Date post: | 09-Dec-2023 |
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O PROCESSO DE GESTÃO DE CRISE COMO DISPOSITIVO DE INTERVENÇÃO NAS
INSTABILIDADES GERENCIAIS ENFRENTADAS PELAS ESCOLAS MUNICIPAIS DE
BELO HORIZONTE.
Ismayr Sérgio Cláudio.
Resumo
O presente artigo visa apresentar o Processo de Gestão de Crise (PGC) da Gestão Escolar
das Escolas e Unidades Municipais de Educação Infantil – UMEI’s da Rede Municipal
de Educação de Belo Horizonte – RMEBH (Minas Gerais, Brasil), enquanto importante
dispositivo de intervenção nas instabilidades gerenciais que ocorrem nos processos de
gestão das Escolas e UMEI’s da RMEBH.
Analisa a implantação do PGC no contexto da gestão democrática, passando pela
implantação do modelo de avaliação e de monitoramento da gestão escolar, iniciado no
ano de 2009 e normatizado em 2013, e finaliza indicando algumas considerações acerca
da importância da boa gestão para a garantia da eficácia e da eficiência da gestão escolar.
1. Introdução
Este trabalho tem como objeto a instituição do Processo de Gestão de Crise (PGC) como um
dispositivo de intervenção da Secretaria Municipal de Educação – SMED, através da Comissão de
Monitoramento e Avaliação da Gestão Escolar, nas instabilidades gerenciais que ocorrem nos
processos gerenciais das escolas da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte e nas Unidades
Municipais de Educação Infantil – UMEI’s.
A Comissão de Monitoramento e Avaliação da Gestão Escolar foi instituída através da Portaria
SMED nº 117/2013. Por sua vez, a implantação do Processo de Gestão de Crise na Gestão Escolar -
PGC se deu através do Ofício SMED/EXTER/0930-2015, de 13 de julho de 2015. Portanto, o PGC
se instaura como uma ação integrada e consequente à Comissão de Monitoramento e Avaliação da
Gestão Escolar, tendo por intenção se instituir em passo posterior ao trabalho de avaliação e
monitoramento da gestão escolar, e também, em passo anterior à decisão final daquela Comissão que
recebe, avalia e decide sobre os encaminhamentos apresentados pelo PGC. Como se vê, sua ação se
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dá a partir de dispositivos específicos e de ações orientadas para se garantir uma efetiva superação da
(s) crise (s) de gestão identificada (s) na (s) escola (s) sob análise.
Para se compreender a instituição do trabalho de avaliação e monitoramento da gestão escolar na
Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (RME) far-se-á necessário historicizar o processo de
eleição direta para diretores e vice-diretores das escolas municipais de Belo Horizonte.
A eleição direta de diretores e vice-diretores para as escolas municipais e para as unidades municipais
de educação infantil é, sem dúvida, um dos principais pilares da gestão democrática da educação de
Belo Horizonte. Desde a sua instituição em 1989 após um longo processo de luta dos movimentos
sociais no ambiente nacional, posterior ao fim da ditadura militar e à promulgação da Constituição
Federal de 1988, os professores, pedagogos e familiares dos estudantes da Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte empreenderam um movimento que garantiu a incorporação da eleição
de diretores e vice-diretores das escolas na Lei Orgânica do Município. Dessa forma, os profissionais
da educação da Rede Municipal de Educação - RMEBH se viram frente à oportunidade única para
que os diversos atores da comunidade escolar projetassem e imprimissem uma lógica participativa
nos processos pedagógicos, administrativos, orçamentários e financeiros de cada uma das unidades
de educação que compõem a RMEBH. Em sendo um processo democrático, onde projetos e
estratégias dialogam e se contrapõem de maneira legítima, faz-se mister que os candidatos eleitos
efetivem o compromisso de implementar as propostas que debatidas e avalizadas no processo
eleitoral, promovam a melhoria contínua da qualidade da educação e fortaleçam os princípios
republicanos da escola pública, quais sejam: a transparência, a garantia dos direitos, a pluralidade de
ideias, a laicidade e a socialização do conhecimento sem distinções de qualquer espécie, entre outros.
Nesse contexto, a eleição de uma chapa de gestão é a eleição de uma plataforma de trabalho
pedagógico, administrativo, orçamentário e financeiro que se converte em um conjunto de propostas
expressas no plano de trabalho daquela gestão escolar. Por sua vez, sabe-se que para a implementação
dessas propostas, além do compromisso, da vontade política de realização, do conhecimento técnico
e da capacidade operacional é fundamental traçar metodologias de trabalho a partir dos objetivos e
metas propostos, avaliar e monitorar todas as etapas tendo como parâmetro os indicadores, os prazos,
as metas e os resultados alcançados.
No sentido de fundamentar e aprofundar este processo é que a Secretaria Municipal de Educação de
Belo Horizonte implantou a Comissão de Monitoramento e Avaliação da Gestão Escolar para
contribuir com os diretores e vice-diretores eleitos no cumprimento de seus planos de trabalho e,
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também, para subsidiar a comunidade escolar no processo de monitoramento e avaliação da gestão
dos eleitos.
Ao final de 2011, momento no qual se realizou mais um pleito eleitoral na RME, fez-se um balanço
do processo de avaliação da gestão considerando seus avanços e desafios, continuidades e
descontinuidades, visando estabelecer novos patamares de avaliação e monitoramento da gestão
escolar. Naquele momento havia por parte dos diretores e vice-diretores das escolas municipais e das
UMEI’s, bem como da SMED, o desejo de sistematizar as dimensões avaliadas, e de se superar os
riscos de se passar a utilizar os resultados das avaliações da gestão como instrumento de ranking da
qualidade das gestões escolares.
Em decorrência do histórico anterior, e com a finalidade de aprofundar os procedimentos de
intervenção nas escolas nas quais fossem identificadas dificuldades na gestão, além de cuidar dessas
dificuldades e das pessoas responsáveis pelos processos de gestão envolvidas nas crises identificadas,
a SMED instituiu o Processo de Gestão de Crise (PGC) na gestão das Escolas Municipais de Belo
Horizonte.
Nesse contexto, e tendo a crise na gestão como eixo desse texto, cabe-nos elucidar o que se entende
por crise e, em especial, por crise na gestão das escolas. E o faremos com o auxílio de alguns teóricos
e pesquisadores, entre estes, James A. Robinson (2012) que, em busca de uma definição para o termo
“crise”, afirma que este tem sido um “termo de uso corrente, em busca de um significado
científico”.
Por sua vez, considerando crise enquanto um processo que se instala a partir de um “evento
propulsor” que desestabiliza fortemente o contexto pessoal ou institucional, LAGADEC (1991),
propõem a teoria dos 3 D’s:
1. DEFLAGRAÇÃO: a crise suscita uma série de dificuldades que vão além das capacidades de
resposta: multiplicidade dos problemas, dos atores. Complexidade crescente, efeito de
aceleração. Grande nível de incerteza e problemas críticos de comunicação;
2. DESREGULAMENTAÇÃO: os dispositivos habituais de resposta “emperram”, os conflitos
latentes se manifestam, as alianças se dissolvem;
3. DIVERGÊNCIA: a crise abala as referências, os valores do ‘sistema’ envolvido: seus
valores, suas escolhas estratégicas do passado são questionadas.
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Esta chave de análise apresentada por LAGADEC – teoria dos 3 D’s, além de se constituir em lente
através da qual se verificam os problemas e as dificuldades que foram originaram a crise, ou que a
alimenta, tornando-a mais e mais complexa, oportuniza elucidar os dispositivos que ficaram
comprometidos e inoperantes, bem como a necessidade da reconstrução dos valores do sistema
daquela instituição.
Diante do exposto, questiona-se como o dispositivo de intervenção (PGC) colabora com o
gerenciamento de crises nos processos de gestão das escolas municipais de Belo Horizonte?
Portanto, a pergunta acima é formulada a partir do pressuposto que o dispositivo de intervenção é
imprescindível para a intervenção nas crises de gestão porque passam algumas escolas municipais e
UMEI’s.
2. Justificativa para a implementação do PGC
A Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED) tem progressivamente definido e
ampliado os campos de aplicação de seus esforços na avaliação e no monitoramento da gestão escolar,
e mais recentemente na gestão de crises nas escolas municipais de ensino fundamental e nas Unidades
Municipais de Educação Infantil (UMEI). Esta ação tem sido objeto de atenção da SMED desde o
final do governo do prefeito Fernando Pimentel (PT), a partir dos anos 2007/2008, tendo continuidade
e se aprofundado nos dois governos do prefeito Márcio Lacerda (PSB): no quadriênio 2009/2012 e
2013/2016. Especificamente em relação ao dispositivo denominado Processo de Gestão de Crise,
enquanto ferramenta de intervenção e solução de instabilidades gerenciais na gestão escolar, o
trabalho ganha corpo e sistematização a partir de agosto de 2015.
Este processo de gestão de crise tem sido condicionado nos dois últimos governos municipais, em
especial em razão da implantação da política de gestão municipal por metas e resultados iniciada no
governo do prefeito Fernando Pimentel (PT) e levada a cabo nos dois governos do prefeito Márcio
Lacerda (PSB) quando se instituiu o Programa BH Metas e Resultados (Decreto e lei) sob a
responsabilidade da Coordenação do Programa BH Metas e Resultados, com status de Secretaria
Municipal e, posteriormente, com a participação da Secretaria Municipal Adjunta de Gestão
Compartilhada na coordenação do programa.
No bojo destas mudanças na gestão municipal, com a ampliação da complexidade das ações das
escolas e, consequentemente, da gestão escolar, para além da diversidade e interdependência das
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variáveis que, inevitavelmente, se fazem presentes nos empreendimentos humanos, com maior
grandeza nos momento de incorporação de novos paradigmas, necessário se fez rever o formato e o
modelo da gestão escolar, bem como as atribuições e o perfil dos diretores e vice-diretores eleitos
para a gestão das escolas municipais e UMEI’s de Belo Horizonte.
Se, anteriormente, a SMED já acompanhava os problemas emergentes que não recebiam a atenção
apropriada das direções e vice-direções das escolas e UMEI’s, em função das novas exigências que
têm origem no recente contexto da gestão por metas e resultados no município de Belo Horizonte,
afloram a necessidade de novas habilidades e competências por parte dos gestores escolares,
ampliando e evidenciando novos focos de crises.
Por sua vez, ainda que seja evidente que as crises se fazem presente na história da humanidade desde
os primórdios das sociedades humanas, a área de gestão de crise enquanto campo de pesquisa e
ferramenta de gestão é recente. Um significativo estudo sobre este campo foi levado a cabo nos
últimos trinta e cinco anos, quando foi sistematizado um trabalho sobre as organizações industriais
estabelecidas na Europa e na América do Norte (Smith & Eliott, 2006).
No Brasil, desde o início do século XX, têm ocorrido diversos e variados fenômenos que podem ser
caracterizados como crise. Recentemente, em âmbito nacional podemos destacar a crise da Petrobrás,
crise na governabilidade da Presidência da República, crise na Presidência da Câmara Federal, crise
hídrica, crise energética, entre outros. Entretanto, também é senso comum entre os pesquisadores que
não se deve temer a crise, deve-se buscar seu significado científico (Acemoglu e Robison, 2012) e
conhecer suas causas e extensão, além de perseguir, conforme proposição de Patrick Lagadec,
simultaneamente, três objetivos difíceis de se separar:
a) a identificação de problemas fundamentais que marcam os momentos de crises e da sua
gestão;
b) a construção de uma primeira ferramenta de orientação estratégica para a situação
respostas/propostas de formulação do fenômeno de crise para ajudar os gestores a projetar, iniciar e
organizar a aprendizagem necessária ao conhecimento da extensão da mesma;
c) desenvolver o trabalho de modo a evitar rupturas contínuas, criando ações e projetos que
oportunize resiliência por parte dos gestores e de suas respectivas equipes (LAGADEC, 1991: págs.
7 a11).
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É nesse contexto que a SMED institui o Processo de Gestão de Crise como dispositivo de intervenção
na gestão escolar, tendo como parâmetros a busca do entendimento da crise, a sua condução e o
desenvolvimento da aprendizagem por parte das pessoas envolvidas no processo de superação da
crise, fortalecendo-as para que sejam capazes de imprimir novo vigor àquela gestão.
3. Fundamentos teórico-conceituais: o Processo de Gestão de Crise como um Dispositivo
Foucaultiano aos olhos de Gilles Deleuze:
A priori, para se compreender o Dispositivo do Processo de Gestão de Crise optamos por destacar a
importância de se abordar os elementos teórico-conceituais que envolvem o conceito foucaultiano de
dispositivo e isso, com o apoio de Deleuze.
O conceito de dispositivo foi desenvolvido por Foucault em sua obra História da Sexualidade, mas
foi na entrevista que forneceu à International Psychoanalytical Association (IPA) que o autor definiu
o dispositivo como:
“Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba
discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode tecer entre esses elementos”
(FOUCAULT, 2000, p. 244).
Como se vê, trata-se de um conceito complexo que convida para, a partir desses diferentes elementos,
tentar estabelecer um conjunto de relações flexíveis que, reunidas em um único aparelho, possibilita
isolar um aspecto específico (DREYFUS; RABINOW, 1995), neste caso, tendo por foco as
instabilidades gerenciais enfrentadas pelas escolas e UMEI’s da Rede Municipal de educação de Belo
Horizonte, o Processo de Gestão de Crise na Gestão Escolar.
Em uma análise da obra foucaultiana, Deleuze define o conceito de dispositivo desenvolvido por
Foucault como um conjunto operatório multilinear composto por linhas de natureza diferente
(DELEUZE, 1999). Deleuze explicita que as linhas de um dispositivo traçam processos que estão
sempre em desequilíbrio e que essas linhas, qualquer uma delas, são submetidas a variações de
direções e a derivações. Nesse sentido, em um dispositivo, os objetos visíveis, os enunciados
formuláveis, as forças em exercício e os sujeitos em uma determinada posição são como vetores ou
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tensores. Por isso, as três grandes instâncias que Foucault distinguiu – saber, poder e subjetividade –
não possuem contornos definidos (DELEUZE, 1999).
Deleuze, a partir dessa análise, destaca as linhas que compõem e que atravessam o dispositivo, quais
sejam, as linhas de visibilidade e as linhas de enunciação; as linhas de força; e as linhas de
subjetividade.
3.1 Desenredando as linhas de visibilidade e de enunciação
As primeiras duas dimensões de um dispositivo são as chamadas linhas ou curvas de visibilidade e
linhas ou curvas de enunciação. Isso porque os dispositivos são máquinas de fazer ver e de fazer falar.
A visibilidade é feita por linhas de luz e cada dispositivo tem seu regime de luz, ou seja, sua maneira
como cai a luz e distribui o visível e o invisível. Segundo Deleuze, se há uma historicidade dos
dispositivos ela é a dos regimes de luz e, também, é a dos regimes de enunciado. Os enunciados, por
sua vez, remetem a linhas de enunciação, que são curvas que distribuem posições diferenciais dos
elementos do dispositivo (DELEUZE, 1999).
Essas linhas, de visibilidade e de enunciação, dizem do que é visível e do que dizível do dispositivo,
o que, por si só, remete à existência de algo invisível e indizível. São essas linhas e esses regimes
que, no campo da educação, permitem o nascimento do sujeito-educador e do sujeito-educando, que
adquirem formas, cores e detalhes diferenciados.
É importante destacar que as curvas de visibilidade não podem ser confundidas com as imagens e as
cenas imediatamente vistas e as linhas de enunciação não se referem imediatamente aos ditos, às falas
proferidas ou escritas (MARCELLO, 2004). São trovões que subsistem somente a partir de condições
específicas de luminosidade e sonoridade, positivadas pelas relações de poder e por outras formas de
saber correlatas (DELEUZE, 1991).
Assim, as curvas de visibilidade não se referem à forma específica de ver um sujeito. Isso porque o
sujeito é um lugar na visibilidade e as formas de ver são anteriores à vontade individual de um sujeito,
que, aqui, na verdade, é objeto; é uma variável da própria visibilidade. Já os regimes de enunciação
não são meramente aquilo que fala, mas aquilo que se torna possível e justificável falar. São as
múltiplas e proliferantes enunciações que encontram condições de entrar na ordem do discurso. São
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regimes ligados à vontade de verdade. É a partir deles que se desvenda, por exemplo, a educação para
o profissional e o usuário – para eles ou deles (MARCELLO, 2004).
3.2. Desenredando as linhas de força
Em terceiro lugar, um dispositivo comporta linhas de força. Essas linhas retificam as curvas de
visibilidade e os regimes de enunciação, delineiam suas formas, delimitam seus trajetos, traçando os
caminhos que irão percorrer. Essas linhas de força estabelecem o vaivém entre o ver e o dizer,
entrecruzam as coisas e as palavras; passam por todos os lugares do dispositivo (DELEUZE, 1999).
São linhas invisíveis e indizíveis. Estão estreitamente enredadas nas outras e são totalmente
desenredáveis. São linhas intimamente relacionadas com a dimensão do poder, pois fixam os jogos
de poder e as configurações de saber que nascem do dispositivo e que também o condicionam
(DELEUZE, 1999).
Esses aspectos assinalam para a racionalidade da medicalização que, por sua vez, revela,
especificamente, o poder disciplinar como parte integrante do poder na sociedade. Na sociedade
disciplinar, há um conjunto de dispositivos de saber e poder que se fundamentam na vigilância
permanente e na normalização de comportamentos. O poder disciplinar então se materializa nos
corpos dos sujeitos individualizados, por técnicas disciplinares, aumentando sua utilidade,
potencializando suas habilidades e, por conseguinte, seus rendimentos (FOUCAULT, 2004). Esses
aspectos se fazem fundamentais na análise e na construção do denominado clima escolar.
Para que esse poder disciplinar exerça-se, é necessário, somente, que as pessoas a ele submetidas
saibam que são vigiadas ou potencialmente vigiadas. A possibilidade da vigilância, apenas, já é
suficiente para que se efetive o poder disciplinar. Aqui, os indivíduos disciplinam-se a si mesmos
(FOUCAULT, 2004). Com essa técnica de poder, surge então o poder da norma, que conduz à
padronização de condutas a partir das disciplinas que evidenciam um discurso de verdade
(FOUCAULT, 2005).
Ambas as tecnologias de poder e poder disciplinar, passam a coexistir no mesmo recorte temporal e
espacial, tendo, como elemento comum, entre a disciplina e a regulamentação, a norma, que pode
aplicar-se a um corpo que se queira disciplinar e/ou a uma população que se queira regulamentar
(FOUCAULT, 2005).
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3.3. Desenredando as linhas de subjetividade
Finalmente, têm-se as linhas de subjetividade do dispositivo. Essas linhas são aquelas que atuam
sobre si mesmas e afetam a si mesmas. Constituem a dimensão do si próprio e, como tal, não há uma
determinação preexistente que se possa encontrar já acabada. A linha de subjetividade é um processo,
uma produção de subjetividade no dispositivo; está para se fazer, na medida em que o dispositivo
deixe ou torne possível. É uma linha de fuga; uma linha que escapa às outras linhas. Não é nem um
saber nem um poder, mas sim um processo de individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que
escapa às forças estabelecidas e aos saberes constituídos. Aqui, nessas linhas, se assiste a uma
tipologia das formações subjetivas, em dispositivo que não é fixo (DELEUZE, 1999).
Entretanto, cumpre ressaltar que todo esse processo não acontece sem resistência. Mas uma coisa é
resistir ao poder; outra coisa é dele escapar. Resistir dá à fuga condição de possibilidade. É por essas
linhas de subjetividade que se delineiam novas configurações dos regimes e novas formas de
produção de regimes. Aqui, pensa-se que os projetos de cada sujeito podem, em vez de entrar em
relação linear com uma outra força, predispor a linhas de fratura; podem conduzir a produções de
subjetividade que saem dos poderes e dos saberes de um dispositivo para se reinventar noutro, sob
outras formas que hão de nascer. Pode-se então assistir à atuação de linhas de criatividade ou de
atualização (DELEUZE, 1999).
4. O Processo de Gestão de Crise como conjunto de dispositivos em Rede:
O Dispositivo de Gestão de Crise na Gestão das Escolas Municipais e UMEI’s de Belo Horizonte,
conforme conceito foucaultiano já discutido anteriormente, se constitui enquanto um conjunto de
dispositivos que interligados formam uma Rede através da qual se fortalecem e, em função da
necessária flexibilidade, forja, sempre que for preciso, novos dispositivos. Em razão do espaço e da
finalidade desse trabalho não entraremos na discussão tão rica e necessário de Rede conforme
conceito formulado pelo filósofo Bruno Latour, do qual sugerimos a leitura de sua obra, ainda pouco
estudada no Brasil.
Para o Processo de Gestão de Crise na Gestão Escolar são dispositivos importantes: a instituição
(PBH, SMED, GERED, Escolas e UMEI’s, entre outras); os gestores e as demais pessoas das escolas
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e UMEI’s; a normatização (Leis, Decretos, Portarias, Ofícios, formulários e demais documentos
oficiais), entre outros.
Como exemplo, em anexo, alguns dispositivos formulados no processo de gestão de crise da gestão
escolar.
5. Considerações finais:
As crises que se instalam nas escolas e UMEI’s sacrificam estudantes, profissionais da educação,
famílias e comunidades nas quais as escolas se inserem, por isso precisam ser gerenciadas e superadas
com rapidez, eficácia e eficiência. A gestão precisa superar a crise e aprender com ela. A superação
não pode se dar de qualquer forma, mas se deve superar as fragilidades e a inoperância dos aspectos
da gestão, alçando para a resiliência e a dinamicidade. Por isso, o resultado da ação dos procedimentos
do Dispositivo da Gestão de Crise deve redundar nas dimensões:
a) Pedagógica, produzir novos aprendizados a partir do que foi vivenciado no processo de
identificação, análise e superação dos focos e problemas geradores da crise;
b) Transformadora, possibilitar o nascimento de uma nova rede de dispositivos capazes de
evidenciar os germes de novas instabilidades, fazendo com que a instituição não se coloque
em novas e contínuas crises; transformar a cultura local através da incorporação de novos
e eficientes dispositivos de gestão, entre outras. Afinal, “a cultura expressa nos hábitos, na
consciência histórica e política, na valorização ‘quase bairrista’ do nosso patrimônio com
sua inteligente utilização e cuidado, é a alavanca para mudar e fazer crescer, com força
maior” (AZEVEDO: 2016, pág. 7).
c) Resiliente, que a vivência dos processos de superação da crise fortaleça a instituição e seus
indivíduos, de modo que possam empreender novos e contínuos ciclos de inovação na
gestão, que, por sua vez, retroalimentem o fortalecimento institucional e individual.
Uma outra questão importante a ser considerada no Dispositivo de Gestão de Crise se refere às
pessoas, em especial às pessoas responsáveis pela gestão, que, no contexto desse trabalho são os
gestores escolares (Diretor (a), Vice-Diretor (a), Secretário (a), Gestor (a) Financeiro (a)). Na
aplicação dos dispositivos de gestão de crise, ao se identificar ineficiência, ineficácia, inoperância,
gestão insuficiente ou erros do gestor, deve-se distinguir a sua pessoa do seu erro ou ineficiência etc.
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Ou seja, cuidar das pessoas envolvidas para que aquele procedimento seja educativo e não traumático,
seja fator de resiliência e não instrumento de vulnerabilidade ou fragilização das mesmas. Afinal,
entre os dispositivos em Rede, as pessoas envolvidas no processo também se efetivam enquanto
dispositivos flexíveis, são tão ou mais importantes que os demais dispositivos do PGC.
Afinal, as pessoas “são portadoras de desejos e interesses que acabam por
transformar aquela instituição em objeto com o qual, ou através do qual,
se encontra o significado e o significante propostos. Dessa forma, como se
pode inferir, esses desejos e interesses não se colocam apenas em termos
subjetivos “em razão do fato de que o mesmo objeto que existe ‘lá fora’ é
visto a partir de duas posturas ou pontos de vista diferentes. Mais do que
isso, como diria Hegel, sujeito e objeto são inerentemente ‘mediados’, de
modo que uma mudança ‘epistemológica’ do ponto de vista do sujeito
sempre reflete a mudança ‘ontológica’ do próprio objeto” (Zizek: 2012,
pág. 32). É nessa perspectiva que o intelectual esloveno Slavoj Zizek
indica o termo “paralaxe” por ele definido como “o deslocamento aparente
de um objeto (mudança de sua posição em relação ao fundo) causado pela
mudança do ponto de observação que permite nova linha de visão” (Zizek:
2012, pág.32). Se, conforme argumenta Zizek ao visitar o pensamento
hegeliano, sujeito e objeto são inerentemente mediados a ponto de, em
razão dessa mediação ocorrerem as mudanças ontológicas e
epistemológica, podemos também considerar os modos pelos quais se dão
as relações entre sujeito e objeto (...) (CLÁUDIO: 2015, pág. 01).
6. Referências bibliográfica
ACEMOGLU, Daron e ROBINSON, James. Por que as nações fracassam? As origens do
poder, da prosperidade e da pobreza. Rio de janeiro: Campus, 2012.
AZEVEDO, Dom Walmor Oliveira. O preço da Cultura. Jornal Estado de Minas, 04/03/2016,
página 7.
CLÁUDIO, Ismayr Sérgio Cláudio. O espaço religioso, a construção humana do espaço
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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 19º ed. Rio de Janeiro: Graal,
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