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Pirandello Nunca Mais: Ricardo Hofstetter e o espectro pirandelliano

Date post: 28-Mar-2023
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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013 ISSN: 1981-8211 PIRANDELLO NUNCA MAIS: RICARDO HOFSTETTER E O ESPECTRO PIRANDELLIANO 1 Lucas Martins NÉIA (UEL) 2 Sonia PASCOLATI (UEL) 3 Prólogo Pirandello é um pessimista. Mas a maior parte das pessoas oriundas da Europa também deveria ser; essas pessoas que sofreram as extraordinárias vicissitudes do século XX sem entender nada, tendo que sofrer passivamente. O homem moderno, é claro, não é mais passivo e alienado da verdade como seus ancestrais. O que acontece é que ele está simplesmente mais consciente do seu abandono. (BENTLEY, 1991, p. 227) Um dos dramaturgos mais notáveis do início do século XX, Luigi Pirandello contempla em sua obra uma discussão sobre o próprio teatro: por meio de reflexões filosóficas, como questionamentos sobre o “ser” e o “parecer”, o italiano questiona as mais variadas formas dramáticas e coloca em confronto diferentes “entidades” teatrais – do autor ao espectador, passando pelo diretor, pelos atores e até mesmo pela personagem; a tônica de sua dramaturgia pode, então, ser resumida a partir do conceito de metateatro, essencial à compreensão de uma poética pirandelliana. Tendo como ponto de partida o estudo dos recursos e procedimentos metateatrais presentes nas peças de Pirandello, procurou-se investigar a presença de pressupostos filosóficos e estéticos tão caros à obra do autor italiano no texto dramático Pirandello nunca mais, de Ricardo Hofstetter, encenado em 1994 no Rio de Janeiro sob a direção de Bernardo Jablonski e Stella Freitas. Nesta “farsa em um ato”, como é subintitulada, três personagens surpreendem seu criador um dramaturgo que, cansado de se dedicar a sucessos apenas comerciais, resolve se empenhar naquela 1 Este trabalho deriva da iniciação científica Pirandello nunca mais: elementos da poética pirandelliana na dramaturgia brasileira, desenvolvida por Lucas Martins Néia com auxílio de bolsa PROIC/PIBIC/CNPq entre agosto de 2011 e julho de 2012. 2 Graduando em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina. 3 Professora Doutora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina Orientadora.
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IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação

Múltiplos Olhares 05, 06 e 07 de junho de 2013

ISSN: 1981-8211

PIRANDELLO NUNCA MAIS: RICARDO HOFSTETTER

E O ESPECTRO PIRANDELLIANO 1

Lucas Martins NÉIA (UEL) 2

Sonia PASCOLATI (UEL) 3

Prólogo

Pirandello é um pessimista. Mas a maior parte das pessoas oriundas da Europa

também deveria ser; essas pessoas que sofreram as extraordinárias vicissitudes do

século XX sem entender nada, tendo que sofrer passivamente. O homem moderno,

é claro, não é mais passivo e alienado da verdade como seus ancestrais. O que

acontece é que ele está simplesmente mais consciente do seu abandono.

(BENTLEY, 1991, p. 227)

Um dos dramaturgos mais notáveis do início do século XX, Luigi Pirandello contempla em

sua obra uma discussão sobre o próprio teatro: por meio de reflexões filosóficas, como

questionamentos sobre o “ser” e o “parecer”, o italiano questiona as mais variadas formas

dramáticas e coloca em confronto diferentes “entidades” teatrais – do autor ao espectador, passando

pelo diretor, pelos atores e até mesmo pela personagem; a tônica de sua dramaturgia pode, então, ser

resumida a partir do conceito de metateatro, essencial à compreensão de uma poética pirandelliana.

Tendo como ponto de partida o estudo dos recursos e procedimentos metateatrais presentes

nas peças de Pirandello, procurou-se investigar a presença de pressupostos filosóficos e estéticos tão

caros à obra do autor italiano no texto dramático Pirandello nunca mais, de Ricardo Hofstetter,

encenado em 1994 no Rio de Janeiro sob a direção de Bernardo Jablonski e Stella Freitas. Nesta

“farsa em um ato”, como é subintitulada, três personagens surpreendem seu criador – um

dramaturgo que, cansado de se dedicar a sucessos apenas comerciais, resolve se empenhar naquela

1 Este trabalho deriva da iniciação científica Pirandello nunca mais: elementos da poética pirandelliana na

dramaturgia brasileira, desenvolvida por Lucas Martins Néia com auxílio de bolsa PROIC/PIBIC/CNPq

entre agosto de 2011 e julho de 2012. 2 Graduando em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina.

3 Professora Doutora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de

Londrina – Orientadora.

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que seria sua obra-prima em qualidade – ao aparecerem diante do próprio autonomamente, sendo

capazes, inclusive, de pensamentos e atos por ele jamais imaginados.

Para investigar pontos de convergência entre a peça de Hofstetter e a poética pirandelliana,

tomou-se como parâmetro fundamental desta pesquisa a famosa trilogia “do teatro no teatro”, da

qual fazem parte Seis personagens à procura de um autor – cujo destaque se dá na relação

personagem-intérprete ou, aprofundando-se no subtexto, no conflito entre dramaturgo e ator –, Cada

um a seu modo – na qual diversas dicotomias explicitam o binômio vida-arte – e Esta noite se

representa de improviso – cujo embate diretor-ator compositor sugere o mote da peça.

Ato único

Elucubrações pirandellianas por Ricardo Hofstetter

Antes de entrarmos no principal objeto deste estudo, debrucemo-nos um pouco sobre seu

autor, Ricardo Hofstetter. Em prefácio à versão de Pirandello nunca mais encontrada em edição de

1994 dos Cadernos de teatro d’O Tablado, assim está disposto seu perfil:

Ricardo Hofstetter é escritor, já tendo publicado Exercícios em verso e prosa

(Editora do Autor, 1984), Antologia Mitavaí (Editora Mitavaí, 1986) e Folhetim

voador (Editora Record, 1987). No teatro, obteve o 1º lugar no Concurso Nacional

de Dramaturgia do IAB, categoria infantil, com o texto As aventuras de Pedro

Malazartes (1993). Além disso, foi colaborador d’O pasquim e redator-colaborador

da TV Globo (1993).

A este trecho, acrescentam-se as seguintes informações – retiradas de seu próprio blog:

Hofstetter ganhou, em 2004, o prêmio Shell de melhor texto com a peça Geraldo Pereira, um

escurinho brasileiro; um de seus romances foi indicado ao prêmio Jabuti em 2007. Na TV,

escreveu, entre outras, Malhação 2003, Malhação 2004, Malhação ID e a novela Beleza Pura (esta

última como colaborador).

Em Pirandello nunca mais, temos, no “plano da realidade”, duas personagens: um escritor

de teatro atormentado, assim descrito e apresentado, e Oscar (observar que o nome da personagem

não tem nada de gratuito), um produtor teatral bem sucedido. No passado, ambos, enquanto

estudantes, tinham planos em relação a suas carreiras: o primeiro planejava ser um escritor

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reconhecido pela qualidade de sua obra; já o segundo desde então era mais prático e visava apenas

um bom futuro financeiro. Como se pode notar, este atingiu seu intuito, enquanto aquele alcançou o

sucesso através de comédias de qualidade duvidosa, calcadas sobre uma estética comercial e

popularesca. Deparamos-nos, no início, com um escritor já fatigado de tudo isso e disposto a

construir sua obra-prima; este objetivo o levou, no entanto, a abandonar outra de suas criações pela

metade. É aí que entra o “plano da ficção”: três personagens, o Dr. Pedro – descrito como “chefe de

família classe média burra” –, Analice – “dona-de-casa e mulher do Dr. Pedro” – e Leivinha –

“‘bicha’ muito louca” –, ao se darem conta de que não sairão do papel, conseguem se transportar

para o “plano da realidade” com a finalidade de convencer (ou, melhor dizendo, obrigar) seu criador

a prosseguir com aquela peça, intitulada Pela bola 7, e concluir suas histórias.

Assim como na trilogia pirandelliana, temos uma peça moldura e uma peça de encaixe: a

peça moldura é o “plano da realidade”, responsável por retratar os dramas e aflições do escritor de

teatro e o embate entre as ideias deste e de Oscar, o produtor; a peça de encaixe é aquela

correspondente ao “plano da ficção”, que dá margem à comédia escapista de Dr. Pedro, Analice e

Leivinha. Em Seis personagens à procura de um autor, talvez pela incongruência assumida desde o

início entre ambos os planos, peça moldura e peça de encaixe estarão mais bem delimitadas quanto

às outras duas peças da trilogia: o primeiro plano trata de uma companhia de teatro a viver os

preparativos de uma peça; o segundo reside no drama das seis personagens que conferem o título à

obra.

Em Cada um a seu modo, está a ser representada, no “plano da ficção”, a história entre a

atriz Délia Morello e Michele Rocca, que culminara com a morte do pintor Giorgio Salvi; esta

representação causará alvoroço na plateia e nas coxias do teatro justamente por lá estarem presentes

as supostas pessoas nas quais a ficção fora baseada. Já em Esta noite se representa de improviso, a

fronteira entre os conceitos de peça moldura e peça de encaixe é ainda mais tênue, afinal as

possibilidades de representação da história de amor de Rico Verri e Mommina serão discutidas

simultaneamente à sua realização.

A mescla entre os dois níveis de representação (peça moldura e peça de encaixe), como se

vê, se dá com cores mais fortes em Pirandello do que em Hofstetter. Talvez isto ocorra devido à

presença da entidade teatral representativa dos atores desde o início das obras dramáticas

supracitadas. Em Pirandello nunca mais, aquelas personagens planas e arquetípicas interpretarão a

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si mesmas, ou seja, tornar-se-ão os próprios atores da peça de encaixe por uma questão de physique

du rôle a partir da visão do produtor teatral; menciona-se a classe dos atores apenas ao final.

Somente neste momento, portanto – dispostos todos os componentes do tabuleiro cênico –, haverá

uma dissolução real da fronteira entre “plano da realidade” e “plano da ficção”.

A premissa de Pirandello nunca mais – personagens que vão à luta para serem representadas

– muito se assemelha ao dilema das seis personagens que dão título à primeira peça da trilogia “do

teatro no teatro”. Veem-se nas duas peças personagens marcadas pelo fracasso: temos, na obra de

Hofstetter, um escritor frustrado com sua própria produção e personagens rasas que, além de

viverem uma vida medíocre, são deixadas de lado por seu criador; as seis personagens

pirandellianas, por sua vez, padecem do mesmo mal de Dr. Pedro, Analice e Leivinha, enquanto a

companhia de teatro não realiza nem seu ensaio e tampouco obtém sucesso na representação do

drama daqueles seres que invadiram o teatro.

O fracasso em Seis personagens à procura de um autor, segundo Bina (2007, p. 97-98),

carrega um significado simbólico:

Todos esses projetos não realizados na peça [...] não representam simplesmente

uma recusa àquele melodrama da família ou à incompetência daquela companhia

para a representação teatral, mas a recusa a uma tradição teatral em que o palco

pretendia dar uma perfeita ilusão de realidade e o saturamento daquele modelo de

fazer teatral, que não correspondia às expectativas e necessidades da arte moderna.

O fracasso compreendido em Pirandello nunca mais, reforçado pelo péssimo resultado

obtido pela encenação do “plano da ficção”, também pode ser visto sob este prisma: uma crítica a

essa comédia rasteira, movida apenas por razões comerciais e que não se sustenta como arte. Este

tipo de produção, legítimo herdeiro do besteirol surgido à década de 19804 nos teatros brasileiros,

banalizou o sentido do termo, minimizando-o a uma comédia escapista e de fácil digestão por parte

do espectador.

4 Albuquerque (1992, p. 33), ao traçar um painel acerca do teatro brasileiro da década de 1980, afirma que a

mesma assistiu “ao aparecimento de uma mistura de ‘performance art’ e comédia de improviso chamada de

‘teatro do besteirol’”; este último gênero é marcado por sua instantaneidade, espontaneidade e proximidade,

traços que são, ao mesmo tempo, seus pontos fortes e fracos.

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Retomando as noções de peça moldura e peça de encaixe, esta crítica fica mais visível e

contundente: em Pirandello, as peças de encaixe apresentam-se todas no âmbito melodramático – o

drama das seis personagens, o suicídio de Giorgio Salvi, o amor impossível de Mommina e Rico

Verri; ora, Pirandello estava justamente a criticar o teatro tradicional à época: o drama burguês e sua

hierarquia, o drama realista ainda calcado em convenções aristotélicas de manutenção linear de

tempo, espaço e ações no desenvolvimento do texto dramático (BINA, 2007, p. 97-98). Em

Hofstetter, a peça de encaixe também pertence ao gênero criticado, uma “baixa comédia à

brasileira”.

John Gassner (1980, p. 107), ao refletir sobre a criação de personagens autônomas e

conscientes de sua condição ficcional por parte de Pirandello, afirma que

[...] quando nasce uma personagem, esta adquire imediatamente uma tal

independência em face do autor que todos nós podemos imaginá-la em situações

nas quais o seu criador nunca pensou em colocá-la, e de iniciativa própria ela

adquire uma significação que o autor jamais sonhou em lhe emprestar.

A interpretação de Gassner sobre o modo de existência das personagens pirandellianas

aplica-se perfeitamente ao estudo das personagens de Pirandello nunca mais, afinal, o próprio autor

chega a se surpreender não apenas com o fato de suas personagens aparecerem diante dele

autonomamente, mas principalmente por serem capazes de atos e pensamentos por ele jamais

imaginados.

Ainda no âmbito de estudo da personagem pirandelliana, percebe-se que, nas obras da

trilogia, a grande maioria dos caracteres não possui um nome: é organizada hierarquicamente de

acordo com a escala teatral. Isto se potencializará ao máximo em Seis personagens à procura de um

autor, pois também se fará presente na peça de encaixe – somente Madame Pace e a Mãe (Amália)

possuem nomes concretos; as outras personagens são o Pai, a Enteada, o Filho, o Rapazinho e a

Menina. Em Cada um a seu modo, o exemplo se torna palpável na medida: as entidades teatrais

(excetuando-se a classe das personagens) permanecem com seus respectivos cargos em sua

nomenclatura – o Diretor Ensaiador, o Administrador da Companhia, Porteiros e Contínuos do

Teatro... Esta noite se representa de improviso possibilita que o ator a representar a peça diga seu

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próprio nome, o que não desconfigura – pelo contrário, reafirma – uma forte característica

pirandelliana:

A não nomeação de suas personagens [de Pirandello] rompe com qualquer noção de

indivíduo centrado, portador de um caráter bem definido, ao qual corresponderia

um nome próprio, reconhecido prontamente pelo espectador, que, por sua vez,

identificar-se-ia com a personagem exposta. [...] A não nomeação sinaliza, então,

uma despersonalização do sujeito, que surge muitas vezes da multiplicidade de egos

em um só indivíduo. Isso contribui para que as personagens pirandellianas sejam

uma, nenhuma e cem mil. (BINA, 2007, p. 98).

A única personagem em Pirandello nunca mais que se apresenta sem um nome próprio é o

escritor atormentado. Ele é a personagem que mais foge às padronizações tradicionais: as outras três

criadas por ele, Dr. Pedro, Analice e Leivinha, são figuras chapadas, planas, resultados do gênero no

qual estão inseridas; Oscar, produtor, apesar de apresentar um nome deveras irônico, tem sua

trajetória durante a peça apresentada de forma bastante linear.

Ao discorrer sobre a personagem de comédia, Renata Pallottini (1989, p. 32) pontua que esta

terá um objetivo claro e nele se empenhará arduamente durante sua trajetória, não apresentando

elipses ou desvios; se este não for obtido, apenas lhe causará uma frustração. O conceito se confirma

quando aplicado às trajetórias de Dr. Pedro, Analice e Leivinha: estes três só quererem ter suas

histórias concretizadas no palco, nada mais; por isso se transportarão para a realidade e infernizarão

a vida de seu criador, cogitando até mesmo a hipótese de matá-lo.

É interessante observar que, neste caso, há uma espécie de contradição em relação ao

pensamento pirandelliano: o “valor de permanência que não existe na finitude das criaturas comuns”

(MAGALDI, 1977, p. 77) ainda será pertinente à personagem, mas esta, feita de parca matéria-

prima, não apresentará consistência maior em relação ao homem, pois é chapada, oca. Não seria a

arte, ao invés da vida, limitando-se? Hofstetter parece querer nos alertar sobre os caminhos para os

quais este teatro ligado a fatores comerciais está levando a arte.

Sobre as personagens da primeira peça da trilogia pirandelliana, Bina (2007, p. 103-104) cita

que

marcadas pela falta de um nome, são eternas personagens inacabadas, que não

conseguem concretizar as ações que lhes caberiam. [...] Todas as funções são

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relativizadas e colocadas em xeque. Isso seria mais um reflexo do momento

conflituoso pelo qual passava o teatro do início do século XX.

No que tange a Pirandello nunca mais, Dr. Pedro, Analice e Leivinha realizam a façanha de,

finalmente, irem para o palco; Oscar tem a peça que tanto almejou; o único a não realizar sua

vontade é o escritor. Este fator soa como uma espécie de “atualização” das questões teatrais. Se

Pirandello tratou de questões pertinentes à sua época, Hofstetter faz o mesmo ao mostrar o

dramaturgo como vítima de contingências comerciais, relegado a fazer parte de um processo

praticamente industrial, de ser apenas mais uma peça em uma grande engrenagem movida pelos

negócios. Não se trata mais do embate entre autor e encenador, mas sim de uma guerra envolvendo

produtor, a parte que visa ao lucro e que trata o espetáculo teatral como negócio, mero produto, e o

autor, responsável pelo teor artístico.

Bina (2007, p. 56) ainda faz uma associação muito interessante entre Pirandello e o Pai de

Seis personagens à procura de um autor:

[...] a personagem é o Pai da peça e Pirandello, assim como todo autor, é

considerado o “pai” da obra. E ambos se encenam como pais omissos: as

personagens são abandonadas pelo pai Pirandello, assim como o Pai, na peça,

abandona seus filhos. E, mesmo quando os filhos são resgatados − na peça, o Pai

leva a todos para casa e Pirandello os inscreve em Seis personagens à procura de

um autor −, esse sentimento de abandono não é superado.

Partindo deste pressuposto, pode-se concluir que o escritor atormentado é Hofstetter. O

histórico do autor também dá margem a esta interpretação. Hofstetter vem de uma tradição calcada

em linguagem de fácil assimilação e comercial: roteirista de TV, como disposto em seu site, possui

diversas comédias no âmbito da literatura dramática, produzidas e não produzidas. Não seria o

escritor porta-voz dos anseios do próprio Ricardo? As tormentas descritas não se abateram,

primeiramente, sobre o autor Hofstetter? Uma instigante possibilidade. Uma maneira de o autor

estar presente, como Pirandello (tanto transmitindo sua carga ideológica através de suas personagens

quanto citando seu próprio nome em críticas proferidas pelas personagens): ironizando a si mesmo.

Em texto acerca da modernidade em Qorpo-santo, de Jean Genet, Leda Martins (apud

BINA, 2007, p. 55) citará a presença do autor em sua obra como um importante elemento da

metateatralidade. Esta presença ocorre através do que Fred Hines chama de “segundo ser”, “artífice

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literário” ou “autor implícito”, encontrado ao se transformar personagens em porta-vozes – o que

ocorre tanto em Pirandello como em Hofstetter – ou através da manipulação direta da ação por parte

de um diretor ou contrarregra fora do palco.

Semelhança óbvia entre a trilogia metateatral pirandelliana e a obra de Hofstetter se dá na já

citada convergência, ao final, entre peça moldura e peça de encaixe, principalmente no que tange a

Seis personagens à procura de um autor, a peça da trilogia na qual este recurso mais apresenta

eficácia.

Ressoará, por trás das árvores, onde o Rapazinho ficou escondido, um estampido

de revólver.

A MÃE (com um grito lancinante, correndo com o filho e todos os outros Atores,

em meio à balbúrdia geral) – Filho! Meu filho! (e, depois, entre a confusão e os

gritos desconexos dos outros) – Socorro! Socorro!

O DIRETOR (entre os gritos, procurando abrir caminho, enquanto o Rapazinho é

erguido pela cabeça e pelos pés e levado embora atrás da cortina branca) – Feriu-

se? Feriu-se de verdade?

Todos, exceto o Diretor e o Pai, que permanece arrasado perto da escadinha,

desaparecerão atrás do pequeno pano de fundo, descido, que serve de céu, e

ficarão ali um pouco, conversando angustiados. Depois, de um lado e do outro do

fundo, voltarão à cena os Atores.

A PRIMEIRA ATRIZ (reentrando pela direita, aflita) – Está morto! Pobre garoto!

Morreu! Oh, que coisa!

O PRIMEIRO ATOR (reentrando pela esquerda, rindo) – Qual morto qual nada!

Ficção! Ficção! Não acredite!

OUTROS ATORES PELA DIREITA – Ficção? Realidade! Realidade! Está morto!

OUTROS ATORES PELA ESQUERDA – Não! Ficção! Ficção!

O PAI (levantando-se e gritando entre eles) – Que ficção qual nada! Realidade!

Realidade, senhores! Realidade! (e desaparecerá também, desesperado, atrás do

fundo)

O DIRETOR (não aguentando mais) – Ficção! Realidade! Vão para o diabo todos

vocês! Luzes! Luzes! Luzes! (de repente, o palco todo e toda a sala do teatro

fulgurarão com vivíssima luz; o Diretor retomará o fôlego como que liberto de um

pesadelo, e todos se olharão nos olhos, suspensos e desnorteados) Ah, nunca tinha

me acontecido uma coisa semelhante! Fizeram-me perder um dia inteiro. (olhará

para o relógio) Vão, vão embora! O que mais querem fazer agora? Tarde demais

para retomar o ensaio. Até a noite! (e assim que os Atores tiverem ido embora,

cumprimentando-o) Ei, eletricista, apague tudo! (mal termina de dizer isso, o teatro

mergulhará por um instante na mais densa escuridão) Ê, diacho! Deixe-me ao

menos uma lâmpada acesa, para ver onde ponho os pés!

De pronto, por trás do pano de fundo branco, como por erro de ligação, acender-

se-á um refletor verde, que projetará, grandes e destacadas, as sombras das

Personagens, menos a do Rapazinho e a da Menina. O Diretor, ao vê-las, saltará

fora do palco, aterrorizado. Ao mesmo tempo, apagar-se-á o refletor atrás do

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fundo e no palco voltará o azul noturno de antes. Lentamente, do lado direito do

pano, adiantar-se-ão o Filho, seguido pela Mãe com os braços estendidos em sua

direção; depois, pelo lado esquerdo, o Pai. Deter-se-ão no meio do palco,

permanecendo ali como formas desvairadas. Sairá, por último, da esquerda, a

Enteada, que correrá em direção a uma das escadinhas; no primeiro degrau,

estacará por um instante para olhar os outros três e explodirá numa risada

estrídula, precipitando-se depois pela escadinha abaixo; correrá através do

corredor, entre as poltronas, parará mais uma vez e rirá novamente, olhando para

os três que ficaram lá em cima; desaparecerá pela sala e, ainda do foyer, ouvir-se-

á sua risada. Pouco depois descerá o pano. (PIRANDELLO, 1999, p. 238-239)

A execução de uma música de Roberto Carlos, para Pirandello nunca mais, é bastante

significativo; o interessante é que iremos saber do insucesso de Pela bola 7 apenas após o cair do

pano.

OSCAR – Já sei! Tá resolvido o final!

ANALICE, LEIVINHA e DR. PEDRO – Qual é?

OSCAR – A gente põe uma música do Roberto Carlos e tá resolvido o problema.

(Os três personagens fazem cara de desaprovação.)

LEIVINHA – Vai assistir máquina de lavar com o bolha lá que a gente resolve o

final, tá?

OSCAR – Deixa de besteira, já está resolvido. Terminamos com Roberto Carlos!

DR. PEDRO – Mas ninguém vai entender nada!

OSCAR – Essa é a ideia da coisa. Presta atenção: os intelectuais vão achar que é

alguma proposta de direção e vão ficar meses estudando a peça pra entender.

Enquanto isso não vão poder falar mal da gente. E o resto do público vai adorar

Roberto Carlos. Todo mundo gosta de Roberto Carlos.

LEIVINHA – Até que você não é burro não, hein?

OSCAR – É claro que não sou burro!

DR. PEDRO – Então o que que a gente está esperando?

LEIVINHA – (para o operador de som) Solta o Roberto.

(Entra uma música do Roberto Carlos.)

(CAI O PANO.)

VOZ EM OFF – (enquanto a plateia vai saindo do teatro) Estreou no Teatro

Corcovado a mais recente produção de Oscar Badaró, a comédia Pela bola 7. O

autor já é conhecido do grande público por peças como Um edifício muito louco,

Comendo pelas bordas e O meu computador computa, obras cujos conteúdos

poderiam ser escritos na cabeça de um alfinete. Mais uma vez o fluxo de sandices é

avassalador e não se consegue entender como ainda existem produtores capazes de

montar tais monumentos da mediocridade teatral. A história é a mesma: um

triângulo amoroso, muitas portas para entradas e saídas e uma bicha que tenta fazer

graça num estilo grosseiro e apelativo. Não se sabe por que motivo ou inovação,

não consta em lugar algum, nem no programa, nem na fachada do teatro, o nome

dos três pobres coitados que tentam se passar por atores. Talvez, para se pouparem,

tenham preferido ficar anônimos, pois os três, sem exceção, são péssimos e

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totalmente inadequados aos papéis que tentam representar. Leivinha, uma bicha

chata e inverossímil, é vivido por um ator que parece nunca ter visto uma bicha na

vida. A moça que tenta fazer o papel de Analice está tão expressiva quanto um

poste de luz apagado. O único ator que se salva é o que faz o papel do Dr. Pedro,

pois consegue, sem grande brilho, passar com humor a falta de cultura de seu

personagem. Os figurinos parecem comprados no camelô da esquina. O cenário,

quando não atrapalha, incomoda. O diretor, nome tão conhecido nos meios teatrais

que no momento me escapa, parece ter feito a direção por correspondência. Enfim,

Pela bola 7 é dessas peças que nos fazem entender porque o público está cada vez

mais distante do teatro. Melhor uma boa partida de sinuca. (HOFSTETTER, 1994,

p. 47)

Ora, e por que este insucesso se eram os próprios personagens a se representarem? Talvez a

explicação se encontre nas reflexões de Pirandello acerca do conflito gerador da “impraticabilidade

da passagem da obra ao público por intermédio do ator” (MAGALDI, 1977, p. 79). O ator, ao

abordar apenas uma verve da vasta gama de possibilidades em torno da personagem dramática, não

teria condições plenas para interpretá-la fidedignamente. Dr. Pedro, Analice e Leivinha são

personagens de comédia, e, como já dito, planos ao extremo, o que limita mais ainda a possibilidade

destes quanto à atuação, pois, com uma reduzidíssima visão de mundo, não terão estofo para

transmitir ao público informações referentes à própria essência.

Epílogo

Importante salientar que Pirandello nunca mais, como aponta seu subtítulo, trata-se de uma

farsa. Teríamos aqui um gênero antiquíssimo a serviço do metateatro, uma velha forma sendo

utilizada como ferramenta de uma nova?

“Enredado de enganos e logros que uma personagem faz a outro” (PALLOTTINI, 1989, 45),

talvez o termo farsa aqui não seja completamente referente ao seu sentido original no que diz

respeito à forma; é absolutamente pertinente, porém, quanto ao plano do conteúdo, afinal temos o

humor deveras grotesco e todos os quiproquós pertinentes ao gênero. Uma comédia com vícios

comerciais, pronta para atrair o grande público ao mostrar os reveses de suas personagens. Uma

farsa contemporânea, portanto.

Pirandello reveste o melodrama com a alta comédia para criticar toda uma linhagem de

dramas “pré-modernos”, isto é, anteriores à crise da forma dramática analisada por Szondi (2001).

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Hofstetter reveste a comédia rasteira com os próprios substratos desta. Preguiça de realizar uma peça

bem feita? Talvez. Mas não subestimemos a capacidade de ironia e raciocínio de um homem capaz

de propor interessantes reflexões a partir de uma obra tão cultuada e intelectualizada como a de

Luigi Pirandello; enxerguemos nesta “fôrma mal amalgamada” mais uma forma de crítica à atual

produção teatral catalisadora de massas tão em voga no eixo Rio-São Paulo.

Referências

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