Date post: | 10-Dec-2023 |
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SONETOS
LUÍS VÁS DE CAMÕES
Análise: Gustavo Borges
A fermosura desta fresca serra (1668 - soneto 136)
Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste (1685-1668 - soneto
101)
Alma minha gentil, que te partiste (1595 - soneto 080)
Amor é um fogo que arde sem se ver (soneto 005)
Busque amor novas artes, novo engenho (l595 - soneto
003)
Cá nesta Babilônia? donde mana (1616 - soneto 120)
Como quando do mar tempestuoso (1598 - soneto 043)
De vos me aparto, ó vida! Em tal mudança (1595 -
soneto 057)
Enquanto quis Fortuna que tivesse (1595 - soneto 001)
Esta lascivo e doce passarinho (1595 - soneto 014)
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (1595 -
soneto 092)
Na ribeira do Eufrates assentado (soneto 129)
O Céu, a terra, o vento sossegado (1616 - soneto 106)
O dia em que eu nasci, moura e pereça (1860 - v)
O tempo acaba o ano, o mês e a hora (1668 - soneto
133)
Pede o desejo, Dama, que vos veja (1595 - soneto 008)
Quando de minhas mágoas a comprida (soneto 100)
Sete anos de pastor Jacob servia (1595 - soneto 030)
Transforma-se o amador na cousa amada (1595 -
soneto 020)
Vencido está de amor meu pensamento (1685-1668 -
soneto 145)
001
Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.
Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,
verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos!
ANÁLISE
A primeira estrofe afirma que o EU-lírico passou a escreve
“suaves pensamentos” depois que o destino lhe deu alguma
esperança. No entanto, ele teve dificuldades de escrever
porque a emoção foi tal que lhe atrapalhou a razão. Daí a
síntese: coitados daqueles que são comandados pelo amor.
A terceira estrofe anuncia o que se lerá em boa parte dos
sonetos desta coletânea: “Quando lerdes num breve livro
casos tão diversos”. O verso é a síntese da postura do poeta:
neoplatônica. Ele anuncia que o leitor encontrará casos de
amor poetizados. O desfecho é uma advertência: só será
possível atingir a perfeição do texto se o leitor já tiver sentido
a perfeição do sentimento. Daí a universalidade do texto que
busca, no interlocutor, a reminiscência do sentimento
máximo: “E sabei que, segundo o amor tiverdes, tereis o
entendimento de meus versos!”
003
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
ANÁLISE
Outra vez a temática de que estar amando é estar afetado,
contaminado. O EU-lírico está deprimido, quase sem
esperança de amar, quase num estágio de “desamor”.
Logo, se o amor mata, ele estaria imune porque sua
esperança de amor está em grau zero.
A segunda estrofe marca um oximoro: o Eu afirma ter outra
esperança: uma perigosa segurança. Isso quer dizer que ele
se sente seguro porque está se fortalecendo diante da morte,
mas qualifica este poder como perigoso, pois, afinal, estaria
sem amor, perdido e confuso como um barco sem leme em
mar revolto.
Os tercetos se iniciam com uma conjunção adversativa – ela
inicia um esclarecimento: não se pode sofrer a ausência de
esperança, pois é o amor que enfraquece o homem. E quase
nada de esperança há. Em destaque está o amor silencioso
e letal que, de acordo com os últimos tercetos é uma
incógnita: neoplatônico porque não é físico e indecifrável.
Daí o temor do EU-lírico.
005
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
ANÁLISE
Neste poema, o autor desenvolve por meio de paradoxos,
uma dissertação que defende a tese de que o Amor é
contraditório no sentido de criar emoções diametralmente
opostas. Trata-se de um belo exemplo de universalidade,
pois não se narra um fato individual. Fala-se, em 3ª pessoa,
do Amor ideal, platônico.
Os primeiros versos cuidam da anáfora “É” com destaque
para o 9º, síntese de todos os anteriores: “É querer estar
preso por vontade”. O verso confirma a ideia grega de que
amar tira o sujeito de seu ponto racional, adoece-o.
A interrogação que encerra o texto confirma a perplexidade
que o amor causa nos homens: como ele, se é tão contrário
a si, em vez de criar ódio cria amizade (amor)? Como ele é
capaz de ir contra sua natureza contraditória e unir a
humanidade inteira? O eu está perplexo não só do poder
amplo do amor, mas de sua capacidade de ser contraditório
dentro da própria contradição – para ele, o Amor é, então,
imprevisível e inefável.
008
Pede o desejo, Dama, que vos veja,
não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja
que não queira perpétuo seu estado;
não quer logo o desejo o desejado,
porque não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana;
que, como a grave pedra tem por arte
o centro desejar da natureza,
assi o pensamento (pola parte
que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)
foi, Senhora, pedir esta baixeza.
ANÁLISE
O soneto 08 indica uma temática menos universal
porque dialogo, no mundo tangível, com sua dama.
Mesmo assim, o esforço em negar o prazer físico
projeta o texto para o neoplatonismo, novamente. Um
outro elemento é acrescido e interpõem-se em relação
aos enamorados: o amor delgado, fino, perfeito.
O EU-lírico afirma que o Amor está enganado pois ele
existe em mair quantidade no desejo. E assim o poeta
traça uma tensão: não conseguiria resistir ao desejo de
pedir uma retribuição amorosa em relação à ideia de
amar só em pensamento.
Assim, deixa claro no final, que a parte responsável
pelo ultraje de galantear a moça é sua parte humana,
vulgar, vil. Daí o adjetivo “baixeza” qualificando o
homem em relação a “senhora”, marcando a
superioridade da mulher. Camões de vale do pacto de
vassalagem, tão caro à poesia trovadoresca e ainda
mundo agraciado por poetas e leitoras do mundo
todo.
014
Está o lascivo e doce passarinho
com o biquinho as penas ordenando;
o verso sem medida, alegre e brando,
espedindo no rústico raminho;
o cruel caçador (que do caminho
se vem calado e manso desviando)
na pronta vista a seta endireitando,
lhe dá no Estígio lago eterno ninho.
Dest' arte o coração, que livre andava,
(posto que já de longe destinado)
onde menos temia, foi ferido.
Porque o Frecheiro cego me esperava,
para que me tomasse descuidado,
em vossos claros olhos escondido.
ANÁLISE
Espelhando-se na natureza, o homem toma a forma de um
beija-flor. Tal bichinho é o poeta transgressor, uma vez que
o Renascimento exige a disciplina métrica, o beija-flor faz
versos sem medida. Pode-se também inferir que faz muitos,
todos alegres e calmos. Seu sossego é quebrado quando um
cruel caçador lhe atinge com uma seta – provavelmente seu
agressor seria um cupido, pois seu coração foi ferido. O tal
flecheiro, cego, via escondido os “claros dias”, como a
espera do momento de atingir mais ferozmente o beija-
flor/poeta.
020
Transforma se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sòmente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
que, como um acidente em seu sujeito
assi co a alma minha se conforma,
está no pensamento como ideia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.
ANÁLISE
(Só) Pela força da imaginação o eu-lírico, extremamente
platônico, consegue amar sua dama. E ele se contenta com
isso, nem precisa mais desejar pois se sente completo. O
segundo quarteto é um excelente exemplo de que o “EU”
seja platônico, pois o centro de seu amor (Cérebro/coração)
já está satisfeito – o contato físico mancharia o amor
imaculado. Trata-se de um encontro transcendente de
almas. Outra vez, o texto se inicia, nos tercetos, com um
conjunção adversativa. Ele afirma que sua “linda ideia” é
coerente como a a forma que compõe o sujeito ou o refrigera
a alma. O poeta finaliza o texto dizendo que sua essência
não é a razão (cérebro), mas o amor, natural e simples tal
qual a formação do universo.
030
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando se com vê la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos,
dizendo: —Mais servira, se não fora para
tão longo amor tão curta a vida.
ANÁLISE
Poema narrativo. Aqui, Camões se apropria de uma célebre
passagem bíblica para contar a epopeica história de
Jacob, metonímia do poeta e dos homens apaixonados.
Jacob era um moço enamorado por Raquel, filha de Labão.
O problema é que, antigamente, a caçula não poderia se
casar antes da filha mais velha. Labão fez um trato com o
pretendente a genro: 7 anos de servidão para se casar com
Raquel. Após a jornada, porém, o patriarca, espertamente,
lhe entrega Lia, a primogênita. Na história bíblica, eles
coabitaram. Aqui, o poeta omite essa cena para enfatizar o
quão grande era o amor de Jacob. Ele trabalha, então, mais
sete anos para conseguir efetivar seu desejo e, com certeza,
trabalharia mais. Atente para o “gran finale” do texto: “—
Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a
vida.”.
043
Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
d'um naufrágio crueljá salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso;
e jura que em que veja bonançoso
o violento mar, e sossegado
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;
Assi, Senhora eu, que da tormenta,
de vossa vista fujo, por salvar me,
jurando de não mais em outra ver me;
minh'alma que de vós nunca se ausenta,
dá me por preço ver vos, faz tornar me
donde fugi tão perto de perder me.
ANÁLISE
O Soneto 43 narra a história de um marinheiro que teme o
naufrágio, mas por sua natureza de argonauta sempre
retorna à embarcação. Paralelamente é possível perceber a
analogia: nauta é o poeta e mar, a amada. O eu-lírico vive
a fugir da tormenta sempre a jurar o término do amor. Porém,
como a ligação com ela é mais forte (minh’alma que de vós
nunca se ausenta), ele, como um refém retorna a ela. Trata-
se de uma luta vã, pois a mulher mulher é sempre o pólo
dominante - suserana.
057
De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança,
sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento,
se mais há de perder quem mais alcança.
Mas dou vos esta firme segurança
que, posto que me mate meu tormento,
pelas águas do eterno esquecimento
segura passará minha lembrança.
Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
que com qualquer cous' outra se contentem;
antes os esqueçais, que vos esqueçam.
Antes nesta lembrança se atormentem,
que com esquecimento desmereçam
a glória que em sofrer tal pena sentem.
ANÁLISE
A temática de perceber o amor como algo que retira do
sujeito a razão é constante no projeto camoniano. Neste
soneto, o eu-lírico chega a despedir-se da vida, pois vê no
contentamento (possibilidade de conclusão do amor) uma
forma de se perder mais.
O paradoxo do 2º quarteto é belo: ele está certo de que se
não completar o amor que sente esquecerá tal paixão. Esta
seria sua segura lembrança – a do esquecimento. A ideia se
segue nos tercetos: ele pede a tristeza nos olhos (choro,
sofrimento) em vez de desejar saciar-se com outra dama.
Viver de amor sofrido é melhor que o esquecimento total,
pois este retira a glória maior do homem neoplatônico: a
coita amorosa.
080
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer te
algüa causa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder te,
roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver te,
quão cedo de meus olhos te levou.
ANÁLISE
Soneto dedicado a sua amada, a chinesa chamada
Dinamene. Camões, segundo a lenda, estava de viagem a
Macau, na China, quando seu navio naufragou. Indeciso,
sem saber se salvaria a noiva ou a obra épica “Os Lusíadas”,
o jovem poeta optou pela narrativa clássica. Com remorso,
escreveu este soneto com base antitética: ela, um anjo
celestial; ele, um homem ímpio, vivendo encarnado, só.
Outra vez vê-se a temática neoplatônica: o homem é impuro
e a mulher perfeita. Por fim, ele pede que ela interceda junto
a Deus, para que este o leve a vê-la, dada a extensão de
seu amor.
092
Mudam se os tempos, mudam se as vontades,
muda se o ser, muda se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía
ANÁLISE
A tônica investida neste soneto não é a lírica, mas a filosófica
– outro tema caro aos renascentistas. Camões aborda a
transitoriedade das coisas à moda de Heráclito: tudo muda,
o universo é múltiplo, dinâmico e constante em sua amada.
Este poema pode se classificado como maneirista em função
da quebra de harmonia e felicidade e uma aproximação do
pessimismo contrarreformista: “do mal ficam as lembranças
e do bem (se algum houve), as saudades. Parece que
o deslumbramento com o ser humano se perdera.
Os tercetos fixam o tempo na estação primavera, oposta ao
frio inverno – uma cena de felicidade contrária os quartetos,
demasiadamente tristes. O mundo parece acompanhar sua
própria movimentação: o doce canto, da primavera, virou
choro e o mundo estacionou neste momento.
Subjetivamente, o poeta percebe que não há mais chance,
para ele, de que a dinâmica da transitoriedade continue.
Está fadado ao sofrimento.
100
Quando de minhas mágoas a comprida
maginação os olhos me adormece,
em sonhos aquela alma me aparece
que para mim foi sonho nesta vida.
Lá nüa soïdade, onde estendida
a vista pelo campo desfalece,
corro par'ela; e ela então parece
que mais de mim se alonga, compelida.
Brado: Não me fujais, sombra benina!
Ela (os olhos em mim cum brando pejo,
como quem diz que já não pode ser),
torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina... a
ntes que diga mene, alardo, e vejo
que nem um breve engano posso ter.
ANÁLISE
O sonho é a possibilidade de materialização e contato com
o mundo ideal/freudiano. A amada aparece em formato de
alma e não fisicamente, no entanto o sonho se transforma em
trauma: quanto mais ele se aproxima dela, mais ela se
afasta. O homem, desesperado, grita, clama para que ela
fique, mas a resposta é categórica: “já não pode ser”. E foge
novamente...
O espírito, num átimo, some. Trata-se de Dinamene, a
amante/noiva referida no soneto 080. Parece que o poeta
é, de fato, atormentado pela ausência dela e seu sofrimento
é real, dentro do sonho (Vide Descartes).
101
Ah! minha Dinamene! Assi deixaste
quem não deixara nunca de querer-te?
Ah! Ninfa! Já não posso ver-te,
tão asinha esta vida desprezaste!
Como já para sempre te apartaste
de quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te,
que não visses quem tanto magoaste?
Nem falar-te somente a dura morte
me deixou, que tão cedo o negro manto
em teus olhos deitado consentiste!
Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte!
Que pena sentirei, que valha tanto,
que inda tenho por pouco o viver triste?
ANÁLISE
Uma revolta inicia o texto: o eu-lírico não concebe a ideia
da morte de sua amada. Entende, porém, o fim da vida
como algo que não impossibilita o diálogo com Dinamene e,
então, promove uma conversa diretamente com ela, não em
sonho, mas por conexão afetiva, desesperadora...
O segundo quarteto se vale outra vez do verbo “perder”
como sinônimo de amar – o poeta se perderia se ela
ficasse/estivesse viva. Ele então revela a causa mortis: as
ondas do mar.
O primeiro terceto parece um espasmo de dor no “EU”:
chora o fato de a ingrata lhe deixar por companhia a morte,
como se isso fosse uma escolha de Dinamene.
Subitamente a ironia se forma na última estrofe: o poeta
arruma força nietzschiniana (mesmo sem ele existir!) para
sobreviver, ainda que na tristeza...
106
O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...
O pescador Aónio, que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:
Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
torna-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
ANÁLISE
O soneto lembra a estrutura imagético-sonora utilizada pelo
Simbolismo, no século XIX. Aqui, Camões evoca também a
natureza como cúmplice da dor e solidão do homem que,
chorando, diz o nome daquela que morreu nas ondas,
Dinamene. A última estrofe é implacável: a natureza é
indiferente aos sofrimentos do homem – “ninguém lhe fala”.
Tudo funciona dentro da frieza habitual: o vento bate nas
ondas, na árvore, na voz do sujeito apaixonado e leva sua
queixa para longe. Talvez sugira o esquecimento, uma vez
que a resposta não lhe é retornada.
120
Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;
Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Às portas da Cobiça e da Vileza;
Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
ANÁLISE
O texto se inicia com a localização do eu-lírico: babilônia,
cidade criada após o dilúvio e que representava a rebelião
direta do homem em relação a Deus – por isso sua projeção
vertical até o céu. O eu-lírico, então, a adjetiva com tantos
pontos pagãos: emanadora de matéria, sem amor puro,
mãe profanadora, mal afinado, o bem desordenado,
tirania, monarquia, elevação vã do nome de Deus, terra
labiríntica, terra cobiçosa e vil. Lugar caótico, escuro e
confuso. No entanto, o verso chave de ouro, o último, fecha
o poema com a possibilidade de redenção: mesmo diante
do “inferno instituído” o eu-lírico se lembra da terra
prometida: Sião. A bíblia coloca Sião como sinônimo de
Jerusalém ou todo o estado de Israel, berço cristão. O texto
é maneirista pois apresenta um pessimismo em oposição a
empolgação humanista proposta pelo renascimento.
129
Na ribeira do Eufrates assentado,
discorrendo me achei pela memória
aquele breve bem, aquela glória,
que em ti, doce Sião, tinha passado.
Da causa de meus males perguntado
me foi: Como não cantas a história
de teu passado bem, e da vitória
que sempre de teu mal hás alcançado?
Não sabes, que a quem canta se lhe esquece
o mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte.
Respondo com suspiros: Quando cresce
a muita saudade, o piadoso
remédio é não cantar senso a morte.
ANÁLISE
Mencionado no livro de Gênesis, Eufrates era um dos quatro
rios que tinham sua fonte no Éden. Ele faz fronteira com o
estado de Israel e está a 568 km do Egito. O rio, a moda de
Heráclito ou qualquer poeta neoclássico, o faz pensar, de
novo, em Sião – espécie de galardão/paraíso, situado em
Israel. Parece que, na segunda estrofe, alguém ou o próprio
rio lhe perguntou sobre as causas de seu sofrimento. Parece
que o interlocutor está indignado diante do grande homem
que chora. Tal interlocutor indaga por que o eu-lirico não
canta/pensa/poetiza as glórias que viveu no passado. É o
que afirma os tercetos: quem canta seus males espanta –
“Canta, pois, e não chores dessa sorte”. Há aqui uma
injeção de ânimos. No entanto, o EU se justifica afirmando
que sua tristeza tem endereço definido e o problema não é
com ele: é saudades de Sião.
131
O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.
luz lhe falte, o sol se [lhe] escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
ANÁLISE
O EU-lírico amaldiçoa o próprio nascimento, talvez pelo fato
de ser “moura”, adjetivo relativo ao povo conquistador da
península Ibérica, um estrangeiro. O significado de povo
moreno, acinzentado, também pode ser aceito por causa do
“eclipse” e padecimento do sol, o que também indica caos,
apocalipse. É o que narra a segunda estrofe, profética e
maldita: o mundo sem luz, sinais do fim, monstros, sangue
em vez de chuva, separações...
O terceiro momento continua na mesma linha: pessoas
pasmadas, chorosas, pálidas, incrédulas com o fim do
mundo.
Diante de tudo isso, o último terceto retoma o início do texto
e justifica o fato de o povo não ter que se assustar diante do
caos, pois há algo pior: o nascimento do eu-lírico, fadado a
sofrer muito mais que o fim de todo o mundo – brilhante
exemplo de texto hiperbólico.
133
O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
a força, a arte, a manha, a fortaleza;
o tempo acaba a fama e a riqueza,
o tempo o mesmo tempo de si chora.
tempo busca e acaba o onde mora
qualquer ingratidão, qualquer dureza;
mas neo pode acabar minha tristeza,
enquanto não quiserdes vós, Senhora.
O tempo o claro dia torna escuro,
e o mais ledo prazer em choro triste;
o tempo a tempestade em grã bonança.
Mas de abrandar o tempo estou seguro
o peito de diamante, onde consiste
a pena e o prazer desta esperança.
ANÁLISE
O tom filosófico é retomado no soneto 133. A efemeridade
promovida pela ação do tempo é implacável. Este
modifica/acaba com o ano, o mês, a hora, a força, a arte,
a manhã e a fortaleza.
O tempo ainda age como fator de isonomia não distinguindo
sujeitos por classes – problema cada vez mais frequente
desde o Renascimento. O tempo, neste texto, cura a raiva e
incita o perdão.
No entanto, o poderoso transformador é impotente diante
da tristeza promovida pela negação do amor pela dama. O
pessimismo gera vassalagem e, neste caso, quanto maior a
dor, maior o Amor. A impotência e indiferença do Tempo em
relação os sentimentos do “EU” continua: o tempo modifica
o dia, o prazer, a tempestade... só resta, então, ao eu-
poemático, blindar-se para que a transitoriedade não
destrua aquilo que é singularmente importante e mantenedor
do amor/sofrimento: a esperança. Para isso, basta ter um
peito de diamante, elemento duro, resistente, capaz de
sustentar a vida e o amor.
136
A fermosura fresca serra,
e a sombra dos verdes castanheiros,
o manso caminhar destes ribeiros,
donde toda a tristeza se desterra;
o rouco som do mar, a estranha terra,
o esconder do sol pelos outeiros,
o recolher dos gados derradeiros,
das nuvens pelo ar a branda guerra;
enfim, tudo o que a rara natureza
com tanta variedade nos ofrece,
me está (se não te vejo) magoando.
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando
nas mores alegrias, mor tristeza.
ANÁLISE
O quarteto se vale de um clichê típico da arcádia: Locus
Amoenus. Este lugar aprazível, dotado de frescor,
formosura, sombra verde, rios lentos... é um verdadeiro
Éden, um arché, o princípio perfeito de tudo o que o homem
nunca construiu – o ambiente naturalmente propício à
felicidade. Lá, o rio desemboca lentamente no mar, o sol se
põe atrás das montanhas, o gado humildemente se recolhe.
Trata-se um estado panteísta – uma espécie de “terra do
nunca” ou “lagoa azul”. No entanto, a felicidade lírica só
faria sentido se a primavera (reprodução da perfeição
natural) contemplasse, também o homem, elemento
igualmente natural, um bom selvagem. Daí a necessidade
da presença da amada para a consumação do Amor idílico
árcade.
A sedução se torna explícita no último estágio do soneto: não
há valor no maior legado para a humanidade se o humano
pode se extinguir. Assim, o universo só será saboroso se a
mulher autorizar a sê-lo. Isso se dá pela aceitação do Amor
– sempre patriarcal / Hades – unilateral. Isso porque não se
questiona se tal amor é importante para a dama, mas se
afirma que a satisfação dos desejos masculinos são uma
necessidade de ordenação e manutenção do cosmos.
145
Vencido está de Amor meu pensamento
o mais que pode vencida a vida,
sujeita a vos servir instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.
Contente deste bem, louva o momento,
ou hora em que se viu tão bem perdida;
mil vezes desejando a tal ferida
outra vez renovar seu perdimento.
Com essa pretensão está segura
a causa que me guia nesta empresa,
tão estranha, tão doce, honrosa e alta.
Jurando não seguir outra ventura,
votando só por vós rara firmeza,
ou ser no vosso amor achado em falta.
ANÁLISE
A razão outra vez perde para o Amor, assim como a própria
vida, destinada à vassalagem que tudo oferece à dama.
Como é sabido, escravizar-se neste sentido é bom – “Hora
bem perdida”, capaz de fazer o homem desejar “mil vezes”
tal sofrimento. Servir uma mulher é causa honrosa, digna.
Isso torna impossível a ocupação dupla: como doar-se,
perder-se, escravizar-se é prazeroso, não há porquê buscar
outra mulher ou “seguir outra ventura”. Assim, ,o que fez o
homem ser perfeito e fiel é a falta de amor da Dama. Isso o
forçou (e força a maioria dos homens!) a refinar sua
conquista, sua sedução. Isso pode, inclusive, ser a fórmula
da criação de um príncipe encantando, desde que o sapo o
seja em potencial.
POEMAS NEGROS
JORGE DE LIMA
I - Novos poemas
Essa negra Fulô
Comidas
Santa Rita Durão
Minha sombra
Flos Sanctorun
Meus olhos
Cantigas
ESSA NEGRA FULÔ
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô
ficou logo pra mucama,
para vigiar a Sinhá
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
chamando a Negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
que teu Sinhô me mandou?
— Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa.
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê meu lenço de rendas
cadê meu cinto, meu broche,
cadê meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dele pulou
nuinha a negra Fulô
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Cadê, cadê teu Sinhô
que nosso Senhor me mandou?
Ah! foi você que roubou,
foi você, negra Fulô?
Essa negra Fulô!
COMIDAS
Comer efó,
pimenta, jiló!
Iaiá me coma,
sou quimbombô!
Cobrei sustância
com mocotó!
Iaiá me diga,
nessa comida
você botou
mulata em pó?
Iaiá me coma
sou quimbombô!
Ai Bahia de Todos os Santos,
até nos pecados das comidas,
você botou nome santo?
Papos-de-anjo,
Peitinhos-de-freira,
Quindins-de-convento,
Fatias-da-sé!
Ai! Bahia de Todos os Santos,
o poema das suas comidas
foi São Benedito quem lhe ensinou?
Baba-de-moça,
Olho-de-sogra,
Levanta-marido,
Fatias-paridas,
Trouxinhas, Suspiros,
e Mimos-do-céu!
Bahia, estas comidas têm mandinga!
Bahia, esse tempeiro tem mocó!
Lá vem tabuleiro!
Cocadas, pipocas!
Lá vem verdureiro:
Pimenta, jiló!
Lá vem Frei Tomé:
Barriga-de-freira,
Toicinho-do-céu!
Bênção, Frei Tomé!
Moqueca, dendê,
Arroz com efó,
Pimenta, jiló!
Me coma Iaiá
que eu sou quimbombô!
que eu sou quimbombô!
Lá vem tabuleiro
de amendoim!
Comidas gostosas
mexidas por mim!
Me compre Iaiá
por São Bom Jesus
Senhor do Bonfim!
SANTA RITA DURÃO
Durão! que apelido bom para um caboclo
pachola,
caboclo de bagaceira ou cangaceiro do sertão,
capaz de bancar Caramuru no bando de
Lampião!
Mas teu Brasil, Caramuru, não tem sertão,
nem sul, nem norte, nem no teu mato
há catolé, oiticoró, cabaço de marimba,
barbatimão!
Nas tuas roças não tem banana-samburá,
não tem mandioca-gomo-roxo, não tem feijão
mulatinho,
não tem nada, Sêo Durão!
Nos teus caminhos não há malmequeres,
flor-de-relógio, vassoura-de-botão,
não há, Sêo Durão,
essa florzinha espia-caminho que moça não
pode ver!
As tuas semanas-santas não têm flores-de-
quaresma
para alegrar Nossa Senhora que perdeu Nosso
Senhor!
As tuas frutas são como essas frutas de cera
(enfeites de certas mesas).
As tuas caatingas não têm burras-leiteiras
que dão leite,
não têm pau-sangue que verte sangue,
que nem cabocla, todas as luas,
não têm peitinhos de jaracatiás,
não têm beijos de maracujás-de-estalo,
não têm imbés
chupando troncos de baraúnas tão grossas,
tão pretas como pretas-minas!
E os teus quintais não têm, plantado
num caco de panela,
um pé de saudade roxa, pra o enterro dos
manezinhos
que se não morressem (quem sabe, Sêo Durão?),
poderiam ser cangaceiros do grupo de Lampião.
E agora,
agora vão ser anjinhos pra glória de Deus!
Amém!
MINHA SOMBRA
De manhã a minha sombra
com meu papagaio e o meu macaco
começam a me arremedar.
E quando eu saio
a minha sombra vai comigo
fazendo o que eu faço
seguindo os meus passos.
Depois é meio-dia.
E a minha sombra fica do tamaninho
de quando eu era menino.
Depois é tardinha.
E a minha sombra tão comprida
brinca de pernas de pau.
Minha sombra, eu só queria
ter o humor que você tem,
ter a sua meninice,
ser igualzinho a você.
E de noite quando escrevo,
fazer como você faz,
como eu fazia em criança:
Minha sombra
você põe a sua mão
por baixo da minha mão,
vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
sem saber ler e escrever.
FLOS SANCTORUM
Santa Bárbara que nos livra do corisco.
São Bento que cura mordida de cobra,
São Gonçalo casador.
São Jorge que me cedeu o seu nome
pra meu pai me batizar,
que escolheu o seu dia
pra eu chegar nesse mundo,
que só não me deu seu cavalo
porque o pobre do bichinho
não podia descer da lua!
Pulei tanta tacha de engenho,
passei tanta correnteza,
conheci tanto perau fundo!
E você, meu anjo-da-guarda,
nunca me disse seu nome,
pra eu fazer um poeminha pra você!
MEUS OLHOS
Nossa Senhora, minha madrinha,
tu vês as coisas verdes, não é?
Meus olhos pretos, coitados deles!
Teus olhos verdes, felizes deles,
minha madrinha, Nossa Senhora da Conceição!
Nossa Senhora, dá-me teus olhos
para eu ver com eles meus pobres olhos.
Coitados deles, minha madrinha,
só vêem as coisas como elas são.
Nossa Senhora, minha madrinha
pinta meus olhos, que eu quero ver
verdes os dias que inda virão.
Nossa Senhora, minha madrinha,
tu vês as coisas verdes, não é?
Teus olhos verdes, felizes deles!
Meus olhos pretos, cor de carvão!
Nossa Senhora, minha madrinha,
tu vês meus olhos como eles são?
CANTIGAS
As cantigas lavam a roupa das lavadeiras.
As cantigas são tão bonitas,
que as lavadeiras ficam tão tristes, tão
pensativas!
As cantigas tangem os bois dos boiadeiros! —
Os bois são morosos, a carga é tão grande!
O caminho é tão comprido que não tem fim.
As cantigas são leves...
E as cantigas levam os bois,
batem a roupa
das lavadeiras.
As almas negras pesam tanto, são
tão sujas como a roupa, tão pesadas
como os bois...
As cantigas são tão boas...
Lavam as almas dos pecadores!
Levam as almas dos pecadores!
II – Poemas escolhidos
Nordeste
Enchente
O filho pródigo
Poema relativo
Mulher proletária
Poema do nadador
Poema à bem-amada
NORDESTE
Nordeste, terra de São Sol!
Irmã enchente, vamos dar graças a Nosso
Senhor,
que a minha madrasta Seca torrou seus anjinhos
para os comer.
São Tomás passou por aqui?
Passou, sim senhor!
Pajeú! Pajeú!
Vamos lavar Pedra Bonita, meus irmãos,
com o sangue de mil meninos, amém!
D. Sebastião ressuscitou!
S. Tomé passou por aqui?
Passou, sim senhor.
Terra de Deus! Terra de minha bisavó
que dançou uma valsa com D. Pedro II.
São Tomé passou por aqui?
Tranca a porta, gente, Cabeleira aí vem!
Sertão! Pedra Bonita!
Tragam uma virgem para D. Lampião!
ENCHENTE
— Por que as jandaias e os periquitos estão
gritando como os meninos do Grupo, na hora de
vadiar?
— É uma cabeça de enchente que veio ontem de
tardei
E o rio deu pra falar grosso
e bancar Zé-pabulagem:
— “Não duvide que eu levo
a sua almofada de fazer renda, minha velha!”
E o rio cresceu. Entrou na camarinha
e lá se foi com a almofada da velha!
— “Deus te favoreça, meu filho,
você, ainda outro dia, era tão manso,
lavava até os pratos de minha cozinha!”
— “Não duvide, seu canoeiro
que eu emborco a sua canoa!”
E rodou com o canoeiro
e virou a canoa mesmo.
E entrou nos fundos das casas
e saiu nas portas da rua.
Subiu no olho da ingazeira,
tirou ingá e comeu.
Pulou das pedras embaixo,
espumando como um doido.
Fez até medo às piabas, que correram
pra os barreiros.
Só os meninos estão satisfeitos:
— “Deus permita que o rio encha mais!”
— “Deus permita que o rio encha mais!”
Quando o rio entrar na rua,
as salas de visita serão banheiros.
Eles deitarão barquinhos de cima das janelas,
e a professora fechará a escola!
— “Deus permita que o rio encha mais!”
— “Deus permita que o rio encha mais!”
O FILHO PRÓDIGO
Nas engrenagens das fábricas
bolem como vermes — dedos decepados de
operários.
Há intestinos rotos de crianças
nos vaivéns do correame das oficinas.
A cor e a alegria das moças empregadas
dissolvem-se na algazarra monótona dos teares.
O avião comeu a saudade das mães
que a distância separou dos filhos vagabundos.
Há máquinas que cegam os adolescentes
ansiosos de ver o progresso do mundo.
Um homem teve medo de enlouquecer
perseguido pela força e pelo orgulho
das máquinas assassinas.
Cadê a luz trêmula de vela
pra alumiar o meu poema antigo?
O lirismo perdeu a sua liturgia.
As lâmpadas Osram velam funebremente a
poesia.
Ah! que existe uma tristeza na terra
que nem lágrimas produz
de sua esterilidade tão seca.
Eu sou um corpo distraído.
Bóiam os meus olhos pelas superfícies.
Mas os meus olhos correm mais perigo
do que se andassem em acrobacias
contemplativas
pulando no céu alto, perto das estrelas.
Vovozinha, venho de longe,
ando há muitos séculos a pé.
Ensina-me de novo a ficar de joelhos,
que já é tarde e eu quero me deitar.
POEMA RELATIVO
Vem, ó bem-amada.
Junto à minha casa
tem um regato (até quieto o regato).
Não tem pássaros, que pena!
Mas os coqueiros fazem,
quando o vento passa,
um barulho que às vezes parece
bate-bate de asas.
Supõe, ó bem-amada,
se o vento não sopra,
podem vir borboletas
à procura das minhas jarras
onde há flores debruçadas,
tão debruçadas que parecem escutar.
Todos os homens têm seus crentes,
ó bem-amada:
— os que pregam o amor ao próximo
e os que pregam a morte dele.
Mas tudo é pequeno
e ligeiro no mundo, ó amada.
Só o clamor dos desgraçados
é cada vez mais imenso!
Vem, ó bem-amada.
Junto à minha casa
tem um regato até manso.
E os teus passos podem ir devagar
pelos caminhos:
aqui não há a inquietação
de se atravessar o asfalto.
Vem, ó bem-amada,
porque, como te disse,
se não há pássaros no meu parque,
pode ser, se o vento
não soprar forte,
que venham borboletas.
Tudo é relativo
e incerto no mundo.
Também tuas sobrancelhas
parecem asas abertas.
MULHER PROLETÁRIA
Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fábrica de filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.
Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar teu proprietário.
POEMA DO NADADOR
A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce,
a água é mansa, a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Senão, que restará de ti, nadador?
Nada, nadador.
POEMA À BEM-AMADA
Amada, não penses,
escutemos a chuva que o inverno chegou.
Sejamos as árvores que Deus semeou
sem nunca O ouvir, sem nunca O olhar
serenos, morramos sem nos separar.
Renunciemos, amada, os vãos pensamentos,
cumpramos apenas a lei do Senhor
sem nunca O ouvir, sem nunca O tocar,
sem nunca duvidar, duvidar, duvidar.
Soframos, amada, sem nos lamentar.
Sejamos as árvores que Deus esqueceu,
que o vento abalou e o raio abateu.
Amada! Amada!
Bem-aventurado quem já morreu.
Escutemos a chuva,
que a chuva é de Deus!
III – Poemas Negros
Bicho encantado
Banguê
História
Democracia
Retreta do vinte
Quichimbi sereia negra
Zefa lavadeira
Benedito Calunga
Ladeira da Gamboa
Passarinho cantando
Exu comeu tarubá
Ancila negra
O banho das negras
Cachimbo do sertão
Obambá é batizado
Poema de encantação
Rei é Oxalá, rainha é Iemanjá
Foi mudando, mudando
Janaína
Quando ele vem
Xangô
Pra donde que você me leva
Maria Diamba
Olá! Negro
BICHO ENCANTADO
Este bicho é encantado:
não tem barriga,
não tem tripas,
não tem bofes,
não é maribondo,
não é mangangá,
não é caranguejeira.
Que é que é Janjão?
É a Estrela-do-mar que quer me levar.
Só tem olhos,
só tem sombra.
Babau!
Não é jimbo,
não é muçum,
não é sariema.
Que é que é Janjão?
É a Estrela-do-mar que quer me afogar.
Esse bicho é encantado:
não quer de-comer,
não quer munguzá,
não quer caruru,
não quer quigombô.
Só quer te comer.
Que é que é Janjão?
É a Estrela-do-mar que quer me esconder.
Babau!
BANGÜÊ
Cadê você meu país do Nordeste
que eu não vi nessa Usina Central Leão de minha
terra?
Ah! Usina, você engoliu os bangüezinhos do
país das Alagoas!
Você é grande, Usina Leão!
Você é forte, Usina Leão!
As suas turbinas têm o diabo no corpo!
Você uiva!
Você geme!
Você grita!
Você está dizendo que U.S.A é grande!
Você está dizendo que U.S.A. é forte!
Você está dizendo que U.S.A. é única!
Mas eu estou dizendo que V. é triste
como uma igreja sem sino,
que você é mesmo como um templo evangélico!
Onde é que está a alegria das bagaceiras?
O cheiro bom do mel borbulhando nas tachas?
A tropa dos pães de açúcar atraindo arapuás?
Onde é que mugem os meus bois
trabalhadores?
Onde é que cantam meus caboclos
lambanceiros?
Onde é que dormem de papos para o ar os
bebedores de resto
[de alambique?
E os senhores de espora?
E as sinhás-donas de cocó?
E os cambiteiros, purgadores, negros queimados
na fornalha?
O seu cozinhador, Usina Leão, é esse tal Mister
Cox que tira
[da cana o que a cana não pode dar
e que não deixa nem bagaço
com um tiquinho de caldo
para as abelhas chupar!
O meu bangüezinho era tão diferente,
vestidinho de branco, o chapeuzinho do telhado
sobre os olhos,
fumando o cigarro do boeiro pra namorar a
mata virgem.
Nos domingos tinha missa na capela
e depois da missa uma feira danada:
a zabumba tirando esmola para as almas;
e os cabras de faca de ponta na cintura,
a camisa por fora das calças:
“Mão de milho a pataca!”
“Carretel marca Alexandre a doistões!”
Cadê você meu país de bangüês
com as cantigas da boca da moenda:
“Tomba-cana João que eu já tombei!”
E o eixo de maçaranduba chorando
talvez os estragos que a cachaça ia fazer!
E a casa dos cobres com o seu mestre de açúcar
potoqueiro,
com seu banqueiro avinhado
e as tachas de mel escumando,
escumando como cachorro danado.
E o bangüê que só sabia trabalhar cantando,
cantava em cima das tachas:
“Tempera o caldo mulher que a escuma
assobe...”
Cadê a sua casa-grande, bangüê,
com as suas Dondons,
com as suas Tetês,
com as suas Benbens,
com as suas Donanas alcoviteiras?
Com seus Totôs e seus Pipius corredores de
cavalhada?
E as suas molecas catadoras de piolho,
e as suas negras Calus, que sabiam fazer
munguzás,
manuês,
cuscuz,
e suas sinhás dengosas amantes dos banhos de
rio
e de redes de franja larga!
Cadê os nomes de você, bangüê?
Maravalha,
Corredor,
Cipó branco,
Fazendinha,
Burrego-dágua,
Menino Deus!
Ah! Usina Leão, você engoliu
os bangüezinhos do país das Alagoas!
Cadê seus quilombos com seus índios armados
de flecha,
com seus negros mucufas que sempre acabavam
vendidos,
tirando esmola para enterrar o rei do Congo?
“Folga negro
Branco não vem cá!
Si vinhé,
Pau há de levá!”
Você vai morrer, bangüê!
Ainda ontem sêo Major Totonho do Sanharó
esticou a canela.
De noite se tomou uma caninha
pra se ter força de chorar.
E se fez sentinela.
E você, bangüezinho que faz tudo cantando
foi cantar nos ouvidos do defunto:
“Totonho! Totonho!
Ouve a voz de quem te chama
vem buscar aquela alma
que há treis dias te reclama!”
Bangüê! E eu pensei que estavam
cantando nos ouvidos de você:
Bangüê! Bangüê!
Ouve a voz de quem te chama!”
HISTÓRIA
Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho.
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros.
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio guerreiro? não, navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo,
entrou no amor do feitor,
apaixonou o Sinhô,
enciumou a Sinhá,
apanhou, apanhou, apanhou,
Fugiu para o mato.
Capitão do campo a levou.
Pegou-se com os orixás:
fez bobó de inhame
para Sinhô comer,
fez aluá para ele beber,
fez mandinga para o Sinhô a amar.
A Sinhá mandou arrebentar-lhe os dentes:
Fute, Cafute, Pé-de-pato, Não-sei-que-diga.
avança na branca e me vinga.
Exu escangalha ela, amofina ela,
amuxila ela que eu não tenho defesa de homem,
sou só uma mulher perdida neste mundão.
Neste mundão.
Louvado seja Oxalá.
Para sempre seja louvado.
DEMOCRACIA
Punhos de redes embalaram o meu canto
para adoçar o meu país, ó Whitman.
Jenipapo coloriu o meu corpo contra os maus-
olhados,
catecismo me ensinou a abraçar os hóspedes,
carumã me alimentou quando eu era criança,
Mãe-negra me contou histórias de bicho,
moleque me ensinou safadezas,
massoca, tapioca, pipoca, tudo comi,
bebi cachaça com caju para limpar-me,
tive maleita, catapora e ínguas,
bicho-de-pé, saudade, poesia;
fiquei aluado, mal-assombrado, tocando
maracá,
dizendo coisas, brincando com as crioulas,
vendo espíritos, abusões, mães-d’água,
conversando com os malucos, conversando
sozinho,
emprenhando tudo que encontrava,
abraçando as cobras pelos matos,
me misturando, me sumindo, me acabando,
para salvar a minha alma benzida
e meu corpo pintado de urucu,
tatuado de cruzes, de corações, de mãos-
ligadas,
de nomes de amor em todas as línguas de
branco, de mouro ou
[de pagão.
RETRETA DO VINTE
O cabo mulato balança a batuta,
meneia a cabeça, acorda com a vista
os bombos, as caixas, os baixos e as trompas.
(No centro da Praça o busto de D. Pedro escuta.)
— Batuta pra esquerda: relincham clarins,
requintas, tintins e as vozes meninas da banda
do 20.
Batuta à direita: de novo os trombones
e as trompas soluçam. E os bombos e as caixas:
ban-ban!
Vêm logo operários, meninas, cafuzas,
mulatos, portugas, vem tudo pra ali.
Vem tudo, parecem formigas de asas
rodando, rodando em torno da luz.
Nos bancos da Praça conversas acesas,
apertos, beijocas, talvezes.
D. Pedro II espia do alto.
(As barbas tão alvas
tão alvas nem sei!)
E os pares passeiam,
parece que dançam,
que dançam ciranda,
em torno do Rei.
QUICHIMBI SEREIRA NEGRA
Quichimbi sereia negra
bonita como os amores
que tem partes de chigonga
não tem cabelos no corpo,
é lisa que nem muçum,
é ligeira que nem buru
não tem matungo e é donzela,
ao mesmo tempo pariu
jurará sem urucaia.
Quichimbi vive nas ondas
coberta de espuma branca,
dormindo com o boto azul,
conservando a virgindade
tão difícil de sofrer.
Quichimbi segue nas ondas
dez mil anos caminhando,
dez mil anos assistindo
as terras mudar de dono,
o mar servindo de escravo
ao homem branco das terras.
Quichimbi sereia negra
bonita como os amores
dormindo com o boto azul,
não sabe de nada, não.
ZEFA LAVADEIRA
(Trecho de A mulher obscura)
Uma trouxa de roupa é um mundo animado de
anáguas, de corpinhos, de fronhas, de lençóis e
toalhas servis; em resumo: dos homens e suas
preocupações.
E qual é a maior força desse mundo? Onde o
segredo das suas atividades?
— Olha o amor, Zefa, — olha os lençóis — torna-
nos se-melhantes aos deuses, faz vibrar em nós
o poema dos plasmas que neles se geraram. Por
eles, retrocedendo pelo caminho de certas
memórias obscuras, voltamos às Formas
primeiras, às Energias inteligentes.
E desfazendo aquela trouxa de roupa com o
desembaraço de Jeová, compondo e
recompondo um caos, mostra-me peça por
peça, todas aquelas forças mencionadas, lodos
genésicos, ou salivas do Espírito que adejou
sobre as águas.
Mas Zefa deu um muxoxo, arrepanhando as
fraldas, arras-tando os pés. Zefa não tinha
antenas para a torrente declama¬tória interior de
minha juventude em dias de convalescença.
Pela vereda que vinha do rio, surgiu
cantarolando uma cafuza nova, com o pote à
cabeça, o braço direito erguido, segu¬rando a
rodilha.
E senti-a em tudo, — na algazarra dos ramos, na
toada das águas despenhadas, nos vegetais
variegados como arraiais, no tumulto dos seres
que sofrem, amam e se perpetuam corren¬do a
vida.
Josefa — lavadeira, porque se julga a sós, vai
despindo as belezas selvagens de ninfa cafuza.
No remanso em que bate a roupa, há bambus e
ingazeiros pelas margens. Josefa entra o caudal
até as coxas morenas, a camisa arregaçada, o
cabeção de crochê impelido pelos seios duros,
tostados de soalheiras.
O braço valente arroja o pano contra a pedra
de bater, e a axila cobre-se e descobre-se,
piscando a tentação de arrochos e rendições
cheias de saciedades. Aqui, toda lavadeira de
rou¬pa é boa cantaderia. A cantiga é uma
corruptela de velhas toa¬das num tom
languoroso, alimentado de sofreguidões, de
de¬sejos incontidos, e de lamentações
incorrespondidas.
Depois de lavar a roupa dos outros, Zefa lava a
roupa que a cobre no momento. Depois, deixa-
se corando sobre o capim. Então Zefa lavadeira
ensaboa o seu próprio corpo, vestido do manto
de pele negra com que nasceu. Outras Zefas,
outras negras vêm lavar-se no rio. Eu estou
ouvindo tudo, eu estou enxergando tudo. Eu
estou relembrando a minha infância. A água,
levada nas cuias, começa o ensaboamento;
desce em re¬gatos de espuma pelo dorso, e
some-se entre as nádegas rijas. As negras
aparam a espuma grossa, com as mãos em
concha, esmagam-na contra os seios pontudos,
transportam-na com agilidade de símios, para
os sovacos, para os flancos; quando a pasta
branca de sabão se despenha pelas coxas, as
mãos côncavas esperam a fugidia espuma nas
pernas, para conduzi-la aos sexos em que a
África parece dormir o sono temeroso de Cam.
BENEDITO CALUNGA
Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence ao papa-fumo,
nem ao quibungo,
nem ao pé de garrafa,
nem ao minhocão.
Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence a nenhuma ocaia nem a nenhum
tati, nem mesmo a Iemanjá,
nem mesmo a Iemanjá.
Benedito Calunga
calunga-ê
não pertence ao Senhor
que o lanhou de surra
e o marcou com ferro de gado
e o prendeu com lubambo nos pés.
Benedito Calunga
pertence ao banzo
que o libertou,
pertence ao banzo
que o amuxilou,
que o alforriou
para sempre
em Xangô.
Hum-Hum.
LADEIRA DA GAMBOA
Há uma rua que eu conheço
Rua Barão da Gamboa
tem uma ladeira de lado
com o mesmo nome da rua
nenhum barão mora lá
mas porém gente que sua
gente que sobe gente que desce
gente que vai para a vida
gente que dela vem
não há meio de dizer-se
na ladeira ninguém vem
você mesmo não se agüenta
pois a ladeira é um vaivém
parece mesmo com a vida
tem subida tem descida
Barão não
Poesia mesmo à toa
tem lama poeira buracos
tudo o que a vida possui
mas polícia não tem não
polícia lá não influi
que a vida não tem polícia
a vida é mesmo um vaivém
igualmente esta ladeira
dá na gente uma canseira
tem subida tem descida
tem mais que tudo canseira
igualmente esta ladeira
da Rua Barão da Gamboa.
Que boa.
Ladeira. Vida. Canseira. Gamboa.
PASSARINHO CANTANDO
Congos, cabindas, angolas,
também de Cacheo e de Bissao,
Maranhão, Pernambuco, Pará,
Fernando Pó, São Tomé, Ano Bom,
Serra Leoa, Serra Leoa, Serra Leoa!
Cabo Verde, Moçambique,
duas cozinheiras, três belas mucamas, óleo de
coco,
(o boto também gosta de teu sangue Sudão).
Senhor Manuel Teixeira dos Santos
vem de redingote, suíças e procuração.
Ana Maria doceira de meu pai
amancebou-se com o alferes;
na segunda geração:
nem culatronas, nem pés apalhetados,
nem panos-da-costa, nem figas, nem aluá.
Na terceira nasceu Maricota, filha-de-santo,
checheré, rainha suicidou-se com fogo.
Deixou uma filha sagrada com água benta,
fechada com mandinga, branca, casada, com
chácara.
Há na sua pele três estrelas marinhas, duas
estrelas-d'alva,
a Lua, a Água-viva, a Fome de abraços.
Há no seu sangue:
trê moças fugidas, dois cangaceiros,
um pai-de-terreiro, dois malandros, um
maquinista,
dois estourados.
Nasceu uma índia,
uma brasileira,
uma de olhos azuis,
uma primeira comunhão,
uma que deu seus cachos ao Senhor da Paixão,
uma que tinha ataques,
uma que foi ser freira,
uma que nasceu em Londres e é parenta do Rei.
O passarinho ficou órfão
cantando, catando penas só.
EXU COMEU TARUBÁ
O ar estava duro, gordo, oleoso:
a negra dentro da madorna;
e dentro da madorna — bruxas desenterradas.
No chão uma urupema com os cabelos da
moça.
Foi então que Exu comeu tarubá
e meteu a figa na mixira de peixe-boi.
Aí na distância sem fim, moças foram roubadas,
e sóror Adelaide veio viajando de rede,
era alva ficou negra, era santa ficou lesa:
caiu na madorna, o ar duro, gordo, oleoso.
Exu começou a babar a mixira de peixe-boi,
o professor tirou o pincenê; estava traído pelo
donatário,
sem barregãs, sem ginetes, sem escravos.
Aí na distância sem-fim, viajando de rede
D. Diogo de Holanda veio parar na madorna, o
ar duro, gordo
[do, oleoso.
Exu começou a lamber a mixira de peixe-boi:
Isabel Lopo de Sampaio desvirginou o moleque,
jogou-se no rio, virou ingazeira, pariu três
macacos.
Viajando de rede vieram três macacos parar na
madorna, o ar
[duro, gordo, oleoso.
Eis aí três cirurgiões cosendo retrós,
a bela adormecida no século vindouro
que esquecerá por certo a magia
contra tudo que não for loucura
ou poesia.
ANCILA NEGRA
Há ainda muita coisa a recalcar,
Celidônia, ó linda moleca ioruba
que embalou minha rede,
me acompanhou para a escola,
me contou histórias de bichos
quando eu era pequeno,
muito pequeno mesmo.
Há mais coisa ainda a recalcar:
As tuas mãos negras me alisando,
os teus lábios roxos me bubuiando,
quando eu era pequeno,
muito pequeno mesmo.
Há muita coisa ainda a recalcar
ó linda mucama negra,
carne perdida,
noite estancada,
rosa trigueira,
maga primeira.
Há muita coisa a recalcar e esquecer:
o dia em que te afogaste,
sem me avisar que ias morrer,
negra fugida na morte,
contadeira de histórias do teu reino,
anjo negro degradado para sempre
Celidônia, Celidônia, Celidônia!
Depois: nunca mais os signos do regresso.
Para sempre: tudo ficou como um sino
ressoando.
E eu parado em pequeno,
mandingando e dormindo,
muito dormindo mesmo.
O BANHO DAS NEGRAS
(Início de A mulher obscura,)
Em casa de Laécio não havia álbuns. A família
de meu companheiro de infância parecia não ter
tradição nem história. Lem¬bro-me que um dia,
perguntando-lhe como se chamava seu avô, ele
me disse:
— Morreu há muito tempo. Não me lembro como
era, mas papai deve saber. Um dia pergunto.
Recordo, porém, que era, de todos os meus
amigos, o que mais me atraía.
Talvez não fosse o companheiro em si, em
quem, já por aquele tempo, percebia uma
capacidade de mentir maior que a de todos os
meus outros camaradas, e uma grande
habilidade de surripiar nossos objetos escolares,
selos, estampas e brin¬quedos. Talvez o que me
atraía para Laécio fosse a sua chácara, a sua
grande chácara onde devia existir a Arvore do
Bem e do Mal, chácara tão tentadora para mim.
Os fundos davam para o rio. Um dia, Laécio me
chamou para assistir o banho de umas negras.
O espetáculo que se me oferecia não me deixou
nenhuma impressão menos pura.
As negras estavam ali tomando banho, negras
novas do Caípe que se lavavam debaixo dos
ramos das ingazeiras arriadas sobre as águas.
Abriam bandós com os cacos de pente de chifre,
e como não dispunham de espelhos, ajudavam-
se na tualete.
As molecas eram bonitas, ágeis e puras. Eu
estava, apenas, encantado de ver corpos
negros, tão diferentes dos brancos,
embelezando-se ligeiros, antes de entrar nágua.
Reparava que aquele banho era diferente do
banho de umas parentas, que me deixaram uma
vez esperando por elas, na beira do rio. As
brancarronas se penteavam depois do banho,
cuidadosas, com a toalha sobre os ombros,
debaixo dos cabelos soltos. Mas as molecas
podiam, com uma ligeireza espantosa, se coçar,
espenujar, separar com os cacos de pente o
cabelo lanzudo, mergulhar na água
transparente e sair outra vez sem que o cabelo
se desmanchasse; a água não lhes alterava a
beleza. O contraste daqueles corpos pretos e
luzidios sobre a areia das margens ou sob a
espuma do sabão me impressionou bastante.
Nunca tinha visto espuma sobressair tanto,
correndo ligeira nas costas es¬curas ou descendo
entre os seios espigados pelo ventre abaixo.
Mais ligeiros que a espuma, eram os seus braços
harmoniosos. Algumas com a cara ensaboada,
sem abrir os olhos para evitar a espuma,
aparavam-na antes que ela se perdesse no
chão. A espuma grossa voltava outra vez para
debaixo das axilas ou dos ombros, esmagada
de novo pelas esguias mãos. Outras se
ajudavam no ensaboamento esfregando as
costas das companheiras ou os lugares que os
braços não atingiam. Achei lindas as negras.
Achei-as ágeis, diferentes. Mas Laécio me
advertira que era proibido vê-las assim nuas; e
se elas soubessem que nós as espreitávamos no
banho, contariam a nossos pais e estes
ralhariam conosco e seríamos castigados.
CACHIMBO DO SERTÃO
Aqui é assim mesmo.
Não se empresta mulher,
não se empresta quartau
mas se empresta cachimbo
para se maginar.
Cachimbo de barro
massado com as mãos,
canudo comprido, que bom!
— Me dá uma fumaçada!
— Que coisa gostosa só é maginar!
Sertão vira brejo,
a seca é fartura,
desgraça nem há!
Que coisa gostosa só é cachimbar.
De dia e de noite, tem lua, tem viola.
As coisas de longe vêm logo pra perto.
O rio da gente vai, corre outra vez.
Se ouvem de novo histórias bonitas.
E a vida da gente menina outra vez
ciranda, ciranda debaixo do luar.
Se quer cachimbar, cachimbe sêo moço,
mas tenha cuidado! — O cachimbo de barro
se pode quebrar.
OBAMBÁ É BATIZADO
Pela fé de Zambi te digo:
Obambá é batizado, confirmado, cruzado e
coroado.
Dá licença meu pai?
Licença venha
para os alufás de babalau.
Licença tem
o Babé de Olubá.
Licença tem.
Licença têm
cacuriqués, cacuricás.
Licença têm.
Licença tem
babalaô, babalaô.
Licença tem.
Na fé de Zambi te digo:
Obambá é batizado, confirmado e coroado.
Oxóssi está reinando: dá pra ele.
Dá pra o pai-de-sala, dá pra ele.
Ó ocaia dá pra ele.
Na fé de Zambi te digo:
Te vira em meu sangue.
Obambá é batizado, confirmado e coroado.
Dá licença meu pai?
Licença venha para outros bacuros.
Ó ocaia dá pra ele.
Dá licença meu pai?
Ó ocaia, me deixa só com meu santo,
me deixa só,
me deixa só,
dá pra ele
que Obambá é batizado, confirmado, cruzado e
coroado.
Oxóssi está reinando: dá pra ele.
POEMA DE ENCANTAÇÃO
Arraial d’Angola de Paracatu,
Arraial de Mossâmedes de Goiás,
Arraial de Santo Antônio do Bambe,
vos ofereço quibebê, quiabo, quitanda, quitute,
quingombô.
Tirai-me essa murrinha, esse gôgo, esse urufá,
que eu quero viver molecando, farreando,
tocando meus ganzás!
Arroio dos Quilombos de Palmares,
Arroio do Desemboque do Quizongo,
Arroio do Exu do Bodocô,
vos ofereço maconha de pito, quitunde,
quibembe, quingombô.
Assim, sim!
Arraial d’Angola de Paracatu,
Arraial do Campo de Goiás,
Arraial do Exu do Aussá,
vos ofereço quisama, quinanga, quilengue,
quingombô.
Tomai acaçá, abará, aberém, abaú!
Assim, sim!
Tirai-me essa murrinha, esse gôgo, esse urufá!
Vos ofereço quitunde, quitumba, quelembe,
quingombô.
REI É OXALÁ, RAINHA É IEMANJÁ
Rei é Oxalá que nasceu sem se criar.
Rainha é Iemanjá que pariu Oxalá sem se
manchar.
Grande santo é Ogum em seu cavalo
encantado.
Eu cumba vos dou curau. Dai-me licença
angana.
Porque a vós respeito,
e a vós peço vingança
contra os demais aleguás e capiangos brancos.
Agô!
que nos escravizam, que nos exploram,
a nós operários africanos,
servos do mundo,
servos dos outros servos.
Oxalá! Iemanjá! Ogum!
Há mais de dois mil anos o meu grito nasceu!
FOI MUDANDO, MUDANDO
Tempos e tempos passaram
por sobre teu ser.
Da era cristã de 1500
até estes tempos severos de hoje,
quem foi que formou de novo teu ventre,
teus olhos, tua alma?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi
cristão?
Os modos de rir, o jeito de andar,
pele,
gozo,
coração...
Negro, índio ou cristão?
Quem foi que te deu esta sabedoria,
mais dengo e alvura,
cabelo escorrido, tristeza do mundo,
desgosto da vida, orgulho de branco, algemas,
resgates, al¬forrias?
Foi negro, foi índio ou foi cristão?
Quem foi que mudou teu leite,
teu sangue, teus pés,
teu modo de amar,
teus santos, teus ódios,
teu fogo,
teu suor,
tua espuma,
tua saliva,
teus abraços, teus suspiros, tuas comidas,
tua língua?
Te vendo, medito: foi negro, foi índio ou foi
cristão?
JANAÍNA
Janaína vive no rio,
vive no açude,
vive no mar.
Lembrou-se de vir passear:
nas ôndias passou dendê.
As ôndias se acomodaram.
Cavalo-marinho veio
para ela se amontar.
No cavalo se amontou
galopando descuidada,
acordando os afogados,
dando adeus à maré grande.
Botando nome nos peixes,
ouvindo a fala dos búzios.
No ventre de Janaína
as escamas estão brilhando.
Nos olhos de Janaína,
na cauda de Janaína
tem cem doninhas pulando.
Nos peitos de Janaína
tem dois langanhos babando.
Se Janaína sorri
as ôndias ficam banzeiras.
Se Janaína está triste.
o mar começa a espumar,
a pegar gente na praia
pra Janaína afundar.
— Janaína dá licença
que eu me afogue no seu mar?
QUANDO ELE VEM
Quando ele vem,
vem zunindo como o vento,
como mangangá, como capeta,
como bango-balango, como marimbondo.
Donde que é que ele vem?
Vem de Oxalá, vem de Oxalá,
vem do oco do mundo,
vem do assopro de Oxalá,
vem do oco do mundo.
Quer é comer.
Quer é caruru de peixe,
quer é efó de inhame,
quer é oguedé de banana,
quer é olubó de macaxeira,
quer é pimenta malagueta.
Quando ele chega, tudo fica banzando à toa,
esbodegado, enquizilado, enguiçado,
enfezado.
Quando ele entra,
dá vontade na gente de embrenhar-se no mato,
de esparramar-se no chão,
de encalombar o rosto com as mãos,
de amunhecar no cansanção,
de esbanguelar os dentes nas pedras,
virar pé-de-vento,
sumir no assopro de Oxalá.
E dentro do assopro de Oxalá
virar cochicho nos ouvidos dela,
xodozar todo o santo dia,
catar cafunés invisíveis,
rolar dentro das suas anáguas,
bambeando o corpo dela,
babatando sem rumo,
amuxilado,
acuado diante das suas mungangas,
engambelado, tatambeado, fumado.
XANGÔ*
* Segunda versão.
Na noite, aziaga, na noite sem fim,
quibundos, cafuzos, cabindas mazombos
mandingam xangô.
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Dois feios calungas — Taió e Oxalá rodeados de
contas,
contas, contas, contas, contas.
No centro o Oxum!
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Na noite aziaga, na noite sem fim
cabindas, mulatos, quibundos, cafuzos,
aos tombos, gemendo, cantando, rodando.
Senhor do Bonfim! Senhor do Bonfim!
Oxum! Oxalá. Ô! Ê!
Sinhô e Sinhá num mêis ou dois mês se há de
casá!
Mano e Mana! Credo manco!
No centro o Oxum
Que dois bonequinhos na rede tão bamba
Ioiô e Iaiá!
Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor;
todas duas
todas três
todas seis
e todas nove!
Santo Onofre,
São Gurdim,
São Pagão,
Anjo Custódio,
Monserrate,
Amém,
Oxum!
Na noite aziaga, na noite sem fim
recende o fartum. Recende o fartum.
Senhor do Bonfim! Senhor do Bonfim!
Oxum! Ô! Ê!
Redobram o tantã, incensam maconha!
Sorri Oxalá!
E a preta mais nova com as pernas tremendo,
no crânio um zunzum,
no ventre um chamego
de cabra no cio... Ê! Ê!
Meu São Mangangá
Caculo
Pitomba
Gambá-marundu
Gurdim
Santo Onofre
Custódio
Ogum.
Minhas almas
santas benditas
aquelas são
do mesmo Senhor
todas duas
todas três
todas nove
o mal seja nela
casado com ele.
São Marcos, S. Manços
com o signo-de-salomão
com Ogum-Chila na mão
com três cruzes no surrão
S. Cosme! S. Damião!
Credo
Oxum-Nila
Amém.
PRA DONDE QUE VOCÊ ME LEVA
Julião se apoderou da melodia às 10 horas da
noite em pleno jazz. O tema é só pretexto
porque o mágico Julião — trans¬formou o
saxofone e está transformando a gente. Tudo é
ritmo binário como as pernas, os braços, os
olhos, os dois corações de Julião. Então o ritmo
e a melodia principiaram deveras or¬ganizando
um chulear de batuque e canto rotundo de cortar
coração. No cume da voz está Gêge — filha de
Ogum deita¬da se balançando; nas outras
partes sonoras há outros deuses aquentando uns
aos outros. Nisso o canto esguincha do
saxo¬fone como um repuxo vermelho. Julião
dobra o saxofone na pança confundindo-o com
o esôfago, os olhos esbugalhados, a alma
inocente subindo a Escada de Jacó para dentro
de Deus. Julião treme recebendo intuições,
amolengando entre uma no¬ta e outra o feitiço
pendurado no pescoço.
Pulam de dentro do escuro do saxofone
mucamas lindíssi¬mas para cada um dos fulanos,
porém o poder da música é tão lavado e tão
branco, é tão estrela-d’alva que as ditas nem se
atrevem a se amulherar com eles. Julião está
reluzente que nem esfregado com óleo de
andiroba, cada vez mais requebra¬do, mais
impoluto e transparente, as teclas fechando as
vál¬vulas de seu corpo banzeiro, o canto se
espraiando unânime, parece que tem carajuru
na face, o funil do aparelho está es¬praiado
como sua boca branca, um estenderete só.
Ciscar no murundu!
Chupar caxundé!
Farrambambear por esse mundo!
Mulatear pelas senzalas brancas!
Mocar com a ocaia dos outros!
Tudo isso eram gritos sinceros, mas sem
maldade, porque tudo estava peneirado,
sessado pela água amandigada da música.
Pra donde que você me leva, poesia-uma-só?
Pra donde que você me leva, mãe-d’água de
uma só cacimba, Janaína de um só mar, Pedra-
Pemba de um só altar?
MARIA DIAMBA
Para não apanhar mais
falou que sabia fazer bolos:
virou cozinha.
Foi outras coisas para que tinha jeito.
Não falou mais:
Viram que sabia fazer tudo,
até molecas para a Casa-Grande.
Depois falou só,
só diante da ventania
que ainda vem do Sudão;
falou que queria fugir
dos senhores e das judiarias deste mundo
para o sumidouro.
OLÁ! NEGRO
Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos
e a quarta e quinta gerações de teu sangue
sofredor
tentarão apagar a tua cor!
E as gerações dessas gerações quando
apagarem
a tua tatuagem execranda,
não apagarão de suas almas, a tua alma,
negro!
Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,
negro-fujão, negro cativo, negro rebelde
negro cabinda, negro congo, negro ioruba,
negro que foste para o algodão de U.S.A.
para os canaviais do Brasil,
para o tronco, para o colar de ferro, para a
canga
de todos os senhores do mundo;
eu melhor compreendo agora os teus blues
nesta hora triste da raça branca, negro!
Olá, Negro! Olá, Negro!
A raça que te enforca, enforca-se de tédio,
negro!
E és tu que a alegras ainda com os teus jazzes,
com os teus songs, com os teus lundus!
Os poetas, os libertadores, os que derramaram
babosas torrentes de falsa piedade
não compreendiam que tu ias rir!
E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e
a tua bondade
mudariam a alma branca cansada de todas as
ferocidades!
Olá, Negro!
Pai-João, Mãe-Negra, Fulô, Zumbi
que traíste as Sinhás nas Casas-Grandes,
que cantaste para o Sinhô dormir,
que te revoltaste também contra o Sinhô;
quantos séculos há passado
e quantos passarão sobre a tua noite,
sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos,
sobre tuas
[alegrias!
Olá, Negro!
Negro que foste para o algodão de U.S.A.
ou que foste para os canaviais do Brasil,
quantas vezes as carapinhas hão de
embranquecer
para que os canaviais possam dar mais doçura
à alma humana?
Olá, Negro!
Negro, ó antigo proletário sem perdão,
proletário bom,
proletário bom!
Blues
Jazzes,
songs,
lundus...
Apanhavas com vontade de cantar,
choravas com vontade de sorrir,
com vontade de fazer mandinga para o branco
ficar bom,
para o chicote doer menos,
para o dia acabar e negro dormir!
Não basta iluminares hoje as noites dos brancos
com teus jazzes, com tuas danças, com tuas
gargalhadas!
Olá, Negro! O dia está nascendo!
O dia está nascendo ou será a tua gargalhada
que vem vindo?
Olá, Negro!
Olá, Negro!
IV – Livro de sonetos
Os seus enfeites
Apenas eu te aceito, não te quero
Sinto-me salivado pelo Verbo
Vereis que o poema cresce independente
Este poema de amor não é lamento
Nas noites enluaradas cabeleiras
Nas noites enluaradas as olheiras
OS SEUS ENFEITES
Os seus enfeites,
Suas bandeiras,
O amplo velame
Dormem na sombra.
Os mastaréus
Furam a treva:
Na tarde fria
São como ogivas.
É um mudo rito,
Agudo, agudo
No ar nevoento.
E a nave suave
Parece uma ave
Insubsistente.
APENAS EU TE ACEITO, NÃO TE QUERO
Apenas eu te aceito, não te quero
nem te amo, dor do mundo. Há honraria
que nos abate como um punho fero
mas aceitamos com sobrançaria.
A um vate grego certo rei severo
vazou-lhe os olhos para não fugir.
Ó dor do mundo, eu vivo como Homero,
aceito a provação que me surgir.
Homero a tua história sinto-a; e urdo
o teu destino, o meu e o de teu rei.
Mas só teus olhos nossos passos guias,
e inda tens vozes para o mundo surdo,
e luz para os outros cegos, luz que herdei
com a aceitação dos olhos que não viam.
SINTO-ME SALIVADO PELO VERBO
Sinto-me salivado pelo Verbo,
rodeado de presenças e mensagens,
de santuários falhados e de quedas,
de obstáculos, de limbos e de muros.
Furo as noites e vejo-te, Solstício,
ou recolho-me ao âmago das coisas,
renovo um sacrifício expiatório,
lavo as palavras como lavo as mãos.
Esta é a zona sem mar e sem distância,
Solidão, sumidouro, barro-vivo,
barro em que reconstruo sangues e vozes.
Não quero interromper-me nem findar-me.
Desejo respirar-me no Teu sopro,
aparecer-me em Ti, continuado.
VEREIS QUE O POEMA CRESCE
INDEPENDENTE
Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...
Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.
ESTE POEMA DE AMOR NÃO É LAMENTO
Este poema de amor não é lamento
nem tristeza distante, nem saudade,
nem queixume traído nem o lento
perpassar da paixão ou pranto que há-de
transformar-se em dorido pensamento,
em tortura querida ou em piedade
ou simplesmente em mito, doce invento,
e exaltada visão da adversidade.
É a memória ondulante da mais pura
e doce face (intérmina e tranquila)
da eterna bem-amada que eu procuro;
mas tão real, tão presente criatura
que é preciso não vê-la nem possuí-la
mas procurá-la nesse vale obscuro.
NAS NOITES ENLUARADAS CABELEIRAS
Nas noites enluaradas cabeleiras
das moças debruçadas, dos sobrados
desciam como gatas borralheiras
por sobre os nossos lábios descuidados.
Beijávamos os cachos; das olheiras
delas caíam prantos obstinados.
Calmávamos com eles as fogueiras
dos nossos próprios olhos assustados.
Românticos demais. Nós os meninos
urdíamos as tranças, e em seus braços
ouvíamos suspiros desolados.
Elas tinham soluços repentinos
e nos acalentavam nos regaços.
Ó meninos, ó noites, ó sobrados!
NAS NOITES ENLUARADAS OLHEIRAS
Nas noites enluaradas as olheiras
das donzelas suicidas dos sobrados
iluminavam aves agoureiras
e cães vadios tísicos e odiados.
E também vinham claunes embriagados
e sonâmbulas gatas borralheiras,
sombras errantes, sombras forasteiras,
rostos em cal e cinza transformados.
Nós éramos meninos evadidos
nas insônias das febres e das asmas,
os olhos pelas noites acordados.
Musas de infância ungiam meus sentidos.
Eram musas infantes ou fantasmas?
Ó meninos, ó noites, ó sobrados!
CONTOS
AMOR – CLARICE LISPECTOR (LAÇOS DE FAMÍLIA)
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu
no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se
então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam,
tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A
cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no
apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas
que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa,
olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha
na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida
conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus
filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de
fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo,
tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara
riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto
sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver
o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na
fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido
de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se
desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era
passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência
harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um
lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher,
com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem
casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua
juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos
poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a,
encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha
— com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar
estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas
vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim
compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a
casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família
distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um
pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo
seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe
haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar,
cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as
crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila
vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os
móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a
ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E
alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e
escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido
soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou
profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de
descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas
mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa
intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem
cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o
coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente,
como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento,
com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de
repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado,
Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas
continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita
jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo,
ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber
do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma
expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda
incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas
os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas
pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as
mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos
foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o
bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o
cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A
rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer
com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao
redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade
a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do
acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível...
O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas
escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram
periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e
por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para
onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da
frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas
com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que
olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo
tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia
prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar
empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura
sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as
pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de
azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um
empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego?
Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.
Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as
roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o
filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego
mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma
vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em
que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis,
olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia
orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela
procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira
continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto.
Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao
longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia
ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um
atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia
dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos
cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os
cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde
vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e
aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter
movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram
macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão.
Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído
numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a
se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos
cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava
manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No
tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do
mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que
pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um
mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas
folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega
— era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana
pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à
garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era
outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um
mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas
flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau
ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as
pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados
pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais
adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela
teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra.
Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela
sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-
se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro,
atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua
impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a
madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu
com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade
pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo,
perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas
brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova
terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um
modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser
de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com
força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o
mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre
fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a
aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a
ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim
Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo
demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o
chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela.
Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança
entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o,
olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-
lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do
quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q
sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha
vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a
água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha
vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se
enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco
a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe
haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror
descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua
misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas
sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se
banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais
fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade
que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de
leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo,
também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem
é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados.
No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo,
disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a
preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante.
O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde
descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o
horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho
secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga.
O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam
na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros
inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror.
Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em
torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma
noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria
o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia,
ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom.
Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era
verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente
com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas
janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não
discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e
humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma
borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse
seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era
uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O
que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até
envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas
com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as
vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim
Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou
correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a
a si, em rápido afago.
— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele
sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se
rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse
ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão
da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por
um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse
uma vela, soprou a pequena flama do dia.
Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998,
pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora
Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moricon
A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA – GUIMARÃES ROSA
(SAGARANA)
Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Estêves. Augusto Estêves, filho do
Coronel Afonsão Estêves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o
homem — nessa noitinha de novena, num leilão de atrás da igreja, no arraial da
Virgem Nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.
Procissão entrou, reza acabou. E o leilão andou depressa e se extinguiu, sem graça,
porque a gente direita foi saindo embora, quase toda de uma vez.
Mas o leiloeiro ficara na barraca, comendo amêndoas de cartucho e pigarreando
de rouco, bloqueado por uma multidão encachaçada de fim de festa.
E, na primeira fila, apertadas contra o balcãozinho, bem iluminadas pelas candeias
de meia-laranja, as duas mulheres-à-toa estavam achando em tudo um espírito
enorme, porque eram só duas e pois muito disputadas, todo-o-mundo com elas
querendo ficar.
Beleza não tinham: Angélica era preta e mais ou menos capenga, e só a outra
servia. Mas, perto, encostado nela outra, um capiau de cara romântica subia todo
no sem-jeito; eles estavam se gostando, e, por isso, aquele povo encapetado não
tinha — pelo menos para o pobre namorado — nenhuma razão de existir. E a cada
momento as coisas para ele pioravam, com o pessoal aos gritos:
— Quem vai arrematar a Sariema? Anda, Tião! Bota a Sariema no leilão!...
— Bota no leilão! Bota no leilão...
A das duas raparigas que era branca e que tinha pescoço fino e pernas finas, e
passou a chamar-se, imediatamente, Sane ma — pareceu se assustar, O capiau
apaixonado deixou fuchicar, de cansaço, o meio-riso que trazia pendurado. E o
leiloeiro pedia que houvesse juízo; mas ninguém queria atender.
— Dou cinco mil-réis!
Sariema! Sariema!
E, aí, de repente, houve um deslocamento de gentes, e Nhô Augusto, alteado, peito
largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando
os cotovelos, varou a frente da massa, se encarou com a Sariema, e pôs-lhe o dedo
no queixo. Depois, com voz de meio-dia, berrou para o leiloeiro Tião: — Cinquenta
mil-réis!...
Ficou de mãos na cintura, sem dar rosto ao povo, mas pausando para os aplausos.
Nhô Augusto! Nhô Augusto!
E insistiu fala mais forte:
Cinquenta mil-réis, já disse! Dou-lhe uma! dou-lhe duas! Dou-lhe duas — dou-lhe
três!
Mas, nisso, puxaram para trás a outra — a Angélica preta se rindo, senvergonha e
dengosa — que se soverteu na montoeira, de braço em braço, de rolo em rolo,
pegada, manuseada, beliscada e cacarejante:
— Virgem Maria Puríssima! Úi, pessoal!
E só então o Tião leiloeiro achou coragem para se impor: — Respeito, gente, que o
leilão é de santo!...
— Bau-bau!
— Me desprezo! Me desprezo desse herege!... Vão coçar suas costas em parede!...
Coisa de igreja tem castigo, não é brinquedo... Deix’passar! ... Dá enxame, gente!
Dá enxame!...
Alguns quiseram continuar vaia, mas o próprio Nhô Augusto abafou a arrelia: — Sino
e santo não é pagode, povo! Vou no certo... Abre, abre, deixa o Tião passar!
Então, surpresos, deram caminho, e o capiau amoroso quis ir também: — Vamos
embora, Tomázia, aproveitando a confusão... E sua voz baixava, humilde, porque
para ele ela não era a Sariema. Pôs três dedos no seu braço, e bem que ela o quis
acompanhar. Mas Nhô Augusto separou-os, com uma pranchada de mão: — Não
vai, não!
E, atrás, deram apoio os quatro guarda-costas: — Tem areia! Tem areia! Não vai,
não!
É do Nhô Augusto... Nhô Augusto leva a rapariga! — gritava o povo, por ser barato.
E uma voz bem entoada cantou de lá, por cantar:
Mariquinha é como a chuva:
boa , p’ra quem quer bem!
Ela vem sempre de graça,
só não sei quando ela vem...
Aí o povaréu aclamou, com disciplina e cadência: — Nhô Augusto leva a Sariema!
Nhô Augusto leva a Sariema!
O capiauzinho ficou mais amarelo. A Sariema começou a querer chorar. Mas Nhô
Augusto, rompente, alargou no tal três pescoções:
— Toma! Toma! E toma!... Está querendo?...
Ferveram faces.
— Que foi? Que foi?...
— Deix’eu ver!...
— Não me esbarra, filho-da-mãe!
E a agitação partiu povos, porque a maioria tinha perdido a cena, apreciando,
como estavam, uma falta-de-lugar, que se dera entre um velho — “Cai n’água,
barbado!” — e o sacristão, no quadrante noroeste da massa. E também no setor sul
estalara, pouco antes, um mal-entendido, de um sujeito com a correia desafivelada
lept!... lept!... — , com um outro pedindo espaço, para poder fazer sarilho com o
pau.
— Que foi, hein?... Que foi?
Foi o capiauzinho apanhando, estapeado pelos quatro cacundeiros de Nhô
Augusto, e empurrado para o denso do povo, que também queria estapear.
— Viva Nhô Augusto!
— Te apessoa para cá, do meu lado! — e Nhô Augusto deu o braço à rapariga, que
parou de lacrimejar.
— Vamos andando.
Passaram entre alas e aclamações dos outros, que, aí, como não havia mais
mulheres, nem brigas, pegaram a debandar ou a cantar:
Ei, compadre, chegadinho, chegou...
Ei, compadre, chega mais um bocadinho!...”
Nhô Augusto apertava o braço da Sariema, como quem não tivesse tido prazo para
utilizar no capiau todos os seus ímpetos:
— E é, hein?... A senhora dona queria ficar com aquele, hein?!
— Foi, mas agora eu gosto é de você.., O outro eu mal-e mal conheci...
Caminharam para casa. Mas para a casa do Beco do Sem Ceroula, onde só há três
prédios — cada um deles com gramofone tocando, de cornetão à janela e onde
gente séria entra mas não passa.
Nisso, porém, transpunham o adro, e Nhô Augusto parou, tirando o chapéu e
fazendo o em-nome-do-padre, para saudar a porta da igreja. Mas o lugar estava
bem alumiado, com lanterninhas e muita luz de azeite, pendentes dos arcos de
bambu. E Nhô Augusto olhou a mulher.
— Que é?!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que
é só osso, peixe cozido sem tempero... Capim p’ra mim, com uma sombração
dessas!... Vá-se embora, frango-d’água! Some daqui!
E, empurrando a rapariga, que abriu a chorar o choro mais sentido da sua vida,
Nhô Augusto desceu a ladeira sozinho — uma ladeira que a gente tinha de descer
quase correndo, por que era só cristal e pedra solta.
Lá em baixo, esbarrou com o camarada, que trazia recado de Dona Dionóra: que
Nhô Augusto voltasse, ou ao menos desse um pulo até lá— à casa dele, de verdade,
na Rua de Cima, — porque ainda havia muito arranjo a ultimar para a viagem, e ela
— a mulher, a esposa — tinha uma ou duas coisas por perguntar...
Mas Nhô Augusto nem deixou o mensageiro acabar de acabar: — Desvira, Quim, e
dá o recado pelo avesso: eu lá não vou! ... Você apronta os animais, para voltar
amanhã com Siá Dionóra mais a menina, para o Morro Azul. Mas, em antes, você
sobe por aqui, e vai avisar aos meus homens que eu hoje não preciso deles, não.
E o Quim Recadeiro correu, com o recado, enquanto Nhô Augusto ia indo em busca
de qualquer luz em porta aberta, aonde houvesse assombros de homens, para
entrar no meio ou desapartar.
Era fim de outubro, em ano resseco. Um cachorro soletrava, longe, um mesmo nome,
sem sentido. E ia, no alto do mato, a lentidão da lua.
Dona Dionóra, que tinha belos cabelos e olhos sérios, escutou aquela resposta, e
não deu ar de seus pensamentos ao pobre camarada Quim. Mas muitos que eles
eram, a rodar por lados contrários e a atormentar-lhe a cabeça, e ela estava
cansada, pelo que, dali a pouco, teve vontade de chorar. E até a Mimita, que tinha
só dez anos e já estava na cama, sorriu para dizer:
— Eu gosto, minha mãe, de voltar para o Morro Azul...
E então Dona Dionóra enxugou os olhos e também sorriu, sem palavra para dizer.
De voltar para o retiro, sem a companhia do marido, só tinha por que se alegrar.
Sentia, pelo desdeixo. Mas até era bom sair do comércio, onde todo o mundo devia
estar falando da desdita sua e do pouco-caso, que não merecia.
E ela conhecia e temia os repentes de Nhô Augusto. Duro, doido e sem detença,
como um bicho grande do mato. E, em casa, sempre fechado em si. Nem com a
menina se importava.
Dela, Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais,
sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na
fazenda — no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul — ele
tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas. E sem efeito
eram sempre as orações e promessas, com que ela o pretendera trazer, pelo menos,
até a meio caminho direito.
Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai
pancrácio.
E ela, Dionóra, tivera culpa, por haver contrariado e desafiado a família toda, para
se casar.
Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar.
Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dividas
enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as
fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como
parede branca.
Dionóra amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais.
Agora, porém, tinha aparecido outro. Não, só de pôr aquilo na ideia, já sentia
medo... Por si e pela filha... Um medo imenso.
Se fosse, se aceitasse de ir com o outro, Nhô Augusto era capaz de matá-la. Para
isso, sim, ele prestava muito. Matava, mesmo, como dera conta do homem da foice,
pago por vingança de algum ofendido. Mas, quem sabe se não era melhor se
entregar à sina, com a proteção de Deus, se não fosse pecado... Fechar os olhos.
E o outro era diferente! Gostava dela, muito... Mais do que ele mesmo dizia, mais
do que ele mesmo sabia, da maneira de que a gente deve gostar. E tinha uma força
grande, de amor calado, e uma paciência quente, cantada, para chamar pelo seu
nome: .. .Dionóra...
“Dionóra, vem comigo, vem comigo e traz a menina, que ninguém não toma vocês
de mim!...” Bom... Como um sonho... Como um sono...
Dormiu.
E, assim, mal madrugadinha escassa, partiram as duas — Dona Dionóra, no cavalo
de silhão, e a Mimita, mofina e franzi na, carregada à frente da sela do camarada
Quim.
Pernoitaram no Pau Alto, no sítio de um tio nervoso, que riscava a mesa com as
unhas e não se cansava de resmungar:
— Fosse eu, fosse eu... Uma filha custa sangue, filha é o que tem de mais valia...
— Sorte minha, meu tio...
— Sorte nunca é de um só, é de dois, é de todos... Sorte nasce cada manhã, e já
está velha ao meio-dia...
— Culpa eu tive, meu tio...
— Quem não tem, quem não teve? Culpa muita, minha filha... Mãe do Nhô Augusto
morreu, com ele ainda pequeno... Teu sogro era um leso, não era p’ra chefe de
família... Pai era como que Nhô Augusto não tivesse... Um tio era criminoso, de mais
de uma morte, que vivia escondido, lá no Saco-da-Embira... Quem criou Nhô
Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo,
santimônia e ladainha...
De manhã, com o sol nascendo, retomaram a andadura. E, quando o sol esteve
mais dono de tudo, e a poeira era mais seca, Mimita começou a gemer, com uma
dor de pontada, e pedia água. E, depois, com um sorriso tristinho, perguntava: —
Por que é que o pai não gosta de nós, mãe?
E o Quim Recadeiro ficava a bater a cabeça, vez e vez, com muita circunspecção
tola, em universal assentimento.
Mas, na passagem do brechão do Bugre, lá estava seu Ovídio Moura, que tinha
sabido, decerto, dessa viagem de regresso.
— Dionóra, você vem comigo... Ou eu saio sozinho por esse mundo, e nunca mais
você há-de me ver!
Mas Dona Dionóra foi tão pronta, que ele mesmo se espantou.
— Nhô Augusto é capaz de matar a gente, seu Ovídio... Mas eu vou com o senhor, e
fico, enquanto Deus nos proteger...
Seu Ovídio pegou a menina do colo do Quim, que nada escutara ou entendera e
passou a cavalgar bem atrás. E, quando chegaram no pilão-d’água do Mendonça,
onde tem uma encruzilhada, e o camarada viu que os outros iam tomando o
caminho da direita, estugou o cavalo e ainda gritou, para corrigir:
— Volta para trás, minha patroa, que o caminho por aí é outro!
Mas seu Ovídio se virou, positivo:
— Volta você, e fala com o seu patrão que Siá Dona Dionóra não quer viver mais
com ele, e que ela de agora por diante vai viver comigo, com o querer dos meus
parentes todos e com a bênção de Deus!
Quim Recadeiro, no primeiro passo, ainda levou a mão ao chapéu de palha,
cumprimentando:
— Pois sim, seu Ovídio... Eu dou o recado...
Ficou parado, limpando suor dos cabelos, sem se resolver. Mas, fim no fim, num
achamento, se retesou nos estribos, e gritou: — Homem sujo!... Tomara que uma
coruja ache graça na tua porta!...
Jogou fora, e cuspiu em cima. E tocou para trás, em galope doido, dando poeira ao
vento. Ia dizer a Nhô Augusto que a casa estava caindo.
Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremotos, é um dia de
chegada infalível, — o dono pode estar: de dentro, ou de fora. É melhor de fora. E é
a só coisa que um qualquer-um está no poder de fazer. Mesmo estando de dentro,
mais vale todo vestido e perto da porta da rua. Mas, Nhô Augusto, não: estava
deitado na cama — o pior lugar que há para se receber uma surpresa má.
E o camarada Quim sabia disso, tanto que foi se encostando de medo que ele
entrou. Tinha poeira até na boca. Tossiu.
— Levanta e veste a roupa, meu patrão Nhô Augusto, que eu tenho uma novidade
meia ruim, p’ra lhe contar.
E tremeu mais, porque Nhô Augusto se erguia de um pulo e num átimo se vestia. Só
depois de meter na cintura o revólver, foi que interpelou, dente em dente: — Fala
tudo!
Quim Recadeiro gaguejou suas palavras poucas, e ainda pôde acrescentar: — ....Eu
podia ter arresistido, mas era negócio de honra, com sangue só p’ra o dono, e
pensei que o senhor podia não gostar...
— Fez na regra, e feito! Chama os meus homens!
Dali a pouco, porém, tornava o Quim, com nova desolação: os bate-paus não
vinham... Não queriam ficar mais com Nhô Augusto... O Major Consilva tinha
ajustado, um e mais um, os quatro, para seus capangas, pagando bem. Não
vinham, mesmo. O mais merecido, o cabeça, até mandara dizer, faltando ao
respeito: — Fala com Nhô Augusto que sol de cima é dinheiro!... P’ra ele pagar o
que está nos devendo... E é mandar por portador calado, que nós não podemos
escutar prosa de outro, que seu Major disse que não quer.
— Cachorrada!... Só de pique... Onde é que eles estão?
— Indo de mudados, p’ra a chácara do Major...
— Major de borra! Só de pique, porque era inimigo do meu pai!...Vou lá!
— Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas to dos no lugar estão
falando que o senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas e riquezas, e
que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes,
querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... — o senhor dê o perdão
p’r’a minha boca que eu só falo o que é perciso — estão dizendo que o senhor nunca
respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que
quem vê tem de matar por obrigação... Estou lhe contando p’ra mo do de o senhor
não querer facilitar. Carece de achar outros companheiros bons, p’ra o senhor não ir
sozinho... Eu, não, porque sou medroso. Eu cá pouco presto...
Mas, se o senhor mandar, também vou junto.
Mas Nhô Augusto se mordia, já no meio da sua missa, vermelho e feroz. Montou e
galopou, teso para trás, rei na sela, enquanto o Quim Recadeiro ia lá dentro, caçar
um gole d’água para beber. Assim.
Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois
contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas
rodadas sem jogar fazendo umas férias na vida: viagem, mudança, ou qualquer
coisa ensossa, para esperar o cumprimento do ditado: “Cada um tem seus seis
meses...”
Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de
cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar
o gasto, desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para
ponderados pensamentos.
Nele, mal-e-mal, por debaixo da raiva, uma ideia resolveu por si: que antes de ir à
Mombuca, para matar o Ovídio e a Dionóra, precisava de cair com o Major
Consilva e os capangas. Se não, se deixasse rasto por acertar, perdia a força. E foi.
Cresceu poeira, de peneira. A estrada ficou reta, cheia de gente com cautela.
Chegou à chácara do Major.
Mas nem descavalgou, sem tempo. Do tope da escada, o do no da casa foi falando
alto, risonho de ruim:
— Tempo do bem-bom se acabou, cachorro de Estêves!...
O cavalo de Nhô Augusto obedeceu para diante; as ferraduras tiniram e deram
fogo no lajedo; e o cavaleiro, em pé nos estribos, trouxe a taca no ar, querendo a
figura do velho.
Mas o Major piscou, apenas, e encolheu a cabeça, porque mais não era preciso, e
os capangas pulavam de cada beirada, e eram só pernas e braços.
— Frecha, povo! Desmancha!
Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matrinchãs na rede.
Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desdeu o corpo e caiu.
Ainda se ajoelhou em terra, querendo firmar-se nas mãos, mas isso só lhe serviu
para poder ver as caras horríveis dos seus próprios bate-paus, e, no meio deles, o
capiauzinho mongo que amava a mulher-à toa Sariema.
E Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que capiau de testa
peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz de guardar o
passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar da rua outras raivas
pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até chegar o dia de tirar
vingança.
Mas, aí, pachorrenta e cuspida, ressoou a voz do Major: — Arrastem p’ra longe,
para fora das minhas terras... Mar quem a ferro, depois matem.
Nhô Augusto se alteou e estendeu o braço direito, agarrando o ar com os cinco
dedos: — Cá p’ra perto, carrasco!... Só mesmo assim desse jeito, p’ra sojigar Nhô
Augusto Estêves!
E, seguro por mãos e pés, torcido aos pulsos dos capangas, urrava e berrava, e
estrebuchava tanto, que a roupa se estraçalhava, e o corpo parecia querer partir-se
em dois, pela metade da barriga. Desprendeu-se, por uma vez. Mas outros dos
homens desceram os porretes. Nhô Augusto ficou estendido, de-bruços, com a cara
encostada no chão.
-— Traz água fria, companheiro!
O capiauzinho da testa peluda cantou, mal-entoado: Sou como a ema,
Que tem penas e não voa...
Os outros começaram a ficar de cócoras.
Mas, quando Nhô Augusto estremeceu e tornou a solevar a cabeça, o Major, lá da
varanda, apertando muito os olhos, para espiar, e se abanando com o chapéu, tirou
ladainha: — Não tem mais nenhum Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas, minha
gente?!...
E os cacundeiros, em coro:
— Não tem não! Tem mais não!...
Puxaram e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barranco, que ficou
sendo um caminho de pragas e judiação.
E, quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim de légua, o Nhô Augusto já
vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de
pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue. Empurraram-no para o chão, e
ele nem se moveu.
— É aqui mesmo, companheiros. Depois, é só jogar lá para baixo, p’ra nem a alma
se salvar...
Os jagunços veteranos da chácara do Major Consilva acenderam seus cigarros, com
descanso, mal interessados na execução. Mas os quatro que tinham sido bate-paus
de Nhô Augusto mostravam maior entusiasmo, enquanto o capiauzinho sem testa,
diligente e contente, ia ajuntar lenha para fazer fogo.
E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do
Major — que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência — , e imprimiram-na,
com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto. Mas
recuaram todos, num susto, porque Nhô Augusto viveu-se, com um berro e um salto,
medonhos.
— Segura!
Mas já ele alcançara a borda do barranco, e pulara no espaço. Era uma altura, O
corpo rolou, lá em baixo, nas moitas, se sumindo.
— Por onde é que a gente passa, p’ra poder ir ver se ele morreu?
Mas um dos capangas mais velhos disse melhor: — Arma uma cruz aqui mesmo,
Orósio, para de noite ele não vir puxar teus pés...
E deram as costas, regressando, sob um sol mais próximo e maior.
Mas o preto que morava na boca do brejo, quando calculou que os outros já teriam
ido embora, saiu do seu esconso, entre as taboas, e subiu aos degraus de mato do
pé do barranco. Chegou-se. Encontrou vida funda no corpo tão maltratado do
homem branco; chamou a preta, mulher do preto que morava na boca do brejo, e
juntos carregaram Nhô Augusto para o casebre dos dois, que era um cofo de barro
seco, sob um tufo de capim podre, mal erguido e mal avistado, no meio das árvores,
como um ninho de maranhões.
E o preto foi cortar padieiras e travessas, para um esquife, enquanto a preta
procurava um coto de vela benta, para ser posta na mão do homem, na hora do
“Diga Jesus comigo, irmão”...
Mas, nessa espera, por surpresa, deu-se que Nhô Augusto pôs sua pessoa nos
olhos, e gemeu:
— Me matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor...
Depois, falou coisas sem juízo, para gente ausente, pois estava lavorando de quente
e tinha mesmo de delirar.
— Deus que me perdoe, — resmungou a preta, — mas este homem deve de ser ruim
feito cascavel barreada em buraco, porque está variando que faz e acontece, e é só
braveza de matar e sangrar... E ele chama por Deus, na hora da dor forte, e Deus
não atende, nem para um fôlego, assim num desamparo como eu nunca vi!
Mas o negro só disse:
— Os outros não vão vir aqui, para campear defunto, porque a pirambeira não tem
descida, só dando muita volta por longe. E, como tem um bezerro morto, na biboca,
lá de cima vão pensar que os urubus vieram por causa do que eles estão
pensando...
Deitado na esteira, no meio de molambos, no canto escuro da choça de chão de
terra, Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha
as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas,
porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com
ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com
costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e
cortes, e a queimadura da marca de ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado
imenso.
Mesmo assim, com isso tudo, ele disse a si que era melhor viver. Bebeu mingau ralo
de fubá, e a preta enrolou para ele um cigarro de palha. Em sua procura não
aparecera ninguém. Podia sarar. Podia pensar.
Mas, de tardinha, chegou a hora da tristeza; com grunhidos de porcos, ouvidos
através das fendas da parede, e os ruflos das galinhas, procurando poleiro nos
galhos, e a negra, lá fora, lavando as panelas e a cantar:
As árvores do Mato Bento
deitam no chão p’ra dormir...
E havia também, quando a preta parava, as cantigas miúdas dos bichinhos mateiros
e os sons dos primeiros sapos.
Esfriou o tempo, antes do anoitecer. As dores melhoraram. E, aí, Nhô Augusto se
lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento, mesmo, só com uma falta
de ar enorme, sufocando. Respirava aos arrancos, e teve até medo, porque não
podia ter tento nessa desordem toda, e era como se o corpo não fosse mais seu. Até
que pôde chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de
menino ao abandono. E, sem saber e sem poder, chamou alto soluçando:
— Mãe... Mãe...
O preto, que estava sentado, pondo chumbada no anzol, no pé da porta de casa,
ouviu e ficou atrapalhado; chamou a preta, que veio ligeira e se enterneceu: — Não
faz assim, seu moço, não desespera. Reza, que Deus endireita tudo... P’ra tudo Deus
dá o jeito!
E a preta acendeu a candeia, e trouxe uma estampa de Nossa Senhora do Rosário,
e o terço.
Agora, parado o pranto, a tristeza tomou conta de Nhô Augusto. Uma tristeza
mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo.
Tudo perdido! O
resto, ainda podia... Mas, ter a sua família, direito, outra vez, nunca. Nem a filha...
Para sempre... E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo
distante.
E ele teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça, de repassar
as misérias da sua vida. Mas mordeu a fala e não desabafou. Também não rezou.
Porém a luzinha da candeia era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de
azei te, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas,
mas todas de bom e bonito final. Fechou os olhos. Suas mãos, uma na outra,
estavam frias. Deu-se ao cansaço.
Dormiu.
E desse modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, por que os ossos tomavam
tempo para se ajuntar, e a fratura ex posta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam
muito dele, não arrefecendo na dedicação.
— Se eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!...
Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o confessou e
conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.
— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas
costas tanto pecado mortal?!
— Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de
arrependido nenhum...
E por aí a fora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo o doente num
desvencido torpor.
— Eu acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar
mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida
foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é
aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de
sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a
nenhum coração contrito!
— Fé eu tenho, fé eu peço, Padre...
— Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você
deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau
gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do
que ele... Peça a Deus assim, com esta jaculatória: “Jesus, manso e humilde de
coração, fazei meu coração semelhante ao vosso. .
E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelente mente, porque era
mesmo uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida, insistiu: — Reze e
trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às
vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço
bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.
E, lá fora, ainda achou de ensinar à preta um enxofre e tal para o gogo dos frangos,
e aconselhou o preto a pincelar água de cal no limoeiro, e a plantar tomateiros e
pés de mamão.
Meses não são dias, e a vida era aquela, no chão da choupana. Nhô Augusto
comia, fumava, pensava e dormia. E tinha peque nas esperanças: de amanhã em
diante, o lado de cá vai doer menos, se Deus quiser... — E voltou a recordar todas as
rezas aprendidas na meninice, com a avó. Todas e muitas mais, mesmo as mais
bobas de tanta deformação e mistura: as que o preto engrolava, ao lavar-lhe com
creolina a ferida da perna, e as que a preta murmurava, benzendo a cuja d’água,
ao lhe dar de beber.
E somente essas coisas o ocupavam, porque para ele, féria feita, a vida já se
acabara, e só esperava era a salvação da sua alma e a misericórdia de Deus Nosso
Senhor. Nunca mais seria gente! O corpo estava estragado, por dentro, e mais
ainda a ideia. E tomara um tão grande horror às suas maldades e aos seus malfeitos
passados, que nem podia se lembrar; e só mesmo rezando.
Espantava as ideias tristes, e, com o passar do tempo, tudo isso lhe foi dando uma
espécie nova e mui serena de alegria. Esteve resignado, e fazia compridos
progressos na senda da conversão.
Quando ficou bom para andar, escorando-se nas muletas que o preto fabricara, já
tinha os seus planos, menos maus, cujo ponto de início consistia em ir para longe,
para o sitiozinho perdido no sertão mais longínquo uma data de dez alqueires, que
ele não conhecia nem pensara jamais que teria de ver, mas que era agora a única
coisa que possuía de seu. Antes de partir, teve com o padre uma derradeira
conversa, muito edificante e vasta. E, junto com o casal de pretos samaritanos, que,
ao hábito de se desvelarem, agora não o podiam deixar nem por nada, pegou
chão, sem paixão.
Largaram à noite, porque o começo da viagem teria de ser uma verdadeira
escapada. E, ao sair, Nhô Augusto se ajoelhou, no meio da estrada, abriu os braços
em cruz, e jurou: — Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a
minha vez há de chegar...
P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... E os negros aplaudiram, e a turminha
pegou o passo, a caminho do sertão.
Foram norte a fora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de dia e viajando
de noite, como cativos amocambados, de quilombo a quilombo. Para além do
Bacupari, do Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria, do Peixe-Bravo, dos
Tachos, do Tamanduá, da Serra-Fria, e de todos os muitos arraiais jazentes na reta
das léguas, ao pé dos verdes morros e dos morros de cristais brilhantes, entre as
varjarias e os cordões-de-mato. E deixavam de lado moendas e fazendas, e as
estradas com cancelas, e roçarias e sítios de monjolos, e os currais do Fonseca, e a
pedra quadrada dos irmãos Trancoso; e mesmo as grandes casas velhas, sem gente
mais morando, vazias como os seus currais. E dormiam nas brenhas, ou sob as
árvores de sombra das caatingas, ou em ranchos de que todos são donos, à beira
das lagoas com patos e das lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio das Rãs e
o Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de pedregulho, contra
as serras azuis e as serras amarelas, sempre. L Depois, por baixadas, com outeiros,
terras mansas. E em paragens ripuárias, mas evitando a linha dos vaus, sob o vôo
das garças, — os caminhos por onde as boiadas vêm, beirando os rios.
E assim se deu que, lá no povoado do Tombador, — onde, às vezes, pouco às vezes
e somente quando transviados da boa rota, passavam uns bruaqueiros tangendo
tropa, ou uns baianos corajosos migrando rumo sul, — apareceu, um dia, um homem
esquisito, que ninguém não podia entender.
Mas todos gostaram logo dele, porque era meio doido e meio santo; e compreender
deixaram para depois.
Trabalhava que nem um afadigado por dinheiro, mas, no feito, não tinha nenhuma
ganância e nem se importava com acrescentes: o que vivia era querendo ajudar os
outros. Capinava para si e para os vizinhos do seu fogo, no querer de repartir,
dando de amor o que possuísse. E só pedia, pois, serviço para fazer, e pouca ou
nenhuma conversa.
O casal de pretos, que moravam junto com ele, era quem mandava e desmandava
na casa, não trabalhando um nada e vi vendo no estadão. Mas, ele, tinham-no visto
mourejar até dentro da noite de Deus, quando havia luar claro.
Nos domingos, tinha o seu gosto de tomar descanso: batendo mato, o dia inteiro,
sem sossego, sem espingarda nenhuma e nem nenhuma arma para caçar; e, de
tardinha, fazendo parte com as velhas corocas que rezavam o terço ou os meses dos
santos. Mas fugia às léguas de viola ou sanfona, ou de qualquer outra qualidade de
música que escuma tristezas no coração.
Quase sempre estava conversando sozinho, e isso também era de maluco, diziam;
porque eles ignoravam que o que fazia era apenas repetir, sempre que achava
preciso, a fala final do padre:
— “Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há-de ter a sua”. — E era só.
E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem
tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e
não é um caso acontecido, não senhor.
Quem quisesse, porém, durante esse tempo, ter dó de Nhô Augusto, faria grossa
bobagem, porquanto ele não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no
pesado e dava rezas para a sua alma, tudo isso sem esforço nenhum, como os
cupins que levantam no pasto murundus vermelhos, ou como os tico ticos, que
penam sem cessar para levar comida ao filhote de pássaro-preto bico aberto, no
alto do mamoeiro, a pedir mais.
Esta última lembrança era do povo do Tombador, já que em toda a parte os outros
implicam com os que deles se desinteressam, e que o pessoal nada sabia das
alheias águas passadas, e nem que o negro e a negra eram agora pai e mãe de
Nhô Augusto.
Também, não fumava mais, não bebia, não olhava para o bom-parecer das
mulheres, não falava junto em discussão. Só o que ele não podia era se lembrar da
sua vergonha; mas, ali, naquela biboca perdida, fim-de-mundo, cada dia que
descia ajudava a esquecer.
Mas, como tudo é mesmo muito pequeno, e o sertão ainda é menor, houve que
passou por lá um conhecido velho de Nhô Augusto — o Tião da Thereza — à procura
de trezentas reses de uma boiada brava, que se desmanchara nos gerais do alto Uru
cuja, estourando pelos cem caminhos sem fim do chapadão.
Tião da Thereza ficou bobo de ver Nhô Augusto. E, como era casca-grossa, foi logo
dando as notícias que ninguém não tinha pedido: a mulher, Dona Dionóra,
continuava amigada com seu Ovídio, muito de-bem os dois, com tenção até em
casamento de igreja, por pensarem que ela estava desimpedida de marido; com a
filha, sim, é que fora uma tristeza: crescera sã e se encorpara uma mocinha muito
linda, mas tinha caído na vida, seduzida por um cometa, que a levara do arraial,
para onde não se sabia... O Major Consilva prosseguia mandando no Murici, e
arrematara as duas fazendas de Nhô Augusto... Mas o mais mal-arrumado tinha
sido com o Quim, seu antigo camarada, o pobre do Quim Recadeiro — “Se
alembra?” — Pois o Quim tinha morrido de morte-matada, com mais de vinte balas
no corpo, por causa dele, Nhô Augusto: quando soube que seu patrão tinha sido
assassinado, de mando do Major, não tivera dúvida: ...jurou desforra, beijando a
garrucha, e não esperou café coado! Foi cuspir no canguçu detrás da moita, e ficou
morto, mas já dentro da sala-de-jantar do Major, e depois de matar dois capangas
e ferir mais um...
— Pára, chega, Tião! ... Não quero saber de mais coisa nenhuma! Só te peço é para
fazer de conta que não me viu, e não contar p’ra ninguém, pelo amor de Deus, por
amor de sua mulher, de seus filhos e de tudo o que para você tem valor!... Não é
mentira muita, porque é a mesma coisa em como se eu tivesse morrido mesmo...
Não tem mais nenhum Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas, Tião...
— Estou vendo, mesmo. Estou vendo...
E Tião da Thereza pôs, nos olhos, na voz e no meio-aberto da boca, tanto nojo e
desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo; e nem adiantou repetir para si mesmo
a jaculatória do coração manso e humilde: teve foi de sair, para trás das
bananeiras, onde se ajoelhou e rejurou: — P’ra o céu eu vou, nem que seja a
porrete!...
E foi bom passo que nesse dia um homem chamado Romualdo, morador à beira da
cava, precisou de ajuda para tirar uma égua do atoleiro, e Nhô Augusto teve
trabalho até tarde da noite, com fogueira acesa e tocha na mão.
Mas, daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a tristeza. E, com
a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas mal-feitas, uma vontade sem calor no
corpo, só pensada: como que, se bebesse e cigarrasse, e ficasse sem trabalhar nem
rezar, haveria de recuperar sua força de homem e seu acerto de outro tempo, junto
com a pressa das coisas, como os outros sabiam viver.
Mas, a vergonheira atrasada? E o castigo? O padre bem que tinha falado: — “Você,
em toda sua vida, não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes
sofrimentos só para um pecador poder ter a ideia do que o fogo do inferno é!...”
Sim, era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para poder alcançar o
reino-do-céu. Mas o mais terrível era que o desmazelo de alma em que se achava
não lhe deixava esperança nenhuma do jeito de que o Céu podia ser.
— Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão
mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?!...
— Não fala fácil, meu filho!... Dei’stá: debaixo do angu tem molho, e atrás de morro
tem morro.
— Isso sim... Cada um tem a sua vez, e a minha hora há-de chegar!...
E, enquanto isso tudo, Nhô Augusto estava no escuro e sozinho, cercado de capiaus
descalços, vestidos de riscado e seriguilha tinta, sem padre nenhum com quem falar.
E essa era a consequência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por
motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruás bravio, combinada com a
existência, neste mundo, do Tião da Thereza. E tudo foi bem assim, porque tinha de
ser, já que assim foi.
Apenas, Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente,
humanamente, e foi essa a primeira vez. E, no fim, desabafou: que era demais o que
estava purgando pelos seus pecados, e que Nosso Senhor se tinha esquecido dele!
‘A mulher, feliz, morando com outro... A filha, tão nova, e já na mão de todos,
rolando por este mundo, ao deus-dará... E o Quim, o Quim Recadeiro — um
rapazinho miúdo, tão no desamparo — e morrendo como homem, por causa do
patrão... um patrão de borra, que estava p’r’ali no escondido, encostado, que nem
como se tivesse virado mulher!...
— O resto é peso p’ra dia, mãe Quitéria... Mas, como é? Como é que eu vou me
encontrar com o Quim lá com Deus, com que cara?!... E eu já fui zápede, já pus
fama em feira, mãe Quitéria! Na festa do Rosário, na Tapera... E um dia em que
enfrentei uns dez, fazendo todo-o-mundo correr... Desarmei e dei pancada, no
Sergipão Congo, mãe Quitéria, que era mão que desce, mesmo monstro matador!...
E a briga, com a família inteira, pai, irmão, tio, da moça que eu tirei de casa,
semana em antes de se casar?!
— Vira o demônio de costas, meu filho... Faz o que o seu padre mandou!
— E é o diabo mesmo, mãe Quitéria... Eu sei... Ou então é castigo, porque eu vou
me lembrar dessas coisas logo agora, que o meu corpo não está valendo, nem que
eu queira, nem p’ra brigar com homem e nem p’ra gostar de mulher...
— Rezo o credo!
Mas Nhô Augusto, que estava de cócoras, sentou-se no chão e continuou: — Tem
horas em que fico pensando que, ao menos por honrar o Quim, que morreu por
minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma vantagem... Mas eu tenho medo... Já
sei como é que o inferno é, mãe Quitéria... Podia ir procurar a coitadinha da minha
filha, que talvez esteja sofrendo, precisando de mim... Mas eu sei que isso não é eito
meu, não é não. Tenho é de ficar pagando minhas culpas, penando aqui mesmo, no
sozinho. Já fiz penitência estes anos todos, e não posso ter prejuízo deles! Se eu
quisesse esperdiçar essa penitência feita, ficava sem uma coisa e sem outra... Sou
um desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de chegar!... A minha vez...
E assim nesse parado Nhô Augusto foi indo muito tempo, se acostumando com os
novos sofrimentos, mais meses. Mas sempre saía para servir aos outros, quando
precisavam, ajudava a carregar defuntos, visitava e assistia gente doente, e fazia
tudo com uma tristeza bondosa, a mais não ser.
Até que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer
voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do
tempo das águas, que vinha vindo paralela: com o calor dos dias aumentando, e os
dias cada vez maiores, e o joão-de-barro construindo casa nova, e as sementinhas,
que hibernavam na poeira, esperando na poeira, em misteriosas incubações. Nhô
Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve.
Não tinha precisão de enxotar as tristezas.
Não pensava nada... E as mariposas e os cupins-de-asas vinham voar ao redor da
lamparina... Círculo rodeando a lua cheia, sem se encostar... E começaram os
cantos.
Primeiro, os sapos: — “Sapo na seca coaxando, chuva beirando”, mãe Quitéria!... —
Apareceu uma jia na horta, e pererecas dentro de casa, pelas paredes... E os
escorpiões e as minhocas pulavam no terreiro, perseguidos pela correição das lava-
pés, em préstitos atarefados e compridos... No céu sul, houve nuvens maiores, mais
escuras. Aí, o peixe-frito pegou a cantar de noite. A casca de lua, de bico para
baixo, “despejando”... Um vento frio, no fim do calor do dia... Na orilha do atoleiro,
a saracura fêmea gritou, pedindo três potes, três potes, três potes para apanhar
água... Choveu.
Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a
ideia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu: — Deus está
tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se
lembrando de mim...
— Louvor ao Divino, meu filho!
E, uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que era que ele estava
com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando, ao mesmo tempo,
muito bom se levantar.
Então, depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e de verdes,
e fez uma descoberta: por que não pitava?! ... Não era pecado... Devia ficar
alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se
alegrar...
E isso foi pensado muito ligeiro, porque já ele enrolava a palha, com uma pressa
medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de abstenção. Tirou tragadas,
soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas
com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia
virar uma chuvinha fina.
Não, não era pecado!... E agora rezava até muito melhor e podia esperar melhor,
mais sem pressa, a hora da libertação.
E, pois, foi aí por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e
té hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.
Vindos do norte, da fronteira velha-de-guerra, bem monta dos, bem enroupados,
bem apessoados, chegaram uns oito homens, que de longe se via que eram
valentões: primeiro surgiu um, dianteiro, escoteiro, que percorreu, de ponta a ponta,
o povoado, pedindo água à porta de uma casa, pedindo pousada em outra,
espiando muito para tudo e fazendo pergunta e pergunta; depois, então,
apareceram os outros, equipados com um despropósito de armas — carabinas,
novinhas quase; garruchas, de um e de dois canos; revólveres de boas marcas;
facas, punhais, quicés de cabos esculpidos; porretes e facões, — e transportando um
excesso de breves nos pescoços.
O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe — o mais forte
e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes
brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito
e mansinho de moça — era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre
do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande,
do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu; maior do que
Antônio D ou Indalécio; o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-
unha, o fecha-ti-eta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa:
Seu Joãozinho Bem-Bem.
O povo não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo de
ficar na rua, com medo de falar e de ficar calado, com medo de existir. Mas Nhô
Augusto, que vinha de vir do mato, carregando um feixe de lenha para um homem
chamado Tobias da Venda, quando soube do que havia, jogou a carga no chão e
correu ao encontro dos recém-chegados.
Então o bandido Flosino Capeta, um sujeito cabeça-de-canoa, que nunca se
apartava do chefe, caçoou:
— Que suplicante mais estúrdio será esse, que vem vindo ali, feito sombração?!
Mas seu Joãozinho Bem-Bem fez o cavalo avançar duas passadas, e disse: — Não
debocha, companheiro, que eu estou gostando do jeito deste homem caminhar!
E Flosino Capeta pasmou deveras, porque era a coisa mais custosa deste mundo seu
Joãozinho Bem-Bem se agradar de alguém ao primeiro olhar.
Mas Nhô Augusto, parecendo não ver os demais, veio direi to ao chefe, encarando-
o firme e perguntando:
— O senhor, de sua graça, é que é mesmo o seu Joãozinho Bem-Bem, pois não é?
— P’ra lhe servir, meu senhor.
— A pois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe convido
para passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo de querer ficar por
aqui... E de armar sua rede debaixo do meu telhado, que vai me dar muita
satisfação!
— Eu aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver quem é mais, desse
povinho assustado, que quer agasalhar o resto da minha gente...
— Pois eu gostava era que viessem todos juntos para o meu rancho...
— Não será abuso, mano velho?
— É não... E de coração.
— Pois então, vamos, que Deus lhe pagará!
E seu Joãozinho Bem-Bem, que, com o rabo-do-olho, não deixava de vigiar tudo em
volta, virou-se, rápido, para o Epifânio, que mexia com a winchester: — Guarda a
arma, companheiro, que eu já disse que não quero essa moda de brincar de dar tiro
à toa, à toa, só por amor de espantar os moradores do lugar!...Vamos chegando!
Guia a gente, mano velho.
E aí o casal de pretos, em grande susto, teve de se afanar, num corre-corre de
depenar galinhas, matar leitoa, procurar ovos e fazer doces. E Nhô Augusto, depois
de buscar ajuda para tratar dos cavalos, andou de casa em casa, arrecadando
aluá, frutas, quitandas, fumo cheiroso, muita cachaça, e tudo o mais que de fino
houvesse, para os convidados. E os seus convidados achavam imensa graça
naquele homem, que se atarefava em servi-los, cheio de atenções, quase de
carinhos, com cujo motivo eles não topavam atinar. Tinham armado as redes de
fibra nas árvores do quintal, e repousavam, cada qual com o complicado arsenal
bem ao alcance da mão. Então seu Joãozinho Bem-Bem contou a Nhô Augusto:
estava de passagem, com uma pequena parte do seu bando, para o sul, para o
arraial das Taquaras, na nascença do Manduri, a chamado de seu amigo Nicolau
Cardoso, atacado por um mandão fazendeiro, de injustiça. E Flosino Capeta
acrescentou: — Diz’que o tal tomou reforço, com três tropas de serranos, mas é só a
gente chegar lá, para não se ver ninguém mais... Eles têm que “dar o beiço e cair o
cacho”, seu moço!... Mas a gente nem pode mais ter o gosto de brigar, porque o
pessoal não aparece, no falar de entrar no meio do seu Joãozinho Bem-Bem...
Mas seu Joãozinho Bem-Bem interrompeu o outro: — Prosa minha não carece de
contar, companheiro, que to do o mundo já sabe.
Nhô Augusto passeava com os olhos, que nunca ninguém tinha visto tão grandes
nem tão redondos, mostrando todo o branco ao redor. Seu Joãozinho Bem-Bem ria
um riso descansado, e os outros riam também, circundando-o, obedientes.
— A gente não ia passar, porque eu nem sabia que aqui tinha este comercinho...
Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio tinha a maleita, e da outra está
reinando bexiga da brava... E falaram também numa soldadesca, que vem lá da
Diamantina... Por isso a gente deu tanta volta.
Os pretos trouxeram a janta, para o meio do pátio. Era um banquete. E quando a
turma se pôs em roda, para começar a comer, o anfitrião fez o sinal da cruz e rezou
alto; e os outros o acompanharam, com o que Nhô Augusto deu mostras de exultar.
— O senhor, que é o dono da casa, venha comer aqui perto de mim, mano velho...
— pediu seu Joãozinho Bem-Bem. — Mas, que é que o senhor está gostando tanto
assim de apreciar? Ah, é o Tim?... Isso é morrinha de quartel... Ele é reiúno...
Nhô Augusto namorava o Tim Tatu-tá-te-vendo, desertor do Exército e de três
milícias estaduais, e que, por isso mesmo e sem querer, caminhava marchando, e,
para falar com alguém, se botava de sentido, em estricta posição.
— Esta guarda guerreira acompanha o senhor há muito tempo, seu Joãozinho Bem-
Bem?
O chefe acertou a sujigola e tossiu, para responder: — Alguns. É tudo gente limpa...
Mocorongo eu não aceito comigo! Homem que atira de trás do toco não me serve...
Gente minha sé mata as mortes que eu mando, e morte que eu mando é sé morte
legal!
— Epa, ferro!.., — exclamou Nhô Augusto, balançando o corpo. Seu Joãozinho Bem-
Bem continuou:
— Povo sarado e escovado... Mas eles todos me dão trabalho... Este aqui é baiano,
fala mestre... Cabeça-chata é outro, porque eles avançam antes da hora... Não é
gente fácil...
Nem goiano, porque não é andejo... E nem mineiro, porque eles andam sempre
com a raiva fora-de-hora, e não gostam de parar mais, quando começam a
brigar... Mas, pessoal igual ao meu, não tem!
— E o senhor também não é mineiro, seu Joãozinho Bem-Bem?
— Isso sim, que sou... Sou da beira do rio... Sei lá de onde é que eu sou?!... Mas,
por me lembrar, mano velho, não leve a mal o que eu vou lhe pedir: sua janta está
de primeira, está boa até de regalo.., mas eu ando muito escandecido e meu
estômago não presta p’ra mais...
Se for coisa de pouco incômodo, o que eu queria era que o senhor mandasse
aprontar para mim uma jacuba quente, com a rapadura bem preta e a farinha bem
fina, e com umas folhinhas de laranjada-terra no meio... Será que pode?
— Já, já...Vou ver.
— Deus lhe ajude, mano velho.
Enquanto isso, os outros devoravam, com muita esganação e lambança. E, quando
Nhô Augusto chegou com a jacuba, inter pelou-o o Zeferino, que multiplicava as
sílabas, com esforço, e, como tartamudo teimoso, jogava, a cada sílaba, a cabeça
para trás: — Pois eu... eu est-t-tou m’me-espan-t-tando é de uma c’coisa, meu
senhor: é de, neste jantar, com t-t-tantas c’come rias finas, não haver d-d-duas
delas, das mais principais!
— Que é que está fazendo falta, amigo?
— É o m’molho da sa-mam-baia e a so-p-p’pa da c’c’an jiquinha!
Nhô Augusto sorriu:
— Eu agaranto que, na hora da zoeira, tu no pinguelo não gagueja!
— Que nada! — apoiou seu Joãozinho Bem-Bem. — Isto é cabra macho e
remacheado, que dá pulo em-cruz...
Já Nhô Augusto, incansável, sem querer esperdiçar detalhe, apalpava os braços do
Epifânio, mulato enorme, de musculatura embatumada, de bicipitalidade maciça. E
se voltava para o Juruminho, caboclo franzino, vivo no menor movimento, ágil até no
manejo do garfo, que em sua mão ia e vinha como agulha de coser: — Você,
compadre, está-se vendo que deve de ser um corisco de chegador!...
E o Juruminho, gostando.
— Chego até em porco-espinho e em tatarana-rata, e em homem de vinte braços,
com vinte foices para sarilhar!... Deito em ponta de chifre, durmo em ponta de faca,
e amanheço em riba do meu colchão!... Está aí nosso chefe, que diga... E mais isto
aqui...
E mostrou a palma da mão direita, lanhada de cicatrizes, de pegar punhais pelo
pico, para desarmar gente em agressão.
Nhô Augusto se levantara, excitado:
— Opa! Oi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as clavinas... E você
outro, aí, mais este compadre de cara séria, p’ra voltearem... E este companheirinho
chegador, para chegar na frente, e não dizer até-logo!... E depois chover sem
chuva, com o pau escrevendo e lendo, e arma-de-fogo debulhando, e homem
mudo gritando, e os do-lado-de-lá correndo e pedindo perdão!...
Mas, aí, Nhô Augusto calou, com o peito cheio; tomou um ar de acanhamento;
suspirou e perguntou:
— Mais galinha, um pedaço, amigo?
— ‘Tou feito.
— E você, seu barra?
— Agradecido... ‘Tou encalcado... ‘Tou cheio até à tampa! Enquanto isso, seu
Joãozinho Bem-Bem, de cabeça entorna da, não tirava os olhos de cima de Nhô
Augusto. E Nhô Augusto, depois de servir a cachaça, bebeu também, dois goles, e
pediu uma das papo-amarelo, para ver: — Não faz conta de balas, amigo? Isto é
arma que cursa longe...
— Pode gastar as óito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...
— Deixa a criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não
reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...
Fez fogo.
— Mão mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois... Ferrugem
em bom ferro!
Mas, nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer o pelo-sinal e entrou num desânimo,
que o não largou mais. Continuou, porém, a cuidar bem dos seus hóspedes, e, como
o pessoal se acomodara ali mesmo, nas redes, ao relento, com uma fogueira acesa
no meio do terreiro, ele só foi dormir tarde da noite, quando não houve mais nem um
para contar histórias de conflitos, assaltos e duelos de exterminação.
Cedinho na manhã seguinte, o grupo se despediu. Joãozinho Bem-Bem agradeceu
muito o agasalho, e terminou:
— O senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, mas eu estou
lhe prestando atenção, este tempo to do, e agora eu acho, pesado e pago, que o
senhor é mas é pessoa boa mesmo, por ser. Nossos anjos-da-guarda combinaram,
e isso para mim é o sinal que serve. A pois, se precisar de alguma coisa, se tem um
recado ruim para mandar para alguém... Tiver algum inimigo alegre, por aí, é só
dizer o nome e onde mora. Tem não?
Pois, ‘tá bom. Deus lhe pague suas bondades.
— Vão com Deus! Até à volta, vocês todos. ‘Té a volta, seu Joãozinho Bem-Bem!
Mas, depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer: — Mano
velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que não viveu sempre
aqui nesta grota, capinando roça e cortando lenha... Não quero especular coisa de
sua vida p’ra trás, nem se está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o
senhor havia de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
— Ah, não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Pois então, mano velho, paciência.
— Mas nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amigo, meu
parente, seu Joãozinho Bem-Bem!
Aí, o Juruminho, que tinha ficado mais para trás, de propósito, se curvou para Nhô
Augusto e pediu, num cochicho ligeiro, para que os outros não escutassem: —
Amigo, reza por uma irmãzinha que eu tenho, que sofre de doença com muitas dores
e vive na cama entrevada, lá no arraial do Urubu...
E o bando entrou na estrada, com o Tim Tatu-tá-te-vendo puxando uma cantiga
brava, de tempo de revolução:
“O terreiro lá de casa
não se varre com vassoura:
varre com ponta de sabre,
bala de metralhadora...”
Nhô Augusto não tirou os olhos, até que desaparecessem. E depois se esparramou
em si, pensando forte. Aqueles, sim, que estavam no bom, porque não tinham de
pensar em coisa nenhuma de salvação de alma, e podiam andar no mundo, de
cabeça em-pé... Só ele, Nhô Augusto, era quem estava de todo desonrado,
porque, mesmo lá, na sua terra, se alguém se lembrava ainda do seu nome, havia
de ser para arrastá-lo pela rua-da-amargura...
O convite de seu Joãozinho Bem-Bem, isso, tinha de dizer, é que era cachaça em
copo grande! Ah, que vontade de aceitar e ir também...
E o oferecimento? Era só falar! Era só bulir com a boca, que seu Joãozinho Bem-
Bem, e o Tim, e o Juruminho, e o Epifânio — e todos — rebentavam com o Major
Consilva, com o Ovídio, com a mulher, com todo-o-mundo que tivesse tido mão ou
fala na sua desgarração.
Eh, mundo velho de bambaruê e bambaruá! ... Eh, ferragem!...
E Nhô Augusto cuspiu e riu, cerrando os dentes.
Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão mais
dura...
E só então foi que ele soube de que jeito estava pegado à sua penitência, e
entendeu que essa história de se navegar com religião, e de querer tirar sua alma da
boca do demônio, era a mesma coisa que entrar num brejão, que, para a frente,
para trás e para os lados, é sempre dificultoso e atola sempre mais.
Recorreu ao rompante:
— Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém não me faz
virar e nem andar de-fasto!
E, à noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque ele já
viajou, do acordado para o sono, montado num sonho bonito, no qual havia um
Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu
Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força,
pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo. E, assim, dormiram as
coisas.
Deu uma invernada brava, mas para Nhô Augusto não foi nada: passava os dias
debaixo da chuva, limpando o terreiro, sem precisão nenhuma. Depois, entestou de
pôr abaixo o mato, que conduzia até à beira do córrego os angicos de casca
encoscorada e os jacarandás anosos, da primeira geração. E era cada machadada
bruta, com ele golpeando os troncos, e gritando. E os pretos, que se estavam dando
muito bem com o sistema, traziam-lhe de vez em quando um golinho, para que ele
não apanhasse resfriado; e, como para chegarem até lá também se molhavam,
tomavam cuidado de se defender, igualmente, contra os seus resfriados possíveis.
E ainda outras coisas tinham acontecido, e a primeira delas era que, agora, Nhô
Augusto sentia saudades de mulheres. E a força da vida nele latejava, em ondas
largas, numa tensão confortante, que era um regresso e um ressurgimento. Assim,
sim, que era bom fazer penitência, com a tentação estimulando, com o rasto no
terreno conquistado, com o perigo e tudo. Nem pensou mais em morte, nem em ir
para o céu; e mesmo a lembrança de sua desdita e reveses parou de atormentá-lo,
como a fome depois de um almoço cheio. Bastava-lhe rezar e aguentar firme, com o
diabo ali perto, subjugado e apanhando de rijo, que era um prazer. E somente por
hábito, quase, era que ia repetindo: — Cada um tem a sua hora, e há-de chegar a
minha vez!
Tanto assim, que nem escolhia, para dizer isso, as horas certas, as três horas fortes
do dia, em que os anjos escutam e dizem amém...
Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para
o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo
do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um
para o outro lado, e um desperdício de verdes cá embaixo — a manhã mais bonita
que ele já pudera ver.
Estava capinando, na beira do rego.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando de maitacas passava, tinindo
guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais
baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem
as vozes na disciplina de um coro.
Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas.
— Uai! Até as maracanãs!
E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas. E não se acabavam mais.
Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra
brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra — grão de verdura — se sumindo
no sul.
— Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!
E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos timpânicos, uma esquadrilha
sobrevoando outra... E mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal
de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa: os únicos que interromperam,
por momentos, a viagem, foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas
amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés de mamão e
fizeram recreio, aos pares, sem sustar o alarido — rrrl-rrril!rrrl-rrril!...
Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando
grazinava alto, risonho, para o que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E
o grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá atrás.
— Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas roças... Mas,
também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito, sem as
maitacas?!...
O sol ia subindo, por cima do vôo verde das aves itinerantes. , Do outro lado da
cerca, passou uma rapariga. Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do
céu devia de ser mulher. E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do
capiau exilado: “Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote
na lagoa...
Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.
— Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem de estar longe daqui...
Longe, onde?
“Como corisca, como ronca a trovoada,
no meu sertão, na minha terra abençoada...”
Longe, onde?
“Quero ir namorar com as pequenas,
com as morenas do Norte de Minas...”.
Mas, ali mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe onde, então?
Quando ele encostou a enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda não
possuía ideia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada adiantavam, para
retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai preto Serapião.
— Adeus, minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai
chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes!
— Espera o fim das chuvas, meu filho! Espera a vazante...
— Não posso, mãe Quitéria. Quando coração está mandando, todo tempo é
tempo!... E, se eu não voltar mais, tudo o que era de meu fica sendo para vocês.
Rodolpho Merêncio quis emprestar-lhe um jegue.
— Que nada! Lhe agradeço o bom desejo, mas não preciso de montada, porque eu
vou é mesmo a pé...
Mas, depois, aceitou, porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um
animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus.
E todos sentiram muito a sua partida. Mas ele estava madurinho de não ficar mais, e,
quando chegou no sozinho, espiou só para a frente, e logo entoou uma das letras
que ouvira aos guerreiros de seu Joãozinho Bem-Bem:
“A roupa lá de casa
não se lava com sabão:
lava com ponta de sabre
e com bala de canhão...”
Cantar, só, não fazia mal, não era pecado. As estradas cantavam. E ele achava
muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas, nos
caminhos do sertão.
Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um
ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa
comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d’arco florido e de um
solene pau-d’óleo, que ambos conservavam, muito de-fresco, os sinais da mão de
Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a
contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma
boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama
encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo
um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.
E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava
estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a
água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de
abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas
do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem
num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu
voar, do mulungu, vermelho, um tié ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou
num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo
se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.
Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de
tecto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros
lhe davam comi da, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu.
Uma tarde, cruzou, em pleno chapadão, com um bode amarelo e preto, preso por
uma corda e puxando, na ponta da corda, um cego, esguio e meio maluco. Parou, e
o cego foi de clamando lenta e mole melopeia:
“Eu já vi um gato ler
e um grilo sentar escola,
nas asas de uma ema
jogar-se o jogo da bola,
dar louvores ao macaco.
— Eh, zoeira! ‘Tou também!.., — aplaudiu Nhô Augusto. Já o cego estendia a mão,
com a sacola:
— “Estou misturando aqui o dinheirinho de todos”...
Mas mudou de projeto, enquanto Nhô Augusto caçava qual quer cobre na
algibeira: — Tem algum de-comer, aí, irmão? Dinheiro quero menos, que por aqui
por estes trechos a gente custa muito a encontrar qualquer povoado, e até as cafuas
mesmo são vasqueiras...
E explicou: tinha um menino-guia, mas esse-um havia mais de um mês que
escapulira; e teria roubado também o bode, se o bode não tivesse berrado e ele
não investisse de porrete.
Agora, era aquele bicho de duas cores quem escolhia o caminho... Sabia, sim,
sabia tudo!
Ótimo para guiar... Companheiro de lei, que nem gente, que nem pessoa de sua
família...
Se despediu. Achava a vida muito boa, e ia para a Bahia, de volta para o Caitité,
porque quando era menino tinha nascido lá.
— Pois eu estou indo para a banda de onde você veio... Em todo o caso, meu
compadre cego por destino de Deus, em todo o caso, dá lembrança minha a todos
do povo da sua terra, toda essa gente certa, que eu não tenho ocasião de conhecer!
E aí o jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o cerrado ouvir: —
“Qualquer paixão me adiverte...“ Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação
nenhuma e bem com Deus!...
E quando o jegue empacava — porque, como todo jumento, ele era terrível de
queixo-duro, e tanto tinha de orelhas quanto de preconceitos, — Nhô Augusto ficava
em cima, mui concorde, rezando o terço, até que o jerico se decidisse a caminhar
outra vez. E também, nas encruzilhadas, deixava que o bendito as no escolhesse o
caminho, bulindo com as conchas dos ouvidos e ornejando. E bastava batesse no
campo o pio de uma perdiz magoada, ou viesse do mato a lália lamúria dos
tucanos, para o jumento mudar de rota, pendendo à esquerda ou se em pescoçando
para a direita; e, por via de um gavião casaco-de- couro cruzar-lhe à frente, já ele
estacava, em concentrado prazo de irresolução.
Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na
direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas —
mais ranchos, mais casas, povoados, fazendas; depois, arraiais, brotando do chão.
E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
— Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo
é com Deus!...
E assim entraram os dois no arraial do Rala-Coco, onde havia, no momento, uma
agitação assustada no povo.
Mas, quando responderam a Nhô Augusto: — É a jagunçada de seu Joãozinho Bem-
Bem, que está descendo para a Bahia... — ele, de alegre, não se pôde conter: —
Agora sim! Cantou p’ra mim, passarim! ... Mas, onde é que eles estão?
Estavam aboletados, bem no centro do arraial, numa casa de fazendeiro, onde seu
Joãozinho Bem-Bem recebeu Nhô Augusto, com muita satisfação.
Nhô Augusto caçoou:
— “Boi andando no pasto, p’ra lá e p’ra cá, capim que acabou ou está para
acabar. .
— E isso, mano velho... Livrei meu compadre Nicolau Cardoso, bom homem... E
agora vou ajuntar o resto do meu pessoal, porque tive recado de que a política se
apostemou, do lado de lá das divisas, e estou indo de rota batida para o Pilão
Arcado, que o meu amigo Franquilim de Albuquerque é capaz de precisar de mim...
Fitava Nhô Augusto com olhos alegres, e tinha no rosto um ar paternal. Mas, na
testa, havia o resto de uma ruga.
— Está vendo, mano velho? Quem é que não se encontra, neste mundo?... Fico
prazido, por lhe ver. E agora o senhor é quem está em minha casa... Vai se
arranchar comigo. Se abanque, mano velho, se abanque!... Arranja um café aqui
p’ra o parente, Flosino!
— Não queria empalhar... O senhor está com pouco prazo...
— Que nada, mano velho! Nós estamos de saída, mas ainda falta ajustar um devido,
para não se deixar rabo para trás... Depois lhe conto. O senhor mesmo vai ver,
daqui a pouco...
Come com gosto, mano velho.
Nhô Augusto mordia o pão de broa, e espiava, inocente, para ver se já vinha o
café.
— Tem chá de congonha, requentado, mano velho...
— Aceito também, amigo. Estou com fome de tropeiro... Mas, qu’é de o Juruminho?
— Ah, o senhor guardou o nome, e, a pois, gostou dele, do menino... Pois foi logo
com o pobre do Juruminho, que era um dos mais melhores que eu tinha...
— Não diga...
O rosto de seu Joãozinho Bem-Bem foi ficando sombrio.
— O matador — foi à traição, — caiu no mundo, campou no pé... Mas a família vai
pagar tudo, direito!
Seu Joãozinho Bem-Bem, sentado em cima da beirada da mesa, brincava com os
três bentinhos do pescoço, e batia, muito ligeiro, os calcanhares, um no outro. Nhô
Augusto, parando de limpar os dentes com o dedo, lastimou: — Coitado do
Juruminho, tão destorcido e de tão bom parecer... Deixa eu rezar por alma dele...
Seu Joãozinho Bem-Bem desceu da mesa e caminhou pela sala, calado. Nhô
Augusto, cabeça baixa, sempre sentado num selim velho, dava o ar de quem
estivesse com a mente muito longe.
— Escuta, mano velho...
Seu Joãozinho Bem-Bem parou em frente de Nhô Augusto, e continuou: — ....eu
gostei da sua pessoa, em-desde a primeira hora, quando o senhor caminhou para
mim, na rua daquele lugarejo... Já lhe disse, da outra vez, na sua casa: o senhor não
me contou coisa nenhuma de sua vida, mas eu sei que já deve de ter sido brigador
de ofício.
Olha: eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana: juro como
não há outro homem p’ra ser mais sem medo e disposto para tudo. E só o se nhor
mesmo querer...
— Sou um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Que-o-quê! Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senhor não é
padre nem frade, p’ra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando em cabeça fraca,
desgoverna qual quer valente... Bobajada!
— Bate na boca, seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus pode castigar!
— Não se ofenda, mano velho, deixe eu dizer: eu havia de gostar, se o senhor
quisesse vir comigo, para o norte... Já lhe falei e torno a falar: é convite como nunca
fiz a outro, e o se nhor não vai se arrepender! Olha: as armas do Juruminho estão aí,
querendo dono novo...
— Deixa eu ver...
Nhô Augusto bateu a mão na winchester, do jeito com que um gato poria a pata
num passarinho. Alisou coronha e cano. E os seus dedos tremiam, porque essa
estava sendo a maior das suas tentações.
Fazer parte do bando de seu Joãozinho Bem-Bem! Mas os lábios se moviam —
talvez ele estivesse proferindo entre dentes o creio-em-deus-padre — e, por fim,
negou com a cabeça, muitas vezes:
— Não posso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem!... Depois de tantos anos... Fico
muito agradecido, mas não posso, não me fale nisso mais...
E ria para o chefe dos guerreiros, e também por dentro se ria, e era o riso do capiau
ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio.
— Está direito, lhe obrigar não posso... Mas, pena é...
Nisso, fizeram um estardalhaço, à entrada.
— Quem é?
— É o tal velho caduco, chefe.
— Deixa ele entrar. Vem cá, velho.
O velhote chorava e tremia, e se desacertou, frente às pessoas. Afinal, conseguiu
ajoelhar-se aos pés de seu Joãozinho Bem-Bem.
— Ai, meu senhor que manda em todos... Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, tem pena!...
Tem pena do meu povinho miúdo... Não corta o coração de um pobre pai...
— Levanta, velho... O senhor é poderoso, é dono do choro dos outros... Mas a
Virgem Santíssima lhe dará o pago por não pisar em formiguinha do chão... Tem
piedade de nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem!
— Levanta, velho! Quem é que teve piedade do Juruminho, baleado por detrás?
— Ai, seu Joãozinho Bem-Bem, então lhe peço, pelo amor da senhora sua mãe, que
o teve e lhe deu de mamar, eu lhe peço que dê ordem de matarem só este velho,
que não presta para mais nada... Mas que não mande judiar com os pobrezinhos
dos meus filhos e minhas filhas, que estão lá em casa sofrendo, adoecendo de
medo, e que não têm culpa nenhuma do que fez o irmão... Pelo sangue de Jesus
Cristo e pelas lágrimas da Virgem Maria!...
E o velho tapou a cara com as mãos, sempre ajoelhado, curvado, soluçando e
arquejando.
Seu Joãozinho Bem-Bem pigarreou, e falou:
— Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra...
Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga
gente sua, morta de traição?... É a regra. Posso até livrar de sebaça, às vezes, mas
não posso perdoar isto não... Um dos dois rapazinhos seus filhos tem de morrer, de
tiro ou à faca, e o senhor pode é escolher qual deles é que deve de pagar pelo
crime do irmão. E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não me
enfraquece: as mocinhas são para os meus homens...
— Perdão, para nós todos, seu Joãozinho Bem-Bem... Pelo corpo de Cristo na Sexta-
feira da Paixão!
— Cala a boca, velho. Vamos logo cumprir a nossa obrigação...
Mas, aí, o velho, sem se levantar, inteiriçou-se, distendeu o busto para cima, como
uma caninana enfunada, e pareceu que ia chegar com a cara até em frente à de seu
Joãozinho Bem-Bem. Hirto, cordoveias retesas, mastigando os dentes e cuspindo
baba, urrou: — Pois então, satanás, eu chamo a força de Deus p’ra ajudar a minha
fraqueza no ferro da tua força maldita!
Houve um silêncio. E, aí:
— Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho
está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão
querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não
faz!
Nhô Augusto tinha falado; e a sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana,
enquanto a direita pousava, despreocupada, no pescoço da carabina. Dera tom
calmo às palavras, mas puxava forte respiração soprosa, que quase o levantava do
selim e o punha no assento outra vez. Os olhos cresciam, todo ele crescia, como um
touro que acha os vaqueiros excessivamente abundantes e cisma de ficar sozinho no
meio do curral.
— Você está caçoando com a gente, mano velho?
— Estou não. Estou pedindo como amigo, mas a conversa é no sério, meu amigo,
meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem.
— Pois pedido nenhum desse atrevimento eu até hoje nunca que ouvi nem atendi!...
O velho engatinhou, ligeiro, para se encostar na parede. No calor da sala, uma
mosca esvoaçou.
— Pois então... — e Nhô Augusto riu, como quem vai contar uma grande anedota —
...Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar
primeiro por riba de eu defunto...
Joãozinho Bem-Bem se sentia preso a Nhô Augusto por uma simpatia poderosa, e
ele nesse ponto era bem-assistido, sabendo prever a viragem dos climas e
conhecendo por instinto as grandes coisas. Mas Teófilo Sussuarana era bronco
excessivamente bronco, e caminhou para cima de Nhô Augusto. Na sua voz:
— Epa! Nomopadrofilhospritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que
chegou minha vez!...
E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos
tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual
um demônio preso e pulando como dez demônios soltos.
— Ô gostosura de fim-de-mundo!...
E garrou a gritar as palavras feias todas e os nomes imorais que aprendera em sua
farta existência, e que havia muitos anos não proferia. E atroava, também, a voz de
seu Joãozinho Bem-Bem:
— Sai, Canguçu! Foge, daí, Epifânio! Deixa nós dois brigar sozinhos!
A coronha do rifle, no pé-do--ouvido... Outro pulo... Outro tiro... Três dos cabras
correram, porque outros três estavam mor tos, ou quase, ou fingindo.
E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu
Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da
casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e
pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na mão.
— Se entregue, mano velho, que eu não quero lhe matar...
— Joga a faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho Bem-Bem...
— Mano velho! Agora é que tu vai dizer: quantos palmos é que tem, do calcanhar ao
cotovelo!...
— Se arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho p’ra o
inferno, meu parente seu Joãozinho Bem-Bem!...
— Úi, estou morto...
A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à boca-do-
estômago, e um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre, enquanto seu
Joãozinho Bem-Bem caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.
Aí, o povo quis amparar Nhô Augusto, que punha sangue por todas as partes, até
do nariz e da boca, e que devia de estar pesando demais, de tanto chumbo e bala.
Mas tinha fogo nos olhos de gato-do-mato, e o busto, especado, não vergava para
o chão.
— Espera aí, minha gente, ajudem o meu parente ali, que vai morrer mais primeiro...
Depois, então, eu posso me deitar.
— Estou no quase, mano velho... Morro, mas morro na faca do homem mais maneiro
de junta e de mais coragem que eu já conheci!... Eu sempre lhe disse quem era bom
mesmo, mano velho... E só assim que gente como eu tem licença de morrer... Quero
acabar sendo amigos...
— Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas, agora, se arrepende dos
pecados, e morre logo como um cristão, que é para a gente poder ir juntos...
Mas, seu Joãozinho Bem-Bem, quando respirava, as rodilhas dos intestinos subiam e
desciam. Pegou a gemer. Estava no estorcer do fim. E, como teimava em conversar,
apressou ainda mais a despedida. E foi mesmo.
Alguém gritou: — “Eh, seu Joãozinho Bem-Bem já bateu com o rabo na cerca! Não
tem mais!”... — E então Nhô Augusto se bambeou nas pernas, e deixou que o
carregassem.
— P’ra dentro de casa, não, minha gente. Quero me acabar no solto, olhando o céu,
e no claro... Quero é que um de vocês chame um padre... Pede para ele vir me
abençoando pelo caminho, que senão é capaz de não me achar mais...
E riu.
E o povo, enquanto isso, dizia: “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por
mór de salvar as famílias da gente!...“ E a turba começou a querer desfeitear o
cadáver de seu Joãozinho Bem-Bem, todos cantando uma cantiga que qualquer-um
estava inventando na horinha:
— Não me mata, não me mata seu Joãozinho Bem-Bem!
Você não presta mais pra nada, seu Joãozinho Bem-Bem!...
Nhô Augusto falou, enérgico:
— Pára com essa matinada, cambada de gente herege!... E depois enterrem bem
direitinho o corpo, com muito respeito e em chão sagrado, que esse aí é o meu
parente seu Joãozinho Bem-Bem!
E o velho choroso exclamava:
— Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!... Não
deixem este santo morrer assim... P’ra que foi que foram inventar arma de fogo, meu
Deus?!
Mas Nhô Augusto tinha o rosto radiante, e falou: — Perguntem quem é aí que algum
dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas!
— Virgem Santa! Eu logo vi que sé podia ser você, meu primo Nhô Augusto...
Era o João Lomba, conhecido velho e meio parente. Nhô Augusto riu: — E hein, hein
João?!
— P’ra ver...
Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios
lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento.
Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido: — Põe
a benção na minha filha.., seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a
Dionóra que está tudo em ordem!
Depois, morreu.
NEGRINHA – MONTEIRO LOBATO (NEGRINHA)
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de
cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos
escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a
patroa não gostava de crianças. Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do
mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo
reservado no
céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali
bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo.
Uma
virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da
religião e
da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva
sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o
choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava
logo
nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa
abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal,
torcendolhe
em caminho beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio,
desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados.
Órfã
aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não
compreendia
a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o
mesmo
ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas
quase
não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as
plantas, a
boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o
relógio
batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu
divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha,
arrufando as
asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem
fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho?
Pestinha,
diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta,
sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de
apelidos
com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava
na
berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal
que
achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que
não
teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da
casa
todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os
cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos
em
cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos
em
sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da
escravidão,
fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e
estalar o
bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a
branco
e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno
porque
se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a
sinhá!”...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana.
Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres:
mão
fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de
orelha:
o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos,
o
sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à
torcida do
umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos,
pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante:
para
“doer
fino” nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo
maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com
aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir —
um
pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a
revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual
perua
choca, a rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta,
gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos
contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava
trêmula
alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora
chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma
colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o
urro de
dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou
surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber
aquilo.
Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário
que
chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre
órfã,
filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas,
pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois
anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos.
Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir
contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria
tudo
mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão,
Negrinha
levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no
umbigo, e
nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se
enxerga”?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento
novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no
cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha.
Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem,
filhinhas, a
casa é grande, brinquem por aí afora.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no
canto, a
dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca
imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma
criancinha
de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o
nome
desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a
providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo
quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado
encanto,
sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha
perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que
ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito,
como
quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados
relanços
de olhos para a porta. Fora de si, literalmente.. . era como se penetrara no céu e os
anjos
a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi
o
seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz,
e
esteve uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão
grande a
força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela
primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela
cabeça a
imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas
de
pavor assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo —
estas
palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu
mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e
na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois
momentos
divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos
filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma.
Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que
desabrochava,
afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano.
Cessara de
ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa!
Se
sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa
voltou ao
ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente
transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada
nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a
expressão de
susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu
doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca
loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera
realizando
sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais,
entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas,
todas
louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno,
numa
farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada,
rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente,
num
disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de
boca
aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de
terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na
memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!...”