Para citar este artigo:
VIEIRA, Alba Pedreira. Pesquisa em dança na educação: compartilhando as transformações de participantes e da investigadora. Congresso da Federação de Arte Educadores do Brasil/CONFAEB. Anais... 2010.
PESQUISA EM DANÇA NA EDUCAÇÃO: COMPARTILHANDO AS
TRANSFORMAÇÕES DE PARTICIPANTES E DA INVESTIGADORA1
Alba Pedreira Vieira [email protected]
UFV (Universidade Federal de Viçosa)
Resumo
Nessa pesquisa, investiguei significados da educação da fruição e usufruição em dança experienciada por estudantes (educação infantil e ensino básico) de instituições não-particulares. Também discuto minha filosofia pedagógica, que mudou ao longo do caminho. Após um ano e meio de exposição a atividades diversificadas de fruição e usufruição em dança, a maioria dos estudantes revelou, por meio de suas respostas a questionários, significados ampliados sobre o que é dança e o que é uma apresentação de dança. Reflito sobre transformações na minha abordagem educacional, e sugiro uma proposta em educação em arte que considere os contextos de discentes e docentes.
Palavras-chave:
pesquisa, arte, dança, proposta educacional
Abstract
In this research, I investigated meanings of education in dance watching, making and doing experienced by students (kindergarten, fundamental and high school) from no-private institutions. I also discuss my pedagogical philosophy, which changed along the journey. After one year and a half of students´ exposition to diversified actions in dance watching, making and doing, the majority of students revealed, through their responses to questionnaires, a broaden understanding on what dance is and what a dance presentation is. I also reflect on transformations in my educational approach, and I suggest a proposal in art education that considers professors and students´ contexts.
Keywords:
research, art, dance, educational proposal
Introdução
Essa pesquisa tem muitas camadas a serem reveladas, como quando
se descasca uma cebola. Ela investiga significados e elementos da educação
da fruição e usufruição em dança experienciada por estudantes da educação
infantil e do ensino básico de instituições não-particulares, e também busca
refletir em como esse estudo e jornada educacional foram nutridos pela minha
filosofia pedagógica inicial, que mudou ao longo do caminho.
Foi a partir de uma filosofia pedagógica crítica (FREIRE, 1996) que tudo
começou. Deixei o país em 2003 e quando voltei ao Brasil em 2007, após
terminar meu doutorado em Dança na Universidade Temple, nos Estados
Unidos, retomei à minha posição como professora no Curso de Graduação em
Dança da Universidade Federal de Viçosa/UFV. Trouxe comigo uma nova
preocupação, ‘alfabetização em dança’, o que alguns autores (e.g., IN s/d;
BUCEK, 1998) nomeiam de educação estética em dança, e outros chamam de
educação para apreciação da dança. Ann Dils ainda usa o termo ‘alfabetização
em dança’, um termo aplicado ao trabalho em que os "estudantes são
familiarizados com a dança" (2007, p. 569).
Ao retornar ao meu país, após quatro anos em que aqui não estive,
tornei-me ciente das implicações que poderiam ocorrer nos próximos anos
como fruto de desenvolvimentos recentes na arte e na cultura no Brasil. Nos
últimos anos, o governo brasileiro criou e/ou aumentou o número de leis,
bolsas, prêmios e financiamento de projetos em arte. Houve também
investimento na elaboração de políticas públicas em arte. O principal objetivo
dessas iniciativas é manter, desenvolver e difundir a cultura. Esta é uma forma
de melhorar o acesso das pessoas à cultura e à arte, com base na
compreensão da importância da valorização cultural para o país.
Para desenvolver uma discussão ampla e atualizada sobre políticas que
envolvem cada uma das linguagens artísticas, conselhos foram criados e
representantes setoriais da dança, em particular, foram nomeados. Só no ano
de 2010, até o momento, foram realizadas a 9ª Reunião do Conselho Nacional
de Políticas Culturais, a Pré-conferência Setorial de Dança, a II Conferência
Nacional de Cultura, e a I Reunião do Colegiado Setorial de Dança. Como se
pode observar, existem diversas iniciativas para permitir que a população
brasileira tenham acesso, experienciem e apreciem manifestações culturais e
artísticas. Como educadora e pesquisadora de dança, no entanto, tenho
observado que, pelo menos na minha cidade,2 o público em geral, e estudantes
em particular, estão ainda acostumados a apreciar trabalhos oferecidos pela
indústria cultural,3 um termo cunhado por Adorno e Horkheimer na Dialética do
Iluminismo (1947/2002). A Indústria Cultural transforma a arte, incluindo a
dança, em um meio de ser igual. Um exemplo dessa proposição, retirada dessa
minha pesquisa, é quando os estudantes apresentam respostas iniciais (antes
de iniciado o trabalho de campo) iguais para perguntas como "Que é a dança?"
e "Qual o gênero de dança que você mais gosta?". A maioria deles diz que a
dança é ballet clássico e eles preferem hip hop – ambos os gêneros são bem
propagados pela mídia através de jornais, filmes, canais de televisão e revistas.
O resultado é que a indústria midiática alimenta um mercado que minimiza a
diversidade, e tem um papel importante na formatação da sociedade através do
processo de padronização. Claro que existem, nesse movimento, iniciativas de
resistência na apropriação cultural e fatores subjetivos de parte da população,
o que faz com que os meios de comunicação não sejam de todo hegemônicos.
Mas esta discussão não é o objetivo deste trabalho. Esse estudo foi realizado
em Viçosa, MG, uma cidade em que a maioria das crianças e adolescentes não
tem a dança como disciplina do currículo escolar.
Antes de a pesquisa ser iniciada, em conversas informais com os alunos
de muitas escolas, fiquei sabendo que a maioria preferia hip hop ou dança de
rua, cujos elementos, tais como os passos, são importados de culturas
estrangeiras, sem uma reflexão mais aprofundada sobre este tipo de atitude.4
Os alunos não percebem que estão se colocando à margem da sua própria
cultura. Portanto, senti a necessidade de investigar e refletir sobre as
contribuições da ‘alfabetização em dança’ (DILS, 2007); uma alfabetização que
pudesse permitir aos educandos conhecer outros gêneros dessa linguagem.
A dança é considerada uma arte efêmera e transitória. Mas também tem
os seus fixos e gêneros congelados, como o ballet clássico. No meu contato
inicial com os participantes, observei que os estudantes podem compreender o
que as mensagens de uma obra de ballet clássico transmitem e/ou o
significado e os códigos corporais do hip hop. É difícil para a maioria dos
alunos da educação infantil, e do ensino fundamental e médio, no entanto,
perceber que a dança, como uma forma de arte, pode promover além de
simples entretenimento, da beleza dos corpos magros e da técnica refinada.
Muitos educandos nem sequer conhecem danças tradicionais brasileiras como
o congado, nem ta,pouco novos gêneros, como a dança contemporânea.
Outros ainda têm a idéia de que o virtuosismo é uma prioridade na dança.
Assim, na concepção e desenvolvimento deste projeto, tentei encontrar
estratégias que pudessem melhorar o apoio à valorização e difusão cultural.
Caminhos da Pesquisa
Esta pesquisa-ação foi desenvolvida de fevereiro de 2008 a julho de
2009, a fim de possibilitar alunos da educação infantil e do ensino básico de
instituições não-particulares de Viçosa estarem expostos a múltiplas formas e
expressões artísticas em dança. Adoto uma abordagem qualitativa, pois os
métodos qualitativos têm grande potencial para iluminar significados. Denzin e
Lincoln (2005) descrevem o processo de pesquisa qualitativa como uma forma
de bricolagem. Ou seja, o pesquisador busca produzir, a partir de métodos
diversos e diferentes ferramentas metodológicas selecionadas, "uma criação
que se parece com uma colagem, pois é complexa, densa, e reflexiva; ela
representa a imaginação do pesquisador, seus entendimentos e interpretações
do fenômeno ... em análise" (DENZIN & LINCOLN, 2005, 4) . Esse estudo é,
então, informado pela hermenêutica, que me ajuda a explorar os dados
coletados. Max van Manen (1997) explica que a hermenêutica é um esforço de
interpretação feito pelo pesquisador, a fim de que significados incorporados nos
dados sejam encontrados e explorados. Tento negociar "as tensões entre
ambos [participante e pesquisador], honrando ´as vozes´ dos participantes da
pesquisa e a demanda pela análise interpretativa por parte do investigador
"(LATHER, 2005, 99).
Instituições Educacionais e Participantes
Não tenho informações demográficas completas sobre os participantes.
Mas posso garantir que havia diversidade étnica, de gênero, e de nível de
desenvolvimento. A experiência de dança dos estudantes também foi
diversificada: um número muito pequeno deles dançou balé clássico e/ou hip
hop ou dança de rua em projetos artísticos da comunidade. Apenas alguns
alunos tiveram aulas de dança contemporânea. A idade deles variou de três a
dezoito anos.
Todos os 437 participantes estudavam em escolas públicas (municipais
ou estaduais) ou instituições de educação infantil não-municipais e
filantrópicas. 252 educandos de oito escolas e 185 alunos de quatro instituições
de educação infantil participaram neste estudo.
O trabalho de campo
O trabalho de campo assegurou aos participantes das escolas duas
oficinas de dança (50 minutos cada) durante um semestre. No primeiro
semestre o trabalho foi realizado com alunos do ensino médio, no segundo
semestre com os alunos de sexta a nona séries, e no terceiro semestre com os
alunos de primeira à quinta. Durante todo o tempo, um ano e meio, os
educandos da educação infantil participaram das atividades do projeto.
As oficinas teórico-práticas oferecidas aos participantes lhes ofereceram
possibilidades de criar, recriar e valorizar o universo da dança, além de serem
apresentados a diferentes formas e expressões artísticas, tais como dança de
salão e do ventre, flamenco, dança contemporânea, improvisação, dança de
salão e outros. Várias apresentações foram seguidas de diálogo entre os
artistas e o público. Os professores revisaram continuamente o material
pedagógico para negociar as necessidades, desejos e interesses dos
participantes com os deles próprios. Em muitas oficinas, os alunos foram
divididos em grupos para que cada um se apresentasse e fosse observado por
seus pares. Os estudantes também assistiram diversos trabalhos de dança ao
vivo, de grupos e/ou artistas profissionais e amadores (espetáculos, números,
mostras, instalações, performances e festivais em teatros, em suas próprias
escolas e no Curso de Dança da UFV) e na televisão (DVDs). Os participantes
observaram aulas de projetos de extensão e de alunos do Curso de Graduação
em Dança na universidade – ballet, dança contemporânea e danças brasileiras.
Finalmente, no final do semestre, muitos participantes apresentaram seus
trabalhos de dança, no teatro. No processo de criação desses trabalhos, eles
atuaram como intérprete-criadores.
Oficina teórica com os participantes do projeto: diferenças entre ballet e dança contemporânea
Estudantes em oficina prática de dança
Participantes do projeto em diálogo com artistas após espetáculo de dança no
teatro
Apresentação de participantes do projeto no palco
Participantes da educação infantil assistindo apresentação de ballet clássico
Procedimentos metodológicos
Observações sistemáticas foram registradas ao longo do trabalho de
campo. Os alunos também responderam às mesmas perguntas, sob a forma
de dois questionários - o primeiro foi aplicado antes do trabalho de campo e o
segundo após o seu término. Junto com os colaboradores deste estudo,
coletamos respostas escritas e orais (das crianças que não sabiam ler). O
projeto foi um desafio em termos práticos, pois tivemos que lidar com grandes
quantidades de dados. Muitos ciclos de análise foram realizados e incluíram
várias leituras, revisões, triagem e reflexão sobre os dados. Nesse artigo,
apresento comparações entre vozes iniciais e finais dos alunos
(respectivamente, antes e após o trabalho de campo).
A análise de dados utilizou a abordagem hermenêutica. Concordo com
Adshead-Lansdale (apud VIEIRA et al., 2009) que a interpretação de dados
conta muitas histórias, não apenas uma, e neste estudo compartilho apenas
uma versão possível. Essas idéias, portanto, desafiam a noção de uma
verdade universal na interpretação.
Responsáveis pelos participantes assinaram autorizações para
divulgação de dados e imagens, e seus nomes foram mantidos no anonimato
para preservar a sua identidade. Também se omite, por questões éticas, os
nomes das escolas.
Resultados e discussão
"O que é dança para você?"
dança para mim é você se soltar, se divertir com o tipo de dança que você está fazendo.
é uma terapia, uma forma de se divertir alegria, muita alegria
No questionário inicial da pesquisa, a maioria das respostas apontou a dança
como diversão. A análise dos questionários finais revela respostas mais
diversificadas, não tendo uma resposta ‘vencedora’. Mas foi interessante notar
que a dança passou a ser vista como linguagem artística e elemento cultural.
É uma arte muito interessante Arte de se movimentar com auxílio de música ou sem ela
Cultura que a gente aprende a conhecer
Em relação ao questionário inicial, aumentaram as respostas referentes
à dança como arte e cultura. Respostas assim são particularmente
significativas, uma vez que indicam que houve uma ampliação dos olhares
sobre esta linguagem artística, que não é mais vista apenas como forma de
“mexer o esqueleto” ou “suar para ficar em forma” como dito inicialmente. Por
seu caráter eclético, as aulas do projeto foram capazes de ampliar o interesse
dos alunos, na medida em que lhes revelou aspectos desse universo dançante,
até então inusitado.
O surgimento do termo cultura nas respostas é interessante, uma vez
que cultura e arte caminham juntas. Em nossa prática, discutindo a respeito
dos diferentes estilos de dança, invariavelmente nos deparamos com culturas
diferentes. Assim, o projeto aumentou tanto o interesse pela dança quanto pela
cultura em geral. Também acreditamos que muitos participantes que viam na
dança somente uma oportunidade de diversão descobriram outros aspectos da
mesma durante o processo vivido com a aplicação do trabalho de campo
projeto. Essa mudança em relação à indagação, “o que é dança para você”,
indica um resultado positivo da atuação do projeto, uma vez que alterou a
atitude dos alunos a respeito da dança.
É uma terapia, uma forma de dedicação, de responsabilidade, amadurecimento
Essa resposta do questionário final é rica em elementos, pois alia a dança a
vários aspectos, demonstrando que o participante entende sua complexidade.
Assim como esse discente, talvez outros também puderam observar que ela é
capaz de espairecer os ânimos das pessoas. Também se aponta a dança
como “dedicação” e “responsabilidade”, o que pode ser fruto dos vários ensaios
feitos para que os alunos pudessem criar, montar, fazer elementos de ligação
entre células de movimento e, só assim, depois de muito esforço, sentirem
satisfeitos ao ponto de querer apresentar seu trabalho artístico. Todo este
processo parece ter levado este participante a ver a dança como espaço de
“amadurecimento”, como possibilidade de atuar no crescimento pessoal.
É uma forma da pessoa se expressar
um jeito de se expressar
No questionário final foram muitas as respostas referentes à dança como forma
de expressão, chegando mesmo a serem divididas nas subcategorias: “Com
estilo”, “Com gestos”, “Com os movimentos dos corpos” e “Com música”. A
mudança pode ser vista como positiva pelo simples fato de indicar
diversificação da forma que se pensa a dança, que não é mais somente
percebida como mero entretenimento.
Viver o momento Para mim a dança é muito legal, eu gosto muito dos passos
A dança como forma de “viver o momento” indica uma experiência vivida,
sentida e apreciada, portanto, não perdida. Infelizmente, em muitos casos, uma
resposta assim não seria encontrada caso perguntássemos “O que é a
matemática para você?”. A capacidade da arte, segundo Uriarte (2004), de
interagir com os indivíduos, em seu cotidiano, fortalecendo suas práticas e
dando sentido à sua história é o que possibilita ao indivíduo esse “viver o
momento”. Interagindo com o indivíduo e fazendo, ao mesmo tempo, o
indivíduo interagir com a arte pode ajudá-lo a tornar-se mais presente. Estar
presente em dança significa estar consciente do que se está fazendo no
momento, essa presença inclui “viver o momento”. Isso só é possível devido às
pontes interativas que são construídas entre o sujeito e sua ação. Ou seja,
quando se está inteiro no que faz.
Uma aspiração
Essa resposta chamou muito a atenção. Ser objeto de uma aspiração indica
algo que se deseja alcançar. Se no questionário final da pesquisa um
participante declara que a dança para ele é uma aspiração, isso indica uma
semente plantada. O seu sonho foi alimentado pelas experiências que viveu, o
que nos faz refletir sobre a gratificação do nosso trabalho, dentre tantas
dificuldades encontradas houve o brotar de uma aspiração. Essa é uma
aspiração do educador.
"Qual dança você já assistiu?"
No questionário inicial as respostas apontaram, em grande parte, as
danças da moda na atualidade, tais como: funk, dança de rua, forró e axé. A
análise final aponta um significativo aumento desse leque de danças
conhecidas, surgindo outros gêneros: flamenco, dança contemporânea, dança
de salão, sapateado, balé e jazz. Esses vocabulários foram trabalhados
durante os meses de participação dos educandos em oficinas práticas e fruição
de vídeos, e ao assistirem apresentações e aulas do curso de Dança da UFV.
O repertório dos participantes aumentou e, com ele, a capacidade crítica em
relação ao apreciar da dança, uma vez que agora estão munidos de uma visão
mais abrangente.
Um resultado interessante é em relação ao local onde essas danças
foram apreciadas; cresceu significativamente o número de participantes que
disseram ter preferido as apresentações de dança na escola, sendo que essa
foi a resposta mais encontrada. Isso indica que as apresentações ocorridas na
escola foram marcantes, talvez até mais do que aquelas realizadas no teatro e
em outros locais.
Este resultado nos faz refletir acerca da importância de apresentações
artísticas no ambiente de ensino institucionalizado. Inserida no âmbito escolar,
a dança parece ganhar mais força e significância por interagir diretamente com
o contexto vivido pelos alunos. A experiência com a fruição e a usufruição da
dança na escola não é esquecida facilmente, pelo contrário, permanece in-
corporada às lembranças da vida escolar. Essa relação criada é um ganho
muito significativo. Por sua dimensão e significância, nós, educadores na área,
somos instigados por esses resultados a refletir sobre a importância da escola
trabalhar além da socialização de saberes científicos, visando proporcionar
uma formação ampla, também cultural e artística, do sujeito.
E a arte-pesquisadora/educadora nisso tudo?
Meu próprio mundo pedagógico se expandiu por meio dessa ‘dança’
com a complexidade e a riqueza da pesquisa em alfabetização em dança ou
educação da apreciação da dança. Transformações na minha filosofia
educacional aconteceram em momentos decisivos desse trabalho. Compartilho
a seguir um desses momentos.
Um dia, após muitas aulas em que foram expostos a diversos gêneros
de dança, um dos estudantes de seis anos me disse: "Eu ainda amo hip hop, e
odeio todas as outras danças que você nos mostra." Nesse instante, o meu
sangue ferveu, senti minha face vermelha e inchada, e um nó imediatamente
se formou no meu estômago e na minha garganta. Prendi a respiração, ao
mesmo tempo em que apertei os lábios. Respirei fundo e me segurei para não
derramar lágrimas de frustração. Enquanto focava, fixamente, o aluno, esse,
talvez percebendo minha impotência em lhe oferecer qualquer resposta, saiu
correndo brincando. Enquanto ele se distanciava, correndo e interagindo com
os colegas, eu aos pouco consegui sair do lugar e dar os primeiros passos me
recompondo enquanto ‘educadora.’
Foi só dias mais tarde, quando entrei no processo de tornar essa
experiência uma ‘vivida’ (vide Max van Manen, 1997)5 ao revisitá-la e refleti-la
em todo meu corpo, é que fui capaz de me questionar: “Será que esse aluno
aprendeu o oposto do que tínhamos ensinado (ou tentado ensinar) durante
todo o trabalho de campo da investigação?” “Quantos alunos/participantes
tiveram a mesma sensação?” Essas perguntas foram cruciais para duvidar da
eficácia do meu olhar crítico que normalmente não quer aceitar apenas a
preferência dos estudantes para as culturas ditas ‘midiáticas’, principalmente as
de origem estrangeiras como hip hop, dança de rua ou street dance, funk.
Também questionei: Como respeitar a preferência dos estudantes e
ainda desafiá-los a ir além de suas zonas de conforto – que são dançar e
assistir hip hop e dança de rua? Essa questão foi seguida por muitas outras: O
que fazer com aqueles alunos que não continuavam não gostando de dança de
jeito nenhum, mesmo depois de terem sido expostos a tantos gêneros e
vocabulários diferentes da dança? Como posso auxiliar, da melhor forma, os
alunos a melhorarem suas capacidades para questionar suas tendências
acríticas, pelo menos a meu ver, de apreciar somente determinados gêneros
de dança – os ‘midiáticos’ favoritos? Como lidar com alunos (nesse estudo,
principalmente adolescentes) que não estavam interessados o suficiente na
nossa proposta?
Evidentemente, não existem respostas simples e evidentes para estas
questões, nem é meu intuito tentar respondê-las de forma conclusiva. Muitos
arte-educadores/pesquisadores provavelmente concordarão comigo que lidar
com a diversidade não é fácil. Nesse estudo, a diversidade está relacionada
tanto com aquela da dança como com a diversidade de pessoas envolvidas –
participantes e membros da equipe.6
A meu ver, uma pesquisa só é satisfatória quando transformações (de
participantes e pesquisadores) ocorrem. Essa jornada foi recheada de paixão,
responsabilidade e compromisso com a dança na educação. Mas para que ela
pudesse ter continuidade em momentos cruciais de frustração (como quando
ouvi o comentário do estudante narrado anteriormente), aberturas para auto-
transformações e modificações dos caminhos foram fundamentais.
Da minha própria experiência nesse estudo, aprendi que a
transformação está relacionada com a descoberta de uma nova maneira de
encarar a vida. Assim, a transformação pessoal foi ocorrendo, em um
processo de ‘embodiment’ (VIEIRA, 2007) à medida que as seguintes
perguntas me perturbavam mais e mais: Preciso ampliar minha abertura para
preferências das outras pessoas e ser menos autoritariamente crítica? Se sim,
como equilibrar isso com uma postura e proposta que abarca,
simultaneamente, respeito às preferências e estímulos para novos
conhecimentos e gostos? O que perdi quando o meu foco era, principalmente,
o produto da investigação e o cumprimento fiel dos seus objetivos?
Nessa investigação, trabalhando com muitos estudantes e suas diversas
realidades, descobri o ensino como, também, um caminho heurístico de auto-
descoberta. Enquanto aprendi sobre os outros, aprendi sobre mim mesma e
minhas filosofias de ensino. Muitas vezes, durante essa jornada, enfrentei o
dilema da eficácia ou competência, como arte-pesquisadora/educadora,
versus o bem-estar dos participantes.
Reflexões sobre minhas próprias experiências no presente estudo,
tornaram-se então uma rica experiência vivida de aprendizagem e estimularam
ainda outras questões, tais como: Que tipo de estratégias pedagógicas mais
deram certo com alguns estudantes, mas não com os outros? Quais
abordagens educacionais tiveram maior potencial para qualificar as
possibilidades de práxis artístico-pedagógica? Algumas das propostas de
ensino funcionaram melhor do que outras? Quais?
Propostas recentes no ensino da dança têm focado no contexto do aluno
(MARQUES, 1999, 2003), mas aprendi nessa jornada que precisamos ampliar
nossa ´dança´ para fluir entre os dois pólos – não focar nem somente no
contexto do professor, nem somente no contexto do aluno. Como o arte-
educador e o educando trazem para o momento educacional dois contextos,
realidades, valores e histórias de vida diversas, precisamos achar um equilíbrio
entre esses dois mundos e sujeitos que se encontram. Acredito que
precisamos “dançar entre os dois pólos” (como sugeriu a dançarina e
coreógrafa alemã Mary Wigman) considerando o contexto de ambos, arte-
educador e discente, para que possamos então desenvolver um trabalho
artístico –educacional que seja significativo para educandos e educadores.
Aprendendo... sempre!
Concordo com Clark Moustakas (apud VIEIRA, 2007) que afirma que ao
compreendermos as experiências, os sentimentos, e os valores de outras
pessoas, podemos também experienciar auto-conscientização e auto-
conhecimento. Então, a descoberta e a reflexão fenomenológica de novos
significados nas experiências de participantes de uma pesquisa, por exemplo, a
aprendizagem dos participantes desse estudo, pode trazer “possibilidades de
auto-compreensão individual e coletiva bem como práxis reflexiva” (van Manen,
1997, xi), assim como aconteceu comigo.
Acredito que ampliei minha consciência de que sou plenamente
responsável por minhas decisões éticas; aprendi como, para cada comunidade
(de cada turma trabalhada nesse estudo) população, certos tipos de ambiente,
estruturas e relacionamentos de sala de aula são mais benéficos para que
aqueles alunos atinjam sucesso pessoal e coletivo.
Aprendi a tomar posse do meu ensino por ‘ser’ eu mesma, ao invés de
pretender ser uma educadora ideal que nunca se irrita, magoa, frustra, chora e
que, talvez, parece só existir na imaginação. Porque eu estava tão acostumada
à educação de estudantes de ensino superior, minhas interações com os
estudantes do ensino básico me levaram a explorar novas maneiras de ser. Foi
difícil para mim, assim como deve ter sido para o estudante de seis anos que
amava hip hop, sair da minha zona de conforto. A busca por formas
alternativas de ‘ser’ me ensinou que, como eu tinha que definir objetivos para
esta pesquisa (especialmente porque ela é financiada por agências de
fomento), eu também tinha de pensar o que mais importa: Que os objetivos da
pesquisa fossem realizados completamente ou o bem-estar dos
alunos/participantes? Ou ainda, como equilibrar ambos?
Após um ano e meio de profundo envolvimento com a investigação,
sugiro que o meu crescimento, aprendizado e desenvolvimento como arte-
educadora/pesquisadora incluem in-corporação (embodiment) de experiências
transformadoras, para que essas se tornem parte do meu ser (VIEIRA, 2007).
O estudo me ensinou o que preciso abrir mão, a fim de crescer. Eu
chamo isso de “perda produtiva” (VIEIRA, 2007). Acredito que nossos valores
como arte-educadores podem ser modificados (para melhor) quando, por
exemplo, desistimos de algo como a voz autoritarista do pesquisador e do
professor, do ensino centrado no conteúdo, e da investigação centrada no
cumprimento dos objetivos. Ao aceitar "perda produtiva", como parte da vida
investigativa- pedagógica, podemos aprender a descobrir ou redescobrir os
valores humanos a partir da intensificação das relações intra e inter-subjetivas.
Aspectos poderosos e vitais para que nós, como agentes sociais, provoquemos
transformações e que o nosso mundo contemporâneo parece carecer tanto.
1 Uma versão anterior desse artigo foi apresentada e publicada em inglês nos anais da CORD – Congress of Research
in Dance, Leicester, Inglaterra, 2009. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa por mim coordenada, e que foi financiada pela FAPEMIG e pelo CNPq intitulada “Educação para as Artes: O impacto de projetos de pesquisa em interface com a extensão que focam na sensibilização estética ou apreciação em dança pelo público”. 2 Eu moro em uma cidade universitária, Viçosa, Minas Gerais, que tem uma população de aproximadamente 80.000
pessoas. 3 Este termo denuncia uma discussão em que se afirma que nas relações de troca de mercadorias, as quais todas as
relações sociais são reduzidas, o trabalho cultural perde seu brilho, sua singularidade e suas qualidades específicas. Ao tornar-se um valor de troca, há uma dissolução da verdadeira arte e cultura. 4 Uma observação semelhante foi feita pelas pesquisadoras brasileiras Medrano e Valentim. Ver seu artigo "A indústria
cultural invade a escola brasileira" (Medrano & Valentim, 2001). 5 Para van Manen (1997), a experiência humana só se torna vivida quando a revisitamos e refletimos sobre ela.
6 Participaram deste projeto as professoras Evanize Romarco, Carla Ávila, Solange Caldeira, Maristela Lima além de
vários bolsistas e estudantes voluntários de diversos cursos da UFV cujos nomes suprimo devido ao número máximo de páginas desse artigo. Agradecimento especial à Kátia Marcos (Bolsista PIBIC/FAPEMIG), pelo enorme auxílio.
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BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodore W., Horkheimer, Max. Dialectic of Enlightenment. Trans. Edmund Jephcott. Stanford: Stanford UP, 1947/2002.
BUCEK, Loren. “Developing Dance Literacy.” The Journal of Physical Education, Recreation & Dance 69(7): 29-33, 1998.
DENZIN, N. K., LINCOLN, Y. (Eds.). Handbook of qualitative research (3rd edition). Thousand Oaks, California: Sage Publications, 2005.
DILS, A. Moving into dance: dance appreciation as dance literacy. In Springer International Handbook of Research in Arts Education, ed. Liora Bresler, 569-585. London: Springer, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra. São Paulo, 1996.
MARQUES, Isabel. Dançando na escola. São Paulo: Papirus, 2003.
___________. Ensino da dança hoje: Textos e contextos. São Paulo: Cortez. 1999.
MEDRANO, E. M. O., VALENTIM, L. M. S. A indústria cultural invade a escola brasileira. CEDES 21: 69-75, 2001.
VAN MANEN, M. Researching lived experience: Human science for an action sensitive pedagogy (2nd ed). Toronto: Transcontinental Printing Inc., 1997.
VIEIRA, Alba P. The nature of pedagogical quality in higher dance education. Dissertação de doutorado não-publicada. Temple University, Filadélfia, PA, 2007.
VIEIRA, A. P.; MARCOS, K. V.; LIMA, M. M. S.. Alternativas metodológicas da investigação acadêmica sobre processos coletivos em dança: o caso de uma pesquisa-ação em escolas de Viçosa, MG. Anais da V Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas/ABRACE. São Paulo: 2009.
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MINI-CURRÍCULO
Alba Pedreira Vieira é doutora em dança pela Universidade Temple (2007), EUA, mestre em educação pela Universidade Estadual de Valdosta (1996), EUA, e licenciada em Educação Física (1987) pela Escola Superior de Educação Física de Goiás (ESEFEGO). Atualmente, é professora adjunto do Curso de Graduação em Dança da Universidade Federal de Viçosa/UFV, e líder do Grupo de Pesquisa Transdisciplinar em Dança (CNPq). É coordenadora de projetos de pesquisa diversos na área da Dança, e tem artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior. É organizadora de dois livros em Dança.