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O teatro de Virgínia Victorino e a primeira república portuguesa

Date post: 11-Mar-2023
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO

REITOR:Adriano Aparecido Silva

VICE-REITOR:Dionei José da Silva

PRÓ-REITORIA DE ENSINO E GRADUAÇÃO:Ana Maria Di Renzo

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO:Antônio Francisco Malheiros

PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA:Juliana Vitória Vieira M. Silva

PRÓ-REITORIA DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVOLVIMENTO INSTITUCIONAL:Weily Toro Machado

PRÓ-REITORIA DE ADMINISTRAÇÃO:Valter Gustavo Danzer

PRÓ-REITORIA DE GESTÃO FINANCEIRA:Ariel Lopes Torres

PRÓ-REITORIA DE ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL

Francisco Lledo dos SantosDIRETORIA DO INSTITUTO DE LINGUAGEM:

Ana Luiza Artiaga Rodrigues da Motta

COORDENADOR DO CAMPUS DE TANGARÁ DA SERRA

Sérgio Baldinott

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ESTUDOS LITERÁRIOS

Coordenadora: Walnice Aparecida Matos VilalvaVice-Coordenador: Agnaldo Rodrigues da Silva

Avenida Tancredo Neves, 195 – Carvalhada - Cáceres - MT - 78200-000

ISSN 2176-1841 (digital)ISSN 1984-0055 (impressa)

ANO 05, VOL. 06, N.O 06, DEZ. 2012 – TANGARÁ DA SERRA/MT – PERIODICIDADE SEMESTRAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS-PPGELNÚCLEO DE PESQUISA WLADEMIR DIAS-PINO

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO

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REVISTA ALERE - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS-PPGEL - Ano 05, Vol. 06. N.o 06, dez. 2012 - ISSN 2176-1841

© copyright 2012 by autores

Revista Alere / Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários-PPGEL - Núcleo Estudos da Literatura de Mato Grosso Wlademir Dias-Pino, Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus Universitáriode Tangará da Serra - v. 06. n.06, dez. 2012 - Tangará da Serra:Editora da Unemat, 2012.Periodicidade semestral

ISSN 2176-1841 (digital)ISSN 1984-0055 (impressa)

1.Linguística. 2. Letras. 3. Literatura. I. Universidade do Estado deMato Grosso

CDU 81

EDITORES: Walnice Aparecida Matos VilalvaOlga Maria Castrillon-MendesTieko Yamaguchi MiyazakiAroldo José Abreu Pinto

CONSELHO EDITORIAL: Agnaldo Rodrigues da Silva (UNEMAT)Antônio Manoel dos Santos Silva (UNESP)Antônio Roberto Esteves (UNESP)Dante Gatto (UNEMAT)Diléa Zanotto Manfio (UNESP)Diana Junkes Martha Toneto (UNESP)Emerson da Cruz Inácio (USP)Franceli Aparecida da Silva Mello (UFMT)Frederico Góes Fernandes (UEL)Gilvone Furtado Miguel (UFMT)Graciela Sánchez Guevara (ENAH-Mx)Josalba Fabiana dos Santos (UFS)José Javier Villarreal Álvarez Tostado (UANL-Mx)Julieta Haidar (ENAH-Mx)Madalena Aparecida Machado (UNEMAT)Manoel Mourivaldo Santiago Almeida (USP)Manuel Cáceres (UGR-ES)Marcos Siscar (UNICAMP)Maria de Lourdes Netto Simões (UESC)María Eugenia Flores Treviño (UANL-Mx)Mário Lugarinho (USP)Olga Maria Castrillon-Mendes (UNEMAT)Susi Frank Sperber (UNICAMP)Tânia Celestino Macedo (USP)Tieko Yamaguchi Miyazaki (UNESP-UNEMAT)Vera Lúcia Rodella Abriata (UNIFRAN)Vima Lia de Rossi Martin (USP)

Walnice Aparecida Matos Vilalva (UNEMAT)

DIAGRAMAÇÃO, ARTE CAPA E MIOLO: Aroldo José Abreu Pinto

REVISÃO (PORTUGUÊS): Tieko Yamaguchi Miyazaki

TRADUÇÃO E REVISÃO (INGLÊS): Ricardo Marques Macedo

CORRESPONDÊNCIA: UNEMAT - Secretaria de Pós-GraduaçãoRodovia MT - 358, Km 07, Jardim AeroportoTangará da Serra / MT - CEP: 78.300-000.

É proibida a reprodução de partes ou do todo desta obra sem autorização dos autores.

Avenida Tancredo Neves, 195– Carvalhada - Cáceres - MTCEP: 78200-000

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APRESENTAÇÃO- DOSSIÊ: A ENUNCIAÇÃO NA FICÇÃO

O FIO DA MEADA: O LIVRO NO ESPELHOTHE THREAD: THE BOOK IN THE MIRROR Ismael Ângelo Cintra (UNESP)1

BREVE EXERCÍCIO ANALÍTICO SOBRE ASESTRATÉGIAS DE UM NARRADORCONTEMPORÂNEOSUCCINCT ANALYTICAL EXERCISE ABOUT THESTRATEGIES FROM ACONTEMPORARYNARRATORLilian Reichert Coelho

PERIFERIA E CÂNONE EM ADONIAS FILHOSUBURBS AND CANON IN ADONIAS FILHOJoão Luiz Peçanha Couto

DO ASSUM PRETO E DO EUNUCOTHE BLACK ASSUM AND THE EUNUCHTieko Yamaguchi Miyazaki

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“ERA AQUI”, FICÇÃO E SOCIEDADE EM UMCONTO DE LUIZ VILELA“ERA AQUI [“IT WAS HERE”], FICTION ANDSOCIETY IN A TALE OF LUIZ VILELARauer Ribeiro Rodrigues

O LEITOR ENTRE A CHINELA E ACARTOMANTETHE READER BETWEEN THE SLEEPER ANDTHE FORTUNETELLERDaniele Ribeiro Fortuna

DOIS IRMÃOS OU UM ‘EU’ DIVIDIDOTWO BROTHERSOR AN’I’SPLITEDRodirlei Silva Assis

LA IMAGEN FOTOGRÁFICA: UNA MIRADAIRÓNICA EN “LAS GENEALOGÍAS” DEMARGO GLANTZTHE PHOTOGRAPHIC IMAGE: AN IRONICLOOKIN” LAS GENEALOGÍAS “ BYMARGOGLANTZManuel Santiago Herrera Martínez - María EugeniaFlores Treviño

EN BUSCA DE LAS PISTAS SICOANALÍTICASDE LOS SUEÑOS DE EVITA EN LA NOVELASANTA EVITA DE TOMÁS ELOY MARTÍNEZIN SEARCHOFPSYCHOANALYTICTRACKSOFEVITA’S DREAMSINTHENOVELSANTAEVITABY TOMAS ELOYMARTÍNEZAlejandro González Urrego

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Sumário

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THE THEATRE OF VIRGÍNIA VICTORINOAND THE FIRST PORTUGUESE REPUBLICO TEATRO DE VIRGÍNIA VICTORINO E APRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESAFabio Mario da Silva

ENTREVISTA/INTERVIEW

Entrevista de Maria Teresa Horta a Fabio Mario daSilva.Interview with Maria Teresa Horta to Fabio Mario daSilva.

RESENHA - OBRA ADELAIDE CABETEPor Fabio Mario da Silva

NORMAS DE APRESENTAÇÃO DOSORIGINAIS/RULES FOR SUBMISSION OFARTICLES TO ALERE MAGAZINE

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DOSSIÊ: A ENUNCIAÇÃO NAFICÇÃO

Reúnem-se neste número da Revista Alere artigos de autoresde várias procedências (Universidade Federal de Rondônia,Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Universidade EstadualPaulista, Universidade de São Paulo, Universidade do Grande Rio,Universidade do Estado de Mato Grosso, Universidad Autónomade Nuevo León, Universidade de Évora), sobre o tema destenúmero, A enunciação na ficção. Entende-se aqui a enunciaçãoconforme a definem Greimas e Courtès (Dicionário de semiótica,São Paulo: Cultrix, s/d, p.145-6): “seja como estrutura não-linguística(referencial) que subtende à comunicação linguística, seja como umainstância linguística, logicamente pressuposta pela própria existênciado enunciado (que dela contém traços e marcas). No primeiro caso,falar-se-á de ‘situação de comunicação’, de ‘contextopsicossociológico’ da produção dos enunciados, que tal situação(ou contexto referencial) permite atualizar. No segundo caso, sendoo enunciado considerado como o resultado alcançado pelaenunciação, esta aparece como a instância de mediação, que asseguraa colocação em enunciado-discurso das virtualidades da línguaNão

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só, portanto, no sentido de nível mais superficial textual, mas a relaçãoentre a obra em foco e as suas relações seja intertextuais, com textosde outros suportes, seja com o momento histórico de sua produção.

Abre o número o texto de Ismael Ângelo Cintra, sobreMachado de Assis. Analisa o romance Esaú e Jacó, pressupondoque, em termos de enunciação, esta obra esteja talvez mais próximade Memorial de Aires do que de Quincas Borba. Isso porque onarrador ora parece identificar-se com a personagem (Aires), oraparece ser apenas a voz de um estranho. A questão fundamental aexaminar é, por conseguinte, a constituição dessa fonte ambíguaresponsável pela enunciação. Ainda que se tome o alegadoaproveitamento dos manuscritos apenas como recurso decomposição artística, não é possível eliminar a presença da voz deAires como uma espécie de parceiro da narração ao inventar, numpasse metalinguístico quase impossível de descrever, um autorfingido de um memorial imaginário, que num jogo de espelho évisto dentro do mesmo, escrevendo-o. Machado fica à vontade paradiscutir os problemas referentes à composição do romance e toda asua carpintaria, além de pôr a nu o próprio arsenal de representaçãoda realidade.

A figura do narrador é também o foco de análise levada acabo por Lilian Reichert Coelho: o objeto escolhido é Cidade deVidro, a primeira novela de Trilogia de Nova York, do escritorestadunidense Paul Auster (1985). Com o objetivo central de verificarcomo as estratégias utilizadas são relacionadas ao gênero romancepolicial, a autora utiliza como instrumental analítico o propostopor Genette em Discurso da narrativa. Orienta-se “ pela percepçãode que o gênero-base é esgarçado na narrativa sob foco pela açãoda figura do autor-implícito que pretende desenvolver uma reflexãofilosófica e metalinguística, tomando como paradigma e, ao mesmotempo, suplantando, Edgar Allan Poe. “

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho, é o romanceescolhido por João Luiz Peçanha Couto, preocupado em examinar

Apresentação

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este escritor e sua obra sob a ótica da questão da “ periferia “, ouseja, do se estar e se postar como em lugar de não-centro, emoposição, pois, à escrita canônica como central. Para isso, ele parteda premissa de que a obra “ consiste na busca (recherche) doprotagonista pela aceitação de sua própria morte, instaurada porvia da linguagem. A morte, não (apenas) em seu sentido literal deextinção da vida, mas, sobretudo, como trampolim para acompreensão do processo de construção da linguagem ficcional ede seu espaço literário, segundo um ponto de vista blanchotiano.”.[...]É dessa capacidade de a linguagem da literatura se afastar de umsubjetivismo que a impossibilitaria, e rumar para sua própriaausência, para um espaço exterior e limítrofe, inegavelmenteirmanado com a morte e desvinculado da positivação dareferencialidade representativa, pois afirma a nulidade daquele quea gerou, que se valerá esta análise.”

Do assum preto, do eunuco, Tieko Y.Miyazaki, defende oconceito de regionalismo não como subgênero literário mas comouma categoria operacional. Após uma breve incursão sobre atrajetória do termo na crítica e história literária, focaliza a enunciaçãoem narrativas de distintos momentos como o lugar privilegiado emque a marca do regionalismo se manifesta, para, em seguida, analisarum episódio de Sargento Getúlio, de Ubaldo Ribeiro, paraexplicitar a originalidade deste romance no trato do regionalismona enunciação.

“No centro da página há a foto de uma criança de calça curtae gorro feito com uma bola cortada pela metade — essa fotoantecede ao conto “Era aqui”, de Luiz Vilela .” Assim se inicia otrabalho de Rauer Ribeiro Rodrigues “Era aqui”, ficção esociedade em um conto de Luiz Vilela, cujo objetivo “éconfrontar a narrativa à foto que antecede ao conto, explicitando ocontexto da publicação”, ou seja, entendendo aqui enunciação emnuma dimensão que vai além da puramente textual.

Na outra ponto do processo comunicativo se situa o artigo

Apresentação

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de Daniele Ribeiro Fortuna, O leitor entre a chinela e acartomante, que toma como foco o papel do leitor (implícito,modelo) no texto. Num texto bastante claro e didático, além dosensinamentos de Umberto Eco, aplica os conceitos da teoria derecepção a dois dos mais bem conhecidos e estudados contos deMachado de Assis: “A chinela turca” e “ A cartomante”.

Dois irmãos, de Milton Hatoum e Rio das flores, de MiguelSousa Tavares, são cotejados por Rodirlei Silva Assis, em seu artigocujo título - “Dois irmãos ou um ‘eu’ dividido” – aponta claramenteo tema em foco. Ao tradicional tema do antagonismo entre doisirmãos se propõe, aqui, uma leitura metafórica de relações deaproximação e de distanciamento, não entre dois indivíduos, masentre culturas distintas no espaço e no tempo da história brasileira.

Não mais restringindo-se ao tema da enunciação literária, oupelo menos não privilegiando esse nível textual mas abrindohorizontes, os dois artigos seguintes apresentam como um centrocomum a mobilização de mitos, em contexto mais amplo qual sejao histórico dos países em que as narrativas se situam, enlaçando-se,de certa maneira, com o texto mexicano sobre fotografia.

Com auxílio de Baudrillard, Barthes, Lasswell e ManuelSantiago Herrera Martínez e María Eugenia Flores Treviño, em Laimagen fotográfica: una mirada irónica en las genealogías, deMargo Glantz, trabalhando com elementos semióticos e discursivosem uma fotografia da referida obra, pretendem rastrear as marcasque, a partir da ficção literária, se projetam na identidade culturaldos judeus.

Alejandro González Urrego analisa o romance de Tomás EloyMartínez, Santa Evita, a partir da bipolaridade de sua protagonistaem dois corpos: de um lado, o corpo vivo com seus delírios e sonhos,conscientes e inconscientes, os quais possibilitam entender melhor aEvita Perón; de outro, o corpo inerte, embalsamado, mas que, aoadquirir voz, se transforma em um significante povoado igualmentede sonhos e delírios. A análise de tais sonhos, delírios e obsessões,

Apresentação

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do ponto de vista da psicanálise, é que o que propõe o estudiosocomo forma de entender os diferentes projetos sociais desta figurahistórica.

Fabio Mario da Silva (da Universidade de Évora e pequisadordo CLEPUL da Univ. de Lisboa) nos apresenta um estudo sobreum dos grandes ícones do teatro português do começo do séculoXX, Virgínia Victorino, e sua relação com a politica da primeiraRepública, mostrando-nos um retrato cultural e social tendo emvista o olhar feminino sobre a sociedade portuguesa (lisboeta)naquele momento.

Fecham o presente número da revista, a entrevista com MariaTeresa Horta sobre a “escrita feminina”, concedida a Fabio Marioda Silva, autor também da resenha da obra Adelaide Cabete, deIsabel Lousada.

Desta forma enfeixados, os textos de análise convidam o leitor,especializado ou não, a um diálogo construtivo. As conexõesestabelecidas resultam em alavancas de pesquisas e de reflexõescríticas. Da arqueologia dos textos surgem outras vozes que assumemcompromissos inevitáveis entre a arte e a ciência da linguagem, entreo inexplicável (e silencioso) mundo das singularidades e o universoteórico e científico que embasa as leituras.

OS EDITORES

Apresentação

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O FIO DA MEADA: O LIVRONO ESPELHOTHE THREAD: THE BOOK INTHE MIRROR

Ismael Ângelo Cintra(UNESP)1

RESUMO: A questão fundamental, objeto do artigo, éexaminar a constituição da fonte ambígua da enunciação emEsaú e Jacó . Ainda que se tome o alegado aproveitamento domanuscrito de Aires apenas como recurso de composição, nãose pode eliminar a voz de Aires como uma espécie de parceiroda narração. As pistas não se restringem à Advertência, mas seespelham por todo o romance, especialmente nos fragmentosdo Memorial que está sendo escrito pelo conselheiro.

PALAVRAS-CHAVE: Pessoas verbais. Vozes. Narrador.Testemunha. Memorial.

ABSTRACT:The fundamental question, subjectif this article, isexamining the constitution of the ambiguous statement source

1 Docente (aposentado) do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários e do Programade Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Ciências e Letras, câmpus de São Josédo Rio Preto-Sp, Universidade Estadual de São Paulo.

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in Esaúe Jacó. Even if on etakes the alleged utilization of manu-script of Aires just as feature composition, one cannot eliminatethe voice of Aires as a sort of partner of narration.The evi-dences are not limited to notice, but are mirrored throughoutthe novel, especially in the fragments of Memorial that is beingwritten by the counselor.

KEYWORDS: Verbal people. Voices. Narrator.Witness.Memorial.

Não é novidade que os cinco romances finais de Machado deAssis constituem um conjunto sujeito a muitas divisões. Além datemática, uma outra possível se baseia na distribuição da pessoaverbal. Desse prisma, chega a chamar a atenção o emprego alternadoda 1ª e 3ª pessoas na sequência da composição das obras da segundafase. Memórias póstumas de Brás Cubas, por ordem depublicação, o primeiro, Dom Casmurro, o terceiro e Memorialde Aires, o quinto, são narrativas que, além de escritas na 1ª pessoa,guardam uma outra característica comum: resultam todos dememórias do narrador-personagem. Já Quincas Borba e Esaú e Jacó,respectivamente, o segundo e o quarto na ordem de produção, sãode 3ª pessoa e, certamente por isso, são considerados pela críticacomo dois romances de estrutura objetiva que Machado pretendeuescrever. Resultados à parte, uma abordagem menos restritiva doque a consideração apenas da pessoa verbal pode, no entanto, revelar,por exemplo que Esaú e Jacó, em termos de enunciação, estejatalvez mais próximo de Memorial de Aires do que de QuincasBorba.

A simples classificação de uma narrativa como de 1ª ou de 3ªpessoa pode ser necessária, mas não diz o suficiente sobre a estruturaenunciativa. A nosso ver, a distribuição no nível da pessoa verbal sótem sentido enquanto indica duas atitudes narrativas dentre as quaiso romancista deve optar: fazer contar uma história por um estranhoou por um de seus personagens.

O FIO DA MEADA: O LIVRO NO ESPELHOTHE THREAD: THE BOOK IN THE MIRROR Ismael Ângelo Cintra

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A esse respeito, a opção de Machado de Assis em Esaú eJacó é ambígua: o narrador ora parece identificar-se com apersonagem (Aires), ora parece ser apenas a voz de um estranho.Além disso, mesmo fazendo-se passar por um estranho, o narradorse intromete regularmente no curso da narrativa, em repetidasreferências pessoais a si mesmo. Eis aí um indício que nos parecesuficiente para caracterizar o romance dos gêmeos como umanarração virtual de 1ª pessoa. A esse respeito diz Genette (FiguresII, 1972, p.252): “ En tant que Le narrateur peut à tout instant intervenircomme tel dans Le récit, toute narration est, par définition, virtuellemente, faità la première personne.”

Enunciação ambígua

Classificação à parte, a questão fundamental a examinar é, porconseguinte, a constituição dessa fonte ambígua responsável pelaenunciação. Mesmo que a princípio seja difícil definir a origem dadualidade de vozes, não há como negar a sua participação efetivado texto. Ainda que se tome o alegado aproveitamento dosmanuscritos apenas como recurso de composição artística, não épossível eliminar a presença da voz de Aires como uma espécie deparceiro da narração. As pistas não se restringem à Advertência,encontram-se copiosamente espalhadas no romance, especialmentenos fragmentos transcritos do Memorial que está sendo escrito peloconselheiro.

A duplicidade ou ambiguidade enunciativa, já significativa notexto de abertura do romance, faz-se sentir, por exemplo, no capítuloI que já no primeiro parágrafo nos põe em contato com um eu que,de passagem, menciona certa experiência pessoal vivida na Europa:

Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velhoinglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos anos em Londres

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que de Londres só conhecia bem o seu club, e era o que lhe bastava dametrópole e do mundo. (ASSIS, 1977, p.63; grifamos).

Ressalta-se de início a presença do eu assumindo a fala. Aqui oenunciado não mascara a subjetividade. Mas quem seria o sujeito dafala? No capítulo XII, quando é introduzido Aires no romance,encontra-se:

Esse Aires que aí aparece conserva ainda agora algumas virtudes daqueletempo, e quase nenhum vício. Não atribuas tal estado a qualquer propósito.[...] Apesar dos quarenta anos, ou quarenta e dois, e talvez por isso mesmo,era um belo tipo de homem.Não me demoro a descrevê - lo.( ASSIS,1977, p. 88; grifamos)

Um cotejo dos dois trechos permite constatar que os doissujeitos – o conselheiro no capítulo XII e o narrador no capítulo I -,aparentemente distintos, tiveram em comum a experiência de viagemao exterior. Uma ilação não se faz esperar: se o diplomatanormalmente se ausentava do Brasil inclusive viajando à Europa(como no capítulo CXVI), o narrador da experiência de Londrespode ser ele mesmo. O eu do primeiro texto poderia ser identificado,não só com o eu, mas também com o ele do segundo. Teríamoschegado ao cruzamento das duas instâncias narrativas: a da 1ª e da3ª pessoa.

Em favor dessa hipótese seria possível considerar também aquestão da dupla temporalidade do segundo trecho. Configura-se,através das formas adverbiais “daquele tempo” e “ainda agora”,uma clara oposição temporal: produz-se um efeito de distanciamentoentre o momento da narração e o pretérito em referência. Aocontrário da duplicidade temporal da Advertência, cuja enunciaçãoseria posterior à morte do conselheiro, aqui ele é mostrado nomomento mesmo da narração, pelo presente reiterado: “conservaainda agora”.

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Por outro lado, a qualificação “era um belo tipo de homem”não parece poder-se atribuir ao próprio sujeito. Além disso, comoexplicar a dúvida em relação à idade. Já o final da citação, atravésdo emprego de duas pessoas verbais distintas, distingue os doissujeitos, aponta o aparecimento de Aires, anunciado na Advertência.Se o seu surgimento como personagem se espera, surpreende nãoencontrá-lo declaradamente narrador. A comparação daAdvertência e o trecho acima permite concluir que se trata desituações enunciativas distintas. Na Advertência, embora impessoal,o discurso nos coloca um sujeito dotado de um conhecimento amploa respeito de Aires, mas que pela relação temporal - de posterioridade- não pode identificar-se com ele. Por outro lado, o discursopessoalizado do romance aparece assumido por um sujeito que oracomparece como uma voz singular, autônoma, ora como umaespécie de sósia do conselheiro. Tal configuração enunciativa leva aperguntar: são dois narradores distintos ou uma só voz atuando emdois níveis discursivos que se entrecruzam?

Observemos agora o capítulo Terpsícore, sobre o baile daIlha Fiscal.

Também eu, se é lícito citar alguém a si mesmo, também eu acho que adança é antes prazer dos olhos que dos pés, e a razão não é só dos anoslongos e grisalhos, mas também outra que não digo, por não valer a pena.Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nemnada que seja das pessoas que entram no livro. Estas é que é preciso pôr aquiintegralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-seisto, sem ser preciso notá-lo, mas não se perde nada em repeti-lo. (ASSIS, 1977,p.152; grifamos)

A opinião do narrador sobre a dança, a princípio assumida, érejeitada a seguir com a alegação de que o objeto em foco deve ser avida e as opiniões “das pessoas que entram no livro”. Sendo marcado conselheiro os comentários ao longo da história, normalmente apedido de terceiros, cria-se a impressão de que, descartando a condição

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de participante da trama, o eu afirma a sua individualidade e,consequentemente, nega a possibilidade de vir a ser o própriodiplomata. Entretanto isso não está explícito no discurso. Pelocontrário, pistas se reconhecem em sentido contrário. De um lado, amarca descritiva ( “anos longos e grisalhos”) tanto pode ser atribuídaao narrador, como de fato está, quanto a Aires. Por outro, emborasua vida e opiniões constituam um dos veios principais da narração,Aires está escrevendo um memorial em que elas são consideradasaparentemente secundárias, pelo seu papel de testemunha ocular.

Apesar da distinção dos supostos sujeitos no enunciado, ahipótese da identidade deles pode encontrar eco em indícios textuais.Aires entra no livro com a função quase exclusiva de opinar, alémda de contar a história. Essa posição secundária justifica a omissãodo outro motivo “por não valer a pena”. É isso que se entende em“sem ser preciso notá-lo, mas não se perde em repeti-lo”. Valedizer: entende-se o que o discurso deixa implícito, sem ser precisoafirmá-lo explicitamente.

Ainda no mesmo capítulo - “ Não conto Aires, queprovavelmente dançaria, a despeito dos anos; também não falo deD.Perpétua, que nem iria lá.” (ASSIS,1977, p.153; grifamos) –insinua-se já na ordenação das palavras uma fronteira isolando asduas figuras em jogo. Ademais, a posição assumida do narrador - adança é mais para os olhos do que para os pés - choca-se com ahipótese aventada de que Aires “dançaria”, em que a modalizaçãopelo verbo insinua um jogo de despistamento. Entretanto, umaintertextualidade entre “a despeito dos anos” e “anos longos egrisalhos” empana a nitidez dessa distinção. Em outro trecho –“Não posso dar a toada, mas Aires ainda a trazia de cor, e vinha arepeti-la consigo, vagarosamente, como ia andando.” (ASSIS,1977,p.138; grifamos) – do ponto de vista do sujeito da enunciação nopresente, a figura de Aires fica à distância ( graças à 3ª pessoa e aoadvérbio temporal). O desacordo das ações se justifica pelo prismado tempo mas não implica necessariamente a diversidade de sujeitos.Outro trecho:

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Se Aires obedecesse ao seu gosto, e eu a ele, nem ele continuaria a andar,nem eu começaria este capítulo; ficaríamos no outro sem nunca maisacabá-lo. Mas não há memória que dure, se outro negócio mais fortepuxa pela atenção, e um simples burro faz desaparecer Cármen e suatrova. (ASSIS,1977, p.139; grifamos).

Não é relevante a hierarquia ferida, uma questão de poder,insinuada pela indicação de desobediência do eu em relação a Aires,sendo ele o autor da história. A relação não é de poder mas decritério de composição: se há traição, é a memória que trai o gosto.O plural em “ficaríamos no outro” neutraliza o par opositivo eu /ele. Resta atentar para o predomínio da memória associativa dosassuntos e, especialmente, na mudança de capítulos.

A barreira Aires/ eu se manifesta ainda em outro fragmento:

[Aires] Quisera vê-la feliz, se a felicidade era o casamento, e feliz omarido [...] Agora, se era por amor deles, se dela, é o que propriamentese não pode dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do véu,seria preciso entrar na alma dele, ainda mais fundo que ele mesmo. Lá sedescobriria acaso, entre as ruínas de meio celibato, uma flor descaída etardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade ela.(ASSIS,1977, p. 229; grifamos)

A onisciência do narrador, a princípio disfarçada (“se não podedizer com verdade”), indiciada depois, na descoberta da “flordescaída e tardia da paternidade”, contrasta com o saber maisrestritivo da própria personagem: “entrar na alma dele, ainda maisfundo que ele mesmo”. Tal disparidade, aparente, do saber não éprova de dualidade de sujeitos. Vejamos:

Que conversassem [ Pedro e Flora] de amores é possível; mas queconspiravam é certo. Quanto à matéria da conspiração, podereis sabê-la depois, brevemente, daqui a um capítulo. O próprio Aires não descobriunada [...] (ASSIS, 1977, p. 160; grifamos).

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Como se observa, ocorre uma clara oposição entre aonisciência do narrador e o desconhecimento do assunto da conversapor parte de Aires. Mas essa oposição não se sustenta como seobserva na sequência de fragmentos abaixo:

Eis agora a matéria da conspiração. Na rua, ao virem de São Clemente,foi que Pedro, gastado o melhor tempo com a carta e o jantar, poderevelar à moça um segredo:– Titia disse lá em casa que Dona Cláudia lhe contara um segredo (nãodiga nada) que seu pai vai ser nomeado presidente de província. (ASSIS,1977 ,p. 162)

[Aires e Flora] – Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer umsegredo. (ASSIS,1977 , p. 164).

Que a isto se ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não sereieu que o negue, nem tu, nem ele mesmo.Flora falou-lhe de presidência, mas não lhe pediu segredo.(ASSIS,1977,p.165).

A questão da dualidade de sujeitos parece reforçada pelo fatode o leitor tomar conhecimento do tal segredo entre Pedro e Floraantes de Aires. De fato, a informação é passada ao leitor no primeirofragmento, enquanto o conselheiro só vem a saber vinte e seteparágrafos depois. Há, no entanto, que considerar uma questão deordem. Trata-se da distinção, sempre importante, entre o tempo dahistória e o da enunciação. Todo narrador pode alegardesconhecimento de uma circunstância qualquer que envolvaepisódio, no instante em que o acontecimento está sendo focalizado.Mas seria ingenuidade essa ignorância no instante da enunciação,posterior ao fato. Enquanto personagem, no momento em que àdistância observa a conversa entre Pedro e Flora, não lhe é possívelsaber do teor dela e supõe, com ironia, tratar-se de conspiração.Somente tempo depois Flora lhe faz saber da nomeação do pai.Como a enunciação é bastante posterior à revelação de Flora,

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compreende-se por que Aires, narrador, pode confiar ao leitor osegredo, causando o efeito de que este vem a saber mais que elepróprio.

Essa defasagem de conhecimento, responsável pela hipótesede haver um narrador independente de Aires, explica-se, pois, peladupla temporalidade enunciativa, não descartando a outra hipótesede conjunção de duas vozes. Ao contrário, a presença do eu nahistória pode comprová-la. Essa presença se faz notargradativamente nos trechos abaixo:

Eu ficarei durante algumas linhas recordando as duas barbas mortas,sem entender agora, como não as entenderemos então, as mais inexplicáveisbarbas do mundo. (ASSIS,1977, p. 108; grifamos)

Quando voltou trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto.(ASSIS, 1977, p. 108; grifamos)

A 1ª pessoa do plural inclui o sujeito da enunciação no universoda história, reforçado pela referência temporal da ação. Além de anulara barreira eu/tu, essa forma pessoal confere à participação do narradora clara função de testemunho, papel que só cabe a uma personagem,ficando assim bem evidenciada a presença do narrador-personagem.Vejamos outro momento em que aparece como testemunha:

O que parece ser verdade é que as nossas carruagens brotavam do chão.Às tardes, quando uma centena delas se ia enfileirar no largo de SãoFrancisco de Paula, à espera das pessoas, era um gosto subir a rua doOuvidor, parar a contemplá-las. As parelhas arrancavam os olhos àgente; todas pareciam descer das rapsódias de Homero, posto fossemcorceis de paz. (ASSIS,1977,p. 205; grifamos).

A intromissão do narrador no mundo do narrado se dá, pois,não apenas pela utilização da 1ª pessoa (“nossas”) mas também através

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de expressões (“era um gosto”, “à gente”) que incluem de modoinequívoco a sua figura no espaço da história e no momento em que ofato se dá. Indo além, encontramos marcas desse conhecimento diretode certos acontecimentos da história, presenciados de frente pelosujeito da enunciação, ou pelo narrador-personagem:

Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teriacometido aquela moça, além do de viver, e porventura o de amar, nãose sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se nãoajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este óbito sempena, e ainda trago o enterro à vista [...] (ASSIS,1977, p.263; grifamos)

Este é ainda um óbito. Já lá ficou defunta a jovem Flora, aqui vai mortae velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certidão de batismo; mas,em verdade, nem os filhos deputados, nem os cabelos brancos davama esta senhora o aspecto correspondente à idade.(ASSIS,1977, p. 280;grifamos).

Os fragmentos acima – ambos tratam da morte das principaispersonagens femininas- tornam inevitável a conclusão de que essesujeito, testemunha ocular, indicado pela 1ª pessoa, só pode ser oconselheiro Aires, cujo percurso na história é marcadopermanentemente por visitas, encontros, conversas etc. Tambémna 1ª pessoa se faz a interrogação que abre o fragmento da página263, mas seu teor de “pergunta obscura” permite perceber por trása presença de Aires. Pergunta, à primeira vista, estranha, de vez quecontrasta com a frieza da constatação inicial: “ Quem morreu,morreu”. Mas a sua inclusão tem o papel de suspender odistanciamento provocado pela constatação e revelar certamenteuma forte aproximação emocional entre Flora e o próprio narrador.Um motivo a mais para pensar que se trata do conselheiro. Aliás,essa relação de contato ou de aproximação estreita entre Flora e osujeito enunciador já aparece alguns capítulos antes, como atesta ofragmento a seguir: “ Sou, porém, obrigado a elas [visões], porque

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sem elas a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que nãoconheci. Conheci esta, com as suas obsessões ou como quer que lheschames.” (ASSIS,1977, p. 254; grifamos).

A reiteração do verbo “conhecer”, na 1ª pessoa, não deixamargem de dúvida a respeito da participação do sujeito no âmbitodos acontecimentos, do convívio das personagens, além de uma vezmais contribuir para neutralizar a fronteira entre ele e Aires,produzindo uma espécie de fusão de vozes. Essa mistura de imagenstem como resultado, no plano linguístico, uma conjunção de duasformas pronominais (ele e eu), dêiticos da 3ª e 1ª pessoa, apontandopara Aires como seu único sujeito. O procedimento do narrador-Aires é que seria dual; ora se põe dentro, narrando em estrita 1ªpessoa e aí narrador e personagem se confundem; ora ele se põefora e então narrador e personagem parecem distanciar-se.

Ocorre que esse narrador ambivalente nem sempre seapresenta explicitamente marcado no enunciado, existindo em váriospontos verdadeira “transfusão”. Certos trechos em que o eu mascarao seu verdadeiro emissor, que deve ser Aires, alternam-se com outrosem que a referência ao conselheiro como ele precisa ser transformada,substituindo-se a 3ª pela 1ª pessoa. Ou seja, transformando umenunciado aparentemente impessoal, sem qualquer violentaçãosemântica, num outro pessoalizado.

É nesse sentido que Barthes (1971, p.47) defende a reescriturade certas passagens narrativas na distinção entre um sistema pessoalde signos, os únicos conhecidos pela narrativa propriamente dita,como também na língua. Segundo ele, estes dois sistemas não estãoobrigatoriamente relacionados às marcas linguísticas ligadas à pessoa–eu- e à não pessoa – ele; tanto assim que “pode haver, por exemplo,narrativas, ou pelo menos, episódios, escritos na terceira pessoa ecuja instância é entretanto a primeira pessoa”. Basta reescrever apassagem substituindo-se o ele pelo eu: se não houver nenhuma outraalteração no discurso a não ser essa troca pronominal, trata-se deum sistema pessoal.

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Há um processo sinuoso de referência ao sujeito daenunciação, algo assim como uma “diplomacia narrativa”, que nãodeixa de até certo ponto iconizar a própria figura da personagem-diplomata. O modo como ele aparece caracterizado, com umcomportamento sempre dual e dissimulado, sugere, na verdade, umaespécie de auto-descrição: “Aires fora diplomata excelente, apesarda aventura de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocaçãode descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nesses dois verbosparentes.” (ASSIS, 1977, p. 248; grifamos)

Para a transformação a que nos referimos, o procedimento ésimples: basta substituir o substantivo “Aires” pelo pronome eu, eassim como os demais indicadores de 3ª pessoa. De qualquer modo,descobrir e encobrir são verbos talhados na medida para caracterizaro trabalho desse verdadeiro diplomata-narrador. O episódio emLondres, focalizado logo no primeiro parágrafo do romance, forneceo primeiro indício dessa reversibilidade entre sujeito da enunciaçãoe do enunciado. Para isso, observem-se alguns trechos em que secaracteriza Aires na 3ª pessoa:

“Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima exatamente oque quero dizer. Tinha o coração disposto a aceitar tudo, não porinclinação à harmonia, senão por tédio à controvérsia.” (ASSIS,1977, p.89; grifamos)

Mas este Aires – José da Costa Marcondes Aires – tinha que nascontrovérsias uma opinião dúbia ou média pode trazer a oportunidade deuma pílula, e compunha as suas de tal jeito que o enfermo, se não sarava,não morria, e é o mais que fazem pílulas. Não lhes queiras mal por isso;a droga amarga engole-se com açúcar. (ASSIS,1977 ,p. 89-90).

Ora, o costume de Aires era o oposto dessa contradição benigna. Hásde lembrar-te que ele usava sempre concordar com o interlocutor, nãopor desdém da pessoa, mas para não dissentir nem brigar. Tinha observadoque as convicções, quando contrariadas, descompõem o rosto à gente,e não queira ver a cara dos outros assim, nem dar à sua um aspecto

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abominável. Se lucrasse alguma coisa, vá; mas, não lucrando nada, preferiaficar em paz com Deus e os homens. Daí o arranjo de gestos e frasesafirmativas que deixavam os partidos quietos, e mais quieto a si mesmo.(ASSIS, 1977 ,p.227; grifamos).

Também este notara a mudança, e estava prestes a aceitar a explicação,por aquela razão de comodidade que achava em concordar com as opiniõesalheias; não cansava nem aborrecia. Tanto melhor, se o acordo se faziacom um simples gesto. (ASSIS, 1977, p. 273; grifamos)

Todos esses fragmentos caracterizam o diplomata de umaperspectiva distanciada. Qualquer um deles, no entanto, pode sofrera transformação a que aludimos, passando para a 1ª pessoa, acomeçar pelo fragmento da página 89, pois os verbos suportamuma leitura ambígua em termos de pessoa. É importante compararos trechos acima com outro em que o eu se auto-descreve:

‘Quando um não quer, dois não brigam’ tal é o velho provérbio queouvi em rapaz [...] Eu cria neste; mas não foi ele que me deu a resoluçãode não brigar nunca. Foi por achá-lo em mim que lhe dei crédito. Aindaque não existisse, era a mesma coisa. Quanto ao modo de não querer,não respondo, não sei. Ninguém me constrangia. Todos ostemperamentos iam comigo; poucas divergências tive e perdi só umaou duas amizades, tão pacificamente aliás, que os amigos perdidos nãodeixaram de me tirar o chapéu. Um deles pediu-me perdão notestamento. (ASSIS,1977 , p.268).

Nos quatro trechos anteriores a caracterização de Aires sefaz através de marcas assim sintetizáveis: tédio à controvérsia,opinião dúbia, hábito de concordar sempre com o interlocutor para“não dissentir nem brigar”. Não é difícil perceber a conexão entretais características de Aires e a “resolução de não brigar nunca”com que o narrador se qualifica. Além do mais, um parágrafo inteiropara relacionar características pessoais do narrador seria umprocedimento no mínimo estranho, se se tratasse de uma narrativa

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convencional em 3ª pessoa. A semelhança de conduta social e demanifestação linguística parece fruto de uma coincidência de visãoou ponto de vista, que permite uma segura aproximação entre eu/ele , reforçando a possibilidade de reversão entre os sujeitos.

O memorial de Aires

Embora a hipótese de fusão dos sujeitos pareça evidente,examinemos alguns fragmentos mais do romance. O primeiro tratadas relíquias do ex-diplomata:

As cartas não estavam lá [...] Quinze ou vinte davam para outros tantoscapítulos e seriam lidos com interesse e curiosidade. Um bilhete, porexemplo, um bilhete encardido e sem data, moço como os bilhetesvelhos, assinado por iniciais, um M e um P, que ele traduzia com saudades.Não vale a pena dizer o nome. (ASSIS,1977 ,p.124; grifamos)

A perspectiva do narrador, aparentemente distanciada, lhepermite, no entanto, dominar um conhecimento que só pertence aAires: a tradução das iniciais, que ele não revela por “ não valer apena”. Uma hipótese seria que o domínio desse saber lhe é facultado,não porque seja partilhado por ambos, mas porque um é projeçãode outro.

A defesa de tal hipótese exige uma leitura atenta de algumasreferências às anotações diárias do conselheiro, o que a nosso ver édecisivo para encontrar o fio da meada. Um primeiro exemplo:

O mais do tempo era gasto em ler e reler, compor o Memorial ou revero composto, para relembrar as coisas passadas. Estas eram muitas e defeição diversa [...] Alguma vez as pessoas eram designadas por X ou***, ele não acertava logo quem fossem, mas era um recreio procurá-las, achá-las e completá-las. (ASSIS, 1977, p.124; grifamos).

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Através de uma narração de certa forma impessoal, o trechodá conta do esforço do velho diplomata para relembrar e decifraros sinais usados na composição de seu Memorial, nos momentos dereleitura. Mas o fragmento deixa também a impressão de que Airesé focalizado internamente, sobretudo na frase final, de umaperspectiva bastante próxima, com um toque de onisciência. Afinal,que condições teria alguém, a não ser o próprio personagemimplicado, ou então o narrador onisciente, de decifrar tais sinaisenigmáticos ou de estar informado de segredos da composição doMemorial? Outro fragmento que na ordem do romance è à anteriorao citado:

A primeira daquelas barbas era de um amigo de Pedro, um capucho,um italiano, Frei ***. Podia escrever-lhe o nome, – ninguém mais o conheceria–, mas prefiro esse sinal trino, número de mistério, expresso por estrelas,que são os olhos do ceu. (ASSIS,1977, p. 108; grifamos)

O cotejo dos trechos evidencia não apenas uma mudança decaráter verbal, da 3ª para a 1ª pessoa, mas uma espécie de apropriaçãodo saber decifrar os sinais enigmáticos, saber esse que, logicamente,é exclusivo do autor do diário. Um pouco mais além, uma conclusãopossível é de que o último trecho diz respeito, não ao deciframentodos tais indicadores, como nos dois outros, mas ao próprio ato dacriação dos mesmos. Observem-se, por exemplo, os verbosempregados (“podia escrever”, “prefiro”) os quais se referemexplicitamente a duas alternativas do escritor no ato de designar aspessoas. A explicação da escolha do signo das três estrelas é naverdade um subterfúgio; as estrelas são metaforicamente definidascomo “olhos do céu” e a opção pelo três se justifica como “númerode mistério”.

A diferença básica entre os dois trechos localiza-se no caráterda ação efetuada: enquanto num caso tem-se a tentativa dapersonagem de completar e/ou decifrar os nomes (ato de leitura),

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no outro desenvolve-se o próprio ato de designar as referidaspessoas, seja pelo nome, seja pelos sinais (ato de escrita). Se estaconclusão estiver correta, podemos, então, afirmar que no últimocaso o leitor presencia de fato à escritura do Memorial de Aires.Talvez sejam necessários alguns esclarecimentos a mais sobre essememorial. A primeira referência a ele ocorre no capítulo deapresentação da personagem:

Usava também guardar por escrito as descobertas, observações,reflexões, críticas e anedotas tendo para isso uma série de cadernos, aque dava o nome de Memorial. Naquela noite escreveu estas linhas: Noiteem casa da família Santos, sem voltarete. (ASSIS, p. 90)

Dois pontos a destacar. A caracterização do Memorial comouma espécie de repositório de “descobertas, observações, reflexões,críticas e anedotas”. A narração de episódios que fazem parte doenredo, como os acontecimentos na casa de Santos, por exemplo.Na sequência do romance, o Memorial é mencionado constantementee de diversas formas: simples incorporação de frases: “ É dele estafrase do Memorial: ‘Na mulher, o sexo corrige a banalidade; nohomem, agrava.’ (ASSIS,1977, p.121.); incorporação de frases citadas,acrescidas de explicações, reflexões ou conclusões de Aires,explicitamente caracterizadas: “A frase era boa, sonora, parecia contera maior soma de verdade... Se algum político a ouvisse poderiaguardá-la para os seus dias de oposição ao governo, quando viesseo terceiro reinado. Foi o que ele mesmo escreveu no Memorial.”(ASSIS, 1977, p. 156). Casos há em que, após a citação do diário, onarrador registre a ausência de qualquer manifestação de Aires:

Convence-te de uma idéia, e morrerá por ela, escreveu Aires por essetempo no Memorial, e acrescentou: “nem é outra a grandeza dos sacrifícios,mas se a verdade acerta com a convicção, então nasce o sublime, e atrásdele o útil...” Não acabou ou não explicou a frase.

(ASSIS,1977, p. 226)

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Momentos há em que o leitor, desavisado, lê as reflexões deAires copiadas do Memorial e só mais tarde é surpreendido por essainformação.

Denominado “A mulher é a desolação do homem” (entreaspas), citação ironicamente atribuída ao “anti-feminismo” deProudhon, esse capítulo gira ao redor de certa reflexão de Aires apropósito da manipulação política levada a efeito por Cláudia paraconvencer o marido a trocar o partido conservador pelo liberal. Oprocesso de persuasão de Batista – já descrito no capítulo XLVIIatravés de paródia do episódio bíblico da tentação pelo Diabo - éreiterado de forma alegórica:

Foi ela, a viúva da presidência, que por meios vários e secretos, tramoupassar a segundas núpcias. Quando ele soube do namoro, já os banhosestavam corridos; não havia mais que consentir e casar também.(ASSIS,1977, p.171)

Após todo o arguto trabalho de manipulação retórica deD.Cláudia, a decisão de Batista vem através de metáfora: “Batista,sentindo-se apoiado, caminhou para o abismo e deu o salto nas trevas.Não o fez sem graça, nem com ela.”(ASSIS,1977 , p. 171; grifamos).O detalhe descritivo do salto “nas trevas” com ou sem graça eliminaqualquer hipótese de denotação e encaminha o processo designificação para o metafórico. A seguir, a decisão de Batista éavaliada criticamente: “Posto que a vontade que trazia fosse deempréstimo, não lhe faltava desejo a que a vontade da esposa deuvida e alma.” Após tal reflexão, o leitor se surpreende com arevelação:

Tal foi a conclusão de Aires, segundo se lê no Memorial. Tal será a doleitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho deAires; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigadoa fazer. O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro

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estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e osfatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida.

(ASSIS,1977 , p. 171)

Uma conclusão que poderia passar ao leitor despercebida,como sendo do eu-narrador, é de repente atribuída a Aires, pelaausência de sinal de que a voz narrativa pudesse ser a do conselheiro.De qualquer modo, a deixa é aproveitada para introduzir a alegoriado “leitor ruminante” na digestão da verdade escondida,tematizando o papel do leitor enquanto agente participativo dasignificação. Essa imagem retoma a do “par de lunetas” do capítuloXIII, a cujo uso o leitor é convidado: “[...] mas ainda um par delunetas para que o leitor do livro penetre o que for menos claro outotalmente escuro” (ASSIS,1977 ,p. 91) Somente através de umaleitura co-criadora, ironicamente sugerida pela imagem dos “quadroestômagos” ou da luneta é que se pode conseguir desvendar, dobaralhamento, as linhas discursivas que a todo momento se cruzam.

Manifestações críticas.

Com acuidade crítica inquestionável, falando do foco narrativoem Esaú e Jacó, considera Alexandre Eulálio (1971, p.68) oconselheiro como uma das consciências do romance:

Aires funziona come uma delle conscienze di Esaú e Jacó. Sabbenenon possa essere identicato com el narratore-demiurgo, lesueaffermazioni e opinioni spesso non si discostano da quelle, e anzi lecompletano e le precisano. Si constituisce cosi um secondo punto divista, emanazione palpibile del narratore onmipresente, ma checomprende um piccola área in relazione Allá conscienza “noumenica”del demiurgo-che-dice-io. Nella sua relatività umana di personagio, trale altre dramatis persone del romanzo, Aires organiza pure l´azione,sebbene non la domini integralmente.

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Alexandre Eulálio considera como ponto de vista de Airesapenas as participações explícitas representadas pela fala, pelospensamentos registrados, ou pelo diário. Nesse caso, seu ângulo devisão fica claramente mais reduzido do que o do “narrador-editor”.Já para Affonso Romano de Sant´Anna (1973, p.123) o discurso éfundado em dois planos narrativos ou duas escritas superpostas:

A constituição do narrador 1 e do narrador 2 tem por objetivo procedera um distanciamento na própria matéria narrada. Instauram-se, pelomenos, dois planos narrativos: na escrita fingida (Conselheiro Aires) fluia estória dos gêmeos, suas relações familiares e sentimentais, osenvolvimentos políticos; na escrita real (Machado) articula-se a montagemda estória, as anotações críticas sobre o imaginado texto de Aires, oaprofundamento de algumas observações a até discordâncias em relaçãoao manuscrito. Repete-se mesmo o jogo de relações que de um ladotem o enunciado (estória) e de outro a enunciação (articulação da estória),a tal ponto que se poderia de uma maneira simplificada tentar a seguinteproporção:Aires: Machado :: enunciado: enunciação.Evidentemente a figura de Aires não se descola da de Machado a nãoser para efeito de demonstração de análise, do mesmo modo quenenhuma enunciação subsiste sem o enunciado. A duplicidade entre essespares de elementos é de aspecto complementar.

As duas posições críticas transcritas são de certa formaconflitantes. Eulálio parece admitir a existência de duas vozesdistintas: uma, a do “narrador-editor, que frequentemente se referea si mesmo na 1ª pessoa; outra, a de Aires, que se manifesta nostrechos do diário. Haveria, então, uma narração dentro da narração,o discurso do conselheiro-narrador encaixado num discurso maisamplo, o do narrador onisciente. Sant´Anna vê essa duplicidade deforma mais sutil: não apenas dois narradores mas dois níveis dediscurso caminhando paralelamente e de tal forma imbricados quese torna impossível separá-los. Aí justamente se localiza o ponto dedivergência: grau de desmembramento entre os narradores ou dois

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níveis discursivos. Apesar disso, ambos estão de acordo emapontarem uma dupla focalização dos acontecimentos: a de Aires,enquanto escritor do seu Memorial, e a do suposto editor, de falaquase impessoal mas que não economiza referências pessoais emconstantes interrupções do relato.

Dessa hipótese de vozes que não se dissociam facilmenteparticipa Augusto-Meyer. (1952, 64?) . Deslocando um pouco dela,Dirce Cortes Riedel (1959, p.5) considera Esaú e Jacó “umanarrativa em terceira pessoa, em que o ‘ele’ é o ‘eu’ do Conselheiro,para exprimir um conjunto de idéias e imagens por ele associadas.”Para ela o romance se submete à visão do mundo de Aires, de cujoponto de vista os fatos são narrados. Corrobora a idéia dareversabilidade ele/eu. Nessa mesma direção de raciocínio, MariaLúcia Saponara Vianna (1983) sugere que a visão da terceira pessoanão é mais que uma estratégia escamoteando habilmente a primeira,na realidade o foco de visão da narrativa. Desse modo a tese deRiedel é de certo modo corroborada.

Helen Caldwell (1970) em longo trabalho dedicado aMachado defende a hipótese de uma mesma fonte para as duasvozes: o Conselheiro Aires. Defende essa mesma posição MartaPeixoto (1980, p. 82):

These two voices seem to be two versions of Aires writing in twodifferent times and from two different perspectives. First, as author ofthe diary, he gives verbal structure to his recent experience, from thepoint of view of one wo is following in the present the events of theplot. The diary excerpts are incorporated into a second level of narration– Aires as narrator constructing his novel. The experience of Aires ascharacter is now recounted in the third person.

Se Alexandre Eulálio e Romano Sant´Anna já apontavam arelação dual no interior do discurso, não chegaram a tratarexplicitamente da unicidade das fontes, como podemos ver nas posições

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defendidas pelas analistas mencionadas. De um modo ou de outro, elassustentam a tese de que Aires é de fato o narrador. Mas um narradorambivalente, que ora se mostra onisciente, na pele de um estranho quese narra a si mesmo como se fora uma 3ª pessoa, e, como tal, peloconhecimento que ostenta, é capaz de focalizações internas e decomentários de toda ordem; ora surge na condição de personagem(testemunha), com um domínio mais restrito da situação, narrando na1ª pessoa, como ocorre de modo explícito nos trechos transcritos deseu diário. Narrador e personagem, nesse caso, se misturam e seconfundem nas águas de um discurso verdadeiramente anfíbio.

Esaú e Jacó resulta, pois, de uma espécie de narração gêmea,feita de duas vozes ora alternadas, ora cruzadas. Essa dualidadecontribui para ver nas figuras de Aires e do eu-pseudo editor, comodistintas. Parece ser essa a interpretação tanto de Eulálio quanto deSant´Ánna. Mas seja pela semelhança de pontos de vista ou de posturasocial, seja pela perspectiva de aproximação adotada, a silhueta doconselheiro surge sempre como uma espécie projeção do eu. Se ofato de ser o discurso em 3ª pessoa leva a enquadrar as duas figurascomo pertencentes a planos diferentes, não faltam indícioslinguísticos que inscrevem Aires como sujeito em ambos os planos.

Narração gêmea: o livro dentro do livro

Vale ressaltar que narração gêmea não significa umadualidade de sujeitos que respondem pela narração, em que o editorseria simples intermediário. Se a nossa hipótese for verdadeira, trata-se de uma duplicidade de vozes originadas de uma mesma fonte, de um mesmoemissor, só que em tempos diferentes. È preciso aceitar a oferta do “parde lunetas”, objeto mágico a fornecer a competência para uma leiturade filigramas, pois de outro modo Aires só será percebido comopersonagem e memorialista e nunca como narrador. Para tanto,busca-se na enunciação o espaço semântico entre o afirmar e o negar,o dizer e o não dizer; lendo-se nas fendas e lacunas deixadas pelo

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narrador entre o que afirma e o que se infere do modo de dizer,entre o que afirma e o que deixa de negar. O baralhamento delesleva o leitor ora a ler o Memorial sem mediação, ora tem acesso a eleatravés da voz de um emissor que se distancia de Aires enunciado,escudado na 3ª pessoa. Mediados ou não, a partir do capítulo XXXIItrechos e mais trechos desse memorial são referidos no romance,de tal maneira que a preocupação em escrevê-lo parece a principalmotivação da presença de Aires em meio às personagens: “Nem éfora de propósito que ele buscasse somente matéria nova para aspáginas nuas de seu Memorial.” (ASSIS, 1977 ,p.145).

O acompanhamento das rusgas dos gêmeos é fielmentenarrado no Memorial:

[...] Aires penetrava bem os gêmeos. Escrevia-os no Memorial, onde se lê quea consulta [...] casos velhos e obscuros que ele relembrou, ligou e decifrou”(ASSIS,1977 p.146; grifamos).

As andanças, visitas e conversas do conselheiro parecemcumprir a função de pesquisa, e lhe dão competência para decifraros pontos obscuros. Nem sempre, porém, a explicação é oferecidaao leitor: daí o “par de lunetas”. Outra modalidade de referência aoMemorial é a citação literal:

Aires recompôs uma parte do serão para escrevê-la no Memorial.Poucaslinhas, mas interessantes, nas quais Flora era a principal figura: “Que oDiabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que ele, não acerto de aentender nunca. (ASSIS, p. 179)

Outras vezes, servem para falar do andamento de sua escriturae uma avaliação do estilo:

“A imagem não é boa, nem verdadeira, foi a que acudiu ao conselheiro[...]. Chegou a escrevê-la no Memorial, depois riscou-a [...]” (ASSIS,1977,p. 251)

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As constatações acima são decisivas para a percepção daintersecção do manuscrito - cuja utilização é revelada não só naAdvertência, mas numa série de referências do texto - e oMemorial. Assim, ora se lê o livro, ora se lê o próprio Memorial.Em síntese, o diário vem a ser o próprio manuscrito que setransformou no romance, aceitando como válida a versão daAdvertência. Encontrando finalmente o fio da meada, o leitordescobre que Aires é o dono da voz que se apresenta como autor-implícito, e que o Memorial fica sendo a fonte da história. Adualidade narrativa se restringe assim a uma dualidade de vozes,originadas da mesma fonte, o conselheiro Aires, mas em doistempos e perspectivas diferentes. Como autor de seu Memorial, oponto de vista de Aires é o de quem acompanha de perto os eventose deles participa. Como narrador, refazendo a história, eleincorpora trechos do diário e a sua experiência é recontada em 3ªpessoa. Como longe de si mesma, a sua voz relata de umaperspectiva onisciente e distante no tempo. Este narradordistanciado é, na verdade, um autor-implícito, doador do livro,projetando características do conselheiro enquanto autor de seumanuscrito. A 1ª pessoa indica o narrador de si mesmo; a 3ª ficareservada para indicar Aires-personagem. Com relação ao tempo,os fragmentos aqui citados deixam claros os dois momentos: opresente da narração e o pretérito da ação. Segundo Marta Peixoto( 1980),

The two versions of Aires, as narrator and as character and author ofthe Memorial, interact in an ironic way. Each of these voices in itselfoffers a skeptical and witty perspective. In addition, the narrator oftencomments on Aires in a humorous though sympathetic way, and thehumor is intensified by the reader´s awareness that any description ofAyres is in some way a self-description.

Tudo não passa de um jogo armado por Machado de Assis,irônico, como lembra Alexandre Eulálio:

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In questo sensi si deve dire che la avvertenza iniziale del volumen,attribuendo in modo fittizio al nostro Consigliere la paternità del romanzo(ma chi sarebbe allora l´editore del manoscritto, colui che lo ha ritrovatotra le carte dell’ exdiplomatico?) debe essere recepito con indispensableironia, como ci ha mostrato con la fineza di sempre Augusto Meyer.Tale postilla è appena un giuco arbitrario, molto nel gusto di Machadode Assis e coerente con lo spirito della sua finzione. Senza di essa maiverrebbe in mente a qualsiasi lettore obbiettivo di atrribuire il romanzoad Aires. (1971,p. 68)

A negativa de Eulálio de aceitar a autoria de Aires – comosimples tática de leitura ou como entrar no jogo machadiano – é oque impede de essa quase “transfusão” entre Aires-memorialista eum narrador-Aires. O que se postula aqui não é a aceitação pura dequalquer alegação por parte do autor de emprego do manuscritoencontrado. Pode-se perceber a ironia da afirmação. Umacomparação com Memorial de Aires, também precedido de umaAdvertência que igualmente o caracteriza como produto doscadernos de Aires, é capaz de revelar o grau maior de complexidadeem Esaú e Jacó, em que o recurso do manuscrito não é apenas umaquestão de verossimilhança ou ilusão realista. Num jogo mais sutil,ele cria um discurso dobrado que simula ter tomado os manuscritosdo diário (chamado ora de caderno, ora de notas, ora de memorial)e tê-los reescrito para transformá-los no livro que o leitor tem emmãos. Mas, não só inclui na história o próprio Aires, que se fazpersonagem, como também o mostra desempenhando a escriturado Memorial, supostamente tido como matéria do livro.

A mobilização desse tradicional recurso ilusionista da narrativatem para Machado um duplo efeito. Primeiro, o de escrever umromance, aparentemente na 3ª pessoa, na forma de uma narrativaimpessoal, bem a gosto das exigências do realismo-naturalismo, semfazê-la, porém, perder o sabor típico das memórias onde asconsiderações pessoais do narrador-personagem não se fazem sentircomo nota dissonante. A verdade é que, sem ser um caso de

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narrador-personagem, como em Memórias póstumas de BrásCubas, ou de narrador-voz, como em Quincas Borba, Esaú eJacó consegue, por meio de uma estrutura enunciativa anfíbia eambígua, ultrapassar as barreiras limitadoras da pessoa verbal,propondo um tipo de narrador que é impessoal, onisciente,personagem, testemunha e autor-implícito ao mesmo tempo. Poroutro lado, ao inventar, num passe metalinguístico quase impossívelde descrever um autor fingido de um memorial imaginário, que numjogo de espelho é visto dentro do mesmo, escrevendo-o, Machadofica à vontade para discutir os problemas referentes à composiçãodo romance e toda a sua carpintaria, além de pôr a nu o próprioarsenal de representação da realidade. Esse efeito do livro dentrodo livro representa, portanto, o coroamento de uma indagaçãoconstante, não só da técnica, da arte do romance, especialmentenum tempo de adesão ao modelo do romance realista, mas daprópria arte de representar o real.

Referências bibliográficas

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1 Professora Adjunta I do Departamento de Comunicação Social/Jornalismo da UniversidadeFederal de Rondônia campus de Vilhena. E-mail: [email protected] CEP. 76.980-000Vilhena/RO/Brasil

BREVE EXERCÍCIOANALÍTICO SOBRE ASESTRATÉGIAS DE UMNARRADORCONTEMPORÂNEOSUCCINCT ANALYTICALEXERCISE ABOUT THESTRATEGIES FROMACONTEMPORARY NARRATOR

Lilian Reichert Coelho(UNIR)1

RESUMO: Analisa-se de que modos o narrador de Cidadede Vidro, a primeira novela de Trilogia de Nova York,publicada pelo escritor estadunidense Paul Auster (1985),constrói as estratégias narrativas. Para tanto, utiliza-se comoinstrumental analítico o proposto por Genette em Discursoda narrativa, com o objetivo central de verificar como as

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estratégias utilizadas são relacionadas ao gênero romancepolicial. A hipótese de trabalho orientou-se pela percepção deque o gênero-base é esgarçado na narrativa sob foco pela açãoda figura do autor-implícito (cf. BOOTH, 1961, 1977), quepretende desenvolver uma reflexão filosófica e metalinguística,tomando como paradigma e, ao mesmo tempo, suplantando,Edgar Allan Poe.

PALAVRAS-CHAVE: Narrador. Contemporâneo. Literaturanorte-americana. Narrativa.

ABSTRACT: It analyzes the options made by the narrator ofCity of Glass, the first novel of New York Trilogy, publishedby the American writer Paul Auster (1985), to build up the nar-rative strategies. For this purpose, it was used as analytical toolsGenette’s proposal in Discourse of the Narrative, with themain goal to verify how the strategies utilized ate related to thecrime novel genre. The hypothesis was guided by the perceptionthat genre-based narrative is stretched in the narrative in obser-vation under the action of a author-implicit (cf. BOOTH,1961;1977), which aims to develop a philosophical andmetalinguistical reflection, taking as paradigm and at the sametima overcoming it, Edgar Allan Poe.

KEYWORDS: Narrator. Contemporaneity. North-american lit-erature. Narrative.

Cidade de Vidro, a primeira de três novelas que compõemTrilogia de Nova York, publicado pelo escritor norte-americanoPaul Auster em 1985 pode ser compreendida, em linhas gerais, comouma reflexão sobre a incomunicabilidade no mundo contemporâneo,a falta de sentido da vida e a função da linguagem, principalmente alinguagem verbal em sua expressão literária. Ao aceitar o pactoestabelecido pela obra e adentrar nesse universo, o leitor é, portanto,remetido à reflexão sobre as precárias condições de comunicabilidade

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e de sobrevivência (física, psicológica e social) impostas pelo estilode vida contemporâneo no mundo ocidental globalizado.

A fim de situar discussão desse matiz e por ser contemporâneo,isto é, sujeito a contingências de toda ordem, Paul Auster opta porconstruir uma espécie de história policial peculiar, prenhe deapontamentos filosóficos, históricos e literários. Dentre todas aschaves interpretativas possíveis, dada a riqueza do universo fabricadopor Auster, apresenta-se, neste texto, uma aproximação pontual,centrada na figura do narrador, sob a perspectiva de Genette. EmDiscurso da narrativa (1995 , o referido autor propõe, de maneirasistematizada, noções que acreditamos profícuas na análise danarrativa em tela.

Trata-se de sistematização arquitetada como refinamento dotexto (citado, inclusive, por Genette) As categorias da narrativaliterária, de Tzvetan Todorov (1966), interlocutor na publicaçãoorganizada por Roland Barthes, em 1968, para a RevistaCommunications 8 (Todorov expõe noções como tempo,aspectos, modos, no intuito de analisar o livro As ligaçõesperigosas, de Laclos). Nesse texto, Todorov apresenta conceitosque o próprio Genette traz no artigo “Fronteiras da narrativa” , damesma publicação. Ambos discutem a necessidade de distinção entrenarrativa e discurso, calcados nos apontamentos de E. Benveniste eem outras reflexões contemporâneas (final dos anos 60) acerca dainscrição da instância enunciadora no texto, pois “no discursoalguém fala, e sua situação no ato mesmo de falar é o foco dassignificações mais importantes” (GENETTE, 1995, p. 270). Emsuma, a argumentação fundamenta-se na afirmação da dissimetriaentre as instâncias da narrativa e do discurso, já que:

[...] a narrativa inserida no discurso se transforma em elemento dodiscurso, o discurso inserido na narrativa permanece discurso e formauma espécie de quisto muito fácil de reconhecer e localizar. A pureza danarrativa, dir-se-ia, é mais fácil de preservar do que a do discurso. [...] na

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verdade, o discurso não tem uma pureza a preservar, pois é o modo‘natural’ da linguagem, o mais aberto e o mais universal, acolhendo pordefinição todas as formas; a narrativa, ao contrário, é um modo particular,definido por um certo número de exclusões e de condições restritivas[...]. O discurso pode ‘narrar’ sem cessar de ser discurso, a narrativa nãopode ‘discorrer’ sem sair de si mesma (GENETTE, 1995, p.272).

Isto considerado como ponto de partida observa-se,doravante, o discurso da narrativa em Cidade de vidro. O narradordistribui as informações em ordem2 aparentemente cronológica,mas, desde o momento em que o personagem focal - Daniel Quinn- atende um engano telefônico, até seu desaparecimento físico,diversas anacronias3 são instaladas na forma de pontos de ruptura.Tais recursos inserem discurso relativo a acontecimentos passadostanto na vida de Quinn quanto se referem a eventos históricos ouliterários reconhecíveis nos relatos oficiais e/ou canônicos. A históriatem início no dia 15 de maio (de um ano não especificado), mas onarrador não apresenta com exatidão essa data como o momentooriginário, quando Quinn recebe um telefonema que o intriga, masopta por enfatizar a quinta noite - numa sequência de noites semdias -, 19 de maio. De 15 a 19 de maio, portanto, a história caminhaem um ritmo lento por meio da inserção de discurso, o que geraexpectativa no leitor, lentidão causada também por pausas quetambém funcionam no sentido de “adiantar” uma série deinformações relevantes. A expectativa é ocasionada pela frequência4

de um evento específico: o toque do telefone: “Foi um númeroerrado que começou tudo, o telefone tocando três vezes, altas horas

2 “[...] disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo” emconfronto com “a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporaisna história, na medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode serinferida deste ou daquele indício indirecto” (GENETTE, 1995, p.33)3 “[...] diferentes formas de discordância entre a ordem da história e a da narrativa” (GENETTE,1995, p. 34)4 repetição. “Um acontecimento não só pode produzir-se: pode também reproduzir-se, ourepetir-se [...] Bem entendido que a identidade dessas múltiplas ocorrências é, em todo o rigor,contestável [...]” (GENETTE, 1995, p.113).

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da noite, e a voz do outro lado chamando alguém que não moravaali” (AUSTER, 2003, p.9).

No que concerne às “relações entre narrativa e história”, arepetição do mencionado evento é singulativa, isto é, define-se “pelaigualdade do número de ocorrências” (GENETTE, 1995, p.115).Isso significa que, se o narrador opta por apresentar o evento namesma quantidade de ocorrências, confere-lhe um status que obrigao leitor a considerar relevante um fato que, dados os conhecimentosenciclopédicos5 sobre situações semelhantes, poderia simples efacilmente desprezar: o toque de um telefone. Isso acontece porqueesse é o motriz de toda a história: um engano telefônico, o qualdesencadeia uma série de outros enganos. A relação é, no entanto,mais complexa. A ansiedade da personagem Quinn em atendernovamente a ligação misteriosa mantém ativa a expectativa do leitordevido à administração do ritmo da narrativa. Entre uma noite eoutra após o primeiro telefonema, ou Quinn não consegue atender,ou ele espera e o desconhecido não liga, até a última ligação, a dodia 19 de maio.

Ao especificar a data, o narrador instala uma questãoaparentemente banal, dada a maneira como é disposta no início,mas que se revela central conforme se trilha pelo texto: a reflexãosobre as origens, do próprio personagem, da nação estadunidense,da literatura. O motivo clássico da origem, entretanto, é introduzidopor uma multiplicidade de elementos. Em Cidade de Vidro, instaura-se o problema da origem (da identidade pessoal, nacional e humana)para construí-lo pela falsidade, dada a impossibilidade de acesso aqualquer ato fundador ou original (no sentido de genealogia, tal comotrabalhado por Foucault). Por outro lado, é nesse dia, coincidentecom o da concepção de Quinn, conforme exposto pelo narrador,

5 Eco (2004, p.60). define competência enciclopédica como um “[...] complexo sistema decódigos e subcódigos” Pois: “Para atualizar as estruturas discursivas, o leitor confronta amanifestação linear com o sistema de códigos e subcódigos fornecidos pela língua em que otexto foi escrito e pela competência enciclopédica a que por tradição cultural aquela próprialíngua remete” (ECO, 2004, p. 60).

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que acontece uma nova concepção, uma possibilidade de redenção(e ele precisa disso, pois, ainda conforme o narrador, ele perdera amulher, o filho de três anos e o sentido da vida), mas esse novoQuinn é construído a partir de uma falsidade, através de um jogode identidades múltiplas e interdependentes, a saber: Quinn/WilliamWilson/Max Work/Paul Auster. Eis o trecho inaugurador da nova“identidade” de Quinn:

Era o dia 19 de maio. Ele se lembrava da data porque era aniversáriode casamento dos pais – ou seria, caso os pais estivessem vivos – e suamãe uma vez lhe disse que ele for concebido na noite do casamento.Esse fato sempre o fascinara – ser capaz de determinar exatamente oprimeiro momento da sua existência -, e ao longo dos anos Quinn, emsegredo, havia comemorado seu aniversário nesse dia (AUSTER, 2003,p.16-7).

A história acontece em um período que compreende trêsmeses, de maio a agosto. O tempo do discurso, entretanto, nãocoincide com o da história, já que o narrador revela, ao final, tertomado conhecimento dos fatos em fevereiro, portanto, seis mesesapós seu término – ou sua suspensão. Quinn simplesmentedesaparece em agosto, como afirma ao narrador (no final tornadopersonagem) um outro personagem, secundário, chamado PaulAuster, que é escritor. O emprego do recurso da distância temporalauxilia na atribuição de um efeito de sentido de veracidade à história,uma vez que, durante seis meses, o outro personagem afirma tertentado encontrar Quinn, sem sucesso. O desaparecimento está,portanto, consumado, por isso o que se apresenta deve ser tomadocomo verdadeiro.

O narrador revela, nas páginas iniciais, que Quinn tornara-seescritor de romances de mistério porque perdera a esposa e o filho.Adiante, ainda nos estágio iniciais, ele afirma que tal fato ocorreracinco anos antes do início da história que ora se narra: “Agora jáhaviam passado mais de cinco anos. Já não pensava muito no filho e

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só pouco tempo antes retirara a fotografia da mulher da parede”(AUSTER, 2003, p.11). Tal informação (dentre outras) interfere nanarrativa no sentido de seu alcance6, auxiliando na explicação dedeterminadas disposições anímicas do personagem focal no presentee na justificativa de suas atitudes ou modos de pensar (presentes efuturos). Essas passagens configuram-se como analepses7 externas,pois funcionam como complementos à narrativa, não interferindoem sua dinâmica, a não ser nos termos expostos acima.

Outro trecho significativo que mostra a anacronia pelo recursoà analepse é o seguinte: “Desde quando terminara o último romancede William Wilson duas semanas atrás, vinha se sentindo abatido”(AUSTER, 2003, p.12). A proximidade temporal da história que secomeça a relatar com o fato de Quinn ter finalizado a escrita de umromance policial pouco tempo antes revela a disposição dele emaceitar prontamente o que propõe uma voz desconhecida do outrolado da linha telefônica, a saber, evitar um suposto crime. Assim,Quinn é instado a sair de seu papel de escritor de romancesdetetivescos para entrar no “mundo real” dos detetives, tornando-se ele mesmo um deles. Além disso, a revelação da data e de comoQuinn se sentia prepara o terreno para a introdução, de formaenfática, da questão da multiplicidade da identidade, tal como seobserva na passagem abaixo:

Seu detetive particular e narrador, Max Work, tinha esclarecido umacomplicada cadeia de crimes, havia levado muitas surras e várias vezesescapara por um fio, e Quinn sentia-se um tanto exaurido por suas

6 “Uma anacronia pode ir, no passado como no futuro, mais ou menos longe do momento‘presente’, isto é, do momento da história em que a narrativa se interrompeu para lhe dar lugar:chamaremos alcance da anacronia a essa distância temporal (GENETTE, 1995, p.46).7 De acordo com Genette (1995, p.47), a analepse refere-se ao fato de que “toda a anacroniaconstitui, em relação à narrativa na qual se insere - na qual se enxerta – uma narrativatemporalmente segunda, subordinada à primeira [...]”. Adiante, o autor distingue os tipos deanalepse, dos quais “podemos, pois, qualificar de externa aquela analepse cuja amplitude totalpermanece exterior à da narrativa primeira” (GENETTE, 1995, p.47).

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façanhas. Ao longo dos anos, Work se tornara muito próximo de Quinn. EnquantoWilliam Wilson permanecia uma figura abstrata para ele, Work cada vezmais adquiria vida. Na tríade de egos em que Quinn se transformara,Wilson servia como uma espécie de ventríloquo, o próprio Quinn era oboneco e Work era a voz animada que conferia um propósito àquelaempresa. Se Wilson era de fato uma ilusão, justificava no entanto a vidados outros dois. Se Wilson de fato não existia, era no entanto a ponteque permitia a Quinn passar de si mesmo para Work. E pouco a poucoWork se tornara uma presença na vida de Quinn, seu irmão interior, seucompanheiro de solidão (AUSTER, 2003, p.12). [grifos nossos]

Essas analepses têm outra função: revelar que o narrador,embora não seja personagem, não participe da história, detéminformações sobre a vida pregressa do personagem focal. Nadinâmica da narrativa, isso constitui uma contradição, o que confirmaa leitura que aqui se propõe, qual seja, pela chave interpretativa dadúvida, da suspeita, do falseamento. Ao narrador deveriam estarvedadas tais informações, pois ele sequer conhecera Quinn. Alémdisso, ele apenas toma conhecimentos dos fatos pelo conteúdo deum caderno deixado por Quinn (adquirido em um momentoposterior ao início da história, portanto, incompleto) antes de seudesaparecimento e por Paul Auster, que afirma ter conhecidopessoalmente o personagem focal, ainda que superficialmente.

Outro tipo de anacronia é empregado em Cidade de vidro: aprolepse8. Alguns anúncios são feitos pelo narrador a fim de criarexpectativa no leitor, recurso que se coaduna com a (pretensa)história de detetive e com o uso do tempo ulterior no que diz respeitoà voz narrativa. O narrador está afastado temporalmente dosacontecimentos que narra e deixa claro, por meio das prolepses,que domina toda a sua extensão, do início ao final, o que é falso, maso leitor só descobre a falsidade no desfecho. O uso das prolepses ésofisticado, o que gera uma diversidade de efeitos de sentido. Noseguinte trecho, por exemplo: “Naquela noite, quando afinal se

8 “antecipação ou prolepse temporal (...)” (GENETTE, 1995, p. 65).

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dispôs a dormir, Quinn tentou imaginar o que Work teria dito parao desconhecido ao telefone. No sonho, que mais tarde esqueceu,Quinn se viu sozinho em um quarto, disparando uma pistola nadireção de uma parede branca e nua” (AUSTER, 2003, p. 15), háuma prolepse que é um anúncio, mas, em Cidade de Vidro, tal anúncionão cumpre o mesmo papel descrito por Genette (1995, p.72).:

O papel desses anúncios na organização e naquilo a que Barthes chamao ‘entrançado’ [tressage] da narrativa é bastante evidente, pela expectativaque criam no espírito do leitor. Expectativa que pode ser imediatamenteresolvida no caso desses anúncios de muito curto alcance, ou prazo, queservem, por exemplo, no fim de um capítulo, para indicar, encetando-o, o assunto do capítulo seguinte [...]

Na história em questão, não se trata sequer de um anúncio defato, pois ele não é resolvido, a não ser na última novela, intituladaO quarto fechado. Como se trata de histórias independentes,surpreende o fato de o sonho aparecer na última história e, ainda,desconfigurado, pois é relativo a uma ação efetiva (não mais umsonho) de outro personagem, que sequer figura em Cidade de vidro.

A prolepse generalizante9 é a mais recorrente em Cidade devidro, utilizada em estreita relação com o eixo da dúvida, quepermeia toda a narração. Alguns exemplos ilustram esse uso:

Virginia Stillman sorriu, como se fosse de alguma piada secreta que sóela conhecesse. Ou talvez estivesse apenas reagindo ao possível duplosentido da sua última frase. A exemplo de muitas coisas que aconteceram com eleno correr dos dias e semanas que se seguiram, Quinn não conseguiu ter umaidéia precisa a respeito disso (AUSTER, 2003, p.39). [grifos nossos]

Na manhã seguinte, e por muitas manhãs depois, Quinn se instalou em um banco

9 “As prolepses generalizantes explicitam de algum modo essa função paradigmática delineandouma perspectiva sobre a série ulterior (...)” (GENETTE, 1995, p.71).

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no meio da ilha de pedestres na esquina da Broadway com a rua 99.Chegava cedo, nunca depois das sete, e sentava ali com um café preparadopara viagem, pão com manteiga e um jornal aberto no colo, vigiando aporta de vidro do hotel (AUSTER, 2003, p. 69). [grifos nossos]

Quinn é um homem de segredos, afirma o narrador logo noinício. Como escritor, prefere esconder-se sob um pseudônimo:William Wilson: “Três obras foram escritas com o nome de WilliamWilson e ele as concluía à razão de uma por ano, o que lhe rendiadinheiro bastante para viver modestamente em um pequenoapartamento de Nova York” (AUSTER, 2003, p.9). O fato de onarrador insistir, nos estágios iniciais da narrativa, em mostrar queQuinn utiliza um pseudônimo reforça a aposta na tematização explícitada questão da identidade. Na verdade, não há identidade, há sempreum jogo de indeterminações, de instabilidades que gravitam sobre aquestão da linguagem, da atribuição de nomes às coisas, explicitamentetratada no romance em revisitas a textos filosóficos e científicosclássicos que abordam o tema. E não apenas isso, pois não há comodesprezar o fato de ser William Wilson um personagem de EdgarPoe, com quem o narrador estabelece diálogo explícito.

Pelo exposto até este ponto, observa-se que, no que dizrespeito à voz narrativa, tal como a define Genette (1995, p.13),, asaber: “a assunção das condições de enunciação pela instâncianarrativa” isto é, as relações entre o narrador e a história que conta,em Cidade de vidro narra-se ulteriormente aos fatos, o que podeser comprovado pelo uso, sobretudo, do pretérito perfeito. Deacordo com Genette (1995, p.220)., esse tipo de tempo de narração“preside a maior parte das narrativas produzidas até hoje. Oemprego de um tempo do pretérito basta para a designar como tal,sem por isso indicar a distância temporal que separa o momento danarração do da história”

No que se refere a outro aspecto da voz narrativa, o nível10,verifica-se posicionamento predominantemente extradiegético11, que

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significa que o narrador não é personagem da história narrada, excetopor algumas raras intromissões e pelo trecho final, uma espécie deposfácio, situado após o já anunciado desaparecimento de Quinn,estágio em que o narrador penetra explicitamente na história comopersonagem: “Voltei de minha viagem à África em fevereiro, poucashoras antes de uma nevasca cair sobre Nova York. Liguei para meuamigo Auster naquela noite e ele insistiu para que eu fosse vê-lo omais depressa possível” (AUSTER, 2003, p.146). O nível da narraçãotorna-se, portanto, intradiegético, o narrador personifica-se nahistória, tomando conhecimento dos fatos por meio de umpersonagem secundário que lhe entrega um caderno no qual Quinnteria anotado os acontecimentos relativos aos três meses da ação,conforme ele mesmo explica:

Quanto a Quinn, é impossível dizer onde andará agora. Examinei o textodo caderno vermelho com a máxima atenção e qualquer inexatidão nahistória deve ser atribuída a mim. Havia momentos em que era difícil decifraro texto, mas fiz o melhor que pude e me abstive de qualquer interpretação.O caderno vermelho, é claro, representa apenas metade da história, como qualquer leitorsensível logo compreenderá. (AUSTER, 2003, p.147) [grifos nossos]

O narrador assume, como é possível observar no trechogrifado, o caráter ficcional da história que narra, contrariando asescolhas anteriores já apontadas, como o tempo pretérito (perfeito),a narração ulterior, os posicionamentos hetero e extradiegético. Emais: admite, implicitamente, que o leitor fora enganado, que osfatos haviam sido mostrados como verdadeiros, mas que nãopassam de invenção, o que justifica, mais uma vez, a interpretaçãopela chave da dúvida.

10 Lugar de onde a voz é enunciada, posição do narrador. Genette (1995, p.227) explica que“(...) todo o acontecimento contado por uma narrativa está num nível diegético imediatamentesuperior àquele em que se situa o acto narrativo produtor dessa narrativa” .11 Trata-se de narrar de fora, isto é, o narrador não é personificado, não é, portanto, umpersonagem, é apenas uma voz (sem pessoalidade). Ele narra personagens em ação.

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A alteração nos elementos concernentes à voz narrativa já haviasido apontada por intromissões explícitas do narrador em outrospontos da narrativa, como em uma espécie de ponto intermediário,já que não se trata de um nível extrao nem intradiegético, pois onarrador refere-se a ele mesmo como “o autor”, utilizando, portanto,o recurso que Greimas denomina “embreagem actancial”, por meiodo qual a terceira pessoa disfarça-se em primeira ou vice-versa. Oobjetivo da aplicação de tal recurso discursivo em concomitânciacom a prolepse é preparar o leitor para o final, quando se explicitaesse “quem fala”, ainda que apenas parcialmente. O efeito de sentidoalcançado por essa estratégia é o de contradição – sentido geralproduzido por esse discurso –, pois mostrar o alguém responsáveldiretamente pela exposição das informações contraria todo osentido de objetividade instalado pelas escolhas de maisdistanciamento no que concerne à voz e ao modo narrativos. Eis otrecho que confirma a contradição:

Passou-se um longo tempo. Exatamente quanto, é impossível dizer.Semanas, com certeza, mas talvez até meses. O relato desse período émais vazio do que o autor gostaria. Mas as informações são escassas, eele preferiu deixar passar em branco o que não podia ser confirmadode forma definitiva. Uma vez que esta história é baseada inteiramente em fatos,o autor sente a obrigação de não ultrapassar os limites do que pode ser comprovado,resistir a qualquer preço aos perigos da invenção. Mesmo o caderno vermelho,que até agora proporcionou um relato minucioso das experiências deQuinn, é suspeito. Não podemos dizer com segurança o que aconteceu com Quinndurante o período, pois é nesse ponto da história que ele começa a perdero domínio de si mesmo (AUSTER, 2003 p.127). [grifos nossos]

Na passagem final da história, o narrador assume (agora pelaprópria materialização na história, o que Genette define como vozhomodiegética12) ter redigido a narrativa sem ter participado dela, anão ser em terceiro grau (pois não é personagem focal nem

12 O narrador está presente como personagem na história que conta (GENETTE, 1995, p. 244).

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secundário/testemunha, mas amigo deste último, a quem são confiadasas informações), o que corrobora o referido efeito de sentido dedúvida pela contradição que permeia toda a obra. O caderno vermelhoserve para conferir veracidade à história, pois atua como registro,pretenso documento elaborado pelo agente mas, simultaneamente, onarrador afirma que nem tudo havia sido registrado por Quinn, oque evidencia a “invenção” pelo menos de parte do relato.

Nos momentos iniciais da narrativa, logo na primeira página,também há alteração significativa na voz. O texto é aberto de maneirahetero e extradiegética: “Foi um número errado que começou tudo,o telefone tocando três vezes, altas horas da noite, e a voz do outrolado chamando alguém que não morava ali” (AUSTER, 2003, p.9).No parágrafo seguinte, insere-se a mudança, que não volta aacontecer ao longo da história, exceto em momentos pontuais,conforme apontado acima. Nessa passagem, o narrador posiciona-se no interior da narrativa de maneira explícita, oferecendo, pormeio de um relato sumarizado, informações acerca da vida pregressado personagem focal. Pelo emprego da primeira pessoa do plural,o narrador tem uma atitude ainda mais complexa: não é um “eu”que revela algo, mas um “nós”, e ao leitor fica a questão, nãorespondida: ele e quem mais? Essa alteração na voz narrativa, emconsonância com o conteúdo informacional veiculado, garante oefeito de sentido de veracidade, uma vez que o narrador apontaintimidade com os eventos relatados, embora durante a maior partedo relato opte pela distância em relação aos fatos e ao personagemfocal. Além disso, pela sumarização13, acelera-se o passo rumo aosacontecimentos que realmente importam na economia geral da obra.Observe-se a intromissão do narrador no trecho abaixo destacado:

Quanto a Quinn, há pouca coisa para comentar. Quem era, de ondeveio e o que fazia não tem muita importância. Sabemos, por exemplo,

13 Elemento da duração, portanto, relativo ao tempo da narrativa. Trata-se de um resumo,“inferioridade quantitativa em relação à cena”, aceleração (GENETTE, 1995, p.97-8).

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que tinha trinta e cinco anos de idade. Sabemos que já fora casado, haviasido pai e que sua esposa e seu filho haviam morrido. Sabemos tambémque era autor de livros. Para ser preciso, sabemos que escrevia romancesde mistério (AUSTER, 2003, p.9). [grifos nossos]

Alterações na voz narrativa alteram o modo narrativo, isto é,a distância e a perspectiva do narrador, na definição de Genette(GENETTE, 1995, 160) : “duas modalidades essenciais dessaregulação da informação narrativa [...]” . O modo caracteriza-se pelonível de saber do narrador e pela maneira como ele opta pordistribuir as informações no texto. Quanto à perspectiva, pode-seafirmar que o narrador de Cidade de vidro tem onisciência relativaporque, conforme assinalado acima, ele colheu informações deoutras fontes (o caderno vermelho e o personagem secundário),embora tenha inventado boa parte da história, ficando ao leitorvedado certificar-se quanto à quantidade de material “legítimo” equanto à quantidade de material “inventado”. Dado o caráterficcional (literário) da obra, isso só é relevante porque o narrador seesforça, na maior parte do relato, para conferir autenticidade concretaao que narra – vide as estratégias apontadas acima –, pois o fato denão ter participado diretamente da ação poderia causar um efeitode sentido de ficcionalidade mais enfático. Trata-se, portanto, deuma tentativa de mascaramento da relatividade de sua onisciência,pois o narrador luta para provar que domina integralmente a história.

Sobre o item distância, Cidade de vidro configura-se comouma narrativa de acontecimentos14 com predominância do discursonarrativizado15 (embora existam trechos em discurso direto) e do

14 “A narrativa de acontecimentos, porém, qualquer que seja o seu modo, é sempre narrativa,isto é, transcrição do (suposto) não-verbal em verbal: a sua mimese nunca será mais que umailusão de mimese, como toda a ilusão dependendo de uma relação eminentemente variávelentre o emissor e o receptor” (GENETTE, 1995, p.263-4).15 “[...] tratado como um acontecimento entre outros, e como tal assumido pelo narrador [...]”(GENETTE, 1995, p.168). Genette explica: “O discurso narrativizado ou contado, é,evidentemente, o estado mais distante, e em geral, [...] o mais redutor” (1995, p. 169).

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modo telling16 mas, em que pese o fato de o narrador relatar osacontecimentos “de longe”, oferece carga significativa de detalhes,possibilitada pela velocidade lenta. Justamente por progredirvagarosamente (por anisocronias, ou seja, alterações na velocidade,especialmente as pausas), a narrativa pode deter-se em detalhes(principalmente aqueles relativos aos sentimentos e pensamentos dopersonagem focal). Vale ressaltar que, no caso em questão, não sãodetalhes provenientes de descrições ou ambientações, mas inserçõesde reflexão teórica, o que converge com a função do narrador17,visivelmente ideológica18, caracterizada pela “conversaçãointelectual”. A função ideológica é, no entanto, mascarada de funçãomeramente narrativa. Ao contrário de obras como A montanhamágica, de Thomas Mann, Os irmãos Karamazov, de F.Dostoievsky, dentre outros, em que personagens personificam ideias,na nomenclatura de M. Bakhtin “vozes sociais”, em Cidade de vidroa função ideológica é marcada não pela intromissão do narradornem por essa personificação, mas por “excursos discursivos nopresente”, como refere Genette (1995, p.150) sobre os trechos de“estatuto extra-narrativo” que aparecem, no que tange ao ritmo, àduração, no formato de pausas.

As pausas são intensamente percebidas porque algumas delascompõem capítulos à parte, alongando, portanto, a história em favordo discurso. Vale a concentração na observação da velocidade19,

16 O modo telling caracteriza-se por uma visão mais panorâmica, pela baixa quantidade deinformação, pela maior presença do narrador, conferindo a sensação de que a história se contapor si mesma.17 De acordo com Genette (1995, p. 253), “pode parecer estranho, à primeira vista, atribuir a umnarrador, qualquer que ele seja, um outro papel além da narração propriamente dita, isto é, ofacto de contar a história, mas nós sabemos muito bem que o discurso do narrador, romanescoou outro, pode assumir outras funções”.18 “Mas as interveções, directas ou indirectas, do narrador a respeito da história podem tomartambém a forma mais didáctica de um comentário autorizado da acção: afirma-se assim aquiloa que se poderia chamar a função ideológica do narrador” (GENETTE, 1995, p.255).19 “Entende-se por velocidade a relação entre uma medida temporal e uma medida espacial(tantos metros por segundo, tantos segundos por metro): a velocidade da narrativa pela relaçãode uma duração, a da história, medida em segundos, minutos, horas, dias, meses e anos, e umaextensão: a do texto, medido em linhas e em páginas)” (GENETTE, 1995, p.87).

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pois a narrativa é, em sua maior parte lenta, devido ao referidoalongamento, que surge de maneiras distintas em Cidade de vidro.Além disso, sobre o conteúdo, tais alongamentos apresentam demodo mais incisivo as questões teóricas levantadas pelo discursoem razão de seu caráter marcadamente ideológico. Por isso, paraanálise mais detalhada da narrativa em questão, segmentam-se asdiferentes formas de tratamento do tempo (baixo ou morto):

· Pausa descritiva: em Cidade de vidro, constata-se sempreligada organicamente à função ideológica exercida pelo narrador (e,muitas vezes, à própria narração), tal como no trecho citado abaixo:

Nova York era um espaço inesgotável, um labirinto de caminhosintermináveis, e por mais longe que ele andasse, por melhor queconhecesse seus bairros e ruas, a cidade sempre o deixava com a sensaçãode estar perdido. Perdido não apenas na cidade, mas também dentrode si mesmo. Toda vez que saía para dar uma volta, tinha a sensação deque estava deixando a si mesmo para trás e, ao se entregar ao movimentodas ruas, ao reduzir-se a olhar observador, ele se descobria apto a fugirda obrigação de pensar, e isso, mais do que qualquer outra coisa, lhetrazia uma certa paz, um saudável vazio interior. O mundo estava foradele, em volta, à frente, e a velocidade com que o mundo se modificavasem parar tornava impossível para Quinn deter-se em qualquer coisapor muito tempo. (AUSTER, 2003, p.10)

O trecho destacado é um dos poucos em que o narradoremprega o pretérito imperfeito, o que confere a ideia de hábito,portanto, mesmo os verbos que sugerem ação invocam um tipo deação repetida. A iteratividade provoca anisocronia, que incide nanarrativa como alteração na velocidade do relato pelo alongamento,uma vez que, tanto nos parágrafos subsequentes quanto nosanteriores, optou-se em geral pelo uso do pretérito perfeito, maisajustado aos trechos narrativos propriamente ditos conferindo,portanto, mais velocidade. No que diz respeito à função ideológica,pode-se identificar, pelo trecho citado, a introdução de uma questão

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revolvida durante toda a narrativa, qual seja: a da cidade, doambiente urbano contemporâneo como labirinto, como espaço demal-estar, de solidão e de perda de referências.

· Pausa de autorreflexividade: são trechos, em geral extensos,em que o narrador expõe reflexões acerca do fazer literário,teorizado ao longo da narrativa em diversos momentos, comoexemplificado abaixo:

Para Quinn, o que interessava nas histórias que escrevia não era a sua relação com omundo, mas a sua relação com as outras histórias. Ainda antes de se transformarem William Wilson, Quinn fora um fanático leitor de romances demistério. [...] O detetive é quem olha, quem ouve, quem se movimentanesse atoleiro de objetos e fatos, em busca do pensamento, da idéia quefará todas essas coisas se encaixarem e ganharem sentido. O leitor vê omundo através dos olhos do detetive, experimentando a proliferaçãodos detalhes desse mundo como se o visse pela primeira vez. [...](AUSTER, 2003, p.14) [grifos nossos]

· Pausa-capítulo: autoexplicativa, é uma pausa que compõetodo um capítulo. Em Cidade de vidro, o quarto capítulo éexemplar. Nele, o narrador relata casos similares ao vivido pelopersonagem Peter Stillman (filho). O efeito de sentido ao se abordarde duas maneiras diferentes fatos similares, com a diferença de seremdistantes no tempo, é o de contradição: enquanto o leitor é levadoao terror (tanto quanto o personagem focal Quinn) devido àbrutalidade de se prender uma criança durante nove anos paraobservar o que lhe aconteceria em termos de manutenção,desenvolvimento ou involução da linguagem, o relato científico tendea produzir um efeito de sentido de suavização desse terror, dadasua objetividade e frieza. No caso específico desse exemplo, essetipo de pausa reforça a função ideológica do narrador, que é a críticaaos discursos hegemônicos.

· Pausa-digressão: no caso da narrativa em questão,encontram-se diversos trechos assinalados por pensamentos do

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personagem focal ou pela citação de passagens do cadernovermelho em que ele fez anotações ao longo da história e quemarcam o trabalho assumido pelo escritor-detetive. Um exemploé o longo trecho do caderno vermelho em que Quinn faz umareflexão social, enfatizando o tema da crítica da cidade, do qualreproduz-se uma parte:

Hoje, como nunca antes: os vagabundos, os indigentes, as mendigasque carregam sacolas, os bêbados e os vadios. Abrangem desde osmeramente pobres até os que se encontram em completa desgraça.Para onde quer que se olhe, lá estão eles, em bairros bons e ruins(AUSTER, 2003, p.121).

· Pausa-citação: referências a obras “reais” e outras existentesapenas no universo da narrativa, como o livro escrito por PeterStillman (pai) quando ainda era professor universitário [cujo títuloé: O jardim e a torre: visões inaugurais do Novo Mundo, de acordo com onarrador, “(...) um livro dividido em duas partes de extensãoaproximadamente igual, “O mito do Paraíso” e “O mito de Babel”(AUSTER, 2003, p.51)]. O narrador apresenta uma espécie deresenha desse livro em todo o capítulo seis.

No capítulo seis, pelo recurso da mise en abyme (utilizadotambém no que concerne às identidades da personagem focal), onarrador traz a figura do caderno vermelho, no qual constam asreflexões do personagem focal, que, por sua vez, expõe o conteúdodo livro de Stillman que, por sua vez, cita o livro de Henry Dark, Anova Babel, que, por sua vez, inspirou-se em Paraíso recuperado,de Milton, todos se reportando ao livro bíblico do Gênese. Onarrador teoriza pela polêmica os discursos histórico e religioso,que funcionam de maneira simbiótica no que diz respeito à fundaçãoda nação estadunidense. O argumento de Cidade de vidro detém-se na tese de que os malefícios do mundo contemporâneo (comênfase nos Estados Unidos da América, já que eles simbolizam o

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poder sobre o “resto” do mundo), em especial a deterioração dapossibilidade de se encontrar um sentido para a vida e decomunicação entre os seres humanos perdeu-se devido à distânciaentre as palavras e as coisas às quais elas se referem. Melhor dizendo:trata-se de questionar a representação. Argumento defendido porHermógenes, no Crátilo, diálogo de Platão que se acredita, natradição metafísica, inaugurador da reflexão sobre a linguagem e arepresentação. Hermógenes defende a tese da convencionalidade,enquanto Crátilo acredita que existe uma relação de naturalidadeentre as coisas e os nomes que as designam. Por analogia, poder-se-ia afirmar que, em Cidade de vidro, Crátilo é atualizado pelopersonagem Peter Stillman (pai), que coleta nas ruas objetosaparentemente sem valor, a fim de criar uma nova língua baseadanessa (nova) relação natural, como se pode observar pela passagemabaixo citada:

- Veja, estou prestes a inventar uma nova língua. (...)- Uma língua nova?- Sim, uma língua que irá, enfim, dizer aquilo que temos para dizer. Poisnossas palavras já não mais correspondem ao mundo. Quando as coisasformavam um todo, tínhamos confiança de que nossas palavras eramcapazes de expressá-las. Mas aos poucos essas coisas se despedaçaram,se romperam, desmoronaram no caos. Elas não se adaptaram à novarealidade. Por isso, toda vez que tentamos falar o que vemos, falamoscom falsidade, distorcendo a coisa mesma que desejamos representar(AUSTER, 2003, p.89)

E, para fundamentar o questionamento sobre a representação(que é histórica e ideológica, portanto, não verdadeira), o narradorconstrói um capítulo que é todo discurso, essencialmente atrelado àfunção ideológica do narrador, que é dupla neste caso: tanto distribuiinformações cruciais para a compreensão de trechos vindouros(numa espécie de prolepse) quanto enfatiza sua posição frente aotema da origem no que diz respeito ao surgimento dos Estados

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Unidos da América como nação e seu status de nação hegemônicano mundo contemporâneo. Assim, o conteúdo do suposto livro deStillman (um louco) funciona como explicação histórico-religiosada loucura que fundamenta o modo de pensar, de viver e de agirnorte-americano. Eis um trecho do capítulo:

Assim como Babel fora construída trezentos e quarenta anos após oDilúvio, do mesmo modo, previa Dark, exatamente trezentos e quarentaanos após a chegada do navio Mayflower ao porto de Plymouth, a ordemseria cumprida. Pois com toda a certeza eram os puritanos, o novo povo escolhidopor Deus, que portavam nas mãos o destino da humanidade. Ao contrário doshebreus, que frustraram Deus ao rejeitar seu filho, esses inglesestransplantados iriam escrever o capítulo final da história antes que oCéu e a Terra enfim se unissem. A exemplo de Noé na sua arca, elestinham viajado através do vasto dilúvio oceânico a fim de cumprir suamissão sagrada (AUSTER, 2003, p.58). [grifos nossos]

O discurso histórico sobre a fundação assenta-se no eventorelativo à chegada dos pilgrims (peregrinos) à costa leste dos EUA,no entanto, os índios já lá habitavam, bem como os espanhóis eos franceses (estes não como habitantes, mas como exploradores).O marco inaugural, por tanto, discurso fundacional,convencionou-se pela:

[...] chegada do advogado britânico John Winthrop a Massachussets,em 1630. Adepto de uma seita radical para a época, os puritanos, edescontente com o anglicanismo – a religião oficial dos ingleses e do reiCarlos I -, Winthrop e as cerca de 700 pessoas que o acompanharamdeixaram a Inglaterra para criar sua própria sociedade, num lugar aindaintocado pelos vícios: a América. (FUSER, 2006, p. 26)

O narrador de Cidade de vidro ironiza a ideia do “destinomanifesto”, segundo a qual “(...) os americanos teriam sidoescolhidos por Deus para a missão de ocupar as terras entre os

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oceanos Atlântico e Pacífico” (FUSER, 2006, p.29). Tal expressão,de acordo com Fuser (2006, p. 29),

[...] surgiu às vésperas da guerra com o México, em 1846, quando ojornalista John O´Sullivan defendeu ‘a realização do nosso destinomanifesto de nos espalharmos pelo continente que recebemos daProvidência’. Mas a idéia tem raízes mais antigas, que remontam aospuritanos do século 17. Em sua jornada através do Atlântico, essesimigrantes se comparavam aos hebreus do Velho Testamento, cruzandoo deserto em busca da Terra Prometida.

Em Cidade de vidro, a fundação é tratada como marco dadegradação do mundo e o argumento reside justamente nademonstração de que toda a história é fruto de um discurso fictícioe mentiroso, uma vez que todas as ações (genocidas, expansionistase capitalistas) e ideias partem de invenções de autores loucos(tratados pelo discurso dominante como visionários às avessas) oumesmo irreais, como Henry Dark (ou Humpty Dumpty), invençãoassumida de Peter Stillman. O argumento sobre a falsidade dodiscurso historiográfico oficial advém também, no caso da fundaçãodos Estados Unidos da América, de sua estreita ligação com odiscurso religioso, outra ficção, na concepção do narrador, tal comoa obra de Milton. A ironia do narrador é evidenciada ao apresentaressa espécie de resenha do livro de Stillman, cujas ideias são sempreintroduzidas por uma expressão de dúvida. Ao menos ele, onarrador, trata de eximir-se, de distanciar-se desse conteúdo o quantopode; para isso, utiliza expressões indiretas, como “segundo”, osverbos na condicional, geralmente acompanhados por um auxiliargerador de dúvida, como “podia”, “teria” e a insistência no pretéritoimperfeito, também com essa carga de dúvida.

Trezentos e quarenta anos, segundo os cálculos de Dark, significavam queem 1960 a primeira parte da tarefa dos colonizadores estaria concluída. Aessa altura, estariam fixados os alicerces para a obra efetiva que viria a

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seguir: a construção da nova Babel. Desde já, escrevia Dark, viam-sesinais animadores na cidade de Boston, posto que lá, como em nenhumaoutra parte do mundo, o principal material de construção era o tijolo –o qual, conforme indica de forma específica o versículo três do capítuloonze do Gênese, constituía o material de construção usado em Babel.No ano de 1960, afirmava ele com segurança, a nova Babel começaria ase erguer, seu próprio feitio exprimiria uma aspiração de chegar aos céus,um símbolo da ressurreição do espírito humano. A história seria escritaao contrário. O que tinha caído se reergueria; o que se havia cindido seunificaria. Uma vez concluída, a Torre seria grande o bastante para abrigartodos os habitantes do Novo Mundo (AUSTER, 2003, p.59). [ grifosnossos]

Como se observa no trecho citado, a nova Torre de Babelsimboliza o poder dos Estados Unidos, justificado pela “intenção”proposta pelo discurso religioso, qual seja, a de unificação, deliberdade para todos os povos do mundo.

Voltando novamente o foco para as anisocronias, percebe-seque, embora a carga de pausas com vistas ao alongamento dodiscurso em detrimento da história seja predominante, não se podeprescindir de observar o emprego de cenas. Embora modestamenteutilizado pelo narrador, o modo showing20 é empregado em algumaspassagens a fim de acelerar o ritmo da história. Alguns trechosrepresentativos são as conversas ao telefone com a voz misteriosa,a conversa com Peter Stillman (filho), os encontros com PeterStillman (pai) e o diálogo no encontro com Auster (o escritor). Essascenas têm função específica: confirmar o que já foi dito pelo discursodo narrador, pois não trazem revelações, novidades, apenas repeteminformações, via personagens, em discurso direto. Elas funcionam,portanto, como falsa aceleração, mas confirmam o status da históriade detetive (também falsa) que se conta. Alguns trechos são cenassumarizadas e se configuram como resumos da própria história,

20 O modo showing consiste numa atitude do narrador de mostrar mais de perto, com sua presençadiminuída, com mais detalhes, o que ocorre.

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fazendo-a circular sobre si mesma. Há predominância dos sumários,mas existe um tipo específico (também pouco utilizado) em Cidadede vidro, cuja função é a mesma: promover a circulação interna dahistória travestida de informação nova, como se depreende da leiturado trecho destacado:

Se o objetivo era compreender Stillman, conhecê-lo bem o bastante paraprever o que faria em seguida, Quinn tinha fracassado. Começara comum número restrito de fatos: a formação e a profissão de Stillman, aprisão do seu filho, sua captura pela polícia e o internamento em umhospital, uma obra acadêmica bizarra, redigida enquanto se achavasupostamente são, e acima de tudo a certeza de Virginia Stillman de queele agora tentaria fazer algum mal ao filho. Mas os fatos do passado nãopareciam ter nenhum apoio nos fatos do presente (AUSTER, 2003, p.77)

Tudo isso já havia sido relatado anteriormente, por meio deoutros mecanismos discursivos e de forma alongada. Nesse trecho,são sumarizados fatos explicados com detalhes (por meio de outrossumários ou de cenas) na história. Sua ocorrência, porém, foi emum tempo anterior à história – portanto, uma anacronia – o queindica seu alcance.

Para além das categorias de análise expostas por Genette,considera-se essencial, para uma leitura de Cidade de vidro, observara atribuição dos nomes próprios, cuja relação com os temasabordados e com o tipo de narração proposta é orgânica. O própriotítulo da história remete aos temas centrais: o mundo contemporâneo,fundamentalmente urbano, e sua fragilidade, bem como das relaçõesque se estabelecem nessa espacialidade, vide a superficialidade dasrelações entre os personagens da narrativa. Todos os laços sãofrouxos, tanto que o narrador, ao adquirir status de personagem, nofinal, desata a amizade com o personagem escritor Auster, o querevela uma coerência interna com a afirmação da impossibilidadede redenção, portanto, uma visão negativa sobre o resgate dasrelações humanas na contemporaneidade:

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Após ouvi-lo, me irritei por Auster ter tratado Quinn com tamanhaindiferença. Censurei-o por não ter participado mais ativamente dosfatos, por não ter feito alguma coisa para ajudar um homem queobviamente estava em apuros. (...) Quanto a Auster, estou convencidode que agiu muito mal. Se nossa amizade terminou, a responsabilidadeé toda dele (AUSTER, 2003, p. 146-7).

O nome do personagem focal, Daniel Quinn, equivale a DomQuixote, o que é explicitamente assumido no texto, no trecho emque Quinn encontra-se pessoalmente com Paul Auster (o escritorque não é detetive, como ele) e a conversa encetada por eles enveredapela discussão sobre a literatura, em um exercício autorreflexivo,como toda a obra. Quinn imagina-se Dom Quixote, ele, sim, real,de acordo com sua argumentação, e não Cervantes, tal como emCidade de vidro: Quinn é, no interior da narrativa, mais real doque Paul Auster (o escritor), mero personagem secundário. Aautorreflexividade aparece na narrativa de maneira explícita, tantopara abordar a literatura como representação quanto para abordara relação de um texto com outros textos: “A teoria que apresentonesse ensaio é de que Cid Hamete é na verdade uma mistura dequatro pessoas distintas. Sancho Pança, obviamente, é a testemunha”(AUSTER, 2003, p. 112). Exatamente como Quinn. Cervantes éapenas o exemplo mais contundente, já que é considerado o textofundador da modernidade, pois Cidade de vidro dialogaexplicitamente com o gênero policial, por autores como Poe eDashiell Hamett e pelos romances detetivescos comerciais.

O pseudônimo de Quinn, William Wilson, também tem suaorigem relatada explicitamente no texto: trata-se de um jogador debeisebol fracassado, que levara seu time à derrota, assim como oescritor de histórias de detetive que, não resistindo à falta de sentidoda vida, atira-se desesperadamente rumo ao “tudo-ou-nada”:abandona seu status existencial de ser de papel e lança-se no mundode suas obras, encarnando Max Work (maximum work ou máximode trabalho, eficiência), seu alter-ego que se transforma em seu ego,

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ainda que em segundo grau, já que o nome assumido é de outrodetetive, para Quinnn, ainda mais real: Paul Auster.

Cidade de vidro é prenhe de intertextualidade einterdiscursividade, existindo apenas na confluência de diferentesobras e de diferentes discursos, literário, histórico, religioso,filosófico. E é o Auster personagem quem diz: “Estou de acordocom você. Não pode haver retrato mais perfeito de um escritor doque um homem enfeitiçado por livros” (AUSTER, 2003, p. 111).

Outros nomes significativos são Peter Stillman e seupersonagem, Henry Dark, cujo nome é desvendado no interior daprópria narrativa, remetendo a Humpty Dumpty, personagem deAlice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. Stillman, um“ainda homem” por pouco tempo, já que o pai se suicida e o filhodesaparece, o que leva também à autoaniquilação de Quinn. Onome Stillman revela uma situação que é a do homemcontemporâneo, de ser humano por enquanto, já que suas atitudesdestrutivas o levarão necessariamente ao desaparecimento. Nanarrativa, o nome está em estreita consonância com aspectosrelativos às personagens que o carregam: pai e filho. Tanto o pai,que trancafiara o filho num quarto para pesquisar acerca dalinguagem e que está prestes a cometer suicídio, portanto, fim(literal) do homem, quanto o próprio filho, que permanece homemmesmo após ter sido tolhido da convivência humana e ter perdidoa capacidade de se comunicar pelas palavras e tem dificuldades deadaptação no mundo após a “liberdade”.

Por fim, entende-se que Cidade de vidro pode ser consideradauma novela policial apenas em termos, pois todas as estratégiasconvergem para a leitura sob a chave da falsidade, visto que asarticulações da narração são manejadas a fim de precipitar o leitorem um universo contraditório, em que nada é o que parece ser nemninguém é o que diz ser, e o narrador orienta-se pela defesa doargumento sobre a falta “atávica” de sentido fixo do mundo, dalinguagem e da própria literatura.

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Referências bibliográficas

AUSTER, Paul. Cidade de Vidro. In: A trilogia de Nova York. São Paulo:Planeta de Agostini, 2003.

BOOTH, Wayne C. Distance et point de vue. In: BARTHES, R.; KAYSER,W.; BOOTH, W.C.; HAMON, Ph. Poétique du récit. Paris: Éditions duSeuil, 1977, p. 85-112.

ECO, Umberto. Lector in fabula – a cooperação interpretativa nos textosnarrativos. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

FUSER, Igor. Os donos do mundo. Revista Aventuras na História -edição 35. São Paulo: Abril, julho 2006 (p.26-33).

GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Lisboa: Veja Universidade,1995.

_____. Fronteiras da narrativa. In: BARTHES, Roland (org.). Análiseestrutural da narrativa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1971. (p. 255-274)

GOODMAN, Nelson. Modos de fazer mundos. Porto: Edições ASA, 1995.

TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES,Roland (org.). Análise estrutural da narrativa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1971.(p. 209-254)

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PERIFERIA E CÂNONE EMADONIAS FILHOSUBURBS AND CANON INADONIAS FILHO

João Luiz Peçanha Couto(USP)1

RESUMO: Este artigo pretende investigar o romanceadonisiano Memórias de Lázaro, propondo, em paralelo, ainscrição do autor itajuipense no que se denomina periferia –esta entendida como se estar e se postar como em lugar de não-centro. Entenda-se aqui a escrita canônica como central e opositivaà que denominamos periférica. Além: propomos caminho deanálise da obra com base num conjunto de premissas queperfazem o trajeto do protagonista-narrador para sua assunçãocomo signo de linguagem.

PALAVRAS-CHAVES: Narrativa. Periferia. Signo literário.Morte.

ABSTRACT: This article investigates the novel Memoirs ofadonisiano Lazarus, proposing, in parallel, the inscription of

1 Mestre em Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa – FFLCH – USP, CEP36.037-775, Juiz de Fora (MG)[email protected]

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the author itajuipense in what is called the periphery - is under-stood to be and how to stand in place of non-center. It is under-stood here as a canonical writing center and oppositional to whatwe call peripheral. In addition, we propose path analysis of thework based on a set of assumptions that make up the path ofthe protagonist-narrator to his assumption as sign language.

KEYWORDS: Narrative. Periphery. Sign literary. Death.

Embora pareça um caminho bastante sedutor, Memórias deLázaro não conta a história da formação ou resgate das lembrançasde um protagonista que renasce graças ao percurso da narrativa.Essa afirmação pareceria óbvia, se seguíssemos a trajetória da análiseclássica, esquema que sugere que o início da análise de cada obradeve se operar pelo seu título: Memórias de Lázaro. A intervençãoque se pretende aponta, sim, para o fio que trama a unidade da obra,que consiste na busca (recherche) do protagonista pela aceitação desua própria morte, instaurada por via da linguagem. A morte, não(apenas) em seu sentido literal de extinção da vida, mas, sobretudo,como trampolim para a compreensão do processo de construçãoda linguagem ficcional e de seu espaço literário, segundo um pontode vista blanchotiano.

Tal procedimento se apoia no vazio em que a linguagemencontra seu espaço, nesse “exterior onde desaparece o sujeito quefala” (FOUCAULT, 2009, p. 221), uma vez que “o ser da linguagemsó aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito”(FOUCAULT, 2009, p. 222). É um pensamento que se mantém nolimiar de qualquer positividade, que apreende seus fundamentos e,ao final, descobre as latitudes nas quais se desdobra: a margem, ovazio, o próprio movimento em que aquele que fala desaparece.

Assim, a palavra literária opera o distanciamento de umsubjetivismo aprisionador da matéria literária, tramado no esforçopouco útil de um autor fazer exortar sua voz como a voz da literatura(estranho engano, pois a voz do autor é necessariamente anonimato,

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frente ao desaparecimento que a operação literária impõe àqueleque escreve – aí residindo sua força). Igualmente a palavra literáriaassinala o seu próprio distanciamento da linguagem limitadora eimpossibilitadora encontrada na expressão estética aprisionada aum autor.

Em seu texto “O pensamento do exterior” , Foucault asseveraque ela é o “puro exterior da origem”, não constituindo “nem averdade nem o tempo, nem a eternidade nem o homem, mas a formasempre desfeita do exterior” (FOUCAULT, 2009 p. 242). É dessacapacidade de a linguagem da literatura se afastar de um subjetivismoque a impossibilitaria, e rumar para sua própria ausência, para umespaço exterior e limítrofe, inegavelmente irmanado com a morte edesvinculado da positivação da referencialidade representativa, poisafirma a nulidade daquele que a gerou, que se valerá esta análise.

A literatura não é a linguagem se aproximando de si até o ponto de suaardente manifestação, é a linguagem se colocando o mais longe possíveldela mesma; e se, nessa colocação “fora de si”, ela desvela seu ser próprio,essa súbita clareza revela mais um afastamento que uma retração, maisuma dispersão do que um retorno dos signos sobre eles mesmos. O“sujeito” da literatura (o que nela fala e aquele sobre o qual ela fala) nãoseria tanto a linguagem em sua positividade quanto o vazio em que elaencontra seu espaço quando se enuncia na nudez do “eu falo”. (FOUCAULT, 2009, p. 221)

A longa citação confirma nosso pensamento a respeito doespaço a partir do qual a literatura se enuncia perante o mundo eafirma seus objetos estéticos. A história de Alexandre reforça essaproposta, pois aponta para a negação final do protagonista, que oidentifica como ser de linguagem, ser de morte e de transformação.

Meus pés resvalam, o corpo tomba, a boca sem um grito. É pútridoo último ar. O lodo que me absorve, e asfixia, no canal, é viscoso.Ocultam-se, num corte fulminante, o vale e o vento. Tudo vai se

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fechando, aos poucos, com serenidade e imensa quietude. (ADONIASFILHO, 1978, p. 162)

A porção final da obra avança narrando a morte do personagem-narrador. Isso ratifica seu trânsito, como signo e não mais apenas comopersonagem, pela linguagem. Ou seja, Alexandre aqui se trata de signovagando pelo universo peculiar da linguagem. Mas qual seria a diferençaentre esta proposição e aquela que abriu o subcapítulo?

Alexandre termina a obra encontrando a própria morte,tramada graças ao embate entre duas palavras, duas premissasfundantes em sua construção como sujeito ou, em outras palavras,fundantes para sua constituição como signo: as palavras de Jerônimoe Natanael. Sua morte é engendrada desde o início da obra, graçasao trânsito do protagonista por dois universos que o potencializamcomo signo em busca de uma verdade, mesmo que efêmera – deum significado.

Seria um caminho fácil afirmar, no entanto, que desde o iníciode sua jornada Alexandre busca conscientemente aquele descortinarcomo signo de linguagem. Como personagem, o protagonistaadonisiano procura ocupar seu espaço de compreensão (do mundo)a partir de duas premissas (ou palavras) que, antes de o fazerem chegara uma conclusão assertiva a respeito de si e do mundo, capacitam-no para a contemplação do conflito imanente que se mantém quandocolocado entre elas.

No seu momento final, Alexandre é puro signo se colocandoà margem de qualquer mundo conhecido por ele e de sua missãoclássica de narrador, e por isso alcançando uma compreensão infinita.É naquele momento que a infinitude se encontra com a finitude:vendo o vazio, o oco e a inutilidade de seu fim como ser finito, oprotagonista se vislumbra como portador da infinitude jazente emtodo processo estético-poético, ser de linguagem que é. Ali, a verdadeúnica é tão ilusória quanto se acreditar que a morte de Alexandre nolodo resume-se à pura extinção da vida.

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A liturgia da aspereza

A primeira premissa se aproxima do lugar comum entendidocomo o mundo pelos habitantes do Vale do Ouro. Nesse momento,o “eu falo” de Alexandre se confunde com o “eu falo” do mundoque ele aprendeu como aquele que porta a verdade; surge comosigno cosmogônico, pois afirma-se como uma verdade monolítica,fálica e unívoca, criadora de uma realidade, e eivada pela violência epelos conceitos argamassados por séculos de verdades repetidas àexaustão. Nesse sentido, desponta como formadora daquelesconceitos a palavra de Jerônimo, como dita por Alexandre:

Jerônimo, naquela época, era mais que o pai. (…) sua voz criou a minha.Imprestáveis seriam as minhas mãos, não fossem guiadas e dirigidaspelas suas. Abertos os olhos, eu o vi antes que a mim mesmo enxergasse.( ADONIAS FILHO, 1978, p. 30)

É ela que justifica e entroniza aquela liturgia da aspereza, tãocomum ao Vale e a seus habitantes. Essa voz também aproximaMemórias de Lázaro do universo do regionalismo brasileiro que,segundo Rónai, para alguns escritores é “uma espécie de tábua desalvação” (RÓNAI, 2006, p. 405). Isso porque a, por vezes, cansativalistagem de costumes, localismos e folclorismos simplificadores elideas falhas da capacidade criadora.

Quando Jerônimo fala, sacramenta verdades. Dono de um falarparco e direto, cheio de frases travestidas de verdades pétreas, osdizeres de Jerônimo revelam e escondem, mas principalmentedeterminam, nos momentos-limite da vida de Alexandre, a únicacerteza a ser aceita, a “grande” verdade: a lógica do Vale é a únicaválida para a compreensão do mundo. Ou: quem sai do Vale doOuro a ele retorna. É uma perspectiva fatalista e inescapável, tantoque o personagem-protagonista ratifica a sina: “Eu não voltei,Jerônimo. Trouxeram-me” (ADONIAS FILHO, 1978, p. 10).

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No entanto, falha a análise que crê ser a palavra de Jerônimoapenas isso. Ela também é o instrumento de que Adonias Filho lançamão para assinalar sua inscrição num regionalismo, mesmo que nãoseja aquele “folclórico”, referido por Rónai. A herança regionalista,tanto no autor baiano quanto em Rosa, por exemplo, é fato, sendoque ambos tecem relações (seja na experimentação rosiana com alinguagem seja nas propostas de dispersão do foco narrativo dematriz faulkneriana, como percebido em Adonias Filho) que ospostam além daquele regionalismo de origem, relacionando-os comas tendências narrativas inovadoras do início do século XX.

Retorne-se à palavra de Jerônimo. A força que provoca oretorno de Alexandre ao Vale vem amparada por sua (de Jerônimo)palavra, que dá à voz daquele espaço poder inequívoco de verdadepróxima do sagrado – e, portanto, incontestável. É identificada coma palavra-raiz da previsibilidade, se traçarmos paralelo com Glissant.Com a palavra que fundamenta um mundo de cristalizações e nãoadmite a crioulização, o conflito, o embate com outra(s) realidade(s).Cosmogônica, nega movimentos rizomáticos e imprevisíveis docaos-mundo (do “mundo de Abílio”), opondo-se “à noção hoje‘real’, nas culturas compósitas, da identidade como resultado e comofator de uma crioulização” (GLISSANT, 2005, p. 27).

Por conta dessa inequivocidade, o quase monstro Jerônimopor vezes se aproxima da figura de um eclesiasta que fundamenta aaspereza da pedra, o que aproxima sua palavra dos discursos queigualmente dão voz ao sagrado. Aquela palavra não admitesubterfúgios, dúvidas ou hesitações, tão fundamentada, em seusversículos de vento, pelo tempo e pela repetição enunciatória.

Importante assinalar que, no entanto, não há registro escrito(escritura ou livro sagrado) que a confirme, caracterizando aquelesagrado como marcado pela oralidade. As palavras são puraenunciação, sem confirmação escrita, como as asserções inequívocasdos mais idosos – verdades cristalizadas por uma supostaexperiência. Podemos arguí-las, no entanto; duvidar de que elas sejam

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de fato as verdades que falam dentro de Alexandre, tão irmanadoque está com elas desde seu nascimento. Mas ele não as desestabiliza,pois desmenti-las seria negar o próprio mundo e a si próprio. Ele asrepete, indubitáveis. Assim, nesse sentido existe um movimento deconformação de Alexandre àquela lógica de selvageria.

Dessa forma, Memórias de Lázaro é, a seu modo, umromance de formação. Não circunscrito ao Bildungsroman canônicoe teleológico. Entenda-se “formação” como esforço de aproximaçãode uma forma (“conformação”?), de algo com que o personagempossa se identificar, enformar-se, tornar-se sujeito, signo irmanadocom a morte inerente ao ato da narrativa. Vejamos como.

No início de sua odisseia, Alexandre tenta se encontrar deforma errática. No entanto, seria simplório afirmar que aquelabusca ocorre como uma descoberta pessoal, como um processode crescimento de um personagem em conflito com o mundo eque, vendo-se incomodado com dado estado de coisas, tentatransformar o que está à sua volta. O herói adonisiano não resistee dobra-se às normas conhecidas por ele. Sagradas como aspalavras do bruto Jerônimo, ele se vê incapaz de contrapô-las. Emvez disso, o herói se molda, mimetiza-se com os hábitos de quemvive no Vale, pois a maneira mais primitiva de se ver identificadocom algo é mimetizá-lo.

Assim, os primeiros movimentos de Alexandre são no sentidode representar (aqui no sentido de repetir ou replicar) o mundoconhecido por ele. O problema do personagem é que ele, quemsabe por herança de Abílio, homem de travessias, aos poucos percebeque não consegue se identificar com o modus vivendi do Vale, o quefrauda aquela mimesis (estranha coincidência: ele, futuro ser de papel,nega o princípio básico da representação). Ele buscava se enformaràquela leitura de mundo, mas, esforço malogrado, Alexandre vê-seincapaz de sobreviver às possibilidades que lhe são apresentadas,tanto ao mundo do Vale quanto ao seu avesso. Passa a não pertencera nenhum deles. Sua busca é só destemor, sem chance de sucesso.

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No entanto, esse insucesso, a impossibilidade de homeostasedele resultante, aquilo que aparentemente era sua perdição, será seumote, sua salvação. Será a chave de sua afirmação como ser delinguagem, vislumbrador de interstícios, habitante do fora de suasdúvidas, quando lhe será permitido vê-las, aceitá-las e compreender-se como ser em des / reconstrução, tal como a linguagem, da qualprovém seu próprio barro.

E ouvi que dizia, em minha voz natural, mas dizia muito baixo: “Já nãosou o mesmo.” Entre os dois, o que se despedira de Jerônimo nafronteira do vale e o que agora despertava, havia mais que um intervalono tempo. Havia a morte, eu sabia. Estivera sepulto e não escaparatotalmente à cerração. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 127-128)

A porção final da citação (“Havia a morte, eu sabia”) ratificaa proposição da morte como alegórica, estatuindo em Alexandre opoder de signo de linguagem em trânsito.

Uma proposição fácil também poderia impor à crítica a ideiade que Alexandre desejasse conhecer um “outro mundo” que nãoaquele sabido por ele; que, a partir daquele conhecimento adquiridopela experiência naquele “mundo novo”, suposto por histórias (quepor vezes se confundem com lendas) contadas por Jerônimo, oprotagonista voltasse de sua jornada, armado com um saberproibido àqueles viventes do Vale, e transformasse aquela realidade,transgredisse aquela forma de vida e a tornasse mais justa, oureinstaurasse aquele universo com a delicadeza aprendida. MasAlexandre não vem da mesma origem de Ulisses, muito menos sesupõe que fosse essa sua pretensão. O herói de Memórias de Lázaronega-se como herói clássico. Não sai do Vale do Ouro com aproposta de aprender, voltar e transformar: ele apenas sai movidopor uma força que desconhece, que não domina. Sua motivação é amesma da lava que transborda do vulcão, movido por forças abaixodele e à sua volta que não domina. Não tem em mente voltar, não há

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Penélope ou Ítaca aguardando seu retorno. Alexandre parte sem apossibilidade do retorno, parte apenas porque precisa.

Resgatem-se mais exemplos da tradição literária e veremos queseus personagens sempre almejam o retorno àquele mundo conhecidopor eles antes de sua epopeia. A Alice de Lewis Carroll, mesmo quandonaquele mundo do negativo (no sentido técnico da fotografia) do mundo,sempre desejou o mundo de fora do espelho. O Chapeleiro Louco ouo Coelho Falante são personagens que a menina precisa encontrar paratornar-se forte, para alcançar a compreensão do rito de passagem dainfância para a puberdade e retornar ao mundo conhecido, mezzo mulherreinstaurada que é ao fim da narrativa. Igualmente Dante Alighieriadentrou o Inferno em busca de sua Beatriz, mas seu desejo sempre foiretornar. Alexandre, ao contrário, encarna a própria travessia para onegativo daquilo que vive, só busca o “outro lado” do seu mundo paraconhecer seu inverso, alma em eterno desouvrement.

O que seria a ruína de Alexandre (a desconstrução que se operano personagem) se torna sua salvação – não a salvação medianamentecompreendida, aquela que se opera graças à paz proporcionada aquem a alcança, mas uma salvação imposta pelas perguntas que seinstauram no personagem e que transformam seu ser num reino deconflitos. Alexandre sai do Vale eivado de afirmações e verdades,confirmadas pela palavra de Jerônimo, e retorna apenas carregandoperguntas. É certo que seu desejo é encontrar respostas no opostodo mundo do Vale, mas ele não as alcança – apenas as aguça.

Assim, Alexandre, no falar glissantiano, criouliza-se. Ou:amalgama suas experiências, tornando-as fragmentos, porções queassumem acima de tudo sua incapacidade de apreensão dos universaisa que até então estivera acostumado. Ao ver frustrado seu projeto,vê-se desabilitado para ambos os mundos conhecidos e encarna afigura do homem sem alternativas – afastado daquela de conformaçãocom um mundo dado – e se vê frente a frente com a imprevisibilidade.

A transmutação operada em Alexandre em ser de linguagemo aproxima daquele amálgama identitário concebido por Glissant.

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Ele consegue, à revelia do poder daquela palavra cristalizadora deJerônimo, aceitar a possibilidade de existência de um mundo diversoe de uma outra lógica, mesmo que esse vislumbre o leve à incerteza.É a imprevisibilidade rizomática, percebida no aceite do amálgamade espaços que habitou, que vemos sobrepujar a experiência radicularancestralmente vivida pelo personagem.

O embate raiz-rizoma surge patente, especialmente no momentofinal da obra. Nele, entrevemos a inconstância do mundo das palavrasadentrando o protagonista, que se transmuta em signo – elementomais identificado com a assunção de sua origem multifacetária,significante e significado, palavra e mundo, do que com suas formaçõesde origem, apegadas a um tempo e um espaço claramente definidos eexcludentes, pois afirmadores de uma identidade. O canal de lodofigura, portanto, como a afirmação de uma negação. Negação, poisse afasta de asserções que excluem, apartam e obstroem a apreensãodos mundos de Alexandre como regiões de dúvida e deimpossibilidade da obtenção de resposta única.

O apego às asserções, presente na palavra de Jerônimo, agoraé suplantado pela chance de mudança de paradigmas do mundode Abílio, que aos poucos se trama, de lenda para realidadepossível. A conciliação pela liberdade, esta posta ombro a ombrocom a finitude estabelecida no suicídio de Alexandre no canal delodo, se frustra nesse momento, só se consumando nas últimaslinhas da narrativa.

A morte, para Alexandre, é sua utopia; é nela que ele se fundae funda seu universo (identificado com aquele instaurado pelaoperação literária, proposto por Blanchot); é nela que ele se tornaáspero, personagem com textura, reagente a toques, distintodaquela conformação atávica da qual era vítima. Essa escolha porum ideal de liberdade é uma caixa de Pandora ao avesso paraAlexandre: seu destravamento potencializa fantasmas que eleacreditava inertes, e essas aparições permitem que ele sedesvencilhe daquele movimento de conformação atávica.

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Adonias Filho mostra-se irmanado com as bordas, pois éperiférico tanto como brasileiro (periférico em relação às naçõesditas desenvolvidas) quanto como nordestino (um periférico em umanação periférica). As marcas de formação do autor baiano ficamsalientadas primeiramente na construção enunciativa de seuspersonagens, que prescinde da utilização da variante linguísticaesperada e entroniza a norma instituída da língua – estabelecida,como se sabe, pelos estratos linguísticos hegemônicos. Além disso,o fato de pertencer à classe dos que estabeleciam as leis “de ferro”para aquela sociedade (nordestina, rural, ancorada em regrassuprainstitucionais de relacionamento social e submissão) igualmentetransparece em seus romances, estruturalmente construídos comoque por poderosa argamassa. Não são obras abertas, as adonisianas,mas construtos bem organizados e, neste particular, maisidentificados com os romances produzidos até o século XIX. Suasobras divergem das que podemos verificar em outros escritores doperíodo, ou anteriores, que permitiam que a experimentação atingissea estrutura de seus romances – Joyce (Ulisses) e Faulkner (O som ea fúria) são exemplos dessa “descorporificação” nas fundações (seformos compará-los a casas) de seus livros.

Denotaria descuido uma abordagem de Alexandre,personagem irrompido do solo realista moderno regionalista, semreterritorializarmos sua travessia no espaço (rural, nordestino) emque se move. Esse lugar é caracterizado pelas relações de poderexistentes no interior cacaueiro brasileiro, reestruturadas, como jáse disse, pelas transformações políticas sofridas pelo país. Alexandrecarrega um novo crivo do binômio personagem-linguagem, poisajuda a traçar a distância entre o regionalismo de origem e o “novoregionalismo”, do qual Adonias Filho é representante, sobretudopela via do foco narrativo de matriz faulkneriana.

Em seu conto “O túnel”, o escritor suíço Friedrich Dürrenmatt(2006) alegoriza o século XX e profetiza um terceiro milênio demuros derrubados e de ideologias fraturadas. O conto trata de umaviagem de trem. O comboio parte e, após minutos de viagem, entra

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num túnel. Em vez de seguir rumo à saída do túnel, como era de seesperar, o trem mergulha num abismo sem fim. A ambiência danarrativa avança como um duplo dos vagões em sua viagem zunentetúnel adentro: acelera, pressuriza, arrebata, assusta, embriaga. O túnelentão passa a descer mais verticalmente e o desespero do protagonistase exponencia em sequência. A viagem túnel adentro passa a seruma queda em direção às entranhas da Terra, e o trem entra veloznum mundo de pedra que não se sabe onde e se um dia vai acabar.Em dado ponto da narrativa, o personagem pensa com seus botões:“Aparentemente nada havia se alterado, mas na verdade o poço jános havia engolido para suas profundezas” (DÜRRENMATT, 2006p. 87). Aqui a leitura nos levaria à alegoria do percurso humano que,inconsciente de sua trajetória rumo à destruição apenas avança, cego?Ou pode-se descortinar, a partir do texto de Dürrenmatt, a imagemdo século XX, tradutor da transformação do homem em peça deum jogo composto por dois grandes jogadores, cada um julgando-se dono de uma verdade? Ou, enfim, uma alegoria da experiênciada literatura, que nos põe frente a frente com o desconhecido danatureza humana e nos impõe a morte como forma de compreensãodo mundo? Círculos infernais, travessias ou mergulhos rumo a umponto de chegada que não existe, as travessias de Dante e dopersonagem de Dürrenmatt são a mesma do heroi adonisiano, aquiidentificada com o abismo necessário à própria manutenção daliteratura enquanto atividade humana. A morte aqui figura como oelo entre o homem perdido do princípio da obra de Adonias Filhoe o personagem autenticado por suas hesitações das últimas páginas.

“Não se trata de uma exposição da memória involuntária,mas do relato de um aprendizado”, sugere Deleuze (DELEUZE,2006, p. 3).

Assim, a memória do Alexandre-Lázaro não o permite apenasvoltar-se para o passado, mas igualmente galgar o futuro, ainda quea força pretérita se faça presente, como no anjo de Klee. O enigmade Alexandre não está no Vale do Ouro, nos seus cavalos selvagens,em Jerônimo, Natanael, Gemar Quinto ou Rosália. Não é a síntese

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de uma existência, mas sua negação, a assunção do nada inerente aoseu trânsito na palavra da literatura. Alexandre declara-se mortopara os mundos e as palavras com os quais teve contato quandomergulha no mistério da própria morte e autoreinstitui-se comoelemento de uma poética, indagador, habitando um espaço estéticoatrelado ao mundo narrativo do autor baiano.

O saber, no protagonista de Memórias de Lázaro, não éseguro e jamais admite conclusão, irmanando-se com a rechercheproustiana. O que diferencia o Bildungsroman, canônico, da“formação” sígnica de Alexandre é que esta última aponta para umfim sem alcançá-lo, jamais completa o círculo, espirala-seinfinitamente como o túnel fantástico de Dürrenmatt. Ela manifesta-se como quebranto, na inanidade de suas tentativas. Pode-se entreverapenas algo como um personagem ciente de suas impossibilidades(como Rosália, Natanael ressuscitado ou Jerônimo, que se apresentamcomo reinstaurações impossíveis), sobretudo quando diante dovalão. Nesse momento, a morte assoma como sua Beatriz, seu “aindanão”, sua busca incessante, nunca um descanso, movimento vão. Amorte figura como intento último de formação do sujeito Alexandreque, desabilitado para o mundo real, torna-se ser de linguagem(FOUCAULT, 2009, p. 222).

Alexandre torna-se “mais real que própria realidade”, comoBlanchot afirmara. Aqui se trata de uma dimensão essencial ao vínculocom o território e seu momento histórico dar conta das linguagens,possíveis, que o dizem e o refazem.

A dor da pedra

A segunda premissa de Alexandre figura como um negativo daprimeira. Em seu “primeiro mundo”, o vale e a estrada surgem comoa espinha dorsal em volta da qual transitam, como zumbis, buscandoum significado para suas existências, seus personagens “minerais”:

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cristalizados pela dor sem se aperceberem dela, monólitos de pedraque, num primeiro momento, parecem impenetráveis, mas que,pouco a pouco, por força de uma tessitura paciente de ourives, deixaentrever-lhes, e sob eles, como que lençóis freáticos nas quais sãoescaldadas suas tragédias.

O vale e a estrada não perfazem apenas um espaço, geografiafísica na qual a trama se desenrola. São a motivação para aconstituição de um ambiente mental atormentado que persegue oprotagonista desde as primeiras linhas. Ao vale e à estrada,completando uma trindade que acorrenta os homens àquele espaço,temos o vento constante e enlouquecedor. Tal tríade consubstanciao locus por onde transitam aqueles personagens-zumbis. Espaço queé mágico, poderoso e, como já dissemos, sacralizado pelas asserçõesde Jerônimo, e nega a tradição naturalista clássica, pois vemos aquipersonagens que, sob o manto de uma pedra insubmissível, revelamas dores de quem não se constitui como cidadão do mundo.

A zona cacaueira baiana, espaço dominante, sobretudo noslivros da chamada “trilogia do cacau” de Adonias Filho, serve comosuporte para uma exploração da alma primitiva. Glissant refere-se aesses espaços como amálgamas telúricos, lugares plenos de violênciae pobreza historicamente institucionalizadas e de interpolaçõesculturais diversas.

O marco divisório de estilos espaciais (dentro e fora do Valedo Ouro) permite, por deslocamento, aproximação com o conceitode espaço literário blanchotiano. O primeiro espaço se opera graçasà representação clássica, um exercício realista de cânone, em oposiçãoao segundo espaço, fomentador de dúvidas. Há momentos danarrativa que permitem que se questione se esse segundo espaçonão seria pura imaginação, tão desatrelado do mundo conhecidopelo protagonista.

O Vale do Ouro, porém, era uma miragem. A dolorosa miragem geradapela mata. Podia-se acreditar em muitas coisas, naturalmente. Havia o

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mar, por certo. Existia uma cidade como Ilhéus, era verdade. Mas,quem podia crer em um vale seco, eternamente fustigado pelo vento,habitado por homens brutos e cavalos selvagens? (ADONIAS FILHO,1978, p. 139)

Assim, o Vale e o extra-Vale por vezes se confundem por serinapreensível a definição do que é o imaginário e do que não é; deque espaço pode ser considerado como literário, da linguagemressignificada, e do outro, espaço do “real”. Lembre-se daobservação de Terto, quando afirma ser o Vale ideia de loucos: aqui,caracteriza-se o vale como ficção, “estória”, lenda, universofantástico.

O momento do retorno de Alexandre ao Vale ratifica asuposição de que aquele espaço seja puramente naturalista não temfundamento. A distância que separa o Alexandre do início danarrativa desse personagem que retorna ao Vale é imensa, e espelhaa diferença entre a influência que o personagem sofria daquele espaçocom a que sofre quando de seu retorno a ele. Nesse terceiromomento da narrativa, o duplo de Alexandre vislumbra o abismo,as realidades anteriores e posteriores à experiência de sua travessia,o que faz com que o anjo de Klee novamente emerja como imagemà perfeição.

O Vale, assim, assume inicialmente para Alexandre o estatutode um lugar / mundo / espaço atávico, único possível ou imaginável.Posteriormente, suas experiências exteriores transformam ambosos lugares habitados por ele em alternativas crioulizantes do odisseuadonisiano. Os monólitos espaciais transmutam-se em amálgamaspor onde os seres se movem, possibilidades de contato com o carátercompósito de uma morte figurada, ocorrida no lodo. Nesse ponto,inclusive, é curioso perceber que a morte figurada une-se à idéia demortificação do corpo, pois o elemento utilizado para essa duplaoperação é um canal putrefato – que é identificado com a mortefísica, esta trespassada por líquidos, gases, miasmas e tecidosexplodindo.

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O movimento de Alexandre rumo à memória reinstalada oaproximam do leitor, que passa a ser tido, neste movimentocentrípeto de interiorização e compreensão de seu universo, comoseu principal interlocutor, cúmplice maior. Essa operação é reforçadapelo fato de a voz de Jerônimo, fora do Vale, aos poucos tornar-sequase inaudível, fazendo com que Alexandre mergulhe cada vez maisprofundamente em seu universo de interrogações e devaneios líricos,perdido que está no labirinto de uma memória problemática e, porisso, rica de elementos. Alexandre incorpora ontologicamente aimprevisibilidade: o periférico tem seu aprendizado consumado pelanarrativa.

É nesse momento que a segunda premissa se agudiza. O quefundamenta a ordem do espaço fora do Vale é a palavra de Natanael.Com o mesmo sentido de palavra sagrada, ela fundamenta uma “novalógica”. No entanto, deve-se atentar para o perigo de cair numacontraposição simplória de universos opostos. Para isso, propomoso resgate da alegoria do espelho, compreendida como fronteiralíquida não-cindante. Se ela derroca o conceito de domíniosautoexcludentes, declarando-os pertencentes ao mesmo meio, comoas superfícies acima e abaixo de um lago, e predispondo-as atranscomunicações como ocorre com os fenômenos de evaporaçãoe precipitação da analogia do lago, igualmente a obra, a linguagempor ela utilizada e as teorias de que se lança mão para o trabalhocrítico, antes de serem considerados elementos apartados entre si,compõem movimentos cíclicos e amorosos de aproximação,provocando ampla legitimação: da obra, da linguagem, da teoria.

A segunda premissa (a palavra de Natanael) não serve apenaspara ressaltar uma diferença de episteme entre dois universosdiferentes. Também aqui cairíamos na solução fácil da oposiçãoclaro-escuro. Esta segunda palavra também sacraliza uma lógicade mundo, e serve a Alexandre para desfazer suas cristalizaçõeshistóricas e esmaecer o poder da palavra sagrada anterior(Jerônimo). Já em casa de Natanael, Alexandre questiona o poderdas duas palavras: “a comparação que interiormente surgiu não

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foi entre o vale e a nova terra, mas entre Natanael e Jerônimo”(ADONIAS FILHO, 1978, p. 150).

A palavra de Natanael desfaz a certeza do mundo doprotagonista e nele cria dúvidas. É a palavra do caos, contrapondo-seà palavra da ordem. Enquanto a primeira nega o passado e o futuro,atendo-se apenas a um presente imobilizante e determinante, a segundapremissa permite ao protagonista o vislumbre da malha do tempo;permite-lhe, enfim, tecer pontos de contato entre aqueles elementosque o constituíram como ser – Jerônimo, Abílio e sua mãe, Rosália.No entanto, essa operação não ocorre afirmativamente, não se impõecomo outra verdade emudecedora de outras vozes. Ela apenaspredispõe Alexandre a aceitá-la como “um outro lado”, outra voznaquele mundo plurívoco recém-aprendido pelo protagonista.

Ressaltamos aqui uma característica libertadora para estasegunda premissa, pois, ao descristalizar uma sacralização (afirmadapela palavra de Jerônimo, legitimadora do mundo aparentementeinquestionável do Vale), ela se mostra, a um só tempo, sagrada elaicizante. Menos complicada a compreensão de seu caráter sagrado,pois facilmente se verifica que ela institui uma ordem – mais suave,menos assertiva – e autentica um “eu falo” daquele mundo, a seumodo tão cosmogônico quanto seu antecessor. As palavras deNatanael é que substantivam aquela sacralização, ao afirmar a lógicada delicadeza, que acaba por tomar o lugar da anterior liturgia daaspereza presente no espaço do Vale. Ela é que permitirá, ao cabo,que o protagonista consiga, mesmo que ainda identificado com suaantecessora natureza de pedra, vislumbrar a dor de sua assunçãocomo ser de linguagem; assunção que demandará o enfrentamentoda sua própria finitude.

Utópica, sua morte será sua consagração como ser de papel,ser estético e amoral. Ainda “mineral” (pétreo, duro) como os demaisviventes do Vale, Alexandre passa a admitir, em um esforço poéticode compreensão da sua existência, a dor que sente, as perdas queamarga, as memórias que teimam em se dissolver em sua tentativa

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vã de viver apenas apoiado em reminiscências, algumas que nem lhesão próprias, como aquelas ouvidas da boca de Jerônimo, semamparo de uma visão de seu futuro.

Por que adjetivamos a segunda premissa de laicizante? Digamosque ela aja como um negativo, um oposto que combate aquela vozsagrada do mundo antes conhecido pelo heroi adonisiano, e o auxiliea desbotar aquela ideia sagrada que trouxe do Vale, que, no entanto,ainda ecoa nas palavras de Jerônimo que o acompanham.

Em termos estruturais, a palavra de Natanael é fundamentalpara a narrativa, pois a desestabiliza, torna-a inerte a cristalizaçõesfáceis a que algumas narrativas se permitem: sem ela aquele primeiroespaço, duro, do Vale, não teria opositores e dominaria a estruturada obra, que se mostraria uma reedição categórica de um naturalismoultrapassado. É essa segunda premissa / palavra que confere odinamismo e o interesse que a obra desperta, ao transformar o unoem duvidoso, a cristalização em devir. Ela se mostra tão fundamentalpara a obra quanto o segundo espaço habitado por Alexandre o épara o espaço do Vale, retirando-lhe aquela aura naturalizante.

Este duelo entre as duas palavras mostra-se ontológico, poissitua em Alexandre o vértice de duas formas de ver o mundo. Oherói de Adonias Filho procura definir e compreender seu destino,quase sempre sem consegui-lo. E talvez nem seja essa sua pretensão.

A morte e a morte do Lázaro

O essencial de Memórias de Lázaro é aquilo que aparentaser seu pano de fundo: nessa argamassa usada para sua construçãosubjetiva, na montagem caótica do mosaico-Alexandre, a mortesurge como única saída, uma vez que o distancia de uma interioridadesuperficializante e o encaminha para a liberdade do olhar daexterioridade, para o lugar de fora, onde, conforme Foucault (2009),desaparece aquele que fala.

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A linguagem literária escapa do discurso cristalizador eaprisionador, debate-se contra a prisão da representação e sedesenvolve a partir dela mesma, no mesmo movimento em que seafasta de si, dispersando-se e deslegitimando-se como verdade,afirmando-se como continuum e revelando sua máxima clareza. Énesse ponto que emerge a morte como caminho do encontro dosigno literário com seu próprio vazio, lugar máximo da afecçãoliterária. Nesse percurso, a morte não se apresenta como portadorade uma resolução final, um construto engessado ou um fim em si,mas como desconstrução de afirmações definitivas, desouvrement. Emsua trajetória, o protagonista, analogamente ao Dante da Divinacomédia , perpetra travessias – círculos infernais deensimesmamento, de autocompreensão. Podemos entendê-los comoespirais verticais rumo a um suposto interior abissal, antesinescrutável, que o levarão ao vislumbre de seus conflitos interiores.

Cabe a pergunta: quem foi o “professor” de Alexandre? Quemlhe forneceu uma pista que fosse para que se dispusesse a enfrentarseu fim, ser de carne que se transubstancia em ser de papel? Quem,se a morte estava todo o tempo presente para Alexandre, fosse noscavalos selvagens executados sem dó ou na filha que assassina opróprio pai, poderia lhe ter enviado sinais de que a morte lhe poderiaservir para vislumbrar-se como sujeito / signo? O que faltava aAlexandre aprender, ou por que ainda não o fizera?

Podemos aqui nos voltar para Gemar Quinto, o leproso doVale. Emblemático, ele já percorrera, no início da narrativa, todosos círculos infernais que Alexandre ainda percorreria. No entanto,o heroi de Adonias Filho não suspeita dessa experiência prévia. Emvez disso, apenas o julga, excluindo-o, como todos o fazem. Gemarnão merece o discurso de Alexandre, que acredita estar acima dele,ser melhor que ele, julgamento afinado com o dos demais habitantesdo Vale. Nem desconfia que Gemar é mais sábio, pois já aprendeuo que ele ainda não aprendeu: Gemar é a morte em si, carrega-a nocorpo, que é sua linguagem, sua forma de se afirmar como signo

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naquele mundo. Ademais, Gemar Quinto é mal visto, julgado eexcluído graças ao interdito que a morte representa para o homem(Cf. ARIÈS, 1989). O leproso encarna a morte da narrativa em vida,é como a clepsidra de Sêneca que permite ser perpassada pelo fiode água anunciador do fim, íntimos amantes.

Ainda levará tempo até que Alexandre adquira a sabedoriaque a morte iminente já ofereceu a Gemar. O leproso já se serviu daceia da morte e se delicia com o sabor que por vezes lhe retorna àboca; é um personagem que funciona como um aviso silencioso,premonindo o caminho que se insinua ao andarilho. Os mesmosabutres que se trancam com o corpo já morto de Gemar em suacasa também andarão em círculos sobre Alexandre em seu retornoao Vale. Os signos da morte, da necessidade de transfiguração doheroi de ser real em ser estético mostravam-se a todo instante a ele,que precisou de todo o percurso da narrativa para conseguirdecodificá-los.

É desse aprendizado da própria nulidade, do vazio que seinstala, da escuridão da qual emerge a luz ofuscante que deslinda oscaminhos da operação literária, que se articula com o efeito negativoda morte sobre a vida, que falamos. A partir desse trajeto dedispersão do ser real em ser de papel, signo, possibilidade,desconstrução, é que se trama a morte na narrativa desta análise. Amorte plana, cotidiana, de podridões e adeuses emocionados poucocontou para a nossa investigação. Morte como distúrbio, distensão,afastamento, expansão infinita, (re)criação de mundos,desentronização de qualquer positividade, reino da pergunta e dodesaparecimento do sujeito para o surgimento do ser da dúvida eda hesitação, matérias-primas de toda arte. É disso que trata a obra.É esse o fio que a torna obra.

Por fim, assinalamos que o caminho de Alexandre é cego, poisnão há oráculo que lhe antecipe os passos – ou se há, como é o casode Gemar Quinto, Alexandre não lhe dá atenção, o que torna seuintento puro fracasso. Antes disso, vemos mais um aprendizado pelo

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erro, pela falta de caminho a ser seguido e, sobretudo, pela distração;o personagem de Adonias Filho nega o estatuto clássico do heroi enão prediz o percurso que fará, nem ao menos sabe se um dia viveráum retorno ao lugar de onde veio, vivendo mais movido porverdades repetidas ao cansaço e menos por perguntas. Estas últimasdemorou a aprendê-las e, quando o fez, entregou-se ao vazio. Perdidoque estava em seus faróis voltados para trás, suas reminiscências –estas sim sua perdição. Por isso desprezamo-las: são mais desvio,miragem, que projeto de vida ou rota de análise. Em vez de,amparado pelas operações pretéritas, fazê-lo voltar-se para aspossibilidades do futuro, as memórias amarram-no ao já vivido numaespiral infernal de interiorização e ensimesmamento sem Beatrizalguma a alcançar. Isso o imobiliza e o impossibilita.

A verdade e a morte: da raiz ao rizoma

Não há logos, só há hieroglifos. Pensar é, portanto, interpretar,traduzir. As essências são, ao mesmo tempo, a coisa a traduzir e aprópria tradução; o signo e o sentido. Elas se desenrolam no sentidopara serem necessariamente pensadas (DELEUZE, 2006, p. 95) ATerra precisa da cultura do Amálgama.(Jorge Mautner)

O exílio do protagonista de Memórias de Lázaro lhe permiterever a ordem do seu mundo, constrastando-a com a lógica domundo exterior, o “mundo de Abílio”. Isso o leva a um mergulhono caos das realidades múltiplas. A despedida de Jerônimo abrecaminho para a entrada de uma nova lógica para Alexandre:

– Do outro lado, o mundo de Abílio – disse.Não me apertou a mão, nem seu próprio rosto distingui dentro dastrevas. Afastando-se, regressando ao vale como se não pudesse escaparda prisão, exclamou com a voz tão forte que pode vencer a pancada dovento:– Vá com os poderes da sorte! (ADONIAS FILHO, 1978, p. 112)

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No fim, como na filosofia, nunca se chega a uma certeza quebaste. Podemos entender aquelas “outras verdades possíveis” comopeças que compuseram ou comporão outro jogo de imagens que seperdem numa narrativa baseada em memórias, num carrossel deafirmações que se contradizem e se reerguem, castelos de verdadesdestronadas por possibilidades que não se assentam em fundamentos– as “abstrações do pensamento” de Nietzche.

A memória se mostra fragmentária, como fragmentária é apersonalidade do Lázaro protagonista. Essa característica“lazariana”, remetendo ao personagem bíblico ressuscitado,igualmente o afirma como personagem duplo de si mesmo, antes edepois da morte (ou das mortes, se entendermos tanto suas travessiasde e para o vale quanto seu fim no canal de lodo como mortespossíveis), como o personagem de Umberto Eco2, náufrago quenão naufraga, imobilizado num navio encalhado no fim do mundo.A morte que mais nos interessa, no entanto, escapa à pura teia danarrativa, localizando-se na transformação do protagonista em signode busca.

Assim, em Memórias de Lázaro, se existe a verdade, elaestá na morte: seja a morte no canal de lodo, real, seja a morte dohomem para o seu trânsito como signo: a morte do signo e ossignos da morte. A primeira preexiste à própria narrativa e delatira seu poder. Os seguintes, distribuídos pela trama graças a GemarQuinto, Rosália, Roberto, Natanael e Jerônimo, dentre outros,acercam-se daquela para lhe dar substância estética. Esta é averdade da obra, o fio tramado no poder da narrativa sobre arealidade. A filosofia e a estética aqui se juntam para dar potênciaao universo selvagem do sertão rural de Adonias Filho. Universoque, num mesmo movimento, se aproxima e se distancia doregionalismo da tradição, que

2 Referimo-nos ao piemontês Roberto Pozzo, personagem protagonista de A ilha do diaseguinte, de Umberto Eco.

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(...) acaba trabalhando muito perto do mundo empírico, da mimesepropriamente dita, dificultando a reinvenção do imaginário (...) trabalhasempre a um passo da estereotipia da paisagem, da personagem e daação, da reprodução da linguagem, seguindo de perto o imaginário quese encontra pronto. (VICENTINI, 1998, p. 42)

O regionalismo adonisiano aproxima-se da tradição quandoapresenta um espaço que, visto preliminarmente, determina as vidasdos seres. Mas seguir por essa análise trata-se de outro equívoco. Oregionalismo do autor baiano, à semelhança de João GuimarãesRosa, não busca retratar um mundo; o universo rural adonisiano,com suas regras de brutalidade e seus códigos de vingança, apresenta-se tão-somente como suporte para a operação estética do autor deMemórias de Lázaro, que, no trato com seu personagem principal,toca no essencial: cansado de sua existência de animal, Alexandreconsegue, naquele universo marcado e movido pelo trágico, entregar-se à sujidade do canal de lodo e determinar a impossibilidade dedar respostas definitivas à sua vida. Igualmente se aproxima daimagem do homem contemporâneo, que ultrapassou aquela posturalukacsiana de ser problemático lutando contra um mundo, para enxergara realidade como fragmento, espaço de fissura que impede suacompreensão e desabilita totalidades.

O canal de lodo: o puro e o podre aqui se unem para que osigno da morte se aposse das angústias do protagonista, exponencie-as e as lance àquele vazio de sua própria negação. Se reassinalarmosos conceitos de raiz e rizoma, podemos por analogia identificar odesejo da busca de uma verdade única com a “identidade-raiz” deGlissant, dominadora e sistemática, que não admite outras vozes.Sua afirmatividade e inquestionabilidade mostram-se inábeis paraexplicar o mundo de Alexandre.

A outra lógica se identifica com o conceito de rizoma: não háraiz única, afirmação positivante, mas busca de outras possibilidadesde raiz, verdades que não podem jamais se afirmar como verdades,pois, assim fazendo, perdem sua potência de fazer questionamentos.

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No meu entendimento, essa proposta significa sair da identidaderaiz única e entrar na verdade da crioulização do mundo. Penso queserá necessário nos aproximarmos do pensamento do rastro / resíduo,de um não-sistema de pensamento que não seja nem dominador, nemsistemático, nem imponente, mas talvez um não-sistema intuitivo, frágile ambíguo de pensamento (GLISSANT, 2005, p. 29)

Assim, o canal de lodo representa a opção-rizoma do Lázaroperdido, sua possibilidade de se ver em vários espelhos, universosparalelos que, antes de se excluírem mutuamente, aceitam seusafastamentos. O tema de Memórias de Lázaro é a busca da verdadepela via da morte (pela aventura do signo que se afirma negando-se); busca de uma verdade que, à medida que a narrativa sedesenvolve, vai-se mostrando mais delicada e quebradiça,reordenando aquela busca não mais para uma afirmação derradeira,mas para a aceitação do ambíguo e do rizomático imprevisível. Aobra trata igualmente da busca de um homem que, imobilizado emações pretéritas, debate-se para se libertar de suas memóriasfragmentadas. O protagonista traça seu trajeto como uma linha quevai da afirmação à dúvida, do sim ao não. Mais importante que amorte física de Alexandre é seu caminho para ela, identificada que écom a incerteza e com o não.

Essa negação e esse vazio nos remetem por analogia ao contode Dürrenmatt: como no túnel fantástico do escritor suíço, odesespero de Alexandre fica mais potente frente à indiferença dosoutros. Exemplos disso: Jerônimo, indiferente à razão do retornodo protagonista ao Vale do Ouro, mais preocupado que está com areação à notícia; os irmãos Luna, impassíveis ao sofrimento doscavalos selvagens; Rosália, insensível à sua culpa por ter matado opróprio pai ou por tê-la imputado a Alexandre.

Naquele mundo, a apatia é a negação de uma lógica que afirmaa (a)imoralidade de se matar o próprio pai. A negação (o não damorte), ao mesmo tempo em que encaminha o protagonista para oseu encontro como signo, o expõe a toda sorte de dúvidas.

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(...) alastrou-se o conflito entre um corpo destrutível e uma alma semgoverno. Soube, naquele momento, que poderia humilhar o mundo –bastaria enlouquecer e matar a realidade. Antes, porém, teria que agonizar.E foi a agonia mesma que se iniciou quando, com os pés nus, comeceia travessia, dolorosa e interminável. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 113)

Deleuze afirma que o signo é o objeto de um encontro(DELEUZE, 2006, p. 91) não passível de síntese, mas pleno dedissipações. Assim, o que seduz na compreensão de Alexandre,como signo se debatendo na tormenta da narrativa, é o fato de elenão se encerrar numa afirmação, mas se embrenhar na criação delinguagem, neste movimento envolvendo a busca e sua esperadadispersão.

Por isso, é no mínimo suspeito afirmar que, em suas últimaspáginas, Memórias de Lázaro traduza Alexandre como personagemque alcançou a verdade. Em vez disso, apontamos que o heroi deAdonias Filho tenha achado um caminho para a afirmação de suasdúvidas.

Agora, unicamente o maravilhoso caminho, aquele caminho que se nãopode comparar à estrada do vale, mas o caminho que se abre, aos meusolhos, pela mão de Abílio, meu pai. Vejo-o, na frente, a guiar-me. Emvolta, o que resta é negro. O meu pobre coração já não enxerga, inúteisas minhas mãos – não mais doem, no meu corpo, as feridas. O cérebronão interroga, a língua não fala. Mas andam os pés, vagarosos.(ADONIAS FILHO, 1978, p. 161)

O inferno e o paraíso são imagens afirmativas e excludentes, eencaminham o pensamento para uma afirmação-raiz. Negro ebranco. No entanto, as travessias de Alexandre, antes de o levarema respostas que o coloquem numa espécie de paraíso ou oencaminharem a um inferno de existência, inserem-no em seupurgatório. Essa região cinza, rizomática porque distante deconclusão unívoca, lugar não-território como o que quer Glissant,

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no qual a diversidade do autor martinicano, se oferece como aalternativa de imprevisibilidade, como se vê na narrativa adonisiana.

Entrevemos o conceito deleuziano de rizoma e osencaminhamentos teóricos de Glissant (notadamente o decomunidades compósitas) servindo de lentes para se observarAdonias Filho, mais detidamente o Vale do Ouro. Espaço dominanteda narrativa, o Vale identifica-se com os traços culturais demestiçagem dos quais aquela população surge como resultante.

É certo que a população do sul cacaueiro baiano foi formadanos incontáveis trânsitos de comunidades diversas por aquele espaço.Os negros, vindos como escravos, ali se assentaram e se mantiveram,à revelia do fim do regime escravagista. Os brancos, identificadoscom a classe dominante da região, graças a intercursos sexuais coma população negra, fartamente abordados pela literatura, e indígenaatualmente figuram como mestiços de pele mais clara, contudo.Agregando-se a essa mescla de populações e comunidades, etniasdiversas em constante trama, ainda há os descendentes árabes,igualmente figurados pela literatura de um Jorge Amado, porexemplo, e até hoje presentes naquele espaço. É o caos-mundoglissantiano visto em microcosmo.

No entanto, é naquele espaço que a narrativa, mesmo queprovisoriamente, se territorializa. É nele que as relações são tramadase é dele que surgem as regras de selvageria explícitas nos gestos e navida daqueles habitantes. O traço mestiço dos viventes daqueleespaço os insere na região limítrofe de culturas que se batem, jamaisbuscando conforto, mas confronto – um enfrentamento com o que háde instável naqueles trânsitos intercomunitários. Esse caráterimprevisível do diverso é específico na escrita de autorespertencentes a zonas culturais compósitas3, regiões de fronteira,fenômeno cunhado por Glissant como “tormento da linguagem”

3 Interessante assinalar, neste pormenor, semelhança entre os tratamentos discursivosde Adonias Filho e William Faulkner, pois ambos se ocupam de personagens habitantesde regiões e culturas limítrofes.

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(GLISSANT, 2005, p. 131), nas quais inserimos o escritor baiano eo espaço por ele utilizado.

O “novo regionalismo” adonisiano impõe-se como elo comas experiências literárias contemporâneas, pois redimensiona oconceito do realismo do século XIX e parte do XX, admitindo amultifacetação, a indefinição de verdades apropriadas e cristalizadase a fragmentariedade, características das formas narrativas em cursona segunda metade do último século. Sendo assim, é a obra deAdonias Filho forjada graças uma escrita do amálgama, pois seidentifica, tanto no que respeita às populações por ela tratadas,quanto aos lugares por elas transitados, com os espaços, identidadese culturas estudadas por Édouard Glissant.

Aquelas populações detêm, em sua visão de mundo, asaproximações e conflitos inerentes às apropriações e trocas culturaispresentes nos espaços instáveis de resultantes imprevisíveis. Essaescritura do amálgama promove, a um só tempo, aproximações eafastamentos da tradição, ora relacionando ora distanciando-se deuma escrita embasada numa matriz regional, como simplesenraizamento em valores culturais. Admite, ora as verdades secularescristalizadas por aqueles espaços rurais, ora as incertezas e os embates,a conversação infinita de culturas, características de espaçosconcebidos por Glissant como compósitos.

Essa escrita “multilocalizada” e problemática, pois ao mesmotempo lida com resíduos de cultura e nega-os com vistas ao mergulhona diversidade, Glissant bem caracteriza, ao perguntar: “como sersi mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro semperder-se a si mesmo?” (GLISSANT, 2005, p. 28). A resposta nãopode nada afirmar, pois ela determina o modo com que as chamadas“culturas compósitas” das Américas lidam com suas herançasculturais e históricas – abortando os projetos de identidade de raizúnica que excluem aquilo com que não se assemelham, para abrirem-se à desordem do mundo, à “difícil complexão de uma identidaderelação (...) que comporta uma abertura ao outro, sem perigo de

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diluição” (Idem, p. 28), ao fenômeno da crioulização – uma tentativade sair do confinamento a que o mundo se vê reduzido.

A vocação para o trágico e para o mítico evidencia-se na escritaadonisiana, que faz uso das referências à tradição literária (como namorte de Roberto que, tendo cometido incesto com Rosália, épunido por Alexandre com a perfuração dos dois olhos, antes deser estrangulado por Jerônimo, apontando, desse modo, para aintertextualidade com o mito de Édipo). O mito da subserviênciado povo aos grandes fazendeiros é mantido, mesmo após a extinçãoou o enfraquecimento daquele poder local. Aquela ritualística desubserviência ajuda a manter a lógica da violência para aqueles quepropuserem a transgressão da conhecida reverência de “beija-mão”.

No que há de específico em Adonias Filho, os signos presentesem sua escrita remetem, a um só tempo, ao universo do regionalismobrasileiro e às propostas de renovação narrativa do início do séculoXX, como as suas experimentações de foco narrativo, jámencionadas.

A abertura de sua narrativa ao projeto moderno de construçãodo romance e a sua atuação como crítico literário, portanto, tanto oaproximam ainda mais daquelas tendências de renovação quantocriam a exigência de um olhar diferenciado porque particular sobresua obra. Seu viés de crítico literário dá força a hipóteses sobre aimpossibilidade de uma “inocência” no trato narrativo quando oautor se utiliza de recursos narrativos presentes naqueles romances“de renovação” do início do XX. Tudo isso nos obriga acircunscrever o projeto literário adonisiano na cena contemporânea,tanto da literatura quanto da teoria.

Referências bibliográficas

ADONIAS Filho. Memórias de Lázaro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1978.

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DO ASSUM PRETO E DOEUNUCOTHE BLACK ASSUM AND THEEUNUCH

Tieko Yamaguchi Miyazaki(UNESP/UNEMAT-PPGEL)1

RESUMO: O artigo pretende mostrar em que consiste o traçodiferencial do romance Sargento Getúlio, de João UbaldoRibeiro, a partir de uma breve discussão sobre o que seria hoje oregionalismo.Procura demonstrar que o romance do escritorbaiano, ao localizar eventos, personagens, momento político emSergipe (Aracaju), se distingue de boa parte dos romancesqualificados como regionalistas pela enunciação ficcional, em queo protagonista se faz sujeito de um longo monólogo que cobretodo o romance. Para isso, analisa principalmente a forma comose processa a significação metafórica de um episódio da narrativaem que o objeto é a doação de um pássaro cego, um anu preto.

PALAVRAS-CHAVE: Regionalismo. Figuras. Temas.Enunciação. Assum preto. Castração.

1 Professora colaboradora no Mestrado em Estudos Literários, Universidade Estadual de MatoGrosso (UNEMAT), câmpus de Tangará da Serra. MT. Brasil. [email protected]

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ABSTRACT: The article intends to show in which is the differ-ential trace in novel Sargento Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro,as of a brief discussion about what would be regionalismcurrently.It seeks to demonstrate that the novel by the Bahianwriter, to the find events, characters, political moment in Sergipe(Aracaju), differs from much of novels qualified as regionalistsby fictional enunciation, in which the protagonist becomes sub-jected of a long monologue that covers throughout the novel.For this, analyzes mainly the way it processes the metaphoricalmeaning of an episode inside the narrative in which the object isthe donating of a blind bird, a black anu.

KEYWORDS: Regionalism. Figures. Themes. Enunciation.Black Assum. Castration.

Tudo em vorta é só belezaSol de Abril e a mata em frôMas Assum Preto, cego dos óioNum vendo a luz, ai, canta de dor (bis)Tarvez por ignorançaOu mardade das pióFuraro os óio do Assum PretoPra ele assim, ai, cantá de mió (bis)Assum Preto veve sortoMas num pode avuáMil vez a sina de uma gaiolaDesde que o céu, ai, pudesse oiá (bis)Assum Preto, o meu cantarÉ tão triste como o teuTambém roubaro o meu amorQue era a luz, ai, dos óios meusTambém roubaro o meu amorQue era a luz, ai, dos óios meus.(Assum preto. Luiz Gonzaga)

O efeito imediato em quem lê pela primeira vez SargentoGetúlio, de João Ubaldo Ribeiro, é de encontrar-se diante de um

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romance regionalista, mas de um regionalismo diferente daqueleque tradicionalmente se costuma assim classificar. De um lado, jános primeiros capítulos toda uma geografia vai construindo o mapado nordeste brasileiro, pela lista de cidades que a personagemnarradora sabe dever enfrentar até chegar ao final de sua viagem ede sua missão. O intervalo delas, num contato direto sem perdão,toda uma paisagem vegetal vai-se configurando na tipicidadeprincipalmente das espécies de árvores nomeadas, ausentes namaioria mesmo das narrativas que focalizam a região do nordestebrasileiro. Junto a elas, o clima se traduz em calor que aderedesagradavelmente na pele, nos insetos que o exacerbam. O temanuclear logo se reconhece na personagem narradora que atravésde sua fala-monólogo vai-se apresentando: em tempos getulinos,um ex-sertanejo transformado em capanga de político na cidadede Aracaju. Vai-se ele situando no universo histórico do Brasil daprimeira metade do século XX, com seus partidos políticos a quese pode reconhecer em suas marcas maiores: confrontando-se,aliando-se, desfilam na memória do protagonista o PSD, a UDN,o Integralismo, o Comunismo.

Apesar, pois, de tais componentes que permitem situar essetexto de Ubaldo Ribeiro ao lado dos denominados romancistasnordestinos, alguma coisa, no entanto, o liberta desse encaixe fácil:a linguagem. Ainda que o efeito dela seja o de encontrar-se dianteda reprodução feliz de uma linguagem típica, regional; difícil, apósa leitura, desfazer-se do ecoo dessa voz, com seu ritmo e sotaque.

Mas, antes de focalizar esse traço específico do romance deJoão Ubaldo Ribeiro, vamos deter-nos em uma pequena reflexãosobre o conceito de regionalismo, em literatura. Sem posicionarmostaxativamente contra a propriedade do termo hoje, ou aceitá-locomo em desuso, parece-nos oportuno traçar um rápido retrospectoda adoção do termo. Situando-nos no contexto do início da Históriado Brasil e, dentro dele, do projeto de criação de uma identidadecultural brasileira, é inegável a operacionalidade do termo, uma vezque a dicotomia nós/eles - ou seja, colônia/metrópole e, depois,

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Brasil/Europa – era a mola propulsora que ditava toda açãoprogramática. Não se podia então, nem se consegue, criar nada donada: o pressuposto a essa atividade criativa era o conhecimentoconsciente da existência do outro termo – eles, lá. A diferença – quese configurava seja como uma relação de contraste ( s1 vs s2) ou decontradição (s1 vs ñs1 ) - encontrou campo fértil para suamanifestação, como se sabe sobejamente, na paisagem natural danova terra, que, por outra parte, deveria ser veiculada em uma línguatambém diferenciada. Nesse primeiro momento, um textoregionalista significava marcar e dar a ver aquilo que então sereconhecia – ou queria que o fosse - como exclusivo do espaço docá. Ou seja, a moldura dentro da qual se processava essa tensãocriativa era a do mundo ocidental.

Já os regionalismos dentro do espaço nacional, que vieramsendo propostos, na verdade não emulavam entre si; ao contrário,juntavam forças para um mesmo projeto de identidade: ainda queprivilegiando traços heterogêneos de acordo com as regiões,sustentavam a concepção de uma unidade. Uma mesma isotopiatímica prevalecia e nos orientou durante muito tempo, antes que ofoco passasse à heterogeneidade de toda ordem dentro do territóriopoliticamente demarcado, e o próprio conceito de nação fossesubmetido a revisão dentro da complexidade do país e do própriomundo. Mais tarde, pois, dentro do contorno brasileiro, com adinâmica cultural demarcando áreas de maior força, hegemoniasde várias naturezas – econômica, social, cultural -, o processo acimaapontado volta a instalar-se: agora, áreas menos privilegiadasprocuram fazer-se presentes, e assim impor-se aos seus e aos outros,através de estratégias semelhantes .

Por mais que, no balanço geral das coisas, o que vale é oproduto, que lhe assegura um lugar no quadro nacional, a qualificaçãode regionalista de uma obra serve para marcar características deuma determinada região em contraposição àquilo que se cultiva nocentro, principalmente. Ou seja, vale então a operacionalidade dotermo: se a cultura se faz principalmente no espaço da cidade, a

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oposição se traça entre urbano e rural. Se o centro de cultura é ocentro urbano, então o outro se reconhece na periferia: não é issoque indica a obra de João Antônio? Região do Brás, dizemos. Aindaque já aqui não empreguemos o termo regionalismo, de certa formasubstituído pelo de periferia. E não é o que hoje ainda embasahistórias e personagens televisivas, cuja trama se desenvolvemobilizando essas diferenças, valorizando ideologicamente operiférico, o regional, numa retomada cansativa e já estéril? A estaperspectiva espacial, na coordenada temporal seriam as chamadas“novelas de época” o seu equivalente?

O que parece ter sido reconhecido como o terreno profícuode tais marcas é o universo figurativo principalmente, recobrindona maioria das vezes temas também regionais: falamos do gaúcho,para falar de seu orgulho, de sua coragem, de sua rusticidade aliadaa fortaleza. De qualquer forma é o outro – o centro - ainda a ditaras regras do jogo, normalmente entendido como aquele voltadopara frente, para o futuro, atitude interpretada como propícia amanifestações de vanguarda, traduzida esta como expressão douniversal ou como expressão universalista.2

Isso permanece ainda quando uma comunidade nova implantauma imagem identitária, e a desenvolve através principalmente dedistintas manifestações artísticas, como música, dança, moda. Ésempre o sentimento de não pertencimento à cultura hegemônica,do centro, que move a essa busca, ao esforço de criar seu própriocódigo de valores e de figuras, podendo alimentar-se de estratégiase instrumentos no interior desse espaço para o seu enriquecimentoe principalmente consolidação. Daí a impressão de sentimento deautonomia que se exibe aos olhos dos iguais e dos diferentes.

2 Numa entrevista veiculada pela SESC TV, em 27/01/2013, no programa Sala de Cinema, ocineasta Francisco César Filho, ao ser perguntado sobre a produção cinematográfica de então noestado de São Paulo, afirma que há uma diferença grande com relação ao restante do país:segundo ele, o cinema paulista é urbano, focaliza a metrópole, vista pelo olhar do jovem, compersonagens complexas e questões como a fraqueza humana, a atitude, a ética.

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Ainda que o termo regionalismo/regionalista tenha sidoempregado com o objetivo inicialmente indicado, mesmo que a áreapressuposta não coincida com áreas geográfica e/ou politicamentedemarcadas, a operacionalidade do termo não pode ser descartadapara indicar características trabalhadas em diferentes níveis textuaise que assim possam ser reconhecidas, principalmente quando opróprio texto deixa perceber que pretende revelar ao outrofundamentalmente o mundo focalizado, com seus problemasespecíficos. Regionalista é a literatura gauchesca por contraste ouoposição à literatura praticada em Buenos Aires, ainda que a regiãoabrace partes de países vizinhos. Ou mesmo em contraste com obrasque se centralizam na Amazônia e/ou à região do Orinoco, mesmoque de países e línguas distintas: A selva, do português Ferreira deCastro, La vorágine, de José Eustasio Rivera, da Colômbia,Canaima, do venezuelano Rómulo Gallegos, Inferno verde, deAlberto Rangel, O missionário, de Inglês de Sousa, Los pasosperdidos, do cubano Alejo Carpentier, e outros mais.

Dizer que o romance regionalista traz em sua enunciação sinaisde que tem como foco revelar nos remete a uma questão particular.Não já relativa à temática nem ao universo figurativo. O que chamaa atenção é a diferença na enunciação, e nesta a figura triádica emque se instala o enunciador com o seu parceiro, o enunciatário, comrelação ao referente focalizado. Com que postura enunciativa,configurável através das imagens veiculadas, nos termos de Pêcheux,o enunciado, ou a enunciação enunciada, projeta esses atores?

Em outra ocasião numa abordagem da trajetória do índio nanarrativa brasileira, focalizamos (MIYAZAKI, 1999, p.51-2) ocapítulo denominado “Cenário” de O guarani, de Alencar, em queo narrador se preocupa com a localização espacial da história quepromete contar:

A descrição, segmentada em duas partes correspondentes aos dois trechosdo curso do Paquequer, oferece num primeiro nível textual uma realidade

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geográfica. No entanto, no nível retórico, o que ganha realce é umaideologia que o narrador vai desenhando, ainda que aparentemente semdar-se conta dela. O reparo “Não é neste lugar que ele deve ser visto”,em que pontualmente indica o lugar real do tema -, como a dizer” édeste (outro) Paquequer que quero falar”, negando, de certa forma, afinalidade de ter focalizado o percurso anterior “sem importância”, ecom isso colocando a questão: por que tê-lo feito então? – instala umarelação de uma certa não-conformidade entre o rio no curso inferior eo rio em suas nascentes.[...]As imagens evocadas na representação do rio confluindo para o Paraíbapertencem a um universo estratificado em casta; ao mundo medievalonde as relações entre os homens se fazem segundo hierarquias fechadas[...]. Não causa espécie aí a submissão do Paquequer, porque não seaprecia negativamente o suserano. Ao mesmo tempo, porém, aenunciação faz prevalecer o outro Paquequer, primitivo, de não-culturaem contraste com a cultura, o ordenado. O imaginário passa a trabalharnão com o rio, o objeto, mas com as figuras convocadas para criar umcena emblemática. Num amálgama de animalização eantropomorfização, o Paquequer, jovem, é movimento, ímpeto, queocupa um espaço amplo, deixando nele, despudoradamente, as suasmarcas. Tudo potencializado: “De repente”: surge o novo, a surpresa.“Recua um momento”: para concentração de força. “Precipita”: é omovimento exagerado, “de um só arremesso”, “como o tigre sobre apresa”. (ALENCAR, 1986, p.11)

Quem segue lendo o romance dá-se conta da funçãoantecipadora desse segmento que traça o arcabouço da estruturaprofunda da narrativa. A longa citação acima pretende demonstrarque o narrador o tempo todo trabalha com uma imagem de si mesmomuito clara: o de alguém que pertence a um determinado universocultural – o urbano, ocidental – e que conhece alguma coisa nova, omundo americano desconhecido de seu narratário, este de mesmaprocedência. Qual é a isotopia tímica que sustenta a sua fala? A dealguém que orgulhosa e emotivamente acredita que pode, deve e sabecomunicar ao outro, ignorante, esse novo mundo descortinado e nadaconhecido, mas digno de ser descortinado e comunicado.

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A mesma estratégia retórica se pode reconhecer em textosbem mais recentes, como é o caso da novela de Guimarães Rosa:Uma estória de amor. Festa de Manuelzão (1964, p. 85). Como seabre ela?

Ia haver a festa. Naquele lugar – nem fazenda, só um reposto, umcurrais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e a Serra-dos-Gerais,onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar áspero daservas e árvores do campo-cerrado e, nos matos, para os poucosmoradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, vivente nasveredas e chapadas, seria bem uma festa. Na Samarra.

Dando início à conversa, a forma perifrástica – “Ia haver afesta.”- estabelece logo de entrada a distância de focalização: o eventoem questão é visto de uma perspectiva inceptiva. Melhor , é umprojeto, antes de começar, ainda nas preparações. O processocomunicativo assenta as suas bases de efetivação, o acordoenunciativo, necessário para um bom entendimento: daí o funçãocatafórica do artigo em a festa. Que se retoma no dêitico espacial:naquele lugar. O espaço, tenta-se especificar em retomadas restritivas:nem fazenda, só um reposto, um curral-de gado, para somente no final doparágrafo se sintetizar num sintagma isolado: Na Samarra. A fazendaem cuja sede se daria a festa, ali onde era preciso “corrigir o ásperodas ervas, [...] onde manhã e noite grandes macacos roncavam comoengenho-de-pau moendo.”

Todo o enunciado está construído a partir de umenunciatário cuja concepção de festa não suporta um espaço comoo acima descrito: um ádvena, virtual, como o próprio narrador.Num jogo de estranhamento e desfazimento dele, para poderprosseguir o narrador precisa especificar: “Mas, para os poucosmoradores, e assim para a gente de mais longe ao redor, viventenas veredas e chapadas, seria bem uma festa”. Assim se resume oacordo enunciativo: para essa gente, na Samarra, seria bem umafesta. Ou seja, de um lado, nós – narrador e narratário; de outro,

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eles, os moradores locais. E de que perspectiva o evento e seusatores serão focalizados

Sabe-se que a obra de Guimarães Rosa, em sua grande parte,nem mesmo a citada, não pode ser qualificada simplesmente comoregionalista. Regionalista sim pelas figuras que move, como umamatéria prima, com função, entretanto, de plano de expressão asignificações calcadas em culturas, religiões heterogêneas,distanciadas no tempo e no espaço. Sem esse universo primeiro,porém, é preciso reconhecer, Rosa não seria Rosa, perderia, comcerteza, o pé nessa brasilidade que o identifica de imediato. É precisofalar de sertanejos, seus afazeres, no seu terreno, cuja identidadecorre o risco de esgarçar-se e confundir-se no contato com o mundodos grandes proprietários de terra: a saga deles, sertanejos, nasnovelas e romance, é o encontro ou re-encontro dela através doretrato reconhecido no espelho de textos - não qualquer um - maspopulares : Manuelzão no romanço do Boi Bonito; Pedro Orósio,o Pê-Boi, na canção de um poeta popular, a canção de Laudelim,que fala de um rei que, ao morrer à traição, recebe o prêmio deconhecer o seu destino.

O mesmo se pode dizer de Los pasos perdidos, de 1953,do cubano Alejo Carpentier, cujo protagonista, um mestiço deíndia e alemão, parte da América do Norte, caminha em direçãoao sul, à América Latina, colhendo o que mais lhe pareçacaracterístico de cada trecho, na paisagem e na história, atéembrenhar-se no centro mesmo da floresta tropical, configurada– sensual, sensorial, eroticamente - como o borde do surgimentodo universo, do caos organizando-se em cosmo. Numa evidente,pois, viagem não só no espaço como no tempo cósmico. Ou, emoutros termos, numa temporalização do espaço, como se apreendeno espetáculo de uma cratera com plantas pré-históricas, nummovimento “de posesión, de acoplamiento, de incestos, a la vezmonstruoso y orgiástico, que es suprema confusión deformas”(CARPENTIER, 1964, p.29), além da qual se visualiza “la tristezasideral de los tiempos sin incienso y sin alabanzas cuando la tierra

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era desordenada y vacía, y las tieneblas estaban sobre la haz delabismo” (CARPENTIER, 1964, p.30).’

Na verdade, sobre o material oferecido pela representaçãoda América Latina se superpõe um traçado complexo,fundamentalmente literário, uma estruturação significativa calcadanum extenso e profundo cabedal cultural, que não se restringe aolocal. Talvez o autor pretenda colocar em prática o que declara naspalavras abaixo:

Entender, conocer no es equivalente a dejarse colonizar. Soy de los quecreen que la ausencia de formación filosófica hizo mucho daño a nuestraliteratura. La incultura filosófica, literaria, enciclopédica, de casi todosnuestros grandes nativistas es notoria […]. De ahí que el enfoque asiduode culturas extranjeras, del presente o del pasado, lejos de significar sudesarrollo intelectual sea, por el contrario, una posibilidad deuniversalización. (CARPENTIER, 1964, p.13)

Essa dicotomia que está na base das declarações acima,problemática, explica o aparente desencontro entre o escritor cubanoe o argentino Borges. Este, no outro extremo do continente, declaraque a confusão vem de pensar que a autenticidade é sinônimo depresença física do lugar. Carpentier argumenta: “Pero resulta queahora nosotros, novelistas latinoamericanos, tenemos que nombrarlotodo - todo lo que opera con energía – para situarlo en lo universal”(CARPENTIER, 1964, p. 19). Difícil tarefa, segundo ele,principalmente quando se trata de revelar algo que “no ofreceinformación libresca, un archivo de sensaciones, de contactos, deadmiraciones epistolares, de imágenes y enfoques personales”(CARPENTIER, 1964,p.17).

Borges, por outro lado, argumentando contra os que exigempresença da “paisaje, topografía, botánica, zoología” na literaturado país, cita um caso específico em que o “verdaderamente nativosuele y puede prescindir de color local”. Segundo ele, Gibbon, na

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sua História do declínio e da queda do Império Romano, afirmaque no Alcorão não há camelos. Para ele, basta esta ausência paraconfirmar a autencidade do livro:

Fue escrito por Mahoma, y Mahoma, como árabe, no tenía por quésaber que los camellos eran especialmente árabes; eran para él parte dela realidad, no tenía por qué distinguirlos; en cambio, un falsario, unturista, un nacionalista árabe, lo primero que hubiera hecho es prodigarcamellos, caravanas de camellos en cada página; pero Mahoma, comoárabe, estaba tranquilo: sabía que podía ser árabe sin camellos. (BORGES,1952, p.18)

Vale lembrar aqui que Borges desenvolveu um projeto de criaruma mitologia argentina, em que o cuchillo, o cavalo, o gaucho, otruco e principalmente Martín Fierro - a obra de José Hernándeze sua personagem - são figuras centrais. O prólogo de Borges aolivro em que tais declarações se encontram – Discusión - data de1952. E o abre o capítulo que se intitula: “La poesía gauchesca”, eo fecha o capítulo dedicado a “El escritor argentino y la tradición”.E Tientos y diferencias, de Alejo Carpentier, é de 1964, salvoengano.

Nesse contexto, o México se distingue por uma situaçãobastante específica – mas que coloca os mesmos problemas - que sereflete na já forma com que ele se denomina: um país mestiço, comuma cultura mestiça, uma literatura mestiça, desde os seus primórdios,a partir do encontro/confronto das tribos indígenas e os espanhóisque aportaram na Mesoamérica. A dicotomia que a define se situanuma dimensão mais ampla, aquela mesma que se encontra na baseda constituição da literatura brasileira.

Enquanto no caso brasileiro – e em outros países – a questãoganha nova feição, quando se interioriza, de inter passa a intra naforma dos vários regionalismos, no mexicano a condição mestiçaparece abarcar o todo, no tempo e no espaço. Ajuda-nos a

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compreender essa especificidade o ensaio de María Eugenia FloresTreviño (2012), “El asombro como origen de la literaturamexicana”, que, segundo aí se declara, se apoia em César Fernández(1984) para o qual o assombro está na “ génesis de la expresiónliteraria mestiza em México” (FLORES, 2012, p.1), denominadorcomum apreensível no enunciado e na enunciação das “cartas, relatosy relaciones que tanto Colón como los otros actores del eventodirigen a los monarcas y paisanos españoles, [em que] se va narrando,describiendo, recreando y aun creando esta nueva realidad, estainmensa posibilidad de dar matéria a lo no concebido...[...] Unarealidad para la cual no había equivalente.” (FLORES, 2012, p.2/3)De onde se originam textos que constituem por si mesmos “ unhecho de ficción matizado de religión y cosmogonía” (FLORES,2012, p. 7).

O assombro não é unilateral. Se, de um lado, surpreende aconfissão de Díaz del Castillo: “Algunos de nuestros soldados decíanque si aquello que veían si era entresueños, y no es de maravillar queyo escriba aquí de esta manera, porque hay mucho que ponderar enello que no sé cómo lo cuente, ver cosas nunca oídas, ni vistas, ni aunsoñadas, como veíamos.” (apud FLORES, 2012, p.13), por outro,admiravam-se os mexicanos do “centauro”, o braço que produzfogo e trovão, a pele cor de sol, o corpo que flechas não penetram.

O assombro é a porta “del conocimiento, pero también de lacreación, de la construcción… de la poiesis a través del lenguaje”,diz Flores, (2012, p.15): tanto os europeus quanto os indígenas seveem diante do mesmo problema, ou seja, nomear o desconhecido.Encontram a solução no processo de ficção, do qual, segundoMarkiewicz (2010, p.123), citado por Flores (2012, p. 17), originaramtextos que devem “ ser tratados como híbridos, no homogéneos,[...]enclaves de la historia en el marco de la ficción.” Por quê? Graçasà ficção, “la imagen literaria devela los rasgos esenciales y tendenciasde desarrollo de ésta, más claramente de lo que podrían hacer larelación factográfica y de la investigación científica.”(MARKIEWICZ, 2010, p.127, apud FLORES, 2012, p.18). E nesse

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proceso, “se tiene que acudir al símil, a la comparación, a la lítote, ala hipérbole, a la perífrasis, a la metonimia y a la metáfora paraconstruir la expresión sobre América.” (FLORES, 2012, p.33).

Feitas estas considerações, voltemos a João Ubaldo Ribeiro.Sargento Getúlio foi publicado em 1971. A seguinte observaçãoantecede o início da narrativa: “ Nesta história, o Sargento Getúlioleva um preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros. É umahistória de Arete.” Ou seja, aparecem muito marcados o espaço, oator e a ação; mas principalmente o seu valor e sentido: aretê. Termocuja forma original determina logo o quadro enunciativo que atradução não consegue recuperar: do grego áñåôÞ, significa umconjunto de virtudes cívicas, morais e intelectuais; valentia, equilíbrio,justiça; equivale a virtus dos romanos.

Na primeira página o leitor é surpreendido pelo discursodireto seguinte:

A gota serena é assim, não é fixe. Deixar, se transforma-se em ganchoe se degenera em outras mazelas, de sorte que é se precatar contramulheres de viagem. Primeiro preceito. De Paulo Afonso até lá, umesticão, inda mais de noite nessas condições. Estrada de carroça, peste.[...] Propriá e Maruim, já viu, poeiras e caminhões algodoados, a securafria. E sertão do brabo: favelas e cansações, tudo ardiloso, quipás porbaixo, um inferno. Plantas e mulheres reimosas possibilitando chagas,bichos de muita aleiva, potós, lacraias, piolhos de cobra, veja. Matei unstrês infelizes assim, por cima de uns quipás, sendo que um chegou devagarno chão, receando os espinhos sem dúvida. Assunte se quem vai morrerse incomoda com conforto. ( RIBEIRO, 1982, p. 9)

Um amálgama de uma linguagem de base não marcada - deum narrador não figurativo mas presente na observação das regrasgramaticais de número, gênero - que se harmoniza com um léxico,uma sintaxe bem marcados; um registro escrito que, no entanto,consegue simular, e assim preservar, a sua origem na oralidade;enfim,o resultado é o efeito de um discurso regional que no entanto

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não o é de fato, confirmando a sua natureza verdadeiramente literária,artística. Ou seja, um trabalho competente na apropriação de umalinguagem específica na elaboração de um discurso que lograprovocar o efeito de que se está frente a ela. Ocultando a moldurada enunciação de terceiro, de um narrador em terceira pessoa,letrado, o monólogo do protagonista se faz sentir como a única falaem curso, envolvendo o leitor e trazendo-o para o centro dele,monólogo. Toda a circunstância da enunciação se cria em concretude:não só a disposição anímica do sujeito, irritado pela perspectiva doque ainda precisa cumprir, mas também o desconforto do ambientenatural, do clima como da estrada que está sendo percorrida, aaridez, agressividade da paisagem.

O monólogo – mesmo quando parece conversar com omotorista, silencioso, calado, do carro em que viajam, seu únicocompanheiro porque o prisioneiro não conta – o liberta, por outrolado, desse contexto imediato, permitindo-lhe movimentar-se nalinha do tempo. Insulado no domínio estreito do veículo, sem comoapressar o cumprimento da tarefa, a personagem recobra,presentifica fragmentariamente o seu passado. No horizonte doenunciatário um tema regional, bastante já conhecido - o dosertanejo pobre que é obrigado a deslocar-se para a cidade, o litoral,para a civilização, para Aracaju, que se converte, no imaginário donovo homem, no espaço por excelência, no umbigo do mundo – édecisivamente retomado.

Getúlio protagoniza a segunda etapa de uma trajetória iniciada,ou pelo menos cuja pedra fundamental foi plantada por Fabiano esua família em Vidas secas. A abertura sócio-geográficavirtualmente entrevista no final do romance de Graciliano Ramos,antes do início da nova saga, se concretiza agora, com o deslocamentodo sertanejo para a área urbana, ainda que situada no Nordeste,onde se engaja num duplo processo: de inserção num novo gruposocial e, em contraposição, de apagamento de sua origem.Caracterizados ambos os domínios – do sertão e da capital - pelacircunstância histórica das lutas políticas (as nacionais reproduzindo-

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se nas regionais), iconizadas pelas figuras do caciquismo e da política-pistoleira, no imaginário de Getúlio um pequeno mas rigorosoparadigma de valores passa – mais bem, deve passar - a reger ocomportamento e as atitudes das pessoas, num universo cujo núcleoé ocupado pelo machismo, subsumindo dinamicamente as dicotomiasdos conceitos medo/coragem, vergonha/honra. Um universo praticamentemasculino, na medida em que se exerce no mundo da polícia e dapolítica, confundidas e fundidas, regidas e reguladas por um corpode normas ossificantes. Na luta, pois, pela sobrevivência fora deseu espaço de origem e pela necessidade decorrente de inserção emuma nova realidade, Getúlio reduz a identidade nova, buscada,construída, aos conteúdos que reconhece investidos na denominaçãode seu posto militar de sargento. É esse posto que, a seus olhos,legitima a equivalência polícia/pistoleiro traduzida no termo braçodireito do líder político local do momento.

Esse amalgamento - tomado como resultado exemplar doprincípio modelizante do certo, do correto agindo sobre o erro, ocaos (Cf. LOTMAN, 1979) que, segundo o ex-sertanejo, imperamno domínio do outro (isto é, dos partidos contrários e do povo demodo geral, excluído da elite do mando), identificado como elesem oposição a nós - se processa, na realidade, graças a umaidentificação do subordinado com o chefe. Um processo que eletraz à tona em seu monólogo, ao mesmo tempo em que, à revelia,vai deixando a nu o caráter especioso do mesmo. Se esse processoocorre ao longo do tempo do enunciado, isto é, de sua trajetória deinserção no novo grupo social, é preciso entender, por outro lado,que, no romance, o seu desnudamento aos olhos do leitor ocorreno presente da enunciação de Getúlio. Seguindo a este pari passu, nareleitura da sua história, em que ele pela autodescrição se controi, oleitor verifica que ele segmenta o contínuo de sua vida tomandocomo corte fundante de todo o sentido o abandono do sertão. Lidoeste como efeito de um saber inato, individual , que o distingue detodos os conterrâneos: a qualidade de despachado. É esse saber-serque o livraria do que seria o seu futuro certo, descartando o objeto-

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valor não desejado e que ele consegue sintetizar figurativamente notrecho abaixo:

Mas se eu não sou um homem despachado ainda estava lá no sertãosem nome, mastigando semente de mucunã, magro como o filho docão, dois trastes como possuído, uma ruma de filhos, um tico de comidapor semana e um cavalo mofino para buscar as tremalhadas de qualquerdono. (RIBEIRO, 1982, p. 14)

A moldura que aí se visualiza faz transparecer o pressupostomas não o declarado: o de que para além dela, moldura, nada existepara o sertanejo. Ou seja, para o sertanejo que se define, positivamente,pelo que se encontra dentro desse quadro, ainda que marcado poruma total disforia de quem se reduz a um estado – estático, portanto– resultante de processos reiterados, reiterantes, de subtração: semnome, sem outra comida, sem outra família, sem outro transporte,sem outra função.

A autodescrição como ser despachado é vista, então, como aforça motriz capaz de romper esse círculo, acarretando, por outrolado, a denegação de sua identidade de sertanejo e, de outro, aconsequente necessidade de criar, o mais conscientemente possível,uma nova.

Como polícia e pistoleiro, na cidade Getúlio passa a participarde um grupo de contorno mais claro, que reafirma aquelascaracterísticas apontadas por Freud, a partir de Le Bom: o grupo éimpulsivo, irritável, crédulo, não conhece a dúvida, é movido pelopoder mágico da palavra, pensa por imagens. O grupo necessitaprincipalmente de um chefe, responsável pela coesão de sua estruturalibidinal, onde predominam laços emocionais que minimizam operigo. Com ele se identificam os membros do grupo. Aidentificação, um comportamento tipicamente masculino, que sereconhece no complexo edipiano: o pai é tomado como modeloideal. Ambivalente, pode ser expresso pelo temor ou desejo de

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afastamento, como derivado da primeira organização da libido, dafase oral, em que o objeto desejado é assimilado pela ingestão, sendo,portanto, aniquilado enquanto tal.

É preciso distinguir, no caso do pai, a identificação com ele, porum lado, de sua escolha como objeto por outro. O pai pode ser o quese gostaria ser ou o que se gostaria ter. Na identificação podem misturar-se sintomas da pessoa que se quer ser, para ocupar o seu l u g a rcom relação àquele que se ama. Ela pode substituir a escolha do objetopor um processo de retroação, quando o ego assume características doobjeto. Pode aparecer ainda como resultado do desejo do sujeito decolocar-se na mesma situação da outra pessoa. Ou seja, a identificaçãoconstitui a forma original de laço emocional com o objeto; de maneiraregressiva, pode tornar-se sucedânea para uma vinculação do objetolibidinal, por meio de uma qualidade comum, partilhada, com outrapessoa que não é objeto do instinto sexual.

No caso de Getúlio, efeito de uma auto e heteromanipulaçãoconjunta ( cf GREIMAS & COURTÈS, s/d p. 269-10), importaque da relação de subordinado com o chefe resulta um contratofiduciário ( cf. GREIMAS & COURTÈS, s/d p.84-6) , mais quereal, produzindo a crença nele de pertencer a um determinado grupourbano. E mais, de um grupo elite, de poder econômico e político.Mas, contraditoriamente, o que caracteriza predominantemente essegrupo é o que Freud classifica como uma horda conduzida por umchefe. Aí, aos olhos do sertanejo, Acrísio Antunes, o líder, encarna asua trajetória virtual ao sair do interior e instalar-se na cidade, espaçoonde ocorre o falseamento do julgamento, próprio da idealização,origem do narcisismo do sujeito que ama no outro o que quiseraser. A eleição do líder como modelo a copiar se flagra na socializaçãoantecipada, em que Getúlio se preocupa, por exemplo, em domar oseu cabelo rebelde graças à brilhantina cheirosa.

Assim, no discurso-monólogo de Getúlio, enquanto citantedo discurso do líder, irrompe esse desejo de identificaçãofundamentada na ilusão do amor do líder pelo subordinado. Nesse

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contexto, torna-se relevante o tema amoroso. Na referência à prática,antiga, de seu chefe apossar-se sexualmente das mulheres de seussubalternos, não se flagra sombra de ciúme ou inveja, ausência queparece indício de uma relação do tipo líder de horda e os demaismembros masculinos: a identificação e a idealização se dão com talintensidade que qualquer rivalidade de macho na posse das fêmeasdesaparece. Não fosse o relacionamento amoroso com Luzinete, aquem ele nega, sintomaticamente, o direito da procriação, por sentir-se castrado após ter morto a mulher grávida adúltera, a imagem queprevalece é a de um macho castrado.

Nesse contexto, outro pormenor significativo, aparentementeindependente do primeiro, se encontra numa cena de morte.

Dentre todas as pessoas englobadas na denominação dêiticaeles, destaca-se uma. A referência a ela ocorre logo após o elogio dochefe a um trabalho do Sargento. A essa sanção positiva ( cf.GREIMAS & COURTÈS, s/d p.389-9), narra o sertanejo: “Udenistasafado, eu disse, e cuspi no chão a mascada que estava na boca. OChefe deu uma gaitada daquelas surdas, espiando o chão, com abiqueira cavoqueando.” (RIBEIRO, 1982, p. 26). Há aí um jogo decena, de gestualidade, cuja moldura é o trabalho eficiente do jagunço,dentro da qual se mobiliza um código, implicitamentecompartilhado, feito de pormenores ativando a sua signicidade,imantando de afetividade os atores. Observa-se, no entanto,claramente toda uma sequência de manipulação por sedução ( cf.GREIMAS & COURTÈS, s/d p. 267) por parte do chefe, em queao mesmo tempo em que sanciona positivamente a performancedo subordinado, este é persuadido a persistir no seu fazer, pois éuma qualidade que lhe é reconhecida e pela qual pensa ser apreciadopelo destinador. Por isso, em seguida a essa lembrança, como fechomoralizante da pequena narrativa, conta Getúlio:

Dei a ele um passo preto, que eu mesmo ceguei, nesta data, que até hojeele tinha se não desse para um amigo que visita ele de vez em quando, e

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que eu não gosto, não vale nada. Tem a cara de sariguê. É tipo detestemunho até, não vale nada. (RIBEIRO,1982,p. 26).

São importantes os pormenores sublinhados quase com pudor,é importante o presente cujo doador aparece negado, embora nãopelo valor do objeto que, por isso mesmo, serve para o mesmo fimnuma segunda doação. O pássaro é investido do valor de mimo,numa relação afetiva, tanto que, presenteado por Getúlio a Antunes,este não hesita em repetir o gesto com o amigo quase desconhecidoe de partido rival. Que valor, pergunta-se, atribui Antunes ao mimode Getúlio e, consequentemente, ao próprio subalterno se, ao invésde retê-lo consigo, transforma-o em objeto de circulação com omesmo valor mas entre atores diferentes?

Getúlio se cala, mesmo posteriormente, sobre qualqueravaliação mais explícita do gesto de Antunes, direcionando aanimosidade resultante contra aquele em que vê, declarada econfirmada, a condição de rival quanto à afeição do chefe. Ao mesmotempo, aponta para a instalação de uma entropia na distinção, queele quer clara, entre nós e eles. Isso sem, contudo, colocar em relevotais aspectos, como sinais evidentes de qualquer tipo dedesestabilização na relação chefe/subordinado e na imagem daquele.

Deixando de lado o costume bárbaro de cegar-se o pássaropara, assim, obter-se mais belo canto, a suspeita de dubiedade narelação dos dois homens se insinua quando se atina com a ironiacontida no gesto do subordinado: o pássaro cegado e que agoracanta melhor para agrado do outro pode metaforizar submissãovoluntária. Por outro lado, sabe-se que a cegueira pode ser umametáfora de castração. Esse sentido se pode entender situando-onuma relação de horda, o pai primevo castrando simbolicamenteos demais componentes do grupo, ao interditar-lhes o acesso àsmulheres. Metaforicamente, Getúlio é um eunuco que se identificacom o pai, garantindo, desta maneira, uma convivência pacífica e asobrevivência do grupo. É com ele que o Sargento quer viver o

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prazer narcísico da autoridade intocável e o orgulho de quemalcançou êxito. O chefe é o superego objetivado, exteriorizado, cujospreceitos e ordens o sertanejo se preocupa em obedecer, ganhandouma harmonia com que ele entende manter a sua estabilidade interior,uma estabilidade conquistada por quem fora obrigado a deixar acasa pela fome.

A relação sujeito/mundo, vista da ótica do desejo do pai, seconcentra e se sintetiza na relação líder/subalterno, cuja intensidadeo segundo precisa preservar, desejando que, em troca do que fazpelo pai, seja o filho bem amado. Mas, na identificação, começa-se aperceber indício de fratura quando uma nova imagem, inesperada,do chefe se insinua. Ao tornar-se movediça, instala o primeiro colapsonarcisista. Situações se impõem em que a relação fálica é ameaçada.

Colocadas as coisas desta maneira, vejamos agora como sedesenvolve a narrativa: ela se apoia numa lenta e árdua emergênciado sujeito à consciência dessa situação circular de sua experiênciaedípica. Na verdade, é nela que aposta o escritor para alcançar odesenlace escolhido, com uma grande virada na história do sertanejo.Na fábula, essa ruptura ocorre com uma inversão em que o Sargentose descobre, ele caçador, convertido em caça por obra de umareviravolta no cenário político, deixando-o desprovido do chãoconcreto sobre o qual trabalhava o seu imaginário. Como o objetivoprimordial de Getúlio é construir uma nova ordem, frontalmenteoposta àquela vigente no universo do sertão e da miséria – isto é,ele quer um mundo estático, imutável, ossificado que lhe garanta aposse do até aí conquistado a duras penas -, a falta de jogo de cinturacaracterístico da prática política não lhe permite acompanhar ospassos do líder, ficando sozinho.

Nesse sentido, é significativo que etapas dessa transformaçãose encontrem assinaladas por momentos em que a linguagem estáenvolvida. A aquisição da linguagem e a sua prática nessascircunstâncias se exercem acrescidas da reflexão metalinguística.Desses marcos, destacamos três.

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O primeiro ocorre no episódio da fuga do Sargento com seumotorista e o prisioneiro para o convento do padre de Aço. Este,dentro da igreja, convida os acoitados a rezar, e se refere aoprisioneiro, combalido pelos dentes arrancados à força, usando umtermo que provoca um espanto divertido:

Como é, seu padre? Pegue o paciente. E foi aí que eu ri porque acheimesmo o bicho com cara de paciente [...]. Vamos, seu paciente, doutorpaciente, oi, oi. Apois não tem cara de paciente mesmo? Fico comvontade de fazer como se fosse um animal, siu aí, paciente, cada gaitada,mestre, siu aí, cada gaitada, ui. O paciente já se viu, é um paciente escrito.(RIBEIRO, 1982, p. 67)

Getúlio fica sopesando a palavra, estranhando-a, ajustando-aa uma imagem possível, comparando-a ao referente conhecido eimediato, tentando dominá-la pela domesticação sonora. A palavra,vinda do padre, branco, intelectual, abre-lhe assim na cosmovisãouma fissura de risco. A tal ponto que já não é cômico o segundomomento-marco a que aludimos. Este se reconhece num episódioposterior em que chegam ao convento dois emissários do chefe,com a incumbência de persuadir o Sargento a soltar o preso e afugir. Não é a realidade da alternativa – a fuga – que se faz objetode sua admiração e base de seu raciocínio e argumento, mas,novamente aqui, o termo empregado para referi-la: “Então o senhorsolta o homem e some e pronto [...]. Não posso sumir. Quem podesumir é os outros, como é que eu posso sumir, se eu sou eu?(RIBEIRO, 1982, p. 97)

A consciência metalinguística prossegue em seu curso,aumentando a brecha na coalizão perfeita entre referente e linguagem,entre a realidade e símbolo. Se de um lado isto pode significar aruptura da per-feição mítica, por outro ter penetrado no mundo dalinguagem pode significar a liberdade, a liberação da escravidão aoreferente, possibilitando, em contrapartida, o domínio do

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pensamento, a sua agilização. Tanto assim é que, em seguida à reaçãoà palavra sumir, o monólogo de Getúlio focaliza a destreza com queele consegue impor aos emissários hostis as suas condições nanegociação. Igualmente aqui, a admiração de Getúlio consigo mesmoé pela competência implícita em seu desempenho verbal: “ Não seidireito como é que eu falei assim, mas de repente eu estava mesentindo muito bom e o que mais pode me acontecer.”(RIBEIRO,1982,p. 98-9). Uma alegria cujo peso se avalia melhor quando sepensa que, páginas antes, se assiste a um momento agônico que assimse expressa:

Sei lá, não sei de nada [...] Na-bem, fico, mas só até amanhã, depois euvou, não sei conversar direito mesmo e só devo satisfação a uma pessoa,graças a Deus, e dessa pessoa nada ouvi até agora, a não ser o que ficamme dizendo, só que eu não emprenho pelos ouvidos.Tenho que ver, ali,pronto. (RIBEIRO, 1982, p. 93)

Dois órgãos do sentido em suas funções são contrapostos.Significativamente nesta obra, quando se lembra que umacaracterística maior da figura do chefe se identifica na capacidadede elidir-se, de fugir à solicitação do outro. A relação urobóricaanterior se horizontaliza, abrindo espaço para a fuga do objeto. Essecaráter fugidio do outro assume a forma de mediações no canal decomunicação de Getúlio e Acrísio: a visibilidade deste, sempre aoalcance físico dos olhos, de repente é invadida pela invisibilidade,negando ao outro a certeza da visão como garantia. Daí oestranhamento de Getúlio diante da palavra para ele nova: comoposso sumir (de mim) se são os outros que somem (de minhas vistas)?De repente não é ele o fulcro com base no qual a realidade se compõe,e deixa de ter sentido o olho como o órgão responsável pelaapreensão dela. Getúlio se dá conta de que sumir significa sair de cena.Fato terrível, porque no discurso dele isso equivale a não existir. Como,saindo do palco, compor com o chefe a cena do espelho? O pai queassim se furta à cena do espelho, deixando de comparecer, é um pai

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terrível que interdita o fundamental, o ver. Detrás do espelhoaparece o outro como um outro qualquer, que sequer lhe deixa ailusão de crer ser ele o que julgara ser até então. A cisão introduzidanega a existência de Getúlio como sujeito, ao negar o outro comoimagem. Terríveis como o machado que faz a fenda, os mensageiros,delegados metonímicos, são barreiras que impedem concretamentequalquer conjunção com o objeto.

Tem o Sargento razão mesmo à revelia quando, ao referir-se àincomunicabilidade que se instalara entre ele e o chefe – no domíniodo falar/ouvir - , usa uma metáfora forte, porque falando domasculino evoca um universo essencialmente feminino: emprenhar-se.Talvez se pudesse ver nessa inversão um quiasmo, se se recorda acastração resultante da relação edípica de Getúlio com o chefe. Issoporque uma outra forma de entender essa castração é ver presentenela a mediação de um estágio em que o sertanejo ocupa uma posiçãofeminina, de sujeito passivo até então dominado pelo chefe. Porisso, fazer-se eunuco corresponderia a um degrau posterior, em queo subalterno, enquanto outro, praticamente desaparece. A metáfora,nesse momento, não chama atenção pelo complemento “pelosouvidos”, como parece querer o sujeito, mas por ela mesma,metáfora, pela involuntária carga semântica. Com ela, Getúlio expressasinteticamente a realidade até então e, ao negá-la, prenuncia o futuro,indiciando o presente como o de uma transformação decisiva.

Situando, pois, esta obra de João Ubaldo – a nosso ver aficcionalmente mais bem lograda de sua produção literária – numpercurso que a orientação regionalista possa ter realizado,pretendemos mostrar aqui um traço diferencial, a favor do escritorbaiano, identificável na dimensão enunciativa. Situando o discursodo narrador em terceira pessoa - cuja imagem se insinua por brechasno discurso do protagonista graças às marcas da correção linguística,da norma culta - como pano de fundo, o cenário que sustenta a cenado outro, o romance simula estar frente a frente com o monólogodo protagonista, dominando com um longo discurso, não indiretolivre, mas direto. Com isso, como que desaparece o contrato

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enunciativo entre enunciador-enunciatário com as característicasapontadas nos exemplos alencariano e rosiano. Ou seja, dilui-se aimagem de um narrador – alienígena – falando para um narratárioigualmente alienígena. Não se declara, assim, o propósitopreponderante de apresentar, revelar um universo novo, umproblema específico de uma coletividade específica. Quanto maisde uma região geográfica, política, social.

Com isso, ao mesmo tempo em que o romance ganha umafeição mais contemporânea, colocando-se lado a lado, emparelhandocom obras não regionalistas, aquelas que abordam questões de umasociedade mais cosmopolita, verificamos que isso se deve à estratégianarrativa deste romance de Ubaldo em que a experiência vivida peloprotagonista se verticaliza, aprofundando-se em complexidade: aoabordar o tema do confronto entre duas civilizações – rural / urbana– em determinada sociedade, em certo momento histórico brasileiro,o romance o configura como uma experiência individual, comooutra qualquer, e por isso capaz de engendrar, desnudar questõesnão individuais propriamente, não conscientemente controláveis pelavontade e desejo do sujeito. No exemplo analisado, o sertanejo,enganado, ludibriado, torna-se o lugar de uma vivência regionalmentenão restrita – o da relação narcísica, edipiana da identificação. Paraisso o escritor traz a cola um motivo popular – que trai a sua criatura,fazendo falar o evitado – objeto também da canção do grande Lua,epígrafe deste texto.

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“ERA AQUI”, FICÇÃO ESOCIEDADE EM UM CONTODE LUIZ VILELA“ERA AQUI [“IT WAS HERE”],FICTION AND SOCIETY IN ATALE OF LUIZ VILELA

Rauer Ribeiro Rodrigues(UFMS) 1

RESUMO: De uma foto se faz um conto. A narrativasuplementa a foto e integra a ela, secretamente, a oposiçãocomplementar de uma narrativa que faz do amor o antípoda aoreferente histórico-social que, derrisória, quer eliminar. A fotoretrata uma criança, o hoje escritor Luiz Vilela, com um gorroque é uma bola cortada pela metade; ele está indo para atividadesfutebolísticas, ou delas está voltando. O conto expõe, no pretéritorelembrado pelo protagonista, certa vaidade política que seeterniza no Brasil. A história secreta fica evidente e a históriaevidente se dobra, oculta, na arte do contista. E assim, ficção e

1 Doutor em Estudos Literários pela UNESP; Professor de Literatura Brasileira na UniversidadeFederal de Mato Grosso do Sul; coordenador do Grupo de Pesquisa Luiz Vilela;[email protected].

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história desvelam uma sociedade cujo retrato o ficcionistapreferiria não ter que relatar.

PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Literatura Brasileira. Teoriado Conto

ABSTRACT: A photo becomes a tale. The narrative supple-ments the photo and integrates it secretly, the complementaryopposition of a narrative that love makes the antipode referringto historical-social, that ridiculously wants to eliminate. The photodepicts a child, the writer Luiz Vilela today, with a cap which is aball cut in half, he is going or coming back from football activi-ties. The story exposes, in the past tense of the protagonist, van-ity policy that perpetuates in Brazil. The secret history is evidentand the obvious story bends, concealed in the art of short storywriter. And so, fiction and history reveal a society whose portraitthe fiction writer would rather not have to report.

KEYWORDS: Photography. Brazilian Literature. Theory Tale

No centro da página (VILELA, 2006, p. 67) há a foto de umacriança de calça curta e gorro feito com uma bola cortada pelametade — essa foto antecede ao conto “Era aqui”, de Luiz Vilela(2006, p. 66-73). O objetivo deste trabalho é confrontar a narrativaà foto que antecede ao conto, explicitando o contexto da publicação.Entendemos que Vilela traça uma genealogia da vida públicabrasileira em contraponto a uma história de amor, de tal modo quea história evidente fica submersa em sombras e a história secretasalta aos olhos. Com tal procedimento, Vilela insere a história noâmago do ficcional, um ficcional que parece calcado nas lembrançasda infância do escritor.

Vilela nasceu em Ituiutaba, MG, em 31 de dezembro de 1942.Adolescente, mudou-se para Belo Horizonte, onde fez o equivalente,à época, ao Ensino Médio de nossos dias, e cursou Filosofia naUFMG. Trabalhou como jornalista por quase um ano em São Paulo,

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residiu por nove meses em Boulder, Colorado, devido uma bolsapara escritores, e em seguida passou uma temporada na Europa.Retornando ao Brasil, fixou-se — a partir de meados dos anos 70— em Ituiutaba. Surgiu com Tremor de terra (contos, 1967), sendoautor de novelas, como Bóris e Dóris (2006), romances, como Osnovos (1971), Graça (1989) e Perdição (2011), e de diversos outrosvolumes de contos, como o A cabeça (2002).2

A primeira publicação do conto “Era aqui”, de Luiz Vilela,aconteceu em Este seu olhar: imagem & texto a serviço do leitor,organizado por Regina Zilberman e lançado em 2006.3 Aorganizadora, na apresentação, afirma que “fotografias revelam oolhar que seres humanos, munidos de uma máquina, lançam sobreindivíduos, cenários, animais ou coisas” (ZILBERMAN, 2006, p.3). Ela continua:

[...] Quando escolhem pessoas como o foco principal, desvelam outrosolhares, agora o do retratado, que enxerga ou não seu fotógrafo.Fotografias, portanto, refletem, à sua maneira, um diálogo entre doissujeitos, ao apresentar necessariamente uma troca de visões. Por sobreesse diálogo, podemos construir um segundo modo de conversação, poisa imagem torna-se texto e suscita uma história. Retratos e figurasrepresentados estimulam a imaginação, que prefere se expressar por meioda narração dos acontecimentos. Eis a proposta deste livro, em querenomados contadores de história são desafiados a elaborar narrativas apartir de fotografias datadas de sua infância. Examinando as imagens,eles recuperam a ótica do passado; logo, novos olhares se somam à trocaoriginal entre fotógrafo e fotografado. (ZILBERMAN, 2006, p. 3).

O volume apresenta proposta pedagógica desenvolvida emdois tempos por Regina Zilberman (p. 6-12, sob os titulos “Receita

2 Biobibliografia completa encontra-se em <http://gpluizvilela.blogspot.com.br/p/noticias.html>, acesso em 20 ago. 2012.3 O conto integra a nova coletânea de Luiz Vilela, Você verá, anunciada — pela Editora Record— para o primeiro semestre de 2013.

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de leitura” e “Receita de escrita”) e textos de Alcione Araújo,Antonio Carlos Viana, Domingos Pellegrini, Ivan Angelo, JaneTitikian, Luis Fernando Veríssimo, Luiz Vilela, Nélida Piñon e WalcyrCarrasco.

Precede, ao conto de Luiz Vilela (2006, p. 66-73)4, fotografiaque mostra o escritor, com algo entre quatro e seis anos, na passarelade entrada de uma casa, vendo-se ao fundo um alpendre com ochão quadriculado e o vulto de duas cadeiras de madeira; na porta,à esquerda, vislumbra-se, ao que parece, dois cômodos da casa, umprimeiro vazio e, no segundo, recortado contra a luz de uma janela,o vulto de uma cabeça. Iluminada no centro da cena, em primeiroplano, a criança faz pose, mãos na cintura, pernas entreabertasplantadas no chão e o olhar, voltado para a esquerda do fotógrafo,mira fixo e firme. Calça bota de amarrar, usa meias brancas, estácom o calção curto puxado para cima. O busto nu parece muitomais branco do que as pernas e há um misto de sorriso e deencabulamento, talvez uma forjada raiva, nos lábios entreabertos.O alto da cabeça se esconde sob uma bola recortada ao meio —com gomos listrados do centro da bola, no alto, para baixo —, oque parece dar à criança uma estatura maior do que aquela querealmente tinha. O fotógrafo posta sua perspectiva na altura da testado fotografado, mas as pernas abertas, perpendiculares, do centroda imagem para baixo, as linhas que se aprofundam da pequenasarjeta dos canteiros do jardim e as linhas, perpendiculares, da entradado alpendre e, ao fundo, das portas e da janela, dimensionam acriança com uma estatura de domínio, de senhor de si e senhordaquele pedaço de mundo, ao menos naquele momento.

Não há, que seja do nosso conhecimento, informaçãodisponível sobre o processo criativo do conto “Era aqui”: se foiescrito e depois se mostrou adequado a ter como ilustração a antigafotografia, ou se, convidado a integrar o volume, o escritor, entre

4 Todas as referências ao conto de Luiz Vilela, indicadas a seguir somente com o número dapágina, se referem a essa obra.

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suas fotos, foi despertado para redigir a narrativa, a qual, aliás, nãose reporta diretamente à foto. Expliquemo-nos. O conto, ao modocena e com narrador de onisciência seletiva, tem por enredo a visitade um homem — aparentemente de mais idade, acompanhado desua mulher, bem mais nova — à sua cidade natal, no interior (elesmoram na capital). Diante de uma praça, ele relembra que ali eraum campo de futebol no qual, criança, brincou. Lembra-se dos gols,lembra-se da briga política que derrubou as traves e acabou com ocampo, lembra-se que o espaço ficou abandonado até que umprefeito, bem depois, retomou a obra e concluiu a praça.

Em certo momento, o homem comenta, enquanto a mulherencosta a cabeça no ombro dele:

— Era aqui — ele disse, — era aqui que o menino vinha quase todatarde. Ele punha o calção, o gorro, pendurava o par de chuteiras noombro, e vinha. Aqui ele se encontrava com os companheiros e aqui elecorria, chutava, gritava...Ela o escutava em silêncio. (VILELA, 2006, p. 70).

Nessa única fala ecoa a imagem que vemos na foto do escritorquando criança, como se fora a pressão do indizível que quer se dizer,para mencionarmos a proposição de Barthes5. E o conto prossegue,nas lembranças evocadas pela personagem:

— Era uma tarde, uma tarde como essa, uma tarde de setembro. Eununca vou esquecer. Nós estávamos jogando, e aí, de repente, umcaminhão veio entrando pelo campo e parou ali, perto do gol. Nósinterrompemos o jogo e ficamos olhando. Dois caras desceram. Elesforam caminhando para o gol, e aí um deles, um gordo, mal-encarado,

5 “[...], tal fotografia que destaco e de que gosto não tem nada do ponto brilhante que balançadiante dos olhos e que faz a cabeça oscilar; o que ela produz em mim é exatamente o contráriodo estupor; antes uma agitação anterior, uma festa, um trabalho também, a pressão do indizível quequer se dizer.” (BARTHES, 1984, p. 35, grifo nosso).

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que estava com uma marreta na mão, disse qualquer coisa como“acabou a farra, meninada, pode ir pegando o caminho de casa”, e aícomeçou a dar umas marretadas no travessão, para derrubá-lo. (VILELA, 2006, p. 70).

Há momentos de ternura do casal e mesmo uma declaraçãode amor dele para ela. O narrador adere ao homem, descreveseletivamente o que ele sente, e vê a mulher externamente, sem sevaler da focalização dele, embora revele os sentimentos dela emuma passagem. O jogo entre a fala dele no presente e as lembrançaslongínquas se dá como um filme que ele “parecia estar vendo àquelahora em sua memória” (VILELA, 2006,p. 67). Dessas lembrançasemergem um universo de gratuito brutalismo humano ao qual seopõe o relacionamento carinhoso do casal. A rememoração é espaçode ruínas, de desolação, de destruição, de sonhos rompidos, deatividade lúdica que se rompe, de “dor, de raiva, de revolta”(VILELA, 2006, p. 71), que é o que a criança sente após o futebolser interrompido, tendo se trancado no quarto para chorar. O passadosurge na forma de “um punhado de paus amontoados no chão edepois atirados, com indiferença, na carroceria de um caminhão”(VILELA, 2006, p. 71).

Medeia o passado de dor, rememorado, e o presente, em queo caminhar “de braços dados” (VILELA, 2006,p. 67) significacompreensão, sintonia e amor, rápidas menções à natureza que, nohic et nunc, pontuam o clima atual e indicam a ambiência que o contoconstrói. No segundo parágrafo, o cenário é descrito em rápidasnotações — árvores, canteiros, bancos da praça, ruas, casas, edifícios,cidade do interior; segue-se uma caminhada por uma alameda quedesemboca em “grande círculo central” (VILELA, 2006,p. 67), como que marca, na menção à forma circular, sinal de completude, deperfeição, de eterno retorno. O casal dialoga, ele rememora, sentam-se — e o narrador anota que “[u]m sabiá, escondido na folhagemde uma árvore, emitia, a intervalos, o seu canto, sempre igual esempre belo” (VILELA, 2006, p. 69). Continuam o diálogo,

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marcado pela “obra de demolição” dos gols, o que é rememoradopelo homem, até que, por um momento, se calam: “O sabiá cantava.Uma aragenzinha passou pela praça” (VILELA, 2006, p. 71) — eagora, à constância do canto do sabiá que marca, no presente, sinalde persistência e resistência diante das lembranças de ruínas nainfância, um vento suave, no diminutivo, como se leve carinho,envolve as duas personagens.

Resolvem voltar para o hotel, pois “[a]s primeiras sombrasda noite já vinha chegando”, enquanto “o sabiá, incansável,continuava a cantar” (VILELA, 2006, p. 72). Para surpresa dele, elasabe que é um sabiá que canta, o que o faz declarar que a ama, emgesto que, como uma metáfora, integra a natureza ao homem (p.73). Esse canto, sempre belo e igual, no presente do enunciado, funde,no âmbito da enunciação, passado e presente. E o olhar que se voltapara o passado tem “vontade de fazer um gesto de despedida [...]do velho campo, do menino e de um tempo que de há muito e parasempre se fora”, mas o homem acha que “o gesto seria meio ridículo,e não [o] fez” (VILELA, 2006, p. 73). Assim, deixa, às suas costas, opassado, para retornar ao hotel, ao ônibus, à capital, com o hoje dasua vida, ao lado de uma mulher a quem ama e por quem é amado.

Se tomarmos o conto pela perspectiva de que “um contosempre conta duas histórias” (PIGLIA, 2004, p. 89), estabelecemosde plano que elas ocorrem, nesse conto de Luiz Vilela, pelajustaposição entre presente narrado e passado rememorado. Essaleitura, no entanto, não encontra meios de se afirmar, pois não há,encarando-se desse modo, uma história 1, visível, e uma história 2,secreta, elíptica, cifrada: tanto o presente quanto o passadoconstituem a história 1, pois fatos evidentes, claros, no discurso e naestrutura da narrativa. Vemos em Piglia (2004, p. 89-94), no entanto,que há diversos modos do conto encenar as duas histórias. Mas,entre as variantes, nenhuma parece contemplar uma história 1 quese divide em 1-A e 1-B, como seria o caso de “Era aqui”. Ainda queassim fosse, não estaria contemplada a proposição de que “[o] contoé um relato que encerra um relato secreto” (PIGLIA, 2004, p. 91).

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Qual é o “relato secreto” de “Era aqui”, considerando que asegunda tese proposta por Piglia (2004, p. 91) é de que “a históriasecreta é a chave da forma do conto e de suas variantes”?

Para buscar uma resposta, coloquemos a narrativa em ordemcronológica: crianças brincam em um campo de futebol, funcionáriosa mando do prefeito acabam com o campo para construir uma praça,em jogada re-eleitoral que funciona (é reeleito), mas no segundomandato não cumpre o prometido (não conclui a praça); em seguida,um inimigo político é eleito, e em revanche também não faz a praça,que vira um grande lixão. Um terceiro prefeito começa a obra, quesomente outro, “mais de dez anos” (VILELA, 2006, p. 72) maistarde, irá concluir. Uma daquelas crianças, décadas depois, retornaà praça, junto com sua mulher, muito mais jovem que ele, e rememorao episódio. Essa, a fábula que constitui a primeira história, tomandofábula, aqui, à maneira dos formalistas russos, como os fatos danarrativa, causa e efeito em sequência cronológica (ver MOISÉS,2004, p. 184). Do relato emerge a oposição entre o amor do casal ea aspereza da vida pública, seja no trato com os cidadãos (no caso,lúdicas crianças), seja na convivência entre os políticos, seja no nãocumprimento da palavra empenhada em campanha eleitoral.

A força íntima da personagem central é anunciada pelageometria espacial do conto: a alameda leva as personagens ao centroda praça, que tem forma de círculo, signo (cf. CHEVALIER EGHEERBRANT, 2002, p. 250-254) de unidade, completude eperfeição, com o que é marca de princípio e dos ciclos, contendoum sopro de divindade. Há ainda uma força telúrica da personagem,sinalizada pelo conhecimento das plantas e do canto dos pássaros.Essa força é que a faz ir ao encontro do passado que rememora eque a faz suplantar o ódio pelo sofrimento a que foi infligido poruma aceitação do vivido, ainda que rejeite que ele persevere. A marcade eterno retorno, presente no círculo, nos avisa, no entanto, queambições — e sua coorte de dores — estão à espreita, prontos parareencetarem sua existência.

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A primeira história é, pois, a história do desamor nas relaçõeshumanas, figurada na lembrança do homem em contraponto aocarinho vivido na vida íntima, e pública, com sua companheira. Asegunda história é a de que o aconchego para as frustrações está noespaço amoroso — não se trata, aqui, de um espaço familiar, pois acriança que retorna para casa chora só, sem apoio à sua dor efrustração. É com o gorjeio do sabiá, reconhecido pela moça, que ohomem tem a epifania do amor e, então, o casal se irmana, virandoas costas para o passado da primeira história, a do desamor, dasbrigas políticas, do espaço público enxovalhado pela ação doshomens públicos. Se o sabiá, na literatura brasileira, é topos da saudadeno exílio, em Luiz Vilela é o anunciador de tempos novos, nos quaisa personagem se volta para ver o passado, mas percebe que é ridículose despedir daquele brutal tempo antigo.

Distinguimos como “relato secreto” o espaço íntimo de amorconstruído na solidez moral e panteísta da personagem. Trata-se,parece, do topos da compaixão, tão presente na ficção de Vilela,conforme anotou Wania Majadas (2011) no seu O diálogo dacompaixão na obra de Luiz Vilela (a 1. ed. dessa obra foi lançadaem 2000). Anote-se que a compaixão, aqui, perdeu qualquer resquício— que por ventura tivera — do ideário cristão do catolicismoromano, erigindo-se por força ética universalizadora de radicalhumanismo. Da segunda história, assim constituída, emerge a chaveda forma do conto, a partir do diálogo entre duas personagens quese amam, com o narrador onisciente indicando a afeição que os uneentre si e com o universo que pulsa ao redor deles.

Do ponto de vista do referencial histórico, no entanto, semque isso seja problema quanto à verdade da narrativa, há uma falhano que diz respeito à verossimilhança, pois o instituto da reeleiçãosó passou a existir no Brasil a partir da Emenda Constitucional nº16, de 4 de junho de 1997,6 de modo que foi aplicada a primeira

6 Ver <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc16.htm>,acesso em 20 ago. 2012.

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vez, quanto aos prefeitos, na eleição de 2000. Se não há, na cronologiaque considere a lei e o momento de primeira publicação do conto,tempo para que alguém de idade se veja menino e trate de umproblema decorrente do instituto jurídico da reeleição, os fatospolíticos nacionais, com a eternização de oligarquias e do nepotismodesde a instauração da República, garantem a veracidade do narrado.Se, como anotou Zilberman (2006, p. 3), fotografias “refletem [...]um diálogo entre dois sujeitos, ao apresentar necessariamente umatroca de visões”, ao relermos a foto do menino Luiz Vilela, mãosna cintura e olhar de brabo, pensaremos que ele está é a nos criticarpor essa picuinha de exigir um verossímil sem maior importância,deixando em segundo plano o humano permanente — seja o davontade de levar vantagem em tudo, seja o do amor panteístacompartilhado — que é o substrato da construção do conto.

Tratamos de ao menos duas fotos neste trabalho. No flagrantenarrativo do conto “Era aqui”, vislumbramos uma história cifradaque está evidente, enquanto a primeira história fica quase que ocultapela arte da construção do conto empreendida por Luiz Vilela. Nafoto, temos o relato de um jogo de futebol, acontecido ou poracontecer, fixando a criança em sua atividade lúdica, as mãos nacintura em postura dominadora.

São diferentes apreensões do real. Elas se afirmam, no quetêm em comum, reforçando identidades em diferentes claves: acriança mira o futuro, que antevê de glória, conquistas; o protagonistado narrador adulto vira as costas sem despedida ao que vê (empalimpsesto que engloba, simultâneos, passado, presente e futuro),pois o que vê — dolorosa epifania! — não lhe agrada.

Na expressão da criança e na epifania que emerge do contopercebemos “[...] a pressão indizível do que quer se dizer”(BARTHES, 1984, p. 35). A foto do menino Luiz Vilela mostrasegurança e raiva, denota firmeza e convicção, antecipa a calmadaquele — o narrador do conto, irmanado ao protagonista — querejeita um passado a que, firmemente, condena. “Era aqui”

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suplementa a foto do menino, integrando a ela, secretamente, aoposição complementar de uma narrativa derrisória que faz do amoro antípoda ao referente histórico-social que quer eliminar.

A epifania no conto de Luiz Vilela deixa-nos o sabor amargoda desilusão diante dos homens e da vida social, o que é modalizadoao se viver o amor. Chegamos próximos do cético, mas um céticoem cuja ataraxia há serenidade, sabedoria, no mesmo passo em quehá paixões em fogo e o desejo de um mundo melhor. Entre adesilusão e o amor, instaura-se o espírito judicativo do moralista,tomando moralista como aquele que procura distinguir o bem domal: o conto “Era aqui” retrata um passado que, se ainda não morto,em breve não passará de pó no cemitério, e a tal passado há que sevoltar as costas, uma vez que há que se abandonar, no lixo da história,os homens e seus inúteis, desprezíveis desejos de poder e de glória.Mas, já aqui, talvez estejamos a extrapolar os limites do conto deLuiz Vilela, momento, pois, de chegarmos ao fim.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. JúlioCastañon Guimarães. 8. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 185 p.

BRASIL. Emenda Constitucional 16, de 04 de junho de 1997: Dá nova redaçãoao § 5º do art. 14, ao caput do art. 28, ao inciso II do art. 29, ao caput do art.77 e ao art. 82 da Constituição Federal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc16.htm >,acesso em 20 ago. 2012.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad.Vera da Costa e Silva et al. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. 996 p.

GRUPO DE PESQUISA LUIZ VILELA. Luiz Vilela: Biografia de LuizVilela; Bibliografia de Luiz Vilela. Disponível em: < http://gpluizvilela.blogspot.com.br/p/noticias.html >, acesso em 28 out. 2012.

MAJADAS, Wania. O diálogo da compaixão na obra de Luiz Vilela. 2.ed. Goiânia: PUC-GO; Kelps, 2011. 188 p. [1. ed. Pref. Fábio Lucas.

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Uberlândia, MG: Rauer Livros, 2000. 206 p.].

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12. ed. rev. e ampl.São Paulo: Cultrix, 2004.

PIGLIA. Ricardo. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo.São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 118 p.

VILELA, Luiz. Era aqui. In: ZILBERMAN, Regina. Este seu olhar. SãoPaulo: Moderna, 2006, p. 66-73.

ZILBERMAN, Regina. Este seu olhar. São Paulo: Moderna, 2006.

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O LEITOR ENTRE A CHINELAE A CARTOMANTETHE READER BETWEEN THESLEEPER AND THEFORTUNETELLER

Daniele Ribeiro Fortuna(UNIGRANRIO)1

RESUMO: Este artigo trata do papel do leitor no texto. Buscadefinir quem é esse leitor e como identificá-lo. Em seguida,apresenta noções do que são o leitor implícito e o leitor-modelo,estabelecendo ainda diferenças entre o texto aberto e o textofechado. Por fim, aplica tais noções a dois contos de Machadode Assis – “A chinela turca” e “A cartomante”.

PALAVRAS-CHAVE: Leitor. Texto. Machado de Assis.

ABSTRACT: This article deals with the reader’s role in the text.It seeks to define who this reader is and how to indentify him.Thereafter, it presents the notion of what implicit reader andstandard reader are, also establishing the differences between

1 Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas da Universidade doGrande Rio Professor José de Souza Herdy . [email protected]

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open text and closed text. Finally, it applies those notions in twoMachado de Assis’ short stories – “A chinela turca” and “Acartomante”.

KEYWORDS: Reader. Text. Machado de Assis

Introdução

“Todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor quefaça uma parte de seu trabalho” (ECO, 1999, p. 9). Assim UmbertoEco define o texto e revela a importância do leitor. Mas que leitor éesse a que Eco se refere? Uma entidade abstrata que está inserida notexto? Eu, você — indivíduos concretos, enfim?

A noção de leitor de Umberto Eco assemelha-se em muitosaspectos ao leitor proposto por Wolfang Iser em O ato da leitura,e o presente artigo, além de trazer à tona essa temática, pretendeaplicá-la em dois importantes contos de Machado de Assis: “AChinela Turca” e “A Cartomante”. Por meio de uma análise textual,tentará mostrar de que forma se “apresenta” o leitor nestes contos.

Outras questões importantes, como de que forma o autor,através do texto, contribui para configurar esse leitor e queestratégias ele utiliza para tanto, também serão analisadas.

Quem é o leitor?

Uma história não existe sem um destinatário. Para quê e comocontar se ninguém nos ouve? Afirmar que um texto perde suaimportância se ninguém o lê parece óbvio. Entretanto, sem umreceptor não existe comunicação e, portanto, não existe sentido.Wolfang Iser afirma que “no processo da leitura se realiza a interaçãocentral entre a estrutura da obra e seu receptor. Por esse motivo, ateoria fenomenológica da arte enfatizou que o estudo de uma obra

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literária não pode dedicar-se apenas à configuração do texto, masna mesma medida aos atos de sua apreensão” (ISER, 1996, p. 50).

Segundo Iser, ainda, “o texto é um potencial de efeitos que seatualiza no processo da leitura” (ISER, 1996, p. 15). Portanto, semo leitor este potencial não se realiza. Para concretizá-lo, é necessárioque haja uma interação do leitor com o texto, “na qual o leitor ‘recebe’o sentido do texto ao constituí-lo” (ISER, 1996, p. 50). Dessa forma,a recepção da mensagem por parte do leitor deve coincidir com osentido da obra.

De acordo com Iser, nesse processo estão implicadas não sóas condições do texto, como também as disposições do leitor. Nessesentido, “a obra literária se realiza então na convergência do textocom o leitor; a obra tem forçosamente um caráter virtual, pois nãopode ser reduzida nem à realidade do texto, nem às disposiçõescaracterizadoras do leitor” (ISER, 1996, p. 50). Na verdade, o textosó atinge seu sentido pleno quando seus potenciais são atualizados econcretizados pelo leitor.

Mas quem é exatamente esse leitor? Como é possível identificá-lo? Wolfang Iser apresenta vários tipos de leitores: o leitor ideal, oleitor contemporâneo, o leitor intencionado e o leitor implícito. Opresente artigo utilizará (principalmente) a noção de leitor-modelo,de Umberto Eco, concomitantemente à proposta de leitor implícitode Iser.

O leitor implícito e o leitor-modelo

Como o próprio nome diz, o leitor implícito está embutidono texto: não tem existência concreta, real. Segundo Iser, “elematerializa o conjunto das preorientações que um texto ficcionaloferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis. Emconsequência, o leitor implícito não se funda em um substratoempírico, mas sim na estrutura do texto” (ISER, 1996, p. 73).

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O texto também propõe a esse leitor diferentes papéis, dosquais lhe cabe se apropriar ou não. Entretanto, Iser sustenta que ospapéis oferecidos pelo texto e as disposições habituais do leitornunca se superpõem, até porque “a concepção de leitor implícitonão é abstração de um leitor real, mas condiciona sim uma tensãoque se cumpre no leitor real quando ele assume esse papel” (ISER,1996, p. 76).

O modelo do leitor implícito é algo transcendental que enfatizaos efeitos do texto. Na verdade, tal concepção de leitor se situa nopróprio texto, cujas perspectivas permitem a ele (leitor) constituirum horizonte de sentido, o qual deve ser imaginado, já que essehorizonte não parte do real. Para Iser, “apenas a imaginação é capazde captar o não dado, de modo que a estrutura do texto, ao estimularuma sequência de imagens, se traduz na consciência receptiva doleitor. O conteudo dessas imagens continua sendo afetado pelasexperiências dos leitores” (ISER, 1996, p. 79).

Ora, se para constituir um horizonte de sentido, o leitor utilizasua imaginação formando imagens, e se essas imagens são afetadaspelas experiências do leitor, então o leitor implícito se situa não sóno texto, mas além dele, já que admite uma tensão entre si e o leitorreal. Wolfang Iser conclui que “a concepção de leitor implícitodescreve, portanto, um processo de transferência pelo qual asestruturas do texto se traduzem nas experiências do leitor atravésdos atos de imaginação” (ISER, 1996, p. 79).

E é nesse momento que surge a diferença entre o leitorimplícito de Iser e o leitor-modelo de Umberto Eco. De acordocom Eco, o leitor-modelo é criado com o texto e está aprisionadonele, sendo “um conjunto de instruções textuais, apresentadas pelamanifestação linear do texto precisamente como um conjunto defrases ou de outros sinais” (ECO, 1999, p. 22).

Assim como o leitor implícito, o leitor-modelo está inseridono texto. Entretanto, este último “nasce” e “morre” com o texto. Éum processo, uma estratégia textual, segundo a qual o próprio texto

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vai construindo o leitor, vai moldando-o de modo a delineá-lo. Deacordo com Eco, “o leitor-modelo constitui um conjunto de condiçõesde êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas paraque um texto seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”(ECO, 1999, p. 45).

Umberto Eco estabelece que há dois níveis de leitores-modelos. O primeiro nível quer saber apenas — mas muito bem —como a história termina e o segundo, busca descobrir também “quetipo de leitor a história deseja que ele se torne” (ECO, 1999, p. 33)e como o autor faz para conduzi-lo.

O texto “aberto”, o texto “fechado”, os passeios inferências ea suspensão da descrença

Como já foi dito, o leitor-modelo é definido através deestratégias textuais. Uma dessas estratégias é fixá-lo, ou seja, dirigir-se única e exclusivamente a um tipo de público.

Conforme dizem os publicitários, escolherão para si um target (e um“alvo” pouco ajuda, pois espera ser atingido). Farão com que todotermo, que toda maneira de dizer, que toda referência enciclopédica,seja aquilo que previsivelmente o seu leitor pode entender. Empenhar-se-ão no sentido de estimular um efeito preciso; para estar seguros deque se desencadeará uma reação de horror, dirão antecipadamente que“a esta altura aconteceu algo de horrível” (ECO, 1986, p. 41).

Dessa maneira, forma-se também o que Umberto Eco chamade texto “fechado”, o qual não dá margens a múltiplas interpretaçõese em que se busca prever com eficiência os efeitos causados no leitor.Ao contrário do texto “fechado”, tem-se o texto “aberto”, no qualo autor “decide [...] até que ponto deve controlar a cooperação doleitor e onde esta é provocada, para onde é dirigida, onde devetransformar-se em livre aventura interpretativa” (ECO, 1999, p. 42).

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Quanto mais “aberto” for um texto, maior a possibilidade dese sair dele, ou seja, mais provável se torna a divagação, a interpretação,a criação de hipóteses, o questionamento. Os textos “abertos”permitem o que Umberto Eco chama de “passeios inferenciais”,que são “passeios que a estratégia do autor induz o leitor a dar”(ECO, 1999, p. 56).

Assim, de forma a prever o que vai acontecer, o autor leva oleitor a elaborar sua própria hipótese, a preencher os espaçosvazios do texto com o que lhe é conveniente ou mais interessante,a fazer previsões, que para o prazer de quem lê, muitas vezes, serevelarão corretas.

Por fim, Eco lembra que para se lidar com uma obra de ficção,é necessário que realize o que Coleridge chamou de “suspensão dadescrença”. Tal estratégia consiste em se aceitar de forma tácita oacordo ficcional “proposto” pelo autor. Entretanto, Eco — e tambémWolfang Iser — acredita que aceitar este acordo não implica aceitar oque escrito como realidade: “o leitor tem que saber que o que estásendo narrado é uma história de imaginária” (ECO, 1999, p. 81).

Na verdade, não deve haver uma suspensão total da descrençaa ponto de o leitor assumir a ficção como realidade. Mas é precisoque se acredite que o que está sendo contado é “possível”, dentro docontexto exposto pelo autor. “O autor finge dizer a verdade” (SEARLEapud ECO, 1999, p. 81) e o leitor finge que aquilo aconteceu. O jogoficcional pode — e deve ser aceito —, mas a realidade atua semprecomo pano de fundo para o que está sendo narrado.

Machado de Assis e o leitor

Estabelecidas as diferenças entre o leitor implícito e o leitor-modelo e levantadas algumas estratégias ficcionais propostas porUmberto Eco, este artigo ousará analisar na prática como essasconcepções (notadamente a de leitor-modelo) funcionam. Os textos

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de Machado de Assis nos permitem vislumbrar esse leitor e agenialidade de seus textos “abertos” dá margem a vários tipos dereflexão. “A chinela turca” e “A cartomante” são dois ótimosexemplos. Neles, o escritor conduz o leitor da forma que lhe é maisconveniente, surpreendendo-o, satisfazendo-o e, algumas vezes,frustrando quem os lê.

“A chinela turca”

No conto “A chinela turca”(1989) , o bacharel Duarte se vêimpedido de ir ao baile encontrar sua amada Cecília em função davisita inesperada do major Lopo Alves. Num momento mais queinoportuno, Lopo Alves resolve fazer uma consulta ao seu amigobacharel acerca de um drama que ele escrevera. Insatisfeito por estarna iminência de perder uma noite ao lado de sua amada, mas tendoque atender ao pedido de seu amigo (que, por sua vez, é parente deCecília), Duarte não vê outra solução senão fazer o que o major lhepede: dar sua opinião sobre o drama.

Lopo Alves inicia, então, sua narrativa. Depois de algumtempo, entretanto, ele se levanta abruptamente e vai embora semdar explicações. Em seguida, numa sucessão vertiginosa de fatos,Duarte se vê envolvido numa trama absurda, na qual recebe a visitade um policial, que o acusa do furto de uma chinela turca. O bacharelé metido à força dentro de um carro e levado para uma casa, emque lhe dizem que a chinela era apenas um pretexto e que, na verdade,o objeto nunca saíra das mãos da dona.

Nesse momento, é revelado a Duarte o verdadeiro motivo deseu sequestro: depois de se casar com a dona da chinela turca, eledeveria escrever um testamento e, em seguida, ingerir um veneno,para que seus algozes pudessem assim desfrutar de sua pequenafortuna. Prestes a ser “assassinado”, o bacharel é salvo por um padreque lhe aconselha a fugir por uma janela.

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Duarte foge, sendo perseguido por um homem gordo. Depoisde correr desabalado, finalmente ele consegue chegar a uma casa,onde se depara com um homem que pareceu não tê-lo visto entrar.O bacharel se senta e se dá conta de quem está à sua frente é LopoAlves, que acabara de ler a última fala de seu drama.

São duas horas da madrugada. O conto (que tivera inícioaproximadamente às 21h30, com a chegada do major) termina e, comele, tem fim uma narrativa em que o leitor é surpreendido a cadamomento. Vejamos como o leitor é “construído” em “A chinela turca”.

A “construção” do leitor neste conto inicia-se no primeiroparágrafo, no qual ele é convidado a olhar o bacharel Duarte eperceber que já passa das 21h: “Vede o bacharel Duarte. [...] Notaique é de noite, e passa das nove horas” (ASSIS, 1989, p. 77). Apartir daí, o autor vai dando forma ao leitor, fazendo com que seenfade com Lopo Alves e se frustre com o fato de Duarte não poderir ao baile.

Lopo Alves afirma a Duarte que havia escrito um drama e oleitor é levado a se enfastiar antes mesmo que o major comece a lê-lo.O bacharel sabia que Lopo Alves costumava elaborar discursos, maspensava que essa fase havia passado. Não entendia por que agora eleresolvera escrever uma peça. O motivo, entretanto, é revelado ao leitor:

Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves,algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gêneroultra-romântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a ideia deafrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nessas minuciosidadesnecessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosãodramática do militar (ASSIS, 1989, p. 78).

Quando Lopo Alves pede a Duarte que o ouça, portanto, oleitor pode prever o que o aguarda. “O algoz não queria testemunhas”(ASSIS, 1989, p. 79) — com esta frase, o autor parece confirmar aexpectativa criada anteriormente.

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Ao mesmo tempo em que se aborrece com o major, o leitorsolidariza-se com o tédio de Duarte. Tudo leva realmente a crer quea narrativa, daí em diante, vai se tornar lenta e fastidiosa — “Odrama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu umcalafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquela cento e oitentapáginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres,as ficelles e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismodesgrenhado” (ASSIS, 1989, p. 79).

Para acentuar essa sensação de tédio, a forma com que o autortrabalha com o tempo também contribui de maneira decisiva.Quando o major chegou, eram 21h30. Ao acabar a leitura dosegundo quadro, já eram 23h e Duarte já não suportava mais. Ashoras passam rapidamente, mas o desconforto é grande, já que apossibilidade de ir ao baile torna-se cada vez mais remota.

Depois da meia-noite, de repente e sem explicações, LopoAlves se levanta e decide ir embora. Duarte já suspirava aliviado,quando o moleque vem anunciar-lhe a visita de um homem baixoe gordo. Surpreendentemente, este homem (que se identifica comoempregado da polícia) acusa o bacharel de haver furtado umachinela turca.

Nesse momento, o autor estabelece com o leitor o pactoficcional. O leitor sabe que tal fato é bastante improvável, mas sabetambém que o que lê é uma obra de ficção e, portanto, é levado asuspender a descrença de acordo com o contexto do conto.

Ainda que se tratasse de uma chinela turca caríssima, ornadade diamantes e verdadeiramente miraculosa, parece completamenteabsurdo que Duarte seja preso por seu furto. Nesse ponto, entretanto,ele se vê cercado por cinco homens armados que o colocam à forçadentro de um carro.

A trama torna-se, então, vertiginosa e o autor faz com que oleitor, assim como Duarte, se perca “num cipoal de conjecturas”(ASSIS, 1989, p. 82). O sequestro do bacharel conduz o leitor a

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passeios inferenciais: qual seria o motivo do sequestro? Quem seriao mandante? O que a chinela turca teria a ver com tudo isso?

A seguir, a narrativa torna-se mais enigmática e uma espéciede charada, dita por um homem alto e magro, que acompanhava osujeito baixo e gordo, deixa o leitor intrigado — “Este cavaleiro eeu fazemos um par. Ele, o senhor e eu faremos um terno. Ora, ternonão melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal” (ASSIS,1989, p. 82). Qual seria o significado desta fala?

O bacharel é levado a um lugar luxuoso, o que o faz pensarque ali não deveriam morar ladrões. Por meio das reflexões dopersonagem, o leitor é conduzido, novamente, a passeios inferenciais:Duarte conjectura que a chinela deveria ser pura metáfora —“tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito de que oqueria punir o já imaginado rival” (ASSIS, 1989, p. 83).

Mas a aparição inesperada de um padre faz o personagem e oleitor se confundirem em suas hipóteses — o que o padre estariafazendo ali e qual seria sua relação com os sequestradores? Emseguida, porém, o homem magro confirma que o suposto furto dachinela havia sido somente um pretexto. Na verdade, o bacharelhavia sido sequestrado com o propósito de se casar com a dona dachinela turca, após o quê, ele faria um testamento e ingeriria venenopara que a esposa pudesse assim ficar com sua pequena fortuna.Assim, a hipótese de que a chinela fora apenas um pretexto estavacerta. Realmente, havia algo mais por trás daquilo tudo.

Nesse momento, a narrativa, mais uma vez, torna-severtiginosa: com a ajuda do padre, Duarte consegue fugir.Entretanto, antes, o suposto padre lhe revela que, na realidade, elenão era padre e sim tenente do exército — “teria ele alguma relaçãocom o major Lopo Alves?”, cogita o leitor.

O bacharel continua sua fuga, perseguido pelo homem gordo.Finalmente, ele chega a uma casa, entra e se depara com um homemlendo o Jornal do Comércio, e que parecia não tê-lo visto entrar.

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Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos do homem. Era o majorLopo Alves. O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-setornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente:

— Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro.Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os

olhos, respirou à larga. (ASSIS, 1989, p. 87)

O leitor é surpreendido. Embora a narrativa fosse um tantoinverossímil, não se esperava que tudo não passasse de um sonho— ou de um pesadelo. Apesar de o conto ser extremamenteengenhoso, o desfecho (que destoa um pouco do restante danarrativa) talvez tenha como estratégia frustrar o leitor, na medidaem que o autor faz o que ele não havia feito em nenhum momentoaté então: tenta esclarecer, explicar.

Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, ao cabo deum quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga,fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonhooriginal, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi bom negócio.Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que omelhor drama está no espectador e não no palco. (ASSIS, 1989, p. 87)

“A cartomante”

Um dos contos mais famosos de Machado de Assis, “Acartomante” (1989) conta a história de um triângulo amoroso. Camiloe Vilela são amigos de infância, que ficam algum tempo sem se ver.Após algum tempo afastado, Vilela volta da província casado comRita. Com o convívio, Camilo e a esposa de seu amigo acabam seapaixonando e mantendo um romance secreto.

Temerosa, Rita procura uma cartomante que lhe asseguraque tudo vai bem em seu romance com Camilo: ele a ama e desejaestar junto dela. Entretanto, cartas anônimas tiram a paz do casal:

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alguém sabe da ligação que existe entre os dois. Um bilhete de Vilelacontribui ainda mais para conturbar a situação — ele pede que oamigo vá imediatamente à sua casa.

Camilo titubeia, mas resolver ir até lá. No caminho, detidopor um acidente e se vendo em frente à casa da cartomante, acuriosidade e o desespero falam mais alto e ele resolve consultá-la.Ela, por sua vez, o conforta e diz que tudo dará certo. Aliviado,Camilo segue para a casa de Vilela, onde uma tragédia o aguarda: oamigo assassinara a esposa e, com uma arma em punho, põe fimtambém à vida de Camilo.

Machado de Assis inicia o conto “A cartomante” citandoShakespeare: “há mais coisas no céu e na terra do que sonha anossa filosofia” (ASSIS, 1998, p. 13). Dessa maneira, conduz oleitor a um clima de curiosidade e expectativa — que coisasmisteriosas, que existem entre o céu e a terra, seriam estas? Emseguida, através da fala de Rita, ele revela que a personagem seconsultara com uma cartomante e que esta lhe afirmara que ela eracorrespondida em seu amor — aqui, talvez o leitor possa cogitarque a cartomante não passa de uma embusteira, que acalmou ostemores de Rita dizendo apenas obviedades ou coisas não muitodifíceis de se adivinhar.

Aos poucos, o leitor vai entendendo que o romance dos doisera secreto e que Rita era casada com Vilela, o melhor amigo deCamilo. Este se percebera apaixonado quando recebeu um bilhetinhovulgar de Rita; tentou fugir, mas não conseguiu.

Tudo corre sem percalços até que Camilo recebe uma cartaanônima. O leitor é induzido a dar seus passeios inferenciais e cogitarquem teria enviado a tal carta: seria Vilela? Seria algum inimigo deCamilo? Alguma rival de Rita?

Camilo passa então a evitar ir à casa de Vilela, o que deixaRita insegura e a faz procurar a cartomante. Nesse momento, o autor“chama” o leitor para perto de si — “Vimos que a cartomante

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restituiu-lhe a confiança” (ASSIS, 1998, p. 16) — e faz com que ele,juntamente com Rita, formule hipóteses:

Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas,que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algumpretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras malcompostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa eavara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo(ASSIS, 1998, p. 16).

De fato, poderia ser algum pretendente de Rita. Afinal, noinício da narrativa, o autor já dissera que ela era “uma dama formosae tonta” (ASSIS, 1998, p. 15) e, portanto, deveria ter muitosinteressados a cortejá-la.

Entretanto, a mudança do comportamento de Vilela (que setorna sombrio e desconfiado) faz com que o leitor cogite apossibilidade de ser ele o autor das cartas. Um bilhete de Vilelaparece confirmar esta hipótese — “Vem já, já, à nossa casa; precisofalar-te sem demora” (ASSIS, 1998, p. 16).

Por meio do desespero de Camilo e das hipóteses que eleformula, o leitor também começa divagar, a ter, mais uma vez, seuspasseios inferenciais. Finalmente, o personagem decide ir aoencontro do amigo. No caminho, detido por causa de um acidentena rua, ele se vê em frente à casa da cartomante.

“O que diria a cartomante a respeito de tudo isso?”, pensamCamilo e o leitor. Não seria muita coincidência que ele tivesse queparar bem em frente à casa da cartomante? “A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase dopríncipe da Dinamarca reboava-lhe dentro: ‘Há mais coisas nocéu e na terra do que sonha a filosofia...’” (ASSIS, 1998, p. 18).Nesse momento, o autor cria todo um clima que permite ao leitorvislumbrar melhor a cartomante:

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A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso (...)Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, elafê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que aprimeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumidada poruma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredessombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía oprestígio (ASSIS, 1998, p. 18).

A partir daí, leitor é levado a suspender a descrença em relaçãoà cartomante — ou, pelo menos, passa a desejar que ela satisfaça asua curiosidade. E, ao menos aqui, o leitor tem suas expectativassatisfeitas, na medida em que ela parece adivinhar o que levou Camiloaté ali e até prevê que tudo dará certo.

Assim, Camilo e o leitor ficam aliviados e passam a cogitaroutras possibilidades. A carta de Vilela já não é mais tão ameaçadora:ao contrário; o amigo poderia estar com problemas e cabia a ele,Camilo, socorrê-lo.

A narrativa, agora, se torna amena. A ansiedade de antesparece infundada. Os passeios inferenciais do leitor também sãoagradáveis, e é somente no último parágrafo, nas duas últimas frases,que ele (leitor) é totalmente surpreendido. De repente, ele se dá contade que a cartomante se enganara e que eram as primeiras hipótesesformuladas a respeito de Vilela que estavam corretas:

Vilela não respondeu; tinha as feições descompostas; fez-lhe sinal, eforam para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar umgrito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta eensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver,estirou-o morto no chão. (ASSIS, 1998, p. 20)

Dessa forma, confirma-se a primeira hipótese, de que o autordas cartas era Vilela e que ele sabia de tudo. Mas, pelo desenrolar danarrativa, o que o leitor não esperava é que ele fosse tão longe eassassinasse seu melhor amigo e sua esposa.

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(In)Conclusão

Este artigo pretendeu menos tirar conclusões fechadas do querefletir acerca da questão do leitor, especialmente nos contos deMachado de Assis. Cada conto, uma surpresa, um leitor diferente.Machado sabe como frustrar, surpreender e atender às expectativasdo leitor na medida certa. Ele o leva a formular hipóteses, a“passear”, a suspender sua descrença, a refletir...

Ao ler os contos de Machado — ótimos exemplos de textos“abertos” — , é possível perceber que o leitor vai sendo construídoà medida que a narrativa evolui. O escritor parece saber exatamenteo que fazer para conduzir o leitor da maneira que mais lhe convém.

É lógico que tudo isso são também hipóteses, passeiosinferenciais e mais uma das inúmeras facetas interessantes a seremanalisadas na obra do bruxo do Cosme Velho. De qualquer maneira,esta foi uma tentativa de aplicar a teoria à prática — tarefa árdua e(por que não dizer?) pouco executada.

Talvez tenha sido pretensão, ousadia, mas a teoria de nadavale se ela não pode ser aplicada à realidade. Muitas vezes, essaaplicação parece impossível, mas se toda teoria deve ter sua utilidade,então, é necessário que se suspenda a descrença e se reflita e se tente,pelo menos, tornar o que é tão abstrato um pouco concreto.

Referências bibliográficas

ASSIS, Machado de. A chinela turca. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Garnier,1989.

______. A Cartomante. Várias histórias. São Paulo: Ática, 1998.

ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1986.

______. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhiadas Letras, 1999.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura, vol. I. São Paulo: Editora 34, 1996.

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DOIS IRMÃOS OU UM ‘EU’DIVIDIDOTWO BROTHERSORAN’I’SPLITED

Rodirlei Silva Assis(UNESP-Assis)1

RESUMO: Este artigo tem por finalidade analisar as imagensdo Líbano presentes em Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum.A ênfase memorialística do romance proporciona um conjuntode imagens orientais que, embora não se prendam ao aspectoda materialidade direta, se coadunam e se colam a imagensinerentes a múltiplas nacionalidades. São conjuntos imagéticosque desenham uma espécie de mosaico identitário capaz nãosomente de surpreender a condição diaspórica dos povosoriundos do Oriente Médio, radicados em Manaus nos primeirosdecênios do século XX, mas a trajetória humana em busca dasobrevivência. Para demonstrar como a materialidade funciona,em Dois irmãos, apenas como topos das construções identitárias,nossa análise parte das localizações espaciais, relativas, sobretudoà imagem da casa, que aqui temos como repositório imagético,

1 Pós-doutor em Literatura Comparada junto ao Departamento de Letras Modernas (DLM) daUniversidade Estadual Paulista (UNESP/Assis), sob a supervisão do Dr. Antonio RobertoEsteves.

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para a apreensão da complexidade cultural que é construída nocerne da narrativa.

PALAVRAS-CHAVE: Dois irmãos (2000), Milton Hatoum,interculturalidade, identidade e alteridade, imagens do oriente.

ABSTRACT: This article aims to analyze the images of the MiddleEast constructed on the novel Dois irmãos, by Milton Hatoum. Theemphasis of the memorial provides a novel set of oriental imagesthat does not relate directly to the aspect of its materiality, but inline and stick to the images attached to multiple nationalities, recre-ating a kind of mosaic of identity, not only able to surprise thediasporic condition of the people from the Middle East, locatedin Manaus during the first decades of the twentieth century, butalso the human journey in search of survival. In order to demon-strate how the substantive work in Dois irmãos, just like the tops ofidentity construction, our analysis deals with the spatial locations,related mainly to the image of the house (we have here as a re-pository of imagery), for grasping the cultural complexity that isthe central focus of the narrative.

KEYWORDS: Dois irmãos, interculturalim, national identity, Eastand West.

A imigração constitui um dos temas mais frutíferos da literaturauniversal, pois permite a projeção de múltiplos conflitos, interiorese exteriores, de personagens que não detém o domínio prático sobreos espaços que percorrem por sentirem o peso asfixiante da saudadee das diferenças culturais.

Poucos, porém, são os textos que se aventuram a divisar oque existe além da barreira da saudade e das diferenças para traduziro que ocorre quando as imagens do outro já estão internalizadas nocotidiano das personagens, e a pátria de origem já é um domíniotão distante que não mais permite o retorno, físico e/ou ideológicodo exilado. Ademais, a viagem de retorno não se faz, jamais, sem

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vincos profundos, ou, como salienta Edward Said, resultapraticamente impossível:

O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrívelde experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e umlugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamaispode ser superada. E, embora seja verdade que a literatura e a históriacontêm episódios heróicos, românticos, gloriosos e até triunfais da vidade um exilado, eles não são mais do que esforços para superar a dormutiladora da separação. As realizações do exílio são permanentementeminadas pela perda de algo deixado para trás para sempre. (SAID,2003, p. 46)

Nessa diretriz, podemos afirmar que Dois irmãos, romancepublicado em 2000 pelo amazonense Milton Hatoum, assume odesafio do exame do que se esconde além da temática da imigração e,por intermédio da reunião de pedaços memorialísticos dispersos nocotidiano de uma família vinculada às origens sírio-libanesas, esboçaa convivência de dois gêmeos antagonistas, Omar e Yaqub, os quaisconstituem o resultado do conflito cultural direto entre o eu e o outro,vivenciado pelos pais, Halim e Zana, que fazem de Manaus e, porextensão, do Brasil, os espaços escolhidos onde vincar raízes, malgradoas diferenças culturais com as quais se deparam ao ostentar sua tradiçãooriental na Manaus dos primeiros decênios do século XX.

A escolha, por parte dos personagens Halim e Zana, de sefixarem no Brasil e de aqui criarem seus filhos, insere-se no queTodorov denomina transculturação, algo peculiar ao indivíduo queprojeta seu próprio desenraizamento cultural quando se desloca oué deslocado de sua pátria e, por conseguinte, se deixa absorver pelavivência cultural de outro país:

O homem desenraizado, arrancado de seu lugar, de seu meio, de seupaís, sofre em um primeiro momento [...]. Ele pode, entretanto, tirarproveito de sua experiência [...]. Talvez ele feche em ressentimento,

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nascido do desprezo ou da hostilidade de seus hospedeiros. Mas, se eleconseguir superá-los, descobre a curiosidade e aprende a tolerância.(TODOROV, 1999, p. 24).

A narrativa de Dois Irmãos constitui o desejo de junção dos pedaçosde identidade (libanesa, árabe, brasileira, manauara) dispersos pela cidadede Manaus, que vão se colando às personagens esboçadas nos limitesespaciais circunscritos por Nael, o narrador, que extensivamente investigaa sua própria identidade nos meandros do que ocorre no olho do furacãofamiliar: os embates entre Omar e Yaqub:

Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde tinha vindo.A origem: as origens. Meu passado, de alguma forma palpitando navida dos meus antepassados, nada disso eu sabia. Minha infância, semnenhum sinal da origem. É como esquecer uma criança dentro de umbarco num rio deserto, até que uma das margens a acolhe. Anos depois,desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. Domingas disfarçava quandoeu tocava no assunto; deixava-me cheio de dúvida [...]. (HATOUM,2000, p. 73)2

Nael é filho de Domingas, uma índia que Zana praticamentecompra para ser a empregada da família. O pai de Nael é um dosgêmeos, mas Domingas hesita em dizer-lhe qual. Anos mais tarde,retoma pela memória os fatos geradores da composição e ruína dafamília de origem sírio-libanesa, da qual ele também faz parte mesmoque de modo aparentemente espúrio.

O cenário de Dois irmãos é a Manaus de praticamente todo oséculo XX. O chamado ciclo da borracha na região amazônica nasúltimas décadas do século XIX e início do século XX trouxe grandecontingente de forasteiros à região em busca de uma riquezaaparentemente fácil.

2 A partir desse momento, todas as citações referentes ao romance Dois Irmãos, de MiltonHatoum, pertencem à edição de 2000, publicada pela editora Companhia das Letras.

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Aliado a isso, as crises enfrentadas pela Europa e pelo OrienteMédio nas décadas de transição entre o século XIX e o XXexpulsaram grandes contingentes humanos que se dirigiam ao Brasilem busca de melhores condições de vida. Entre eles estão os sírio-libaneses, cuja primeira leva significativa chegara aqui por volta de1880. Em 1920, devido aos embates étnicos no Oriente Médio,contavam-se cerca de cinqüenta mil imigrantes, dentre árabes elibaneses, localizados, sobretudo, no estado de São Paulo e na regiãoamazônica, regiões prósperas à época, por conta da economiacafeeira e gomífera, respectivamente.

A família focalizada em Dois irmãos, encabeçada pelos libanesesHalim – o fato de ser comerciante reflete suas raízes, ligadas aospovos do mediterrâneo - e Zana, pais de Omar e Yaqub3, constituio eixo pelo qual ocorre a composição romanesca desse êxodohistórico. Sua inserção na Amazônia brasileira aponta para diálogosentre as imagens do Oriente presentes em cenário brasileiro,circunscritas na superfície da referida narrativa, sem que ainda sereduza o romance a essa perspectiva de compreensão.

Romance complexo, Dois Irmãos, trata entre outros temas, daquestão da imigração ou o conflito entre os irmãos (que, de antemão,poderia erigir um grande épico), haja vista que as estruturascondensadas que compõem os fatos perdem relevo diante da sonorareverberação da memória de Nael que intenta colarcompassadamente os destroços familiares obstantes de umaidentidade perfilada enítida que se queira encontrar. No entanto,como afirma o crítico Francisco Foot Hardman que “a obra deficção de Milton Hatoum não se encaixa na rubrica de imigrantesno Brasil, nem tampouco na linhagem do regionalismo amazônico

3 No romance Dois Irmãos, Omar e Yaqub, gêmeos idênticos, nascidos em Manaus, crescemassumindo pontos de vista opostos, odiando-se pelo amor da mesma mulher. A única diferençafísica entre os dois passa a ser a cicatriz que Yaqub apresentava no rosto, fruto de um golpe deestilhaços de garrafa, desferido por Omar, durante uma festa em que o irmão beijava a mulherdesejada por ambos, Lívia. Não obstante o gosto idêntico, ideologicamente os gêmeos nãoapresentam nenhuma semelhança. Ao contrário, seriam as faces distintas de uma mesma moeda.

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[ou ainda] de uma representação étnico-social específica de umgrupo.” Diríamos ainda mais: a maturidade estética do texto deHatoum nos conduz a discussões de níveis mais amplos, já que odiscurso memorialístico e a complexidade construtiva daspersonagens não permitem que o romance esteja limitado ao relatosocialmente demarcado ou à ingenuidade histórica.

Dois Irmãos é romance em que ressoam os relatos bíblicos quese acercam do antagonismo entre os dois irmãos, inseridos em umâmbito de onde as tradições ancestrais erigem regras à vida cotidiana,promovendo quebras de tabus e de marcas ideológicas bastanteespecíficos. Uma dessas matrizes estaria na narrativa de Esaú e Jacó,constante do livro de Gênesis, em que o duelo entre os gêmeos,manifestado desde o ventre de sua mãe, transporta-se para a idadeadulta dos dois e culmina em uma questão envolvendo a identidadefamiliar e as suas tradições – no caso, a venda da primogenitura,muito prezada dentro do perfil da primitiva sociedade no OrienteMédio.

A absorção de questões identitárias relativas à tradição sírio-libanesa e o contraste entre irmãos criados no mesmo berço familiarencontram-se também em Lavoura Arcaica (1975), do paulistaRaduan Nassar, romance em que a quebra de tabus envolvendo atradição familiar é determinada pela paixão incestuosa entre osirmãos André e Ana. Mantenedor da tradição familiar, o provávelsucessor do pai no trato campesino, Pedro, o irmão mais velho,opõe-se ao caçula André e contribui para a construção das duasforças que se chocam dentro do romance4.

4 Há que se notar que em Lavoura Arcaica, André, afastando-se do âmbito familiar que nãoaceitava seu comportamento, promove, paradoxalmente, a aproximação com suas própriasraízes. Por rejeitar relacionar-se com outra mulher que não pertencesse ao tradicional ambientefamiliar, encabeçado pelo rígido pai, Iohana, intenta, ontologicamente, a perpetuação de suasorigens. O incesto também aparece insinuado em Dois Irmãos, onde temos a figura da jovemRânia, que durante toda a narrativa flerta com seus irmãos, Omar e Yaqub e rejeita casar-se comqualquer pretendente requisitado pela mãe, Zana, em quem também se permite entrever,mediante suas atitudes, o desejo carnal que nutre pelo boêmio Omar.

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Acerca da relação dessas forças interiores que se apegam aosubstrato do dia-a-dia familiar e se chocam, fazendo submergirtraços elementares de nossas origens e de nossa tradição em formade imagens são esclarecedoras as asserções de Quillet sobreBachelard, cujo pensamento aponta, pois, para uma espécie decausalidade ontológica dessa “rivalidade” – para usar um termocaro ao patriarca Halim sobre o duelo dos filhos – presente em Doisirmãos e em Lavoura Arcaica:

É no simbolismo freudiano que reencontramos nossos próprios temasfamiliares: nossos incestos, nossos parricídios, nossas depravações sexuais,nossos subentendidos mutiladores, nossos fetichismos, masoquismosetc. As coisas, nesse âmbito, são apresentadas de maneira humanizada,por meio de alguma substituição pelo objeto; [...] O mundo humanonão tem, desse modo, o primeiro papel na gênese das estruturas dapsique senão por meio de mal-entendidos; há, por exemplo, um mal-entendido claro em relação ao conceito de força na análise da resistência.[Remetendo a Bachelard]: “os psicanalistas freudianos nos dizem queos verdadeiros adversários são ‘humanos’, que a criança encontra asprimeiras interdições na família e que em geral, as resistências quemaltratam o psiquismo são sociais.” Mas é no mundo dos símbolosque a resistência é humana. No mundo da energia ela é material.(QUILLET, 1964, p. 92-93 [tradução nossa])

Assim é que interessa-nos, a partir da leitura de algunsfragmentos de Dois irmãos, demonstrar como uma leitura localizadano viés de divisar categorias identitárias homogêneas empobrece adimensão constitutiva do romance e pode ofertar-se a estereótipos5.

5 Nesse sentido, Stephânia Chiarelli em seu Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet eMilton Hatoum, lança luz sobre um ponto importante percebido por Edward Said, no tocanteà problemática instaurada pelos Estudos Culturais que privilegiam a categorização identitária.A estudiosa afirma que “o texto de Said suscita uma primeira indagação: como evitar que essetema da alteridade, tão amplamente defendido pelos Estudos Culturais, não se transforme emlimite que acabe aprisionando e banalizando seu objeto, passível de abordagem “apenas poraquilo que traz seu caráter de diversidade”, como afirma o crítico Hommi Bhabha? Um primeirodesafio é o de evitar que essa condição se torne fetiche, que a diferença se torne uma arma.”(2005, p. 17)

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Até porque não cremos ser possível uma plenitude identitária emnenhum grau, menos ainda no âmbito analítico. Como salienta StuartHall, a identidade cultural não é algo concreto, pois “não é algoinato, existente na consciência desde o nascimento. [...] está sempreem processo, sempre sendo formada” (1999, p. 38). Por isso,observamos os retratos orientais, aqui escolhidos, como topos daprópria experiência humana que tateia, no âmbito da história, embusca de um lugar para pertencer e de uma cultura para se auto-afirmar, mesmo que esse lugar não seja originariamente o seu e essacultura, aquela na qual nasceu.

A leitura de um romance interessada em promover diálogosentre culturas que em nível ideológico se ofertam ao embate (comoas do Oriente e do Ocidente) a partir do texto literário (promotorde sua difusão) deve, pois, ser efetuada frente à complexidade doseu conjunto multifacetário e não na ingenuidade de sua apriorísticaindividualidade6. Somente assim se faz jus ao entendimento maisacertado das diferenças culturais que aproximam, de fato, ‘mundosdistantes’ (o Brasil e o Oriente Médio, no caso) em Dois irmãos e quecondiz com a objetivação narrativa pretendida por Hatoum notocante aos seus romances:

Mas o meu trabalho não tem a ver com a literatura de imigrantes. Oponto de partida do meu mundo ficcional é o porto de Manaus, querdizer, a infância. Aliás, um porto com cais flutuante, que pode ser ametáfora de personagens em trânsito e da alternância entre o passado eo presente. As referências ao Oriente exprimem mais um sentimentodo que uma opção. O meu pai era libanês, meus avós maternos também.A comida e a língua árabe, a cultura, tudo isso era muito presente e aomesmo tempo mesclada com a cultura amazônica. Nasci e cresci nesse

6Trata-se, inclusive, de uma das preocupações manifestadas pelos estudos culturais imagológicos.Para a Imagologia, cujos estudos modernos localizam-se na década de 1950, o trabalho com asimagens culturais deve privilegiar o diálogo intercultural, do qual não se pode escapar em ummundo globalizado, e não a determinar distinções entre identidades culturais. Vivemos emmundo em que cada qual pretende revelar as marcas de sua formação identitária, pelo sentimentode pertença que nos envolve, indelevelmente.

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ambiente carregado de hibridismo cultural, ouvindo a língua portuguesacom sotaque amazonense, que ainda mantém um vocabulário indígenamuito rico. (MARETTI, p. 220 [entrevista]).

Ademais, a escolha das imagens aqui analisadas determina-sepela caracterização espacial, sobretudo no que concerne ao espaçoda casa, por julgarmos que são locus de onde emanam os perfisidentitários aderidos às imagens orientais resgatadas pelaspersonagens que as evocam. A casa é, até mesmo por sua possívelassociação ao útero materno, por conseguinte, em Dois irmãos, aconstrução material onde se atrelam as raízes familiares, o desejodo retorno, a identificação, a auto-afirmação, a evocação do passadoe a saudade.

A primeira imagem oriental que encontramos é aquela comque nos deparamos nas primeiras páginas do romance e advém dacaracterização da matriarca Zana, quando compara a cidade deManaus com a sua cidade origem, Biblos, no Líbano: “Zana teve dedeixar tudo: o bairro portuário de Manaus, a rua em declivesombreada por mangueiras centenárias, o lugar que para ela era quasetão vital quanto a Biblos de sua infância” (p. 8)

Salta aos olhos que Biblos, localizada a quarenta e doisquilômetros de Beirute, no Líbano, é, nos dias atuais, um dos terrenosarqueológicos mais atrativos aos pesquisadores, devido à intensaatividade humana que manteve, por séculos. Berço da atividadereligiosa de árabes, fenícios e egípcios, que ali estiveram por voltado IV século a. C, Biblos também era, na Antiguidade, conhecidapor proporcionar intenso comércio com povos estimulados pelaqualidade de sua madeira e pelo cobre que possuía; bem como pelopapiro, que dera origem ao seu nome - em grego, “biblos” significa“papiro egípcio”.

O processo memorialístico realizado pelo narrador Nael,recordando como Zana se sentia no final da vida, ressuma aspectoscircunscritos à identidade e às origens, que nunca se afastam de diante

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do eu e dos espaços e costumes que estão vinculados à suaconvivência imediata, cotidiana, de tal maneira que as comparaçõesjá não mais resultam simplistas, como se emanassem da surpresa doprimeiro encontro e do encantamento inicial. As imagens, porém,nesse âmbito, já possuem contornos retorcidos pela memória queas resgata e não podem mais ser distorcidas pelo olharimpressionista, dado o concurso do tempo que as amadureceu.Desse modo, mesmo que a memória da matriarca traga à tonaaspectos de sua infância ligada ao Oriente, é impossível, por meiodela, delimitar o Oriente em contraste com o Ocidente. Por outrolado, permite antever o Oriente dentro do Ocidente.

Para Zana, o bairro portuário de Manaus se confundia, naqueleínterim, com a cidade de Biblos de sua infância (que por si recende,metaforicamente, à recordação, por se tratar, como acimaafirmamos, de um espaço que por séculos se ofereceu a intensaatividade humana) e ter de deixá-la7 estaria próximo das evocaçõesdo Líbano, pois o lugar onde ela vincara raízes “era quase tão vitalquanto a Biblos de sua infância” (p. 9). A respeito da evocação dacasa pela memória, pontua Bachelard:

[…] a casa é, evidentemente, um ser privilegiado; isso é claro, desde quea consideremos ao mesmo tempo em sua unidade e em suacomplexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares emum valor fundamental. A casa nos fornecerá simultaneamente imagensdispersas e um corpo de imagens. Em ambos os casos, provaremos

7 Os irmãos, não podendo se autodestruir, “eliminam” a casa, o repositório imagético da família,onde os “pedaços” familiares, presos às recordações, traziam a Halim, Zana e Nael, sobretudo,as lembranças de outros tempos, de suas raízes circunscritas à transitividade (do olhar rente aoobjeto casa para a recordação; da materialidade para a imaterialidade da memória e do devaneio).Se para essas personagens a casa em Manaus trazia aspectos bons, para os gêmeos constituía aarena onde seu conflito se originara e era ali que deveria terminar. Não obstante, a entrega dacasa ao indiano Rochiram não a eliminou de Nael, o narrador, que a resgata pela memória,juntamente com seus detalhes, seus quartos, suas adjacências e a família libanesa que nela viveu,por anos. Ademais, Nael continua a morar em um quarto ao lado da casa. Isso condiz com a“complexidade” do que Bachelard percebe nesse “ser privilegiado” que é a casa.

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que a imaginação aumenta os valores da realidade. Uma espécie deatração de imagens concentra as imagens em torno da casa. Através daslembranças de todas as casas em que encontramos abrigo, além de todasas casas que sonhamos habitar, é possível isolar uma essência íntima econcreta que seja uma justificação do valor singular de todas as nossasimagens de intimidade protegida? Eis o problema central.(BACHELARD, 2000, p. 23).

Portanto, a casa absorve imagens cambiantes. A busca deorigens identitárias delimitadas, por intermédio de sua evocaçãoé tarefa intratável, visto que, como observa Bachelard, o espaçoda casa é capaz de adquirir contornos muito complexos. A casa(casas?) de Zana, tanto a do Líbano quanto a de Manaus, semisturam em seu pensamento, tornando-se inseparáveis: “a pequenacidade do Líbano que ela recordava em voz alta, vagando pelosaposentos empoeirados até se perder no quintal, onde a copa daseringueira sombreava as palmeiras e o pomar cultivados por maisde meio século” (p. 9). O Oriente e o Ocidente se misturam juntoàs suas recordações, por não terem contornos fixos, e a casa doLíbano pairava evocativamente dentro da casa de Manaus,indelevelmente. E, dessa forma, a seringueira e a palmeira,tipicamente brasileiras tornam-se topos para o resgate imagéticoda infância libanesa efetuada por Zana, justamente pelo fato deque são as poucas balizas concretas, seculares, dentro de um mundorecheado de memórias flutuantes, de lá para cá e daqui para lá.8 Oresgate memorialístico da casa é importante enquanto reveladorda humanidade que se prende à sua estrutura física. A passagemdo estrutural para o humano, por intermédio da evocação dá-sepor meio da transposição:

8 Ademais, retomando Gaston Bachelard, a casa é repositório de imagens flutuantes pelo fato deque seu aspecto pode ser transformado, os móveis podem ser trocados de lugar e as pessoas quenela habitam ou por ela passam também não possuem contornos fixos. Não obstante, osreferenciais que a ela são remetidos, como o típico cenário em que se insere ou as recordações,advindas dos retratos fotográficos e da memória, são reportes imagéticos que a resgatammaterialmente durante a evocação.

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Com efeito, a casa é, à primeira vista, um objeto que possui uma geometriarígida. Somos tentados a analisá-la racionalmente. Sua realidade primeiraé visível e tangível. É feita de sólidos bem talhados, de vigas bemencaixadas. A linha reta é dominante. O fio de prumo deixou-lhe amarca de sua sabedoria, de seu equilíbrio. Tal objeto geométrico deveriaresistir a metáforas que acolhem o corpo humano, a alma humana. Masa transposição ao humano se faz imediatamente, desde que se tome acasa como um espaço de conforto e intimidade, como um espaço quedeve condensar e defender a intimidade. Abre-se então, fora de todaracionalidade, o campo do onirismo. (BACHELARD, 2000, p. 386)

Nesse mesmo perímetro a imagem espacial é atrelada àscaracterizações orientais de/em Galib, pai de Zana. Galib tambémmanifestava o desejo de perpetração de raízes originais pelodesenraizamento, como ocorre com sua filha. O velho libanês era donode um restaurante em Manaus, significativamente denominadoBiblos, onde se reuniam imigrantes de diferentes nacionalidades, amisturar suas culturas e a expressarem-se em diferentes línguas:

Por volta de 1914, Galib inaugurou o restaurante Biblos no térreo dacasa. O almoço era servido às onze, comida simples, mas com saborraro [...]. Desde a inauguração, o Biblos foi um ponto de encontro deimigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos que moravam na praçaNossa Senhora dos Remédios e nos quarteirões que a rodeavam. Falavamportuguês misturado com árabe, francês e espanhol, e dessa algaraviasurgiam histórias que se cruzavam, vidas em trânsito, um vaivém devozes que contavam um pouco de tudo: um naufrágio, a febre negranum povoado do rio Purus, uma trapaça, um incesto, lembranças remotase o mais recente: uma dor ainda viva, uma paixão ainda acesa, a perdacoberta de luto, a esperança de que os caloteiros saldassem as dívidas.Comiam, bebiam, fumavam, e as vozes prolongavam o ritual, adiandoa sesta. (p. 48).

No restaurante de Galib, o encontro entre os imigrantesocorria de maneira cordial. Era onde as nacionalidades de um

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mundo conflitante interagiam e se confluíam, em ambiente propício,mesmo simbolicamente, à reunião das diferenças. O restauranteBiblos, homônimo da cidade libanesa, resgata-a imageticamente pelacoincidência dos caracterizadores históricos agregados àrememoração de Galib relativamente às suas origens (dele e da suacidade natal). Tem-se, no retrato do velho libanês a imagem de quemproporciona o elo entre as distintas culturas, as quais, no restaurante,buscavam o entendimento. As diversas línguas que se mesclavamali, “português misturado com árabe, francês e espanhol” nãoconstituíam o menor empecilho. O sumo memorialístico dessas“vidas em trânsito” é recolhido por Zana, que aparece no início danarração de Hatoum com o desejo de recompor os pedaços daidentidade de sua família – de Galib, de Halim, de Domingas, dosfilhos e de si mesma -, pelo menos os que restaram presos a casa eevocados juntamente com a lembrança de sua cidade natal, Biblos.

Como se exemplifica aqui, o narrador, em nenhum momentoconduz a narrativa para a absorção de imagens específicas acercadas muitas nacionalidades existentes em Manaus, pois não lhesconfere contornos definidos. Ao contrário, mostra a complexidadecultural daqueles que buscam se encaixar humanamente em umespaço “onde escolhemos viver”, como denotam as palavrasdesaprovadoras de Halim sobre o retorno físico de Galib à suacidade natal, no final da vida (p.56).

Na narrativa a matriarca Zana, a quem o narrador reservagrande atenção dada à sensível absorção que essa personagemdemonstra com referência ao conflito familiar atinente aos filhos,no final de sua vida o desenraizamento tinha adquirido feições tais quea complexidade advinda da multiplicidade dos espaços (odiaspórico, de sua infância, e o do Brasil, de sua criação), somentepoderia ser refeito pela memória flutuante, no tocante às pequenascoisas que ascendiam imagens do histórico familiar. Para efetuar esseresgate, sinalizador do encontro com o passado que persegue, Zanaentrega-se constantemente ao recolhimento, como quando “foge”da impetuosidade libidinosa do marido: “Nas manhãs de domingo

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Zana resistia aos galanteios de Halim e corria para a igreja NossaSenhora dos Remédios [...]” (p.56). Da mesma forma, logo após amorte de seu pai:

[...] quando Zana soube, se trancou no quarto do pai, como se ele aindaestivesse por ali [...].Duas semanas trancada no quarto, duas semanas sem dormir comHalim. Gritava o nome do pai, atordoada [...]. (p.56)

As relações tornam-se para ela, com o passar do tempo, maisrelevantes do que a fixidez espacial, fossem no Líbano ou no Brasil,de modo que o espaço começa a interessar-lhe apenas enquanto lugarde onde as imagens familiares emergem. Isso porque a casa, dada asua complexidade, constitui-se como forma de representação domundo vivido e está, em Dois irmãos, muito mais para umapersonagem do que para um limite geográfico constituído por meiode procedimentos narrativos.

Cabe notar que a epígrafe escolhida por Hatoum para seuromance é um trecho do memorialístico “Liquidação”, de CarlosDrummond de Andrade, presente em Boitempo, de 1968:

A casa foi vendida com todas as lembrançastodos os móveis todos os pesadelostodos os pecados cometidos ou em vias de cometera casa foi vendida com seu bater de portascom seu vento encanado sua vista do mundoseus imponderáveis [...] ( in HATOUM, 2000, p. 9)

Outro momento em que a casa aparece como repositório deimagens dentro de um limite complexo e flutuante é quando Yaqubretorna do Líbano onde ficara por seis anos, enviado pelos pais quequeriam afastá-lo da contenda instaurada com o gêmeo Omar, dequem passa a se constituir um díspar:

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Agora o Land Rover contornava a praça Nossa Senhora dos Remédios,aproximava-se da casa e ele não queria se lembrar do dia da partida.Sozinho, aos cuidados de uma família de amigos que ia viajar para oLíbano. Sim, por que ele e não o Caçula, perguntava a si mesmo, e asmangueiras e os oitizeiros sombreando a calçada, e essas nuvens imensas,inertes como uma pintura em fundo azulado, o cheiro da rua da infância,dos quintais, da umidade amazônica, a visão dos vizinhos debruçadosnas janelas e a mãe acariciando-lhe a nuca, a voz dócil dizendo-lhe:“Chegamos querido, a nossa casa...” (p. 20)

Halim e Zana, notando o conflito entre os gêmeos, tinhamenviado Yaqub para o Líbano, num fracassado empenho depossibilitar ao filho tanto o afastamento temporário da violênciade Omar quanto o encontro com raízes familiares. Intentamprovocar no filho, ontologicamente, o processo da transformaçãocíclica, como ocorrera com o filho pródigo da parábola de Jesus,que ao sair de casa pensa nos benefícios da casa paterna e a elavolta. Todavia, para o gêmeo não se tratava da busca de suaspróprias raízes, pois não nascera no Líbano, mas no Brasil, demodo que se sente “arrancado de seu lugar” (TODOROV, 1999,p. 24). A identificação que Yaqub tem com a Manaus de suainfância em nenhum momento surge como desprezo pelo Líbanoe pela cultura oriental, mas é designativa do desejo do retorno,visto que a certeza da volta à terra natal obsta-se aodesenraizamento:

Na canoa, remando para o pequeno porto, ele me disse que nunca ia seesquecer do dia em que saiu de Manaus e foi para o Líbano. Tinha sidohorrível. “Fui obrigado a me separar de todos, de tudo... não queria.”A dor dele parecia mais forte que a menção do reencontro com omundo da infância. (p. 116).

Há que se notar, no entanto, que Yaqub retorna do Líbano em1945 com alguns comportamentos tidos como característicos da aldeia9

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em que permaneceu, no sul do Líbano. Esses costumes não são vistoscom bons olhos pelas pessoas, como quando urina na rua, em plenaCinelândia, no momento em que Halim fora buscá-lo no Rio de Janeiro,após o regresso. Para o pai, no entanto, esse episódio, muito emborainaceitável, também não tipificava traços negativos atrelados às imagensdo Oriente, já que o vexame que sentira diante da cena inusitada nãoestava limitado a caracterizações identitárias, mas a traços de carátermanifestados tanto por Yaqub quanto por Omar:

Ele teve de engolir o vexame. Esse e outros, de Yaqub e também dooutro filho, Omar, o Caçula, o gêmeo que nascera poucos minutosdepois. O que mais preocupava Halim era a separação dos gêmeos,“porque nunca se sabe como vão reagir depois”. (p. 15)

À mãe, porém, esses e outros comportamentos do filho Yaqubestariam cristalizados ao primitivismo cultural da aldeia do pai,localizada no sul do Líbano, de influência muçulmana, como resgatao narrador mediante o emprego, não raro, do discurso direto,provavelmente para se eximir de qualquer participação noreducionismo contido na visão da matriarca de formação cristã:

Desde o dia da partida, Zana não parou de repetir: “Meu filho vai voltarum matuto, um pastor, um ra’í. Vai esquecer o português e não vai pisarem escola porque não tem escola lá na aldeia da tua família”. (p. 15)“Coitado! Ya haram ash-shum!”, lamentou Zana. “Meu filho foi maltratadonaquela aldeia.”Ela olhou para o marido:Imagino como ele desembarcou no Rio. Querem ver a bagagem quetrouxe? Uma trouxa velha e fedorenta! Não é um absurdo?”(p. 23-24)

Yaqub também é hostilizado no Colégio devido ao seucomportamento:

9 As menções à aldeia da família de Halim, por parte de Zana, recobram o sentido de casa,apontado nessa análise como repositório imagético.

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Yaqub, que perdera alguns anos de escola no Líbano, era um varapaunuma sala de baixotes. Zana temia que ele mijasse no pátio do colégio,comesse com as mãos no refeitório ou matasse um cabrito e o trouxessepara casa [...]. (p. 30)

Nael, no entanto, entende o comportamento de Yaqub comotípico da misantropia e do espírito recluso do gêmeo e não o atribuia traços negativos advindos da aldeia de Halim e nem mesmo acerto primitivismo que porventura se aderisse à cultura oriental ouaos muçulmanos10. Ao fim e ao cabo, deixa entrever que ainaceitabilidade de Zana em relação ao comportamento de Yaqubdevia-se à diferença em relação ao irmão Omar e não aos vincosculturais e religiosos trazidos do Líbano. Assim, nem mesmo elateria por finalidade detratar a cultura de onde também teria vindo,malgrado as próprias diferenças internas entre o norte e o sul de seupaís de origem, mas rechaçar atitudes do filho que não condiziamcom suas expectativas como genitora. Todavia, nesse instante danarração, ela ainda não possuía a maturidade que demonstra no final,quando se recolhe às origens por intermédio da rememoração.Acerca do ponto de vista que Nael deixa entrever sobre ocomportamento de Yaqub (na seqüência do resgate dodescontentamento de Zana), é lícito transcrever:

[...] Nada disso aconteceu. Era um tímido, e talvez por isso passasse por covarde.Tinha vergonha de falar: trocava o pê pelo bê (Não bosso, babai! Buxa

10 Seria Halim ou Zana quem teria enviado Yaqub ao Líbano? O romance providencialmenteinstaura a incógnita. Ora Halim acusa a Zana, ora Zana a Halim. Diz o pai: “A minha maiorfalha foi ter mandado o Yaqub sozinho para a aldeia dos parentes”, disse com uma voz sussurrante.“Mas Zana quis assim... ela decidiu.” (p. 57) A busca das origens faz parte do itinerário de ambasas personagens: Zana por intermédio de suportes espaciais, como a casa e Halim por meio dapreservação da memória em si. Como uma espécie de Sherazade masculina, o patriarca demonstrao intenso desejo de contar minuciosamente a Nael as situações que emanam de seus desejos maisprofundos: “ Desta vez Halim parecia baqueado. Não bebeu, não queria falar. Contava esse eaquele caso, dos gêmeos, de sua vida, de Zana, e eu juntava os cacos dispersos, tentandorecompor a tela do passado”. (p. 134). Zana, pressentindo o final da vida praticava o mesmoprocesso do marido: “Aos poucos, Zana me contou coisas que talvez poucos soubessem [...]. Elafalava aos pedaços, e ela mesma fazia as perguntas [...]” (p. 250-251).

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vida!), e era alvo de chacota dos colegas e de certos mestres que o tinhamcomo um rapaz rude, esquisito: vaso mal moldado. (p.30 [grifo nosso])Trancava-se no quarto, o egoísta radical, e vivia o mundo dele, e de ninguém mais.O pastor, o aldeão apavorado na cidade? Talvez isso, ou pouco mais: omontanhês rústico que urdia um futuro triunfante.Esse Yaqub, que embranquecia feito osga em parede úmida, compensavaa ausência dos gozos do sol e do corpo aguçando a capacidade decalcular, de equacionar. (p. 32 [grifo nosso])

Assim, é que, para o narrador Yaqub esboçava imagenspositivas relativamente ao Oriente Médio. O fato de ter estado numaaldeia de simples pastores no sul do Líbano dimensiona a quietudedemonstrada pelo gêmeo e aumenta a saudade de suas origensmanauaras. Atitude que talvez provocasse esse estranhamento naefervescente Manaus do início da década de 1940. A misantropiavista como um comportamento “radical”, nas irônicas palavras deNael, para materializar a imagem que as pessoas tinham de Yaqub, éatitude tomada positivamente pelo narrador, que nela enxergava ogérmen do planejamento da vida da personagem, de seu “futurotriunfante” como engenheiro formado pela Escola Politécnica daUniversidade de São Paulo. Ademais, o gosto pelo cálculo é imagempositiva a respeito da cultura oriental, impregnada em Yaqub, hajavista que foram os árabes os inventores dos números. Se, por acaso,Yaqub tivesse trazido algo mais do Líbano além do desejo deaprofundar-se em sua interioridade, seria o gosto pela matemática.

A trajetória de Yaqub de Manaus para o Líbano, do Líbanopara Manaus e de Manaus para São Paulo é sintomática de suanecessidade de galgar os espaços, de não ter casa fixa, de desapegar-se de suas origens materiais, para não voltar a viver a “bruscaseparação [...] de seu mundo” (p.116), ao mesmo tempo em queparece ligar-se a uma imagem acerca dos povos árabes, vagandocontinuamente ao longo da história. No episódio da entrega da casaao indiano Rochiram, o gêmeo foi o primeiro a acenar positivamentepara que se desfizessem da casa dos pais:

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Era Rochiram [...]. As lentes esverdeadas escondiam os olhos, e esta eraa grande novidade no rosto dele. Rânia ouviu as palavras que esperava:a dívida dos dois irmãos em troca da casa de Zana. No entanto, [Rânia]surpreendeu-se quando ele acrescentou: “Seu irmão, o engenheiro, estáplenamente de acordo.” (p. 252)

Porém, quando ele passeava com Nael por Manaus sentiasaudades de sua infância. A relação de Yaqub com a sua própriaidentidade figura-se como panorâmica, não se verticalizando namaterialidade. Paradoxal para um indivíduo acostumado aosnúmeros, mas condizente com a perspectiva de um romance quedilui as diferenças em conflitos humanos não demarcados geográficae culturalmente.

Com efeito, é interessante notar, nesse âmbito, como seprocessa esse encontro dos manauaras com o que supostamente seriatípico da cultura oriental trazida por Yaqub, até mesmo para clarearas sendas de uma possível leitura demarcatória. O romance nãoapresenta nenhum estranhamento dos manauaras quanto a Halim, aZana ou aos outros imigrantes que habitavam Manaus nessemomento. Manaus era um mosaico de culturas, assim como a cidadede Biblos. O estranhamento estaria ligado ao primitivismo docomportamento do gêmeo recluso que a priori seria imagemestritamente oriental, mas que, ao fim e ao cabo, é característicatipicamente humana, não demarcada pela fatalidade cultural11

Ademais, guardadas as devidas proporções, Manaus e a aldeiade Halim aproximavam-se, nesse instante, pelas cicatrizes que aguerra deixara nesses dois espaços, no que tange aos problemas

11 Da mesma forma, a rudeza e a depravação manifestadas pelo outro gêmeo, Omar - que não sedesvinculara da casa dos pais - é vista como um conjunto de comportamentos primitivos, que,portanto, não poderiam ser localizados. Ao final da narração, Omar é descrito como um indivíduotelúrico, com a barba por fazer, o corpo sujo, carpindo a grama e defendendo-se de uns e deoutros. Halim se contrapõe ao comportamento do Caçula, assim como Zana fazia com Yaqub.Ambos, no entanto, desejavam agregar valores éticos e não étnicos a seus filhos. Tratava-se,portanto, do processo de formação do caráter dos jovens, pelo qual os pais sentiam-seresponsáveis.

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econômicos. O Líbano vivenciara imposições imperialistas inglesase francesas até 1946, encontrando-se em extrema miséria, e Manaussofria com o resfriamento econômico do surto da borracha, quecomeçava a se manifestar após o fim da guerra.

O fato de Yaqub não ter trazido nada de valor material daaldeia de seu pai evidencia essa correlação, que, embora fosse, aprincípio, mal vista por Halim, pode ser tomada, em certo grau,como sinal de generosidade em relação ao outro, na transposiçãoimagética que o olhar do libanês radicado em sua terra tem paracom o desenraizado Halim, haja vista que seus parentes tinham-lheenviado alguns pães e figos, ou seja, alimento, que apodreceu durantea viagem:

E depois os quatro beijos no rosto, o abraço demorado, as saudaçõesem árabe. Saíram do cais abraçados, atravessaram a praça Paris e a ruado Catete e foram até a Cinelândia. O filho falou da viagem e o pailamentou a penúria em Manaus, a penúria e a fome durante os anos daguerra. Na Cinelândia sentaram-se à mesa de um bar, e no meio doburburinho Yaqub abriu o farnel e tirou um embrulho, e o pai viu pãesembolorados e uma caixa de figos secos. Só isso trouxera do Líbano?Nenhuma carta? Nenhum presente? Não, não havia mais nada no farnel,nem roupa, nem presente, nada! (p. 14)

O pai, desde o princípio demonstra o espírito de superação,de tolerância em relação às diferenças, algo que Zana demoraria umpouco mais para adquirir e que os gêmeos em nenhum momentoconseguem. Após o descontentamento frente ao que Yaqub trouxerado Líbano e ao episódio em que o filho urina na rua, ele diz,categoricamente: “Sacos e roupas velhas são coisas que a genteesquece.” (p. 24)

Com o tempo, no entanto, todos se afastam fisicamente dacasa, de uma forma ou de outra. Halim falece, Omar torna-se umforagido da polícia por ter agredido Yaqub durante uma visita dogêmeo à mãe, Rânia compra um bangalô e leva a mãe para lá. Zana

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é refratária quanto à mudança, mas a iminência da entrega da casaao indiano Rochiram impõe-lhe essa necessidade. Deseja, pois, maisuma vez, antes da morte evocar as situações humanas pela memória,resgatando uma identidade complexa, multifacetária, sinuosa eimbricada, que em nada faz lembrar individualidades culturais,fossem do Oriente ou do Brasil:

Poucos dias depois, um caminhão estacionou em frente da casa e oscarregadores fizeram a mudança para o bangalô de Rânia. Zana passoua chave na porta do quarto, e do balcão ela viu a lona verde que cobriaos móveis de sua intimidade. Viu o altar e a santa de sua noites devotas,e viu todos os objetos de sua vida, antes e depois do casamento comHalim. Nada restou na cozinha nem na sala. Quando ela desceu, a casaparecia um abismo. Caminhou pela sala vazia e pendurou a fotografiade Galib na parede marcada pela forma do altar. Nas paredes nuas,manchas claras assinalavam as coisas ausentes. (p. 252).

A casa, ao mesmo tempo em que é sinônimo de posse paraimigrantes que se vêem expatriados e que encontraram um lugarpara habitar, é o repositório das imagens complexas que apontampara os diálogos culturais constantes no romance.

As imagens que aqui selecionamos demonstram como aquestão cultural em Dois irmãos, de Milton Hatoum, é complexa,isto é, está distante do intento simplista de dar forma fixa a questõesidentitárias.

As imagens do Oriente não estão circunscritas a um perfilreducionista, como se contrastassem com imagens do Ocidente, sejapositivamente ou negativamente. O que se nota, no romance, sãodiálogos entre imagens, que se confluem através de processosmemorialísticos e do retrato da cidade de Manaus durante o períodode recebimento de imigrantes de diversas partes do mundo. Amemória, após a transfiguração, afasta as materialidades, tornando-as prescindíveis.

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Podemos concluir, comungando com Francisco FootHardman afirmando que Dois irmãos não se inscreve no perfil deromances de imigrantes, mas no contexto da absorção de traçoshumanos que independem de raça, nacionalidade e etnia. Nãoobstante, contribui, sobremaneira para melhor compreendermosas linhas sinuosas e complexas por onde passam as identidadesculturais. O diálogo fino, compreensivo e tolerante entre o Ocidentee o Oriente vai sendo semeado com muita naturalidade através dorelato de Nael, a quem foi legado divulgar a complexa história daprópria família, com muita propriedade.

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LA IMAGEN FOTOGRÁFICA:UNA MIRADA IRÓNICA ENLAS GENEALOGÍAS,DE MARGO GLANTZTHE PHOTOGRAPHIC IMAGE:AN IRONIC LOOKIN” LASGENEALOGÍAS “ BYMARGOGLANTZ

Manuel Santiago Herrera Martínez(FFYL. UANL)1

Eugenia Flores Treviño(FFYL. UANL)2

RESUMEN: Nuestro objetivo general es analizar los elementossemióticos y discursivos presentes en las fotografías másrepresentativas que integran la obra “Las genealogías” de laescritora judeo-mexicana Margo Glantz, con el fin de rastrearlos rasgos que se proyectan, a partir de la ficción literaria, en la

1 Estudiante de doctorado. Área de Estudios de Posgrado. Facultad de Filosofía y Letras.Universidad Autónoma de Nuevo León, México. [email protected] Profesora Investigadora. Área de Estudios de Posgrado. Facultad de Filosofía y Letras,Universidad Autónoma de Nuevo León, México. [email protected]

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identidad cultural de los judíos. Para este estudio, se examina unade esas imágenes.

PALABRAS CLAVE: Imagen fotográfica. Ironía. Literatura.Formaciones imaginarias.

ABSTRACT: Our overall objective is to analyze the semioticand discursive elements present in the most representative mem-bers of the play “The genealogies” of Jewish-Mexican writerMargo Glantz, in order to trace the features that are designed,from literary fiction in the cultural identity of the Jews. For thisstudy, we examine one of these images.

KEYWORDS: Photographic image. Irony. Literature. Imagi-nary formations.

I - El mensaje fotográfico

Durante la era de los ochenta, la fotografía adquiere otro rasgode interpretación visual. Esa búsqueda por los orígenes conduce aencontrar imágenes que proporcionen tanto una identidad personalcomo de grupo. “Las genealogías” irrumpen en la literatura no sólocon la transcripción de la oralidad a la escritura3 sino en la inclusiónde las fotografías que reflejan, en un primer momento, un modo devida individual y después, constituyen un estudio etnográfico sobrela comunidad judía asentada en México.

La imagen es un texto iconográfico y se compone de diversosmensajes. Barthes4 (1994, p. 01) expresa que tanto la emisión comola recepción del mensaje dependen de una sociología: se trata deestudiar grupos humanos, de definir móviles, actitudes y de intentar

3 En México, en el periodo en que sitúa la anécdota, recordemos que sólo las personas letradastenían acceso a “la cultura”.4 Considerada como texto por Barthes (1994), la fotografía posee dos mensajes: el denotativo(el analogon: no recurre a código alguno) y el connotativo (la retórica fotográfica).

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relacionar el comportamiento de esos grupos con la sociedad totalde la que forman parte. Bajo estos lineamientos, a continuación seanalizará la fotografía de Jacobo Glantz _que en la obra, es el padrede la protagonista_ incluida en la novela, con el fin de observarcómo los elementos semióticos revelan un sentido de identidadcultural (ver anexo).

Para trabajar con el apartado del analogon, se empleará “Elparadigma de Lasswell”5 (2012, p. 1). El análisis de la denotaciónpuede hacerse de varias formas (DEL VALLE, 2012, 01); una deellas se muestra en la Tabla 1:

5 El cual establece que la denotación es una lectura descriptiva de la imagen. La analogíaexistente entre la fotografía y el referente permite al lector identificar el contenido. El métodode análisis a llevar a cabo debe permitir señalar los personajes, los lugares y las acciones.

JERARQUIZACIÓN DE LA IMAGEN FOTOGRAFÍA DE LOS GLANTZ

• Componente estable: Montaña, árbol, casa…

• Componente estable: No se especifica.

• Componentes móviles: Medios de transporte, nubes, aguas, fenómenos naturales…

• Componentes móviles: El humo del cigarro.

• Componentes vivos: El ser humano y los animales

• Componentes vivos: Jacobo Glantz (padre de Margo).

Tabla 1: Los componentes de la imagen

Esta primera aproximación a la fotografía consiste en ver elespacio físico y ocupacional de los objetos. Es en primera instanciaun acercamiento donde se trata de visualizar el entorno de la foto ysu composición.

Enseguida, Lasswell propone otro paso al cual denomina“Interrogar a la fotografía” (LASSWELL apud DEL VALLE, 2012,p. 01) para ir construyendo de manera simbólica e imaginaria lapersonalidad del individuo.

El proceso se muestra en la Tabla 2:

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En esta tabla pasamos de la acción de ver a la de observar. Secentra la mirada en la descripción simbólica y cultural de los objetos.La imagen sugiere otros sentidos como los aspectos religiosos,míticos, el psicoanálisis, el inconsciente y la ideología, entre otros.

Hay una parte “objetiva” de la connotación, válida en undeterminado contexto cultural: ciertos gestos o actitudes, símboloso, incluso, colores cambian su significado en cada país o cultura. Lalectura de la imagen pasa pues por la memoria colectiva(LASSWELL apud DEL VALLE, 2012, p 01).

Barthes (1994) presenta diversos elementos con los que esposible estudiar la fotografía. Con el fin de efectuar un análisis másobjetivo, enseguida se compaginarán estos mecanismos con lafotografía de Jacobo Glantz.

a) El trucaje. Hace alusión a la actitud: Jacobo, el personajeretratado refleja integridad.

ASPECTOS A ANALIZAR FOTOGRAFÍA DE LOS GLANTZ

• ¿Quién? Edad, sexo, profesión, nombre, función. Por ejemplo: vagabundo, estudiante, peluquero…

• ¿Quién? Jacobo Glantz. Sexo masculino. Profesión escritor, editor y escultor.

• ¿Qué? Identificar objetos, infraestructuras, animales.

• ¿Qué? Sombrero, cigarro, sarape y pantalón de charro.

• ¿Dónde? Precisar el lugar. Por ejemplo: Madrid, estación del tren…

• ¿Dónde? México

• ¿Cuándo? Fecha, estación, época. Por ejemplo: Invierno de 1969…

• ¿Cuándo? No se especifica; pero podría comprender desde su llegada a México (1925) hasta la fecha de defunción (1982)

• ¿Cómo? Describir las acciones de las personas, máquinas o animales. Por ejemplo: Políticos firmando un tratado, jubilados sentados en un banco, atasco de tráfico…

• ¿Cómo? Está vestido de charro con una postura intelectual (reflexionando sobre algo).

Tabla 2: Interrogar a la fotografía

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b) La pose: Su efecto proviene del principio analógico quefundamentará la fotografía: Jacobo tiene una pose de juventud y deintelectual. Denota un rostro apacible.

c) Los objetos. Son los inductores corrientes de asociaciónde ideas o verdaderos símbolos: Jacobo emplea un sombrero decharro6, el cual proyecta el siguiente sentido. Por cubrir la cabezatiene en general el significado de lo que ocupa la mente (lospensamientos). Jung (CIRLOT, 1969, p. 431) indica que el sombrerorecubre a toda persona, dándole así un aspecto general, una expresiónque corresponde a un sentido determinado. Tomar “un sombrerocorrespondiente a una jerarquía expresa el anhelo de participar deella o de la posesión de cualidades que le son inherentes”. En laimagen, por llevar puesto un sombrero de charro, Jacobo, que esjudío, asume integrarse a la cultura mexicana. De acuerdo con Cirlot(1969, p. 431), algunos sombreros tienen especial significado fálico,como el gorro frigio, o poseen la propiedad de hacer invisible aquien lo porta, igualmente puede servir como símbolo de larepresión.

El otro objeto lo constituye el sarape7. Éste es un atuendosingular que amalgama las tradiciones mesoamericana y europea deltejido. De la primera toma el uso del algodón, tintes y diseños; de lasegunda, el proceso de preparación de la lana hasta el montaje deltelar. El desarrollo y florecimiento de la fabricación de sarapes, sedio a lo largo de los siglos XVIII y XIX, cuando se elaboraron con

6 Originalmente, los sombreros de charros (el charro es un personaje popular que cumple lasfunciones de hacendado y de jinete en las zonas rurales del país), fueron diseñados para quepudieran protegerse del sol al supervisar la elaboración de los diversos trabajos del campo en lashaciendas. Durante el siglo XIX, los sombreros, hechos básicamente de fibras, para su uso eneventos especiales o algunas fiestas religiosas, tuvieron que ser transformados o enriquecidoscon ciertos toques que poco a poco fueron dando como resultado el sombrero que hoy poseebordados, y a veces, incrustaciones de plata y oro (http://www.mexicodesconocido.com.mx/el-tradicional-sombrero-charro.html).7 Esta prenda es tradicional del folklore en la indumentaria masculina mexicana. Se elabora endiversas regiones del país, y por ello se le designa con diferentes nombres; los más usuales sontilma, gabán, chamarro, jorongo, cotón, cobija y frazada. (http://www.mexicodesconocido.com.mx/el-sarape.html).Similar al poncho sudamericano.

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una calidad sorprendente (por la técnica, colorido y diseñosempleados) en multitud de talleres de los actuales estados deZacatecas (G. J., 2012, p. 01).

En la lucha de los revolucionarios, el sarape es bandera, refugioen el campamento, sudario de los que caen en los campos de batalla.Símbolo de la mexicanidad cuando la reducción simplista esnecesaria: con sólo el sombrero y el sarape se define lo mexicano,dentro y fuera de nuestras fronteras (G.J., 2012, p. 01).

d) La fotogenia. El mensaje connotado está en la mismaimagen. En la fotografía Jacobo muestra su aceptación de la culturamexicana al colocarse la indumentaria tradicional y desear perpetuaresa imagen.

e) El esteticismo. Se refiere al ser mismo de la imagen. Aquíse puede abordar el tema de la ausencia de color en la fotografía.En el retrato no aparece ningún paisaje atrás de Jacobo, dando unaidea de blancura. De acuerdo con Baudrillard (2005, p. 34)., elcolor nos da la Idea de la Naturaleza y el blanco se asocia con loorgánico.

f) La sintaxis. Consiste en que varias fotografías pueden leerseen secuencias. En el libro las imágenes se van entrelazando con lasnarraciones. Al inicio son fotos de los padres de Margo_ laprotagonista_, y al final del texto, cuando este personaje retoma elhilo discursivo, aparecen fotos de Margo con sus hijas y nietos. Porlo cual pudiesen interpretarse en una sintaxis diacrónica de laexistencia del personaje.

En este breve análisis es interesante notar que el padre (JacoboGlantz) se integra aparentemente a la cultura nacional; así lo muestrala fotografía. Sin embargo, el retrato nos habla de una hibridación:es un judío que se viste con ropa típica mexicana y, tal como loestudia Barthes (1994), los epígrafes - el mensaje lingüístico -complementan, desvían o añaden sentido a la imagen. En este caso,el sincretismo se proyecta en el pie de foto que dice: “Mi padre semexicaniza”.

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II: El método de la interpretación documental de KarlMannheim

Este autor inició sus observaciones en las obras de arte visualesy denominó método inmanente a la descripción estética de la obray método genético a los acontecimientos exteriores a ésta. Suinnovación reside en que conjunta estos métodos para dar paso auna “interpretación documental” (MANNHEIM, 2012, p. 2003) querevela la expresión de una postura ante el mundo desde el punto devista histórico y social (como se visualiza en la presente tabla).

CONTEXTO histórico y social (Análisis genético)

Tabla 1: Interpretación documental de Karl Mannheim

OBRA (Análisis inmanente)

(Análisis documental)

Edwin Panofsky (2012, p. 204) retoma el modelo y comentaque en este tercer nivel de análisis, “la fotografía refleja una actitudemocional peculiar al periodo o a la sociedad en la que fue producida,donde se testifiquen las tendencias políticas, poéticas, religiosas ysociales de la personalidad, país o grupo social que se estéinvestigando”. Por ello, Mannheim ( 2012, p. 205) habla del conceptode “equivalencia” para referirse a un paralelismo entre fenómenosculturales de una misma época o de un mismo grupo social. Lasaportaciones de Mannheim y Panofsky son el antecedente de lasociología visual, en la cual la fotografía se centra en la persona queaparece retratada. A partir de esta propuesta se considera que esimportante conocer el habitus de este ser retratado porque su imagenrefleja la concepción del mundo de una época, de un grupo social ode una determinada generación.

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I. La fotografía-ventana: una mirada irónica a los Glantz

Con el propósito de favorecer la interpretación, es necesarioexponer un breve esbozo del protagonista de la imagen: JacoboGlantz. Nace en Ucrania en 1902, en la extinta URSS, y llevó unavida de hambre y miseria. Al estallar la Revolución rusa, fue uninstructor político tanto en escuelas locales como en movimientosjuveniles. Constantemente emigraba debido a las carenciaseconómicas y alimenticias. Al llegar a Odesa laboró como maestroen las escuelas técnicas, estudió una carrera de Letras y colaboróen la revista Potoki Octobriá, la más importante de la Unión deEscritores. Sin embargo, fue detenido, considerado traidor a lapatria y llevado a un campo de trabajos forzados por sólopresenciar un mitin político organizado por la Unión deTrabajadores (RUBISNTEIN, 2012, p. 70).

Esta referencia biográfica nos evoca rasgos culturales de laetnia judía en la persona de Glantz. Por un lado está el concepto delÉxodo, ese constante peregrinar en busca de una mejor vida materialy espiritual; y la imagen del patriarca que guía a los demás por elcamino de la educación. Y en ese camino se ostenta una cualidad: laironía, ya que los judíos han sobrevivido al yugo histórico a travésdel humor, se vuelve pertinente la propuesta de Valeriano Bozal(2012) de quien se retoma la idea central para el estudio de la ironíaen los Glantz: “Recuperar la distancia es una recomendación quenos conduce a la ironía” (RUBISNTEIN, 2012 p. 9). Lascaracterísticas que singularizan a la ironía, pueden visualizarse en lafotografía al ver un hombre de distinta raza, que emigra e intentaintegrarse a la cultura mexicana. Su postura es de un patriarca queconduce a su pueblo y la ironía en la mirada. Y en la sonrisa, dejaentrever precisamente esa actitud y experiencia de vida (que referíaBozal) para afrontar estoicamente las vicisitudes. Asimismo, Bozal(2012, p. 8) expresa que el proletariado en Rusia sólo originó unheroísmo ficticio basado en una vida azarosa. Un dato a resaltar es

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que el judaísmo, por medio de las costumbres, intenta perpetuar esalínea de preceptos Jacobo al establecerse en México continuó consu vida revolucionaria e intelectual. Y volvió a ser preso delinchamientos por seguir con los comunistas. Esa recuperación delpasado nos lleva a la ironía como una estrategia ideológica y físicapara recobrar y recordar el sentido de pertenencia a su raíz histórica.

Según Andrea Bugno (2012, p. 01) la ironía se presenta cuandoocurre una situación o comentario distinto al habitual. Asimismo,Flores (2008, p. 147) enuncia que la intención irónica no es engañarsino proponer el desciframiento, la interpretación. Se complementael concepto con la idea de Makhlin al mencionar que “El hombremoderno-posmoderno vive su subsuelo espiritual o intelectual comouna clandestinidad trágica, ineludible, la que apenas se permite unasomo hacia afuera, hacia su existencia del súper-yo, lo cual da porresultado una mascarada sardónica, una comicidad en el fondosuicida” (MAKHLIN, 2000, p. 147).

Mario Ortega Olivares (2009, p. 01) señala que la fotografía esla creación de un testimonio porque es un instrumento útil para latransformación y el cambio social. En este propósito van inmersostres agentes sociales: a) el personaje cuya imagen es capturada; b) elsujeto que lo fotografía; y c) el público. Todos van presentando unaalteración en la percepción de la realidad. Propone en este estudiosociológico de la imagen tres tipos de fotografías: las fotografíasespejo, las ventanas y las normativas. Para esta investigación noscentraremos en la segunda categoría, la cual se basa en abrir al lectorlos rasgos etnográficos que proporciona la persona retratada. Alrespecto, se tiene que Jacobo usó esta indumentaria (ver anexo)mexicana en la foto, sabiendo que sus rasgos judíos ofrecerían elcontraste. Esto demuestra una fusión de identidades que el personaje-padre asume como producto de una hibridación cultural.

Barthes (1994) realiza un estudio sobre las figuras retóricasaplicadas a la imagen. Desde nuestra perspectiva en el estudio de laimagen en cuestión, le agregaríamos la figura de la “ironía” porque

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da a entender lo contrario de lo que se ha dicho. Veamos: en suexpresión facial se esboza una sonrisa sarcástica; su postura es deperfil y sólo deja entrever la mitad del vestuario como el sarape(símbolo de mexicanidad) y el sombrero. Esto muestra unaaceptación o identidad a medias. El hibridismo se puede observarporque porta vestimenta mexicana; pero la postura con el cigarro ylos anteojos simbolizan a un intelectual, además de sus faccionesinnegablemente extranjeras al país.

La ironía frecuentemente se ve complementada por el empleodel humor, que se vuelve su instrumento. En “Las genealogías”prevalecen ciertos rasgos humorísticos ¿o sarcásticos? Enseguida sepresenta un fragmento donde se observa cómo la ironía alude a esesegmento de mímesis y de burla entre la cultura judía y susdescendientes para fortalecer su espíritu de lucha y aceptación.

Aunque yo me identifico más con Raskólnikov, que era un plebeyo,ladrón de monederos y luego orador público, autor de una retóricamuy especial que también me pertenece. Sí, como nos pertenece a todoslos judíos ese proverbio de las cebollas enterradas en la tierra, con todoy pleonasmo, porque las cebollas hacen llorar y ni siquiera la tierra impideque el llanto se desborde y que la piel se pele en capas.Y ¿este preámbulo? ¿A qué viene? Bueno, es una simple reflexiónlacrimosa ante lágrimas vertidas convenientemente a lo largo de mi vida(y la de mis padres) (abro otro paréntesis adecuado: ahora no lloro másporque se me acabaron las lágrimas y la culpa fue de mis lentes decontacto que me ulceraron la córnea). (GLANTZ, 2006, p. 190).

A partir de esta cita podemos analizar tres aspectosimportantes: los judíos tienen una tristeza compartida, su apego a latierra y las capas que cubren su piel. Elsa García (2010, p. 200)aborda el concepto de la fotografía como “imagen acto” donde elretrato no sólo es una descripción sino también conmina a unaacción. En la fotografía, Jacobo Glantz asume una postura deseguridad acompañada de una mirada desafiante. Sin embargo, al

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emplear indumentaria mexicana se torna en un cuerpo que superponea su cubierta, otra más; se cubre de una sobre otra capa (como lascebollas).

De esta manera, la imagen fotográfica se constituye en unamáscara donde prevalece desdoblamiento de caracteres: la personaretratada representa su verdadera identidad y la máscara sólo unaverdad aparente. Amaya (2012, p. 01) comenta que esta máscaranos lleva a un carnaval como un viaje de identidades y estatransculturización desemboca en una utopía. La cual también seconstituye en un tipo de ironía porque permite el sincretismo en elespacio público.

Este juego irónico se fundamenta en un rasgo etnológico: enel espacio íntimo, los judíos son fieles a las tradiciones de su culturay religión (en la foto se observa cómo Jacobo no muestras rasgosfísicos propio de los mexicanos) y al colocarse la vestimenta típicade los mexicanos _el traje y sombrero de charro_ muestra un ideal,una aspiración colectiva: ser aceptados dentro de la cultura nacionalsólo en el aspecto exterior. Como afirma Bozal (2012, p.11) : “Ahoraadquiere la ironía toda la efectividad de un instrumento estético quese configura como actitud y experiencia” Este álbum literario quees “Las genealogías” ofrece la oportunidad de examinar losposicionamientos de los protagonistas, desde el discurso verbal yvisual. Enseguida se emprende una aproximación a fragmentos dela obra “Las genealogías” desde las formaciones imaginarias deldiscurso de Pêcheux (1970) con el objetivo de interrelacionar lahibridez cultural tanto de la imagen como el texto.

II. Formaciones imaginarias

Los individuos poseen una ubicación socio-ideológico-discursiva, que no es real, sino que se proyecta a partir de la situaciónde comunicación en que se ven implicados. La definición más precisa

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de “formación” es, según el marxismo ortodoxo, una complejidadde estructuras económicas contradictorias y según Pêcheux (1970,p. 48), cada uno de los elementos y su combinación en esacomplejidad8. Es posible articular la propuesta de Pêcheux (1970,p. 49) en su concepción de formación social con las categorías deformaciones ideológicas de Althusser, definidas como “un complejoconjunto de actitudes y representaciones que no son ni individualesni universales, sino que se relacionan más o menos directamente conposiciones de referencia” y las formaciones discursivas de Foucault quese refieren al orden impuesto mediante el ejercicio del poder.

Por otra parte, Pêcheux (1970, p. 49) concibe las condicionesde producción y recepción del discurso como las formacionessociológicas-ideológicas-discursivas que se implican mutuamente yengloban las formaciones imaginarias de los sujetos del discursocomo ocupantes de un determinado lugar social (RODRÍGUEZ,2011, p. 82). Enseguida se aprovechan los esquemas de lasformaciones imaginarias de este autor (PÊCHEUX,1970, p. 48-52)para efectuar el examen de segmentos de la obra que nos ocupa yque ofrecerán elementos para interpretar el posicionamiento socialsubyacente a la imagen que se estudia.

Cuadro 1.Formación imaginaria de A (A)

8 En este sentido la formación social se refiere a la complejidad de superestructurascorrespondientes a una totalidad social concreta, históricamente determinada, que entra eninteracción con la complejidad de estructuras económicas dadas en el ensamble de varios modosde producción y que a su vez engendra, en toda sociedad, cierto número de clases y de grupossociales.

Expresión que designa las formaciones imaginarias

Significación de la expresión

Pregunta implícita cuya respuesta subyace a la formación imaginaria correspondiente.

A IA (A)

Imagen del lugar de A para el sujeto colocado en A.

¿Quién soy yo para hablarle así?

Cuadro 2.Formación imaginaria de A (A) en Las genealogías

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Margo Glantz es la hija y en el prólogo señala lo siguiente: “A mí no puede acusárseme, como a Isaac Babel, de preciosismo o de biblismo, pues a diferencia de él (y de mi padre) no estudié hebreo ni la Biblia ni el Talmud (porque no nací en Rusia y porque no soy varón) y sin embargo muchas veces me confundo pensando como Jeremías y evitando como Jonás los gritos de la ballena” (GLANTZ, 2006, p. 15). Aquí la voz poética deja entrever sólo el parentesco; sin embargo, no hay una identidad cultural con el padre (es mexicana; es mujer; ignora la tradición judía y eso le provoca una fragmentación).

Cuadro 3. Formación imaginaria de A (B) en Las genealogías

Expresión que designa las formaciones imaginarias

Significación de la expresión

Pregunta implícita cuya respuesta subyace a la formación imaginaria correspondiente.

A IA (B)

Imagen del lugar de B para el sujeto colocado en A.

¿Quién es él para que yo le hable así?

Cuadro 4. Formación imaginaria de A (B) en Las genealogías

Jacobo Glantz es el padre y Margo muestra la formación imaginaria de él a través del presente segmento: “También me atraen esos niños de jeider (escuela judía) que van acompañando a un abuelo, el niño sin zapatos y el abuelo con la mirada gastada y la barba blanca, pero no les pertenezco, apenas desde una parte aletargada de mí misma, la que me toca de cercanía con mi padre, niñito campesino, benjamín de una familia de emigrantes, cuya hermana mayor, Ròjl, desapareció de la casa desde chica, quizá en Besarabia (tal vez en otra parte, ¡qué importa a estas alturas!) y cuyos hermanos empezaron a emigrar hacia los Estados Unidos después de los pogromos de 1905 (GLANTZ, 2006, p.,16). Margo nos habla de un padre de origen humilde, el menor de una familia emigrante y que ha sufrido los estragos políticos en Rusia.

Jacobo Glantz es el padre y Margo muestra la formación imaginaria de él a través del presente segmento: “También me atraen esos niños de jeider (escuela judía) que van acompañando a un abuelo, el niño sin zapatos y el abuelo con la mirada gastada y la barba blanca, pero no les pertenezco, apenas desde una parte aletargada de mí misma, la que me toca de cercanía con mi padre, niñito campesino, benjamín de una familia de emigrantes, cuya hermana mayor, Ròjl, desapareció de la casa desde chica, quizá en Besarabia (tal vez en otra parte, ¡qué importa a estas alturas!) y cuyos hermanos empezaron a emigrar hacia los Estados Unidos después de los pogromos de 1905 (GLANTZ, 2006, p.16). Margo nos habla de un padre de origen humilde, el menor de una familia emigrante y que ha sufrido los estragos políticos en Rusia.

Cuadro 5. Formación imaginaria de B (B)

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Expresión que designa las formaciones imaginarias

Significación de la expresión

Pregunta implícita cuya respuesta subyace a la formación imaginaria correspondiente.

B IB (B)

Imagen del lugar de B para el sujeto colocado en B.

¿Quién soy yo para que él me hable así?

Cuadro 6. Formación imaginaria de B (B) en Las genealogías

“Luego escribió otro gran poema Nizaiòn (Prueba), dedicado a mí, cuando traicioné al pueblo judío. Fue traducido por los años cincuenta como Cantares de ausencia y de

retorno. Allí aparezco como oveja negra y luego, quizá también, como Hija Pródiga” (GLANTZ, 2006, p. 132). Margo se casó dos veces con personas ajenas al judaísmo (esto lo expresa en otro pasaje de la obra) y esta explicación es esencial para entender que ella se considera ajena y hasta cierto punto una “huérfana cultural”.

Cuadro 7. Formación imaginaria de A (B)

Expresión que designa las formaciones imaginarias

Significación de la expresión

Pregunta implícita cuya respuesta subyace a la formación imaginaria correspondiente.

B IB (A)

Imagen del lugar de A para el sujeto colocado en B.

¿Quién es él para que me hable así?

Cuadro 8.Formaciòn imaginaria de A (B) en Las genealogías

“Si veo a un zapatero de Varsovia a un sastre de Wolonin, a un portador de agua o a un barquero del Dnièper, me parece que son hermanos de mi padre, aunque sus hermanos se volvieron prósperos comerciantes en Filadelfia y cambiaron el gorrito y la barba por las ropas de los grandes almacenes, probablemente Macy’s. Si veo a varios niños de Lublin que apenas alcanzan una mesa y se sientan, siempre con sus cachuchas, frente a unos viejos libros, mientras el melamed (profesor) les enseña con un marcador los caracteres hebreos, me parece también que miro a mi padre terminando las labores del campo, con los zapatos enlodados (del otro lado sus hermanos llevan zapatos Andrew Geller), sin poder jugar porque ha de aprender los mandamientos, el Levítico, y el Talmud y las ordenanzas de esas fiestas y celebraciones que me son, muchas veces, ajenas” (GLANTZ, 2006, p.17). En este pasaje Margo reafirma cómo el judaísmo forjó la identidad de su padre hasta el grado de ser el único miembro de la familia fiel a esta religión. Asimismo, se infiere cómo su padre fue trabajador y batalló más que sus hermanos en tener una solvencia económica.

Según Pêcheux, las formaciones imaginarias que se hacen lossujetos del discurso acerca de sí mismos, de su interlocutor y del

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Cuadro 9. Formación imaginaria de A (R).

Expresión que designa las formaciones imaginarias

Significación de la expresión

Pregunta implícita cuya respuesta subyace a la formación imaginaria correspondiente.

A IA (R)

Punto de vista de A sobre R

¿De qué le hablo así?

Cuadro 10.Formación imaginaria de A (R) en Las genealogías

En la entrevista que Margo le hace a su padre, indaga sobre el pasado familiar para conocer su genealogía tanto familiar como literaria. “- ¿Qué se dice en el kaddish? - Diez judíos por lo menos deben juntarse para formar lo que se llama minien, es decir, una congregación y con ese número se puede hacer cualquier ceremonia. “Que su nombre sea bendecido para siempre y para la eternidad”. Como quisieran todos los poetas de mi pueblo salió un gran poeta como treinta o cuarenta años mayor que yo, Simeòn Frog (GLANTZ, 2006, p. 39).

Cuadro 11. Formación imaginaria de B sobre R

Expresión que designa las formaciones imaginarias

Significación de la expresión

Pregunta implícita cuya respuesta subyace a la formación imaginaria correspondiente.

B IB (R)

Punto de vista de B sobre R

¿De qué me habla así?

Cuadro 12. Formación imaginaria de B sobre R en Las genealogías

En una conversación telefónica Jacobo Glantz le pregunta a su hija sobre lo que está leyendo. - ¿Qué lees? - Leo a Pilniàk, papá. - Pilniàk, Boris, estuvo en Odesa, en 1924. En una conferencia. ¿Qué lees de él? - Caoba.

- (…) Yo quiero que me leas lo que estás haciendo. ¿Cuándo vienes?...¿el domingo?, bueno, pero de veras, ¿eh?Zai gezunt (que tengas salud) (GLANTZ, 2006, p. 93). Es interesante ver cómo el padre ve en la hija a una narradora de historias (Sherezada) y así conserva su pasado literario.

objeto del discurso (o sea, de su referente) dependen del lugar enque se les ubica en la formación social correspondiente.

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Pêcheux destaca que lo representado es sólo un objetoimaginario –el punto de vista de un sujeto- y no una realidad física;pero en el intercambio comunicativo el emisor/receptor considerala formación imaginaria de su interlocutor, para crear/interpretarel mensaje. Asimismo, en condiciones normales, los alocutoriosabordarán referentes que sean pertinentes en el contexto situacionalen el que tiene lugar el intercambio comunicativo. Esta aplicaciónde las formaciones imaginarias nos ha permitido observar larepresentación que cada personaje tiene tanto de sí mismo comodel otro. Consideramos que hay un aspecto que es pertinente resaltar:la hija se siente excluida y ve en el padre a un guía. Estamos ante laherencia literaria, la prolongación de la tradición lectora(implícitamente prevalece una continuidad de lecturas que la hija leepara saber más sobre el padre).

La imagen fotográfica deja entrever el peso de la figura paternaen la construcción de la identidad de la hija tanto cultural comoliteraria y su sentir azaroso al convivir entre dos razas.

Referencias

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LA FOTOGRAFÍA DE JACOBO GLANTZ

Mi padre se mexicaniza

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EN BUSCA DE LAS PISTASSICOANALÍTICAS DE LOSSUEÑOS DE EVITA EN LANOVELA SANTA EVITA DETOMÁS ELOY MARTÍNEZIN SEARCH OFPSYCHOANALYTICTRACKSOFEVITA’SDREAMSINTHENOVELSANTAEVITABYTOMAS ELOY MARTÍNEZ

Alejandro González Urrego(UNESP)1.

 RESUMEN: El personaje central de la novela Santa Evita, deTomás Eloy Martínez, es el cuerpo bipolar de Evita Perón, esposadel General Juan Domingo Perón, ex-presidente de la RepúblicaArgentina a mediados del siglo pasado.Por un lado, el autor nos

1 Doutorando do Programa de pós-graduação em Estudos Literários, da UNESP, câmpus deAraraquara. [email protected]

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muestra un cuerpo vivo que tiene unos delirios y sueñosconscientes e inconscientes, que a través de sus experiencias devida se pueden comenzar a entender, y por el otro, un cuerpoinerte embalsamado, reconstruyendo un cuerpo que adquierepoder, voz propia, es un significante al cual, también se le puedenanalizar los sueños y delirios de la  etapa post-mortem. Lo quepretendo con mi artículo es mostrar una interpretaciónpsicoanalítica de los sueños y deseos de Evita Perón. Para lograresto, dividí la vida de Evita en tres partes: la Evita niña, la actrizprovinciana a la conquista de Buenos Aires; la Evita al lado delGeneral se convierte en la protectora de los pobres, la PrimeraDama adorada y odiada por la sociedad Argentina; la Evitaenferma, días previos de su muerte; culminando con una cuartaetapa cuando Evita muerta es embalsamada, analizo el peregrinarde un cuerpo embalsamado que no se dejaba domar y por elcontrario adquiría cada día más poder, representaba más peligroestando muerta que viva.El estudio psicoanalítico de los sueños,delirios y obsesiones de Evita Perón es un primer avance paratratar de entender los diferentes proyectos sociales que aplicó allado del General para tratar de mejorar la calidad de vida de susGrasitas, al igual que su deseo de querer erradicar la Oligarquía,culpable de la desorganización, inequidad e injusticia vivida ymantenida en la Argentina a mediados del siglo pasado.

 PALABRAS-CLAVE: Psicoanálisis. Estudio de sueños.Consciente. Inconsciente . Influencia de las experiencias. ABSTRACT: The main character in the novel Santa Evita,written by Tomás Eloy Martínez, is Evita Peron’s body. She wasJuan Domingo Peron’s wife, ex-president of Argentina in themiddle of last century. On the one hand, the author shows us aliving body that has some deliriums and dreams conscious andunconscious, which can be understood through her life’s experi-ences. On the other hand, he shows us a dead embalmed body,rebuilding a body that acquires authority, its own voice and ameaning through which it is possible to analyze the dreams anddeliriums of post-mortem stage, in order to understand the

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thoughts of a character who tried to change the history ofArgentina.The aim in this article is to perform a psychoanalyticalinterpretation of Evita’s dreams and desires. In order to accom-plish this, Evita’s life is divided into four parts:  firstly, Evita’schildhood and her life as a provincial actress who wants to con-quer Buenos Aires; secondly, Evita as Peron’s wife who becomesthe protector of the poor people, the first lady adored and hatedby the Argentina society; thirdly, some days before her death andfinally the fourth stage, when  Evita is preserved after her death.The intention is to examine the long journey of the embalmedbody that would not be tamed, and instead, became more andmore powerful. She represented more danger being dead thanalive.The psychoanalytic study of dreams, deliriums and obses-sions of Evita Peron is the first step in trying to understand thedifferent social projects implemented by her next to Peron, inorder to improve the quality of life of the poor people. At thesame time that she wants to eradicate oligarchy, it can be seenthat disorganization, inequality and injustice kept Argentina downin the middle of last century. KEYWORDS: Psychoanalysis. Dream’s analysis. Conscious. Un-conscious. Influence of the experiences.

Evita Perón, personaje principal de la novela Santa Evita deTomás Eloy Martínez, evidencia una serie de sueños conscientes einconscientes. Para poder entender dichos sueños, primero, debemosremitirnos a las experiencias de vida y, luego, analizar la influenciade ellas en la construcción de su personalidad. Experiencias que elautor nos plantea en el desarrollo de la novela, estas vivencias y suinfluencia serán analizadas en el campo de los sueños, utilizando paraello los elementos encontrados en el texto La interpretación desueños de Sigmund Freud (1907, p.31)

Cuando queremos llegar a comprender los sueños efectivos de una personareal, tenemos que conceder gran atención al carácter y a los destinos de

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dicha persona, penetrando no sólo en aquellos sucesos de su vida, próximosa la fecha del sueño, sino asimismo, en su más lejano pasado.

Para realizar dicho análisis dividimos la vida de Evita Perónen cuatro ciclos: el primero de ellos la infancia-adolescencia; elsegundo, Evita conoce al General; el tercer ciclo Evita internada deurgencias en el hospital, días antes de su muerte y el cuarto, el cuerpode Evita embalsamado.

Los hechos más relevantes en el primer ciclo fueron: primerohaber sido engendrada en la ilegitimidad lo que la convirtió desde sumismo nacimiento en una hija bastarda y no reconocida, ella, al igualque sus hermanos, usó el apellido de su padre biológico aunque no lecorrespondiese, para tratar de ocultar su condición de ilegítima; apenasnace hereda un destino de desigualdad de condiciones y pérdida dederechos, pues nació en una época donde este hecho era muy reprobable.

La infancia de Evita estuvo llena de discriminaciones por lasdemás personas, la miraban mal, a los demás niños les teníanprohibido jugar con ella, fue calumniada, su mamá era de condiciónpobre, asistió a temprana edad al entierro de su padre, con tan solo7 años, esta ultima vivencia, marcó la posición tan radical frente alos oligarcas, pues en ese evento se dio cuenta de dos cosas, laprimera, gracias a la humillación que sufre en ese acontecimientopor parte de la familia legítima de su padre, se da cuenta de queexistían pobres gracias a los oligarcas y la segunda, desde ese mismoevento, ella de manera consciente comienza a construir una posiciónpolítica muy marcada en contra de los oligarcas.

Desde ese mismo día, comenzó el deseo personal de construiruna nueva sociedad con justicia y equidad entre todos sus habitantes,pero lo más importante, sin oligarcas, es un sueño consciente queestuvo en estado de inconsciencia.

Evita desde niña poseía un talento innato, se destacó comorecitadora en la escuela y comenzó a reconocer sus cualidades en laoratoria, cualidad que más adelante le sería útil como estrategia

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política en sus discursos. “¿Cuándo empezó la Difunta a destacarsecomo recitadora? ¿Cuáles fueron los primeros versos de surepertorio? En 1933, cuando cursaba el sexto grado en la EscuelaN° 1 de Junín.” (MARTÍNEZ, 1996, p. 136)

Otros rasgos constitutivos de su perfil inconsciente en su infanciafueron el hecho de ser provinciana; pobre y ante todo mujer; habervendido su virginidad a los doce años; Imponerse ante los demás; notenía derecho a nada y poseía una auto-estima baja.”Vaya a saber a quéabismos de miseria debió asomarse esta pobre chica, pensó entonces.Tenía la mirada llena de cicatrices y hablaba con voz imperativa. No sedejaba atropellar por nadie. (MARTÍNEZ, 1996, p. 84)

Tomás Eloy también nos muestra una niña desamparada, que sufrede humillaciones por parte de todo el mundo, pero es una niña queposee un potencial innato de liderazgo, se siente reprimida por susderechos, pues todo el mundo la pisoteaba, también nos presenta unajoven con un deseo enorme de convertirse en actriz, sinónimo de unacualquiera en aquella época, pero presentó dificultades para insertarseen ese ambiente artístico; siempre se mantuvo como figura de segundoplano; nunca nada le fue fácil, era una mujer muy calculadora.

El segundo ciclo comienza cuando Evita tiene su primerencuentro con el General Juan Domingo Perón, es el encuentro conel destino, tan anhelado por ella, tenia muy claro cuál era el tipo depareja que necesitaba para cumplir sus sueños, estaba esperando laoportunidad de su vida y sabia de antemano, que al lado del Generalla tenia. Cuando el dictador prófugo y la difunta se conocieron enenero de 1944, ¿quién levantó a quién?

Ella se le presentó con una frase de alto voltaje seductor: “Gracias porexistir, “coronel”, y le propuso que durmieran juntos esa misma noche.Siempre fue de armas llevar. No concebía que la mujer pudiera serpasiva en ningún campo, ni aun en la cama, donde lo es por mandato dela naturaleza. El aspirante a dictador era, en cambio, algo incauto en laslides eróticas: romanticón, de gustos simples. La que lo levantó fue ella.Tenía muy claro lo que quería. (MARTÍNEZ, 1996, p. 137)

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Evita poseía un gran estilo para vestir, tanto así que imponíala moda a seguir en las altas esferas de la sociedad Argentina; poseíaun carácter alto; era una persona justa; quería tener derechos; erauna persona decidida; símbolo de autoridad; comenzó a serrespetada por muchos; conoce la política más de cerca ya quecomenzó a acompañar al General a diferentes actos públicos; porprimera vez en su vida, se siente apoyada por alguien, en este casopor el General y se conmovía por los hijos ilegítimos, tanto quesoltaba las lágrimas: “Los hijos ilegítimos conmovían a Evita hastalas lágrimas, porque había sufrido su propia ilegitimidad como unmartirio. (MARTÍNEZ, 1996, p. 67)

El haber vivido la injusticia gran parte de su vida, su anhelo dejusticia social, el deseo de ayudar a los más necesitados, suextraordinaria energía, su discurso de oposición y su antepasadoimborrable, la llevó a comenzar a hacer una reorganización social,pasó de ser la mujer humilde a la mujer con poder. “¿Qué sueño lehabrá caído dentro de los sueños, qué valido de cordero le habrámovido la sangre para convertirla tan de la noche a la mañana en loque fue: una reina? (MARTÍNEZ, 1996, p. 12)

Esos sueños inconscientes de una sociedad justa y equitativalos comienza a cumplir de manera consciente al lado del General,para lograr esto, comienza a desarrollar varias acciones, entre lascuales encontramos: la aprobación de la ley del hijo ilegitimo; apoyoa los proyectos de derechos sociales, jubilaciones y las vacacionespagas; creó la Escuela Superior Peronista con el propósito de unificarsu filosofía y construyó la Fundación de Ayuda Social Eva Peróncon el objetivo de disminuir las innumerables injusticias de susGrasitas2

. “No es filantropía, ni es caridad, ni es limosna, ni es solidaridadsocial, ni es beneficencia, ni siquiera es ayuda social, para mí, esestrictamente justicia. (MARTÍNEZ, 1996, p. 219)

2 Grasita: De esta manera, Evita se refiere de forma cariñosa a las personas de clase baja,obreros o sindicalistas de Argentina

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Freud (1969) argumenta que las experiencias fuertes, vividaspor el ser humano, en cualquier etapa de la vida, quedan guardadasen el inconsciente, pero, cuando esa experiencia es recordada demanera consciente, ella misma ayudará o tomar decisiones más fuertesy responsables, evitando la repetición de la misma experiencia conel mismo o con sus semejantes.

De esta manera, Evita no hace otra cosa que devolver a lospobres lo que todos los demás le habían quitado, lo que a ella mismano tuvo desde su propio nacimiento, porque las cosas se las habíanquitado injustamente. Por este ideal político, comenzó a tenerenfrentamientos con los sectores de oposición, entre los que se incluíala Iglesia Católica.Tenia una política social bien definida; construyemuchas viviendas; regala a los pobres lo que ellos necesitaban; utilizóal pueblo en la calle como estrategia política; paralizaba las huelgashacia el régimen Peronista; se realizaron actos de masa motivadospor la presencia de ella, 1.000.000 de obreros en la Plaza de Mayo y2.000.000 de obreros en la Plaza 9 de Julio, cifra nunca antes vista;lideró la esperanza del pueblo; cierra la prensa y niega la radiooligarca. En los seis primeros meses de 1951, Evita regaló veinticincomil casas y casi tres millones de paquetes que conteníanmedicamentos, muebles, ropas, bicicletas y juguetes. (MARTÍNEZ,1996, p. 67)

Estos proyectos de política social simbolizan a una Evitaapacible, bondadosa, encantadora a los Grasitas, una persona conuna capacidad segura y firme al momento de tomar decisiones,además, el autor nos muestra, como a través de la realización deestos sueños, se va ganando el corazón de los pobres de Argentina,y a la vez, sus proyectos sociales son una estrategia de integraciónpara los pobres haciéndolos leales a su proyecto, ella desde su infanciaquería la justicia e igualdad social para los más necesitados, deseabaque ellos no tuvieran tantas dificultades como las que ella vivió.

Sin darse cuenta, esta política social impulsada por Evita sirviócomo estrategia para que el Peronismo incrementara sus adeptos,

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haciendo que los Grasitas la protegieran, pidieran por la salud de susalvadora, se convirtiera en única, fue la porta voz de la clase obrera,siempre los defendió, sabia que los pobres eran los únicos que sabíanser leales y nunca los defraudo.

–No abandones a los pobres, a mis grasitas. Todos estos que andan poraquí lamiéndote los zapatos te van a dar vuelta la cara un día. Pero lospobres no, Juan. Son los únicos que saben ser fieles. –El marido leacarició el pelo. (MARTÍNEZ, 1996, p. 14)

De esta manera, Evita va adquiriendo inconscientemente losderechos que antes le fueron negados, se va convirtiendo poco apoco en una autoridad socio-política, símbolo de justicia y equidad,gracias a que nunca olvidó su pasado humilde.

Vemos una dualidad de imágenes en Evita, mientras que para laclase oligarca Argentina, ella representaba un elemento desestabilizadoro una amenaza “peligrosa” para el país, en cambio, para las clases máshumil­des, personificaba sus sueños, la salvadora, ejemplo a seguir, allado del General, dejó de ser la amante clandestina para ser la Señora;una actriz de segunda clase se convirtió en Pri­mera Dama.

Sabía los nombres y las problemáticas personales demuchísimos de sus seguidores, expresaba un amor transparente haciasu pueblo, el pueblo esperaba todo de Evita, los pobres la esperabantodo el tiempo que fuera necesario, fue madrina de muchosseguidores Peronistas. A través de Evita el peronismo dignificó social,espiritual y moralmente a los grasitas, pasó de una etapa serdiscriminatoria a pertenecer y ser importante en la clase social delos Grasitas, lo que en su infancia le fue negado ahora se lo concedencomo derecho propio.

Los pobres hacían fila desde antes del amanecer para verla, y algunoslo conseguían sólo al amanecer siguiente. Ella los interrogaba sobresus problemas familiares, sus enfermedades, sus trabajos y hasta sus

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amores. En el mismo año de 1951 fue madrina de casamiento de milseiscientas ocho parejas, la mitad de las cuales ya tenía hijos.(MARTÍNEZ, 1996, p. 67)

Deseaba al igual que el pueblo una nueva Argentina; queríaser la fórmula vice- presidencial como una estrategia políticapersonal; quería ser parte del estado y terminar la falta de derechoque la acompaño toda su vida; era una apasionada al Peronismo;deseaba exterminar la oligarquía; era altanera con las clases socialesaltas; la oposición comparaba a Perón con Hitler y a Eva Duartecon Eva Brown.

En respuesta a sus acciones Evita termina recibiendo unsinnúmero de alias, por un lado, vemos como los pobres la llamabanLa Santa, la madre del justicialismo o la guía del rebaño; pero, porel otro, la oligarquía la llamaba Agripina, Sempronia, Cualquiera,Nefertisis, pero esas comparaciones no le afectaban.

La razón de la vida de Evita en esta etapa fue el pueblo mismo,siempre conoció y vivió junto con ellos sus necesidades, razón porla cual, se ganó el apoyo, aprecio, lealtad y una cercanía muy estrechacon ellos, se convirtió en su líder y la esperanza, tanto así que lepidieron ser la fórmula vice-presidencial en el año de 1952 al ladode su marido el General Juan Domingo Perón.

En este ciclo, vemos un cambio notable en su vida, gracias alas experiencias de su niñez posee una forma de pensar tan clara ytan definida en contra de la oligarquía, Evita en su inconscientedeseaba ese cambio social y el destino le colocó al General Perón alfrente suyo, los cuales sin darse cuenta, tenían el mismo ideal socio–político, a pesar de provenir cada uno de ellos de una clase socialdiferente.

Un hecho primordial que marcaría este ciclo fue la confianzay seguridad que el General comenzó a ofrecerle, él le mostró otrafaceta de la vida, aquella que le había sido prohibida hasta entonces,esta unión le brindó un nivel de seguridad sicológica y le subió la

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auto estima, al lado del General comienza a tener derechos, escriticada por la oligarquía, pero al lado de él, no se siente agredida.

Como García Roza (2004) expone, si el trabajo del sueñotransforma pensamientos en imágenes, el trabajo de la interpretacióndevuelve a la imagen una forma de discurso simbólico. Es por esoque, Evita tiene poder tras el poder; fue una transgresora porquerompió los códigos de su época y del estado, sobre todo porqueactuó en un campo reservado a los hombres, y sin dejar de ser mujer,ejerció el poder de una manera nueva, a la cual la sociedad no estabaacos­tumbrada contradiciendo los modelos establecidos,provocando de esta manera reacciones a favor por las clases menosfavorecidas y en contra, por las clases sociales altas, incluyendopersonalidades de la oligarquía.

Nadie se podía imaginar que el nombre “Evita Duarte” conese pasado tan difícil, sin un destino político marcado, se convertiríaen la primera dama de la nación y mucho menos se iban a imaginarque aparte de eso se convertiría en una líder social muy defensorade los menos favorecidos. ¿Dónde aprendió a manejar el poder esapobre cosita frágil? ( MARTÍNEZ, 1996, p. 12)

Algo importante en este ciclo, fue la proclamación de Evita ala vice presidencia, hecho político muy particular, pues, movilizó alpueblo culminando en una impresionante manifestación en ElCabildo Abierto del Justicialismo, su propósito fue reunir unamultitud de dos millones de personas, en un escenario montado frenteal Ministerio de Obras Públicas, hecho que sobrepasó lasexpectativas; en este momento de la historia, Evita ya estaba dentrode los corazones de los pobres.

Los cambios son evidentes bajo el abrigo del General, estehecho partió en dos el destino de Evita, aparece la bipolaridad, elantes de y el después de; lo inconsciente pasa a ser consciente; suauto estima pasa de ser baja a alta; de ser pobre pasa a ser una mujeradinerada; de ser discriminada pasa a pertenecer un grupo y sentirseimportante en el. Todas las experiencias negativas vividas por Evita

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hasta el día que conoce al General cambian radicalmente, lashumillaciones y desprecios de su vida pasada, al lado del General,se convierten en fortalezas, gracias a que ella conservó su esenciaespiritual y su Don de servicio aprehendido en su infancia.

Evita siempre está siguiendo los parámetros de su esposo JuanDomingo Perón, su amor crece cada día más y más, a manera degratitud, ella nunca olvidó lo que el General le representaba, puesencontró en él el apoyo que nunca había encontrado, ella siempreevitó sobresalir más que él, siempre respetándolo, recordándole acada instante cuanto lo amaba, el General se convirtió en su apoyoincondicional para que sus sueños y sus fantasías políticas se hicieranrealidad.

Según Freud (1906), podemos interpretar que las falencias quevivió Evita en su niñez se convirtieron en sus delirios y deseasuperarlos a través de toda la ayuda que le brindada a los pobres deArgentina, su intención era realizar una distribución más equitativadel ingreso para ver realizado su sueño de una sociedad mejor.

El tercer ciclo comienza cuando Evita es internada de urgenciasen el hospital y termina días después con su inminente muerte. Enesta etapa reconocemos como comienza a odiar su cuerpo, se sentíatraicionada por él, no quería verse morir, siempre tuvo una actitudde luchadora para con el pueblo, hasta en los días de enfermedadcontinuaba pensando que una guerra se gana con gallardía, comenzóa sentirse sola y nace otro sueño, deseaba que después de morir nofuera olvidada y fuera recordada, deseo que le expresa al General ensu lecho de muerte. Razón por la cual, el General la mandaembalsamar encargando para ello al doctor Pedro Ara. Hechotrascendental para el desarrollo de la novela.

Lo que no quiero es que la gente me olvide, Juan. No dejés que meolviden.–Quedáte tranquila. Ya está todo arreglado. No te van a olvidar.–Claro. Ya está todo arreglado –repitió Evita. (MARTÍNEZ, 1996, p. 15)

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Quiso armar al pueblo pero su salud se lo impidió; el pueblodefiende a Perón y a Evita; la gente lloró cuando Evita renunció a lacandidatura vicepresidencial; le pidió al pueblo nunca dejar sólo aPerón; la consigna que gritaba en sus discursos para concientizarmás a sus Grasitas era: “Lo que se busca es para el pueblo y que lodefienda el mismo”; pidió a Dios que no le levantaran la mano aPerón porque ella misma saldría a la calle con su pueblo paradefenderlo; continuo amando a los pobres y los consideraba comosu única esperanza.

El pueblo salió a pedir por su salud, llevaban en sus manoscirios y velas prendidas, realizaron misas pidiendo por la salud de lasalvadora de los pobres; muchas personas se pararon frente alhospital donde estaba internada, orando, aclamando y esperando lamejoría de su líder; los pobres la querían canonizada; el pueblocomenzó a realizar trabajos difíciles o poco realizados con elpropósito de que Evita al morir mencionara sus nombres frente aDios; sus seguidores ofrendaban sus vidas por la de Evita; el pueblosuplicaba a las cortes celestiales que la recibieran con honores dereina; Evita fue para los pobres una Santa.

–Nosotros somos nosotros y nada más –le hizo notar Raimundo–. Encambio si Evita muere, los abandonados van a ser miles. Gente comonosotros hay por todas partes, pero santas como Evita hay una sola.–Ya que Ella es tan santa, podrías pedirle que nos saque de este apurodijo Dominga.–No puedo, porque los santos no hacen milagros cuando están vivos.Hay que esperar a que se mueran y gocen de la gloria del Señor.(MARTÍNEZ, 1996, p. 73)

En su lecho de muerte ocurrieron varios acontecimientos, entreellos: predijo el golpe de estado a Perón que años más tarde se dio,ella pensaba que la oligarquía consideraba al pueblo basura, siguesiendo humilde, agradeció a Perón por todo lo que había hecho porella, le pidió al General ser feliz siempre y no abandonar a los pobres

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porque ellos si saben ser fieles en las buenas y en las malas. Laoposición escribe “viva el cáncer” en las paredes de la ciudad comomanera de enaltecer al cáncer, lo que para el pueblo era tristeza,para la oligarquía era alegría, lo que ellos no pudieron hacer, lo estabahaciendo la enfermedad.

Evita se convierte en un símbolo de perseverancia, constanciay lealtad, nunca olvidó su humildad; consideraba a los médicos dela oposición, pues no confiaba en el dictamen médico, creía que erauna estrategia de ellos para hacerla abandonar la política, no se veíaenferma y menos en este momento justo a vísperas de las elecciones,cuando su sueño se estaba consolidando, sabía a ciencia cierta loqué les podía ocurrir a los líderes del Peronismo, en una eventualpérdida de las elecciones, la oposición comenzaría a perseguirlos,torturarlos y a encarcelarlos.

La lucha característica de ella la llevó hasta el final, CuandoPerón asumió por segunda vez la presidencia, Evita acumuló susúltimas fuerzas para ser parte de las ceremonias, pese a la oposiciónde Perón, gracias a un armazón de yeso y alambre y a una abundantedosis de sedantes, Evita pudo asistir de pie a la ceremonia dejuramento y luego recorrer parte de la ciudad, al lado de Perón,saludando a la multitud, culminando con la pronunciación de undoloroso discurso donde, por un lado, le pide al pueblo que noabandonen al General, Las palabras de Evita no eran más quedesgarradoras expresiones de dolor, impotencia y defensa contraPerón como el auténtico líder del pueblo.

Mis descamisados yo quisiera decirles muchas cosas, pero los médicosme han prohibido hablar. Yo les dejo mi corazón y les digo que estoysegura, como es mi deseo, que pronto estaré en la lucha, con más fuerzay más amor, para luchar por este pueblo al que tanto amo, como loamo a Perón; pero si no llegara a estar por mi salud, cuiden al General,sigan fieles a Perón como hasta ahora, porque eso es estar con la Patriay con ustedes mismos”. (MARTÍNEZ, 1996, p. 175)

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A pesar de su enfermedad, ese mismo día atacó a la oligarquíapronunciando uno de sus más violentos discursos en contra de ellos,ese sería su último discurso, haciendo que estas palabras, como resultalógico, incrementaran el odio de los opositores contra Evita.

Si es necesario ejecutaremos la justicia con nuestras manos. Pido aDios que no permita que esos insensatos levantar la mano contraPerón, porque ¡guay de ese día! Ese día, mi General, ¡yo saldré conel pueblo trabajador, con las mujeres del pueblo, con losdescamisados de la Patria para no dejar ni un ladrillo que no seaperonista!” (MARTÍNEZ, 1996, p. 117)

En su lecho de muerte cuestiona la presencia de Dios pues nole ayuda con su salud para continuar con su proyecto, piensa queDios es de la oposición y no le interesa los pobres, la ironía escaracterística este ciclo, lo que antes le era prohibido, en su condiciónde enferma lo obtiene, la habitación del hospital en la que Evita seencontraba tenía cortinas de terciopelo rojo, alfombras de colorrosa, un sofá tapizado en rosa y una cama de estilo, sigue siendo unapersona humilde. “ Pensar que tengo que morir para tener unahabitación como está”. (MARTÍNEZ, 1996, p. 87)

Para los pobres Evita era una Santa² en quien podían confiar;pues ella les había demostrado lealtad, apoyo y solución a todos susproblemas, los cuales los vivía como si fueran propios, además lerecordaran su vida de pobre. La dualidad es evidente de nuevo,después de sentirse amada y acompañada, comienza a sentirse sola,como si ya nadie la quisiera, maldice su suerte.

El cuarto y último ciclo comienza cuando Evita esembalsamada, la Santa al sentir su muerte le expresa al General suúltimo sueño, pretensión que su esposo está dispuesto a realizar,ella sueña con ser recordada y de no permitir que el pueblo la olvide,es el sueño consciente de perpetuación e inmortalidad de la líder delos pobres en la memoria de sus seguidores.

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A lo cual el General le responde “ya está todo arreglado” noshace pensar que el proyecto del embalsamento fue algo pensado yplaneado para cumplir con ese sueño consciente de la difunta,convirtiéndose en la trama de la novela, un cuerpo errante queadquiere unos poderes aun mayores, logrando desempeñar un papelsingular en la historia política de su país.

Si en vida nos ayudó, ¿cómo no hacerlo ahora que es una Santa?Eran las palabras profesadas por las personas conocedoras de Evitay sus acciones realizadas en vida; la oligarquía pensaba que ella muertaya no seria un problema, pero se dieron cuenta, que el cuerpoembalsamado se convirtió en un problema mayor, porque creíanque era la motivación para el pueblo y ellos en revuelta serían bastantepeligrosos, capaces de continuar con los sueños de Evita, entre elloserradicar la oligarquía.

Este nuevo delirio, aparecido inmediatamente después de lamuerte de Evita, es protagonizado por el doctor Pedro Ara,reconocido maestro en el arte del embalsamento, su objetivo,convertir el cuerpo en objeto de culto peronista y de odio frente alos anti-peronistas.

Era un cuerpo que no aceptaba su destino, dejar al peronismosólo sin la ayuda de ella, es ahí donde la novela redefine la posturade un cuerpo errante cargado de poder, no solo redefiniendo lavida de Evita, sino la historia Argentina; razón principal por la cualel cuerpo se convirtió en algo tan anhelado de tener por los gruposPeronistas y Oligarcas, tanto así que, permaneció custodiado porhombres del ejercito por los veinte años siguientes a la muerte de laprotectora de los pobres, como si ella embalsamada fuera un peligromayor de seguridad nacional.

“El vicepresidente se incorporó.–Muerta –dijo–, esa mujer es todavía más peligrosa que cuando estabaviva. El tirano lo sabía y por eso la dejó aquí, para que nos enferme atodos. En cualquier tugurio aparecen fotos de ella. Los ignorantes la

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veneran como a una santa. Creen que puede resucitar el día menospensado y convertir a la Argentina en una dictadura de mendigos”.(MARTÍNEZ, 1996, p. 25)

Los militares anti-peronistas temían que el cuerpo fuerautilizado para alentar la resistencia de los obreros y militantesperonistas aprovechando el fervor que siempre despertó Evita entrelos humildes. Así surgieron dos posiciones con respecto al cadáver.Los sectores más cerradamente anti-peronistas, en especial laArmada, eran partidarios de destruir el cuerpo por cremación, opor cualquier otro medio, los sectores más moderados, en especiallos miembros del Ejército, movido por una actitud más piadosaproponían su entierro.

El cuerpo de Evita es dado en custodia al Coronel CarlosEugenio Moori Koenig, por el vice-presidente de turno; ella nuncaestuvo totalmente escondida como lo pensaban los militares, losGrasitas siempre sabían la ubicación del cuerpo pero no se atrevíana secuestrarlo; esto demuestra dos cosas, la primera, una maneraconsciente de expresarles a los militares que ellos aun están cuidandodesde la distancia a su salvadora, y la segunda, les advierten a losoligarcas que no le podían hacer daño.

Al llegar, el Coronel descubrió una nueva fatalidad. En la vereda junto ala que pensaba dejar el camión ardía una hilera de velas delgadas y largas.Alguien, alrededor, había esparcido margaritas, glicinas y pensamientos.Ahora sabía que el enemigo no lo perseguía. Era peor que eso. Elenemigo adivinaba cuál iba a ser su próximo destino, y se le adelantaba.(MARTÍNEZ, 1996, p. 182)

En su desesperación el Coronel Moori decide trastearfrecuentemente el cuerpo, como estrategia para despistar a susenemigos, los Grasitas, un lugar de ellos fue la casa del mayor Arancibia,el cual una noche asesina a su esposa que estaba esperando un hijo

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suyo, confundiéndolo con un ladrón que venia a llevarse el cuerpo,hecho que se puede interpretar como un acto de locura y desgracia.

El cuerpo también fue guardado detrás de una pantalla decine, esperando que nadie sospechara dónde podría aguardar elcuerpo, analizamos este acto como un elemento de delirio por partedel Coronel al obstinarse con el cuidado del cuerpo, pues no podíaconfiar en militar alguno.

Luego, El coronel Moori lleva el cuerpo errante por toda laciudad y aguardaban con sus soldados al féretro donde les cogía lanoche, a pesar de que la seguridad para ella era muy fuerte, siempreaparecían flores y velas encendidas; elementos característicos de unanovela policíaca o de misterio.

La narración de esta peregrinación del cuerpo nos hace ver eldelirio que no sólo tenían los militares por la posesión del cuerpo,sino los peronistas también. Ella muerta significaba un problema deseguridad nacional, pues si el cuerpo llegaba a manos de los Grasitas,ellos podían sentir el apoyo de ella proveniente desde él mas allá, seharían más fuertes y continuarían con el propósito de su Santa,exterminar a los oligarcas como sea.

El autor también nos hace ver a una Evita embalsamada, perocargada de poder, posiblemente más del que tenía cuando estabaviva, este hecho del embalsamento, significa una victoria para elPeronismo, pues el trabajo quedó tan bien hecho que Evita parecíaviva, sólo le faltaba hablar, además se convierte en un cuerpoinspirador para las masas.

Tal vez ya es tarde –dice Arancibia, el Loco–. Hace dos años se podía.Si hubiéramos matado al embalsamador, el cuerpo se habría corrompidosolo. Ahora es un cuerpo demasiado grande, más grande que el país.Está demasiado lleno de cosas. Todos le hemos ido metiendo algoadentro: la mierda, el odio, las ganas de matarlo de nuevo. Y como diceel Coronel, hay gente que también le ha metido su llanto. Ya ese cuerpoes como un dado cargado”. (MARTÍNEZ, 1996, p. 154)

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Esto constituye una respuesta a su deseo de recordación, puesfue un estímulo directo que el General recibió de su esposa, díasprevios antes de su muerte, Evita embalsamada continua siendo laheroína esperada e inspiradora que esta en un estado de quietudpara los Grasitas pero en una actitud desafiante para los Oligarcas,ahora posee los poderes del mas allá para seguir cumpliendo con susueño de cambiar los destinos de Argentina; el delirio por la posesióndel cuerpo, pasa de lo individual a lo colectivo, pues se hace latenteen ambos grupos; los seguidores Grasitas y los opositores Oligarcas.

La misión para el Coronel Moori se convierte en unaobstinación, pues él hace toda una serie de estrategias yplaneamientos militares para lograr su misión, pero, se da cuentaque todo fue inútil.

– ¡Galarza, Fesquet!–llamó. Los oficiales llegaron corriendo, con elpresentimiento de un desastre. Galarza se paró en seco junto a la puertay no dejó avanzar a Fesquet. –Mírenla –dijo el Coronel–. Yegua demierda. No se deja domar. (MARTÍNEZ, 1996, p. 279)

Un hecho trascendental en el proceso de embalsamento porparte del Dr Ara, fue el haber elaborado tres copias de la líder, paratratar de impedir que se robaran la Evita verdadera, eso provocauna modificación del delirio en el Coronel, pues debía saber cualera la verdadera, por eso le quita un pedazo de oreja al cuerpoverdadero, como manera de identificación.

También se presentan los delirios de escuchar zumbidos deabejas, es un hecho recurrente de dar a entender al lector de que losGrasitas están al tanto de la ubicación espacio-temporal de su salvadorasin importar, las estrategias militares que utilicen para ocultar el cuerpo.

–Oiga a las abejas –dijo el Coronel–. Andan por toda la ciudad. Esraro. Y la radio, no sé... Por la radio no dicen una sola palabra de estasplagas. (MARTÍNEZ, 1996, p. 130)

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Al cabo del tiempo, el Coronel termina enamorado del cuerpoembalsamado, indicio de locura fuerte; lo que comenzó como unamisión de cuidar el cuerpo, se convirtió en una obsesión, siguió enun enamoramiento, y concluyó con un estado de locura.

Cifuentes lo tomó del brazo. –Tranquilo, Moori. No pasa nada.– ¿Cómo que no pasa nada? ¡Se la llevaron, Cifuentes! ¡La estánenterrando en la luna!¿No es hermosa? –Es hermosa –dijo el Coronel–. Es la persona máshermosa de este mundo. –Se desplomó en el sofá y repitió sin consuelo,cientos de veces, la revelación que le iba a consumir lo que le quedabade vida: –Es Ella. Los hijos de puta la enterraron en la luna.(MARTÍNEZ, 1996, p. 384)

Ese enamoramiento se debió a la constitución física de Evitay al quedar como viva, el Coronel comenzó poco a poco aenamorarse y a crearse una dependencia afectiva hacia ella, comenzóa desearla como se desea al ser amado, le hablaba como esperandorespuesta y peleaba con el cuerpo inerte. Lo que era consciente en elCoronel, cuidar el cuerpo de la difunta, se iba convirtiendoinconscientemente dentro de su ser en un enamoramiento ydependencia que lo llevaría a la demencia.

- ¿Te vas a quedar, Evita? –le preguntó–. ¿Vas a obedecerme? El brilloazul de las profundidades de Persona parpadeó, o él creyó queparpadeaba. – ¿Por qué no me querés? –le dijo–. Qué te hice. Me pasola vida cuidándote. Ella no contestó. Parecía radiante, triunfal. Al Coronelse le cayó una lágrima y al mismo tiempo lo alcanzó una ráfaga deodio”. (MARTÍNEZ, 1996, p. 279)

Uno de los elementos interesantes en la novela Santa Evita esla capacidad que el autor tiene de no omitir detalle al momento dehacer la narración, pues los elementos van siendo encontrados en eltranscurso de la lectura; el lector debe hacer una lectura minuciosa e

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investigativa, para encontrar los indicios, pues, el lector encuentrarespuestas a las acciones realizadas por Evita gracias a todo su pasadotan difícil que tuvo que afrontar.

La obra de Tomás Eloy Martínez, constituye de alguna manera,un estudio sicológico de la realización de los sueños inconscientesde Evita, además exalta la condición del destino y la predestinación;pues, el autor nos muestra a una Evita que estaba destinada a realizaresa obra social tan bien elaborada gracias a su visión de mundo, queposeía desde su infancia, unos delirios que son predestinadosúnicamente cuando conoce al General y podo somatizar sus deseos.

Todas las obras literarias contienen uno o más de esos subtextos, y enun sentido se les podría llamar el “inconsciente” de la obra. La perspicaciade la obra -otro tanto ocurre con cualquier tipo de escrito— se relacionaíntimamente con su ceguera: lo que no dice y cómo no lo dice puedenser cosas tan importantes como lo que efectivamente expresa.(EAGLETON, 1998, p. 110)

Es interesante advertir el papel de la mujer dentro de la historiaen el siglo XX en Argentina, papel representado por Evita Perón,pues ella logró realizar el sueño de muchas personas que hasta esemomento no tenían una representación en el gobierno y por elcontrario se sentían utilizados y rechazados por este, los sueñosinconscientes en su juventud, se convierten en algo consciente en sumadurez, pudiendo cumplir parte de sus sueños, hasta que su mismocuerpo se lo permitió.

El narrador nos muestra como ella desde su trabajo comoactriz realiza una obra caritativa con los niños huérfanos pero noshace ver que era una obra muy difícil de realizar por la falta depresupuesto, siendo este hecho un primer indicio de los sueñosinconscientes de Evita frente a su sociedad, esta impresión nos daelementos para considerar que la parte inconsciente de los sueñosde Evita, están en conversión hacia la parte consciente.

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Haremos, pues, constar, que con este calificativo de«inconsciente» nos referimos con exclusividad a aquellos procesospsíquicos que, comportándose activamente, no llegan, sin embargo,a la conciencia del sujeto. (FREUD, 1907, p. 37)

Este hecho en particular nos expresa la energía anímica queEvita poseía para ayudar a los demás, provocando en ella un granamor y apego hacia sus Grasitas, con el deseo de mejorarles lacalidad de vida.

Al lado del General los sueños de Evita se realizan de maneraconsciente, siguiendo sus principios sociales, políticos, éticos ymorales; los recuerdos de su niñez se encuentran en estadoinconsciente de represión, si desde niña Evita hubiera planeadoconscientemente los proyectos que quería, el autor lo hubieraexpresado a través de la lectura, pero, no hay indicios que nosdemuestren esto, entonces, los sueños se convierten efectivamenteen un inconsciente reprimido.

La característica de lo reprimido es, precisamente, que a pesarde su intensidad no logra abrirse camino hasta la conciencia.(FREUD, 1907, p. 38)

Evita cuando tiene la oportunidad no la desaprovecha y porcontrario, esa fuerza anímica que muestra en su interior esexteriorizada con las acciones emprendidas hacia sus Grasitas, es lademostración de la capacidad de realización de los sueñosinconscientes dada por la fuerza síquica que le imprime para llevarlosa cabo con éxito.

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THE THEATRE OF VIRGÍNIAVICTORINO AND THE FIRSTPORTUGUESE REPUBLICO TEATRO DE VIRGÍNIAVICTORINO E A PRIMEIRAREPÚBLICA PORTUGUESA

Fabio Mario da Silva 1

(Universidade de Évora)

ABSTRACT: Virgínia Victorino’s plays addressed the needsof bourgeois audiences at the beginning of the 20th century,leaving behind themes of love and relationships, and enteringthe notional and ideological field of new Portuguese Republi-can politics. Her plays attracted the acclaim of their audiences,the criticism of journalists (from Brazil and Portugal) and drawin representatives of the Portuguese government. It is withinthis context that the author attempts to find ways in which tobetter attend to new Portuguese social norms, while at the sametime continuing to include in her plays, more so than in herpoetry, elements of her political stance, which is frequently con-

1 Doutorando em Literatura pela Universidade de Évora, bolseiro FCT (Portugal), investigadorCLEPUL (Univ. de Lisboa).

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troversial. In this way, the work of Virgínia Victorino reflectsthe intrinsic problems of the new Portuguese Republican po-litical system.

KEYWORDS: Portuguese Plays, Virgínia Victorino, PortugueseRepublic.

RESUMO: O teatro de Virgínia Victorino, além de atendernecessidades do público burguês do começo do século XX, deixade lado questões de relações amorosas e entre no campoespeculativo e ideológico da nova política da RepúblicaPortuguesa. Seu teatro consegue atrair o aplauso do público, acrítica jornalística (do Brasil e de Portugal) e representantes dogoverno português. É dentro desse contexto que a autora tentaencontrar caminhos que possam atender melhor ao novo padrãosocial português, mas nem por isso deixa de lado de implementar,em suas peças, mais do que em suas poesias, seu posicionamentopolítico, que muitas vezes é controverso. A obra de VirgíniaVictorino reflete, desta forma, as próprias problemáticas do novosistema político republicano português.

PALAVRAS-CHAVE: Teatro português, Virgínia Victorino,República Portuguesa.

A minha arte é toda simplicidade, mas simplicidade que afagaa superfície real dos sentimentos, sem se deixar vulgarizar.Procuro as palavras, como pedras preciosas. Nem todas meservem.

My art is nothing but simplicity, but simplicity which touches the truesurface of feelings, without letting itself become vulgar. I seek words,like precious stones. Not all are of value to me.

Virgínia Victorino(interviewed by Artur Portela)

The implications surrounding the formation of the FirstPortuguese Republic for the most part revolve around variousinstabilities in the country. Whether (i) in the area of population,

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with wide scale emigration, many deaths from epidemics and war;or whether (ii) in the field of economics, given that only agriculturalproducts such as wine, cork and fruit were readily available, withwheat-derived products being scarce, and consequently magnifyingproblems related to poverty and hunger, concentrating the vastmajority of the country’s wealth in Lisbon. Whether (iii) alsostemming from the emergence of new social classes, such as the richbourgeoisie, who held great sway over the country’s decisions duringtheir ascent, despite Republican leaders insisting upon the creationof a myth that the new regime was brought into existence by thepeople. It is also worth highlighting (iv) the “anti-Jesuitism” used asa form of combating the monarchy, leading to an increase in Masonicpractice within the country. Even Portuguese literature is found atturbulent period of its existence with many different literary aesthetics,which seek to break free of traditional paradigms and enter into themodern age of a new Europe. It is exactly this period oftransformation that is described by Rui Ramos in the followingconsiderations:

Mais do que programas técnicos e moralistas de boa governação eprosperidade, a República continha um projecto de transformaçãofundamental da humanidade que não era um simples devaneio dosseus partidários mais excêntricos. Deu sentido a muitas das suas acções,como a do confronto com a hierarquia da Igreja Católica, e fez asorganizações republicanas desenvolverem um sistema de mobilizaçãoe propaganda política cujo paralelo – e não por acaso – só se poderiaencontrar na grande rival a Igreja Católica. Por aqui o republicanismose articula com as actividades intelectuais em Portugal e se vai tornarum dos cadinhos para a produção de uma medida, uma “sacralização”das actividades dos Portugueses, através de um conceito, “cultura”,que, dotados de valor absoluto, rituais, devoções, funcionam como“religião”. (1993: 433)

In addition to moralistic and technical schemes of good governanceand prosperity, the Republic contained within it a project that aimedtowards the fundamental transformation of humanity, which was not

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just a mere fancy of its most eccentric members. It gave meaning tomany of its actions, such as its confrontation with the hierarchy of theCatholic Church, and it compelled Republican organizations to developa system of political mobilization and propaganda rivalled only – andnot by chance – by its great rival, the Catholic Church. Around thispoint Republicanism is linked with intellectual activities in Portugal, andis becoming one of the crucibles for the creation of a measure, a“sacralization” of the actions of the Portuguese people, by way of oneconcept, “culture”, which, blessed with absolute value, rituals, devotions,functions as a “religion”. (1993: 433)

It is in this historical context that Virgínia Victorino’s firstpoems2 come about – set amongst that which is referred to as theFirst Portuguese Republic (1910-1926) – romantic and a touchcoquettish in character. Let us remember that from 1917 onwardsVictorino began to debut her first poems in newspapers, as ifsketching out drafts for the publication of her future first work,Namorados (1918), attracting the attention of newspaper critics:“são lindos os seus versos e d’um encanto e merecimentoinconfunível” (1917:?3). What the author desired, to begin with,was to reveal her poetic compositions to the public and see howthey would be received. From the moment at which positivecriticism came, the author ventures further and further into thepoetic world, publishing various texts, as happened in A canção dePortugal: “fala-se de um dos mais nobres espíritos femininos (…)conquistou rapidamente um nome no mundo das letras portguesas”(1918:?). Another critic, writing in Semana Alcobacense, states thatVirgínia ought to be considered among the best of Portugueseand Brazilian writers (cf. 1919:?).

2 Let us remember that Virgínia Victorino’s first three works were written in verse: Namorados(1918), Apaixonadamente (1923) and Renúncia (1926).3 The news paper articles with the question mark is part of newspaper clippings arranged byVictorino who often did not bother to highlight the author, the period or the date of the newsabout his work.

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So, we note that even before her first collection, the author isalready recognized and critically acclaimed, becoming a symbol aswell of a pioneer making a name for herself in the literary world atthe start of the 20th Century. However, it is as a playwright that shecomes to assert and express with some tenacity her political stanceas a supporter of feminist causes. As regards her theatrical work,her début as an author of theatre occurs in 1931, with Degredados,which caused uproar amongst the public and in the press: “achievingsuccess throughout its run” (1913a:?). Virgínia establishes herselfdefinitively as a playwright, being the first woman in Portugueseliterature to be “aclamada como autora dramática”/”acclaimed asa dramatic author” (1931a:?). Degredados, her first work, publishedin 1931, but staged in 1930, is the most sacred text of the era bothfor the public and for critics, viewed as “o grande êxito do TeatroNacional” (“the National Theatre’s great success story”) (1931d:?).However, the author, in this play, touches upon themes relating,directly or indirectly, to issues surrounding the politics of the colonialadministration. Diario de Notícias from March 1930 highlights thatthe play is defined

pela gravíssima circunstância de a principal acção se passar na nossaprovíncia de Angola, girando em torno da sua mais alta e elevadaautoridade, um Alto Comissário Republicano, outros funcionários seussubordinados, apresentados ao público como traidores, miseráveisvendidos ao estrangeiro (1930e:?),

by the most troubling fact of the main action taking place in ourprovince of Angola, revolving around its greatest and highestauthority, a Republican High Commissioner, and his other subordinateofficials, presented to the public as traitors, the wretched sold to aforeign land (1930e:?),

considering the play’s production at the Teatro Nacional(National Theatre) to be a scandal. For this reason, on the dayfollowing the article, the General Inspectorate of Performances

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announced that the play would return to the stage, with the aspectsthat merited “our repairs” now changed. This modification,according to Gustavo Matos Siqueira, who was playing the role ofthe Government commissioner, referred only to the passage in whichthe “high commissioner” appeared, whose title was duly changed to“the Government”, which was even then complemented with: “Theamendments made – which shall shortly be made clear – were carriedout upon the spontaneous decision of the author” (1930c:?). Therewas some outcry from artistic circles and Virgínia Victorino, indefence of her work, posited that the play had no political intent,only literary, stating that the reference to the colonial administrationwas a mere artistic device, and clarifying that: “What’s more, it issaid in the play that the High Commissioner is loyal to the partywho sent him there, and if the main character reproaches thegovernment for worrying only about elections – is it not wellestablished that the action of the play develops within a past andindeterminate timeframe? My sole aim was to make theatre”(1930f:?). Diário de Notícias thereby reveals to us that the play wasaltered, congratulating the author, deeming that “it is only after thesemodifications that the play falls within the artistic domain” (1930f:?).That is to say, the country’s greatest vehicle for communication waseither strictly controlled, or in favour of the Republican regime.

The author becomes not only the muse of Portuguese drama,but also of the regime, insomuch as she is accepted by the controllingpolitical powers of the time. Having been criticized, her play was anabsolute success: “A peça ‘Degredados’ tem hoje a 11.ªrepresentação. Pode dizer-se que é também a 11.ª enchente, poisque a marcação para esta noite é enorme. Virgínia Victorino, quetinha o seu nome na poesia portuguesa, fica agora ligada ao teatropela sua obra” (“The play ‘Degredados’ is now on its 11 th

performance. Once could also call it its 11th surge, given that bookingsfor tonight have been enormous. Virgínia Victorino, who made hername in Portuguese poetry, has with this play become a firm stapleof the theatre”) (1930e:?)

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It is necessary also to emphasize that in Virgínia Victorino’stheatre we can find three plays of a political-ideological stance. Thefirst of these is Degredados: staged in 1930 (54 performances) andpublished in 1931, it produced some discomfort, as we have noted,for its attribution of a colonial political role to a corrupt character.Let us recall that the new government was attempting to prove itselfsuperior to the monarchic system and to do this it was necessary toemphasize the Republicans’ good leadership, primarily on an issueas complex as the management of the former Portuguese colonies.

Degredados focuses around the character of Joaninha, a youngwoman of modern, feminist ideals from Lisbon high society who, inorder to save her family (consumed by debts run up by a high qualityof life and due to the excesses of her brother, João), marries a richolder man, Manuel, passing over her bohemian suitor, Fernando.Meanwhile, her brother, João, having frittered away the family fortuneleaves for Africa in search not only of a better life but also ofredemption. Following the marriage of the protagonist, the plotspace moves to Portuguese Africa. Fernando, now rich, goes in searchof Joaninha, who, at the first instance, agrees to flee with her firstlove, but nonetheless the guilt of having to leave a serious andprincipled man, Manuel, who had always supported both her and allof her family, causes her to change her mind. Above all, thePortuguese woman is blessed with a superior character, with honestyand kindness: this is confirmed upon the reappearance of her brother,who all believed to be dead. João redeems himself of his blame: thepunishment of war was exerted not only upon his body, but alsoupon his spirit, and he returns as a hero. In other words, all of theprinciples which permeated the creation of the Portuguese Republicare present in this text: the honest, modern woman, acquiescent toher husband; the citizen who redeems himself of his faults fightingfor his country; and a man of the people who achieves wealth.

A Volta, the second play, staged in 1931 (51 performances)and published in 1932, takes up the same nationalist theme,recovering the story of a Portuguese émigré, Manuel de Campos,

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who is separated from his family for 25 years. His return home andhis meeting with his family is a demonstration that, in Portuguesefamilies of good stock, they remain the same, waiting for him. Thatis to say, the play contains ideas related to character and to therestructuring of the Portuguese family. The female character andwife, Mariana, above all exemplifies the foundation and pillar ofthis reconstruction. The playwright constructs a character who ismodern, but obedient to her husband, as the only way in which shewould be able to transform her spouse’s faults is with her honour.In this way, the values of the new bourgeois Portuguese Republic,which sought to reconcile modernity with national traditions (which,in this work, are present in implied form), pleased the public andthe new political order.

Camaradas…, her penultimate work, was staged in 1937 (22performances), now under the regime of the Estado Novo, andpublished in 1938. It is certainly the play which received the mostcriticism, whether positive or negative, due to its literary constructionand the subject matter it addressed. J.M.A., for example, praised theperformances of the actors from the Companhia de Amélia ReyColaco, but on the subject of the work’s construction, advises: “Letexperts pronounce whether the end of the play is sufficient to redeemthe childish sketches developed in the first two acts. In truth, the action,the subject matter and the writing of the scenes set at the shoemakers’and at the house of the poor shoe merchant are ridiculous and inferiorin nature (…). In short, ‘Camaradas…’, if it had not been written witha superior third act, would be a play of real merit; as it stands, it is aninferior work” (sic) (1937:?). This play, which has a strong socialinclination, inspired by anti-communist elements, is shown to be verycontroversial. Victorino also explores in this work the rise of a youngboy, humble and hard-working, who comes into some money and,having been swept along by the power of capitalism, begins to earnsome of his own. We must note that on some level the plot of thisplay pleased the ruling powers. Júlia Lelo talks of the problemssurrounding this text, both in terms of its structure as well as its plot:

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4 Here we note that up until the present there is only one serious and in-depth critical text inPortugal, by Júlia Lelo, on the work of the Portuguese writers, entitled: Virgínia Victorino e aVocação do Teatro: o percurso de um sucesso, a Masters dissertation, Lisbon, Universidade Nova deLisboa, 1993. On the subject of Victorino’s work the academic states: “The theatre of VirgíniaVictorino was intended principally to appeal to the tastes of a bourgeois public, an aim whichwas not only achieved, but in general meteorically surpassed, something which would not havebeen easy for a woman of the people. It was necessary not only to please this public but tointerest it, force it to give in, to grab it by the horns, interpreting its feelings and ideals. It wasnecessary, above all, to know how to choose the correct theme out of those which fascinatedsociety at the time, or at least the social class to which she definitively wished to conquer. Fromthe beginning of her career, the poet adopts the stance, the convictions and the ideals of thisclass, to which she ascended by dint of her literary prowess and for the savoir faire with whichshe conducted her social affairs, dosing sympathy with discretion and sentimental idealism withirony, becoming the definitive “dramaturga do regime (regime playwright)” (our italics) (Lelo, 1993:66).

CAMARADAS… constitui um texto contraditório, com umdesenvolvimento por vezes inesperado, o que de resto só por si nãopode ser considerado defeito, se bem que seja prejudicado pelo tom(anti) propagandístico, um tanto empolado. E apesar de algumasincoerências e de uma certa ingenuidade que por vezes revela (V: 3.1.1.),a intriga está bem construída, com um certo doseamento deimprevisibilidade e efeitos-surpresa que virão a aperfeiçoar-se no textoseguinte. Essa mestria em mexer os cordelinhos de cena, não se devendojá somente ao talento da escritora mas também a vários anos dededicação ao teatro, creio traduzir-se ainda num maior à-vontade emmovimentar personagens. (1993:76-77)

CAMARADAS... constitutes a contradictory text, with sometimesunexpected developments, a point which by itself could not beconsidered defective, although they are prejudiced by the (anti-)propagandist tone, which is a little stilted. And despite some incoherenciesand a certain naivety which at times comes into vision (V: 3.1.1.), theplot is well constructed, with a certain dose of twists and surprise-effects which will come to be perfected in the following text. This masteryof moving the puppet strings, which owes not only to the writer’s talentbut also to several years of dedication to the theatre, lead to a evengreater ease with moving the characters around. (1993:76-77)

Years later, there are no new editions of Virgínia Victorino’swork4; indeed, there are scarcely any academics dedicating themselves

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to the study of her work, causing it to become forgotten: with theliterary qualities of her texts and the superior nature of her worksreversed, her texts were never adapted to the new trends popularwith audiences and academics. In other words, the public fondnessfor Virgínia Victorino’s theatre is a direct consequence of theaesthetic aspirations of the time, a theatre with new features, differentfrom the so-called Classical Portuguese theatre, now going after thefeminine gaze in relation to Portuguese (Lisbon) society.

Let us then conclude that the theatre of Virgínia Victorino, inaddition to addressing the needs of the bourgeois public at the startof the 20th Century, leaves behind questions of romantic relationshipsand enters the notional and ideological field of new PortugueseRepublic politics, despite the author not subscribing to this position,and stating that her intention is merely to “make art”. Seen throughthis lens, she possessed a controversial political conscience, not onlyfor having raised political issues in her plays, but also for revealingto us that women ought to have freedom, but a balanced freedom atthat. That is to say, Victorino tried to address all current ideologies,like one who seeks to be accepted by different politicians/parties.Her theatre manages to attract the acclaim of the public, newspapercritics and representatives of the Portuguese government. The workof Virgínia Victorino thus reflects the inherent issues within the firstPortuguese Republican political system.

Above all, Republicanism brought Portuguese women a newperspective that did not simply entail confinement within the home,but instead their active participation in society, even if it was a modestparticipation subject to a degree of control. Virgínia Victorino depictsthe day to day theatricality faced by women within the Portuguesecultural milieu. And despite these theatrical texts following a timelinewhich begins at the First Republic and ends with the Estado Novo,the author does not manage to disconnect herself from the idealsfounded from the 5th October onwards, and carries with her, more inher theatre than in her poetry, this mark of the revolution and of theinstability of the First Portuguese Republican system.

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_______. A volta: peça em 3 actos, Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 1932.

_______. Camaradas: peça em 3 actos, Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 1938.

VOGT, Blanche, “Deux grandes femmes des lettres portugaises”, in Supplémentdu matin, n.º 520, Paris, 23rd July, 1935. 

THE THEATRE OF VIRGÍNIA VICTORINO AND THE FIRST PORTUGUESE REPUBLICO TEATRO DE VIRGÍNIA VICTORINO E A PRIMEIRA REPÚBLICA PORTUGUESAFabio Mario da Silva

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ENTREVISTA DE MARIATERESA HORTAINTERVIEW WITH MARIATERESA HORTA

A “escrita feminina”The “script feminine”

Concedida a Fabio Mario da Silva1

(FCT-CLEPUL)

Com o movimento emancipatório da mulher e ofortalecimento dos movimentos feministas, começou a pensar-seacerca do modo como as mulheres escrevem e como os homens asdescrevem, que levou aos seguintes questionamentos: será que existemesmo uma maneira feminina de ser, pensar e retratar o mundo?Seria possível também falar de uma modalidade feminina de escrita?

Maria Teresa Horta, escritora e poetisa por excelência,jornalista e ativista feminista, revela algumas problemáticas que seinserem no campo dos Gender studies, ao expor sua opinião sobre seseria possível a existência de uma “escrita feminina” e quais seriam

1 Doutorando em Literatura – Universidade de Évora/Bolseiro FCT-CLEPUL

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as suas nuanças, referindo ainda questões referentes à diminuição depoetisas portuguesas e ao forte crescimento de prosadoras. Talentrevista é reveladora, primeiramente, de um olhar astuto e críticode uma autora que se define como poetisa e feminista e não comopoetisa feminista; secundariamente, constatamos que o entendimentode Maria Teresa Horta vai ao encontro do pensamento de BéatriceDidier, contido na obra L’écriture-femme (1981, p.37-38), quecompreende a escrita feminina como «une écriture du Dedans:l’intérieur du corps, l’intérieur de la maison. Écriture du retour à ceDedans, nostalgie de la Mère et de la mer. [...]. Très vite la frontièreentre le non-dit, l’interdit et l’indicible» Outra crítica francesa, IrmaGarcia, também sintetiza, na obra Promenade Femmilière:recherches sur l’écriture féminine, as características de uma possívelescrita feminina, pois acredita que existe uma dinâmica de escritaque se constitui em sistemas de correlação imanentes aos textos eque, consequentemente, há uma certa polissemia, ou certasconotações, que proliferam particularmente nos textos das mulheres:“Dans cette matière à connotations, nous développerons uniquementles images qui nous paraissent les plus significatives de cette chairlinguistique, les plus proches du corps, les plus illustratives du rythmebiologique qu’adoptent les femmes” (1981:15). Desta forma, a críticaentende que há uma articulação entre o corpo e a escrita feita pormulheres, porque na metáfora da escrita a mulher participariademonstrando sua própria forma: “L’écriture flue de la femme, deson corps, fluctuante, allant d’un point à l’autre, revenant, noyant lapage de mots fluides”.

O corpo se configuraria como inscrição e marca culturalexpressa no texto literário, não apenas para as críticas francesas comopara a entrevistada. Justamente por notar esta lacuna no meioacadêmico português, realizei uma entrevista com a escritora MariaTeresa Horta, concedida em Lisboa a 18 de agosto de 2011.

Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa, onde frequentou aFaculdade de Letras. Jornalista e crítica literária, estreou-se na poesiaem 1960 com Espelho inicial, tendo participado no ano seguinte

Entrevista de Maria Teresa Horta a Fábio Mário da SilvaInterview with Maria Teresa Horta to Fábio Mário da Silva

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no volume Poesia 61, com Tatuagem. Ao longo dessa décadapublica, sucessivamente, Cidadelas submersas, Verão coincidente,Amor habitado, Candelabro, Jardim de inverno e Cronista nãoé recado. Em 1971 publicada Minha senhora de mim, apreenditopela polícia política da ditadura, em 1975 Educação sentimenta eem 1977 Mulheres de abril. Nos Anos 80 são editados Rosasangrenta, Os anjos e Minha mãe meu amor (Prémio Poesia RevistaMulheres). Destino e Só de amor saem em 90. No final de 2006publica Inquietude e, em França, Les sorcières – Feiticeiras,edição bilingue da Actes Sud, e em 2009 Poesia reunida. No Brasilsaem em 2007 a Antologia pessoal + 22 Poemas inéditos, Palavrasse o livro inédito de poesia, Poemas do Brasil em 2009, e ainda emPortugal a antologia de toda a sua poesia até então, Poesia reunida,e já em finais de 2012 o livro Poemas para Leonor

No romance surge com Ambas as mãos sobre o corpo em1970, e no ano seguinte, conjuntamente com Maria Isabel Barreno eMaria Velho da Costa, publica Novas cartas portuguesas, obra que valeuàs autoras um processo judicial “por ofensa à moral pública”, movidopelo governo fascista. Esta obra encontra-se editada em numerosospaíses. No romance destacam-se ainda Ema (Prémio Ficção RevistaMulheres) e Paixão segundo Constança H., reditado em finais de2010. Já em 2011 foi editado o romance sobre a Marquesa de Alorna,As luzes de Leonor, obra que levou mais de treze anos a escrever.

Em 2004 Maria Teresa Horta foi condecorada, pelo Presidenteda República Jorge Sampaio, Grande Oficial da Ordem do Infante D.Henrique. Em 2007, foi convidada a abrir o XXI Encontro deProfessores Brasileiros de Literatura Portuguesa. Em 2008 foi-lheatribuido o Prémio Paridade-Mulheres e Homens na ComunicaçãoSocial, pelo seu ensaio “A palavra das mulheres: Uma escrita docorpo”. Já em 2009 foi homenageada no IV Seminário Internacional“Mulher e Literatura”, que decorreu em Natal, Brasil. Em 2010 foidistinguida com o Prémio Máxima Vida Literária pela antologia PoesiaReunida. E em 2012 recebeu o Prémio D. Dinis pelo romance As luzesde Leonor e o Prémio Máxima Literatura, pela mesma obra.

Entrevista de Maria Teresa Horta a Fábio Mário da SilvaInterview with Maria Teresa Horta to Fábio Mário da Silva

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Na sua opinião, existe uma escrita feminina? Se sim, quais seriam ascaracterísticas dessa escrita?

Há anos venho lutando neste país por se reconhecer que existeuma escrita feminina. Aliás, não é nada de original, já a VirginiaWoolf dizia isso, no princípio do século XX. Eu me assumo comouma escritora feminina. Existe sim uma escrita feminina e umamasculina. Não estou a dizer que a escrita feminina é melhor oupior que a escrita masculina. Há autores bons e maus, como autorasboas e más. Aquilo que eu digo é que, desde a escolha do tema até àforma de observação, a escolha do próprio ritmo, quer do poema,quer da ficção, é completamente diferente do homem. É precisolembrar que a escrita feminina muitas vezes é minimizante, porquedurante séculos as mulheres tiveram a escrita masculina comomodelo a seguir e sempre foram muito limitadas para o ato da escrita,por isso séculos atrás é comum encontrarmos mulheres queescreviam sob o pseudônimo de autores masculinos, porque elasnão tinham acesso à entrada nos editores, por isso os textos dessasmulheres passavam de “boca em boca”, passavam também de “mãoem mão”, através de manuscritos. Por exemplo, a Marquesa deAlorna nunca publicou nada, mas era uma das escritoras maisconhecidas do nosso país. Os seus textos eram escritos à mão:copiavam-se e eram assim distribuídos – foi desta forma que elaficou conhecida no século XVIII. Ou seja, as pegadas que essasmulheres deixam são a própria escrita. Porque na realidade vocêpode dizer: o que é feminino? É feminino como? O que é uma mulherhoje, nós sabemos? Intelectualmente as mulheres foram “atadas aospés da mesa”: não lhes era permitido entrar nas faculdades, não lhesera permitido aprender a ler, não havia escolas para raparigas. Istoaconteceu em Portugal até ao século XVIII. Na realidade, sejagenético, ou seja fruto de uma educação, as mulheres têm uma maioratenção ao pormenor, uma maior atenção à língua, porque ensinamàs crianças. A passagem da língua é feita pelas mulheres que educamas crianças, e quando as pessoas escrevem têm em mente essapassagem da infância, por isso eu me reporto às mulheres da minha

Entrevista de Maria Teresa Horta a Fábio Mário da SilvaInterview with Maria Teresa Horta to Fábio Mário da Silva

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infância. Portanto, desde o tratamento do tema até ao tratamentoda linguagem, a mulher é habituada desde pequena a reparar nosoutros, a reparar nas coisas, a não ser amada, mas a amar, a não serreconhecida, mas a reconhecer – e isso dá uma visão completamentediversa do mundo. Portanto, quando a mulher escreve, faz isso comtudo o que tem dentro de si: o corpo, o contato com a vida e com amorte, a sua visão do mundo, a sua emoção.

Acha que seria privilégio das mulheres, ou existiria uma escrita femininaem textos escritos por homens? Se sim, que autores teriam uma escrita feminina?

Se você disser que há uma escrita masculina muito feminina,ou mais feminilizante, eu estou de acordo consigo. Há uma diferençaabissal entre a escrita masculina e a escrita feminina. Os homensmais modernos têm às vezes uma escrita mais feminina. Apesar degostar da diferença, para poder entender o que os homens pensam,eu não gosto nada quando as mulheres imitam a escrita dos homens.A questão de interiorizar o corpo da mãe é algo que busco. Eu achoque esse jogo do corpo da mãe tinha o Proust e aí a sua escritaacaba por ser uma escrita feminizante, isso é tão complexo no Proustque é fascinante. Uma escrita que é totalmente masculina é o Máriode Carvalho, pois há nele tão grande posicionamento de diferençamasculina, mas não estou a dizer que isso é machismo, poderia citarcomo uma escrita sexista os textos do Henry Miller. A VirginiaWoolf tem uma escrita feminina, ela vai à procura do corpo da mãe,ela vai à procura das mulheres nos seus livros. Já a Simone deBeauvoir, tirando a última fase da sua obra, tem uma escritamasculina. Aliás, já na obra O sangue dos outros, a Simone é deuma dureza, de uma tal crueldade feminina – eu acho que a mulheré mais cruel do que o homem –, e a Simone de Beauvoir é acrueldade feminina em pessoa. Quando ela escreve aquele livro quefala longamente de Portugal, Os mandarins, aí sim ela éextremamente feminizante. Fernando Pessoa, por exemplo, é umaescrita masculina e misógina, eu desse tipo de escrita não gosto enão suporto. Não estou a dizer que ele é um mau poeta, mas eu nãogosto do Fernando Pessoa.

Entrevista de Maria Teresa Horta a Fábio Mário da SilvaInterview with Maria Teresa Horta to Fábio Mário da Silva

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Nuno Catarino Cardoso publica, em 1917, uma antologia intituladaPoetisas portuguesas e cita 106 autoras. Porém, atualmente, notamos umagama maior de obras publicadas em prosa do que poéticas, feitas por mulheres;quais os fatores a que você atribui tal fenômeno?

Eu já várias vezes pensei porque é que há menos mulheres ligadasà poesia. É uma coisa que me preocupa, na medida em que eu achoque os poetas são os alquimistas do futuro, e aquilo que os alquimistastransformam em ouro, os poetas transformam em sonho. Na minhaopinião, enquanto houver poetas no mundo, enquanto houver pessoasque ouvem e leem poesia, há esperança no mundo, e fico muitopreocupada de haver cada vez menos mulheres na poesia, quandodantes havia muitas. Eu considero que a mulher tem uma vida tãodura que precisa de ter muito mais os pés no chão do que o própriohomem. E pergunto: será que as mulheres têm tanta disponibilidadedentro de si que se possam dar ao luxo de poder voar? Será? Oproblemas das mulheres hoje em dia é poder conciliar muitas tarefase uma determinada evolução de igualdade, mas o homem não evoluiunesse ponto, e quando chega a casa a mulher tem as mesmas tarefasque dantes e, como o homem não evolui da mesma forma, o homemquer ficar com os mesmos privilégios. As mulheres e os homens hojeem dia têm mais espaço para escrever ficção, já que a ficção não levauma pessoa a voar, não é a mesma coisa. Eu, na minha Leonor, voeio tempo todo: quem está ali é uma poetisa, um livro de mulher.Nenhum homem escreveria As luzes de Leonor, garanto-lhe, nenhumhomem faria “partos literários”, como, por exemplo, eu fiz doze partosnesse livro. Eu faço todo o parto da Leonor e vou com ela invocandoe chegando até à escrita, ao Orfeu e à Eurídice que eu construo numdos seus doze partos. Isso só pode fazer uma mulher, uma poetisa,porque é preciso ter “asas” para voar, é a única maneira de se chegaràs estrelas, é através dos poetas, essa é a minha opinião. É preciso umapessoa despregar-se de si própria. E porque é que há menos mulherespoetisas no mundo ocidental? Às vezes pergunto-me isso e nãoencontrei as respostas. Há cada vez mais mulheres fazendo prosa, eprosa de muita qualidade.

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LOUSADA, Isabel, AdelaideCabete (1867-1935). Colecção fio deAriana. N.º 6. Lisboa: Comissão paraa Cidadania e Igualdade de Género,2010, p.107.

Fabio Mario da Silva(Universidade de Évora)1

Na esteira das comemorações dos 100 anos da proclamaçãoda República Portuguesa e do 75.º aniversário do falecimento deAdelaide Cabete (1867-1935), ocorrido a 14 de setembro, aComissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Presidência doConselho de Ministros, publicou a biografia desta na coleçãointitulada “Fio de Ariana” (Ariadne/Ariadna, em Português doBrasil) dedicada ao pioneirismo de mulheres portuguesas quecontribuíram para a emancipação feminina e para a transformaçãodo pensamento patriarcal da sociedade. Isabel Lousada,investigadora da Universidade Nova de Lisboa e uma das maioresespecialistas em maçonaria feminina, através de uma obra

1 É bolseiro da FCT, com cofinanciamento do FSE (Fundo Social Europeu), com apoiosdo POPH (Programa Operacional Potencial Humano) e da União Europeia.Investigador do CLEPUL. [email protected]

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bibliográfico-crítica, revela-nos o percurso daquela feminista médicaque também se assume socióloga, educadora, maçónica, republicana-socialista e livre-pensadora; uma mulher que lutou ativamente contraas desigualdades sociais entre homens e mulheres em Portugal.

A obra Adelaide Cabete inicia-se com uma breve cronologiaque pretende dar uma visão geral do pioneirismo ativista e daimportância histórica desta portuguesa que rompeu com certasimposições às mulheres do seu tempo, através de uma formaçãoerudita e de uma empenhada ação ideológica e política. Médica ehumanista, é assim que a define Isabel Lousada, destacando que dentretantos movimentos que se implantavam com a República em Portugal,Adelaide Cabete fundou e tornou-se Presidente do Conselho Nacionalde Mulheres Portuguesas. Acima de tudo, Adelaide Cabete é umapersonagem central para o desenvolvimento de uma cultura feministaportuguesa. Porém, sofrendo com a falta de expressão e de liberdadevigentes, parte para Angola, em 1929, como quem almeja à liberdade.Importa destacar que apesar das parcas condições económicas da suafamília alentejana, Adelaide Cabete (apelido que herda do maridoManuel Ramos Fernandes Cabete) sempre se mostrou apta aos estudose, não obstante, desenvolveu um profícuo autoditatismo tornando-se, posteriormente, uma das primeira médicas a exercer a profissãoem Lisboa.

Segundo Isabel Lousada, a sua biografada defendeu que senão for possível à mulher grávida ter uma profissão menos fatigantedeverá a sociedade, no mínimo, prover para que as gestantes tenhamrepouso durante parte da gravidez, visando desta forma preservara saúde e o bem-estar das grávidas e mães solteiras, pensandomaioritariamente nas mulheres de classes menos favorecidas. Estaposição permite-nos considerá-la pioneira na defesa pela licença dematernidade e assistência pré-natal, na esteira do combate contra aelevada taxa de mortalidade infantil.

Republicana fervorosa, feminista consciente, maçónica poropção, Cabete torna-se assim uma das mulheres pioneiras em

ResenhaFabio Mario da Silva

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Portugal a superar todas as dificuldades para construir uma carreirasólida e de grandes lutas ideológicas, vindo a morrer em plenoEstado Novo, de ataque cardíaco, na sua residência em Lisboa, noano de 1935.

Destaca ainda Isabel Lousada, que essa feminista portuguesatambém se envolveu na luta das mulheres pelo sufrágio, defendendoa igualdade, se não nos direitos políticos, na esfera civil,preocupando-se quase sempre com as mulheres que se situavam namarginalidade social (que não tinham lar e/ou família), como foitambém uma forte defensora da profissionalização da mulher atravésdo trabalho digno e honesto; de certa forma, Cabete via no trabalhoum caminho para as mulheres obterem uma certa independênciaem relação ao marido, bem como de ajudarem na receita familiar, afim de obterem uma melhor qualidade de vida. É importante frisarque Adelaide Cabete compreendia que os papéis conferidos aosgéneros em Portugal acabavam por desenvolver conceçõesestereotipadas de feminilidade e masculinidade, situando a mulherà margem da história cultural portuguesa.

Devido às suas ideias, Adelaide Cabete pode ser consideradauma das mais representativas mulheres portuguesas, do começo doséculo XX, que pensaram um Portugal livre de imposições sociais àvoz ativa das mulheres. Destaca assim, Isabel Lousada, a importânciadesta mulher para a cultura e sociedade portuguesa: “oprotagonismo de Adelaide Cabete em movimentos sociais ter-se-áficado a dever às suas qualidades humanas, aliadas às competênciascientíficas e profissionais exibidas. Enquanto militante activa nestesmovimentos revela ter sabido criar um patamar alargado decolaboração, reunindo em torno de si uma vasta panóplia incluindodiferentes sensibilidades e convicções, almejando conquistar paraas causas que a moviam um sem números de adeptos e adeptas”(LOUSADA, 2010,p. 56). Desta forma, Isabel Lousada procuramostrar e tirar do anonimato mais uma mulher que ajudou na lutapor um Portugal mais justo e igualitário.

ResenhaFabio Mario da Silva

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Os artigos podem ser redigidos, além de português, emespanhol, francês, italiano, inglês.

Formatação:

Em Word for Windows ou programa compatível, fonteTimes New Roman, tamanho 12, espaço simples entrelinhas e parágrafos, e espaço duplo entre partes do texto.Páginas configuradas no formato A4, sem enumeração,com 03 cm nas margens superior e esquerda e 02 cmnas margens inferior e direita.

Extensão: 10 páginas no mínimo e 15, no máximo.

Estrutura:

Título em negrito e caixa alta, centralizado. Traduçãoem inglês. Imediatamente abaixo, alinhado à direita,nome completo do autor, seguido da sigla de sua IES.Em nota de rodapé: filiação científica - Departamento,Faculdade, Universidade, CEP, cidade, estado, país.

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Normas de apresentação dos originais

Em Times New Roman e corpo 11: Resumo (máximo 200 palavras) ePalavras-chave (máximo 06) no idioma do artigo; Abstract eKeywords em inglês.

– Citações:

– No texto: entre aspas, sem destaque em itálico, seguidas, entreparênteses, pelo sobrenome do autor em caixa alta, ano de publicaçãoe, quando necessário, da página (p.). “[...] moleques, mulatos/ vêm vê-los passar.” (FERREIRA, 1939, p. 65). Se o nome do autor estivercitado no texto, indicam-se entre parênteses a data e a página: “Segundoafirma Lotman (1991, p. 10).......”

Acima de 03 linhas: destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda,corpo 11, sem aspas. Entre parênteses, sobrenome do autor em caixaalta, ano, página.

Notas de rodapé: reduzidas ao mínimo, enumeradas, no pé de página,corpo 10.

Referências bibliográficas:

Em ordem alfabética pelo último sobrenome do autor e conforme aNBR 6023 da ABNT de 2006.

– Livros e monografias:

HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005.

– Capítulos de livros:

AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A.(Org.). O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 317-26.

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Normas de apresentação dos originais

ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In: _____. Texto e contexto.São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 19-120.

– Dissertações e teses:

SILVA, I.A. Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso. 1994.Tese (Livre-docência) – Departamento de Linguística, Unesp,Araraquara/SP.

– Artigos de periódicos:

HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje deLudwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos,Puebla, n.24, p.5-9, 2002.

– Artigos em jornais:

CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, dizestudo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago.2009. Cotidiano, p.5.

– Trabalhos em eventos:

SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In:SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002.Mirassol. Anais... Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20.

– Publicações On-Line

SILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10mar.1999. Disponível em http://www.alerta.br. Acesso em 10mar.1999.

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Articles should be typed in Word for Windows or compatible program,Times New Roman font, size 12 (with the exception for quotes and notesfor which should be applied sizes 11 and 10, respectively), simple spacebetween lines and paragraphs, double space between parts of the text.The pages should be set up in A4 format, unnumbered, with 3 cm atthe top and left margins and 2 cm in the bottom and right.

As an extension, the article set the format above, should have 15 pagesat most.

Organization implies the following sequence: title (centered, inuppercase) author (left with a footnote indicating which bindsUniversity) abstract (with maximum of 200 words) keywords (up to06 words), written in the language of the article; abstract and keywords(for English version of the Abstract and Keywords) Summaries, keywords, in Portuguese and English, should be typed in Times NewRoman, size 11.

References (only mentioned studies into the text). Footnotes shouldbe presented in foot of page, using Microsoft Word resources, in size10, numbered following the order of appearance.

On quotations inside text, of up to three lines (NBR 10520 of ABNT,2006), the author should be cited in parentheses by last name, incapitals, separated by commas before date of publication (SOUZA,

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2005). If the author’s name is mentioned into the text, indicates onlythe date in parentheses: “Souza (2005) points out […]”. When necessary,the specification of page(s) should follow the date, separated bycommas and preceded by p. (SOUZA, 2005, p. 145). The quotes fromvarious works by the same author, published in the same year shouldbe differentiated by small letters after the date without spacing(SOUZA, 2005a). When the work has two or three authors, all may belisted, separated by semicolons (SILVA; SOUZA; SANTOS, 2005);when more than 3 authors, indicates the first followed by et al. (SOUZAet al., 2005).

Direct quotations, with longer than three lines (NBR 10520 of ABNT,2006), should be highlighted with a decrease of 4 cm from the leftmargin, in size 11 and unquoted.References at the end of the text should be arranged as recommendedfor ABNT NBR 6023 in 2006. We will give some basic indicationshere: should be arranged alphabetically by surname of the first author.

- Books and monographs (AUTHOR, A. Title of the book. Editionnumber-ed., City: Publisher, number of pages p.).HATOUM, M. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras. 2005.

- Book chapters (AUTHOR, A. Title of the chapter. In: AUTHOR, A.book title. City: Publisher, Year. p. X-Y).AGUIAR, F. Visões do inferno ou o retorno da aura. In: NOVAES, A.(Org.) O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 317-26.ROSENFELD, A. Reflexões estéticas. In: _______. Texto e contexto.São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 19-120.

- Thesis and dissertations (AUTHOR, A. - dissertations /thesis title:subtitle without italics. Number of leaves f. Year Dissertation / Thesis(Masters / PhD in Concentration Area) - Institute / Faculty, University,City, Year)SILVA, I.A. Figurações e metamorphose: o mito de Narciso. 1994(Livre-docência). Departamento de Linguística, Unesp, Araraquara/SP.

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS-PPGELUNEMAT - SECRETARIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

RODOVIA MT - 358, KM 07, JARDIM AEROPORTO, TANGARÁ DA SERRA/MTCEP: 78300-000

- Journal articles (AUTHOR, A. title of article. Journal name, City,vol. volume, n. paragraph, p. X-Y, Year).HERNÁNDEZ M., L. La importancia de la filosofía del lenguaje deLudwig Wittgenstein para la linguística del cambio de siglo. Escritos,Puebla, n.24, p.5-9, 2002.CARVALHO, M.C. Países pobres concentrarão mortos por fumo, dizestudo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 ago. 2009. Cotidiano, p.5.

- Work published in Annals of congress or similar (AUTHOR, A. titleof work. in: NAME OF EVENT, edition ed., year. Anais ... City:Institution. p. X-Y).SILVA, A.J. Novas perspectivas ao romance brasileiro. In:SEMINÁRIO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA, 1, 2002.Mirassol. Anais...Mato Grosso: Unemat, 2003. p. 11-20.

-Work published On-LineSILVEIRA, R.F. Cidade invadida por vândalos. Alerta. Curitiba, 10mar. 1999. Disponível em http://www.alerta.br.Acesso em 10 mar.1999.

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