuta 18 1 17 0 0 0 1 0 0 0 15 1 1 0
5 produção 18 2 16 0 0 0 1 1 0 0 10 1 1 4
6 textos 18 4 14 0 2 0 2 0 0 0 0 0 13 1
7 leitura 16 2 14 0 1 1 0 0 0 0 4 5 4 1
8 sociais 12 0 12 0 0 0 0 0 0 12 0 0 0 0
9 lingüística 11 2 9 0 0 2 0 0 0 0 0 8 1 0
10 orais 11 0 11 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 11
11 reflexão 11 7 4 1 0 5 0 1 0 0 2 1 1 0
12 análise 10 1 9 1 0 0 0 0 0 0 8 1 0 0
13 conteúdos 9 8 1 1 1 3 2 1 0 0 0 0 0 1
14 pedagógica 8 0 8 0 0 0 0 0 0 7 0 0 1 0
15 avaliação 5 4 1 1 1 0 2 0 0 0 0 1 0 0
16 discursivas 5 2 3 0 0 1 1 0 0 3 0 0 0 0
17 ensino 5 3 2 1 1 1 0 0 0 0 2 0 0 0
18 língua 5 2 3 1 0 1 0 0 0 0 0 0 2 1
19 texto 5 2 3 1 1 0 0 0 0 0 0 0 2 1
Quadro 3 – “Prática(s)”: colocações mais freqüentes.
Conforme acabamos de afirmar, segundo o documento, as propostas
didáticas devem estar baseadas nos usos efetivos da língua, nas práticas sociais de
linguagem. Conseqüentemente, refletindo uma visão mais sócio-histórica e
pragmática da língua, o quadro acima aponta que, em vez de simplesmente abordar
questões ou propostas didáticas descontextualizadas de escuta, produção ou leitura,
o que se sugere no documento são abordagens no âmbito das “práticas de
linguagem” (entrada 3 do quadro acima), ou seja, do uso social, situado, efetivo, da
língua, daí a também se falar em “práticas de escuta”, “práticas de leitura”, “práticas
de produção oral e escrita” e assim por diante.
Não é à toa, portanto, que a palavra “uso(s)” – embora não esteja entre as 15
mais freqüentes –, tenha, de qualquer forma, uma alta freqüência, aparecendo 58
vezes no documento (29ª entrada na lista das mais freqüentes), geralmente
126
acompanhada da palavra “linguagem”, como mostra o quadro de colocações a
seguir.
n word total left right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5 1 uso(s) 64 2 4 0 1 0 1 0 58 2 1 0 0 1 2 linguagem 20 0 20 0 0 0 0 0 0 0 11 8 0 1 6 reflexão 7 2 5 0 0 0 1 1 0 3 0 1 0 1 8 oral 6 0 6 0 0 0 0 0 0 1 1 1 2 1 9 eixo 5 5 0 0 0 1 0 4 0 0 0 0 0 0 10 língua 5 2 3 0 0 0 2 0 0 0 2 0 1 0
Quadro 4 – Uso(s): colocações mais freqüentes.
Paralelamente à acepção de língua tomada pelo documento, outra idéia
parece estar por trás da alta incidência da palavra “prática(s)”: a noção de
letramento. Como vimos no Capítulo 2, a idéia de letramento está muito ligada às
diferentes situações de uso da linguagem escrita. Daí falarmos de letramentos (no
plural) e da conveniência de se tomar a noção de gêneros como objeto de ensino.
Embora os PCN pouco se refiram ao termo “letramento” (uma das raras vezes
ocorre à página 19), com o que já expusemos até agora, parece fácil perceber que
esse conceito permeia todo o texto do documento.
Em termos de ensino de língua materna, uma das conseqüências da
transposição didática do conceito de letramento e da noção de gêneros (Barbosa,
2001a: 91) é a alteração das propostas curriculares, que passam de uma
abordagem mais procedimental de ensino para outra mais “conteudística”. Assim,
se a partir dos anos 1980 a ênfase dos currículos era dada às estratégias – sejam
de leitura (como antecipar, inferir, generalizar etc.) ou de produção (planejar, revisar,
descrever, narrar, dissertar) – , sob a abordagem do ensino de língua materna com
base na noção de letramento, passa-se a falar de práticas sociais de uso da
linguagem ou, em outras palavras, em “práticas de letramento”. Ou seja, passa-se a
valorizar o “saber sobre” as situações de produção de linguagem e os gêneros que
nelas circulam, além do “como” ler e produzir textos (“saber fazer”). Isto significa
que, se antes apenas as aulas de gramática tinham um conteúdo claro a ser
ensinado, agora as aulas de leitura e produção também o têm: os gêneros.
Eis então o grande diferencial entre as propostas dos PCN e aquelas das
secretarias estaduais e municipais das duas décadas anteriores (Barbosa, 2001a;
127
Marinho, 2001; Geraldi et al., 1996): estas davam ênfase aos procedimentos de
leitura e escrita; aquelas resgatam uma abordagem didática mais conteudística que
havia sido abandonada décadas antes, quando ensinar a gramática passou a ser
uma prática bastante criticada, embora ainda muito presente. Assim, com os PCN,
embora na leitura e produção de textos ainda se trate de procedimentos (tanto no
eixo do uso quanto no eixo da reflexão), a esses procedimentos somam-se questões
de conteúdo: as práticas sociais de linguagem, que podem ser traduzidas em termos
de gêneros discursivos/textuais. Ou seja, se antes apenas as aulas de gramática
tinham um conteúdo claro a ser trabalhado, agora, com uma abordagem voltada
para as práticas sociais, as aulas de leitura e produção também ganham um
conteúdo a ser estudado: os gêneros discursivos/textuais (Barbosa, 2001a).
Voltando ao Quadro 1, de palavras mais freqüentes, também podemos
perceber a grande importância dada à “leitura” de textos, evidenciada pela quarta
posição que a palavra ocupa na lista. Embora com uma freqüência um pouco menor,
a palavra “produção”, a nona mais freqüente, também aparece com destaque, o que
denota um certo equilíbrio entre propostas que envolvem as duas práticas.
De qualquer forma, é interessante notar essa maior ênfase dada à leitura.
Além da maior freqüência do vocábulo que a designa, outro indício da prioridade
dada às práticas de leitura são as grades de gêneros sugeridos pelos PCN (pp. 54 e
57) para serem trabalhados em aula. Como é possível observar adiante, na grade de
leitura e escuta vêm elencados muito mais gêneros do que na grade de produção.
129
(Brasil, 1998a: 57)
Estas grades demonstram que, de acordo com os PCN, há determinados
gêneros para os quais interessa formar exclusivamente leitores, enquanto há outros
para os quais interessa formar, concomitantemente, leitores e produtores. A
justificativa dada no documento é conforme segue:
A discrepância entre as indicações de gêneros apresentadas para a prática de escuta e leitura e para a prática de produção procura levar em conta os usos sociais mais freqüentes dos textos, no que se refere aos gêneros selecionados, pode-se dizer que as pessoas lêem muito mais do que escrevem, escutam muito mais do que falam. (Brasil, 1998a: 53)
Esta é uma constatação que demonstra uma inversão interessante em
relação às propostas curriculares tradicionais e mesmo às propostas analisadas no
Capítulo 1, subitem “O ISD e o ensino de língua materna: os gêneros de texto na
escola”. Como vimos, ao abordar o ensino de língua materna a partir da Teoria de
Gêneros Textuais, as propostas didáticas decorrentes acabam por privilegiar as
130
práticas de produção de texto, tratando da leitura mais como apoio/modelo para
essas práticas e ao mesmo tempo deixando de lado as contribuições das teorias
cognitivas de leitura e a possibilidade de se explorar a construção dos diferentes
sentidos de um texto.
De nossa parte, acreditamos que, em se tratando de uma proposta curricular
preocupada com questões de cidadania, faz sentido os PCN priorizarem a formação
do leitor – principalmente do leitor crítico – sem, evidentemente, deixar de lado o
desenvolvimento de capacidades de produção, já que é por meio delas que o
cidadão poderá atuar em termos de participação social. E é exatamente esse tipo de
leitor e produtor de textos – crítico e participativo – que está em pauta nos PCN. Por
exemplo, dentre os critérios de avaliação da aprendizagem propostos pelos PCN, há
um específico em relação à formação do leitor crítico:
Atribuir sentido a textos orais e escritos, posicionando-se criticamente diante deles. Espera-se que o aluno, a partir da identificação do ponto de vista que determina o tratamento dado ao conteúdo, possa confrontar o texto lido com outros textos e opiniões, posicionando-se criticamente diante dele. (Brasil, 1998a: 95, ênfase adicionada.)
O mesmo se pode notar com relação aos “valores e atitudes” que, segundo os
PCN, devem estar subjacentes às práticas de linguagem:
Posicionamento crítico diante de textos, de modo a reconhecer a pertinência dos argumentos utilizados, posições ideológicas subjacentes e possíveis conteúdos discriminatórios neles veiculados. (Brasil, 1998a: 64, ênfase adicionada)
No entanto, é bom deixarmos claro, mais uma vez, que cremos ter a produção
de textos papel também fundamental na formação do leitor crítico, uma vez que, ao
produzirmos nossos textos, podemos refletir e nos apropriar dos mecanismos de
produção de sentidos, os quais poderão ser de grande valia no processo de leitura e
reconstrução dos sentidos de textos alheios68.
Tratemos agora da palavra “escrita” (12ª entrada do Quadro 1). Para tanto,
vejamos o quadro de colocações seguinte:
68 Quanto a isso, confira Barbosa (2001a: 137-140).
131
N Word Total Left Right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5
1 escrita 99 0 0 0 0 0 0 0 99 0 0 0 0 0
2 linguagem 17 13 4 0 0 4 0 9 0 1 3 0 0 0
3 padrões 15 14 1 1 3 3 7 0 0 0 1 0 0 0
4 oral 14 14 0 0 1 0 13 0 0 0 0 0 0 0
5 fala 13 13 0 3 0 7 3 0 0 0 0 0 0 0
6 língua 12 8 4 1 1 3 0 3 0 0 1 2 0 1
7 leitura 10 8 2 0 0 5 3 0 0 0 1 0 0 1
8 modalidade 10 10 0 0 0 1 0 9 0 0 0 0 0 0
9 domínio 6 6 0 4 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0
10 função 5 1 4 0 1 0 0 0 0 0 2 1 1 0
Quadro 5 – “Escrita”: colocações mais freqüentes.
Como se pode notar, o vocábulo “escrita” se apresenta, na maioria das vezes,
adjetivando a palavra “linguagem”. Em seguida, surge associado ao substantivo
“padrões”, o que de certa forma sugere uma preocupação dos PCN com um trabalho
voltado para os padrões da linguagem escrita. Ressalte-se, porém, que a palavra
“padrões” está no plural, o que indica que provavelmente o que se propõe não é um
trabalho pasteurizador como se houvesse apenas um padrão para a escrita, mas
sim um trabalho com diferentes padrões relacionados a diferentes circunstâncias de
uso, como bem demonstra a citação a seguir:
É enorme a gama de variação e, em função dos usos e das mesclas constantes, não é tarefa simples dizer qual é a forma padrão (efetivamente, os padrões também são variados e dependem das situações de uso). Além disso, os padrões próprios da tradição escrita não são os mesmos que os padrões de uso oral, ainda que haja situações de fala orientadas pela escrita. (Brasil, 1998a: 82, ênfase adicionada)
Vemos, portanto, a consideração tanto de diferentes padrões de escrita
quanto de fala, reforçando o que dissemos logo acima acerca da importância de se
tratar das variedades lingüísticas se desejamos o fim do preconceito lingüístico e
uma educação mais inclusiva.
Pelo Quadro 5, é possível perceber ainda que, com uma freqüência bastante
próxima à da palavra “padrões”, aparecem as palavras “oral” e “fala”. A partir do que
132
se denominou de modelo autônomo de letramento, num primeiro momento,
poderíamos pensar em uma contraposição entre escrita x oral/fala. No entanto,
olhando-se mais de perto o texto dos PCN, vemos uma abordagem bastante
próxima daquela apresentada no Capítulo 2, quando falamos do modelo ideológico
de letramento (ou do chamado letramento social) e da não dicotomia entre a
linguagem oral e a escrita. A citação abaixo, retirada do quadro de “Objetivos gerais
de Língua Portuguesa para o ensino fundamental”, à página 32 do documento, é
exemplo disso:
Para isso, a escola deverá organizar um conjunto de atividades que, progressivamente, possibilite ao aluno:
• utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na leitura e produção de textos escritos de modo a atender a múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos, e considerar as diferentes condições de produção do discurso. (Brasil, 1998a:, p. 32, ênfase adicionada)
Percebe-se aí que a importância dada à leitura e produção de textos escritos
equivale à dada aos textos orais.
Apenas para se ter uma idéia da relevância que se dá ao trabalho com a
linguagem oral no documento, nota-se no quadro de colocações abaixo que, das
260 vezes em que a palavra “textos” aparece no documento analisado, em 46 vezes
(coluna R1) ela está imediatamente seguida do adjetivo “orais”.
n word total left right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5
1 textos 294 17 17 10 4 2 1 0 260 1 1 2 4 9
2 orais 65 12 53 5 5 2 0 0 0 46 4 1 1 1
3 escritos 58 11 47 3 4 3 0 1 0 27 0 15 3 2
4 produção 57 49 8 2 3 0 44 0 0 0 0 2 5 1
5 leitura 40 27 13 1 9 1 15 1 0 0 1 7 4 1
6 escuta 33 29 4 8 4 2 15 0 0 0 1 1 2 0
7 gêneros 17 1 16 0 1 0 0 0 0 0 4 5 4 3
8 prática 13 11 2 1 10 0 0 0 0 0 2 0 0 0
9 texto 12 10 2 2 1 6 1 0 0 0 0 1 0 1
10 aluno 11 10 1 3 2 1 4 0 0 0 0 0 0 1
11 alunos 11 4 7 1 1 0 2 0 0 0 2 3 1 1
12 análise 11 4 7 1 2 1 0 0 0 1 2 1 2 1
133
13 produzidos 10 1 9 0 1 0 0 0 0 7 0 1 0 1
14 refacção 9 7 2 0 2 0 5 0 0 0 0 0 0 2
15 diferentes 8 5 3 0 1 1 0 3 0 0 0 2 1 0
16 processo 8 6 2 1 5 0 0 0 0 0 0 0 2 0
17 seleção 8 8 0 2 1 0 5 0 0 0 0 0 0 0
18 lingüística 7 3 4 1 1 0 0 1 0 0 0 2 0 2
19 atividade 6 1 5 1 0 0 0 0 0 0 0 2 1 2
20 compreensão 6 5 1 0 0 0 5 0 0 0 0 1 0 0
21 diversos 6 3 3 1 0 0 0 2 0 1 1 1 0 0
22 situações 6 1 5 1 0 0 0 0 0 0 2 1 0 2
23 acesso 5 5 0 0 1 1 3 0 0 0 0 0 0 0
24 atividades 5 4 1 0 4 0 0 0 0 0 0 0 1 0
25 conteúdos 5 2 3 2 0 0 0 0 0 0 0 0 3 0
26 escola 5 3 2 2 1 0 0 0 0 0 0 1 0 1
27 leitor 5 4 1 0 0 0 4 0 0 0 0 1 0 0
28 linguagem 5 2 3 0 2 0 0 0 0 0 1 0 2 0
29 modo 5 0 5 0 0 0 0 0 0 0 0 3 1 1
30 oral 5 1 4 0 1 0 0 0 0 0 0 1 2 1
31 orientada 5 4 1 1 0 1 2 0 0 0 0 0 1 0
32 práticas 5 3 2 0 3 0 0 0 0 0 0 0 2 0
Quadro 6 – “Textos”: colocações mais freqüentes.
A inclusão da linguagem oral dentre os conteúdos a serem tratados nas aulas
de Língua Portuguesa é algo muito novo em termos curriculares. A partir das últimas
décadas do século passado, com a adoção de metodologias construtivistas e a
valorização de uma aula mais dialogada, a linguagem oral veio ganhando espaço na
sala de aula. Assim, passa a ser comum ver uma abertura maior para a discussão
oral de temas ou para a construção de conceitos de forma dialogada, sempre
utilizando uma linguagem mais informal, cotidiana. No entanto, conforme apontado
no Capítulo 2, pesquisas acerca de letramento e a consideração de que, dentre os
gêneros secundários, também há os que se materializam na forma oral levaram a
avaliação acerca da linguagem oral a um outro patamar.
A noção de gêneros, portanto, incrementa a discussão sobre o oral. E uma
das conseqüências disso é, por exemplo, trabalhos que descrevem diferentes
gêneros orais, permitindo que as discussões vão além da simples abordagem das
diferenças entre como se fala e como se escreve.
134
Assim, o que se propõe nos PCN não é a simples utilização da linguagem oral
cotidiana na sala de aula nem o ensino de qualquer modalidade do oral. Como o que
se pretende é uma educação inclusiva e para o “exercício da cidadania”, os PCN
optam por trabalhar os gêneros públicos formais em norma culta. A justificativa que
se dá a essa opção é a seguinte:
No entanto, nas inúmeras situações sociais do exercício da cidadania que se colocam fora dos muros da escola, (...) os alunos serão avaliados (em outros termos, aceitos ou discriminados) à medida que forem capazes de responder a diferentes exigências de fala e de adequação às características próprias de diferentes gêneros do oral. (...) Dessa forma, cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e realização de apresentações públicas: realização de entrevistas, debates, seminários, apresentações teatrais etc. Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, pois é descabido treinar um nível mais formal da fala, tomado como mais apropriado para todas as situações. (Brasil, 1998a: 25)
Até aqui, tecemos alguns comentários acerca de 14 das 15 palavras mais
freqüentes em todo o texto dos PCN. Com essa rápida análise, foi-nos possível
apresentar, mesmo que apenas em linhas gerais, alguns dos principais temas que
circulam no documento.
Passemos agora a tratar de nosso objeto principal de observação, relativo à
única palavra da lista de mais freqüentes ainda não analisada: a noção de gênero.
5.2 A adjetivação da palavra “gênero(s)” ou o gênero como adjetivo
Como se pode notar a partir do Quadro 1, a palavra “gênero(s)” ocupa a
décima primeira colocação na lista de palavras mais freqüentes do texto dos PCN, o
que indica a grande importância dada ao tema no documento. Lembrando da
distinção que fizemos entre as abordagens mais discursivas e as mais textuais da
noção de gênero no Capítulo 1 e considerando a terceira pergunta de pesquisa
exposta no início deste capítulo69, o que nos interessa agora, portanto, é investigar
que noção de gênero prevalece nos PCN.
Comecemos pelo quadro de colocações mais freqüentes da palavra
“gênero(s)”:
69 Que enfoque da noção de gêneros é o preferencialmente adotado em cada um dos documentos?
135
n word total left right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5
1 gênero70 54 0 1 0 0 0 0 0 53 1 0 0 0 0
2 gêneros 53 0 0 0 0 0 0 0 53 0 0 0 0 0
3 texto(s) 31 22 9 4 4 7 7 0 0 0 5 0 2 2
4 diferentes 11 8 3 0 1 1 0 6 0 0 0 0 2 1
5 oral(ais) 10 5 5 1 1 1 2 0 0 0 3 1 0 1
6 suporte 9 0 9 0 0 0 0 0 0 0 4 5 0 0
7 características 8 8 0 1 1 1 5 0 0 0 0 0 0 0
8 diversidade 7 5 2 0 1 0 4 0 0 0 0 0 1 1
9 especificidades 7 7 0 0 1 1 5 0 0 0 0 0 0 0
10 previstos 7 0 7 0 0 0 0 0 0 5 1 1 0 0
11 função 6 4 2 1 2 0 1 0 0 0 1 1 0 0
12 produção 5 2 3 0 0 0 0 2 0 0 0 0 1 2
Quadro 7 – “Gênero(s)”: colocações mais freqüentes.
A partir desse Quadro, percebe-se que “texto(s)” é o vocábulo mais
freqüentemente próximo à palavra “gênero(s)”, seguido de “diferentes”, “orais”,
“suporte”, “características”, “diversidade”, “especificidades”, “previstos”, “função” e
“produção”.
O que se pode depreender das palavras que com maior freqüência gravitam
em torno do vocábulo gênero é que o tratamento didático proposto nos PCN
pressupõe, como já vimos, um trabalho com uma diversidade de textos e gêneros
(daí a grande incidência das palavras “diferentes” e “diversidade”), em que os
gêneros orais são considerados com bastante ênfase71. Trata-se também de
descrever e levar em conta as “características” dos gêneros de antemão “previstos”
para estudo, considerando as suas “especificidades” e as de seu “suporte”. Logo os
procedimentos de leitura e produção sugeridos pelo documento pressupõem uma
adequação tanto às características do gênero quanto às do suporte. Nesse sentido,
fala-se de “restrições impostas pelo gênero e pelo suporte” (p.28).
70 Eliminamos daqui as quatro ocorrências em que a palavra gênero é utilizada em acepção diferente
de gênero textual/discursivo. 71 Tal ênfase se dá pelos motivos já tratados por nós neste capítulo e provavelmente também por
causa da novidade da proposta de se trabalhar com gêneros orais.
136
Se o gênero impõe restrições, os textos deverão ser produzidos obedecendo
a elas. Isto explica o fato de a palavra “função”, na grande maioria das vezes, estar
compondo a expressão “em função de”. Com relação à palavra “gênero”, trata-se
então de chamar a atenção principalmente para os procedimentos de leitura e
produção de texto que devem ser trabalhados em função das características (p.55)
/das exigências (p.52) /do caráter convencional (p.69) /das especificidades (pp. 38 e
74) do gênero.
É interessante notar que, apesar do evidente diálogo mantido entre a visão de
língua no documento e as teorias bakhtiniana de linguagem, e apesar de o
agrupamento de gêneros proposto no documento ter sido feito não a partir de
critérios tipológicos, mas por esferas de circulação, praticamente não se aborda –
pelo menos não de forma sistemática – a questão da influência das esferas de
atividade na constituição dos gêneros e, conseqüentemente, dos textos. Em vez
disso, dá-se grande relevo à questão do suporte.
Ainda que consideremos que uma abordagem mais clara da questão das
esferas fosse algo que devesse ter mais relevo nesses PCN72, o destaque dado à
questão do suporte não deixa de ser interessante, pois permite que se pense na
influência de aspectos extra-lingüísticos na leitura e produção de textos não só em
relação às esferas mas também em relação ao possível diálogo entre diferentes
linguagens. Por exemplo, ao tratar de textos jornalísticos, a consideração da esfera é
fundamental, mas o fato de o jornal ser um suporte multimídia – em que imagens
dialogam com os textos – também vai determinar diferentes estratégias de leitura e
produção de textos, o que implica que, na área de Língua Portuguesa, se passe a
trabalhar com diversas linguagens, verbais e não-verbais.
Um fato que cabe aqui destacar em relação à palavra “texto(s)” é que há
apenas 5 ocorrências desse vocábulo na posição R2, que seria a esperada para a
expressão “gênero(s) de texto(s)”.
72 Quanto a esse tema, ver Barbosa (2001: 167-169).
137
O quadro de concordâncias da palavra “gênero(s)” poderá nos dar mais
informações sobre essas colocações73. Observemos inicialmente apenas as
expressões iluminadas com a cor azul (entradas número 28, 70, 73, 76 e 95):
N Concordance:
1 ainda que venham incluindo textos de diversos gêneros, ignoram a diversidade e
2 aos usos da linguagem característicos do gênero e a suas regras de funcionamento.
3 ento do objeto de ensino: o texto como unidade e a diversidade de gêneros
4 OBJETO DE ENSINO: O TEXTO COMO UNIDADE E A DIVERSIDADE DE GÊNEROS
5 Isso tudo determina as escolhas do gênero no qual o discurso se realizar·, dos
6 apresentados anteriormente. GÊNEROS SUGERIDOS PARA A PRÁTICA DE PRODUÇÃO
7 alunos têm menos acesso a esses gêneros nos usos espontâneos da linguagem oral
8 ï Escuta de textos orais: compreensão dos gêneros do oral previstos para os ciclos
9 ï Redigir textos na modalidade escrita nos gêneros previstos para o ciclo, considerando as
10 a seleção de textos deve privilegiar textos de gêneros que aparecem com maior freqüência
11 ï Escuta orientada de diferentes textos gravados de um mesmo gênero, produzidos em
12 sugere outros títulos do mesmo autor, tema ou tipo. Dependendo do gênero selecionado,
13 pessoal, entretenimento, realização de tarefa) e a características do gênero e suporte. Espera-se que o aluno seja capaz de ajustar su
14 pessoal, entretenimento, realização de tarefa) e das características do gênero e suporte: * leitura integral: fazer a leitura seqüenciada e ext
15 atividade mais ou menos complexa para o sujeito: a familiaridade com o gênero, a maior ou
16 e de suas especificidades no interior do gênero; ï estabelecimento da progressão temática
17 de fatores geográficos, socioeconômicos, de faixa etária, de gênero (sexo), da relação
18 usos sociais que os determinam. Os gêneros são, portanto, determinados historicamente
19 especificidades das situações de comunicação ñ os gêneros nos quais os discursos se
20 Significa desenvolver o domínio dos gêneros que apóiam a aprendizagem escolar de
21 e do suporte) e selecionar, a partir disso, os gêneros adequados para a produção do texto
22 considerados os seguintes aspectos: as especificidades do gênero, os papéis assumidos pelos interlocutores na situação
23 Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das intenções
24 ï conteúdo temático: o que é ou pode tornar-se dizível por meio do gênero; ï construção
25 Os textos submetem-se às regularidades lingüísticas dos gêneros em que se organizam e
26 uma atividade de reflexão sobre aspectos próprios do gênero que ser· produzido e de suas relações com o suporte
27 recursos expressivos recorrentes no interior de cada gênero; * reconhecimento das marcas
28 ï Reconhecimento das características dos diferentes gêneros de texto, quanto ao conteúdo
29 um gênero prototípico que permitiria ensinar todos os gêneros em circulação social. A SELEÇÃO DE TEXTOS Os gêneros
30 mas também pelo fato de que textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de diferentes formas.
31 a ampliação de sua visão de mundo, na qual se incluem questões de gênero, etnia, origem
32 (diferentes quadros pronominais em função do gênero): preenchimento da posição de sujeit
33 Portanto, é preciso priorizar os gêneros que merecerão abordagem mais aprofundada.
73 Para satisfazer ao leitor curioso, mantivemos neste quadro as quatro ocorrências da palavra
gênero em acepção diferente de gênero textual/discursivo (entradas 17, 31, 37, 87).
138
34 atividades de leitura, pode-se, temporariamente, eleger um gênero específico, um
35 estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto,
36 definidas pelo caráter altamente convencionalizado dos gêneros, como nos requerimentos
37 históricos (linguagem do passado e do presente), sociológicos (gênero, gerações , classe
38 construção composicional: estrutura particular dos textos pertencentes ao gênero;
39 textos a um tratamento uniforme. Para considerar a diversidade dos gêneros, não ignorando a diversidade de recepção
40 consideradas as especificidades do gênero no qual o texto se organiza e do suporte.
41 representação de textos teatrais ou de adaptações de outros gêneros, permitindo explorar,
42 edição de textos orais para apresentação, em gênero da modalidade escrita
43 coerentes e coesos, observando as restrições impostas pelo gênero. Espera-se que o
44 de produção, à destinação, finalidades e objetivos do texto e ao gênero e suporte.
45 o texto de autoria do aluno: para poder mapear o que sabe sobre o gênero que está sendo
46 conhecimentos familiares, tanto no que se refere ao gênero quanto ao tema abordado. ï Compreender textos a partir do
47 sucessivos aprofundamentos, tanto no que diz respeito aos gêneros textuais privilegiados
48 os usos sociais mais freqüentes dos textos, no que se refere aos gêneros selecionados,
49 pressupondo níveis diferenciados de domínio do gênero. Pode-se tanto priorizar aspectos a
50 A presença nessas situações permite, conforme o gênero, interessantes articulações com a produção de textos orais
51 especificidades que a modalidade escrita assume nos diversos gêneros, a partir de textos
52 espaço, o tempo, os interlocutores e seu lugar social, os objetivos, o gênero) e,
53 Imago, 1995. __________. Literatura e redação: os gêneros literários e a tradição oral. São Paulo: Scipione, 1994. MA
54 A grande diversidade de gêneros, praticamente ilimitada, impede que a escola trate todos
55 Produzir textos orais nos gêneros previstos para o ciclo, considerando as especificidades
56 seleção, adequada ao gênero, de recursos discursivos, semânticos e gramaticais, prosódi
57 d) isolem os diferentes componentes do gênero a ser trabalhado e organizem o ensino dos
58 adequados a diferentes objetivos e interesses, e a características do gênero e suporte;
59 à disposição dos alunos, inclusive para empréstimo, textos de gêneros variados,
60 identificação das formas particulares dos gêneros literários do oral que se distinguem do
61 procedimentos de participação em função do caráter convencional do gênero:
62 restrições de conteúdo e forma decorrentes da escolha dos gêneros e suportes.
63 textos considerando as finalidades estabelecidas, as especificidades do gênero e do
64 condições de produção : * finalidade; * especificidade do gênero; * lugares preferenciais
65 54 GÊNEROS PRIVILEGIADOS PARA A PRÁTICA DE
66 forma e ao conteúdo do texto em função das características do gênero, do suporte, do
67 apoiando-se em seus conhecimentos prévios sobre gênero, suporte e universo temático,
68 padrões da escrita em função das exigências do gênero e das condições de produção
69 descrição dos elementos regulares e constitutivos do gênero quanto das particularidades do texto selecionado
70 Discurso e suas condições de produção, gênero e texto Interagir pela linguagem significa
71 Produção de textos orais e escritos, são sugeridos alguns gêneros como referência básica
72 condições de produção do discurso e as restrições impostas pelo gênero e pelo suporte.
73 19 Discurso e suas condições de produção, gênero e texto . 20 Aprender e ensinar Língua
74 lingüísticos de coerência e coesão textuais, conforme o gênero e os propósitos do texto,
139
75 Campinas: Papirus, 1994. DOLZ, J. e SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em re
76 do universo discursivo dentro do qual cada texto e gêneros de texto se inserem
77 texto em função dos objetivos colocados, do leitor, das especificidades do gênero e do
78 a discrepância entre as indicações de gêneros apresentadas para a prática de escuta e
79 pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino
80 entrevista, debate etc.) e, também, os gêneros da vida pública no sentido mais amplo do
81 a constituição de um corpus de textos orais correspondentes aos gêneros previstos, a
82 a produção oral e escrita de textos pertencentes a diversos gêneros, supõem o
83 determinações do gênero e das condições de produção do texto (maior ou menor
84 passagem gradual da leitura esporádica de títulos de um determinado gênero, época,
85 leia, de maneira autônoma, textos de gêneros e temas com os quais tenha construído familiaridade
86 coletânea de textos de um mesmo gênero (poemas, contos), livro sobre um tema
87 marcas de variação lingüística ligadas a gênero, gerações, grupos profissionais, classe
88 agrupados, em função de sua circulação social, em gêneros literários, de imprensa,
89 durante as aulas dão conta das múltiplas exigências que os gêneros do oral colocam,
90 não funcionam da mesma maneira nos diversos gêneros e nem produzem os mesmos
91 leitura de texto, por exemplo, a estipulação da leitura de um mesmo gênero por alunos de
92 preciso abandonar a crença na existência de um gênero prototípico que permitiria ensinar todos os gêneros em circulação
93 ofereçam um corpus de textos organizados nos gêneros previstos como referência
94 A noção de gênero refere-se, assim, a famílias de textos que compartilham
95 O mesmo se pode dizer sobre o conteúdo e a forma dos gêneros de texto escrito.
96 interlocução que contemplem as especificidades dos diferentes gêneros previstos, tais
97 em função da situação de comunicação e das especificidades do gênero, como,
98 ï Demonstrar compreensão de textos orais, nos gêneros previstos para o ciclo, por meio
99 apropriar-se das características discursivas e lingüísticas dos gêneros estudados, ao produzir seus próprios textos.
100 adequação às características próprias de diferentes gêneros do oral.
101 ï elaborar atividades sobre aspectos discursivos e lingüísticos do gênero priorizado, em
102 apropriação das características do gênero. As possibilidades de aprendizagem dos alunos,
103 interessantes para o ensino e a aprendizagem de um determinado gênero: ï permite que o
104 (modos de garantir a continuidade temática nos diferentes gêneros, operadores específicos
105 a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em função de sua relevância social
106 os gêneros em circulação social. A SELEÇÃO DE TEXTOS Os gêneros existem em
107 será apresentada a tabela que organiza os gêneros privilegiados para o trabalho,
108 de textos orais e escritos, será apresentada a tabela que organiza os gêneros privilegiados
109 familiaridade que tiver construído com a leitura de textos do gênero. É tarefa de todo
110 a freqüentação a diferentes textos de diferentes gêneros é essencial para que o aluno
Quadro 8 – “Gênero(s)”: concordâncias.
A partir deste quadro, podemos perceber que, das 5 ocorrências da palavra
“texto(s) na posição R2, duas correspondem à expressão “gêneros e textos”
140
(entradas 70 e 73) e apenas três são compostas pela expressão “gêneros de texto”
(entradas 28, 76 e 95).
Outro dado relevante a se observar no Quadro 8 é a existência de uma única
ocorrência do adjetivo “textual(is)” imediatamente seguido da palavra “gênero(s)”,
formando a expressão “gêneros textuais” (entrada 65 do quadro acima). Já a
adjetivação “do discurso” ou “discursivo(s)” não se aplica nenhuma vez à palavra
“gênero(s)”.
Mais um dado interessante a notar em relação à posição da palavra “texto(s)”:
apesar de ela ser a mais freqüentemente próxima ao vocábulo “gênero(s)”, das 31
vezes em que ocorre próxima a este, 22 vezes ela surge à esquerda e apenas nove
vezes à direita e, mesmo assim, quatro delas em posição afastada (R4 e R5). Ou
seja, considerando que em português os adjetivos comumente ocorrem à direita dos
substantivos, em poucas ocorrências a palavra “texto(s)” aparece numa posição de
adjetivação em relação ao vocábulo “gêneros”, como inicialmente esperávamos.
Ao contrário, a posição à direita na qual ocorre palavra “gêneros” é que
denota uma relação de interdependência na qual o termo modificado ou restringido é
exatamente o vocábulo “texto”, o que se pode notar, por exemplo, nas expressões
“textos pertencentes a diferentes gêneros” (entrada 30 do quadro acima), “textos
pertencentes ao gênero” (entrada 38), “textos orais nos gêneros previstos” (entrada
55)74. Tal relação também parece indicar a intenção de se dar mais ênfase ao texto
do que ao gênero como objeto de ensino.
Tal fenômeno provavelmente decorre da eleição do texto como unidade
básica de ensino:
Dentro desse marco, a unidade básica de ensino só pode ser o texto. (Brasil, 1998a: 23)
74 No quadro de concordâncias acima, destacamos com um sombreado mais alguns segmentos de texto dos PCN em que esse posicionamento acontece.
141
Mas não é qualquer tipo de trabalho com o texto que se propõe: o que se
percebe pelas concordâncias acima é que o trabalho deve ser desenvolvido a partir
da relação que o texto estabelece com o gênero a que pertence, ou seja, o texto em
função do gênero e suporte. Isto provavelmente se dá pois os gêneros são produto
de processos sócio-históricos e, portanto, os usuários da língua não produzem
individualmente gêneros, mas textos que pertencem a um gênero sócio-
historicamente já conformado.
A baixa ocorrência da palavra “texto(s)” em posição de adjetivação nos
mostra, afinal, que há uma tendência ao apagamento da adjetivação do vocábulo
“gênero(s)”. Podemos levantar duas hipóteses para o fato.
A primeira delas diz respeito ao caráter exclusivamente acadêmico da
discussão da diferença existente entre gêneros discursivos e gêneros textuais. Em
geral, fora do âmbito da discussão teórico-acadêmica, ou seja, quando se está
propondo uma transposição didática das teorias de gêneros, opta-se por uma
indistinção dos termos, já que o que importa, e todos concordam, é a possibilidade
de se tomarem os gêneros como objeto de ensino. Assim, da mesma forma que
ocorre nos textos de divulgação elaborados para professores não pertencentes à
academia, os PCN – cujos destinatários são, entre outros, também os professores75
–, acabam por aderir a essa escolha de apagamento da adjetivação ou optam pela
expressão “gêneros de texto”, por parecer mais familiar, portanto de significado mais
acessível do que “gêneros discursivos” 76.
75 Há discussões acerca de quem seriam os destinatários dos PCN. A princípio, por se tratar de um
documento legal, ou pelo menos regulador, seus destinatários deveriam ser aqueles que elaboram as políticas públicas de ensino. Por outro lado, a carta do ministro Paulo Renato dirigida aos professores instaura aí uma diferente interlocução. Segundo Gomes-Santos (2004: 158), os PCN se caracterizariam por estar na fronteira entre as instâncias acadêmico-científica, político-legal e didático-pedagógica, o que determinaria três diferentes modos de interlocução e, portanto, diferentes interlocutores.
76 De acordo com Gomes-Santos (2004: 178), a não-explicitação das correntes teórico-disciplinares a que se vinculam os objetos de saber acadêmico-científicos mencionados nos PCN é um dos recursos utilizados para que o documento se preserve “da eventual aversão, por parte do interlocutor-professor, aos discursos tipicamente teóricos e institucionais”. Marinho (2001: 23), de certa forma, também fala dessa resistência dos professores, não aos termos acadêmicos, mas aos discursos oficiais.
142
Os exemplos abaixo, retirados de livros destinados aos professores, deixam
bem clara a opção por uma indistinção entre termos “gênero textual” (ou “de texto”) e
“gênero discursivo” (ou “do discurso”).
Atualmente, sem dúvida alguma, um desses objetos, cuja pertinência é quase consensualmente aceita é exatamente o gênero (de texto ou de discurso, de acordo com a teoria adotada). Evidência do que afirmamos pode ser depreendida na leitura dos novos Parâmetros Curriculares Nacionais para Língua Portuguesa, para terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, nos quais se afirma que “a noção de gênero, enquanto constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino”’. (Bräkling et al, 1998: 13, apud Gomes-Santos, 2004: 118, grifo nosso)
Aceitando-se o conceito “gênero discursivo” ou “gênero textual”, o que se constata é que a lingüística aplicada, preocupada com o ensino de língua materna, defende a idéia de que se deve favorecer o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos. (Bezerra, 2002: 41, grifo nosso)
A segunda hipótese diz respeito ao próprio caráter da autoria dos PCN. Tanto
Marinho (2001) quanto Gomes-Santos (2004: 156) concordam que – por seu caráter
de documento oficial, por ter como objetivo a tentativa de busca de consenso, de
diluição dos conflitos de posicionamentos (Marinho, 2001: 21) e pela forma coletiva
de sua elaboração –, a autoria dos PCN acaba por ficar tão difusa que o resultado é
o próprio apagamento da autoria.
Dentro desse processo “conciliatório”, é de se esperar que a discussão que
ocorre na academia entre as duas formas de se pensar a noção de gêneros também
fosse relativizada por meio do apagamento da adjetivação do conceito.
Sendo, portanto, de certa forma proposital, a baixa incidência de adjetivação
da palavra “gênero(s)” não nos dá de imediato pistas consistentes sobre tratamento
preferencial dado à noção de gêneros nos PCN, porém, como nem sempre os
temas, as intenções do locutor e sua ideologia apresentam-se de forma explícita nos
enunciados, isto não significa que o conceito, conforme é tomado no documento,
não se aplica a nenhuma das tendências, sejam textuais ou discursivas.
Propomos então continuar nossa análise observando de que forma se
comportam isoladamente os adjetivos “textual(is)”, “discursivo(s)” e “discursiva(s)” no
documento.
143
Com 57 ocorrências, o adjetivo “discursivo”, com todas as suas flexões
(discursivos, discursiva, discursivas), ocupa a trigésima posição na nossa lista de
substantivos e adjetivos mais freqüentes no texto dos PCN77. Do total de
ocorrências, a forma “discursivo” aparece 4 vezes; “discursivos”,10 vezes;
“discursivas”,14 e “discursiva”, 29.
Com relação aos adjetivos “textual” e “textuais”, a freqüência é bem mais
baixa: cada uma das formas ocorre 11 vezes, totalizando, portanto, 22 ocorrências.
Para darmos conta dos significados gerados pelos adjetivos em questão,
tratemos antes de investigar que sentido é dado, nos PCN, às palavras “discurso” e
“texto”, de onde estes adjetivos derivam.
5.3 As noções de discurso e de texto no documento
Na primeira parte do documento, há o item – Discurso e suas condições de
produção, gênero e texto – onde parece haver a definição adotada para os
conceitos de discurso e de texto:
Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução. Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são aleatórias – ainda que inconscientes –, mas decorrentes das condições em que o discurso é realizado. (Brasil, 1998a: 20, ênfase adicionada)
Em outras palavras, o discurso é o resultado de uma “atividade discursiva”, ou
seja, de uma atividade de interação por meio da linguagem em que as circunstâncias
na qual essa interação se insere é fator determinante. Portanto, ao se falar de
discurso, é impossível desconsiderar os fatores históricos e extra-lingüísticos
determinantes de sua produção. Tal visão de discurso coincide com a visão
bakhtiniana da linguagem segundo a qual a língua e os gêneros estão em constante
evolução, acompanhando as transformações históricas que ocorrem nas relações
sociais :
77 Ver tabela no Anexo 3.
144
Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal dessa comunicação global em perpétua evolução. (Bakhtin, 1929: 124).
Um pouco mais adiante, na própria página 21 dos PCN, texto é definido como
a manifestação lingüística do discurso:
O discurso, quando produzido, manifesta-se lingüisticamente por meio de textos. (Brasil, 1998a: 21)
Dessa forma, o texto, assim como o discurso, também pode ser definido como
“produto da atividade discursiva”, o que pode levar à confusão entre os dois termos.
Mas por ser uma “manifestação lingüística” parece que o texto ganha uma
materialidade que o discurso não possui. Tal diferenciação entre um e outro termo
fica ainda mais clara quando “texto”, um pouco adiante, recebe outra definição, como
sendo uma seqüência verbal constituída por um conjunto de relações que se
estabelecem a partir da coesão e da coerência (Brasil, 1998a: 21). Definição essa,
aliás, bastante semelhante à de Bronckart, que diz:
Numa primeira acepção, muito geral, a noção de texto pode ser aplicada a toda e qualquer produção de linguagem situada78, oral ou escrita. (...) Nesse primeiro sentido, portanto, a noção de texto designa toda unidade de produção de linguagem que veicula uma mensagem lingüisticamente organizada e que tende a produzir um efeito de coerência sobre o destinatário. (Bronckart, 1997: 71)
Assim, de acordo com os PCN, texto é manifestação de um discurso e ao
mesmo tempo é manifestação lingüística. Ou seja, constitui-se de uma instância
contextual, discursiva, que se reflete em outra mais concreta, propriamente textual.
Portanto, um trabalho didático com o texto – “unidade básica do ensino” (Brasil,
1998a: 23) – deveria contemplar essas duas instâncias. Tal perspectiva é pertinente
com o enunciado que define qual é o objeto eleito pelo documento para o ensino-
aprendizagem de Língua Portuguesa:
O segundo elemento – o objeto de conhecimento – são os conhecimentos discursivo-textuais e lingüísticos implicados nas práticas sociais de linguagem. (Brasil, 1998a: 22, ênfase adicionada)
78 A palavra “situada” aqui recebe o sentido de “contextualizada”, que ocorre em uma determinada
“situação”.
145
Na página seguinte a essa citação, a noção de gênero é igualmente tomada
como objeto de ensino:
Os textos se organizam sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. (Brasil, 1998a: 23) Apesar de o enunciado acima ser clara alusão às teorias bakhtinianas79,
pode-se, no entanto, depreender dele que o gênero é eleito objeto de ensino
essencialmente porque ele delimita, dá forma aos textos e não porque reflete as
condições específicas e as finalidades de cada uma das esferas (Bakhtin, 1952-
1953/1979: 279).
Tal motivação, digamos, formal condiz com a outra definição anteriormente
dada no documento à noção de gênero:
A noção de gênero refere-se, assim, a famílias de textos que compartilham características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por exemplo, existindo em número quase ilimitado. (Brasil, 1998a: 22, ênfase adicionada)
Percebe-se aqui uma definição de gêneros semelhante à de Bronckart (1997:
72 e 75), que os define como “conjunto de textos” utilizados como “modelos” (idem:
138) para a produção de textos. No Brasil, esse mesmo tipo de abordagem foi
também defendido por Marcuschi (2002: 29) que, inclusive, utiliza a mesma
expressão “famílias de texto”.
Como já vimos no capítulo em que discorremos sobre Interacionismo Sócio-
discursivo e propostas da equipe de didática da Universidade de Genebra, a
definição de gênero como conjunto ou família de textos acaba por resultar num
trabalho didático que aponta para as regularidades do conjunto e assim dá base
79 Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas
para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. (Bakhtin, 1952-1953/1979: 284)
146
para propostas mais procedimentais, características de um tratamento mais textual
da noção:
Nesse processo, ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é necessário que se possa dispor tanto de uma descrição dos elementos regulares e constitutivos do gênero quanto das particularidades do texto selecionado, dado que a intervenção precisa ser orientada por esses aspectos discretizados. (Brasil, 1998a: 48, ênfase adicionada)
Por outro lado, percebemos na citação acima uma sugestão de trabalho que
contempla tanto os elementos regulares quanto com as particularidades do texto.
Tais particularidades podem ou não ser trabalhadas a partir da consideração de
aspectos sócio-históricos. Caso o sejam, estaremos diante de uma abordagem mais
discursiva de gênero e texto, em que importa analisar essas manifestações
lingüísticas a partir das marcas enunciativas que refletem a condição sócio-histórica
de sua produção, favorecendo uma aproximação aos temas e à ideologia que aí
circulam. Caso contrário, estaremos diante de uma abordagem mais textual, em que
as particularidades não apontam necessariamente para os possíveis temas dos
textos, mas simplesmente para as diferentes formas de composição textual.
Seria, portanto, precipitado já afirmarmos que a noção de gêneros adotada
pelos PCN é a mesma daquela adotada dentro dos parâmetros do que chamamos
de Teoria de Gêneros de Texto ou da Teoria de Gêneros Discursivos no Capítulo 1.
Sendo assim, voltemos a observar os adjetivos “discursivo(s)”, “discursiva(s)80”
conforme aparecem no documento.
5.4 Conhecimentos, mecanismos e aspectos discursivos
N Concordance
1 ao conteúdo temático, construção composicional e ao estilo: 60 * reconhecimento do universo discursivo dentro do qual cada texto e gêneros de texto se inserem, considerando as intenções do enunciador, os interlocutores, os procedimentos narrativos, descritivos, expositivos, argumentativos
2 s do receptor, das exigências da situação e dos objetivos estabelecidos; ï seleção, adequada ao gênero, de recursos discursivos, semânticos e gramaticais, prosódicos e gestuais; ï emprego de recursos escritos (gráficos, esquemas, tabelas) como apoio par
3 explicitação de mecanismos de desqualificação de posições articulados ao
80 Trataremos separadamente “discursivo(s)” e “discursiva(s)” por acreditar que tal distinção pode
facilitar nossa análise e apontar dados que de outra forma talvez não ficassem tão evidentes.
147
conhecimento dos recursos discursivos e lingüísticos. Particularmente, a consideração das especificidades das situações de comunicação os gêneros nos quais os disc
4 ue age com e sobre o objeto de conhecimento. O segundo elemento, o objeto de conhecimento, são os conhecimentos discursivo-textuais e lingüísticos implicados nas práticas sociais de linguagem. O terceiro elemento da tríade é a prática educacional do professor e da escola
5 e morfológicos que permitam alterar a estrutura da sentença para expressar diferentes pontos de vista discursivos, como, por exemplo, uma diferente topicalidade ou o ocultamento do agente (construções passivas, utilização do dêitico se ou verbo na terceira p
6 removido. 62 * reordenação dos constituintes da sentença e do texto para expressar diferentes pontos de vista discursivos, como a topicalidade, a informação nova, a ênfase 22 ; * expansão mediante Coordenação e subordinação de relações entre sentenças em parataxe
7 to e objeto do conhecimento. O objeto de ensino e, portanto, de aprendizagem é o conhecimento lingüístico e discursivo com o qual o sujeito opera ao participar das práticas sociais mediadas pela linguagem. Organizar situações de aprendizado, nessa perspectiva, supõe: pl
8 ejamento; * rascunho; * revisão(com intervenção do professor); * versão final; ï utilização de mecanismos discursivos e lingüísticos de coerência e coesão textuais, conforme o gênero e os propósitos do texto, desenvolvendo diferentes critérios: * de manu
9 fundamentalmente, à dificuldade posta para o aluno ao se relacionar com os diversos aspectos do conhecimento discursivo e lingüístico nas práticas de recepção e produção de linguagem: ï determinações do gênero e das condições de produção do texto (maior ou me
10 processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno: ï amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto; ï reconheça a contribuição complementar dos
11 . ï Preocupação com a qualidade das produções escritas próprias, tanto no que se refere aos aspectos formais - discursivos, textuais, gramaticais, convencionais - quanto à apresentação estética. ï Valorização da linguagem escrita como instrumento que pos
12 casos, o abandono do tratamento dos aspectos gramaticais e da reflexão sistemática sobre os aspectos discursivos do funcionamento da linguagem. Para ampliar a competência discursiva dos alunos, no entanto, a criação de contextos efetivos de uso da ling
13 xo (o texto). Graça s à mediação do professor, os alunos aprendem não só um conjunto de instrumentos lingüístico-discursivos, como também técnicas de revisão(rasurar, substituir, desprezar). Por meio dessas práticas mediadas, os alunos se apropriam, progressivamente, d
14 esentados. Assim, a organização de seqüências didáticas exige: ï elaborar atividades sobre aspectos discursivos e lingüísticos do gênero priorizado, em função das necessidades apresentadas pelos alunos; ï programar as atividades em módulos que expl
Quadro 9 – “Discursivo(s)”: concordâncias.
Como já havíamos afirmado logo acima e agora se pode notar a partir do
Quadro 9 (entradas 3, 4, 7, 9 e 10), os objetos privilegiados de ensino-aprendizagem
propostos no documento são não só os conhecimentos lingüísticos mas também os
148
aspectos, mecanismos e conhecimentos discursivos necessários para se participar
das “práticas sociais da linguagem”.
Assim, ainda a partir desse quadro, é possível observar a relevância dada aos
aspectos discursivos, não só – e principalmente – no que concerne à produção de
textos (entradas 2, 5, 6, 8, 11, 13), mas também à construção de sentidos na
leitura/escuta (entradas 3, 10).
Mas, especificamente, quais seriam, de acordo com o documento, os
“aspectos discursivos” envolvidos na produção e recepção de textos orais ou
escritos ?
Se considerarmos as definições de discurso abordadas logo acima, os
“conhecimentos discursivos” estariam ligados ao conhecimento acerca da influência
do contexto sócio-histórico de enunciação na produção e leitura dos textos. Vejamos
algumas citações que demonstram a importância dada pelos PCN à consideração
do contexto sócio-histórico no trabalho com a linguagem:
Os conteúdos das práticas que constituem o eixo USO dizem respeito aos aspectos que caracterizam o processo de interlocução:
1. historicidade da língua; 2. constituição do contexto de produção, representações de mundo e
interações sociais: • sujeito enunciador; • interlocutor; • finalidade da interação; • lugar e momento de produção.
3. implicações do contexto de produção na organização dos discursos: restrições de conteúdo e forma decorrentes da escolha dos gêneros e suportes. 4. implicações do contexto de produção no processo de significação: • representações dos interlocutores no processo de construção dos sentidos; • articulação entre texto e contexto no processo de compreensão; • relações intertextuais. (Brasil, 1998a: 35)
No trabalho com os conteúdos previstos nas diferentes práticas, a escola deverá organizar um conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da linguagem, levando em conta a situação de produção social e material do texto (lugar social do locutor em relação ao(s) destinatário(s); destinatário(s) e seu lugar social; finalidade ou intenção do autor; tempo e lugar material da produção e do suporte) e selecionar, a partir disso, os
149
gêneros adequados para a produção do texto, operando sobre as dimensões pragmática, semântica e gramatical. (Brasil, 1998a: 49, grifo nosso)
Estas duas citações parecem manter uma forte relação intertextual com as
considerações de Bronckart (1997: 93 e 94) acerca dos contextos físico e sócio-
subjetivo de produção, ambos mais ligados às circunstâncias imediatas de produção,
conforme já apontamos no Capítulo 1, do que propriamente a um contexto sócio-
histórico mais amplo e às esferas de circulação de discursos, como pediria uma
abordagem mais bakhtiniana ou discursiva.
Ao mesmo tempo, ao tomarmos alguns trechos em que o adjetivo
“discursivo(s)” aparece, nota-se também uma grande ênfase a aspectos mais
textuais. Por exemplo, uma das sugestões para a prática de análise lingüística é:
Reordenação dos constituintes da sentença e do texto para expressar diferentes pontos de vista discursivos, como a topicalidade, a informação nova, a ênfase. (Brasil, 1998a: 62)
Em nota de rodapé, são apresentados exemplos de como poderia ser feita
essa “expressão de diferentes pontos de vista discursivos”:
Exemplos: a) Eu já li esse livro quando estava no terceiro ano. ↔ Esse livro eu já li quando estava no terceiro ano. ↔ No terceiro ano, eu já li esse livro. b) A gente não faz direito a redação quando faz depressa. ↔ Depressa, a gente não faz direito a redação. ↔ A gente, depressa, não faz direito a redação. ↔ A redação a gente não faz direito quando faz depressa. c) Minha tia pôs foi o gato num saco e jogou bem longe. ↔ Foi o gato que minha tia pôs no saco e jogou bem longe. (Brasil, 1998a: 62, nota de rodapé)
A considerar uma idéia bakhtiniana de discurso, por trás de pontos de vista
discursivos diferentes, haveria significados e ideologias diferentes, aspecto o qual
esses exemplos não abordam.
Tal exercício de reordenação de termos de enunciados parece condizer à
citação de Bakhtin/Volochinov (1929:134, 135) que fizemos no Capítulo 1 e que
reproduzimos aqui: o valor apreciativo serve antes de mais nada para orientar a
escolha e a distribuição dos elementos mais carregados de sentido do enunciado.
150
Não se pode construir uma enunciação sem a modalidade apreciativa (ênfase
adicionada). No entanto, naquele mesmo capítulo, fizemos a ressalva de que o valor
apreciativo está intrinsecamente relacionado à situação social de produção dos
enunciados – considerando como elementos essenciais dessa situação os parceiros
da interlocução, as relações sociais, institucionais e interpessoais dessa parceria,
vistas a partir do foco da apreciação valorativa do locutor (Rojo, 2004, no prelo) –
e, ao mesmo tempo, às condições sócio-históricas das esferas de produção de onde
emerge o gênero a que o texto pertence.
A intenção por trás dessa sugestão de “reordenação dos constituintes da
sentença” pode até corresponder a uma abordagem enunciativa, mas o problema
dos exemplos acima é a ausência de explicitação de como o contexto acabou por
determinar a ordenação escolhida para os elementos das orações. Talvez isso se
deva à necessidade de concisão do trecho citado, mas o fato é que, sem essa
explicitação, parece estarmos diante de um exercício textual meramente mecânico
de reordenação de elementos da frase.
No entanto, ao abordar os “conceitos e procedimentos subjacentes às
práticas de linguagem”, mais uma vez parece haver uma oscilação entre uma
abordagem mais textual e outra mais sócio-histórica. O parágrafo abaixo, referente à
prática de análise lingüística, é um exemplo bem sintético dessa oscilação. Fala, ao
mesmo tempo, de “universo discursivo” (que poderíamos interpretar, utilizando uma
expressão bakhtiniana, como “esfera de circulação”) e de tipos de textos :
Reconhecimento do universo discursivo dentro do qual cada texto e gêneros de texto se inserem, considerando as intenções do enunciador, os interlocutores, os procedimentos narrativos, descritivos, expositivos, argumentativos e conversacionais que privilegiam, e a intertextualidade (explícita ou não). (Brasil, 1998a: 60, ênfase adicionada)
151
5.5 Competência discursiva, atividade discursiva e cidadania
Vejamos as palavras mais freqüentemente próximas ao adjetivo “discursiva”:
N Word Total Left Right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5
1 discursiva 29 0 0 0 0 0 0 0 29 0 0 0 0 0
2 competência 16 16 0 0 0 0 0 16 0 0 0 0 0 0
3 atividade 8 8 0 0 0 0 0 8 0 0 0 0 0 0
4 aluno 5 3 2 2 1 0 0 0 0 0 1 0 1 0
5 ampliar 5 5 0 0 0 5 0 0 0 0 0 0 0 0
6 linguagem 5 4 1 2 0 2 0 0 0 0 0 0 1 0
Quadro 10 – “Discursiva”: colocações mais freqüentes.
Como se pode notar, o vocábulo “discursiva” está, na maior parte das vezes,
adjetivando as palavras “competência” e “atividade”.
Os PCN apresentam uma série de objetivos para o ensino de LP – todos
articulados entre si – que vai desde um âmbito mais amplo, social, até questões
mais especificamente lingüísticas.
Assim, numa instância mais social, o objetivo primeiro do ensino de língua
materna conforme o documento é que os alunos desenvolvam “os saberes
lingüísticos necessários para o exercício da cidadania” (p.19). A esse objetivo
articula-se outro, o de competência discursiva, definida da seguinte forma:
Competência discursiva refere-se a um sistema de contratos semânticos responsável por uma espécie de filtragem que opera os conteúdos em dois domínios interligados que caracterizam o dizível: o universo intertextual e os dispositivos estilísticos acessíveis à enunciação dos diversos discursos. (Brasil, 1998a: 23)
E ainda:
Um dos aspectos da competência discursiva é o sujeito ser capaz de utilizar a língua de modo variado, para produzir diferentes efeitos de sentido e adequar o texto a diferentes situações de interlocução oral e escrita. (Brasil, 1998a: 23, ênfase adicionada)
152
Ao considerar que a língua pode ser utilizada de modo variado conforme as
diferentes situações, pode-se depreender que competência discursiva, portanto, tem
a ver com variedade lingüística e plurilingüismo, termos ligados ao conceito de
letramentos e às teorias bakhtinianas respectivamente, ambos articulados não só
em torno da idéia de atuação do sujeito em diversas esferas (como já vimos), mas
também de respeito e às diferenças sociais, logo, respeito à cidadania. Assim é que,
por exemplo, nos “Objetivos gerais de Língua Portuguesa para o ensino
fundamental” (p. 33), propõe-se, entre outros, conhecer e valorizar as diferentes
variedades do Português, procurando combater o preconceito lingüístico.
Uma pergunta que nos ocorre é: por que os PCN, tão claramente
influenciados pelos textos da equipe de didática de língua materna da Universidade
de Genebra, optam pela expressão “competência discursiva” em vez de “capacidade
discursiva”, esta última a expressão preferencialmente utilizada em tais textos?
Conforme vimos no Capítulo 1, de acordo com Dolz & Schneuwly (1996) e
Schneuwly & Dolz (1997), capacidade discursiva – uma das três capacidades que
compõem as ações de linguagem – diz respeito à mobilização de modelos por meio
dos quais se faz a escolha da infra-estrutura geral do texto e dos conteúdos que nele
serão privilegiados. Mesmo considerando as outras duas capacidades que compõem
as ações de linguagem (capacidade de ação e capacidade lingüístico-discursiva),
percebe-se que o termo capacidade parece estar em geral relacionado a questões
bastante procedimentais. Ora, em se tratando de um projeto de educação para a
cidadania, parece evidente que os objetivos almejados para os alunos dentro do
ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa devem ser mais amplos do que apenas
o desenvolvimento de procedimentos de textualização.
Assim, embora já tenhamos várias vezes notado a influência dos textos dos
autores genebrinos nos PCN, parece-nos que aqui, ao utilizar o termo “competência
discursiva”, está-se instaurando um diálogo mais próximo com as teorias de
Perrenoud (1997) do que com a desses autores.
Perrenoud (1997: 7) define a noção de competência como uma capacidade
de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em
conhecimentos, mas sem limitar-se a eles (ênfase nossa). Assim, competência é a
153
capacidade de se mobilizarem conhecimentos (conteúdos) e outros recursos
(procedimentos, reflexões) para agir numa situação concreta. Segundo o autor
(1997: 10), essa capacidade de mobilização apenas se desenvolve e se estabiliza
ao sabor da prática (...) de um treinamento, de experiências renovadas, ao mesmo
tempo redundantes e estruturantes, treinamento esse tanto mais eficaz quando
associado a uma postura reflexiva81”.
Sendo assim, com relação aos PCN, falar em desenvolvimento da
competência discursiva tem razão na medida que, como vimos nos Capítulos 2 e 3,
para o exercício da cidadania, são necessários igualmente o desenvolvimento do
senso crítico – garantido por um trabalho pedagógico que considere os fatores
sócio-históricos ao se trabalhar com a linguagem (conteúdo) – bem como a
apropriação de instrumentos que possibilitem uma ação transformadora
(procedimentos). Para tanto, um dos requisitos é que o cidadão domine os gêneros
que circulam nas diferentes esferas públicas. E é aí que entra a importância do
trabalho com diferentes gêneros – os quais, como vimos, são ao mesmo tempo
“conteúdos” e “mega-instrumentos para agir em situações de linguagem”, conforme
Dolz & Schneuwly (1996) – e a conseqüente ampliação da competência discursiva
do aluno.
Portanto, ao falar de “competência discursiva”82 se está falando em uma
proposta didática que articule conteúdos (no nosso caso, os “gêneros”) a práticas
sociais ou, se estivermos falando da ação de um sujeito, a articulação se dará no
âmbito da “atividade discursiva”.
Dessa forma, continuando num movimento descendente, do mais amplo para
o mais específico, do social para o particular, articulada à competência discursiva
temos a idéia de atividade discursiva.
Como já vimos anteriormente neste capítulo, a definição de atividade
discursiva, ou seja, a ação discursiva do sujeito, está relacionada às definições de
81 Ênfase adicionada. 82 Para um aprofundamento dessa questão acerca da noção de competência discursiva, ver Barbosa
(2001a: 98 -103).
154
texto, de linguagem e de discurso, pois todas elas, nos PCN, contemplam o contexto
de produção como elemento de importância fundamental na sua constituição.
Sendo a consideração do contexto de produção tão importante na
constituição das atividades discursivas e dos textos, as propostas de trabalho
didático com vistas ao desenvolvimento de “competências”83, conseqüentemente,
também acabam por se estabelecer a partir de contextos o mais próximos possíveis
das reais práticas sociais de linguagem. Nesse sentido é que se propõe recriar na
sala de aula situações enunciativas de outros espaços que não o escolar (Brasil,
1998a: 22).
Tal estratégia se assemelha àquela proposta por Schneuwly & Dolz (1997)
e Dolz & Schneuwly (1998) e citada por nós anteriormente, segundo a qual as
atividades de ensino-aprendizagem dos gêneros deve partir de um modelo
didático do gênero84 a ser ensinado com base numa “ficcionalização” do
contexto de sua produção.
Mais especificamente, o tratamento dos conteúdos, conforme propõem
os PCN, deve, portanto, se dar da seguinte forma:
Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva. (Brasil, 1998a: 27, ênfase adicionada)
Ou seja, a proposta é partir de “atividades discursivas” para se desenvolver a
“competência discursiva”, num movimento que parte do uso, passa pela reflexão e
volta para o uso.
83 Cabe aqui lembrar que, conforme dito logo acima, a noção de competência pressupõe a ação em
uma “situação concreta”. 84 Até onde nos foi possível averiguar, apesar de igualmente propor situações ficcionalizadas para o
trabalho com os gêneros, nos PCN não há sugestão de elaboração de “modelos didáticos” desses gêneros, tal como o fazem Schneuwly & Dolz.
155
5.6 O adjetivo “textual(ais)”
Comparado com o adjetivo “discursivo(s)(a)(as)”, o adjetivo “textual(is)”
apresenta uma freqüência bastante baixa nos PCN. Enquanto o primeiro aparece 54
vezes, o outro aparece apenas 22. Dessas, como já apontamos anteriormente, em
apenas uma vez o adjetivo “textuais” está sendo empregado para qualificar a palavra
“gêneros”.
A lista de concordância a seguir nos dará uma idéia das circunstâncias em
que esse adjetivo é utilizado em nosso documento.
N Concordance
1 em função de seqüências textuais; que estabeleça
2 ntemente com o projeto textual em desenvolvim
3 como sobre saliências textuais ñ recursos gráfi
4 o em função do projeto textual: * título e subtít
5 são da heterogeneidade textual não pode ficar r
6 iz respeito aos gêneros textuais privilegiados qu
7 orporados à produção textual. A elaboração d
8 __________. Língüística textual: introdução . Sã
9 rticulando informações textuais com conhecim
10 ero possível de índices textuais e contextuais n
11 de coerência e coesão textuais, conforme o gên
12 s, em função do projeto textual. Espera-se que
13 em função das marcas de segmentação textual,
14 ta em função do projeto textual e das condições
15 prévios e informações textuais, inclusive as qu
16 o. Fatores de coerência textual. Tipologia de tex
17 ________. A coerência textual. Sentido e compr
18 __________. A coesão textual. Mecanismos de
19 prévios e as informações textuais, deduza do text
20 conhecimentos discursivo-textuais e lingüísticos i
21 rais dos diversos tipos textuais como também
22 formais discursivos, textuais, gramaticais, co
Quadro 11 – “Textual(is)”: concordâncias.
Dada a sua baixa freqüência, o quadro de colocações é bastante limitado.
156
n word total left right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5
1 textuais 11 0 0 0 0 0 0 0 11 0 0 0 0 0
2 textual 11 0 0 0 0 0 0 0 11 0 0 0 0 0
3 função 5 5 0 1 0 4 0 0 0 0 0 0 0 0
Quadro 12 – “Textual(is)”: colocações mais freqüentes.
Mais uma vez se repete aqui a expressão “em função de” que vimos ao
abordar a palavra “gênero(s)”. Neste caso, a partir das entradas 4, 12 e 14 do
Quadro 11, percebe-se que, em geral, trata-se de questões de produção textual em
função de um projeto (entradas 4, 12 e 14 do Quadro 11), demanda
caracteristicamente advinda das teorias cognitivistas e textuais da linguagem, as
quais, aplicadas ao ensino de línguas, grosso modo, pressupõem para a produção
de textos três comportamentos (ou fases): planejamento (daí a idéia de projeto),
execução (ou tradução) e revisão (Rojo, 2003b), que devem ser monitorados durante
todo o processo de escritura. Assim, de acordo com o texto dos PCN:
Produzir um texto, por exemplo, implica a realização e articulação de tarefas diversas: planejar o texto em função dos objetivos colocados, do leitor, das especificidades do gênero e do suporte; grafar o texto, articulando conhecimentos lingüísticos diferenciados (gramaticais, da convenção, de pontuação e paragrafação); revisar o texto. (Brasil, 1998a: 38, ênfase adicionada)
A partir das palavras “leitor”, “gênero” e “suporte” da citação acima, percebe-
se, no entanto, que a teoria aí subjacente não faz parte daquele conjunto de teorias
cognitivistas do início dos anos 1980 (por exemplo, Hayes & Flower, 1980), mas sim
pertence àquelas que deslocam o foco da cognição individual para a interação
social, das quais Schneuwly (1988, apud Rojo 2003b) é um dos precursores.
Já as expressões “coesão textual” e “coerência textual” nos remetem,
primeiramente, às propostas curriculares de fins dos anos 1980 – sobre as quais
tratamos no capítulo precedente –, que incorporavam, dentre outras, influências de
trabalhos da Lingüística Textual e de ensino de leitura e produção de textos da
época (por exemplo, Geraldi, 1984). Isto confirma o que vimos demonstrando acerca
de os PCN apresentarem propostas que aliam as teorias textuais e cognitivistas
bastante presentes nos currículos do final da década de 1980 às teorias de
157
letramento e sócio-discursiva que já circulavam na esfera educacional na segunda
metade dos anos 1990.
Ao mesmo tempo, tais expressões também podem nos remeter aos autores
de Genebra que, conforme vimos no Capítulo 1, igualmente recorrem a esses
conceitos quando tratam dos mecanismos de textualização (Bronckart, 1997).
De resto, também podemos notar, no Quadro 11, a presença de expressões
típicas de uma abordagem textual de gêneros como, por exemplo, “seqüências
textuais” (entrada 1) e “tipos textuais” (entrada 21).
159
6 Parâmetros em Ação: os limites de uma ação-resposta
Feita a análise dos PCN, este capítulo tem como objetivo levantar subsídios
para que possamos continuar a responder nossas perguntas de pesquisa:
a) Qual é a condição de produção de cada um dos documentos objeto de
nossa análise?
b) Qual é o leitor visado de cada dos documentos?
c) Que vozes podem ser neles identificadas?
d) Que enfoque da noção de gêneros é o preferencialmente adotado em
cada um os documentos?
e) Que nível de diálogo estabelecem entre si?
Para responder à primeira pergunta, iniciaremos o capítulo com uma breve
descrição dos Parâmetros em Ação85: suas condições de enunciação e sua forma
composicional. Em seguida, partiremos para a análise do texto propriamente dito.
Assim como no capítulo anterior, lançaremos mão da ferramenta WordSmith para
proceder a uma varredura nas palavras mais freqüentes e, a partir daí,
levantaremos alguns temas centrais do documento.
6.1 Parâmetros em Ação: uma ação-resposta
Como a base teórica que sustenta os PCN foi introduzida no Brasil apenas
recentemente e há ainda poucos profissionais da área familiarizados com ela (uma
vez que tais teorias ainda não são trabalhadas na maioria dos cursos de graduação),
é possível que o conteúdo deste documento não esteja sendo assimilado em toda
sua profundidade e com todas as suas implicações, seja por aqueles responsáveis
pela elaboração de currículos, seja pelos professores em serviço ou em formação,
seja por aqueles que estão produzindo materiais didáticos. Daí um dos prováveis
motivos do descompasso que se percebe entre o que se propõe nos PCN e o que
ainda é feito em sala de aula. Tal dificuldade de transposição das sugestões dos
PCN, gerada principalmente por desconhecimento teórico, já estava prevista no
85 Doravante, PA.
160
próprio documento86 e vem sendo também citada em artigos de divulgação científica
(por exemplo: Rojo, 1999), que acentuam a importância de trabalhos de formação de
professores.
Segundo Gomes-Santos (2004: 162), como os PCN dialogam ao mesmo
tempo com as esferas acadêmico-científica, político-legal e didático-pedagógica e se
inserem num percurso histórico de busca da melhoria da educação – com vistas ao
presente, mas, principalmente, ao futuro –, é de se esperar que nele estejam
expressas aquelas idéias tidas por essas esferas como as melhores e mais
avançadas em termos de educação87.
Além disso, cabe aqui ressaltar que, como também acertadamente apontou
Gomes-Santos (2004), o objetivo do texto dos PCN não é, exclusiva nem
principalmente, formar professores. Embora não tenham força de lei, os PCN são
documentos regulamentadores, pertencentes à esfera oficial e, por isso, não têm
(tampouco poderiam ter) uma linguagem nem propriamente científica nem didática.
Porém, devido à baixa produção de outros materiais que possam contribuir para a
formação dos professores seguindo suas diretrizes, o documento passou a ser
tomado como fonte de aprendizagem, o que tem gerado uma série de dificuldades.
Assim, não nos parece aceitável imaginar que uma simplificação ou maior
"didatização" do texto dos PCN, como muitos chegaram a sugerem (Soares, 1997;
Suassuna, 1997), pudesse neutralizar o problema da dificuldade de transposição
didática encontrada pelos professores, uma vez que, a fim de cumprir seu objetivo
de ser um “parâmetro”, o texto necessariamente tem de tratar os assuntos de forma
ampla e mais teórica, para que possa apontar diretrizes passíveis de serem
aplicadas e adaptadas aos mais diferentes contextos de ensino-aprendizagem.
Também não parece ser razoável propor que se adote uma base teórica mais
86 Entretanto, sabe-se que muitos de seus [PCN] pressupostos, quer de natureza didática, quer de
natureza lingüística, não fizeram parte da formação inicial de muitos docentes. A formação de professores se coloca, portanto, como necessária para que a efetiva transformação do ensino se realize. (Brasil, 1998a: 67)
87 Na instauração de um estatuto próprio, os PCN, ao mesmo tempo que se posicionam em relação a um percurso histórico de reflexão sobre o ensino de língua (reconhecendo-o como legítimo), apresentam-se como inovação, ou seja, no quadro de uma enunciação que, ao se instaurar como inédita, corrobora as condições de legitimação do documento. (Gomes-Santos, 2004: 167)
161
acessível e familiar aos professores – mesmo que ultrapassada –, apenas para que
a implementação dos parâmetros seja facilitada.
O caminho certamente será longo, mas para a superação dos problemas
advindos da complexidade e, principalmente, da novidade das propostas dos PCN,
várias ações já vêm sendo desenvolvidas e outras ainda precisam, com urgência,
ser implementadas (Pompílio et al., 2000). Uma dessas necessidades urgentes é a
revisão dos currículos da formação inicial dos docentes. Outra, a ampliação e
intensificação das práticas já existentes de formação contínua dos professores em
serviço, com vistas à discussão e implementação do que se propõe nos PCN. Foi
nesse sentido que o MEC criou o Parâmetros em Ação.
6.2 Parâmetros em Ação: as condições sócio-históricas de sua enunciação
Entre 1997 e 1999, praticamente ao mesmo tempo em que se elaboravam os
Parâmetros Curriculares Nacionais, eram também elaborados os Referenciais para
Formação de Professores. A partir das exigências de formação determinadas pela
LDB 9.394/96 e com vistas à melhoria da qualidade de ensino, ao novo perfil
esperado dos professores e à valorização do docente, o objetivo desses referenciais
era fornecer subsídios que orientassem, ao mesmo tempo, os programas de
formação continuada dos professores e a re-elaboração dos currículos de formação
inicial, considerados, em sua maioria, ultrapassados (Brasil, 2002: 42).
Com base nesses referenciais e em resposta às Secretarias de Educação que
estavam solicitando ao MEC orientações para implantar os PCN, tendo também
como objetivo disseminar uma cultura de formação continuada entre os professores,
criou-se, então, em 1999, o Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado,
denominado Parâmetros em Ação.
Uma das principais características desse programa, portanto, era seu duplo
objetivo: estimular a criação de políticas de desenvolvimento profissional
permanente nos sistemas públicos de ensino – valorizando principalmente as
práticas de trabalho coletivo dentro da própria escola – e implementar as orientações
dos PCN.
162
A fim de atingir tais objetivos, segundo documento da Secretaria de Educação
Fundamental88, dez metas foram traçadas:
• Disseminar uma cultura de formação continuada entre os professores nas Secretarias de Educação e nas escolas, por meio de grupos de estudo.
• Impulsionar, nos sistemas públicos de ensino, mudanças nas práticas de planejamento e de gerenciamento de recursos humanos e materiais para promover o desenvolvimento profissional permanente dos educadores.
• Fortalecer a atuação das Secretarias da Educação, para que superem a tradição de descontinuidade, e promover a articulação entre as Secretarias, mobilizando os sistemas de ensino que têm tido dificuldades para desenvolver a formação de seus professores.
• Promover a tomada de consciência sobre a necessidade de valorizar a profissão e o professor, de assegurar as condições de trabalho e de desenvolvimento profissional ao longo da carreira.
• Mobilizar o interesse de instituições formadoras, principalmente universidades, e das Secretarias de Educação para o desenvolvimento de práticas articuladas de formação.
• Valorizar e propor o uso da leitura como instrumento de desenvolvimento profissional.
• Valorizar e propor o uso da escrita como instrumento de desenvolvimento profissional.
• Valorizar o trabalho coletivo e propor experiências que favoreçam a compreensão da importância dessa prática no cotidiano institucional.
• Possibilitar a vivência e a compreensão dos processos ativos de aprendizagem, de modo que os professores possam fazer uso deles na sua atuação junto aos alunos.
• Divulgar uma proposta educacional para as escolas do Ensino Fundamental pautada nas orientações e nas perspectivas dos Parâmetros, da Proposta e dos Referenciais Curriculares Nacionais elaborados pelo MEC/SEF. (Brasil, 2002: 45, ênfases adicionadas)
Nos anos em que esteve ativo (de 1999 a 2002), houve uma grande procura
pelo programa – 3.280 cidades espalhadas por 23 estados – e, para levá-lo a todos
os municípios interessados, foi criada a Rede Nacional de Formadores (RNF).
Sempre com grande ênfase no trabalho coletivo, o principal objetivo da RNF era
constituir grupos de formadores a partir dos próprios quadros das Secretarias,
88 Doravante, SEF.
163
inclusive daquelas menos favorecidas, que passariam, assim, a contar com um
formador envolvido num processo contínuo de formação, capaz de criar novos
grupos de formação em sua própria Secretaria, conformando realmente o que se
caracteriza como sistema em rede.
Além da RNF, outros atores participavam no Programa de Desenvolvimento
Profissional Continuado - Parâmetros em Ação: professores, coordenadores de
grupo de estudos, coordenadores-gerais, Coordenação Pedagógica Nacional,
Coordenação do Departamento de Política da SEF.
Para tratar das questões de conteúdo dos PCN, incentivar o trabalho coletivo
e propiciar implementações adaptadas à realidade local de cada Secretaria e/ou
escola, dentre várias ações organizadas pelo MEC, o programa também
disponibilizou um material de suporte definido pela SEF como um conjunto de
módulos, com atividades orientadas, que propiciam vivência de trabalho coletivo,
troca de experiências e estudos com caráter explicitamente formativo (Brasil, 2002:
48).
Coube à Coordenação Pedagógica Nacional, um grupo de consultores
contratado pelo MEC, a elaboração desse material, cujo conjunto de módulos foi
dividido em sete volumes da seguinte forma:
• Educação Infantil (11 módulos)
• Alfabetização (1 módulo)
• Primeiro e segundo ciclos do ensino fundamental — de 1ª a 4ª série (12
módulos)
• Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental — de 5ª a 8ª série
164
o Volume I: Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Matemática e
Ciências Naturais (6 módulos por disciplina e mais 5 módulos
comuns89)
o Volume II: Artes, Educação Física, Geografia e História (6 módulos
por disciplina e mais 5 módulos comuns)
• Educação de Jovens e Adultos — 1º segmento (8 módulos)
• Educação Indígena
No que concerne à Língua Portuguesa, nosso foco de análise, os seis
módulos específicos tratam basicamente dos seguintes temas:
• módulo 3: ensino de Língua Portuguesa e construção de cidadania, a
importância da formação continuada, retrospectiva histórica e tendências
atuais do ensino na área;
• módulo 4: Língua Portuguesa e temas transversais;
• módulo 5: planejamento curricular em Língua Portuguesa, a partir das
novas abordagens sugeridas pelos PCN;
• módulo 6: articulação curricular com os demais ciclos do ensino
fundamental;
• módulo 8A: avaliação em Língua Portuguesa;
• módulo 9: articulação entre as práticas de leitura e de escuta, produção de
textos e análise lingüística.
A fim de garantir a participação ativa dos professores (um dos objetivos
ressaltados pelos Referenciais para a Formação de Professores), todos os temas
são introduzidos por meio de exercícios e tratados a partir das reflexões pessoais e
discussões coletivas advindas destes mesmos exercícios.
89 Os módulos comuns tratam dos seguintes temas: a relação professor/aluno, ética,
interdisciplinaridade, avaliação e capacidades, sendo que a exploração desses módulos pressupunha um trabalho conjunto entre os professores de todas as disciplinas.
165
Os resultados do programa foram avaliados em duas pesquisas: uma feita em
1999, durante a implantação, e outra realizada em 2001, com o programa já em
pleno andamento.
Ambas as pesquisas apontaram resultados semelhantes. Na primeira,
conforme o pessoal participante do programa, o material do Parâmetros em Ação
cumpre o papel para o qual foi elaborado, qual seja, o de ser um material de
linguagem acessível, estreitamente ligado a questões práticas, mas preservando a
riqueza e a integridade dos conteúdos teóricos que devem servir de base para a
reflexão constante (Brasil, 2002: 54).
De acordo com a segunda pesquisa, a maioria dos participantes do programa
também concordou que o conteúdo dos módulos favoreceu o conhecimento das
principais questões abordadas nos PCN, bem como auxiliou no estabelecimento de
uma relação entre a prática cotidiana e as propostas deste documento (Brasil, 2002:
57).
Interessante notar, porém, que, segundo o documento que vimos citando
(Brasil, 2002: 59), houve, por parte dos coordenadores do segmento de 5ª. a 8ª.
séries, uma demanda para produção de material teórico de apoio às atividades de
estudos e planejamento dos módulos desse segmento, o que sugere que o trabalho
com os módulos talvez não tenha sido, para todos, assim tão fácil quanto apontaram
as pesquisas. Cabe ainda dizer que – sempre segundo o documento que vimos
citando –, a própria SEF admite que não tinha condições, a partir de seus próprios
quadros, de atender a essa demanda. A solução vislumbrada foi, então, procurar
envolver as universidades na solução da questão. No entanto, segundo o
documento, o diálogo entre as instituições de ensino superior e os sistemas de
ensino nem sempre possibilitou a inserção efetiva da universidade para assessorar
o programa (Brasil, 2002: 59). Ou seja, este era um trabalho que ainda precisaria
ser feito.
Ao que se sabe, não foi aplicada nenhuma pesquisa que avaliasse
especificamente o desempenho escolar dos alunos antes e depois da
implementação do programa Parâmetros em Ação nos municípios participantes.
166
O que se pode afirmar é que os resultados pouco animadores das avaliações
de desempenho escolar feitas na época, como o Saeb, por exemplo, apontavam
para a necessidade de um programa de formação continuada como o Parâmetros
em Ação. Sem deixar de considerar a inquestionável influência tanto de fatores
sócio-econômicos quanto do grau de escolaridade dos professores e da própria
dinâmica interna das escolas nos resultados do exame90, uma das razões por vezes
aventada para o mau desempenho dos alunos nas avaliações era o fato de esses
exames terem como base uma expectativa de aprendizagem fundada, entre outros
critérios, nos Parâmetros Curriculares Nacionais91, cujos conteúdos ainda não foram
suficientemente apropriados pelos professores e, portanto, não foram devidamente
implementados em sala de aula92.
Hoje, os resultados do Saeb mostram uma tendência diferente. Se, em 2001,
percebia-se uma queda de desempenho da capacidade leitora dos alunos em
relação a 1995; em 2003, essa tendência começa a se inverter, mesmo que em
pequena escala, permitindo que já seja até possível falar em melhoria.
Vários são os fatores que podem ser elencados para explicar esse resultado.
Segundo artigo publicado em 6 de junho de 2004 pelo Inep93, dois dados merecem
ser destacados: melhoria do grau de formação dos professores e a disseminação do
uso de bibliotecas. Por exemplo, segundo o Censo Escolar, realizado anualmente
pelo Inep/MEC em parceria com as Secretarias Estaduais e Municipais de
Educação, no período de 2001 a 2003, o índice de professores com curso superior
lecionando para turmas de 1ª a 4ª série passou de 27% para 36%.
90 Quanto a isso, ler, por exemplo, o boletim publicado pelo Inep, intitulado Qualidade da educação:
uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 8ª. Série do Ensino Fundamental, no endereço http://www.inep.gov.br/download/cibec/2003/saeb/qualidade_educa.pdf .
91 Quanto à elaboração das questões, ler, por exemplo, o Guia para Elaboração de Itens de Língua Portuguesa, produzido pelo Inep a pedido da Diretoria de Avaliação da Educação Básica do MEC, com o objetivo de orientar a elaboração de itens para o Banco Nacional de Itens do Saeb (http://www.inep.gov.br/download/informativo/2003/bni_guia língua portuguesa_ outubro - última versão.doc).
92 ”O mau desempenho não é uma surpresa", diz o presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (Consed), Éfrem Maranhão. "O Saeb avalia um aluno ideal, que deveria ser formado dentro de novas referências, mas escola não está acompanhando as mudanças”, analisa. (O Estado de S. Paulo, 28 de novembro de 2000, http://www.estadao.com.br/agestado/nacional/2000/nov/28/417.htm) .
93 http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/saeb/news04_08.htm .
167
Além disso, em artigo publicado em jornal94, o ex-ministro da educação, Paulo
Renato Souza, chama a atenção para o fato de a grande queda das médias de
desempenho nas avaliações de 1995 a 2001 possivelmente ter a ver com a também
grande inclusão de novos alunos na escola. Explica-se: a maioria das crianças que,
naquele momento, formavam o grande contingente de novos alunos na escola
vinham de famílias pouco ou nada escolarizadas e, assim, inicialmente tiveram mais
dificuldade em se adaptar à escola, o que pode ter levado para baixo as médias
conseguidas pelo conjunto dos alunos nas avaliações. Tal queda, portanto, não
significava que a escola tivesse piorado ou que os alunos que antes tinham um
desempenho mais aceitável deixaram de ter. Dessa forma, a atual tendência de
melhoria dos resultados das avaliações pode ser explicada, entre muitas outras
razões, pela natural estabilização da taxa de inclusão de novos alunos na escola.
Além disso, hoje, supostamente, após alguns anos de escolarização, aquelas
crianças que apresentavam dificuldades iniciais começam agora a superá-las,
graças também a uma série de mudanças positivas que pouco a pouco vai se
incorporando nas escolas e, por isso também, as médias tendem paulatinamente a
melhorar.
No entanto, como já afirmado logo acima, não há dados que demonstrem
objetivamente haver uma relação direta entre a implementação do programa
Parâmetros em Ação e a melhoria no desempenho dos alunos, principalmente no
que concerne ao segmento de 5ª a 8ª séries, nosso foco de estudo.
Se, dessa forma, não nos é possível verificar como os PCN estão sendo
apreendidos pelos alunos, procuraremos analisar como o documento foi sendo
“traduzido” para os professores pelos módulos do Parâmetros em Ação.
Uma pista sobre essa questão já existe num artigo de Barbosa (2000: 159-
163), no qual ela aponta uma série de incoerências entre os dois documentos. O que
faremos a partir de agora, portanto, é ampliar a análise já feita, a fim de responder
nossas perguntas de pesquisa.
94 Refiro-me a um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, seção Espaço Aberto, do dia
27/06/2004, que pode também ser consultado na Internet no endereço http://www.unicamp.br/unicamp/canal_aberto/clipping/junho2004/clipping040627_estado.html .
168
6.3 Parâmetros em Ação: análise do documento
Da mesma forma que fizermos ao analisar os PCN no capítulo anterior,
inicialmente, para analisar os seis módulos concernentes exclusivamente à disciplina
de Língua Portuguesa dos Parâmetros em Ação, iremos utilizar a ferramenta
WordSmith, com o intuito de verificar quais são as palavras mais freqüentes no texto
em questão. Esta análise preliminar tem como objetivo delinear qual seria o enfoque
ou o tema preferencial que circula no interior desses módulos. Após essa primeira
visão mais geral, tomaremos alguns dos exercícios propostos no documento,
visando analisar de que forma a noção de gênero está sendo aí explorada.
6.3.1 As palavras mais freqüentes
Como já expusemos no capítulo de metodologia, a lista de palavras
individuais fornecida pelo WordSmith traz, além de substantivos e adjetivos, todas as
demais palavras pertencentes a cada uma das classes gramaticais, com todas as
suas flexões95. No entanto, como nosso interesse é a busca do “tema” ou dos
conteúdos predominantes no texto, optamos por eliminar da lista as palavras com
função estritamente gramatical e os verbos, focalizando nossa análise apenas nos
substantivos e adjetivos mais freqüentes96.
Assim, a lista com as quinze palavras mais freqüentes nos seis módulos
específicos de Língua Portuguesa é a que segue:
95 Veja, no CD anexo, a lista completa de palavras dos módulos de Língua Portuguesa dos
Parâmetros em Ação. 96 Veja, no Anexo 4, a lista dos substantivos e adjetivos com freqüência acima de dez nos módulos de
Língua Portuguesa dos Parâmetros em Ação.
169
Substantivo/adjetivo Total 1 texto(s) 166 2 aluno(s) 144 3 professor (a) (es) (as) 104 4 leitura(s) 102 5 grupo(s) 100 6 trabalho(s) 90 7 língua 79 8 portuguesa 69 9 atividade(s) 62
10 escola(s) 63 11 conteúdo(s) 56 12 série(s) 55 13 análise 52 13 discussão(ões) 52 14 ensino 50 15 ciclo(s) 49
Quadro 1 – Os quinze substantivos e adjetivos mais freqüentes nos módulos de Língua Portuguesa
dos Parâmetros em Ação 3º e 4º ciclos.
Comparando esta tabela com a de palavras mais freqüentes nos PCN,
percebemos que, dos 15 quinze vocábulos apresentados na primeira, 7 vocábulos
se repetem na segunda: “texto”, “aluno” e “leitura” – ocupando inclusive a mesma
colocação na lista –, e “língua”, “atividade”, “conteúdo” e “ensino”.
PCN de Língua Portuguesa Total
Parâmetros em Ação
Total
1 texto(s) 454 1 texto(s) 166 2 aluno(s) 254 2 aluno(s) 144 3 linguagem(ns) 154 3 professor (a) (es) (as) 104 4 leitura 143 4 leitura(s) 102 5 língua 135 5 grupo(s) 100 6 ensino 131 6 trabalho(s) 90 7 lingüística(s)(o)(os) 126 7 língua 79 8 prática(s) 119 8 portuguesa 69 9 produção(ões) 117 9 atividade(s) 62 10 diferente(s) 110 10 escola(s) 63 11 gênero(s) 110 11 conteúdo(s) 56 12 escrita(s) 100 12 série(s) 55 13 conteúdo(s) 108 13 análise 52 14 atividade(s) 97 14 discussão(ões) 52 15 oral(is) 93 15 ensino 50
Quadro 2 – Quadro comparativo entre as palavras mais freqüentes nos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos e as palavras mais freqüentes nos respectivos módulos do
Parâmetro em Ação.
170
Com relação às palavras não coincidentes, percebe-se que aquelas relativas
aos PCN são mais específicas no que concerne ao ensino de língua materna,
enquanto que as demais palavras do quadro relativo aos módulos do PA
(“professor”, “grupo”, “trabalho”, “escola”, “série”, “análise”, “discussão”, “ciclos”)
parecem combinar bem com os objetivos declarados do programa Parâmetros em
Ação: ser um programa de formação continuada do professor, que se articula
dentro de seu próprio local de atuação (escola) e que prioriza o trabalho coletivo
(em grupo), por meio da análise e discussão dos textos dos PCN e da prática em
sala de aula.
Dessa forma, o trabalho sugerido na grande maioria dos módulos propõe
atividades, quase sempre em grupo, de leitura e discussão de textos. Por exemplo,
no módulo 5, cujo objetivo é refletir sobre o que, por que e como ensinamos,
aprendemos em Língua Portuguesa (p.147), estão programadas 21 atividades.
Dessas, 12 trazem a demanda explícita Leitura e discussão, em grupo, de um
determinado texto, em geral trechos dos PCN . As demais atividades são ou assistir
a um vídeo ou algum outro tipo de atividade sobre texto, porém não
necessariamente uma discussão do conteúdo lido (pode ser a produção de outro
texto, a elaboração de uma atividade para os alunos etc.).
No que tange à palavra “gênero(s)”, objeto deste nosso estudo, ela nem
chega a figurar na lista de 15 vocábulos mais freqüentes nos módulos do PA, ao
contrário do que acontece na lista de vocábulos mais freqüentes dos PCN, em que
aparece na 11ª colocação. Com 22 ocorrências – empatada com os vocábulos
“conhecimento(s)”, “escrito(s)” e “fundamental”97 –, a palavra “gênero(s)” ocupa
apenas a 34ª posição dentre as mais freqüentes nos módulos do PA.
Dos seis módulos voltados para o ensino de Língua Portuguesa, os gêneros
são abordados mais especificamente em apenas dois: no módulo 6 – que trata de
progressão curricular – e no módulo 8A, sobre avaliação em Língua Portuguesa. Isto
mostra que a noção de gênero está sendo tomada como eixo articulador da
progressão curricular e da avaliação. No entanto, resta-nos saber se essa noção
também está sendo considerada na elaboração das atividades didáticas de leitura e
97 Ver Anexo 4.
171
produção de textos orais e escritos, pois uma coisa é elaborar um currículo com
base em determinado agrupamento de gêneros, outra é elaborar seqüências
didáticas a partir das implicações advindas da escolha da noção de gênero como
objeto de ensino-aprendizagem, como a princípio propõem os PCN. O fato de a
noção de gênero ser abordada apenas em questões de progressão e de avaliação
também aponta para a possibilidade de os gêneros estarem sendo tomados apenas
como um aspecto “normalizador”, o que empobreceria e neutralizaria todas as
vantagens de se ter os gêneros como objeto de ensino, conforme apresentamos no
Capítulo 2.
Em termos de colocação, vejamos como o vocábulo “gênero” se comporta
nos dois documentos.
n word total left right L5 L4 L3 L2 L1 * R1 R2 R3 R4 R5 1 gênero 58 0 1 0 0 0 0 0 57 1 0 0 0 0 2 gêneros 53 0 0 0 0 0 0 0 53 0 0 0 0 0 3 texto(s) 31 22 9 4 4 7 7 0 0 0 5 0 2 2 4 diferentes 11 8 3 0 1 1 0 6 0 0 0 0 2 1 5 oral(ais) 10 5 5 1 1 1 2 0 0 0 3 1 0 1 6 suporte 9 0 9 0 0 0 0 0 0 0 4 5 0 0 7 características 8 8 0 1 1 1 5 0 0 0 0 0 0 0 8 diversidade 7 5 2 0 1 0 4 0 0 0 0 0 1 1 9 especificidades 7 7 0 0 1 1 5 0 0 0 0 0 0 0 10 previstos 7 0 7 0 0 0 0 0 0 5 1 1 0 0 11 função 6 4 2 1 2 0 1 0 0 0 1 1 0 0 12 produção 5 2 3 0 0 0 0 2 0 0 0 0 1 2
Quadro 3 – “Gênero(s)”: colocações mais freqüentes (PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º
ciclos).
Como já havíamos notado no capítulo anterior e podemos retomar a partir do
quadro acima, a tônica da abordagem dos PCN é a diversidade tanto de gêneros
quanto de textos, daí a presença das palavras “textos”, “diferentes” e “diversidade”
no quadro acima. Fala-se também na leitura e produção de textos em função das
especificidades e características dos gêneros e dos suportes. Outro tema relevante
é questão da linguagem “oral”.
E em relação ao PA, o que se destaca em relação aos gêneros? Vejamos o
quadro de colocação a seguir:
172
n word total left right l5 l4 l3 l2 l1 * r1 r2 r3 r4 r5
1 gêneros 12 0 0 0 0 0 0 0 12 0 0 0 0 0
2 gênero 10 0 0 0 0 0 0 0 10 0 0 0 0 0
3 características 6 6 0 0 1 2 3 0 0 0 0 0 0 0
Quadro 4 – “Gênero(s)”: colocações mais freqüentes (Parâmetros em Ação)
Percebe-se que a baixa freqüência da palavra “gênero” no texto se reflete
também na pequena quantidade de vocábulos que gravitam em torno dela. É de se
notar que o vocábulo mais freqüentemente próximo à palavra “gênero” –
“características” – pode apontar para um tratamento mais textual da noção, mais
voltado para os aspectos formais dos gêneros, do que para um tratamento mais
discursivo. Quanto a isso, vale acrescentar que, diferentemente do que acontece
nos PCN – em que a idéia de discurso é bastante tematizada98 –, nos módulos do
PA, não há nenhuma ocorrência da palavra “discurso”, ao mesmo tempo em que há
apenas uma única ocorrência do adjetivo “discursiva” (à página 127), na expressão
“competência discursiva”.
Por outro lado, o adjetivo “textual(is)” aparece 7 vezes no documento. Dessas
ocorrências, em 6 delas o adjetivo compõe a expressão “diversidade textual” e em
uma ocorrência o adjetivo compõe a expressão “gêneros textuais”. Duas conclusões
pode-se tirar disso: primeiro, que se repete nos PA a mesma tendência ao
“apagamento” da adjetivação do vocábulo “gênero(s)” que verificamos nos PCN.
Segundo, que é dada maior ênfase à diversidade textual do que à diversidade de
gêneros, como bem atesta o quadro de concordâncias da palavra “diversidade”
apresentado a seguir:
N Concordance %
1 e tranqüilizar em relação ao que propor todo dia na sala de aula. Sabia que o trabalho deveria estar centrado fundamentalmente no texto e que trazer a 169 diversidade textual para a escola é uma tarefa de todo professor. Sabia que, apesar de as atividades individuais também terem lugar no trabalho pedagógico, em uma turma muito heterogênea, as situações de
56
2 ão de leitores? • Para realizar um bom trabalho com leitura, não basta deixar a diversidade textual entrar em sala de aula. É preciso considerar
33
98 A palavra “discurso” aparece 23 vezes nos PCN e os adjetivos dela derivados (discursiva(s),
discursivo(s)) aparecem 57 vezes.
173
também a diversidade dos modos de ler. Como levar isso em conta no trabalho com a leitura de textos? 9. Leitura e discussão (PCN - Língua Portuguesa, 3º e 4º ciclos (5ª a 8ª séries), pp. 71 e 72), que apresenta uma série de condições
3 propostas para reflexão (1h): • Qual a principal tarefa do 3º e 4º ciclos na formação de leitores? • Para realizar um bom trabalho com leitura, não basta deixar a diversidade textual entrar em sala de aula. É preciso considerar também a diversidade dos modos de ler. Como levar isso em conta no trabalho com a leitura de textos? 9. Leitura e discussão (P
33
4 esa na escola - relacionando o que foi lido com a análise que fizeram das situações e tendo em mente as seguintes afirmações (2h): • O trabalho didático com a diversidade textual é condição para que os alunos desenvolvam sua competência discursiva. • Não se justifica tratar o ensino gramatical desarticulado das práticas de linguagem. • A tarefa da escola, no
5
5 tação de trabalho com a diversidade textual em todas as séries, não se pode deixar de definir as prioridades do ensino em cada uma delas. O propósito de garantir a diversidade textual na sala de aula não pode ter como conseqüência - como ocorreu em algumas práticas - a subestimação do papel do professor: só o contato com os textos não garante as aprend
51
6 e de educadores da escola defina coletivamente objetivos e conteúdos específicos de cada série. Para fazer valer, por exemplo, a orientação de trabalho com a diversidade textual em todas as séries, não se pode deixar de definir as prioridades do ensino em cada uma delas. O propósito de garantir a diversidade textual na sala de aula não pode ter como conseqüência
51
7 . • A atuação da censura nos regimes militares. c) Ética. • Respeito mútuo: reconhecimento das representações próprias e do outro. • Diálogo: valorização da diversidade de posições como forma de transformação e de enriquecimento. d) Pluralidade Cultural. • Compreensão das diversas visões de mundo como direito de expressão de identidade.
91
8 teúdos específicos relacionados a cada gênero, por série. A finalidade básica desta atividade é a elaboração coletiva de uma seqüenciação do trabalho com a diversidade textual de 5 ª a 8ª séries, que depois possa ser complementada pelos professores de 1 ª a 4ª séries, de forma a compor um quadro único de toda a escola. Sugestão: o restante do tem
52
9 ção. • “A escola precisa aproximar, o máximo possível, suas práticas de uso da linguagem das práticas sociais de uso da linguagem. • “O trabalho com a diversidade de textos que circulam socialmente é necessário desde a Educação Infantil. • “É possível produzir textos sem saber escrever. • “É possível “ler” sem saber ler.” (nas pp. 82, 83 e 84 dos PCN -
49
Quadro 5 – “Diversidade”: concordâncias
Assim, das 9 ocorrências do substantivo “diversidade” nos módulos, 7
referem-se à diversidade textual.
174
A atividade 6 do módulo 6 é um bom exemplo de como é tratada a
questão da diversidade textual:
6. Seqüenciação de conteúdos para a proposta curricular de Língua Portuguesa no que se refere a um aspecto do trabalho (inicialmente no segmento de 5ª a 8ª séries, para depois ser complementado com as séries iniciais do Ensino Fundamental – 2h). • Leitura do seguinte texto para ampliar a discussão: “Ter de fato uma proposta de ensino de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental pressupõe uma discussão coletiva sobre ‘quem vai ensinar o que, quando e de que maneira’, ou seja, uma seqüenciação real do trabalho didático. Isso se pode (e se deve) fazer com todos os conteúdos: é fundamental que a equipe de educadores da escola defina coletivamente objetivos e conteúdos específicos de cada série. Para fazer valer, por exemplo, a orientação de trabalho com a diversidade textual em todas as séries, não se pode deixar de definir as prioridades do ensino em cada uma delas. O propósito de garantir a diversidade textual na sala de aula não pode ter como conseqüência – como ocorreu em algumas práticas – a subestimação do papel do professor: só o contato com os textos não garante as aprendizagens necessárias, pois, nesse sentido, não há nada que tenha efeito mais profícuo do que uma intervenção pedagógica eficaz. E isso só é possível com um planejamento cuidadoso e com uma seqüenciação adequada”.
• Leitura das páginas 54 e 57 dos PCN – Língua Portuguesa 5ª a 8ª séries: Gêneros privilegiados para a prática de escuta e leitura/produção de textos. • Elaboração de uma tabela de dupla entrada com todas as séries/todos os gêneros textuais que se julga pertinente trabalhar no Ensino Fundamental, utilizando como referência os quadros das páginas 54 e 57 (Anexo 1). Preenchimento da tabela, especificando que tipo de trabalho pode ser feito em cada série. Isso implica definir, inicialmente, as práticas a serem desenvolvidas na série com cada gênero – leitura, escuta, fala e escrita – e a freqüência, considerando a realidade de cada escola e as opiniões dos professores. Posteriormente se pode detalhar melhor a tabela, registrando os conteúdos específicos relacionados a cada gênero, por série. A finalidade básica desta atividade é a elaboração coletiva de uma seqüenciação do trabalho com a diversidade textual de 5 ª a 8ª séries, que depois possa ser complementada pelos professores de 1ª a 4ª séries, de forma a compor um quadro único de toda a escola. Sugestão: o restante do tempo do módulo pode ser utilizado para a seqüenciação de outros conteúdos: ortografia, gramática etc. da mesma maneira que se procedeu nesta atividade. Para tanto, verificar no Sumário dos PCN – Língua Portuguesa 5ª a 8ª séries os itens que tratam dos conteúdos que se pretende seqüenciar para usá-los como referência. (Brasil, 1999: 166, ênfases adicionadas)
Como se vê, o objetivo dessa atividade é a elaboração de uma progressão
175
curricular ou seqüenciação de conteúdos. Note-se que, segundo o texto apresentado
para discussão entre os professores, subtende-se que a orientação do trabalho é
com a diversidade textual em todas as séries e que o propósito é garantir a
diversidade textual. Para tanto, solicita-se que os professores leiam as página 54 e
57 dos PCN – onde aparecem as duas tabelas de agrupamentos de gêneros
sugeridos para o trabalho na escola – e, a partir desses modelos, elaborem uma
outra tabela, considerando os gêneros que devem ser tratados em cada uma séries,
em suas escolas. Em seguida, justifica-se atividade: A finalidade básica desta
atividade é a elaboração coletiva de uma seqüenciação do trabalho com a
diversidade textual de 5ª a 8ª séries.
Ora, o que se percebe é uma indistinção entre a opção de um currículo cujo
eixo se articula sobre gêneros e uma opção que se articula sobre a diversidade
textual, como se não houvesse diferença entre as duas. Há sim uma grande
diferença: ao se priorizar a noção de gênero, o trabalho em aula vai exigir uma
análise enunciativo-discursiva e/ou sócio-histórica (dependendo da noção de gênero
adotada) dos textos pertencentes aos gêneros em questão. Já um trabalho apenas
com a diversidade de textual pode ser feito simplesmente a partir da própria
materialidade dos textos, a partir de uma variedade de enfoques.
No trecho citado acima, fica claro que, quando é a voz dos PCN que fala ou
quando se faz referência a ele, o termo usado é “gêneros”. Ao contrário, quando é a
voz dos próprios PA que ecoa, o termo utilizado é “diversidade textual”.
Talvez essa oscilação possa ser justificada por uma das razões já apontadas
por nós quanto ao apagamento da adjetivação do vocábulo “gênero(s)” nos PCN. O
professor não está familiarizado com – e possivelmente nem interessado em – a
discussão acerca da diferenciação entre “diversidade textual” e “diversidade de
gêneros” e, para evitar “resistências” ao PA devido a discussões de cunho muito
teórico, opta-se pela expressão mais familiar – no caso “diversidade textual”. Porém,
é possível que, apesar dessa opção, os módulos do PA trabalhem com a noção de
gêneros discursivos ou textuais sem, no entanto, nomeá-la.
Considerando-se tal possibilidade, vamos analisar, a seguir, algumas
atividades com textos propostas nos módulos do PA, a fim de verificar que tipo de
176
trabalho com os textos é feito e quais possíveis aportes teóricos o embasam.
6.3.2 A análise de algumas atividades propostas nos módulos do PA
Atividade 1
O texto trabalhado no módulo 3 (p.129) é um editorial publicado no jornal
Folha de S. Paulo, em agosto de 1995, intitulado “A infância escamoteada”. Os
exercícios propostos a partir deste texto têm como objetivo demonstrar a diferença
entre as práticas escolares “habituais” de trabalho com o texto e o que os
Parâmetros em Ação chamam de “novas abordagens” (p.127). Para tanto, são
apresentados dois roteiros de trabalho, um com uma forma habitual de exploração
didática de textos (ou seja, de acordo com o modelo explicação-ação, segundo o
PA) e outro com a chamada “nova abordagem” (ou seja, de acordo com o modelo
ação-reflexão-ação, também segundo o PA).
Vejamos o texto proposto e o Roteiro 1:
A infância escamoteada
Análise do editorial da Folha de S. Paulo (7 de agosto de 1995) A impressão de que alguns problemas, como o dos menores de rua, são crônicos no Brasil tem sido normalmente alimentada pela ineficácia das políticas públicas. Mas certas características da mentalidade popular contribuem para que se fortifique essa impressão de que o problema do menor é renitente. Motoristas irritados acreditam que, ignorando a criança pedinte, estarão conscientizando-a de que deve trabalhar e ganhar dinheiro. Outros, porém, decidindo-se pela doação, encontram ali uma oportunidade para mitigar as dores de consciência que, em maior ou menor grau, atingem a todos. Em ambos os casos, a consciência individual pretende dar o assunto por encerrado: no primeiro, o motorista foi didático em sua irredutibilidade e não tem mais nada a fazer; no segundo, o transeunte acredita ter-se reconciliado com a miséria humana e contribuído para minorá-la um pouco. Entre esses dois extremos – o da inflexibilidade de uns, travestida de lição de vida, e o da suscetibilidade dos mais solidários – o problema da marginalidade infantil requer mais a formação de uma consciência social a respeito de sua magnitude do que o mero aplacamento das consciências individuais.
177
Roteiro 1
Questões de interpretação 1. Por que se tem a impressão de que o problema do menor é crônico no Brasil? 2. Como se comportam os dois tipos de motoristas apresentados pelo autor no segundo parágrafo? 3. Por que o autor afirma no terceiro parágrafo que em ambos os casos os motoristas dão o assunto por encerrado? 4. Como o problema poderia ser então resolvido? Questões gramaticais: revisão de classes de palavras 1. Retire do texto o que se pede: • Quatro exemplos de substantivos abstratos. • Dois exemplos de numerais ordinais. 2. Dê a classe gramatical das palavras sublinhadas nas frases abaixo: • A impressão de que alguns problemas, como o dos menores de rua, são crônicos no Brasil tem sido normalmente alimentada pela ineficácia das políticas públicas. • Mas certas características da mentalidade popular contribuem para que se fortifique essa impressão de que o problema do menor é renitente. 3. Em que tempo e modo estão conjugados os verbos que aparecem nos períodos que compõem o exercício anterior: • São • Tem sido alimentada • Contribuem • É
(Brasil, 1999: 129,130)
Como pudemos ver, no Roteiro 199, há questões de “interpretação” e questões
gramaticais. As primeiras seguem claramente a tradicional prática de
localização/recorte e cópia de informação100 que, como sabemos, pouco contribui
para que os alunos efetivamente reconstruam os sentidos do texto (Marcuschi, 2001
e Jurado & Rojo, no prelo), ou seja, pouco se presta para a “interpretação”. Já as
questões gramaticais são evidentemente do tipo que usa o texto como “pretexto”
99 Os Parâmetros em Ação chamam de “roteiro” uma seqüência de perguntas e/ou exercícios
elaborados para se trabalhar um texto. 100 Por exemplo: “2. Como se comportam os dois tipos de motoristas apresentados pelo autor no
segundo parágrafo?”
178
para o ensino de gramática, solicitando, por exemplo, que o aluno retire do texto
palavras pertencentes a tais e tais classes gramaticais, sem que haja nenhum
objetivo explícito para isto, a não ser testar se o aluno relaciona palavras a suas
classes. Provavelmente, isto é fruto de uma interpretação equivocada da idéia de se
trabalhar a gramática a partir dos textos.
Certamente decorrentes de uma visão de língua que se encaixa no que
Bakhtin/Volochínov (1929) chamou de “objetivismo abstrato” – visão esta advinda de
estudos filológicos e que também pressupõe que a língua reflete perfeitamente o
mundo e nosso pensamento –, ambos os exercícios parecem ter apenas um fim em
si mesmos, em vez de ser um estímulo para que o aluno reconstrua os sentidos do
texto ou de contribuir para a formação de um leitor mais crítico e autônomo.
A fim de fazer um contraponto em relação ao Roteiro 1 e de exemplificar as
“novas abordagens”, o Roteiro 2 propõe um outro tipo de trabalho com o texto,
mesclando questões de localização com outras baseadas na lingüística textual e
nas teorias cognitivas de leitura. Vejamos:
Roteiro 2
1. O título do texto sugere que o editorial vá pronunciar-se a respeito de que assunto? 2. Ao iniciar o primeiro parágrafo, o autor não se refere em particular ao problema dos menores, apresentando-o apenas como um exemplo de problemas “crônicos”. Inicialmente, que causa apresenta para a existência desses problemas? 3. A conjunção “mas” opõe uma situação a outra. Que oposição a conjunção “mas” estabelece no primeiro parágrafo do texto? 4. Ao opor uma situação a outra, a ordem dos elementos não é indiferente. Compare as duas afirmações: • João é inteligente, mas preguiçoso. • João é preguiçoso, mas inteligente. Com certeza, João vai preferir que, no conselho de classe, o professor de matemática diga a segunda, que vai livrá-lo das aulas de recuperação. Isso ocorre porque o elemento que vem depois do “mas” tem maior peso argumentativo. Levando em conta o que foi afirmado, qual dos elementos ligados pelo “mas” será desenvolvido pelo autor do editorial? 5. No segundo parágrafo, o autor apresenta dois exemplos que procuram caracterizar a mentalidade popular.
• Quais são eles? • Há entre os dois exemplos uma relação de oposição. Qual a
palavra que mostra o confronto entre um e outro exemplo?
179
6. Você acha que a crítica é dirigida apenas aos motoristas? Explique. 7. Ler exige que o leitor, além de fazer antecipações a respeito dos conteúdos do texto, faça também uma série de relações com o que já foi dito à medida que avança no processo de leitura. Vamos reler o terceiro parágrafo: “Em ambos os casos, a consciência individual pretende dar o assunto por encerrado: no primeiro, o motorista foi didático em sua irredutibilidade e não tem mais nada a fazer; no segundo, o transeunte acredita ter se reconciliado com a miséria humana e contribuído para minorá-la um pouco”.
• A que trechos anteriores do texto se referem os numerais destacados?
• Há também neste parágrafo uma relação de oposição. Como o autor separa uma parte da outra?
8. Releia agora o último parágrafo do texto: “Entre esses dois extremos – o da inflexibilidade de uns, travestida de lição de vida, e o da suscetibilidade dos mais solidários – o problema da marginalidade infantil requer mais a formação de uma consciência social a respeito de sua magnitude do que o mero aplacamento das consciências individuais”. Os substantivos abstratos destacados são derivados de adjetivos: inflexibilidade é derivado de inflexível (indiferente, insensível); suscetibilidade é derivado de suscetível (que se ofende com facilidade, melindroso).
• A que trechos anteriores do texto se referem os substantivos abstratos destacados?
• Você acha que o autor conseguiria o mesmo efeito se, em lugar de “inflexibilidade”, usasse “firmeza” e se, em lugar de “suscetibilidade”, usasse “sensibilidade”?
9. O autor não apóia nenhuma das posições apresentadas como exemplo da mentalidade popular, mas parece ter maior antipatia pela primeira. Selecione palavras ou expressões do texto que justifiquem a afirmação acima. 10. O autor apresentou um problema: as crianças abandonadas. Apontou duas causas para esse problema: “a ineficácia das políticas públicas” e “certas características da mentalidade popular”, aprofundando apenas uma delas. Afirmou que a solução para o problema não deve ser individual, mas social. Você acha que o editorial conseguiu explicar como resolver o problema das crianças abandonadas? (Brasil, 1999: 130, 131)
Tomemos a primeira questão do Roteiro 2:
1. O título do texto sugere que o editorial vá pronunciar-se a respeito de que
assunto?
180
Claramente, este tipo de pergunta se baseia em teorias cognitivas que
apontam para um processo de leitura que parte do levantamento de hipóteses
acerca do conteúdo do texto – utilizando, para isto, certos elementos constituintes
porém marginais a ele (título, ilustrações, texto da orelha do livro etc.) –, para,
durante a leitura, proceder à checagem destas hipóteses. Além dessa, outras
questões desse Roteiro parecem fazer referência às teorias cognitivas de leitura
como, por exemplo, as questões 6 e 8 – que exigem que o leitor opere
generalizações a partir da relação entre diferentes partes do texto – e a questão 2,
de inferência local.
Conceitos da Lingüística Textual também estão subjacentes a algumas das
questões. As questões 3, 4, 5 e 7, por exemplo, recorrem aos conceitos de
operadores argumentativos e de anáfora.
Por outro lado, muitas das questões, em vez de contribuirem para a
construção de significados do texto, já os dá prontos. É o caso, por exemplo, das
questões 9 e 10.
Com relação ao exercício 9, porém, se, por um lado, não nos parece positivo
já dar prontos os possíveis significados dos textos , por outro, o fato de o exercício
solicitar que se procure no texto as marcas da interpretação já dada pode servir de
“andaime” para que na leitura de outros textos o aluno possa autonomamente
reconhecer marcas textuais semelhantes para chegar a construir por si só os
significados dos textos.
Comparando os dois Roteiros, fica claro que o tipo de trabalho proposto no
Roteiro 2 representa um grande avanço, principalmente no sentido de se formar um
leitor mais proficiente, já que, sem dúvida, a explicitação de estratégias de leitura
possibilitada pelas teorias cognitivas de leitura, bem como a exploração de recursos
advindos da lingüística textual – que, por exemplo, propiciam o desenvolvimento da
capacidade de se perceber relações anafóricas num texto –, têm se mostrado ser
um bom auxílio no trabalho de leitura em sala de aula.
No entanto, se fôssemos seguir a sugestão de método de análise lingüística
181
proposta por Bakhtin/Volochinov (1929: 124)101 e a adoção da noção de gênero do
discurso como articuladora de um trabalho didático com a linguagem, como sugerem
os PCN, antes de mais nada, seria necessário – a partir de um corpus e da
indissociável relação entre esfera de atividade (no caso, a jornalística) e linguagem –
, discutir o que é um editorial, qual sua função, levantando as características do
funcionamento do gênero. Em seguida, dever-se-iam levantar as características do
jornal onde o editorial foi publicado, qual é sua história, quem são seus leitores, onde
ele circula etc. Se, conforme afirma Bakhtin (1952-53/1979: 291), o próprio locutor é,
em certo grau, um respondente e por isso cada enunciado é um elo na cadeia muito
complexa de enunciados (1952-53/1979: 319), o próximo passo, por exemplo,
poderia ser investigar a quem esse editorial está respondendo, com que outros
enunciados este texto está dialogando. E isto também estaria de acordo com a
sugestão dos PCN de se trabalhar com a intertextualidade. Ou seja, antes de mais
nada, dever-se-ia analisar não só o co-texto imediato de produção do enunciado,
mas também seu contexto sócio-histórico mais amplo. Dessa forma, a posição do
autor – neste caso de editorial, autoria institucional – ficaria mais clara e, para o
aluno, seria mais fácil adotar uma postura de réplica ativa diante do que leu.
Ao contrário, em momento algum desse Roteiro 2, falou-se de gênero ou fez-
se uma análise enunciativo-discursiva que considerasse, por exemplo, o contexto de
produção do texto, o lugar social do jornal enquanto autor institucional do texto, seus
possíveis interlocutores, as possíveis representações do autor, a relação deste texto
com outros etc. Se concordamos que o sentido de um enunciado se dá somente no
momento da interação e que o contexto de produção, bem como as relações
dialógicas verbais e extra-verbais participam da construção do significado de um
texto, uma tal análise enunciativo-discursiva não só estaria mais de acordo com uma
proposta de se trabalhar com a noção de gêneros (como, aliás, sugerem os PCN, à
101 Disso decorre que a ordem metodológica para o estudo da língua deve ser a seguinte:
1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza.
2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal.
3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual. (Bakhtin/Volochinov, 1929: 124)
182
página 35) e com uma visão bakhtiniana de linguagem, mas também representariam
uma contribuição mais efetiva para que o próprio aluno reconstruísse os sentidos do
texto de maneira responsiva.
Atividade 2
No módulo 9, são apresentados 3 exemplos de projeto de trabalho já
totalmente desenvolvidos para que os professores compreendam de que forma um
projeto pode ser encaminhado. Inicialmente, tomarei o Projeto 3 (da 194 à 202)102
para análise.
Vejamos um dos itens concernentes à “Articulação entre as práticas de
escuta e de leitura, produção de textos e análise lingüística” (p.195) desse Projeto:
c) Análise lingüística. • Reconhecimento do contexto em que cada poema foi produzido. • Intertextualidade (explícita ou não). • Recursos expressivos e estilísticos próprios da linguagem poética. • Revisão dos padrões da escrita. (Brasil, 1999: 195)
Ao contrário do que se notou no exercício acima analisado, neste sugere-se
que se faça uma análise lingüística, a partir do reconhecimento do contexto de
produção de cada poema. Porém, tanto nas “Etapas previstas” quanto nas questões
que se seguem a cada um dos poemas, não há mais nenhuma referência ao seu
contexto de produção103. Ou seja, resgatam-se alguns aspectos contextuais, porém
essas informações não são utilizadas para efetivamente se trabalhar a leitura do
texto e reconstruir seu significado. E há, ainda, uma agravante: nas Questões (p.
200), retoma-se a tal prática de perguntas que exigem apenas localização de
informações no texto.
Em termos de análise lingüística, o máximo que se trabalha é a
intertextualidade – com questões do tipo Localize as passagens em que há
102 Veja o roteiro completo no Anexo 5 103 Ao se apresentarem as “articulações possíveis” com os conteúdos de outras áreas, propõe-se,
num trabalho interdisciplinar com História, que se estude a “atuação da censura nos regimes militares”. O problema é que se sugere que esta articulação é apenas “possível”; porém, para uma análise discursiva de cunho bakhtiniano, esta articulação seria antes “necessária”.
183
referência ao texto do Drummond – e não a interdiscursividade, no sentido de que,
conforme propunha Bakhtin, um enunciado não dialoga apenas com outros textos,
mas também com outros discursos, com seu contexto e com outras vozes.
Interdiscursividade, aqui, seria contrastar a visão de mundo veiculada pelo poema de
Drummond à visão de mundo de Chico Buarque de Holanda.
Impossível analisar a letra da música de Chico Buarque, por exemplo, sem
fazer referência à época da ditadura militar, à censura que vigorava então. Já
Drummond tem como referência contextual outro momento sócio-histórico e,
provavelmente, tem também outros interlocutores imaginados para seu texto no
momento da composição. É a diferença de contexto, de apreciação valorativa do(s)
interlocutor(es) e de outros elementos enunciativos, conforme vimos acima, que faz
com que um texto seja diferente do outro, apesar de partirem da mesma referência
textual (o Evangelho de Lucas). Assim, o que se nota é que os Parâmetros em Ação
levam em conta apenas parte dos elementos da enunciação para trabalhar textos e,
particularmente neste exemplo, sequer elementos textuais que auxiliariam uma
análise discursiva são considerados. Ou seja, falta, aqui também, o necessário
diálogo entre texto e contexto.
Atividade 3
Para finalizar, tomemos agora para análise o Projeto 2 (pp. 193 e 194)104
desse mesmo módulo 9.
O objetivo do projeto é, depois de vencidas várias etapas – como, por
exemplo, a “construção” da árvore genealógica das divindades gregas ou a leitura
de adaptações de A Ilíada e de A Odisséia –, produzir um “Jornal da Grécia”.
Como vimos anteriormente, os gêneros são formas relativamente estáveis de
enunciados do ponto de vista temático, composicional e estilístico, dados contextos
e situações específicas de comunicação. Isto significa que as condições sócio-
históricas vão ser determinantes para o surgimento ou desaparecimento de
determinados gêneros. Assim, por exemplo, numa pequena comunidade em que
pouquíssimos dominam a escrita e que, portanto, é baseada em tradições orais, num
104 Ver Anexo 6.
184
momento histórico em que ainda não foi inventada a prensa, não seria necessária
nem possível a existência de um jornal como hoje o conhecemos. Dessa forma, um
projeto que propõe a produção de um Jornal da Grécia, considerando os temas que
circulavam na Grécia antiga é, em termos do conceito de esferas de circulação e de
gêneros discursivos, um erro de aplicação teórica e um completo anacronismo.
O que se pergunta é: que tipo de leitor/produtor de texto se espera formar a
partir de um exercício como este? Certamente, não é o cidadão crítico, pois ao levar
o jornal para a Grécia antiga, confundem-se tempos históricos diferentes, afastando
o aluno de sua realidade e, conseqüentemente, impedindo-o de fazer uma relação
entre fatores sócio-históricos e texto, o que diminui suas chances de
desenvolvimento de uma visão crítica ou de réplica ativa àquilo que lê.
Com tudo o que vimos, podemos concluir que há vários aspectos
interessantes nos exercícios propostos nos módulos do PA, porém, outros que
podem merecer críticas. Com relação à noção de gênero, o que fica evidente é que
se trabalha muito pouco a partir dela e, quando se trabalha, faz-se de forma
inconsistente e até equivocada, reiterando o que já apontava o artigo de Barbosa
(2000: 159-163) quanto à desconexão entre este documento e os PCN de Língua
Portuguesa 3º e 4º ciclos no que tange ao trabalho a partir da noção de gêneros.
186
Conclusão
Finda a análise dos dois documentos, vale agora mais uma vez retomarmos
nossas perguntas de pesquisa, para que possamos agora respondê-las
comparativamente:
a) Qual é a condição de produção de cada um dos documentos objeto
de nossa análise?
b) Qual é o leitor visado de cada um dos documentos?
c) Que vozes podem ser neles identificadas?
d) Que enfoque da noção de gêneros é o preferencialmente adotado em
cada um os documentos?
e) Que nível de diálogo estabelecem entre si?
Em se tratando das condições de produção dos PCN, vimos, nos capítulos
anteriores, que a adoção, por parte desses parâmetros, da noção de gêneros como
objeto de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa reflete um momento histórico
em que há, na educação, uma tensão entre forças neoliberais e a resistência de
grupos de educadores defensores de uma educação mais voltada para a formação
do leitor crítico e para a cidadania.
A análise dos PCN, apresentada no Capítulo 5, mostrou-nos que, pela noção
de gêneros, apesar da tentativa de apagamento das vozes e das noções mais
marcadas, as vozes que se fazem mais presentes – embora não exclusivamente –
são as do Grupo de Didática de Língua Materna da Universidade de Genebra
(notadamente, os textos de Dolz & Schneuwly), o que nos permite inscrever as
abordagens da noção de gênero nos PCN dentro de uma tendência textual. Em
concordância com tal tratamento da noção de gêneros, em relação ao trabalho
didático com textos, percebe-se também a reverberação de abordagens bastante
influenciadas pelas teorias cognitivistas e textuais da linguagem, desde a década de
1980 já bastante presentes nas propostas curriculares de vários estados do país, as
quais, em parte, foram tomadas como base para a elaboração dos PCN. A diferença
187
destas propostas em relação àquelas presentes no documento analisado é que,
nele, aparece com mais ênfase uma preocupação em se considerar as condições
sócio-discursivas de produção dos textos, provavelmente fruto não só das novas
abordagens das diferentes linhas da Lingüística, mas principalmente fruto da própria
incorporação da noção de gênero como objeto privilegiado de ensino-aprendizagem.
O que se percebe, no entanto, é que fica faltando, aos PCN, explicitar melhor de
que forma pode se dar a operacionalização dessas propostas.
Mas se, por um lado, percebemos marcas de uma adesão às propostas do
Grupo de Didática de Língua Materna da Universidade de Genebra – o que
inscreveria os PCN dentro de uma abordagem mais textual – , por outro, também é
possível notar algum nível de ruptura. Por exemplo, conforme aponta Barbosa
(2001a: 140), ao contrário do que acontece com aquelas propostas, nos PCN, o
critério adotado para o agrupamento de gêneros é o das esferas em que eles
circulam e não o tipo de seqüência textual predominante nos textos a eles
pertencentes. Tal opção combina mais com uma leitura histórico-discursiva da noção
de gêneros do que com uma leitura textual.
Assim, ainda que a concepção de gêneros adotada ora se aproxime e ora se
afaste daquela mais bakhtiniana, pode-se perceber nos PCN a influência de Bakhtin
pela consideração da historicidade da língua e pela questão do plurilingüismo,
ambos temas bastante importantes para o desenvolvimento de uma educação
cidadã. Mesmo que de forma talvez pouco enfática, há também, em alguns trechos
desses parâmetros, sugestões de uma abordagem não só enunciativo-discursiva
(ou seja, em que se considere a influência de aspectos ligados ao contexto imediato
da enunciação), mas também sócio-histórica dos gêneros que, como vimos,
favorecem uma leitura mais crítica de textos.
Com relação ao leitor visado pelos PCN de Língua Portuguesa para 3º e 4º
ciclos, ao analisarmos a adjetivação da noção de gêneros, vimos que o documento
opta por um apagamento da mesma, provavelmente em função de um certo objetivo
“conciliatório” entre diferentes correntes acadêmicas – objetivo esse conveniente ao
caráter político-legal do texto –, bem como em função de não envolver o professor
em discussões que não lhe interessam. Ou seja, essa opção de apagamento
188
confirma o que Gomes-Santos (2004) conclui, e nós então reiteramos, que os PCN
têm, na realidade, três diferentes interlocutores visados: o professor, a produção
acadêmica e a esfera político-legal.
Por outro lado, livres de um compromisso com as esferas acadêmica e
político-legal, o programa Parâmetros em Ação e os módulos analisados nesta
dissertação nasceram da necessidade de se oferecer aos professores um programa
de formação continuada que lhes propiciasse a compreensão e a implementação
das propostas dos PCN.
De fato, as análises aqui feitas acerca dos módulos de Língua Portuguesa
dos Parâmetros em Ação possibilitaram-nos concluir que o interlocutor visado pelo
documento é, sem dúvida, o professor, ávido por fórmulas de como se trabalhar os
conteúdos propostos pelos PCN, mas também carente de apoio teórico para sua
prática, como demonstra o pedido de produção e envio de material teórico feito por
parte dos coordenadores do programa (citado no capítulo anterior) e infelizmente
não atendido pelo MEC.
O problema do pouco relevo dado pelos Parâmetros em Ação a questões
teóricas (o que, aliás, é comum aos programas de formação continuada de
professores em geral) é que, ao se trabalharem apenas “receitas” de aulas, induz-se
o professor a tomar novos conceitos e didatizações deles advindos como se fossem
os mesmos conceitos e didatizações cristalizados em sua prática. Assim, por
exemplo, noções como as de coesão acabam se transformando em aulas de
conjunções e pontuação e, em nosso caso específico, como apontou nossa análise,
a idéia de se trabalhar com uma diversidade de gêneros pode acabar sendo
confundida com um trabalho com diversidade textual.
Quanto aos exercícios ali propostos, salvo algumas exceções, foi possível
perceber, em nossa análise, que eles não se encaixam num trabalho enunciativo-
discursivo de leitura/produção de textos, tampouco num trabalho enunciativo-
discursivo com os gêneros. Assim, como a noção de gêneros é muito pouco
tematizada no documento, praticamente nem cabe discutir a que abordagem – mais
textual ou mais discursiva – ela corresponde. O que se notou, na realidade, foi a
ênfase em aspectos da ordem da textualidade e do cognitivo, mais do que da ordem
189
da enunciação ou do estudo do gênero – conforme esses assuntos eram tratados
nos fins da década de 1970 e início da de 80, quando, diferentemente do que ocorre
hoje, ainda não se dava relevo especial aos aspectos sociais da linguagem.
As vozes que mais evidentemente ecoam nesse documento, portanto,
também são aquelas das propostas curriculares de vários estados nacionais,
anteriores aos PCN, em vigor nas décadas de 1980 e 90.
Não é difícil constatar, dessa forma, que há uma falha no diálogo entre os
dois documentos. Assim, a nosso ver, ao incorporar de forma insuficiente o objetivo
de se adotar os gêneros discursivos/textuais como objeto de ensino-aprendizagem,
os módulos do PA fazem recuar o passo adiante que as propostas dos PCN
representam em relação às propostas curriculares anteriores e trabalham a favor de
práticas já cristalizadas no cotidiano docente.
Em relação às conseqüências desse fato na formação dos professores e dos
alunos, o que lamentamos é que, dando tão pouco relevo a um trabalho discursivo
com os gêneros, diminui-se a chance de se formarem cidadãos mais críticos e
participantes, conforme mostramos no Capítulo 2.
Com relação à formação continuada de professores, uma tal desarticulação,
embora bastante preocupante, não chega a surpreender. Todos sabem que, desde
há muito, descontinuidade e desarticulação têm caracterizado os programas de
formação “continuada” oferecidos aos professores nos diferentes níveis da
administração pública.
De acordo com Collares, Moyses e Geraldi (1999: 215):
Retornando às experiências de participação em diferentes momentos da “educação continuada” patrocinada pelos governos posteriores à ditadura militar, poderíamos apontar alguns indicadores da descontinuidade: • a constante interrupção de projetos, sem escuta e avaliação prévias entre os participantes; • a suspensão de atividades previstas, até mesmo de encontros de curta duração, em nome do calendário escolar e, ultimamente, em nome dos 200 dias letivos; • alterações de formatação de programas e projetos e forma de organização de órgãos públicos responsáveis pela execução dos planejamentos;
190
• a rotatividade do corpo docente nas escolas, provocada tanto pelo abandono da profissão quanto pelas transferências, suspendendo atividades em andamento; • a vulgarização de modelos científicos, tornados “modismos” e transmitidos como “receitas”, em panacéia para todos os problemas.
Assim, onde se esperava a continuidade de projetos que pudessem levar a
uma verdadeira transformação da escola, encontramos o continuísmo. A cada
interrupção e retomada de forma descontinuada, é como se o passado – sobre o
qual atuamos no presente e construímos o futuro – fosse negado. Assim, é a
desconsideração do passado que leva à estagnação.
Como bem afirmam Collares et al., há, portanto, uma grande diferença entre
descontinuidade e ruptura:
Em contraste com a ruptura, elemento essencial da continuidade, a descontinuidade caracteriza-se pelo eterno recomeçar em que a história é negada, os saberes são desqualificados, o sujeito é assujeitado, porque se concebe a vida como um “tempo zero”. O trabalho não ensina, o sujeito não flui, porque antropomorfiza-se o conhecimento e objetifica-se o sujeito. (Collares et al.,1999: 212)
(...)
Em aparente paradoxo, a descontinuidade, com seus constantes retornos ao ponto zero, ao tempo zero, é condição essencial para que possa haver o continuismo, pelas mudanças que se destinam a manter inalteradas as relações de saber e de poder. Em contraste, as rupturas, que são propiciadas pelos acontecimentos, pelas experiências planejadas ou ditadas pelo acaso, constituem a essência da continuidade, ao tecerem novas possibilidades de caminhos por onde a vida possa fluir, nos diferentes e incertos modos de andar a vida. (Collares et al.,1999: 216)
Um dos fatores determinantes de tal descontinuidade que leva à paralisia das
ações e que necessitaria ser definitivamente eliminado é a mudança de planos e
estratégias a cada mudança de governo. É urgente que, de uma vez por todas, se
distinga política pública – que nasce do engajamento legítimo dos cidadãos com as
transformações sociais –, de política de governo ou de gestão.
Ainda de acordo com Collares et al. (1999: 216), como a “educação
continuada” atende a planos de governo e não a políticas assumidas pelos
profissionais do ensino, cada mudança de governo representa um recomeçar do
191
“zero”, negando-se a história que, no entanto, está lá – na escola, na sala de aula,
nos saberes do professor.
Mas, como nossa análise mostra, a descontinuidade não é o único problema
que talvez esteja afetando a eficácia dos programas de formação continuada de
professores. Hoje vemos ampliar a oferta de tais programas em níveis federal,
estadual e municipal. Desnecessário é comentar a desarticulação de políticas de
formação existente entre esses três níveis, principalmente em locais em que cada
nível é liderado por um diferente partido ou onde grupos específicos de
universidades diversas, provavelmente afiliados a diferentes perspectivas teóricas,
assumem programas de formação continuada, sem a necessária discussão global
que deveria caracterizar uma política pública.
No entanto, o que constatamos com a comparação dos dois documentos
analisados é um outro problema, ainda mais grave: até no próprio interior de um
mesmo nível de administração pública, numa mesma gestão, os vários programas
de uma área – no nosso caso, da educação lingüística –, são elaborados de forma
desarticulada.
É inevitável que, devido à quantidade e vulto dos trabalhos, os vários
programas que compõem um plano de governo sejam elaborados por equipes
diferentes. A nosso ver, o problema reside, no entanto, na falta de articulação entre
essas equipes (ou no desmantelo delas antes da conclusão dos vários projetos) e na
falta de discussão mais ampla das propostas, o que pode resultar em orientações
que acabam apontando para direções e práticas diversas ou até divergentes, já que
foram elaboradas a partir de aportes teóricos não coincidentes.
A conseqüência disso é que muito pouco se avança em termos de
transformação real da prática pedagógica. E aqui, mais uma vez, o continuísmo
ganha da continuidade.
Vários autores que pesquisam na área de formação de professores (Collares,
1999; Geraldi, 1991; Nóvoa, 1999, entre outros) parecem concordar que, além da
adoção de políticas articuladas e contínuas, um dos principais caminhos para a
saída desse imobilismo seria uma maior valorização dos “saberes” construídos na
192
prática pelos professores e a incorporação desses saberes aos programas de
formação.
Considerando os planos mais recentes para a área de formação
“permanente”, como prefere chamar o governo federal, parece-nos que, se não em
termos de continuidade, pelo menos em termos de articulação, há algo sendo feito.
No entanto, ainda que, para evitar a desarticulação de políticas e programas,
estejam sendo criadas pelo atual governo a Coordenação-Geral de Monitorização de
Planos, Programas e Projetos Educacionais e a Coordenação-Geral de Articulação e
Fortalecimento Institucional dos Sistemas de Ensino, nada nos garante que o
problema vá ser superado, pois, como vimos, não basta haver um programa ou um
parâmetro nacional para que se articulem as várias ações do governo.
Hoje, sob as coordenações-gerais acima citadas e em substituição ao
programa Parâmetros em Ação e de outros programas de formação continuada do
governo anterior, o atual governo federal acaba de instituir a Rede Nacional de
Formação Continuada de Professores de Educação Básica. Trata-se de um
programa que oferecerá, para a rede pública de ensino, materiais elaborados por
universidades públicas e comunitárias, de diferentes regiões do país e selecionadas
pelo MEC. Segundo informações do site do Ministério105, essas universidades
constituirão os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação, responsáveis
por programas nas áreas de Alfabetização e Linguagem, Educação Matemática e
Científica, Ensino de Ciências Humanas e Sociais, Artes e Educação Física, Gestão
e Avaliação da Educação. Novamente não se menciona, entretanto, formas e vias
de articulação das diferentes propostas regionais a serem implementadas por essas
Universidades.
No que tange a nossa área de interesse, Alfabetização e Linguagem, os
Centros de Pesquisa que estarão envolvidos serão seis: Universidade de Brasília,
Universidade Federal de Minas Gerais, Unicamp, Universidade Federal de Sergipe,
Universidade Estadual de Ponta Grossa e Universidade Federal de Pernambuco.
105 Confira no endereço http://www.mec.gov.br/seb/rede/default.shtm , consultado em 03/01/05.
193
A excelência do trabalho dessas universidades é inquestionável, porém resta-
nos saber se elas efetivamente conseguirão trabalhar de forma articulada ou se
perpetuarão a sina de descontinuidade e desarticulação a que parecem estar
fadadas nossas políticas educacionais.
***********
Analisando retrospectivamente este trabalho, ao lado de um interesse,
digamos, mais acadêmico de investigar qual a abordagem da noção de gênero
estaria predominantemente presente nos documentos oficiais voltados para o ensino
de Língua Portuguesa, havia outro, conseqüência quase inevitável para quem se
aventura a tratar de questões curriculares: que tipo de contribuição social a adoção
da noção de gênero pelos PCN poderia dar? Ou melhor, como a escolha desse novo
objeto de ensino-aprendizagem poderia contribuir para uma educação que fosse
realmente voltada para a formação de alunos capazes de exercer sua cidadania?
Agora, tendo analisado não só os PCN, mas também os Parâmetros em
Ação, terminamos falando, ainda que muitíssimo brevemente, da importância da
continuidade (e não do continuísmo) dentro dos programas de formação de
professores. O fato é que são todas questões fortemente interligadas e, em se
tratando de políticas educacionais públicas realmente voltadas para a cidadania,
não podemos admitir que, parafraseando o ditado popular, “um santo seja vestido
enquanto outros permaneçam desnudos”. Se realmente queremos que a escola
forme cidadãos críticos, livres e atuantes, temos de pensar em articular cada
elemento da prática educacional, o que envolve desde as políticas e os programas
federais, passando evidentemente pelos conteúdos curriculares, até as pequenas
atitudes e os mais sutis comportamentos em sala de aula.
195
ADAM, J.-M. (1999). Linguistique textuelle: des genres de discours aux textes. Paris: Nathan.
BAKHTIN/VOLOCHÍNOV. (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec. 2002 BAKHTIN , M. (1934-35/1975). Questões de literatura e de estética: A teoria do
romance. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1988. BAKHTIN, M. (1952-1953/1979) Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação
Verbal. SP: Martins Fontes, 1992. BALTAR, M. A. R. (2004). Competência discursiva e gêneros textuais: uma
experiência com jornal em sala de aula. Caxias do Sul, RS: EDUCS BARATO, J. N. (2004). Trabalho e educação no ensino médio. São Paulo: SEE:
Fundação Vanzolini. BARBOSA, J. P. (2000). Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de
Língua Portuguesa: são os PCNs praticáveis?. In: Rojo, R. (org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado de Letras (Coleção as Faces da Lingüística Aplicada).
BARBOSA, J. P. (2001a). Trabalhando com os gêneros do discurso: uma
perspectivaenunciativa para o ensino de Língua Portuguesa. Tese de doutorado pelo Programa de Pós Graduação em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da PUC-SP, São Paulo.
BARBOSA, J. P. (2001b). Coleção Trabalhando com os gêneros do discurso. São
Paulo: FTD. BECHARA, E. (1999). Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna BENEVIDES, M. V. de M. (1994) Cidadania e Democracia. São Paulo: Lua Nova,
n.33, 1994, p. 5-16.
BERBER-SARDINHA, Tony (1999). Usando Word Smith na investigação da linguagem. Direct Papers 40 ISSN 1413-442X, http://lael.pucsp.br/direct/DirectPapers40.pdf
BEZERRA, M. A. (2002) Ensino de língua portuguesa e contextos teórico-metodológicos. In: A. P. Dionisio, A. R. Machado & M. A. Bezerra (2002). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna.
BHATIA, V. K. (1993). Approach to genre analysis. In: Analysing genre. London and
New York: Longman. pp. 13-41
196
BRAIT, B. (2000). PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da textualidade. In: Rojo, R. (org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado de Letras (Coleção as faces da Lingüística Aplicada.
BRASIL (1998a). Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Terceiros
e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF BRASIL (1998b). Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do
ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília : MEC/SEF, 1998.
BRASIL (1999). Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado: Parâmetros
em Ação. Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries). Brasília: MEC/SEF
BRASIL (2002). Políticas de melhoria da qualidade da educação: um balanço
institucional. Brasília: MEC/SEF. BRONCKART, J.-P., CLÉMENCE, A., SCHENEUWLY, B., SCHURSMANS,
M.-N, (1996). Manifeste. Pour une reconfiguration des sciences humaines/sociales. Une perspective vygotskyenne. Journal Suisse de Psicologie. Numéro spécial: Centenaire Jean Piaget
BRONCKART, J.-P. (1996 b) Genres de textes, types de discours et opérations
psycholinguistiques. Lyon: Voies Livres,. Tradução de Rosalvo Pinto. "Revista de estudos da Linguagem", publicação oficial da FALE/UFMG.
_____________ (1997). Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um
interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC CAEIRO, A. (1917). Poemas inconjuntos. In: Pessoa, F. Obra Poética em um
volume. RJ: Aguilar CARDOSO, F. H. (1992). Inesperado Processo de Formação Política. São Paulo.
Cultura Editores Associados. Banco Bamerindus do Brasil S/A. CARVALHO, J. M. (1992). Brasileiro: cidadão? Revista do Legislativo. Assembléia
Legislativa de Minas Gerais, vol. 23, 1998. Disponível pela internet, no endereço http://www.almg.gov.br/revistalegis/Revista23/carvalho23.pdf Texto publicado originalmente sob o título Interesses contra a cidadania. In: MATTA, Roberto da et al. Brasileiro: cidadão?. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1992. p.87-125.
_______________ (1996). Cidadania: tipos e percursos. Revista Estudos Históricos,
no. 18. Rio de Janeiro:RJ
197
CASALI, A. (2001). Saberes e procederes escolares: o singular, o parcial, o universal. In: Severino, A. J. & Fazenda, I. C. A. (orgs). Conhecimento, Pesquisa e Educação. Campinas: Papirus
CASTILHO, A & PRETI, D (l986) A linguagem culta na cidade de São Paulo:
materiais para seu estudo. Vol.I – Elocuções Formais. São Paulo - FAPESP.
CASTILHO, A. T. (1988) A Variação lingüística, norma culta e ensino da língua materna. pp. 53-59. In: Subsídios a Proposta Curricular de Língua Portuguesa para o 1º e 2° graus. Secretaria do Estado de Educação do estado de São Paulo.
COLLARES, C. A., MOYSES, M. A. e GERALDI, J. W. (1999). Educação continuada:
a política da descontinuidade. Educ. Soc. [online]. dez. 1999, vol.20, no.68 [citado 27 Dezembro 2004], p.202-219. Disponível na World Wide Web: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301999000300011&lng=pt&nrm=iso ISSN 0101-7330
CORAZZA, S. M. (2001). Currículos alternativos/oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo.
Revista Brasileira de Educação, n. 17 DA MATTA, R. (1992). Brasileiro: Cidadão? São Paulo: Cultura Editores Associados.
Banco Bamerindus do Brasil S/A. DEL PINO, M. (2001). Política educacional, emprego e exclusão social. In: Gentili, P.
& Frigotto, G. (org.) (2001). La ciudadania negada: Políticas de exclusión en la educación y el trabajo. Colecion Grupos de Trabajo. Publicação do Congresso Latinoamericano de Ciências Sociais 2000/2001. CLACSO (CD Rom): México.
DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY (2001). Seqüências didáticas para o oral e a
escrita: Apresentação de um procedimento. In: Schneuwly. B. e Dolz, J. (2004). Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004
DOLZ e SCHNEUWLY (1996 b). Em busca do culpado. Metalinguagem dos alunos na redação de uma narrativa de enigma. In: Schneuwly. B. e Dolz, J. (2004). Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004
DOLZ et allii (1998). A exposição oral. In: Schneuwly. B. e Dolz, J. (2004). Gêneros
orais e escritos na escola. Tradução e organização Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004.
EGGINS, S. & MARTIN, J. R. (1997). Genres and registers of discourse. In:
Discouse Studies: A multidisciplinary introduction. Vol. 1. London: Sage Publications
198
FREITAS, M. T. A. (2002) Vygotsky & Bakhtin. Psicologia da Educação: Um intertexto. São Paulo: Ática.
GEERTZ, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos.
GENTILI, P.; C. Alencar (2001). Educar na esperança em tempos de desencanto. Petrópolis:RJ. Editora Vozes
GENTILI, P.(1996). Neoliberalismo e educação: manual do usuário. In: Silva, T. T. &
Gentili, P. (orgs.), Escola S.A.: quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo. Brasília. CNTE.
GERALDI, J. W. (org) (1984). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel:
Assoeste ______ (1991). Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes GERALDI, J. W.; SILVA, L. L. M. & FIAD, R. S. (1996). Lingüística, ensino de língua
materna e formação de professores. Revista de Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada (D.E.L.T.A.), no.2, vol. 12. São Paulo:EDUC
GOMES-SANTOS, S. N. (2004). A questão do gênero no Brasil: teorização acadêmico-científica e normatização oficial. Tese de doutorado pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, SP.
HUCKIN, T. N. & BERKENKOTTER, C. (1995). Rethinking genre from a
sociocognitive perspective. In: Genre Knowledge in disciplinary communication: Cognition/culture/power. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, Publishers
JURADO, S. G. O. G. (2003). Leitura e letramento escolar no ensino médio: um
estudo exploratório. Dissertação de Mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Lingüística Aplicada (LAEL) da PUC-SP. São Paulo.
JURADO, S. G. O. G. & R. H. R. Rojo (no prelo) A leitura no livro didático de Língua
Portuguesa – Ensino Médio. In: C. Bunzen & M. Mendonça (orgs) Prática de Ensino de Língua Portuguesa: Ensino Médio. SP: Parábola, a sair.
KATO, M. (1985). O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes KLEIMAN, A. (1989). Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes ________. (1992). Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes
199
________. (1995). Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola.
In: A. B. Kleiman (org.) Os significados do letramento. Campinas: Mercado de
Letras
KOCH. I. G. V. (1989). A coesão textual. São Paulo: Contexto _____. (1990). A coerência textual. São Paulo: Contexto _____. (1992). A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto _____. (2004). Introdução à Lingüística Textual: trajetória e grandes temas. São
Paulo: Martins Fontes. LOUSADA, E. G. (2002). Elaboração de material didático para o ensino de francês.
In: Dionísio, A. P.; A. R. Machado, M. A. Bezerra. Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna
MACHADO, A. R. (no prelo). Para (re)pensar o ensino de gêneros: esclarecendo
conceitos do interacionismo sócio-discursivo. In: Meurer, J. L.; Bonini, A.; Motta-Roth, D. (Orgs.) Gêneros textuais sob perspectivas diversas. São Paulo: Parábola (a sair)
MAINGUENEAU, D. (1997) Novas Tendências em Análise do Discurso. Trad. F. Indursky. Campinas: Pontes.
MARCUSCHI, L. A (1986) Análise da Conversação. São Paulo: Ática.
______________ (1987) Marcadores conversacionais no português brasileiro,
formas, posições e funções. In: Português culto falado no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1989, pp. 281-321
________________ (2001). Compreensão de textos – algumas reflexões. In: A. P.
Dionísio e M. A. Bezerra (orgs) O Livro Didático de Português – Múltiplos Olhares, pp. 46-59. Rio de Janeiro: Lucerna.
________________ (2002). Gêneros Textuais: Definição e funcionalidade. In: Dionísio, A. P.; A. R. Machado, M. A. Bezerra. Gêneros Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna
MARINHO, M. (2001). A oficialização de novas concepções para o ensino de
Português no Brasil. Tese de doutorado pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, SP.
MARRACH, S. A. (1996). Neoliberalismo e educação. In: Ghiraldelli Júnior, P.
Infância, educação e neoliberalismo. São Paulo: SP. Cortez Editora
200
NEGRÃO, J. J. de O. (1996). O neoliberalismo na redemocratização brasileira. Dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP, São Paulo
NÓVOA, A. (1999). Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à
pobreza das práticas. Revista Educação e Pesquisa, v. 25, n.1, pp.11-20 OLIVEIRA, M. M. (2003). O projeto político-pedagógico da terceira via. Síntese da
comunicação “Terceiro setor, voluntariado e educação: os caminhos giddenianos para a privatização do público”, feita no III Seminário Nacional da Faculdade de Educação da UFF, realizado de 3 a 5 de Setembro de 2003, sob o tema “Educação e Poder: Tensões de um país em mudança”. Achegas.net – Revista de Ciência Política (ISSN 1677-8855). Retirado da Internet em 03/07/2004 http://www.achegas.net/numero/quatorze/marcos_marques_14.htm
PINHO, J. A. G.; M. W. Santana; S. M. B. Cerqueira (1997). Gestão pública em busca de cidadania: Experiências de inovação em Salvador. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, vol. 5. São Paulo:SP. FGV.
PINSKY, J. ; C. B. Pinsky (orgs.) (2003). História da cidadania. São Paulo:SP.
Editora Contexto REZENDE FILHO, C. B. ; I. A. Câmara Neto (2001). A evolução do conceito de
cidadania. Revista Ciências Humanas, no. 2, vol. 7. Taubaté:SP. Unitau. Também disponível pela Internet no endereço http://www.unitau.br/prppg/publica/humanas/download/aevolucao-N2-2001.pdf
ROJO, R. H. R. (1995) Concepções não valorizadas de escrita: A escrita como “um
outro modo de falar”. In: A. B. Kleiman (org) (1995) Os Significados do Letramento, pp.65-90. Campinas: Mercado de Letras.
______ (1998) O letramento na ontogênese: Uma perspectiva socioconstrutuvista.
In: R. H. R. Rojo (org) Alfabetização e Letramento: Perspectivas lingüísticas, pp.121-172. Campinas: Mercado de Letras.
_____ (1999). Modos de Transposição dos PCNs às práticas de sala de aula:
progressão curricular e projetos. Contribuição apresentada ao Simpósio “Praticando os PCN: dos Parâmetros Curriculares à Prática de Sala de Aula, durante o 9º Inpla, LAEL/PUC-SP. (mímeo)
_____ (2001a) Letramento escolar em três práticas: Perspectivas para a
multivocalidade. Revista da ANPOLL, 11: 235 – 262. SP: Humanitas/FFLCH/USP.
_____ (2001b) A Teoria dos Gêneros em Bakhtin: Construindo uma perspectiva
enunciativa para o ensino de compreensão e produção de textos na escola. In: B. Brait (org) Estudos Enunciativos no Brasil: História e Perspectivas. Campinas: Pontes.
201
_____ (2001c) Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes
modalidades ou gêneros do discurso? In: Signorini (org) Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento, pp. 51-76. Campinas: Mercado de Letras.
____ (2002). A concepção de leitor e produtor de textos nos PCNs: “Ler é melhor
que estudar”. In: S. R. Costa & M. T. A. Freitas (org.) Leitura e escrita na formação de professores, pp. 31-52. SP: Musa/UFJF/INEP-COMPED.
ROJO, R. H. R. & BATISTA, A. A. G. (org) (2003a). Apresentação – Cultura da
escrita e livro escolar : propostas para o letramento das camadas populares no Brasil. In: Livro didático de Língua Portuguesa, letramento e cultura da escrita. Campinas: Mercado de Letras
ROJO, R. H. R. (2003b). Revisitando a produção de texto na escola. In: G. Rocha &
M. G. Costa Val (orgs) Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto: o sujeito-autor, pp. 185-205. BH: Autêntica
ROJO, R. H. R. e CORDEIRO, G. S. (2004a). Apresentação: Gêneros orais e
escritos como objetos de ensino: Modo de pensar, modo de fazer. In: Schneuwly. B. e Dolz, J. (2004). Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras
ROJO, R. H. R. (2004, no prelo). Gêneros do discurso e gêneros textuais: Questões
teóricas e aplicadas. In Meurer, J. L.; Bonini, A.; Motta-Roth, D (Orgs.) Gêneros textuais sob perspectivas diversas. São Paulo: Parábola (a sair)
ROSEMBERG, A. J. (2002). O Banco Mundial e suas políticas educacionais.
Monografia apresentada no final do curso Magistério do Ensino Superior. PUC-SP. São Paulo.
SAVIANI, D. (1997). A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas.
Campinas: SP, Autores Associados. SCHNEUWLY, B. e DOLZ, J. (1997). Os gêneros escolares: Das práticas de
linguagem aos objetos de ensino. In: Schneuwly. B. e Dolz, J. (2004). Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização Roxane Rojo e Glaís Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004
SHIROMA, E. O., MORAES, M. C. M., EVANGELISTA, O. (2002). Política educacional. Rio de Janeiro: RJ, DP&A.
SILVA, T. T. (1999). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do
currículo. Belo Horizonte: Autêntica SOARES, M. (1986). Linguagem e escola – uma perspectiva social. São Paulo: SP.
Editora Ática.
202
SOARES, M. (1997). Sobre os PCN de Língua Portuguesa: algumas anotações. In: Marcuschi, E. e Soares, E. (orgs.). Avaliação educacional e currículo – inclusão e pluralidade. Recife: UFPE/Nape
SOARES, M. (1998) Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica.
SUASSUNA. L. (1997). PCNs de Língua Portuguesa – ainda a busca da
historicidade. In: Marcuschi, E. e Soares, E. (orgs.). Avaliação educacional e currículo – inclusão e pluralidade. Recife: UFPE/Nape
SWALES, J. M. (1990). The concept of genre. In: Genre Analysis. English in
academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press TAKAZAKI, H. H. (2002). Coleção Linguagens do século XXI. São Paulo: IBEP
TORRES, R. M. (2001). From Dakar to Cochabamba. Relatório preparado para a
Action Aid, disponível no site da UESCO. http://www.unesco.cl/medios/biblioteca/documentos/cooperacion_internacional_dakar_cochabamba.pdf?menu=/esp/biblio/docdig/
THERBORN, G. (1995). Pós-neoliberalismo: a história não terminou. In: Gentili, P. e
Sader, E. (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: RJ. Editora Paz e Terra
VANOYE, F. (1973). Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e
escrita. São Paulo: Martins Fontes VYGOTSKY. L. S. (1934) Pensamento e Linguagem. SP: Martins Fontes, 1987. __________ (1933/1978). A Formação Social da Mente. SP: Martins Fontes, 1984. __________ (sem data) Psicologia Pedagógica. SP: Martins Fontes, 2001. WEFFORT, F. (1992). Brasil: Condenado à Modernização. São Paulo: Cultura
Editores Associados. Banco Bamerindus do Brasil S.A.
203
Anexo 1 Quadro de concordância da palavra “trabalho”
nos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos
204
Quadro de concordância da palavra “trabalho” nos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos
N Concordance Word No. %
1 as pelos alunos no processo de reflexão sobre a linguagem e para o trabalho com textos reais, ao invés de textos especialmente construí
2.156 9
2 upere sua condição imediata 18 . A MEDIAÇÃO DO PROFESSOR NO TRABALHO COM A LINGUAGEM Nas situações de ensino de líng
12.757 41
3 . Daí a importância das condições que a escola proporciona para o trabalho do professor e da construção coletiva do projeto educativo. M
18.563 59
4 ugeridos alguns gêneros como referência básica a partir da qual o trabalho com os textos ñ unidade básica de ensino ñ precisar· se orga
14.595 47
5 .............................................. 45 A mediação do professor no trabalho com a linguagem ............................................................... 47
1.076 4
6 municação presente no cotidiano, abre diversas possibilidades para o trabalho com os sons e a palavra falada em Língua Portuguesa: ï estud
27.456 87
7 versas temáticas. Os temas transversais abrem a possibilidade de um trabalho integrado de várias áreas. Não é o caso de, como muitas ve
11.146 36
8 r construídos para alcançá-las. Nesse processo, ainda que a unidade de trabalho seja o texto, é necessário que se possa dispor tanto de uma d
13.239 43
9 priedades, como de atividades metalingüísticas, que envolvam o trabalho de observação , descrição e categorização , por
23.014 73
10 ORLANDI, E. P.(org.). Interpretação . Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petró polis: Vozes, 1996. __________. A lingu
31.075 98
11 observa muito cedo na aquisição, como primeira manifestação de um trabalho sobre a língua e sobre suas propriedades (fonológicas, morfoló
6.663 22
12 oral nas circunstâncias previstas. … condição fundamental para que o trabalho possa ser realizado a constituição de um corpus de texto
18.905 60
13 e corre quando o trabalho da escola corresponde apenas à soma do trabalho isolado de cada professor e não ao produto da ação coleti
18.501 59
14 ssintáticos, por exemplo, apresentar, corrigida, a versão para o trabalho, para facilitar a concentração dos alunos nos temas proposto
23.921 76
205
15 atribuição de todas as áreas, e não só da de Língua Portuguesa, o trabalho com a escrita e a oralidade do aluno no que for essencial ao tr
11.315 37
16 os colocados a ação dos diferentes professores que coordenarão o trabalho ao longo da escolaridade. Tal organização exige que a esco
18.293 58
17 o. Não há como separar o plano do conteúdo, do plano da expressão. O trabalho desenvolvido a partir dos temas transversais (Ética, Pluralidade
11.009 36
18 da como exaustiva. Ao contrário, em função do projeto da escola, do trabalho em desenvolvimento e das necessidades específica
14.698 47
19 ais variadas situações. 1 Sobre a relevância do projeto educativo para o trabalho escolar, consultar Introdução aos Parâmetros Curriculare
2.641 10
20 longa-metragem e documentários relacionados a aspectos do trabalho desenvolvido; * exibindo filmes baseados em obras literárias li
27.837 88
21 Tal demanda impõe uma revisão dos currículos, que orientam o trabalho cotidianamente realizado pelos professores e especialistas em
223 1
22 neira mais acentuada a necessidade de refacção e de cuidado com o trabalho, pois, quando h· leitores de fato para a escrita dos alunos, a l
26.324 83
23 muito presentes na sociedade e, em particular, no âmbito do trabalho. Porém, não h· como negar que as novas tecnologias da infor
26.684 84
24 reenchimento de lacunas. Entretanto, é possível desenvolver um trabalho que permita ao aluno descobrir o funcionamento do sistema gr
25.390 80
25 ém, de tomar os meios como eventuais recursos didáticos para o trabalho pedagógico, mas de considerar as práticas sociais nas quais
26.854 85
26 sentidos atribuídos. … uma excelente estratégia didática para o trabalho de formação de leitores, principalmente para o tratamento do
20.848 66
27 erentes aos temas sociais, por exemplo, abrem possibilidades para o trabalho com a argumentação ñ capacidade relevante para o ex
11.376 37
28 o que investir em ações intensivas e pontuais, é preferível optar por um trabalho regular e freqüente, articulado à seleção lexical imposta
25.545 81
29 s específicos caracterizados como fechamento de grandes etapas de trabalho. A avaliação deve ser compreendida como constitutiva da prá
27.982 88
30 scuta, leitura e produção de textos, de tal forma que não planeje o trabalho em função de um aluno ideal para o ciclo, muitas vezes padro
13.134 42
31 que não devem ser tratados de maneira isolada por 14.545 47
206
permearem todo o trabalho escolar. CONCEITOS E PROCEDIMENTOS SUBJACEN
32 ica, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo) 17 demanda participação efetiva e responsável
11.024 36
33 pode oferecer ao sujeito melhores possibilidades de acesso ao trabalho. ï Reconhecimento da necessidade e importância
17.633 56
34 es da linguagem e de suas práticas. O ALUNO ADOLESCENTE E O TRABALHO COM A LINGUAGEM Os alunos do terceiro e do quarto
11.668 38
35 ............................................................. 45 O aluno adolescente e o trabalho com a linguagem ....................................................................
1.065 4
36 cidadania. Os documentos apresentados são o resultado de um longo trabalho que contou com a participação de muitos educadores brasi
357 1
37 ; ï ao encaminhar as atividades de refacção , o professor pode usar o trabalho em duplas ou em pequenos grupos, também como forma de
24.062 76
38 do receptor. 32 Não é possível esperar que os textos que subsidiam o trabalho das diversas disciplinas sejam auto-explicativos. Sua compre
8.204 27
39 · apresentada a tabela que organiza os gêneros privilegiados para o trabalho, conforme critérios apresentados anteriormente. GÊNER
15.571 50
40 · apresentada a tabela que organiza os gêneros privilegiados para o trabalho, conforme critérios apresentados anteriormente. 19 Em fu
14.839 48
41 se dão. É, a partir do que os alunos conseguem intuir nesse trabalho epilingüístico 11 , tanto sobre os textos que produzem como
6.370 22
42 s formas culturais da sociedade. Para ampliar os modos de ler, o trabalho com a literatura deve permitir que progressivamente oc
20.229 64
43 s formas de enxergar e interpretar os problemas que enfrenta, o trabalho de reflexão deve permitir-lhe tanto o reconhecimento de su
12.640 41
44 jetando as ações didáticas necessárias ou para avaliar os efeitos do trabalho realizado. A refacção na produção de textos Na escola, a ta
22.557 71
45 eceitos normativos estabelecidos pela gramática tradicional. Léxico O trabalho com o léxico não se reduz a apresentar sinônimos de um co
24.777 78
46 r e suas características específicas permitirem. Objetivos de ensino No trabalho com os conteúdos previstos nas diferentes práticas, a e
13.500 43
47 e ter em mente que tal ampliação não pode ficar reduzida apenas ao trabalho sistemático com a matéria gramatical.
6.201 21
207
Aprender a pensar e f 48 ursivas. Indiscutivelmente, a prática de refacção
mobiliza intenso trabalho com essas questões. Não se trata de estimular o uso de
25.312 80
49 A seguir serão apresentados alguns princípios e orientações para o trabalho didático com os conteúdos. Prática de escuta de textos orai
18.735 60
50 reservação do acervo, é fundamental um projeto coerente de todo o trabalho escolar em torno da leitura. Todo professor, não apenas o
20.639 66
51 portante selecionar alguns, propondo questões que orientem o trabalho. A revisão exaustiva deve ser reservada para situações e
23.767 75
52 itura de textos escritos A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir
19.500 62
53 anto de atividades epilingüísticas, que envolvam manifestações de um trabalho sobre a língua e suas propriedades, como de atividades metali
23.000 73
54 o de redundância. Porém, esse é um sério risco que se corre quando o trabalho da escola corresponde apenas à soma do trabalho isola
18.493 59
55 agem. Em Língua Portuguesa, levando em conta que o texto, unidade de trabalho, coloca o aluno sempre frente a tarefas globais e complex
18.358 59
56 igências novas para os jovens que ingressarão no mundo do trabalho. Tal demanda impõe uma revisão dos currículos, que orientam
212 1
57 trução de uma representação mais realista. … importante, ainda, no trabalho escolar, analisar criticamente a sedução do meio. Uma
27.369 86
58 o que foi possível construir na reflexão didático-pedagógica sobre o trabalho no terceiro e no quarto ciclo. Entretanto, sabe-se que muitos
18.599 59
59 de sua natureza temática, são mais facilmente incorporáveis ao trabalho da área. Os aspectos polêmicos inerentes aos temas sociai
11.360 37
60 am a mesma importância dada às demais. 72 Ler por si só j· é um trabalho, não é preciso que a cada texto lido se siga um conju
20.542 65
61 lunos ó a Rádio Recreio. A TELEVISÃO Além das possibilidades de trabalho com a programação , associadas ao videocassete gr
27.521 87
62 elo universo temático dos textos selecionados. Ainda que o trabalho com as formas regulares e irregulares precise ocorrer paralela
25.563 81
208
Anexo 2 Quadro de concordância da palavra
“cidadania” nos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos
209
Quadro de concordância da palavra “cidadania” nos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º ciclos
N Concordance Word No. %
1 no o exercício pleno da cidadania, é preciso que 4.633 16 2 es de: ï compreender a cidadania como particip 539 2 3 ssários ao exercício da cidadania. Os documen 347 1 4 tida com o exercício da cidadania precisa criar c 4.019 14 5 ento e no exercício da cidadania; ï conhecer o 747 2 6 guagem no exercício da cidadania, crer que essa 4.853 17 7 uestão tão sensível à cidadania. Objetivos ger 8.341 27 8 tos para o exercício da cidadania. Na cultura br 12.066 39 9 rios para o exercício da cidadania. Essa respon 2.560 10 10 o social no exercício da cidadania. Para isso, a 8.405 28 11 tem no exercício da cidadania. Ensinar língu 18.797 60 12 nte para o exercício da cidadania ñ, por meio 11.387 37 13 sociais do exercício da cidadania que se coloca 4.993 17 14 damente o exercício de cidadania, os temas tran 11.072 36
210
Anexo 3 Lista dos substantivos e adjetivos com
freqüência acima de dez nos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º Ciclos
211
Lista dos substantivos e adjetivos com freqüência acima de dez nos PCN de Língua Portuguesa 3º e 4º Ciclos
1. texto(s) 454 2. aluno(s) 254 3. linguagem(ns) 154 4. leitura 143 5. língua 135 6. ensino 131 7. lingüística(s) (o) (os) 126 8. prática(s) 119 9. produção(ões) 117 10. diferente(s) 112 11 gênero(s) 110 12 escrita(s) 100 13 conteúdo(s) 108 14 atividade(s) 97 15 oral(is) 93 16 português(a) 88 17 professor(es) 85 aspecto(s) 85 18 social(is) 81 19 conhecimento(s) 78 20 escola(s) 77 21 aspectos 76 processo(s) 76 relação(ões) 76 22 função(ões) 73 23 situação(ões) 72 24 análise 70 25 aprendizagem(ns) 69 26 possibilidade(s) 64 27 trabalho(s) 63 escrito(s) 63 28 palavra(s) 60 29 uso(s) 58 forma 58 30 discursiva(s) (o) (os) 57 31 didática(s) (o) (os) 55 32 objetivo(s) 54 32 paulo 54 33 fundamental(ais) 53 34 sentido(s) 52 35 leitor(es) 51 36 sujeito(s) 50 37 condição(ões) 49 38 tarefa(s) 48 39 fala 45 informação(ões) 45
212
possível(eis) 45 40 escuta 44 41 reflexão 43 42 procedimento(s) 41 tema(s) 41 43 tratamento(s) 40 recurso(s) 40 construção(ões) 40 ciclo(s) 40 44 escolar(es) 39 nova(s) (o) (os) 39 produzidos (as) (o) (a) 39 45 padrão(ões) 38 expressão(ões) 38 parte(s) 38 necessidade(s) 38 46 formas 36 47 necessário(s) (a) (as) 35 48 educação 34 exemplo(s) 34 diversos(as) 34 49 capacidade(s) 33 questão(ões) 33 50 espaço(s) 32 critério(s) 32 contexto(s) 32 discurso(s) 32 51 variedade(s) 31 52 curricular(es) 30 projeto(s) 30 53 desenvolvimento 29 avaliação(ões) 29 objeto(s) 29 elemento(s) 29 específica(s) (o) (os) 29 54 área(s) 28 compreensão 28 maneira(o) (os) 28 55 valor(es) 27 proposta(s) 27 referência(s) 27 56 seleção 26 finalidade(s) 26 unidade(s) 26 área(s) 26 57 formação 25 mundo(s) 25 organização(ões) 25 conjunto(s) 25 grau(s) 25 geral(ais) 25
213
interlocutor(es) 25 58 competência(s) 24 ação(ões) 24 ponto(s) 24 instrumento(s) 24 gramatical(ais) 24 59 discurso(s) 23 nacional(ais) 23 domínio(s) 23 terceiro(s) (a) 23 60 gramática 22 textual(ais) 22 61 parâmetros 21 efeito(s) 21 emprego(s) 21 educativo(a) (as) 21 62 cultural(ais) 20 suporte(s) 20 registro(s) 20 representação(ões) 20 sistema(s) 20 verbal(ais) 20 grupo(s) 20 63 refacção 19 articulação(ões) 19 intenção(ões) 19 literário(s) 19 realidade(s) 19 sociedade(s) 19 ano(s) 19 64 natureza 18 utilização 18 autor(es) 18 adolescente(s) 18 escolha(s) 18 discussão(ões) 18 estabelecido(s)(a)(as) 18 lugar(es) 18 fonte(s) 18 65 experiência(s) 17 campinas 17 crítica (o) 17 envolvido 17 especificidade 17 exigência 17 fato 17 variação 17 tipo(s) 17 momento(s) 17 66 comunicação 16 divulgação 16
214
identificação 16 participação 16 regularidade 16 aula 16 perspectiva 16 dimensão(ões) 16 científica 16 presente(s) 16 67 elaboração 15 interlocução 15 interação 15 mediação 15 redação 15 estratégia 15 modalidade(s) 15 construído(s) 15 material 15 lado 15 68 acesso 14 cidadania 14 discursivo(s) 14 adequado(s) 14 complexidade 14 diversidade 14 interpretação 14 recepção 14 revisão 14 livro(s) 14 novo(s) 14 lexical(ais) 14 apresentação 14 melhor 14 constituição 14 documento 14 exposição(ões) 14 opinião(ões) 14 plano(s) 14 comunidade(s) 14 pedagógica(s) 14 interesse(s) 14 apresentada(s) 14 69 planejamento 13 qualidade 13 realização 13 capaz(es) 13 temática(s) 13 classe(s) 13 transformação(ões) 13 comunicativa(s)(o)(os) 13 importante(s) 13 eixo(s) 13
215
entrevista(s) 13 efetiva(s)(o)(os) 13 70 autonomia 12 busca 12 importância 12 científica 12 papel 12 reconhecimento 12 debate(s) 12 esquema(s) 12 interior 12 aprofundamento(s) 12 problema(s) 12 71 cultura 11 ampliação 11 conceito 11 funcionamento 11 expressivo(s) 11 introdução 11 restrições 11 assunto(s) 11 comparação(ões) 11 gráfico(s) 11 sala(s) 11 universo(s) 11 dificuldade(s) 11 72 criação 10 estilo 10 expectativas 10 atitude(s) 10 léxico 10 tempo 10 artigo(s) 10
216
Anexo 4 Lista dos substantivos e adjetivos com
freqüência acima de dez nos módulos de Língua Portuguesa do Parâmetros em Ação
217
Lista dos substantivos e adjetivos com freqüência acima de dez nos módulos de Língua Portuguesa do Parâmetros em Ação106
1 texto(s) 166 2 aluno(s) 144 3 professor (a) (es) (as) 104 4 leitura(s) 102 5 grupo(s) 100 6 trabalho(s) 90 7 língua 79 8 portuguesa 69 9 atividade(s) 62 10 escola(s) 63 11 conteúdo(s) 56 12 série(s) 55 13 análise 52 discussão(ões) 52 14 ensino 50 15 ciclo(s) 49 16 questões (ão) 48 proposta(s) 48 17 palavra(s) 44 18 pcn 43 ano(s) 43 relação(ões) 43 19 oral(is) 41 20 prática(s) 40 área(s) 40 produção(ões) 40 21 tema(s) 39 poema(s) 39 22 aprendizagem(ns) 38 23 didático(s)(a)(as) 35 diferente(s) 35 anexo(s) 35 anjo(s) 35 24 duas (dois) 34 25 escrita 32 apresentação(ões) 32 26 lingüística(s)(os) 31 possível(is) 31 27 grande(s) 29 28 transversais 28 exemplo(s) 28 29 avaliação 27 ler 27 30 situação(ões) 26
106 No final desta lista, há também a freqüência das palavras “textual(ais)” e “discursiva”.
218
31 módulo(s) 25 pequeno(s) 25 final(is) 25 mundo 25 32 linguagem(ns) 24 objetivo(s) 24 reflexão(ões) 24 projeto(s) 24 33 problema(s) 23 homem(ns) 23 rei 23 34 gênero(s) 22 escrito(s) 22 fundamental 22 conhecimento(s) 22 35 escuta 21 importante(s) 21 36 classe(s) 20 drummond 20 respeito 20 37 criança(s) 19 escrever 19 forma 19 tipo(s) 19 individual(ais) 19 bom (boa) 19 história(s) 19 aula(s) 19 canção(ões) 19 tarefa(s) 19 38 caçador 18 vida 18 vídeo 18 uso(s) 18 39 condição(ões) 17 tabela(s) 17 melhor(es) 17 40 aprender 16 critério(s) 16 parte(s) 16 processo(s) 16 registro(s) 16 modo 16 autor(es)(a)(as) 16 41 abadessa 15 lobo 15 notícia 15 princesa 15 realização 15 sentido(s) 15 42 idéia(s) 14 água 14
219
dia 14 ensinar 14 formação 14 produzido(s) 14 43 característica 13 contar 13 compartilhada(s)(o) 13 fim 13 função 13 caderno(s) 13 estudo(s) 13 parágrafo(s) 13 mão(s) 13 44 corretamente 12 educação 12 elaboração 12 letra(s) 12 faces 12 maior 12 menina 12 sete 12 tempo 12 título(s) 12 três 12 45 Brasil 11 casar 11 coisas 11 importância 11 moça 11 pai 11 plenário 11 fato(s) 11 síntese 11 46 cavalo 10 cordeiro 10 dias 10 pessoal(is) 10 textual(is) 7 discursiva 1
221
p. 194
PROJETO 3 Nome do Projeto: Poemas das muitas faces 3º ciclo – Duração aproximada: 40 dias Materiais necessários: • Cópias dos poemas a serem trabalhados: Poema de sete faces, de Drummond, e as paródias de Adélia Prado, Chico Buarque (se possível, gravação da canção para que os alunos possam conhecê-la), Torquato Neto e Sidnei Olívio (cópias em anexo). p. 195 • Cópia do poema Mundo grande, de Carlos Drummond de Andrade. • Materiais para a elaboração dos retratos (tintas, cartolinas etc.). • Livros de História da Arte que permitam aos alunos apreciarem diversos retratos produzidos em diversas épocas. Articulação entre as práticas de escuta e de leitura, produção de textos e análise lingüística: a) Escuta de textos orais e leitura de textos escritos. • Leitura de poemas. • Leitura em voz alta de poemas. b) Produção de textos orais e escritos. • Produção de paródias de poemas. • Refacção dos poemas produzidos. c) Análise lingüística. • Reconhecimento do contexto em que cada poema foi produzido. • Intertextualidade (explícita ou não). • Recursos expressivos e estilísticos próprios da linguagem poética. • Revisão dos padrões da escrita. Articulações possíveis com os conteúdos de outras áreas ou com os de Temas Transversais: a) Artes. • Os retratos na História da Arte (apreciação e produção). b) História. • A atuação da censura nos regimes militares. c) Ética. • Respeito mútuo: reconhecimento das representações próprias e do outro. • Diálogo: valorização da diversidade de posições como forma de transformação e de enriquecimento. d) Pluralidade Cultural. • Compreensão das diversas visões de mundo como direito de expressão de identidade. e) Orientação Sexual. • Reconhecimento das características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino. Etapas previstas: • Apreciação de diversos retratos representativos de várias concepções estéticas. • Elaboração de retratos, partindo inicialmente da construção de
222
silhuetas e, posteriormente, explorando a criação de um auto-retrato, experimentando diversas técnicas. • Leitura e análise do Poema de sete faces, de Drummond. • Em grupos, elaboração gráfica das sete faces, representando cada uma das estrofes do poema de Drummond. • Leitura e análise das paródias do poema de Drummond: – Com licença poética, de Adélia Prado; – Até o fim, de Chico Buarque; – Let’s play that, de Torquato Neto; – Anjo, de Sidnei Olívio. p. 196
• Leitura e análise do poema Mundo grande, de Drummond, considerando as mudanças em relação ao Poema de sete faces. • Elaboração das paródias a partir dos modelos apresentados, expressando as percepções de cada um a respeito de sua vida, seu destino: “O que o anjo teria anunciado a cada um? Como é esse anjo? Como é cada ‘poeta’?” • Refacção dos poemas produzidos, considerando: a relação intertextual com o poema de Drummond, o universo temático, o estilo adotado e os padrões da linguagem escrita. • Produção do livro Poemas de muitas faces, inserindo uma ilustração para cada um deles, levando em conta as restrições impostas pela forma de reprodução. • Elaboração de uma exposição com os retratos realizados, as leituras gráficas do poema de Drummond e de sessões de leitura em voz alta dos poemas estudados e elaborados pelos alunos. Para a exposição, é importante discutir com os alunos o melhor aproveitamento do espaço, de maneira a permitir uma melhor apreciação dos trabalhos. Para as sessões de leitura, os alunos podem explorar o emprego de outras linguagens, como a música para o fundo musical e a plástica na projeção de slides que ilustrem os poemas apresentados. Poema de sete faces Carlos Drummond de Andrade (Obra completa, Cia. José de Aguilar) Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas, pretas e amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada.
223
O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração. p. 197
Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Com licença poética Adélia Prado (Bagagem, Nova Fronteira) Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos (dor não é amargura). Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. Até o fim Chico Buarque de Holanda (A arte de Chico Buarque, Polygram)
224
Quando eu nasci veio um anjo safado O chato dum querubim E decretou que eu tava predestinado A ser errado assim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim Inda garoto deixei de ir à escola Cassaram meu boletim Não sou ladrão, eu não sou bom de bola Nem posso ouvir clarim Um bom futuro é o que jamais me esperou Mas vou até o fim Eu bem que tenho ensaiado um progresso Virei cantor de festim Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso Em Quixeramobim Não sei como o maracatu começou p. 198
Mas vou até o fim Por causa de umas questões paralelas Quebraram meu bandolim Não querem mais ouvir as minhas mazelas E a minha voz chinfrim Criei barriga, minha mula empacou Mas vou até o fim Não tem cigarro, acabou minha renda Deu praga no meu capim Minha mulher fugiu com o dono da venda O que será de mim? Eu já nem lembro pronde mesmo eu vou Mas vou até o fim Como já disse, era um anjo safado O chato dum querubim Que decretou que eu tava predestinado A ser todo ruim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim. Let’s play that Torquato Neto (Os últimos dias de Pompéia, Editora Mod Limoned) Quando eu nasci um anjo louco muito louco veio ler a minha mão, não era um anjo barroco era um anjo muito louco, torto com asas de avião eis que esse anjo me disse apertando a minha mão
225
com um sorriso entre dentes vai bicho desafinar o coro dos contentes vai bicho desafinar o coro dos contentes let’s play that Anjo Sidnei Olívio (Anjo, Grupo Realejo) “Quando nasci, um anjo torto”, manco quase morto, veio ler a minha mão. Era um anjo muito torto, torto, torto, mas era muito diferente, é claro do anjo de Drummond. Era um anjo bem barroco rouco, rouco, rouco p. 199
com asas de avião... Era um anjo disfarçado pirado, endiabrado, era um anjo beberrão... Era um anjo muito pouco louco, louco, louco, solto na imensidão... Era um anjo mascarado, herói, cruel, tarado um anjo gavião. E eu caí na ribanceira num tropeço da fogueira me esborrachei no chão... Na pista do aeroporto foi onde acharam meu corpo sobre um rastro de avião... Não sei o que aconteceu mas acho que esse anjo era eu... Ficou uma pena no chão. Era um anjo cartomante, um cigano, um farsante não sacava de ler mão... Era um anjo incompetente, vilão, indiferente, não me disse nada não... Mundo grande Carlos Drummond de Andrade (Obra completa, Cia. José de Aguilar) Não, meu coração não é maior que o mundo.
226
É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos. Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cá fora, estão na rua. A rua é enorme. Maior, muito maior do eu esperava. Mas também na rua não cabem todos os homens. A rua é menor que o mundo. O mundo é grande. Tu sabes como é grande o mundo. Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão. Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens, sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale. p. 200
Fecha os olhos e esquece. Escuta a água nos vidros, tão calma. Não anuncia nada. Entretanto escorre nas mãos, tão calma! vai inundando tudo... Renascerão as cidades submersas? Os homens submersos – voltarão? Meu coração não sabe. Estúpido, ridículo e frágil é meu coração. Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas. (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que os homens se comunicam.) Outrora escutei os anjos, as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. Nunca escutei voz de gente. Em verdade sou muito pobre. Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio. Meus amigos foram às ilhas. Ilhas perdem o homem. Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor. Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo,
227
meu coração cresce dez metros e explode. – Ó vida futura! nós te criaremos. QUESTÕES Poema de sete faces Carlos Drummond de Andrade 1. Ao escrever, estabelecemos um permanente diálogo com outros textos. a) Leia abaixo os versículos extraídos do Evangelho de Lucas (cap. 1, versículos 30 a 33). “30 E o anjo disse-lhe: Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus; 31 eis que conceberás no teu ventre, e darás à luz um filho, e pôrlhe- ás o nome de JESUS. 32 Este será grande, e será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; e reinará eternamente na casa de Jacó; 33 e seu reino não terá fim” Compare o texto bíblico ao poema de Drummond: • A quem o anjo faz suas revelações? • O que o anjo anuncia em cada texto? • Como é o anjo de Drummond? b) Leia abaixo o versículo 46 do Evangelho de Mateus (cap. 27), que p. 201
registra a passagem em que Cristo, na cruz, pouco antes de morrer, chama pelo Pai: 46 “E, perto da hora nona, exclamou Jesus em voz alta, dizendo: Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” Drummond retoma a passagem, num outro contexto. Qual é ele? 2. O título do poema faz referência a “sete faces” e o texto está dividido em sete estrofes. • Escolha um substantivo abstrato para identificar cada uma das faces que se ocultam em cada estrofe. • Tente representar cada uma das sete faces, usando a linguagem plástica para retratá-las. Com licença poética Adélia Prado 1. Procure encontrar uma explicação para o título do poema de Adélia Prado Com licença poética. 2. De que maneira Adélia Prado recupera o texto bíblico? 3. Localize as passagens em que há referências ao texto de Drummond. • Quais as modificações introduzidas pela autora? • A autora concorda com a posição de Drummond ou discorda dela? 4. Como Adélia explora as diferenças entre homens e mulheres em seu poema? Até o fim Chico Buarque de Holanda
228
1. Como é o anjo da canção de Chico Buarque? 2. Em Drummond, o adjetivo “torto” refere-se ao anjo. Na canção, Chico diz que a “estrada entortou”? Que sentido podemos atribuir à passagem? Anjo Sidnei Olívio 1. Localize as passagens em que há referências ao texto de Drummond. • Quais as modificações introduzidas pelo autor? 2. Como é o anjo de Sidnei Olívio? O que ele anuncia? Let’s play that Torquato Neto 1. O título do poema de Torquato Neto em português quer dizer: “Vamos jogar outra vez”. Como você o relaciona ao texto? 2. Como é o anjo do poema de Torquato? 3. O que significa “desafiar o coro dos contentes”? Mundo grande Carlos Drummond de Andrade 1. Há em Mundo grande claras referências ao Poema de sete faces. • Identifique essas referências. • Procure explicar as mudanças que ocorreram em relação às posições sustentadas em um e noutro momento. 2. As mudanças de pontos de vista não decorrem apenas do fato de serem sustentadas por pessoas diferentes, podem resultar de mudanças internas vividas pela própria pessoa ao longo de sua vida. Você já experimentou algo parecido?
230
p. 193
PROJETO 2 Nome do Projeto: Jornal da Grécia 3º ciclo – Duração aproximada: 60 dias Materiais necessários: • Adaptações de A Ilíada e de A Odisséia de Homero. • Jornais. • Manuais de redação e estilo de diversos jornais. • Dicionários e gramáticas. Articulação entre as práticas de escuta e de leitura, produção de textos e análise lingüística: a) Escuta de textos orais e leitura de textos escritos. • Escuta de narrativas míticas. • Leitura de textos de imprensa. • Leitura de adaptações de A Ilíada e de A Odisséia de Homero. p. 194
b) Produção de textos orais e escritos. • Produção de textos de diversos gêneros de imprensa. • Refacção dos textos. c) Análise lingüística. • Características lingüísticas recorrentes nos gêneros tratados. • Revisão dos padrões da escrita. Articulações possíveis com os conteúdos de outras áreas ou com os de Temas Transversais: a) História. • A Grécia antiga. b) Artes. • A arte na Grécia. c) Pluralidade Cultural. • Mitologia grega. Etapas Previstas: • Pesquisa em dicionários de mitologia e em outras obras específicas dos principais mitos, para a construção da árvore genealógica das divindades gregas. • Exposição oral das narrativas míticas e construção coletiva da árvore genealógica. • Estudo da Grécia antiga na área de História. • Leitura oral compartilhada de adaptações de A Ilíada e de A Odisséia de Homero, estabelecendo relações com os dados levantados previamente na pesquisa ou ampliando-a, se for necessário. • Análise de jornais, analisando: • A organização em cadernos temáticos. • Os principais gêneros: notícia, reportagem, editorial, entrevista. • Outros gêneros que circulam no jornal: horóscopo, classificados, anúncios. • Produção do Jornal da Grécia. Os alunos serão organizados por
231
editorias e responsabilizar-se-ão por produzir os textos solicitados, considerando o universo temático da obra de Homero. Por exemplo, troianos invadem Tebas, Helena dita moda, Previsão do tempo em Tebas, Agenda cultural, Esportes etc. • Refacção dos textos produzidos, considerando: as características do gênero, o universo temático, o estilo adotado e os padrões da linguagem escrita. • Diagramação e produção do jornal.