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Penúltimos combates: a luta de classes como desejo reprimido no Krisis/Exit

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 80

Penúltimos combates

A luta de classes como desejo reprimido no Krisis/Exit 1

Daniel Cunha

“Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história. Talvez seja o contrário. Talvez as revoluções sejam o ato pelo qual o gênero humano que viaja nesse trem puxa o freio de emergência.” (Walter Benjamin)

A reflexão coletiva do grupo Krisis, posteriormente cindido em Krisis e Exit, cujos

membros mais conhecidos são Robert Kurz, Anselm Jappe, Roswitha Scholz e Norbert

Trenkle, deu maior visibilidade a uma crítica radical e necessária do capitalismo: uma

crítica que não se reduz às meras queixas sobre a distribuição desigual da riqueza entre as

classes imanentes, mas que resgata a crítica do fetichismo da mercadoria analisado por

Marx, desenvolve a crítica do sujeito, do patriarcado e do Iluminismo, bem como uma

teoria da crise do trabalho, e portanto crise sistêmica do capitalismo, formando um

arcabouço teórico de grande coerência interna e poder explicativo da realidade. O

desvendamento teórico do capitalismo a partir de sua estrutura celular, a mercadoria,

revela o trabalho abstrato coisificado em valor, a substância comum de trabalho e capital.

Portanto, "trabalho e capital são os dois lados da mesma moeda"2, e a superação do

capitalismo implica a superação de ambos. Entretanto, com o desenvolvimento das forças

produtivas microeletrônicas, a produção de mercadorias se desvincula do trabalho

humano, o que acarreta a crise da valorização3: se o valor corresponde ao tempo de

trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria (Marx), quando o

trabalho se torna supérfluo o valor tende a tornar-se irrisório e pode cada vez menos

realizar-se no mercado, pois seus possíveis compradores não conseguem mais vender sua

força de trabalho. A partir deste quadro geral o Krisis/Exit lança duas de suas conclusões

1 Este texto é uma versão revisada do texto “A luta de classes no Krisis/Exit” (2006), publicado na página

da internet do Grupo Fim da Linha (atualmente fora do ar). 2 GRUPO KRISIS, Manifesto contra o trabalho. São Paulo: Conrad, 2003; também disponível em

http://planeta.clix.pt/obeco/mct.htm 3 Cf. KURZ, Robert, O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992; também disponível em

http://obeco.no.sapo.pt/livro_colapsom.htm

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mais polêmicas, ou seja, a de que a luta de classes "pertencia à dinâmica interna de

valorização do capital", não possuindo nenhum momento emancipatório, e de que a crise

da valorização - a crise do trabalho, a crise do capitalismo - implica na crise da luta de

classes; ou seja, a luta emancipatória deve dar-se para além da luta de classes.

Para o Krisis, "a luta de classes era a forma de execução desses interesses antagônicos

[entre capital e trabalho] no seio do fundamento social comum do sistema produtor de

mercadorias"4. A luta de classes nunca teria (e nem poderia ter) posto em questão o

capitalismo, mas somente a distribuição de riquezas internamente a este. De outra parte, a

crise do trabalho inaugura o que é chamado de "dessolidarização radical", onde não se tem

mais uma luta do capital contra o trabalho, mas uma espécie de todos contra todos: "o

aposentado torna-se o adversário natural do contribuinte; o doente, o inimigo de todos os

assegurados; e o imigrante, objeto de ódio de todos os nativos enfurecidos"5. Para o Krisis,

então, "a pretensão de querer utilizar a luta de interesses imanentes ao sistema como

alavanca de emancipação social esgota-se irreversivelmente"6; "a 'luta de classes' está

dissolvida como parte integrante deste sistema de concorrência universal, e tem-se

revelado como mero caso especial desta, que de modo algum consegue transcender o

capital"7.

Porém, deve-se primeiramente destacar que o Krisis/Exit não nega o antagonismo

social imanente e nem prega o seu abandono, como eventualmente poderia sugerir uma

leitura apressada e superficial. Ele apenas situa "a oposição social entre capital e trabalho"

como sendo "uma oposição de interesses diferenciados [...] internamente ao

capitalismo"8. Para Kurz, a pressuposição de que "a luta imanente por salários, prestações

sociais, transferências, etc., é de qualquer modo inútil, devido à objetividade do limite

inerente à crise [...] é quase absolutamente igual ao argumento neoliberal da 'necessidade'

[...]. O limite objetivo do processo de valorização não significa que em cada situação

concreta da crise já não exista qualquer alternativa de decisão imanente. Para que apesar

da crise também ainda no interior da forma do valor possam ser afirmados interesse vitais,

no entanto, é necessária uma consciência de que, em primeiro lugar, o sistema de qualquer

forma está a esbarrar com limites absolutos e que, em segundo lugar, precisamente por

isso também as necessidades afirmadas de forma imanente têm de ser impostas, custe o

4 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit. 5 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit. 6 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit. 7 KURZ, Robert, Para lá da luta de classes, 2003, disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz139.htm 8 GRUPO KRISIS, Manifesto..., op. cit.

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que custar, contra as 'leis' pseudo-'naturais' da lógica da mercadoria, sendo que uma

pessoa não pode permitir que os administradores de crise lhe 'façam as contas' à

impossibilidade da própria existência"9.

Ainda, o antagonismo social é destacado no processo de superação do capitalismo.

Para Kurz, "o menor dos avanços rumo à desvinculação da forma mercadoria" já bastaria

para "desencadear um conflito com a estrutura burguesa de reprodução, o que encerraria

um momento de guerrilha"10. Ainda, diz que "o objetivo emancipatório não pode ser mais

conquistar o poder, mas somente desapoderar o poder, que coincide com a superação da

forma da mercadoria. Claro, seria ingênuo supor que o poder deixará desapoderar-se sem

conflitos. O capitalismo não sairá de cena sem chus nem bus, sem retrucar, tal como seu

derivado estatal-socialista. Por isso, uma relação negativa com o poder não significa uma

recusa a exercer pressão para se atingir os objetivos próprios. Um pacifismo abstrato é tão

descabido como uma ameaça de intervenção militar. A violência sempre está à espreita na

constituição fetichista, e, na crise, mais do que nunca [...] O embate de um movimento

social (e é justamente disso que se trata) com as instituições dominantes começa e

transcorre, em geral, sob o limiar da violência. Este embate começará logo num estágio

bastante precoce e numa dimensão local"11.

Caso se admita, pois, que Kurz não nega, mas pelo contrário, afirma o antagonismo

social, tanto na imanência quanto em um movimento de superação, cabe a pergunta: como

será este antagonismo? Quem estará de cada lado? O antagonismo será caracterizado por

um corte de que natureza? Num primeiro momento, Kurz assume um discurso altamente

logicista, fazendo um apelo à consciência:

"Todos os sujeitos sociais do sistema produtor de mercadorias são como tais

'máscaras de caracteres' da forma-fetiche. Um momento de superação não pode portanto

utilizar como rastilho um mau 'interesse' imanente e a priori constituído pela forma, mas

antes uma crítica da forma pressuposta de um interesse cego. Isso vale para 'todos', e

assim todos podem em princípio constituir e portar 'todo' este movimento de superação.

Um tal movimento não corre por pistas traçadas imanentemente, mas por brechas do

sistema produtor de mercadorias e na resistência contra o processo de barbarismo. Seus

9 KURZ, Robert, Dead men writing, 2004, disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz181.htm 10 KURZ, Robert, Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1997, p.297; também disponível em

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz59.htm 11 KURZ, Robert, Antieconomia e antipolítica (original: Krisis nº19, 1997), disponível em

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz106.htm (tradução modificada).

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portadores não podem remeter-se a um apriorismo ontológico (ao 'trabalho', por exemplo),

mas somente a percepções parciais embora inevitáveis, nas quais a consciência rompe seu

próprio cárcere formal. Desse modo, o conflito social não desaparece, mas é reformulado

num outro plano. De fato, não se trata agora de um antagonismo cegamente constituído,

no qual todo membro da sociedade já tem sua parcela designada pela constituição do

fetiche antes mesmo de poder tomar uma decisão. Trata-se antes de um antagonismo no

qual a crítica prática da forma-fetiche, de um lado, e o apego caturra à sua 'normatividade'

cada vez mais absurda, de outro (a consciência social superior, de um lado, e a consciência

codificada do lemingue, de outro) encontram-se frente a frente"12. O que se tem aqui é um

antagonismo idealista: consciências “superiores” de um lado, consciências de “lemingue”

de outro.

Porém, um movimento de superação do capitalismo não surgirá de uma dedução

lógica, ele deve ter uma gênese social e histórica. Inicialmente, Kurz aposta em "formas

embrionárias" originando-se do "terceiro setor" - organizações não-lucrativas (ONG's) que

atuariam "por fora" de Estado e mercado, arrancando progressivamente os seus recursos13.

Tal hipótese nos parece bastante equivocada, quando se vê que as tais ONG's hoje em dia

mais se parecem a multinacionais da caridade. Em verdade esta formulação apenas desloca

o problema, pois continuamos sem saber que forças sociais estarão atuando nessas formas

embrionárias. Em um escrito posterior, Kurz diz que "a luta de interesses imanente bem

pode, no seu desenvolvimento ulterior, ser enriquecida com abordagens, formas

embrionárias, momentos de uma reprodução que não obedeça à forma da mercadoria (por

exemplo, instituições cooperativas que, contrariamente às empresas cooperativas

tradicionais, não voltem a ir dar ao mercado, ou seja, se 'esgotem no uso', sem uma nova

mediação pelo dinheiro). Semelhantes enriquecimentos, que podem estar associados a

processos de apropriação naturais e correspondentes exigências ao estado, a ocupações

etc., não são, no entanto, possíveis nem no âmbito de projectos pequenos, nem num baixo

nível de desenvolvimento do movimento social, mas apenas quando esse movimento tiver

alcançado uma determinada abrangência e profundidade social. É também por isso que

estas abordagens não podem ser postas em oposição à luta de interesses imanente,

12 KURZ, Robert, Dominação sem sujeito (original: Krisis nº13, 1993), disponível em

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm 13 KURZ, Robert, Antieconomia..., op. cit.; em reunião durante o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto

Alegre, Kurz, fazendo uma autocrítica, afirmou ser necessária uma reformulação em seu texto Antieconomia e antipolítica. Apesar de não ter explicitado os pontos a serem reformulados, acreditamos que a questão das ONG's deve estar relacionada.

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podendo unicamente tornar-se eficazes juntamente com ela e através dela [...]. Para que a

luta de interesses imanente possa ser transformada, para já, ela tem de existir na realidade,

e não apenas em ações simbólicas e simulativas. Só a um nível elevado de desenvolvimento

do movimento social e da polarização social, a questão da apropriação dos recursos sociais

para lá da forma do valor pode ser mobilizada de um modo adequado (e evidentemente

associado a uma nova formulação emancipatória da questão do poder), ou seja, também no

que diz respeito às grandes agregações e infra-estruturas sociais"14.

Por sua vez, diz Anselm Jappe: "a implosão do capitalismo deixa um vazio que poderá

permitir também a emergência de uma outra forma de vida social. Face ao progresso da

barbárie, é hoje possível afirmar algo como um 'ponto de vista da humanidade', para lá da

divisão das classes sociais - mas sem esquecer que certas partes da humanidade mostram

muito mais interesse do que outras pela manutenção da lógica do valor"15.

Aqui não deve haver dúvidas quanto ao fato de que a "luta de interesses imanentes" e

a "polarização social" citadas por Kurz e as "partes da humanidade" que "mostram muito

mais interesse que outras pela manutenção da lógica do valor" citadas por Jappe têm um

corte classista. Da própria argumentação de Kurz salta aos olhos que o movimento de

superação do capital deverá ter um caráter classista, ou seja, de luta, desde o início, pois

surgirá da agudização da luta de interesses imanentes, "juntamente com ela e através

dela".

Junto ao conceito de "luta de classes" certamente também vem à baila o seu conceito

inseparável, o de "classe trabalhadora", ou "proletariado" (somente no nível da

argumentação lógica se pode separar os dois, não no movimento real). Diz Kurz: "A 'classe

revolucionária' de Marx foi inequivocamente o proletariado fabril do século XIX. Unida e

organizada através do próprio capital, tornar-se-ia o seu coveiro. Os grupos sociais,

dependentes de salário das áreas derivadas de serviços, infraestruturas etc. estatais e

comerciais, podiam ser juntos ao 'proletariado' apenas como uma espécie de grupos

auxiliares, e mesmo isto só enquanto este ainda dominava como núcleo de massas sociais

nas fábricas produtoras de capital. Com uma inversão das proporções numéricas, como se

tinha esboçado já desde o início do século XX (e fora refletido apenas de forma superficial

14 KURZ, Robert, Dead men writing, op. cit. 15 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor. Lisboa, Antígona, 2006, p.

265.

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pelo antigo marxismo, p. ex. no debate de Bernstein) o esquema tradicional de classes e de

revolução não podia continuar a passar"16.

Sem dúvida, na época de Marx o trabalhador industrial era ao mesmo tempo o mais

numeroso e o que ocupava o posto mais estratégico na reprodução do capital. No entanto,

o proletariado não se restringe aos trabalhadores industriais. A classe trabalhadora é

formada por aqueles que, desprovidos de meios de produção, são obrigados a vender sua

própria força de trabalho em troca de um salário. Se a composição sociológica da classe

mudou, se mais trabalhadores vestem macacão ou gravata, isso não retira o seu caráter de

classe, que consiste na condição qualitativa de ser obrigado a trabalhar em troca de um

salário - a relação salarial é uma relação de luta.

Aqui deve ser destacado que a crítica do Krisis/Exit à positivação do trabalhador e à

glorificação da classe trabalhadora promovidos pelo "marxismo" é absolutamente

pertinente. Diz o Krisis que "o clássico movimento dos trabalhadores, que viveu a sua

ascensão somente muito tempo depois do declínio das antigas revoltas sociais, não lutou

mais contra a impertinência do trabalho, mas desenvolveu uma verdadeira

hiperidentificação com o aparentemente inevitável. Ele só visava 'direitos' e

melhoramentos internos à sociedade do trabalho, cujas coerções já tinha amplamente

interiorizado. Em vez de criticar radicalmente a transformação de energia em dinheiro

como fim em si irracional, ele mesmo assumiu o 'ponto de vista do trabalho' e

compreendeu a valorização como um fato positivo e neutro"17.

No entanto, deve-se também lembrar que o sentido de "classe trabalhadora" e

"proletariado" é, para Marx e bons leitores de Marx, crítico e negativo - Marx vacila na

crítica do trabalho, por vezes ontologizando-o, principalmente nas obras da maturidade,

mas não na crítica da condição deplorável da classe trabalhadora. Ser trabalhador é um

destino trágico, e esta negatividade está presente ao longo de sua obra. Nos Manuscritos

Econômico-Filosóficos da juventude, Marx diz que "o trabalhador torna-se tanto mais

pobre quanto mais riqueza produz", que "o trabalhador torna-se uma mercadoria mais vil,

quanto mais mercadorias produz", que "o trabalho não produz só mercadorias; produz-se a

si mesmo e ao trabalhador enquanto mercadoria"18, e que o trabalhador não se afirma no

16 KURZ, Robert, Para lá... op. cit. 17 GRUPO KRISIS, Manifesto... op. cit. 18 MARX, Karl. Manuscrits de 1844. Paris: Editions Sociales, 1968, p.57.

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trabalho, mas nega e si mesmo, e foge do trabalho como quem “foge da peste”19. Na

Ideologia Alemã, lembra que os proletários não têm "nenhum controle" sobre as

"condições de existência" da sociedade e que "os proletários, se quiserem afirmar-se

enquanto pessoa, devem abolir sua própria condição de existência anterior", ou seja,

"abolir o trabalho"20. Em uma obra mais "política", o Manifesto Comunista, é destacado

que os proletários ("a classe dos trabalhadores modernos") "só sobrevivem se encontram

trabalho, e só encontram trabalho se este incrementa capital": "esses trabalhadores, que

são forçados a se vender diariamente, constituem uma mercadoria como outra qualquer,

por isso exposta a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as turbulências do

mercado"21. Finalmente, na obra da maturidade - O Capital - Marx compara os

trabalhadores a "bestas de carga"22, desnudando a sua condição de "acessório do capital,

do mesmo modo que o instrumental inanimado do trabalho"23, destacando que a "venda

periódica de si mesmo" constitui uma "servidão"24, "num modo de produção em que o

trabalhador existe para as necessidades de expansão dos valores existentes, em vez de a

riqueza material existir para as necessidades de desenvolvimento do trabalhador"25.

Os bons leitores de Marx não esqueceram a negatividade do proletariado e da luta de

classes, nem que a sua condição social não se confunde com classificações sociológicas,

mas se dá pela luta26. Diz Guy Debord que o proletariado é o "negativo em marcha nesta

sociedade", que sofre do "dano absoluto de estar posto à margem da vida" e que, portanto,

"traz a revolução que não pode deixar nada no exterior de si própria". Para Debord, o

"proletariado é, objetivamente, reforçado pelo movimento do desaparecimento do

campesinato, como pela extensão da lógica do trabalho na fábrica, que se aplica a uma

grande parte dos 'serviços' e das profissões intelectuais"27. Jean Barrot e François Martin

asseveram que "o proletariado é a dissolução da sociedade atual, desta sociedade que o

19 Idem, ibidem, p. 60. 20 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 96-97. 21 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. In: O manifesto comunista 150

anos depois. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14. 22 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, Livro I, Volume 2, p. 667. 23 Idem, ibidem, p. 668. 24 Idem, ibidem, p. 673. 25 Idem, ibidem, p. 724. 26 Neste ponto serão citados alguns autores para sustentar este argumento. Não se pretende analisá-los

profundamente aqui, nem se está afirmando que suas fundamentações são idênticas entre si; a intenção é apenas mostrar que há um "marxismo crítico" que não positivou os conceitos negativos marxianos. Talvez fosse possível também citar autores não-marxistas (anarquistas, anarco-comunistas, etc.).

27 DEBORD, Guy, A sociedade do espetáculo. São Paulo, Contraponto, 1997; também disponível em http://www.geocities.com/Paris/Rue/5214/debord.htm

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priva de quase todos os seus aspectos positivos". "Mas o proletariado é também a sua

autodestruição", não esquecendo de lembrar que "todas as teorias [...] que de algum modo

glorificam e exaltam o proletariado, reivindicando o papel positivo do proletariado na

defesa dos valores e regeneração da sociedade, são contra-revolucionárias", e que "o

proletariado não é a classe operária, mas a classe da crítica do trabalho"; "se identificarmos

o proletário com o operário de fábrica (ou pior: com o trabalhador manual) ou com os

pobres, não veremos o que é subversivo na condição proletária"28. John Holloway insiste

que "não há nada de positivo em ser membros desta classe [trabalhadora], em sermos

ordenados, comandados, separados de nosso produto e de nosso processo de produção", e

que "nós não lutamos como classe trabalhadora, lutamos contra ser classe trabalhadora,

contra sermos classificados"29; a luta de classes "é uma luta não para ser uma classe, mas

contra ser uma classe", pois "é o capital que nos classifica"30. Richard Gunn diz que "classe

é a própria relação", mais especificamente, "uma relação de luta"31. Werner Bonefeld

afirma que "o [conceito] de classe não é um conceito afirmativo, mas crítico. A liberação

social - ou melhor: a emancipação humana - implica o fim da 'classe', e não, como

sustentam as interpretações afirmativas a respeito, uma política em nome da classe

trabalhadora. A teoria da classe, então, não é uma reivindicação de identidade política. A

análise das classes não é uma análise em nome da classe trabalhadora. Avança como uma

crítica da classe, e, por conseguinte, como uma crítica da relação salarial através da qual

'existe' a classe trabalhadora"32.

O que se vê, pois, é que a extrema facilidade com que Kurz descarta o "proletariado" e

a "luta de classes" se deve ao fato de tomá-los na acepção mais tosca jamais atribuída pelo

"marxismo", como o "operariado industrial de macacão", sociologicamente reduzido, com

o seu ridículo "orgulho de classe". No entanto, se os tomasse em sua conceituação crítica,

qualitativa e negativa, a tarefa não seria tão simples. Isso é de se estranhar mais ainda

considerando que este enfoque não é desconhecido do Krisis: em um texto de 1989,

Robert Kurz e Ernst Lohoff defendem uma anticlasse que abole a si mesma: “agora se trata

28 BARROT, Jean & MARTIN, François. Eclipse e reemergência do movimento comunista, 1972, disponível

em http://www.geocities.com/autonomiabvr/eclieree.html 29 HOLLOWAY, John. Clase y clasificación. In.: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Herramienta,

Buenos Aires, 2004, p. 79-80. 30 HOLLOWAY, John. Donde está la lucha de clases?, In: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Buenos

Aires, Herramienta, 2004, p.96. 31 GUNN, Richard. Notas sobre clase. In: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Buenos Aires,

Herramienta, 2004, p. 20. 32 BONEFELD, Werner. Clase y constitución. In: HOLLOWAY, John (org.), Clase = lucha, Herramienta,

Buenos Aires, 2004, p. 39.

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de advogar uma (auto)negação consciente da classe operária como classe; e de, em vez

dela, constituir-se uma ‘anticlasse’, como uma ‘consciência de classe negativa’, associada a

uma negação do trabalho (abstrato) até aqui ontologizado” 33. Quando se trata de criticar a

luta de classes, no entanto, eles preferem fazer a “crítica do espantalho”.

O abandono da luta de classes e do proletariado é justificado por aquilo que Kurz

chama de uma "dupla leitura" de Marx. De um lado tem-se o Marx "exotérico", o Marx de

seu tempo, envolvido nas lutas desse tempo; e de outro, o Marx "esotérico", crítico das

categorias fundamentais do capitalismo - o valor, a mercadoria - que só agora teria o seu

potencial emancipatório desenvolvido, frente à crise daquelas categorias fundamentais. O

Marx "exotérico", por sua vez, teria perdido a atualidade, uma vez que o capitalismo já

teria atingido o seu pleno desenvolvimento. Nas palavras do próprio Kurz, "pode-se

depreender a uma historicização e diferenciação da teoria de Marx que distingue duas vias

teóricas em última instância incompatíveis, não como uma relação entre 'erro' e 'verdade',

mas como um problema da extemporaneidade histórica dentro da própria teoria de Marx,

e assim reconhecer um 'duplo Marx'. A primeira linha argumentativa, 'exotérica', teórica

da modernização e imanente ao fetiche, refere-se à forma interna do movimento e à

história da imposição do capital como juridificação e reificação de todas as relações, cujo

horizonte de desenvolvimento ainda era preenchido positivamente. E este é, na verdade, o

Marx mundialmente conhecido: 'ponto de vista do trabalhador' e luta de classes são os

conceitos centrais desta linha que conduziram ao marxismo histórico".

Segue Kurz: "A segunda linha argumentativa de Marx, 'esotérica' e em sentido estrito

'radical' (isto é, que desce às raízes) refere-se à real mistificação da forma como tal da

mercadoria e do dinheiro,'na' qual toda a modernidade, a par de seus conflitos imanentes,

se expõe, impõe e desenvolve. Por um lado, portanto, uma mobilização e intervenção

teórica e ao mesmo tempo política no interior do movimento de modernização (em última

instância preenchido positivamente); por outro lado, uma metacrítica 'sombria' do sistema

de referências específico da própria modernidade produtora de mercadorias"34.

O que se nota é que Kurz condena a luta de classes à imanência eterna e

inexpugnável. Para Kurz, toda luta de classes é necessariamente reformista. Entretanto,

33 Citado em SCHOLZ, Roswitha. O ser-se supérfluo e a “angústia da classe média” (Original: Exit nº5,

2008), disponível em http://obeco.planetaclix.pt/roswitha-scholz8.htm 34 KURZ, Robert. Pós-marxismo e fetiche do trabalho, (original: Krisis nº15, 1995), disponível em

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz136.htm

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em suas diatribes contra os escombros do "marxismo", parece que Kurz "joga fora a

criança junto com a água suja". Poderia ser argumentado, entretanto, que a própria luta de

classes pode ser desdobrada em luta de classes exotérica e luta de classes esotérica; que a

agudização da luta de classes imanente poderia conduzir a uma luta de classes

radicalizada, que colocasse em questão a própria existência da classe trabalhadora como

classe condenada ao trabalho.

É nesse sentido que vai John Holloway quando diz: "O velho conceito de revolução

está em crise porque a sua base, o trabalho abstrato ou alienado, está em crise. O velho

conceito era a teoria revolucionária do movimento operário, da luta do trabalho

assalariado contra o capital. Sua luta era limitada porque o trabalho assalariado (ou

abstrato) é o complemento do capital, e não sua negação. A crise do movimento operário (e

do trabalho assalariado ou abstrato mesmo) abre um nível mais profundo da luta de

classes: a luta do fazer contra o trabalho abstrato (e, portanto, contra o capital). Trata-se de

uma nova e mais profunda luta de classes, que agora está procurando uma maneira de

avançar, prática e teoricamente. Nós somos a crise do trabalho abstrato, a crise do trabalho

assalariado, nós somos a revolta do fazer contra a determinação alheia, o impulso do fazer

para a autodeterminação. Nós somos, em outras palavras, o transbordamento da

criatividade em relação ao trabalho abstrato"35.

Finalmente, deve-se destacar que a pressão no sentido da "dessolidarização radical"

descrita por Kurz não é novidade no capitalismo. O capital sempre tratou de manter a

classe trabalhadora dispersa, seja através da concorrência, seja através de técnicas

gerenciais, seja através da polícia. Quando contrapõe à luta de classes essa

"dessolidarização" provocada pela crise do trabalho, Kurz recai no empirismo objetivista;

ora, é justamente a ação subjetiva daqueles que são obrigados a trabalhar que pode frear e

reverter esta tendência de dispersão, como sempre foi em todas as épocas desde que

existem trabalhadores. Mesmo que se reconheça que a crise do trabalho é uma pressão

adicional, esta é apenas um motivo a mais para a resistência. De resto, pode-se dizer que

toda a empreitada teórica de Kurz e do Krisis/Exit é um esforço contra a objetivação das

relações sociais pela lógica da mercadoria; portanto, o argumento da objetividade da crise

como causa mortis da luta de classes soa estranhamente paradoxal vindo de quem vem.

35 HOLLOWAY, John. Qué es la revolución? Un millón de picaduras de abeja, um millón de dignidades,

disponível em http://encontrarte.aporrea.org/teoria/sociedad/41/a12135.html

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Em texto mais recente 36, Norbert Trenkle (Krisis, após a cisão do grupo) escreveu um

texto no qual buscou desenvolver o argumento contra a luta de classes. Após críticas

essencialmente corretas à metafísica de Lukács – o partido leninista como portador da

consciência de classe – e à positividade fantasiosa da multidão de Hardt/Negri, Trenkle

critica o “fluxo social do fazer” de Holloway, supostamente por ser uma essência

ontológica, transhistórica. Mas o “fluxo social do fazer” de Holloway não é nada mais do

que o concreto, o vivido, que inclui aquilo que escapa ao fetiche, o não-idêntico –

abarcando aquilo que fica de fora da esfera cindida do “trabalho”. A crítica do trabalho só

pode se desenvolver a partir do que está no mundo, não de abstrações. Mas se a aversão ao

trabalho não vem do vivido, de onde virá? A abstração da teoria de Trenkle chega a um

ponto tal que esta questão básica fica sem resposta. Se o fetichismo é absoluto, então não

há saída a não ser uma virada no velho estilo do partido bolchevique (mas essa saída,

felizmente, é rejeitada por Trenkle).

No Exit, o último movimento da teoria com relação ao assunto corresponde à

teorização da “sociedade da classe média”, a sociedade onde se configura uma grossa

camada composta por engenheiros, cientistas, trabalhadores “criativos”, supervisores e

controladores em geral37. Mais especificamente, uma crítica da ideologia da classe média:

“Somos a classe média e não queremos ter nada a ver com os que estão lá embaixo, ou nós

queremos ter o benefício da distinção que passa por os que estão abaixo de nós de algum

modo aí deverem ficar”. A classe média funciona, então, como um verdadeiro “tampão” do

capitalismo, contribuindo decisivamente para manter a normalidade da máquina de moer

gente em meio aos escombros d colapso da modernização. Mas a pergunta óbvia é: se não

há mais classes, como falar em classe média? Trata-se de um passo atrás em relação à

abstração extremada anterior, uma volta à sociologia como ferramenta para compreender

o capitalismo. Mas Kurz segue negando a luta de classes: “No entendimento tradicional, a

‘classe operária’, que produz a mais-valia, era explorada pela ‘classe dos capitalistas’ por

meio da ‘propriedade privada dos meios de produção’. Nenhum desses conceitos pode

expor com exatidão os problemas atuais”38. Novamente, Kurz usa a estratégia de criticar

conceitos excessivamente simplificados. Se analisada em sua coerência interna, a asserção

é perfeita (se classe é isso, então não há mais luta de classes, ou há, mas ela não pode ser

36 TRENKLE, Norbert. The metaphysical subtleties of class struggle (original: Krisis 29, 2005), disponível

em: http://www.krisis.org/2005/the-metaphysical-subtleties-of-class-struggle 37 SCHOLZ, Roswitha, op.cit. 38 KURZ, Robert. O último estádio da classe média, setembro/2008, disponível em

http://obeco.planetaclix.pt/rkurz173.htm

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 91

transcendente); mas Kurz insiste em criticar uma classe sociologicamente reduzida e

positivada, conceito que fica aquém daquele que ele próprio desenvolveu alguns anos

antes.

O descarte da luta de classes por parte do Krisis/Exit já provocou toda sorte de mal

entendidos. Há tanto "kurzistas" quanto marxistas que interpretam que o Krisis/Exit

propõem uma superação do capitalismo sem antagonismos, sem conflitos, ou com

conflitos não-classistas (idealistas) - uns com aprovação, outros com reprovação. O que se

tentou mostrar aqui é que a luta de classes está implícita, pressuposta nas formulações do

Krisis/Exit, com terminologia diversa. A fetichização da teoria, o apego a terminologias

desligadas de seu conteúdo e sentido, pode fechar canais de diálogo. O abandono da

conceituação "luta de classes" por parte do Krisis/Exit parece que provocou este tipo de

bloqueio - de ambos os lados. No entanto, a "antieconomia e antipolítica" de Kurz implica

antagonismo social, luta de classes radicalizada, e aí se apresenta um campo teórico e

prático comum com marxistas críticos, que não tomam a luta de classes como fim em si,

que sabem que não basta o proletariado trocar de posição com a burguesia; que o

proletariado deve buscar a sua autoabolição.

O movimento emancipatório não pode desenvolver-se abstratamente. Ainda que a

teoria possa dedicar-se ao desvendamento teórico-abstrato do capitalismo, o movimento

real de superação deve ser empreendido no concreto, por pessoas de carne e osso, que

nessa luta enfrentarão outras pessoas de carne e osso - afinal, a abstração do capital é uma

abstração real. Os defensores do capital serão as "personificações do capital" (Marx), como

diz o próprio Kurz: “a possível violência resultaria unicamente do fato de que um sistema

louco e perigoso para a humanidade não será abandonado voluntariamente por seus

representantes (os executivos, a classe política, e o aparato de administração e de

emergência)”; “O que menos podemos esperar é que a lógica destrutiva imanente possa ser

rompida e superada pelas administrações estatistas de crise e emergência. A crise seria

apenas superável se um consciente movimento social de supressão acabasse com a mera

administração dessa crise, movimento que teria que derrubar, com violência maior ou

menor, também esses aparatos. Nesse sentido, não se tornou desnecessária, apesar de

todas as diferenças resultantes do nível mais elevado da socialização, a forma geral das

históricas revoluções burguesas, inclusive a Revolução de Outubro. Pois a crítica da

ideologia de decapitação jacobina não significa, de modo algum, que a humanidade tivesse

que se entregar ao automatismo de uma transformação pacífica do sistema produtor de

mercadorias. Essa ideia, em face dos acontecimentos catastróficos, seria desatrelada da

[-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 92

realidade. É óbvio que, matando pessoas que são meras máscaras de caráter de

determinadas relações, ninguém pode acabar com essas relações. Mas essa consideração

não anula a necessidade de romper também empiricamente o domínio, sem sujeito, do

valor econômico abstrato, o que exige o rompimento dos aparatos que com certeza

pretendem manter o valor como valor, mesmo que essa conservação absurda da forma

básica causasse a ruína (como já está acontecendo) de milhões de seres humanos”.39 Trata-

se de uma viva descrição da luta de classes anticapitalista.

A superação do capital não passa nem pela afirmação da classe, nem apenas por uma

consciência abstrata, mas pela consciência da classe que pode abolir a si mesma. O que

transparece em toda a teoria do Krisis/Exit é que no fundo o que eles querem é uma classe

que não seja como a classe média conservadora, uma classe que não tenha nada a perder,

uma classe com necessidades radicais: um proletariado. Alguém tem de acionar o freio de

emergência do trem que nos leva ao abismo. Como clama o próprio Krisis, na exortação

final do Manifesto contra o trabalho, aqui grifada:

Proletários de todo o mundo, acabem com isso!

39 KURZ, Robert. O colapso da modernização, op.cit., (cap.“Superação da crise e ´utopia´), disponível em

http://obeco.no.sapo.pt/livro_colapsom.html


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