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Phenomenological Studies/RAG - Vol.21/2_2015

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Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia – ITGT Volume XXI – N. 2 2015 Goiânia – Goiás http://pepsic.bvs-psi.org.br
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Instituto de Treinamento e Pesquisa emGestalt-Terapia de Goiânia – ITGT

Volume XXI – N. 2

2015

Goiânia – Goiás

http://pepsic.bvs-psi.org.br

Ficha Catalográfica

Revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies/Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia – Vol. 21, n. 2 (2015) – Goiânia: ITGT, 2015.

141p.: il.: 30 cm

Inclui normas de publicação

ISSN: 1809-6867

1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia.

CDD 616.891 43

Citação:REVISTA DA ABORDAGEM GESTÁLTICA. Goiânia, v. 21, n. 2, 2015. 141p

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Volume XXI – N. 2 – Jan/Jun, 2015

Expediente

EditorAdriano Furtado Holanda (Universidade Federal do Paraná)

Editores AssociadosCelana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Goiás)

Danilo Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Josemar de Campos Maciel (Universidade Católica Dom Bosco, MS)

Consultores Especiais de FenomenologiaAntonio Zirión Quijano (Universidad Nacional Autónoma de México)

Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)

Conselho EditorialAdelma Pimentel (Universidade Federal do Pará)

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo)Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

André Barata (Universidade da Beira Interior, Portugal)Cláudia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)

Ileno Izidio da Costa (Universidade de Brasília)Irene Pinto Pardelha (Universidade de Évora)

Lester Embree (Florida Atlantic University)Lílian Meyer Frazão (Universidade de São Paulo)

María Lucrecia Rovaletti (Universidade de Buenos Aires)Marcos Aurélio Fernandes (Universidade de Brasília)

Marisete Malaguth Mendonça (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)Marta Carmo (Universidade Federal de Goiás)

Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)Michael Barber (Saint Louis University)

Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)Patrícia Valle de Albuquerque Lima (Universidade Federal Fluminense)

Rosemary Rizo-Patrón de Lerner (Pontificia Universidad Católica del Perú)Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlândia)

Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Editores de Texto – Suporte TécnicoJosiane Almeida

Silvana Ayub Polchlopek

Capa, Diagramação e Arte FinalFranco Jr.

BibliotecárioArnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

FinanciamentoInstituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goiânia (ITGT-GO)

ApoioAssociação Brasileira de Psicologia Fenomenológica (ABRAPEF)

Encaminhamento de ManuscritosA remessa de manuscritos para publicação, bem como toda a correspondência

de seguimento que se fizer necessária, deve ser submetida eletronicamenteendereçada ao site: http://submission-pepsic.scielo.br/

EditorRevista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies.

E-mail: [email protected] Fone/Fax: (62) 3941-9798

Normas de Apresentação de ManuscritosTodas as informações concernentes a esta publicação, tais como normas de

apresentação de manuscritos, critérios de avaliação, modalidades de textos, etc., podem ser encontradas no site: http://pepsic.bvs-psi.org.br

Fontes de Indexação- Clase

- Dialnet- Ebsco

- Index Psi Periódicos (BVS-Psi Brasil)- Latindex

- Lilacs- Psicodoc- Redalyc- Scopus

Qualis Capes 2014– B1ISSN 1809-6867 versão impressaISSN 1984-3542 versão on-line

As opiniões emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatidão e adequação das referências biblio-gráficas são de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem não expressar o pensamento dos editores.

A reprodução do conteúdo desta publicação poderá ocorrer desde que citada a fonte.

Sumário

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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): v-vi, jul-dez, 2015

EDITorIAl ..................................................................................................................................................VII

ArTIGoS - SEção ESpECIAl - (Conferências do I Congresso Brasileiro de Fenomenologia)

- Alcance y Significación de la psico(pato)logía Fenomenológica ......................................................... 117María Lucrecia Rovaletti (Universidad de Buenos Aires, Argentina)

- Implications psychologiques de la philosophie de l’action de paul ricoeur ...................................... 124Annie Barthélémy (Université de Savoie-France)

- Implicações psicológicas da Filosofia da Ação de paul ricoeur .......................................................... 130Annie Barthélémy (Université de Savoie-France)

- principes Fondateurs et Actualité d’une pratique psychothérapeutique à orientation phénoméno-Structurale .......................................................................................................................... 136Jean-Marie Barthélémy (Université de Savoie-France)

- princípios Fundadores e Atualidade de uma prática psicoterapêutica de orientação Fenômeno-Estrutural ............................................................................................................................... 143Jean-Marie Barthélémy (Université de Savoie-France)

ArTIGoS - ESTuDoS TEórICoS ou HISTórICoS

- Contribuições de Viktor Frankl ao Movimento da Saúde Coletiva ..................................................... 153Daniel Rocha Silveira (Fundação Oswaldo Cruz/MG) & Fernanda Jaude Gradim (Faculdades Pitágoras/MG)

- “Deus não Morreu e o Diabo Existe”. reflexões Fenomenológicas sobre a Experiência Espiritual e o Sofrimento psíquico Grave .............................................................................................. 162Raquel de Paiva Mano (Universidade de Brasília) &Ileno Izídio da Costa (Universidade de Brasília)

- Michel Henry: Afetividade e Alucinação ............................................................................................... 177Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo) &Florinda Martins (Universidade Católica Portuguesa, Lisboa)

- Michel Henry: Affectivity and Hallucination........................................................................................ 184Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo) &Florinda Martins (Universidade Católica Portuguesa, Lisboa)

ArTIGoS - rElAToS DE pESQuISA

- o Contato na Situação Contemporânea: um olhar da Clínica da Gestalt-Terapia ............................. 193Thatiana Caputo Domingues da Silva (Universidade Federal do Rio de Janeiro);Camila Santos Baptista (Universidade Federal do Rio de Janeiro) & Mônica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

- “Tem que Nascer já com Aquele Dom”: Vivências de uma Jovem Travesti ......................................... 202Roberta Noronha Azevedo (Prefeitura Municipal de Orlândia, São Paulo);Fabio Scorsolini-Comin (Universidade Federal do Triângulo Mineiro) &Giancarlo Spizzirri (Universidade de São Paulo)

Sumário

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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): v-vi, jul-dez, 2015

- Considerações Fenomenológico-Hermenêuticas Acerca da Somatização na Adolescência: um Estudo de Caso .................................................................................................................................. 213Luanny Tomaz Brito (Universidade Federal do Rio Grande do Norte);Ana Karina Silva Azevedo (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) &Luciana Carla Barbosa de Oliveira (Universidade Federal do Rio Grande Norte)

- Fenomenologia da percepção Extracorpórea – Análise de Experiências Fora do Corpo ................... 225Gabriel Teixeira de Medeiros (Universidade Federal de São Paulo) &Fernando de Almeida Silveira (Universidade Federal de São Paulo)

TEXToS ClÁSSICoS

- Sobre o Artigo de Beck: “a Última Fase da Fenomenologia de Husserl” ............................................. 237Dorion Cairns (Rockford College)

rESENHA

- Elementos para uma Compreensão Diagnóstica em psicoterapia – o Ciclo do Contato e os Modos de Ser ............................................................................................................................................ 243Maria Paula Miranda Chaim (Pontifícia Universidade Católica de Goiás) &Danilo Suassuna Martins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)

TESES E DISErTAçÕES

- perspectivas Gestálticas sobre Espiritualidade/religiosidade ............................................................ 247Lázaro Castro Silva Nascimento (Mestrado em Psicologia, Universidade Federal do Paraná)

NorMAS

- Normas de publicação da revista da Abordagem Gestáltica .............................................................. 251

Editorial

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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): vii-xi, jul-dez, 2015

Neste novo número, começamos com três confe-rências internaionais originalmente apresentadas no I Congresso Brasileiro de Psicologia & Fenomenologia, realizado em 2013, na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba.

Em Alcance y Significación de la psico(pato)logía Fenomenológica, María Lucrecia Rovaletti (Universi-dad de Buenos Aires, Argentina) discute os fundamentos de uma Psicopatologia Fenomenológica, como uma ten-tativa de repensar a psiquiatria na direção de uma dis-ciplina científica, na qual oferece um novo conceito de subjetividade, recolocando o sofrimento como constitu-tivo do ser do homem (este texto encontra-se publicado no original em espanhol). Em sequência, no manuscri-to Implications psychologiques de la philosophie de l’Action de paul ricouer, de Annie Barthélémy (Univer-sité de Savoie-France) – publicado em francês e português – discute fenomenologia e atitude hermenêutica, e a filo-sofia da ação de Ricouer como recurso para lidar com a relação terapêutica. Por fim, em principes Fondateurs et Actualité d’une pratique psychothérapeutique á orien-tation phénoméno-Structurale, de Jean-Marie Barthélémy (Université de Savoie-France) – publicado igualmente em francês e português – aponta para a posição Fenômeno- Estrutural de Minkowski e para atualidade de seu debate em torno da noção de encontro como crucial para a psi-coterapia.

Na sequência, temos um conjunto de estudos teóricos, principiando com Contribuições de Viktor Frankl ao Mo-vimento da Saúde Coletiva, de autoria de Daniel Rocha Silveira (Fundação Oswaldo Cruz/MG) & Fernanda Jaude Gradim (Faculdades Pitágoras/MG), onde apresentam uma reflexão sobre contribuições de Viktor Frankl para a Saú-de coletiva. Em seguida, no artigo “Deus não morreu e o diabo existe”. reflexões Fenomenológicas sobre a Ex-periência Espiritual e o Sofrimento psíquico Grave, de Raquel de Paiva Mano (Universidade de Brasília) & Ileno Izidio da Costa (Unversidade de Brasília), os autores pro-põem um estudo sobre o fenômeno espiritual na clínica psicológica com indivíduos em sofrimento psíquico grave. E, em Michel Henry: Afetividade e Alucinação, de An-drés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Pau-lo) & Florinda Martins (Universidade Católica Portuguesa, Lisboa) – publicado em português e em inglês – discute-se como que Michel Henry toma a alucinação como para-digma da fenomenalidade da vida.

O conjunto de estudos empíricos começa com o ar-tigo o Contato na Situação Contemporânea: um olhar da Clínica da Gestalt-Terapia, de Thatiana Caputo Do-mingues da Silva (Universidade Federal do Rio de Janei-ro), Camila Santos Baptista (Universidade Federal do Rio

de Janeiro) & Mônica Botelho Alvim (Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro) que, partindo das queixas trazi-das pelos clientes para a clínica, busca uma compreen-são sobre a existência no mundo contemporâneo e co-mo vivenciamos o contato com o outro na atualidade. No manuscrito “Tem que nascer já com aquele dom”. Vivências de uma Jovem Travesti, de Roberta Noronha Azevedo (Prefeitura Municipal de Orlândia, São Paulo), Fabio Scorsolini-Comin (Universidade Federal do Triân-gulo Mineiro) & Giancarlo Spizzirri (Universidade de São Paulo), buscou-se conhecer as vivências sociais, afetivas e sexuais de uma jovem travesti e compreender sua per-cepção sobre a identidade de gênero. Em Considerações Fenomenológico-Hermenêuticas acerca da Somatização na Adolescência: um Estudo de Caso, de Luanny Tomaz Brito (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Ana Karina Silva Azevedo (Universidade Federal do Rio Gran-de do Norte) & Luciana Carla Barbosa de Oliveira (Uni-versidade Federal do Rio Grande Norte), a partir de um caso acompanhado pela equipe de saúde de um hospital universitário, buscou-se compreender a somatização em seus aspectos existenciais. Por fim, em Fenomenologia da percepção Extracorpórea – Análise de Experiências Fora do Corpo, de Gabriel Teixeira de Medeiros (Universida-de Federal de São Paulo) & Fernando de Almeida Silveira (Universidade Federal de São Paulo), os autores buscam descrever e analisar as EFC a partir da experiência do vi-vido, elencando diferentes experiências, bem como seu papel na vida cotidiana daqueles que alegam praticá-las, num ocnjunto de treze entrevistas.

Finalizamos este número com a tradução da réplica de Dorion Cairns, publicada em 1941, intitulada Sobre o Artigo de Beck “A Última Fase do Pensamento de Husserl”; com a resenha do livro Elementos para uma Compreensão Diagnóstica em Psicoterapia – O Ciclo do Contato e os Modos de Ser (Ênio Brito Pinto, Sum-mus, 2015), por Maria Paula Miranda Chaim (Pontifícia Universidade Católica de Goiás) & Danilo Suassuna Mar-tins Costa (Pontifícia Universidade Católica de Goiás); e, finalmente, com a apresentação de uma recente defesa de Dissertação de Mestrado intitulada perspectivas Gestál-ticas sobre Espiritualidade/religiosidade, de autoria de Lázaro Castro Silva Nascimento (Mestrado em Psicologia, Universidade Federal do Paraná).

Boa leitura a todos.

Adriano Furtado Holanda- Editor -

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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): vii-xi, jul-dez, 2015

In this new issue, we start with three international conferences originally presented at the First Brazilian Congress of Psychology & Phenomenology, held in 2013 at the Federal University of Paraná, in Curitiba. In Scope and Meaning of phenomenological psycopathology, Maria Lucrecia Rovaletti (Universidad de Buenos Aires, Argentina) discusses the basics of psychopathology phe-nomenological, as an attempt to rethink psychiatry to-wards a scientific discipline, which offers a new concept of subjectivity, putting suffering as constitutive of man’s being (the text is published in the Spanish original). In sequence, the manuscript Implications psychologiques de la philosophie de l’Action of paul ricoeur – pub-lished in French and Portuguese –, Annie Barthélémy (Université de Savoie-France) discusses phenomenology and hermeneutic attitude and the philosophy of action of Paul Ricoeur as a resource for deal with the therapeu-tic relationship. Finally, in principes Fondateurs et Ac-tualité d’une pratique psychothérapeutique á orienta-tion phénoméno-Structurale, of Jean-Marie Barthélémy (Université de Savoie-France) – also published in French and Portuguese – points to the phenomenon-structural position of Minkowski and his actual debate around the notion of meeting as crucial for psychotherapy.

In sequence, we have a set of theoretical studies, be-ginning with Viktor Frankl’s Contributions for the Col-ective Health Movement, by Daniel Rocha Silveira au-thoring (Fundação Oswaldo Cruz / MG) & Fernanda Jaude Gradim (Colégio Pythagoras / MG), which have a reflection on contributions from Viktor Frankl for collective health. Then, in the article “God Did Not Die and the Devil Ex-ists”. phenomenological reflections on a Spiritual Ex-perience and Serious psychic Suffering, by Rachel de Paiva Mano (University of Brasilia) & Ileno Izidio da Costa (Unversity of Brasilia), the authors proposes a study of the spiritual phenomenon in clinical psychology with indi-viduals in serious psychological distress. And, finally, in Michel Henry: Affectivity and Hallucination, authored by Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Universidade de São Paulo) & Florinda Martins (Portuguese Catholic Uni-versity, Lisbon) – published in Portuguese and English – discusses how Michel Henry takes the hallucination as paradigm of phenomenality of life.

The set of empirical studies begins with the article Contact Nowadays: a Clinical look of Gestalt therapy, by Thatiana Caputo Domingues da Silva (Federal Uni-versity of Rio de Janeiro), Camila Santos Baptista (Feder-al University of Rio de Janeiro) & Monica Botelho Alvim (Federal University of Rio de Janeiro) that, based on the complaints brought by customers to the clinic seeking an understanding of the existence in the contemporary

world and how we experience the contact with each oth-er today. In the manuscript “You have to be born with that gift”: Experiences of a Young Travesti, by Roberta Noronha Azevedo (Municipality of Orlândia, São Paulo), Fabio Scorsolini-Comin (Federal University of Triangulo Mineiro) & Giancarlo Spizzirri (University of São Paulo), we sought to meet the social, emotional experiences and sex of a young transvesti and understand their percep-tion of gender identity. In phenomenological-Hermeneu-tical Considerations of Somatization in Adolescence: a Case Study of Luanny Tomaz Brito (Federal University of Rio Grande do Norte), Ana Karina Silva Azevedo (Fed-eral University of Rio Grande do Norte) & Luciana Carla Barbosa de Oliveira (Federal University of Rio Grande do Norte), from a case accompanied by the health team of a university hospital, we sought to understand somatiza-tion in its existential aspects. Finally, in phenomenology of Extracorporeal perception – Analysis of out-of-Body Experiences, of Gabriel Teixeira de Medeiros (Federal University of São Paulo) & Fernando de Almeida Silveira (Federal University of São Paulo), the authors seek to de-scribe and analyze the OBE from the experience of living, listing different experiences, as well as its role in the ev-eryday lives of those who claim to practice them in thir-teen interviews.

We end this number with the translation for portu-guese of the replica of Dorion Cairns, published in 1941, titled “Concerning Beck’s ‘The last phase of Husserl’s phenomenology’”; with the book-review of Elementos para uma Compreensão Diagnóstica em Psicotera-pia – O Ciclo do Contato e os Modos de Ser (Ênio Brito Pinto, Summus, 2015), by Maria Paula Miranda Chaim (Catholic University of Goiás) & Danilo Suassuna Martins Costa (Catholic University of Goiás); and finally, with the presentation of a recent defense of Master’s Thesis titled Gestalt perspectives on Spirituality/religiosity, authored by Lázaro Castro Silva Nascimento (Federal University of Parana).

Good reading to all.

Adriano Furtado Holanda- Editor -

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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): vii-xi, jul-dez, 2015

En esta nueva edición, comenzamos con tres confe-rencias internacionales originalmente presentados en el Primer Congreso Brasileño de Psicología y Fenomenolo-gía, que se celebró en 2013 en la Universidad Federal de Paraná, en Curitiba.

En Alcance e Significação da psico(pato)logia Feno-menológica, María Lucrecia Rovaletti (Universidad de Buenos Aires, Argentina) analiza los fundamentos de la psicopatología fenomenológica, como un intento de re-pensar la psiquiatría hacia una disciplina científica, que ofrece una nuevo concepto de la subjetividad, poniendo el sufrimiento como constitutiva del ser del hombre (el texto se publica en el original español). En la secuen-cia, Implications psychologiques de la philosophie de l’Action de paul ricoeur (publicado en francés y en por-tugués), Annie Barthélémy (Université de Savoie-Fran-ce) analiza la fenomenología y la actitud hermenéuti-ca y la filosofía de la acción Ricoeur como un recurso para ocuparse de la relación terapéutica. Por último, en princes fondateurs Actualité et d’une práctica psy-chothérapeutique orientación fenómeno structurale, de Jean-Marie Barthélémy (Université de Savoie-France) – también publicado en francés y portugués – apunta para la posición fenómeno-estructural de Minkowski y para la actualidad de su debate en torno a la idea de encuentro como crucial para la psicoterapia.

En la secuencia, tenemos un conjunto de estudios teó-ricos, principiando por Contribuciones de Viktor Frankl al Movimiento de la Salud Colectiva, de Daniel Rocha Silveira (Fundação Oswaldo Cruz / MG) y Fernanda Jau-de Gradim (Colegio Pitágoras / MG), donde presentan una reflexión en las contribuciones de Viktor Frankl para la salud colectiva. Luego, en el artículo “Diós no Morió y el Diablo Existe”. reflexiones Fenomenológicas sobre la Experiencia Espiritual y el Sufrimiento psiquico Grave, de Rachel de Paiva Mano (Universidad de Brasilia) y Ile-no Izidio da Costa (Universidad de Brasilia), los autores proponen un estudio del fenómeno espiritual en psico-logía clínica con individuos en los trastornos psicológi-cos severos. Y, por fim, en Michel Henry: Afectividad y Alucinación, de Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (Uni-versidade de São Paulo) y Florinda Martins (Universidad Católica Portuguesa, Lisboa) – publicado en portugués e inglés – se analiza cómo Michel Henry tóma la alucina-ción como paradigma de la fenomenalidad de la vida.

El conjunto de estudios empíricos se inicia con el ar-tículo Contacto en la Contenporaneidad: una Mirada de la Clínica de la Terapia Gestalt, de Thatiana Caputo Do-mingues da Silva (Universidade Federal do Rio de Janei-ro), Camila Santos Baptista (Universidad Federal de Río de Janeiro) y Mónica Botelho Alvim (Universidad Federal

de Río de Janeiro) que, basándose en las quejas presenta-das por los clientes a la clínica buscan una comprensión de la existencia en el mundo contemporáneo y la forma en que experimentan el contacto entre sí en la actuali-dad. En el manuscrito “Tiene que haber nacido con ese don”: Experiencias de un Joven Travesti, de Roberta No-ronha Azevedo (Municipio de Orlândia, São Paulo), Fabio Scorsolini-Comin (Universidad Federal de Triangulo Mi-neiro) y Giancarlo Spizzirri (Universidad de São Paulo), hemos tratado de responder a las experiencias sociales, emocionales y el sexo de un joven travesti y entender su percepción de la identidad de género. En Consideracio-nes Fenomenológico-Hermenéuticas de Somatización en la Adolescencia: un Estudio de Caso, de Luanny Tomaz Brito (Universidad Federal de Río Grande do Norte), Ana Karina Silva Azevedo (Universidad Federal de Río Grande del Norte) y Luciana Carla Barbosa de Oliveira (Universi-dad Federal de Río Grande do Norte), a partir de un caso acompañado por el equipo de salud de un hospital uni-versitario, que trató de comprender la somatización en sus aspectos existenciales. Por último, en Fenomenología de la percepción Extracorpórea: Análisis de Experiencias Fuera del Cuerpo, de Gabriel Teixeira de Medeiros (Uni-versidad Federal de São Paulo) y Fernando de Almeida Silveira (Universidad Federal de São Paulo), los autores buscan describir y analizar la EFC de la experiencia de vida, enumerando diferentes experiencias, así como su papel en la vida cotidiana de aquellos que afirman prac-ticar en un conjunto de trece entrevistas.

Terminamos este número con la traducción para el portugués de la réplica de Dorion Cairns, publicado en 1941, titulado “Concerning Beck’s ‘The last pha-se of Husserl’s phenomenology’”; con la reseña del li-bro Elementos para uma Compreensão Diagnóstica em Psicoterapia – O Ciclo do Contato e os Modos de Ser (Ênio Brito Pinto, Summus, 2015), por Maria Paula Miranda Jaim (Universidad Católica de Goiás) y Danilo Suassuna Martins Costa (Universidad Católica de Goiás); y, finalmente, con la presentación de una reciente de-fensa de tesis titulado perspectivas Gestálticas sobre Espiritualidade/religiosidade, de Lázaro Castro Silva Nascimento (Maestría en Psicología de la Universidad Federal de Paraná).

Buena lectura a todos.

Adriano Furtado Holanda- Editor -

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117 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): 117-123, jul-dez, 2015

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Alcance y Significación de la Psico(pato)logía Fenomenológica

AlcAnce y SignificAción de lA PSico(PAto)logíA fenomenológicA1

Alcance e Significação da Psico(pato)logia Fenomenológica

Scope and Meaning of Phenomenological Psycopathology

María Lucrecia rovaLetti

resumen: La emergencia de la Fenomenología no puede comprenderse fuera del contexto de la crisis del naturalismo que atravie-sa la filosofía y de la fundación científica de la psicología. De modo similar, la aparición de una Psicopatología Fenomenológica constituye el intento mismo de repensar los fundamentos de una Psiquiatría a fin de que pueda apelarse propiamente una “disci-plina científica”. Precisamente, al haber escotomizado este problema la Psiquiatría está obligada a una revisión de sus “conceptos fundamentales” (Bisnwanger). En este sentido, el planteamiento fenomenológico nos ofrece un nuevo concepto de subjetividad, donde las patologías mentales no son vistas como meras deficiencias y desviaciones respecto a una “norma”, sino momentos tam-bién constitutivos de la existencia humana, es decir modificaciones esenciales inherentes al ser del hombre. Aquel imperativo binswangeriano vuelve a plantearse actualmente ante una Psiquiatría basada en evidencias (PBE), que se desenvuelve tanto a ni-vel de investigación como a nivel de la práctica con síntomas operativos y descripciones de síntomas, relacionando determina-dos conceptos psicopatológicos con cifras, lo cual permite a cualquier persona poder recabar y verificar datos del mismo modo, en cualquier momento y en todo lugar. Sin embargo, el progresivo apartamiento de lo concreto, la desconexión situacional y la preterición del sujeto en su facticidad, dejan flancos abiertos nuevamente en la misma cientificidad de la psiquiatría. Por eso, se postula una Psiquiatría basada en Valores (PBV), a la que denomina también basada en Narrativas, precisamente porque la labor del clínico se acerca a la de los historiadores, a la de los biógrafos, y a la de los etnógrafos. El síntoma no es solamente signo de la enfermedad sino que es también significación de un sentido. Pensar al hombre a partir de la noción de sentido, más que respon-der qué es el hombre es preguntar quién es, es decir intentar esclarecer cuales son los nexos que lo unen al mundo. Precisamen-te será la incapacidad de inscribirse en el mundo en común que lleva al fracaso al yo y decide así la emergencia del ser enfermo. palabras clave: Ciéncias humanas y sociales; Investigación; Reflexividad; Psicopatología.

resumo: O surgimento da fenomenologia não pode ser entendida fora do contexto da crise do naturalismo que atravessa a filosofia e os fundamentos científicos da psicologia. Da mesma forma, o surgimento de uma Psicopatologia Fenomenológica é uma tentativa de repensar os fundamentos de uma psiquiatria, para que possa ser adequadamente chamada de “disciplina científica”. Com efeito, tendo esse problema escotomizado a psiquiatria é obrigada a rever os seus “fundamentos” (Bisnwanger). Nesse sentido, a abordagem fenomenológica oferece um novo conceito de subjetividade, onde transtornos mentais não são vistos como meros deficiências e desvios de uma “norma”, mas agora também constitutivos da existência humana, como modificações essenciais inerentes ao ser do homem. Aquele imperativo binswangeriano volta agora novamente perante uma psiquiatria baseada em evidências (PBE), que opera tanto a nível da pesquisa e da prática operacional com sintomas e descrições de sintomas psicopatológicos, que permite a qualquer um recolher e verificar os dados da mesma forma, a qualquer hora, em qualquer lugar. No entanto, a retirada gradual do concreto, a desconexão situacional e a omissão do sujeito em sua factualidade, deixam flancos abertos novamente no mesmo caráter científico da psiquiatria. Por isso se postula uma psiquiatria baseada em valores (PBV), também chamada com base em narrativas, precisamente porque o trabalho do clínico se aproxima do de historiadores, biógrafos e etnógrafos. O sintoma não é apenas um sinal de uma doença, mas também a significação de um sentido. Pensar o homem a partir da noção de sentido, ao invés de responder o que o homem significa perguntar quem ele é, ou seja, tentam esclarecer quais são os laços que unem o mundo. É precisamente a incapacidade de inscrever-se no mundo comum que leva ao fracasso do eu e decide assim a emergência do ser doente.palavras-chave: Ciências humanas e sociais; Pesquisa; Reflexividade; Psicopatologia.

Abstract: The emergence of the Phenomenology can not be understood outside the context of the crisis of naturalism that crosses philosophy and scientific foundation of psychology. Similarly, the emergence of a Phenomenological Psychopathology is an at-tempt to rethink the fundamentals of a psychiatry so that they can properly appealed a “scientific discipline” itself. Indeed, having this problem, psychiatry is required to review their “fundamentals” (Bisnwanger). In this sense, the phenomenological approach offers a new concept of subjectivity where mental disorders are not seen as mere deficiencies and deviations from a “standard”, but now also constitutive of human existence, that is essential modifications inherent to being of man. That binswangeriano im-perative that now again brought before a psychiatry based on evidence, which operates both at the research level and at the lev-el of operating practice with symptoms and descriptions of symptoms, psychopathological concepts relating to certain figures, which allows anyone to collect and verify data in the same way, anytime, anywhere. However, the gradual withdrawal of the con-crete, situational disconnection and the omission of the subject in its factuality, left open flanks again in the same scientific na-

1 Trabalho apresentado como Conferência no I Congresso Brasileiro de Psicologia & Fenomenologia / III Congresso Sul Brasileiro de Fenomeno-logia. Curitiba (Paraná) 12 a 14 de agosto de 2013.

118 Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): 117-123, jul-dez, 2015

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María L. R.

ture of psychiatry. Therefore, a psychiatry based on values (PBV), which is also called based on narratives, precisely because the work of clinical approaches to historians, the biographers, and ethnographers postulated. The symptom is not only a sign of the disease but also a sense of significance. Thinking man from the notion of sense, rather than answer what is man is to ask who he is, that is, they try to clarify what are the links that unite the world. It is precisely the inability to join the common world that leads to failure to the self and decide the emergency to being sick.Keywords: Human and social sciences; Research; Reflexivity; Psychopathology.

1. el contexto naturalista y la emergencia de la feno-menología

La emergencia de la Fenomenología no puede com-prenderse fuera del contexto del naturalismo, de la crisis que atraviesa la filosofía y de la fundación científica de la psicología hacia fines del siglo XIX. La situación de las ciencias sociales y humanas nos coloca también hoy an-te un similar y nuevo desafío. En efecto, las dificultades con que nos encontramos al tratar de definir las ciencias humanas provienen, al menos parcialmente de la utili-zación de términos que parecen unívocos pero que en verdad revelan una multiplicidad de significaciones. Se piensa que existe un modelo de ciencia por excelencia, que se sigue de la física, y a partir de ésta se cree poder elaborar una concepción del conocimiento susceptible de ser propuesto como un ideal absoluto.

Así partiendo del principio de matematización, como es el fisicalismo de Carnap, se afirma que toda sentencia en el campo científico debe ser formulada en lenguaje fí-sico. Esto lleva a la búsqueda de un lenguaje que reduzca o traduzca la experiencia humana a proposiciones obser-vacionales susceptibles de cuantificación, verificación, y análisis, es decir un lenguaje exento de ambigüedad. Por eso, la obtención de datos lo suficientemente “primarios” exige una desconexión subjetiva. Sin embargo, esta mo-dalidad no se corresponde con la práctica diaria dado que los participantes son sujetos y no objetos, actores y no son receptores pasivos de estímulos.

No se trata aquí de desconocer el valor y la nece-sidad de los métodos exactos y científico-naturales de carácter general. Al contrario, se busca mostrar que la adscripción masiva a los diversos sistemas diagnósticos – desde los DSM hasta los CIE –, trajo como consecuen-cia la renuncia a los conocimientos psicopatológicos y sus aplicaciones clínicas elaboradas durante años de experiencia. De este modo, esta metodología en vez de individualizar borra los límites del sujeto, y la “persona del enfermo” va desapareciendo paulatinamente detrás de la “enfermedad”.

Por eso, la clínica está obligada a reflexionar sobre sus propios “conceptos fundamentales” (Binswanger), ya que resulta imposible elaborar una terapéutica que no esté sostenida por una teoría de manera explícita o implícita. Curar un paciente mental supone una defini-ción de la “enfermedad mental”, un sistema de referen-cias normativas y un aspecto teleológico. Todavía más, la

concepción del enfermo sobre su enfermedad constituye también una concepción de su relación con los otros y con la sociedad en su conjunto.

Como señalara Minkowski2 habrá que diferenciar la psiquiatría clínica, brazo de la medicina dedicada al diag-nóstico y tratamiento, de la psicopatología reflexiva y fi-losófica de la cual aquélla toma su razón de ser y su sin-gularidad. Los fundamentos de esta práctica son pues, en cierto modo “filosóficos”. En este sentido, el surgimiento de una Psico(pato)logía Fenomenológica3 constituye el in-tento mismo de repensar los fundamentos de una Psiquia-tría a fin de que pueda apelarse propiamente una “disci-plina científica”, como señalara Binswanger hacia 1950. Precisamente, a diferencia del psicoanálisis, ésta no sur-ge de la confrontación directa con los pacientes sino de la consideración teórica-científica, de la fundamentación epistemológica de la psiquiatría misma4. De este modo, al ofrecer un rol regulador respecto del conjunto de teorías psiquiátricas, constituye en sentido kantiano una “crítica de la razón psiquiátrica” (Tatossian, 1986). Actualmente la Fenomenología Clínica ha ido ampliando su campo en los aspectos terapéuticos.

Esto nos permite comprender la aparición de una se-rie de reflexiones y cuestionamientos que movidos por la búsqueda del fundamento de la acción psiquiátrica,

“...se han visto obligados a volver la vista hacia el pa-sado y examinar el significado y alcance que la lla-mada fenomenología tuvo para la psicopatología y la psiquiatría años atrás. En efecto, en esa vuelta a la fe-nomenología, sea para desestimarla, sea para tener-la como un digno antecedente, señala un problema y una respuesta. El problema sería la misma cientifici-dad de la psiquiatría. Es decir, el tipo de experiencia que supone, la articulación de su discurso y los fun-damentos y argumentos que le asisten. La respuesta fue dada entonces por la fenomenología de una forma que, hoy día, no podemos pasar por alto y que sería

2 Citado en Lantéri-Laura, 1990.3 Hablar de psique implica una contraposición con el soma propia del

dualismo griego. Allí se enraízan etimológica y conceptualmente tan-to la Psicología como la Psiquiatría. Como modo de dejar de lado es-te dualismo, se suele hablar de una Antropología. Se prefiere hablar de “Psico(pato)logía”, por un lado porque en la perspectiva fenome-nológica la enfermedad y el trastorno mental se plantean como una modalidad diversa de ser; y por otro como modo de resaltar la signi-ficación del patos entendido en el sentido de los griegos.

4 Recuérdese que la Psicología Clínica, se inicia posteriormente y está asociada a la creación de la carrera universitaria correspondiente.

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justo reconsideráramos en su significación e importan-cia” (Ramos Gorostiza y Gonzalez Calvo, 1995, 282).

En este sentido, el planteamiento fenomenológico re-presentó la solución a varios problemas planteados a la psicopatología, a saber la defensa frente al psicologismo, la redefinición de lo psíquico, la reconsideración de la subjetividad y del concepto de experiencia. Por eso “la radicalidad de su planteamiento no puede afirmarse que haya sido superada, justificando una continua interpela-ción para toda psicopatología que se plantea su consis-tencia metodológica” (Ramos Gorostiza y Gonzalez Cal-vo, 1995, 282).

Se trata ahora de preguntar por un lado qué conse-cuencias epistemológicas surgen del trabajo clínico, y por otro, qué relaciones subsisten entre la Fenomenolo-gía Clínica y la Filosofía Fenomenológica; es decir en qué sentido los conceptos teóricos de ésta siguen orientando a aquella y viceversa. La comprensión de la patología, en tanto lleva a adquirir o al menos a refinar la conciencia de la condición humana y de los nexos que la caracteri-zan, puede ofrecer una perspectiva privilegiada en orden a la normalidad.

Si la phénoménologie de Husserl apporte au psychia-tre les vues et les méthodes indispensables aussi bien à son action pratique qu’a sa compréhension théorique, réciproquement, l’action et la pensée psychiatriques mettent en ouvre et en fonctionemment la phénomé-nologie (Kuhn y Maldiney, 1971, 14)

2. Un nuevo concepto de subjetividad

En la vida diaria, se designa como “enfermo mental”, loco, o alienado a aquel que no tiene una conducta nor-mal. Pero, ¿qué es normalidad, donde comienza y termi-na la normalidad? No es fácil trazar una frontera precisa. No se puede definir “la norma en sí”, sin apelar a otros conceptos, es decir sin situarla en un contexto. Se habla así, de “normal” desde un criterio estadístico o un crite-rio axiológico, asociado a la adaptación social y cultural5.

La psico(pato)logía fenomenológica en cambio, pone entre paréntesis los paradigmas psicopatológicos (bioló-gicos, psicológicos, sociológicos) y convierte al concepto de “anormalidad” en el de “pluri-normalidad”, por el cual todo proyecto existencial es norma de sí misma.

A una verdad supuestamente absoluta o “normalidad” habrá que plantear la verdad de cada presencia singular. La desviación no puede ser considerada sólo negativa-mente (negación o desviación de la norma) sino ser una

5 La sociedad define las normas de pensamiento y comportamientos, y determina los modos de expresión de la locura, y por consecuencia sus límites. Sin embargo, hoy se plantea criticamente la identifica-ción entre adaptación y normalidad. Tellenbach habla de “normali-dad patológica”, Krauss de “hipernomia” y Wulff de “normopatía”.

nueva organización normativa, una nueva forma de ser en el mundo. Por eso no se trata de proponer un modelo diverso de articulación “noso”-gráfica, sino profundizar radicalmente la esencia de las experiencias psicopatoló-gicas, y recuperarlas en su significación de modos distin-tos de ser de lo humano.

La enfermedad mental como padecimiento personal o “acontecimiento personal”, trasciende la funcionalidad ó no de los órganos, los conflictos y mecanismos de de-fensa...; penetra en toda la vida humana, imprimiendo un contenido angustioso. Las personalidades anormales -por más alejadas a la norma que se presenten-, no serán tema de psicopatología mientras esa desviación no ex-prese una limitación en los grados de libertad del poder vivenciar y poder comportar-se (Blankenburg). Las ma-nifestaciones de la vida psíquica deben ser examinadas como reveladoras de modos esenciales de existir y pro-yectar un mundo. Cada enfermedad es específica y cada caso tiene su particularidad en virtud de la condición y libertad de paciente (Jaspers).

También el “entorno terapéutico” debe dejar de lado todo juicio de valor ó de disvalor sobre la significación “categorial” de normalidad y metanormalidad. Por eso, Müller Suur postula “ayudar al enfermo a poder ser loco”, ofreciéndole las condiciones estructurales y espacio-tem-porales que permitan expresar y realizar los horizontes existenciales constitutivos de su experiencia psicótica. Es decir, una terapia que analice y describa las experien-cias de los pacientes en el contexto de una articulación dialógica del discurso. Una terapia que deje de lado toda de-formación ideológica de cualquier orden y que esté al servicio del hombre enfermo y no “la enfermedad” como categoría abstracta.

La distinción de Tellenbach entre “síntoma” y “fenó-meno” puede ser también una buena introducción para mostrar la originalidad de la aproximación fenomeno-lógica. Los síntomas constituyen sólo signos o señales (Schneider) de una enfermedad (disease) cuya natura-leza puede ser inferida pero no percibida. El enfermo se reduce simplemente a ser el portador de los síntomas con los cuales no se confunde y de cuya génesis no par-ticipa y ante el cual el investigador o el terapeuta debe tomar distancia.

Mientras el diagnóstico sintomatológico está orienta-do a la enfermedad, el fenomenológico se dirige a la mis-ma persona enferma. Se busca entonces describir en su modo originario de darse estas modalidades peculiares de vivenciar y de comportarse consigo mismo y el mun-do. El fenómeno no dice referencia a nada detrás de sí, ni aparato nervioso ni aparato psíquico ni entidad no-sológica sino que en él, el enfermo se presenta en “car-ne y hueso”. Lo que debe hacerse fenómeno, no es de ninguna manera algo exterior sino su “logos” (Blanken-burg), no sólo lo que es perceptible por los sentidos sino también las estructuras que en ellos se evidencian y su comprensibilidad.

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María L. R.

La psiquiatría se diferencia de todas las otras especia-lidades medicinales en cuanto la dimensión del sujeto humano es allí fundamental, pues el síntoma no es sola-mente signo de la enfermedad sino que es también sig-nificación de un sentido. Desde esta perspectiva, el plan-teamiento fenomenológico nos ofrece un nuevo concep-to de subjetividad, donde las patologías mentales no son vistas como meras deficiencias y desviaciones respecto a una ”norma”, sino momentos también constitutivos de la existencia humana, es decir modificaciones esenciales inherentes al ser del hombre6.

Pensar al hombre a partir de la noción de sentido, más que responder qué es el hombre es preguntar quién es, es decir intentar esclarecer cuales son los nexos que lo unen al mundo. Precisamente será la incapacidad de ins-cribirse en el mundo en común que lleva al fracaso al yo y decide así la emergencia del ser enfermo. Si el mundo constituye un horizonte de fiabilidad en el cual encuen-tran las potencialidades de la existencia la condición de su realización, cuando se rompen los lazos originales de esta comunidad de sentido y cuando súbitamente faltan la confianza de todos nuestros vínculos afectivos, enton-ces el yo no se sostiene más y su relación a los otros y a las cosas se tiñe de extrañeza y anonimato, como ocurre en las esquizofrenias.

La Psicopa(tolo)gia Fenomenológica, en cuanto re-flexión crítica y fundante de la praxis, analiza los proce-sos constitutivos y constituyentes del mundo personal en el “sano” como en el enfermo, y su modo de encontrarse en el mundo.

3. ludwig Binswanger: de las mutaciones en los mo-dos de existencia a las condiciones de posibilidad del ser enfermo

Partiendo de la determinación heideggeriana de la constitución fundamental de Dasein, Binswanger con-cibe los fenómenos psicopatológicos fácticamente dados como variaciones especiales de dicha constitución fun-damental: son “mutaciones” (Abwandlungen) de los dis-tintos modos de existencia.

El Dasein en cuanto ser-en-el-mundo es originaria aper-tura. En este modo de apertura, la Existencia se tempora-liza (sich zeigtigt), se espacializa (Raum gibt), se munda-niza (weltlicht), y coexiste (Mit-dasein). En cuanto abierta al mundo, la Existencia se define como “proyecto” (Ent-wurf) en su “ser- arrojado-al-mundo” (Geworfen). Cuando el “ser-arrojado” tiene el predominio sobre el “proyecto” de mundo, cuando la facticidad tiene el predominio sobre

6 Dejando de lado las diferencias teóricas entre Psicopatología clínica y Psicopatología Fenomenológica (en las variantes fenomenológico- descrittivo de K. Jaspers y K. Schneider, fenomenologico-eidetico o antropológico de V. E. von Gebsattel, E. Minkowski y E. Straus o fe-nomenológica-trascendental (L. Binswanger, 1965, por citar algunas de las orientaciones) ambas buscan un terreno común en la práctica y en la investigación.

la superación, entonces tenemos una “Existencia caída” (Verfallen), o como dice M. Heidegger la “delericción”: la Existencia en vez de expresar la posibilidad más “suya” (eigen) y más “auténtica” (eigentlich) resigna su poder ser a una posibilidad ya dada y por tanto “inauténtica” (unei-gentlich), porque no es suya, sino simplemente hecha suya. Con la victoria del “ser arrojado” sobre el “poder ser”, la vida no transcurre más porque la posibilidad de trascen-der queda fijada a la presencia de lo constituido.

El modo cómo una Existencia realice su esencia, esto es su presencia en el mundo, permitirá individualizar los mundos de la “existencia frustrada” a través del análisis de la estructura trascendental de la existencia.

Posteriormente, Binswanger concibe al método feno-menológico como una “metodología de la psiquiatría” que fundamenta el análisis de la existencia, en cuanto teoría de la constitución ontológica de las enfermedades mentales. No sólo busca captar los mundos de los enfer-mos mentales, la estructura antropológica de las formas de existencia psicótica, sino el esclarecimiento de modos estructurales en correspondencia con la teoría husserliana de la constitución fenomenológico-trascendental del ser y del mundo. Sustituyendo el develamiento de la Presen-cia (Dasein) por la constitución de la conciencia trascen-dental y del Ego trascendental busca en última instancia investigar el fundamento mismo de los distintos tipos de mundo. Binswanger piensa que la tentativa de Husserl para fundar la experiencia de las cosas mismas en las es-tructuras de la vida intencional podría servir para orientar la exploración psiquiátrica y esto lo conduce a buscar en las dimensiones fundamentales del existir, las condiciones de posibilidad del ser enfermo que son también aquellas de la psiquiatría (Kuhn-Maldiney). La función fundamen-tadora de esta ciencia básica fenomenológica permite la constitución de una “ontología regional” de lo anormal (Blankenburg, Kisker), que se orienta a la subjetividad trascendental pero sin renunciar por ello a los resultados del análisis de las estructuras existenciales de los fenóme-nos psicopatológicos, tal como lo había hecho posible el pensamiento heideggeriano. Contribuye de este modo a la reintroducción de la subjetividad propia del paciente en el campo de la psiquiatría y también de la medicina.

En resumen. En el período del “Análisis Existencial”, Binswanger estudia los distintos “modos de existencia” (Daseinsweise) y las “mutaciones existenciales” (Dasein-sawandlung). En un paso posterior, partiendo de la feno-menología constitutiva de E. Husserl7, desde el “Análisis fenomenológico constitutivo-trascendental” se ocupa de la conciencia trascendental en sus momentos constituti-vos y en sus alteraciones morbosas, en cuanto condiciones de posibilidad de la aparición de la psicosis. Así plantea la temática de la melancolía, manía y delirio, tomando la noción de tiempo como a priori de la constitución de los distintos tipos de mundo.

7 Por la mediación de W. Szilasi.

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Alcance y Significación de la Psico(pato)logía Fenomenológica

Más que explicar las perturbaciones de la psique, Bin-swanger busca comprender las transformaciones patoló-gicas del Dasein en cuanto ser-en-el-mundo. Las formas psicóticas no se reducen a meros síntomas ni síndromes (psicopatología clásica) sino son amenazas inmanentes a toda existencia humana. Evita imponer a la existencia una estructura teórica que le es ajena, para dejar que ella misma se manifieste, se haga “fenómeno”. “Lo que apa-rece” no serán ya carencias o excesos sino modos de ser propios de un cierto modo de estructurarse la existencia. Se debe renunciar a privilegiar un mundo (sano) respec-to a otro (enfermo) y considerar los modos específicos de constituirse los “mundos” de las diversas formas de alienación mental. Para ello será preciso descubrir en las estructuras trascendentales las fisuras que preceden a la formación de un mundo.

4. Un nuevo imperativo ante la crisis de la Psiquiatría: una clínica basada en narrativas

Aquel imperativo binswangeriano vuelve actualmen-te a plantearse ante una Psiquiatría basada en evidencias (PBE), que se desenvuelve tanto a nivel de investigación como a nivel de la práctica con síntomas operativos y des-cripciones de síntomas, relacionando determinados he-chos psicopatológicos con cifras, lo cual permite a cual-quier persona poder recabar y verificar datos del mismo modo, en cualquier momento y en todo lugar.

Una psiquiatría reducida a una ciencia natural, sólo puede ocuparse de los modos de funcionamiento de las estructuras cerebrales, convirtiéndose así en una Cerebro-iatría (Borgna, 1995). Ante el avance de una ideología que reduce la enfermedad mental a las ciencias molecu-lares del cerebro en detrimento de las ciencias humanas y del espíritu, la Psiquiatría esta perdiendo su razón de ser como especialidad, para devenir en una “neurocien-cia clínica” o una sub-disciplina de la neurología. Pero en ambos casos, se trata de una re-medicalización de la psiquiatría (Desviat)8.

Ya G. Berrios (2000) afirmaba que la psiquiatría debe-ría definirse como un conjunto de narrativas que inclu-yan tanto un discurso neurocientífico (causas cerebrales) como uno semántico (sobre significados y símbolos co-mo razones) y un diccionario conectando los dos. Am-

8 También la misma psiquiatría y las profesiones de la salud mental, están siendo interpelada en diferentes frentes. Por un lado, los cam-bios sociales, culturales y políticos están modificando el perfil de la demanda, dificultando la definición de los límites de las actuaciones de estos especialistas y ahondando la confusión entre la necesidad de tratamiento y la necesidad de atención, entre el cuidado sanitario especializado y el cuidado sanitario o social o del entorno próximo. Por otro, no solo hay una creciente patologización del malestar sino también cambio en la oferta de servicios, en las nuevas formas de gestionar la enfermedad, y en la propia ideología de la psiquiatría y de las especialidades de la salud mental.Más aún, acorde al pen-samiento neoliberal se da un rechazo a las corrientes de psiquiatría social y comunitaria.

bos discursos pertenecen al género llamado narrativa, ya que son formas de formular el mundo, creaciones lingüísticas y conceptos ambiguos. En este sentido, una “entidad ambigua”, un “trastorno mental” no puede ex-plicarse correctamente en términos de modelos de etio-logía lineal que se extiende a lo largo de una dimensión temporal: un cerebro perturbado lleva a una función per-turbada, a continuación tiene lugar un comportamiento perturbado, y finalmente se produce una dislocación de la adaptación social.

Por eso, se postula una Psiquiatría basada en Valo-res (PBV), a la que denomina también basada en Narra-tivas, precisamente porque la labor del clínico se acerca a la de los historiadores, a la de los biógrafos, y a la de los etnógrafos.

No se trata de oponer una psiquiatría basada en evi-dencia o en pruebas a una psiquiatría basada en narrati-vas; métodos cuantitativos versus métodos cualitativos, que son necesariamente complementarios. La confronta-ción entre lo biológico y lo psico-social es inadmisible. Se trata de recuperar una Psicopatología que de cuenta del por qué y del devenir de las enfermedades y trastor-nos mentales, que pueda definir su campo propio, y sus objetivos terapéuticos, preventivos, rehabilitadores, y su método específico (neuro-psico-farmacológico, psicoló-gico, biológico, social...).

En este sentido, la Psiquiatría constituye una auténtica rama de las ciencias humanas porque es un arte intersub-jetivo que introduce al otro como sujeto y no como objeto. A su vez, la locura sólo podrá ser inscripta en el núcleo mismo de las estructuras constitutivas de la condición humana, si la antropología filosófica se constituye con el apoyo del psicoanálisis, la psicopatología y la psiquiatría.

Cuando Binswanger9 señala que el suelo donde la psiquiatría puede enraizarse reside en una “ciencia de la persona” (1957), está señalando que el síntoma no es sola-mente signo de la enfermedad, sino que es también signi-ficación de un sentido, sentido desconocido para el sujeto que lo vive como radicalmente extraño como en la psico-sis o como imposibilidad de comprender en la neurosis.

Frente a la ‘verdad factual’ propia de la adecuación entre los postulados científicos y los así llamados ‘he-chos’, es preciso plantear una ‘verdad narrativa’, que permita una aproximación al ser humano en la medi-da que éste formula su existencia bajo la forma de un relato (Rovaletti, 2009, 751).

9 L. Binswanger (1881-1966) se nutre del pensamiento de E. Hus-serl, M. Heidegger y W. Szilasi. De acuerdo a las ontologías que fundamentan su trabajo, es preciso distinguir dos niveles. Desde el “Análisis Existencial” Binswanger estudia los distintos “modos de existencia” (Daseinsweise) y las “mutaciones existenciales” (Da-seinsawandlung). Posteriormente, partiendo de la fenomenología constitutiva de Husserlo, el “Análisis fenomenológico constitutivo- trascendental” se ocupa de la conciencia trascendental en sus mo-mentos constitutivos y en sus alteraciones morbosas, en cuanto con-diciones de posibilidad de la aparición de la psicosis.

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María lucrecia rovaletti – Doctora en Filosofía por la Universidad Nacional de Córdoba, Professora Emérita de la Universidad de Buenos Aires- CONICET. E-mail: [email protected]

Recebido em 27.08.2013Aceito em 28.09.2013

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Annie B.

imPlicAtionS PSychologiqUeS de lA PhiloSoPhie de l’Action de PAUl RicoeUR1

Implicações Psicológicas da Filosofia da Ação de Paul Ricoeur

Psychological Implications of Paul Ricouer's Philosophy of Action

annie BarthéLéMy

résumé: De la Philosophie de la volonté dont le premier tome paraît en 1950, à la somme anthropologique que constitue Soi-même comme un autre éditée en 1990, jusqu’à l’ouvrage Parcours de la Reconnaissance publié en 2004, un an avant sa mort, Paul Ri-cœur n’a cessé de méditer sur la relation entre les actes et leur auteur. En croisant l’approche phénoménologique et la démarche herméneutique, il scrute les rapports entre les questions quoi? pourquoi? qui? dans les actes posés, il confronte la revendication par l’auteur de son acte à la reconnaissance de l’acte par autrui. Paul Ricœur place ainsi la question de l’identité personnelle et de la reconnaissance au coeur de sa philosophie de l’action. Notre communication se propose de montrer la fécondité de cette ré-flexion philosophique pour démystifier les prétendus conseils thérapeutiques qui, en invitant le patient à être lui-même ou en lui suggérant de faire effort pour sortir de son marasme personnel, ne font qu’accroître sa perplexité. Nous verrons ainsi combien la réflexion de Ricœur se trouve en phase avec une authentique relation thérapeutique, dans la mesure où sa philosophie de l’action nous plonge au cœur de l’involontaire et du volontaire, maintient la tension entre initiative et souffrance et enfin propose une conception ouverte de l’identité personnelle. Mots-clés: Action; Volontaire; Involontaire; Initiative; Identité personnelle.

resumo: Da Philosophie de la volonté cujo primeiro tomo é publicado em 1950, da soma antropológica que constitui Soi-même comme un autre publicado em 1990, até a obra Parcours de la Reconnaissance publicado em 2004, um ano antes de morrer, Paul Ricoeur não cessou de meditar sobre a relação entre os atos e seus autores. Cruzando a aproximação fenomenológica e a atitude hermenêutica, ele observa as relações entre as perguntas que? Por que? Quem? Nos atos postos, ele confronta a reivindicação pelo autor do seu ato ao reconhecimento do ato pelo outro. Assim, Paul Ricoeur coloca a questão da identidade pessoal e do reconhecimento no coração da sua filosofia da ação. Nossa comunicação propõe mostrar a fecundidade dessa reflexão filosófica para desmistificar os supostos conselhos terapêuticos que, convidando o paciente a ser ele mesmo ou lhe sugerindo de se esforçar para sair das suas dificuldades pessoais, só aumentam sua perplexidade. Nós veremos também o quanto a reflexão de Ricoeur se encontra em fase com uma autêntica relação terapêutica, na medida em que sua filosofia da ação nos faz mergulhar no coração do involuntário e do voluntário, mantendo a tensão entre iniciativa e sofrimento e enfim propondo uma concepção aberta da identidade pessoal.palavras-chave: Ação; Voluntário; Involuntário; Iniciativa; Identidade pessoal.

Abstract: Starting with the Philosophie de la volonté, from the first volume published in 1950, to the anthropological amount rep-resented by Soi-même comme un autre in 1990, until the book Parcours de la Reconnaissance printed in 2004, one year before his death, Paul Ricœur never stopped reflecting on the relationship between one’s acts and their author. Crossing the phenom-enological and hermeneuticapproaches, he investigates the connections between the questions “What? Why? Who?” in one’s ac-tion. He confronts the claim of an action by its author to the recognition of this act by others. Thus, Paul Ricoeur raises the ques-tion of personal identity and recognition at the core of his philosophy of action. Our communication proposes to show the fruit-fulness of this philosophical reflection to demystify the supposed therapeutic advices which, by inviting the patient to « e him-self» or suggesting him to «make efforts» to overcome his personal distress, only manage to increase his perplexity. We will also see how Ricoeur’s thinking is attuned to an authentic therapeutic relationship, insofar as his philosophy of action makes us enter into the heart of theinvoluntary and voluntary action. It maintains the tension between initiative and suffering, and finally pro-poses a wider representation of one’s personal identity.Keywords: Action; Voluntary; Involuntary; Initiative; Personal identity.

1«J’essaie de rejoindre ‘l’homme capable’, derrière

‘l’homme inefficace’, derrière ‘l’homme impuissant’», c’est par ce propos de Ricœur que nous avons choisi d’intro-duire notre communication. Il est extrait d’un entretien

1 Conference prononcé au I Congresso Brasileiro de Psicologia & Feno-menologia / III Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia. Curitiba (Paraná), 12-14 Août 2013.

entre Ricœur et un psychiatre, le professeur Yves Pé-licier2, traitant de la souffrance et des relations qui se nouent entre celui qui souffre et les soignants. C’était pour le philosophe une façon d’indiquer l’orientation de son anthropologie qui refuse d’enfermer l’homme dans

2 Transcription disponible sur le site www.fondsricoeur.fr

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Implications Psychologiques de la Philosophie de l’Action de Paul Ricouer

ses échecs visibles ou sa paralysie actuelle, quelle que soit l’emprise de la souffrance corporelle ou mentale sur le pouvoir d’agir. Pour autant le philosophe ne banalise pas la souffrance; en janvier 1992, Ricœur terminait, en effet, par cet avertissement, une conférence sur le thème Douleur et Souffrance devant une assemblée de psy-chiatres: «(...) une humeur est interdite aux phénoméno-logues comme aux psychiatres, à savoir l’optimisme que quelqu’un a défini un jour comme la caricature d’une espérance qui n’aurait pas connu les larmes» (Ricoeur, cité par Marin & Zaccaï-Reyners, 2013, p. 33). Ricœur ne s’aventure pas à donner des directives à la pratique cli-nique, il lui apporte un éclairage anthropologique où les hommes sont compris comme des êtres vivants, à la fois agissant et souffrant, où les capacités humaines requièrent l’aide d’autrui pour se manifester concrètement, où «l’aveu d’une fragilité partagée» (Ricoeur, 1990, p. 225)corrige l’asymétrie de la relation d’aide. Dans cette conception de l’homme se croisent autonomie du soi et aide d’autrui, s’équilibrent initiative de la volonté et consentement à la complexité de la vie.

Dans notre communication, nous montrerons en quoi l’anthropologie de Ricœur est solidaire d’une philoso-phie de l’action qui apporte une compréhension de l’hu-main utile pour la pratique clinique du psychologue ou du médecin. Le point sur lequel nous voudrions insister concerne les implications psychologiques de la formule «je peux», dans laquelle Ricœur donne le primat au verbe c’est-à-dire au pouvoir faire, ainsi que le précise ce com-mentaire de la septième étude de Soi-même comme un autre: «Le discours du ‘je peux’ est certes un discours en je. Mais l’accent principal est à mettre sur le verbe, sur le pouvoir faire» (Ricoeur, 1990, p. 212). Cette priorité don-née au verbe, à l’acte, sur le sujet, l’auteur de l’acte, ren-voie à des conceptions du cours de la vie et de l’identité personnelle. Elle a des implications sur la manière d’envi-sager la souffrance humaine et les réactions qu’elle suscite chez les patients et les soignants, au sens large. Elle invite à approfondir en particulier trois questions qui sont sous jacentes à la citation introductive. Dans quelle mesure la souffrance affecte-t-elle l’homme capable? Comment, pour y faire face, dépasser l’alternative entre la passivité du subir et le pouvoir de la volonté? Quel rôle jouent, dans cette expérience de la souffrance, les relations intersub-jectives, au sein desquelles s’inscrit la relation thérapeu-tique? Nous aborderons ces questions par le biais du pre-mier tome de la Philosophie de la volonté. Le Volontaire et l’Involontaire, paru en 1950, qui présente selon une dé-marche phénoménologique ce que Jean Grondin (2013) appelle «une philosophie des puissances et des impuis-sances de la volonté» (p. 27); puis nous développerons en complément quelques thématiques de Soi-même comme un autre, œuvre parue en 1990, qui résume l’anthropo-logie ricœurienne à son aboutissement.

L’ouvrage Le Volontaire et l’Involontaire a pour objectif de comprendre l’essence du vouloir au sein de la décision

qui met fin à l’hésitation, comme dans l’exécution d’une action qui met le corps en mouvement, ou encore dans le consentement, cette forme originale du vouloir face à l’inévitable auquel se heurte le pouvoir de la volonté. Dans ce but, Ricœur mobilise la démarche phénoméno-logique de Husserl, il décrit la manière dont se donne à l’intuition intellectuelle cette fonction pratique d’un Cogito, saisi non dans l’affirmation «je pense», mais dans l’impératif du «je veux»; cette description n’est pas une étude empirique utilisant l’observation et l’explication, mais une description fine de la manière dont apparaît à la conscience la jointure entre le volontaire et l’involon-taire. Ricœur s’écarte ainsi des conceptions naturalistes et idéalistes qui manquent ce nœud singulier qui me fait habiter mon corps, éprouver mon caractère, bref me sentir vivant. En exergue, Ricœur cite l’image de l’accord fragile du cavalier avec sa monture, empruntée à un poème de Rainer Maria Rilke: instant où le cavalier cesse de pous-ser ou retenir son cheval, rare instant où «une pression crée l’accord... Et les deux ne font qu’un. Mais le sont-ils?». La réflexion de Ricœur cherche à saisir le mystère de cette union fragile, difficile à saisir pour la pensée alors qu’elle se ressent dans la spontanéité affective de la vie. Face à cette union mystérieuse, la conception naturaliste objective la conduite humaine pour l’expliquer scientifi-quement par des déterminismes psychophysiologiques; elle considère illusoire le sentiment de liberté alors que l’approche idéaliste revendique l’initiative souveraine du sujet, affirmant le pouvoir de sa volonté, abstraction faite de ses attaches corporelles et de son insertion dans un environnement naturel et social.

En quoi cette analyse rationnelle abstraite des struc-tures de la volonté que mène Ricœur rejoint-elle le souci du clinicien de comprendre le vécu subjectif de la per-sonne, engagée dans l’épaisseur d’une vie tourmentée, et d’écouter l’expression de la souffrance qui échappe à l’objectivation d’un diagnostic médical centré sur les symptômes de la maladie? L’anthropologie de Ricœur, dans la version du premier tome de la Philosophie de la volonté, se révèle en fait très utile pour donner à la parole souffrante tout son relief. Si nous considérons le titre, Le Volontaire et l’Involontaire, il convient de donner un sens fort à la conjonction qui relie les deux termes. Tout l’ouvrage s’attache à souligner l’unité de l’expérience intime de la conscience qui, dans le même mouvement de la vie, s’engage activement pour réaliser ses projets et ressent passivement l’emprise du corps et du monde. Pour qualifier cette relation entre un pôle actif et un pôle passif de la subjectivité, Ricœur parle de la réciprocité du volontaire et de l’involontaire, ce qui le conduit à cri-tiquer le volontarisme triomphant et le laisser-faire rési-gné. Le philosophe nomme aussi «pacte mystérieux» ce sentiment intime, non dénué de tension, car mon corps, mon caractère, avec leurs limites, expriment aussi mon allure et mon style personnel. Saisir les modalités de cette présence concrète au monde relève d’une approche

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phénoménologique, attachée à décrire la perspective de la conscience subjective, à la différence d’une observa-tion extérieure de la conduite ou d’une explication par des déterminismes externes. Car pour la personne, enga-gée corps et âme dans l’existence, «la vie alors n’est pas spectacle mais problème et tâche», comme le souligne très bien Ricœur. Les fines descriptions de l’hésitation à l’heure du choix ou du pouvoir du corps plus ou moins docile dans l’action mettent l’accent sur cette solidarité du volontaire et de l’involontaire. Les élans affectifs aussi divers que les besoins et les désirs préexistent à l’exer-cice de la volonté; choisir c’est donc décider et trancher en donnant la priorité à une motivation parmi celles qui sollicitent le vouloir. De même, agir c’est mouvoir un corps, qui tantôt prend valeur d’obstacle par exemple dans l’effort d’attention qui exige de canaliser l’agitation motrice ou tantôt valeur de ressource, quand par exemple la souplesse acquise grâce à l’exercice permet au dan-seur de s’exprimer spontanément dans la chorégraphie. L’approche phénoménologique récuse l’idée d’un combat sous forme de duel entre le volontaire et l’involontaire car elle éclaire l’intrication heureuse ou dramatique de l’involontaire au volontaire, la volonté se frayant un che-min dans les mobiles affectifs et faisant du corps l’organe de l’action. Cette approche souligne l’enchevêtrement du volontaire et de l’involontaire qui ne sont jamais consi-dérés comme deux territoires en compétition, mais com-pris au sein d’une présence vitale qui unifie deux facettes indissociables de la subjectivité. Ricœur cite à plusieurs reprises ce propos Maine de Biran: «Homo simplex in vi-talitate, duplex in humanitate»3.

En éclairant ce pacte mystérieux que la vie humaine noue entre le volontaire et l’involontaire, Ricœur élargit considérablement «l’autre scène» à laquelle renvoie l’en-tretien clinique. Le patient parle dans un espace-temps qui suspend le tempo de la vie quotidienne où il se dé-bat entre répétition, urgence, initiative. Dans cet espace-temps, quand on évoque, en référence à la psychanalyse, «l’autre scène», c’est au domaine de l’inconscient, entra-perçu à travers les rêves, les symptômes ou les actes man-qués, auquel on pense, l’anthropologie de Ricœur renvoie à un arrière-plan plus large qui inclut ce champ incons-cient mais aussi le soubassement biologique des besoins et des pouvoirs corporels. L’écoute de la parole recueillie dans l’entretien clinique bénéficie de cet élargissement et s’ouvre à la parole des patients qui se fait l’écho d’un corps vécu, non réductible au fonctionnement biologique, et qui exprime le sentiment de capacités vitales amoindries mais non disparues, même si parfois ces expériences subjec-tives peinent à se formuler et à se détacher d’un propos sur la vie et la maladie en général. Le clinicien, dans une consultation à l’écart du bouillonnement de la vie, mais

3 Ce propos: «l’homme est simple dans sa vitalité, double en son hu-manité», que Maine de Biran emprunte à l’humaniste hollandais Herman Boerhaave, met l’accent sur la scissure qu’introduit, dans la spontanéité vitale, l’aperception de soi.

en connexion avec lui, accède à cette autre scène-là, qui est pour le patient le lieu de sa souffrance mais aussi de sa vie. L’anthropologie de Ricœur qui montre, au cœur de l’expérience intime, l’enchevêtrement des pouvoirs et des incapacités de la personne, se révèle alors très utile pour rendre à cette parole souffrante et vivante tout son relief. C’est le rôle du clinicien de saisir la manière dont la personne saisit affectivement ce qu’elle peut faire comme ce qu’elle est empêchée de faire; il convient pour cela de mettre en suspens toute prétention explicative et accueillir le récit dans lequel la personne noue ce qu’elle ose faire à ce qu’elle subit. Une telle écoute peut restaurer le pouvoir de la personne sur sa vie quotidienne, afin que la volonté le «recourbe vers le réel au lieu de le dériver vers l’imaginaire» (Ricoeur, 1950, p. 256).

Le dernier chapitre de l’ouvrage Le Volontaire et l’Invo-lontaire, joliment intitulé «le chemin du consentement», ouvre aussi une perspective à la relation thérapeutique, qui apparaît viser moins une guérison qu’une réconci-liation avec la vie où se joue le destin inachevé de cha-cun. Ce chapitre clôt la troisième et dernière partie qui opère un renversement par rapport aux deux précédentes. Auparavant, en effet, Ricœur avait montré comment la volonté, à l’heure du choix, s’affirme en appui sur des motifs qui sollicitent son affectivité et comment, dans l’action, elle mobilise les pouvoirs du corps comme or-ganes de son vouloir; le projet voulu comme la réalisa-tion en acte éclairent la manière dont la volonté a prise sur l’involontaire. Dans la troisième partie, l’analyse phénoménologique rencontre, à l’inverse, l’emprise de l’involontaire sur la volonté, cette dernière se trouvant alors confrontée à ce que Ricœur nomme «l’involontaire absolu», c’est-à-dire à ce que l’existence nous impose sans que nous puissions espérer le changer. Cependant pour Ricœur cette nécessité incontournable sollicite encore le pouvoir de la volonté. Il n’est pas étonnant que ce soit dans cette dernière partie que les allusions à la maladie sont les plus fréquentes. Nous allons conclure sur Le Volontaire et l’Involontaire en précisant ce que recouvre l’involontaire absolu et ce qui caractérise le consente-ment auquel est invitée la volonté.

Sous l’appellation d’involontaire absolu, Ricœur dé-signe le caractère, l’inconscient et la vie qui, tous trois, mettent en échec les prétentions de maîtrise de la volonté: celle-ci, incarnée dans un corps, éprouve «l’incoercible, l’inévitable, l’irrémédiable» (Ricoeur, 1950, p. 439). Le langage courant fait écho à ces formes de nécessité vé-cue: «C’est plus fort que moi», «Cela m’a échappé», «Avec ce qui m’arrive, plus rien ne sera comme avant». Dans ces circonstances, la volonté subit la limitation de son caractère, les forces obscures de l’inconscient et aussi la vie qui lui est donnée avec ses aléas; mais pour autant la volonté n’est pas annihilée car elle peut renverser cette passivité par un acte que Ricœur nomme le consente-ment. Consentir à la vie, à ses limites, à ses drames, n’est ni capituler, ni se résigner, mais l’acte d’une volonté qui

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Implications Psychologiques de la Philosophie de l’Action de Paul Ricouer

ne se cabre pas devant la vie, qui surmonte la tension dramatique entre le volontaire et l’involontaire. «Pour moi», explique Ricœur, «assumer mon caractère, mon inconscient, ma vie, avec leur être et leur non-être, c’est les transformer en moi-même» (Ricoeur, 1950, p. 597). Cette appropriation, cette intériorisation pour reprendre le terme de Ricœur, relève d’une décision de la volonté: «Dire oui reste mon acte» (Ricoeur, 1950, p. 598), l’acte d’une volonté qui ne rejette pas à l’extérieur d’elle-même sa condition. Dans un paragraphe superbe, Ricœur énu-mère les effets de ce oui:

«Oui à mon caractère, dont je puis changer l’étroi-tesse en profondeur, acceptant de compenser par l’amitié son invincible partialité. Oui à l’inconscient, qui demeure la possibilité indéfinie de motiver ma liberté. Oui à ma vie, que je n’ai point choisie, mais qui est la condition de tout choix possible» (Ricoeur, 1950, p. 598).

Il convient cependant de ne pas édulcorer cet acte de consentement, il ne s’agit pas de faire contre mauvaise fortune bon cœur, mais d’accepter l’inévitable pour res-ter patiemment dans le jeu de la vie, et selon les propos de Ricœur «prendre le réel à plein corps pour y chercher son expression et sa réalisation» (Ricoeur, 1950, p. 432). La vie, le monde s’imposent à la volonté, mais ils sont le seul lieu où elle peut incarner ses projets et ses actes. Je peux bien pester contre mon caractère, mais cela ne le changera pas. Je peux aussi invoquer mon caractère pour me dédouaner de ma responsabilité de construire ma vie. Contre la tentation titanesque de maîtriser sa vie, emprun-ter le chemin du consentement c’est trouver une voie entre le non du refus et un oui de soumission, qui sont deux formes de contractures de la volonté. Je considère alors que mon caractère est le signe de mon individua-lité, mon style personnel, «ma manière à moi de choisir et de me choisir que je ne choisis pas» (Ricoeur, 1950, p. 461). Emprunter le chemin du consentement, c’est tâcher d’unir au quotidien l’initiative d’agir à la passivité du subir dans un exercice humain de la liberté; c’est pouvoir dire d’un même souffle: «je suis en vie, je suis ma vie» (Ri-coeur, 1950, p. 442), double affirmation qui, selon Ricœur, donne accès à une réconciliation supérieure au sentiment d’harmonie éprouvé aux moments où spontanément la vie vient au devant de soi. Cependant, ce chemin du consen-tement est toujours inachevé et semé d’embûches. Le oui se conquiert difficilement sur le non de la révolte et du refus: «le oui du consentement ne peut être prononcé jusqu’aux extrémités du malheur... La liberté dit d’abord non en s’arrachant au malheur et à l’absurdité» (Ricoeur, 1950, p. 443). Ce oui se révèle provisoirement inacces-sible lorsque la pathologie, que Ricœur qualifie de «ter-rible psychologique», rend toute volonté dramatiquement impuissante. Reste alors l’espérance d’une réconciliation avec soi, que peut soutenir une relation thérapeutique,

pour aider à dénouer les thèmes morbides et rouvrir un espace de liberté.

Pour prolonger ces réflexions sur le chemin de la ré-conciliation d’une subjectivité tiraillée entre un pôle actif et passif, nous analyserons quelques extraits de Soi-même comme un autre, l’œuvre magistrale dans laquelle Ricœur offre, quarante ans après la publication du premier tome de la Philosophie de la volonté, une synthèse de son an-thropologie philosophique. Il y décline de façon systé-matique les pouvoirs qui caractérisent, sur fond d’une fragilité existentielle, ce qu’il appelle «l’homme capable», à savoir: capable de parler, agir, raconter, se tenir respon-sable de ses actes. Précisons qu’en dépit des différences de méthode et de représentation du sujet, les deux ou-vrages, celui de 1950 et celui de 1990, se recoupent sur certains thèmes, en particulier celui de l’agir humain4. Soi-même comme un autre présente une herméneutique du soi. Elle s’est construite à partir des travaux du phi-losophe sur l’interprétation des symboles puis celle des textes, en particulier des récits. Le sujet qui, dans Le Volontaire et l’Involontaire, était appréhendé selon une démarche phénoménologique attachée à décrire le vécu de la conscience, se trouve décentré; Ricœur renonce en 1990 à cette voie directe de compréhension de soi-même. En effet, dès le second tome de la Philosophie de la volonté, où à propos de la volonté mauvaise – après avoir dans le premier tome fait abstraction de la faute -, il découvre que

«pour accéder au concret de la volonté mauvaise, il fallait introduire le long détour par les symboles et par les mythes... Le sujet ne se connaît pas lui-même directement, mais seulement à travers les signes dépo-sés dans sa mémoire et son imaginaire par les grandes cultures» (Ricoeur, 1995, p. 30).

Pour un clinicien, cette exigence du détour est capi-tale, non seulement dans la mesure où elle rappelle le rôle formateur de la littérature pour la compréhension de l’hu-main, mais au sens où elle invite au lent travail conjoint de déchiffrement de soi au sein de la relation thérapeu-tique. Cette émergence progressive du soi est à des an-nées-lumière des soi-disant bons conseils qui, pour aider une personne en proie à des difficultés psychologiques, l’enjoignent à «être elle-même» ou à «prendre soin d’elle-même», ce qui a pour effet de la laisser dans un état de sidération car précisément elle ignore ce soi auquel elle est censée adhérer.

Ricœur, dans Soi-même comme un autre, ouvre un chemin plus sûr qui mène à l’intériorité à partir des traces extérieures de l’action. Dire ‘je’ oblige à réfléchir ses actes, à se réapproprier ses actes pour s’y reconnaître

4 Nous laisserons de côté la question de savoir si l’on peut, à bon droit, parler d’une anthropologie philosophique dans l’œuvre de Paul Ri-cœur, en dépit des décalages méthodologiques et conceptuels entre la version de jeunesse et la version de la maturité.

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soi-même comme sujet; c’est pourquoi Ricœur substitue le ‘soi’, pronominal des verbes réfléchis, au ‘je’, en opé-rant une critique sévère à l’endroit d’une subjectivité souveraine qui se voudrait transparente à soi, comme à l’endroit d’une subjectivité soupçonneuse qui, exhibant les causes inconscientes de sa conduite, renoncerait à se ressaisir. Cette démarche herméneutique d’interprétation de soi à partir des actes posés, que ce soit des actions au sens propre ou des actes de langage, est associée à deux autres perspectives: une définition ouverte de l’identité personnelle et la reconnaissance du rôle médiateur d’au-trui dans l’accomplissement de soi-même.

Examinons les implications pour le travail thérapeu-tique de ces trois thèmes: la nécessité du détour réflexif, l’identité ouverte et le rôle médiateur d’autrui. D’abord, Ricœur rejoint la subjectivité au cœur de l’action, dans les gestes les plus simples comme dans les pratiques plus élaborées. Convoquant la grammaire, il donne la priorité au verbe sur le sujet du verbe, ce qui le conduit à réflé-chir sur le lien qui s’établit entre l’acte posé et l’auteur de l’acte. Une action humaine introduit un changement dans le monde mais cet événement diffère de ceux qui se produisent selon une causalité physique, psychique ou sociale. Agir c’est vouloir faire arriver quelque chose qui ait un sens: si je trébuche sur une pierre, ma chute est un fait; si je me lève à l’arrivée de quelqu’un, ma posture a un sens. En découle le thème récurrent chez le philosophe de la différence entre expliquer, c’est-à-dire renvoyer à des causes, et comprendre, c’est-à-dire saisir un sens. Cette différence exige en psychologie de lier les démarches l’une à l’autre sans réduire l’une à l’autre, comme le sug-gère son célèbre conseil: «expliquer plus pour comprendre mieux» qui pourrait se traduire dans le champ du travail clinique par l’articulation de l’analyse de la pathologie à la visée de comprendre le vécu singulier du patient. En ce qui concerne la compréhension de la personne, Ricœur, à la suite d’Aristote, met en évidence le rôle du récit. Ra-conter c’est relier des événements dispersés dans une in-trigue. Ainsi la composition d’une intrigue se nourrit de l’action, elle la mime, pour reprendre le terme aristotéli-cien de mimesis, en l’inscrivant dans une histoire. Dans le récit de fiction, cette fonction unificatrice de l’intrigue rejaillit sur le personnage:

«C’est en effet», explique Ricœur, «dans l’histoire ra-contée, avec ses caractères d’unité, d’articulation in-terne et de complétude, conférés par l’opération de mise en intrigue, que le personnage conserve tout au long de l’histoire une identité corrélative de celle de l’histoire elle-même» (Ricoeur, 1990, p. 170).

Cette remarque peut éclairer ce qui se joue dans l’en-tretien clinique dans les bribes de récit où le patient tente de dénouer et renouer le fil de sa propre histoire, en pro-posant des versions successives de ce qui lui est arrivé et de ce qu’il a fait.

Outre cet accent mis sur le rôle de l’identité narrative dans la construction de l’identité personnelle, Ricœur apporte dans Soi-même comme un autre deux concepts qui éclairent deux manières d’appréhender l’identité: mêmeté et ipséité. Cette terminologie est empruntée aux mots latins idem et ipse, qui renvoient à une distinction que la langue française ne fait pas. Le critère de la mê-meté c’est la similitude, l’identité conçue selon ce critère, c’est l’identité à laquelle se réfère la remarque que l’on peut dire à un ami qu’on revoit après quelques années: «tu n’as pas changé!». Mais, fort heureusement, on peut avoir changé et rester soi-même, car l’identité d’une per-sonne ne se réduit pas, comme pour une chose, au cri-tère de la similitude mais inclut celle du maintien de soi à travers le temps – ce que désigne le terme d’ipséité –. Ainsi lorsqu’une personne offre un présent en déclarant fièrement: «c’est moi qui l’ai fait», la personne se désigne elle-même dans l’acte de fabrication et l’acte de donner, signifiant son désir d’être reconnue dans le mouvement qui l’a conduite à faire quelque chose pour l’autre. On per-çoit combien cette reconnaissance-là surpasse la simple reconnaissance d’une personne dans la rue. Cet exemple peut illustrer la signification du terme ipséité. La distinc-tion opérée entre identité et ipséité renouvelle l’analyse de l’emprise du caractère sur la personne (Ricoeur, 1990) que Ricœur avait amorcée dans Le Volontaire et l’Involontaire. Il est ainsi conduit à relativiser la fixité du caractère qu’il présentait alors comme un pôle immuable et involontaire de la personnalité. Dans Soi-même comme un autre, après avoir précisé que le caractère n’est pas donné tel quel à la naissance mais qu’il a une histoire susceptible d’en assou-plir ou d’en rigidifier les traits, il souligne que l’identité de la personne n’est pas enfermée dans la permanence du caractère et qu’elle relève aussi d’un «maintien de soi». Ricœur argumente en opposant la stabilité du caractère à la fidélité dans l’amitié: «Une chose est la continuation du caractère; une autre, la constance dans l’amitié» (Ricoeur, 1990, p. 148). C’est ainsi que la distinction entre mêmeté et ipséité invite non pas à être soi-même mais à demeurer fiable quoi qu’il en soit des péripéties de notre histoire. Dans une note, Ricœur apporte une nuance en définis-sant le caractère comme «la mêmeté dans la mienneté»5, ce dernier est alors susceptible d’être vécu comme le style qui marque mes initiatives, mais cette forme de fidélité à notre caractère, proche du consentement décrit dans Le Volontaire et l’Involontaire, suppose l’engagement dans l’action avec sa part d’acceptation des conditions dans laquelle cette action s’exerce.

Lorsque Ricœur veut illustrer la dimension du pôle ipséité de l’identité personnelle, il donne comme exemple, la constance dans l’amitié, introduisant l’intersubjectivité au cœur de l’identité personnelle. L’exemple de l’amitié n’est pas choisi au hasard, l’ouvrage Soi-même comme un autre contient de très belles pages sur l’amitié, thème qu’il

5 Ricoeur, 1990, note de la page 145.

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aborde en compagnie d’Aristote (Ricouer, 1990). Commen-tant le propos du philosophe grec affirmant: «l’homme heureux a besoin d’amis», Ricœur met en évidence l’arti-culation entre l’aspiration au bonheur et le désir d’avoir des amis. Le souhait d’avoir une bonne et belle vie ne peut s’accomplir en solitaire, pour se réaliser il requiert le par-tage avec un ami de cette aspiration au bonheur. L’amitié révèle ainsi l’appui indispensable d’autrui pour passer du pouvoir faire au faire. Nous conclurons notre propos sur ce thème central de l’anthropologie ricœurienne: «le rôle médiateur de l’autre entre capacité et effectuation» (Ricouer, 1990, p. 213). Le philosophe en fait le second volet de son éthique qu’il résume dans une formule en triptyque: «Appelons ‘visée éthique’ la visée de la ‘vie bonne’ / avec et pour autrui / dans des institutions justes» (Ricouer, 1990, p. 202). Viser à une vie accomplie avec et pour autrui, cela concerne bien entendu le projet théra-peutique; certes le psychologue n’est pas l’ami de son pa-tient car sa relation au patient n’a pas la même réciprocité qu’une relation entre amis. Cependant il n’en est pas si éloigné si on suit l’analyse que fait Ricœur de la sollicitude dans la continuité du développement sur l’amitié; car en dépit de l’inégalité des positions, la sollicitude instaure «une authentique réciprocité dans l’échange». Si en effet la personne qui souffre éveille en autrui «une spontanéité bienveillante», elle n’est pas condamnée au rôle passif de celle qui reçoit de l’aide, car «il procède de l’autre souf-frant un donner qui n’est précisément plus puisé dans sa puissance d’agir mais dans sa faiblesse même» (Ricouer, 1990, p. 222-223): une invitation pour le thérapeute à accueillir ce don de son patient.

Références

Marin C. & Zaccaï-Reyners N. (2013). Souffrance et douleur. Autour de Paul Ricœur. Paris: PUF.

Ricouer, P. (1950). Philosophie de la volonté t. 1 Le Volontaire et l’Involontaire. Paris: Aubier.

Ricouer, P. (1990). Soi-même comme un autre (Collection Points). Paris: Seuil.

Ricoeur P. (1995), Réflexion faite. Autobiographie intellectuelle. Paris: Esprit.

Annie Barthélémy - Agrégée en Philosophie à l’Université de Lille III, avec DEA de Sciences de l’Education à l’Université de Paris V et Doc-torat de troisième cycle de Sciences de l’Education à l’Université de Pa-ris V. Maître de conférences honoraire de l’Université de Savoie-France. E-mail: [email protected]

Reçu le 16.07.2013Accepté le 28.10.2013

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imPlicAçõeS PSicológicAS dA filoSofiA dA Ação de PAUl RicoeUR1

Implications Psychologiques de la Philosophie de l’Action de Paul Ricoeur

Psychological Implications of Paul Ricouer’s Philosophy of Action

annie BarthéLéMy

resumo: Da filosofa da vontade cujo primeiro tomo é publicado em 1950, da soma antropológica que constitui Si mesmo como um outro publicado em 1990, até a obra Percurso do reconhecimento publicado em 2004, um ano antes de morrer, Paul Ricoeur não cessou de meditar sobre a relação entre os atos e seus autores. Cruzando a aproximação fenomenológica e a atitude hermenêuti-ca, ele observa as relações entre as perguntas que? Por que? Quem? Nos atos postos, ele confronta a reivindicação pelo autor do seu ato ao reconhecimento do ato pelo outro. Assim, Paul Ricoeur coloca a questão da identidade pessoal e do reconhecimento no coração da sua filosofia da ação. Nossa comunicação propõe mostrar a fecundidade dessa reflexão filosófica para desmistificar os supostos conselhos terapêuticos que, convidando o paciente a ser ele mesmo ou lhe sugerindo de se esforçar para sair das suas dificuldades pessoais, só aumentam sua perplexidade. Nós veremos também o quanto a reflexão de Ricoeur se encontra em fase com uma autêntica relação terapêutica, na medida em que sua filosofia da ação nos faz mergulhar no coração do involuntário e do voluntário, mantendo a tensão entre iniciativa e sofrimento e enfim propondo uma concepção aberta da identidade pessoal.palavras-chave: Ação; Voluntário; Involuntário; Iniciativa; Identidade pessoal.

résumé: De la Philosophie de la volonté dont le premier tome paraît en 1950, à la somme anthropologique que constitue Soi-même comme un autre éditée en 1990, jusqu’à l’ouvrage Parcours de la Reconnaissance publié en 2004, un an avant sa mort, Paul Ricœur n’a cessé de méditer sur la relation entre les actes et leur auteur. En croisant l’approche phénoménologique et la dé-marche herméneutique, il scrute les rapports entre les questions quoi? pourquoi? qui? dans les actes posés, il confronte la reven-dication par l’auteur de son acte à la reconnaissance de l’acte par autrui. Paul Ricœur place ainsi la question de l’identité person-nelle et de la reconnaissance au coeur de sa philosophie de l’action. Notre communication se propose de montrer la fécondité de cette réflexion philosophique pour démystifier les prétendus conseils thérapeutiques qui, en invitant le patient à être lui-même ou en lui suggérant de faire effort pour sortir de son marasme personnel, ne font qu’accroître sa perplexité. Nous verrons ainsi com-bien la réflexion de Ricœur se trouve en phase avec une authentique relation thérapeutique, dans la mesure où sa philosophie de l’action nous plonge au cœur de l’involontaire et du volontaire, maintient la tension entre initiative et souffrance et enfin propose une conception ouverte de l’identité personnelle. Mots-clés: Action; Volontaire; Involontaire; Initiative; Identité personnelle.

Abstract: Starting with the Philosophie de la volonté, from the first volume published in 1950, to the anthropological amount rep-resented by Soi-même comme un autre in 1990, until the book Parcours de la Reconnaissance printed in 2004, one year before his death, Paul Ricœur never stopped reflecting on the relationship between one’s acts and their author. Crossing the phenom-enological and hermeneuticapproaches, he investigates the connections between the questions “What? Why? Who?” in one’s ac-tion. He confronts the claim of an action by its author to the recognition of this act by others. Thus, Paul Ricoeur raises the ques-tion of personal identity and recognition at the core of his philosophy of action. Our communication proposes to show the fruit-fulness of this philosophical reflection to demystify the supposed therapeutic advices which, by inviting the patient to « e him-self» or suggesting him to «make efforts» to overcome his personal distress, only manage to increase his perplexity. We will also see how Ricoeur’s thinking is attuned to an authentic therapeutic relationship, insofar as his philosophy of action makes us enter into the heart of theinvoluntary and voluntary action. It maintains the tension between initiative and suffering, and finally pro-poses a wider representation of one’s personal identity.Keywords: Action; Voluntary; Involuntary; Initiative; Personal identity.

1‘Tento alcançar “o homem capaz”, atrás o “homem

ineficaz”, atrás o “homem impotente”’. É com essa frase de Ricoeur que nós escolhemos começar nossa comuni-

1 Conferência apresentada no I Congresso Brasileiro de Psicologia & Fenomenologia / III Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia. Curi-tiba (Paraná) 12 a 14 de agosto de 2013. Tradução de Isabelle Gayon ([email protected]) e revisão técnica de Andrés Eduardo Aguir-re Antúnez (USP/ GT Psicologia e Fenomenologia - ANPEPP).

cação. Ela é extraída de uma conversa entre Ricoeur e um psiquiatra, o professor Yves Pélicier¹2, e trata do so-frimento e das relações que se formam entre quem sofre e quem cuida. Era para o filósofo uma maneira de indi-car a orientação de sua antropologia que recusa fechar o homem em seus fracassos visíveis ou em sua paralisia

2 Transcrição disponível no site www.fondsricoeur.fr

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atual, qualquer que seja o poder do sofrimento corpo-ral ou mental sobre o poder de agir. Mas o filósofo não banaliza o sofrimento; em janeiro de 1992, Ricoeur ter-minou, na verdade, uma conferência sobre o tema Dor e Sofrimento diante de uma assembleia de psiquiatras com esse aviso: “(...) uma atitude proibida aos fenome-nólogos e aos psiquiatras é o otimismo que alguém defi-niu um dia como a caricatura de uma esperança que não teria conhecido as lágrimas” (Ricoeur, citado por Marin & Zaccai-Reyners, 2013, p. 33). Ricoeur não arrisca dar diretivas para a prática clínica, ele lhe traz uma visão antropológica onde os homens são entendidos como se-res vivos que, ao mesmo tempo agem e sofrem e onde as capacidades humanas requerem a ajuda do outro para se manifestarem concretamente, onde “a confissão de uma fragilidade compartilhada” (Ricoeur, 1990, p. 225) corri-ge a assimetria da relação de ajuda. Nessa concepção do homem, a autonomia do si e a ajuda do outro se cruzam, a iniciativa da vontade e o consentimento à complexida-de da vida se equilibram.

Em nossa comunicação, nós mostraremos em que a antropologia de Ricoeur é solidária de uma filosofia da ação que traz uma compreensão do humano útil para a prática clínica do psicólogo ou do médico. O ponto sobre o qual nós gostaríamos de insistir concerne às implica-ções psicológicas da fórmula “eu posso”, na qual Ricoeur dá a prioridade ao verbo, isto é ao poder fazer, como o precisa esse comentário do sétimo estudo de Si mesmo como um outro: «o discurso do “eu posso” é, claro, um discurso do eu. Mas o acento principal deve ser coloca-do sobre o verbo, sobre o poder fazer» (Ricoeur, 1990, p. 212). Essa prioridade dada ao verbo, ao ato, sobre o sujeito, o autor do ato, reenvia a concepções sobre o cur-so da vida e da identidade pessoal. Ela tem implicações sobre a maneira de considerar o sofrimento humano e as reações que ela provoca nos pacientes e nos cuidadores, no sentido largo. Ela convida a aprofundar três pergun-tas em particular que são subjacentes à citação introdu-tiva. Em que medida o sofrimento afeta o homem capaz? E para enfrenta-lo, como ultrapassar a alternativa entre a passividade do suportar e o poder da vontade? Nessa experiência do sofrimento, que papel tem as relações in-tersubjetivas, no centro das quais se inscreve a relação terapêutica? Nós falaremos dessas questões pelo meio do primeiro tomo da Filosofia da vontade. O Voluntário e o Involuntário, publicado em 1950, que apresenta, segundo uma atitude fenomenológica, o que Jean Grondin (2013) chama de «uma filosofia das potências e impotências da vontade» (p. 27); em seguida, nós desenvolveremos para complementar algumas temáticas de Si mesmo como um outro, obra publicada em 1990, que resuma a antropolo-gia ricoeuriana até seu final.

A obra O Voluntário e o Involuntário tem como ob-jetivo entender a essência do querer dentro da decisão que coloca um fim à hesitação, como na execução de uma ação que coloca o corpo em movimento, ou ainda

no consentimento, essa forma singular do querer frente ao inevitável no qual se choca o poder da vontade. Com esse objetivo, Ricoeur mobiliza a atitude fenomenológi-ca de Husserl, ele descreve a maneira com a qual se dá à intuição intelectual essa função prática de um Cogito, pego não na afirmação “eu penso”, mas sim no imperativo do “eu posso”; essa descrição não é um estudo empírico que usa a observação e a explicação, mas sim uma des-crição fina da maneira como a junção entre o voluntário e o involuntário aparece à consciência. Assim, Ricoeur se distancia das concepções naturalistas e idealistas on-de falta esse nó singular que me faz habitar meu corpo, sentir meu caráter, em uma palavra me sentir vivo. Co-mo explicação, Ricoeur cita a imagem do acordo frágil entre o cavaleiro e o seu cavalo, extraída de uma poesia de Rainer Maria Rilke: instante onde o cavaleiro cessa de empurrar ou reter seu cavalo, instante raro onde “uma pressão cria o acordo... E os dois são um só. Mas eles re-almente são um só?”. A reflexão de Ricoeur procura en-tender o mistério dessa união frágil, difícil de entender para o pensamento porque ela se experimenta na espon-taneidade afetiva da vida. Frente a essa união misteriosa, a concepção naturalista objetiva a conduta humana para explicá-la cientificamente por determinismos psico-fisio-lógicos; ela considera ilusório o sentimento de liberdade enquanto a aproximação idealista reivindica a iniciativa soberana do sujeito, afirmando o poder de sua vontade, abstração feita de seus laços corporais e de sua inserção em um meio natural e social.

Em que essa análise racional abstrata das estruturas da vontade que Ricoeur dirige alcance a preocupação do clínico para entender o vivido subjetivo da pessoa engaja-da na espessura de uma vida atormentada e para escutar a expressão do sofrimento que escapa da objetivação de um diagnóstico medical centrado sobre os sintomas da doença? A antropologia de Ricoeur, na versão do primei-ro tomo da Filosofia da vontade, se revela de fato muito útil para dar todo seu relevo à palavra sofredora. Se con-siderarmos o titulo, O Voluntário e o Involuntário convém dar um sentido forte à conjunção que liga os dois termos. A obra toda sublinha a unidade da experiência íntima da consciência que, no mesmo movimento da vida, se compromete ativamente para realizar seus projetos e sen-te passivamente a influência do corpo e do mundo. Pa-ra qualificar essa relação entre um polo ativo e um polo passivo da subjetividade, Ricoeur fala da reciprocidade do voluntário e do involuntário, o que o leva a criticar o voluntarismo triunfante e o deixar-fazer resignado. O fi-lósofo chama também esse sentimento íntimo de “pacto misterioso”, não desprovido de tensão, por que meu cor-po, meu carácter, com seus limites expressam também meu ritmo e meu estilo pessoal. Entender as modalida-des dessa presença concreta ao mundo releva de uma aproximação fenomenológica que quer descrever a pers-pectiva da consciência subjetiva, diferente de uma ob-servação exterior do comportamento ou de uma explica-

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ção pelos determinismos externos. Porque, para a pessoa engajada corpo e alma na existência, a vida então não é espetáculo, mas sim problemas e tarefas” como o subli-nha muito bem Ricoeur. As finíssimas descrições da he-sitação na hora da escolha ou do poder do corpo mais ou menos dócil na ação colocam o acento sobre essa soli-dariedade do voluntário e do involuntário. Os impulsos afetivos tão diversos, como as necessidades e os desejos, preexistem ao exercício da vontade. Então, escolher é decidir e cortar dando a prioridade a uma motivação no meio daquelas que solicitam o querer. Da mesma maneira, agir é mover um corpo, que às vezes se torna obstáculo, por exemplo, no esforço de atenção exigindo canalizar a agitação motriz ou às vezes se torna recurso, quando por exemplo a agilidade adquirida graças ao exercício per-mite ao bailarino se expressar espontaneamente na co-reografia. A aproximação fenomenológica recusa a ideia de um combate em forma de duelo entre o voluntário e o involuntário por que ela esclarece a complexidade fe-liz ou dramática do involuntário ao voluntário, a vonta-de caminhando nos motivos afetivos e fazendo do corpo o órgão da ação. Essa aproximação mostra a confusão do voluntário e do involuntário que nunca são considerados como dois territórios em competição, mas sim inclusos no centro de uma presença vital que une duas faces in-dissociáveis da subjetividade. Ricoeur cita várias vezes essa frase de Maine de Biran: “Homo simplex in vitalitate, duplex in humanitate”3.

Esclarecendo esse pacto misterioso que a vida humana une entre o voluntário e o involuntário, Ricoeur aumenta de maneira considerável a “outra cena” a qual reenvia à entrevista clínica. O paciente fala em um espaço-tempo que suspende o ritmo da vida cotidiana na qual ele se ba-te entre repetições, urgência, iniciativa.

Dentro desse espaço-tempo, quando evocamos, em referência à psicanálise, “a outra cena”, pensamos no do-mínio do inconsciente, apercebido nos sonhos, nos sinto-mas ou nos atos falhos; a antropologia de Ricoeur reenvia a um segundo plano mais amplo que inclui esse campo inconsciente, mas também a base biológica das necessi-dades e dos poderes corporais. A escuta da palavra duran-te a entrevista clinica é beneficiada por essa ampliação e se abre frente à palavra dos pacientes que é o eco de um corpo vivido não redutível ao funcionamento biológico e que expressa o sentimento de capacidades vitais ame-nizadas, mas não desaparecidas, mesmo se às vezes es-sas experiências subjetivas demoram para se formular e se desligar de um comentário sobre a vida e a doença em geral. O clínico, durante uma consulta longe do fervo da vida, mas em conexão com ele, acessa a essa outra cena, que é para o paciente o lugar do seu sofrimento e tam-bém da sua vida. A antropologia de Ricoeur mostra, no

3 Essa frase: “o homem é simples na sua vitalidade, duplo na sua hu-manidade” que Maine de Biran empresta ao humanista holandês Herman Boerhaave, coloca o acento sobre a fissura que introduz, na espontaneidade vital, a apercepção de si.

coração da experiência íntima, a confusão dos poderes e das incapacidades da pessoa, se revela então muito útil para devolver todo seu relevo a essas palavras sofredoras e vivas. O papel do clínico é compreender a maneira com a qual a pessoa entende afetivamente o que ela pode fa-zer e o que ela esta impedida de fazer; convém, por isso, suspender toda pretensão explicativa e acolher a narra-ção na qual a pessoa une o que ela ousa fazer com o que ela aguenta. Tal escuta pode restaurar o poder da pessoa sobre sua vida cotidiana, para que a vontade “traga-a em direção ao real em vez de levá-la ao imaginário” (Ricoeur, 1950, p. 256).

O último capítulo da obra O Voluntário e o Involuntá-rio, lindamente intitulado “o caminho do consentimento” abre também uma perspectiva para a relação terapêutica, que parece visar menos uma cura que uma reconciliação com a vida onde o destino de cada um se desenrola. Esse capítulo termina a terceira e última parte operando uma mudança em relação às duas anteriores. Antes, de fato, Ricoeur tinha mostrado como a vontade, na hora da es-colha, se afirma apoiando-se sobre motivos que solicitam sua afetividade e como, na ação, ela mobiliza os poderes do corpo como órgãos do seu querer; o projeto desejado como a realização em ato esclareça a maneira como a von-tade domina o involuntário. Na terceira parte, a análise fenomenológica encontra, ao contrário, o domínio do in-voluntário sobre a vontade, essa última se encontrando então confrontada ao que Ricoeur nomeia “o involuntá-rio absoluto”, isto é, o que a existência nos impõe sem que nós possamos esperar mudar. Porém, para Ricoeur, essa necessidade incontornável solicita ainda o poder da vontade. Não é surpreendente que as alusões à doença sejam mais presentes nessa última parte. Nós termina-remos sobre O Voluntário e o Involuntário precisando o que envolve o involuntário absoluto e o que caracteriza o consentimento ao qual a vontade é convidada.

Sob o apelido de involuntário absoluto, Ricoeur de-signa o caráter, o inconsciente e a vida que, os três, co-locam em xeque as pretensões de domínio da vontade: ela, incarnada em um corpo, sente o “incoercível, o ine-vitável, o irremediável” (Ricoeur, 1950, p. 439). A lingua-gem comum faz eco a essas formas de necessidade vivida: “é mais forte do que eu”, “isso me escapou”, “com o que aconteceu, nada mais será como antes”. Nessas circuns-tancias, a vontade suporta a limitação do seu caráter, as forças obscuras do inconsciente e também a vida que lhe é dada com seus problemas. Mas não por isso a vontade é aniquilada porque ela pode reverter essa passividade com um ato que Ricoeur chama de consentimento. Consentir à vida, a seus limites, a seus dramas não é nem desistir, nem se resignar, é o ato de uma vontade que não se re-volta diante da vida, que ultrapasse a tensão dramática entre o voluntário e o involuntário. “Para mim”, explica Ricoeur, “assumir meu caráter, meu inconsciente, minha vida, com seu ser e seu não-ser, é transformá-los em eu mesmo” (Ricoeur, 1950, p. 597). Essa apropriação, essa

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interiorização para retomar o termo de Ricoeur, releva de uma decisão da vontade: “Dizer sim permanece meu ato” (Ricoeur, 1950, p. 598), o ato de uma vontade que não rejeita sua condição para fora dela mesma. Em um lindo parágrafo, Ricoeur enumera os efeitos desse sim:

“Sim ao meu caráter, do qual posso mudar a estreiteza em profundidade, aceitando compensar sua invencí-vel parcialidade pela amizade. Sim ao inconsciente que permanece a possibilidade indefinita de motivar minha liberdade. Sim à minha vida que não esco-lhi, mas que é a condição de toda escolha possível” (Ricoeur, 1950, p. 598).

Porém, convém não edulcorar esse ato de consenti-mento, não se trata de se conformar, mas sim de aceitar o inevitável para permanecer pacientemente no jogo da vida, e segundo as palavras de Ricoeur “abraçar o real pa-ra procurar nele sua expressão e sua realização” (Ricoeur, 1950, p. 432). A vida e o mundo se impõem à vontade, mas eles são o único lugar onde ela pode incarnar seus projetos e seus atos. Eu posso resmungar contra meu ca-ráter, isso não ira mudá-lo. Eu posso também acusar meu caráter para me desengajar da minha responsabilidade em construir minha vida. Contra a tentação titânica de dominar sua vida, pegar o caminho do consentimento é encontrar uma via entre o não da negação e um sim de submissão, que são duas formas de contraturas da vonta-de. Considero então que meu caráter é o sinal de minha individualidade, meu estilo pessoal, “minha maneira de escolher e de me escolher que eu não escolho” (Ricoeur, 1950, p. 461). Pegar o caminho do consentimento, é ten-tar unir no cotidiano a iniciativa de agir com a passivi-dade do suportar em um exercício humano de liberdade; é poder dizer de uma mesma voz “estou viva, sou minha vida” (Ricoeur, 1950, p. 442), dupla afirmação que, segun-do Ricoeur, dá acesso a uma reconciliação superiora ao sentimento de harmonia vivido nos momentos aonde es-pontaneamente, a vida vem ao seu encontro. Porém, esse caminho do consentimento é sempre inacabado e semea-do de emboscadas. O sim se conquista dificilmente sobre o não da revolta e da negação: “o sim do consentimento não pode ser pronunciado até as extremidades da infelici-dade... Primeiramente, a liberdade diz não se arrancando à infelicidade e à absurdidade” (Ricoeur, 1950, p. 443). Esse sim se revela provisoriamente inacessível quando a patologia, que Ricoeur qualifica de “terrível psicológico”, torna toda vontade dramaticamente imponente. Resta en-tão a esperança de uma reconciliação consigo, que pode ser sustentado por uma relação terapêutica, para ajudar a desembaraçar os temas mórbidos e reabrir um espaço de liberdade.

Para continuar essas reflexões sobre o caminho da reconciliação de uma subjetividade atordoada entre um polo ativo e passivo, nós analisaremos alguns trechos de Si mesmo como um outro, a obra magistral na qual

Ricoeur oferece, quarenta anos após a publicação do pri-meiro tomo da Filosofia da vontade, uma síntese de sua antropologia filosófica. Ele revê de maneira sistemática os poderes que caracterizam, dentro de uma fragilidade existencial, o que ele chama “o homem capaz”, a saber: capaz de falar, agir, contar, se manter responsável por seus atos. Precisamos que, apesar das diferenças de método e de representação do sujeito, as duas obras, a de 1950 e a de 1990 se reencontram em certos temas, em particular o do agir humano4. Si mesmo como um outro apresenta uma hermenêutica do si. Ela se construiu a partir dos trabalhos do filósofo sobre a interpretação dos símbolos e depois sobre a interpretação dos textos, em particular das narrações. O sujeito que, no Voluntário e o Involuntá-rio, era concebido segundo uma atitude fenomenológica ligada a descrever o vivido da consciência, se encontra descentrado; Ricoeur renuncia em 1990 a essa via dire-ta de compreensão de si mesmo. De fato, desde o segun-do tomo da Filosofia da vontade, onde no que concerne a vontade ruim – e após ter feito abstração da culpa no primeiro tomo-, ele descobre que

“para acessar ao concreto da vontade ruim, era pre-ciso introduzir o longo desvio pelos símbolos e pelos mitos.... O sujeito não se conhece ele mesmo direta-mente, mas somente através dos sinais depositados em memória e seu imaginário pelas grandes culturas” (Ricoeur, 1995, p. 30).

Para um clínico, essa exigência do desvio é capital, não somente na medida em que ela lembra o papel for-mador da literatura para a compreensão do humano, mas também no sentido em que ela convida para o lento tra-balho conjunto de decifração de si durante a relação tera-pêutica. Essa emergência progressiva do si está anos luz dos supostos bons conselhos que, para ajudar uma pes-soa presa em dificuldades psicológicas, a obrigam a “ser ela mesma” ou a “cuidar dela mesma”, o que resulta em deixa-la em um estado de sideração por que precisamen-te ela ignore esse si ao qual ela deve aderir.

Ricoeur, em Si mesmo como um outro, abre um cami-nho mais seguro que leva à interioridade a partir dos ras-tros exteriores da ação. Dizer “eu” obriga a refletir nos seus atos, reaver seus atos para se reconhecer si mesmo como sujeito. É por isso que Ricoeur substitui o “si”, reflexivo dos verbos pronominais dos reflexivos, pelo “eu”, criti-cando vivamente uma subjetividade soberana que queria ser transparente a si e criticando também uma subjetivi-dade desconfiada que, exibindo as causas inconscien-tes de seu comportamento, renunciaria a se recuperar. Esse comportamento hermenêutico de interpretação de si a partir dos atos postos, quer sejam ações no sentido

4 Nós deixaremos de lado a questão de saber se podemos legitimamente falar de uma antropologia filosófica na obra de Paul Ricoeur, apesar das diferenças metodológicas e conceituais entre a versão de juven-tude e a versão da maturidade.

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Annie B.

próprio ou atos de linguagem, é associado a duas outras perspectivas: uma definição aberta da identidade pesso-al e do reconhecimento do papel mediador do outro na realização de si mesmo.

Examinemos as implicações para o trabalho terapêu-tico desses três temas: a necessidade do desvio reflexivo, a identidade aberta e o papel mediador do outro. Em pri-meiro lugar, Ricoeur reencontra a subjetividade no cen-tro da ação, nos gestos mais simples como nas práticas mais elaboradas. Convocando a gramática, ele prioriza o verbo frente o sujeito do verbo, o que o leva a refletir so-bre o laço que se estabelece entre o ato posto e o autor do ato. Uma ação humana introduz uma mudança no mun-do, mas esse acontecimento difere dos que se produzem segundo uma causalidade física, psíquica ou social. Agir é querer fazer acontecer algo que tenha um sentido: se eu tropeço, minha queda é um fato; se eu me levanto quan-do chega alguém, minha atitude tem um sentido. Por isso vem esse tema repetitivo do filósofo sobre a diferença en-tre explicar, o que significa reenviar a umas causas e com-preender, isto é captar um sentido. Essa diferença exige, em psicologia, ligar os comportamentos um ao outro sem reduzir um ao outro, como o sugere seu famoso conselho: “explicar mais para entender melhor”, o que poderia se traduzir no campo do trabalho clínico pela articulação da análise da patologia com o objetivo de entender o vivido singular do paciente. No que concerne à compreensão da pessoa, Ricoeur, depois de Aristóteles, coloca em evi-dência o papel da narração. Contar é ligar acontecimen-tos espalhados em uma intriga. Assim, a composição de uma intriga se nutre da ação, ela a mímica, para retomar o termo aristotélico de mimesis, inscrevendo-a em uma história. Na narração de ficção, essa função unificadora da intriga se repercute sobre a personagem:

“É de fato”, explica Ricoeur, “na história contada, com suas características de unidade, de articulação interna e de completude, dados pela operação de colocação em intriga, que a personagem conserva ao longo da história uma identidade correlativa à da história ela mesma” (Ricoeur, 1990, p. 170).

Esse comentário pode esclarecer o que acontece du-rante a entrevista clínica nos fragmentos de narrativa onde o paciente tenta atar e desatar o fio de sua própria história, propondo versões sucessivas do que lhe acon-teceu e do que ele fez.

Além desse acento colocado sobre o papel da identi-dade narrativa na construção da identidade pessoal, Ri-coeur, em Si mesmo como um outro traz dois conceitos que esclarecem duas maneiras de abordar a identidade: mesmice e ipseidade. Essa terminologia é emprestada às palavras latinas idem e ipse, que reenviam a uma distin-ção que a língua francesa não faz. O critério da “mesmi-ce” é a similitude, a identidade concebida segundo esse critério, é a identidade à qual se refere o comentário que

podemos também dizer para um amigo reencontrado após alguns anos: “você não mudou nada!”. Mas, e ainda bem, nós podemos ter mudado e permanecer nós mesmos, por que a identidade de uma pessoa não se reduz, como para uma coisa, ao critério da similitude, mas sim inclui tam-bém a postura de si através do tempo – o que designa o termo de ipseidade. Assim, quando uma pessoa oferece um presente dizendo orgulhosamente: “Sou eu quem fez”, essa pessoa se designa ela mesma no ato de fabricação e no ato de dar, significando seu desejo de ser reconhecida no movimento que a levou a fazer algo para o outro. Per-cebemos como esse reconhecimento ultrapassa o simples reconhecimento de uma pessoa na rua. Esse exemplo po-de ilustrar a significação do termo ipseidade. A distinção feita entre identidade e ipseidade renova a análise do po-der do caráter sobre a pessoa (Ricoeur, 1990), que Ricoeur tinha começado em O Voluntário e o Involuntário. Assim, ele é levado a relativizar a imobilidade do caráter que ele apresentava então como um polo constante, invariável e involuntário da personalidade. Em Si mesmo como um outro, após ter precisado que o caráter não é dado do jeito como ele é quando nascemos, mas que ele tem uma histo-ria que pode amaciar ou enrijecer os traços, ele sublinha que a identidade da pessoa não é fechada na permanência do caráter e que ela releva também de uma “postura de si”. Ricoeur argumenta opondo a estabilidade do caráter à fidelidade na amizade: “uma coisa é a continuação do caráter; uma outra, é a constância na amizade” (Ricoeur, 1990, p. 148). Assim, a distinção entre mesmice e ipsei-dade convida não a ser si mesmo, mas sim a permanecer fiel apesar das peripécias de nossa história. Em uma no-ta, Ricoeur traz uma nuança definindo o caráter como “a mesmice na minhadade”5, podendo então ser vivido co-mo o estilo que marca minhas iniciativas, mas essa forma de fidelidade à nosso caráter, próximo ao consentimento descrito em O Voluntário e o Involutário, supõe o engaja-mento na ação com sua parte de aceitação das condições na qual essa ação se exerce.

Quando Ricoeur quer ilustrar a dimensão do polo ipseidade da identidade pessoal, ele dá o exemplo da constância na amizade, introduzindo a intersubjetivi-dade no coração da identidade pessoal. O exemplo da amizade não foi escolhido por acaso, a obra Si mesmo como um outro contém páginas lindas sobre a amiza-de, tema que ele aborda na companhia de Aristóteles (Ricoeur, 1990).

Comentando a frase do filósofo grego que diz: “o ho-mem feliz precisa de amigos”, Ricoeur coloca em eviden-cia a articulação entre a aspiração à felicidade e o desejo de ter amigos. O desejo de ter uma bela e boa vida não pode ser realizado em solitário; para se realizar é preciso compartilhar com um amigo essa aspiração à felicidade. A amizade revela assim o apoio indispensável do outro para passar do poder fazer ao fazer. Nós terminaremos

5 Ricoeur, 1990, nota da página 145.

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Implicações Psicológicas da Filosofia da Ação de Paul Ricouer

sobre esse tema central da antropologia ricoeuriana: “o papel mediador do outro entre capacidade e efetuação” (Ricoeur, 1990, p. 213). O filósofo faz desse tema a segun-da parte da sua ética que ele resume em uma fórmula em tríptico: “Chamemos “alvo ético” o alvo da “vida boa” / com e para o outro / em instituições justas” (Ricoeur, 1990, p. 202). Pretender a uma vida bem cumprida com e para o outro, isso concerne, é claro, o projeto terapêutico; cer-tamente, o psicólogo não é o amigo do paciente porque a relação com o paciente não tem a mesma reciprocidade que uma relação entre amigos. Porém, ela não é tão lon-ge de ser isso, se nós seguimos a análise que faz Ricoeur da solicitude na continuidade do desenvolvimento sobre amizade; porque, apesar da desigualdade das posições, a solicitude instaura “uma autêntica reciprocidade durante a troca”. De fato, se a pessoa sofrendo desperta no outro “uma gentil espontaneidade”, ela não é condenada ao pa-pel passivo da pessoa que recebe ajuda, porque “vem do outro sofrendo um dar que não é precisamente mais em-prestado de sua potência de agir, mas sim de sua fraque-za mesmo” (Ricoeur, 1990, p. 222-223): um convide para o terapeuta acolher essa doação do paciente.

Referências

Marin C. & Zaccaï-Reyners N. (2013). Souffrance et douleur. Au-tour de Paul Ricœur. Paris: PUF.

Ricouer, P. (1950). Philosophie de la volonté t. 1 Le Volontaire et l’Involontaire. Paris: Aubier.

Ricouer, P. (1990). Soi-même comme un autre (Collection Points). Paris: Seuil.

Ricoeur P. (1995), Réflexion faite. Autobiographie intellectuel-le. Paris: Esprit.

Annie Barthélémy - Agrégée en Philosophie à l’Université de Lille III, avec DEA de Sciences de l’Education à l’Université de Paris V et Docto-rat de troisième cycle de Sciences de l’Education à l’Université de Paris V. Maître de conférences honoraire de l’Université de Savoie-France. E--mail: [email protected]

Recebido 16.07.2013Aceito 28.10.2013

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Jean-Marie B.

PRinciPeS fondAteURS et ActUAlité d’Une PRAtiqUe PSychothéRAPeUtiqUe à oRientAtion

Phénoméno-StRUctURAle1

Princípios Fundamentais e Atualidade da Prática Psicoterapêutica numa Orientação Fenômeno-Estrutural

Founding Principles and Actuality of a Psychotherapeutic Practice Phenomenon-Structural Guided

Jean-Marie BarthéLéMy

résumé: La préoccupation curative ne se situe au cœur ni de la réflexion ni de la démarche phénoméno-structurale. Est-ce à dire que cette pratique resterait indifférente, totalement insensible et hermétique à la détresse d’autrui jusqu’à rester sourde à sa souf-france, exprimée ou pas, et à son aspiration légitime, explicite ou implicite, d’amélioration de sa condition? Qui pourrait pré-tendre à un tel dédain, d’autant plus émanant d’un courant de pensée et d’action qui valorise par ailleurs une solidarité interhu-maine et se revendique volontiers d’attaches avec des racines et intentions humanistes? C’est parce que son entreprise est plus large, plus ambitieuse par certains côtés mais aussi plus humble et plus réaliste, vu sous un autre angle, que cette approche peut se permettre ce qui pourrait apparaître, à un regard extérieur mal averti, soit comme une prétention extensive soit comme un si-dérant manque d’ambition. Les pages consacrées ouvertement au début des années 1950 à la question psychothérapeutique par le promoteur de cette méthode, Eugène Minkowski, pour rares et limitées qu’elles soient dans son œuvre, n’en comportent pas moins des axes d’orientation d’une rigoureuse et étonnante fraicheur visionnaire, même transposés à notre situation contempo-raine où leur pertinence se fait encore plus pressément ressentir. Dans son sillage, en posant non pas le soin mais la rencontre comme principe de base de l’établissement du contact avec le patient, en pleine conscience de l’attitude initiale qu’elle suppose et requiert dans la durée ainsi que de la nature du recueil des données cliniques qui en découlera, nous montrerons comment des sources d’analyse peuvent émerger qui s’avèrent déboucher, à chaque pôle de la relation, sur des perspectives d’évolution de la personne, pour contribuer à un cheminement signifiant du regard sur autrui et soi-même particulièrement propice à une évolu-tion éprouvée et partagée ensemble. Mots-clés: Méthode phénoméno-structurale; Psychothérapie; Rencontre.

resumo: A preocupação curativa não se situa no centro nem da reflexão nem do comportamento fenômeno-estrutural. Seria dizer que essa prática permaneceria indiferente, totalmente insensível e hermética à angústia do outro até ficar surda a seu sofrimento, expresso ou não, e à sua aspiração legítima, explícita ou implícita, de melhoria de sua condição? Quem poderia querer tal desdém, ainda mais emanante de uma corrente de pensamento e de ação que valoriza por outro lado uma solidariedade inter-humana e reivindica à vontade laços com raízes e intenções humanistas? É por que sua função é mais larga, mais ambiciosa por certos lados, mas também mais humilde e mais realista, visto sob outro ângulo, que essa aproximação pode permitir-se o que poderia parecer a um olhar desprevenido, seja como uma pretensão extensiva seja como uma surpreendente falta de ambição. As páginas abertamente dedicadas no início dos anos 1950 à questão psicoterapêutica pelo promotor desse método, Eugène Minkowski, apesar de raras e limitadas na sua obra, comportam eixos de orientação de um rigoroso e surpreendente frescor visionário, mesmo transpostos à nossa situação contemporânea onde sua pertinência se faz ainda mais sentir. Na sequência, colocando não o cuidado, mas sim, o encontro como princípio de base do estabelecimento do contato com o paciente, em plena consciência da atitude inicial que ele supõe e requer na duração assim como na natureza do recolhimento dos dados clínicos que provirá, mostraremos como fontes de análise podem emergir para desembocar, a cada polo da relação, sobre perspectivas de evolução da pessoa para contribuir a um encaminhamento significante do olhar sobre o outro e sobre si mesmo particularmente propício à uma evolução sentida e compartilhada em conjunto. palavras-chave: Método fenômeno-estrutural; Psicoterapia; Encontro.

Abstract: Neither does the curative concern stand at the core of reflection nor in the method of the phenomeno-structural ap-proach. Should it mean that this practice could remain indifferent, insensitive and totally hermetic to one’s distress to the point of staying deaf to its suffering, expressed or not, and its legitimate aspiration, formulated or implied, to improve one’s condi-tion? Who could pretend to such a disdain, especially originating from a school of thought and action empowering inter-human solidarity and furthermore claiming roots and attachments to humanistic intentions? It is specifically because of its broader proj-ect, more ambitious in many ways but also on the other hand more humble and realistic, that this approach can afford what would appear to an outsider as excessive arrogance or on the contrary, as a stunning lack of ambition. At the beginning of the 1950’s, pag-es explicitly devoted to the psychotherapeutic question by the proponent of this method, Eugène Minkowski, although rare and limited in his work, contain nevertheless guidelines of a rigorous and surprising visionary freshness, even transposed today in a contemporary world, where their relevance are especially required. In his wake, by putting the encounter as the basic principle to

1 Conférence prononcé au I Congresso Brasileiro de Psicologia & Fenomenologia / III Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia, sur le thème «Corpo, Existência e Cognição», Universidade Federal do Paraná, 12 au 14 août 2013.

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Principes Fondateurs et Actualité d une Pratique Psychothérapeutique á Orientation Phénoméno-Structurale

establish the contact with a patient instead of his cure, in full awareness of the initial attitude supposed and required over time, as well as the nature of the collection of its clinical data, we will demonstrate how sources of analysis can emerge, leading at each point of the relationship, to perspectives of an individual transformation, contributing to a significant progress in regarding oth-ers and oneself as particularly suitable when this experience and evolution is shared.Keywords: Method-structural phenomenon; Psychotherapy; Encounter.

«Il y a des exigences ici!» C’est par cette exclama-tion, d’autant plus inattendue qu’elle semblait plutôt en décalage avec le thème ou l’intonation ponctuelle de notre dialogue, que s’exprimait récemment une de nos patientes au fil d’un suivi de plus de 10 années. Une constatation à l’accent évaluatif inédit, sous cette forme ou même celle de quelque remarque approchante qui aurait pu la précéder, aussi bien venant d’elle que d’autres familiers de notre consultation. Une observa-tion laconique, incisive et pénétrante dont je ne suis pas encore vraiment remis, en raison des effets déstabilisa-teurs qu’elle a provoqués en moi comme des résonances qu’elle continue de susciter sur les soubassements dis-crets d’une pratique, de ses présupposés ou retentisse-ments théoriques informulés, dévoilés soudain avec une stupéfiante sagacité depuis une altérité qui n’aurait guère dû avoir à s’en soucier.

Comment cette patiente avait-elle pu parvenir à une telle conclusion alors même que notre parcours commun n’avait jamais été inauguré par une stipulation préalable, ni d’ailleurs ponctué ultérieurement par la mention d’un cadre, de directives, de présupposés, de dispositifs, de contrat ainsi qu’il est tellement devenu à la mode au-jourd’hui dans le monde d’une psychologie malheureu-sement trop souvent réduite à décalquer les plus mau-vaises tendances du monde tout court? Pas plus, quelques impératifs de remise au point ou de rappel à un supposé règlement n’avaient été rendu nécessaires pendant toute la durée de notre longue histoire d’échanges. La seule proposition initiale dont nous pouvons nous souvenir tenait en son invitation régulière, au moins une fois par semaine, à nos entrevues, sans même une quelconque contrepartie financière, courante en la matière: j’ai eu en effet le privilège de m’en dispenser pendant toute une car-rière de praticien rétribué par des instances collectives et non une clientèle, ce qui m’a toujours paru nous allouer, de part et d’autre, une généreuse liberté supplémentaire. D’où pouvait donc venir ce sentiment, si abrupt et pé-remptoire dans son énoncé, s’il ne tenait pas aux condi-tions formulées ou réaffirmées de quelque consigne ou réglementation, sinon d’une attitude à la fois sous-jacente et probablement transparente à mon insu, et des prin-cipes mêmes qui déterminent son orientation essentielle? À vrai dire et entendre juste, ce ne sont pas nos propres exigences qui se trouvaient ainsi exhaussées, reprochées ou opposées comme inaccessibles; quand bien même ce serait le cas, elles ne transparaîtraient alors qu’à travers un halo d’indétermination flottante: «il y a des exigences»,

et non pas «vous avez des exigences», pour s’en tenir à ce qui s’expose vraiment. Inutile donc de vouloir attri-buer la source de cette impression, autant diffuse dans sa réception qu’assurée dans sa formulation, à une série d’injonctions en provenance du seul praticien ou à une observance technique impossible à satisfaire; son siège réside ailleurs, dans des déterminants qui dépassent les deux protagonistes de cette aventure mais dont ils sont pourtant solidairement dépendants car issus de leur com-mune appartenance existentielle. «Ici», comme le précise si bien notre interlocutrice, à travers, plus ample qu’une simple localisation, la suggestion d’une étendue parta-gée et non une attribution de territoire qui me serait ex-clusive; nullement circonscrite au bureau où nous nous trouvons, elle correspond au «chez nous» d’un Mitsein, fort loin de toute revendication de propriété, et non à un «chez moi», qu’il soit sien ou mien. «Ici, ensemble!», pourrait-on insister sur le fond, sans que cela soit vrai-ment indispensable pour une situation où l’allusion s’avère bien plus prometteuse qu’une accentuation qui prendrait le risque stérile et peut-être même nuisible de la surcharger.

C’est en partant de cette circonstance et en m’appuyant sur elle que je voudrais rappeler les fondements et les fon-damentaux d’une approche phénoméno-structurale dans son audace, exceptionnelle dans l’option scientifique, où confluent méthodologie rigoureuse et éthique exigeante du rapprochement avec autrui. Choisir délibérément ces termes généraux sans mentionner d’ambition psychothé-rapeutique, c’est d’abord rappeler que la préoccupation curative ne se situe au cœur ni de sa réflexion ni de sa démarche. D’ailleurs, la formule de notre patiente s’en exclut totalement ou du moins ne semble pas s’y attar-der; est-ce à dire que cette pratique resterait indifférente, totalement insensible et hermétique à la détresse d’autrui jusqu’à rester sourde à sa souffrance, exprimée ou pas, et à son aspiration légitime, explicite ou implicite, d’amé-lioration de sa condition? Qui pourrait prétendre à un tel dédain, d’autant plus émanant d’un courant de pensée et d’action qui valorise par ailleurs une solidarité interhu-maine et se revendique volontiers d’attaches avec des racines et intentions humanistes?

Parce que son entreprise est plus large, plus ambitieuse par certains côtés mais aussi plus humble et plus réaliste, vu sous un autre angle, cette approche peut se permettre ce qui pourrait apparaître, à un regard extérieur mal aver-ti, soit comme une prétention extensive soit comme un sidérant manque d’ambition.

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Jean-Marie B.

Les pages consacrées ouvertement au début des an-nées 1950 à la question psychothérapeutique par le pro-moteur de cette méthode, Eugène Minkowski, pour rares et limitées qu’elles soient dans son œuvre, n’en com-portent pas moins des axes d’orientation d’une rigou-reuse et étonnante fraicheur visionnaire, même transpo-sés à notre situation contemporaine où leur pertinence se fait encore plus pressément ressentir. Dans l’un de ses deux articles dont le titre mentionne explicitement le terme de psychothérapie2, «Psychiatrie, psychothé-rapie, relations avec le malade et le grand public», pa-ru en 1953, on cherchera en vain quelque recette dans le domaine. Après un ensemble de considérations sur les dangers d’une diffusion vers le grand public d’une forme de «connaissance» dans le champ des troubles psychiatriques, Minkowski en vient à l’éparpillement et à la frénésie d’accélération qu’il observe, déjà à son époque, appliquée aux pratiques psychothérapeutiques, avec l’idée dominante que la démultiplication des diffé-rentes techniques empêche de réfléchir sur leur fond et leur valeur d’ensemble. La diffusion intempestive d’un jargon restitué à tout-va par les patients eux-mêmes ne lui paraît pas de meilleur augure.

«Et puis, écrit-il, s’éloigner du couple médecin-ma-lade, de l’interaction qui sur ce plan vient jouer, du contact, quelle qu’en soit la forme, qui va toujours de personne en personne, détermine également une certaine résistance. C’est pourquoi aussi probable-ment nous n’avons pas cherché à nous engager dans cette voie»3.

Par delà la résistance avouée au galvaudage d’une pratique, se profile une critique plus radicale envers une dénaturation de fond qui coïncide avec une attestation de préceptes d’action bien plus capitaux à retenir. Car la qualité du contact avec le patient ne constitue pas seu-lement une sorte de préalable à l’intervention du prati-cien, comme on le dit trop rapidement de nos jours; beau-coup viennent y échouer à trop vouloir forcer à l’établir par le biais d’une accroche transférentielle faussée voire avortée dès l’œuf. À condition de se montrer réceptif à l’éventail de toutes ses modulations actuelles et succes-sives, elle représente, dans l’acception la plus littérale du terme, le noyau d’une forme de connaissance qu’autorise son approche, la dynamique de compréhension à la fois

2 Un autre article très antérieur «La psychothérapie au dispensaire», paru en 1924 en collaboration avec Maurice Mignard, dans Paris Mé-dical 53, 33, p. 137-141, outre le fait qu’il ne permet pas d’attribuer à l’un ou l’autre des deux auteurs chaque contribution, se centre plus sur des données épidémiologiques ou fonctionnelles que méthodo-logiques à proprement parler. Sans être, à certains moments, avare d’options ou de points de vue, il ne reflète d’après leurs auteurs qu’une «impression d’ensemble» sur la consultation d’hygiène mentale.

3 E. Minkowski: «Psychiatrie, psychothérapie, relations avec le malade et le grand public», Annales médico-psychologiques, 1953, 111e année, 2, p. 309-328, republié dans Eugène Minkowski, Écrits cliniques, textes rassemblés par Bernard Granger, Toulouse, Érès, 2002, p. 162-163.

structurale et évolutive d’une personnalité singulière, la corde sensible des modulations de son suivi et une voie d’accès à un ensemble d’améliorations auxquelles de part et autre il est légitime d’aspirer. Pour ce fondateur de la méthode phénoméno-structurale il ne saurait être ques-tion de déléguer à un spécialiste, quelle que soit la qualité de sa compétence reconnue, la prise en charge exclusive de questions ou de résolutions qui relèvent des phéno-mènes fondamentaux de l’existence.

«D’une façon quelque peu paradoxale, il nous est ar-rivé de dire qu’il existe des sujets qui deviennent ‘ma-lades’ à partir du moment où ils franchissent le seuil du cabinet du médecin ou du psychothérapeute. Non, certes, en ce sens que celui-ci les rend malades, mais parce qu’à partir de ce moment ils se donnent un ‘état civil’ et laissent ainsi à d’autres le soin de clarifier la situation à leur place ou du moins de les orienter utilement dans cette voie. Certes, il appartiendra au médecin d’en tenir compte et de diriger son activité en conséquence» (p. 166-167).

Une part déterminante de l’exercice de nos responsa-bilités et de notre éthique conduit à prendre en considé-ration cette sorte de délégation du trouble qui nous est confiée, d’y réajuster en permanence, comme la correc-tion constante d’une trajectoire dans la conduite d’un véhicule, les attentes de nos patients et la justesse de nos interventions que l’on aurait tort de placer sous le sceau exclusif ou même prépondérant de l’interpréta-tion. Très souvent en effet, il nous arrive, lors de consul-tations ponctuelles ou au long cours, de nous trouver devant des patients fort désemparés: récemment ou de-puis longtemps stigmatisés par des diagnostics, parfois aussi hétérogènes que fantaisistes, ou en quête drama-tique soit d’un premier diagnostic dont ils revendiquent, avec contresens de légitimité, un droit de connaître, soit de la détermination définitivement stigmatisante de ce-lui-ci à leur égard, nous réaffirmons constamment, dans nos intentions mais surtout nos positions, que ce ne se-ra jamais vers cette orientation prioritaire ni même cette perspective que nous tendrons, mais vers la compréhen-sion d’une personne avec ses conditions spécifiques de relations et toute la complexité de son contexte relation-nel d’appartenance à la réalité. Lorsque nos patients en souffrance, dans un moment de fléchissement de leur vitalité, viennent à l’attribuer uniquement au cours de la maladie et ainsi au sort auquel elle les condamne sans appel, sans négliger ou sous-estimer les limites ou in-fluences qu’elle impose à l’existence, nous ne réduisons jamais pour autant, ni pour nous-même ni pour eux, le destin d’une personne à celui d’un trouble dont elle est porteuse au point d’assimiler l’une à l’autre. Sur le fond, et pour reprendre l’idée directrice de Minkowski, il reste indispensable de toujours penser la vie, sur laquelle il vient éclore, plus vaste que le trouble, le débordant de

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toute part, et donc de ne pas créer, par le biais diagnos-tique ou psychothérapique, c’est-à-dire par symptôme, dénomination, «spécialiste» ou instance interposée, une identité de substitution ou de repli dans laquelle risquent de s’abîmer ensemble le patient et le praticien, réduits alors à leur fonction puisque devenus démissionnaires de leur personne.

Je me souviens de ce gynécologue, toujours bien mis et porteur en permanence d’un nœud papillon, détenteur de quelques vacations alimentaires dans un Centre Hospita-lier Psychiatrique où se retrouvaient en majorité des per-sonnes issues de milieux populaires sinon défavorisés, et expliquant qu’il se trouvait devant l’impossibilité d’effec-tuer convenablement son travail. Pour le justifier, tout en palpant le ventre d’une de ses patientes de faible niveau mental, il lui demandait une première fois sur un mode interrogatif: «Vous avez mal quand j’appuie ici?» À quoi la jeune femme répondait: «Oui!». Puis revenant au même endroit, il s’adressait à nouveau à elle sur un mode un peu plus affirmatif: «Vous n’avez pas mal quand j’appuie ici?», ce à quoi son interlocutrice lui rétorquait: «Non!». Il se tournait alors vers l’interlocuteur avec dépit pour s’excla-mer: «Vous voyez bien, c’est impossible!» Cette séquence démontre au moins une chose: c’est que le quotient intel-lectuel d’une personne n’est pas en rapport constant avec ses capacités dans ce domaine, ou plus exactement, gar-dons une part d’indulgence, avec ses potentialités à les exercer. Car là où ce médecin s’avoue, dans ce genre de circonstance, mis hors jeu d’une pratique professionnelle, placé devant une soi-disant impuissance à déployer son talent et ses connaissances, nous considérons non seu-lement que nous pourrions commencer à faire valoir les nôtres, ce qui, au delà d’une simple répartition des rôles et des spécialités, pourrait paraître prétentieux, mais que ce «spécialiste» se devrait d’intégrer ces particularités à l’exercice d’un métier dont elles nous semblent partie pre-nante. Car derrière la prétendue conformité aux postu-lats de base de son activité, se dissimule, comme chacun l’aura deviné, un mépris profond à l’égard de la faiblesse d’autrui et de ses particularités, surcompensé par une odieuse infatuation. Libérés d’une première phase d’in-dignation dont on aurait tort de rougir, dans une analyse phénoménologique et une approche plus apaisée, remar-quons ici la vacuité absolue de la place du «prochain» – c’est-à-dire, hors contexte religieux, toutes les formes d’humanités virtuelles et donc à venir par lesquelles je suis sollicité – au cours d’un moment relationnel où l’on ne pourra que se perdre soi-même à vouloir les évacuer. «Plus d’une fois nous avons insisté sur le fait qu’on peut pécher par excès d’adaptation, d’équilibre, de pragma-tisme, de rationalisme, de prosaïsme», écrit Minkowski en forme de conseil sinon de leçon d’expérience virtuelle à notre malheureux gynécologue (p. 168).

Mais quelquefois nous nous vantons avec encore plus d’audace ou de prétention: au lieu de vouloir simplement «bien» faire, nous voudrions faire «mieux». Qui ne se sou-

vient de cette annotation fréquente sur d’anciens carnets scolaire, avec l’abîme de perplexité qui l’accompagnait: «Peut mieux faire!». Comment un enseignant peut-il pen-ser être utile à un jeune élève en lui envoyant ce genre de message? Et pourquoi en serait-il autrement dans la perspective psychothérapeutique, par définition étran-gère à toute vocation pédagogique? Minkowski invite à y réfléchir en ces termes:

«Il y a des domaines où le facteur du ‘mieux’ ne se pose guère. C’est déjà bien ainsi. La quantité, la mesure, ne sont guère non plus à leur place ici. À côté de nos ac-tivités, limitées par essence, il y a la vie qui s’affirme et qui, par l’intermédiaire de certains esprits, produit; comme de l’autre côté elle cherche par ses propres forces à combattre le mal. Il ne faut pas vouloir à tout prix faire mieux qu’elle ne fait. Où est l’échec et où est le succès? Dans nos entreprises psychothérapeu-tiques, il est sage de ne pas vouloir aller trop loin: on fait fausse route si l’on ne tient pas compte de ce que la vie, dans sa complexité, mais aussi dans sa richesse et dans ses ressources, avec ses hauts et ses bas, avec ses écueils, sait offrir» (p. 165-66).

Ici comme ailleurs la sagesse de certains proverbes peut s’appliquer: «Le mieux est l’ennemi du bien», dit-on chez nous.

«Vous auriez pu aller plus loin», répétait sans arrêt un de mes collègues en manière de critique lancinante à une étudiante qui tentait tant bien que mal de soutenir devant lui une note de recherche où elle avait essayé de donner le meilleur d’elle-même. Je me suis entendu répondre à ce collègue, sans doute mais pas seulement pour sor-tir cette malheureuse de son mauvais sort qui la laissait muette: «Pourquoi voudrais-tu toujours aller plus loin alors qu’on n’a jamais été aussi près!» La formule, certes un peu excessive, ne se voulait pourtant pas vaniteuse par étudiante interposée dont j’avais dirigé la recherche; elle visait seulement à rappeler qu’à force d’imposer une mise à distance du réel en prétendant ainsi en mieux rendre compte on finit par perdre toute capacité de nous relier à lui de manière concrète et aussi de dire effectivement ce qu’il est, dans l’indigence où nous nous trouvons placés de ne pouvoir le saisir.

En bon défenseur du «monde des métaphores», selon lui bien mieux propice, adapté et transposable au registre psychosomatique – sans l’épuiser pour autant – que le recours à une explication symbolique plaquée de l’exté-rieur, Minkowski promeut une démarche à la fois plus simple et plus concrète, ce qui ne la dévalue nullement.

«Ce qui nous importe de montrer avant tout, c’est que des relations de ce genre existent et qu’elles peuvent entrer en ligne de compte, sans que nécessairement il soit fait appel à l’inconscient et aux reliquats de trau-matismes infantiles de nature conflictuelle et libidi-

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nale. Elles sont plus ‘simples’ et plus directes. Et qu’on le veuille ou non, le besoin de simplicité et de naturel dirige toujours notre pensée et notre effort. Et «simple» n’est point évidemment synonyme de simpliste; il est souvent ce qu’il y a de plus difficile à trouver» (p. 173).

Combien de fois n’ai-je pas vu de stagiaires psycho-logues inaugurer leur participation à ma consultation en adoptant une posture outrée, faussement réflexive et théâtralisée jusqu’au grotesque, qui laissait les patients médusés, les faisaient fuir, ou adopter une position de re-jet définitif à leur égard, tandis qu’à l’inverse nos jeunes apprentis restaient interloqués de ne trouver, dans ce mi-lieu relationnel d’une écoute authentique, que des bribes d’existence prosaïque et une attitude aussi banale d’appa-rence pour les accueillir.

Comprenons bien à ce propos que la relation qualifiée d’«authentique» n’est certainement pas à entendre comme un idéal, revêtant une composante exceptionnelle, avec tout ce que cela pourrait sous-entendre d’inaccessible. Certes réfractaire à une application technique convenue ou conventionnelle, elle s’oppose à la facticité, à la faus-seté, à l’artificialité, à un simple ajustement mécanique au trouble ou à la difficulté rencontrée, mais se montre aussi rétive à toute forme d’entremise purement rituelle ou fonctionnelle, voire même à l’activation ou au seul maintien d’un rôle en rapport caricatural avec l’exercice d’une profession. Loin d’exercer une quelconque transcen-dance vis-à-vis d’une relation courante, elle se présente au contraire comme la manifestation de son «ordinaire», avec l’apparente banalité qui peut en ressortir. Il est frap-pant de vérifier chez un Minkowski combien l’analyse des réponses à des questions d’allure anodine, terre à terre, permet d’accéder à une compréhension en profondeur, inégalée jusqu’alors, des phénomènes psychiques et psy-chopathologiques en jeu.

Confronté à ces «forces normalement déséquilibrantes et désadaptantes» à ces «naturelles faiblesses humaines», ainsi qu’il les appelle en termes volontairement non pathonomiques, Minkowki s’applique à trouver des ré-ponses qui incluent les caractéristiques de cette nature, de cette vie dont elles procèdent «naturellement». Et l’attitude qu’il recommande est pourvoyeuse aussi de ce même «naturel» qu’il convient de cultiver à la base de la rencontre au lieu de techniques, de procédés ou de pro-cédures raisonnées, rationalisées, linéairement et froide-ment déroulées. Alors seulement, la réflexion peut s’élar-gir et trouver sa véritable ampleur, où se combinent et s’entrelacent théorie et pratique, ancrées dans leur unique limon d’existence:

«Le soin de laisser au patient la possibilité de faire seul des progrès en dehors du traitement est loin, à nos yeux, de constituer un désavantage. Pourquoi en serait-il autrement? La technique y perdra peut-être en précision; mais c’est d’une «technicité» excessive

qu’il y a lieu de se méfier; l’imprécision dans ce do-maine n’est souvent rien d’autre que l’expression de l’irrationnelle compréhension humaine. Pour le dire encore une fois, il y a lieu de former non des techni-ciens, mais des psychiatres» (p. 171).

La formule s’appliquera évidemment aussi bien à cette profession qu’à celle de psychologue ainsi qu’à beaucoup d’autres où la part relationnelle se déploie au cœur de l’activité pas seulement thérapeutique mais compréhen-sive d’une situation humaine.

Il peut paraître étrange de revendiquer l’imprécision comme principe méthodologique dans un siècle où pré-cision et rigueur se sont érigées en vertus totalisantes si-non totalitaires, encore plus de nos jours qu’à l’époque où cet authentique psychiatre conduit son idée. Cepen-dant il nous paraît indispensable d’entendre et de conce-voir ce flottement comme une «approximation», c’est à dire une forme d’approche, de rapprochement avec au-trui, non pas sur un mode direct et rigoureux mais par petites touches adaptatives successives. Cela ne formera jamais des praticiens adeptes du flou, de l’inconstance, de l’inconséquence, de l’indétermination, de l’irrésolu-tion, sans aucun point commun avec cet objectif; à bien des égards ils s’en éloignent même en fonction d’une té-nacité, constance et cohérence d’intention sous-jacente à leur moindre visée d’intervention. Récemment encore j’en faisais l’expérience, qui me servira de court exemple, lors d’un banal échange téléphonique avec une de mes patientes: «Bonjour, Madame Martin, comment allez-vous?», ainsi se présentait mon amorce à son appel que chacun s’accordera à reconnaître comme ne relevant pas des ouvertures les plus inventives. «Je vais bien; je suis en train de prendre un bain de soleil dans une chaise longue sur ma terrasse...», me dit-elle joyeusement. Il serait à partir de maintenant bien présomptueux de prétendre anticiper la suite de notre dialogue immédiat que je restitue in extenso: «Et vous êtes bien sûre de mé-riter cela?», telle se présente mon interpellation suivante, beaucoup plus surprenante et brutale que la première, à laquelle notre patiente répond instantanément «Ah, je vous reconnais!!!» Privé de son contexte, cet échange du tac au tac demeure incompréhensible. Il faut commencer par le ton d’énonciation de ces deux courtes phrases, amu-sé et facétieux à chaque extrémité du contact à distance qui nous relie. Ajoutons encore que, depuis trois ans que nous nous rencontrons, un sentiment de culpabilité venu de loin, et donc trop souvent extensible à des situations où il n’aurait aucune raison légitime de s’appliquer, a fait l’objet de multiples conversations, jusqu’à devenir entre nous un sujet livré à l’ironie ou la plaisanterie, ce que je ne manque aucune occasion de réactiver, ne serait-ce que pour nous assurer et rassurer, l’un et l’autre, de son évo-lution. C’est à l’évidence la raison pour laquelle, à cause de cette insistance plaisante, elle «me reconnaît». Elle me «reconnaît» bien sûr à travers cette manière de revenir à

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l’essentiel sous le prétexte de la plus commune des situa-tions, à travers cette façon de le souligner à un moment où elle s’y attend le moins, à travers le style décalé, enjoué et blagueur de mon intervention. Mais ce n’est pas unique-ment moi qu’elle «reconnaît» dans son propos mais elle-même dans une convergence souterraine pas seulement entre nos deux personnes mais surtout nos deux person-nalités, en recherche de jonction l’une avec l’autre, qui colorent ce bref échange. C’est d’ailleurs la raison pour laquelle, alors qu’elle en vient aussitôt après à l’objet de son appel, la confirmation de notre prochain rendez-vous, je la relance sous forme d’une identification renversée un peu ridicule mais amusante en ce qu’elle continue à jouer sur ses doutes d’elle-même: «Vous êtes bien sûre que je mérite de vous rencontrer?» Cette courte séquence gagne-rait à être plus longuement analysée, en tenant compte de l’histoire de cette patiente et de ses troubles; retenons-en la substance, à savoir la recherche commune d’une posi-tion soutenable et pourquoi pas agréable à l’égard de soi-même et d’autrui, en jouant de chaque côté sur le vernier de l’ajustement identificatoire. Le plaidoyer de Minkowski pour une forme d’«imprécision» nous semble suivre cette intention, celle d’une «appropriation saine», c’est-à-dire non possessive, non dominatrice d’autrui, mais justement détachée de toute velléité d’ascendant sur lui dans une familiarisation avec son monde, son «apprivoisement», une manière de l’articuler à une partie de soi-même. Le mode allusif, porté par l’ambiguïté, la suggestion, au sens atténué et non dogmatique du terme, c’est-à-dire par la métaphore, comme l’indique Minkowski, semble en parfaite correspondance avec une mouvance vitale dont il relève et qu’il respecte. Cette figure d’énoncia-tion s’accorde d’ailleurs et se cale, dans sa cadence cette fois, souligne encore ce grand psychopathologue, avec la promenade, avare d’affinité avec l’empressement ou la précipitation mais riche de voisinages harmonieux avec l’errance, la flânerie, le tâtonnement: «‘la marche à pied’ nous donne le rythme propre à notre vie humaine. Et la maladie a également son rythme à elle. Elle s’aligne sur le piéton» car «la maladie est un tout vivant, tout comme l’organisme qu’elle affecte» (p. 161).

Un autre exemple, où la nature réclame ses droits et nos devoirs à son égard sous forme humoristique, finira de nous en convaincre. Alors que, quelques années en arrière, je cherchais pour une de mes patientes, parve-nue avec inquiétude au seuil d’un trentième printemps qu’elle redoutait terriblement de franchir seule, un pré-sent symbolique de mon soutien, je choisis le signe, à vo-cation apaisante, d’une vasque de petites jonquilles bien déterminées à casser notre hiver, dont seule une fleur était épanouie tandis que les autres restaient en promesse loin-taines d’éclosion. Benoîtement satisfait de cet emblème d’émergence un peu trop téléguidé vers elle, je me rends à la consultation où je rencontre d’abord quelques-uns de ses frères de détresse. Puis vient le temps de la ren-contre attendue, la sortie du cadeau de son modeste écrin

et, tellement plus belle que sa préparation, la divine sur-prise, asymétrique pour elle et moi, de la découverte: encouragées par la surchauffe du confinement hospita-lier, les inflorescences sont maintenant deux à se dispu-ter la parure. «Je comprends», me dit-elle, en débordant ma symbolique initiale trop préparée et restrictive, et en m’en prêtant sans délai une autre bien mieux répartie, «la plus grande, c’est vous, et la plus petite, c’est moi». Je ne suis pas près ni en mesure d’épuiser les enseignements d’une petite histoire si émouvante et riche d’harmoniques mais, comme le temps nous presse, je me contenterai de n’en retenir qu’une brève et provisoire «morale»: de la vie même naîtra la création, pourvu que nous lui préservions la chance de nous y surprendre.

L’orientation thérapeutique ne représente donc qu’un prolongement d’une démarche phénoméno-structurale à ambition prioritairement et plus largement compréhen-sive. Sans être un de ses objectifs, elle s’intègre sponta-nément au processus d’approche centré sur la spécificité de la personne. Ainsi, en posant non pas le soin mais la rencontre comme principe de base de l’établissement du contact avec le patient, en pleine conscience de l’attitude initiale qu’elle suppose et requiert dans la durée ainsi que de la nature du recueil des données cliniques qui en dé-coulera, nous entrevoyons comment des sources d’analyse peuvent émerger qui s’avèrent déboucher, à chaque pôle de la relation, sur des perspectives d’évolution de la per-sonne, pour contribuer à un cheminement signifiant du regard sur autrui et soi-même particulièrement propice à une évolution éprouvée et partagée ensemble. Dans cette mesure, le praticien n’est qu’un intermédiaire, un média-teur de cette incitation envers le patient qui le mène à une envie de conquête du monde. Son action vise à restituer à la personne non seulement son «pouvoir être» selon la formule de Binswanger mais surtout, aurions-nous envie de dire, son «pouvoir faire» et, si ce n’est pas un pléo-nasme, son «pouvoir faire librement». Ceci ne saurait donc se réduire à une impression ou un sentiment mais à une capacité et surtout une envie de réalisation, c’est-à-dire de s’approprier un réel pas seulement de réceptivité ou d’intériorisation mais d’entreprise, de création, d’accom-plissement de soi en acte donc en sens et en historicité singulière toujours communautaire. En ce sens, la psycho-thérapie apparaît comme une démarche exigeante ayant pour objectif de rechercher avec le soutien de l’autre les voies de sa réalisation personnelle.

Entrer en relation avec autrui, établir un contact avec lui, ce n’est pas d’abord entrer dans un monde qui nous serait étranger dans la mesure où il resterait «son» monde; plutôt accepter d’y cohabiter et surtout le vouloir afin de s’ouvrir à une compréhension mutuelle de ce qui nous dé-termine et que nous contribuons à engendrer et modifier en prenant appui sur nos proches. L’effort compréhensif promeut à la fois une attitude et une démarche qui per-met au patient de s’appréhender lui-même par l’entremise d’une image reflétée chez son semblable. Une sollicitation

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persévérante le conduit à aborder son existence comme historicisée, vectorisée par l’entremise du praticien qui semble y accorder plus de valeur que d’autres – y compris lui-même – ne le faisaient auparavant. Il s’inscrit ainsi, progressivement, dans un sens et une appropriation sen-sible de sa destinée unique, unitaire et singulière, en lien d’interdépendance, de réciprocité et de solidarité avec une conscience homologue emboîtée à la sienne.

Par la même voie à double entrée, le clinicien s’offre les moyens d’accéder à l’organisation structurale d’une personne parfois complexifiée par les mécanismes psy-chopathologiques d’un trouble. Il enrichit sa personne et ses propres capacités évolutives des mille facettes ré-fractées de la relation à «son» patient dans une apparte-nance qui n’a rien d’une possessivité mais restitue une affinité, une sympathie qui met à l’épreuve ses capaci-tés d’intégration et de transformation pour un enrichis-sement de ses singularités. Les multiples irisations de l’autre en soi dépassent chacun des partenaires de cette entente, elles démultiplient sa propre image, consoli-dent son unité et sa permanente extension grâce à la diffraction concentrée de toutes celles d’autrui. Plus en profondeur, elles sensibilisent aux principes fondamen-taux et essentiels d’une condition humaine communé-ment partagée dans la diversité de ses déclinaisons et combinaisons infinies.

Récemment, en fin de rencontre avec une patiente, qui s’était soustraite à deux rendez-vous précédents ex-cusés par divers motifs de pacotille mais dont nous ve-nions de découvrir ensemble qu’ils reposaient prioritai-rement sur un intense sentiment d’indignité, je manifes-tais le plaisir de la retrouver tout en saluant son courage à se présenter à nouveau devant moi, ou plutôt devant nous, car un stagiaire pour l’occasion n’en perdait pas une miette. Ce à quoi elle me répond aussitôt, en nous associant intensément et tour à tour d’un regard embué de gratitude, allusive à sa potentielle nouvelle absence du jour qu’elle avait réussi à surmonter: «Je me suis dit que je ne pouvais pas vous faire cela!». Tout en lui fai-sant comprendre que je ne restais pas insensible à l’évo-cation d’une reconnaissance qu’elle avait la faiblesse de nous accorder, je lui ai répondu, en bonne manière de réciprocité pour clôturer la rencontre du jour et facili-ter peut-être les suivantes autour des méandres com-plexes de ce merveilleux transfert pourvoyeur parfois de quelques petits miracles, par la simple inversion du «vous» d’une adresse sur laquelle j’insistais: «Vous ne pouviez pas VOUS faire cela!». La semaine suivante, alors qu’elle s’affalait précédemment en tenue négli-gée, elle nous arrivait toute pomponnée avec la volonté affichée de se montrer présentable en nous expliquant qu’elle avait semé sur son balcon des graines de basilic. Car dans notre détresse comme dans nos joies, on ne peut compter que sur l’autre, si faible sans doute, mais messager de ce minimum de réconfort et de soutien pour encourager au risque d’une suite à vivre.

Références

Minkowski, E. (1953). Psychiatrie, psychothérapie, relations avec le malade et le grand public, Annales médico-psycho-logiques, 2, p. 309-328

Minkowski, E. (2002). Écrits cliniques, Toulouse: Érès.

Jean-Marie Barthélémy - Professeur émérite de Psychopathologie et Psychologie Clinique de l’Université de Savoie, Chambéry (France) et Président de la Société Internationale de Psychopathologie Phé-noméno-structurale. Adresse Institutionelle: 237, Chemin des Bol-lons. Les Hauts du Lac. 73370, Le Bourget du Lac. E-mail: jean-marie. [email protected]

Recebido em 25.06.2013Aceito em 22.09.2013

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Princípios Fundadores e Atualidade de uma Prática Psicoterapêutica de Orientação Fenômeno-Estrutural

PRincíPioS fUndAdoReS e AtUAlidAde de UmA PRáticA PSicoteRAPêUticA de oRientAção

fenômeno-eStRUtURAl1

Principes Fondateurs et Actualité d’une Pratique Psychothérapeutique á Orientation Phénoméno-Structurale

Founding Principles and Actuality of a Psychotherapeutic Practice Phenomenon-Structural Guided

Jean-Marie BarthéLéMy

resumo: A preocupação curativa não se situa no centro nem da reflexão nem do comportamento fenômeno-estrutural. Seria dizer que essa prática permaneceria indiferente, totalmente insensível e hermética à angústia do outro até ficar surda a seu sofrimento, expresso ou não, e à sua aspiração legítima, explícita ou implícita, de melhoria de sua condição? Quem poderia querer tal des-dém, ainda mais emanante de uma corrente de pensamento e de ação que valoriza por outro lado uma solidariedade inter-huma-na e reivindica à vontade laços com raízes e intenções humanistas? É por que sua função é mais larga, mais ambiciosa por certos lados, mas também mais humilde e mais realista, visto sob outro ângulo, que essa aproximação pode permitir-se o que poderia parecer a um olhar desprevenido, seja como uma pretensão extensiva seja como uma surpreendente falta de ambição. As páginas abertamente dedicadas no início dos anos 1950 à questão psicoterapêutica pelo promotor desse método, Eugène Minkowski, ape-sar de raras e limitadas na sua obra, comportam eixos de orientação de um rigoroso e surpreendente frescor visionário, mesmo transpostos à nossa situação contemporânea onde sua pertinência se faz ainda mais sentir. Na sequência, colocando não o cuida-do, mas sim, o encontro como princípio de base do estabelecimento do contato com o paciente, em plena consciência da atitude inicial que ele supõe e requer na duração assim como na natureza do recolhimento dos dados clínicos que provirá, mostraremos como fontes de análise podem emergir para desembocar, a cada polo da relação, sobre perspectivas de evolução da pessoa para contribuir a um encaminhamento significante do olhar sobre o outro e sobre si mesmo particularmente propício à uma evolução sentida e compartilhada em conjunto. palavras-chave: Método fenômeno-estrutural; Psicoterapia; Encontro.

résumé: La préoccupation curative ne se situe au cœur ni de la réflexion ni de la démarche phénoméno-structurale. Est-ce à dire que cette pratique resterait indifférente, totalement insensible et hermétique à la détresse d’autrui jusqu’à rester sourde à sa souf-france, exprimée ou pas, et à son aspiration légitime, explicite ou implicite, d’amélioration de sa condition? Qui pourrait pré-tendre à un tel dédain, d’autant plus émanant d’un courant de pensée et d’action qui valorise par ailleurs une solidarité interhu-maine et se revendique volontiers d’attaches avec des racines et intentions humanistes? C’est parce que son entreprise est plus large, plus ambitieuse par certains côtés mais aussi plus humble et plus réaliste, vu sous un autre angle, que cette approche peut se permettre ce qui pourrait apparaître, à un regard extérieur mal averti, soit comme une prétention extensive soit comme un si-dérant manque d’ambition. Les pages consacrées ouvertement au début des années 1950 à la question psychothérapeutique par le promoteur de cette méthode, Eugène Minkowski, pour rares et limitées qu’elles soient dans son œuvre, n’en comportent pas moins des axes d’orientation d’une rigoureuse et étonnante fraicheur visionnaire, même transposés à notre situation contempo-raine où leur pertinence se fait encore plus pressément ressentir. Dans son sillage, en posant non pas le soin mais la rencontre comme principe de base de l’établissement du contact avec le patient, en pleine conscience de l’attitude initiale qu’elle suppose et requiert dans la durée ainsi que de la nature du recueil des données cliniques qui en découlera, nous montrerons comment des sources d’analyse peuvent émerger qui s’avèrent déboucher, à chaque pôle de la relation, sur des perspectives d’évolution de la personne, pour contribuer à un cheminement signifiant du regard sur autrui et soi-même particulièrement propice à une évolu-tion éprouvée et partagée ensemble. Mots-clés: Méthode phénoméno-structurale; Psychothérapie; Rencontre.

Abstract: Neither does the curative concern stand at the core of reflection nor in the method of the phenomeno-structural ap-proach. Should it mean that this practice could remain indifferent, insensitive and totally hermetic to one’s distress to the point of staying deaf to its suffering, expressed or not, and its legitimate aspiration, formulated or implied, to improve one’s condi-tion? Who could pretend to such a disdain, especially originating from a school of thought and action empowering inter-human solidarity and furthermore claiming roots and attachments to humanistic intentions? It is specifically because of its broader proj-ect, more ambitious in many ways but also on the other hand more humble and realistic, that this approach can afford what would appear to an outsider as excessive arrogance or on the contrary, as a stunning lack of ambition. At the beginning of the 1950’s, pag-es explicitly devoted to the psychotherapeutic question by the proponent of this method, Eugène Minkowski, although rare and limited in his work, contain nevertheless guidelines of a rigorous and surprising visionary freshness, even transposed today in a

1 Conferência no I Congresso Brasileiro de Psicologia & Fenomenologia / III Congresso Sul Brasileiro de Fenomenologia, sobre o tema “Corpo, Existência e Cognição”, Universidade Federal do Paraná, 12 até 14 de agosto de 2013. Tradução: Isabelle Gayon ([email protected]). Re-visão Técnica: Andrés Eduardo Aguirre Antúnez (USP / GT Psicologia e Fenomenologia - ANPEPP).

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contemporary world, where their relevance are especially required. In his wake, by putting the encounter as the basic principle to establish the contact with a patient instead of his cure, in full awareness of the initial attitude supposed and required over time, as well as the nature of the collection of its clinical data, we will demonstrate how sources of analysis can emerge, leading at each point of the relationship, to perspectives of an individual transformation, contributing to a significant progress in regarding oth-ers and oneself as particularly suitable when this experience and evolution is shared.Keywords: Method-structural phenomenon; Psychotherapy; Encounter.

“Há exigências aqui!” É com essa exclamação, ainda mais inesperada que ela parecia afastada do tema ou da entonação pontual de nosso diálogo, que expressou recen-temente uma de nossas pacientes após um acompanha-mento de mais de dez anos. Uma constatação que tinha um tom avaliativo inédito sob essa forma ou mesmo sob a forma de algum comentário parecido que poderia ter precedido, vindo dela ou de outros habituados de nossa consulta. Uma observação lacônica, incisiva e penetran-te, da qual ainda não me recuperei totalmente por causa dos efeitos desestabilizadores que ela provocou em mim e que são como ressonâncias que ela continua suscitando sobre as bases discretas de uma prática, de seus pressu-postos ou das repercussões teóricas não ditas, reveladas de repente com uma surpreendente sagacidade a partir de uma alteridade que não teria muito que se preocupar.

Como essa paciente pudera chegar a tal conclusão, pois nosso percurso comum nunca foi inaugurado por uma estipulação prévia, nem, aliás, pontuado ulterior-mente pela menção de um quadro, de diretivas, de pres-supostos, de dispositivos, de contrato, como virou moda hoje no mundo de uma psicologia infelizmente muitas vezes obrigada a copiar as piores tendências do mundo em geral. E nenhuma obrigação de reajustar ou lembrar um suposto regulamento tinha sido necessária durante toda a duração de nossa longa história de trocas. A única proposta inicial da qual podemos lembrar era o convite regular, pelo menos uma vez por semana, às nossas en-trevistas, sem mesmo qualquer contrapartida financeira, comum em nosso meio: eu tive de fato o privilégio de não cobrar durante toda minha carreira de clínico retribuído por instâncias coletivas e não por uma clientela, o que sempre me pareceu oferecer a ambas as partes uma gene-rosa liberdade suplementar. De onde podia vir então esse sentimento, tão abrupto e peremptório na sua formula-ção, se ele não tivesse nenhuma ligação com as condições formuladas ou reafirmadas de qualquer ordem ou regu-lamentação, a não ser de uma atitude ao mesmo tempo subjacente e provavelmente invisível a mim e dos princí-pios mesmos que determinam sua orientação essencial? Para dizer a verdade e compreender bem, não eram nos-sas próprias exigências que se achavam assim relevadas, desaprovadas ou opostas como se fossem inacessíveis; e se fosse o caso, elas só transpareceriam então através de um elo de indeterminação flutuante: “há exigências”, e não “você tem exigências”, para se manter no que se ex-põe realmente. Inútil então querer atribuir a origem dessa

impressão, tão difusa na sua recepção quanto segura na sua formulação, a uma séria de injunções vindas somen-te do clínico ou a uma submissão técnica impossível a satisfazer; seu fundamento reside em outra parte, nos de-terminantes que ultrapassam os dois protagonistas dessa aventura da qual eles são porém solidariamente depen-dentes porque saídos de uma comum adesão existencial. “Aqui”, como o precisa tão bem nossa interlocutora, atra-vés, mais ampla que uma simples localização, a suges-tão de uma superfície dividida e não de uma atribuição de território que me seria exclusiva; nulamente limitada ao consultório onde nós estamos, ela corresponde ao “na nossa casa” de um Mitsein, muito longe de toda reinvin-dicação de propriedade, e não a um “na minha casa”, que seja sua (a dela) ou minha. “Aqui, juntos!”, poderíamos insistir sobre o fundo, sem que isso seja realmente indis-pensável a uma situação onde a alusão se mostra bem mais promissora que uma acentuação que arriscaria ser estéril e talvez mesmo nociva, sobrecarregando-a.

É partindo dessa circunstância e apoiando-me nela que eu gostaria de lembrar os fundamentos e os funda-mentais de uma aproximação fenômeno-estrutural na sua audácia, excepcional na opção científica, onde con-fluem metodologia rigorosa e ética exigente da reaproxi-mação com o outro. Escolher deliberadamente esses ter-mos gerais sem mencionar ambição psicoterapêutica, é em primeiro lugar lembrar que a preocupação curativa não se situa no coração nem da sua reflexão nem da sua abordagem. Aliás, a fórmula de nossa paciente se exclui totalmente dela ou pelo menos não parece permanecer nela; isso quer dizer que essa prática ficaria indiferente, totalmente insensível e hermética ao desespero do ou-tro até ficar surdo ao seu sofrimento, expresso ou não, e à sua aspiração legítima, explícita ou implícita, de me-lhoria da sua condição? Quem poderia pretender a tal desdém, sobretudo imanente de uma corrente de pensa-mento e de ação que valoriza também uma solidariedade inter-humana e que se reivindica a vontade de ligações com raízes e intenções humanistas?

É porque sua função é mais larga, mais ambiciosa por certos lados, mas também mais humilde e mais realista, visto sob outro ângulo, que essa aproximação pode se permitir o que poderia aparecer, a um olhar exterior des-prevenido, seja como uma pretensão extensiva seja como uma estonteante falta de ambição.

As páginas dedicadas abertamente no início dos anos 50 à questão psicoterapêutica pelo promotor desse mé-

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todo, Eugène Minkowski, por raras e limitadas que elas sejam na sua obra, compartam também eixos de orien-tação de um rigoroso e surpreendente frescor visioná-rio, mesmo transpostos a nossa situação contemporânea onde sua pertinência se faz ainda mais sentir. Em um de seus raros artigos cujo título menciona explicitamente o termo psicoterapia12, “Psiquiatria, psicoterapia, relações com o doente e o grande público”, publicado em 1953, procuramos em vão alguma receita nesse domínio. Após um conjunto de considerações sobre os perigos de uma difusão em direção ao grande público de uma forma de “conhecimento” no campo dos transtornos psiquiátricos, Minkowski chega a uma dispersão e à frenesia de acele-ração que ele observa, já na sua época, aplicada às práti-cas psicoterapêuticas, com a ideia dominante que a des--multiplicação das diferentes técnicas impede de refletir sobre seu fundo e sobre seu valor de conjunto. A difusão intempestiva de um jargão restituído sem controle pelos pacientes eles mesmos não lhe parece um bom presságio. “E também, escreve ele, distanciar-se do casal médico-do-ente, da interação que vem atuar nesse plano, do contato, qualquer que seja sua forma, que vai sempre de pessoa em pessoa, determina também certa resistência. É prova-velmente por isso também que nós não procuramos nos engajar nessa via”3. Por cima da resistência confessada de desperdiço de uma prática se esboça uma crítica mais radical frente a uma desnaturação de fundo que coinci-de com uma atestação de preceitos de ação bem mais im-portantes a reter. Por que a qualidade do contato com o paciente não constitui somente um tipo de preâmbulo à intervenção do clínico, como nós dizemos ligeiramente demais hoje em dia; muitos acabam encalhando, ao que-rer a todo custo estabelecê-lo pelo meio de uma adesão transferencial falsificada, até abortada desde o início. Ao se mostrar receptivo ao leque de todas suas modulações atuais e sucessivas, ela representa, na aceitação mais li-teral do termo, o núcleo de uma forma de conhecimento que sua aproximação autoriza, a dinâmica de compreen-

2 Un autre article très antérieur “La psychothérapie au dispensai-re”, paru en 1924 en collaboration avec Maurice Mignard, dans Paris Médical 53, 33, p. 137-141, outre le fait qu’il ne permet pas d’attribuer à l’un ou l’autre des deux auteurs chaque contribution, se centre plus sur des données épidémiologiques ou fonctionnel-les que méthodologiques à proprement parler. Sans être, à certains moments, avare d’options ou de points de vue, il ne reflète d’après leurs auteurs qu’une “impression d’ensemble” sur la consultation d’hygiène mentale. Nous avons aussi trouvé mention d’un autre article daté de 1951 intitulé “Diagnostic psychiatrique et psycho-thérapie”, publié dans les Annales médico-psychologiques, 109, I, p. 336-342. Le lecteur trouvera enfin quelques pages consacrées à ces questions dans un chapitre sur “la notion de contact en prati-que” du Traité de psychopathologie, P.U.F. 1966, p. 560-571, où il est écrit cette pertinente remarque: “Nous n’essaierons pas de don-ner une définition de la psychothérapie. Elle suit pas à pas notre ac-tivité, de sorte qu’il n’est guère possible de dire où elle commence et où elle prend fin” (p. 561).

3 E. Minkowski: “Psychiatrie, psychothérapie, relations avec le ma-lade et le grand public”, Annales médico-psychologiques, 1953, 2, p. 309-328, republié dans Eugène Minkowski, Écrits cliniques, textes rassemblés par Bernard Granger, Toulouse, Érès, 2002, p. 162-163.

são ao mesmo tempo estrutural e evolutiva de uma per-sonalidade singular, a corda sensível das modulações de seu acompanhamento e uma via de acesso para um con-junto de melhorias às quais, de ambas as partes, é legíti-mo pretender. Para esse fundador do método fenômeno- estrutural, é impossível delegar a um especialista, qual-quer que seja a qualidade de sua competência reconheci-da, a incumbência exclusiva de questões ou de resoluções que relevam dos fenômenos fundamentais da existência. “De uma maneira um pouco paradoxal, nos aconteceu di-zer que existem pessoas que se tornam ‘doentes’ a partir do momento que elas entram no consultório do médico ou do psicoterapeuta. Certamente, não no sentido que eles os tornam doentes, mas porque a partir desse momento elas se dão um ‘estado civil’ e deixam assim aos outros a tarefa de esclarecer a situação no lugar dela ou pelo menos de orienta-las utilmente nessa direção. De fato, pertencerá ao médico levar em conta esse fato e orientar sua ativi-dade em consequência” (Minkowski, 1966, p. 166-167). Uma parte determinante do exercício de nossas respon-sabilidades e de nossa ética conduz a levar em conside-ração esse tipo de delegação do transtorno que nos é con-fiado, de reajustar permanentemente, como a correção constante de uma trajetória no manejo de um veículo, as esperas de nossos pacientes e a justeza de nossas inter-venções que não poderíamos colocar sob o selo exclusivo ou mesmo preponderante da interpretação. Muitas vezes, de fato, durante consultas pontuais ou duradoras, acon-tece de nos encontrarmos diante de pacientes fortemen-te desamparados: recentemente ou desde muito tempo estigmatizados por diagnósticos, às vezes tão heterogê-neos quanto fantasiosos, ou em busca dramática seja de um primeiro diagnóstico onde eles reivindicam com con-trassenso de legitimidade, um direito de conhecer, seja da determinação definitivamente estigmatizadora do clí-nico em relação a eles, nós reafirmamos constantemen-te, em nossas intenções e sobretudo em nossas posições, que não será jamais em direção a essa orientação priori-tária nem mesmo a essa perspectiva que nós iremos, mas sim em direção à compreensão de uma pessoa com suas condições específicas de relações e com toda a comple-xidade do seu contexto relacional de pertencimento à re-alidade. Quando nossos pacientes, sofrendo, em um mo-mento de diminuição de vitalidade, passam à atribui-la unicamente ao curso da doença e assim ao destino ao qual ela os condena irrecorrivelmente, sem negligenciar ou subestimar os limites ou influências que ela impõe à existência, nós não reduzimos jamais por isso, nem para nós mesmos nem para eles, o destino de uma pessoa ao destino de um transtorno do qual ela é portadora a ponto de assimilar um ao outro. Sobre o fundo, e para retomar a idéia diretriz de Minkowski, permanece indispensável sempre pensar a vida, sobre a qual ele vem eclodir, mais vasto que o transtorno, transbordando-o de toda parte, e então não criar, pelo meio diagnóstico ou psicoterápico, isto é por sintoma, denominação, “especialista” ou ins-

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tância interposta, uma identidade de substituição ou de retraimento na qual o paciente e o clinico correm o risco de se afundar juntos, reduzidos então a suas funções por-que se tornaram demissionários deles mesmos.

Eu me lembro desse ginecologista, sempre bem vestido e sempre com uma gravata borboleta, detentor de alguns honorários alimentares em um Centro Hospitalar Psiqui-átrico onde se encontravam pessoas na maioria vindas de meios populares senão desfavoráveis, e explicando que ele se encontrava impossibilitado de fazer bem o seu traba-lho. Para justificar esse fato, apalpando a barriga de uma de suas pacientes com fraco nível mental ele lhe pergun-tava uma primeira vez de um modo interrogativo: “Você sente dor quando eu aperto aqui?” Ao que a jovem mu-lher respondia: “Sim!”. E em seguida, voltando ao mesmo lugar, ele lhe dizia novamente de modo um pouco mais afirmativo: “Você não sente dor quando eu aperto aqui?”, ao que sua interlocutora lhe respondia: “Não!”. Ele se vi-rava então em direção ao seu interlocutor e com despre-zo exclamava-se: “Você está vendo? É impossível!” Essa cena demonstra pelo menos uma coisa: que o quociente intelectual de uma pessoa não está em relação constan-te com suas capacidades nesse domínio, ou mais exata-mente, guardemos uma parte de indulgência, com suas potencialidades a exercê-las. Porque quando esse médico confessa, nesse tipo de circunstância, se sentir fora do jo-go de uma prática profissional e colocado diante de uma suposta impotência a desenvolver seu talento e seus co-nhecimentos, nós consideramos não somente que nós po-deríamos começar a fazer valer os nossos, o que, além de uma simples repartição dos papéis e das especialidades poderia parecer pretensioso, mas que esse “especialista” deveria integrar essas particularidades ao exercício de uma profissão da qual eles nos parecem fazer parte inte-grante. Porque atrás dessa pressuposta conformidade aos postulados de base de sua atividade, se esconde, como cada um pode ter adivinhado, um profundo desprezo em relação à fraqueza do outro e de suas particularidades, sobre compensado por um odioso orgulho. Liberados de uma primeira fase de indignação da qual nós não pode-mos nos envergonhar, em uma análise fenomenológica e uma aproximação mais apaziguada, notemos aqui o vazio absoluto do espaço do “próximo” – isto é, fora do contexto religioso, todas as formas de humanidades virtuais e en-tão a vir pelas quais eu estou sendo solicitado – durante um momento relacional onde só poderemos nos perder nós mesmos querendo evacuá-las. “Mais de uma vez in-sistimos sobre o fato que podemos pecar por excesso de adaptação, de equilíbrio, de pragmatismo, de racionalis-mo, de prosaísmo”, escreve Minkowski em forma de con-selho ou de lição de experiência virtual para nosso infeliz ginecologista. (Minkowski, 1966, p. 168)

Mas às vezes nós nos vangloriamos com ainda mais audácia ou pretensão: em vez de querer simplesmente fa-zer “bem”, nós queríamos fazer “melhor”. Quem não se lembra dessa anotação frequente em antigos boletins es-

colares e do abismo de perplexidade que o acompanha-va: “Pode fazer melhor!”. Como um professor pode pen-sar ser útil a um jovem aluno lhe mandando esse tipo de mensagem? E por que seria diferente na perspectiva psi-coterapêutica, por definição estrangeira a toda vocação pedagógica? Minkowski convida a refletir nisso nesses termos: “Existem domínios onde o fator do ‘melhor’ não tem muita importância. E está bem assim. A quantidade e a moderação também não estão muito no lugar delas aqui. Ao lado de nossas atividades, limitadas por essência, há a vida que se afirma e que, pelo intermediário de algu-mas mentes, produz; e também, do outro lado ela procu-ra com suas próprias forças combater o mal. Não se pode querer a todo custo fazer melhor que ela faz. Onde está o fracasso e onde está o sucesso? Em nossas operações psicoterapêuticas, é sábio não querer ir longe demais: nós estamos no caminho errado se nós não levarmos em conta o que a vida, na sua complexidade, mas também na sua riqueza e nos seus recursos, com seus altos e baixos, com seus obstáculos, sabe oferecer”. (Minkowski, 1966, p. 165-66). Aqui como em outros lugares, a sabedoria de alguns provérbios pode se aplicar: “O melhor é inimigo do bem”, dizia-se por aqui.

“Você poderia ter ido mais longe”, repetia sem ces-sar um de meus colegas de maneira crítica e repetitiva a uma estudante que tentava com um pouco de dificul-dades sustentar diante dele uma nota de pesquisa onde ela tinha tentado dar o melhor dela mesmo. Eu respondi a esse colega, talvez para tirar essa pobre moça dessa si-tuação que a deixava muda, mas não somente por isso: “Por que você quer sempre ir mais longe já que nunca fo-mos tão perto!”. A fórmula, certamente um pouco exces-siva, não queria ser arrogante frente à estudante da qual tinha dirigido a pesquisa; ela visava somente lembrar que, impondo um distanciamento do real querendo assim me-lhor dar conta, acabamos perdendo toda capacidade de nos ligar a ele de maneira concreta e também de dizer efetivamente o que ele é, na indigência onde estamos de não poder captá-lo.

Como bom defensor do “mundo das metáforas”, se-gundo ele bem mais propício, adaptado e transportável no registro psicossomático – sem por isso esgotá-lo – que o recurso a uma explicação simbólica aplicada do exte-rior, Minkowski promove um comportamento ao mesmo tempo mais simples e mais concreto, o que não o desva-loriza nem um pouco. “O que queremos mostrar antes de tudo, é que relações desse tipo existem e que elas podem entrar em linha de conta sem necessariamente recorrer ao inconsciente e aos restos de traumatismos infantis de natureza conflita e libidinal. Elas são mais “simples” e mais diretas. E querendo ou não, a necessidade de sim-plicidade e de natural conduz sempre nosso pensamento e nosso esforço. E “simples” não é evidentemente sinôni-mo de simplista; é muitas vezes o que há de mais difícil achar” (p. 173). Quantas vezes eu já vi estagiários psicó-logos inaugurarem suas participações à minha consulta

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adotando uma postura ultrajada, falsamente reflexiva e teatralizada até o grotesco, o que deixava os pacientes estupefatos, fazendo- os fugir ou adotar uma posição de rejeição definitiva com eles, enquanto ao contrário nos-sos jovens aprendizes permaneciam de boca aberta por achar somente, nesse meio relacional de escuta autênti-ca, trechinhos de existência prosaica e uma atitude tão banal em aparência para acolhê-los.

Entendamos bem que a relação qualificada de “autên-tica” não pode ser entendida como um ideal, revestindo um componente excepcional, com tudo o que isso pode-ria subentender de inacessível. Certamente refrataria a uma aplicação técnica combinada ou convencional, ela se opõe à facticidade, à falsidade, à artificialidade, a um simples ajustamento mecânico ao transtorno ou à dificul-dade encontrada, mas ela se mostra também rebelde a toda forma de intervenção puramente ritual ou funcional, até mesmo à ativação ou à única conservação de um papel em relação caricatural com o exercício de uma profissão. Longe de exercer qualquer transcendência frente a uma relação usual, ela se apresenta ao contrário como a ma-nifestação de seu “ordinário”, com a aparente banalidade que pode ressair dela. É notável verificar em Minkowski o quanto a análise das respostas a perguntas parecendo anódinas ou realistas permite acessar uma compreensão profunda, sem igual até então, dos fenômenos psíquicos e psicopatológicos em jogo.

Confrontado a essas “forças normalmente desequili-brantes e desadaptadas”, a essas “naturais fraquezas hu-manas”, assim como ele as chama em termos voluntaria-mente não patonômicos, Minkowski se aplica em encon-trar respostas que incluem as caraterísticas dessa natu-reza, dessa vida da qual elas procedem “naturalmente”. E a atitude que ele recomenda é provedora também desse mesmo “natural” que convém cultivar na base do encon-tro em vez de técnicas, de práticas ou de procedimentos pensados, racionalizados, linearmente e friamente de-senrolados. Somente então, a reflexão pode se alargar e encontrar sua verdadeira amplidão onde teoria e prática se unem enraizadas em seu único lodo de existência: “o cuidado de deixar ao paciente a possibilidade de progre-dir sozinho fora do tratamento é longe, a nossos olhos, de constituir uma desvantagem. Por que seria diferente? A técnica perdera talvez um pouco de precisão; mas é de uma “tecnicidade” excessiva que devemos desconfiar; muitas vezes, a imprecisão nesse domínio é somente a expressão da irracional compreensão humana. Mais uma vez, devem-se formar psiquiatras e não técnicos”. (Minko-wski, 1966, p. 171) A fórmula aplicara-se evidentemente tão bem a essa profissão que a de psicólogo assim como a muitas outras onde a parte relacional se desenvolve no centro da atividade não somente terapêutica, mas tam-bém compreensiva de uma situação humana.

Pode parecer estranho reivindicar a imprecisão co-mo principio metodológico em um século onde precisão e rigor são mostrados como virtudes totalizantes até to-

talitárias, ainda mais hoje que na época aonde esse au-têntico psiquiatra conduzia sua ideia. Porém, nos parece indispensável entender e conceber essa flutuação como uma “aproximação”, isto é uma forma de aproximação, de reaproximação com o outro, não de um modo direito e rigoroso, mas sim por pequenos toques adaptativos e sucessivos. Isso nunca formara clínicos adeptos do vago, da inconstância, da inconsequência, da indeterminação, da irresolução, sem nenhum ponto comum com esse ob-jetivo; muitas vezes, eles se distanciam mesmo por causa de uma tenacidade, constância e coerência de intenção subjacente a sua menor intenção de intervenção. Recen-temente, passei por essa experiência que me servira de curto exemplo, durante um banal telefonema com uma das minhas pacientes: ”Bom dia, senhora Martin, como vai você?”; assim começou nossa conversa que todos concordaram em reconhecer como não muito inventiva. “Vou bem; estou tomando sol na minha cadeira de praia no meu terraço...” diz ela alegremente. A partir daí, se-ria muito presuntuoso pretender antecipar a continuação de nosso diálogo imediato que restituo in extenso: “e vo-cê tem certeza de merecer isso?” assim é minha interpe-lação seguinte, muito mais surpreendente e brutal que a primeira, a qual a paciente responde imediatamente “Ah! Reconheço você!!!”. Fora de seu contexto, essa tro-ca permanece incompreensível. É preciso começar pela tom de enunciação dessas duas curtas frases, divertido e facecioso a cada extremidade do contato a distancia que nos liga. Acrescento ainda que, há três anos que nós nos encontramos com um sentimento de culpa vindo de lon-ge, e então frequentemente demais extensível a situações onde não teria nenhuma razão legitima de se aplicar, foi objeto de múltiplas conversas até se tornar entre nós um sujeito de brincadeira ou ironia que eu nunca deixo de re-ativar, só para nos assegurar, um e outro de sua evolução. É evidentemente a razão pela qual, por causa dessa diver-tida insistência, ela “me reconhece”. Ela me “reconhece” claro através dessa maneira de voltar ao essencial sob o pretexto da mais comum das situações, através desse jeito de sublinhá-lo em um momento onde ela menos espera, através do estilo deslocado, alegre e brincalhão da minha intervenção. Mas não sou só eu que ela “reconhece”, mas sim ela mesma em uma convergência subterrânea não somente entre nossas duas pessoas, mas, sobretudo en-tre nossas duas personalidades em busca de junção uma com outra que colorem essa breve troca. É alias a razão pela qual, quando ela chega em seguida ao objeto da sua ligação – a confirmação de nosso próximo encontro – eu a persegui sob a forma de uma identificação revertida um pouco ridícula mas engraçada pois ela continua brincan-do dela mesma com suas dúvidas: “Você tem certeza que mereço encontrar você?” Essa curta cena seria beneficiada por uma análise um pouco mais longa, levando em conta a história dessa paciente e de seus transtornos; guardemos a substancia, a saber, a procura comum de uma posição sustentável e porque não agradável em relação a si mes-

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mo e ao outro, brincando de cada lado sobre o calibre do ajustamento identificador. A defesa de Minkowski para uma forma de “imprecisão” nos parece seguir essa inten-ção, a intenção de uma “apropriação sadia”, isto é não possessiva, não dominadora do outro e sim justamente desligada de toda veleidade de influência sobre ele em uma familiarização com seu mundo, sua “adaptação”, uma maneira de articulá-lo a uma parte de si mesmo. O modo alusivo, carregado pela ambiguidade, a suges-tão, no sentido atenuado e não dogmático do termo, isto é pela metáfora, como o indica Minkowski, parece corres-ponder perfeitamente com uma mobilidade vital da qual ele releva e que ele respeita. Essa figura de enunciação combina, aliás, e se apoia, ao seu ritmo dessa vez, nota ainda esse grande psico-patólogo, com o passeio que não tem muito a ver com a pressa ou a precipitação, mas ri-ca e em harmonia com o flanar, sem rumo e sem pressa, com a descoberta: ““ caminhar” nos dá o ritmo próprio a nossa própria vida humana. E a doença também tem seu próprio ritmo. Ela se alinha sobre o pedestre” porque “a doença é um todo vivo assim como o organismo que ela afeta” (Minkowski, 1966, p. 161).

Outro exemplo, quando a natureza pede seus direitos e nossos deveres frente a ela, acabara de nos convencer de maneira humorística. Alguns anos atrás, eu estava procu-rando um presente simbólico para uma paciente chegando com um pouco de apreensão no seu trigésimo aniversário que temia passar sozinha; eu escolhi, para tranquilizá-la, um vaso de junquilhos bem determinados a encerrar o nosso inverno, no qual uma única flor estava florida en-quanto as outras estavam em botão. Ingenuamente con-tente com esse símbolo de aparecimento um pouco diri-gido a ela, ia para a consulta onde encontro alguns dos seus colegas de terapia. Logo vem o momento do encontro com ela, a entrega do presente saindo do seu embrulho e, mais linda ainda a divina surpresa da descoberta, as-simétrica para ela e para mim: encorajado pelo calor do confinamento hospitalar, o buquê agora tem duas flore-zinhas. “Eu entendo”, me diz ela, ultrapassando minha iniciativa simbólica, demais preparada e restritiva e me dando imediatamente outra, “a maior flor é você, a menor sou eu”. Eu não estou em medida de esgotar os ensinos de uma historinha tão comovente e rica de harmonias, mas, como estamos com um pouco de pressa, eu só lembrarei uma breve e provisória “moral”: da vida mesmo nascera a criação se nós lhe preservássemos a oportunidade de nos surpreender.

A orientação terapêutica representa então somente um prolongamento de um comportamento fenômeno--estrutural com ambição prioritariamente e mais larga-mente compreensiva. Sem ser um de seus objetivos, ela se integra espontaneamente ao processo de aproximação centrado sobre a especificidade da pessoa. Assim, colo-cando não o cuidado, mas sim o encontro como princípio de base do estabelecimento do contato com o paciente, em plena consciência da atitude inicial que ela supõe e

requer na duração e na natureza do recolhimento dos da-dos clínicos que resultará, nós enxergamos como fontes de análise podem emergir para desembocar, a cada po-lo da relação, sobre perspectivas de evolução da pessoa para contribuir a um encaminhamento significante do olhar sobre o outro e si mesmo particularmente propício a uma evolução sentida e compartilhada juntos. Assim, o clínico é somente um intermediário, um mediador dessa incitação frente ao paciente que o leva em direção a uma vontade de conquista do mundo. Sua ação visa restituir à pessoa não somente seu “poder ser” segundo a fórmula de Binswanger, mas, sobretudo, teríamos vontade de di-zer, seu “poder fazer” e, se não for pleonasmo, seu “poder fazer livremente”. Isso não se reduziria a uma impressão ou a um sentimento, mas a uma capacidade e, sobretudo a uma vontade de realização, isto é, de se apropriar um real não somente de receptividade ou de interiorização, mas também de empreendimento, de criação, de cumpri-mento de si em ato, então em sentido e em historicidade singulares sempre comunitários. Nesse sentido, a psico-terapia aparece com um comportamento exigente tendo como objetivo procurar com o apoio do outro as vias de sua realização pessoal.

Entrar em relação com o outro, estabelecer um conta-to com ele, não é em primeiro lugar entrar em um mundo que nos seria estrangeiro na medida em que ele permane-ceria “seu” mundo; melhor aceitar coabitar e, sobretudo querê-lo para se abrir a uma compreensão mútua do que nos determina e que nós contribuamos suscitar e modi-ficar apoiando-nos em nossos familiares. O esforço com-preensivo promove ao mesmo tempo uma atitude e um comportamento que permitem ao paciente se perceber ele mesmo pelo meio de uma imagem refletida no seu seme-lhante. Uma solicitação perseverante o conduz abordar sua existência como historicizada, vectorizada pelo meio do clínico que parece dar mais valor que outros –inclusive ele mesmo – o faziam antes. Ele se inscreve assim, pro-gressivamente, em um sentido e uma apropriação sensí-vel do seu destino único, unitário e singular, em um laço de interdependência, de reciprocidade e de solidariedade com uma consciência homóloga embutida a dela.

Pela mesma via com dupla entrada, o clínico oferece- se aos meios de acessar a organização estrutural de uma pessoa às vezes tornada difícil pelos mecanismos psico-patológicos de um transtorno. Ele enriquece sua pessoa e suas próprias capacidades evolutivas das mil facetas refratadas da relação com “seu” paciente em um perten-cimento que não tem nada de uma possessividade, mas que restitui uma afinidade, uma simpatia que coloca à prova suas capacidades de integração e de transforma-ção para um enriquecimento de suas singularidades. As múltiplas irisações do outro em si ultrapassam cada um dos parceiros desse entendimento, desmultiplicam sua própria imagem, consolidam sua unidade e sua per-manente extensão graças à difração concentrada de to-das do outro. Mais em profundidade, elas sensibilizam

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Princípios Fundadores e Atualidade de uma Prática Psicoterapêutica de Orientação Fenômeno-Estrutural

os princípios fundamentais de uma condição humana habitualmente compartilhada na diversidade das suas infinitas declinações e combinações.

Recentemente, no final de um encontro com uma pa-ciente que não tinha vindo aos dois últimos por motivos fúteis e sobre os quais tínhamos descoberto junto que eles resultavam, sobretudo, de um intenso sentimento de ver-gonha, eu demostrava meu prazer em encontrá-la nova-mente cumprimentando sua coragem por se apresentar novamente na minha frente, ou melhor, na nossa frente, pois um estagiário presenciava o encontro. Ela me respon-deu imediatamente, associando-nos, cada um a sua vez, em um olhar de gratidão, falando da sua potencial ausên-cia do dia que ela tinha conseguido ultrapassar: “pensei que não podia fazer isso com você!”. Fazendo-lhe enten-der que eu não estava insensível à evocação de um reco-nhecimento que ela tinha a fraqueza de nos conceder, eu lhe respondi para encerrar com reciprocidade o encontro do dia e facilitar talvez os seguintes, em torno dos mean-dros complexos dessa maravilhosa transferência prove-dora às vezes de alguns pequenos milagres, pela simples inversão do “você” sobre o qual insisti: “Você não podia fazer isso com VOCÊ!”. A semana seguinte, ela chegou toda arrumadinha e maquiada – enquanto normalmente ela vinha vestida de maneira negligente – com a vontade evidente de se mostrar elegante explicando que ela tinha semeado sementes de basilicão no seu terraço. Porque, em nossa desesperança e em nossas alegrias, só podemos contar com o outro, fraco sem dúvida, mas portador desse mínimo de ternura e de apoio para encorajar arriscando uma sequência a viver.

Referências

Minkowski, E. (1953). Psychiatrie, psychothérapie, relations avec le malade et le grand public, Annales médico-psycho-logiques, 2, p. 309-328.

Minkowski, E. (2002). Écrits cliniques, Toulouse: Érès.

Jean-Marie Barthélémy - Professor Emérito de Psicopatologia e Psicolo-gia Clínica da Universidade de Savoie, Chambéry (França) et Presidente da Société Internationale de Psychopathologie Phénoméno-structurale. Adresse Institutionelle: 237, Chemin des Bollons. Les Hauts du Lac. 73370, Le Bourget du Lac. E-mail: [email protected]

Recebido em 25.06.2013Aceito em 22.09.2013

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Contribuições de Viktor Frankl ao Movimento da Saúde Coletiva

contRiBUiçõeS de ViktoR fRAnkl Ao moVimento dA SAúde coletiVA

Viktor Frankl’s Contributions for the Colective Health Movement

Contribuciones de Viktor Frankl al Movimiento de la Salud Colectiva

DanieL rocha SiLveira

FernanDa JauDe GraDiM

resumo: Estudo teórico, em que se apresenta a Logoterapia de Viktor Frankl, enfatizando sua concepção sobre a busca e a descoberta/encontro com o sentido da vida, bem como o vazio existencial, e suas decorrências. Apresenta-se brevemente o movimento da Saúde Coletiva. Propõe-se reflexão sobre contribuições de Viktor Frankl para a Saúde coletiva: é possível um diálogo profícuo entre Saúde Coletiva e Logoterapia.palavras-chave: Viktor Frankl; Logoterapia; Sentido da vida; Vazio existencial; Saúde coletiva; Diálogo.

Abstract: Theoretical study presenting Viktor Frankl’s Logotherapy, emphasizing its conception about the search and discovery/meeting of a meaning to life, as well as the existential emptiness and its consequences. The Collective Health Movement is briefly presented. There is a proposal of a reflection about Viktor Frankl’s contributions for the Collective Health: it is possible a fruitful dialogue between Collective Health and Logotherapy. Keywords: Viktor Frankl; Logotherapy; Meaning of life; Existential emptiness; Collective health; Dialogue.

resumen: Estudio teórico donde se presenta la Logoterapia de Viktor Frankl, enfatizando su concepción acerca de la busqueda y descubrimiento/encuentro com el sentido de la vida, así como el vacío existencial y sus derivaciones. Brevemente se presenta el movimiento de La Salud Colectiva. Se propone una reflexión acerca de las contribuciones de Viktor Frankl para La Salud Colectiva: Es posible un dialogo fructífero entre La Salud Colectiva y Logoterapia. palabras clave: Viktor Frankl; Logoterapia; Sentido de la vida; Vacío existencial; Salud colectiva; Diálogo.

“O que esperamos nós quando estamos desesperados, e mesmo assim procuramos alguém?

Esperamos, certamente, uma presença por meio da qual nos é dito que o sentido ainda existe”

(Martin Buber)

introdução

Para o sociólogo Giddens (2002, p. 19), o mundo atu-al, por ele qualificado como alta modernidade, traz uma série de perigos: decorrendo que as chamadas crises são quase sempre presentes. Veja-se a economia no mundo atual e no Brasil – os desafios urgem e obrigam a uma busca de construção de superação – necessidade de te-cer resiliência. A ONU afirma que a resiliência humana diz respeito às estratégias utilizadas para remover as bar-reiras que limitam as pessoas em sua liberdade de agir, sublinhando a importância de promover autonomia e de identificar e abordar as vulnerabilidades, bem como melhorar a sua capacidade para lidar com impactos. Pa-ra tanto, faz-se necessária uma ação coletiva, sob a forma de um compromisso global para o universalismo (UNDP, 2014, p. 8). Neste caminho, o pesquisador Ungar (2011)

aponta uma visão comunitária da resiliência, construída e contextualizada nas culturas locais: a resiliência como a capacidade dos indivíduos navegarem e negociarem para alcançar recursos de saúde, bem como as condições do indivíduo, da família, da comunidade e da cultura para fornecerem tais recursos e experimentá-los de maneira significativa.

Ao navegarem e cuidarem de si e do outro, chegam inevitavelmente ao tema da saúde saúde coletiva. A saú-de coletiva, de acordo com Carvalho (citado por Cam-pos, 2000, p. 221), “nasceu da crítica ao positivismo e... à saúde pública tradicional, constituída à imagem e semelhança da tecno-ciência e do modelo biomédico”. Valorizou a subjetividade que “brota da necessidade co-letiva e que se organiza em sujeitos coletivos – no Esta-do, no partido, nas organizações classistas e comunitá-rias...” (p. 222). Vinculou-se ao paradigma da promoção à saúde (p. 222).

Mas o que é saúde e ser/estar saudável? As significa-ções que são dadas, bem como as atitudes e comporta-mentos assumidos diante do que se pensa ser a saúde e a doença, são gestadas no entorno cultural (Uchôa & Vi-dal, 1994, p. 503) – compreendendo cultura como uma teia de significações que pragmaticamente mapeia e cria

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o mundo, na qual se situam e orientam as pessoas – um conjunto de mecanismos de controle que norteiam o com-portamento dos indivíduos (Geertz, 2008).

No trabalho na área de saúde, o profissional torna-se um cuidador, e aqui Minayo (2008) enfatiza que a relação entre o pesquisador em saúde e o participante da pesqui-sa deve ser permeada pela ética – a intersubjetividade e a solidariedade social são inseparáveis. Assim e aqui, a antropologia médica provoca para a construção de um novo humanismo, uma revalorização da pessoa, do usu-ário de serviços de saúde (Bibeau, 2010), distanciando-se de uma até possível certa assepsia biomédica – que, se por um lado permite uma desinfecção dos agentes bio-lógicos patógenos, por outro desqualifica a experiência do paciente, criando uma barreira territorial entre duas subjetividades, marcada por sinais comportamentais que muram mundos diferentes: um universo do padecente e um possível olimpo protegido de um suposto detentor do poder-saber, que se coloca em um sistema social à par-te, um condomínio (Dunker, 2015) reservado a uma au-toconstruída quase casta. É fundamental o cuidado de fato, pois as condições humanas têm sua biologia – mas têm história, política, economia: e espelham diferenças culturais e subjetivas (Kleinman, 1998). Cuidar da saúde implica em cuidar de si e do outro – ação solidária cole-tiva. Adequada para uma prática ética, a antropologia da saúde abre-se para uma antropologia do humano, sensí-vel ao que ele mostra de mais frágil, mas também de mais nobre, a solidariedade na luta contra o sofrimento e as desigualdades (Massé, 2010), e levanta a voz ao afirmar que cuidar é estar ao lado (Kleinman, 2009) – um ato de moralidade e respeito (Kleinman, 2012).

Sobreviver, até mesmo alcançando bem-estar e feli-cidade em meio a crises, é uma arte. Arte que em muito significa adquirir a capacidade de suportar sofrimento. (Kleinman, 2014). Sofrer faz parte de ser humano. Em sua humanidade, a pessoa pode de alguma forma “situar-se sempre ‘acima’ de qualquer situação”, fazendo a experi-ência de uma “liberdade de algo” e “liberdade para” (Mo-reira & Holanda, 2010, p. 354). Poder posicionar-se diante da situação dolorosa, distanciando-se dela para se fortale-cer, respirar, escolher um caminho e prosseguir. Trabalhar em Saúde Coletiva implica em contribuir nesse processo: cuidar, cuidado e promoção de saúde.

Sobre “suportar”, viveu e afirmou com propriedade o psiquiatra e neurologista Viktor Frankl – fomentador de resiliência (Silveira, 2007; Silveira & Mahfoud, 2008) – a partir de sua própria experiência de sofrimento extremo como prisioneiro de campos de extermínio nazistas. Ali, comprovou sua cosmovisão prévia de que ter um sentido para a vida é o que mais fortalece, no sentido de suportar e superar as adversidades. Pode-se privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alter-nativa frente às condições dadas (Frankl, 2008, p. 66-67).

Esta pesquisa teórica parte do pensamento-vida do psi-quiatra Viktor Frankl e seu estudo sobre a questão do sen-

tido, que é a característica essencial da vida humana para o autor, que implica na responsabilização do homem pe-rante seus posicionamentos. Propõe-se tecer apontamen-tos sobre a busca pelo sentido da vida como fio condutor da existência saudável e então sobre as contribuições que o legado de Frankl traz à construção da saúde coletiva.

1. A pessoa e o sentido da vida

A pessoa pode ser considerada uma unidade múlti-pla – composta pelas dimensões biológica, psicológica, e também noológica/espiritual. O noológico/espiritual diz respeito ao fato de o ser humano ser livre e aberto à bus-ca de um sentido para vida, ao posicionar-se diante de cada aspecto de seu ser biológico e seu ser psicológico. A mulher e o homem são determinados por característi-cas genéticas, congênitas, nutricionais, reativas biologi-camente ao ambiente, são determinados por um passado histórico, uma história pessoal/familiar, uma dimensão psicológica. Mas estas determinações são o solo sobre o qual há um espaço para decidir o que se tornar, e abrir-se para a busca de um sentido. E aqui se está no ambiente da dimensão noológica/espiritual (ressalta-se que espi-ritual não se liga necessariamente a aspectos religiosos, mas sim ao que há de mais alto no ser humano, na pos-sibilidade de ir além de si mesmo – autotranscendência – e distanciar-se das determinações bio-psíquico-sociais – autodistanciamento – caminhando para o sentido). Na existência saudável, a pessoa volta-se para (autotrans-cendência) um trabalho (obra, onde imprime criativamen-te sua marca própria), para uma pessoa (ou pessoas) a quem quer bem, ou até para uma busca de Deus, que pode incluir uma religiosidade (Frankl, 1989, 1993, 1997, 2008).

A essência da existência humana, diria eu, radica na sua autotranscendência. Ser homem significa dirigir--se e ordenar-se a algo ou alguém: entregar-se o ho-mem a uma obra a que se dedica, a um homem quem ama, ou a Deus, a quem serve. Esta autotranscendência quebra os quadros de todas as imagens do homem que, no sentido de algum monadologismo (...), representem o homem como um ser que não atinge o sentido e os valores, para além de si mesmo, orientando-se assim, para o mundo, interessando-se exclusivamente por si mesmo, como se lhe importasse a conservação ou o reestabelecimento da homeostase (Frankl, 1989, p. 45)

Portanto Frankl (2005) propõe uma visão de homem que engloba três dimensões: somática, psíquica e nooló-gica. A dimensão somática envolve aspectos corporais como as funções fisiológicas. Na dimensão psíquica, con-templamos os aspectos psicológicos como as sensações, sentimentos, instintos, desejos, afetos, cognições e emo-ções. A dimensão noológica ou espiritual engloba o que é essencialmente humano, os fenômenos humanos. É nes-

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ta dimensão que se encontram as decisões que tomamos, a criação estética, religiosidade, apreensão de valores, o sentimento ético. Além disto, Frankl não deixa de consi-derar que o ser humano constitui-se imerso e influindo no jogo de forças sociais (Frankl, 1989).

Frankl (1989) comprovou que o ser humano anseia por um sentido de vida, que a sua principal força moti-vadora é a busca deste sentido. Podem decorrer disso, co-mo efeitos colaterais, a felicidade, o prazer e o encontro de um conforto no mundo social (sucesso profissional). A Logoterapia, criada por Frankl, traz o homem à cons-ciência de seu ser-responsável enquanto fundamento es-sencial da existência humana. Responsabilidade significa responder às questões que a vida nos coloca a cada mo-mento. Cada escolha que faço me remete ao que deixo de escolher, e estas escolhas descartam qualquer outra pos-sibilidade, já que cada momento é único. “Cada momen-to encerra milhares de possibilidades, mas eu só posso escolher uma delas para realizá-la, condenando todas as outras ao não-ser” (Frankl, 1989, p. 66).

A temporalidade é algo importante para a questão do sentido. A filosofia existencial afirma que mesmo diante da transitoriedade é possível encontrar o sentido da vida. O passado seria a concretização do que já foi vivenciado – as experiências e os sentidos descobertos existem tam-bém como parte do passado, e por isso não são transitó-rios, são a pura realidade.

O presente é a fronteira entre a não-realidade do fu-turo e a realidade eterna do passado. Justamente por isso é a “linha demarcatória da eternidade”; em ou-tras palavras, a eternidade é finita: estende-se só até o presente, o momento presente em que escolhemos o que desejamos admitir na eternidade. A fronteira da eternidade é onde, a cada momento de nossas vidas, é tomada a decisão sobre o que queremos eternizar ou não” (Frankl, 2005, p. 101).

Estamos inseridos em um espaço histórico concreto, que se organiza e tem valores que pautam o modo de vida. Frankl (1990) acredita que a sociedade cria necessidades para o homem e satisfaz algumas delas. Porém, há uma necessidade que fica pendente, a necessidade de sentido do homem, sua “vontade de sentido”. A questão do senti-do coloca-se em todas as etapas da vida. Exemplificando, a chamada “crise da meia idade” pode ser compreendida como uma crise de sentido, assim como a crise da aposen-tadoria e a crise de desemprego. Na crise de desemprego ou de aposentadoria, a pessoa entende que sem trabalho a vida não tem sentido, as pessoas não se sentem neces-sárias, úteis para si ou para a sociedade.

A vontade de sentido para Frankl (1990) é a motiva-ção humana primária, mas não aparece somente quando as necessidades básicas do homem são satisfeitas, sur-gindo assim uma necessidade de satisfação mais elevada. A vontade de sentido representa uma motivação que não

se reduz ou deriva de outras necessidades. Esta ideia contrapõe-se à de Maslow (Fadiman & Frager, 1986) que propôs uma hierarquia das necessidades, sendo elas: fi-siológicas, de segurança, de amor e pertinência, de estima e por último a auto-realização. Para este mesmo autor, as necessidades fisiológicas são básicas e devem ser aten-didas primeiramente para que as demais ocorram. Para Frankl, o importante seria compreender qual das neces-sidades tem sentido para a pessoa, e não identificar sua hierarquia. “Se não existir algum sentido para seu viver, uma pessoa tende a tirar-se a vida e está pronta para fazê-lo mesmo que todas as suas necessidades sob qualquer as-pecto estejam satisfeitas” (Frankl, 2005, p. 14).

Frankl (1989, p. 61) traz também o conceito de supra- sentido, que seria “o sentido do mundo como um todo na forma de um conceito-limite”. O sentido da fé, por exem-plo, não é um conceito limitador, mas sim criador e torna o homem mais forte. Diante de situações dolorosas incom-preensíveis racionalmente – diante da impossibilidade de se responder à pergunta por que aconteceu isto comigo? – adere à crença de que há um sentido incondicional para a vida, e então há um sentido para o acontecido adverso. Pode ser apreendido pela fé.

A Psicanálise entende que o sentido decorre da bus-ca de prazer. Para Frankl (1989, p. 67) “...esta afirmação reporta-se ao suposto fato de que todo o agir humano é fitado, em última análise, por uma aspiração à felicidade, sendo todos os processos anímicos determinados única e exclusivamente por um princípio do prazer”. Frankl não compartilha desta ideia: “o princípio do prazer é um ar-tefato psicológico”.. Para Frankl: (1989, p. 67) “Na verda-de, o prazer não é em geral a meta de nossas aspirações, mas sim a consequência da sua realização”. Ou ainda: “Em outras palavras, o homem, que tão especialmente de-dica-se ao prazer e diversão, mostra-se finalmente como alguém que permanece frustrado em relação a sua von-tade de sentido”. Somente quando a vontade de sentido se vê frustrada, o ser humano parte para a busca direta de prazer (Frankl, 1990).

Entre os estudiosos que abordaram a questão do sen-tido e sua importância na vida das pessoas, Jung (citado por Frankl, 1990, p. 26) afirmou que “o sentido faz muito, talvez tudo suportável”. Nietzsche acreditava que: “Quem tem por que viver, suporta quase qualquer como”. Na per-cepção do sentido, trata-se de descobrir uma possibilidade diante do pano de fundo da realidade – trata-se da possibi-lidade de descobrir a melhor (mais adequada) alternativa diante das opções que a vida apresenta em determinado contexto – trata-se da possibilidade de se transformar a realidade (Frankl, 1989, 1990, 2005, 2008).

O sentido é algo subjetivo, na medida em que não há um sentido único para todos, mas sim um sentido para cada um: “a pessoa tem que atingir e captar o sentido, percebê-lo e efetivá-lo, isto é, realizá-lo”. Além disso, o sentido está em constante relação com a situação, por is-so é único e irrepetível. Para captar este sentido nas ex-

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periências vividas, utilizamos a consciência, que é a ca-pacidade intuitiva rastreadora do sentido que, por sua vez, é irrepetível e único e se esconde em cada situação (Frankl, 1989, p. 76).

Porque decerto só há uma resposta para cada per-gunta, isto é, a resposta exata; para cada problema há apenas uma solução, a solução válida; e, em cada vi-da, em cada condição de vida, só um sentido, o ver-dadeiro... Contudo, na vida não se trata de uma atri-buição de sentido, senão um achado de sentido; o que se faz não é dar um sentido, mas encontrá-lo; encon-trar, dizemos, e não inventar, já que o sentido da vida não pode ser inventado, antes tem que ser descoberto (Frankl, 1989, p. 77).

A possibilidade de encontrar um sentido é única e ori-ginal, apesar das mudanças sociais que possam ocorrer. Ao contrário dos valores construídos socialmente, o sen-tido, sendo único, não é afetado pela perda de valores da nossa época. Para Frankl, (1990) até mesmo quando somos acometidos pelo destino com alguma doença ou limita-ção, ainda é possível encontrar um sentido: “Com base nessa possibilidade de transfigurar o sofrimento pessoal em uma realização humana, a vida é potencialmente ple-na de sentido até o fim” (Frankl, 1990, p. 48).

Encontra o homem um sentido, então ele é feliz – por um lado; pois, por outro lado, ele é então capaz de so-frer. Se necessário, ele é então também capaz de fato, de ser abnegado, sim, de colocar sua vida em jogo. Ao contrário, porém, quando ele não conhece nenhum sentido na vida, ele zomba da vida, ainda que exter-namente possa parecer ir bem, e então sob certas cir-cunstâncias ele põe tudo a perder (Frankl, 1990, p. 26).

2. o vazio existencial e a neurose noogênica

A sensação de falta de sentido e de vazio, denomina-da por Frankl de “vácuo existencial”, aparece nos con-sultórios frequentemente. Para Frankl (1989, p. 26) “há pacientes que se dirigem ao psiquiatra porque duvidam do sentido da vida ou porque já se desesperaram até de encontrar, em geral, um sentido para a vida”.

Frankl (1990) acredita que a sensação de falta de sentido, em primeiro lugar, deve ser atribuída à perda de instinto, depois à perda da segurança na tradição. O ser humano não tem uma programação genética que lhe indique todos os seus passos na trajetória da vida. E as pessoas tornam-se cada vez mais alheias às questões da tradição, intensificando assim a sensação de falta de sentido. Não se sabe para onde ir, ou para onde se está caminhando. Mesmo em um suposto entorno social onde há ou haverá abundância material, o sentido é e sempre será basilar. “Quanto à origem do sentimento de falta de

sentido, pode-se dizer, ainda que de maneira muito sim-plificadora, que as pessoas têm o suficiente com o que vi-ver, mas não têm nada por que viver; têm os meios, mas não têm o sentido” (Frankl, 2000, p. 90).

Mas, ao homem que foi expulso do paraíso, onde ha-via abrigo e segurança proporcionados pelos instintos, e especialmente ao homem de hoje, que além dessa perda de instintos ficou entregue a si mesmo depois da perda da tradição, não é indicado pelos instintos o que ele tem de fazer nem pelas tradições o que ele deve fazer: a sua busca de sentido ainda lhe diz que ele quer dever. Mas ele frequentemente não sabe de mais nada que deva querer; em outras palavras, ele já não sabe nada do sentido em si (Frankl, 1991a, p. 69).

Não se compreende a falta de sentido como algo pa-tológico, mas como algo próprio da humanidade da pes-soa. “Nós sabemos que “sofrer de vida sem sentido” é um sofrimento, mas não uma doença. É, porém, a vida real-mente sem sentido? E se tivesse sentido: seria possível comunicá-lo? Podemos nós dar sentido?” (Frankl, 1990, p. 39). Para Frankl, sofrer com a falta de sentido não sig-nifica, de forma alguma, estar doente, mas sim uma “ex-pressão de maturidade espiritual”. O posicionamento pessoal diante do sentimento de vazio pode sim causar uma reação patológica, mas não se resume a isso, sendo também uma forma de expressão do ser humano. “Só ao homem é dado ter a vivência da sua existência como algo problemático; só ele é capaz de experimentar a problema-ticidade do ser” (Frankl, 1989, p. 56).

Quando a vontade de busca de sentido é frustrada, pode se formar um neuroticismo específico, que Frankl denominou de neurose noogênica, cuja sintomatologia chega a incluir alcoolismo, drogadição, violência, depres-são e até suicídio. Portanto, a neurose noogênica surge a partir da dimensão noológica/espiritual do homem. Por exemplo, o uso de drogas seria consequência do senti-mento de falta de sentido, que resulta de uma frustração das nossas necessidades existenciais. O suicídio surge como uma pseudo-solução diante do vazio existencial e o impulso de tirar a vida pode ser superado se a pes-soa for consciente de um sentido que inclua propósitos pelos quais valha a pena viver – apesar de tudo (Frankl, 1993, 1997, 2000).

O homem não sabe o que fazer com seu tempo de lazer, ou com o tempo da aposentadoria, o que pode dar espaço ao vazio existencial. Este, por sua vez, pode ser terreno fértil para aflorar, por exemplo, o alcoolismo, onde a bus-ca frustrada pelo sentido dá lugar à busca pelo prazer ou também a “doença do executivo”, onde este vazio é subs-tituído pela busca do poder (Frankl, 1991a). O tratamento significa contribuir para que o neurótico encontre senti-dos para a sua vida, e consequentemente se motive tam-bém para se cuidar e engajar-se, dizendo um sim à vida, apesar das adversidades que enfrenta. O terapeuta ajuda

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a pessoa a perceber que há sentido para a vida, e facilita que se descubra este sentido. A descoberta é da pessoa, e não do terapeuta (Frankl, 1993, 1997, 2000).

O modo de vida das sociedades globalizadas atuais também pode ser entendido como uma forma de expres-são do vazio existencial vivenciado, gerando angústia e depressão. As chamadas neuroses coletivas, segundo Frankl (1997), têm quatro sintomas: atitude provisória, postura fatalista diante da vida, pensamento coletivista e fanatismo. A atitude provisória seria a falta de decisão por parte da pessoa, assumir uma postura fatalista significa acreditar que é impossível lutar contra o que a vida lhe apresenta, apresentando-se em atitude passiva. Quando a pessoa se volta para o pensamento coletivista, não assu-me sua individualidade –torna-se uniforme com a massa. Já o fanático aceita apenas sua própria opinião, ignoran-do que o outro possa pensar diferentemente. Aferra-se a um conjunto de crenças rígidas – constantemente refor-çadas e reafirmadas em pensamentos repetitivos (quase como mantras), que impedem um contato real e cuidado-so, empático, com o ser humano que se apresenta diante de si – gerando um formalismo normativo que aborta a espontaneidade e o gesto criativo. De acordo com Frankl (1997, p. 198): “Os quatro sintomas da neurose coletiva podem se reduzir a uma fuga da responsabilidade e um medo à liberdade”.

3. descobrir ou criar o sentido?

A cada dia, apresentam-se situações novas, imponde-ráveis, e reeditam-se situações previsíveis dentro da roti-na de uma pessoa. Seja no âmbito laboral, seja no fami-liar, no de uma rede de amigos ou colegas – no ambiente próximo, medial ou distante – ao passar do tempo, situ-ações escorrem. E permanecem perguntas, que se fazem no interior de cada um, no fundo, emergindo em momen-tos de silêncio, intervalos entre uma atividade e outra: há sentido para tudo isto? O que faço aqui? Há horizontes? Caminho para o nada? Ao final, como serei lembrado, se é que o serei? O que terei realizado, se é que há possibi-lidade de realizações? O que são realizações?

Segundo vários filósofos existenciais, citados por Ya-lom (1984), o homem precisa de um sentido para viver, que envolva metas, valores e ideais. Sem isso, ele pode chegar a uma atitude extrema, o suicídio. Porém, a única certeza que temos é de que não há nada absoluto e que tudo o que vivemos poderia ter sido de outra maneira. Portanto, Yalom (1984, p. 505), para quem o ser humano precisa criar um sentido para sua vida, levanta a seguinte questão: “Como pode um ser que necessita de um signifi-cado encontrá-lo em um mundo que não o tem”? A busca pelo sentido diz respeito à busca pela coerência. Quando nos perguntamos qual o sentido da vida, estamos nos re-ferindo ao “sentido cósmico”, da vida em geral; diferente-mente da busca pelo sentido da vida em particular, que o

mesmo chama de “significado terrenal”, que se refere ao que é singular ao sujeito. Este significado cósmico per-mite ao homem ver diversas maneiras de significado na sua própria vida. O homem se sente mais reconfortado por acreditar que há um ser superior a ele, que possui um plano particular com relação a este ser. Com esta cren-ça é possível estabelecer um modo de viver e de agir no mundo. Tirando o significado metafísico, o homem bus-ca achar outro significado para sua existência. Trata-se sempre de criar – a partir dos elementos que a vida traz, das possibilidades de leitura da existência que a cultura disponibiliza – criar uma visão particular que responda à pergunta sobre qual é o sentido da vida.

Frankl (1989, 2005), por sua vez, tem sua visão pró-pria, que desenvolveu já desde suas primeiras indagações na infância, e foi amadurecendo ao longo de sua traves-sia: o sentido da vida precisa ser descoberto, e não cria-do pela pessoa, diante das circunstâncias que a vida lhe apresenta, por mais trágicas que sejam. Por isso, o homem pode se posicionar e dar respostas às perguntas que a vi-da possa fazer. Cada momento traz uma pergunta, que representa um desafio e uma exigência – a vida desafia a pessoa a responder. “Responder a” é responsabilizar-se, comprometer-se perante uma tarefa que se apresenta, pe-rante uma ou mais pessoas, perante Deus.

As respostas são dadas a partir de três possibilida-des de caminho, chamadas de três categorias de valores: “criativos”, “vivenciais” e “de atitude”. Os valores criati-vos se referem a uma tarefa, um trabalho, uma obra, on-de se oferece algo ao mundo. Os valores vivenciais dizem respeito às experiências em que se recebe amor (de ami-gos, parentes, uma parceria amorosa, de Deus), recebe-se a beleza da natureza ou das manifestações artísticas, cul-turais. Já os valores de atitude são as respostas dadas pe-rante as dores que a vida apresenta, e que não podem ser modificadas – são dizer sim à vida, mesmo diante dos so-frimentos que são inevitáveis (Frankl, 1989, 2005).

Os valores criativos podem ser vividos quando se cria em um trabalho. A profissão escolhida faz com que a pessoa tenha a possibilidade de realizar-se na atividade exercida, a partir do momento em que coloca ali sua uni-cidade. Não se trata de qual atividade de trabalho, mas que nesta atividade – que seja ética – a pessoa coloque, através de sua personalidade e seu modo de existir, sua contribuição. Na ação, de acordo com o que faz e da for-ma como faz, imprimir, em seu trabalho, seu estilo úni-co (Frankl, 1989).

Os valores vivenciais acontecem quando experimen-tamos algo ou encontramos alguém. São valores que se realizam na experiência vital, onde um simples momento pode dar sentido a uma vida toda. “Com efeito, embora se trate de um só momento, pela grandeza de um momen-to já se pode medir a grandeza de uma vida”. Esta forma de encontrar um sentido na vida se dá através das rela-ções com as pessoas, com a cultura e com a arte, e atra-vés da natureza (Frankl, 1989, p. 82). O sentido do amor

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é a única maneira de captar o outro no íntimo da sua personalidade.

Ninguém consegue ter consciência plena da essência última de outro ser humano sem amá-lo. Por seu amor a pessoa se torna capaz de ver os traços característicos e as feições essenciais do seu amado; mas ainda, ela vê o que está potencialmente contido nele, aquilo que ainda não está, mas deveria ser realizado (Frankl, 1989, p. 136).

Os valores de atitude se referem ao modo do homem se comportar perante as situações que geram sofrimento e que não podem ser mudadas. Para o mesmo (1989, p. 83) é sempre verificada a possibilidade de realização desses valores de atitude, “portanto, quando um homem arros-ta um destino perante o qual nada mais pode fazer que aceitá-lo, suportá-lo; tudo está no modo como o suporta, tudo depende de que o carregue sobre si como uma cruz. Enquanto se depara com este valor de atitude, o homem é responsável e por isso, sua realização sempre continua possível”. Frankl enfatiza a importância do homem se posicionar de forma positiva, para encontrar um senti-do nas dificuldades e descreve a tríade trágica que seria o sofrimento, a culpa e a morte. “Mesmo se a pessoa não puder mudar a situação que causa seu sofrimento, pode escolher sua atitude”. Se não for possível mudar a situa-ção, é possível mudar a si mesmo (Frankl, 1989, p. 170).

Só quando o homem já não tem nenhuma possibilida-de de realizar valores criadores; só quando ele já não está realmente em condições de configurar seu des-tino, só então pode realizar os valores de atitude; só nessa altura tem algum sentido, “carregar a sua cruz”. A essência de um valor de atitude reside precisamente no modo como um homem se submete ao irremediá-vel (Frankl, 2000, p. 155).

O sofrimento convida à descoberta de valores de ati-tude, e encontrando um sentido naquela situação dramá-tica o homem faz a experiência de realizar sua humani-dade. O autor entende que: “o sentido da vida é um sen-tido incondicional, por incluir até o sentido potencial do sofrimento inevitável”. É a oportunidade de transformar o sofrimento em uma conquista (Frankl, 1989, p. 138).

Em vista da possibilidade de encontrar sentido no so-frimento, o significado da vida passa a ser algo incon-dicional – ao menos potencialmente. (...) Assim como a vida permanece potencialmente significativa sob quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis, também o valor de cada pessoa, sem exceção, a acom-panha e o faz porque está baseado nos valores que a pessoa já realizou no passado (Frankl, 1989, p. 173).

A culpa pode gerar uma oportunidade de mudança de si mesmo para melhor. Se a culpa não for trabalhada de forma correta, pode impedir o crescimento da pessoa pe-lo fato de fixar-se em uma etapa da vida. Além disso, os

sentimentos de culpa estão ligados à liberdade, respon-sabilidade e valores morais. Para Frankl (2000): “Entre as coisas que parecem tirar o sentido da vida humana estão não apenas o sofrimento, mas também a morte” (p. 144). Todavia, a transitoriedade da existência não tira o sentido da vida; mas sim constitui a responsabilidade de cada um, já que tudo depende da conscientização das possibilida-des transitórias. A postura de enfrentamento da vida ajuda a pessoa a viver a vida de forma mais ativa e consciente.

Frankl, por apostar na renovação contínua dos valores através da atualização de novos sentidos únicos, opõe-se às tendências sociais de controle da nossa cultura, que nega a questão dos valores e da autonomia da consciên-cia individual.

Esta degradação [dos valores], porém, vem a ser para o homem o preço pago por declinar de si os conflitos. (...) O caráter de conflito é antes inerente aos valores: na verdade, ao contrário do sentido das situações ir-repetíveis e únicas de cada caso, que é concreto, os valores são, por definição, abstratos universais-de- sentido; como tais, não valem pura e simplesmente para pessoas inconfundíveis, inseridas em situações irrepetíveis, estendendo-se a sua validade a uma área ampla de situações repetíveis, típicas, que interferem umas nas outras (Frankl, 2000, p. 80).

Estas três categorias de valores (de criação, de vivên-cia e de atitude) são as trilhas para se encontrar o sentido da vida. Esta, devido à sua dinamicidade, a cada hora nos possibilita vivenciarmos um tipo de valor.

4. encontro com o sentido no mundo da vida

A ideia de uma busca direta da felicidade, que ali-menta inclusive a indústria publicitária – como um argu-mento forte para a venda de produtos – essa ideia conduz a um círculo vicioso a partir da frustração de uma exi-gência (inerente à pessoa) profunda de busca de sentido. Quando o homem se limita à busca de auto-realização, está focado em si mesmo e no seu mundo, esquecendo--se do mundo que existe fora dele. O objetivo do homem é realizar um sentido, e somente quando ele o alcança consegue realizar a si próprio. A auto-realização vem como consequência, efeito colateral, da busca direta de sentido (Frankl, 1991a).

Ocorre que o homem que sempre se volta para si mes-mo e só está preocupado com os seus próprios estados – seja porque ele quer ter uma consciência tranquila ou porque quer ter prazer e sossego – a pessoa que está nes-se sentido preocupada somente consigo própria, e com os estados da sua alma, esqueceu-se de que lá fora, no mun-do, um sentido concreto e pessoal espera por ela, que lá fora uma tarefa aguarda para ser realizada por ela, e por mais ninguém. Porque o homem só pode realmente es-

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Contribuições de Viktor Frankl ao Movimento da Saúde Coletiva

tar consigo mesmo quando está com as coisas do mundo, quando ele está no mundo, quando ele se sai vitorioso no mundo (Frankl, 1991a, p. 66).

Sair vitorioso se relaciona a viver a vida como uma missão – considerar a vida em seu caráter de missão (Frankl, 1989). De forma consciente, racional, sensata, atuar se propondo a contribuir de alguma forma para o bem-estar do outro, sem deixar de cuidar de si, respeitar a si mesmo: “no experimentum crucis dos prisioneiros de guerra ou de campos de concentração foi demonstrado que não existe nada no mundo que torne o homem capaz de sobreviver a todas essas “situações-limite” como a cons-ciência de uma missão na vida” (Frankl, 1991a, p. 68).

5. contribuições de Viktor frankl à saúde coletiva

Campos (2000, p. 225) pergunta-se:

Qual seria o núcleo da saúde coletiva? O apoio aos sistemas de saúde, à elaboração de políticas e à cons-trução de modelos; a produção de explicações para os processos saúde/enfermidade/intervenção; e, talvez seu traço mais específico, a promoção de práticas de promoção [da saúde] e prevenção de doenças. (...) to-das as profissões de saúde, as nucleadas na clínica ou na reabilitação ou no cuidado, todas, em alguma me-dida, deveriam incorporar em sua formação e em sua prática elementos da saúde coletiva. (...) a missão da saúde coletiva seria a de influenciar a transformação de saberes e práticas de outros agentes, contribuindo para mudanças do modelo de atenção e da lógica com que funcionam os serviços de saúde em geral.

Viktor Frankl, em sua história, em sua clínica, e em sua produção teórica, sempre desenvolveu preocupação com a saúde da população. Já em Viena em seus tempos de estudante de medicina, concebeu e implementou cen-tros de aconselhamentos para jovens que estavam em risco eminente de cometer suicídio ou de fugas de casa. Com o aproximar-se da II Guerra Mundial, como médico em hospital, esforçava-se para contribuir ao máximo com a manutenção da saúde dos pacientes, até mesmo chegan-do a modificar prontuários, atenuando diagnósticos que, mesmo se reais, no contexto da perseguição nazista aos judeus levariam pessoas à chamada eutanásia (compul-sória). A mudança do diagnóstico garantia a permissão para que o paciente permanecesse vivo (Rodrigues, 1996; Xausa, 1998).

O grande número de jovens que se suicidavam em Viena se explicava, na análise de Frankl, pelo fato de não terem perspectivas de vida, sentirem-se perdidos em um sentimento de falta de sentido (situação que não difere tanto daquela de milhares de jovens brasileiros, que se lançam também no uso compulsivo de crack – comentá-rio nosso). Os centros de aconselhamento, onde trabalha-

ram vários profissionais de saúde que aderiram à causa – motivados por Frankl, atuavam a partir de uma escuta acolhedora dos jovens, e um diálogo no qual a busca era de contribuir para conscientizar sobre o fato de a vida ter sim um sentido, ajudar o jovem a identificar em sua vida perante que obra, trabalho, projeto e/ou pessoas poderia se responsabilizar, fazer a diferença, mostrar sua unici-dade, realizar sua missão. Os jornais, após algum tempo, noticiavam que a frequência de suicídios baixou para ze-ro (Rodrigues, 1996; Xausa, 1998).

Posteriormente, ao coordenar uma ala psiquiátrica de um hospital geral – ala destinada aos pacientes depressi-vos suicidas, Frankl seguiu a mesma lógica de contribuir para que o paciente encontrasse seu horizonte de valores, de sentido, a partir do qual valeria inclusive suportar o sofrimento do estado depressivo, para direcionar-se ao fu-turo, a um futuro digno, valoroso – na crença de um senti-do incondicional para a vida, do poder escolher dizer um sim à vida, apesar de tudo (Rodrigues, 1996; Xausa, 1998).

O chamado grande experimento, experimentum crucis, porém – a vida de prisão nos quatro campos de extermí-nio nazistas – permitiu a Frankl o forçoso e compulsório laboratório, onde ele mesmo se reconheceu como parti-cipante de um processo dolorosíssimo, onde o maior fa-tor com valor de sobrevivência foi a crença de que a vida tem sentido mesmo nas piores circunstâncias: a busca cotidiana, com grande esforço, de encontrar este sentido. (Frankl, 1989, 2008; Rodrigues, 1996; Xausa, 1998). Ali, fundamental foi conseguir suportar (Kleinman, 2014), e isso, a partir da certeza no sentido, motivou a construção de um processo de resiliência (Silveira, 2007; Silveira & Mahfoud, 2008).

Em toda a sua travessia vital, vislumbramos atitudes que se inserem perfeitamente na visão que se construiu sobre saúde coletiva (Campos, 2000). Em uma grande coe-rência entre vida pessoal privada, linha de pesquisa, prá-xis clínica, escrita e docência, Frankl mostrou sua digni-dade: houve um grande cuidado (Kleinman, 1998, 2009, 2012, 2014) com a pessoa (inclusive o assim-designado paciente), em um trabalho inclusive em rádios e televisão, na direção da promoção da saúde (Frankl, 1991b). Frankl afirmou que o sentido de sua vida estava em contribuir pa-ra que as pessoas encontrassem os sentidos de suas vidas.

Campos (2000, p. 228) sugere que “os sanitaristas e demais profissionais de saúde assumam explicitamente uma visão de mundo fundada na radical defesa da vida das pessoas com as quais trabalhem”. A saúde coletiva constrói-se no movimento sanitarista, na constituição e defesa do SUS (Sistema Único de Saúde), no processo de promoção da dialética do ser saudável. Esta construção é um vir-a-ser (como se refere Sartre), uma busca constan-te (Minayo citado por Campos, 2000, p. 227), com uma renúncia à pretensão de constituir verdades (conforme Foucault), em abertura para dar voz aos trabalhadores de saúde, acadêmicos, usuários, gestores: “caberia aos traba-lhadores e aos usuários, a partir de seus próprios desejos

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e interesses, apoiando-se em uma teoria sobre a produ-ção de saúde, tratar de construir projetos e de levá-los à prática” (Campos, 2000, p. 228).

Pontilhar as conversas e diálogos, considerando a tra-dição democrática do movimento da Saúde Coletiva (Cam-pos, 2000) – em que se cuidam/gestam/nascem práticas e reflexões. Pontilhar encontros com temas propostos por Viktor Frankl, como autotranscendência/autodistancia-mento, vontade de sentido, valores de criação/vivenciais/atitudinais, supra-sentido, vazio existencial, neuroses co-letivas e noogênicas, podem trazer consistentes nutrien-tes e saborosos frutos.

Considerações finais

A saúde coletiva chama a conceber os sujeitos que buscam tratamento por uma condição de saúde adversa como cidadãos – possuidores de capacidade de pensa-mento crítico. E a trabalhar para a promoção da saúde, a partir de um processo de empoderamento do sujeito co-mo construtor de projetos de vida confortável e saudável, que incluem questões como sua empregabilidade, aces-so à educação, acesso ao lazer, melhoria da mobilidade urbana, redução de fontes de stress, melhoria da convi-vência, participação em mobilizações políticas não par-tidárias e partidárias. Saúde que transcende em muito uma visão de ausência de doenças, chegando à confecção de autonomia e bem-estar, e projeto – agora com Frankl (1989, 1990, 1991a, 1991b, 1993, 1997, 2005, 2008), en-contro de seu projeto de vida que se situa na trilha da descoberta do seu sentido único – que inclui pensar-se para “como missionado a ser si mesmo, realizando algo no mundo. A logoterapia, em sua missão de contribuir para a qualidade de vida humana, coloca-se disponível ao movimento da saúde coletiva.

Logoterapia “é uma terapia que ousa elevar-se à dimen-são do espiritual” e logos significa “sentido”, aponta para dimensão noológica/espiritual. A logoterapia, especifica-mente, enfoca a atitude do paciente diante do sintoma.

(...) a logoterapia procura direcionar e orientar o pa-ciente para um sentido concreto e pessoal. Ela não tem função de dar sentido à existência do paciente, afinal de contas, ninguém esperaria nem mesmo exi-giria que a psicanálise, que se ocupa tanto da sexu-alidade, arranjasse casamentos ou que a psicologia individual, que se ocupa tanto da sociedade, arran-jasse empregos; assim, tampouco a logoterapia ar-ranja valores. Não se trata de darmos ao paciente um sentido da existência, mas apenas de o tornarmos ca-paz de descobrir o sentido da existência, de ampliar-mos, por assim dizer, o seu campo de visão, de for-ma que ele perceba o espectro completo de possibi-lidades de sentido e de valores pessoais e concretos (Frankl, 1991a, p. 72).

Para que o paciente tenha consciência de um sentido possível, o psicoterapeuta deve estar consciente de todas as possibilidades de sentido, como o sentido do sofrimen-to, sob um destino inalterável ou até mesmo fatal: “este sofrimento, contém a possibilidade de realizar o sentido mais profundo e os valores mais elevados: assim a vida, até o último momento, não deixa de ter um sentido” (Frankl, 1991a, p. 72). A logoterapia torna o paciente consciente de que ele é responsável, deixando-o perceber e decidir por si mesmo – sendo responsável perante o que ou quem. Portanto, cabe ao homem perceber, entre as possibilidades que lhe são apresentadas, qual ou quais se destacam como as que são as melhores para serem realizadas.

Cada dia, cada hora proporciona um novo sentido, e um sentido especial espera cada pessoa. O sentido é, portanto, sempre um outro. Mas sempre há um, até o fim. Pois não há pessoa para a qual a vida não pre-pararia uma tarefa, e não há situação na qual a vida pararia de nos oferecer uma possibilidade de sentido (Frankl, 1981, p. 46).

Na verdade, não cabe ao homem indagar sobre o senti-do de sua vida. Ele deveria (...) compreender-se como alguém que é indagado, e é justamente sua própria vi-da que o indaga, e ele tem de responder, ele tem de se responsabilizar pela sua vida. De fato, a análise exis-tencial vê no ser responsável a essência da existência do homem (Frankl, 1976, p. 73).

A busca pelo sentido é uma necessidade humana, po-rém a nossa sociedade faz com que a cada dia tenhamos mais aflorada a sensação de falta de sentido. Diferente-mente de outros autores, Frankl acredita que o sentido da vida não é algo que pode ser atribuído ou criado por nós, ele se coloca a cada dia como um desafio e exigên-cia a ser descoberto. Encontrar este sentido que permeia e estrutura a vida, evita que a pessoa se desajuste e aca-be adoecendo. O sentido da vida é essencial: a busca por sentido é o que move cada um.

A sociedade brasileira – com suas tensões e contradi-ções, mas também com seus recursos e belezas – é cená-rio de habitação para tantos sujeitos, que, humanos, vi-vem sua dialética pessoal e coletiva de saúde e doença. O movimento da saúde coletiva, e então o SUS, inserem- se neste processo com a função de contribuir para a pro-moção e construção de sujeitos saudáveis e autônomos, em projetos democráticos. (Campos, 2000).

Neste artigo pretendeu-se apresentar a Logoterapia de Viktor Frankl, e apontar para um diálogo com o mo-vimento da Saúde Coletiva. O ser humano padecente apresenta-se. A vida convida a continuar o trabalho pa-ra a construção de resiliência – busca da felicidade pos-sível em um mundo adverso: promoção de processo de construção de saúde. Fica o convite a aprofundar esta convivência.

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Contribuições de Viktor Frankl ao Movimento da Saúde Coletiva

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Daniel rocha Silveira - Graduado em Psicologia e Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, com Especialização em Psicoterapia de Abordagem Existencial-Fenomenológica e Gestálti-ca (FEAD) e Formação em Logoterapia (SOBRAL). Doutorando em Saú-de Coletiva, Antropologia do Envelhecimento pela Fundação Oswaldo Cruz/Centro de Pesquisas René Rachou, Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected]

Fernanda Jaude Gradim - Possui Graduação em Psicologia pelas Facul-dades Integradas Pitágoras, com Especialização em Psicologia Clínica: Existencial e Gestáltica pela FEAD e Especialização em Saúde Mental: Política, Clínica e Práxis pela PUC Minas. E-mail: [email protected]

Recebido em 25.04.2014Primeira Decisão Editorial em 10.09.2014Segunda Decisão Editorial em 20.02.2015

Aceito em 28.10.2015

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raqueL De Paiva Mano

iLeno izíDio Da coSta

resumo: Trata-se de um estudo sobre o fenômeno espiritual na clínica psicológica com indivíduos em sofrimento psíquico grave. Partimos de uma abordagem fenomenológica, visitando quatro autores seminais: Edmund Husserl, Edith Stein, Rudolf Otto e Paul Tillich. Utilizamos adicionalmente a abordagem psicanalítica de Donald Winnicott na reflexão discussão e no manejo clínico, além de outros autores da área. Tal revisão propiciará uma reflexão sobre a experiência pseudocultural e religiosa de possessão ou de graça e contemplação, em contraposição à crise psicótica e seus correlatos, objetivando promover discussões e novos posicionamentos sobre os diagnósticos postulados pela psiquiatria e a clínica psicológica tradicional. palavras-chave: Fenomenologia; Experiência espiritual; Sofrimento psíquico grave; Psicoses.

Abstract: It is a study of the spiritual phenomenon in clinical psychology with individuals in severe psychological suffering. We start from a phenomenological approach, visiting four seminal authors: Edmund Husserl, Edith Stein, Rudolf Otto and Paul Til-lich. We additionally use the psychoanalytic approach of Donald Winnicott in discussion and clinical management, in addition to other authors of the area. Such revision will provide a reflection on the pseudocultural and religious experience or possession of grace and contemplation, as opposed to psychotic crisis and its related, aiming to promote discussions and new positions on the diagnostic postulated by traditional psychiatry and clinical psychology.Keywords: Phenomenology; Spiritual experience; Serious psychic suffering; Psychoses.

resumen: Se trata de un estudio sobre el fenómeno espiritual en la clínica psicológica con individuos en sufrimiento psíquico grave. Partimos de un enfoque fenomenológica, visitando cuatro seminales autores: Edmund Husserl, Edith Stein, Rudolf Otto e Paul Tillich. Utilizamos también el abordaje psicanalítica de Donald Winnicott en la discusión y en el manejo clínico, además de otros autores. Tal repaso propiciará una reflexión sobre la experiencia pseudocultural y religiosa de possessão o de gracia y con-templação, en contraposición la crisis psicótica y sus correlatos, objetivando promover discusiones y nuevos posicionamientos sobre los diagnósticos postulados por la psiquiatria y la clínica psicológica tradicional.palabras clave: Fenomenología; Experiencia espiritual; Sufrimiento psíquico grave; Psicoses.

O Homem Louco – [...] Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem!

Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós assassinos

entre os assassinos?Nietzsche, Gaia Ciência, 2001, §125.

1

1 O presente artigo é parte da introdução da Tese de Doutorado da primeira autora, em desenvolvimento no Programa de Pós-Gradu-ação em Psicologia Clínica e Cultura (PPG-PsiCC) da Universidade de Brasília (UnB), e vinculada ao Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras Crises do Tipo Psicótica (GIPSI) da UnB, orientada pelo segundo autor.

introdução

O presente estudo não pretende aprofundar-se a res-peito da filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche. Com ele iniciamos, no entanto, pelo fato de ter sido, prova-velmente, a figura mais importante na filosofia no que se diz respeito ao questionamento sobre a forma ética--moral do viver do homem segundo os padrões religio-sos, tirando de si a responsabilidade pessoal e intrans-ferível dos seus atos e decisões, bem como de questio-nar a pessoa de Deus como ser que atua e interfere na vida e nas experiências do ser humano. Utilizamos da sua frase célebre, no sentido de problematizá-la em uma contextualização para o assunto que pretendemos de-senvolver, afirmando – contrário à sua posição de ateís-

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“Deus não morreu e o diabo existe”. Reflexões Fenomenológicas sobre a Experiência Espiritual e o Sofrimento Psíquico Grave

ta – que existe uma dimensão espiritual que interfere e se relaciona com o homem.

Aqui pretendemos refletir no que se refere à experi-ência espiritual na prática da psicologia clínica como um tema polêmico e recorrente, tendo despertado interesse de diversas áreas que estudam o ser humano e sua rela-ção com o mundo e o sagrado. Independente de se ter ou não uma crença na existência do sagrado e do profano, o fenômeno religioso acontece efetivamente nas experiên-cias íntimas das pessoas, que relatam com convicção e riqueza de detalhes suas vivências com Deus e os anjos, com o diabo e seus demônios, sendo estes, protagonistas dos seus anseios, medos, conquistas e sofrimentos. Este fato não pode ser simplesmente ignorado ou diagnostica-do arbitrariamente como um transtorno mental ou uma crise psíquica, o que nos leva a refletir e levantar ques-tionamentos sobre a postura da psiquiatria tradicional e o seu modelo nosográfico e determinista que não serve como parâmetro, a não ser de doença, na análise des-te fenômeno, bem como da psicologia, suas limitações e preconceitos na atuação deste fenômeno. A sua com-plexidade deve ser refletida em todos os seus aspectos, que ultrapassam fatores biológicos, sociológicos, antro-pológicos ou históricos e políticos. Ele alcança aspectos filosóficos, teológicos e psicológicos, levando em consi-deração as experiências individuais e subjetivas, o que o transforma em uma das dimensões mais marcantes da experiência humana. Como então classificá-lo simples-mente como “patológico”?

Sob a ótica epistemológica da fenomenologia refle-tiremos sobre a experiência desses sujeitos e a maneira que esse fenômeno se manifesta nas vivências das pes-soas em sofrimento psíquico grave (Costa, 2003), a par-tir de seus discursos. A fenomenologia segundo Husserl (1913/2006) busca investigar a experiência dos sujeitos e a forma pela qual os fenômenos chegam à consciência, e a maneira pelos quais são experimentados. Neste meca-nismo, considerado como consciência intencional, todas as vivências se organizam e acontecem a partir de uma percepção. Interessa-nos compreender de onde emerge a percepção desse fenômeno e como se dá o acontecer expe-riencial, tal como o sujeito o manifesta em sua expressão verbal ou escrita, objetiva ou subjetiva. Todas as vivências se organizam e acontecem a partir de uma percepção. A imaginação, por exemplo, só pode existir enquanto uma vivência que foi registrada na memória, retida, de algo per-cebido, temporal. Surge então a pergunta: e a percepção do sagrado-profano? Emerge de onde? O fenômeno surgiu de que maneira? De onde veio a percepção? De qual ma-neira, que não de maneira física? Como representação? Representação do que? Voltando aos conceitos iniciais da fenomenologia, sabemos que fenômeno é tudo o que se mostra a consciência. É aquilo que se mostra. A fenome-nologia começa sempre com uma percepção.

Dessa maneira, a análise fenomenológica visa analisar os sentidos, o que eu estou percebendo. Esse fenômeno

aparece porque tem um fundamento. Ele não existe em si mesmo, por si mesmo. Qual seria o seu fundamento? A minha percepção? Goto (2004) assinala que a origem fenomênica se manifesta na sua totalidade, e não apenas nos significados físicos. Nessa perspectiva, temos muito que avançar. Como diferenciar uma experiência pseudo-cultural, ou religiosa de possessão ou de graça e contem-plação, de uma crise psicótica? Ou como não atribuir esta experiência a uma epilepsia localizada no lóbulo tempo-ral? Ou a um transe dissociativo? Uma ideia delirante? Um processo de comando sugestionado?

Estes são alguns dos desafios lançados neste estudo. Eliade (1959/1996) afirma que a única forma de com-preender o universo mental desse “Homo religiosus” é situar-se dentro dele, para alcançar, a partir dai, todos os valores que esse universo comanda. Para isto, cabe a nós uma disposição mental, emocional e espiritual para adentrar nesse “mundo alheio”. Assim, provavelmente, a afirmação de Nietzsche, que “Deus está morto”, seja a mais complexa, mais provocativa e mal compreendida da história da humanidade. Como pode morrer alguém que não existe? Ou como pode morrer um ser que existe em si mesmo? Por si mesmo? Um ser metafísico? Como nos afirma o texto bíblico: “Antes de formares os montes e de começares a criar a terra e o universo, tu és Deus eternamente, no passado, no presente e no futuro” (Sal-mos 90.2). A pergunta sobre Deus acompanha a história da humanidade.

Com “a morte de Deus”, a forma de pensar “metafísica” também se encerra e com ela a ideia tradicional a respeito da religião. Aqueles que têm uma leitura aprofundada da sua obra compreendem que essa frase não diz respeito à “existência” ou ao “fim da existência” de Deus. Seu fim era provocativo! Seu objetivo era condensar e denunciar o espírito da sua época, a decadência da metafísica com todos os dogmas e valores morais que o Deus do cristianis-mo representava para a cultura europeia e o pensamento ocidental. A arte, a ciência e a política eram protagonistas da época e com isto havia um desprezo velado por tudo o que envolvia o religioso e sagrado. A Europa já vivia uma época “sem Deus”, porém, não admitia. Com a sua afirmativa, Nietzsche além de denunciar a hipocrisia da época, trouxe a possibilidade de algo totalmente novo: a liberdade do homem, que não seria mais determinado por forças divinas, tornando-se dono do próprio desti-no. Não havia mais a ideia de uma “verdade” absoluta a ser seguida. Concomitantemente a essa morte, o homem perde suas muletas metafísicas e precisa encarar o mun-do e o devir sem a intervenção divina, assumindo a sua própria existência.

“A morte de Deus” refere-se também, e principalmente, ao fim de uma forma de pensar. A estrutura religiosa do pensamento como árbitro e guardiã da moral que apon-tava os conceitos morais como o bem e o mal, o justo e injusto, sendo fundamentada na pessoa de Deus e do cris-tianismo, também teve o seu fim decretado. Heidegger,

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em sua obra “Nietzsche”, relata: “Deus está morto”. Essa sentença quer dizer que:

O Deus cristão” perdeu o seu poder sobre o ente e sobre a definição do homem. O “Deus cristão” é ao mesmo tempo a representação diretriz para o “suprassensível” em geral e para as suas diversas interpretações, para os ideais e para as normas, para os “princípios” e as “regras”, para as “finalidades” e os “valores” que são erigidos “sobre” o ente a fim de “dar” ao ente na tota-lidade uma meta, uma ordem, e como se diz de manei-ra sucinta um sentido (Heidegger, 1936/2014, p. 482).

Com uma visão similar à de Nietzsche, Freud desen-volve sua teoria a respeito da religião e dedica cinco das suas maiores obras: Totem e Tabu (1913), Psicologia das massas e análise do ego (1921), O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar da Civilização (1930) e Moisés e o Mo-noteísmo (1939), dentre outros pequenos textos que trou-xeram reflexões sobre o fenômeno religioso. O estudo do fenômeno religioso na psicanálise2 integra os processos subjetivos do desenvolvimento humano e, diferente da teologia, não produz afirmações ou negações a respeito da realidade ontológica de Deus, mas fundamenta-se na observação dos componentes do comportamento huma-no, analisando a formação da personalidade com seus conteúdos religiosos. A partir dos estudos de Freud so-bre o inconsciente, emerge a metapsicologia, uma ciência psicológica que supera o referencial neurobiológico e se concentra nos aspectos subjetivos e culturais do homem, trazendo uma análise antropológica e cultural do sujeito. Freud, então, desenvolve o seu postulado teórico a partir de dois registros da vida civilizada que se tornam gran-des temas na análise psicológica do sujeito e da cultura: a sexualidade e a religião.

Enquanto as ideias de Nietzsche eram difundidas contrárias a toda e qualquer forma de pensar metafísico, a psicologia da religião nasce na década de 1880, tendo como precursores Wundt, Starbuck, Leuba, Freud, Jung e o seu maior representante, William James, que teve como objetivo a aplicação da psicologia ao estudo da religião. Dentre várias dificuldades, James propôs delimitar o ob-jeto de estudo da religião, questionando sobre o desejo comum da humanidade em relação à religião, se a mes-ma não seria apenas um produto da história, da cultura ou da economia. Também questiona o seu conceito e se é aplicável a todas, se poderia ser considerado universal ou se variáveis (James, 1902/1986).

Savio e Bruscagin (2008) qualificam a religião como uma poderosa força norteadora dos valores da família e da sociedade, ditando a moral e as normas de comportamen-

2 Uma leitura mais detalhada do tema se encontra na minha disserta-ção de mestrado “O sofrimento psíquico grave no contexto da religião pentecostal e neopentecostal. Repercussões da religião na formação das crises do tipo psicótica”, defendida no PPG de PsiCC do Institu-to de Psicologia, Universidade de Brasília. (Mano, 2010).

to. Essas autoras relembram que, na antiguidade, religião e cultura geral não se distinguiam, mas com a chegada da modernidade, tomou-se uma consciência da autonomia e chegou-se à independência e ao confronto entre a re-ligião e a ciência. Na pós-modernidade, continuam, já é possível ter uma perspectiva que reúna os fragmentos da existência pessoal e social entre os quais religião e psico-terapia. Sobre esse novo aspecto afirmam:

O pensamento pós-moderno abriu a possibilidade de entendermos a religião e a espiritualidade como as-pectos importantes da experiência humana. Para mui-tas pessoas, a religião é parte integrante de suas vidas e experiências cotidianas. Na ciência e na psicologia pós-modernas, valorizam-se o singular, o idiossincrá-tico e o contextualmente situado, em vez de leis ge-rais. Assim, o lugar do terapeuta como concebemos é como um co-construtor que, ao lado das famílias, tem suas ideias como facilitador da conversação te-rapêutica (p. 22).

A pluralidade de teorias e movimentos da psicologia em geral leva a uma falta de paradigma global e único de pesquisa e de compreensão do fenômeno. Cabe aqui, de forma sucinta, esclarecer o objeto da psicologia da reli-gião que é o homem na qualidade de religioso nos seus desejos, motivações, experiências e atitudes expressas em seu comportamento, conforme Ávila (2007, p. 15). Partindo do paradigma da Psicologia da religião, este autor defende a vivência religiosa como uma realidade psíquica complexa, na qual se integram sentimentos, atitudes e razões, corroborando que “a articulação des-sa realidade supõe como toda experiência humana, dois níveis, um pré-racional, mais intuitivo e emocional, e um segundo momento no qual se articulam os conteúdos dessa experiência de forma razoável e referendada por uma forma de vida” (p. 16). Com o decorrer dos anos e o aprofundamento do estudo do religioso, surgem gran-des nomes ligados ao tema, que aprofundam a pesquisa para além de descrições ou sistematizações culturais e antropológicas.

Gerardus Van Der Leeuw (1890-1950), considerado o primeiro sistematizador da fenomenologia no campo re-ligioso, propõe um método de compreensão, para além da descrição da experiência religiosa, partindo da análise das linguagens e das manifestações dos fenômenos. Li-gado à fenomenologia filosófica de Husserl, publicou a obra Fenomenologia da Religião (1933). Considerada um clássico, é marcada com poesias que expressam prova-velmente o caráter “experiencial” do fenômeno religioso e não apenas “descritivo” que o autor propôs efetivamen-te. Os temas como natureza, plenitude divina, mística, salvação, sacramentos e outros são acompanhados com maestria com poesias de poetas e filósofos como Johann Wolfgang Von Goethe, Conrad Ferdinand Meyer, Homero (Antiguidade grega) e tantos outros. A partir desta obra,

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“Deus não morreu e o diabo existe”. Reflexões Fenomenológicas sobre a Experiência Espiritual e o Sofrimento Psíquico Grave

a fenomenologia da religião se identifica como uma dis-ciplina diferenciada das outras. Ele afirma (Van Der Le-ew, 1933/2009):

O estudioso da religião não pode simplesmente ficar “engessado” pelas pesquisas tradicionais, comumen-te estabelecidas pelos pressupostos teológicos, filosó-ficos ou científicos, nem tão pouco acopladas a uma mentalidade simplista de senso comum, como se o fenômeno religioso fosse algo puramente individua-lizante, particular ou divinatório (p. 183).

Sobre Leeuw, Goto (2004) destaca o fato de que, a partir dos seus estudos, foi marcado uma diferenciação efetiva da Fenomenologia da religião como ciência da religião e do sagrado, diferenciando-se de outras ciências. Citando o autor, a Fenomenologia “não é poesia da religião, não é história das religiões, não é psicologia das religiões, não é filosofia das religiões e não é também teologia” (p. 64). Apesar de que outras disciplinas possam estar ligadas à fenomenologia, esta é uma ciência autônoma e com métodos que independem em relação a outras matérias. A Fenomenologia da religião surge, portanto, como uma ciência que se ocupa exclusivamente dos fenômenos, isto é, daquilo que se mostra na própria vida, sem apoiar-se em teorias ou pré-conceitos.

O aspecto vivencial da experiência religiosa tornou-se tema preponderante e os estudos de Leew, como também foi uma base fundamental para o surgimento da filosofia da religião de Rudolf Otto3 que desenvolveu a analise do fenômeno religioso em bases fenomenológico e herme-nêutico. Como podemos ver, a fenomenologia da reli-gião surge num contexto histórico-intelectual favorável e em pleno momento de uma restruturação epistemoló-gica com a chegada do século XX. Goto (2004) destaca a apropriação de ideias com características “pré-feno-menológicas” surgidas ao longo da história com recur-so metodológico para a teologia e seus principais repre-sentantes como Friedrich D. E. Scheleiermacher, Rudolf Otto, e Paul Tillich.

Rudolf Otto foi colega de instituição de Edmund Hus-serl. Mesmo com essa proximidade, em nenhum momen-to da sua obra “O Sagrado”4 (1917/2005) fez referência ao método fenomenológico, mesmo tendo sido reconhecido por Husserl como ter ele aplicado de forma magistral o método fenomenológico em seu livro. Como sabemos, no início do século XX havia um excesso de racionalização da cultura ocidental. Otto propõe e resgata a experiência com o sagrado como uma experiência originária, retiran-do o aspecto puramente racional e a ênfase intelectual

3 Rudolf Otto, filósofo e teólogo, propõe que o caráter específico do fe-nômeno religioso precisa ser visto e analisado como um constructo pessoal e existencial do homem com o seu objeto de fé.

4 “O Sagrado”. Publicado em Marburg, na Alemanha em 1917, foi de fundamental importância para transformar essa cidade na “Meca das ciências da religião”.

dada ao fenômeno. Mostrando a complexidade do sagra-do em suas categorias racionais e não racionais, ele bus-ca resgatar a ideia de Deus que fora perdida e enfatiza a experiência do homem com o sagrado de forma admirá-vel e instigante.

Como corpo teórico deste estudo, recorremos a ou-tro filósofo e teólogo atualmente reconhecido pela sua sistemática e rigor científico que nos traz a possibili-dade de analisar esse fenômeno para além da teologia. Paul Tillich, que partiu dos estudos de Edmund Hus-serl e Martin Heidegger e desenvolveu o que denomi-nou de uma fenomenologia crítica, utilizando o méto-do fenomenológico aplicado ao estudo do fenômeno re-ligioso. Foi influenciado pela fenomenologia dentro da teologia, analisando os seus conceitos básicos, aplica o método fenomenológico na validação da experiência da revelação. Revolucionário e por isso muito criticado pelos teólogos da época, logo no inicio do texto da sua mais importante obra “Teologia Sistemática” (1987), 5 afirma que “a teologia deve considerar a interpretação criativa da existência”. Uma interpretação que é elabo-rada em todos os períodos da história, sob todos os ti-pos de condições psicológicas e sociológicas” (p. 14). E afirma: “... A teologia não está interessada no aumento das doenças mentais ou na consciência crescente delas. Ela está interessada na interpretação psiquiátrica dessas tendências” (p. 14). Tillich ao falar sobre o sentido da revelação, afirma que a teologia deve aplicar a aborda-gem fenomenológica a todos os seus conceitos básicos. Afirma isto mesmo a criticando como sendo insuficien-te. Aponta ao fato de que, enquanto a fenomenologia é competente no reino dos sentidos lógicos, que era o obje-to de pesquisas originais feitas por Husserl, ela é só par-cialmente competente no reino das realidades espiritu-ais, como a religião (p. 94). Ele une o elemento intuitivo descritivo com o elemento existencial crítico e desenvol-ve a fenomenologia crítica, afirmando ser este o método mais adequado para fornecer uma descrição normativa dos sentidos espirituais “e também Espirituais” (p. 96).

Ainda sobre a análise fenomenológica do fenômeno religioso, mergulharemos agora nos estudos de sua repre-sentante mais próxima, que dando prosseguimento aos estudos de Husserl, adentrou na busca pelo sentido mais profundo da existência humana. Trata-se de Edith Stein. Filósofa, de origem Judia, converteu-se ao catolicismo após a leitura dos escritos de Santa Teresa de Ávila e foi a primeira mulher a conquistar o título de doutora em Fi-losofia com a tese “Sobre o problema da Empatia” (1989). A obra de Edith Stein passa por três períodos específicos: o fenomenológico, pedagógico e místico. A sua obra filo-sófica mais importante é o livro “Ser finito e ser eterno”6

5 O volume I foi publicado em 1951 pela Universidade de Chicago, que posteriormente publicou o volume II em 1957 e o volume III em 1963.

6 Obra publicada em 1951. Nela, Stein contrapõe o pensamento de Heidegger sobre a questão do sentido do “ser”. O título refere-se a experiência do indivíduo, “ser finito” com o divino, “ser eterno”.

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tendo sido escrito quando já tinha se tornado carmelita, após perder a cadeira universitária e ser impedida de le-cionar pelo governo nazista, por ser de origem judaica. Em 1942 foi levada ao campo de concentração e execu-tada na câmara de gás.

Em apêndice, Stein coloca um ensaio dedicado a Mar-tin Heidegger, colega de curso, especificamente ao “Ser e tempo”, pela análise feita do “ser-ai” (Da-sein), “ser fini-to”, sem ter encontrado uma ligação com o “ser absolu-to” (Sein). Alles Bello (2014) fala da trajetória desse es-tudo que vai do ser humano a Deus, e em seguida volta para a alma humana, na qual revela a presença de Deus. A originalidade da pesquisa está no fato de Stein utilizar o método fenomenológico, colocando em evidencia aquilo que é essencial, segundo os ditames da primeira redução proposta por Husserl, a redução eidética (p. 38). A partir dai, constrói seu próprio caminho.

Safra (2005) discorre sobre Stein como rigorosa em suas concepções e pesquisas, aprofundando-se e abordan-do os diferentes registros da experiência humana. Afirma que ela analisa a estrutura humana como fundamento e matriz, discutindo filosoficamente e abordando a corpo-reidade, a alma e o espírito. A corporeidade como espaço de acontecimento humano, o psíquico como questões li-gadas a alma, ao psicológico e o espírito como ontológico; uma condição humana aberta para além e em transcen-dência de si e para fora de si. Em seu clássico “Ser finito e ser eterno” (1994) afirma:

A alma é o espaço em meio do total que está formado pelo corpo, a alma e o espírito. Enquanto alma sensí-vel, habita em todos os membros e partes do corpo, re-cebe dele e opera sobre ele formando-o e mantendo-o. Enquanto princípio espiritual ele transcende-o ‘de lá’ de si mesma e olha um mundo situado mais ‘para lá’ de seu próprio eu: um mundo de coisas, de pessoas, de fatos; comunica-se com ele inteligentemente, e dele recebe impressões; enquanto alma no sentido própria habita em si mesma e nela o eu pessoal está como na sua própria casa (p. 388).

Outro conceito baseado nesta autora é o conceito de “Hilética.7 Este termo refere-se a materialidade, aquilo que existe. O hilético é revelado pela sensibilidade humana e o singular aparece como cada um elege e como isso apa-rece. A possibilidade de se abrir para isso que se revela e nos afeta, tem um sentido fundamental na compreensão dos fenômenos. É perceber o que já existe. Deixar mate-rializar-se na corporeidade e na sensibilidade.

7 Husserl (1913) introduz o termo “hilética” em sua obra “Ideias pa-ra uma Fenomenologia pura e para uma Filosofia Fenomenológica”, no livro I, no parágrafo 97 – os momentos hiléticos e noéticos como momentos reais do vivido; os momentos noemáticos como momen-tos não reais dele (p. 223). No segundo livro, “Ideias para uma Feno-menologia pura e para uma Filosofia Fenomenológica”, aprofunda o conceito relacionando-o a experiência do corpo. Porém, quem dar continuidade ao estudo da hilética é sua discípula, Edith Stein.

Baseada no conceito de “Hilética” e dentro do seu campo de estudo sobre a “empatia”, Stein emprega uma metodologia para entender os fenômenos, recolhendo uma descrição dos mesmos. Essa intenção mesmo que metodologicamente diferente, encontramos na clínica psicológica de D. Winnicott. Para ambos, não é o conceito que norteia o fenômeno, mas o fenômeno que direciona o conceito. Dessa forma, olha-se o fenômeno de maneira clara, como ele realmente se apresenta.

Winnicott (1971) apresenta no campo psicanalítico, aquilo que considerou como um mistério e, portanto, nes-se âmbito, como paradoxo não sendo para ser revelado ou resolvido. Estará sempre entre “fato e fantasia, criação e descoberta”. Refere-se a uma terceira área da experiên-cia, o espaço potencial, área da experiência nem subje-tiva, nem objetiva: a base para a vivência dos objetos e fenômenos transicionais.

Do objeto transicional, pode-se dizer que se trata de uma questão de concordância, entre nós e o bebê, de que nunca formularemos a pergunta: Você concebeu isso ou lhe foi apresentado a partir do exterior? O im-portante é que não se espere decisão alguma sobre es-se ponto. A pergunta não é para ser formulada (p. 28).

E continua: “(...) sendo uma realidade incontestável, a qual pertence a realidade interna e externa comparti-lhadas, constitui a parte maior da experiência do bebê e, através da vida, é conservada na experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginário e ao trabalho científico criador” (p. 30). Winnicott (1998) traz a importância da corporeidade como forma de inter-locução com o outro. Como afirmando que não há fun-ção corporal que não veicule uma ideia. Para o autor, há duas dimensões: a discursiva e a imagética. A formação da mente se dá a partir do mundo imagético. Na visão de Safra (2005/2006) essas dimensões psíquicas nos movem, nos empresta significado as coisas. Desta forma, confirma a posição Winnicott assinalando que o analista winnicot-tiano não ouve, sente! É psicossomático! Desta feita, so-mos afetados corporalmente pela presença imagética do outro e por sua fala.

Na dimensão hilética, acessamos aquilo que visita a sensibilidade do ser humano e está presente na trans-cendência ultrapassando o nível psíquico. Na exempli-ficação da clínica Winnicottiana, numa leitura de Safra (2006), uma imagem apresenta o que a pessoa produz na fala: fixação da libido, relação objetal, sentido existencial e concepção do divino. Dessa maneira, dá-se o compre-ender o sentido de ser de alguém. Essa clínica acontece pela possibilidade de nos deixarmos “afetar” em nossa sensibilidade e corporeidade. O fenômeno é revelado a partir desse “afetar” e não apenas pelo simples entendi-mento racional ou por um sistema conceitual anterior ao mesmo. Safra (2006) ainda nos leva a pensar nessa clíni-

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“Deus não morreu e o diabo existe”. Reflexões Fenomenológicas sobre a Experiência Espiritual e o Sofrimento Psíquico Grave

ca baseada numa trilogia da constituição humana: (esté-tica, ética e sagrado), afirmando que, o que temos tido é uma teorização da subjetividade humana e da situação clínica excessivamente abstrata e objetificada que inca-pacita o analista de contemplar as dimensões do ethos e da condição humana. Esta clínica com pressupostos fe-nomenológico-existenciais pauta-se no ser integral, bus-cando o desvelamento do indivíduo que é singular em seu sofrimento psíquico.

Por sofrimento psíquico, entendemos a partir e um pouco além da sua definição etimológica clássica. A pa-lavra sofrimento vindo do latim “sufferre”, que indica “es-tar “sob ferros”, aprisionado”. Sendo o “ato ou efeito de sofrer, dor física ou moral; padecimento; amargura; pa-ciência e resignação”; e “psíquico” relativo aquilo que é da alma. Refere-se a as faculdades intelectuais e morais. Entendemos o sofrimento psíquico como e além dessa definição, aquilo que é inerente ao homem, suas angús-tias e dores emocionais, relacionais, morais e espirituais. É o “estar-no-mundo”, vivenciando tudo aquilo que foi, o que é, e a angustia do devir.

Costa (2013) nos apresenta uma ampla concepção sobre o sofrimento psíquico grave, definindo como toda manifestação aguda da angustia humana, seja pela lingua-gem, seja pelo comportamento. O autor afirma:

Assim, entendemos o sofrimento psíquico como sendo essencial e inerente a todo ser humano; que se constrói e é expresso nas relações afetivas, sociais e culturais; é simbolizado de forma diferente em cada sujeito, e no caso do sujeito “tido como psicótico”, existe uma particularidade a ser entendida, estudada e respeita-da, além de demandar o desenvolvimento de formas de dar continência, apoio e cuidado (p. 40).

Portanto, este autor afirma e entende o sofrimento psíquico como um fenômeno que ultrapassa a ordem do orgânico, sendo também da ordem do afeto. Acrescenta-mos nesta pesquisa, como sendo também, efetivamente da ordem do espiritual.

“Deus não morreu e o diabo existe”! É uma frase além de provocativa e emblemática, representativa daquilo que temos visto e ouvido na clínica do sofrimento psíquico grave. É também uma maneira de desafiar os padrões de pensamento atuais instalado na academia, onde se faz acreditar que fé e razão, ou fé e inteligência são parado-xais e não podem caminhar juntos! Enquanto Nietzsche propôs o fim e a anulação de tudo o que se referisse ao “Deus dos cristãos”, ou a uma possível relação com o sa-grado/profano, propomos neste estudo voltar o olhar pa-ra as “coisas mesmas”, “tal como aparecem”, “tal como ouvimos”, “tal como sentimos” ao sermos afetados pelo outro que vivencia esse fenômeno.

Em nossa experiência clínica, essa “dimensão sub-jetiva e espiritual” tem nome: “Deus e o diabo, anjos e

demônios”; tem lugar onde se manifesta: “Consciência e corpo”; provoca sensações, percepções e sentimentos: Êxtase espiritual ou sofrimento psíquico-espiritual, este segundo termo, de nosso cunho (na clínica psicológica), numa tentativa de adentrar a subjetividade daquilo que temos vivenciado. O “Sagrado” ao qual nos referimos, é o Deus dos cristãos a quem Nietzsche se dirigiu e aquele a quem as Escrituras Sagradas apresentam como: “Eloim”, Soberano Criador (Gênesis 1;26, 27); “Jeová Yhaweh”, “Eu Sou” Aquele que se revela (Êxodo 3.14); “El Sha-day”, Deus Todo-Poderoso (Gênesis 17.1); “ El Elyom”, Deus Altíssimo (Daniel 4.2 e 5.18) e tantos outros nomes dados que expressam atributos e características da sua grandeza e majestade.

Tillich (1984) na certeza de não poder classificá-lo afirma: “O ser de Deus é o ser-em-si. O ser de Deus não pode ser compreendido como a existência de um ser ao lado de outros ou acima de outros” (p. 199). Numa fra-se categórica e emblemática, Otto (1917/2005), por sua vez afirma “Um Deus compreendido não é Deus” (p. 56). Acrescentamos: Como compreender, classificar ou provar a existência de alguém que: “É o mesmo, ontem, e hoje e eternamente?” (Hebreus 13.8) a não ser pela experiência íntima e única de cada ser que o experimenta?

O “Profano” ao qual nos referimos é o Diabo, o que as Escrituras Sagradas apresentam como “Satanás”, que significa “adversário”, o anjo “caído” que adentrou em “hybris” e quis ser maior do que o Deus que o criou. Em hebraico “heilel bem-shachar” e em grego, na Septuagin-ta “heosphoros”; “Lúcifer”, que atormenta e faz o homem errar o caminho. Vailatti (2011) descreve:

...e por cortar a terra, “heilel bem-shachar” invade os corpos com rituais para caminhar, deitar, levantar. É o delírio, quem sabe o que é mentira, o que é ver-dade? O que é pesadelo, o que é realidade? A luz de lúcifer alucina. O sono desperta, a boca vomita, as fezes escapam, o equilíbrio balança e o mundo desa-ba. O que arrebata os sentidos está ao lado, chegou piscando. O brilhante, por saber que será precipitado no sheol, a sepultura comum, quer companhia. Ele é o deus das coisas que fogem, o deus deste mundo. E está ao lado (p. 22).

São esses personagens que aparecem nos discursos dos que em sofrimento psíquico se referem com clareza e riqueza de detalhes. Encontramos em Tillich (1984) uma análise sobre o fenômeno do “êxtase e da possessão de-moníaca”. Na clínica, temos vistos inúmeros casos cujas manifestações acontecem deixando terapeutas e médicos desnorteados a respeito do diagnóstico e principalmente da intervenção. Para amenizar esse estado de impotên-cia diante do desconhecido, diante do mistério, apela-mos para aquilo que é mais concreto e “cientificamente aprovado”: o diagnóstico psiquiátrico tradicional. “Crise Psicótica”, “Histeria”, “Esquizofrenia”, “Transtorno Dis-

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sociativo”, são alguns termos que recorremos para admi-nistrar a nossa angústia inicial ou o desconhecimento a respeito deste fenômeno. Em sua análise, Tillich (1984) nos apresenta o conceito de “Êxtase” como: “estar fora de si mesmo”. Aponta para um estado de mente que é extra-ordinário no sentido de que a mente transcende sua situ-ação ordinária (p. 99).

A distorção que ocorre sobre este fenômeno não é atu-al. Tillich já chamava a atenção ao que se refere a gru-pos e movimentos que reivindicavam ter experiências religiosas especiais, inspirações pessoais e revelações individuais e não os diferencia do que ocorre na atuali-dade. Também, é confundido com “entusiasmo” (p. 100). Os movimentos extáticos podem confundir “superexcita-ção” com a “presença do Espírito Divino”, ou com a ocor-rência da revelação. Ele cita:

Algo ocorre tanto objetiva quanto subjetivamente em toda manifestação genuína ao mistério. Só algo subjetivo acontece em um estado de superexcita-ção religiosa, em geral, produzido artificialmente... Superexcitação é um estado de mente que pode ser compreendido completamente em termos psicoló-gicos. Êxtase transcende o nível psicológico, embo-ra tenha um lado psicológico. Ele revela algo válido sobre a relação entre o mistério do nosso ser e nós mesmos (p. 100).

Tillich afirma que em meio a essas experiências, on-de a mente é possuída pelo mistério, seja em uma mani-festação genuína ou num processo produzido artificial-mente por uma superexcitação religiosa, surge a ameaça do “não-ser”. Essa ameaça possuindo a mente produz “o choque ontológico” e nele é experimentado o lado ne-gativo do mistério do ser. Esse estado, aponta para uma estado de mente no qual a mente é tirada do seu equilí-brio normal e é abalada em sua estrutura. A razão alcan-ça sua linha-limítrofe e é lançada de volta sobre si mes-ma, e daí arrastada de novo para essa situação extrema (p. 101). E continua:

O estado extático no qual ocorre a revelação não des-trói a estrutura racional da mente. Os relatos sobre experiências extáticas na literatura clássica das gran-des religiões coincidem neste ponto – que, enquanto que a possessão demoníaca destrói a estrutura racio-nal da mente, o êxtase divino a preserva e eleva, em-bora a transcenda. Possessão demoníaca destrói os princípios éticos e lógicos da razão: o êxtase divino os afirma” (p. 101).

Ainda indica que há um ponto de identidade entre êxtase e possessão. Em ambos os casos a estrutura sujei-to-objeto da mente é desativada afirmando que o êxtase divino não viola a totalidade da mente racional, enquan-to que a possessão a enfraquece ou destrói.

No estado de possessão demoníaca a mente não está de fato “fora de si mesma”. Ela de fato está em poder de elementos dela mesma, que aspiram ser a totali-dade da mente, que se apoderam do centro do seu eu racional e o destroem. O autor afirma ser obvio que êxtase tem um forte aspecto emocional. Mas seria um erro reduzi-lo a emoção. Em toda experiência extática, todas as funções de compreender e estruturar a razão são conduzidas para além de si mesmas, e também a emoção (p. 101).

Seria impossível pensar em uma experiência de êxtase ou possessão sem pensar numa relação de angústia ou so-frimento psíquico. Nos casos clínicos que temos acompa-nhado esse tipo de manifestação, é visível um sofrimento que ultrapassa o nível psicológico. A esse tipo de sofri-mento, vamos denominar de sofrimento psíquico-espiritu-al. Psíquico por estar no âmbito das estruturas psíquicas, e espiritual por envolver uma relação para além do psico-lógico, do humanamente aceitável e compreendido. Algo que foge do controle absoluto da mente, que transcende o próprio ser. Mesmo no caso do êxtase divino, que tem uma conotação totalmente positiva de uma experiência de plenitude, o contato com o Sagrado, provoca sentimentos e sensações de falta de controle, temor e tremor diante do indizível, inefável. A possessão demoníaca por si só, nos traz uma sensação de terror. O conceito do mal embutido na figura do diabo e seus demônios já são suficientes para desencadear uma séria de sensações de mal estar psíquico. As pessoas que experimentam dessa manifestação, seja na possessão ou nas visões de vultos e presenças demo-níacas, bem como vozes de comando, relatam com dor emocional e uma angustia avassaladora essa experiência. A sensação de “perda de controle”, “medo”, “invasão do ser”, “peso emocional”. Também sintomas psicossomáti-cos, dores no corpo e na cabeça, fraqueza, tontura, taqui-cardia, “peso na cabeça”, etc., são descritos em palavras, gestos e expressões faciais angustiantes e quase irrepre-sentáveis em palavras.

A breve revisão de literatura nos proporciona uma reflexão sobre a experiência espiritual de possessão ou de graça e contemplação, em contraposição a uma cri-se psicótica além de promover discussão sobre os diag-nósticos postulados pela psiquiatria tradicional. O diag-nóstico diferencial revisitado pela fenomenologia que é baseada na intuição, descrição das vivências, história e experiência singular é aqui utilizado no sentido de atribuir novos sentidos ao conceito de psicopatologia relacionada ao fenômeno religioso. Também, a comple-xidade desse fenômeno nos leva a uma reflexão e análi-se por meio de uma multiabordagem. Para a questão da clínica interventiva, as concepções teóricas e clínicas nos remetem a psicanálise winnicottiana, em especial das contribuições de Safra (2006) numa leitura herme-nêutica da situação clínica como desvelamento da sin-gularidade do ethos humano.

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“Deus não morreu e o diabo existe”. Reflexões Fenomenológicas sobre a Experiência Espiritual e o Sofrimento Psíquico Grave

Por certo, levantar questionamentos ou provas a res-peito da existência de Deus ou do Diabo, não é o objetivo desse estudo, tão pouco fazer apologia a uma psicologia teísta. Referimo-nos aos mesmos, porque ao nosso enten-der, (independente de posição pessoal) e baseado naqui-lo que temos visto e ouvido na clínica, eles existem! Co-mo vivências, como objeto de fé, adoração, medo, temor e tremor. Interessa-nos o sentido, representações e ações do sagrado/profano nas experiências psíquicas apresen-tadas por indivíduos em sofrimento psíquico grave. Inte-ressa-nos provocar, refletir e evidenciar por meio de uma análise fenomenológico-psicológica, a existência desta dimensão espiritual.

Como anseio maior, fica o desejo de explicitar e dis-seminar algumas reflexões no meio acadêmico e princi-palmente no âmbito “Psi” sobre esse fenômeno que “sal-ta” aos nossos olhos quase que diariamente do qual não temos quase nenhuma referencia teórica ou metodoló-gica para uma intervenção que não seja ou “sair corren-do” diante do desconhecido, ou apelar para o diagnós-tico psiquiátrico tradicional, fazendo uma contenção medicamentosa seguida de uma internação, anulando qualquer possibilidade de compreensão do fenômeno que se apresenta.

Pensar nas possibilidades de abordar esse assunto no setting terapêutico, com acolhimento, escuta e manejo clínico, nos leva a refletir sobre a postura do psicólogo, no que diz respeito a sua espiritualidade bem como su-as limitações diante deste fenômeno. Iniciamos com a questão do preconceito estabelecido na academia, que exige uma neutralidade do psicólogo na sua atuação clínica. Entendemos este fator não apenas como crité-rio de conduta ética, mas de parâmetros colocados pe-la academia. É um conceito munido de “preconceito”. É uma questão de herança epistemológica. Temos uma herança Kantiana, onde transitamos entre o racionalis-mo continental e a tradição empírica inglesa. Entretan-to, sabemos que por trás de toda prática clínica, existe uma visão além de epistemológica, ontológica e antro-pológica em que, especialmente na psicologia, interfere diretamente no processo de subjetivação do indivíduo, o que resulta numa impossibilidade de uma “neutrali-dade”, no seu aspecto radical.

Particularmente, no curso de psicologia somos orien-tados a sermos neutros, ou melhor, não adentrar ao as-sunto caso o cliente traga para o processo algo referente a sua religiosidade ou espiritualidade, como este aspecto não interferisse no seu modo de viver, não demandasse conflitos e sofrimentos, não orientasse suas decisões, não interferisse nas suas escolhas pessoais, profissionais, con-jugais, etc., ou seja, não existisse. Esta é uma visão genui-namente incoerente que nos leva a revisitar e questionar o conceito de “neutralidade” no âmbito clínico psicoló-gico. É certo que não podemos inferir ou interferir em questões como princípios ou conceitos morais, éticos ou religiosos. Não nos cabe ajuizar a respeito daquilo que não

nos pertence; a singularidade e a subjetividade do outro, afirmando ou negando a respeito da realidade objetiva deste fenômeno. Isto, no entanto, deve estar relaciona-do a todos os aspectos da experiência humana. Portanto, precisamos entender o fator religiosidade e espirituali-dade como apenas mais uma faceta inerente a este ser, assim como a sua sexualidade, sua ética, sua inteligên-cia, criatividade, autoestima, seus conceitos sobre a vida e a existência. Enquanto o psicólogo entender a espiri-tualidade do seu cliente como algo “intocável”, “inaces-sível”, provavelmente não estará pronto para acolhê-lo como ser integral constituído de corpo, alma e espírito, não dará abertura para sua existencialidade, permitindo assim que o mesmo se permita ser quem é, sem másca-ras ou reservas. Se a ciência psicológica do final do fi-nal do século XIX foi constituída em cima de pilares de estigmas e preconceitos quanto ao fenômeno religioso, a clínica psicológica contemporânea precisa acompanhar as mudanças do tempo e do desenvolvimento humano e abrir suas portas para o acolhimento do homem trans-cendental e ver o Sagrado como objeto eminentemente presente em sua existência.

Entramos em outro aspecto a partir deste questiona-mento. Esta resistência em pensar o fenômeno religioso na clínica psicológica seria resultado apenas de uma he-rança epistemológica e acadêmica, ou se constitui tam-bém um preconceito pessoal? Afinal, o psicólogo que se declara religioso, nunca foi bem visto com bons olhos. Propositalmente e ironicamente, utilizamos as palavras de Freud (1910) afirmando que “nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios com-plexos e resistências internas”. Portanto, é preciso uma auto-avaliação honesta de si mesmo no que diz respei-to ao que sentimos e pensamos sobre este assunto. Isso nos leva a pensar em nossas limitações e preconceitos. Naturalmente, ao ouvirmos o sofrimento do cliente, nos deparamos com as nossas próprias experiências e defi-ciências. Não é diferente quando se trata da religiosida-de e espiritualidade. Entender que não estamos ali para dar respostas, provavelmente seja o primeiro passo para amenizar a ansiedade em relação a este fenômeno, ou qualquer outro.

Nosso papel é junto ao paciente, trazer à consciência os processos psicológicos quem envolvem sua dinâmica e o sofrimento em questão. Desta forma, é necessário pen-sar a nossa espiritualidade como fator de bem estar ou mal psíquico e ter clareza dos próprios valores para poder avaliar as reações contratransferenciais que surgem. Para isso, alguns questionamentos são necessários tais como: Qual a minha concepção a respeito do Sagrado? Em que abordagem religiosa fui orientado e o que utilizo dela na minha vida adulta? O que reformulei? Quais frustrações que tenho a respeito de Deus ou da religião e que podem me fazer ouvir com preconceito a fala do outro sobre o assunto? Eu creio na realidade espiritual de Deus, do dia-bo ou qualquer outra? Se não, como reajo diante daquele

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que crer? Com críticas? Resistências? Empatia? Quanto ao psicólogo que se declara religioso, é esperado que o mes-mo aja com autocrítica e dentro dos princípios éticos. Isto inclui não se deixar levar em ser afetado pela orientação religiosa do cliente, envolvendo-se em conversas pesso-ais sobre fé, doutrinação ou discussões de cunho filosó-fico, que não estejam dentro do contexto da demanda em questão trazida como queixa para o processo terapêutico, ou perder a possibilidade de explorar os verdadeiros sen-tidos e significados e suas implicações na vida do cliente, ou ainda, ao entender o discurso religioso, direcioná-lo automaticamente a sua dinâmica espiritual, deixando de lado a possibilidade de uma análise psicológica ou pa-tológica. Sejam quais forem os comportamentos acima citados por parte do psicólogo religioso ou ateu, reflete seu processo de contratransferência que precisa ser ana-lisado para que não aja prejuízo no desenvolvimento do processo terapêutico.

Pensando nesses aspectos, é possível entender que, independente daquilo que for trazido para o consultó-rio, não nos autoriza, assim como em qualquer outro assunto “do Outro”, deferir ou fazer apologia. Nosso papel é tentar trazer a consciência como estes aspec-tos influenciam e trazem sofrimento psíquico dando e trazendo a possibilidade de o cliente organizá-los ou ressignificá-los.

Interessante pensar que, como profissionais conscien-tes das nossas limitações, abstemo-nos em atender algu-mas demandas as quais nos mobilizam e não nos acha-mos “prontos” ou “competentes” e encaminhamos para outros profissionais, como por exemplo: casos de pedo-filia, abuso sexual, violência doméstica, atendimento fa-miliar ou de casal, crises psicóticas, etc., Por que então, a demanda “religiosidade” ou “espiritualidade” não é vista como apenas mais uma das nossas impossibilidades de atuação? Talvez seja mais cômodo apontar o fenômeno como “incoerente” ao processo terapêutico ao invés de assumir que não temos conhecimento e habilidades su-ficientes para acolher.

Após uma autoanálise a respeito da própria espiri-tualidade, é possível pensar numa atuação clínica des-te fenômeno com acolhimento, escuta e manejo clíni-co. Safra (2006) propõe um vértice hermenêutico para abordar o idioma pessoal e a questão da espiritualida-de na clínica, apontando a necessidade que na clínica contemporânea de reconhecer dois registros fundamen-tais que constituem o ethos humano, o registro ôntico e ontológico. “O ôntico refere-se “aos fatos da existência humana, enquanto o ontolológico diz respeito às estru-turas a priori que definem as possibilidades realizadas em cada existência humana” (p. 22). Ainda sobre estes dois conceitos, afirma a originalidade do que é ontoló-gico. Assinala que o ôntico ocorre no tempo e no espa-ço, isto é, na biografia de uma pessoa e que o ontológi-co é pré-existente e fundante, contendo o homem desde sempre, afirmando:

Há um fluir no homem que acontece em meio a estes dois registros: ôntico e ontológico. Estes aspectos do ser humano faz com que o homem, em sua estrutu-ra fundamental, seja paradoxo. Como ser paradoxal, o homem é finito que anseia o infinito, limitado que vive o ilimitado, criatura que anseia por um criador. É um ser que vive entre agonias impensáveis e o ter-ror do totalmente pensado (p. 27).

Ainda sobre este aspecto, nos leva a refletir sobre a forma em que o indivíduo é afetado por esses dois regis-tros, e o fato de que, nós psicólogos, temos uma tendên-cia a ver com mais frequência ou quase sempre os afetos como ònticos, isto é, dentro da “trama psíquica” (p. 129).

Mas que existe uma outra maneira que diz respeito a se estar afetado ontologicamente pela existência. Nisto consiste em que o indivíduo encontra-se situado por ter ou não conseguido se apropriar de sua ques-tão originária e de seu modo pessoal de conceber “o sentido último” (p. 130).

Pensando nesses aspectos, refletimos brevemente em como acolher, dar contenção e manejar essas “angústias impensáveis” ou esse “terror do totalmente pensado” ou podemos definir como “angustias psicóticas” representa-das de variadas maneiras, inclusive na forma de discurso religioso e manifestação espiritual.

Geralmente esses atendimentos são momentos vividos com muita intensidade e confusão. Alguns chegando ao risco de agressões verbais e físicas, outros com situações inusitadas onde o cliente “conversa” com “entidades” que identificam como “sagradas ou demoníacas”, sentindo a presença destes e vivenciando diante dos nossos olhos todo o terror decorrente dessa experiência. O que fazer? Interagir? Posicionar-se como expectador ou fazer parte da trama? As dúvidas são muitas, as respostas são diver-sas, pois cada situação é singular, cabendo ao terapeuta usar da sua sensibilidade e espiritualidade para identifi-car qual postura tomar. Porém, algo se faz necessário: é preciso “estar lá”, “estar com”. Isto significa estar impli-cado na situação e deixar-se afetar por ela. Este, provavel-mente, seja este o primeiro passo a ser dado. O que virá em seguida ficará por conta da subjetivação do indivíduo que irá “desvelar” o ethos humano em sua plenitude com toda a sua possibilidade de mostrar-se.

Separamos, portanto, algumas vinhetas clínicas8 para exemplificar este fenômeno na clínica em seu acolhimen-to e manejo clínico, não caracterizando como um mode-lo a seguir, nem tão pouco com a pretensão de criar um manual de conduta ao terapeuta, mas, refletir sobre as possibilidades e limitações que temos diante deste fenô-meno. Sugiro, entretanto, caso o leitor ainda não tenha

8 Todos os casos citados foram autorizados previamente, constando em documentos registrados em prontuários. As iniciais dos nomes foram modificadas para manter o máximo de sigilo.

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“Deus não morreu e o diabo existe”. Reflexões Fenomenológicas sobre a Experiência Espiritual e o Sofrimento Psíquico Grave

se libertado dos seus preconceitos ou “modelos teóricos definidos” que apontam uma forma rígida e “neutra” do terapeuta conduzir o processo terapêutico, que se abste-nha em prosseguir a leitura.

1. Acolhimento

O acolhimento é o primeiro contato com o cliente em crise e muitas vezes precisa ser realizado apenas de ma-neira apenas “presentificada”. Por vezes representada pe-lo silêncio do terapeuta, pelo olhar atento, compreensivo e acolhedor. Segue relato:

Caso 1 – “V”9

Vitória é uma jovem senhora de 33 anos, protestan-te, casada há 4 anos e tem uma filha de 8 meses. Reside com o esposo e a filha. Começou a apresentar sinais de sofrimento psíquico mais ou menos um mês antes da cri-se que ocorreu no final de novembro de 2008.

...após alguns minutos, V. se levanta e começa a andar de um lado para o outro da sala, pronunciando pala-vras de conteúdo religioso. Com um discurso muito desorganizado, falava várias coisas ao mesmo tempo, versículos bíblicos, palavras proféticas e ao mesmo tempo, num tom agressivo, denunciava seu sofrimen-to acusando várias pessoas: “eles não vão conseguir, o inimigo quer me destruir, porque a palavra de Deus diz: “Mil cairão a tua direita e três mil a tua esquerda, e tu não serás abalado”. “O M. e a F. são meus pre-sentes” (marido e filha); “eles tentam me destruir, mas não vão conseguir”, “eu sei de muito”, “a profanação e a imoralidade está presente”, “o diabo tem tentado destruir, eu sei de muito”.

Em um dado momento tentei fazer contato verbal, mas devido a sua desorganização, rejeitou. Respeitei e algum tempo depois fui ao seu encontro, chamei pelo seu nome, toquei no seu braço, olhei bem firme nos olhos e me apre-sentei oferecendo ajuda. Ela me olhou por alguns instan-tes, me ouviu e logo em seguida me ignorou, voltando ao seu discurso. Este foi o momento do acolhimento, o olhar e o toque no seu braço. Senti que o vínculo inicial foi cons-tituído. Neste momento e no decorrer do processo pude compreender a fala de Safra (2006) quando afirma que:

A sensibilidade do Outro responda à presença de si... a falta de reação estética frente a presença do Outro joga a pessoa para invisibilidade, o que acarreta uma destituição da dignidade da pessoa humana... quan-

9 Estudo de caso que fez parte da pesquisa de mestrado da primei-ra autora, no ano de 2010: “O sofrimento psíquico grave no con-texto da religião pentecostal e neopentecostal. Repercussões da religião na formação das crises do tipo psicótica”, defendida no PPG-PsiCC/IP/UnB.

do respondemos afetiva e esteticamente ao Outro lhe ofertamos a experiência de que realmente existe para nós e, ao mesmo tempo, por reunirmos em nosso olhar a complexidade do seu ser lhe ofertamos a totalidade virtual de si mesmo: no olhar do Outro reside o futu-ro sonhado de si mesmo. Quando este fenômeno se realiza o estético se faz o ético (p. 157).

Caso 2 – “G”10

Guilherme tem 18 anos. A família foi atendida em agosto de 2009 após ter sido internado numa clínica psi-quiátrica. Os pais relatam que tinha uma vida normal até os 14 anos. Tinha amigos, estudava e jogava futebol. Neste ano, passou a frequentar uma comunidade evan-gélica neopentecostal. Após um retiro espiritual da igre-ja, relata que ficou “endemoninhado” e que os pastores oraram expulsando o demônio. Passou a se comportar de forma estranha. Ficou medroso, dizia ouvir vozes, ver vul-tos, falava muito sobre morte e acusações. Um ano após teve segundo os pais uma experiência de “possessão de-moníaca”. Passou a frequentar o centro espírita que o de-nominou como médium.

Via vultos, uma coisa preta. Só apareciam. Ouvia vo-zes. Agora fica só um zumbido, me pediam doce. As vozes ficam falando, quero doce, quero refrigerante, tem que tirar o que é meu, fica querendo tirar proveito dessa situação que eu estou. Às vezes é de mulher, às vezes é de homem. Marcos e João já morreram, eles fi-cam assoviando, vejo eles passando na rua. Quem fica assoviando é André, ele fala: bate na minha bunda.” (Sorri). As vozes falam que um dia pecou, as vozes pe-caram, o que é meu é meu, tô ouvindo música, ficam xingando, fazem elogios ‘”bonito”, não xingam não. Ficam duvidando do cara, não é homem não. Quando toma chá fica atentando os outros dizendo quero luz.

Discursos confusos como este de G. são comuns nas primeiras sessões de atendimento em casos de crise psi-cóticas. Muitas vezes não sabemos discernir o que é do contexto real ou o que é processo alucinatório, mas isto é o que menos importa. Neste momento não cabe diag-nóstico ou interpretações. O que está em jogo é se temos ou não a capacidade de nos colocar no lugar do Outro. Desta forma, não cabe outra coisa que não seja a escuta atenta e acolhedora. Safra (2006) nos fala que “a medi-da que acompanhamos a fala de uma pessoa por meio da nossa sensibilidade, permitimos que esta nos leve a ex-perenciar o seu pathos” (p. 155). Isto nos faz pensar em uma presença real e qualificada do terapeuta que trans-mita confiança e proporcione o sentimento de cuidado. Essas características representam uma clínica da ética e do cuidado, onde o “Outro” pode ser ele mesmo, nas suas angustias, dores e na sua “loucura”. Essa aceitação

10 idem.

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incondicional representa devolver aquilo que é de mais importante e que lhe foi tirado na crise, “o saber e o con-trole de si mesmo” e “a sua dignidade” como ser aceito e respeitado no mundo.

2. manejo clínico

O manejo Clínico nos remete a tomar algumas pos-turas onde na maioria das vezes implicará no desenvol-vimento do processo terapêutico. Portanto, voltamos a enfatizar que a sensibilidade e no caso em especial nas crises com conteúdos religiosos e místicos, é preciso que o terapeuta esteja consciente da sua espiritualidade, uti-lizando- a favor do cliente, e não em favor de si mesmo. Não nos referimos aqui, a fé ou falta de fé, a posicionamen-tos doutrinários ou denominacionais, ou seja, nos casos exemplificados, o terapeuta poderia ser ou não religioso e ter a mesma postura ou outra completamente diferen-te. O que vai diferenciar é a “verdade” do terapeuta, sua espiritualidade para além da religiosidade. Sua essência no que diz a respeito a sua visão de “vida”, “existência”, “transcendência”, sua própria “ontologia” e sua percepção sobre as questões “ultimas da vida”. Portanto, não exis-tem modelos a seguir, e sim, a intuição, sensibilidade e espiritualidade proporcionando à sustentação necessária a situação vivenciada.

Caso 3 – “M”Este caso foi encaminhado ao meu consultório. Foi a

primeira sessão de D. uma jovem diagnosticada com es-quizofrenia. Era casada, porém morava com os pais após ter tido uma crise e voltar de outro estado o qual morava com o esposo. Um dos motivos que desencadeou a crise foi uma experiência de abuso espiritual vivida antes do casamento. Denominava-se evangélica. Chegou comple-tamente desorganizada, verbalmente e corporalmente di-zendo ter problemas de visão, que não permitia ler nem olhar direito para as pessoas, o que a impedia de olhar diretamente para mim. Com o decorrer do processo esses “problemas” desapareceram.

Ali olha! Ali olha! Tá vendo? No canto de cima, ele, tá olhando pra cá!” (ele quem?) “o demônio! Onde vo-cê está vendo? Não quero olhar, ele me acompanha, está dizendo que você é fraca, que não vai poder me ajudar! Ai, tá vindo, tá vindo, tá vindo” – desespero, choro (Calma, eu estou aqui com você). Sai em dire-ção a janela do consultório fazendo o movimento de que queria pular. Levanto rapidamente e seguro ela por trás pedindo para se acalmar. Levo até a cadeira e ela senta com os olhos fechados, com o semblante de terror. Abre os olhos com medo e diz: “Tá vindo, tá vindo, sentou aqui, do meu lado” – falando em voz baixa e virando as costas para a cadeira do lado. Es-tá dizendo que você não vai me ajudar, você é fraca.

O que eu faço? (Você acredita que eu posso te ajudar?) “acho, mas ele...” – semblante de terror, olhos fechados – (M. olha para mim! Olha pra mim! Eu estou aqui para te ajudar, eu não tenho medo dele!) – Abre os olhos – “Não?” (não!) “Ele tá dizendo que você tem sim. (olha pra mim. Eu estou parecendo que estou com medo de alguma coisa?) “Não. Então diz pra ele que você não tem medo dele! E que você vai me ajudar”. (Falando em voz baixa e de costas para a cadeira). Eu não ve-jo ele como você, não ouço como você. Porque você mesma não fala que eu não tenho medo e que eu vou te ajudar?). Fala em voz alta, mas de costas ainda pa-ra a cadeira: “ela não tem medo de você, ela é forte e vai me ajudar!”. (Fica cerca de 5 minutos em silêncio. Acompanho o silencio. Vira as costas para a cadeira do lado com os olhos abertos e diz:) “ele foi embora”. Após esse momento, e no decorrer dos outros en-

contros, M. começou um discurso desorganizado sobre diversos assuntos, que misturavam passado e presente e ansiedades sobre o futuro. Situações reais que tinha vivenciado de violência e abusos emocionais, físicos e espirituais além de conflitos familiares originários. No decorrer do processo foi possível montar o “quebra- cabeça” que a levou a crise. Uma história de que real-mente, ultrapassava a noção do “humanamente” aceitá-vel e que foi muito bem representada pela figura do de-mônio. Provavelmente a postura adotada como terapeuta em aceitar o seu discurso e participar dele, a ajudou a encarar o “mal” de maneira que, por mais difícil que fos-se sua história, teria sim alguém para lhe dar o holding necessário. Após um ano e meio de processo terapêu-tico, a jovem diagnosticada com “esquizofrenia” estava prestando vestibular para pedagogia e retomando sua vida, mesmo com muitas sequelas e ainda necessitan-do de sustentação psicológica e medicamentosa, pode enfrentar seus “demônios” e voltar pensar em dar con-tinuidade à sua existência.

Caso 4 – “C”C. é um adolescente de 15 anos. Quando chegou ao

GIPSI fazia uso de antipsicóticos já há quatro anos. Fre-quentava Uma igreja pentecostal de costumes rígidos, acreditava ser responsável junto a Deus, por lutar con-tra o demônio. Tinha uma vida relativamente dentro dos padrões da idade. Estudava, fazia artes marciais e era particularmente envolvido com a cultura japonesa. Na-quele momento, a mãe relata que estava em crise e que lia a bíblia o dia todo, também orando incessantemente. Em certa ocasião, ao chegar em casa do trabalho, o encon-trou de terno e gravata na sala, afirmando estar esperan-do a volta de Jesus que iria acontecer naquele momento e que ele deveria estar preparado.

Angustiado, andando de um lado para o outro da sa-la, olhando para mim. Pergunto: C. você quer me fa-

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lar algo? Estou te achando nervoso! “Não posso falar, ele está aqui. Pode ouvir e usar contra mim depois”. Quem está aqui? “O inimigo, Satanás”. Você está vendo ele? “Não, mas eu sinto a presença dele, queria falar, mas não posso”. O que podemos fazer então? Acho que você está precisando falar não é? “É. Se a gente orar, ele vai embora. É isso que você faz para ele ir embora? “Sim, posso orar aqui?” Claro, pode orar! fi-ca de joelhos e pergunta: “Você pode orar comigo?” Você quer que eu ore com você? “Eu queria que você me acompanhasse”. Ok. Vou te acompanhar. “Aqui do meu lado, fica de joelhos por favor”. Claro! Olhou pra mim por alguns segundos e disse: “obrigado, você não precisa orar, eu oro, só precisa ficar aqui”.

Não tenho dúvidas que o cliente sabe e sente exata-mente quando estamos verdadeiramente com eles em seu sofrimento. É possível sentir isto a partir dos seus gestos e olhar. Comprovei isto com o retorno que recebi após a solicitação feita pelo C. Neste caso, utilizando da minha espiritualidade, acreditei que a fé dele realmente iria coloca-lo num processo libertador. Não enxerguei ali um processo “alucinatório”. Nas palavras de Safra (2006) não enxerguei apenas o registro “ôntico”, mas o registro “ontológico”, uma questão originária do seu ser, que no momento estava “sendo representada na figura de “Sa-tanás”. Quando me ajoelhei ao seu lado, não o acompa-nhei apenas de forma teatral, mas profundamente toca-da pela necessidade que ele tinha daquele ato. Ele sentiu isto. Pude ver ao olhar nos meus olhos ao mesmo tempo surpreso e grato.

Caso 5 – “F” Este caso não foi caracterizado como sendo de crise

psicótica. O utilizo pelo alto nível de sofrimento psíqui-co, como um caso de intervenção precoce as primeiras crises e pelas questões da espiritualidade que foram de-terminantes no fechamento do processo como nas ques-tões existências da cliente. Foi realizado no Centro de Atendimento e Estudos Psicológico - (CAEP) da Univer-sidade de Brasília. F. é uma jovem senhora que me pro-curou por estar sentindo-se “muito angustiada, sofrendo de ansiedade, medo de enlouquecer e muito insegura” (sic). Mãe de uma cliente que havia tido uma crise do ti-po psicótica, outro motivo de preocupação e que lhe tra-zia culpa e angustia. Casada, sentia-se incapaz de tomar decisões referentes ao trabalho em conjunto com o ma-rido, e outras questões que geralmente a fazia sentir-se “burra e infantil” (sic). Além disto, apresentava baixo- auto-estima e um luto não resolvido do pai. Porém, o que marcou o processo foi que, após trabalhar todos essas questões, ela trouxe o que realmente a desorganizava, um abuso sexual na infância, que a priori, nunca pensou em falar no processo terapêutico, mas que efetivamente representava as suas “angústias impensáveis” mascarada em ansiedades e sentimentos de insegurança e medos. F.

era espírita e tinha uma sensibilidade e espiritualidade bem desenvolvidas. Segue parte do relato na penúltima sessão que ocorreu após um sonho. Anterior a este sonho tínhamos tido uma sessão muito tensa, onde conseguiu falar do abuso e fazer algumas ligações com a sua inse-gurança e ansiedade.

No sonho, sentia uma vibração. Uma sensação de luz, descendo do céu como uma presença muito forte, gran-de, poderosa. Fiquei emocionada, acordei com aquela sensação e chorei muito.

Durante o processo terapêutico, utilizamos o EMDR, abordagem que trabalha com dessensibilizacão e repro-cessamento de traumas por meio de movimentos ocula-res. Em dado momento, F. foi ficando cada vez mais an-gustiada por estar relembrando o trauma, com a respira-ção ofegante disse: “tenho vontade de rasgar e jogar tudo fora, tirar todo o peso e angustia de dentro do coração” (sic). Ficou muito angustiada e começou a chorar compul-sivamente, dando alguns sinais que iria se desorganizar. Interrompemos o processo e como estava quase no final da sessão, apliquei um procedimento que visa estabilizar o cliente. Durante o processo, ocorreu o que caracterizo como um momento de experiência com o Sagrado. F. uti-lizou da sua espiritualidade para organizar-se psiquica-mente na sua angústia, re-significando a experiência de dor, vivenciando um momento de cura espiritual, porque não dizer de “graça e contemplação”.

Como parte do procedimento, pedi para F. fechar os olhos, respirar fundo e se imaginar num “lugar tranquilo”11. Ao fazer isso, gradativamente ela foi se acal-mando. Em um dado momento disse para mim ainda com os olhos fechados:

É como se estivesse vendo uma luz sobre mim, igual no sonho”. Semblante tranquilo. “Vem sobre a minha cabeça e entra dentro de mim”. Como está se sentin-do? “Bem, muito tranquila”. Imagina então, essa luz inundando seu corpo, sente como seria. “Ela entra pela minha cabeça, pelo meu rosto, passa no peito, e desce em todas as minhas partes”. Enquanto fala, gesticula com as mãos por onde a luz passava, che-gando as partes íntimas, num movimento de finalizar colocando para fora. “Essa sensação de luz, parece que saiu alguma coisa que tinha nas minhas costas, um peso. Sentimento bom. Como se a luz estivesse no lugar da angustia. Meu coração não tá mais aper-tado, tá fresquinho, sensação de geladinho, “tava” parecendo quente”. Abre os olhos e sorri. “Engraça-do, é como se eu dissesse para aquele homem, que não ia deixar mais, como se não tivesse mais motivo, uma sensação de confiança, certeza. Como se não pu-

11 Procedimento que requer do cliente produzir uma imagem mental referenciando-se a um lugar que proporcione calma, bem estar e tran-quilidade.

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desse me afetar”. “Não tenho nenhuma dúvida, toda certeza, como se estivesse dentro do meu ser, Não tem porque eu ter medo, não confiar, me achar fraca, como se não tivesse mais motivo, uma sensação de confiança, certeza”.

Assim como Otto (2005), Stein (1988b) acreditava e via na experiência mística uma vivencia humana perme-ada de mistério, mas passível de descrições daquilo que se mostrava a consciência, permitindo a reflexão sobre a subjetividade e intersubjetividade humana por meio da redução fenomenológica. Entendemos que a fenomenolo-gia nos proporciona a busca por essa “realidade” ultrapas-sando as limitações da psicologia e da filosofia e trazendo a possibilidade de entender o mistério desse encontro do homem como o mistério do divino.

Outra situação clínica que foi marcada pela experi-ência espiritual em meio a crise psicótica, aconteceu no caso apresentado na vinheta 2. Uma experiência singular no que se diz respeito a manifestação espiritual na crise. G, em dado momento na sessão, já nos últimos meses do seu processo terapêutico, com todos os sintomas psicóti-cos remidos, apresenta a seguinte manifestação:

Estávamos conversando, fazendo uma avaliação do processo e conversando sobre a possibilidade de fi-nalização. Ele estava tranquilo, feliz por estar sentido a possibilidade de fechar o processo e voltar a ter sua rotina. Em dado momento, baixou a cabeça e come-çou a respirar ofegante. Fiquei em silêncio e aguardei. De repente, G levanta a cabeça, fitando os olhos com expressão de ódio. O olhar não era o seu. Parecia es-tar diante de outra pessoa, não só pelo ódio, pois já tinha vivenciado vários momentos de transferências onde esse aspecto surgiu. Senti um mal estar, uma sensação de “peso” no ambiente. Senti meu próprio corpo pesado, bem como uma sensibilidade na pele e angústia no peito. Respirei fundo e “suspendendo” as minhas impressões inicias, me mantive em silen-cio, esperando o que ia acontecer. Nesse momento, começou a falar assuntos referentes à minha vida pessoal, que obvio, nunca teve acesso, com ironia e como se quisesse me causar medo. Fitei os olhos nele e falei de maneira serena, mas firme: “G”? “Vo-cê está bem”? Ele sorriu ironicamente e disse, “G”? Com essa resposta, entendi aquele momento como uma manifestação espiritual. Continuei: “parece que você acredita está me atingindo com suas acusações? “Acha que me causa medo”? No mesmo momento, abaixou a cabeça, ficou em silêncio e poucos segun-dos depois olhou novamente para mim, voltando ao seu olhar e estado “normais”. Perguntei se ele estava bem e se tinha observado o que aconteceu. Ele fez um movimento nos ombros, mexendo o pescoço co-mo se estivesse incomodado com algo. Respondeu: “tô bem, por quê? Relatei o que aconteceu e ele falou

que isso acontecia algumas vezes segundo relatos dos pais, quando o levavam para o centro espírita e ele “recebia entidades”.

Essa experiência nos remete a obra de Stein (1989), quando tratou do problema da empatia, quando afir-ma que esse fenômeno acontece quando dois sujeitos em dado momento, são capazes de convergir tanto que a vivência de um é integrada na experiência do outro, afetando o núcleo mais íntimo da pessoa. Refere-se a capacidade empática de compreensão da experiência alheia. Reforçamos o que sentimos e pensamos sobre essa experiência nas palavras de Safra (2006) quando reafirma que “intuímos e empatizamos através da nossa sensibilidade” (p. 38), retirando a intuição e a empatia do âmbito das funções mentais, dando-lhes a percep-ção corporal.

2. Problematizações finais (e iniciais)

Em todos os casos citados, observamos pessoas em sofrimento psíquico grave em crises trazendo conteú-dos religiosos. O estudo propõe além de refletir sobre o fenômeno religioso e a experiência espiritual na clí-nica, a diferenciação entre o que é patológico ou o que apenas do universo do fenômeno religioso. Entendo a partir do que temos visto na clínica durante os últimos 14 anos de atuação, que é possível diferenciar estes fe-nômenos sem necessariamente fazer uma nova classi-ficação categorial.

Portanto, é necessário diferenciar e entender suas for-mas de apresentação para que a intervenção e o manejo clínico tenha sentido e seja eficaz. Dito isto, e diante do que temos presenciado, identificamos algumas diferen-ças essenciais que envolvem esse fenômeno. Primeiro, na crise psicótica, o indivíduo pode trazer em sua desorga-nização psíquica conteúdos relacionados a sua biografia, experiências espirituais anteriores, vivenciadas de forma natural no seu ambiente religioso, sem conotação pato-lógica, mas, que em meio a desorganização psíquica com todas as suas complicações, são processadas de manei-ra difusa, dando a impressão de sintomas “patológicos”. Neste caso, consideramos apenas uma crise psicótica com “conteúdo religioso”.

Uma segunda maneira de enxergar este fenômeno na clínica são as crises psicóticas que são permeadas com experiências espirituais, seja com a presença do “sagrado ou do demoníaco”. Entendemos que o indi-víduo não perde completamente a sua identidade e a sua essência em meio a crise. Com isso, a sua espiritu-alidade é preservada, podendo ser fator, inclusive de resiliência para o processo de reorganização psíquica, ou fator de maior desorganização psíquica. Temos tido vários relatos de experiência onde os clientes dizem ter dúvida quanto a determinada “alucinação” ser da “cri-

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se”, ou ter sido uma “vivencia espiritual”, assim como já experimentaram em momentos anterior a crise. Nes-te caso, entendemos ser uma crise psicótica com “ex-periência espiritual”.

E por fim, e mais complexo ainda, seriam as expe-riências puramente espirituais ou místicas que apre-sentam uma gama de “sintomas” que no momento em que acontecem, desorganizam a psique, mas que não são patológicas, e constitui-se como parte integrante da maneira de “ser no mundo” do indivíduo que a viven-cia. Sobre este aspecto, é preciso se desfazer de todas as “amarras preconceituais” para entender que, o que sabemos da vida e do ser humano é muito pouco para “encaixar” nos nossos manuais até então utilizados. Dal-galarrondo (2008) baseado em pesquisas na área nos traz a possibilidade de uma análise inicial trazendo uma di-ferenciação entre as experiências espirituais e sintomas psicopatológicos. Independente dessa diferenciação, recorremos a um olhar e uma escuta fenomenológica. Husserl afirma que o primeiro passo para o método fe-nomenológico é procurar captar o sentido das coisas, a sua essência (eidos). Por isso colocamos a “existência” entre parênteses, não desqualificando, mas afirmando a sua importância, e buscando o seu real sentido, no ca-so, não o que está fora, mas o que está dentro, o que é imanente do sujeito.

Bello (2004) traz aspectos da análise vivenciais segun-do Husserl, que posteriormente foi enfatizado por Stein, onde nos mostra a estrutura do ser em três grupos, cor-poral, psíquico e espiritual, afirmando que não se trata de aspectos separados e sim interligados da subjetivida-de (p. 96).

A psicologia fenomenológica se caracteriza pela in-sistência na dimensão espiritual, e recorre uma an-tropologia filosófica que evidencie a estrutura da pessoa. Com relação a todas as outras posições fi-losóficas e psicológicas, a novidade da perspectiva fenomenológica é a modalidade de alcançar os ní-veis do corpo, da psique e do espírito através das vivências (p. 112).

Para além de uma finalização, propomos uma reflexão mas ampla, abrindo questionamentos e suscitando além de críticas, dúvidas e anseios por um aprofundamento, por enquanto, e no momento, entendendo os fenômenos psíquicos como atos dos quais temos consciência, e as-sim passíveis de análise. Pretendemos assim, como pro-põe a fenomenologia de Husserl examiná-los não apenas os atos psíquicos, mas também aqueles que advindo do sujeito remetem a sua corporeidade e ao espírito no seu sentido diverso, mas principalmente no sentido “espiri-tual” como dimensão fundante do homem como busca e anseio das “coisas últimas”.

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raquel de paiva Mano - Psicóloga, Graduada em Teologia pela Facul-dade Teológica Batista de Brasília (FTBB), Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (PPG-PsiCC/IP/UnB), Clínica e Pesquisadora do Grupo de Intervenção Precoce nas Primeiras Crises do Tipo Psicótico (GIPSI/PCL/IP/UnB). E-mail: [email protected]

Ileno Izídio da Costa - Professor Adjunto do Departamento de Psico-logia Clínica, Membro (mestrado e doutorado) do PPG-PsiCC/IP/UnB, Coordenador dos Grupos GIPSI, Personna (Estudos e Pesquisas sobre violência, criminalidade e psicopatologia) e do CRR-UnB/Darcy Ribeiro/Senad. Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortu-ra (CNPCT) do Governo Federal, representando o Conselho Federal de Psicologia.Presidente da Associação de Saúde Mental do Cerrado (AS-CER). E-mail: [email protected]

Recebido em 06.03.2015Aceito em 15.10.2015

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Michel Henry: Afetividade e Alucinação

michel henRy: AfetiVidAde e AlUcinAção1

Michel Henry: affectivity and hallucination

Michel Henry: afectividad y alucinación

anDréS eDuarDo aGuirre antúnez FLorinDa MartinS

resumo: Neste artigo mostramos como é que Michel Henry toma a alucinação como paradigma da fenomenalidade da vida. Nele, a fenomenalidade da alucinação situa-nos na vida afetiva deixada a nu pela fenomenalidade da vida subjetiva. E porque a vida afetiva é vivência da pura vinda a si da vida nas modalidades da audição, da visão, da angústia, do temor, nela, a alucinação, en-quanto fenômeno suspenso na sua própria fenomenalidade aparece como fenômeno exemplar da vida, ainda que vivido em sen-timento de pura insuportabilidade dessa prova afetiva da vida. Todavia é a partir da experiência da insuportabilidade da prova de si da vida que se encontra, inerente ao sentimento da afeção da vida, a possibilidade de reversão do sofrimento em fruição. Mos-tramos ainda convergências entre a fenomenalidade da vida afetiva e práticas clínicas, laboratoriais ou outras, e seus desenvolvi-mentos em interdisciplinaridade no nosso grupo de investigação.palavras-chave: Prova de si; Alucinação; insuportabilidade; Pura possibilidade; Interdisciplinaridade.

Abstract: In this article, we show how Michel Henry takes hallucination as a paradigm of the phenomenality of life. According to him, the phenomenality of hallucination refers us to the affective life laid bare by the phenomenality of subjective life. And be-cause the affective life is pure experience brought to existence from life through modes of hearing, vision, anxiety, fear, in it, hal-lucination, while phenomenon suspended in its own phenomenality, appears as a phenomenon that is exemplary of life, though experienced in a feeling of pure intolerability of this affective experience of life. However, it is from the experience of intolerabil-ity of the self-experience of life that one finds, inherent to the feeling of affection of life, the possibility of reverting suffering into fruition. We also show convergences between the phenomenality of the affective life and clinical, laboratorial or other practices, and their developments into interdisciplinarity in our research group.Keywords: Experience of oneself; Hallucination; Unbearableness; Pure possibility; Interdisciplinarity.

resumen: En este artículo mostramos cómo Michel Henry toma la alucinación como paradigma de la fenomenicidad de la vida. De acuerdo con Henry, la fenomenicidad de la alucinación nos emplaza a la vida afectiva mostrada en su desnudez a través de la fenomenicidad de la vida subjetiva. Y dado que la vida afectiva es vivencia de la pura venida a sí de la vida en las modalidades de la audición, la visión, la angustia o el temor, en la alucinación, en cuanto fenómeno suspenso en su propia fenomenicidad, aparece como fenómeno ejemplar de la vida, aunque vivido en sentimiento de pura intolerancia de esa prueba afectiva de la vida. No obstante, es a partir de la experiencia de intolerancia de la prueba de sí de la vida como se encuentra, inherente al sentimien-to de la afección de la vida, la posibilidad de reversión del sufrimiento en fruición. Mostramos por último algunas convergencias entre la fenomenicidad de la vida afectiva y las prácticas clínicas, de laboratorio o de otra naturaleza, y sus desarrollos en nuestro grupo de investigación desde una perspectiva multidisciplinar.palabras clave: Experiencia de sí; Alucinación; Intolerancia; Pura posibilidad; Interdisciplinariedad.

1. A questão1Com o título afetividade e alucinação iremos dar voz

ao campo de investigação interdisciplinar entre fenome-nologia da vida e ciências da saúde, ratificado por Michel Henry, no Porto, em 2001 (Henry, 2001, p. 135-142). Uma validação que só aparece neste momento da sua obra e da sua vida, porquanto nele se verificam as condições de possibilidade de um debate que vá além da refuta-ção pura e simples das causas e das razões do adversário (Kant, 1781/1985), neste caso, o cultural confronto entre

1 Texto apresentado no Seminário do Centre d’éthique contemporaine, Montpellier 3 a 9 de Abril 2015.

o paradigma de cientificidade veiculado pelas ciências e o veiculado pela fenomenologia da vida. Ora a experiên-cia real que é trazida, nesse momento, ao debate e que ratifica a interdisciplinaridade é a experiência da insufi-ciência de um modelo de racionalidade que desconside-ra os fenômenos da subjetividade. Um modelo cuja in-suficiência a obra de Michel Henry, toda ela, denuncia; um modelo cuja insuficiência é, também ela, reconheci-da por parte daqueles que, cientistas e clínicos, em suas atividades o praticam.

Todavia se a subjetividade esteve no centro das ques-tões que, no dizer de Michel Henry reuniram a uma mes-ma mesa aqueles cuja finalidade da investigação é devol-ver uma vida doente ao seu poder e felicidade de viver

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Andrés E. A. A. & Florinda M.

(Henry, 2001, p. 142), hoje é a afetividade que está no centro desse mesmo debate. A afetividade é o horizonte de fenomenalidade aberto e deixado a nu pela subjetivi-dade: a fenomenalidade do emergir da vida no vivo, no dizer das ciências, ou da autoafecção da vida, no dizer de Michel Henry. Em qualquer dos casos é a afeção da vida no vivo que está, hoje, no centro das questões comuns à ciência e à filosofia. Uma e outra questionam o que cul-turalmente foi considerado, e de algum modo ainda é, a especificidade do nosso ser e do nosso agir: a sua incon-dicional liberdade e com ela a responsabilidade pessoal inerente aos nossos atos.

Hoje, ciência e fenomenologia da vida levam-nos a questionar a espontaneidade da autoafecção da vida que vivemos em corpo dotado de sentidos bem como as suas implicações em nosso agir, porquanto o agir, o agir hu-mano, está também ele ligado ao sentimento dessa au-toafecção originária da vida que, vivendo, somos. Sen-timento ora tranquilamente vivido por nós, ora brusca-mente interrompido pelas afeções da vida que perturbam não apenas o silêncio dos sentidos, mas dos órgãos, bem como das partes mais recônditas e esquecidas do nosso ser, atingindo por inteiro a nossa vida e com ela as nos-sas identidade e singularidade. Afeções cujo silêncio as denominadas patologias da vida despertam pondo a nu a vida que os silêncios silenciaram.

É neste contexto que trazemos a debate o tema afetivi-dade e alucinação para, nele, destacarmos os contributos da fenomenalidade da vida em jogo nas investigações e práticas clínicas confrontadas, todos os dias, com factos que põem em causa as nossas crenças e os nossos modos de pensar. Factos que nos levam a pensar como se cruzam na fenomenalidade da vida a humanização e desumani-zação da experiência de si em registro de sentido da afe-ção de que a alucinação é um exemplo.

Um tema que iremos desenvolver tendo como referên-cia dois textos de Michel Henry, dirigidos a um mesmo público – filósofos cientistas e terapeutas – mostrando a coerência interna dos mesmos e o dinamismo das ques-tões que ambos comportam. Os textos a que nos referi-mos são As ciências e a ética (Henry, 1992) e Eles em mim: uma fenomenologia (Henry, 2001, p. 135-142). E iremos apresentá-los em três pontos que articulam a fenomena-lidade da subjetividade com a da afetividade e esta com a interdisciplinaridade, em curso, nos nossos grupos de investigação.

No primeiro ponto situamos o tema que aqui apre-sentamos, na fenomenalidade da dor e do sofrimento enquanto fenômenos que remetem para o domínio da sensibilidade e, por conseguinte, da subjetividade. No segundo ponto mostramos que a fenomenalidade da dor e do sofrimento remetem da subjetividade à afetividade, porquanto todo o sentir é o sentir de uma afeção da vida em si. E no terceiro ponto apresentarmos os enredos da fenomenologia da afetividade nas ciências da vida, inclu-sive, as práticas clínicas.

Veremos que, em Michel Henry, a verdade da aluci-nação é a verdade da vida e por conseguinte será a par-tir da sua verdade que procuraremos saídas para a sua / nossa (des)humanização. Daremos assim continuidade a esta expressão de Michel Henry: “O homem começa onde começa esse viver definido como provar-se a si mesmo e termina onde ele cessa. Ora esse domínio de fenomena-lidade é o da ética” (Henry, 1992, p. 8).

2. Subjetividade e clínica

Em As ciências e a ética, Michel Henry (1992) mos-tra a importância da subjetividade na compreensão da nossa humanidade, sobretudo quando os conhecimen-tos científicos falham na sua capacidade de suporte à vi-vência de fenómenos como a dor e o sofrimento. Michel Henry mostra quão audível é o silêncio dos sentidos, dos órgãos e da vida que, dos alvores da modernidade aos nossos dias, insistentemente ecoam e gritam nas entra-nhas do seu sufoco abalando toda e qualquer tentativa de os podermos ignorar. E mostra-o em consonância com o caminho aberto pela fenomenalidade da vida que paula-tinamente vem desenvolvendo desde o seu primeiro ro-mance O jovem oficial (Henry, 1954) a Palavras de Cristo (Henry, 2002). A novidade deste artigo de 1992, a havê--la, está na sua possibilidade de a fenomenalidade da subjetividade se articular com as questões das ciências da saúde, nomeadamente, as investigações laboratoriais e as práticas médico-clínicas. E afirmamos, a haver no-vidade, pois é de todos conhecido um diálogo de Michel Henry, sobretudo em toda a década dos anos 80, com as ciências, ainda que neste período ele se circunscrevia ao diálogo com a psicanálise, nomeadamente à sua his-tória e à necessidade da sua refundação (Henry, 1991, p. 95-107)2. Todavia, agora não se trata apenas de refun-dar as ciências em torno do psiquismo humano, mas em torno da vida que conhecemos vivendo em um corpo, não um corpo qualquer, mas em um corpo dotado de senti-dos: um corpo que sofre, que ama e que odeia, que quer e rejeita, que deseja e se frustra, que vive e que adoece, que morre e renasce da própria morte!

Assim, e em consonância com a fenomenalidade da vida, não é de estranhar que Michel Henry tenha sido con-vidado a intervir, no colóquio internacional Sofrimento e dor: subjetividade na clínica3 (1998), Colóquio em que cientistas, clínicos, terapeutas e filósofos se unem na re-cuperação de uma tradição cultural, a nossa, na qual o saber e a ação, em vez de se oporem, se constituem em harmoniosa unidade (Henry, 1991, p. 1), porquanto eles são tão-só modalidades do nosso ser e do nosso viver.

2 Referimo-nos à Genealogia da Psicanálise e aos múltiplos artigos em torno deste tema, nomeadamente, o texto Phénoménologie et psycha-nalyse, in Psychiatrie et existence, Grenoble, Millon, 1991, p. 95-107.

3 Colóquio organizado pelo grupo de Filosofia da medicina do Institu-to de Oncologia de Lisboa, Francisco Gentil, em Arrábida, 1998.

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Michel Henry: Afetividade e Alucinação

Como não é de estranhar que Michel Henry delineie, um pouco mais tarde (2000/2001), o que ele intui ser um possível domínio fenomenológico de interdisciplinarida-de com as ciências biomédicas: “todos os conhecimentos objetivos a operar [no ato clínico] são atravessados por um olhar que vê, para lá deles, [...] o que deles resulta pa-ra uma carne” (Henry, 2000, p. 317; Henry, 2001, p. 142).

Deste modo, podemos dizer que a medicina, mesmo a medicina da dor, aparece como irredutível à fisicalidade da dor e as psicoterapias não estão isentas de manifesta-ções físicas ou corpóreas, pelo que apelam ambas para a humanidade ou desumanidade que as habita, isto é, para a fenomenalidade da vida subjetiva (Gély, 2012, p. 177), porquanto é na sua fenomenalidade que encontramos a possibilidade bem como a recusa de amparo à vida a bra-ços consigo mesma.

Na raiz das práticas clínicas está a vida de todos e de cada um de nós; uma vida cuja fenomenalidade se pro-cessa em um registro outro que o da objetividade e no qual a subjetividade recupera o seu espaço nas práticas clínicas e na fenomenologia da vida. Um espaço que abre à interdisciplinaridade e que Michel Henry acaba por re-conhecer como sendo uma prática indispensável quer à filosofia quer à ciência: “A interdisciplinaridade não é um termo oportuno nem um piedoso voto, ela é o trabalho e o pão quotidiano daqueles, médicos e filósofos, a quem reúne uma mesma finalidade: devolver uma vida doente ao seu poder e à felicidade de viver” (Henry, 2001, p. 142).

Um espaço a que, depois da sua morte, demos conti-nuidade e cujos mais recentes resultados publicamos já (Antúnez, Martins, Ferreira, 2014; Antúnez, Safra, Ferrei-ra, 2014). Neles, mostramos que a sensibilidade é parte integrante da clínica, porquanto ela é constitutiva da nos-sa humanidade. Mas como a sensibilidade remete para o fundo afetivo do advir da vida em nós e como nós é para a fenomenalidade desse fundo em articulação com as ci-ências da vida que orientamos agora as nossas investiga-ções. E é neste contexto que apresentaremos, então, agora o tema afetividade e alucinação. Ou seja, articularemos a fenomenalidade da alucinação com a fenomenalidade da afetividade da qual a alucinação aparece, em Michel Henry, como fenômeno exemplar.

3. Subjetividade e afetividade

A subjetividade, apreendida na sua positividade e não em oposição à objetividade, abre a dor e o sofrimento a uma fenomenalidade que se efetiva aquém de toda e qual-quer previsibilidade e, por conseguinte, de toda e qual-quer objetividade ou ser, porquanto a dor e o sofrimento se provam no processo da vida que apenas conhecemos originariamente vivendo. Dor e sofrimento provam-se no advir da vida em nós e como nós tal como se provam a alegria, a angústia, uma cor ou um som: provam-se co-mo constitutivas do nosso ser. Pelo que a materialidade

ou o tecido fenomenológico (Henry, 1990, p. 6) da dor e do sofrimento são dor e sofrimento. Dor e sofrimen-to instalam-se em nós, reestruturando-nos até mesmo na desconstrução do que somos, possibilitando que nos recriemos até mesmo a partir daquilo a que chamamos adoecer. Sentimo-los, provamo-los nessa instalação da vida, tomada em seu fundo que é ele mesmo seu supor-te e seu alicerce, na pura fenomenalidade do seu advir. Ou em linguagem henryana: “Puros são os sentimentos que provêm da prova de si mesmo que é o ser e a vida, uma vida absoluta”, acrescentando “a pureza do sentimen-to reside em seu fundo” (Henry, 1963, p. 843).

Ora em Michel Henry o fundo do sentimento é a afec-ção da vida em si mesma; afecção que provamos como possibilidade principial do nosso viver, porquanto nele somos e existimos. Todavia se todos estamos de acordo em que vida se instala em nós como possibilidade princi-pial do nosso viver nas modalidades de poder ver, andar, querer, rejeitar, pensar, sentir, já nem todos estaremos de acordo quando se atribui, essa possibilidade principial ao temor, à alucinação, à angústia, ao medo, ao desespe-ro, como o faz Michel Henry. E pode fazê-lo, pois é isso que a fenomenologia da vida nos revela: dor, sofrimento, alucinação, temor, angústia, cor, som, odor, desejo são to-nalidades afetivas da vida que experienciamos como im-pulso, pulsão, pulsar de vida em apelo à vida. Impulso ou pulsar que em linguagem henryana se traduz também em excedente de potência vivida em cada modalidade da vida. Excedência que é um fardo em si mesma, que é so-frimento, porquanto esse pulsar nos deixa a braços com a vivência desse excesso: “A força daquilo que originaria-mente adere a si, na união edificadora do ser, a força da afetividade e do sentimento, é isso aquilo de que o sofri-mento tem a cargo antes de ser o peso da sua tonalidade própria, o suplemento, o excedente de potência que ele deixa romper e liberta como aquilo que nele há de per-manente mesmo quando culmina e se quebra em dor ex-trema e em soluço” (Henry, 1963, p. 840).

Temos então que se cada tonalidade afetiva do nosso viver é pura coesão consigo mesma – coesão essa que per-mite a identidade de cada tonalidade – ela é também um fardo. Fardo tanto mais difícil de suportar quanto mais excessivo for o seu peso. Peso ou excedência que se pode rasgar em dor e em soluço e que, no limite nos pode dei-xar sem poder. Poder da vida que no limite do excesso de si nos pode deixar sem poder, eis o que caracteriza a fe-nomenalidade da alucinação. E assim se toda e qualquer prova da vida – visão, a audição, amor e ódio, percepção – são instalações da vida em nós, como nós, principial-mente vivenciadas como sentimento de uma afeção que nos impulsiona a agir, o agir decorrente de uma afeção que no excesso de si nos deixa sem poder, deixa-nos tam-bém, de igual modo, sem a possibilidade de usufruir des-sa possibilidade principial do nosso viver.

E é neste sentido que mais uma vez a fenomenalida-de da alucinação abre a fenomenalidade da vida não ape-

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nas à sua verdade, mas à verdade de nós mesmos: poder ou não usufruir dos poderes da vida; o mesmo será dizer mover-se no e com o fundo da vida em si para que a pró-pria vida acresça de si.

Retomemos as teses da fenomenologia da vida em Mi-chel Henry: na fenomenalidade da vida a visão ou audi-ção em nada diferem da fenomenalidade da angústia ou do desespero, bem como em nada diferem da fenomena-lidade da alucinação. Aliás, a alucinação é que colhe em si mesma o paradigma de toda a fenomenalidade da vi-da, porquanto a sua fenomenalidade se processa em uma anterioridade absoluta (Kanabus, 2011; Kanabus, 2014, p. 144) a qualquer assenhoreamento que dela possamos fazer bem como de qualquer referência a uma realidade heterogénea à sua (Gély, 2014, p. 107-136). Todavia esta-mos implicados em cada modalidade da prova da vida, porquanto todas as suas provas são por nós vividas como puro sentimento de visão, audição, amor, ódio, angústia, temor, desespero. Puro sentimento ou consciência pura de uma afeto. Simples sentir-se a braços consigo mesma, a vida, em sentido henryano, nada tem de inconsciente (Henry, 1992, p. 4). Mesmo quando sucumbe a si mes-ma, sobretudo quando sucumbe a si mesma, a vida sente que sucumbe aos seus poderes mergulhando na angústia, mergulhando no seu próprio desespero. A vida adoece na prova de si mesma, sucumbindo a si mesma.

Ora se atendermos à fenomenalidade deste sucumbir a si mesma temos que aquilo a que a vida sucumbe é ao peso do afeto. A um excesso de si que a impede de ser o seu ser, ou seja, viver, sentir, experienciar, criar. Um ex-cesso de si é um excesso de afeção que emerge da sua disponibilidade a outrem qualquer que ele seja. Compre-ender as várias modalidades da doação deste excesso é compreender as várias modalidades de o gerir e essa pa-rece ser a questão que reúne, a uma mesma mesa, filóso-fos e médicos, pois aí estará a possibilidade de devolver uma vida doente ao seu poder e à sua felicidade de viver (Henry, 2001, p. 142).

E assim, mais uma vez a fenomenalidade da alucina-ção abre a fenomenologia da vida, em Michel Henry, às questões que estão, hoje, no centro das nossas interroga-ções culturais. Ela abre, para lá do debate que implica a necessidade de considerar a subjetividade nas práticas clí-nicas, ao atual debate com as neurociências, em torno da interrogação sobre a possibilidade de um agir ético quan-do se descobre que o fundo da vida em nós é habitado por uma “arqui-inteligibilidade com leis próprias” (Hen-ry, 1992, p. 6) que impulsionam e determinam o nosso agir, qualquer que seja a modalidade com que provamos essa arqui-inteligibilidade e suas leis: na modalidade de alucinação, de angústia, de temor, de visão, de audição, de pensamento, de andar, de amor, de ódio, de volúpia ou de incômodo, numa palavra nas modalidades especí-ficas do nosso ser. Todavia, modalidades que nelas nos implicam para com elas podermos viver. A vida, a vida de todos e de cada um de nós é originariamente relação,

comunidade. O sentimento de si é prova dessa relação. Retomar o dinamismo dessa relação é devolver uma vida ao seu poder e à sua felicidade de viver.

O que só pode ser feito se na fenomenologia da prova de si, se houver, para lá do rompimento com o narcisismo, o ensimesmamento ou o fechamento da vida em si, nela, espaço para em afeto se mover. Ao provar-se na vida o si prova-se mais do que si mesmo; em afeto prova-se unido a todos os si(s) que na vida se provam; mais não apenas a todos os si(s) que na vida se provam, mas a tudo o que na vida se prova(Henry, 2004, p. 224). Possa então a vida mover-se nesse provar-se mais do que si mesma, nesse provar o outro em afeto.

Michel Henry não faz uma ética: indica apenas o âmbito da sua fenomenalidade que é o do domínio do agir. Um domínio que é o domínio da prova de si da vida que, ao fazer prova de si, nela nos implica, im-pulsionando-nos irrecusavelmente a interagir com o fundo afetivo pelo qual e no qual ele em nós se revela ou manifesta. Um fundo primordialmente relacional pelo que o nosso agir, na vida e com a vida, é primor-dialmente ético. É nesta arqui-relacionalidade da vida afetiva que se alicerça a interdisciplinaridade em entre os saberes da vida.

4. Afetividade e interdisciplinaridade

O primeiro elemento importante da fenomenologia da vida trazido a este debate é a possibilidade inerente à própria experiência ou à prova de si e consiste na pos-sibilidade de a vida se amparar da sua própria afeção de vida. Cada um de nós, ao provar a vida em seu fundo afe-tivo, ampara-se de si amparando-se da vida em si. Uma possibilidade cuja intuição nos parece estar em jogo na insistente referência de Michel Henry a Kafka: chance que “o solo no qual me apoio nunca é mais largo do que os dois pés que o cobrem. Porque o mistério da vida é este: que o vivo é coextensivo ao Todo da vida nele, que tudo nele é a sua própria vida. O vivo não se fundou a si mesmo, ele tem um Fundo que é a vida, mas esse Fun-do não é diferente dele, ele é a autoafeção na qual ele se autoafeta e com a qual, dessa forma, se identifica” (Hen-ry, 1990, p. 177).

Um fundo da vida nem é um fundo anônimo nem uma singularidade sem relação. É uma ipseidade porquanto se vivencia nas modalidades da consciência pura de angús-tia, de desespero, de medo e até mesmo de desamparo. O desamparo é a pura consciência da sua possibilidade de ser na e pela vida pática. Pois quando tudo desmoro-na, eliminado qualquer possibilidade de retoma (Henry, 2002, p. 123), o puro sentimento de abandono, de vazio (Henry, 2003, p. 291) é ainda ele mesmo possível em seu viver, mas agora como que aberto a possibilidades ainda por viver, ainda impensáveis, ainda inexistentes: em porvir!

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Michel Henry: Afetividade e Alucinação

Ao revelar-se pelo sentir-se a vida expõe-se como pura consciência afetiva e ao fazê-lo permite-nos co-nhecê-la conhecendo com os seus limites as suas pos-sibilidades. Os enredos da vida são enredos afetivos: as relações são os fios desse tecido de afetos! Fios não raro vividos em um emaranhado de emoções que dei-xem sem poder aquele que assim as vive. Todavia ain-da assim, fios que esperam transitar em tecidos ainda por tecer! Fios desejos!

Michel Henry, em o romance o Filho do rei, refere es-ta possibilidade assim mesmo; na modalidade de desejo. Diz ele a respeito de uma das personagens do romance: Mariette/Lucile “(...) cravada com mais flechas do que o santo preso à coluna, não é de fraqueza mas é dos teus poderes que tu sucumbes (...) possa a perfeição inscrita na sua carne e que dela irradia não permanecer entre nós demasiado horrendos, oh sim, possa ela ser mais forte do que o insuportável. Possa ela não ser louca!” (Henry, 1981, p. 65).

Possa a vida ser mais forte que o insuportável! Pos-sa ela amparar-se desse insuportável! Possa ela não en-louquecer! Possa ela conviver com a revelação primor-dial do poder do afeção da vida, mesmo quando esta na imersão de si a deixa sem poder, aniquilada, reduzida a escombros! Possa ela renascer da pura consciência do escombro!

Possa ela! Desejo transformado em possibilidade, dei-xada em aberto pela fenomenalidade da vida no artigo “Eles em mim: uma fenomenologia”: a possibilidade de “devolver uma vida doente ao seu poder e à felicidade de viver”. Possibilidade já reconhecida no romance O Filho do rei, mas negada na ineficácia das práticas clínicas que se sustentavam num divórcio entre teoria e prática. É pa-ra a possível conciliação deste divórcio que a conferên-cia de Michel Henry, no Porto em 2001, chama a atenção. Uma conciliação que consideramos possível, não como aplicação de uma teoria a uma prática, mas pela inerên-cia de ambas à fenomenalidade da vida em si mesmas, como temos vindo a expor.

Em termos fenomenológicos trata-se de atender ao (des)enlace dos fios pelos quais a vida se regenera e recria: os fios da passagem da pura consciência de um fundo ao envolvimento com esse fundo de modo a revolvê-lo em seu mesmo fundo. Em linguagem husserliana, diríamos que queremos saber da articulação entre duas modalida-des da consciência do escombro: a pura consciência de escombro vivida como sentimento que, ao mesmo tempo que arranca de si mesma (ante-símul / Vor- Zugleich) a pu-ra passibilidade do escombro, se vive, ao mesmo tempo (Zugleich), renovada a partir da retoma desse escombro. Em termos henryanos falaríamos da corpopropriação do escombro: pathos-avec.

O delineamento de um projeto de investigação inter-disciplinar em torno do conceito henryano de corpopro-priação foi objeto do colóquio internacional realizado em 2012, em Lisboa (Martins, 2014, p. 73-76). As implicações

do conceito de corpopropriação nas terapias, suscitadas pela apresentação da conferência de Benoît Kanabus O conceito de corpopropriação em Michel Henry e Chris-tophe Dejours no colóquio internacional Michel Henry: O incondicional da condição humana, realizado no Porto em 2013 (Kanabus, 2014, p. 101-113)4, estiveram na ori-gem de um encontro interdisciplinar, realizado na USP (Universidade de São Paulo/Brasil) e na UGS (Universida-de General Sarmiento, Argentina) em 2014. Os resultados destes encontros e debates estão já publicados.5

Neste artigo, mostramos como é que esse conceito de corpopropriação vai de encontro a uma necessidade deixada em suspenso, no romance O Filho do rei. Nele, Michel Henry, depois de ter remetido o conceito do in-consciente para a fenomenalidade pura da consciência nas modalidades da angústia, do desamparo, da aniqui-lação, do desmoronamento, deixa nela em aberto a pos-sibilidade do amparo da vida ao excesso que ela mesma gera! Se o outro se dá como excesso que aniquila, então ele também se pode dar em excesso que ampara! Excesso vivido como afeto; excesso que identifica cada um em si mesmo aquando nesse mesmo excesso vivido! Excesso à espera de recriação de si mesmo. Desejo fracassado no romance O Filho do rei. Desejo retomado no artigo “Eles em mim: uma fenomenologia”, mas respondendo agora ao tema do próprio colóquio: “os outros em eu”! Os ou-tros em eu, como os outros em mim: pathos-com! Vida! Relação que em afeto se tece e se vive! Em afeto se reno-va dos escombros!

É na continuidade dessa possibilidade que o tema da corpopropriação enquanto possibilidade de uma fenome-nalidade do amparo da vida a partir do puro sentimento ou consciência de um fundo afetivo ao qual estamos vin-culados permite dar novos desenvolvimentos a práticas clínicas cuja receptividade à fenomenologia da vida faz já parte das suas atividades bem como integrar outras que descobrem essa mesma afinidade. Tal é o caso das práticas clínicas que se prendem com questões de motricidade. Um trabalho iniciado em Primavera de saudade em fios quatro-zero (Martins & Teixeira, 2007, p. 17-28) e que ti-nha como objetivo a interdisciplinaridade das terapêuticas da recuperação de uma mobilidade perdida quer por do-ença quer por acidente. Um trabalho a que Renato Mauri está a dar continuidade integrando o conceito no estudo da motricidade humana e do desporto. Uma prática para a qual muito pode vir a contribuir uma tradição cultural do Brasil e que é o jogo da “capoeira”6. Um jogo que, em

4 In Michel Henry: o incondicional da condição humana, Revista da Faculdade de Teologia, Porto.

5 Os resultados desta investigação serão publicados na Revista de Psi-cologia da USP, 2015, volume 26, número 3. Os artigos são da auto-ria de Andrés Antúnez; Benoît Kanabus, Florinda Martins, Gilberto Safra e Maristela Ferreira.

6 A fenomenologia da vida não passa ao lado da vida: as suas potencia-lidades manifestaram-se-nos em uma festa de “capoeira” para crian-ças, que teve lugar na Fondation Lycée Pasteur - Casa Santos Dumond - São Paulo. A elas e seus organizadores o nosso reconhecimento.

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linguagem fenomenológica, consiste em amparar-se em totalidade do movimento do corpo do outro transforman-do a agressividade do adversário em contínuo jogo. Cor-po a corpo, em grupo, em comunidade a vida supera-se arrancando à inércia e à morte, o embuste, a fraude, a dor, o sofrimento. A vida de cada um de nós supera-se e desenvolve-se ao envolver-se com a vida de todos e de cada um de nós. E é por isso que a vida comunitária em Michel Henry, não é apenas subjetividade mas sentimen-to: pathos, épreuve de soi, que enquanto amparo de si é co-pathos ou pathos-avec (Henry, 1990).

É no enredo desse pathos que colhemos as leis pró-prias do nosso viver e com elas as suas possibilidades e os seus limites (Henry, 1992, p. 6). Limites ou constrangi-mentos revelados pelo dinamismo da vida afetiva que vi-vemos em nossa “carne”; que vivemos em “carne e osso”. Limites nos quais, no dizer de Adélia Prado, nunca na-da está morto e onde o que parece estático espera (Prado, 2001). Dizer que Jacqueline Santoantonio bem conhece em suas práticas de Ateliê de Pintura (Santoantonio, 2014, p. 253-272). Neste, se põem em movimento energias que há muito espreitam, temerosas, as formas de sua expres-são. E tal como em Kandinsky, também no Ateliê de Pintu-ra as cores expressam esse originário movimento da vida indispensável a todo o dizer originário que a obra de arte encarna. Por isso em Michel Henry a narrativa do senti-mento do sol nas costas (Henry, 1981, p. 105), na obra O Filho do rei, traz em si a mesma dimensão de eternidade que a obra de Kandinsky ou uma obra do renascimento. A verdade da alucinação é impossibilidade da sua opaci-dade a si mesma. A opacidade a si mesma é a sua falsida-de. Mas essas são a verdade e a falsidade de toda e cada prova da vida: a impossibilidade da opacidade a si mes-ma na pura consciência afetiva versus a sua opacidade inconsciente tanto quanto a sua visibilidade sem fundo.

Com o conceito de corpopropriação é a condição hu-mana que deve ser repensada em seu fundo. Amparada no afeto que das entranhas à flor da pele (Henry, 1996) se prova, amparada naquilo que a observação de uma radiografia nos pode dizer o que daí resulta para uma carne (Henry, 2000, p. 317), amparada desde uma afe-ção que se traduz em uma proteína com implicações na memória (Teixeira & Martins, 2006, p. 321-233), ou na criação de um ambiente enriquecido que favoreça uma determinada morfologia dos neurônios com implicações na qualidade de vida de doente com Alzheimer ou ainda na determinação de períodos de desenvolvimento hu-mano que são mais ou menos propícios ao aparecimen-to de distúrbios psiquiátricos (Yu, Teixeira, Mahadevia, Huang, Balsam, Mann, Gingrich & Ansorge, 2014), am-parada em seu fundo, a fenomenalidade da vida, tal co-mo faz prova de si, permite fazer a passagem do regis-tro da objetividade para o da subjetividade para nesta encontrar as leis que a revolvem por completo: com a inversão fenomenológica a vida renasce em seu fundo e o fundo renasce com ela.

O Acompanhamento terapêutico, enquanto acompa-nhamento dos enredos afetivos da vida em todos e em cada um de nós, poderá vir a ser a expressão de uma cultura, em que a prática clínica, mais do que acompanhar as re-presentações e simbolizações do real, acompanha aquilo que lhes dá expressão: a vida afetiva com seus constran-gimentos e possibilidades em amoroso enlace de fios que tecem cada viver.

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Andrés Eduardo Aguirre Antúnez - Professor Livre-Docente do Departa-mento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Membro do GT Psicologia e Fenomenologia - ANPEPP. Endereço Institucional: Av. Professor Mello Moraes, 1.721 - Cidade Universitária, São Paulo/SP - CEP: 05508-030. E-mail: [email protected]

Florinda Martins - Professora emérita, Doutora em filosofia, coordena-dora científica do projeto internacional de investigação “O que pode um corpo”, Centro de Estudos em Filosofia - CEFi, Universidade Católica Portuguesa - UCP-Lisboa/Porto; autora de livros e artigos sobre fenome-nologia. E-mail: [email protected]

Recebido em 10.05.20157

Aceito em 23.09.2015

7 Nota do Editor: Uma versão deste artigo encontra-se publicado em Espanhol, na Revista Ápeiron. Estudios de filosofía – Filosofía y Fe-nomenología, Nr.3 (Octubre 2015), España. A publicação das versões em português e em inglês foram autorizadas pelo editor espanhol, a quem agradecemos a gentileza, permitindo-nos tramitar o presente artigo em nosso periódico.

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Andrés E. A. A. & Florinda M.

michel henRy: AffectiVity And hAllUcinAtion1

Michel Henry: afetividade e alucinação

Michel Henry: afectividad y alucinación

anDréS eDuarDo aGuirre antúnez FLorinDa MartinS

Abstract: In this article, we show how Michel Henry takes hallucination as a paradigm of the phenomenality of life. According to him, the phenomenality of hallucination refers us to the affective life laid bare by the phenomenality of subjective life. And be-cause the affective life is pure experience brought to existence from life through modes of hearing, vision, anxiety, fear, in it, hal-lucination, while phenomenon suspended in its own phenomenality, appears as a phenomenon that is exemplary of life, though experienced in a feeling of pure intolerability of this affective experience of life. However, it is from the experience of intolerabil-ity of the self-experience of life that one finds, inherent to the feeling of affection of life, the possibility of reverting suffering into fruition. We also show convergences between the phenomenality of the affective life and clinical, laboratorial or other practices, and their developments into interdisciplinarity in our research group.Keywords: Experience of oneself; Hallucination; Unbearableness; Pure possibility; Interdisciplinarity.

resumo: Neste artigo mostramos como é que Michel Henry toma a alucinação como paradigma da fenomenalidade da vida. Nele, a fenomenalidade da alucinação situa-nos na vida afetiva deixada a nu pela fenomenalidade da vida subjetiva. E porque a vida afetiva é vivência da pura vinda a si da vida nas modalidades da audição, da visão, da angústia, do temor, nela, a alucinação, enquanto fenômeno suspenso na sua própria fenomenalidade aparece como fenômeno exemplar da vida, ainda que vivido em sentimento de pura insuportabilidade dessa prova afetiva da vida. Todavia é a partir da experiência da insuportabilidade da prova de si da vida que se encontra, inerente ao sentimento da afeção da vida, a possibilidade de reversão do sofrimento em fruição. Mostramos ainda convergências entre a fenomenalidade da vida afetiva e práticas clínicas, laboratoriais ou outras, e seus desenvolvimentos em interdisciplinaridade no nosso grupo de investigação.palavras-chave: Prova de si; Alucinação; Insuportabilidade; Pura possibilidade; Interdisciplinaridade.

resumen: En este artículo mostramos cómo Michel Henry toma la alucinación como paradigma de la fenomenicidad de la vida. De acuerdo con Henry, la fenomenicidad de la alucinación nos emplaza a la vida afectiva mostrada en su desnudez a través de la fenomenicidad de la vida subjetiva. Y dado que la vida afectiva es vivencia de la pura venida a sí de la vida en las modalidades de la audición, la visión, la angustia o el temor, en la alucinación, en cuanto fenómeno suspenso en su propia fenomenicidad, apare-ce como fenómeno ejemplar de la vida, aunque vivido en sentimiento de pura intolerancia de esa prueba afectiva de la vida. No obstante, es a partir de la experiencia de intolerancia de la prueba de sí de la vida como se encuentra, inherente al sentimiento de la afección de la vida, la posibilidad de reversión del sufrimiento en fruición. Mostramos por último algunas convergencias entre la fenomenicidad de la vida afectiva y las prácticas clínicas, de laboratorio o de otra naturaleza, y sus desarrollos en nuestro gru-po de investigación desde una perspectiva multidisciplinar.palabras clave: Experiencia de sí; Alucinación; Intolerancia; Pura posibilidad; Interdisciplinariedad.

1. the question1With the title Affectivity and Hallucination, we will

give voice to the interdisciplinary research field concern-ing both the phenomenology of life and health sciences, ratified by Michel Henry, in Porto, in 2001 (Henry, 2001). A validation that only appears at this point in his work and his life, because at this point there are conditions of possibility of a debate that goes beyond the pure and simple refutation of the causes and reasons of the oppo-nent (Kant, 1781/1985), in this case, the cultural clash

1 Text presented in the Seminar of Centre d’éthique contemporaine, Montpellier, 3-9 April 2015.

between the paradigm of scientificity conveyed by sci-ences and that conveyed by the phenomenology of life. Now the actual experience that is brought, at this time, to debate and that ratifies interdisciplinarity is the expe-rience of the insufficiency of a model of rationality that disregards the subjectivity phenomena. A model whose insufficiency the work of Michel Henry – his entire work – denounces; a model whose insufficiency is, also, rec-ognized by those – scientists and clinicians – who follow it in their activities.

However, if subjectivity was at the center of the ques-tions that, in the words of Michel Henry, brought togeth-er those whose investigation’s purpose is to bring a sick life back to power and joy of living (Henry, 2001, p. 142),

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Michel Henry: Affectivity and Alucination

today affectivity is at the center of that debate. Affectiv-ity is the horizon of phenomenality opened and laid bare by subjectivity: phenomenality of the emergence of life in the living, in the words of science, or auto-affection of life, in the words of Michel Henry. In either case, it is the affection of life in the living that is, today, at the cen-ter of questions shared by science and philosophy. Both question what was culturally considered – and somehow still is – the specificity of our being and of our action: its unconditional freedom and with it the personal respon-sibility inherent in our actions.

Today, science and phenomenology of life lead us to question the spontaneity of the auto-affection of the life that we live in a body endowed with senses and its impli-cations for our action, since action, human action, is also connected to the feeling of this auto-affection originated from life that, living, we are. Feeling at times quietly lived by us, at times abruptly interrupted by the affections of life that disturb not only the silence of the senses, but of the organs, as well as of the most recessed and forgotten parts of our being, impacting our life completely and with it our identity and singularity. Affections whose silence the so-called pathologies of life awaken, laying bare the life that the silences silenced.

It is in this context that we bring to debate the theme affectivity and hallucination so that, in it, we highlight the contributions of the phenomenality of life that are at stake in the research and clinical practices confronted, every day, with facts that challenge our beliefs and our mind-sets. These facts lead us to think how humanization and dehumanization of the experience of oneself intersect in the phenomenality of life concerning the sense of affec-tion of which hallucination is an example.

A theme that we will discuss having as reference two texts by Michel Henry, directed to the same audience – scientist-philosophers and therapists – showing their in-ternal coherence and the dynamism of their questions. The texts to which we refer are Les sciences et l’éthique and Eux en moi: une phénoménologie (Henry, 1992). And we will present them in three points that articulate the phenomenality of subjectivity with that of affectiv-ity and this with interdisciplinarity, in a course, in our research groups.

In the first point, we situate the theme presented here, in the phenomenality of pain and suffering while phenom-ena that refer to the domain of sensitivity and, therefore, of subjectivity. In the second point, we show that the phe-nomenality of pain and suffering refer from subjectivity to affectivity, inasmuch as all feeling is the feeling of an affection of life itself. And, in the third point, we present the intertwining of the phenomenology of affectivity with the life sciences, including clinical practices.

We will see that, in Michel Henry, the truth of hallu-cination is the truth of life and, therefore, based on its truth, we will seek solutions for its/our (de)humanization. Thus, we will continue this expression of Michel Henry:

“Man begins where begins this living defined as experi-encing oneself and ends where it ends. Now this domain of phenomenality is that of ethics” (Henry, 1992, p. 8).

2. Subjectivity and medical practice

In Les sciences et l’éthique (1992), Michel Henry shows the importance of subjectivity in understanding our humanity, especially when scientific knowledge fails in its ability to support the experience of phenomena such as pain and suffering. Michel Henry shows how audible is the silence of the senses, of the organs, and of life that, from the dawn of modernity to the present day, insis-tently echo and scream in the bowels of its suffocation undermining any attempt to being able to ignore them. And he shows it in line with the way opened by the phe-nomenality of life that has been developing steadily since his first novel Le jeune officer (Henry, 1954) to Paroles du Christ (Henry, 2002). The novelty of this article from 1992, if any, is in its possibility of the phenomenality of subjectivity articulating with the issues of health sci-ences, in particular laboratory investigations and medi-cal and clinical practices. And we say, if any novelty, for it is known by all Michel Henry’s dialogue – particularly throughout the decade of the 1980s – with the sciences, although by this time it was limited to dialogue with psy-choanalysis, specifically to its history and to the need of its refounding2. However, now it is not just a matter of refounding the sciences around the human psyche, but around the life we know living in a body, not any body, but in a body endowed with senses: a body that suffers, that loves and hates, that wants and rejects, that desires and is frustrated, that lives and sickens, that dies and is reborn from its own death!

Thus, in line with the phenomenality of life, it is not surprising that Michel Henry was invited to speak at the international conference Suffering and pain: subjectivity in medical practice3 (1998), a Symposium where scientists, clinicians, therapists, and philosophers are united in the recovery of a cultural tradition, ours, in which knowledge and action, rather than opposites, constitute a harmoni-ous unity (Henry, 1992, p. 1), inasmuch as they are only modes of our being and of our living.

As it is not surprising that Michel Henry outlines, a little later (2000/2001), that which he intuits to be a possible phenomenological domain of interdisciplinar-ity with biomedical sciences: “all objective knowledge operating [in the clinical act] is crossed by a stare that sees, beyond them, [...] what results from them to a flesh” (Henry, 2000, p. 317).

2 We refer to The Genealogy of Psychoanalysis and to the multiple arti-cles on this theme, namely the text Phénoménologie et psychanalyse, in Psychiatrie et existence, Grenoble, Millon, 1991, p. 95-107.

3 Colloquium organized by the medicine Philosophy group from the Oncology Institute of Lisbon, Francisco Gentil, at Arrábida, 1998.

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Thus, we can say that medicine, even the medicine of pain, appears as irreducible to the physicality of pain and psychotherapies are not exempt from physical or bodily manifestations, for both appeal to the humanity or inhumanity that are part of them, that is, to the phe-nomenality of subjective life (Gély, 2012, p. 177), since it is in such phenomenality that we find the possibil-ity and the refusal of supporting the life that is dealing with itself.

At the root of clinical practice is the life of each and every one of us; a life whose phenomenality is processed in another manner instead of objectivity and in which subjectivity recovers its space in clinical practices and in the phenomenology of life. A space that opens to in-terdisciplinarity and that Michel Henry eventually rec-ognize as an indispensable practice both to philosophy and science: “Interdisciplinarity is not an opportunistic term or a merciful vow, it is the daily work and bread of those, medical doctors and philosophers, who are united by a single purpose: to bring a sick life back to its power and joy of living” (Henry, 2001, p. 142).

A space that – after his death – we continued and whose most recent results are already published (An-túnez, Martins, Ferreira, 2014; Antúnez, Safra, Ferreira, 2014). In these works, we show that sensitivity is part of medical practice, for it is constitutive of our humanity. Nevertheless, as sensitivity refers to the affective essence resulting from the occurrence of life in us and as us, it is towards the phenomenality of this essence in articula-tion with the life sciences that now we guide our inves-tigations. This is the context in which we will present, then, now the theme affectivity and hallucination. That is, we will articulate the phenomenality of hallucination with the phenomenality of affectivity from which hal-lucination appears, in Michel Henry, as an exemplary phenomenon.

3. Subjectivity and affectivity

Subjectivity, seized in its positivity and not in oppo-sition to objectivity, opens pain and suffering to a phe-nomenality that becomes effective without any predict-ability and, therefore, of any objectivity or being, because pain and suffering experience themselves in the process of life that originally we only know by living. Pain and suffering experience themselves in life’s affections in us and as ourselves, such as joy, anguish, a color or a sound experience themselves: they experience themselves as constitutive of our being. Because the materiality or phe-nomenological fabric (Henry, 1990, p. 6) of pain and suf-fering are pain and suffering. Pain and suffering install in us, restructuring us even in the deconstruction of what we are, enabling us to recreate ourselves even from what we call sickening. We feel them, experience them in this establishment of life, taken in its foundations that is it-

self its support in the pure phenomenality of its affection. Or in Henrian terms: “Pure are the feelings that come from the experience of oneself which is the being and life, an absolute life”, adding “the purity of feeling resides in its foundation” (Henry, 1963, p. 843).

Now in Michel Henry the essence of feeling is the af-fection of life in itself; affection that we experience as el-ementary possibility of our living, because in it we are and exist. However, if we all agree that life installs in us as primordial possibility of our living in the modalities of seeing, walking, wanting, rejecting, thinking, feeling, since not everyone will agree when this primordial pos-sibility is attributed to apprehension, hallucination, an-guish, fear, despair, as Michel Henry does. And it can be done because that is what the phenomenology of life re-veals: pain, suffering, hallucination, fear, anguish, color, sound, smell, desire are emotional tonalities of the life that we experience as impulse, instinct, desire of life ap-pealing to life. Impulse or drive that in Henrian terms al-so translates into excess of power lived in each mode of life. Excess which is a burden in itself, which is suffer-ing, because this drive leaves us dealing with the expe-rience of this excess: “The force of that which originally adhered to itself, in the edifying union of the being, the force of affectivity and feeling, this is that which suffer-ing is responsible for before being the weight of its own tonality, the supplement, the excess of power that it lets out and releases as that which in it is permanent even when it culminates and breaks into extreme pain and sob” (Henry, 1963, p. 840).

Then we have that every affective tonality of our liv-ing is pure cohesion with itself – a cohesion that allows the identity of every tonality – it is also a burden. A bur-den all the more difficult to bear the more excessive is its weight. Weight or excess that can break into pain and so-lutions that can ultimately render us powerless. Power of life that in the limit of its excess can render us powerless; this is what characterizes the phenomenality of halluci-nation. And thus if any and all experience of life – sight, hearing, love and hate, perception – are establishments of life in us, as us, essentially experienced as feeling of an affection that drives us to action, the action resulting from an affection that in its excess renders us powerless, similarly, it also deprives us of the possibility of enjoying this primordial possibility of our living.

And it is in this sense that once again the phenom-enality of hallucination opens the phenomenality of life not only to its truth, but to the truth of ourselves: being allowed to enjoy the powers of life or not; the same is to say moving in and with the essence of life itself so that life itself is enhanced by itself.

Let us return to the theses of the phenomenology of life in Michel Henry: in the phenomenality of life sight or hearing are no different from the phenomenality of anguish or despair, as well as they are no different from the phenomenality of hallucination. Apropos, the hallu-

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cination collects in itself the paradigm of all the phenom-enality of life, because its phenomenality is processed in a priority (Kanabus, 2011; Kanabus, 2014, p. 144) that is absolute in relation to any control that we can exert over it as well as over any reference to a reality that is heterogeneous in relation to it (Gély, 2014, p. 107-136). Nonetheless, we are involved in each mode of the expe-rience of life, for all its experiences are experienced by us as pure feeling of sight, hearing, love, hate, anguish, fear, despair. Pure feeling or pure consciousness of an af-fect. Simple to feel involved with itself, life, in a Henrian sense, has nothing to do with being unconscious (Henry, 1992, p. 4). Even when it succumbs to itself, especially when it succumbs to itself, life feels that it succumbs to its powers plunging into anguish, plunging into its own despair. Life sickens in the experience of itself, succumb-ing to itself.

Now if we address the phenomenality of this suc-cumbing to itself, we observe that that to which life suc-cumbs is the weight of affect. To an excess of itself that keeps it from being its being, that is, living, feeling, ex-periencing, creating. An excess of itself is an excess of af-fection that emerges from its availability to another one, whosoever this one may be. Understanding the various modes of giving this excess is to understand the various ways to manage it, and this seems to be the question that brings together, to the same discussion, philosophers and physicians, because therein lies the possibility of bring-ing a sick life back to its power and joy of living (Henry, 2001, p. 142).

And so, once again the phenomenality of hallucina-tion opens the phenomenology of life, in Michel Henry, to the issues that are, today, at the center of our cultur-al questions. It opens, beyond the debate which implies the need to consider subjectivity in clinical practice, to the current debate with neurosciences, around the ques-tion about the possibility of an ethical action when one discovers that the essence of life in us is inhabited by an “arch-intelligibility with its own laws” (Henry, 1992, p. 6) that drive and determine our action, whatever the mode whereby we experience that arch-intelligibility and its laws: in the mode of hallucination, of anguish, of fear, of sight, of hearing, of thinking, of walking, of love, of hatred, of lust or of nuisance, in a word in the specific modes of our being. However, modes that involve us in them so we can live with them. Life, the life of each and every one of us is originally relationship, community. The feeling of oneself is experience of this relationship. Resuming the dynamism of this relationship is to bring a life back to its power and joy of living.

Which can only be attained if in the phenomenology of self-experience there is, beyond the break with nar-cissism, self-absorption or closure of life in itself, in it, space to move in affect. When experiencing itself in life, the self experiences itself more than itself; in affect ex-periences itself united to all the self(ves) that in life ex-

perience themselves; yet not only to all self(ves) that in life experience themselves, but to everything that in life undergoes a self-experience (Henry, 2004, p. 224). May life then move in this self-experiencing more than itself, in this experiencing the other in affect.

Michel Henry devises no ethic: he only indicates the extent of its phenomenality which is that of the domain of action. A domain that is the domain of self-experience of life that, in experiencing oneself, involves us in it, driv-ing us undeniably to interact with the affective essence whereby and in which it is revealed or manifested in us. An essence that is primarily relational because our action, in life and towards life, is primarily ethical. The interdis-ciplinarity between life’s sorts of knowledge is based on this arch-relationality of affective life.

4. Affectivity and interdisciplinarity

The first important element of the phenomenology of life brought to this debate is the possibility inherent in experience itself or in the experience of oneself and consists in the possibility of life supporting itself from its own affection of life. Each of us, when experiencing life in its affective foundation, supports oneself from oneself by sustaining from life itself. A possibility whose intuition seems to be at stake in the insistent reference of Michel Henry to Kafka: a chance that “the soil on which I stand is never wider than the two feet covering it. Because the mystery of life is this: that the living is coextensive to the Whole of life in him, that everything in him is his own life. The living did not create his es-sence, he has an Essence that is life, but this essence is not different from him, he is the autoaffection in which he affects himself and with which, thus, he identifies” (Henry, 1990, p. 177).

An essence of life is not even an anonymous essence nor an unrelated singularity. It is a selfhood because it is experienced in the modes of pure consciousness of an-guish, of despair, of fear, and even of helplessness. Help-lessness is its awareness of its possibility of being in and through the pathic life. Because when all is wrecked, elim-inating any possibility of recovery (Henry, 2002, p. 123), the pure feeling of abandonment, of emptiness (Henry, 2003, p. 291) is still even possible itself in its living, but now open to possibilities still to live, still unthinkable, still nonexistent: for the future!

In revealing by the feeling of life, it is exposed as pure affective consciousness and in doing so allows us to know it knowing with its limits its possibilities. The webs of life are affective webs: relationships are the threads in this fabric of affects! Threads often lived in an entanglement of emotions that render powerless the one who lives them like this. But, still, threads that hope to be entwined into fabrics yet to be woven! Desire threads!

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Michel Henry, in the novel The son of the King, refers to this possibility in this manner; in the desire mode. It says about one of the characters in the novel, Mariette/Lucile: “[...] pierced by more arrows than the saint at-tached to the column, it is not out of weakness but out of your powers that you succumb [...] may the perfec-tion displayed by your flesh and that it radiates remain no longer among us excessively horrendous, oh yes, may it be stronger than the unbearable. May it not be mad!” (Henry, 1981, p. 65).

May life be stronger than the unbearable! May it support itself from this unbearable! May it not madden! May it live with the primary revelation of the power of the affection of life, even when it in the immersion of itself renders it powerless, destroyed, reduced to wreck-age! May it be reborn from the pure consciousness of the wreckage!

May she! Desire transformed into possibility, left open by the phenomenality of life in the article “They in me: a phenomenology”: the possibility of “bringing a sick life back to its power and joy of living”. A possi-bility already acknowledged in the novel The son of the king, but denied in the ineffectiveness of clinical prac-tices that were supported by a divorce between theory and practice. Michel Henry’s conference in Porto in 2001 draws attention to the possible reconciliation of this di-vorce. A reconciliation we consider possible, not as ap-plication of a theory to a practice, but by the inherence of both in the phenomenality of life in themselves, as we have been exposing.

In phenomenological terms, it is attending to the (un)twining of the threads whereby life regenerates and recre-ates: the threads of the passage from the pure conscious-ness of an essence to the involvement with this essence in order to revolve in its same essence. In Husserlian terms, we would say we want to know the articulation between two modes of the consciousness of the wreckage: the pure consciousness of wreckage experienced as feeling that, while pulling away from itself (ante-simul / Vor-Zugleich) the pure passivity of the wreckage, lives, at the same time (Zugleich), renewed from the recovery of this wreckage. In Henrian terms, we would speak of body-propriation (corpspropriation) of the wreckage: pathos-avec.

The design of an interdisciplinary research project around the Henrian concept of body-propriation was the subject of the international colloquium held in 2012 in Lisbon (Martins, 2014, p. 73-76). The implications of the concept of body-propriation in therapies, raised by the presentation of Benoît Kanabus’ conference The con-cept of body-propriation in Michel Henry and Christophe Dejours in the international colloquium Michel Henry: The unconditional of the human condition, held in Porto in 2013 (Kanabus, 2014, 101-103)4, resulted in an inter-

4 In Michel Henry: o incondicional da condição humana, Revista da Faculdade de Teologia, Porto.

disciplinary meeting, held at USP (Universidade de São Paulo/Brazil) and UGS (Universidade General Sarmien-to, Argentina) in 2014. The results of these meetings and discussions are already published5.

In this article, we show how this concept of body-pro-priation meets a need left pending in the novel The son of the king. In it, Michel Henry, after having referred the concept of the unconscious to the pure phenomenality of consciousness in the modes of anguish, of helplessness, of annihilation, of collapse, leaves open in it the possibility of the support of life to the excess that it creates itself! If the other lives as excess that annihilates, then this other can also be lived as excess that supports! Excess experi-enced as affect; excess that identifies each one in oneself even when in this same excess lived! Excess waiting for recreation of itself. Unsuccessful desire in the novel The son of the king. Desire resumed in the article “They in me: a phenomenology”, but now answering to the theme of the colloquium itself: “the others in I”! The others in I, like the others in me: pathos-with! Life! Relationship that in affect is woven and lived! In affection is renewed from the wreckage!

It is in the continuation of this possibility that the theme of body-propriation while possibility of a phe-nomenality of support of life from the pure feeling or consciousness of an affective essence to which we are bound allows giving new developments to clinical prac-tices whose receptivity to the phenomenology of life is already part of their activities as well as integrating others that discover that same affinity. Such is the case of the clinical practices which relate to motor issues. A work started in Primavera de saudade em fios quatro-zero (Martins & Teixeira, 2007, p. 17-28) and which aimed the interdisciplinarity of therapies to recover a mobility lost either by disease or by accident. A work which Rena-to Mauri continues, integrating the concept in the study of human movement and sport movement. A practice that may receive a relevant contribution from a cultural tra-dition in Brazil, which is the game of capoeira6. A game that, in phenomenological terms, consists in support-ing oneself totally from the body movement of another one, transforming the opponent’s aggressiveness into a continuous game. Physically, in a group, in community life overcomes shunting inertia and death, scam, fraud, pain, suffering. The life of each of us overcomes and de-velops by becoming involved with the lives of each and every one of us. And that is why community life, in Mi-chel Henry, is not only subjectivity but feeling: pathos, épreuve de soi, that while support of self is co-pathos or pathos-avec (Henry, 1990).

5 The results of this research will be published in the USP Psychology Journal (Revista de Psicologia da USP). Articles are written by Andrés Antúnez; Benoît Kanabus, Florinda Martins, and Maristela Ferreira.

6 The phenomenology of life is nothing apart of life: its potentialities revealed themselves to us in a “capoeira” party for children, which took place at Fondation Lycée Pasteur - Casa Santos Dumond - São Paulo. We thank the foundation and the organizers.

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Michel Henry: Affectivity and Alucination

It is in the web of this pathos that we collect the very laws of our living and with them their possibilities and limits (Henry, 1992, p. 6). Limits or constraints revealed by the dynamism of the affective life that we live in our “flesh”; that we live “in the flesh”. Limits within which, in the words of Adélia Prado, nothing is ever dead and where what seems static awaits (Prado, 2001, p. 19). To say that Jacqueline Santoantonio well knows her practices of Painting Workshop (Santoantonio, 2014, p. 253-272). In it, energies that long lurk, fearful, for means of expression, are set in motion. And as in Kan-dinsky, in the Painting Workshop colors also express this originating motion of life that is essential to all originating expression that the work of art embodies. Therefore, in Michel Henry the narrative of the feeling of sun on the back (Henry, 1981, p. 105), in The son of the king, brings with it the same dimension of eternity of the work of Kandinsky or a Renaissance work. The truth of hallucination is impossibility of its opacity to itself. The opacity to itself is its falsehood. But these are the truth and falsehood of each and every experience of life: the impossibility of opacity to itself in the pure af-fective consciousness versus its opacity as unconscious as its visibility without essence.

With the concept of body-propriation, it is the hu-man condition that must be re-thought in its founda-tion. Supported by the affect that is experienced from the outburst of the innermost emotion (Henry, 1996), supported by that which the observation of an X-ray can tell us what from there results for a flesh (Henry, 2000, p. 317), supported by an affection that translates into a protein with implications to memory (Teixeira & Martins, 2006, p. 321-233), or in the creation of an enriched en-vironment that favors a certain morphology of neurons with implications to the quality of life of an Alzheimer

patient or in the determination of human development periods that are more or less conducive to the appear-ance of psychiatric disorders (Yu, Teixeira, Mahadevia, Huang, Balsam, Mann, Gingrich & Ansorge, 2014), sup-ported by its essence, the phenomenality of life, as evi-denced by itself, enables passing from the approach of objectivity to that of subjectivity so in it are found the laws that revolve it completely: with the phenomeno-logical reversal life is reborn in its essence and the es-sence is reborn with it.

Therapeutic Accompaniment, while monitoring of the emotional entanglements of life in each and every one of us, could become the expression of a culture, in which clinical practice, rather than following the representa-tions and symbolizations of the real, follows that which gives them expression: affective life with its constraints and possibilities in loving intertwining of threads that weave each living.

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Andrés Eduardo Aguirre Antúnez - Professor Livre-Docente of Clinical Psychology Departament into Universidade de São Paulo. Member of the Working Group Psychology and Phenomenology (ANPEPP). Institutional Address: Av. Professor Mello Moraes, 1.721 - Cidade Universitária, São Paulo/SP - CEP: 05508-030. E-mail: [email protected]

Florinda Martins - Emeritus Professor, Doctor of Philosophy, Scienti-fic Coordinator of the international research project “O que pode um corpo”, Centro de Estudos em Filosofia - CEFi, Universidade Católica Portuguesa - UCP - Lisboa/Porto. E-mail: [email protected]

Received 2015.10.057

Accepted 2015.23.09

7 Note of Editor: An Spanish version of this manuscript is published into Revista Ápeiron. Estudios de filosofía – Filosofía y Fenomeno-logía, Nr.3 (Octubre 2015), España (http://www.apeironestudiosdefi-losofia.com/#!estudios-de-filosof-a/t2hh8). The present publication, in english and portuguese were authorized by the spanish Editor.

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O Contato na Situação Contemporânea: um Olhar da Clínica da Gestalt-Terapia

o contAto nA SitUAção contemPoRâneA: Um olhAR dA clínicA dA geStAlt-teRAPiA

Contact Nowadays: a Clinical Look of Gestalt therapy

Contacto en la Contenporaneidad: una Mirada de la Clínica de la Terapia Gestalt

thatiana caPuto DoMinGueS Da SiLva

caMiLLa SantoS BaPtiSta

Mônica BoteLho aLviM

resumo: Este artigo parte das queixas trazidas pelos clientes para nossa clínica e busca a partir daí uma compreensão sobre a existência no mundo contemporâneo e como vivenciamos o contato com o outro na atualidade. Para isso, fazemos uma revi-são bibliográfica nos debruçando sobre o que a Gestalt-Terapia fala a respeito das relações e do homem. Articulamos essa vi-são com o que vemos hoje em nossa sociedade, através de um diálogo com autores que abordam o tema da contemporaneidade. A partir de nossos estudos pudemos perceber que os sofrimentos com os quais nos deparamos apontam para uma dificuldade do estabelecimento do diálogo, da intimidade e da entrega, que se configuram para a Gestalt-Terapia como interrupções na dinâmica do contato, nomeadamente nas etapas do contato e do contato-final. Concluímos que essas dimensões, necessárias para o contato, para o estabelecimento de uma relação plena com o outro, parecem não estar encontrando lugar em nossa sociedade, o que pode estar ligado a uma crescente perda do espaço da experiência. Isso se expressa na dificuldade de vivenciar dimensões imprescin-díveis para que a experiência ocorra, como a da pausa e a da entrega, da abertura e da disponibilidade, do risco implícito nas re-lações com o outro.palavras-chave: Gestalt-terapia; Clínica; Contato; Contemporaneidade; Experiência.

Abstract: This article was motivated by the complaints brought from the clients to our clinic and search from there an under-standing about the existence in the contemporary world and how we experience the contact with each other today. For this, we make a literature review discussing what Gestalt Therapy think about relationships and men. Furthermore, we articulate that vi-sion with what we see today in our society through a dialogue with authors who discuss issues of contemporaneity. From our studies we realized that the sufferings we encounter speaks about difficulties in the establishment of dialogue, intimacy and sur-render, which configures itself to the theory of Gestalt Therapy as interruptions in the dynamics of the contact, named as the steps of: contact and final contact. We conclude that these dimensions needed for the contact, to establish a full relationship with others, seem not to be finding place in our society, which can be linked to an increasing loss of the experience space. This is ex-pressed in the difficulty of living dimensions essential to the establishment of experience, such as respite and surrender, open-ness and availability, the risk implicit in relationships with others.Keywords: Gestalt Therapy; Clinic; Contact; Contemporary; Experience.

resumen: Este artículo fue motivado por las quejas presentadas por los clientes a nuestra clínica y búsqueda a partir de ahí un entendimiento acerca de la existencia en el mundo contemporáneo y cómo experimentamos el contacto con los demás hoy. Para ello, hacemos una revisión de la literatura abordando lo que la Terapia Gestalt habla de las relaciones y los hombres. Acercamos esta visión con lo que vemos hoy en día en nuestra sociedad, a través de un diálogo con los autores que abordan el tema de la con-temporaneidad. A partir de nuestros estudios nos dimos cuenta de que los sufrimientos con la que nos enfrentamos indican una dificultad de establecer el diálogo, la intimidad y la entrega, que están configurados para la Terapia Gestalt como interrupciones en la dinámica de contacto, a saber las etapas de contacto y el contacto final. Llegamos a la conclusión de que estas dimensiones necesarias para el contacto, para establecer una relación plena con el otro, parecen no estar encontrando su lugar en nuestra so-ciedad, lo que puede vincularse a una creciente pérdida del espacio de la experiencia. Esto se expresa en la dificultad de expe-riencia de las dimensiones esenciales para la experiencia se producir, como la pausa y el la entrega, la apertura y la disponibilidad de los riesgos en relación con los demás palabras clave: Terapia Gestalt; Clínica; Contacto; Contemporaneidad; Experiencia.

introdução

A Gestalt-terapia considera que o homem e todo orga-nismo vivo está interligado com o resto do mundo; não faz sentido falar do homem isoladamente, mas sim de um homem que vive em um determinado meio que faz

parte de sua existência e forma com ele uma totalidade. Seu foco não se encontra nem no sujeito nem no am-biente, mas na relação, no encontro organismo-ambien-te. Essa forma de pensar aponta para uma superação de uma visão dicotômica e para uma proposta de psicologia que vai se debruçar no estudo do contato em si, dessa

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fronteira que interconecta eu-mundo, eu-outro. É nesse sentido que para a Gestalt-Terapia o self é contato. Sen-do definido como sistema de contatos o eu é deslocado do interior do psiquismo para o campo, não é compre-endido como substância, mas como um processo que se desenrola no tempo, uma espontaneidade expressiva e criadora (Alvim, 2012).

Entende-se que a fronteira marca uma delimitação temporal e indica o momento em que nos deparamos com uma novidade que nos causa estranhamento e nos faz partir em busca de um sentido para este encontro. A experiência é entendida aqui como uma operação criadora e expressiva que ocorre a partir da tensão pe-lo encontro com a novidade do ambiente. Dessa forma, falar de experiência é falar essencialmente de contato, desse processo de encontro e assimilação de uma dife-rença, que implica em arriscar-se diante novo, do des-conhecido. O que para a Gestalt-Terapia se chama ajus-tamento criativo.

Esse processo consiste numa ação espontânea no cam-po que opera em modo médio, nem ativo nem passivo. “O espontâneo é tanto ativo quanto passivo, tanto dese-joso de fazer algo quanto disposto a que lhe façam algo; ou melhor, está numa posição equidistante dos extre-mos (...), uma imparcialidade criativa” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 182). Em consonância com a Gestalt-Terapia, Bondía discorre:

(...) o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua recep-tividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à opo-sição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma dispo-nibilidade fundamental, como uma abertura essen-cial (2002, p. 24).

Esses aspectos parecem ser justamente aquilo que está em falência na contemporaneidade: a possibilida-de do contato pleno, da entrega, da abertura, da awa-reness. Isso faz com que consideremos que a Gestalt--Terapia pode nos auxiliar a olhar de forma mais crítica para os fenômenos que vêm ocorrendo na atualidade e em nossa clínica.

Assim, pretendemos estudar neste trabalho os valo-res da sociedade atual que atravessam os dilemas que são trazidos pelas pessoas para nossa clínica, pretendendo desse modo ampliar a visão do que se passa dentro do consultório para além do psiquismo, fugindo de um psi-cologismo. Reafirmamos uma posição dialética fundada no diálogo e na relação, na tentativa de ultrapassar uma prerrogativa individualizante e parcial na consideração do fenômeno humano.

1. A experiência do contato: do eu-outro, para o nós

É como se eu fosse vermelho e ele amarelo, eu só queria que de vez em quando virássemos laranja e depois voltássemos a ser vermelho e amarelo e assim

por diante. Stela

A frase em epígrafe, dita e repetida por Stela (no-me fictício) durante a terapia, nos oferece pistas para a compreensão de seu sofrimento e desejo de estabelecer uma relação de encontro pleno. Sente-se solitária e frus-trada em suas tentativas de interação e de intimidade. Stela aparece aqui como um exemplo que se repete em nossos consultórios e que parece se multiplicar, nos le-vando a buscar compreender como as pessoas estão fa-zendo contato.

Antes de começarmos a explorar este tema, torna-se importante apontar que na literatura da Gestalt-Terapia existem muitas formas de se olhar para o contato e suas interrupções. Os próprios modos de pensar essa dinâmi-ca têm uma função mais didática do que representativa da realidade e a intenção da teoria ao falar dos tipos de interrupção não é a de criar uma grade teórica na qual devemos encaixar todos os indivíduos. Trata-se de uma “concepção para manter [o terapeuta] orientado, para saber em que direção olhar. É o hábito adquirido, o pa-no de fundo para esta arte, como qualquer outra” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 249).

2. o processo de contato e suas interrupções

Para abordar o contato e a forma como ele acontece no desenrolar do tempo os fundadores da Gestalt-terapia propuseram quatro etapas: pré-contato, contato, contato final e pós-contato. Como recorte de nosso estudo, de ma-neira a nos ater aos casos que mais apareceram em nossa clínica, vamos nos debruçar sobre as etapas do contato e o contato final.

Quando melhor analisamos as demandas que che-garam até nós, percebemos que todas parecem, antes de tudo, apontar certa dificuldade na experiência da alte-ridade e do diálogo. Toda neurose, em algum nível, é a substituição do desconhecido e do diferente pelo conhe-cido em uma tentativa de evitação frente a algo que nos ameaça. Sem diferença, entretanto, não há contato e na tentativa de nos livrarmos da ansiedade diante do novo, da “vertigem da liberdade” (Miller, 1990, p. 12), estamos cada vez mais adoecidos.

A forma como se interrompe a dinâmica de contato fala da singularidade daquela pessoa e mostra o momento em que se bloqueia o fluxo da experiência, onde a dificuldade parece estar mais presente. Acreditamos haver algo em nosso contexto atual que se relacione de forma dialética com os indivíduos para que as interrupções que ocorrem

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no momento do contato e do contato final – retroflexão, proflexão e egotismo – apareçam de forma tão marcante.

2.1 Contato

Na etapa do contato a energia mobilizada já está com-prometida, isto quer dizer que já houve a eleição de uma figura, o organismo teve uma sensação, se conscientizou de sua necessidade, se mobilizou e agiu em direção a uma possível satisfação. O momento é o da agressão, de lidar com a diferença e com o outro, envolve conflito, destrui-ção e assimilação do novo, dessa figura escolhida para a satisfação de uma necessidade.

É, portanto, o momento do embate vigoroso, da nutri-ção, onde o self, frente a um conflito, ao lançar-se comple-tamente no processo de assimilação, passa a se perceber e a estar mais aware de si. Trata-se de um momento em que como a figura já está escolhida e a energia compro-metida, o organismo encontra-se na iminência da intera-ção em si. Quando o bloqueio se dá nesta etapa, a energia que estava sendo direcionada para a figura retorna – em um ato de trazer para si aquela energia direcionada para o exterior – ou é direcionada ao outro, só que de forma enviesada. Estas duas possibilidades que descrevemos são respectivamente o que chamamos de retroflexão e proflexão, que falam de uma impossibilidade da pessoa de expressar suas necessidades para o outro de forma di-reta. Essa dimensão comum que une tanto a retroflexão quanto a proflexão nos faz pensar o quanto essas inter-rupções caracterizam justamente uma impossibilidade de agir com espontaneidade frente ao outro, de encontrar e trocar com este diretamente, com confiança e coragem de assumir o risco que isso inclui.

O conflito direto é evitado e as formas disponíveis pa-ra se tentar alguma satisfação passam a ser: ou satisfazer a si mesmo ou uma tentativa de eliciar no outro uma res-posta mais ou menos esperada. Nas duas formas o outro passa a ser nebuloso e distante e o organismo encontra-se isolado. Na retroflexão, esse isolamento é marcado por uma autossuficiência, um fazer você mesmo, enrijecendo a fronteira de contato e cindindo-se do ambiente, do ou-tro; e na proflexão há uma espécie de “cegueira” e o ou-tro passa a ser como uma tela de projeção, fantasiado, um espectro enevoado no qual se vê apenas uma idealidade.

Assim, nem quando se funciona retrofletindo, nem quando se funciona profletindo, se consegue pedir aqui-lo que se deseja. Ambas são formas de atividade. No pri-meiro caso, há uma desistência do outro ou se entende que precisar dele é uma fraqueza, fazendo consigo mes-mo aquilo que se precisa. Já na proflexão, toma-se o ou-tro como objeto, de modo a satisfazer a sua necessidade. Para isso, utiliza-se de manipulação, de comportamentos evocativos e indiretos, redobrando seus esforços quando encontra alguma resistência. Dessa forma, suas relações se mantêm empobrecidas, sem a sensação de estar satisfeito.

2.2 Contato final

O contato final é o ápice do processo do contato, po-rém, não chega a ser o seu final em si, já que este acon-tece no pós-contato, momento da assimilação e do cres-cimento. Trata-se, então, do momento da união, do en-contro eu-figura em si. Segundo Clarkson (1989) esse é o momento do engajamento total, cheio e vibrante com a figura da ação escolhida.

No contato final o self está absorvido de maneira ime-diata e plena na figura que descobriu-e-inventou; no momento não há praticamente nenhum fundo. A fi-gura incorpora todo o interesse do self, e o self não é nada mais do que seu interesse presente, de modo que o self é a figura (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 221).

Nesse momento finalmente relaxa-se a deliberação; o sentimento de ego ativo que pode ter havido na fase an-terior, quando se estava ainda na etapa do conflito e da agressão, abranda-se e desaparece. “E há por alguns mo-mentos, apenas a figura e o sentimento de espontanei-dade, com o fundo vazio” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 216).

Dizer que o fundo está vazio indica que por alguns momentos o eu desliga-se de si mesmo, de sua sensação de ser um self separado do mundo e do outro, de suas significações sobre si, para então se entregar totalmente à figura construída. Fala-se, portanto, em certa passivi-dade que envolve esse ato de entrega. Em um abdicar de si, desse “eu” pronto e fechado, para se deixar ser total-mente com a figura escolhida, para se permitir “afundar inteiramente em seu sentimento de atenção: falamos de ser ‘todo ouvidos’, ‘todo olhos’” (Perls, Hefferline & Goo-dman, 1951/1997, p. 222). A figura ocupa todo o campo do self e nesse momento há a possibilidade do “Eu-Tu se transformar momentaneamente em um Nós” (Robine, 2006 p. 131).

É um momento em que o self está completamente absorvido pela figura que descobriu-e-inventou e, para ele, não existe mais nada além dela. Há uma dedicação completa e, naquele instante, não há outras possibili-dades, não se pode escolher de outra forma. Como bem disse Stela no início de nosso capítulo, este é o momen-to em que se sai da cor vermelha, se integra ao amarelo e se entrega ao laranja. Para depois voltar a ser verme-lho e amarelo.

Em todo o processo de contato há uma unidade sub-jacente de funções perceptivas, motoras e de senti-mento (...). Mas talvez seja somente no contato final com sua espontaneidade e absorção, que essas fun-ções são todas primeiro plano, elas são a figura: es-tamos conscientes da unidade. Isto é, o self (que na-da mais é do que contato) passa a sentir a si mesmo.

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E o que está sentindo é o processo de interação entre organismo e ambiente (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 221-222).

Isso implica que esse momento, no qual estamos nos debruçando, é aquele derradeiro para se experienciar tanto o outro quanto a si mesmo. É o momento em que se pode sentir mais claramente a nossa qualidade de totalidade, de campo-organismo-ambiente, de uno, superando uma concepção de homem como um ser separado do mundo. Talvez seja apenas nessa etapa do contato que podemos estar mais conscientes da nossa qualidade holística pri-mordial. É na mais profunda experienciação de renúncia de si, de entrega, que o self se sente mais vivo: “A expe-riência é inteiramente intrínseca, e de maneira alguma estamos agindo de modo deliberado em relação a ela. O relaxamento da deliberação e o desaparecimento das fronteiras é a razão da vividez e do vigor extras” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997, p. 221). Aqui ocor-re um processo de dissolução das fronteiras em prol do surgimento de uma terceira figura que surge do encontro entre eu-outro, organismo-ambiente nesse momento de ápice do contato. Essa figura fornece sua própria frontei-ra a partir deste encontro.

A impossibilidade de se exercer esse ato de entrega, ou como diria Robine, de se soltar, é chamada pela litera-tura de egotismo. Segundo Perls, Hefferline & Goodman (1951/1997) consiste numa dificuldade em renunciar ao controle e à vigilância, numa ansiedade frente à indife-renciação, numa preocupação última com nossas próprias fronteiras, consigo ao invés de com aquilo que é contata-do. Há uma dificuldade em “relaxar o controle, soltar-se, ter a audácia de terminar a ação empreendida, abrir as fronteiras ao encontro” (Robine, 2006 p. 131). Consiste também, numa tentativa de se ter certeza de que todas as possibilidades do fundo foram exauridas antes de se comprometer e com isso impedir a ameaça da surpresa.

O self, ao se enrijecer e evitando se entregar, não con-segue agir em sua dimensão de espontaneidade e criati-vidade. Ele se vê em uma situação de emergência em ca-da possibilidade de interação e por isso mesmo precisa se proteger. Ao estar impedida justamente essa dimensão mais primeira do self, a espontaneidade, o que acontece é a perda da possibilidade de agir fora dos extremos da atividade ou da passividade. O que não permite viven-ciar plenamente o encontro, ficando o contato esquecido enquanto possibilidade.

Ao tocarmos nesse ponto nos deparamos com o que consideramos ser a chave para a compreensão do que pode ser uma possibilidade de resgate da dimensão da experiência. Parece que o que falta, tanto nos indivíduos como em nossa sociedade, é justamente esse modo de es-tar no mundo nem ativo, nem passivo, um modo médio ou intermediário. Esse parece ser o cerne da dificuldade presente em grande parte no modo de existir das pessoas que vêm chegando aos nossos consultórios.

3. A experiência na contemporaneidade

Ao falar do contemporâneo, podemos pensar tanto no período específico atual da história do mundo, como na pessoa que vive este tempo. Agamben (2009) traz uma im-portante contribuição neste sentido ao propor e se referir ao homem contemporâneo não como aquele que vive no seu tempo, mas como aquele que não coincide inteira-mente com o tempo em que vive, nem está adequado às suas prescrições. Não por que viva em outro tempo, mas por que este deslocamento ao qual se refere o torna, mais que qualquer outro, capaz de perceber e apreender o seu tempo. Haveria então uma distância necessária para que, vivendo neste tempo, possamos tomá-lo como objeto de nossa reflexão. Com isso, podemos pensar em duas for-mas de existir no tempo presente, uma alienada, acrítica, apartada de uma reflexão sobre o mundo atual, e outra, a qual Agamben chama de contemporânea, que é a vivência daquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo, para ne-le perceber não as luzes, mas o escuro” (2009, p. 62) isso não significa de modo algum uma inércia, mas sim, como acrescenta ele, “uma habilidade particular, que nesse ca-so, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes” (2009, p. 63).

Em uma tentativa de assumir uma postura contempo-rânea, tal qual Agamben se refere, podemos partir, então, para pensarmos um pouco sobre esse tempo que vivemos e construímos.

3.1 Marcas da contemporaneidade

Fazendo referência ao termo utilizado por Freud, po-demos falar hoje em um “mal-estar” na contemporaneida-de. Este mal-estar pode ser pensado em diversos âmbitos e neste artigo elegemos alguns sobre os quais achamos importante nos debruçar – a perda das referências, o ra-cionalismo e o cientificismo, o incremento do individua-lismo, a aceleração do tempo. Para isso, faz-se necessário recuarmos um pouco na história e lançarmos um olhar sobre esse período que sucedeu a queda do Antigo Regi-me, o qual chamamos de modernidade.

A modernidade, nascida com a ilustração, teria pri-vilegiado o universal e a racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditado no progresso linear da civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas, no planejamento ra-cional e duradouro da ordem social e política; e teria apostado na padronização dos conhecimentos e da produção econômica como sinais da universalidade (Chauí 2007, p. 489).

Esses foram processos graduais, que se iniciaram na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, onde

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O Contato na Situação Contemporânea: um Olhar da Clínica da Gestalt-Terapia

Deus perdeu o lugar de centralidade que ocupava e o homem foi colocado no centro do Universo. Com a per-da das referências oferecidas pela Igreja como fontes de poder, a racionalidade passa a conferir ao homem uma segurança. O desconhecido se tornou ameaçador e a busca pelo controle se apresentou como saída para lidar com o medo deste. O homem passa, então, a bus-car na sua própria razão e na ciência formas que lhe possibilitem prever o futuro e desvendar os mistérios do desconhecido.

Ainda hoje vemos resquícios desse racionalismo e cientificismo arraigados em nossa sociedade. A ciência parte em busca de leis gerais, com pretensões universa-lizantes, e com isso contribui para que a diferença perca cada vez mais lugar. Ao longo da história, corpo e mente foram separados numa dualidade aparentemente irrecon-ciliável. Opondo-se de um lado o movimento racionalis-ta, representado por Descartes – que considerava que o corpo era fonte enganosa de sentidos e que a verdade só poderia ser acessada através do pensamento – e de outro o empirista, representado por Hume – que considerava que o conhecimento se dava a partir dos sentidos que res-pondiam a estímulos externos (Alvim, Araújo, Baptista, Barroso, Queiroz & Da Silva, 2012).

Com a fenomenologia um espaço é aberto e se torna possível romper com alguns dualismos. Começa-se a pen-sar que consciência e mundo não são separados, mas as-pectos de uma mesma realidade, na qual corpo e mente estão associados numa experiência intencional. Merleau--Ponty vem afirmar que a consciência é corporal, que to-da experiência é fundamentalmente perceptiva e os pro-cessos representativos se dão sempre a posteriori. Afirma que a consciência reflexiva não é nem a primeira, nem a única forma da consciência, esta depende da consciência perceptiva, que não se discerne de um corpo cognoscente (Merleau-Ponty, 1946/1990).

Em sua obra “Vigiar e Punir”, Foucault (2007) afirma que os séculos XVIII e XIX foram marcados por um pro-cesso de dominação que se apropriou desse corpo como objeto e alvo de poder, através da disciplinarização. Este processo, conhecido como docilização dos corpos, ope-rou transformando o homem em “corpo-máquina”. “Esses métodos que permitem o controle minucioso das opera-ções do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilida-de, são o que ele denominou ‘disciplinas’” (Alvim, 2013).

É importante falarmos também da mudança do papel do Estado. Segundo Dufour (2005) a figura do governo enquanto instituição cuja legitimidade é externa aos in-teresses econômicos está ausente nos dias de hoje. Assim, abole-se a autoridade e torna-se oculto o poder, vive-se uma “tirania sem tirano”. Isso marca um novo “darwinis-mo social”, onde aqueles “mais adaptados” podem tirar proveito das situações mais diversas, e aqueles “menos adaptados” são abandonados ou mesmo convocados a de-saparecer. Parece não mais ser atribuído ao Estado o de-

ver de prover e proteger a população. Sozinho, o sujeito passa a ser responsável pelo seu próprio bem estar; esse “cada um por si” colabora para uma desarticulação do fa-zer coletivo e um isolamento dos sujeitos.

No neoliberalismo – modelo econômico que marca nosso tempo como um desdobramento pós-moderno do liberalismo – o imperativo é que as mercadorias circulem, o que promove outro imperativo, o do hedonismo indivi-dualista travestido de liberdade. Dessa forma, o novo ca-pitalismo oferece um “perfume libertário” a esse discur-so, que se funda na proclamação da autonomia de cada um. Não se trata apenas de um “menos-Estado”, mas de um menos tudo o que entravar esse fluxo de mercadoria.

Recorrendo a Nietzsche, Dufour (2005) ressalta que a sociedade pós-moderna apresenta um ‘niilismo cansado’, em que os valores tornam-se cinzentos. Neste niilismo es-gotado dá-se um lugar central ao que tranquiliza, entor-pece, alivia, cura, sob vestimentas diversas. Em nossos dias essa posição chave seria ocupada pela mercadoria, que faz circular objetos no lugar do “nada ontológico” em que repousa a sociedade.

Nesse panorama observamos outra das principais marcas da sociedade contemporânea, o individualismo, que traz uma concepção do homem enquanto separado do coletivo, valorizando o que é da ordem do individual. O outro é visto como ameaçador e passa, então, a ser aceito por nós apenas quando reproduz nossa individualidade. Parte de sua dimensão de alteridade é descartada. Esse outro que ao mesmo tempo é semelhança e diferença, é negligenciado enquanto diferença. Mas é justamente en-quanto outro, enquanto não-eu, que ele pode me tocar, me atingir, descentrar, convidando-me a desnaturalizar minhas próprias significações e promovendo, a partir de sua diferença, uma mobilização dos meus sentidos já instituídos.

Num ensaio em que discute o “viver junto”, Franklin Leopoldo e Silva (2012) nos lembra de uma célebre fra-se de Jean Paul Sartre, em que este afirma que o inferno são os outros. Segundo o autor viver junto implica nu-ma partilha de valores sobre a vida, aspirações comuns, ou seja, um movimento em direção a uma vida comum, uma convivência. Contudo, é justamente esta a dimensão prejudicada em nossa sociedade. Essa dimensão do con-vívio, do comum, no sentido de uma comunhão. Sob o discurso da tolerância, aprendemos não a aceitar o outro, mas sim a relegá-lo à sua solidão, com a expectativa de que ele nos permita viver a nossa. A vida em sociedade não envolve a solidariedade, o que faz com que a solidão seja uma constante da nossa época. Sobre isso, Leopoldo e Silva (2012) afirma:

A solidão numa sociedade massificada encoraja o indivíduo a buscar alívio e abrigo em grupos sectá-rios, nos quais a homogeneidade representa a segu-rança que não está presente na experiência autênti-ca da diversidade. Nesses agrupamentos restritos e

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de convicções predefinidas, vigora um simulacro de solidariedade que, de fato, não é outra coisa senão a uniformidade de pensamento, portanto, a ausência de liberdade (p. 12).

Para que a diversidade do encontro com a diferença possa ser experienciada autenticamente, como propõe Le-opoldo e Silva, é necessário estarmos abertos à dimensão do risco. Bondía (2002) entende como experiência aquilo que nos passa, nos acontece, nos toca, o que é cada vez mais raro nos dias atuais. Ele defende que para que haja a experiência, dentre outras coisas, é necessário que haja uma exposição, um risco.

A própria etimologia da palavra experiência nos mos-tra que ela comporta duas dimensões inseparáveis, uma de travessia (raiz per) e outra de perigo (radical periri). Bondía (2002) cita um trecho de Heidegger onde este traz uma definição de experiência que se afina com a ideia de uma exposição, uma receptividade e uma abertura, assim como as dimensões de travessia e perigo.

(...) fazer uma experiência com algo significa que al-go nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa precisa-mente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança recep-tivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, dei-xar-nos abordar em nós próprios pelo que nos inter-pela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo (Heidegger, como referido em Bondía, 2002, p. 6).

O sujeito da experiência, tanto para Bondía, quan-to para Heidegger é um sujeito “alcançado”, “tombado”, “derrubado”. O oposto desse ideal propagado pela socie-dade contemporânea, de um homem que permanece de pé, seguro de si, que alcança aquilo que se propõe, que se apodera daquilo que quer, que é definido pelos seus poderes e seus sucessos. Diferente disso, o sujeito da ex-periência perde seus poderes justamente por que aquilo de que faz experiência dele se apodera.

Partindo então desta concepção de experiência, pare-ce-nos que ela tem tido cada vez menos espaço em nossa sociedade. Um dos fatores que colabora para este quadro é a falta de tempo. Vivemos uma crise na experiência do tempo e do espaço, onde a velocidade é uma marca inegá-vel. Essa experiência do tempo como uma vivência instan-tânea, pontual e fragmentada passa sem deixar vestígios e essa velocidade que caracteriza a contemporaneidade impede a conexão significativa entre os acontecimentos. Assim, é como se esses fossem retalhos soltos que não chegam a ser costurados, perdendo-se da sua totalidade, da sua colcha de sentidos.

Nesse nosso afã por rapidez e utilidade aquilo que demanda tempo não tem mais vez, e experiência, diá-logo, intimidade, tem um tempo singular que não segue o tempo estipulado de fora. Essa falta de tempo massi-ficada, essa correria desenfreada traz sujeitos arfantes aos nossos consultórios. Eles querem soluções também mais rápidas, querem uma cura sem esforço, pois es-forço também demanda um tempo que eles, tampouco nós, temos.

A velocidade parece ter virado um modo massificado de deflexão do medo da incerteza, do desconhecido, do não passível de controle, do inesperado. E, nesse sentido, o outro, na sua dimensão de diferença, parece ter se tor-nado uma ameaça ao nos remeter sempre ao desconheci-do, ao mistério que não temos como prever. O outro en-quanto diferença assusta e intimida; correndo, temos a ilusão de nos livrarmos da ansiedade de estar frente a al-go tão arrebatador, que tem o potencial de nos descentrar, de retirar o controle que acreditamos possuir. “Porque o que nos recusamos a pensar é a diferença, a alteridade, a incômoda e próxima presença do outro, que a todo dia nos confronta cara a cara, que se nos oferece como mar-gem irrecusável e intransponível” (Giacoia Jr, 2012, p. 8).

Esse outro que nos confronta é também aquele que pode nos confirmar e que nos oferece a possibilidade de um vínculo e de uma vida comum, da saída da nossa solidão. Isso implica que esse outro apresenta duas di-mensões, uma de singularidade e outra de generalidade. Merleau-Ponty (1962) afirma que essas duas dimensões da alteridade só podem ser compreendidas como uma tensão. Notamos que na atualidade há uma dificuldade na manutenção desta tensão, acabamos tendendo sempre para um dos polos. Sobre isso, Santos (2009, p. 18) afir-ma: “Temos direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos direito a ser diferentes quando a igual-dade nos descaracteriza”.

4. entrecruzamentos

Até aqui nos detivemos em descrever como a Gestalt--Terapia entende as relações humanas, como estas têm aparecido em nossa prática clínica e a situação contempo-rânea de onde emergem. Se somos, como dizia Merleau--Ponty (1964/2000), a carne do mundo, se comungamos de um fundo comum, de uma generalidade, de uma cul-tura que nos atravessa a todos, podemos inferir que não é à toa que muitos estamos adoecidos. Compartilhamos de uma teia também adoecida, de um fundo que não é favorável à experiência de alteridade, ao encontro, à in-timidade, à singularidade, à criação de novos possíveis.

Vimos, em nossa clínica, que as pessoas têm tido cada vez mais dificuldade em lidar com o momento do confli-to e da entrega. Como dissemos no início deste artigo, a dificuldade do conflito é uma dificuldade do embate, da agressão; e a da entrega diz respeito a abrir mão de uma

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atividade, de se lançar na experiência de união e dissolu-ção das fronteiras. Em última instância, ambas remetem a uma dicotomização dos polos atividade e passividade, ora uma valorização da atividade em detrimento da pas-sividade ora uma sujeição passiva. Esta última, no entan-to, parece bemvinda quando a serviço de uma dociliza-ção, quando incentiva formas acríticas e introjetoras de existir no mundo.

Dessa forma, podemos estar em uma atividade mecâ-nica, guiada pela pressa, que reflete uma lógica de pro-dutividade e um medo de parar e encarar a ansiedade da incerteza frente ao desconhecido e/ou podemos estar tam-bém num modo de ser passivo, engolindo pronto aquilo que vem de fora. Em ambos os casos alienados e acríticos, o que permeia esses dois modos de estar no mundo é uma alienação tanto pela atividade quanto pela passividade.

Esses modos de ser não existem separadamente, pelo contrário, é como se houvesse a necessidade da alienação pela passividade, pela docilização desse corpo que, dis-ciplinado, introjeta os valores dessa sociedade para que então os execute ativamente. Os sujeitos em sua passivi-dade introjetam esses valores como normas naturalizadas e não se questionam sobre eles, apenas os reproduzem. O que acontece é que, segundo Foucault (2007), somando- se a disciplinarização, estamos hoje em uma socieda-de atravessada pela regulamentação e pelo biopoder, tal como discute Alvim (2013). Podemos dizer, de for-ma extremamente sintética, que se trata da estipulação de normas gerais que indicam o que é certo/normal e o que está fora dessa margem, o errado/ anormal. E a par-tir disso seguimos então o que está regulamentado co-mo fatos naturais, dados, científicos, sobre os quais não nos questionamos.

A velocidade característica de nosso tempo, por sua vez, parece atuar a serviço da manutenção desse quadro de alienação. “Disciplinados, esquadrinhados pelo tem-po e pela velocidade, temos nossos percursos comprimi-dos e perdemos a beleza do caminho, ansiosos pela che-gada” (Alvim, 2013). Com base nas discussões de Perei-ra (2003) acerca do modo de vida atual, a autora afirma ainda, estarmos perdendo o momento do percurso e do itinerário, transformando-o numa espécie de não-lugar, uma vez que estamos sendo atravessados cada vez mais por formas aceleradas de comunicação e de locomoção.

Podemos dizer que se trata de uma vivência tempo-ral que impossibilita sermos com presença, o que envol-veria uma dimensão de disponibilidade, de abertura, de possibilidade de sentir e ser afetado, o que nos permiti-ria realizar nossas escolhas de forma autêntica. Sempre em atividade, perdemos a dimensão da experiência, da pausa necessária para que essa ocorra. A esse respeito, Bondía (2002) discorre:

(...) porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece. A ex-

periência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: re-quer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e es-cutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais de-vagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicade-za, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cul-tivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (p. 5)

É justamente por estarmos apressados que nos distan-ciamos do que é da ordem da experiência, isolados uns dos outros, individualizados e numa constante competi-ção nos afastamos da possibilidade de nos encontrarmos com o outro, de “estar com”. E nesse sentido, as queixas que vemos em nossos consultórios de pessoas que não conseguem estabelecer uma relação de intimidade, de diá-logo genuíno parecem ser uma repercussão desse quadro.

Stela vivia correndo como todos nós, e em certo mo-mento, por conta de uma doença que comprometeu tem-porariamente sua possibilidade de andar, se viu obriga-da a parar. Essa parada parece ter lhe servido como esse gesto de interrupção que a obrigou a experienciar outra temporalidade. Foi obrigada a andar devagar, a dar-se um tempo, uma pausa. Foi neste episódio que ela finalmen-te pode não só se ver como também pode olhar para sua terapeuta, que deixou de ser mais um vulto na sua cor-reria. Disse ter reencontrado “a beleza do caminho” e a possibilidade de desfrutar não só da sensação de vitória, sentida quando alcançamos um objetivo, mas também a vivência da experiência da travessia.

E é justamente no caminho que podem ocorrer os en-contros, que o “estar com” se estabelece e que em pre-sença temos a chance de nos surpreender. Porém, em uma sociedade individualista, que é ao mesmo tempo massificadora, as diferenças entre as pessoas tendem a ser anuladas e tolhidas, o que promove o fechamento de cada um em si nos distanciando do outro e das surpresas encontradas alhures, no “não-eu”. Assim, os indivíduos estão separados, porém homogêneos, ou seja, desconside-rados em sua singularidade e também em sua dimensão comum. O que está em jogo é um paradoxo: uma separa-ção e ao mesmo tempo uma massificação que desarticula os coletivos. Os indivíduos são cada vez mais incapazes de uma real experiência e de se sentirem pertencentes a uma totalidade. “Tanto o eu quanto o outro se transfor-mam em elementos de uma funcionalidade sistêmica, e os vínculos tendem a ser objetivamente utilitários” (Leo-poldo e Silva 2012, p. 8).

Essa objetificação do outro e de nós mesmos está pre-sente nos casos que recebemos em nossa clínica, aparecen-do tanto na proflexão como na retroflexão e no egotismo.

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Parece-nos que essas interrupções funcionam na mesma dinâmica que tem operado a sociedade contemporânea: numa lógica de mercado, de objetificação e instrumen-talização das relações. As trocas genuínas e as relações de reciprocidade são substituídas pela lógica do comér-cio, presente na sedução da proflexão, no controle ativo do egotismo e na autossuficiência da retroflexão. Somos sujeitos num mundo permeado por estes valores e é em meio a essa efervescência que nos constituímos. Em nos-sa busca por nos sentirmos aceitos, amados e incluídos nesse mundo acabamos por nos utilizar desses meios, que são os que conhecemos, para tentar atingir nossos fins. Temos nos engajado em nossas relações de formas parecidas com essa lógica que nos permeia, mas com is-so temos perdido a dimensão mais genuína da relação: a de entrega e abertura. Para fugir do risco da imprevisibi-lidade que é inerente às relações humanas, lidamos seja com o outro seja com nós mesmos como objetos passíveis de serem controlados.

Assim, nos dias de hoje a ação espontânea, a diferença e a agressão – como entendidas pela Gestalt-terapia – não tem espaço. Passamos por um processo de massificação que nos iguala e, com isso, nos transforma em objetos passíveis de serem consumidos. “O diferente, errante, ambíguo, primitivo, sensual, representa ameaça ao insti-tuído, sendo colocado na categoria do anormal” (Alvim et al., 2012, p. 186). Nesse contexto refratário às diferen-ças não há acolhimento, nem espaço para se manifestar fraquezas, impossibilidade, impotência.

Giacoia Jr (2012) afirma que se faz necessário ado-tarmos uma outra ideia de convivência, que se afirme justamente a partir da diferença, no espaço da alterida-de radical.

Uma diferença que se assume, que não ignora, mas preserva a especificidade, a idiossincrasia – em defi-nitivo, a singularidade, unicamente a partir da qual somos capazes de encetar um diálogo que não re-conduza sempre as diferenças à figura triunfante do mesmo (p. 7).

Ao olharmos para a proposta do autor nos depara-mos com a importância do diálogo que consiste no “(...) esteio primordial para a ideia de comunidade que deverá ser constituída ou construída a partir de um novo tipo de relação entre os homens. Buber a denominou “dialógica” ou relação Eu-Tu” (Zuben, 1984, p. 16).

Vemos, então, na rearticulação dos coletivos pela adoção de uma postura de diálogo e afirmação da alte-ridade, uma proposta de estabelecermos um espaço pos-sível de esperança, em que sejam construídas relações onde haja espaço para o encontro, para a experiência de olhar e ser olhado, do reconhecimento, da empatia, do estar com, do re-estabelecimento do vínculo. Com isso, vemos uma possibilidade de uma rearticulação entre as partes e o todo.

Sob essa ótica, que, aliás, não se limita ao plano das relações íntimas e privadas, mas adquire pleno sen-tido se considerada no plano das relações internacio-nais, a alteridade, que deve sempre ser reconhecida, como base e ponto de partida – evitando, como pre-condição, uma assimilação desrespeitosa e arbitrária do outro, propiciando a convicção de que, no limite, somos todos espécie de um mesmo gênero, embora nossa comunicação seja somente possível sobre a base da inevitável diferença que nos define (Giacoia Jr, 2012, p. 9).

A lógica da alteridade re-estabelece a possibilidade do convívio tanto no nível das relações íntimas, quanto a nível mais amplo, o que o autor chama de relações in-ternacionais. Os dois níveis se fazem necessários e fun-cionam de forma dialética. Consideramos, assim, que a clínica que se propõe e se estabelece dentro dessa lógi-ca pode se configurar também enquanto um lugar que atua em prol da reversibilidade do quadro em que nos encontramos.

Acreditamos, tal como proposto por Cardella (2006) que: “Num mundo carente de relações humanizantes, o trabalho do terapeuta é fundamental. Criamos através da relação terapêutica, a possibilidade da pessoa resgatar a conexão primordial, re-ligando-a a si mesma e aos demais, constituindo ou restaurando a sua própria humanidade” (p. 110). A Gestalt-terapia busca recuperar o sentido da experiência concreta, do vivido e, para além disso, busca ampliar a awareness, ou seja, através da presentificação, restaurar nos sujeitos a dimensão do sensível e sua possi-bilidade criativa, de agressão. Ao fazer isso traz uma pro-posta de saúde baseada na espontaneidade e na possibili-dade de sermos no mundo de forma mais crítica, menos alienada. Justamente por isso, sua terapia torna-se essa possibilidade de re-conexão, que também encontramos na experiência do coletivo.

Essa possibilidade de reconexão a qual estamos nos referindo diz de um re-estabelecimento da experiência, tal como é tomada por Bondía (2002) e a Gestalt-terapia. Com isso, consideramos necessário que nos arrisquemos diante do novo, pois a experiência, como já dissemos, comporta uma dimensão de risco e de travessia, de cora-gem para enfrentar a dimensão do perigo. Essa dimensão abarca tanto o júbilo quanto o sofrimento, que acaba por ser obliterado numa sociedade em que é proibido sofrer. A travessia, hoje, adquiriu um caráter de um não-lugar, não tem mais espaço diante da velocidade dos nossos tempos. “Corremos para um lugar intangível, que cada vez que nos aproximamos parece se deslocar” (Alvim, 2013). Direcionados sempre para o fim, perdemos o meio, e com isso o espaço da experiência, do acontecimento e da transformação.

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Thatiana Caputo Domingues da Silva - Pós-Graduação em Psi-cologia Clínica na Abordagem Gestáltica pela Faculdade Paraíso - IPGL - do Instituto de Pós-Graduação Grupo Lusófona e mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Camilla Santos Baptista - Especialista em saúde da família pe-la Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP- da FIOCRUZ. E-mail: [email protected]

Mônica Botelho Alvim - Professora Adjunta do Instituto de Psicolo-gia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universida-de Federal do Rio de Janeiro. Tem Graduação em Psicologia, Mestra-do e Doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Endereço Institucional: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia. Av. Pasteur, 250, Campus da Praia Vermelha, Urca, 22290-240 - Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Recebido em 10.04.2014Primeira Decisão Editorial em 20.08.2014

Aceito em 07.04.2015

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Roberta N. A.; Fabio S.-C. & Giancarlo S.

“tem qUe nASceR já com AqUele dom”: ViVênciAS de UmA joVem tRAVeSti

“You have to be born with that gift”: Experiences of a Young Travesti

“Tiene que haber nacido con ese don”: Experiencias de un Joven Travesti

roBerta noronha azeveDo

FaBio ScorSoLini-coMin

GiancarLo SPizzirri

resumo: O objetivo deste estudo de caso foi conhecer as vivências sociais, afetivas e sexuais de uma jovem travesti e compreen-der sua percepção sobre a identidade de gênero. Utilizou-se uma entrevista semiestruturada. A análise deu-se a partir do referen-cial fenomenológico. A participante possui 22 anos, atua como profissional do sexo e diz não se sentir como um homem ou uma mulher, mas uma travesti. No que tange ao seu “mundo próprio”, nota-se que a entrevistada evita e foge da angústia, o que difi-culta que se conscientize de seus sentimentos e diminua sua capacidade para fazer integração existencial de suas escolhas. Isso parece impedi-la de assumir e de transformar seu “mundo próprio”, mantendo pensamentos, sentimentos e condutas rígidos e com pouca mobilidade. O olhar do pesquisador deve ser o de acolher essa escuta e compreendê-la, com destaque para a poten-cialização de seus recursos.palavras-chave: Identidade de gênero; Travestismo; Estudos de casos.

Abstract: The aim of this case study was to understand the social, emotional and sexual experiences of a young travesti and un-derstand their perception of gender identity. We used a semistructured interview. The analysis was conducted from the phenom-enological method. The participant has 22 years, acting as a sex worker and says not feel like a man or a woman, but a travesti. In terms of their “own world”, there is evidence that has a lesser degree self-awareness, with less integrated existential choices. This seems to prevent her from taking over and transforming their “own world”, keeping thoughts, feelings and behaviors and rigid with little mobility. The researcher should be to accommodate this listening and understand it, especially the enhancement of its resources. Keywords: Gender identity; Transvestism; Case studies.

resumen: El objetivo de este estudio fue conocer las experiencias sociales, emocionales y sexuales de una joven travesti y com-prender su percepción de la identidad de género. Se utilizó una entrevista semiestructurada. Se realizó un análisis fenomenoló-gico. La participante tiene 22 años, actúa como prostituta y dice que no se siente como un hombre o una mujer, sino un travesti. En su “propio mundo” hay evidencia de que tiene un menor grado de auto-conciencia, con opciones existenciales menos integra-dos. Esto parece evitar que se apoderen y transformar su “propio mundo”, manteniendo pensamientos, sentimientos y compor-tamientos rígidos y con poca movilidad. La mirada del investigador debe ser para dar cabida a esta escucha y lo entiendo, sobre todo el aumento de sus recursos.palabras clave: Identidad de género; El travestismo; Los estudios de caso.

introdução

Tema que aguça interesse por parte de leigos e espe-cialistas, nos últimos anos, a sexualidade tem sido objeto privilegiado do olhar de pesquisadores e profissionais de diversas áreas. Ao longo dos séculos, foi descrita, com-preendida, educada, controlada e normatizada de muitas formas (Louro, 2001), oferecendo maior ou menor espaço para recriações e pluralidades que hoje constituem de mo-do definitivo o campo da sexualidade e a complexidade que atravessa a pesquisa empírica na área, bem como a atuação profissional quando são trazidas à baila expres-sões como queer, práticas sexuais, movimentos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trans-

gêneros), homofobia, transfobia, orientações e identida-des, por exemplo. Em uma seara cada vez mais marcada pelo trânsito no modo de se definir, expor, questionar e explicar a sexualidade, estudos que elenquem a popu-lação LGBT como foco têm se ampliado tanto como for-ma de promover a visibilidade desses sujeitos na ciência quanto de compreender suas vivências, particularidades e necessidades, em um paradigma que busca superar bi-narismos e modos estereotipados e preconceituosos de abordar o humano.

Dentro deste tema, na atualidade, destacam-se as re-flexões relacionadas à identidade de gênero dos seres hu-manos. Com características que confrontam a noção de gênero vigente socialmente estão os travestis e os transe-

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xuais. No presente estudo, focalizaremos indivíduos tra-vestis, que são aqueles que se identificam com as imagens de gênero contrários ao seu sexo biológico e utilizam ves-timentas e adornos do gênero desejado, podendo ou não fazer uso de próteses e hormônios para a transformação de seus corpos, mas que não têm o desejo de se submeterem a cirurgias de redesignação sexual (Chidiac & Oltramari, 2004; Pelúcio, 2005; Araújo Júnior, 2006; Moraes, 2009; Peres, 2009; Peres & Toledo, 2011; Galli, 2013)

De acordo com Amaral, Silva, Cruz e Toneli (2014), ainda é recente o movimento da ciência brasileira em tor-no das categorias “travestis”, “travestismo” e “travestili-dades”, sendo que os primeiros estudos são datados da década de 1990, utilizando metodologias típicas das ci-ências sociais, como etnografias em espaços frequentados por essa população. A maior parte dos estudos sobre os travestis concentra-se em aspectos relacionados à sua saú-de física e psicológica (Spizzirri, Azevedo & Abdo, 2011; Galli, 2013). Em sua maioria, tencionam verificar o uso de preservativos, o consumo de álcool e substâncias psi-coativas, incidência de doenças sexualmente transmissí-veis, traços de personalidade e a presença de transtornos mentais. Poucos estudos investigam as características psi-cossociais e subjetivas dos travestis e um número ainda menor busca fazê-lo utilizando metodologia qualitativa (Azevedo, 2009; Leite Jr, 2011; Duque, 2012; Azevedo, Spizzirri, & Scorsolini-Comin, 2014)

Dentro da temática específica da identidade de gênero, estudos recentes na área da ciência social têm questiona-do a noção de gênero vigente e destacam que as fórmulas pautadas no binômio masculino versus feminino não são válidas frente à realidade da diversidade das identida-des de gênero com que nos defrontamos cotidianamente (Miskolci & Pelúcio, 2007; Peres, 2012) e são insuficien-tes para explicar a complexidade com que a sexualida-de se apresenta. Desse modo, trabalham com a noção de uma desnaturalização do gênero. Este é visto não como algo que determine um sentido em si do sujeito, mas sim como expressões ou efeitos que fazem parte de sua iden-tidade e, por conseguinte, da sua sexualidade e também do modo como constrói a sua subjetividade (Louro, 2001; Butler, 2002). Seguindo este raciocínio, homossexuais, bissexuais, travestis, transgêneros, drag queens, transe-xuais, entre outros, provocam questionamentos sobre os enquadramentos e as regras produzidos por discursos normatizadores (Louro, 2001).

Na literatura científica, as experiências travestis têm sido abordadas a partir de temas como aids, transformação corporal e prostituição, sendo poucos os estudos referen-tes ao envelhecimento, adolescência e educação, elemen-tos que podem ser norteadores de políticas públicas, por exemplo, relacionadas à violência sofrida pelas traves-tis, suas condições de vida e saúde (Amaral et al., 2014). Dada a escassez de investigações que busquem conhecer as experiências vividas por essa população, este estudo de caso pretende contribuir nesta direção por meio de uma

aproximação qualitativa, utilizando-se da abordagem fe-nomenológica, das experiências de uma travesti, objeti-vando conhecer de que maneira significa suas vivências sociais, afetivas e sexuais e, principalmente, compreen-der qual a percepção que tem sobre sua identidade de gê-nero. A questão que norteou o estudo foi: de que modo uma travesti compreende as suas vivências pessoais ao longo do ciclo vital relacionadas à construção da identi-dade de gênero?

1. método

1.1 Tipo de estudo

Trata-se de um estudo de caso de corte transversal, fundamentado na abordagem qualitativa e no método fenomenológico, especificamente na proposta da Psico-logia Fenomenológica (Forghieri, 1993). Nesse tipo de estudo existe uma limitação na extensão da casuística investigada, mas tal estratégia favorece uma abordagem em profundidade do fenômeno focalizado, com ênfase na constituição da subjetividade humana (Peres & San-tos, 2005). O estudo de caso foi priorizado como forma de nos aproximar das vivências do sujeito focal e ter acesso a especificidades de suas vivências, a partir de um rela-to exaustivo, detalhado e reflexivo do modo de existir da participante. Este caso sustenta-se nas particularidades da travesti escolhida, de modo que suas considerações devem ser relativizadas em termos de alcance, mas am-pliadas no sentido de acessar experiências que, de outro modo, não poderiam ser compreendidas nem recuperadas a partir de outros delineamentos metodológicos.

1.2 Participante

O critério para participar do estudo era ser travesti (apresentar-se como travesti), possuir menos de 25 anos de idade (a fim de enquadrá-la na categoria de adulto jo-vem) e atuar como prostituta, como forma de acessar tanto as suas práticas profissionais como ampliar a possibili-dade de acesso à participante. Neste estudo, a voluntária foi chamada de Ketlen (nome fictício), possui 22 anos de idade, é solteira, ensino superior incompleto e atua como profissional do sexo em uma cidade do interior do Esta-do de São Paulo.

1.3 Instrumento

Para a realização da entrevista empregou-se um roteiro semiestruturado desenvolvido pelos pesquisadores, que contemplou os temas da identidade de gênero e relacio-namentos afetivos e sociais. As perguntas ocorreram de forma aberta para propiciar liberdade de respostas, con-

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tribuindo na percepção de suas atitudes e valores. Como se trata de uma pesquisa fenomenológica, cuidou-se pa-ra que as perguntas não restringissem muito o repertó-rio de possibilidades de acesso às experiências narradas. Assim, a pergunta que norteou a entrevista foi: como é a sua vivência como travesti? A partir das narrativas trazi-das em resposta a essa questão, outras perguntas foram sendo apresentadas pela entrevistadora no momento da entrevista, a fim de abarcar uma ampla gama de experi-ências em diferentes áreas da vida e ao longo de todo o ciclo vital, compreendendo a construção de gênero como algo que ocorre constantemente. Desse modo, as pergun-tas buscaram abarcar os movimentos e os processos de transformação, em contraposição a definições prontas e estáticas acerca das vivências da travesti.

1.4 Procedimento

Coleta de dados. O primeiro contato com a participan-te deu-se por telefone, a partir de recrutamento pela rede de contatos dos pesquisadores. A entrevista audiogravada ocorreu na residência da voluntária e durou três horas, sendo posteriormente transcrita na íntegra e literalmente e compondo o corpus da investigação. No que tange aos cuidados éticos, a pesquisadora manteve uma postura de cuidado e respeito ao fazer um contato que respeitasse a liberdade e a capacidade de tomada de decisão da entre-vistada, garantiu que dados de identificação não seriam revelados, que poderia interromper a entrevista a qual-quer momento e se prontificou a dar suporte psicológico à participante caso esta sentisse necessidade. As condições do estudo estavam presentes no Termo de Consentimen-to Livre e Esclarecido, lido, discutido e assinado por am-bas as partes (participante e pesquisadora). Este estudo faz parte de uma investigação mais ampla, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem do terceiro autor (Protocolo CEP 2162/2012).

Análise dos dados. Após transcrição e leitura exaus-tiva do material, foram construídos eixos temáticos para a compreensão das experiências da participante nas dife-rentes dimensões do existir. Esses eixos foram construídos a partir das falas da participante, compondo seis núcleos de experiências: (a) Vivências no cotidiano escolar; (b) Vivências afetivas; (c) Questões relacionadas à identida-de de gênero; (d) Vivências sociais; (e) Vivências de sua atividade sexual; (f) Saúde física e psíquica. A análise desses núcleos foi empreendida pelo referencial teórico e metodológico da fenomenologia. A fenomenologia, cujos principais proponentes são Husserl e Heidegger, surgiu no campo da filosofia como uma reação ao positivismo que considerava válido somente os fenômenos pesquisa-dos empiricamente, abordagem apropriada, portanto, para os trabalhos de Ciência Natural, mas insuficiente para a compreensão dos fenômenos humanos (Dartigues, 2005).

Assim, a fenomenologia surge como um método que pos-sibilitaria ao pesquisador chegar à essência do conheci-mento humano (Forghieri, 1993).

A investigação fenomenológica parte do entrelaça-mento e da integração entre objetividade e subjetividade. O cientista não fica preso à busca da objetividade, de um mundo que existe independente do sujeito e tampouco à subjetividade de uma realidade interior alheia ao mundo (Augras, 1986). A realidade é vista sempre como realidade percebida (Sapienza, 2008). O procedimento essencial do pesquisador que utiliza a fenomenologia é chamada de redução fenomenológica. Nesta redução, o pesquisador procura manter fora de seu campo perceptivo seu conhe-cimento prévio a respeito do tema e procura penetrar e partilhar da situação vivenciada por outra pessoa (presen-cialmente ou por meio de relatos), a fim de poder compre-ender como ela vivencia aquela situação de acordo com seu próprio modo de existir (Forghieri, 1993).

Sobre o método fenomenológico, Augras (1986) afir-ma que a construção do mundo pelo ser humano é feita por meio da elaboração de significados e que a investiga-ção pretende identificar estruturas significativas, a par-tir da observação das imagens elaboradas pela vivência cotidiana. Assim, o método fenomenológico procura es-sencialmente descrever, explicitar a chamada percepção categorial das pessoas, ou seja, o modo peculiar que têm de ser-no-mundo ou de captar os objetos, as pessoas e as situações (Forghieri, 1984). Parte-se do princípio de que “as descrições feitas pelos sujeitos são a melhor forma de se ter acesso a seu mundo-vida” (Martins & Bicudo, 2005, p. 98). Diferentemente das pesquisas das Ciências Naturais que buscam a explicação dos fenômenos, a fe-nomenologia busca sua compreensão (Dartigues, 2005).

2. Resultados

Ketlen passou sua infância em uma metrópole na re-gião nordeste do Brasil. Morava com sua mãe, seu pai e dois irmãos, sendo um mais velho e outro mais novo. A situação socioeconômica da família era precária. Nos fundos da casa morava sua avó materna. Apresenta-se co-mo uma criança que gostava de ficar em casa, com poucos amigos e que não gostava de brincar. Seu pai fazia uso abusivo de álcool e, especialmente aos finais de semana, agredia sua mãe, física e verbalmente. Quando os finais de semana se aproximavam, ficava apreensiva aguardan-do a volta do pai. Sentia-se impotente perante o proble-ma e utilizava o recurso de chamar a polícia para prote-ger sua mãe. Com esta o relacionamento sempre foi pró-ximo e afetuoso. Depreende-se das falas da entrevistada que desde sua infância, a mãe, frágil para enfrentar seus problemas, buscava proteção em Ketlen. O movimento de proteger sua mãe parece ter se perpetuado em sua vida. Atualmente, envia uma quantia mensal em dinheiro para a mãe e comprou uma casa para ela morar.

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Ketlen percebe o relacionamento com o pai como dis-tante. Relata que atualmente tem pouco contato com ele e quando o faz é para poder resolver problemas protago-nizados por ele. Acredita que o pai tenha medo de suas críticas. Com o irmão mais velho a relação também é dis-tante. Segundo a entrevistada, ele se parece muito com o pai e é agressivo com sua mãe. Em função disso, preferiu afastar-se. Já com o irmão mais novo, de 12 anos, Ketlen tem uma relação próxima e afetuosa. Com os tios e primos, parece ter se aproximado mais após sua adolescência. Re-lata ter bom relacionamento com todos. Tem um vínculo mais próximo com a família do pai, especialmente uma de suas tias e suas primas e primos.

3. Vivências no cotidiano escolar

O período escolar, especialmente até a 5ª série do En-sino Fundamental, foi bastante difícil, sofreu muitos epi-sódios de bullying perpetrados pelos colegas. Como es-tratégia para enfrentar o problema, procurava ficar perto do segurança da escola ou da diretoria para evitar que os colegas se aproximassem, ela comenta:

...Na escola era difícil. Era difícil. (...) Era difícil por-que me chamavam de... (...) Veadinho, goiabinha... um punhado de coisa, né. (...), olha ali o veadinho, não sei o que..., sabe? Porque eu era assim toda meio mo-le, meio quebrado... já dava pra perceber assim que eu era afeminada... (...) Às vezes eu não queria ir pra escola... mas eu não deixava aquilo me levar, né. (...) Eu ficava triste... eu chorava. No intervalo eu sempre procurava ficar perto da diretoria sabe... do segurança da escola. Eu não ficava com ninguém... (...) Eu não entendia o porquê que eles estavam fazendo aquilo. Por quê? Por que estavam fazendo aquilo comigo. Eu não conseguia entender, ainda...

A conduta da escola frente ao problema era a de aplicar punição aos colegas que a intimidavam, o que melhorava momentaneamente a importunação, mas não resolvia a situação. Ketlen relata que havia alguns colegas que tam-bém tinham trejeitos efeminados e eram discriminados e que acabou estabelecendo maior amizade com estes. Aos poucos, afirma que a situação na escola foi melhorando; acredita que pelo fato de ter estudado na mesma insti-tuição até o Ensino Médio, os colegas foram aprendendo a conviver com sua presença sem se incomodar tanto. A percepção de Ketlen é corroborada pelo estudo de Ce-glian e Lyons (2004), que investigou o grau de desconforto em relação aos travestis em um meio universitário, antes e após um período de interação com os mesmos. Os au-tores apontam para a diminuição do grau de desconforto e preconceito em relação a travestis após um tempo de convivência com os colegas. Em termos das vivências no âmbito da escola, retomam-se as considerações de Peres

(2009) acerca da diversidade sexual nesse contexto, que coloca em xeque uma discriminação que não começa nes-se ambiente necessariamente, mas carrega dificuldades trazidas pela criança desde a família. Ao entrar na escola, a criança já possui um repertório de discriminação, o que pode se potencializar nesse ambiente de socialização se não forem adotadas práticas adequadas e se não houver a discussão sobre diversidade sexual envolvendo toda a comunidade escolar.

4. Vivências afetivas

Ketlen teve somente um relacionamento amoroso que considera importante. Namorou esse rapaz durante três anos e meio enquanto morou em São Paulo; ele era casado e tinha três filhos. No entanto, esse fato nunca o impediu de dar atenção a ela, passear e viajar. Relata que ele a as-sumia para os amigos e para sua mãe, que não aprovava a relação. O relacionamento é apresentado como muito im-portante para ela, haja vista que eram muito companhei-ros, ajudavam-se mutuamente e gostavam um do outro:

E era assim, na hora que precisasse dele, ele tava ali, perto de mim... cada vez que... se eu ligasse ele vinha de onde ele estivesse. E era gostoso. A gente se via praticamente todos os dias (...) Porque eu era doente por ele. Nossa! Eu era doente. (...) Da minha parte eu acho que era amor. Da parte dele eu acho que era um gostar, um carinho, sei lá. (...) Eu dava muito carinho pra ele, conversava com ele, compreendia ele. Ah, ele falava que me amava.

Embora Ketlen sentisse que o amava, não expressava esse sentimento verbalmente para o namorado por medo de que, ao sentir-se seguro, ele passasse a desvalorizá-la. No terceiro ano de namoro, soube que quando fora visitar sua família e ficara alguns dias longe de São Paulo, seu namorado deu atenção para outras travestis e foi a um bar com elas. Esse fato marcou o início de um período de des-confiança e desentendimentos no relacionamento. Ketlen passou a não confiar mais nele e sentia muito ciúme. Em seguida ficou sabendo por uma amiga que ele havia “fi-cado” com outra travesti. Nesse dia, a entrevistada refe-re que bebeu, descontrolou-se e chegou a atirar um copo no rosto do namorado, ferindo-o. Ficaram separados por algum tempo e narra ter sentido muita falta dele. Resol-veram, então, reatar o relacionamento. No entanto, após esse retorno, não se sentia tão bem quanto antes, não con-seguia confiar nele. Após alguns meses resolveu terminar definitivamente o namoro.

Aí eu fiquei sabendo que ele tinha ficado com uma pessoa. Aí eu nervosa, comecei a beber. Beber, beber, beber... (...) Aí eu fiquei nervosa porque eu fico nervo-sa muito rápido, tomo muito hormônio... aí eu joguei

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um copo assim na cara dele... um copo que tinha lá, aí cortou assim... a testa dele. (...) Aí nesse período que a gente ficou separado, eu sofri horrores. Eu chorava todo dia, senti falta dele. Sabe por que eu senti a falta dele? Porque eu sabia: “Gente, eu nunca vou encon-trar homem igual”. (...) O modo como ele me tratava. Não tinha vergonha, me assumia, sabe. (...) Aí a gen-te voltou. Aí sabe, eu comecei a ver que eu não era a mesma. (...) Mudou completamente... eu não confiava mais. Eu não confiava mais. (...) até que eu cheguei pra ele e falei. (...) Nossa, pra criar coragem pra ter-minar com ele, foi difícil. (...) Eu preferi terminar, eu senti falta dele, sabe... eu sentia muita falta dele, no começo foi difícil.

Ketlen relata que não deseja estabelecer novos relacio-namentos amorosos. Sente que se envolve demais e isso a afeta emocionalmente, prejudicando sua vida. No entanto, sente falta do companheirismo, da parceria e do carinho proporcionados por um relacionamento afetivo. Desse modo, a sua afetividade pode ser compreendida dentro de uma lógica normatizadora e heteronormativa (Louro, 2009) segundo a qual ela não pode ser uma travesti, mas deve ser uma mulher e comportar-se como uma na pas-sividade, na vestimenta e no comportamento social que prevê que o feminino se entregue mais na relação, cuide, agrade e seja romântico. Cumpre observar que essa lógica também é a que a entrevistada segue, significando rela-cionamentos afetivos com um ideal romântico, de pares “perfeitos” em que o binômio masculinidade e feminili-dade assumem papéis bem definidos, rígidos, opostos e complementares. A dificuldade de estabelecer um rela-cionamento amoroso com um homem pode ser ilustrada com o medo de não mais conseguir encontrar um namo-rado que a assuma socialmente. Ainda assim, esse homem possui uma vida dupla, é casado e possui filhos, sendo que a afetividade de Ketlen parece ter que se ajustar às circunstâncias e ao que ela “consegue” encontrar, e não uma relação amorosa que atenda às suas necessidades e desejos. A vivência marginal desse relacionamento tam-bém aponta para uma afetividade com referências ao uni-verso heteronormativo.

5. questões relacionadas à identidade de gênero

Quando criança, Ketlen não gostava de brincar com os colegas, não tinha muitos amigos e as brincadeiras típi-cas dos meninos eram as que menos gostava, como jogar bola, nadar no rio, soltar pipa e correr. Entretanto, afirma que também não brincava de brincadeiras típicas femi-ninas como casinha, boneca, professora, dentre outras. Durante a infância sua vida se restringia aos estudos e à permanência em casa. A única brincadeira que se lembra de participar era um jogo de lápis e papel que fazia com as meninas da escola.

Seu comportamento de travestir-se se iniciou na in-fância, haja vista que sempre teve vontade de se vestir de mulher e que quando estava sozinha em casa colocava uma toalha na cabeça e passava esmalte nas unhas. Sem-pre desejou ir além desses comportamentos, vestindo-se e maquiando-se como mulher, mas não o fazia com medo de represálias, como afirmava:

Me travesti de mulher? (silêncio) Eu sempre tive von-tade, sempre. Sempre tive... muita vontade. (...) Sem-pre... desde criança. Quando a minha mãe saía que eu ficava sozinha, eu colocava toalha na cabeça... (...) eu pintava minha unha de base... e ficava... pegava o esmalte da minha mãe e ficava...

A primeira vez que se travestiu por completo foi no teatro da escola, situação na qual podia usar vestimen-tas femininas sem ser criticada. Sente que desde criança acreditava ser homossexual, mas foi a partir dos 11 anos, quando passou a participar de brincadeiras sexuais com o primo, que começou a entender o que isso significava:

(...) desde criança eu já sabia que eu era um gay, um homossexual. (...) Eu consegui me entender depois dos meus 11 anos. Com os meus 11 anos eu comecei a en-tender, né... “por que eu sou assim?” Eu era diferente dos outros... dos outros meninos. (...) As brincadeiras com os meus primos, sabe? (...) É... troca-troca... porque eu, com 12 anos eu já... já sabia, já tinha relação sexual com o meu primo.(...) Tudo, tudo eu achava gostoso.

Entre os 12 e os 14 anos, quando ia à casa do primo aos finais de semana, participava de experiências sexuais, essas ocorriam somente com este primo e perduraram por dois anos. Quando questionada sobre esse envolvimento, afirma que não havia afetividade, que a motivação era pa-ra realizar práticas sexuais. Nessa fase, durante os finais de semana em que ficava na casa de sua tia, Ketlen rela-ta que sua prima a travestia e lá se sentia à vontade para expressar sua feminilidade.

Aos 15 anos, iniciou um namoro com uma garota. Esse relacionamento durou um ano e meio e chegaram a morar juntos na casa de sua mãe, devido ao fato da namorada ter engravidado. Iniciou essa relação com a intenção de se aproximar da heterossexualidade, mas não se sentia bem. Quando questionada sobre como se percebia ao ter atividade sexual a namorada, Ketlen relata que não lhe causava sofrimento, mas que não tinha atração sexual. Com poucos meses de gravidez, sua namorada perdeu o bebê e, então, Ketlen resolveu assumir a homossexua-lidade para sua mãe e sua família. Conta que ao mesmo tempo em que namorava essa garota, mantinha um rela-cionamento com um menino. Comenta:

...E eu ia sendo pai e tudo, mas graças a Deus... Deus sa-be o que faz, né... e ela tinha o útero infantil e perdeu.

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Aí, depois que ela perdeu foi a minha oportunidade. Aí eu cheguei pra minha mãe e contei pra ela que eu não era feliz com ela, que eu era feliz de outro jeito... Apesar que nos meus 15 anos pra 16 eu já tinha um namoradi-nho, né... que eu saía as escondidas. Aí eu falei pra ela...

Deve-se ressaltar que na família paterna de Ketlen há dois primos homossexuais e uma prima travesti, portan-to ela tinha referência sobre a travestilidade. Sua prima, além disso, constituiu um exemplo a ser seguido. A en-trevistada relata que se sentia muito bem quando estava com eles e que tinha fascínio pela transformação física dessa prima, que mora no exterior, chegando a desejar ser como ela. Aos 16 anos, Ketlen sentiu a necessidade de feminilizar seu corpo e iniciou a ingestão de pílulas an-ticoncepcionais, sem orientação médica. Nesse período, aos finais de semana saía com amigas vestida de mulher para ir à porta das boates observar outras travestis. Mas foi após uma conversa com a prima travesti que a entre-vistada resolveu refletir mais seriamente sobre a trans-formação física:

...Foi essa minha prima. Aí ela voltou da Espanha e aí quando ela me viu eu já tava começando a tomar hor-mônio... eu tomava o anticoncepcional da minha mãe (...) aí ela pegou e falou bem assim: “Ai, vira feminina, porque não sei o que... fica sendo chamado de veado por aí onde vai... por que não muda pra São Paulo e vira logo travesti? Aquela travesti bonita...” Aí eu: “Se-rá? Será que eu tenho coragem?... não sei o quê...” e eu passei um ano criando coragem pra ir pra São Paulo....

Além de temer a violência e a discriminação, Ketlen relembra que a maior dificuldade para decidir ir a São Paulo e assim poder vivenciar com maior liberdade o travestismo foi o temor de deixar sua mãe. A despeito de seus temores, resolveu ir e retornou após um ano e meio bem mais adaptada ao gênero desejado. Embora não tenha dito para a mãe que iria se tornar travesti e se prostituir, durante esse período, quando fazia contato telefônico, dava alguns sinais que fizeram com que a mãe descon-fiasse do que estava ocorrendo. Relembra com emoção do dia de seu retorno:

...Eu comecei a chorar quando a aeromoça anunciou que estava sobrevoando o aeroporto internacional (...) Aí eu desci, fui devagarzinho no túnel, sabe: Ai meu Deus, como vai ser?, apreensivo, aquela ansiedade (...) quando eu cheguei no aeroporto, já na porta de desembarque tava ela, o meu irmão mais novo, a mi-nha avó e a minha madrinha. Aí ela não me conheceu. (...) Aí eu saí do desembarque ali, fui num orelhão e liguei no celular dela: “Mãe, eu estou atrás da senho-ra”. Quando ela olhou pra trás... não teve assim uma reação histérica. Foi lá, me agarrou, me beijou e cho-rou. Eu chorei, nossa! Eu chorei horrores...

Relata que a fase em que passou pelo processo de transformação física foi difícil, sentia-se sozinha, triste e estava aprendendo a trabalhar em uma profissão arris-cada. Os procedimentos para colocar silicone e próteses foram feitos por colegas travestis e eram caros. Sentia me-do sempre que se submetia a algum desses procedimen-tos. Nesse período teve que organizar cuidadosamente as finanças para que pudesse arcar com as despesas da transformação física, do aluguel e do dinheiro que man-dava para a mãe.

No que tange à atitude dos familiares após sua trans-formação, Ketlen foi aceita por todos. Acredita que o fa-to de ter dois primos homossexuais e uma prima travesti facilitou a compreensão de todos, uma vez que temas re-lacionados à orientação e identidade de gênero já haviam sido explorados pela família anteriormente. Sua maior preocupação era com a aceitação por parte de sua mãe, todavia relata que esta e seu irmão mais novo a aceita-ram e mantém um vínculo bastante afetuoso e próximo consigo. A mãe chegou a conhecer o local onde morava em São Paulo, seu namorado e suas colegas de trabalho. Seus tios e primos também a aceitaram e possui contato frequente e afetuoso com eles. O tema de sua transforma-ção e de sua identidade de gênero nunca foi abordado com o pai e relata quase não ter contato com ele. Atualmente, quando questionada sobre sua identidade de gênero, fica claro que Ketlen não se sente nem como homem e nem como mulher, mas sim como travesti. Além disso, relata sentir-se realizada e feliz com sua identidade:

...Eu me sinto travesti. Eu me sinto travesti... eu não me sinto mulher, nem me sinto homem, eu me sinto traves-ti. Eu me sinto travesti e gosto de me sentir travesti. (...) Ai eu me sinto realizada, como eu te falei. Eu me sinto realizada, me sinto feliz. (...) Eu me sinto bem. Me sinto bem, me sinto realizada. É... feliz. (...) O que é ser tra-vesti? Ser travesti é ter coragem, força de vontade. Cora-gem de enfrentar a sociedade toda, o preconceito, a dis-criminação... e ser travesti tem que... tem que nascer já com aquele dom de ser travesti e eu acho que eu nasci...

Relata não viver sofrimento pelo fato de ser travesti. Quando questionada se vive momentos de conflito ou dúvida em relação à sua identidade de gênero, responde claramente que não, uma vez que se apresenta como tra-vesti, não sendo homem nem mulher. Tal comentário tem ressonância na fala da travesti Marjorie Marchi (Presiden-te da Associação das Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro) no Seminário Nacional Psicologia e Diversidade Sexual: desafios para uma sociedade de direitos (evento promovido pelo Conselho Federal de Psicologia - CFP): “Obviamente, eu digo que travesti não é homem e travesti não é mulher. Travesti é travesti. Travesti é uma identi-dade única, formulada dentro de uma criação masculina, somada, em determinado momento, a uma criação femi-nina” (CFP, 2011, p. 74). Ainda nessa fala, destaca que as

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travestis não deveriam ser enquadradas nas questões de diversidade sexual, mas de diversidade de identidade.

Sobre as fases de transição da infância para a adoles-cência e da adolescência para a idade adulta, em relação aos sentimentos e pensamentos sobre travestir-se, Ketlen sempre quis travestir-se, mas quando criança acreditava que não poderia fazê-lo. Aos poucos, conforme foi cres-cendo, amadureceu a ideia e foi percebendo que isso se-ria possível.

...Quando eu era criança, eu achava que eu nunca ia poder ser, sabe. Eu achava que eu nunca ia poder ser. E quando eu cresci eu vi que dava pra poder ser... eu já vi que não ia ser tão difícil. (durante a adolescência) continuou tudo igual, só que eu amadureci mais, né. Eu tinha os pensamentos mais maduros, mais positi-vos. Agora eu sei que eu vou decidir o que eu quero... ficou mais consolidado...

Acredita que o momento mais decisivo em relação a seus sentimentos sobre sua identidade de gênero foi quan-do resolveu assumir por quem se sentia atraída sexual-mente, considerado um passo importante até conseguir se autodenominar como travesti. Relata que o antigo namo-rado a via como mulher e não como travesti, por isso não se sentia à vontade para mostrar seu pênis para ele; relata que fazia sexo com calcinha e que sempre era penetrada. Já os parceiros atuais, que são eventuais, a veem como tra-vesti; com estes pratica penetração ativa e passivamente.

Gosta muito de seu corpo em geral e de seu pênis, estabelecendo com esse uma relação de prazer. Não tem desejo de fazer a cirurgia de redesignação sexual e sobre isso, considera um ‘pecado’. Quando questionada sobre como se sente ao olhar-se no espelho e observar seu corpo feminino com um pênis, responde que gosta, justamente por ser assim o corpo de uma travesti:

...Eu gosto, eu gosto de ser travesti. O pênis ali faz par-te do travesti, faz parte do travesti. (...) Às vezes eu me arrumo, assim pra ir trabalhar e eu fico olhando no espelho e “Ah, eu nasci realmente pra ser travesti”. (risos) É assim que eu me vejo...

6. Vivências sociais

A entrevistada sempre passou por situações de pre-conceito e discriminação, mas a fase de maior sofrimento foi no período escolar. Procura ser discreta nos contatos sociais para não passar por situações de constrangimento, mas que frequentemente percebe as pessoas à sua volta fazendo comentários e insinuações maledicentes, piadas e dando risadas. Ketlen justifica que pelo fato de ser mui-to nervosa, procura não dar atenção a isso para que não acabe discutindo com eles, piorando a situação e pas-sando vergonha. Na época em que fez faculdade, sentiu

dificuldade para estabelecer amizades, as pessoas não se aproximavam e Ketlen também não se sentia à vontade para procurá-las. Além disso, notava que faziam comen-tários sobre ela. Relata que já enfrentou situações de dis-criminação e cita um exemplo, no qual não foi atendida ao entrar em um estabelecimento no qual vendedores es-tavam desocupados.

(...) eu fui comprar uma roupa numa loja e tinha vá-rios atendentes atendendo outras pessoas e tinha uns três assim parados, sabe. Aí eu fiquei procurando uma pessoa pra me atender... estava eu e uma amiga mi-nha, e eles fizeram de conta que não tinha ninguém. (...) fui lá na frente da loja, falei com o gerente e falei que não tinha porque eles esnobarem, afinal de contas não tinha muitos clientes dentro da loja e não estavam querendo atender porque a gente era travesti... (...) eu falei isso pra ele: “A gente veio aqui pra comprar, não foi pra pedir nada pra ninguém”. Aí o gerente foi lá, fez um deles atender.

Acredita que embora situações de preconceito e discri-minação sejam comuns, a sociedade está se acostumando com a presença de travestis. Ketlen tem amigos homens, mulheres e travestis, mas suas vinculações mais signifi-cativas são com os últimos.

7. Vivências de sua atividade sexual

Avalia suas práticas sexuais como ‘normais’, sentindo--se bem. Tem desejo sexual, consegue atingir o orgasmo e tem ereções e ejaculação sem dificuldade. Sente prazer em praticar sexo profissionalmente como em sua vida pesso-al. Está satisfeita com sua frequência sexual. No entanto, queixa-se que nos momentos em que está sem desejo cos-tuma sentir dor quando é penetrada. Nesses casos, procu-ra ser rápida, usar maior quantidade de lubrificante, faz sexo oral e questiona o cliente se prefere ser penetrado. Na época em que usava hormônio feminino era frequen-te ter dificuldade para conseguir ereção, mas conforme o uso de hormônio diminuiu, a disfunção foi resolvida.

Em relação às suas práticas sexuais preferidas, relata que o que mais lhe proporciona satisfação é o sexo anal quando penetrada, no entanto, também sente prazer em penetrar. Profissionalmente, a pedido do cliente, faz sexo com outras travestis, no entanto, nesses casos, não gosta de ser pene-trada, apenas de penetrar. Não pratica sexo com mulheres. Na vida pessoal, somente tem atividade com homens.

8. Saúde física e psíquica

Não se queixa de nenhum problema físico, atual-mente. No passado já teve sífilis e problemas no fígado, procurou ajuda e foi tratada adequadamente. Do ponto

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de vista psicológico, relata que com alguma frequência sente-se triste e enfraquecida emocionalmente pelos pro-blemas cotidianos, especialmente os familiares. Quando a entrevistada tem capacidade para resolver o problema, imediatamente toma as providências para que isso ocorra, mas quando não apresenta esses recursos, sua estratégia é não pensar muito neles e mudar o foco de sua atenção para que não se abata demais. Sente que a ansiedade é uma de suas maiores dificuldades psicológicas. Não tem vontade de procurar ajuda profissional para lidar com essas dificuldades.

(...) problemas me deixam super fraca, super frágil e principalmente assim, os familiares, né. Os da minha família me enfraquecem muito. (...) Ah, eu procuro não me sentir sozinha... eu procuro... eu procuro é... não deixar os problemas vingar na minha cabeça, sa-be. (...) nem deixar os problemas entrarem muito na minha cabeça. (...) Eu também procuro ficar conver-sando, distraindo aí eu não dou mais importância. Mas se eu ficar um dia inteiro sozinha, eu fico louca, me sentindo sozinha, sem ninguém pra conversar...

Na época em que foi morar em São Paulo, abusou de álcool e de outras drogas, especialmente cocaína. O uso de álcool aumentou na época em que terminou o namo-ro. Atualmente faz uso de bebidas alcoólicas socialmen-te e de cocaína pouco frequentemente. Parece ter temor de que volte a perder o controle e, por isso, quando faz uso de cocaína sente-se culpada. Novamente, sua estraté-gia para lidar com os problemas é utilizada: procura não pensar no que fez:

Quando eu me arrependo é pelo fato de cair em de-pressão... por isso que eu procuro não me arrepender. Eu sou fácil de ficar em depressão... aí eu procuro não me arrepender, porque se eu me arrepender, facinho eu fico em depressão. (...) É, penso que já passou. (...) Fico me sentindo culpada... pelo fato de eu ter usado mui-to tempo... eu tenho medo de voltar assim, de piorar.

Em relação aos profissionais de saúde, sempre pro-curou tratamento médico em um centro especializado para profissionais do sexo da rede pública da cidade de São Paulo. Acredita que em função dessa característica da instituição, os profissionais de saúde estavam mais acostumados a atender travestis e fora tratada sempre com muito respeito. No entanto, há que se destacar que essa não é uma prática recorrente nos serviços de saúde, notadamente do setor público (Moscheta, 2011), em que predominam posturas rígidas e de preconceito ou mes-mo práticas que integram a necessidade de compreender e respeitar as individualidades e as expressões sexuais, mas, ao mesmo tempo, operando-se a dificuldade de se colocar no lugar do outro e entender a importância de um atendimento à população LGBT que verdadeiramente a

inclua no sistema público de saúde como seres de direito. Essa inclusão deve levar em conta a necessidade de que os profissionais dispam-se de seus possíveis preconcei-tos, atuando na promoção de melhores práticas de saúde a essa população, ouvindo esses clientes, conhecendo suas necessidades, seus corpos, dificuldades e potencialidades.

9. discussão

Ketlen afirma que não se sente como homem, nem co-mo mulher, mas sim como travesti. Optou pela transfor-mação física para se tornar travesti. Assim, não desejava ter o corpo de uma mulher e sim o de uma travesti, ou seja, possuir um pênis em um corpo feminino. Não so-fre pelo fato de se sentir como uma travesti, ao contrário, está realizada e feliz por ter alcançado o que almejava e hoje possui o corpo congruente ao modo como se sente e se denomina. Acredita que nasceu com um dom para ser travesti e que não são todas as que o possuem. Não tem o desejo de fazer a cirurgia de redesignação do sexo de nascimento, gosta de seu pênis e este faz parte do ‘ser travesti’, pela mesma razão sente-se bem ao mirar-se no espelho, mostrando-se congruente com sua identidade de gênero. Em seus relacionamentos eventuais, acredita que os parceiros a percebem como travesti. No entanto, seu antigo namorado a via como mulher.

Os questionamentos sobre a noção de gênero e de sua materialidade e a dicotomia proporcionados por aborda-gens teóricas advindas do campo da Psicologia, Filosofia, Sociologia e Antropologia (Foucault, 2005; Louro, 2001; Scott, 1990) apresentam-se como possibilidade interessan-te para se promover reflexões e questionamentos a respei-to das travestis. A vivência da participante deste presente estudo incita reflexões a respeito do quão as categorias de gênero masculino e feminino não são capazes de abarcar todas as identidades de gênero. Ketlen se percebe como travesti e não como homem ou como mulher. Conforme Azevedo Jr. (2002), a travesti não apenas rompe com pa-drões heteronormativos e com a masculinidade, mas cria um novo feminino, um feminino próprio da travesti.

A fenomenologia busca alcançar a essência dos fe-nômenos não por meio de explicação, mas sim de com-preensão. Sendo assim, cumpre explicitar o modo como o ser-no-mundo de Ketlen foi compreendido fenomeno-logicamente neste estudo. O ser-no-mundo é a estrutura fundamental da experiência humana, ser e mundo, cons-ciência e objeto não podem ser olhados de forma inde-pendente, estão indissoluvelmente ligados. O mundo não é compreendido como um conjunto de objetos e pessoas existindo por si mesmos, cada um deles se torna o que é em função da significação dada por quem o percebe. Ser-no-mundo é sempre uma estrutura originária e total, no entanto, pode-se visualizá-la em termos dos diversos aspectos do mundo e das diferentes maneiras do homem existir nele (Forghieri, 1993).

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A existência do homem é originalmente ser-com, ou seja, é por meio das relações com outros seres humanos que atualizamos, compreendemos e desenvolvemos nos-sas potencialidades humanas, especialmente o amor, a li-berdade e a responsabilidade. Essas relações com os ou-tros podem ser denominadas de “mundo humano” (For-ghieri, 1993). Na infância, Ketlen viveu uma situação de certo isolamento, tendo contatos sociais bastante restritos. Estabeleceu relação distanciada e permeada pela violên-cia com o pai e de papéis invertidos com a mãe uma vez que esta, em função de sua fragilidade psíquica, parecia necessitar da criança para lhe proteger. Assim, nota-se que o “mundo humano” de Ketlen parece ter proporcio-nado vivências que dificultaram seu desenvolvimento existencial; por meio da menor exploração de si no mun-do, a atualização de suas potencialidades foi prejudica-da. As experiências de preconceito social, vividas desde a infância e muito comuns entre travestis (Peres, 2006), parecem ter contribuído para que Ketlen pudesse obser-var-se diante do “mundo humano”, identificando quais eram suas características e de que maneira elas afetavam ou impactavam o entorno.

Em seus diversos contatos posteriores, com o primo com o qual mantinha relações sexuais, com as primas que a travestiam, com os colegas do maracatu, com a pri-ma travesti, dentre outros, Ketlen pode entrar em conta-to mais franco com o mundo e consigo, proporcionando aumento da conscientização de suas necessidades e po-tencialidades. Sapienza (2008) aponta que a existência é sempre um poder ser diante de um “para que”. Nesse “a fim de que” reside o sentido da vida que deve ser cons-truído no entrelaçamento do ser-no-mundo e as possibi-lidades construídas por e entre ser e mundo. Vivenciando diversas situações no contato com o “mundo circundan-te” e com o “mundo humano”, o indivíduo vai reconhe-cendo a si próprio e toma consciência de si, formando o que é chamado de “mundo próprio” (Forghieri, 1993). Es-te é caracterizado pelas significações que as experiências têm para o indivíduo. No que tange ao “mundo próprio” de Ketlen, há indícios de que possua alguma dificuldade em conscientizar-se de seus sentimentos, apresentando, em determinados momentos, escolhas realizadas a fim de evitar a angústia, prejudicando sua integração existencial. Entretanto, nota-se que a entrevistada se observa como al-guém que já passou por inúmeras e grandes dificuldades e que conseguiu e consegue enfrentar os desafios, ainda que utilizando recursos que não necessariamente lhe fa-çam bem ou promovam seu desenvolvimento emocional. Frequentemente se sente fragilizada por problemas coti-dianos e que quando não consegue resolvê-los de ime-diato opta por evitar refletir sobre eles para não piorar sua condição emocional. Ressalta-se, ainda, que relata sentir-se ansiosa e desprezada quando passa um dia in-teiro sozinha, sem suas colegas. A presença de perda de controle sobre o álcool e as drogas, de fortes e frequentes sentimentos de tristeza e ansiedade também demonstram

sua maior fragilidade existencial. Assim, a entrevistada se observa como alguém forte, que sobreviveu e enfrenta grandes desafios, mas que foge da angústia. Para Heidegger (conforme citado por Dantas, 2011), a angústia não deve ser considerada como uma condição patológica nem deve ser evitada, é antes de tudo um sentimento que determina a condição humana e deve ser vista como uma importan-te experiência que emerge quando tomamos consciência de nossa condição de seres livres, únicos e mortais. Des-se modo, Ketlen, muitas vezes, ao evitar o sentimento de angústia, interrompe a possibilidade de refletir sobre sua existência e mantém pensamentos, sentimentos e condu-tas rígidos e com pouca mobilidade.

Pode-se dizer que, devido ao ser-no-mundo de Ketlen, esta optou por ser travesti. A liberdade de escolha é algo inerente à existência humana. Existir é se abrir para a per-cepção e compreensão de tudo o que se apresenta e fazer escolhas. A liberdade é tanto maior quanto for a abertu-ra a essas possibilidades. Isso não significa que não exis-tam limites. Em função da própria materialidade do ser, circunscritores de diversas ordens se impõem. No entan-to, mesmo dentro desses limites muitas escolhas podem ser feitas e não há como se saber antecipadamente qual a melhor decisão. Sapienza (2007) explica que a liberdade não é algo a que o homem pode ter acesso, a liberdade é originária, é algo que ele é. Nesse sentido, fazer escolhas comporta lidar com a imprevisibilidade da vida e a au-sência de garantias. Existir é poder ser atingido o tempo todo por coisas que nos tocam, constroem ou destroem sentidos previamente elaborados.

Quanto melhor o conhecimento de si e do mundo, maior probabilidade de se fazer escolhas autênticas. En-tretanto, o risco da imprevisibilidade é parte de qualquer escolha. Soma-se a isso o fato de que escolher significa abrir-se para algumas possibilidades e renunciar a tantas outras. A perda é inerente à escolha. Kierkegaard (citado por Feijoo, Mattar, Feijoo, Lessa, & Protasio, 2013), outro filósofo pertencente ao movimento da fenomenologia, aponta que a possibilidade é o elemento do qual a todo o momento nasce a ação do homem em liberdade. A impos-sibilidade da não-escolha e a inevitabilidade de se viver as consequências das escolhas tomadas lançam o homem na angústia e na indecisão (Feijoo et al., 2013). Em função dessas características de renúncia e riscos, muitos indi-víduos optam por adiar as escolhas ao máximo ou toma-rem decisões em que se acomodam nas expectativas dos outros, vivendo uma vida inautêntica.

Seria aparentemente mais fácil para a entrevistada es-colher viver de acordo com as normas esperadas. Nota--se, inclusive, que Ketlen fez essa tentativa, amasiando-se com uma namorada. No entanto, vivenciou essa experi-ência como algo que não lhe fazia sentido, incongruen-te e inautêntico. Sabia que a escolha pela feminilização comportava grandes riscos: rejeição da família e de ami-gos, dificuldade para se conseguir trabalho, preconceito social, doenças relacionadas ao excesso do uso de hor-

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mônios femininos, dentre outros. A entrevistada resolveu assumir esses riscos e optou pela transformação física. Forghieri (1984) aponta que o existir é anterior ao pensar e por isso é dele que se deve partir para encontrar a ver-dade. Parece que foi assim que a entrevistada intuitiva-mente procedeu. Por mais que vivesse no modo de exis-tir racional, que pesassem os prós e contras de sua deci-são, que avaliasse cuidadosamente a realidade externa, foram as vivências de seu ser-no-mundo que apontaram para a sua verdade e para a “coragem” de se transformar, correspondendo à sua predestinação-no-mundo: nasce-ra com o “dom” de ser travesti, nascera para ser travesti. O olhar do pesquisador, nesse sentido, deve ser o de aco-lher essa escuta e compreendê-la no percurso de vida da participante, com destaque para a potencialização de seus recursos e estratégias de enfrentamento do cotidiano.

Considerações finais

Por fim, cumpre mencionar que o presente estudo não pretende trazer conclusões, orientações ou certezas so-bre o assunto, apenas tenciona apresentar reflexões ela-boradas em função do contato com a literatura científica e com a própria participante e lançar luz sobre um tema tão importante e ainda pouco compreendido. As travestis constituem uma categoria marginalizada em nossa socie-dade, de modo que a compreensão sobre seus percursos desenvolvimentais, aqui explicitados a partir das suas vi-vências, pode contribuir para uma análise menos estere-otipada e normatizadora. Buscar o modo como a travesti significa as suas experiências também mostrou-se uma es-tratégia metodológica importante no sentido de valorizar o olhar da protagonista do processo, em contraposição a explicações científicas vindas “de fora” e, por vezes, que recuperam uma tradição positivista marcada por um saber externo e que vê pesquisador e objeto como entes distan-ciados. A construção de um contexto de escuta autêntica possibilitou que fosse construída uma narrativa densa, de-talhada e que ofereceu suporte para uma discussão sobre o que é “ser travesti” para além do já-dito ou de nosologias presentes em diversos estudos em circulação. Designar--se, perceber-se e reconhecer-se como travesti, pelas falas da participante, ultrapassaria as definições existentes e abriria espaço para novas considerações que desafiam os pesquisadores: o que seria “nascer já com aquele dom”? Esse dom estaria cravado no existir de Ketlen, sendo que a escuta atenta ao caso nos leva a concluir que há espaço, nessa definição, para a complexidade que atravessa suas experiências de vida nos diversos domínios. Essa escuta, portanto, aproxima pesquisadora e pesquisada, promoven-do a assunção de diversos sentidos nem sempre balizados e reconhecíveis nos estudos da área.

Assim, por meio desse relato, objetivou-se realizar uma aproximação qualitativa das vivências, sentimentos e expe-riências de uma travesti, que compõe uma população sabi-

damente invisível aos olhos da sociedade. As vivências de Ketlen assemelham-se a tantas outras e podem ser defla-gradoras de percursos de desenvolvimento que merecem a atenção dos pesquisadores para melhor compreensão sobre esses trajetos e caminhos. A excessiva preocupação com a prevenção de doenças nessa população, embora possua uma inquestionável importância em termos de políticas públicas de saúde, não pode obscurecer uma atuação em saúde voltada à consideração das travestis como pessoas em desenvolvimento, com trajetórias, dúvidas, questiona-mentos, subjetividades e potencialidades que devem ser re-conhecidas e incorporadas ao processo de escuta e de aten-ção em saúde. Perspectivas de gênero que possam abarcar essas vicissitudes ao invés de enquadrá-las, patologizá-las e/ou diagnosticá-las podem e devem contribuir para a as-sunção de posturas mais sensíveis por parte de pesquisa-dores, profissionais de saúde e familiares envolvidos com a complexidade da diversidade sexual.

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roberta Noronha Azevedo - Psicóloga e mestranda em Psicologia pe-la Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Uni-versidade de São Paulo. Especialista em Sexualidade Humana pe-la Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]

Fabio Scorsolini-Comin - Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Univer-sidade Federal do Triângulo Mineiro. E-mail: [email protected]

Giancarlo Spizzirri - Psiquiatra e Doutorando em Medicina pelo Insti-tuto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médico do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.

Recebido em 18.02.2014Primeira Decisão Editorial em 25.09.2014

Aceito em 25.02.2015

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Considerações Fenomenológico-Hermenêuticas acerca da Somatização na Adolescência: um Estudo de Caso

conSideRAçõeS fenomenológico-heRmenêUticAS AceRcA dA SomAtizAção nA AdoleScênciA: Um eStUdo de cASo

Phenomenological-Hermeneutical Considerations of Somatization in Adolescence: a Case Study

Consideraciones Fenomenológico-Hermenéuticas de Somatización en la Adolescencia: un Estudio de Caso

Luanny toMaz Brito

ana Karina SiLva azeveDo

Luciana carLa BarBoSa De oLiveira

resumo: O objetivo desta pesquisa consistiu em compreender o fenômeno da somatização, à luz da Fenomenologia-Hermenêuti-ca de Martin Heidegger, tomando como base um caso que fora acompanhado pela equipe de saúde de um hospital universitário. Trata-se de um estudo fenomenológico-hermenêutico, de caráter qualitativo, que utilizou como metodologia de investigação o estudo de caso único. Participou da pesquisa uma adolescente de 15 anos de idade, que apresentou como queixa um “entalo na garganta”, sendo hospitalizada para tratamento médico e investigação diagnóstica. Foram utilizados como instrumentos de cole-tas de dados o relatório de atendimento psicológico, elaborado a partir do acompanhamento psicológico realizado com a adoles-cente, e um roteiro de entrevista semi-aberto. O estudo mostrou que a somatização pode ser analisada existencialmente com um modo de privação do caráter fundamental de poder-ser do Dasein, como uma carência que sempre se dá em relação ao seu modo de ser-no-mundo-com-os-outros. Evidenciou-se a relevância do contexto psicoterapêutico no favorecimento do encontro da par-ticipante consigo mesma, à medida que se disponibilizou um espaço em que ela pode voltar-se à sua experiência e falar de seu sofrimento (expresso na forma de um corporar), reconhecendo e significando-o. Ressalta-se que o desaparecimento do sintoma se deu favorecido pelo contexto psicoterapêutico.palavras-chave: Somatização; Adolescência; Estudo de caso; Fenomenologia-hermenêutica.

Abstract: The objective of this research consisted in understanding the phenomenon of somatic illness, in the light of Martin Heidegger’s Hermeneutic-Phenomenology, considering a case that had been accompanied by a team of health assistance of a uni-versity hospital. This article is a hermeneutic-phenomenological study with qualitative character that used as an investigation methodology the single-case subject. The subject was 15-year-old girl who had been complaining of choking when was hospi-talized for medical treatment and diagnosis investigation. A semi-structured interview and a report of psychological service that was elaborated from psychological attendance with the subject were used as instruments of data collection. The present study provides evidence that somatization can be existentially analyzed by a privatization way of the fundamental character from Das-ein’s view of being as a lack related to her way of being-in-the-world-with-others. Moreover, the study evidenced the importance of psychotherapeutic context in the privilege of the participant in meeting herself, while a space was made available in which the subject could return to her experience and speak about her suffering (expressed in form of bodying forth), recognizing and giving it a significance. Therefore, the study allows for the inference that the psychotherapeutic process led to the disappearance of so-matic symptom.Keywords: Somatoform disorders; Adolescent; Case studies; Hermeneutic-phenomenology.

resumen: El objetivo de esta investigación consiste en la comprensión del fenómeno de la somatización, a luz de la fenome-nología-hermenéutica de Martin Heidegger, tomando como base un caso que ha sido acompañado por el equipo de salud de un hospital universitario. Se trata de un estudio fenomenológico-hermenéutico, de carácter cualitativo que usó como metodo-logía de investigación lo estudio de caso único. Ha participado de la investigación una adolescente con 15 años de edad, que presentó como queja un “entalo” en la garganta, cuando fue hospitalizada para recibir tratamiento médico e investigar el diag-nóstico. Un informe del servicio psicológico elaborado a partir de la asistencia psicológica con el paciente y uUn itinerario de la entrevista semiabierto fueron utilizados como instrumentos de recopilación de datos. El estudio mostró que la somatizacion puede analizarse a la luz del existencialismo con una manera de privación del carácter fundamental de poder-ser de Dasein, como una falta que siempre siente su manera de ser-en-el-mundo-con-los-otros. También se ha evidenciado la relevancia del contexto psicoterapéutico en el favorecimiento del encuentro de la participante consigo misma, a medida que se ha disponibi-lizado un espacio en que ella pudo volverse a su experiencia y hablar de su sufrimiento (expreso en la forma de una corpora-lidad), reconociendo y significándolo. Por consiguiente, es posible inferir que la desaparición del síntoma fue favorecido por el proceso psicoterapéutico.palabras clave: Trastornos somatoforme; Adolescente; Estudios de casos; Fenomenología-hermenéutica.

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introdução

A ocorrência de sintomas físicos que não possuem causas orgânicas e não são explicados por condições mé-dicas gerais tem sido continuamente relatada ao longo da história da medicina (Coelho & Ávilla, 2007; Zorza-nelli, 2011). Segundo pesquisas atuais, sua prevalência vem crescendo substancialmente, principalmente no âmbito da atenção primária, tornando-se um relevante problema de saúde pública em nível mundial (Fonse-ca, Guimarães & Vasconcelos, 2008; Guedes, Nogueira & Camargo, 2008; Tófoli, Andrade & Fortes, 2011; Zor-zanelli, 2011).

Por outro lado, trata-se de um tema de estudo contro-verso, atravessado por inúmeras dificuldades, sendo uma destas a utilização de diferentes nomenclaturas em sua abordagem. Coelho e Ávilla (2007), por exemplo, situam o termo somatização como um conceito geral, utilizado para designar fenômenos clínicos variados. Mas outras no-menclaturas têm sido utilizadas, como transtornos men-tais comuns, que englobam sintomas depressivos, ansio-sos ou somatoformes (Fonseca et al., 2008; Gonçalves & Kapczinski, 2008); sintomas vagos e difusos (Guedes et al., 2008); doenças sem explicação médica (Zorzanelli, 2011); perturbações de somatização (Tavares, Ferreira & Fonseca, 2010); perturbações somatoformes (Fabião, Fle-ming, Silva & Barbosa, 2010), entre outras.

Fabião et al. (2010) pontua que as diferentes formas de operacionalizar o conceito da somatização e o uso de diferentes sistemas classificativos são considerados os fatores mais relevantes a dificultar a sistematização de resultados de prevalência na população, bem como o de-senvolvimento de pesquisas que versem, por exemplo, sobre critérios diagnósticos e intervenções terapêuticas. Existem, portanto, poucos trabalhos empíricos e estudos clínicos que contribuam com novas reflexões e caminhos para se pensar este fenômeno.

Diante de tal contexto, este artigo tem como objeti-vo compreender a somatização à luz da Fenomenologia- Hermenêutica de Martin Heidegger, tomando como base o estudo de um caso que fora acompanhado pela equi-pe de saúde de um hospital universitário. O artigo fora apresentado ao Programa de Residência Integrada Multi-profissional em Saúde – Área de Concentração Saúde da Criança – da Universidade Federal do Rio Grande do Nor-te, como requisito para obtenção do título de Especialista.

Optou-se por fundamentar o estudo no referencial fenomenológico-hermenêutico, à medida que esta teoria possibilita, por meio de seus fundamentos, uma nova for-ma de pensar o homem e os aspectos de sua existência. Diversos pesquisadores do campo da saúde, inclusive, têm utilizado a filosofia de Martin Heidegger em seus es-tudos, buscando refletir e articular novos caminhos pa-ra as práticas de saúde, como é o caso de Anéas e Ayres (2011), Galli (2009), Nogueira (2011), Ribeiro (2007), Sa-les (2008), entre outros.

1. Somatização: um tema controverso

Não obstante às ambiguidades e os paradoxos que marcam os estudos acerca da somatização, principal-mente quanto aos critérios de classificação e de siste-matização, há certo consenso na definição do fenômeno. Escolheu-se aqui o conceito encontrado na publicação de Coelho e Ávila (2007), que define somatização como:

Uma manifestação de conflitos e angústias psicológi-cos por meio de sintomas corporais. Lipowski (1988) propõe que a somatização “é uma tendência que o in-divíduo tem de vivenciar e comunicar suas angústias de forma somática, isto é, através de sintomas físicos que não têm uma evidência patológica, os quais atri-bui a doenças orgânicas, levando-o a procurar ajuda médica” [grifo do autor]. Acredita que tal tendência geralmente se manifesta em resposta a estresses psi-cossociais como eventos de vida e situações confliti-vas, mas esses pacientes geralmente não conseguem reconhecer que suas angústias têm relação com ques-tões psicossociais e explicitamente negam essa possi-bilidade (p. 279).

Duval e Oliveira (2010) acrescentam que indivíduos que somatizam possuem a característica de um vínculo diferenciado com a doença que acaba levando-os a buscar inúmeras consultas médicas a fim de tentarem resolver suas dores. “Trata-se de uma via muito mais regredida de expressão, utilizando-se de recursos primitivos, como o corpo, para dar forma e, muitas vezes voz, à experiência humana” (p. 453).

Coelho e Ávilla (2007), por sua vez, afirmam que a so-matização não deve ser considerada uma doença especí-fica, mas um processo, um fenômeno, uma manifestação. A categorização diagnóstica dos transtornos que possuem a somatização como uma manifestação geral encontra-se, por sua vez, nos manuais, como a Classificação Interna-cional das Doenças (CID) e o Manual Diagnóstico e Esta-tístico de Transtornos Mentais (DSM).

Acerca deste ponto, Zorzanelli (2011) pontua que o campo amplo e controverso dos quadros de somatização aparece hoje em diversas alcunhas nosográficas, dissipa-das nos manuais, sendo mais utilizada a denominação “transtorno somatoforme” como classificação diagnós-tica geral, que, por sua vez, se divide em subtipos. Na atual edição do CID (Organização Mundial de Saúde de Genebra, 1993), por exemplo, tem-se os seguintes sub-tipos: transtorno de somatização; transtorno somatofor-me indiferenciado; transtorno hipocondríaco; transtorno neurovegetativo somatoforme; transtorno doloroso soma-toforme persistente; outros transtornos somatoformes; e transtorno somatoforme não especificado.

Já a atual versão do DSM, lançada em 2013, substi-tuiu o termo “transtornos somatoformes” por “transtor-nos somático-sintomáticos”, e definiu as seguintes sub-

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categorias: transtorno somático-sintomático; transtorno hipocondríaco ansioso; transtorno conversivo (transtor-no neuro-funcional sintomático); fatores psicológicos afetados por uma condição médica; transtorno factício; e transtorno somático-sintomático sem outra especifica-ção. Tais mudanças foram realizadas a fim de remover a sobreposição e confusão de edições anteriores, além de buscar promover a avaliação abrangente dos pacientes, através de diagnósticos mais precisos e oferecimento de um cuidado holístico (American Psychiatric Asso-ciation, 2013).

Acerca dos sintomas comumente apresentados pelos pacientes, Fonseca et al. (2008) afirma que os transtornos que envolvem a somatização podem se manifestar sob a forma de múltiplos sintomas, como irritabilidade, insônia, crises nervosas, queixas de dor em geral, fadiga, esque-cimento; de sintomas gastrointestinais, sintomas conver-sivos (pseudoneurológicos) e sintomas cardiovasculares (Moreira, Guedes & Monteiro, 2010).

Em crianças e adolescentes, é particularmente comum o desenvolvimento de queixas de dor (cefaleia, dor abdo-minal, mialgia e dores nos membros), fraqueza, tontura, sintomas conversivos (quedas inexplicáveis, desmaios, alterações da marcha e alterações sensoriais) e sintomas gastrointestinais (náuseas e vômitos) (Moreira et al., 2010).

Moreira et al. (2010), bem como Tavares et al. (2010), apontam para estudos que revelam uma taxa elevada de casos de transtornos somatoformes na fase da infância à adolescência, sendo mais prevalente na infância tardia e no início da adolescência. O primeiro associa esta pre-valência à crise que marca a transição da infância para a adolescência, caracterizada por um período de mudanças em que há expansão dos cenários relacionais do adoles-cente, aumentando exponencialmente os possíveis estí-mulos desencadeantes e perpetuadores de estresse, sendo a somatização um resultado desse aumento.

Outro dado importante diz respeito à associação entre a somatização e o sexo feminino. Gonçalves e Kapczinski (2008), em estudo quantitativo desenvolvido numa cida-de do interior do Brasil, corroboraram outros estudos, ao concluir que mulheres apresentam mais chance de apre-sentar transtornos de humor, ansiedade ou somatoformes. Também há evidências da relação dos sintomas de soma-tização com aspectos socioeconômicos. Desempregados, aposentados por invalidez, vítimas de violência, pessoas de baixa escolaridade e de baixa renda, com dificuldades laborais e donas de casa apresentam os maiores índices no desenvolvimento de somatizações (Fonseca et al., 2008; Tavares et al., 2010; Tófoli et al., 2011).

De qualquer forma, é importante ressaltar que o fato de não haver uma evidência orgânica da ocorrência do sintoma de nenhuma forma diminui o sofrimento dos in-divíduos “somatizadores”, assim como as suas necessida-des de acolhimento e assistência (Fonseca et al., 2008). Todavia, na maioria dos casos, a somatização acaba sendo compreendida como um sinal de incompetência do indi-

víduo em superar suas dificuldades, o que indica a ina-bilidade dos profissionais de saúde em acolher e atender o paciente de forma integral.

A impossibilidade dos profissionais atribuírem uma causa orgânica específica para os sintomas apresentados por esses pacientes desperta nos mesmos um sentimento de desconforto e impotência diante da evidência das li-mitações da objetividade do modelo biomédico (Guedes et al., 2008). Já os pacientes tendem a se sentir incompre-endidos e negligenciados, e por vezes, culpados por não conseguirem lidar com seus problemas.

Duval e Oliveira (2010) afirmam que a dificuldade de compreensão entre médico e paciente explicita de maneira clara o quanto o cuidar de pacientes “somatizadores” pas-sa por falhas nas relações humanas. Similar a esta ideia, Anéas e Ayres (2011) situam dentro do campo do cuida-do em saúde, um empobrecimento do aspecto relacional, produto da cisão entre o que é considerado objetivo e o que é considerado subjetivo; há uma valorização do pri-meiro em detrimento do segundo, à medida que não se considera que o conhecimento científico-tecnológico de-ve estar a serviço das necessidades humanas.

O ato médico fundado no cuidado é sempre uma in-teração entre duas pessoas. Porém, a operação técnica aparece, muitas vezes, separada da relação interpes-soal. Mesmo a interação é dividida na relação com o outro, que se consolida apenas com a finalidade da obtenção de informações objetivas, em que se busca o que é relevante para o raciocínio clínico para assim estabelecer uma boa decisão assistencial (Anéas & Ayres, 2011, p. 652).

Diante de tantas incongruências e dos prejuízos que es-tas refletem no cuidado em saúde, percebe-se a importân-cia de reconhecer a dimensão humana em sua totalidade e de valorizar as relações interpessoais. É preciso refletir no sentido de que o atendimento de um profissional da saúde não deve ser reduzido à mera aplicação de um co-nhecimento por meio de procedimentos e técnicas, mas que se trata, fundamentalmente, “de um encontro entre dois sujeitos: um cuidador e um demandante de cuida-do” (Guedes et al., 2008, para. 43).

Em se tratando da somatização, considerar a dimen-são humana em sua totalidade é conseguir reconhecer a ideia de que o sofrimento somático está intimamente re-lacionado às experiências, à dinâmica, à história de vida do indivíduo, conforme pontua Duval e Oliveira (2010); e isto implica a necessidade de um espaço terapêutico que extrapole o objetivismo e as generalidades do mo-delo biomédico; que se assente na relevância do diálogo entre os atores envolvidos; que fomente um olhar para além do sintoma físico; e que respeite a singularidade da experiência daquele que somatiza, possibilitando, dessa maneira, um movimento de mudança e de ressignifica-ção do seu sofrimento.

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2. Um olhar fenomenológico acerca do adoecimento

As ciências da natureza estão alicerçadas no paradig-ma cartesiano, que a partir do princípio da cisão do ho-mem em corpo e mente, desenvolve as noções de sujeito e objeto. É esse paradigma que impulsiona o desenvolvi-mento de um modelo biomédico positivista na medicina, causalístico e biologizante, pautado “na abordagem do corpo, da doença e da dor como fenômenos físicos que merecem intervenção direta, pragmática e que são passí-veis de correção” (Ribeiro, 2007, p. 159).

Heidegger (2008/1986), em oposição a esse modelo, denuncia o abismo que se estabeleceu entre a metodolo-gia científico-natural – produto do paradigma cartesiano – e a compreensão do ser homem em sua totalidade. Inau-gura uma compreensão de homem mais ampla, a partir daquilo que considera questão central para a existência humana, o sentido do ser.

Uma parte, por exemplo, o somático do homem, aqui-lo que é natureza no homem poderia ser pesquisado científico-naturalmente. Diversos métodos de cura muito eficientes da medicina moderna provem dos resultados de tais pesquisas. Mas a maioria admite que não é possível atingir de modo científico-natural o que é central no homem (Heidegger, 2009/1987, p. 58).

Para se referir ao homem em seu ser, numa ontologia fundamental1, o filósofo utiliza o termo Dasein2. Ele o concebe inicialmente como um ente privilegiado, o úni-co capaz de interrogar o ser, e o único dotado do caráter de poder-ser, marcas da expressão de sua singularidade máxima, tornando qualquer universalização um distan-ciamento deste seu caráter fundamental (Feijoo, 2011).

A essência do Dasein está fundada em sua existência, num sentido primordial, como uma derivação do termo ek-sistere, que significa “sair”, “mostrar-se”, “estar fora” (Heidegger, 2008/1986). Desse modo, é um ser-lançado--no-mundo, ou ser-no-mundo, existencial que designa as “múltiplas maneiras que o homem vive e pode viver, os vá-rios modos como ele se relaciona e atua com os entes que encontra e a ele se apresentam” (Spanoudis, 1981, p. 16).

Mas o Dasein é um ser-com, à medida que já sempre é no mundo junto aos outros Daseins. Segundo Spanoudis (1981), ser-com é a característica fundamental e genuí-na, o como me relaciono, atuo, sinto, penso, vivo com os meus semelhantes.

1 Ontologia fundamental é uma filosofia universal e originária, que tem como tarefa questionar, desvelar e interpretar o sentido do ser. Este filosofar é base de todo conhecimento, inclusive do ôntico, pois refere-se a tudo aquilo que é em seus modos possíveis de ser (Heide-gger, 2008/1986).

2 Dasein é um termo alemão usado por Heidegger (2008/1986), que se traduz para o português sob diversas formas: presença, ser-aí, ser--no-mundo, existência. Aqui, optar-se-á por manter o termo original. Por isso, nas citações utilizadas em que constar uma tradução, esta será substituída pelo termo original.

À totalidade existencial, de ser-no-mundo-com- outros-daseins-junto-aos-demais-entes Heidegger chama de cuidado (Heidegger, 2008/1986). De acordo com Feijoo (2011), “o Dasein é constitutivamente cuidado, porque ele é os seus modos de ser, e assim, sendo, sempre cuida de si” (p. 38). Esse existencial desdobra-se sob os modos de uma ocupação, que se dá na relação com os entes não dotados do caráter de abertura; e sob a forma de preocu-pação, que designa a relação entre Daseins.

Essa abertura se articula à linguagem, à medida que seus dois modos originários, a compreensão e a disposição (tonalidade afetiva) são ambos determinados pela fala, a partir da qual a abertura pode se articular em significa-dos e interpretações (Heidegger, 2008/1986).

Como já sendo sempre numa abertura, o Dasein já é lançado em suas possibilidades:

O Dasein já caiu em determinadas possibilidades, e sendo o poder-ser que ele é, já deixou passar tais pos-sibilidades, doando constantemente a si mesmo as possibilidades de seu ser, assumindo-as ou mesmo recusando-as. Isso diz, no entanto, que para si mesmo o Dasein é a possibilidade de ser que está entregue a sua responsabilidade... (Heidegger, 2008/1986, p. 204).

Nesse sentido, o Dasein, entregue à responsabilidade de assumir seu próprio ser, vê-se sempre diante da neces-sidade de fazer escolhas alicerçada nas inúmeras possibi-lidades que lhe são abertas no mundo. Ou seja, já sempre “abre o mundo como horizonte no qual os entes lhe vêm ao encontro e lhe requisitam determinados comportamentos” (Feijoo, 2011, p. 38). É, portanto, como ser-no-mundo, co-mo poder-ser, que o Dasein pode constituir-se a si-mesmo e ao mundo, a cada possibilidade assumida ou recusada.

Então, é pelo mesmo caminho que ele está fadado a continuamente perder-se e afastar-se dessas possibilida-des, decaindo na impropriedade. Heidegger (2008/1986) afirma que esse é o modo como o Dasein já se encontra na maioria das vezes no mundo, em sua cotidianidade mediana3, denominada pelo filósofo de “ditadura do im-pessoal”. O impessoal é caracterizado, principalmente, pelo aprisionamento do Dasein em um dado si-mesmo, privando-o de seu caráter de possibilidade. O impessoal corresponde a tudo aquilo que dita normas, que diz co-mo se é, como se faz, como se vive.

Partindo da ideia da abertura como condição básica do Dasein, é possível, então, pensar ontologicamente o fenômeno do adoecimento e seus impactos na existência humana. Embora não tenha se debruçado amplamente sobre tal questão, Heidegger (2009/1987), em seus Semi-nários de Zollikon lanças luzes que ajudam a refletir sobre o tema, a partir da compreensão do adoecimento como um fenômeno de privação.

3 Cotidianidade mediana refere-se ao modo como o Dasein já se en-contra sempre, numa primeira aproximação e na maioria das vezes, em suas atividades comuns (Heidegger, 2008/1986).

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Considerações Fenomenológico-Hermenêuticas acerca da Somatização na Adolescência: um Estudo de Caso

O médico pergunta a alguém que o procura: qual é o problema? O doente não é sadio. O ser sadio, o estar bem, o encontrar-se bem não estão simplesmente au-sentes, mas perturbados. A doença não é a simples negação da condição psicossomática. A doença é um fenômeno de privação. Toda privação indica a co-per-tinência essencial de algo a quem falta algo, que carece ou necessita de algo. Na medida em que os senhores lidam com a doença, os senhores lidam com a saúde, no sentido de saúde que falta e deve ser novamente recuperada (p. 79).

O que o filósofo quer dizer com isso é que a doença não deve ser entendida simplesmente como ausência de saúde, nem deve ser analisada apenas em seu aspecto bio-lógico. Considerando o Dasein em seu estar-lançado-no- mundo, pode-se compreender o adoecimento como um modo de privação, mas sempre no sentido de privação do seu caráter básico de poder-ser. No adoecimento, então, o Dasein se compreende como estando numa falta de al-ternativas de pode-ser. De acordo com Nogueira (2011):

Essa interpretação rompe em definitivo com a base car-tesiana da medicina moderna em que a enfermidade é entendida a partir de um corpo físico, e analisada através das modificações de seus constituintes anatô-micos, fisiológicos, bioquímicos etc. O corpo e suas mudanças patológicas são apenas uma das inúmeras bases para que o Dasein se compreenda em privação da saúde, sendo sempre essas bases determinadas pe-los modos de ser do Dasein (p. 260).

Para a medicina, se o adoecimento é entendido a par-tir dos órgãos fisiológicos que sinalizam uma patologia, a evidência da saúde, por sua vez, se dá quando não se detecta, por meio de exames, sinais de alterações patoló-gicas nestes órgãos. Considerando apenas o biológico, um homem está vivo à medida que seus os órgãos se mantem em funcionamento. Mas quando se considera o homem em sua totalidade, entende-se que sua vida se dá na dinâ-mica de ser em um mundo do qual não pode se dissociar. Para o Dasein, pode-se dizer de certa maneira que viver é exercer o seu caráter de poder-ser no mundo. A doença, por conseguinte, “é uma perda de liberdade, uma limi-tação da possibilidade de viver” (Heidegger, 2009/1987, p. 198), limitação esta de poder-ser dentro de apenas um modo, de uma única possibilidade.

Seguindo seu olhar crítico em relação às ciências na-turais, Heidegger examina e discorre sobre a questão da psicossomática. De maneira geral, o filósofo acaba por mostrar que este saber, embora trabalhe na tentativa de uma integração/articulação das dimensões psíquica e so-mática, ainda não consegue trazer à tona o que é central no ser humano, porque mesmo integrando-as, ainda con-sidera que há duas dimensões distintas que compõem o homem (Heidegger, 2009/1987; Ribeiro, 2007). Com isso,

assinala a diferença entre corpo material, objeto das ciên-cias naturais, capaz de ser acessado por meio da mensura-ção, e corpo, que, para além do corpo material, coloca-se na abertura do ser-no-mundo, compreendendo-se sempre como corporar. Exemplifica:

Alguém enrubesce de vergonha e embaraço. Pode-se medir o enrubescimento? O enrubescer também não pode ser medido, mas sim, a vermelhidão, por exem-plo, pela medida do fornecimento de sangue. O en-rubescimento é algo psíquico ou somático? Nem um nem outro (Heidegger, 2009/1987, p. 117).

O enrubescimento pode ser compreendido, então, como um corporar, que, é sempre o modo-singular-de- ser-do-homem-no-mundo. Ou seja, o corporar é um exis-tencial que, como os outros, também é marcado pelo ca-ráter de abertura do Dasein do mundo, indicando o hori-zonte existencial no qual ele permanece em uma relação direta com o mundo (Ribeiro, 2007). Sendo a corporeida-dade sempre co-pertecente ao ser-no-mundo, ela também é co-determinante do relacionamento do Dasein com os outros. Desse modo, retomando o fenômeno do enrubes-cimento, por exemplo, o enrubescer é um corporar que mostra um estado de ânimo (vergonha, embaraço) diante dos outros (Heidegger, 2009/1987).

Heidegger (2009/1987), então, situa a linguagem co-mo um fenômeno corporal que se dá essencialmente na relação entre Daseins. “Ouvir e falar, isto é, a linguagem em geral, são sempre também um fenômeno corporal” (p. 133). Mas a linguagem não se apenas limita ao ouvir e o falar, pois há também o dizer. “Falar é sempre sono-ro, mas eu também posso dizer algo sem som, silencio-samente” (p. 124). O próprio enrubescimento pode ser interpretado com um dizer silencioso da vergonha que se sente diante de alguém.

Retomando a noção de adoecimento como um fenôme-no de privação do caráter básico de abertura do Dasein, das suas possibilidades de ser, e o corporar como existen-cial que expressa esse caráter de abertura do Dasein em relação ao mundo por intermédio do corpo, vislumbra-se um caminho para se pensar o fenômeno da somatização a partir da ontologia heideggeriana. Torna-se possível con-ceber a somatização, então, como um adoecimento que se mostra através de um corporar (sintoma) e que indica que o Dasein encontra-se em condição de privação, res-tritiva de seu poder-ser. Assim sendo, é na abertura do ser, por intermédio de um dizer silencioso do corpo, que o Dasein mostra-se de modo privado, evidenciando a fal-ta do exercício da sua condição ontológica de ser sempre um ser de possibilidades.

Por se tratar de um corporar, e não apenas de um sin-toma do corpo material, esse adoecimento somático não pode ser mensurado e tratado nos moldes da objetivida-de médica habitual. Também não deve ser tomado como um fenômeno psíquico, no sentido de algo que se desen-

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rola numa interioridade. Trata-se de considerar qualquer questão relativa ao Dasein, inclusive a somatização, sem-pre em relação à sua existência no modo de ser-no-mun-do-com-os-outros; relação esta que é singular para cada Dasein e, portanto, não generalizável.

3. metodologia

3.1 Desenho do estudo

Trata-se de um estudo fenomenológico-hermenêutico, de caráter qualitativo, caracterizado principalmente pe-lo acesso ao fenômeno da experiência vivida do homem, como aquilo que se mostra em si mesmo, e interpreta-ção do sentido dessa experiência. Nessa metodologia, a linguagem é o instrumento fundamental, pois, conforme Holanda (2006): “na linguagem estão contidos, tanto o questionamento, quanto a sua própria resposta” (p. 368).

Como método de investigação, foi utilizado o estudo de caso único, que, segundo Holanda (2006, p. 367), “re-fere-se à exploração de um sistema delimitado, partindo de uma coleta de dados detalhada, em profundidade, en-volvendo fontes múltiplas de informação”.

A discussão dos resultados foi fundamentada na Feno-menologia-Hermenêutica de Martin Heidegger, à medida que este filósofo deixou aberto um valioso caminho para se pensar as questões relacionadas à existência humana, dentre elas, a saúde e a doença. Ressalta-se, ademais, que esse estudo almeja chegar a uma compreensão ôntico-on-tológica da somatização, baseada na analítica existencial do Dasein desenvolvida por Heidegger.

3.2 Apresentação do caso

Participou desse estudo Bruna (nome fictício), adoles-cente de 15 anos de idade, proveniente de uma cidade do interior do Rio Grande do norte, que realizou acompanha-mento psicológico durante hospitalização em um hospi-tal pediátrico da cidade de Natal-RN, onde permaneceu durante 16 dias, acompanhada de sua mãe.

A paciente, na sua admissão, apresentara um quadro de desnutrição grave e constipação intestinal aguda, con-sequências de uma disfagia, denominada pela mesma co-mo um “entalo na garganta”, que causava incômodo in-tenso e a impossibilitava de se alimentar adequadamente (ingeria apenas alimentos líquidos e pastosos).

Diante da falta de evidências orgânicas e condições médicas que justificassem a sintomatologia apresentada, foi solicitado acompanhamento psicológico e psiquiátrico. O médico psiquiatra levantou a hipótese diagnóstica de um transtorno somatoforme, com manifestações clínicas indicativas de um quadro de globus hytericus.

A paciente recebeu alta com solicitação para segui-mento ambulatorial com a Gastroenterologia, Psiquiatria

e Psicologia. No entanto, ainda durante a hospitalização, relatou o desaparecimento do sintoma do “entalo”, rees-tabelecendo sua alimentação.

3.3 Procedimentos

Utilizou-se dois instrumentos de coleta de dados: um relatório de atendimento psicológico, elaborado a partir do acompanhamento psicológico realizado durante hospita-lização da paciente e no ambulatório após a alta hospi-talar; e um roteiro de entrevista semi-aberto, que partiu da seguinte pergunta disparadora: “Fale sobre sua expe-riência de adoecimento”. Optou-se pela entrevista semi- aberta afim de permitir que Bruna pudesse expressar-se livremente acerca da sua experiência de adoecimento.

Realizou-se uma entrevista com a participante 8 meses após o período de sua hospitalização, sendo conduzida de forma a pontuar no discurso da participante os significa-dos por ela atribuídos à sua experiência de adoecimento e os aspectos existenciais relacionados à sintomatologia que ela apresentou. Tentou-se agendar novos encontros com a participante, que não ocorreram devido à distân-cia entre sua cidade de origem e o local do encontro, e à dificuldade de transporte.

Ressalta-se que durante todo o desenvolvimento do estudo, buscou-se respeitar os princípios éticos que ba-lizam a pesquisa envolvendo seres humanos. O projeto deste estudo foi, por sua vez, submetido ao Comitê de Éti-ca, obtendo aprovação (parecer nº 437.570). O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como o termo de autorização de gravação de voz, foram devidamente lidos e assinados por todos os envolvidos (participante e respon-sável), e a entrevista foi realizada apenas na presença de Bruna e do pesquisador, assegurando a confidencialida-de das informações e o sigilo quanto à sua identificação.

Por fim, a análise dos dados foi baseada nos quatro passos propostos por Amatuzzi (2001), em que, inicial-mente, organiza-se uma síntese dos depoimentos dos par-ticipantes, a partir da organização do que foi dito no fluxo desordenado dos encontros; a seguir, realiza-se uma sis-tematização, identificando e separando as estruturas de sentido reveladas nos relatos; num terceiro momento, es-tabelece-se o diálogo com outros autores e pesquisadores que também investigaram o fenômeno em questão; e, por fim, comunica-se a pesquisa, estabelecendo-se um novo diálogo com os interlocutores que tiverem acesso a ela.

4. Resultados e discussão

Bruna é uma adolescente de 15 anos de idade, habitan-te da zona rural de uma cidade do interior do Rio Gran-de no Norte, estudante do ensino fundamental. Reside em casa própria com os pais, 3 irmãos e 3 irmãs, sendo Bruna a mais velha entre as filhas. Embora no prontuário

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conste, segundo relato da mãe, que o casal possui uma prole de 7 filhos, constatou-se, no decorrer do acompa-nhamento psicológico, a existência de uma oitava filha, nascida antes de Bruna, que, por motivos não relatados, a mãe entregou aos cuidados de um irmão.

De maneira geral, trata-se de uma família com baixo nível socioeconômico. Os pais são agricultores, enquan-to os filhos mais velhos não têm emprego fixo, mas con-tribuem financeiramente com a renda da família quando realizam serviços esporádicos. Além disso, a família é ca-dastrada no Programa Bolsa Família do Governo Federal.

Embora o objetivo desse estudo seja compreender a somatização a partir de seu caráter singular e não genera-lizável, torna-se pertinente realizar alguns apontamentos acerca dos resultados aqui expostos com relação aos dados encontrados na literatura geral. Nesse sentido, observa-se que o fato de Bruna ser adolescente é um dado que vai ao encontro das pesquisas de Moreira et al. (2010) e Tava-res et al. (2010), pois elas apontam a alta prevalência das queixas somáticas em crianças e adolescentes, principal-mente do sexo feminino. Os autores também assinalam, como Fonseca et al. (2008) e Tófoli et al. (2011), uma ta-xa elevada dos casos de somatização nas populações de baixo nível socioeconômico, corroborando, desse modo, outro dado desta pesquisa.

Durante todo o período da hospitalização, bem como nos encontros ambulatoriais e na entrevista, Bruna sem-pre se mostrara muito tímida, apresentando excessiva di-ficuldade de falar a respeito de si própria e de sua vida. Nos dois primeiros atendimentos, realizados ainda no leito, observou-se a presença marcante de sua mãe, que logo que alguém se aproximava, colocava-se ao lado de Bruna e respondia as perguntas dirigidas à filha, enquan-to esta se mantinha em seu resoluto silêncio. Nas visitas realizadas à enfermaria, era comum, inclusive, encontrar Bruna sentada no colo de sua mãe, que se referia à filha como “seu bebê”. Diante disso, os atendimentos psicoló-gicos passaram a ser realizados em sala individual, ape-nas com a presença da paciente, visando propiciar um espaço onde ela pudesse expressar-se livremente acerca de si mesma e do que estava vivenciando.

Foram, então, nesses encontros individuais com a psi-cóloga que Bruna, ainda que com dificuldade e em meio à predominância do silêncio, pôde, pela primeira vez na-quela situação de hospitalização, falar sobre o que estava vivenciando, sobre seu adoecimento, sobre sua vida, sobre si mesma. E as primeiras vivências trazidas por Bruna di-ziam respeito ao que lhe trazia mais sofrimento naquele momento: o seu “entalo”.

Faz um ano que eu comecei a sentir esse entalo, mas no começo, dava e passava. De três meses pra cá não pas-sou mais, e ficou mais forte. Antes eu ainda conseguia comer de tudo, agora só como coisa mole, papa, suco, sopa, tudo batido no liquidificador e peneirado (CA4).

4 Conteúdo de fala contido no relato de atendimento psicológico.

Na entrevista, realizada posteriormente à hospitaliza-ção, Bruna falou a respeito do início do seu adoecimento:

Começou com um negócio na garganta, sem eu poder comer nada. Eu ficava tipo engasgada... Era uma entalo muito forte... Não doía, só incomodava... Quando eu fiquei internada, acho que fazia tipo um ano que eu sentia esse entalo, mas nos últimos meses foi ficando pior e pior. Eu tentava comer e não conseguia, ficava um negócio ruim na garganta, como se eu tivesse en-gasgada com alguma coisa. Aí passei a comer só papa, suco, coisas moles (CE5).

Fui em um monte de médico... e nada de descobrir. Passava injeção, passava exame, mas não adiantava de nada. Foi quando eu tava sentido muita dor no pé da barriga que me encaminharam pra Natal pra ficar internada. Eu já tava com muita prisão de ventre (CE).

Devido a essa alimentação limitada, Bruna desenvol-veu um quadro de desnutrição grave e constipação intes-tinal aguda, precisando ser hospitalizada para tratamento médico e investigação diagnóstica. Os exames gastroin-testinais realizados evidenciaram um quadro de gastrite moderada, mas nada que explicasse a ocorrência do “en-talo”. Como a mãe de Bruna relatou à equipe médica que o início do quadro havia coincidido com um término de namoro por decisão dos pais, esta solicitou avaliação psi-cológica e psiquiátrica.

Em sua avaliação, o psiquiatra levantou a hipótese diagnóstica de um quadro de transtorno somatoforme, provavelmente baseado no CID-10, com manifestação clínica de um sintoma denominado globus hystericus. Se-gundo o próprio CID-10 (Organização Mundial de Saúde de Genebra, 1993), a principal característica desse trans-torno é a presença repetida de sintomas físicos, ainda que os médicos nada encontrem de anormal e constatem que os sintomas não têm nenhuma base orgânica. Então, não é possível uma explicação médica para os sintomas, bem como, consequentemente, um alívio para o sofrimento e as preocupações do sujeito doente pela via do saber médico.

Com relação ao globus hystericus, Kahrilas e Smout (2012) afirmam tratar-se da “percepção de um nódulo ou plenitude na garganta sentidos independentemente da de-glutição” (p. 12), que ocorre muitas vezes no cenário de distúrbios de ansiedade ou em obsessivos-compulsivos, o que se leva a inferir a relação do globus hystericus com questões psicológicas. Entretanto, se por um lado, esse da-do vai ao encontro da literatura, que pontua os sintomas gastrointestinais como um dos mais comumente apresen-tados por crianças e adolescentes na somatização (Morei-ra et al., 2010), por outro, a definição de globus hystericus não se encaixa precisamente no quadro da paciente, pois ela apresentou uma dificuldade de deglutição associada

5 Conteúdo de fala contido na transcrição da entrevista.

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Luanny T. B.; Ana K. S. A. & Luciana C. B. de O.

ao entalo referido, e segundo Kahrilas e Smout (2012), a sensação de globus hystericus se dá independentemente da deglutição, como afirmado acima.

Tomando como base as reflexões de Heidegger (2009/1987), é possível compreender ontologicamente o adoecimento de Bruna como um fenômeno de privação do seu caráter essencial de poder-ser no mundo; ou seja, na condição de doente, Bruna vivenciou uma limitação de suas possibilidades de ser. Ao plano ôntico, Nogueira (2011) denomina a privação de saúde de “padecimento”, palavra que destaca a tonalidade afetiva (disposição) do Dasein na privação sob a forma de um sofrimento, de um mal-estar. Observou-se no discurso de Bruna esse sofri-mento causado pela sua condição de estar-doente:

Esse entalo é horrível, eu não aguento mais. Quero muito que isso saia da minha vida. Antes dele apare-cer, eu era alegre, saía, me divertia. Agora eu não tenho mais nem vontade de passear. Minhas primas dizem que tô muito chata. E eu tô mesmo (CA).

Dessa maneira, Bruna, devido ao entalo que sentia, foi gradativamente adoecendo e, por conseguinte, se privan-do das coisas que fazia em sua cotidianidade mediana: da incapacidade de se alimentar à impossibilidade de sair, de se divertir, de estar-com-os-outros.

O entalo era ruim demais. Eu não podia fazer as coi-sas que eu queria... Não podia comer nada do que eu queria, nem confeito, nem chocolate, pipoca, eu não comia nada disso... Mãe mandava eu comer arroz, fei-jão, carne, mas eu não conseguia (CE).

Faz um tempão que não saio com minhas primas, que não vou na lan house, que não ando de bicicleta, que não consigo mais fazer essas coisas que eu gosto... Porque sinto fraqueza demais, e não dá vontade de fazer nada (CA).

Sobre isso, Nogueira (2011) aponta que as restrições às possibilidades de ser do Dasein tomam a forma da impotência, comunicados em formas similares as que se evidenciaram na fala de Bruna: “não posso mais fazer...; não posso mais me divertir com...; não mais suporto; ti-ve de deixar de...” (p. 265). Nota-se, tanto nesse trecho, como nas falas de Bruna, que a privação do poder-ser é sempre referida ao ser-no-mundo, ou seja, aponta para uma deficiência, uma carência que se dá na relação Da-sein-mundo.

É possível interpretar fenomenologicamente o “en-talo” de Bruna como um fenômeno do corpo, como um corporar, que, retomando a revisão teórica deste trabalho, compreende-se como linguagem, como um dizer. Este di-zer, por sua vez, indica que, mesmo numa condição de privação de possibilidades, a abertura do ser do Dasein ainda opera, abrindo-se e mostrando por meio do corpo

sua carência de exercer seu poder-ser. Nesse sentido, Bru-na, não conseguindo dizer verbalmente, disse por outra via do corpo, que se encontrava incapacitada de exercer plenamente sua liberdade existencial.

Como já situado, a privação do poder-ser de Bruna indica uma carência que se dá na relação dasein-mundo, especialmente, no seu ser-com-os-outros. Em vários mo-mentos dos encontros com Bruna, observou-se a presen-ça dos outros em sua fala.

Os meninos mexiam comigo, chamavam eu de Olivia Palito. Minhas amigas e minhas primas diziam que eu tava chata, e eu tava mesmo. Eu não saía, minha mãe não deixava, ficava preocupada, aí eu não tinha von-tade de sair... (CE)

Todo mundo dizia que eu tava muito magra, roupa ne-nhuma prestava em mim. Fui pra praia uma vez com minha família no ano novo, e fiquei com vergonha de tomar banho no mar, nem aproveitei (CE)

Minha mãe diz que eu sou muito nervosa. E eu acho que sou mesmo. Quanto tô nervosa, sinto minhas mãos e meus pés gelados. Dá uma agonia no coração (CA).

Tenho vontade de ser modelo. Já desfilei na cidade e na escola e todo mundo diz que eu tenho jeito. Minha prima diz que ser modelo é bom, porque fica famosa, anda de carro, tira fotos (CA).

Diante dessas falas, nota-se uma grande importância que a opinião das outras pessoas tem para Bruna, que, inclusive, deixou de vivenciar certas situações por so-licitação ou por vergonha dos outros. Percebe-se que a opinião “de todo mundo” tinha peso até mesmo quando se tratava de seus desejos e planos futuros. Em seu falar, Bruna evidenciou sua decadência no modo impessoal de ser-com-os-outros-no-mundo.

Na cotidianidade mediana, sendo-com-os-outros, o Dasein fatalmente já se encontra no âmbito da impes-soalidade, dissolvido na convivência com os outros, e afastado de seu existir singular, em prol do público, do “todo mundo” (Heidegger, 2008/1986). Assim, perdida em sua impessoalidade, Bruna é levada a agir de acor-do com o que dizem ser certo ou errado, e toma como sendo sua a fala das outras pessoas, delegando a outrem sua existência.

Ainda com relação à impessoalidade de Bruna, há um fato em especial que chamou atenção durante todo o acompanhamento psicológico: a relação dela com sua mãe. Já foi dito acima que, nos primeiros encontros com Bruna, era a mãe quem respondia as perguntas dirigidas à filha, além de constantemente colocá-la no colo, e chamá--la de “meu bebê”. Na entrevista, questionada a respeito desse seu silêncio na presença da mãe, Bruna respondeu com a seguinte frase: “porque ela fala por mim” [sic]. Foi

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possível observar muitas situações que se configuraram como decisão ou vontade da mãe, mas que Bruna relatara como sendo também decisão ou vontade sua: o término do namoro, a falta de vontade de sair de casa na época do adoecimento, entre outras.

Eu tava namorando o Pedro (nome fictício). No dia que fui internada, fazia poucos meses que tinha aca-bado. Era um termina e volta, aí acabou de vez. Mãe disse pra mim que era melhor acabar logo de uma vez, porque tinha que pensar na minha saúde e nos meus estudos (CE).

Eu gostava dele, era bom. Mas foi melhor terminar porque tava muito enrolado. Não queria ter termina-do, mas foi melhor assim (CE).

Nesse sentido, pode-se compreender que entre Bruna e sua mãe, nos modos da convivência cotidiana, foi se es-tabelecendo uma relação de preocupação que Heidegger (2008/1986) designa como dominadora e substitutiva. Ne-la, a mãe retirou de Bruna seu “cuidado”, tomando dela a responsabilidade por seu ser e tornando-a dependente. Heidegger chega a afirmar ainda que nesse modo de pre-ocupação, “o outro pode tornar-se dependente e domina-do mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça encoberto” (p. 178).

Esse modo de preocupação é umas das suas duas pos-sibilidades extremas (fora elas, existem outras infinitas variações possíveis). A outra possibilidade extrema de preocupação é a preocupação antepositiva e liberadora, em que um Dasein se antecipa ao outro não para lhe do-minar, mas para liberá-lo em seu “cuidado”, em sua liber-dade para assumir propriamente seu poder-ser no mundo (Heidegger, 2008/1986).

Em suma, Bruna deixou-se dominar pela alienação e pela acomodação, abrindo mão de suas possibilidades de ser para se fechar em um “si-mesmo” determinado pelos outros (principalmente pela mãe), perdendo-se do seu ser--si-mesmo mais próprio. Esse modo de ser no impessoal revela algo como uma fuga do Dasein de si mesmo. Dessa maneira, “é justamente daquilo que ‘foge’ que o Dasein corre atrás. Somente à medida que, através de sua abertu-ra constitutiva, o Dasein se coloca essencialmente diante de si mesmo é que ele pode fugir de si mesmo” (Heideg-ger, 2008/1986, p. 251).

O adoecimento de Bruna é, pois, um sinal de extra-vasamento, de um excesso de impessoalidade. De tanto fugir de si mesma e se deixar dominar pelos outros, o adoecimento mostra que ela própria não suportava mais essa condição de privação, como ela evidenciou em sua fala: “eu não aguento mais... quero muito que isso saía da minha vida” [sic]. Seu “entalo”, muitas vezes relata-do como um engasgo, possivelmente dizia do seu engas-go diante de tantas opiniões e decisões sobre ela própria. Bruna não conseguia falar, não conseguia comer, pois ela

estava cheia das outras pessoas. O silêncio que marcou o início dos encontros era, pois, o silêncio de alguém que, por ter se entregado ao domínio de outrem, nada sabia e nada conseguia dizer ao seu próprio respeito, o que apa-receu recorrentemente nos atendimentos clínicos através da seguinte fala: “eu não sei falar de mim” [sic].

Esse movimento na direção do impessoal é possível justamente pelo Dasein já e desde sempre estar em jogo com o seu ser na abertura e, por isso, pode a cada mo-mento operar uma escolha: perder-se ou ganhar-se ao as-sumir propriamente suas possibilidades, seu poder-ser mais próprio.

Quando o Dasein descobre o mundo e o aproxima de si, quando abre para si mesmo seu próprio ser, este descobrimento de ‘mundo’ e esta abertura do Dasein se cumprem e realizam uma eliminação das obstru-ções, encobrimentos, obscurecimentos, como um rom-per das distorções em que o Dasein se tranca contra si mesmo (Heidegger, 2008/1986, p. 187).

É exatamente este rompimento que é possível na re-lação de preocupação liberadora. É nesta posição que o psicólogo deve estar para que propicie, pela fala, uma ex-pressão de abertura em que o paciente possa escutar seu poder-ser-si-mesmo mais próprio e exercer sua existên-cia autenticamente.

Isso acontece a partir do que Heidegger (2008/1986) chama de clamor6 da consciência, momento de apropria-ção no qual o Dasein é atravessado por uma interpela-ção, que afasta a impessoalidade e o convoca a assumir o seu poder ser-mais próprio. O clamor, é sem palavras, é silencioso e, em sua maioria, não é escutado pelo Da-sein, pois “justamente não é e nunca pode ser algo pla-nejado, preparado ou voluntariamente cumprido por nós mesmos” (p. 354). Então, não é algo com que o pacien-te possa operar, como uma potência sua, ou mesmo que ele possa ter acesso tematicamente, no sentido de sim-plesmente querer isso, mas que ocorre e pode manifestar seus efeitos por uma mudança de atitude e, consequen-temente, de fala.

A mudança pode ser despertada no trabalho psico-lógico, e quanto a Bruna, nota-se uma mudança signifi-cativa no seu existir enquanto ser-no-mundo e ser-com- os-outros:

Eu me sinto muito melhor. Hoje eu posso sair, posso tomar banho na praia (CE).

Agora eu tenho saído muito, com minha irmã, minhas primas, minhas amigas... A gente vai pra um monte de lugar (CE).

6 Traduzido na obra utilizada como “apelo” (Heidegger, 2008/1986). Aqui, optar-se-á pela expressão “clamor”.

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Gabriel T. de M. & F. de A. S.

Eu achava que eu queria ser modelo, mas eu não que-ro mais. Ser modelo é muito ruim, viaja muito, fica longe da família. Também tem que ser muito magra, e eu gosto de como eu tô agora, quero encher mais (CE).

Além disso, e aliado a essa mudança – uma vez que na abertura compreensiva aqui proposta do Dasein em sua totalidade, pôde-se abrir o sintoma físico ao aspecto existencial manifesto no corporar como fala –, há o desa-parecimento do sintoma, que ocorreu quando a mesma ainda estava hospitalizada. Na entrevista, ela precisou o momento em que se deu conta de que não era mais aco-metida pelo “entalo”.

Um dia, minha mãe disse que se eu comesse, ela ia mandar bota aparelho no meu dente, mas mesmo as-sim, eu não consegui comer. Aí um outro dia, naque-le dia que falei com tu, minha tia chegou lá, foi pegar comida e mandou eu comer. Minha mãe apostou co-migo como eu não comia, aí eu peguei e comi (...) Não senti nada não, a comida desceu (CE).

Nota-se no relato o momento repentino com que se deu a supressão do “entalo”, bem como a posição da mãe na situação, que, se em relatos anteriores mostrava-se como uma presença dominadora que tirava de Bruna seu “cuidado”, neste, aparece como alguém que Bruna desafia, ao assumir uma escolha que se contrapôs à fa-la da mãe.

Bruna refere-se ao acompanhamento psicológico como uma experiência positiva para ela, que apesar de toda a dificuldade que tinha para falar, e do incômodo que lhe causava os minutos de silêncio nas sessões, viu no espa-ço psicoterapêutico uma oportunidade para se expressar, para desabafar.

Eu conversava contigo... E era bom conversar, desaba-far. Logo quando cheguei, fiquei com medo de fazer as lavagens, e tu foi lá conversar com eu. Quando fiz o exame da garganta também (CE).

Obviamente, não foi sem sofrimento que se desenro-lou o trabalho psicológico de Bruna, mas propiciou a ela, partir do movimento de abertura ao ser, a significação da sua vivência de adoecimento, uma mudança de posição com relação ao seu modo de ser-no-mundo-com-os-outros.

Nogueira (2011), ao alicerça-se as reflexões heidegge-rianas, utiliza a expressão “reatamento” para designar o momento em que o Dasein emerge de sua submissão ao impessoal, reparando sua falta de escolha. Afirma que esse caminho se dá alicerçado em diversos constituin-tes existenciais, dentre eles, o clamor da consciência, já mencionado anteriormente. Nesse sentido, é possível compreender o momento da “decisão de comer” como um reatamento, um encontro de Bruna novamente com seu si-mesmo próprio.

Portanto, compreende-se a relevância do contexto psicoterapêutico no favorecimento do encontro de Bru-na consigo mesma, à medida que se disponibilizou um espaço em que ela pode voltar-se para a sua existência e falar de seu sofrimento (expresso na forma de um corpo-rar), reconhecendo e significando-o. Encontrando guari-da na relação de cuidado estabelecida com a psicóloga, que lhe acompanhou e se dispôs a escutá-la na abertura de seu ser, Bruna, a partir daquele momento da decisão de comer, conseguiu romper com a impessoalidade e as-sumir seu ser-si-próprio, refazendo-se, naquele instante, em sua totalidade existencial.

Considerações finais

Retomando as discussões elaboradas no desenrolar desta pesquisa, é possível concluir, de modo geral, que a somatização configura-se como um campo controverso e obscuro dentro da ciência médica, refletindo diversas incongruências teóricas. Entretanto, é reconhecida a exis-tência e a importância das generalizações e delimitações objetivas, a partir das quais se torna possível sistematizar dados, definir critérios diagnósticos e intervenções tera-pêuticas, bem como estabelecer resultados de prevalên-cia na população.

Por outro lado, é necessário que se construam novas perspectivas que propiciem uma compreensão mais am-pla e complexa acerca da somatização. Nesse sentido, es-te artigo propôs uma compreensão desse fenômeno à luz da Fenomenologia-Hermenêutica de Martin Heidegger, filósofo que traz em sua ontologia uma desconstrução e reconstrução das concepções de homem e mundo da tradição, nas quais está enraizado todo o conhecimento ôntico. Ele desenvolve uma analítica da existência hu-mana e do seu mundo, tendo como questão norteadora o sentido do ser.

A partir das reflexões que partiram da experiência da participante e da ontologia heideggeriana, pode-se com-preender que a somatização, para além de uma doença do corpo material, ou de um problema psíquico, deve ser analisada existencialmente com um modo de priva-ção do caráter fundamental de poder-ser do Dasein, co-mo uma carência que sempre se dá em relação ao seu modo de ser-no-mundo-com-os-outros. Nesse sentido, o adoecimento somático constitui uma experiência sin-gular para cada Dasein que a vivencia. Entendemos que oferecer esse olhar para a queixa que ali se apresenta é de grande contribuição para compreender o sofrimento humano, que nesta forma de comunicação, não encon-tra nomeação nos protocolos médicos e de saúde. Este sofrimento, expresso no corporar, reflete a caminhada existencial, o modo-de-ser-no-mundo de cada sujeito, indivíduo, Dasein.

Diante de tal singularidade, percebe-se que as técni-cas interventivas pautadas no objetivismo e determinis-

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Fenomenologia da Percepção Extracorpórea – Análise de Experiências Fora do Corpo

mo não dão conta de abarcar um fenômeno que remete à complexidade do existir humano. Isso reflete, por sua vez, na importância do processo psicoterapêutico, à me-dida que nele configura-se essencialmente um espaço de fala e escuta, ou seja, um espaço de abertura ao ser. Como exemplo, retoma-se a experiência de Bruna, que a partir do reconhecimento de seu sofrimento, expresso na forma de sintoma, pode se ouvir e voltar-se para a sua existên-cia, favorecendo ao encontro do sentido de si. Ressalta-se que o desaparecimento do sintoma se deu em um contex-to psicoterapêutico.

Além da compreensão sobre o fenômeno da somati-zação aqui desenvolvida, observa-se que as reflexões de Heidegger podem trazer inúmeras contribuições ao campo da saúde. Embora atualmente preconize um modelo que considera os aspectos biopsicossociais do indivíduo, es-te campo ainda capenga na predominância do paradigma biomédico, refletindo a dificuldade por parte dos profis-sionais em lidar com os aspectos subjetivos do paciente, que, por conseguinte, resulta em práticas “desumaniza-das” e “reducionistas”.

Sabe-se, entretanto, que não se configura como fácil a tarefa de apropriar-se da ontologia fundamental do fi-lósofo, dada sua extensão e complexidade. Por outro la-do, acredita-se que, embora trabalhosa e angustiante, esta empreitada se constitui em uma verdadeira jornada pa-ra a compreensão de nossa existência, e abre um campo incrivelmente vasto para a reflexão, o questionamento e a construção de novos conhecimentos, inclusive para as ciências exatas, à medida que já se conhece suas compe-tências e limitações.

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Ana Karina Silva Azevedo - Graduada em Psicologia, com Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atual-mente é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

luciana Carla Barbosa de oliveira - Possui graduação em Psicologia, com Especialização em Psicologia da Saúde: Desenvolvimento e Hospi-talização e Doutorado em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Docente do curso de Psicologia do Centro de Ensino FACEX - UNIFACEX. Tutora e Preceptora da Residência Integra-da Multiprofissional em Saúde na Atenção à Criança e da Residência Integrada Multiprofissional em UTI no Núcleo de Saber em Psicologia - HUOL/UFRN. Psicóloga Hospitalar do HUOL/UFRN. Endereço insti-tucional: Hospital Universitário Onofre Lopes (HUOL/UFRN). Av. Nilo Peçanha, 620 - Petrópolis. CEP: 59.012-300. Natal/RN.

Recebido em 11.03.2014Primeira Decisão Editorial de 23.08.2014

Segunda Decisão em 22.03.2015Aceito em 27.04.2015

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Fenomenologia da Percepção Extracorpórea – Análise de Experiências Fora do Corpo

fenomenologiA dA PeRcePção extRAcoRPóReA – AnáliSe de exPeRiênciAS foRA do coRPo

Phenomenology of Extracorporeal Perception – Analysis of Out-of-Body Experiences

Fenomenología de la Percepción Extracorpórea: Análisis de Experiencias Fuera del Cuerpo

GaBrieL teixeira De MeDeiroS

FernanDo De aLMeiDa SiLveira

resumo: Diversos autores apontam conceitos e etiologias para o fenômeno de Experiências Fora do Corpo (EFC). O presente arti-go objetivou descrever e analisar as EFC a partir da experiência do vivido, elencando diferentes experiências denominadas EFC, comparando-as entre si e com o conceito científico de EFC, e investigando os sentidos dados a estas, bem como seu papel na vida cotidiana daqueles que alegam praticá-las, de modo a explorar as variedades de experiências rotuladas como EFC. Treze sujeitos foram entrevistados quanto a suas experiências, crenças e a consequência das EFC em suas vidas. Utilizou-se a análise de conte-údo, adotando Merleau-Ponty como principal referencial teórico para a interpretação dos dados. Os relatos de EFC foram dividi-dos em dois grupos: aqueles que têm convicção da natureza espiritual destas – e que, assim, relataram experiências com presença de seres espirituais que os auxiliaram – e aqueles ressabiados de suas percepções – que se mantiveram céticos e, quando em EFC, permaneceram nos cômodos onde estavam fisicamente. Contudo, em ambos os casos, a experiência possuía um papel importante no entendimento e no modo de ser no mundo de tais sujeitos, sendo utilizada como coping para questões desde doenças crônicas, com risco de morte; ao desinteresse pela vida.palavras-chave: Fenomenologia; Corpo; Parapsicologia; Religião e psicologia.

Abstract: Several authors point out concepts and causes for the phenomenon of Out of Body Experiences (OBE). This article aimed to describe and analyze the OBE from the experience of the lived, listing different experiences called EFC, comparing them with each other and with the scientific concept of OBE, and investigating the meanings given to them, and their role in everyday life of those who claim to practice them in order to explore the variety of experiences named as OBE. Thirteen people were inter-viewed about their experiences, beliefs and consequence of OBE in their lives. We used content analysis, adopting Merleau-Ponty as the main theoretical framework for the interpretation of data. Reports of OBE were divided into two groups: those who have be-lief in the spiritual nature of such experiences – and thus reported experiences with the presence of spiritual beings who helped them – and those distrustful of their perceptions – who were skeptical and when in OBE, remained in the rooms where they were physically. However, in both cases, the experience had an important role in the understanding and being in the world of the ex-perient, and is used as coping for questions from chronic diseases; life-threatening; to the lack of interest in life.Keywords: Phenomenology; Body; Parapsychology; Religion and psychology.

resumen: Varios autores señalan conceptos y las causas del fenómeno de Experiencias fuera del cuerpo (EFC). Este artículo tiene como objetivo describir y analizar el EFC de la experiencia de lo vivido, enumerando las diferentes experiencias llamadas EFC, comparándolos entre sí y con el concepto científico de EFC, y la investigación de los significados que se les da, así como su papel en la vida cotidiana de aquellos que dicen practicarlas; con el fin de explorar la variedad de experiencias etiquetadas como EFC. Fueron entrevistados trece sujetos acerca de sus experiencias, creencias y consecuencia de la EFC. Se utilizó el análisis de conte-nido, la adopción de Merleau-Ponty como el principal marco teórico para la interpretación de los datos. Informes de EFC se divi-dieron en dos grupos: aquellos que tienen fe en la naturaleza espiritual de estos – y por lo tanto las experiencias reportadas con la presencia de los seres espirituales que les ayudaron – y los que desconfían de su percepción – que eran escépticos y cuando en EFC, se quedaron en las habitaciones donde estaban físicamente. Sin embargo, en ambos casos, la experiencia tuvo un papel im-portante en la comprensión y ser en el mundo de tales sujetos, siendo utilizados como un afrontamiento para las cuestiones de las enfermedades crónicas, el riesgo de muerte; la falta de interés en la vida.palabras clave: Fenomenología; Cuerpo; Parasicología; Religión e psicología.

introdução

O fenômeno de Experiência Fora do Corpo (EFC) refere--se à faculdade de toda percepção e/ou atuação além corpó-rea, ou aos estados alterados de consciência. Tais estados seriam inerentes aos seres humanos (Irwin, 1985) por meio do sono, meditação profunda, experiências de quase-morte

(EQM), traumas, estimulação elétrica do giro angular direi-to do cérebro, ilusões de óptica controladas, etc. (Blanke & Arzy, 2005). A EFC é definida por Blackmore (1982) como “uma experiência na qual a pessoa parece perceber o mun-do a partir de um local fora de seu corpo físico”.

O estudo acerca das experiências fora do corpo toma forma no final do século XIX, e desde então, diversas fo-

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que as EFC são um modelo da realidade criada pelo orga-nismo interno, usando recursos cognitivos quando os mo-delos dependentes na entrada sensorial foram interrompi-dos, de modo a retomar o controle sobre o meio externo.

Harvey J. Irwin (1985), por sua vez, enfatizou os pro-cessos cognitivos e de atenção como resposta para tal questão. Para ele, a EFC poderia ser patológica e relacio-nada com dissociação, ou não patológica, relacionada à absorção psicológica e propensão à fantasia. Seu modelo apresenta similaridades com o modelo de despersonali-zação de Whitlock (1978) e o modelo de dissociação em Spiegel & Cardeña (1991).

Modelos cerebrais foram propostos, contudo, estes apresentavam locais de atividades cerebrais divergentes que se propunham responsáveis por tais fenômenos. Pen-field (1958) localiza a “EFC” no córtex temporal, enquanto Blanke et al. (2002) apontam atividade no giro angular di-reito, e De Ridder, Van Laere, Dupon, Menovsky & Van de Heyning (2007), sugerem estimulações parieto-temporais em pacientes com zumbido incurável como origem das referidas experiências. O modelo hemisférico de Persin-ger (1999), por sua vez, considera que uma alteração na percepção do self, devido a uma ativação do hemisfério esquerdo do cérebro, acompanhada de uma súbita desa-tivação do hemisfério direito, possa gerar fenômenos de EFC ou déjà-vu; enquanto Wettach (2000) atribui a sen-sação de flutuar à atividade do mesencéfalo desacompa-nhada de uma orientação espacial normalmente forneci-da por outras partes do sistema nervoso.

Tais resultados apresentam correlações positivas entre EFC e a incidência de estados alterados de consciência, estados dissociativos, capacidade de absorção, propensão à fantasia, bem como uma grande frequência em recordar sonhos comuns, experienciar sonhos lúcidos, apresentar sonhos vívidos, intensos e coloridos, vivenciar experiên-cias místicas e experiências psíquicas.

Outra importante contribuição para o estudo das expe-riências fora do corpo foi proveniente das publicações do místico, filósofo, matemático e músico sul-africano Micha-el Whiteman (1980; 2006), que publicou cerca de 10.000 relatos de EFCs deliberadamente induzidas, contribuin-do para a variedade de componentes místicos relativos à experiência supracitada, relevando as diferenças de per-cepção durante a experiência, enquanto experiências se-parativas ainda dentro do corpo; simultaneamente dentro e fora do corpo e àquelas situadas apenas fora do corpo.

O momento atual tem uma maior frequência de con-ceitos e pesquisas empíricas e, consequentemente, um aumento na publicação sobre EFC em parapsicologia e em revistas científicas de outras disciplinas. Este último desenvolvimento aponta para o despertar de um interesse de outras disciplinas sobre o tema, permitindo uma maior discussão e um maior entendimento do fenômeno, a par-tir de uma investigação interdisciplinar. Contudo, poucas foram as pesquisas que se focaram no caráter qualitativo de tais experiências.

ram as abordagens ao tema. Os conceitos de espírito, do-bro ou corpo sutil, como objeto que se desloca do corpo físico, foram utilizados como explicações de tais fenôme-nos por pesquisadores como Ernesto Bozzano e Frederic W. H. Myers, em sua obra inacabada e publicada postu-mamente, Human Personality and Its Survival of Bodily Death. Já em sua primeira página, Myers aponta a questão da existência de alma imortal ou de algum elemento da personalidade que possa sobreviver à morte física como a questão mais importante da humanidade. Embora na obra supracitada, o autor tenha considerado a maioria das manifestações mediúnicas oriundas do próprio médium, houve casos em que esta explicação não se mostrava su-ficiente. Nestes, Myers considerava como hipóteses mais plausíveis a telepatia e a comunicação de uma mente já desencarnada (Myers, 1903).

Em contraponto às ideias de dobro ou corpo sutil en-contram-se outros pesquisadores e membros da Society for Psychical Research (SPR) – da qual Myers fazia par-te – como Edmund Gurney, Podmore, Mrs. Sidgwick e Charles Richet, que consideraram tais fenômenos como alucinações ou meros sonhos. Hyslop (Alvarado, 1989), por sua vez, aceitou o componente extrassensório da ex-periência, mas atribuiu a sensação de EFC à tendência da mente subconsciente para dramatizar imagens de lo-calidade que dão a impressão de que o evento se dava em uma diferente localização física.

Outros estudos, como é o caso dos de Charles Quartier (Osty, 1930), Penfield (1958) e, posteriormente Blanke, Or-tigue, Landis e Seeck (2002), possuíam caráter psicofisio-lógico, atribuindo causalidade a estimulações cerebrais e estímulos físicos externos. Charles T. Tart (1968, 1976), por sua vez, inaugura uma era de estudos mais sofistica-dos, a partir do uso de EEG, no qual buscava avaliar as EFC de alguns sujeitos específicos que alegavam ter per-cepção extrassensorial durante suas EFCs.

As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por uma quantidade de pesquisas e de construções teóricas sem precedentes, com predomínio da abordagem psicológica em ambos os desenvolvimentos, conceitual e de pesqui-sa. Além disso, a primeira teoria EFC psicológica com previsões claramente testáveis foi apresentada. Resistem ideias de projeção de corpos sutis ou outros aspectos da personalidade como defendidas anteriormente por Myers e Bozzano, mas ainda em minoria. Esta também é a época em que são propostas as teorias psicológicas de Palmer; Blachmore e Irwin, sendo consideradas as ideias mais importantes do período.

Diversas teorias foram tecidas sobre os fenômenos de EFC. Tais hipóteses variam de alucinações a modelos psi-cológicos, chegando até a visão espírita e/ou espiritualis-ta. Segundo John Palmer (1978), a EFC constitui-se como resposta a uma mudança da imagem corporal, causando uma ameaça à identidade individual, resolvida por meio de fantasias ou alucinações que teriam como intuito res-tabelecer a noção de self. Susan Blackmore (1984) sugere

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Fenomenologia da Percepção Extracorpórea – Análise de Experiências Fora do Corpo

Outrossim, diversas pesquisas relativas às EFCs uti-lizaram apenas uma questão, baseada na questão de Pal-mer: Você já teve alguma experiência em que você sentiu como se se deslocasse “para fora” ou “para longe” de seu corpo, isto é, sentiu que sua consciência ou que sua men-te estava em algum lugar diferente de seu corpo físico. Se estiver em dúvida se teve ou não esse tipo de experiência, por favor, responda “não”. Tal tipo de questão dificulta que respostas positivas apareçam quando há duas localidades para a consciência (dentro e fora do corpo) ou experiên-cias que, embora ainda dentro do corpo, a pessoa sinta-se parcialmente fora do corpo, como no caso de algumas experiências descritas por Whiteman (2006).

Em contraponto, Alvarado (2004) afirma que a utiliza-ção de uma única questão de caráter dicotômico (sim ou não) impõe aos estudos uma carência de um relato qua-litativo da experiência e permite uma superestimação da prevalência de tal fenômeno. Assim, o autor afirma exis-tir evidências de queda na prevalência de EFC quando os pesquisadores aprofundam as questões, indo além dos questionários de múltipla escolha. Alvarado (2004) ain-da chama atenção para a ambiguidade existente entre a EFC, sonhos e sonhos lúcidos, entre outras experiências anômalas; relevando as diferenças entre os sujeitos que tem uma sensação de estar localizados fora do corpo, da-queles em que tal separação não é clara. Assim, o autor aponta para a necessidade da inclusão da exteriorização do lócus de percepção, a fim de evitar tais ambiguidades.

Esta mesma tentativa de restringir o conceito de EFC, no intuito de minimizar os falsos positivos referentes à experiência foi defendida por Charles Tart (1975), que ar-gumentou que a experiência deve ser real, de modo que a “consciência pareça completamente clara e normal” (p. 149). No entanto, tal definição ainda é bastante res-tritiva e subjetiva, de modo que as noções de “normal” ou “claro” não sejam igualmente partilhadas pelos pes-quisadores, ou ainda, entre pesquisador e entrevistado.

Em face de tais questões, Neppe (2011) defende que o uso de uma única questão é insuficiente para o estudo das EFC. Ele ainda considera a existência de diferentes epi-fenômenos nomeados como experiências extracorpóreas, os quais possuem características fenomenológicas e etio-logias distintas. Deste modo, releva a importância de en-tender as diversas formas de EFC e os diversos fenômenos a ela relacionados, a fim de entender suas diferenças e a adaptar os achados científicos a cada fenômeno específico.

O presente artigo visa o conteúdo do fenômeno en-quanto experiência do vivido, de modo a explorar as va-riedades das experiências denominadas EFC, tendo como aporte teórico a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Merleau-Ponty (1942/2006) não conceberia a divisão entre psíquico e somático, pois não se trata de fatores exteriores um ao outro, mas o segundo integrando o primeiro: “(...) longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo” (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 149).

Tal corpo implica o agenciamento das qualidades per-ceptivas da consciência, o que pressupõe a indissociabili-dade entre faculdades sensíveis e intelectuais. Admitir a experiência intelectual fora do corpo, segundo a fenome-nologia de Merleau-Ponty, seria incorrer no mesmo equí-voco cartesiano. A consciência perceptiva evoca num ato unívoco sensibilidade e reflexão, transformando o corpo em instrumento cognoscente. Desse modo, a experiência fora do corpo demanda um corpo para existir, pois ape-nas dele pode brotar a percepção:

Antes da ciência do corpo – que implica a relação com outrem –, a experiência de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce em qualquer outro lugar, mas emerge no recesso de um corpo (Merleau-Ponty, 2003, p. 21).

Contudo, a partir da fenomenologia a questão não é a veracidade da percepção, mas ao contrário, considerar que “o mundo é aquilo que nós percebemos” (Merleau- Ponty, 1945/2006, p. 13-14). A fenomenologia, portanto, é o estudo das essências e trata de descrever os fenôme-nos, não de explicá-los ou analisá-los, pois tal “explicação não é descoberta mas inventada, ela nunca é dada com o fato, é sempre uma interpretação provável” (p. 165), “e tudo o que vivemos ou pensamos sempre tem vários sen-tidos” (p. 233). Ademais, no intuito de explorar a gama de fenômenos nomeados EFC, este estudo não se foca na questão ontológica ou etiológica da experiência fora do corpo, mas na experiência percebida de tal fenômeno e no sentido a esta atribuída.

Pois, como aponta Merleau-Ponty, o homem interior não existe, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Dessa forma, seja o fenômeno anômalo um fenômeno real ou apenas uma experiência subjetiva, en-quanto vivido, confere ao ser aquilo com o que este se configurará diante do mundo. “O mundo fenomenológi-co não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas assim como a arte, é a realização de uma verdade” (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 19).

1. objetivos

Descrever as experiências denominadas EFC por aque-les que alegam praticá-las, descrevendo o sentido dado à experiência e seu papel social na vida do sujeito; identifi-car padrões de relato e estruturas de significação na EFC; e contrastar a denominação científica de EFC e as experi-ências apresentadas pelos sujeitos que alegam praticá-las.

2. metodologia

Uma abordagem qualitativa foi utilizada, por meio de entrevistas semiestruturadas. O número total de partici-

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pantes não foi decido a priori, mas determinado ao longo da coleta de dados, por meio do critério de saturação (Pat-ton, 1990). Treze pessoas que alegaram ter passado por, ao menos uma EFC, foram entrevistadas. A seleção dos sujeitos foi aleatória, tendo como critérios de exclusão: a) possuir um diagnóstico psiquiátrico de psicose – este obtido por meio de uma questão única e direta ao entre-vistado; b) ter vivenciado a EFC sob efeito de algum com-posto alucinógeno; e, c) possuir idade inferior a 18 anos. A metodologia escolhida para acessar tais sujeitos foi a bola de neve (snowball ou chain sampling), tal método consiste na identificação de sujeitos que atendam aos critérios pa-ra a pesquisa e aceita participar da mesma, aos quais será questionado sobre outras pessoas que possam fazer parte da pesquisa. Assim, tal qual uma bola de neve, a amostra tende a tornar-se maior e maior a cada novo informante até contemplar o critério de saturação (Patton, 1990).

A escolha deste método se justifica pela dificuldade de encontrar pessoas que afirmem ter EFC. Assim, o mé-todo bola de neve é escolhido por poder acessar as redes de sujeitos que apresentam tais fenômenos. O ponto ini-cial da bola de neve foram os estudantes da UNIFESP – Campus Baixada Santista que alegavam tais experiências, estendendo-se para suas indicações de novos potenciais entrevistados. Em um primeiro contato, era perguntado ao possível entrevistado se este entendia ter experiencia-do uma EFC, sem uso de qualquer substância alteradora de consciência, e quanto a possuir diagnóstico de psico-se. Satisfeitos tais requisitos, a entrevista era agendada. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa – Plataforma Brasil, sob o parecer número 142.729, de 01 de novembro de 2012.

Todos foram entrevistados de forma individual e si-gilosa, após leitura e concordância com o Termo de Con-sentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas ocorreram no laboratório de pesquisa social da UNIFESP – Campus Baixada Santista. Caso da impossibilidade do entrevista-do em dirigir-se até a universidade, este pudia solicitar que a entrevista ocorresse em outro lugar, desde que sa-tisfeitos os critérios de sigilo e segurança, constando de um espaço adequado, em que se encontrassem apenas entrevistado e entrevistador (Patton, 1990).

A entrevista se baseou na descrição pormenorizada da experiência que o sujeito atribuísse ser EFC e de seus desdobramentos na vida do sujeito a partir dos sentidos dados por este, acerca do fenômeno; na tentativa de ob-servar a experiência fora do corpo como ela se mostra, pa-ra cada entrevistado. De modo que fenômeno e sentidos se encontram imbricados no mesmo ato, seja porque, a despeito das propriedades do próprio objeto, o fenômeno existe apenas “em função daquele que o observa e, nessa visada, lhe atribui sentido” (Freitas; Araújo; Franca; Pereira & Martins, 2012, p. 144-154); ou seja, na concepção de per-cepção enquanto uma interpretação. Assim, nas palavras de Merleau-Ponty (1945/2006) “Compreendida a percep-ção como interpretação, a sensação, que serviu de ponto

de partida, está definitivamente ultrapassada, qualquer consciência perceptiva já estando para além dela” (p. 66).

As entrevistas foram gravadas, após a autorização dos entrevistados, e, posteriormente, realizou-se sua transcrição literal, visando à análise. Para a análise, foi utilizada a aná-lise de conteúdo, que permite emergir “núcleos de sentido” extraídos dos relatos dos participantes, por meio de orações expressivas de um discurso em relação ao tema investigado e sua relação com os demais entrevistados. Assim, as en-trevistas forma realizadas, transcritas e analisadas inicial-mente, de modo a descrever o fenômeno vivido por cada entrevistado. Após esta primeira etapa, uma segunda aná-lise da entrevista foi feita, relevando e listando todas as ca-tegorias encontradas em cada entrevista (Moustakas, 1994).

Estas categorias foram arranjadas em grupos de unida-des de sentido, os quais nortearam a construção de duas descrições, uma sobre o quê fora vivenciado como EFC e outra sobre como tal fenômeno ocorreu. Ao fim das etapas supracitadas, um último escrito foi composto, de modo a incorporar ambas as descrições, a fim de descrever a ex-periência vivida por cada entrevistado (Creswell, 2012).

Esta técnica permitiu que dados brutos (falas dos par-ticipantes) fossem transformados e agregados, de forma organizada, em unidades de sentido, a partir da definição criteriosa de seus núcleos, tendo a fenomenologia merle-au-pontyana como referência de interpretação. Assim, a partir do método fenomenológico, foi proposta a ordem de análise a partir da experiência humana, seguida de sua legitimação (seja pelo próprio sujeito, seja pelo campo de saber que estuda tais fenômenos) e, por fim, da análise que constrói sentido àquele que vivencia EFC (Gomes, 2010).

Deste modo, a análise buscou se fixar, primeiramente, na experiência relatada por cada entrevistado, não bus-cando igualá-la às demais, mas sim encontrar diálogos entre as diferentes EFC, “pois nomear um objeto é afastar--se do que ele tem de individual e de único para ver ne-le o representante de uma essência ou de uma categoria” (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 239-240).

Observação: A fim de manter o anonimato dos en-trevistados, seus nomes foram substituídos por nomes fictícios, seguidos de suas idades (e.g. Joana/22). A esco-laridade foi suprimida, devido a todos os entrevistados apresentarem, como escolaridade mínima, ensino supe-rior incompleto.

3. Resultados

Os relatos analisados foram divididos didaticamente em dois grupos, um com uma maior tendência ao viés de caráter espiritual das EFC e outro com uma maior tendên-cia ao viés de caráter psicológico da referida experiência. Contudo, tais diferenças se referem, predominantemente, ao sentido dado às experiências e não ao conteúdo, pro-priamente dito. Estes grupos serviriam para ilustrar duas grandes categorias, mais do que, de fato, agrupar e defi-

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nir tais sujeitos que apresentam seus discursos em uma gradação entre estas duas categorias. Deste modo, tais ca-tegorias, aquém de serem exatamente grupos estanques, são referenciais para análise.

Assim, serão apresentados, primeiramente, o concei-to de EFC e os relatos da experiência, para depois, apre-sentar as diferenciações e agrupamentos dos resultados, a partir do sentido dado à experiência.

4. experiência fora do corpo

A experiência fora do corpo é a experiência na qual o sujeito sente a si mesmo ou o centro de sua consciência localizado fora de seu corpo. Frequentemente envolve sen-sação de flutuação fora do corpo, observação do próprio corpo de um local externo a este (autoscopia) e viagens a localizações distantes. Embora a EFC possa ocorrer em sono ou vigília e alguns trabalhos apresentarem, inclu-sive, relatos de EFC durante atividade física ou durante atividades comuns da vida diária (Alvarado, 2004; De Foe, 2012), apenas uma entrevistada relatou ter tido a experi-ência acordada, enquanto estava de pé. Todas as demais experiências são relatadas ocorrendo durante o sono ou em período crepuscular, entre a vigília e o sono, quando tentavam dormir.

Joana/22 estava de pé, abraçada com o namorado quan-do começou a se sentir fraca:

Aí... eu fui pra casa do Raul [namorado]. E a gente ta-va assim, na sala, normal. [...] E eu não sei explicar, a gente tava perto assim, e a gente se abraçou. Do nada. E aí eu comecei a ver tudo ficar branco. Branco, bran-co, branco, branco. [...] É, então, mas... começou a tu-do ficar branco, e aí é como se eu já não tivesse mais no meu corpo. Eu comecei a ficar... eu lembro que eu comecei a ficar fraca. Sabe, de tremer, assim, de co-mo se a pressão tivesse baixando? E eu percebia que ele também tava na mesma sintonia que eu. E a gente foi pra um lugar, muito claro, muito claro (Joana/22).

Além de Joana/22, Jéssica/22 e Ricardo/24 relatam ter tomado consciência em suas experiências, em local diferente de onde seus corpos estavam e desconhecido para eles.

Eu não consegui entender o que foi essa experiência. É... eu tava... eu fui pra um lugar, assim, com umas montanhas... Tudo era, tipo, marrom clarinho, sabe, umas pedras assim [...] (Jéssica/24).

Aí, quando eu acordei, eu acordei consciente já, num outro lugar, assim. Eu acordei, eu tava numa espécie de ruínas, assim, ruínas de prédio e... não era... não era um lugar que eu conhe... [...] fisicamente, assim, não era um lugar que eu conhecia (Ricardo/24).

Letícia/30 relata algo semelhante, mas diz que o lo-cal onde se encontrava, durante a experiência, parecia um túnel que conhecia e usava com alguma frequência, quando ainda morava no Rio de Janeiro. Sua experiência ocorreu poucos meses após ter retornado para a casa dos pais, no interior de São Paulo. Já no caso de Melissa/23 e Rodolfo/24, embora não iniciem a experiência no cômo-do em que seus corpos se encontram, esta ainda ocorre em suas casas, ou seja, próximo de seus corpos e em lo-cal conhecido. Entretanto, na experiência de Melissa/23, sua casa é uma pouco modificada, o que mesmo para ela foi um sinal de que era um sonho:

Eu tava em casa e tinha uma... uma torneira onde saia muita água, lá na... lá na minha sala, sala da minha casa, lá em São Paulo. Então, é... aí... e tinha vários jovens e eu tava nadando... conversava, tinha familiares meus, também, pessoas... jovens, mesmo, adolescentes que eu desconhecia. Mas eu conversava e eu nadava toda hora, ficava nadando, nadando, na-dando... (Melissa/23).

É só após acordar e conversar com seu pai que Melis-sa/23 interpreta sua experiência como EFC. Este sentido dado à experiência será discutido mais abaixo. No caso dos sete entrevistados restantes, todos narram o início de suas experiências no mesmo cômodo que seus corpos estavam. Aline/26 e Rafael/38 relatam apenas uma sensa-ção de desligar-se do corpo e flutuação, próximo ao teto, como relata Rafael/38:

É, porque na verdade... eu... eu via a cama, eu sentia a sensação de estar deitado. Sabe a sensação de estar deitado na cama? Eu senti mas, ao mesmo tempo, eu senti indo pro teto, subindo. Como se fosse inflando. Engraçado, parece que inflou. É verdade, agora eu to... tá ficando mais claro pra mim. Inflou. Quando eu vi, eu olhei pra baixo, eu tava deitado. [...] Quando eu vi-rei e olhei, aí eu cai (Rafael/38).

Mateus/35, Flávia/33, Bárbara/31 e Marcela/23 rela-tam ter autoscopia, assim que se percebem fora do corpo. Flávia/33 e Marcela/33 dizem observar seus corpos de cima, próximas ao teto e sem mobilidade, permanecen-do no mesmo local até o fim da experiência, mas aptas a olhar todo o cômodo. Já Mateus/35 e Bárbara/31 descre-vem sensação de flutuação, mas próximos ao chão e se locomovem por todo o quarto. Estela/70 também flutua próximo ao chão e pode se locomover, mas não fica ape-nas em seu quarto, transitando por toda sua casa. Ela é a única que relata ter acompanhado a saída do corpo, con-tudo, diz não ter olhado para seu próprio corpo, neste momento; tendo o visto apenas próximo ao fim da expe-riência, quando retorna ao corpo.

Assim como Estela/70, Joana/22 também diz ver seu corpo no retorno de sua experiência, como relata a seguir:

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E aí, a gente volta. E nisso que a gente volta, tipo... é... isso mesmo, como se eu fosse tremendo até voltar... Mas não, antes disso [...] É como se eu tivesse em cima da cozinha, olhando a gente abraçados... (Joana/22).

Os dados apresentados apontam para uma diversida-de de fenômenos considerados EFC. Em que pese à de-finição científica controvérsias sobre o que seria EFC, as experiências relatadas apresentam a mesma controvérsia e bastante pluralidade, algumas se aproximando, inclu-sive, da definição de sonho lúcido, ou mesmo conteúdo onírico comum. O que confere a tais experiências o cará-ter de EFC é dado pelo sentido da experiência do vivido, o qual, segundo Merleau-Ponty (1945/2006);

Em um acontecimento considerado de perto, no mo-mento em que é vivido, tudo parece caminhar ao acaso [...] Mas os acasos se compensam e eis que essa poeira de fatos se aglomera, [...] desenha um acontecimento cujos contornos são definidos e do qual se pode falar. Deve-se compreender a história a partir da ideologia, ou a partir da política, ou a partir da religião, ou en-tão a partir da economia? [...] Todas essas visões são verdadeiras, sob a condição de que não as isolemos, de que caminhemos até o fundo da história e encon-tremos o núcleo único de significação existencial que se explicita em cada perspectiva (p. 17).

5. o sentido da experiência

Com base nas tendências atuais sobre a interpretação das EFC, tal fenômeno é entendido, em sua maioria das vezes, enquanto uma experiência psicológica, não resis-tindo o conceito de duplo ou um espírito que de fato saia do corpo. Assim, tal fenômeno, apesar de anômalo não é considerado como fenômeno de percepção extrassensó-ria, embora, na experiência do vivido, seja relatado en-quanto real e, deste modo, entendido, de fato, enquanto uma experiência externa ao corpo.

Para a fenomenologia merleau-pontyana, tal experi-ência também é entendida por seu viés psicológico, pois o autor critica o binômio corpo/alma, enquanto definido de modo a entender a alma como instância autônoma que age sobre o corpo, pois “é supor erroneamente uma noção unívoca do corpo e sobrepor-lhe uma segunda força que dá conta do significado espiritual de certas condutas”. Deste modo, apresenta tal configuração de corpo e alma enquanto funcionamento integrado “num nível superior, ao funcionamento da vida”, no qual “corpo se tornou de fato corpo humano” (Merleau-Ponty, 1942/2006, p. 312).

Deste modo, tomando por base a obra de Merleau--Ponty (1945/2006), a EFC se configuraria, primeiramen-te, enquanto alucinação do corpo próprio, não estando a alucinação no mundo, “mas ‘diante’ dele, porque o corpo alucinado perdeu sua inserção no sistema das aparências”

(p. 455). Contudo, quanto ao sentido dado à experiência, a EFC se constitui para além da noção ontológica, pois é o “testemunho desse movimento”, de modo que “o fenô-meno só existe em ato”. Assim, “suas propriedades não são restritas ao objeto em si mesmo, mas só existem em função daquele que o observa e, nessa visada, lhe atribui sentido” (Freitas et al., 2012, p. 146).

Assim, a EFC para além de ter um significado, ela é, em si, o significado, como aponta Merleau-Ponty (1942/2006):

Com as fórmulas simbólicas, surge uma conduta que exprime o estímulo por si mesmo, que se abre para a verdade e para o valor próprio das coisas, que tende à adequação do significante e do significado, da inten-ção e daquilo a que ela visa. Aqui o comportamento não tem mais apenas um significado, é ele mesmo sig-nificado (p. 192-3).

Portanto, as diferentes gradações de entendimento quanto a uma real saída do corpo, bem como os argu-mentos e aspectos utilizados para sustentar tal experiên-cia e o papel desta na vida do sujeito podem dar maiores esclarecimentos quanto às tendências no entendimento das EFC, por seus experienciadores.

Dentre as experiências em que não houve autoscopia e nas quais os sujeitos já se encontram em locais diferentes de seus corpos, no início da EFC, destaca-se a existência de outras pessoas, na experiência, as quais são entendi-das como seres espirituais e que, juntamente com a vi-vacidade da experiência, corroboram para a definição de EFC em suas experiências.

Assim, tais experiências se definem por seu alto te-or espiritual/religioso, sendo muitas vezes entendida co-mo mediunidade e trazendo, em diversas vezes, conteú-dos morais, como a necessidade da prática da caridade ou mesmo entendendo a EFC como forma de praticá-la.

Quando você começar a entender o que é, o que acon-tece e tal... e começar a trabalhar e ver que você tem que servir, né, você assumiu um compromisso. É uma mediunidade de trabalho, não é uma mediunidade natural, é de trabalho... (Letícia/30).

A presença de seres espirituais durante a EFC ou anterior ou posteriormente à experiência é descrita por Estela/70, Jéssica/24, Joana/22, Letícia/30, Rafael/38 e Ricardo/24. Tal presença espiritual é fator importante pa-ra a definição da experiência enquanto EFC:

Aí foi aí que eu vi, que eu acordei assustado e eu ouvi um a... um assobio [...] que me... me indicava e algu-ma coisa me resgatou na memória que era um apito de perigo. Isso. Aí quan... eu ouço um assobio assim, aí eu acordo assustado... achando que é alguma coisa, né, de ruim acontecendo. [...] Quando eu acordo e levanto da cama e olho pra parede. Aí eu vejo uma... uma... um

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ser... é... sumindo, enfim... foi pro teto. Como se fosse al-guém com um manto... esvoaçante, dentro de um qua-drado, subindo e... e desaparecendo em cima do teto. [...] Isso. Isso, é.... E que eu tive, na verdade, né? A ideia é que eu tive a visão de alguém, de uma entidade. De um ser. Que eu não sabia muito bem o que era. Aí eu asso-ciei aquilo a um ser que veio me acompanhar porque eu tava num momento de transição, né? (Rafael/38).

Já Estela/70, relata que a presença de um espírito fora crucial para sua EFC, não apenas em sua determinação, mas, segundo ela, para que pudesse sair do corpo:

Do pescoço pra cima tava muito colado na cabeça. A paracabeça não saia, não descolava. A cabeça do psicossoma não se descolava da cabeça, né? Mas tudo isso é o amparador que fez, que é pra eu ver passo-a- passo, né, como é que eu posso sair. Eu sei que ele fez, mas eu só percebi depois, né? Eu tava achando que era eu, que era coisa minha, né? (Estela/70).

Outro aspecto importante, neste grupo, para a consi-deração de experiência fora do corpo, foram acontecimen-tos posteriores à experiência que pudessem, sob o enten-dimento dos sujeitos, comprovar a experiência. Assim, Joana/22, diz que em sua experiência, um espírito passa-va a mão em sua barriga e dizia que ela estava preparada:

Eu acredito que foi uma mensagem... pra falar... porque depois disso, eu tive uma sensação de que a qualquer momento eu ia ficar grávida. Qualquer momento eu tava só esperando, não sei explicar. Quando eu soube que eu tava grávida, não foi surpresa, eu sabia que eu tava grávida (Joana/22).

Já no caso de Melissa/23, a comprovação veio por parte de seu pai. Ela, até o momento achava estar sonhando e, após o ocorrido, questiona, inclusive, se outros “sonhos” não poderiam ser EFC que ela não entendeu:

Eu só considerei porque meu pai... eu tava na cama, ainda, tipo, eu tive a projeção, que pra mim era um sonho, porque não tinha nexo... enfim, eu tava fazen-do... meu, só andando e outra hora eu queria usar o banheiro, enfim, são coisas que eu acho que não tem muito nexo. Então, quando eu acordei, isso tudo no sonho, entre aspas, né? Quando eu acordei, isso pra mim era um sonho, mas meu pai logo em seguida che-gou na porta do meu quarto e perguntou, ele perguntou se eu tinha sonhado com água. E eu não costumo so-nhar com água, eu não sonho com água. E bem nesse dia ele perguntou e falou que toda hora queria me ver. Enfim, foi isso... Por conta dele me falar que eu falei “ah, então foi uma projeção”. Aí eu falei, caramba, o que que é projeção, o que é sonho? Como diferenciar? Se meu pai não falasse, eu não ia saber (Melissa/23).

É relevante ressaltar que os entrevistados deste gru-po apresentaram todos, como religião, o Espiritismo, a Umbanda ou o estudo da Conscienciologia, mas com for-te influência espírita.

Flávia/33 afirma que sua experiência lhe pareceu mui-to real e concreta, se encontrando apenas em seu quarto. Contudo, a presença de seu falecido avô, na experiência descrita como sendo sua única EFC, dá a ela um caráter mais espiritual. No entanto, quando da experiência, Flá-via/33, que era muito ligada ao avô, mas pouco interessada em qualquer tipo de religiosidade, considerando-se, in-clusive, ateia; reconhece, na época, tal experiência apenas como uma oportunidade de se despedir de seu avô, sem qualquer definição sobre o que fora a experiência ou se seu avô estava de fato em sua experiência ou se tal expe-riência se caracterizava por uma representação subjetiva e psicológica de despedida de seu avô.

É apenas a partir de sua entrada na Umbanda que Flá-via/33 entenderá tal experiência – ocorrida, cerca de, 15 anos antes – enquanto uma EFC. “Isso tinha acontecido, mas eu nunca tinha colocado pra mim mesma dessa forma; que tinha sido uma experiência fora do corpo” (Flávia/33).

Contudo, tendo sua incursão religiosa ocorrido há pouco tempo, Flávia/33 parece ter uma relação menos central com a EFC e seu entendimento da relação com o avô parece ter nuances mais mnemônicos e psicológicos do que uma relação espiritual.

Eu sinto que... é... da minha família, ele passou o bas-tão pra mim, entendeu? Sabe? E, de alguma maneira – eu pensei nisso esses dias – que enquanto eu viver, ele vive também. Sabe? É... então, em ocasiões familiares importantes, eu tenho feito discursos e meus discur-sos sempre envolvem [risos]... ah... o meu avô. E... e, enfim, coisas... coisas assim, né? Que eu sinto a gente conectado (Flávia/33).

Rodolfo/24, assim como Estela/70 e Melissa/23, tam-bém estuda a Conscienciologia, mas tem um entendimen-to mais psicológico da EFC, entendendo-a por seu caráter de consciência e lucidez. Assim, divide sonho, sonho lú-cido e EFC de modo que:

Sonho é onirismo puro. Né? Imaginação total. Sonho lúcido é você estar mais ou menos descoincidido, mas ainda tem uma carga onírica naquilo. Então, você tem uma percepção projetiva, mas você tá influenciado pela sua imaginação e pelo seu onirismo, então as coisas se misturam e sua lucidez não é boa. [...] Aí a gente cos-tuma dizer que a sua lucidez, nesse caso, numa esca-la de 0 a 100 seria 40%. Aí, a projeção, você consegue dizer que é uma projeção quando você tá numa esca-la de lucidez de 60 a 100%. Entendeu? Então, eu digo que é a projeção quando eu to nessa escala de lucidez. Então, nesse caso que eu te falei, o meu nível de luci-dez tava por volta de 80% (Rodolfo/24).

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Mateus/35, que afirma não ter religião, também enten-de a experiência a partir de uma lucidez, durante a experi-ência e busca comprovações da EFC em dados concretos:

Eu já fiquei consciente estando, mais ou menos, ali aci-ma do beliche, da parte de cima, superior. Tem duas partes, tem o de baixo e o de cima. O de cima, tinha uma... uma... tinha uma tesoura aberta, em determi-nado ângulo, acho que era, devia ser 45º [...] e eu vi uns símbolos que tinham no lençol [...] Então quando eu vi os símbolos e quando eu vi a tesoura, eu já me questionei na hora. Assim, poxa, essa pode ser uma prova da... no momento que eu tinha saído do corpo, né? Eu me questionei naquele mesmo momento. Essa pode ser uma prova de que se eu to... se eu to ficando maluco ou se realmente eu consegui sair. Porque na-quele momento eu já pensei tudo, eu falei assim “cara, eu nunca parei pra olhar o que tem em cima da... do... do... desse beliche, aqui, há se... há... semanas, pelo menos. Né? Como é que eu vou me lembrar da tesou-ra e do símbolo e pra onde ela tá virada? (Mateus/35).

Para ele a EFC está intimamente ligada ao sonho, sen-do difícil diferenciar uma da outra, como aponta a seguir:

Isso, eu acho que foi uma das provas, né? Mas tem muita coisa que acaba podendo se fundir com esse lado e que é sonho, realmente. Então, eu acho que é assim, é muito difícil você conseguir... é... talvez, encontrar alguém que consiga, realmente, transitar por esses... por esses ní-veis mentais sem tropeçar em algum outro (Mateus/35).

Marcela/23 afirma ter constantemente tais tipos de ex-periências e as associa estritamente com um distúrbio de percepção e com um estado cataléptico de paralisia notur-na (sobre paralisia noturna ver Holt, Simmonds-Moore, Luke & French, 2012). Tal qual para Márcio, seu maior interesse nas EFC é a comprovação quanto à natureza de tal experiência, não apresentando nenhum fascínio sobre as experiências ou seus conteúdos.

Não, eu fico olhando pra televisão e... acho que eu che-guei a olhar pra mim de novo, assim. Mas, só, caram-ba, eu to aqui de cima e me vendo e to vendo televisão. Como é que pode? Entendeu? Mais questionando ali aquel... a... aquela situação, né? Mas mais prestando atenção na TV pra poder comparar depois, na hora que eu voltasse... (Marcela/23).

Bárbara/31 também afirma ter EFC constantemente e associadas à paralisia noturna. Ambas, juntamente com Mateus/35 e Rodolfo/24 relatam as EFC mais concretas e próximas do mundo conhecido por eles e habitado por seus corpos, não apresentando outros planos ou seres espirituais.

Todavia, diferentemente dos demais, Bárbara/31 en-tende a experiência enquanto a saída de sua alma, o que a aproxima do grupo com viés espiritual. No entanto, sua

experiência se difere das demais com viés espiritual, seja pelo conteúdo mais concreto e sem entes espirituais, seja por sua relação com a experiência, a qual sente medo e não tem interesse em tê-la. De fato, Bárbara/31 teme mor-rer, durante a experiência, uma vez que se entende com a alma para fora do corpo. É importante frisar que Bárba-ra/31 é a única entrevistada que afirma ter mais de uma religião, se considerando espírita, umbandista e católica. Em que pese tais religiões possuírem epistemes diferentes e entendimentos divergentes sobre a experiência, tal da-do parece ser importante para entender sua relação com a experiência, embora não a tornando clara.

6. o papel da experiência na vida de seus experien-ciadores

Em que pese, à experiência, todo o sentido dado à mesma, é em seu sentido que reside, portanto, a experi-ência do vivido. Deste modo, a EFC vivida pelo sujeito, a despeito de sua verdade, implica o sujeito em toda a vivência desta, assim como Merleau-Ponty (1945/2006) aponta para a própria vivência do sonho:

Quando sonho que voo ou que caio, todo o sentido desse sonho está contido nesse voo ou nessa queda, se eu não os reduzo à sua aparência física no mundo da vigília, e se os considero com todas as suas impli-cações existenciais (p. 383).

Deste modo, tal experiência se inscreve junto às diver-sas outras experiências (corporais) do sujeito que alega sair do corpo. O papel desta experiência, dentre os sujeitos en-trevistados, apresenta uma grande relevância, sobretudo, aos sujeitos apresentados como tendo maior viés espiri-tual. A EFC, para estes, apresenta grande importância em diversos outros entendimentos de suas vidas. É o caso da redução do medo da morte (tanatofobia), apresentada por Letícia/30, Ricardo/24, Melissa/23, Aline/26 e Estela/70.

Dentre estes, dois casos se destacam pela alta relevân-cia do sentido dado à EFC e seu papel na vida do sujeito. Estela/70, tem câncer e diz que sua crença, suas experiên-cias e o auxílio que recebe de entes espirituais a auxilia-ram na aceitação e na luta contra a doença. Segundo ela:

Eu me manifesto nesse corpo, que já tá com uma certa idade, que tem um câncer. E não sei quanto tempo eu tenho, talvez não muito, né? Quem tem metástase não deve ter muito expectativa de vida. Antes de ter essas experiências, e principalmente dessa experiência que eu acabo de narrar pra você [...] eu tinha medo. Eu ti-nha medo da doença, do sofrimento e da morte, né? Apesar de eu ser espírita, trabalhava numa casa espí-rita, mas eu tinha medo. [...] E então, essas experiên-cias fora do corpo, com lucidez, me ajudaram a perder o medo da morte. E por isso que hoje eu enfrento essa doença, né? [...] eu não tenho depressão, eu não... eu

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não tenho medo do que... nada. Eu... eu to... eu vivo, normal. Vivo melhor do que antes. Então, eu ganhei nisso, ganhei em termos de perder o medo da morte, porque pra mim, essas experiências fora do corpo me deram certeza de que a vida continua (Estela/70).

Como no caso dela, Ricardo/24 afirma que a EFC e os sentidos suscitados por ela auxiliaram-no quanto ao seu desinteresse pela vida, durante um momento de so-frimento psíquico:

Comecei a ver um sentido maior, assim, na vida. Um sentido... eu tive... tive uma fase meio difícil na adoles-cência, de... de querer me matar e tal, e não ver sentido em nada. E aí essas coisas trouxeram um... um sentido maior pra mim, sabe? (Ricardo/24).

Outras implicações descritas pelos entrevistados com viés mais espiritual foram: alteração da percepção do mundo, dizendo ter uma sensação de pequenez quanto à imensidão do universo; maior paciência, calma e compro-metimento com o próximo; afirmação de suas crenças e comprovação, para estes, da existência da vida extrafísica, reencarnação, planos espirituais e divindade.

Já no caso de Bárbara/31, devido a EFC lhe ser uma experiência com alto grau de ansiedade, pois entende que pode morrer a qualquer momento, a experiência, ao contrário de reduzir sua tanatofobia, exacerbou-a, como ela mesma descreve:

Aí entra, não sei se é manias... né? Eu tenho muitas ma-nias, do tipo: não atravessar atrás de ônibus, mas aí, é tudo no sentido relacionado a... a esse... a essa ruptura de corpo e alma, morte. Entendeu? É como se eu tivesse em vigília pra não... pra isso não acontecer (Bárbara/31)

Rodolfo/24 é o único entrevistado a apresentar maior viés psicológico que afirma que a EFC o inspirou a ser mais caridoso e preocupado com o próximo. No entanto, apre-senta as consequências de tal experiência como sendo, ma-joritariamente, de caráter concreto, o auxiliando a ser mais centrado e dedicado em âmbitos como trabalho e estudo. Assim, aproxima-se do discurso de Mateus/35, que diz:

Eu quis ter uma estabilidade pra depois me lapidar, mesmo que eu perdesse a oportunidade. [...] Hoje se eu não pratico mais isso é porque, como eu falei, pri-meiro porque eu acho que, primeiro eu tenho que tá consciente aqui. A minha... experiência principal é tá consciente, aqui, falando contigo, agora. E saber que eu to consciente fazendo isso. [...] Assim, essas relações e essas frequências, pra mim, são muito mais interes-santes no momento, do que eu, simplesmente, ficar so-nhando e acordando no meu sonho, sei lá. A não ser que eu veja algo prático nisso (Mateus/35).

Para Flávia/33, apesar de a experiência ter grande im-portância, devido ao conteúdo (relação com o avô), seu

entendimento de que vivera uma EFC é ainda bastante recente e enviesado por ceticismo; sendo a experiência válida, sobretudo, pela relação com a imagem do avô e não por sair do corpo. Do mesmo modo, Marcela/23, ao entender a EFC como um mero distúrbio de percepção, também não deposita sentido importante à experiência, sendo esta, apenas periférica em seu mundo fenomênico.

Considerações finais

A EFC, portanto, apresenta diversas nuances, conteú-dos e sentidos, a partir da constituição de uma explicação que, segundo Merleau-Ponty (1945/2006) “não é descober-ta mas inventada, ela nunca é dada com o fato, é sempre uma interpretação provável” (p. 165). Deste modo, seja real ou ilusória, a EFC compõe sentido à própria experi-ência e à vida do sujeito que a percebe, pois mesmo “o equívoco é essencial à existência humana, e tudo o que vi-vemos ou pensamos sempre tem vários sentidos” (p. 233).

Assim, por meio da variedade de EFC encontrada, é possível verificar que tais experiências podem ocorrem próximas ou distantes ao corpo físico, e constar desde sensação de flutuação e leveza, sensação de saída do corpo, alta vivacidade e consciência durante o sonho e autoscopia. Elas podem se caracterizar como experi-ências místicas – de cunho religioso – com presença de espíritos, podendo estar em algum local conhecido ou desconhecido; ou como experiências mundanas, ocor-ridas em local conhecido e sem presença de qualquer existência não física.

Deste modo, é possível questionar a real existência de um fenômeno EFC específico, sendo possível o enten-dimento do termo enquanto uma gama de experiências singulares, ancoradas por meio do sentido dado à experi-ência. Ademais, no que tange à flexibilidade de tal expe-riência – a qual é explicada e vivida de modos diversos a partir da crença pessoal – com relação ao entendimento da própria EFC, da função da experiência sobre o mun-do fenomenológico do sujeito, tal experiência se consti-tui enquanto objeto importante para mais estudos acerca da percepção, crenças e relação com a vida cotidiana dos sujeitos que alegam ter tais experiências.

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Gabriel Teixeira de Medeiros - Possui Graduação em Psicologia e Mes-trado em Ciências Interdisciplinares da Saúde pela Universidade Fe-deral de São Paulo (UNIFESP). É membro do Grupo de Pesquisa CNPq UNIFESP-USP: Corpo e Alma do Sujeito da Saúde (CASUSA). Membro do Laboratório de Pesquisa Social e do Grupo de Pesquisa - CNPq UNI-FESP-UFSCar: Corpo, cognição e experiência nas ciências da mente e membro do INTER PSI - Laboratório de Psicologia Anomalística e Pro-cessos Psicossociais (USP). Endereço Institucional: Universidade Fede-ral de São Paulo, Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva. Rua Silva Jardim, 136 (Térreo), Vila Matias. CEP 11015.020 - Santos, SP. E-mail: gabriel–[email protected]

Fernando de Almeida Silveira - Advogado e Psicólogo, com Formação e Mestrado pela Universidade de São Paulo, e Pós-Doutorado em Filo-sofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É Professor Adjunto IV (Psicologia e Humanismo) da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista - Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva. Coordena do Grupo de Pesquisas CNPq/UNIFESP/USP Corpo e Alma do Sujeito da Saúde (CASUSA); Membro do Laboratório de Pesquisa Social e do Grupo de Pesquisa Corpo, Cognição e Experiên-cia nas Ciências da Mente (CNPq-UNIFESP-UFSCar), e Co-Responsável pelo Núcleo de Estudos sobre Fenomenologia, Psicologia e Epistemologia. E-mail: [email protected]

Recebido em 13.08.2013Primeira Decisão Editorial em 30.01.2014

Nova Submissão em 03.06.2014Aceito em 12.12.2015

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Sobre o Artigo de Beck “A Última Fase do Pensamento de Husserl” (1941)

SoBRe o ARtigo de Beck: “A últimA fASe dA fenomenologiA de hUSSeRl”1 2

dorion cairns(1941)

discussão1 2Beck delimita uma acusação forçada. Se todas es-

sas acusações pudessem ser comprovadas, o objetivo de Husserl seria inalcançável, suas problematizações funda-mentais seriam falsas, seus métodos incongruentes, suas principais teorias seriam falsas e a sua própria coempre-ensão uma autoilusão. Para evidências detalhadas e pre-sumidamente comprobatórias, nos referimos às publica-ções prévias de Beck, as quais não tive como consultar. Por si só, este artigo aborda a oposição de Beck frente a inúmeras teorias que, em sua opinião, foram mantidas por Edmund Husserl. A propósito, algumas delas foram contestadas por Husserl. De fato, muitas afirmações feitas por Beck, acreditando que estaria contradizendo Husserl são, na verdade, afirmações sobre seu ponto de vista. Já outras teorias contestadas são do próprio Husserl, mas nada do que consta neste artigo deve suscitar dúvidas quanto a sua validação. As outras teorias contestadas são realmente de Husserl, mas nada no presente artigo deve pôr em causa a sua validade.

As questões levantadas são tão diversas quanto nu-merosas. Além disso, uma defesa apropriada de Husserl envolveria a exposição de grande parte de suas análises. No espaço do qual disponho posso responder com con-vicção a apenas uma parcela dessas acusações. Para tan-to, escolhi uma que está no topo da lista, visto que pare-ce também ser refutável dentro dessa orientação, relati-vamente restrita.

(1) É verdade que o método de Husserl “requer o exer-cício do julgamento.” Entretanto, é falso que “pretenda

1 Título original: “Concerning Beck’s ‘The Last Phase of Husserl’s Phe-nomenology’”. Publicado no Philosophy and Phenomenological Rese-arch, Vol. 1, No. 4 (Jun., 1941), p. 492-498, sob responsabilidade da International Phenomenological Society. Disponível em http://www.jstor.org/stable/2103150.

2 Refere-se a: Beck, Maximilian. (2013). A última fase da fenomeno-logia de Husserl: exposição e crítica (1941). Revista da Abordagem Gestáltica, 19 (1), 119-125. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci–arttext&pid=S1809-68672013000100015&lng=pt&tlng=pt (Nota do Editor).

TEXTOS CLÁSSICOS

ser (...) mera descrição” sem um julgamento. Para Husserl, descrever é julgar. É também um equívoco afirmar que o método de Husserl não pretende tecer conclusões e, bas-ta uma breve citação para mostrar a falha dessa crítica:

[nas investigações transcendentais] é possível conce-ber conceitos, formar julgamentos derivados de ex-periências transcendentais (...); é possível esvaziar e preencher julgamentos; lutar pela verdade e alcançá-la através de adequação; fazer inferências e até proceder de maneira indutiva.3

Isso significa que o método de Husserl “presume as re-gras da lógica?”. Como disse o próprio Husserl4, isso signi-fica que os julgamentos descritivos mais simples, alcança-dos pelo seu método, devem se enquadrar nas normas da lógica em algum momento. Porém, o senso geral da única lógica concebível, antes de influenciar a redução fenome-nológica transcendental, é agrupada separadamente por essa redução5. Assim, o método de investigação fenomeno-lógica transcendental exclui a premissa explícita ou tácita da lógica de um possível ‘ser’ em um mundo possível; a verdade possível sobre tal ‘ser’ é também a lógica da ob-jetividade transcendental e da verdade fenomenológica transcendental. Tendo adquirido um acesso experiencial para sua própria subjetividade transcendental, através da redução fenomenológica transcendental, o fenomenólogo passa a aceitar ingenuamente aquilo que vê e buscar, in-genuamente, evidências para explicar e determinar for-mal e categoricamente suas informações. As estruturas típicas de sua consciência transcendental são também comumente vivenciadas enquanto as observa e descreve e, também, quando verifica descrições já alcançadas. Ao aceitar esta evidência de identidade, o fenomenólogo tece pressuposições ainda que, qua fenomenólogo transcen-dental, se abstenha de pressupor o status similar de sua consciência como algo no mundo e que esta identidade

3 Traduzido de Edmund Husserl, Formale und Transzendentale Logik, p. 238.

4 Loc. cit. 5 Op. cit., p. 203.

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é uma identidade no mundo. Ao tecer julgamentos evi-dentes fundamentados na experiência e tirar conclusões evidentes a partir deles, é possível afirmar que pressupõe a “lógica” do ser transcendental e da verdade. Mesmo as-sim, não se pode dizer que pressupõe uma teórica lógi-ca ou mesmo lógicas primitivas como leis da identidade. Antes que pudesse pressupor tal teoria, o fenomenólogo teria que produzir e isolar não só as estruturas formais e lógicas, ilustradas por seus julgamentos acerca da subje-tividade transcendental, como também estruturas análo-gas através de situações correspondentes.

O próprio Husserl enfatizou a inevitabilidade de co-meçar, mesmo na atitude fenomenológica transcenden-tal, por aceitar qualquer evidência e, nesse sentido, tecer pressuposições que, eventualmente, devem ser suspensas e submetidas a uma análise fenomenológica em um sen-tido mais profundo6. Em todos os níveis da investigação, o fenomenólogo tece “pressuposições do ser” (Seinsvo-raussetzungen7), se não do ser transcendental presente, ao menos de um possível ser transcendental. Mas, assim como a pressuposição ingênua do ser mundano é suspensa pela redução fenomenológica transcendental (ou pelo que acaba sendo somente seu primeiro estágio), a implicatura ingênua na experiência fenomenológica e a teoria do pri-meiro nível transcendental é superada por uma posterior redução fenomenológica.

As investigações adquirem uma dolorosa e inevitável relatividade, uma provisoriedade ao invés de um es-tado definitivo, pelo que se está lutando. Nesse nível, cada investigação supera um pouco da inocência; po-rém, cada uma traz consigo a inocência corresponden-te ao nível que, por sua vez, deve ser vencido através de uma investigação mais profunda8.

O que resta então da reivindicação pela total ausên-cia de pressuposições, tão frequentemente atribuída à fe-nomenologia? Por razões já mencionadas, fica claro que Husserl não sustenta o fato de que a fenomenologia ocorre sem pressuposições, seja qual for o sentido dessa palavra. Husserl defende que na investigação fenomenológica é “o radicalismo que vê em qualquer objeto pré-concebido como existente, um indicador para um sistema de con-quistas constitutivas9”. A declaração do conhecimento na mais absoluta falta de pressuposições é denominada como “ideal”10 e não como fato concluído.

Antes de considerar a última parte da crítica de Be-ck, deve-se estar relativamente ciente do tipo de pressu-posições necessárias em qualquer nível da investigação fenomenológica. Estas não são conceitos teóricos presu-míveis, arbitrários ou plausíveis, mas sim dados pré-teó-

6 Op. cit., p. 238.7 Op. cit., p. 239.8 Loc. cit.9 Op. cit., p. 244.10 Loc. cit.

ricos, pressupostos somente no sentido de serem aceitos pelo investigador, quando este as vivencia da maneira co-mo são ofertadas11. É nesse sentido que o fenomenólogo transcendental “pressupõe” seu ego transcendental. Ele observa atos espontâneos como realmente imanentes no seu fluxo de consciência; estes atos são caracterizados como provenientes do ego e direcionados para objetos12. Assim, o datum, no primeiro estágio da observação feno-menológica transcendental possui três aspectos: ego, cogi-to e cogitatum. Essa naturalidade vivenciada do ego trans-cendental é comentada por Husserl em muitos trechos:

Através da evidência da experiência, recorro continu-amente por e para mim como “eu mesmo”. Esta é uma verdade do ego transcendental, assim como do “ego” em todos os sentidos13.

O ego existe por si mesmo em evidência contínua; em si mesmo o ego é continuamente evidente (...). O ego compreende a si próprio não apenas como fluxo de vida, mas também como o “Eu” que vive através dis-so e daquilo – o “Eu” que vive através deste e daquele ato de pensar (cogito)14.

Talvez Dr. Beck acredite que o ego transcendental é, por assim dizer, “aceito somente como premissa neces-sária de qualquer pensamento”. Certamente, este não é o status do ego transcendental na teoria de Husserl, confor-me compreendida pelo próprio Husserl. Outra questão, antes de encerrar esta primeira crítica: o ego da “consci-ência purificada transcendentalmente” é denominado por Husserl como ego “geral”. Husserl discute a essência geral ilustrada pelo ego da consciência transcendental, porém concebe esse mesmo ego como o ego relativamente pessoal individual (não generalizado) do próprio fenomenólogo.

Este “Eu” centralizado não é um polo de identidade vazio, não mais do que qualquer objeto seja. Em vez disso... a cada ação irradiada do Eu, como uma no-vidade objetiva, este “Eu” adquire nova propriedade permanente.... assim, através de sua gênese ativa, o ego se constitui como subtrato idêntico de suas pro-priedades duradouras, ou seja, como um Eu único “permanente e duradouro15”.

Através disso [do “por entre parênteses” de todo mun-do objetivo], estou ciente do meu ego como um ego transcendental que, em sua vida constitutiva, consti-tui tudo o que é objetivo para mim16.

11 Cf. Marvin Farber, “The Ideal of a Presuppositionless Philosophy.” Philosophical Essays in Memory of Edmund Husserl, p. 44-64.

12 Cf. Edmund Husserl, Méditations Cartésiennes, § 31.13 Op. cit., § 33. Aqui, bem como em citações subsdequetes, traduzo

diretamente do texto em alemão deste trabalho, não publicado.14 Op. cit., § 31.15 Op. cit., § 32.16 Op. cit., § 45; ênfase do autor.

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Sobre o Artigo de Beck “A Última Fase do Pensamento de Husserl” (1941)

Por questões de espaço, meus comentários sobre as demais críticas serão mais fragmentados e menos fun-damentados.

(2) No pensamento recente de Husserl, a divindade foi concebida como questão transcendental constitutiva, não como hiper transcendência, para além do mundo trans-cendente... Para a raça humana, a fonte da racionalida-de “nasce” desse telos, tendência da subjetividade trans-cendental para constituir um mundo genuinamente real e bom. O propósito é compreensível somente nos atos e produtos dos sujeitos e é somente nesse sentido que o mundo é tido como produto da subjetividade, que a ob-jetividade teológica é compreendida.

(3) Assim como outras pessoas, o fenomenólogo gosta de evidências apodíticas e assertóricas, evidências da ne-cessidade e da existência... As palavras “razão” e “racio-nal”, segundo Husserl, se referem primeiramente a ações e atitudes posicionais evidentes e também aos objetos evidentemente posicionais. A razão, neste sentido, não se restringe ao domínio da evidência apodítica, do julga-mento explícito ou mesmo da crença no seu sentido mais geral. Desejar o melhor fim através dos melhores meios é um ato da razão não menos do que o julgamento da lei do meio excluso... Husserl negou que o pensamento pos-sa ser absolutamente infalível. O pensamento é autonor-mativo, no sentido de que as normas do pensar possam ser fornecidas somente por um pensamento evidente, um pensamento que é intrinsecamente uma camada de sus-tentação dos próprios objetivos pretendidos.

(4) Para nós, os universais são objetos porque pode-mos compreendê-los e identificá-los. A compreensão dos universais pressupõe a compreensão dos indivíduos que, por sua vez, pressupõe que as “excepcionalidades” pré- objetivas são passiva e intencionalmente constituídas como “tais”, para que o ego os compreenda. Os sujeitos devem ser, portanto, constituídos como objetos pelo ego – em outras palavras, devem ser objetivados – antes que suas semelhanças e diferenças mútuas, ou que os uni-versais ilustrados por eles, sejam objetivadas. Um mun-do constituído de indivíduos objetivos e sem universais objetivos é concebível, mas universais objetivos sem in-divíduos objetivos não. Falar de quaisquer tipos de obje-tos que não sejam objetos para os sujeitos é absurdo do ponto de vista da fenomenologia transcendental... As primeiras aproximações no reino das formas sensíveis existem para melhorar tais formas. Na prática, objetiva--se produzir não planos e círculos ideais, mas superfí-cies reais e empiricamente planas e formas circulares. Só então é possível compreender e objetivar (não ima-ginar) planos e círculos geometricamente exatos, como limites ideais, algo que superfícies sensivelmente pla-nas ou formatos circulares apenas aproximam, mas não alcançam. Obviamente, é possível imaginar e ter como

objetivo uma superfície plana ou um ponto mais afiado antes de compreender a ideia de um plano ou ponto ge-ometricamente exato.

(5) Husserl, a exemplo de Beck, sustenta que as for-mas quase cúbicas das salas e retangulares das mesas são em si mesmas vistas como unitárias e idênticas, através de suas perspectivas. Tais formatos aproximados, porém, não são as figuras exatas.

(6) As considerações tecidas aqui contra “Husserl” coincidem com os resultados do próprio Husserl, ou se-ja, não são análises rechaçadas.

(7) Seria absurdo afirmar que as determinações de coisas puramente materiais são psíquicas ou vice versa. Husserl nunca fez tal afirmação e nenhuma de suas teo-rias implica essa proposição. Sua doutrina de que todas as coisas materiais são subjetivamente constituídas não implica tal afirmação. Uma possível fonte de equívoco é a ambiguidade da palavra “constituir” em seu uso comum. A subjetividade transcendental é o constituinte eficaz, não o constituinte do mundo objetivo.

(8) De certa forma, processos subjetivos são constitu-ídos na base de “adumbramentos”. Para o presente cons-ciente, cada fase temporal da consciência é idêntica no que diz respeito a um continuum crescente e continua-mente modificado de “retenções”. Nas Ideen, este nível de análise foi ignorado; o fluxo de consciência já consti-tuído e, temporalmente evidente, foi aceito como sendo o datum fenomenológico transcendental. A afirmação de que “processo subjetivos não são adumbrados” significa que, ao compreender certa percepção sensível, não se tem um fluxo de conteúdos imanentes, no sentido de que a reflexão é uma percepção sensível intencional, uma uni-dade transcendente; isto é característico dos objetos de determinados ações não reflexivas.... O que Beck afirma sobre o sujeito psíquico, que se manifesta em seus atos, é reminiscente de algumas análises de Husserl, consistente com todas as suas perspectivas.

(9 e 10) A teoria de que o mundo é constituído de forma subjetiva é compatível com o fato de acharmos es-se mundo como sendo genuinamente pré-determinado. O mundo é passivamente pré-constituído antes de ser ativamente “encontrado” pelo ego. Segundo Husserl, a subjetividade é ativamente constitutiva apenas nos ní-veis mais altos. Ainda assim, a liberdade transcenden-tal do sujeito é limitada pela própria essência de sua natureza... Husserl iria ainda mais longe e diria que o próprio conceito de mundo produzido pela subjetivida-de é, em si mesmo, contraditório... Ele sustenta que, ao constituir o mundo, o sujeito transcendental constitui, necessariamente, a si mesmo como sujeito “animal”, com mente e corpo. A conexão da mente com o corpo

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não é acidental... As unidades pré-objetivas que eventu-almente funcionam como aspectos de perspectivas são prioritárias aos objetos vistos “através” delas. É possí-vel ter objetos simplesmente por ter (não compreender) objetos parciais que, ao serem apreendidos, tornam-se perspectivas desses objetos.

(11) A “prova” do idealismo fenomenológico trans-cendental reside na evidência da análise de vários obje-tos inquestionáveis... Essas excepcionalidades da obje-tividade parcial são fornecidas antes de ser plenamente objetivadas, fato e necessidade. Essa pré-determinação, no entanto, não transgride a doutrina do idealismo fe-nomenológico transcendental. O que é pré-determinado na experiência acaba sendo o correlato intencional ide-al de níveis “sedimentados” mais inferiores da consti-tuição subjetiva.

(12) A consciência transcendental, isto é, o próprio fluxo de processos subjetivos transcendentais não é, de fato, uma essência. Mas como fato individual, tem suas determinações essencialmente necessárias; é uma essen-cialmente possível, bem como um atual, exemplificação de essências. E as essências ilustradas por possíveis flu-xos de consciência subjetivos podem ser evidenciadas, apenas quando um único de facto fluxo de consciência possa ser... Dr. Beck aparentemente prefere o uso da pa-lavra “razão” num sentido relativamente restrito. Há pre-cedentes para esse uso, e igualmente para Husserl. Se eu compreender os termos “ideias” e “razão” no mesmo sentido que os entende, não há conflitos com a perspec-tiva de Husserl.

Em razão de Beck construir de forma equivocada, em seus últimos anos de vida, tantos conceitos e teses funda-mentais para o posicionamento de Husserl, é inevitável que algumas vezes construa, erroneamente, o sentido da última publicação de Husserl. Não é surpresa o fato de que alguém que tenha cometido tantos erros obscureça e distorça, em certa medida, o conteúdo peculiar daquele ensaio fragmentado. O relato de Beck falha ao conceber o que, na perspectiva de Husserl, é mais importante no ensaio “A Crise das Ciências Europeias”, ou seja, o sen-so que a tornou uma “abertura” adequada para sua chef d’oeuvre. O relato também é equivocado no que diz res-peito a perspectivas com relação às análises de Husserl sobre a geometria e mensuração pré-teorética e também quanto a sua concepção sobre a relação entre o mundo do físico e o mundo cotidiano. Não vou elaborar nem tentar justificar estas opiniões agora, pois já utilizei todo o es-paço que me foi permitido. Em todo o caso, seria incom-patível engessar uma exposição desse grande ensaio de Husserl em um molde acidental de controvérsia.

Dorion CairnsRockford College

em resposta às observações críticas de cairns

O professor Cairns afirma que “inúmeras afirmações feitas por Beck, na crença de que contradiz Husserl, con-dizem com a perspectiva do próprio Husserl”. Todas as minhas afirmações são feitas sobre esse suposto “absur-do” o qual, de acordo com o próprio Cairns (p. 487) con-tradiz a perspectiva fenomenológica transcendental de Husserl. Falo sobre objetos que não são objetos somente para um sujeito reconhecido, mas que existem indepen-dentemente dele. Já foi demonstrado inúmeras vezes que os esforços de Schelling e Schopenhauer para provar uma correlação essencial entre sujeito e objeto são, na verdade, truques dialéticos, confundindo a relação do reconheci-mento com a existência: a evidência de que nada pode ser reconhecido, a menos que seja reconhecido por um sujeito, é confundida com a suposta impossibilidade da existência, exceto no caso de um sujeito já reconhecido.

Sei que o principal objetivo de Husserl era substituir o significado realista de muitos termos por outros trans-cendentais, provando que eram significados reais. Eu, entretanto, emprego muitos termos apenas neste senso “absurdo” do realismo que contradiz o significado trans-cendental. Somente se o significado quase realista de Hus-serl for silenciosamente substituído por minhas afirma-ções, é possível dizer que muitas delas, feitas com base na crença de que contradizem Husserl, são afirmações do próprio Husserl. Isso sim acabaria distorcendo as minhas próprias afirmações. Além do mais, deve-se pressupor que, o que deve ser investigado constitui razão principal da minha crítica.

Maximilian Beck

Nota Biográfica

Dorion Cairns (1901, Contoocook, New Hampshire-1973, New York), estudou em Harvard, onde se doutorou. Em duas ocasiões – entre 1924 e 1926, e entre 1931 e 1932 – esteve em estreito contato com Husserl. Lecionou no De-partamento de Filosofia e Psicologia do Rockford College e no New School of Social Research (New York). Foi res-ponsável pelas traduções das Cartesian Meditations. An Introduction of Phenomenology e Formal and Transcen-dental Logic. Publicou ainda, Guide for Translating Hus-serl (Phaenomenologica 55), 1973 e Conversations with Husserl and Fink (Phaenomenologica, 66), 1976.

Tradução: Profa. Dra. Silvana Ayub Polchlopek (Univer-sidade Tecnológica Federal do Paraná)revisão Técnica: Adriano Furtado Holanda (Universida-de Federal do Paraná)

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Elementos para uma Compreensão Diagnóstica em Psicoterapia – O Ciclo do Contato e os Modos de Ser (Ênio Brito Pinto, Summus, 2015)

O livro recém-lançado em epígrafe – Elementos para uma compreensão diagnóstica em psicoterapia – o ciclo de contato e os modos de ser – é uma novidade nos es-tudos sobre o diagnóstico nas psicologias fenomenoló-gicas, sendo fruto de muitos atendimentos terapêuticos em Gestalt-terapia e inúmeros estudos teóricos em psi-cologia do autor Ênio Brito Pinto. A publicação em ques-tão proporciona uma compreensão diagnóstica com um olhar mais gestáltico sem negar, entretanto, a importân-cia do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).

O principal objetivo da obra é possibilitar um pen-sar em estilos de personalidade e em modos de ser que não necessariamente patológicos. Para cumprir com o intento, o livro tem como referencial os modos de ser e estilos de personalidade baseados no ciclo de contato, proposto pelo autor Ribeiro (2005), o qual o elaborou de forma clara e didática, tornando-o, portanto, fundamen-tal para a compreensão diagnóstica fenomenológica em Gestalt-terapia.

A importância de se apontar para discussões e te-orizações sobre a compreensão diagnóstica na aborda-gem gestáltica, se dá pela necessidade de não caracteri-zar um diagnóstico apenas como psicopatológico, mas psicológico, onde é considerado a totalidade do campo e a individualidade por meio do olhar fenomenológico e holístico, visando facilitar o desenvolvimento de po-tencialidades do cliente, características marcantes da Gestalt-terapia.

Ao apresentar uma nova compreensão diagnóstica, observa-se que esta é uma das atividades mais comple-xas e importantes a serem desempenhadas pelos profis-sionais no processo terapêutico. Logo, este livro se torna um instrumento referencial capaz de nortear a atitude terapêutica diante da demanda do cliente.

Indiscutivelmente, a compreensão diagnóstica em psicoterapia é um dos temas de grande interesse na atu-

alidade e, como tal, sujeito à influencia de modismos. O livro, então, cumpre um papel importante de esclare-cer dúvidas conceituais e oferecer informações relevan-tes para estudantes, profissionais da saúde, docentes e pesquisadores interessados no assunto. Para tanto, está organizado em 5 capítulos, de modo que consegue ofe-recer uma visão ampla da compreensão diagnóstica em Gestalt-terapia, considerando tanto os aspectos intrapsí-quicos quanto os relacionais e com ênfase nos aspectos relativos à intersubjetividade.

O primeiro capítulo faz uma breve retrospectiva dos fundamentos da compreensão diagnóstica, onde a te-se central é alertar sobre a importância de não reduzir a singularidade existencial e a história do cliente em um rótulo, julgando existir um padrão de normalidade. A forma de diagnóstico sugerida é aquela que parte do vivido do cliente, possibilitando perceber o homem em sua trajetória com suas potencialidades e limitações. A importância de partir do vivido corrobora com a vi-são fenomenológica de que nada substitui o estar com, e o entre – terapeuta-cliente. Portanto, a compreensão do diagnóstico acontece por meio do contato com o clien-te e não apenas com o entendimento da semiologia. Em síntese, este capítulo aponta para uma perspectiva onde o diagnóstico não se esgota no sintoma, mesmo que este exponha o modo característico de ser ou o estilo de per-sonalidade do cliente.

O capítulo 2 propõe-se a apresentar esta relação entre a compreensão diagnóstica e o estilo de personalidade. Inicia-se apresentando a composição do estilo da perso-nalidade, que é estrutura e processo. Onde a estrutura permite a previsibilidade e o autoconhecimento; e o pro-cesso transmite a ideia de que a personalidade inova e se renova, oferecendo sempre possibilidades de mudanças, ou seja, modifica os aspectos da estrutura da personali-dade. No momento em que entende os dois eixos da per-sonalidade, inicia-se uma compreensão diagnóstica, pois

RESENHA

elementoS PARA UmA comPReenSão diAgnóSticA em PSicoteRAPiA – o ciclo do contAto e oS modoS de SeR

(Ênio Brito Pinto, São Paulo: Summus, 2015)

Maria PauLa MiranDa chaiM Pontifícia Universidade Católica de Goiás

DaniLo SuaSSuna MartinS coSta Pontifícia Universidade Católica de Goiás

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Revista da Abordagem Gestáltica - Phenomenological Studies - XXI(2): 243-244, jul-dez, 2015

Maria P. M. C. & Danilo S. M. C.

a estrutura oferece uma tipologia, que possibilita o psico-terapeuta a se atender às tendências psicopatológicas e paradoxalmente o processo delega a ideia de que nenhu-ma tipologia, mesmo sendo um processo de redução, po-de ser um reducionismo, já que cada pessoa precisa ser compreendida de acordo com o seu estilo.

No livro é exposto uma das tipologias utilizadas por alguns Gestalt-terapeutas, o eneagrama, abordagem que descreve tipos de personalidade. Atualmente uma das tipologias mais usadas é o DSM. Diante desta realidade, o autor defende a ideia de que a compreensão diagnós-tica em psicoterapia tem como objetivo obter o padrão para ajudar o cliente a flexibilizá-lo, descristalizando-o e reduzindo-o ao mínimo indispensável para que tenha acesso mais franco a seus recursos criativos, sem, entre-tanto, rotulá-lo. Para que esta postura adotada na psico-terapia seja compreendida por outros profissionais, o autor apresenta uma correlação entre o Ciclo do Contato e o DSM.

O capítulo 3 explicita inicialmente o Ciclo do Contato, conceito essencial para estabelecer a relação com DSM, como proposto no capítulo anterior. Assim a perspectiva do Ciclo do Contato surge como instrumento importante, à serviço da relação dialógica, utilizado para compreen-são diagnóstica, em seu fundamento, estrutura bem como no processo em que se configura o sofrimento, por vezes, denunciado pelo cliente.

O autor apresente o Ciclo do Contato composto por oito etapas, a saber: sensação, conscientização, mobiliza-ção, ação, interação, contato final, fechamento e retirada. Além da originalidade na quantidade das etapas, existe também alteração do termo “bloqueios de contato” pa-ra “descontinuação”, uma vez que acredita que o conta-to não deixa de existir e, portanto, não fica bloqueado. Na “descontinuação”, as fases afirmadas pelo autor são: dessensibilização, deflexão, introjeção, projeção, profle-xão, retroflexão, egotismo e confluência.

Nota-se que o mesmo não considera a etapa da flui-dez / fixação, e isto é decorrente ao fato de que para ele o ser vivo está sempre aberto ao contato, mesmo quan-do sua fluidez está muito reduzida. Ainda nesta linha de pensamento, o capítulo apresenta que é preciso com-preender o indivíduo a partir de sua própria experi-ência, ou seja, da sua forma de se relacionar consigo e com o outro.

Assim, a “descontinuação” descrita no ciclo de con-tato como base para uma forma predominante de ser, um estilo de personalidade, sem deixar de considerá-lo como um ato, momentâneo; um estado, uma alternativa ao es-tilo de personalidade; uma estrutura, ou estilo de perso-nalidade, ou seja, uma forma de organização e de ação, um jeito de estar no mundo. Por isso quando um psico-terapeuta busca compreender a personalidade do cliente, o foco não está em determinar uma classificação em pa-tologias ou transtornos, mas sem em compreender como é a forma, o estilo e as relações predominante de forma

de contato. Em sendo a estrutura da personalidade algo plástico, flexível, em constante reorganização e atualiza-ção, com elementos novos e antigos, o que permite dife-rentes mudanças ao longo da vida, é sugerido pelo autor que o psicoterapeuta vise antes à saúde, que a doença. Isto pois, assevera que o que precisa ser modificado é o que porventura haja de cristalizado, e não o estilo parti-cular de cada ser.

O capítulo 4 traz mais informações sobre a relação en-tre o ciclo do contato e o DSM, onde a finalidade é apre-sentar as descontinuações e suas similaridades no DSM. Para cumprir com seu intento, ao descrever cada estilo de personalidade, o autor apresenta em qual etapa do ci-clo está manifestado a descontinuação e ainda expõe su-as características mais marcantes em relação à cognição, sexualidade, linguagem, emoção, divindade, vocações profissionais, socialização, sabedoria e adesão à terapia. Além de possibilitar conhecer cada forma de manifesta-ção, apresentam-se ainda as principais condutas profis-sionais a cada estilo de personalidade.

Seguindo em direção ao final do livro, o Capítulo 5, conclui-se que é possível ampliar o diálogo entre psiquia-tras e psicólogos por meio da Gestalt-terapia e do DSM, sempre evidenciando a importância de compreender o ser humano para além de uma possível patologia, como uma totalidade de sentido. É importante ressaltar que na visão da Gestalt-terapia, quando se diz em compreensão diagnóstica, não se tem como objetivo identificar doen-ças, mas sim compreender a forma de viver e relacionar do cliente, para que assim, o trabalho terapêutico, consi-ga apontar possíveis prognósticos.

Encerro esta resenha agradecendo a oportunidade de ter contato com uma obra tão rara, moderna e importante no campo das profissões da saúde. Recomendo a leitura do livro, por considerar que o mesmo está composto de informações relevantes, atuais e principalmente sobre um tema de grande valia na atualidade.

Maria paula Miranda Chaim - Graduanda em Psicologia, 10º período, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected]

Danilo Suassuna Martins Costa - Doutorando e Mestre em Psicologia pe-la Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2008), possui graduação em Psicologia pela mesma instituição. Especialização em Pós-Graduação em Psicologia Clínica pelo Instituto de Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia. E-mail: [email protected]

Recebido em 30.08.2015Aceito em 12.12.2015

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Lázaro C. S. N.

Título: perspectivas Gestálticas sobre Espiritualidade/religiosidade

Autor: Lázaro Castro Silva Nascimento

Instituição: Universidade Federal do Paraná

programa: Mestrado em Psicologia

Banca: Adriano Furtado Holanda (Orientador) Nilton Júlio de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Campinas) Mary Rute Gomes Esperandio (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) Carlos Augusto Serbena (Universidade Federal do Paraná)

Defesa: 30 de julho de 2015

resumo: As discussões acerca do tema espiritualidade parecem ter sido afastadas da Psicologia brasileira de uma maneira geral. Poucos são os cursos de graduação que possuem disciplinas específicas so-bre esta temática. A Gestalt-terapia é um dos diversos referenciais teóricos que orientam a prática do profissional em Psicologia. Esta abordagem psicológica traz em sua base filosófica menções ao zen-budismo, ao taoísmo e ao pensamento oriental e foi fundada, com auxílio de outros pensado-res, por Frederick (“Fritz”) Perls. O objetivo deste trabalho foi investigar o tema da espiritualidade/religiosidade na Gestalt-terapia a partir de duas vias: a primeira visitando os escritos de Fritz Perls; a segunda levantando com Gestalt-terapeutas brasileiros como estes compreendem este tema. A investigação nas obras perlsianas foi feita de forma sistemática. Foram lidas as suas cinco obras de maneira cronológica, respeitando os anos das publicações originais, a fim de fazer uma arque-ologia quanto à compreensão da espiritualidade para o autor. Para a segunda parte da pesquisa, foi construído um questionário online autogerenciado sobre espiritualidade. O instrumento foi composto pelo autoquestionário “Core Dimensions of Spirituality”, adaptado ao português pelos autores, e por outras perguntas. Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, o questioná-rio foi disponibilizado online. Participaram da pesquisa 198 psicólogos, Gestalt-terapeutas brasi-leiros, de todas as regiões do país. Em relação às análises na produção de Perls pode-se afirmar que em suas últimas obras parece haver uma abertura para discutir a espiritualidade como algo que compõe a existência humana, apesar de seus escritos serem fortemente marcados inicialmen-te por uma intolerância a temas vinculados ao transcendente, compreendendo-os como produtos de neurose. Foi possível perceber nos dados dos respondentes uma compreensão bastante vasta sobre a espiritualidade, englobando aspectos transcendentais e imateriais, até uma compreensão mundana, corpórea, deste fator como parte da existência humana. Houve dificuldade conceitu-al por parte dos participantes em compreender a diferença entre espiritualidade e religiosidade. Ao fim são feitos entrelaçamentos reflexivos aproximando as duas pesquisas, tecendo-se conside-rações finais e abrindo perspectivas para novas pesquisas.

palavras-chave: Gestalt-terapia; Espiritualidade/Religiosidade; Fritz Perls; Gestalt-terapeutas.

Abstract: Discussions on the theme of spirituality seem to have been apart of brazilian Psychology in gen-eral. Few graduation schools have specific disciplines on this theme. Gestalt therapy is one of sev-eral theoretical frameworks that guide the professional Psychology’s practices. This psychologi-cal approach brings in its philosophical base mentions to Zen Buddhism, Taoism and the East-ern Thought and was founded with the help of some thinkers, specially Frederick (“Fritz”) Perls. The objective of this study was to investigate the issue of spirituality/religiosity in Gestalt therapy from two routes: the first visiting the writings of Fritz Perls; the second investigating with Bra-zilian Gestalt therapists how they comprehend this topic. The research in Perls’ works was done systematically. Perls’ five works were read chronologically, respecting the years of the original publications in order to make an archeology of his understanding of spirituality/religiosity. For the second part of the research, it was built a self-managed online questionnaire about spiritual-

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Perspectivas Gestálticas sobre Espiritualidade/Religiosidade

ity. The instrument was composed by “Core Dimensions of Spirituality” questionnaire, adapted to portuguese by the authors, and other questions. After approval by the Research Ethics Com-mittee, the questionnaire was available online. 198 Brazilian Gestalt therapists from every Brazil zone participated on this study. Regarding the analysis in the production of Perls can be said that in his last works there seems to be an opening to discuss spirituality as something that makes up human existence, although his writings were initially strongly marked by intolerance to issues related to the transcendent, comprising them as neurosis products. It was revealed on data from respondents a rather broad understanding of spirituality, encompassing transcendent and imma-terial aspects, even a worldly understanding, body, this factor as part of human existence. There was conceptual difficulty for participants to understand the difference between spirituality and religiosity. At the end of this essay it was made a reflective twists approaching the two surveys, weaving up final considerations and opening up prospects for further research.

Keywords: Gestalt therapy; Spirituality/Religiosity; Fritz Perls; Gestalt therapists.

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O encaminhamento de artigos à revista implica a acei-tação, por parte dos autores, de todas as normas expres-sas neste documento.

1. Política editorial

A revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenolo--gical Studies foi criada com o objetivo de ser um veí-culo de publicação da Abordagem Gestáltica, bem como daquelas abordagens que se fundamentam em bases teó-rico-científicas e filosóficas dentro das perspectivas hu-manistas, fenomenológicas e existenciais.

Atualmente, suas diretrizes editoriais procuram pri-vilegiar reflexões – numa perspectiva multiprofissional e interdisciplinar – em torno dos seguintes temas: a) Fe-nomenologia; b) Psicologia Fenomenológica; c) Filosofias da Existência; d) Psicologias Humanistas e Existenciais; e) Pesquisa Qualitativa em Ciências Humanas e Sociais.

Serão aceitos para apreciação artigos de pesquisa em-pírica e artigos teóricos, que envolvam temáticas relacio-nadas à saúde em geral, educação, humanidades, filosofia ou ciências sociais e antropológicas.

2. informações gerais

Os manuscritos serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial para realização de parecer técnico (em número mínimo de dois pareceres por proposta, ou mais, quando necessário). A editoria da revista lançará mão (caso necessário) de especialistas convidados – na qualidade de consultores ad hoc – que poderão sugerir modificações antes de sua publicação.

A editoração da revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies adota o sistema de double blind review, que assegura o anonimato dos autores e dos consultores durante o processo de avaliação. Serão con-sideradas a atualidade e a relevância do tema, bem como a originalidade, a consistência científica e o atendimen-to às normas éticas.

A revista proporciona acesso público a todo seu con-teúdo, seguindo o princípio que tornar gratuito o acesso a pesquisas gera um maior intercâmbio global de conhe-cimento.

Os trabalhos deverão ser originais, relacionados à psi-cologia, filosofia, educação, ciências da saúde, ciências

sociais e antropológicas, e se enquadrarem nas categorias que se seguem:

Relato de pesquisa – relato de investigação concluída ou em andamento, com uso de dados empíricos, metodo-logia quantitativa ou qualitativa, resultados e discussão dos dados. O manuscrito deve ter entre 15 e 25 laudas.

Revisão Crítica de Literatura – análise abrangente da literatura científica. O manuscrito deve ter entre 15 e 25 laudas.

Estudo Teórico ou Histórico – análise crítica de cons-trutos teóricos ou análise de cunho histórico sobre um de-terminado tema. Busca achados controvertidos para críti-ca e apresenta sua própria interpretação das informações. O manuscrito deve ter entre 15 e 25 laudas.

Resenha – análise de obra recentemente publicada (no máximo há dois anos). Limitada a 5 laudas.

O Conselho Editorial ou os consultores ad hoc anali-sam o manuscrito, sugerem modificações e recomendam ou não a sua publicação. Este procedimento pode se repe-tir quantas vezes for necessário. Cabe à Comissão Editorial definir o número de avaliações necessário para cada arti-go. A decisão sobre a publicação de um manuscrito sem-pre será da Comissão Editorial, que fará uma avaliação do texto original, das sugestões indicadas pelos consultores e das modificações encaminhadas pelo autor. No enca-minhamento da versão modificada do seu manuscrito, os autores deverão incluir uma carta ao Editor, esclarecendo as alterações feitas, aquelas que não julgaram pertinentes e a justificativa. Pequenas modificações poderão ser fei-tas pela Comissão Editorial para viabilizar o processo de avaliação e publicação. Os autores receberão a decisão da publicação ou não do seu manuscrito e a data provável de publicação, quando for o caso. Os manuscritos recu-sados poderão ser apresentados novamente após uma re-formulação substancial do texto conforme indicações dos consultores e da Comissão Editorial e, neste caso, serão encaminhados aos mesmos consultores que revisaram o trabalho anteriormente.

3. encaminhamento e Apresentação dos manuscritos

Os manuscritos submetidos à publicação devem ser inéditos e destinarem-se exclusivamente a esta revista, não sendo permitida a sua apresentação simultânea em outro periódico. Todos os trabalhos serão submetidos a uma avaliação “cega”, por – no mínimo – dois pareceris-tas, pares especialistas na temática proposta.

noRmAS de PUBlicAção dA ReViStA dA ABoRdAgem geStálticA

iSSn 1809-6867 versão impressaiSSn 1984-3542 versão on-line

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A submissão do manuscrito deverá ser realizada por sistema eletrônico de gerenciamento do processo de pu-blicação, disponível em http://submission-pepsic.scielo.br/index.php/rag/. Procedida à submissão, os autores re-ceberão uma mensagem de confirmação. Os manuscritos recebidos por correio convencional, fax, e-mail ou qual-quer outra forma de envio não serão apreciados pela Co-missão Editorial. Não serão admitidos acréscimos ou al-terações após o envio dos manuscritos para o Conselho Editorial, salvo aqueles por ele sugeridos.

As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exa-tidão e adequação das Referências são de exclusiva res-ponsabilidade dos autores.

A publicação dos trabalhos dependerá da observân-cia das normas da revista e da apreciação do Conselho Editorial, que dispõe de plena autoridade para decidir sobre a conveniência da sua aceitação, podendo, inclu-sive, apresentar sugestões aos autores para as alterações necessárias.

Quando a investigação envolver sujeitos humanos, os autores deverão apresentar no corpo do trabalho uma de-claração de que foi obtido o consentimento dos sujeitos por escrito (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) e/ou da instituição em que o trabalho foi realizado (Comis-são de Ética em Pesquisa). Trabalhos sem o cumprimento de tais exigências não serão publicados.

Os autores serão notificados sobre a aceitação ou a re-cusa de seus artigos, os quais, mesmo quando não forem aproveitados, não serão devolvidos.

4. forma de Apresentação dos mauscritos

A revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenolo--gical Studies adota, em geral, normas de publicação ba-seadas no Manual de Publicação da American Psycholo-gical Association (APA) – 6ª edição, 2012.

Os manuscritos poderão ser redigidos em português, inglês, francês ou espanhol.

4.1 Partes do Manuscrito

1. Folha de rosto identificada: a) título do trabalho em português; b) título do trabalho em inglês; c) título do trabalho em espanhol; d) indicação da categoria na qual o trabalho se insere (relato de pesquisa, estudo teórico ou histórico, revisão crítica de literatura, resenha); e) nome completo e afiliação institucional dos autores (apenas universidade); f) nome completo, endereço completo (in-clusive CEP) e E-mail de pelo menos um dos autores para correspondência com a revista e leitores. Esta deverá ser a única parte do texto com a identificação dos autores, pa-ra que seja garantido seu anonimato. ATENÇÃO: A folha de rosto identificada deve ser enviada, no sistema, como “documento suplementar”, separada do texto principal.

O texto principal deve iniciar com o item a seguir (folha de rosto sem identificação).

2. Folha de rosto sem identificação: a) título do tra-balho em português; b) título do trabalho em inglês; c) título em espanhol; d) indicação da categoria na qual o trabalho se insere (relato de pesquisa, estudo teórico ou histórico, revisão crítica de literatura, resenha).

3. Folha de resumos: a) resumo em português; b) palavras-chave em português; c) abstract (versão do re-sumo para o inglês); d) keywords (versão das palavras- chave para o inglês); e) resumen (versão do resumo em espanhol); e) palavras-clave. Resenhas não precisam de resumo. Maiores especificações no item a seguir.

Os trabalhos deverão ser digitados em programa Word for Windows, em letra Times New Roman, tamanho 12, espaçamento interlinear 1, 5 e margens de 2, 5 cm, em papel formato A4, perfazendo o total máximo de laudas, de acordo com o tipo de publicação desejada (ver Infor-mações Gerais), observadas as seguintes especificações:

4.2 Especificações do Manuscrito

a) Título – é recomendado que o título do artigo se-ja escrito em até doze palavras, refletindo as principais questões de que trata o manuscrito. Deve ser redigido em fonte 14, centralizado e em negrito. A seguir, devem vir, em itálico, centralizados e em fonte 12, os títulos em in-glês e espanhol.

b) Epígrafe – quando for necessária, poderá ser apre-sentada, em letra normal, com espaçamento interlinear simples, fonte 10, e alinhamento à direita. O nome do autor da epígrafe deverá aparecer em itálico, seguido da referência da obra.

c) Resumo e Palavras-chave – deverão ser redigidos em português, inglês e espanhol, em parágrafo único, es-paçamento interlinear simples, fonte 10, entre 120 e 200 palavras. As palavras-chave (descritores), de três a cinco termos significativos, deverão remeter ao conteúdo fun-damental do trabalho. Para a sua determinação, consultar a lista de Descritores em Ciências da Saúde – elaborada pela Bireme e/ou Medical subject heading – comprehen-sive medline. Todas as palavras deverão ser escritas com iniciais maiúsculas e separadas por ponto e vírgula. In-cluir também descritores em inglês (keywords) e espanhol (Palabras-clave).

d) Estrutura do manuscrito – os trabalhos referentes a pesquisas deverão conter introdução, objetivos, meto-dologia, resultados e conclusão. O trabalho deverá ser redigido em linguagem clara e objetiva. As palavras es-trangeiras e os grifos do autor deverão vir em itálico.

e) Nomenclaturas e Abreviaturas – usar somente as oficiais. O uso de abreviaturas e de siglas específicas ao conteúdo do manuscrito deverá ser feito com sua indica-ção entre parênteses na primeira vez em que aparecem no manuscrito, precedida da forma por extenso.

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f) Notas de rodapé – deverão ser numeradas conse-cutivamente na ordem em que aparecem no manuscrito com numerais arábicos sobrescritos e restritas ao míni-mo indispensável. Não coloque números de rodapé nos títulos do texto.

g) Citações – deverão ser feitas de acordo com as normas da APA (6ª edição, 2012). Em caso de transcri-ção integral de um texto com número inferior a quarenta palavras, a citação deverá ser incorporada ao texto entre aspas duplas, com indicação, após o sobrenome do autor e a data, da(s) página(s) de onde foi retirado. Uma citação literal com quarenta ou mais palavras deverá ser desta-cada em bloco próprio, começando em nova linha, sem aspas e sem itálico, com o recuo do parágrafo alinhado com a primeira linha do parágrafo normal. O tamanho da fonte deve ser 12, e o espaçamento interlinear deverá ser 1, 5 como no restante do manuscrito. A citação destacada deve ser formatada de modo a deixar uma linha acima e outra abaixo da mesma.

h) Referências – denominação a ser utilizada. Não use Bibliografia. As referências seguem as normas da APA (6ª edição, 2012) adotando o sistema de citação au-tor-data e são listadas em ordem alfabética na lista de referências. A fonte deverá ser formatada em tamanho 12, espaçamento interlinear 1, 5. O subtítulo Referên-cias deverá estar alinhado à esquerda. A primeira linha de cada referência inicia-se junto à margem esquerda e as linhas subsequentes recuam 0, 75cm à direita, uti-lizando o recurso “deslocamento” do editor de texto. Verificar se todas as citações feitas no corpo do manus-crito e nas notas de rodapé aparecem nas Referências e se o ano da citação no corpo do manuscrito confere com o indicado na lista final.

i) Anexos – usados somente quando indispensáveis à compreensão do trabalho, devendo conter um mínimo de páginas (serão computadas como parte do manuscri-to) e localizados após Referências.

j) Figuras e Tabelas – devem surgir no corpo do tex-to, diretamente no local considerado adequado pelo(s) autor(es). Devem ser elaboradas segundo os padrões de-finidos pela APA, com as respectivas legendas e títu-los. Títulos de tabelas devem obedecer ao seguinte pa-drão: em linha isolada, coloque o número da tabela (Ex.: Tabela 1), sem ponto final. Na linha seguinte, coloque o título da tabela, em itálico, usando maiúsculas no início das palavras (Ex.: Números Médios de Respostas Corre-tas de Crianças Com e Sem Treinamento Prévio). Títulos de figuras devem obedecer ao seguinte padrão: coloque o número da figura em itálico, seguido de ponto final. Logo em seguida, coloque o título da figura, apenas com a primeira letra do título em maiúsculas. (Ex.: Figura 1. Frequência acumulada de sequências de respostas corre-tas). Os títulos das tabelas deverão ser colocados no alto das mesmas, e os das figuras deverão ser colocados abai-xo das mesmas. Encerre os títulos de figuras com ponto final, mas não os títulos de tabelas.

4.3 Tipos comuns de citação no texto

– Citação de artigo de autoria múltiplaa) dois autores

O sobrenome dos autores é explicitado em todas as citações, usando “e” ou & conforme a seguir: “O método proposto por Siqueland e Delucia (1969)” ou “o método foi inicialmente proposto para o estudo da visão (Sique-land & Delucia, 1969)”

b) de três a cinco autoresO sobrenome de todos os autores é explicitado na pri-

meira vez em que a citação ocorrer de acordo com o exem-plo: “Spielberger, Gorsuch, Siqueland, Delucia e Lushene (1994) verificaram que”. A partir da segunda citação, in-clua o sobrenome do primeiro autor seguido da expressão “et al.” (sem itálico e com um ponto após o ‘al”). Omita o ano de publicação na segunda citação em caso citações subsequentes em um mesmo parágrafo.

Caso as Referências e a forma abreviada produzam aparente identidade de dois trabalhos em que os co-au-tores diferem, esses são explicitados até que a ambigui-dade seja eliminada.

Na seção de Referências, os nomes de todos os auto-res devem ser relacionados.

c) com mais de cinco autoresNeste caso, faça a chamada apenas com o sobrenome

do primeiro autor seguido de “et al.” e do ano de publica-ção na primeira e nas citações subsequentes. Na seção de Referências, todos os nomes são relacionados.

– Citação de autores com o mesmo sobrenomeSe uma lista de referências possui publicações de dois

ou mais autores principais com o mesmo sobrenome, in-dique as iniciais do primeiro autor em todas as chamadas do texto, mesmo que o ano de publicação seja diferente.

– Citações de trabalho discutido em uma fonte secun-dáriaCaso se utilize como fonte um trabalho discutido em

outro, sem que o texto original tenha sido lido (por exem-plo, um estudo de Flavell, citado por Shore, 1982), deverá ser usada a seguinte citação: “Flavell (conforme citado por Shore, 1982) acrescenta que estes estudantes...”

Na seção de Referências, informar apenas a fonte se-cundária (no caso Shore, 1982), com o formato apropriado.

Sugere-se evitar, ao máximo, o uso de citações ou re-ferências secundárias.

– Citações de obras antigas reeditadasa) Quando a data do trabalho é desconhecida ou mui-

to antiga, citar o nome do autor seguido de “sem data”: “Piaget (sem data) mostrou que...” ou (Piaget, sem data).

b) Em obra cuja data original é desconhecida, mas a data do trabalho lido é conhecida, citar o nome do au-

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tor seguido de “tradução” ou “versão” e data da tradução ou da versão: “Conforme Aristóteles (tradução 1931)” ou (Aristóteles, versão 1931).

c) Quando a data original e a consultada são diferen-tes, mas conhecidas, citar autor, data do original e data da versão consultada: “Já mostrava Pavlov (1904/1980)” ou (Pavlov, 1904/1980).

As referências a obras clássicas, como a Bíblia e o Alco-rão, cujas seções são padronizadas em todas as edições são citadas somente no texto e não na seção de Referências.

– Citação de comunicação pessoalEste tipo de citação deve ser evitada, por não ofere-

cer informação recuperável por meios convencionais. Se inevitável, deverá aparecer no texto, mas não na seção de Referências, com a indicação de “comunicação pessoal”, seguida de dia, mês e ano. Ex.: “C. M. Zannon (comuni-cação pessoal, 30 de outubro de 1994).”

4.4 Seção de Referências

Genericamente, cada entrada numa lista de referências contém os seguintes elementos: autor, ano de publicação, título e outros dados de publicação importantes numa busca bibliográfica. Os autores são os responsáveis pelas informações em suas listas de referências.

Assim, organize a lista de referências por ordem alfa-bética dos sobrenomes do primeiro autor seguido pelas iniciais dos primeiros nomes. Ordene letra por letra, lem-brando-se de que “nada precede algo”: Brown, J. S, pre-cede Browning, A. S., embora o i preceda o j no alfabeto.

Em casos de referência a múltiplos estudos do mesmo autor, organize pela data de publicação, em ordem crono-lógica, ou seja, do estudo mais antigo ao mais recente. Re-ferências com o mesmo primeiro autor, mas com diferen-tes segundos ou terceiros autores, devem ser organizadas por ordem alfabética dos segundos ou terceiros autores (ou quartos ou quintos...). Os exemplos abaixo auxiliam na organização do manuscrito, mas certamente não es-gotam as possibilidades de citação. Utilize o Manual de Publicação da APA/American Psychological Association (2012, 6ª edição) para suprir possíveis lacunas.

4.4.1 Exemplos de tipos comuns de referência

– Artigo em periódico científicoInformar nome e volume do periódico em itálico, em

seguida, o número entre parênteses, sobretudo quando a paginação é reiniciada a cada número.

Tenório, C. M. D. (2003b). O Conceito de Neurose em Gestalt-Terapia. Revista Universitas Ciências da Saúde, 1(2), 239-251.

Garcia, C. A., & Rocha, A.P. R. (2008). A Adolescência co-mo Ideal Cultural Contemporâneo. Psicologia Ciência e Profissão, 28(3), 622-631.

– Artigos consultados em mídia eletrônicaQuando houver versão impressa (mesmo que em PDF,

usar regras anteriores).

Toassa, G., & Souza, M. P. R. de. (2010). As vivências: questões de tradução, sentidos e fontes epistemológicas no legado de Vigotski. Psicologia USP, 21(4). Recuperado em Outubro de 2009, de http://www.marxists.org/archi-ve/luria/works/1930/child/ch06.htm

Evangelista, P. (2010). Interpretação Crítica da teoria de Campo Lewiniana a partir da Fenomenologia. Centro de Formação e Coordenação de Grupos em Fenomenologia. Disponível em http://www.fenoegrupos.com/JPM-Arti-cle3/index.php?sid=14

Ribeiro, C. V. S., & Leda, D. B. (2004). O significado do trabalho em tempos de reestruturação produtiva. Estudos e pesquisas em psicologia [online], vol. 4, supl. 2 [citado em 13 Abril, 2011], p. 76-83. Disponível em: http://pep-sic.bvsalud.org/pdf/epp/v4n2/v4n2a06.pdf

– livrosFéres-Carneiro, T. (1983). Família: diagnóstico e terapia. Rio de Janeiro: Zahar.

– Capítulo de livroAguiar, W. M. J., Bock, A. M. B., & Ozella, S. (2001). A orientação profissional com adolescentes: um exemplo de prática na abordagem sócio-histórica. Em M. B. Bock, M. da G. M. Gonçalves & O. Furtado (Orgs.), Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em Psicologia (p. 163-178). São Paulo: Cortez.

Parlett, M. (2005). Contemporary Gestalt Therapy: Field theory. Em A. L. Woldt & S. M. Toman (Eds.), Gestalt the-rapy History, Theory, and Practice (p. 41-63). California: Sage Publications.

– livro traduzido em língua portuguesaSalvador, C. C. (1994). Aprendizagem escolar e construção de conhecimento. (E. O. Dihel, Trad.) Porto Alegre: Artes Médicas. (Originalmente publicado em 1990)

Se a tradução em língua portuguesa de um trabalho em outra língua é usada como fonte, citar a tradução em por-tuguês e indicar ano de publicação do trabalho original.

No texto, citar o ano da publicação original e o ano da tradução: (Salvador, 1990/1994).

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– obras antigas com reedição em data muito posteriorFranco, F. de M. (1946). Tratado de educação física dos meninos. Rio de Janeiro: Agir (Originalmente publicado em 1790).

– obra no preloNão deverão ser indicados ano, volume ou número de

páginas até que o artigo esteja publicado. Respeitada a or-dem de nomes, é a ultima referência do autor.

Conceição, M. I. G. & Silva, M. C. R. (no prelo). Mitos so-bre a sexualidade do lesado medular. Revista Brasileira de Sexualidade Humana.

– Autoria institucionalAmerican Psychiatric Association (1995). DSM-IV, Manu-al Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (4ª ed. Revisada). Porto Alegre: Artes Médicas

– relatório técnicoBirney, A. J. & Hall, M. M. (1981). Early identification of children with written language disabilities (relatório n. 81-1502). Washington, DC: National Education As-sociation.

– Trabalho apresentado em congresso, mas não publi-cado

Haidt, J., Dias, M. G. & Koller, S. (1991, fevereiro). Dis-gust, disrespect and culture: moral judgement of victim-less violations in the USA and Brazil. Trabalho apresen-tado em Reunião Anual (Annual Meeting) da Society for Cross-Cultural Research, Isla Verde, Puerto Rico.

– Trabalho apresentado em congresso com resumo pu-blicado em publicação seriada regularTratar como publicação em periódico, acrescentando

logo após o título a indicação de que se trata de resumo.

Silva, A. A. & Engelmann, A. (1988). Teste de eficácia de um curso para melhorar a capacidade de julgamentos cor-retos de expressões faciais de emoções [resumo]. Ciência e Cultura, 40 (7, Suplemento), 927.

– Trabalho apresentado em congresso com resumo pu-blicado em número especialTratar como publicação em livro, informando sobre

o evento de acordo com as informações disponíveis em capa.

Todorov, J. C., Souza, D. G. & Bori, C. M. (1992). Escolha e decisão: A teoria da maximização momentânea [Resumo]. In Sociedade Brasileira de Psicologia (org.), Resumos de comunicações científicas, XXII Reunião Anual de Psico-logia (p. 66). Ribeirão Preto: SBP.

Meneghini, R. & Campos-de-Carvalho, M. I. (1995). Áreas circunscritas e agrupamentos seqüenciais entre crianças em creches [Resumo]. In Sociedade Brasileira de Psico-logia (org.), XXV Reunião Anual de Psicologia, Resumos (p. 385). Ribeirão Preto: SBP.

– Teses ou dissertaçõesDias, C. M. A. (1994). Os distúrbios da fronteira de conta-to: Um estudo teórico em Gestalt-Terapia (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília.

Santos, A. C. (2008) A crítica de Sartre ao ego transcen-dental na fenomenologia de Husserl (Dissertação de Mes-trado em Filosofia). Centro de Ciências Sociais e Huma-nas, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria.

5. direitos Autorais

Os direitos autorais dos artigos publicados pertencem à revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies. A reprodução total dos artigos dessa revista em outras publicações, ou para qualquer outra utilidade, está condicionada à autorização por escrito do Editor da Re-vista da Abordagem Gestáltica.

– reprodução parcial de outras publicaçõesManuscritos submetidos à apreciação que contiverem

partes de texto extraídas de outras publicações deverão obedecer aos limites e normas especificados para garan-tir a originalidade do trabalho submetido.

Recomenda-se evitar a reprodução de figuras, tabelas e desenhos extraídos de outras publicações, mas caso o au-tor opte por fazê-lo deverá apresentar as cartas de permis-são dos detentores dos direitos autorais para a reprodução do material protegido e a inclusão de cópias dessas car-tas junto ao manuscrito submetido. A permissão deve ser endereçada ao autor do trabalho submetido à apreciação.

Em nenhuma circunstância, a revista da Abordagem Gestáltica – Phenomenological Studies e os autores dos trabalhos publicados nessa revista poderão repassar a ou-trem os direitos assim obtidos.

6. correspondências

Editorrevista da Abordagem Gestáltica –

Phenomenological Studies ITGT – Instituto de Treinamento e Pesquisa

em Gestalt-terapia de GoiâniaRua 1.128 nº 165 – Setor Marista/Goiânia-GO

CEP: 74.175-130


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