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pontifícia universidade católica de são paulo puc-sp

Date post: 26-Feb-2023
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS ANDRÉ LUIZ ALVES BONIFÁCIO A COLETA QUE TRANSFORMA: UMA ETNOGRAFIA DOS BENEFICIAMENTOS DE RESÍDUOS RECICLÁVEIS NA ASSOCIAÇÃO DOS CATADORES DE PAPEL, PAPELÃO E MATERIAIS RECICLÁVEIS (ACREPOM), DE ARAÇATUBA/SP MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2020
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ANDRÉ LUIZ ALVES BONIFÁCIO

“A COLETA QUE TRANSFORMA”: UMA ETNOGRAFIA DOS BENEFICIAMENTOS DE RESÍDUOS RECICLÁVEIS NA ASSOCIAÇÃO DOS

CATADORES DE PAPEL, PAPELÃO E MATERIAIS RECICLÁVEIS (ACREPOM), DE ARAÇATUBA/SP

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO 2020

ANDRÉ LUIZ ALVES BONIFÁCIO

“A COLETA QUE TRANSFORMA”: UMA ETNOGRAFIA DOS BENEFICIAMENTOS DE RESÍDUOS RECICLÁVEIS NA ASSOCIAÇÃO DOS

CATADORES DE PAPEL, PAPELÃO E MATERIAIS RECICLÁVEIS (ACREPOM), DE ARAÇATUBA/SP

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, sob orientação da Profa. Dra. Maria Celeste Mira.

SÃO PAULO 2020

BANCA EXAMINADORA

____________________________________

____________________________________

____________________________________

FICHA CATALOGRÁFICA

Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução parcial

desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

Assinatura

Data

E-mail

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES) – Número do Processo: 130037/2017-6

This work was carried out with the support of the Coordination for the Improvement of

Higher Education Personnel - Brazil (CAPES) - Process Number: 130037/2017-6

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha mãe, Elza Alves Bonifácio, por desde

sempre ter abnegado de muitas coisas pessoais e profissionais para aceitar e apoiar

todas as minhas decisões, sejam elas acadêmicas, intelectuais, ou de práticas e

atitudes, que perfazem a construção do meu ser e estar no mundo à medida das

relações e dos exemplos mais valorosos. Por ela ser esse suporte emocional e

afetivo em meus momentos de fraquezas, hesitações e inseguranças, e ser a mão

que acalenta e acolhe não apenas seu filho, mas também que faz o bem sem olhar a

quem.

Gratidão às outras mulheres da minha vida, o restante do meu núcleo familiar.

São elas as minhas queridas tias Neuza e Cleusa pelo amparo com dicas, conselhos

e solidariedade material e espiritual em tempos difíceis e caóticos que enfrentei. E, é

claro, especialmente, a minha amada vozinha, a senhora D. Lourdes, que com seu

jeito afável e carinhoso tem um poderoso dom de manter-nos continuamente unidos

por laços sólidos. Que ela continue proporcionando esse bem para todos seus filhos

e netos por muitos anos.

Ao casal de amigos de Birigui-SP, o antropólogo Wilson Galhego e a Amine

Galhego, pela troca de experiência de nível antropológico, pelas dicas e ajudas

complementares neste trabalho.

É impossível não deixar agradecer todos que foram e são parte deste elo

associativista que fazem a ACREPOM ser há mais de 20 anos o que ela é hoje em

Araçatuba/SP em termos de excelência no trabalho, renda e reconhecimento; são

eles: os próprios associados catadores e recicladores, os voluntários, as parcerias e

o grupo gestor – Grasi e Celestino a vocês dois, principalmente, pela afeição e pelo

tempo disponível à minha pessoa na etapa da etnografia. Todos estes captaram,

cada qual a sua maneira, as explicações do saber-fazer do antropólogo-etnógrafo e,

mesmo de forma simples, e um tanto quanto confusas sobre esclarecimento do

estudo, da pesquisa e da ciência antropológica – questão tão complexa quanto

achar a definição exata do conceito de cultura para a própria Antropologia – doaram

seu precioso tempo e disponibilidade. Graças a essas pessoas que expuseram seu

trabalho e também suas vidas a fim de compartilhar de forma positiva com a

pesquisa, foi primordial para que este trabalho fosse plenamente realizado.

Feliz com a execução de uma dissertação de mestrado em Ciências Sociais,

eu agradeço por fazer parte desta prestigiosa universidade que é PUC-SP, em

específico por conta do seu excelente quadro professores do PEPG em Ciências

Sociais que me proporcionaram o conhecimento adquirido.

Não menos importante, são os funcionários Kátia e Rafael, assistentes de

coordenação do Departamento de Ciências Sociais, meu muito obrigado pelas

orientações e predisposição para comigo e demais colegas alunos que os procuram.

Um especial agradecimento aos funcionários e funcionárias da Secretaria de Teses

e Dissertações, pelo esclarecimento dos procedimentos em relação aos tramites

burocráticos da dissertação. Aos assistentes do Expediente da Pró-Reitoria de Pós-

Graduação e ao próprio gabinete da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da PUC-SP, eu

só guardo profunda gratidão pela paciência e aceitação.

Por fim, tão ou mais importante do que muitos dos nomes aqui citados,

agradeço imensamente à minha orientadora nesta dissertação de mestrado, a Prof.ª

Dr.ª Maria Celeste Mira, pelo acolhimento, pelo rico conhecimento e pela

preocupação que teve comigo e com a minha dissertação.

Dedico este à minha avó com carinho e amor

EPÍGRAFE

Ensaio para tornar felizes os pobres desta nação e os de outros povos, reunindo certo número de homens competentes em uma pequena associação

econômica ou pequena república onde cada um terá sua propriedade e poderá, sem ter recorrido a força, ser empregado no gênero do trabalho para qual tem mais

aptidão; meio de livrar esta nação e as demais não só dos preguiçosos, e dos maus, mas também das pessoas que procuram o meio de viver às expensas do trabalho dos outros. Com anexo, publica-se um convite para esta associação ou pequena

república.

(P.C Plobckboy, Séc XVII)

BONIFÁCIO, André Luiz Alves. “A Coleta que transforma”: Uma Etnografia dos beneficiamentos de resíduos recicláveis na associação dos catadores de papel, papelão e materiais recicláveis (ACREPOM), de Araçatuba/SP

RESUMO

No Brasil a coleta e catação de matérias recicláveis ocorrem em sua maioria através da ação de catadores e recicladores. Ocupando muitas vezes um papel de precariedade na força de trabalho no capitalismo, a participação dessa linha de frente no processo da reciclagem fez com criasse a necessidade de se organizarem a fim de propiciar uma efetiva gestão dos resíduos sólidos nas cidades. A grande quantidade de resíduos gerados e descartados, atrelado ao modelo econômico vigente, desconsidera muitos das assimetrias sociais que se desenvolvem no interior das relações dos que trabalham com o descarte; naturaliza questões culturais que atravessam não só o descarte de lixo e/ou resíduos, mas também os sujeitos que operam neste processo; e é alheio a qualidade ecológica percebida, vindo a constituir-se em um dos grandes desafios da contemporaneidade. A metodologia utilizada neste trabalho procura entender as relações de transformações entre associados catadores e recicladores e a doação de resíduos recicláveis através da pesquisa de campo etnográfico, acompanhado de analise documental sobre a associação chamada ACREPOM e uma intepretação a luz da construção de dados diante de um contexto de dinâmicas que perpassam as micro relações de trabalho com a materialidade dos objetos residuais, com as macro situações dominantes da sociedade, história e cultura, assim como seus valores. Além de contar com fragmentos das entrevistas e observação participante, que estão presentes no decorrer do texto com demais técnicas de pesquisas convenientes a etnografia atual, a teoria do valor em Karl Marx subsidiou boa parte da reflexão crítica sobre os dados construídos e interpretados. Os dados obtidos pelo viés antropológico, permitem o entendimento das relações entre sujeitos e objetos, humanos e resíduos, dentro dos conceitos de desenvolvimento, sustentabilidade e associativismo apontando a íntima relação entre catadores/recicladores e materiais recicláveis. Compreendendo uma visão dialética entre produção-consumo-descarte, são evidenciados os processos de criação e organização da ACREPOM, e os seus desafios para a sua manutenção e fortalecimento. Entendo a necessidade de que esta categoria esteja cada vem mais organizada, a fim de uma efetiva gestão dos resíduos sólidos urbanos e dos enfrentamentos político-econômico.

Palavras chaves: associação; catadores; resíduos recicláveis

BONIFÁCIO, André Luiz Alves. “The Collection that transforms”: An Ethnography of the processing of recyclable waste in the association of collectors of paper, cardboard and recyclable materials (ACREPOM), from Araçatuba / SP.

ABSTRACT

In Brazil, the collection and collection of recyclable materials occurs mostly through the action of collectors and recyclers. Often occupying a precarious role in the workforce under capitalism, the participation of this front line in the recycling process created the need to organize themselves in order to provide an effective management of solid waste in cities. The large amount of waste generated and discarded, linked to the current economic model, disregards many of the social asymmetries that develop within the relationships of those who work with disposal; naturalizes cultural issues that go through not only the disposal of garbage and / or waste, but also the subjects who operate in this process; and the perceived ecological quality is alien to it, becoming one of the great challenges of contemporary times. The methodology used in this work seeks to understand the transformational relationships between waste pickers and recyclers and the donation of recyclable waste through ethnographic field research, accompanied by documentary analysis on the association called ACREPOM and an interpretation in the light of data construction in the face of context of dynamics that permeate micro work relations with the materiality of residual objects, with the dominant macro situations of society, history and culture, as well as their values. In addition to having fragments of the interviews and participant observation, which are present throughout the text with other research techniques suitable to current ethnography, the theory of value in Karl Marx supported much of the critical reflection on the data constructed and interpreted. The data obtained by anthropological bias, allow the understanding of the relationships between subjects and objects, humans and waste, within the concepts of development, sustainability and associativism, pointing out the intimate relationship between collectors / recyclers and recyclable materials. Understanding a dialectical vision between production-consumption-disposal, ACREPOM's creation and organization processes are highlighted, as well as its challenges for its maintenance and strengthening. I understand the need for this category to be more and more organized, in order to effectively manage urban solid waste and political-economic confrontations.

Keywords: association; collectors; recyclable materials.

LISTA DE SIGLAS

ABIHPHEC Associação Brasileira da Indústria de Produtos de Higiene

Pessoal, Perfumaria e Cosméticos

ABIMAPI Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas

Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados

ABIPLA Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de Limpeza

ABRELPE Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e

Resíduos Especiais

ACI Aliança Cooperativa Internacional

ACREPOM Associação dos Catadores de Recicladores de Papel, Papelão e

Materiais Recicláveis

ASA Área de Segurança Aérea

ATT Área de Triagem e Transbordo

CBO Código Brasileiro de Ocupações

CDDH Centro de Defesa dos Direitos Humanos

CEMPRE Compromisso Empresarial para Reciclagem

CETESB Companhia Ambiental do Estado de São Paulo

CF Campanha da Fraternidade

CINDACTA Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo

COMDEMA Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Araçatuba

CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente

COOPERARAÇÁ Cooperativa de Coleta Seletiva, Beneficiamento e Transformação

de Materiais Recicláveis de Araçatuba

CTR Centro de Tratamento de Resíduos

EJA Educação de Jovens e Adultos

EMEB Escolas Municipais de Educação Básica

EPI Equipamento de Proteção Individual

ETA Estação de Tratamento de Água

ETE Estação de Tratamento de Esgoto

FBB Fundação Banco do Brasil

FSS Fundo Social de Solidariedade de Araçatuba

GPA Grupo Pão de Açúcar

IBGE Instituo Brasileiro de Geografia Estatística

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

MEI Microempreendedor Individual

MP Medida Provisória

OMS Organização Mundial da Saúde

OS Poliestireno

OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PEAD Polietileno de Alta Densidade

PEBD Polietileno de Baixa Densidade

PET OU PETE Tereftalato de Polietileno

PEV Ponto de Entrega Voluntária

PJ Pastoral da Juventude

PNRS Política Nacional de Resíduos Sólidos

PP Polipropileno

PPP Parceria Público Privada

PSN Pastoral da Saúde Nacional

PVC Policloreto de Polivinila

RCC Resíduos de Construção Civil

RSD Resíduos Domiciliares ou Resíduos Sólidos Domestico

RSS Resíduos de Serviços De Saúde

RSU Resíduos Sólidos Urbanos

RSV Resíduos Sólidos Volumosos

SENAES Secretaria Nacional De Economia Solidária

SMMAS Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade

SUS Sistema Único de Saúde

TAC Termo de Ajusta e Conduta

UPPel Universidade Federal De Pelotas

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ----------------------------------------------------------------------------------------------------- 16

CAPÍTULO 1 -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 34

A RENOVAÇÃO DO ATERRO SANITÁRIO EM ARAÇATUBA -------------------------------------- 34

LIXÃO, ATERRO CONTROLADO OU ATERRO SANITÁRIO? AS DIFERENÇAS QUE NÃO

RESOLVEM O PROBLEMA ------------------------------------------------------------------------------------ 38

PROJETOS E POSSIBILIDADES DE RECICLAGEM MUNICIPAL --------------------------------- 41

PARA ALÉM DO ATERRO: CONSOLIDAÇÕES E OUTRAS CONSIDERAÇÕES DO PNRS

PARA A CIDADE -------------------------------------------------------------------------------------------------- 43

O FIM DOS “SUJÕES” E AS ATUALIZAÇÕES DO ANO 2019 -------------------------------------- 48

“NÃO SOU CATADOR, SOU RECICLADOR” ------------------------------------------------------------- 50

REMINISCÊNCIAS ENTRE CAÇADORES-COLETORES E CATADORES ---------------------- 52

CATADORES NA NATUREZA: UMA CONDIÇÃO BIOLÓGICA PARA A RECICLAGEM DA

VIDA ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 54

POÉTICAS DA CATAÇÃO: O TRAPEIRO ----------------------------------------------------------------- 56

OS PROBLEMAS COM NOMEAÇÕES --------------------------------------------------------------------- 59

AS ORIGENS DOS CATADORES E RECICLADORES NO BRASIL ------------------------------- 61

CONSTITUINDO-SE COMO UM CATADOR -------------------------------------------------------------- 63

O CENÁRIO DA PESQUISA ----------------------------------------------------------------------------------- 66

PRIMEIRO PASSO: QUEM SÃO OS CATADORES NA MODERNIDADE? ---------------------- 71

CAPITULO 2 -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 75

DESFAZENDO AS CONFUSÕES: AS DIFERENÇAS BÁSICAS ENTRE LIXO E RESÍDUO

-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 84

A DIALÉTICA DOS RESÍDUOS NA PRÁTICA: CONCEITOS E CLASSIFICAÇÕES ---------- 89

AS CATEGORIAS DOS RESÍDUOS: CONVERGÊNCIA DE CONCEITOS E

CLASSIFICAÇÕES ----------------------------------------------------------------------------------------------- 91

CAPÍTULO 3 -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 96

A SUJEIRA DESCONSIDERADA ----------------------------------------------------------------------------- 98

O LIMPO E SUAS INSTITUCIONALIZAÇÕES: DO LOCAL AO GLOBAL ---------------------- 101

ORDENANDO AS DOAÇÕES: PRÁTICAS PARA O BENEFICIAMENTO DOS RESÍDUOS

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 103

DAS PARTICULARIDADES DOS RESTOS AOS IMPASSES ACUMULATIVOS ------------ 118

ELETRÔNICOS, DESPERDÍCIO E OBSOLESCÊNCIA DA MERCADORIA ------------------- 123

VIDRO -------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 128

REUTILIZAÇÃO -------------------------------------------------------------------------------------------------- 130

PRESERVAÇÃO DOS JORNAIS E DO PAPELÃO ---------------------------------------------------- 131

OBSERVANDO OS PLÁSTICOS --------------------------------------------------------------------------- 136

CAPÍTULO 4 ------------------------------------------------------------------------------------------------------ 148

BREVE HISTÓRIA DA ACREPOM ------------------------------------------------------------------------- 148

NÃO SOMOS UMA COOPERATIVA, SOMOS UMA ASSOCIAÇÃO: RECONHECENDO O

ERRO DO ANTROPÓLOGO --------------------------------------------------------------------------------- 151

ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO; ASSOCIATIVISMO E COOPERATIVISMO: NOTAS

PARA UM ESCLARECIMENTO ----------------------------------------------------------------------------- 153

UMA OUTRA HEGEMONIA DOS TRABALHADORES E POVOS OPRIMIDOS: O

ASSOCIATIVISMO ---------------------------------------------------------------------------------------------- 157

CONHECENDO OS PARCEIROS E VOLUNTÁRIOS: AS REUNIÕES E AS FESTAS COMO

PONTO ENCONTRO PARA O FORTALECIMENTO DAS RELAÇÕES ASSOCIATIVISTAS

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 164

5. CONCLUSÃO ------------------------------------------------------------------------------------------------- 180

6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS -------------------------------------------------------------------- 183

7. SITES ACESSADOS ---------------------------------------------------------------------------------------- 194

16

INTRODUÇÃO

Quiçá imbuídos por um sentido de altivez semelhante ao relato de campo que

inicia esta introdução, o trabalho dos catadores e recicladores pode servir como um

indicativo importante no sentido de produzir soluções plausíveis e sustentáveis da

demanda inerente do descarte de resíduos sólidos e potencialmente recicláveis.

Organizados em associações ou cooperativas do gênero, ou muitas vezes atuando

na informalidade e marginalidade, os catadores e recicladores contribuem com

práticas sustentáveis há décadas, enquanto o setor formal da coleta de resíduos

sólidos urbano nas cidades, muitas vezes praticado por prefeituras com parcerias de

empresas privadas, ainda principia em chegar a resultados viáveis que deem conta

da consequência do pós-consumo.

O paradoxo que se encena nas cidades sobre o descarte de resíduos e

reciclagem beira as contradições: entre o trabalho eficiente, prático e sustentável

dos catadores e recicladores autônomos ou organizados coletivamente, e a ainda

falta de reconhecimento do saber-fazer destes a altura de como deveria, para a

potencialidade do reciclável, hoje tão exigidos em leis federais, estaduais e

municipais e, principalmente, para o mercado de recicláveis; falta de capacitação

técnica, subemprego, precarização do ambiente de trabalho, menos direitos sociais

e trabalhistas, baixos salários e outros problemas recorrentes na modernidade não

são nada saudáveis, ainda atravessam a situação da atuação do catador e

reciclador que, justamente, se originou por meio dessas idiossincrasias de modo a

superá-las.

A esse respeito da cosmologia contraditória do sistema capitalista

reconfigurando os seus próprios limites, o filosofo marxista húngaro István Mészáros

observa que estes fatores já estão encarnados nos limites da produção em geral,

que:

Reconhece e legitima a necessidade humana (e a correspondente utilização dos recursos materiais e humanos disponíveis) apenas até o ponto de torná-la conforme aos imperativos da autorealização ampliada do capital. Tudo o que ficar fora de tais parâmetros, independente das consequências, deve ser considerado “inútil”, “inutilizável” e intoleravelmente supérfluo. De fato, o incansável impulso do capital para frente – no processo da sua autorreprodução cada vez mais ampliada – o impede de prestar atenção aos acontecimentos destrutivos que emergem das contradições entre o trabalho supérfluo e o necessário. O próprio capital apenas existe “enquanto o trabalho necessário simultaneamente existir e não existir”, ou seja, enquanto ele tiver sucesso em reproduzir as contradições subjacentes (por

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mais precária que seja a situação) e desse modo reproduzir a si próprio enquanto tal (MÉSZÁROS, 2011 p. 621).

A reprodução da ordem do capital interfere drasticamente nas lógicas dos

catadores e recicladores aqui no Brasil. A antropóloga Beatriz Judice Magalhães

(2012) retrata que, embora o contexto brasileiro seja marcado por fatos históricos

importantes que cooperam na luta dos catadores e recicladores – a saber, criação

do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) em 2001, a

aprovação da Lei que institui a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS) em

2010, e a ascensão recente das discussões da sociedade civil e órgãos públicos

sobre a imbricada “questão ambiental” no Brasil – nossa sociedade ainda está presa

em questões historicamente construídas e vividas por esses sujeitos trabalhadores

se encontram caracterizados pela liminaridade entre a inclusão e a exclusão

(MAGALHÃES, 2012 p. 9).

É digno constar nessa introdução a realidade que ainda paira sobre o trabalho

com os resíduos sólidos. Estigmas sociais ainda perfilam sobre a figura do catador,

o que dificulta a sustentabilidade social e econômica do próprio. Elementos do

preconceito e discriminação existente nos níveis da divisão de classes persistem

mesmo em um período de crescimento da produção, consumo e descarte no Brasil,

trazendo o óbice ao desenvolvimento de tecnologias sustentáveis e a valorização do

papel deste trabalho enquanto agente ecopolítico na gestão dos resíduos sólidos

urbanos e materiais recicláveis da cidade.

Do Brasil urbano ao foco em Araçatuba, cidade do interior de São Paulo,

distante pouco mais de 500 km da capital, vem traduzindo a necessidade de uma

luta mais ampla da categoria dos catadores na aplicação de políticas públicas desta

natureza. Cabe esclarecer que, embora os catadores, muitas vezes informais,

contribuem de fato com a maior parte do trabalho de coleta de materiais para a

reciclagem industrial, seu reconhecimento laboral nas narrativas ditas oficiais sobre

ecologia e política ainda é escasso da representação dos mesmos. Assim, ao

pesquisador interessado em explorar este campo de pesquisa, seja em suas formas

de organização associativista ou cooperativista, ou por intermédio das lutas políticas,

a etnografia fornece uma oportunidade de entender como as pessoas, as coisas

descartadas, e o próprio processo do desperdício que desagua em parte sobre o

sistema de reciclagem, e outra na lata do lixo, podem ser coletivamente

18

ressignificados de maneira producente ao humano e a natureza, no sentido de

provocar o exigido reconhecimento.

Embora não se restrinja ao ambiente urbano e nem ao atual período da crise

da modernidade, os frutos do esquecimento, descuido ou desordem, estão aos

monturos em nosso meio ambiente e ecologia. A estes chamamos de lixo, dejeto ou

resíduo e, existem a tanto tempo quanto os primeiros vestígios da humanidade

sejam gerando rastros das nossas atividades no presente ou descrevendo aquilo

que já fomos um dia em termos de organização sociocultural (LEROI-GOURHAM,

1965).

Cotidianamente visível na paisagem social de grandes centros urbanos como

resultado do consumo do dia anterior, este descarte de material não é homogêneo e,

ainda que naturalizado nas práticas sociais e culturais é fator constituinte das

relações do humano com o mundo, em especial com o mundo dos objetos, coisas e

bens; o descarte é um fenômeno transcultural. Em Araçatuba, o centro urbano onde

transcorreu a pesquisa de campo para esta dissertação é, segundo a empresa

responsável pela gestão do lixo na cidade, a Monte Azul Engenharia Ltda1, ao atingir

100% do perímetro urbano em 2018, passou de 120 toneladas para 200

toneladas/toneladas de lixo e resíduos de todo o tipo depositados no único aterro

sanitário, localizado no bairro Cafezópolis2.

Mas não precisamos chegar tão perto para ver os dados e os danos. Em

qualquer lugar do mundo, a questão singular do lixo/resíduo e seu crescimento na

condição de descarte é um dos grandes desafios a serem encarados no nosso

século (PNUD, 2015). Mesmo sendo a parte final da cadeia de consumo, a produção

de resíduo cresceu vertiginosamente nas sociedades centradas ideologicamente

pelo consumo-consumista, um problema principalmente concentrado no fenômeno

urbano. As dificuldades em gerir o descarte produzem a contaminação e a poluição

no planeta Terra em um sem-número de maneiras perigosas. Os exemplos disso,

quando não raramente visíveis ao olhar do citadino comum, se expandem com a

1 A Monte Azul Engenharia Ltda é a única empresa em caráter de parceria público-privada que realiza todos os serviços de coleta e transporte de lixo, varrição, limpeza, lavagem e higienização de vias e logradouros públicos, operação e manutenção de unidade de triagem e operação, manutenção e monitoramento do aterro. 2RP10. Monte Azul Ambiental apresenta sua nova frota de caminhões para limpeza urbana em Araçatuba. Disponível em:<https://www.rp10.com.br/2018/03/monte-azul-ambiental-apresenta-sua-nova-frota-de-caminhoes-para-limpeza-urbana-em-aracatuba/>. Acesso em 11/010/2020.

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mesma progressão em toneladas de detritos marinhos, contendo plásticos

biodegradáveis, que interferem negativamente nos nossos rios, mares e oceanos,

colocando assim em risco permanente não apenas a vida marinha mais diretamente

afetada por esses casos, mas também com ocorrência drástica na vida de aves a

seres humanos (WWF, 2019 p. 8).

Atualmente, descarte de lixo e resíduos desempenham um papel intrigante

no mundo ocidental contemporâneo, principalmente se reportamos às causas em

referência aos efeitos da padronização da “sociedade do consumo”, pois “o consumo

é um processo ativo em que todas as categorias sociais estão continuamente

redefinidas” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004, p. 112). É um truísmo afirmar que a

quantidade de resíduos sólidos produzidos em apenas um dia no mundo é

incontável, assim como efeitos negativos do consumo são de parcela única da

responsabilidade humana. A lógica capitalista do consumo, em sua essência, apega-

se ao fator da necessidade, que são tão históricas como continuamente criadas

(MARX), coagindo, atualizando e impulsionando novos desejos e consequentemente

novas aquisições e novos descartes.

Independente de quanto mais podemos qualificar as causas e as

consequências negativas do consumo, aqui a compressão considera o consumo

como processo social dinâmico e plural, produtor de significados simbólicos e

identidades que nos auxiliam na compreensão e no ordenamento do mundo a nossa

volta (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2004). Estão, portanto, essas questões no centro

das discussões de cunho antropológico contemporâneo, aqui elaborados numa

pesquisa onde se interpenetram problemáticas sobre resíduos, associativismo e

trabalhadores.

No tocante ao crivo antropológico, condizente a delimitação dos objetivos

investigados atuou em dois momentos: primeiro, de nível macro, com

conceptualizações e abordagem sobre estruturas sociais e culturais e suas

transformações e segundo, de nível micro, etnográfico, sobre beneficiamento de

resíduos recicláveis, cotidiano do trabalho, história de vida dos catadores, inclusão e

exclusão social. Neste sentido, faz-se inevitável citar o conceito de cultura utilizado:

se a cultura é, provavelmente, definidora da ciência antropológica, podemos

estabelecê-la de maneira mais sintética como sendo “habilidades, conceitos e

formas de comportamento que as pessoas adquiriram como membros da sociedade”

20

(ERIKSEN, 2010a, p. 3) ou de maneira mais ampla, como atividade criativa, na qual

somos todos agentes inventivos, principalmente o antropólogo e o “nativo” por

realizarem operações similares e, assim, por conseguinte, estudar a cultura e seus

símbolos consiste também em envolver a cultura do antropólogo no contexto

(WAGNER, 2010). Acredito que os dois pontos de vista antropológicos sobre a

cultura são complementares, e por isso permeia meu olhar.

Independentemente do assunto ou das questões teóricas da antropologia,

para uma definição mais concreta e efetiva à pesquisa, é regra principal é explicitar

as metodologias que foram utilizadas aqui. Logo, por se tratar de uma disciplina que

estuda e conecta com e entre as culturas, para uma visão de dentro, primeiramente

adotei uma postura baseado na premissa do relativismo cultural3 (SAHLINS, 2013, p.

59). Assim, coloquei em suspensão minhas convicções, juízos morais e categóricos

e despi dos pré-conceitos em estimulo ao olhar de dentro. A partir de uma nova

perspectiva sobre o outros, no caso, os sujeitos de pesquisa, de modo a tornar mais

inteligível as práticas e as ideias dessas pessoas, que no fundo foram meus

colaboradores de pesquisa.

Por versar uma pesquisa de campo realizado no meio urbano, convencional a

este pesquisador, a postura antropológica de “transformar o familiar em exótico” e o

“estranho em familiar” (DAMATTA, 1978), colaborou para refletir criticamente sobre a

sociedade que pertenço. Para tal, é necessário pôr-se no lugar do outro, uma tarefa

difícil e intricada, mas um desafio que foi imprescindível para superar o obstáculo do

distanciamento presente, possibilitando uma problematização pertinente. Sobre esse

posicionamento, de “observar o familiar”, pode-se dizer que:

O fato de dois indivíduos pertencerem à mesma sociedade não significa que estejam mais próximos do que se fossem de sociedades diferentes, porém aproximados por preferência, gostos, idiossincrasias (...). O fato é que se está discutindo o problema de experiências mais ou menos comuns, partilháveis, que permitam um nível de interação específico. Falar a mesma língua não só não exclui que existam grandes diferenças no vocabulário, mas que significados e interpretações diferentes podem ser dados a

3 “O relativismo cultural e, antes de mais nada e sobretudo, um procedimento antropológico interpretativo – ou seja, metodológico. Ele não consiste no argumento moral de que qualquer cultura ou costume e tão bom quanto qualquer outro, se não melhor. O relativismo é simples prescrição de que, para que possam tornar-se inteligíveis, as práticas e ideais de outras pessoas devem ser ressituadas em seus contextos históricos, e compreendidas como valores posicionais no campo de suas próprias relações culturais, antes de serem submetidas a juízos morais e categóricos de nossa própria lavra. A relatividade e a suspensão provisória dos próprios juízos de modo a situar as práticas em pauta na ordem cultural e histórica que as tornam possíveis. Fora isso, não se trata de forma alguma de uma questão de advocacia.” (SAHLINS, 2013, p. 59)

21

palavras, categorias ou expressões aparentemente idênticas (VELHO, 2013, pp. 70-71).

Com a metodologia etnográfica, me aproximei da realidade dos sujeitos que

trabalham com o sistema da reciclagem. A etnografia norteou não só os aspectos

teórico-metodológico, mas principalmente corroborou com o recorte mais preciso da

pesquisa. Basicamente, o método etnográfico principal utilizado foi do próprio

expoente do desenvolvimento deste procedimento de investigação de campo, o

antropólogo polonês radicado no Reino Unido, Bronislaw Malinowski (1978). A

etnografia, de âmbito qualitativo por excelência, priorizou a construção de uma

relação direta entre pesquisador antropólogo e coletivo pesquisado.

O investimento no trabalho etnográfico deu o entendimento necessário ao que

esta dissertação se propôs a estudar e entender sobre a complexidade que envolve

contextos que transitam entre escalas micro e macro. A perspectiva, baseada no

primado da relacionalidade e da reflexividade, entre as duas faces do ofício do

antropólogo (trabalho de campo e escrita etnográfica) vem sendo muito influenciada

pela vertente (meta)teórica da “virada interpretativa” (STRATHERN, 2013). Nesse

sentido, a cidade de Araçatuba, catadores, associação/cooperação, resíduos,

reciclagem, e outras temáticas que cotejam o universo da catação, são

desdobramentos Interrelacionados ao descarte, a qual dispõe postos os trânsitos

dos sujeitos de pesquisa, dentro e fora do aspecto geral do seu trabalho como

catador e reciclador.

No mergulho profundo na vida cotidiana desses sujeitos e demais

circunstâncias relacionadas que a etnografia proporciona, corroborou para descrever

e interpretar, com base em suas próprias interpretações (GEERTZ, 2013), sobre as

práticas e as representações, mais precisamente suas dinâmicas de trabalho com

beneficiamento de materiais residuais para reciclagem, a história e a pluralidade dos

envolvimentos políticos, sociais e institucionais da associação local ao contexto geral

estudado.

Nesse sentido, alguns princípios metodológicos para a etnografia descritiva,

conexa, principalmente, ao esforço do antropólogo norte-americano Clifford Geertz

(2013), foi frequente na pesquisa de campo de modo a provocar um esforço de

objetivação dos dados subjetivos construídos pelo campo. Referências do passado e

do presente configuram o todo desta etnografia, que neste trabalho serviu para

22

conhecer a cultura, sendo isso muito mais do que o simples fato de registrar os

dados de campo; analisar, interpretar e buscar os significados que os catadores dão

a suas ações foi e continua sendo de grande valia para compreendê-los um pouco

mais.

É importante ressaltar essa questão de estar junto a eles ou ‘estar junto

denso’ (deep hanging out) como foi denominado por Geertz (2013, p. 10). Essa foi a

única maneira encontrada por esse pesquisador em se abrir para o ponto de vista

dos sujeitos de pesquisa. À essa habilidade especial, deve-se deslocar com o outro,

abandonar o lugar de falante para assumir o de ouvinte, e abrir espaço para o outro.

Pelos caminhos de uma antropologia compartilhada de prática rouchiana (HIKIJI,

2013), foi possível qualificar verdadeiramente os nossos sujeitos de pesquisa como

colaboradores e não como apenas objeto do conhecimento.

O tratamento estabelecido em campo etnográfico permeou o sentido de

construí-los junto aos sujeitos de pesquisa, como condição básica para a construção

de dados que vem a ser esse tipo de pesquisa qualitativa (GEERTZ). Durante o

presente etnográfico, a interação deste pesquisador com os catadores e recicladores

associados, foi determinante no grau de confiança que esses sujeitos depositaram

para revelar suas estruturas internas de relevância (BECKER, 1993) – em alusão à

dramaturgia social da sociologia de Erving Goffman: o “etnógrafo e seus sujeitos

são, simultaneamente, atores e público” (BERREMAN, 1975 p. 141). Resultado da

confiança mútua, a princípio, destaca que o tratamento explicita os nomes e apelidos

verdadeiros desses sujeitos sem a obrigação de preservá-lo ao anonimato.

Alcançar tamanha complexidade etnográfica exige do pesquisador tempo e

imersão em pesquisa de campo. Tão logo, nas primeiras visitas, de cunho

exploratório, procurei deixar “levar-me” pelo fluxo, sem preocupar-me, à priori, com

problemas teóricos, ou seja, orientando-me a partir de técnica da antropologia

francesa Colette Pétonnet de observação flutuante (PETONNET, 2008) e depois

pela etnografia da duração (ROCHA e ECKERT, 2013). A construção dos dados

caracterizou-se na sensibilidade do olhar, ouvir e escrever (CARDOSO DE

OLIVEIRA, 2000). Sentidos importantes que capturaram os anseios, as emoções, as

memórias, os fragmentos biográficos, as práticas atuais e os projetos do coletivo

pesquisado.

23

No ínterim da produção de dados adveio por etapas: na primeira realização

do trabalho de campo, anotações sobre as práticas e as falas mais significativas dos

sujeitos como, por exemplo, a respeito do seu saber-fazer habitual, sobre o trabalho

de separação dos materiais, entre recicláveis e inservíveis, os acontecimentos

passado e os atuais que conforma suas histórias; e a segunda etapa, num momento

de reflexão e de afastamento de campo, feitura do diário de campo e análises

antropológicas mais profundas. É nessas duas ordens da escrita narrativa,

valorizando a perspectiva do encontro com o outro, e buscando uma descrição

densa de significados simbólicos (GEERTZ, 2013), que começou a fluir a escrita da

pesquisa como um todo.

O uso de cadernos foi imprescindível na elaboração desta dissertação,

principalmente na aspiração por uma qualidade pela escrita etnográfica

contemporânea. Embora o uso desses cadernos de cunho etnográfico não seja

exclusivos a antropólogos e etnólogos, esses escritos fortaleceram concomitante

com as técnicas de observação participante (MALINOWSKI, 1978; FOOTY- WHITE

1980) utilizada ao longo da pesquisa, em produzir empatia e distanciamento,

intercaladamente, de modo a congregar esses elementos, presente de modo geral

na metodologia etnográfica. Desta forma, para a empatia, necessária nos primeiros

passos para conhecer de perto a alteridade e depois compreendê-la com os sujeitos

em pesquisa, carregava sempre um simples caderno de anotações e um bloco de

notas com comentários esparsos; para o distanciamento, inerentemente prescrito no

auxílio para a análise etnológica e síntese antropológica (LÉVI-STRAUSS, 2014),

houve a composição do diário de campo, reservado em um momento posterior de

afastamento do campo etnográfico.

Esse tipo de divisão dos escritos, que se diferenciam quando uso o caderno

de campo/bloco de anotações ou diário de campo, podem ser encontradas em um

simples texto do antropólogo australiano Michael Taussig (2011). Ao revisitar seus

antigos escritos sobre os “corteros” (cortadores de cana) colombianos, Taussig

começou a compreender melhor seus escritos em cadernos e diários de campo.

Para ele, o caderno de campo é um registro de relações entre observadores,

observador e observadores-observador. Embora seja o instrumento mais básico de

uma pesquisa, o caderno de campo de cunho etnográfico traduz o engajamento

material de escrita sobre o outro, e produz o efeito de registro de apreensão da

24

verdade; acrescento, o caderno de campo pode tanto buscar a verdade ou mesmo

construí-la. Já em relação ao diário de campo, Taussig enfatiza a redação deste com

base na síntese e organização dos dados construídos, que corroboram, de maneira

mais profunda, para análise e produção de um sentido sobre o conhecimento dos

significados simbólicos coletados e reconhecimento da estrutura social permeável na

cultura.

Ambos os materiais de escrita, cadernos e diário, e suas imbricadas

explicitações, serviu a este pesquisador-etnógrafo como firme alicerce para a

pesquisa, por isso, devem ser compreendidos de modo complementar, um com o

outro, pois tal como acontece de maneira tímida no caderno de campo, do diário

emerge, de modo mais profundo, emoções e descrições densas; o que o caderno de

campo reproduz, o diário de campo se produz (TAUSSIG, 2011). Seguindo essas

dicas, ao valorizar os interstícios das anotações dos blocos, cadernos e diário

campo, o exercício de rememoração se perfez de maneira a congregar melhor o

sensível com o impassível, o ordinário com o extraordinário.

Demais técnicas utilizadas incluem: entrevistas abertas e semidirigidas,

gravações, fotografias. Por fim levei em conta as preocupações éticas, do respeito e

do bom senso para com os sujeitos de pesquisa; intrínsecas ao fazer antropológico,

balizam a nossa forma de produzir conhecimento (CLIFFORD, 2008).

Esta dissertação tem como foco o trabalho de uma associação de catadores e

recicladores em Araçatuba/SP chamada Associação dos Catadores e Recicladores

de Papel, Papelão e Materiais Recicláveis de Araçatuba, ou apenas ACREPOM

como é conhecida na cidade. Dentro deste espaço coletivo de trabalho

associativista, que difere das fábricas comuns, o trabalho dos catadores e

recicladores em geral compõe uma série de “práticas dissimulativas” que incidem na

“sucata4 (DECERTEAU, 2014). É neste espaço da associação, que estes

trabalhadores, coletivamente com seus saberes, fazeres e as tecnologias

disponíveis produzem e reproduzem transformações nos diferentes materiais

residuais, sensíveis e visíveis, que lhes chegam como doações. Assim, ao

ressignificarem a materialidade, os catadores e recicladores revelam a

4 No capítulo 3 de A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer coloca Michel de Certeau preserva o termo sucata, que não deixa de ser uma categoria da forma residual dos materiais descartados, principalmente àqueles feitos de aço e ferro valorizados em qualquer associação ou cooperativa de

reciclagem.

25

transitoriedade das coisas dentro e fora do estado de mercadoria (APPADURAI,

2008 p. 27) consumidas enquanto cultura material (MILLER, 2007).

Desde a maneira de se portar perante a observação e a imagem que se

construiu sobre o antropólogo na pesquisa com os sujeitos (e vice-versa), durante as

rotinas de trabalho, testaram a postura deste pesquisador a observar que os

materiais descartados, por exemplo, os resíduos sólidos urbanos doados a

ACREPOM, são potencialmente recicláveis desde que relativos às atividades dos

catadores e recicladores, sendo importantes na medida em que sua (re) inserção é

fruto da participação ativa desses sujeitos e dos objetos nos processos de (re)

criação de valor.

A questão mais subjacente de como os associados encaram as medidas do

valor em relação ao material descartado se dá em como são classificados: se

estiverem como “lixo”, serão tratados sem valor; se estiverem como “resíduos”,

haverá um déficit de valor, mas não sua completa anulação; as classificações locais,

reveladas neste trabalho, possuem nomes diferentes mas são análogas ou ao

conceito de lixo ou ao conceito de resíduo. O reconhecimento das abordagens

êmica e ética são evidentes no trabalho de pesquisadores imerso na interpretação

das culturas de populações e lugares (GEERTZ, 2013).

Para antropólogo estadunidense Conrad Kottak (2015), conceitos êmicos e

conceitos éticos são:

Uma abordagem êmica investiga como as pessoas locais pensam. Como eles percebem e categorizam o mundo? Quais são suas regras de comportamento? O que significa para eles? Como eles imaginam e explicam coisas?

(...) A abordagem ética (orientada para o cientista) muda o foco das observações locais, categorias, explicações e interpretações locais para as do antropólogo. A abordagem ética percebe que os membros de uma cultura muitas vezes estão muito envolvidos no que estão fazendo para interpretar suas culturas de forma imparcial. Operando eticamente, o etnógrafo enfatiza o que ele ou ela (o observador) nota e considera importante. (KOTTAK, 2018 p. 47-48) ( tradução minha).

No entanto, se a ação do descarte tomar rumos de um ato despreocupado,

confuso, desatento, conforme visto na digressão introdutória desta dissertação, onde

“lixo” e “resíduos” se encontram descartados conjuntamente, não só bagunçarão as

classificações êmicas e éticas, com pior, perpassarão agenciamentos e processos

de invisibilidade que performam em desqualificação e desvalorização. Por outro

lado, quando bem reconduzidos, o descarte correto proporciona uma visibilidade a

26

materialidade das coisas, que culmina numa clara distinção entre lixo e resíduos;

mais que isso, reconstrói também novos significados e possibilidades as

propriedades dos objetos descartados enquanto resíduos, como uma condição

necessária para a revalorização de qualidades que poderiam se perder, se a

suposta ausência de valor perecesse à obliteração.

O pensamento antropológico sobre valor e troca, em grande medida busca

encontrar uma saída para os dilemas em curso da própria teoria social atual, que

estão em estado crítico no atual momento de colapso ideológico em face ao

neoliberalismo (GRAEBER, 2001). Na introdução do livro O Poder do Lixo:

abordagens antropológicas dos resíduos sólidos (2016), organizado pela

antropóloga referência no tema, a professora Carmen Rial, mostra a existência de

diversos estudiosos envolvidos em pesquisas sobre a gestão de resíduos, que

discorrem sobre economia da reciclagem, trabalho dos catadores, estética do

lixo/resíduo, mas as principais discussões, mais atuais sobre antropologia e resíduos

sólidos, vez ou outra, versam a esteira que os desdobramentos das teorias do

valores e trocas, como bem mostra quase todos textos e artigos científicos sobre a

temática da catação e materialidade dentro desta obra.

Para David Graeber, ao olhar para a forma como a palavra “valor” foi usada

na teoria social no passado pelos antropólogos, pode-se dizer que existe três

grandes fluxos de pensamento que convergem no presente termo:

1. Valores no sentido sociológico: concepções do que é em última instância bom, adequado ou desejável na vida humana. 2. Valor no sentido econômico: o grau em que os objetos são desejados, particularmente, medido por quanto os outros estão dispostos a desistir para obtê-los. 3. Valor no sentido linguístico: que remonta à linha estrutural linguísticas de Ferdinand de Saussure (1966), e pode ser simplesmente glosado como "diferença significativa" (GRAEBER, 2001 p. 15) (tradução minha).

O olhar fragmentado, que elege uma das três teorias do valor como um

conceito a ser aplicado ao objeto de estudo, não chega a um lugar coerente devido

aos problemas terríveis que há na falta de consideração dos outros dois (GRAEBER,

2001 p. 16). Portanto, ao reconsiderar uma leitura marxista – ou seria de

antropologia marxista? – sobre valor, percebi que as lacunas em desconsideração

ao conjunto das teorias dos valores são suprimidas com a teoria do valor em Karl

Marx.

27

Mesmo para o antropólogo anarquista David Graeber, que sintetiza as

abrangentes teorias econômicas, políticas e culturais de valor em Toward an

Anthropological Theory of Value, reconhece que Karl Marx e o marxismo5

desenvolveram uma teoria do valor muito atualizada:

Valor vou sugerir, pode melhor ser visto sob esta luz como a maneira pela qual as ações se tornam significativas para o ator por ser incorporado em alguma totalidade social maior - mesmo que em muitos casos, a totalidade em questão existe principalmente na imaginação do ator. Este argumento gira em torno de uma leitura bastante idiossincrática das ideias de Karl Marx. (GRAEBER, 2001 p. 12) (tradução minha).

Por estar presente em várias desta dissertação, é indispensável uma

explicação resumida sobre a teoria do valor em Karl Marx, mesmo porque, em

diferentes partes deste trabalho, utilizo a teoria em questão e seus conceitos para

abordar diversos aspectos observáveis durante a etnografia. Simplificadamente,

tomando como referência sua maior obra ainda em vida, O Capital Volume I, ainda

na Seção 1, a forma de valor refere-se à forma social, não como relação técnica ou

mais uma lei econômica, pois é, antes de tudo, uma relação social entre pessoas,

“na medida em que são expressões da mesma unidade social, do trabalho humano”

(MARX, 2017 p. 125), isto é, o valor é tributário de alguma maneira destes

desdobramentos que a relação entre sujeito e objeto produzem exteriormente,

relação esta que é da ordem da atividade humana sensível ao mundo que se

apresenta para todos nós.

Por adentrar as aparências físicas, observáveis, ou seja, em busca do valor

não em abstrato, Marx acertadamente refere-se ao valor enquanto forma de valor,

posto que são tangíveis enquanto coisas negociáveis por símbolo de valor (ou

símbolos de valores); valor este que contrasta as características físicas dessas

coisas que são reconhecidas por nós como objetos que satisfazem as necessidades

humanas mais objetivas ou são úteis a algum propósito subjetivo. Aparecendo como

propriedade material e social, contextualmente no capitalismo, constitui as relações

de valor a forma particular assumida pelas relações sociais capitalistas, onde a

forma de valor se expressa como mercadoria produzida através do dispêndio de

5 Na realidade David Graeber tenta sintetizar os melhores insights de Karl Marx e também de Marcel Mauss, argumentando que essas figuras representam duas possibilidades extremas, mas em última análise complementares, que o projeto teórico sobre valor, trocas e economia-política podem assumir na prática e na realidade; “De muitas maneiras, Mauss serve como um complemento perfeito a Marx: enquanto se dedicava a uma crítica completa do capitalismo, o outro estava interessado em trazer os frutos da comparação etnografia – a única disciplina capaz de abordar toda a gama de possibilidades humanas - para ter em vista possíveis alternativas.” (GRAEBER, 2001 p. 13)

28

força de trabalho social (BOTTOMORE, 2001 p. 397), uma generalização do

trabalho humano tratado também como mercadoria pelo capital.

Para além de um conceito de analise6, a teoria do valor em Marx, ao observar

esta pela forma de valor [Wertform] ou o valor de troca, implica a mercadoria um

duplo valor: valor de uso e o valor de troca (MARX, 2017 p. 124). Em poucas

palavras, valor de uso representa uma relação direta com o humano, como uma

utilidade, uma fruição para quem consome, Esse aspecto da mercadoria é, digamos,

subjetivo. As coisas são úteis pra algumas pessoas e não pra outras seria que

serão, ao longo da dissertação, explicados junto com as transformações observadas

em campo etnográfico. Em relação ao valor de troca é mais sua aparência e

expressão nas mercadorias em circulação e troca, como evidência uma forma geral,

um equivalente comum objetivo (ex: dinheiro), que codifique e descodifique as

mercadorias no âmbito das trocas.

Para o sociólogo marxista inglês, Thomas Bottomore, afirmar que a

mercadoria para Marx é, portanto, valor de uso e valor de troca, pode acarretar em

uma afirmação enganosa, pois a questão que relaciona as trocas está pautada na

forma como as relações sociais se dão entre indivíduos, o que direciona os valores

de trocas sempre contingentes em relação ao tempo, lugar e circunstâncias. Assim,

existem outros tantos valores de troca quantas são as heterogeneidades das

mercadorias existentes na sociedade de troca. É justamente na sociedade mercantil,

que os valores de trocas da mercadoria são submetidos a um equivalente geral que

concretize o câmbio das mercadorias no capitalismo; o valor de troca entre duas

mercadorias (quando não se trata diretamente do preço) é normalmente

intermediado pelo dinheiro, ou seja:

O valor de troca é a forma de aparência de alguma coisa que dele pode ser distinguida. O valor é então definido como a objetificação ou materialização

6 A atenção ao materialismo histórico e dialético transportou Marx a conceber o valor não apenas como um conceito ou uma existência puramente mental. “Num dos seus últimos escritos sobre economia política, que data de 1880, Marx assim resumiu seu procedimento: Não procedo à base de “conceitos” e, portanto, também não a partir do “conceito de valor” (…). Parto da mais simples forma social na qual o produto do trabalho na sociedade contemporânea se manifesta, que é a “mercadoria”. É isso que eu analiso e, em primeiro lugar, para estar seguro, na forma em que ela aparece. Ora, verifico a essa altura que ela é, por um lado, em sua forma natural, uma coisa de valor de uso e, por outro lado, que é portadora de valor de troca, constituindo ela própria um valor de troca desse ponto de vista. Através de uma análise mais aprofundada deste último, descobri que o valor de troca é apenas uma “forma de aparência”, um modo independente de manifestação do valor contido na mercadoria. Em seguida abordo a análise desse valor. (“Notas sobre Adolph Wagner”) (BOTTOMORE, 2001 p. 397)

29

do trabalho abstrato, e a forma de aparência do valor é o valor de troca de uma mercadoria. Assim sendo, a mercadoria não é um valor de uso e um valor de troca, mas um valor de uso e um valor (BOTTOMORE, 2001 p.397).

Para além da teoria marxista de valor de uso e de troca que perpassam ao

longo de quase toda esta discussão, as coisas também agregam valores simbólicos

(BAUDRILLARD, 1972) pelo fato de que antes de existirem como lixo ou resíduo (ou

até mesmo enquanto nestes dois estados), durante os atos de trocas e circulação,

foram outra coisa em algum período de sua trajetória de vida (KOPYTOFF, 1986). É

neste ponto que o resíduo se revela importante para se pensar a problemática do

valor (ou valores) diferentes do que comumente acontecem em seu estado

antecessor, em situação de mercadoria. Aos resíduos, o foco muda para analisar o

processo de valorização que atravessam os objetos logo pós-descartados, quiçá, de

revalorização tanto dos objetos como dos sujeitos, uma vez que, neste processo

valoração, a qual os catadores e recicladores tem chamado de beneficiamento, há a

restituição da forma mercadoria da reciclagem e novamente a circulação desta no

sistema de troca.

O que são os resíduos recicláveis se não coisas que um dia já foram

consideradas mercadorias, em um etapa da sua trajetória de vida social em

circulação que “vinculam coisas a pessoas e inserem o fluxo de coisas no fluxo de

relações sociais, onde as mercadorias supostamente representam o movimento”

(APPADURAI, 2008 p. 25). Assim como foram mercadorias em algum momento, os

resíduos poderão vir a ser novamente, desde que as transações que segue da sua

entrega a separação, no mundo exterior, resulte na inclusão de preços negativos e

ou positivos, o que o conformará em um tipo peculiar de mercadoria.

Não à toa, catadores, recicladores, atravessadores, poder público, usinas e

industrias de reciclagem, se digladiam, muitas vezes entre si, para conquistar a

reivindicação deste que, para eles, são considerados recursos, bens, riquezas em

potencial, materiais que, ao caírem por essa extensa rede de mediadores, terão

seus “status” alterado através valor-trabalho (MARX, 2017). Voltarão a ser matéria-

prima uteis a forma-mercadoria que, comercializadas, retornam como “renda” para

muitos deles – ou como lucro para alguns poucos destes. Jogar fora as coisas sem

mais valor de uso, apenas faz com que aparentemente desapareçam do nosso

caminho, mas em realidade os resíduos permanecerão em trânsito no mundo, dando

continuidade à agora uma ‘sobrevida’ social, mantendo apenas suas características

30

e propriedades físicas próximas a decadência. Considerar tratá-las, como fazem a

linha de frente dos catadores e recicladores, reposicionará novas estratégias e

trajetórias aos resíduos, se não tão gloriosas ao menos honrosas com a natureza,

pois só assim poderão ser reinseridas na diversidade dos "regimes de valor"

(APPADURAI, 2008 p. 29).

A dissertação explora as dimensões das transformações que ocorre dentro do

trabalho associativista de catadores e recicladores de materiais recicláveis. Na

dinâmica da transformação, ou do beneficiamento, durante a pesquisa etnográfica,

identificaram-se duas composições que passam por processo de transformações

muito profundas quando o associativismo de trabalho e renda se encontra com os

resíduos recicláveis. A primeira transformação está diretamente relacionada por

meio da separação para a reciclagem, a partir da doação, onde trabalho

especializado dos catadores e recicladores produz sobre a matéria residual,

tratando-a até se tornar matéria-prima, o material reciclável. A segunda condiz

internamente as lógicas associativista que, na associação ACREPOM, as histórias

de cada associado foi se transformando a nível de emancipação enquanto sujeito

coletivos de reivindicações e direitos.

Pensando nestes dois eixos (sócio-antropológico e etnográfico) que se

relacionam e, ao mesmo tempo, ganham vida própria dentro da dissertação, o

seguinte trabalho propõe que estas duas partes sejam compreendidas

complementarmente. Dividiu-se então os capítulos à seguinte maneira:

O primeiro capítulo procura mostrar como o crescente interesse público,

particularmente do poder público municipal de Araçatuba, interior de São Paulo, e as

mais amplas categorias de catadores e recicladores tem se portado diante da

diversidade e quantidade colossal dos materiais descartados cotidianamente. Da

possibilidade de transformação à revalorização dos resíduos sólidos à ascensão do

mercado de recicláveis, o poder público municipal e os catadores/recicladores estão

descritos neste trabalho como dois grupos distintos, em acordo com as posições de

hierárquicas que diferenciam um do outro; colocados paralelamente e evidenciados

como se conformam seus distintos interesses e sujeições nas circunstâncias

contextuais que lhes concernem importância em suas gamas de atividades com os

descartes. Embora esta separação seja coerente ao recorte acadêmico, não é

possível deixar de lado há, na cidade, um embate permanente e generalizado de

31

valorizações e hierarquizações de traços físicos, sociais e culturais. Decompostos

em emblemas (a cor da pele é um deles, as maneiras sociais, “finas” ou “vulgares”,

“limpas” ou “sujas”, são outros), esses traços delimitam algumas fronteiras

simbólicas entre etnias e entre grupos de status (BARTH, 1998 p. 188)7.

Assim, para o primeiro grupo, ou seja, o poder público municipal, as ações de

reciclagem municipal se constituem como discurso e prática absorvidas

recentemente, a ser implementadas com características de política pública.

Aparentemente formado por consensos discursivos que se assemelham a um olhar

sobre as cidades de modo mais sustentável e menos exploradora, o impulso para o

interesse da atual administração municipal advém das recentes cobranças estatais

por meio de decretos, leis, normativas técnico-jurídicas, com mediações de órgãos

públicos e instâncias superiores, pela adequação urgente das cidades em todo o

Brasil no tocante ao mais básico do desempenho a esse respeito, que é o

tratamento dos resíduos sólidos. Araçatuba/SP passo a passo, ainda que

tardiamente, vêm se adequando a Política Nacional De Resíduos Sólidos, ou PNRS,

como é conhecido o mais importante e atual projeto para permitir um avanço das

cidades do Brasil no enfrentamento hercúleo dos problemas ambientais, sociais e

econômicos decorrentes do descarte inadequado dos resíduos sólidos.

O grande esforço do trabalho de catação de materiais recicláveis recai sobre

os ombros dos catadores e recicladores; são eles os principais agentes da

transformação dos resíduos sólidos para reciclagem e estão colocados como o

segundo grupo nesta dissertação. Mesmo que ainda invisibilizados socialmente

pelas marcas do passado e vivendo no atual processo de liminaridade, entre

exclusão e inclusão no Brasil (MAGALHÃES, 2012), a categoria do catador e

reciclador passou por dias piores em nossas terras. Contextualmente para muitos, é

uma das poucas oportunidades de renda para quem se encontra como exército

industrial de reserva, que é a “transformação constante de uma parte da população

trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada” (MARX, 2017 p.

708).

7 Noções e conceitos sobre fronteiras e emblemas permeiam todo o texto do antropólogo Frederik Barth, em Os grupos étnicos e suas fronteiras.

32

Não obstante, dos mais ou menos 387.910 catadores no Brasil8 (IBGE, 2010),

é fácil perceber que a maioria deles se interconectam por de meio de histórias de

vida muito semelhantes à situação de pobreza ou até de miséria. Por tempos, o

trabalho e o sujeito por trás dessa distinta indústria da sucata (CERTEAU, 1994)

passou despercebido, marginalizado, excluído, apesar dos avanços para promover

uma inclusão mais efetiva da categoria na cadeia produtiva. Chegou um momento

de escutarmos as histórias e interpreta-las a luz de uma abordagem reflexiva sobre

as estruturas sociais com crítica e autocrítica das próprias representações, o que

incluiu também a desconstrução do ponto de vista do antropólogo.

É extrema importância para uma sociedade cada vez mais consumista,

encantados que involucro que envolve os produtos com vieses e marcas se afastem

dos pormenores de como são viabilizadas as coisas que chegam as nossas mãos

pelo sistema da produção-consumo e circulação das mercadorias. O segundo

capítulo faz elaborações teóricas a partir de frações do campo do consumo. O

consumo, atividade rotineira que tem nas trocas das mercadorias o seu êxtase, cedo

ou tarde, consumirá os produtos até o seu fim; nada é finito que a ação do tempo

não fragmente até o total desaparecimento. As mercadorias, cedo ou tarde,

deixaram de ter seu valor de uso e seu destino poderá ser definido em como será

viabilizado este caminho. O descarte é a maneira usual e transcultural que declara o

fim de um valor de uso. Esses fragmentos concretos oriundos do descarte, tem

conceitos e categorias que a abordagem ética precisa ser levada em consideração,

pois os tempos mudaram e as classificações e reordenamentos estão sendo

institucionalizados pelos saberes especialistas, ainda que estes sejam pouco ou

nada conhecidos do público mais amplo.

Ao final, o quarto e último capítulo, abre com uma breve história da criação da

Associação dos Catadores e Recicladores de Papel, Papelão e Materiais Recicláveis

de Araçatuba, a ACREPOM e aponta as reuniões de grupo que culminaram no seu

surgimento. Em primeiro lugar, foi preciso desfazer as minhas confusões enquanto

etnógrafo, que associava semelhantemente cooperativismo a associativismo quase

sempre de maneira intercambiáveis dentro e fora do campo de pesquisa. É preciso

8 Por sua vez, o MNCR calcula a existência de mais de 800 mil catadores em todo o território nacional. Hoje, mais de 100 mil catadores compõem a base do MNCR. Outras estimativas citam o número de 500 mil catadores (CÁRITAS, 2011; INSTITUTO PÓLIS, 2008apud BESEN, 2008) 2 ou entre 300 mil e 1 milhão (CEMPRE, 2011).

33

especificar e compreender que para além das diferenças das importantes diferenças

entre ‘associações’ e ‘cooperativas’ que precisam ser explicitadas, há a transição de

um tipo de trabalho independente para o trabalho organizado dentro de elaborações

político-ideológicas que somente em um contexto de crise poderia surgir para fazer o

enfretamento pela sobrevivência coletiva.

Embora o presidente da associação, assim como os demais associados não

se denominem uns aos outros como catadores – preferem ser conhecidos como

recicladores ou, apenas associado, o trabalho de ir de encontro as doações

(materiais recicláveis) com os carrinhos, a separação, a classificação e o ato de

coletar/catar materiais e limpar o espaço de trabalho, confere a ele o mesmo modus

operandi de catador. A grande diferença se baseia que ele não está sozinho e seu

retorno pressupõe outro tipo de atividade, que é de produção dentro do galpão da

ACREPOM; há um coletivo de pessoas que está nas mesmas condições, muitos dos

quais percorreram caminhos de vida parecidos, que vivem do trabalho e renda do

tipo associativista e que encontrou neste sistema (associativismo) determinados

ganhos que vão além do que é evidente no holerite do fim do mês.

34

CAPÍTULO 1

A RENOVAÇÃO DO ATERRO SANITÁRIO EM ARAÇATUBA

Sancionada em 2 de agosto de 2010, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos

(PNRS) estabeleceu o prazo para que as prefeituras se adequassem as novas

regras até o final de 2014. Porém no Brasil a vigência da normativa nº. 12.305/2010

(PNRS), que determinou um prazo para encerramento dos lixões (desde o ano de

2014), mesmo com prorrogações de prazos e extensão da data-limite para os fins

dos lixões que inauguraria o começo de uma nova era no tratamento correto ao

descarte de resíduos no Brasil, praticamente a metade dos municípios ainda

apresentam irregularidades quanto a deposição dos seus resíduos sólidos (ISLU,

2019).

Localizada no noroeste do Estado de São Paulo, a uma latitude de21º 12'32"

sul e a uma longitude 50º 25'58" oeste, estando a 390 m acima do nível do mar, e

com uma população estimada em 195.874 (IBGE, 2018)9, a cidade de Araçatuba já

havia passado da hora de ter um aterro sanitário mais moderno. Hoje o aterro

recebe diariamente resíduos de mais de 30 bairros da cidade de Araçatuba, se

contabilizarmos que cada morador da cidade produz por dia um quilo de resíduos,

são mais de cinco mil toneladas que chegam todos os meses no aterro (ROSÁRIO

et al, 2017, p. 47). Anterior à reforma fui informado que sua capacidade estava

quase esgotada, com mais de 90% do espaço ocupado por resíduos.

O poder público da cidade Araçatuba, competente a Secretaria Municipal do

Meio Ambiente e Sustentabilidade (SMMAS), representado na figura do secretário

Petrônio Pereira Lima e do assessor executivo Lucas Savério Proto, parecem

conhecer de perto as cobranças instituídas pela Lei nº 12.305/10 e seus

desdobramentos sobre a economia dos resíduos em Araçatuba, os sujeitos

envolvidos no trabalho e renda como catadores/recicladores, os intercursos do

descarte de materiais sólidos recicláveis na cidade.

Repleto de árvores nativas remanescentes da Mata Atlântica, um antigo sítio,

incorporado na área urbana, é o local da atual sede da SMMAS de Araçatuba. Foi

por lá que, no início de outubro de 2018, no exato mês do ano anterior ao meu

primeiro contato de pesquisa (outubro/2018) com setor público da SMMAS, que veio

9 Estimativa populacional de Araçatuba conforme Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (30 de agosto de 2018).

35

a boa notícia: a cidade de Araçatuba conseguiu parecer favorável para ampliação do

aterro sanitário municipal.

Antes irregular, agora o município de Araçatuba possui um contrato de mais 24 meses regular de uso, podendo ser renovado. A liberação ocorreu por meio do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (CINDACTA) – conta o senhor secretário do meio ambiente, exato um ano depois (Petrônio, 2018).

Enquanto não vinham as licenças e autorizações, a prefeitura de Araçatuba

terceirizava outro local, em um aterro do bairro Arco Íris. Porém, este aterro que veio

da gestão passada também estava irregular, sem licitação que, para a surpresa da

nova administração, só veio recentemente ao conhecimento. O secretário explica o

imbróglio:

Foi tudo mediante a uma MP [Medida Provisória] que garantiu que usássemos esse aterro [Aterro do Arco Íris] (...) O Estado viu o nosso problema de perto com a fiscalização (...) sobre os resíduos sólidos. O TAC [Termo de Ajusta e Conduta] estava vencido desde 2014. Por convencimento da MP, com ações acompanhadas e cronogramas para atender o TAC, fez com que a promotoria do meio ambiente entendesse nosso caso caótico e referendasse o TAC vencido para podermos operar (Idem).

Ainda no sentido de dar a destinação correta aos resíduos domiciliares, na

impossibilidade de usar o aterro sanitário durante o período de estruturação, e sem

muitos recursos, a Prefeitura de Araçatuba, por meio da Parceria Público Privada

(PPP) com a Monte Azul Ferraz, uma empresa responsável por prestar serviço

privado em todo ramo de limpeza e resíduos há anos na cidade, mediou um acordo

com a Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto/SP para o transporte dos

resíduos para aquela cidade, uma vez que os aterros sanitários de Rio Preto, cidade

grande também do noroeste paulista, estavam regularizados com a PNRS. Disto,

Petrônio adverte:

Nosso desafio era lutar por um aterro na cidade. E não ficar na dependência de outro em outra cidade. (...) Chegou-se até mesmo falar em um aterro regional para que atenda toda nossa região. Pensamos nesse nível também, mas, por hora, queremos que seja aqui na região oeste da nossa cidade (Idem)

A reestruturação sanitária de aterros não tarefa fácil. O aterro em questão

tinha um complicador: próximo a este era onde existia o lixão de Araçatuba, que se

localizava às margens de um dos afluentes que compõe Bacia do Córrego

Baguaçu10. Do lado de uma estrada da região rural da cidade, ao longo de anos de

10 A Bacia do Córrego Baguaçu possui aproximadamente 614 km² de área e uma extensão de 55 km, desde a sua nascente até desaguar no Rio Tietê, no município de Araçatuba/SP. Está situada no

36

existência, este lixão em Araçatuba trouxe diversos transtornos de vulnerabilidade

ao sistema socioecológico local (LINDOZO, 2016).

Em termos ecológicos, se levarmos em consideração a relação do lixão com o

solo e sua proximidade com uma bacia hidrográfica importante em vários sentidos, o

problema se duplica: contaminação das águas do Rio Tietê e do lençol freático do

maior aquífero de água doce do mundo, o Aquífero Guarani. Por margear em

proximidade com o rio Tietê, por si só o antigo lixão já constituía um problema de

ordem legal há muito anos, pois estaria infringindo o código constitucional da

Portaria nº 53 de 1979 do CONAMA, que desde os anos 1970 já proibia o

lançamento do lixo em cursos de água e ou em suas cercanias.

Embora Araçatuba não tenha mais seu lixão oficial desde 2002, o aterro

principal que operava por boa parte da cidade estava totalmente irregular. O

Secretário Petrônio explicou que, no limite do prazo do Plano Nacional dos Resíduos

Sólidos (PNRS), em 2014, a administração anterior (2013/2016) não adaptou o

aterro sanitário, bem como não realizou os laudos e as licenças necessárias para o

funcionamento. Isso acarretou uma sobrecarga, e as exigências legais em torno do

tratamento do resíduo orgânico gerou insegurança para a nova gestão política

administrativa (2017/2020). Tocante ao tema, o início da atual administração do

prefeito Dilador Borges (PSDB), a SMMAS, por meio de um ofício, teve o primeiro

contato da agência ambiental reguladora para compreender quais os ordenamentos

jurídicos da PNRS para adequação de um aterro sanitário e evitar as multas

presentes na lei.

O primeiro órgão acionado foi o Comando da Aeronáutica Federal para

expedir uma liberação especial para adequação do novo aterro. Em Araçatuba, o

aeroporto regional do interior paulista Dario Guarita, fica a uma distância de

aproximadamente oito quilômetros do aterro. Conforme explicou o assessor na

representação recebida, tais documentos atendem a portaria criada em 2015 que

proíbe a existência de aterros sanitários em um raio de 20 quilômetros de distância

de qualquer aeroporto devido a presença de aves detritívoras que podem ocasionar

riscos nas aeronaves.

Planalto Ocidental Paulista, no noroeste paulista, e representa uma parcela expressiva da Bacia sedimentar do Paraná, ocupando aproximadamente 50% do estado de São Paulo.

37

Como não era apenas a questão do aterro que está em jogo, se verificou o

perigo de colisão com aves:

Nós fizemos o estudo aviário, que é para avaliar a intercorrência de urubus ou outras aves que circulam no local que compreende o aterro até o aeroporto. Sabia que é o Exército da Aeronáutica Brasileira que determina os números da segurança e logística em voos domésticos no espaço aéreo? Por sorte nós não temos urubus naquela área, não somos um vazadouro. Vazadouro, lixão e aterro sanitário são coisas diferentes. O nosso projeto para o aterro sanitário foi muito bem avaliado (Petrônio, 2018).

As verificações sobre a Área de Segurança Aérea (ASA), para a homologação

do aterro contaram com o que os próprios fiscais chamam de ‘sorte geográfica’. De

acordo com as orientações do texto do fiscal da aeronáutica, um frigorifico local e

uma rede de escoamento de esgoto ilegal ocupam a área junto a animais nativos.

Segundo a ASA, aquele perímetro para a construção não é permitido;

posteriormente, as construções ilegais e irregulares próximas ao local tiveram que

ser encerradas imediatamente.

Ao afirmarem que todas as medidas em relação ao espaço, área construída e

demais projetos de engenharia civil pertinente à regulamentação do aterro sanitário

já foram atualizadas em conformidade com o que a licença geral de permissão de

uso, emitido pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), o poder

público reponde a uma renovação que não se dava há mais de 18 anos de

atividades ininterruptas sobre aquele local que era até então um aterro intermediário

entre o aterro sanitário e o lixão propriamente dito.

Localizado na estrada municipal ART-450, bairro de Cafezópolis, com a

licença de operação do aterro sanitário de Araçatuba a todo vapor, a prefeitura pode

utilizar também a área ao lado do aterro para uma possível ampliação do mesmo.

Lucas Proto explica que este espaço servirá como área de transbordo e triagem,

onde ficarão as escavadeiras hidráulicas, área de segurança e refeitório para os

trabalhadores. Presentemente, a gestão pública opera com quatro baias no aterro,

cada baia atende a um tipo dos seguintes materiais sólidos: resíduos de construção

civil (RCC), resíduos de capina e poda, e resíduos inservíveis – ambos resíduos

volumosos (RV).

Até a renovação que constituiu o Aterro Sanitário em questão, o local já foi

antes um Lixão e depois um Aterro Controlado. Com esse histórico relatado sobre a

disposição dos resíduos e suas transformações ao longo de décadas, se faz

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necessária uma breve digressão das diferenças de cada uma dessas fases, pois

estas são relevantes para compreender duas questões: primeiro, a que passo o

interesse do poder público da cidade de Araçatuba/SP foi evoluindo no tocante ao

tratamento dos resíduos e na elaboração do atual projeto de reciclagem municipal;

e, segundo, o antigo lixão de Araçatuba – hoje extinto – se entrelaçava na biografia

de alguns recicladores que hoje se encontram na Associação dos Catadores e

Recicladores de Papel e Papelão (ACREPOM).

LIXÃO, ATERRO CONTROLADO OU ATERRO SANITÁRIO? AS DIFERENÇAS QUE NÃO RESOLVEM O PROBLEMA

Lixão: Os lixões são locais da disposição final de lixo a céu aberto e sem

avaliação alguma da área de descarte. Definido como uma forma simples de

descarga do resíduo sobre o solo, sem medidas de proteção ao meio ambiente ou à

saúde pública (IPT, 1995). Não possuem qualquer planejamento e nem controle

quanto aos tipos de resíduos depositados e ao local de disposição dos mesmos.

Assim, resíduos domiciliares e comerciais de baixa periculosidade são depositados

juntamente com os industriais e hospitalares, de alto poder poluidor.

A mistura de tipos de resíduos indistintos resulta na produção de líquidos

gerados pela própria decomposição do lixo no meio ambiente; surge o conhecido

chorume, um líquido repugnante que pode infiltrar-se sob o solo, contaminando a

água da superfície, do subsolo e do lençol freático, além de produzir outros

problemas ambientais, como gazes que poluem o ar e contribuem para o atual caos

climático (LEONARD, 2011). Nos lixões podem haver outros problemas

relacionados, como por exemplo a presença de animais (da criação de porcos a

animais detritívoros, como os abutres), e de catadores (que em sua maioria residem

no local), além do iminente risco de incêndio causados pelos gases gerados pela

decomposição dos resíduos, há perigo de desmoronamentos e escorregamentos

pela formação de pilhas de resíduos muito íngremes.

Aterro controlado: O aterro controlado é uma solução intermediária entre o

lixão e o aterro sanitário. Por vezes foram antigos lixões remediados e ou estão

adjacentes a vazadouros (pequenos lixões), compreendendo assim certa ligação

histórica com o seu antecessor, o lixão. Neste modelo de aterro, os resíduos são

dispostos de forma controlada e o solo recebe uma cobertura com argila, terra e

grama, impedindo que o resíduo fique exposto e favoreça a proliferação de doenças

39

(IPT, 1995). Ao valer-se da engenharia para isolar o descarte de resíduos, ajuda a

amenizar o cheiro característico dos resíduos em decomposição e, consequente, a

proliferação de insetos e animais que buscam restos de alimentos descartados.

Pode conter ou não algum recurso de captação de chorume e gás, a depender de

impermeabilização do solo ou controle dos gases gerados pela decomposição

(XEREX, 2013 p. 24), o que em geral não acontece e compromete a qualidade do

solo, das águas subterrâneas e do lenções freáticos (LEONARD, 2011). O aterro

controlado, por sua vez, é considerado um aterro “não sanitário”, embora preferível

este ao lixão sua qualidade é inferior ao aterro sanitário.

Aterro sanitário: De qualidade superior aos demais tipos de disposição final

dos resíduos, o aterro sanitário acolhe o resíduo residencial, comercial, industriais e

até mesmo resíduos sólidos retirados dos esgotos, que são depositados em um solo

impermeabilizado e preparado, respectivamente, pela terraplanagem, selamento a

base de argila e camadas de mantas de PVC, que visam impermeabilizar o solo

(geomembrana) para impedir o contato do chorume com o meio natural para a não

contaminação do solo e do lençol freático. Embora toda essa proteção seja feita de

forma preventiva, não é qualquer área que pode receber o aval para construir um

aterro sanitário, pois, antes de qualquer preparação, são realizadas pesquisas,

estudos geológicos e topográficos para a seleção e verificação do solo (XEREX,

2013 p. 24).

Ademais, segundo o Portal Resíduos Sólidos, para se considerar aterro

sanitário, este deve possuir sistemas de drenagens eficientes do chorume, dos

gases e das águas fluviais, além disso, é indispensável o monitoramento ambiental

feito por meio topológico, hidrogeológico, e conservação de um pátio para

estocagem de materiais. De acordo com a antropóloga Adriana Xerex (2013 p. 24):

A partir dos seis primeiros meses de funcionamento os efluentes produzidos são recirculados sobre a massa de lixo aterrada (...) no aterro sanitário não ocorre à proliferação de mau cheiro e poluição visual em função dos líquidos serem captados por drenos para o tratamento e os gases liberados durante a sua decomposição por outros drenos.

Ainda que considerado a principal solução para a disposição final dos

resíduos sólidos e um caminho para extinguir os lixões, segundo a especialista em

meio ambiente e desenvolvimento sustentável Anne Leonard (2011), os aterros

sanitários possuem problemas como vazamentos, pois ainda que bem arquitetados

a água da chuva possa infiltrar e se misturar aos líquidos presentes nos resíduos,

40

que escorrem entre os dejetos secos e absorvendo contaminantes (como os metais

pesados de tinta de impressoras, corantes, pesticidas domésticos, desentupidores

de pia). Como resultado temos o conhecido chorume, que em contato direto com

solo, contamina a água da superfície e do subsolo (LEONARD, 2011, pp. 124-126).

Diferentemente da poluição que vemos a olho nu em rios, mares e oceanos, e

lixões a céu aberto, há a possibilidade do vazamento no novo aterro sanitário de

Araçatuba e, por não ser visível, isso tornará mais difícil de ser controlado, caso

venha fatalmente acontecer; há aterros sanitários que são arquitetados e regulados

com mais rigor para servir especificamente a dejetos perigosos11. Entretanto, como

este não é o caso, deve-se contar que resíduos sólidos urbanos comuns do nosso

cotidiano de consumo e descarte, também podem contém substâncias químicas

altamente nocivas, escondidas entre os produtos e em coisas de uso diário que não

conhecemos e descartamos.

O chorume de aterros sanitários municipais é tão tóxico quanto o de aterros

de dejetos perigosos. De acordo com o Superfund (Programa Nacional de Limpeza

Americano de Resíduos Tóxicos), 20% dos locais contaminados detectados e

qualificados de máxima prioridade, eram antigos aterros sanitários municipais

(STEINWAY, 1999 apud LEONARD, 2011 p. 124); poluem o ar e contribuem para o

caos climático de qualquer forma, ainda que os aterros sanitários tenham sistemas

de drenagem de gases, o gás metano, em específico, faz parte do efeito estufa é

altamente dispersante e vinte vezes mais danoso que o dióxido de carbono.

Segundo a pesquisadora Anne Leonard (2011), houve “aumento da incidência

de câncer (especialmente leucemia e tumor na bexiga) e outros problemas de saúde

em comunidades próximas a aterros sanitários” (RACHEL NEW’S nº 617, 1998 apud

LEONARD, 2011 p. 124). Aterros sanitários consomem recursos, grandes extensões

de terras, e que ainda que possam, num futuro, serem transformados por meio de

construções em parques, estacionamentos ou shoppings centers, são áreas ditas

condenadas, pois, com o passar do tempo e a acumulação de resíduos, o terreno

torna-se instável, comprometendo com deslocamentos e afundamentos. Cedo ou

tarde, a estrutura construída por cima de um antigo aterro sanitário se compromete.

11 No Brasil há leis específicas que dissociam entre resíduos perigosos do comum – salvo resíduo hospitalar. Porém essa é uma diferenciação mais baseada nas práticas que se relacionam com outras normativas legais sobre resíduos.

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PROJETOS E POSSIBILIDADES DE RECICLAGEM MUNICIPAL

A prefeitura de Araçatuba, que há tempos vem pleiteando a liberação do

aterro, se comprometeu com o andamento da implantação de uma nova célula

dentro do aterro sanitário que vise a adequação a PNRS no quadro de uma

reciclagem municipal. A SMMAS nota que a última medida é a finalização de uma

célula para fazer a triagem de material reciclável:

Para você, que estuda sobre o reciclável, nossa gestão teve dois ganhos: a coleta seletiva foi implantada pela primeira vez na cidade e é espaço pioneiro de reciclagem de origem da própria prefeitura. Porém, em relação a reciclagem dentro do aterro, o poder público ainda não tem capacidade financeira de gerir trabalhadores para uma ação desse tipo, por isso estamos pensando em parcerias para ocupar a célula de reciclagem do aterro sanitário (Lucas Probo, 2018).

A reciclagem municipal elaborou uma cartilha informativa sobre

conscientização de reciclagem feita pela prefeitura municipal. Na iminência de serem

distribuídas para a população, estas cartilhas carregam: o logo das ‘setas-

perseguindo-setas’, que compreendem o simbólico logotipo mundial da reciclagem;

descrição resumida de um ou mais códigos federais e municipais; explicação sobre

as lixeiras coloridas; instruções básicas sobre qual recipiente atende o material

descartado; o cronograma com os locais, dias e horários que o caminhão da coleta

seletiva irá recolher os materiais e etc.

Na verdade, há mais familiarização do senso comum com o aspecto da

reciclagem do que antigamente. Uma das evidências que ainda se apresenta ainda

tímida as reais pendências versam sobre a questão da separação dos resíduos.

Esta pode ser vista em qualquer cidade brasileira através de cestos com diferentes

cores que identificam a diversidade dos tipos de resíduos. Contornando o

menosprezo sobre o descarte de resíduos úteis à reciclagem adequada, a coleta

seletiva empreendeu os padrões mais comuns que estampam as lixeirinhas nas

cores azuis para o papel/papelão, vermelho para plástico, verde para vidro e

amarelo para metais.

Vistas em diversos espaços públicos ou locais privados das nossas cidades,

Araçatuba/SP não escapa à regra da coleta seletiva; em termos quantitativos: papel

e papelão, plástico, vidro, metal são, em ordem respectiva, os elementos materiais

com mais possibilidades de reciclagem, ao mesmo passo que são os tipos de

resíduos que mais abundam na paisagem urbana do descarte (WWF, 2019).

42

Pode ser que as cores não estejam alinhadas a um padrão único, mas as

lixeirinhas coloridas para a coleta seletiva dos resíduos é algo praticamente

universal (WALDAMAN, 2010). No Brasil, estes cestos de resíduos estão

padronizados de acordo com uma resolução do Conselho Nacional do Meio

Ambiente (CONAMA), possuem o símbolo da reciclagem logo abaixo da palavra que

indica o material que o cesto pode receber e contam-se também com outras cores

como o branco (resíduos de saúde e ambulatoriais), o roxo (resíduos radioativos), o

marrom (resíduos orgânicos), o laranja (resíduos perigosos), o preto (madeira) e o

cinza (resíduo geral não reciclável ou misturado, ou contaminado não passível de

separação). Na Resolução CONAMA nº 275 de 25 de abril de 2001, o código de

cores para os diferentes tipos de resíduos integra-se representados também para a

identificação em coletores seletivos e nos transportes de resíduos recicláveis.

O aparente consenso em torno dessas e outras questões sobre o universo

dos resíduos nas cidades, emergiu através da discussão sobre o modelo correto do

que as cidades devem seguir na gestão dos seus resíduos sólidos para além de

somente enterrá-los, provisoriamente, embaixo do solo. Entre os diferentes agentes

interessados na reciclagem municipal vemos, além do poder público, associações,

cooperativas, gestores de depósito particulares de sucata, donos de aterros,

catadores e todos os tipos de intermediários, como atravessadores e empresas

multinacionais, que ora se unem, ora conflitam, uns aos outros, para controlar os

recursos recicláveis e, por conseguinte, os valores e os preços de compra ou venda

dos materiais (MEDINA, 2007).

Na eminência para constituir uma parceria coletiva que atenda o projeto de

um galpão para triagem e reciclagem de resíduos sólidos urbanos (RSU), os

funcionários do SMMAS escutaram as propostas de uma associação de Araçatuba e

organizaram uma reunião com a Associação dos Caçambeiros de Araçatuba.

Deste ponto de vista, observando o processo de estruturação do projeto, compreendo que numa área total de 50 mil m² do aterro sanitário há disponibilidade de uma parte considerável a ser cedida para a construção da célula de triagem e reciclagem dentro do próprio aterro sanitário (Lucas Probo, 2018). Foi explicado que no espaço do aterro, numa área mais isolada, não pode haver impacto ambiental ou social no entorno, que eles têm que se comprometer com isso. Ou seja, quem for entrar com essa parceria terá a responsabilidade de zelar pela limpeza e cuidados conforme os acordos

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ambientais legais. Por fim, junto a esses, foi conversado sobre o layout da proposta e de possíveis investimentos12.

O sentido do mercado industrial que trabalha com produção de mercadorias

oriundas da reciclagem valoriza matérias-primas de fontes recicláveis que visam

atender a redução de custo da produção em relação a oferta e a demanda dos

nichos de consumos. Para além da adequação correta dos resíduos urbanos

prevista em lei, alternativas de triagem dos resíduos e transformação da matéria-

prima poderiam ser bem-vindas, e assim diminuir a distância do discurso sobre a

autonomia dos sujeitos para a prática.

PARA ALÉM DO ATERRO: CONSOLIDAÇÕES E OUTRAS CONSIDERAÇÕES DO PNRS PARA A CIDADE

A proposta de reciclagem da PNRS está sustentada no tripé dos conceitos de

responsabilidade compartilhada, poluidor-pagador e logística reversa

(ABRAMOVAY, 2013). A cidade de Araçatuba ainda carece de conscientização

sobre políticas públicas que contemplem boas práticas de manejo dos resíduos em

todas as esferas das relações sociais. Assim, no sentido da promoção da cidadania,

a política municipal de reciclagem vem aderindo a responsabilidade compartilhada,

que inclui como atores sociais as indústrias e empresas da cadeia de valor das

embalagens e produtos nelas envasados, o Estado e os consumidores de

mercadorias na separação e destinação correta dos resíduos, como um primeiro

sinal do compromisso para o fortalecimento de um vínculo do poder público com as

empresas locais e cidadãos de uma maneira geral.

Em se tratando da responsabilidade compartilhada, a atual gestão da

prefeitura de Araçatuba resolveu ampliar a presença de Pontos de Entrega

Voluntária (PEV)13, pois observaram que esses fazem a diferença para que as

embalagens pós-consumo sejam corretamente encaminhadas à revalorização. Os

PEV’s agora estão presentes em algumas Escolas Municipais de Educação Básica

(EMEB). O projeto, oriundo de administrações passadas, atualmente, teve seu

caráter ampliado abrangendo um total de 14 escolas da rede municipal de educação

infantil e fundamental. Um sentido muito interessante para pensar desde cedo na

conscientização das crianças e descarte correto de lixo/resíduos.

12 (Trecho de diário de campo) 13PREFEITURA MINICIPAL DE ARAÇATUBA. Disponível em:<https://aracatuba.sp.gov.br/sujao#pev>. Acesso em 08/10/2020.

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Os Pontos de Entrega Voluntária agora integram a política municipal dos

ecopontos. Enquanto forma física, os ecopontos são os containers dispostos em as

áreas estruturadas, que estão em vários pontos da cidade, como locais que servem

exclusivamente para complementar a política da coleta seletiva de resíduos já

existentes. Nos ecopontos há containers que recebe até 1m³ de volume destes

resíduos, e estão organizados na mesma lógica das cores que separam os

diferentes tipos de lixo/resíduo: os mais comuns, que são o amarelo, que se destina

a embalagens metal, principalmente tipo bebidas; o azul, serve para depositar papel

e papelão; o verde é para o vidro; e o vermelho para plásticos.

Em Araçatuba o ecoponto é descrito para pequenas quantidades de descarte,

mas dependendo do PEV há ecopontos que podem receber grandes objetos, como

volumosos (móveis, eletrodomésticos), de composição orgânica (poda de árvores,

restos de capina e etc.), eletrônicos (pilhas e baterias) que não necessariamente são

recicláveis, além dos conhecidos resíduos recicláveis (papel/papelão, plástico, vidro,

metal) que está presente em todos os PEV. Nos ecopontos, o munícipe poderá

dispor do material gratuitamente em caçambas distintas para cada tipo de resíduo,

conhecidos como containers. Em resumo, os ecopontos servem como forma de

colaboração da coleta seletiva municipal só que agora realizada pelo próprio

cidadão, pelo membro da comunidade do bairro.

Há pouco tempo, Araçatuba conta com a coleta seletiva municipal em 100%

da cidade. A ação se concretizou por meio da parceria público-privada (PPP)

firmada entre a Prefeitura e a Monte Azul Engenharia Ltda., empresa que está na

vanguarda da prestação de serviços de limpeza pública e privada da região noroeste

paulista (ROSÁRIO et al, 2017 p. 52). Vencedora da licitação, o serviço que antes

atingia por volta de 60% da cidade começou a progredir desde a prestação de

serviço de coleta seletiva, o que agregou mais uma responsabilidade para esta

empresa que também opera o novo Aterro Sanitário Municipal, bem como às suas

conhecidas atividades com os resíduos domiciliares e outros serviços para os

cidadãos araçatubenses14.

14 Idem – Com trabalhadores treinados para esse tipo de atividade, os caminhões específicos da Monte Azul fazem a coleta seletiva em todos os bairros, que estão divididos nos dias da semana de acordo com um cronograma fixo. O secretário Petrônio já havia comentado que nos períodos diurnos e noturnos, de segunda a sexta-feira, a coleta está ocorrendo das 6h às 15h48 e das 16h às 00h48.

45

Para contribuir com a preservação do meio ambiente e, consequentemente,

com a ampliação do tempo útil de vida do aterro sanitário municipal, caberá a

população a preocupação em separar o resíduo seco do orgânico:

Implementamos na Coleta Seletiva a destinação adequada dos resíduos sólidos perigosos, com pontos de coleta específicos para perigosos, como lâmpada com metais pesados, pilhas e baterias, tudo isso menos perfurocortante, e demais, que são resíduos hospitalar e a prefeitura não trabalha (...) Foi feito um treinamento específico com esses trabalhadores da Monte Azul, pois são resíduos contaminados também. Temos recolhido com grandes quantidades (Petrônio, 2018).

Em relação aos resíduos orgânicos, é necessário separá-lo corretamente sem

misturar com outros tipos, para que não prejudiquem a reciclagem dos resíduos

secos e para que os resíduos orgânicos possam ser reciclados e transformados em

adubo de forma segura, como por exemplo, a compostagem. Por este motivo,

alguns municípios, incluindo Araçatuba, têm adotado a separação dos resíduos em

três frações: recicláveis secos, resíduos orgânicos e rejeitos.

De acordo com a Lei nº 12.305/2010 do PNRS, os resíduos recicláveis secos

são, principalmente, materiais metálicos (como aço e alumínio), papel, papelão,

tetrapak, diferentes tipos de plásticos e vidros. Já os rejeitos, que são os resíduos

não recicláveis, são compostos principalmente por resíduos de banheiros (fraldas,

absorventes, cotonetes) e outros resíduos de limpeza. Há, no entanto, outra parte

importante dos resíduos, que são os resíduos orgânicos, que consistem em restos

de alimentos e resíduos de jardim (folhas secas, podas, capina de mato e terrenos

baldios).

Naquela mesma ocasião do meu primeiro encontro com os gestores da

SMMAS, em outubro de 2018, o secretário, havia aludido à necessidade de

ecopontos para atender mais tipos de resíduos:

Construção civil, poda e capina e volumosos, completam como nossos ecopontos estão agora. Antes eram dois tipos, com a entrada da RCC agora são três. Nossa meta inicial é sete e esses já estão em construção (...). “A empresa contratada está construindo por ordem e organização da prefeitura”, proferiu na época (Petrônio, 2018).

Deste modo, os atuais ecopontos visam combater os resíduos gerados por

construções, demolições e pequenas reformas em prédios ou residências (RCC),

árvores e mato (RCO) e móveis, eletrodomésticos, pneus, animais mortos, sucatas

de veículos (RSV) que são jogados de maneira ilegal em avenidas, ruas, praças e

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terrenos baldios, e que têm gerado sérios problemas ambientais para a cidade de

Araçatuba e para a população, comprometendo espaços de lazer e recreação.

Nas cidades brasileiras onde a coleta seletiva se torna uma norma, isto é, por

obrigação para com a PNRS, a implantação referente à coleta seletiva faz parte do

conteúdo mínimo que deve constar nos planos de gestão integrada de resíduos

sólidos dos municípios. Conforme explicita o Ministério do Meio Ambiente15, a PNRS

estabelece que a coleta seletiva nos municípios brasileiros, gerido pelo poder

público, deve permitir, no mínimo, a segregação entre resíduos recicláveis secos e

rejeitos. As respostas com a implementação das PEV e de novos ecopontos,

refletem essa novidade na cidade de Araçatuba.

A adesão recente de município na coleta seletiva não é tão tardia frente ao

cenário nacional. São aproximadamente 30 anos que, institucionalmente, o Brasil

começou a dar os primeiros passos a um novo modelo de gestão de resíduos

sólidos urbanos na coleta seletiva municipal organizada pelo poder público. O início

dessa experiência abarcou cerca de 81 municípios brasileiros com o intuito de gerir

um novo sistema de coleta de material reciclável aliado às ações de trabalho das

cooperativas de catadores/recicladores e indústrias recicladoras de alto nível

(VILHENA, 2013).

Porém, antes que toda essa fórmula da coleta seletiva fosse alçada ao status

de política pública federal16, seja por meio de coleta porta-a-porta, pelo envolvimento

de catadores/recicladores no processo, ou pela coleta nos PEV’s/ecopontos, foi

essencial reconhecer como as representações locais situavam suas práticas de

descarte e coleta, para iniciar uma atividade preliminar de educação ambiental a

comunidade envolvente de modo a ensinar sobre boas práticas de coleta seletiva.

Tais representações, que muitas vezes existiam sob formas degradantes ao meio

ambiente e longe de qualquer ordem de separação correta dos resíduos, terão que

ser deixadas de lado para sempre.

15 PREFEITURA MINICIPAL DE ARAÇATUBA. Disponível em:<https://aracatuba.sp.gov.br/sujao#pev>. Acesso em 08/10/2020. BRASIL. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Disponível em:< https://www.mma.gov.br/cidades-sustentaveis/residuos-solidos/catadores-de-materiais-reciclaveis/reciclagem-e-reaproveitamento>. Acesso em 08/10/2020. 16 A lei nº 5940 da coleta seletiva solidária, chamada “coleta seletiva solidária” é parte da luta por direitos sobre resíduos. Foi assinada em 2006 pelo presidente Lula e decreta que todos os materiais recicláveis produzidos pelos governos federais instituições (universidades, correios e etc) devem ser separados e doados para organizações de catadores (LINDOZO, 2016, p. 29).

47

Para além dos termos técnicos e institucionais, percebemos que o que se

chama de coleta seletiva municipal, existia há muito tempo na prática entre os

trabalhadores humildes que catam/coletam/reciclam, ou até mesmo a indústria

doméstica da “sucata” (CERTEAU, 1994), resíduos como metais, papéis, papelões,

plásticos, vidros e até mesmo material orgânico que, ao serem previamente

separados na fonte geradora, vêm a gerar trabalho e renda, e movimentar o sistema

de reciclagem de uma cidade. Talvez a demora para que o poder público de

Araçatuba tomasse conhecimento dessa proposta de reciclagem já elaborada por

esses sujeitos, se deve ao fato de que:

A coleta seletiva não é uma atividade lucrativa de um ponto de vista de retorno imediato, pois a receita obtida com a venda dos recicláveis não cobrirá as despesas extras do programa. No entanto, é fundamental considerar os custos ambientais e sociais, que podem ser bastante reduzidos (VILHENA, 2013, p. 5).

Por fim, a coleta seletiva atual, mediada como política de reciclagem dos

municípios, absorveu muito dos princípios práticos e as técnicas desenvolvidas por

catadores/recicladores autônomos ou organizados, que estão há anos nesse ramo,

mas que ainda se deparam com os percalços da informalidade, da marginalidade da

estigmatização, e sem o devido reconhecimento. Fora do âmbito da

institucionalização, pode ser observado os mesmo critérios fundamentais seguidos

pela coleta seletiva sobre uma outra aparência, chamada de beneficiamento, que

nada mais é o processo de trabalho que transforma resíduo para reciclável, ou seja,

grosso modo, isso pode ser traduzido pela experiência individual ou coletiva do

catador com separação criteriosa dos resíduos materiais por cor, tipo, tamanho,

densidade e etc.; lavagem, secagem, prensagem, moagem e enfardamento, que são

processos a seguir, dependem de uma organização coletiva e um espaço adequado;

posteriormente, o reciclável como matéria-prima será vendido às indústrias

recicladoras ou aos sucateiros para retornarem ao mercado como novos produtos.

Se hoje a regulamentação da PNRS e a nova Lei do Saneamento Básico17,

precisam advertir das responsabilidades dos municípios na priorização participativa

de cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis na coleta

seletiva, isso colaborou com uma maior organização dos catadores, bem como o

17 “A Lei Nacional de Saneamento (nº 11.405/2007) trouxe a mais significativa alteração legal que pode propiciar um grande salto na inclusão dos catadores. Ela alterou a Lei de Licitações permitindo que municípios pudessem contratar cooperativas e associações de catadores para realizarem coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos sem a necessidade de licitação” (LINDOZO, 2016, p. 29).

48

reconhecimento deles enquanto profissionais que desenvolvem empreendimentos

que lhes garante renda (IPEA, 2013b, p. 22). Vale ressaltar que há mais de 20 anos

uma associação urbana de catadores e recicladores já operava sua coleta seletiva

na cidade de Araçatuba, que seu pioneirismo não apenas deve ser ressaltado nesta

dissertação, mas também pensado como um modelo de gestão associativista de

reciclagem que pode vir a servir a comunidade envolvente.

O FIM DOS “SUJÕES” E AS ATUALIZAÇÕES DO ANO 2019

O logotipo “Sujão? Aqui não!” da SMMAS, surgiu como iniciativa à lógica do

poluidor-pagador. O conceito, que é autoexplicativo, se concentra em apontar um

não ao descarte de lixo ou resíduo em terrenos baldios e áreas verdes. A reciclagem

das embalagens descartáveis pós-consumo são, portanto, um compromisso

conjunto do governo, da população, das empresas, de organizações não

governamentais e associações para assegurar a destinação adequada dos materiais

recicláveis e o fim dos lixões e descartes ilegais, sob pena de multa a qualquer um

dos atores sociais.

No final do ano de 2018 foi estabelecido um acordo contratual da SMMAS

com a COOPERARAÇÁ, uma cooperativa de recicladores araçatubenses, para

operar na célula de triagem e reciclagem dentro do aterro sanitário. Há seis anos na

cidade de Araçatuba e contando com 21 cooperados, a COOPERARAÇÁ alcançou o

reconhecimento da administração pública após mostrar interesse em tocar o projeto

de reciclagem no aterro. Não obstante, a cooperativa em questão decidiu manter

seu espaço exterior, de modo que metade do total de cooperados fique no espaço

do aterro sanitário e mantenham o trabalho e renda sem prejudicar a natureza.

No início de 2019 tive a oportunidade de conversar por telefone com a fiscal

ambiental Jaqueline Casoni, funcionária da SMMAS. Ela adiantou que em breve

será feita uma ampliação do terreno, que possui ao todo 9.242.374,00 metros

quadrados. Hoje o novo aterro sanitário opera para receber todo o resíduo

descartado em Araçatuba, que é de aproximadamente 180 toneladas por dia em

seus 5.609,00 metros quadrados atuais, segundo informações do gabinete da

SMMAS. Com o plano de ampliação, a ser feito em quatro etapas, o objetivo é

garantir o despejo de lixo no local por mais 4 anos, ou seja, uma licença de

operação até 2023.

49

Dentre as viabilizações das etapas, está orçada a modificação do barracão da

cooperativa ali existente, voltada para aumentar a capacidade para disposição de

mais resíduos. O projeto de ampliação do atual aterro de Araçatuba prevê ainda

novos sanitários, portaria, balança e vestiários, a serem feitos nos próximos anos de

acordo com o orçamento público. Conforme a CETESB em Araçatuba, a atual

licença emitida não engloba itens de segurança das instalações, estando restrita a

aspectos ambientais relacionados com as legislações estadual e federal.

Permanecem ainda desorganizadas algumas questões do Centro de

Tratamento de Resíduos (CTR), o nome que deram ao novo aterro. Embora

funcionando normalmente de segunda a sábado, das 8h às 18h, e recebendo

grandes quantidades de resíduos como madeira, plástico, metal, vidro, papel e

papelão, móveis, eletrodomésticos, lâmpadas e baterias domésticas, restos de

capina, jardinagem e poda de árvores, o aterro sanitário, em forma de ‘U’, “onde o

futuro galpão de reciclagem ficará no meio, e contará com peças e tecnologia”(

Lucas Probo, out. 2018) como disse Lucas no final de 2018, ainda não tinha se

cumprido. Foi apenas em setembro de 2019, ou seja, com os cooperados já atuando

no local, é que saiu a ordem de serviço para construção de um barracão para as

atividades da COOPERARAÇÁ, com sede no Aterro Sanitário de Araçatuba.

Por seguir praticamente todas as regras exigidas pela CETESB, como

escavação, terraplanagem, uso de três mantas para proteção do solo, queima do

gás gerado pela decomposição dos resíduos, drenagem do chorume, falta de

presença de aves e possuir cobertura vegetal, o aterro de Araçatuba recebeu

avaliação 9,7 da empresa (Jaqueline Casoi, 2019). Dentre outras regras, no aterro

sanitário está proibido o descarte, a coleta, o armazenamento e o processamento de

lixo industrial perigoso, embalagens de agrotóxicos, óleos lubrificantes, graxas,

pneus e outros resíduos semelhantes, assim como também é vedada a disposição

ou descarte de material decorrente de poda de árvores, entulhos da construção civil,

lixo hospitalar e embalagens de agrotóxicos.

Na discussão sobre o melhor caminho para o descarte dos rejeitos, lembro

que Petrônio mencionou o assunto sobre o Aterro Sanitário com Área de Triagem e

Transbordo (ATT), pois a reforma do aterro indicaria uma ATT diante da

necessidade pela disposição de RCC’s. Este veio posteriormente a se constituir por

50

um decreto municipal específico18. O secretário, ao citar um parágrafo do novo

decreto19, a ser aprovado na Câmara, abordou que:

Ao implantar uma área de triagem de RCC seguindo-se as diretrizes da Norma [ABNT 15.112/04], esta fala sobre a necessidade dos Resíduos da Construção Civil e Resíduos Volumosos em áreas de transbordo e triagem e diretrizes para projeto, implantação e operação (PETRÔNIO, 2018).

Os regramentos da CETESB também obrigam o município a realizar

monitoramento de águas superficiais e subterrâneas, a fim de manter sob controle

os níveis de fumaça de veículos que trafegam pelo local. São elementos que

escapam, até o presente momento, aos avanços tecnológicos que a cidade tem à

disposição, mas é bom lembrar ao leitor que Araçatuba durante muito tempo teve

aquele local como vazadouro. Dentre as normas, ressalta-se que a manutenção das

condições adequadas do sistema de captação de águas pluviais deve ser atendida

sob pena de descontinuidade do aterro.

“NÃO SOU CATADOR, SOU RECICLADOR”

Recordo que estávamos falando do percurso de sua vida até a ACREPOM, sobre as dificuldades encontradas e, mais especificamente, sobre os achados distintos e peculiares que ele encontrou em sua atividade com a coleta de materiais ao longo da vida, quando, de repente ele disse: “Olha, eu não sou catador. Você fica chamando a gente de catador, mas nós estamos como recicladores – interrompeu Baú, um dos associados da ACREPOM, em meio a uma entrevista no primeiro domingo do mês de dezembro de 2018, em sua casa mantida pela associação20.

A repetição mais de uma vez da palavra “catador” para me referir aos

trabalhadores associados da ACREPOM, não era intencional, acontecia

naturalmente no começo do meu contato com eles. Em nenhum momento pensei

que para os associados, a nominação catador estava errado. Depois da surpresa,

Baú se mostra a cópia um carnê contendo o registro como reciclador no cadastro do

Microempreendedor Individual (MEI).

Veja, é assim que estamos cadastrados lá no Banco do Brasil. Todo mês é assim, você paga essa taxa [R$ 51,95, acrescido de R$ 5,00 para Prestadores de Serviço ou R$ 1,00 para Comércio e Indústria] e está tudo resolvido com a questão da aposentadoria. Vai dizer que você não sabia disso? O seu Celestino não te disse nada, André? Até uns anos atrás nós

18 Permite o uso, de forma precária e a título oneroso, da área de terra que especifica para disposição de Resíduos de Construção Civil (RCC). Disponível em:<https://leismunicipais.com.br/a/sp/a/aracatuba/decreto/2017/1935/19355/decreto-n-19355-2017-permite-o-uso-de-forma-precaria-e-a-titulo-oneroso-da-area-de-terra-que-especifica-para-disposicao-de-residuos-de-construcao-civil-rcc>. Acesso em 08/10/2020. 19 Decreto nº 19.355, de 9 de junho de 2017. 20 (Trecho do diário de campo)

51

não tínhamos isso. É uma conquista nova, uma garantia de futuro quando me aposentar21.

Ao observar o documento, com a respectiva taxa do mês quitada, vejo que

inclui a contribuição para a Previdência Social e pagamento de todos os impostos

(federais, estaduais e municipais). Atônito com meu próprio desconhecimento, tanto

pela nomeação de reciclador, como por saber que eles são considerados

microempreendedores individuais, fico sem ter o que responder e terminamos em

outro assunto.

A nomenclatura recicladores me intrigou, pois, em um ano conhecendo, e por

vezes visitando aquela associação, nunca os tinha chamado de recicladores. Quase

todo o tempo, tanto dentro como fora da ACREPOM, junto a eles ou não,

relacionava-os à categoria de catadores em alusão a forma mais atualizada, ou seja,

ora como catadores de material reciclável, ora eram também catadores de resíduos

sólidos urbanos, conforme consta na normativa mais atualizada do Código Brasileiro

de Ocupações (CBO) (DAGNINO; JOHANSEN, 2017).

Sabendo das suas condições como recicladores, ao longo de outras visitas

etnográficas, indagava a eles qual seria a maneira mais correta de chamá-los que

não seja associado. Basicamente as respostas convergiram em: associados em

primeiro lugar, e recicladores em segundo lugar. Despojados, em seu local de

trabalho, os associados não se importam de serem chamados de catadores pois é,

habitualmente, a condição mais versada que os reconhece para além das relações

entre seus pares, bem como o próprio nome que leva a associação não nega o fato

da presença desta categoria amplamente conhecida.

Para os demógrafos Dagnino e Johansen (2017), diagnosticar a classificação

exata sobre a situação do perfil dos trabalhadores com materiais recicláveis no

Brasil era um problema para os pesquisadores e autores até bem pouco tempo.

Mesmo sendo reconhecida e oficializada na CBO em 2002, a dificuldade em

caracterizar corretamente a população de catadores ainda esbarra em confusões e

entrelaçamentos. Havia uma indiferença nos perfis dos catadores de materiais

recicláveis e dos catadores da coleta seletiva de resíduos sólidos no Brasil que não

era refletida. Foi apenas no último Censo (Brasil, 2010) que a categoria “catadores”

ocupou os seguintes títulos e códigos de ocupação:

21 (Baú, 8 de dez. de 2018).

52

Subgrupo principal “96 – Coletores de lixo e outras ocupações elementares”, que contém o subgrupo “961 – Coletores de lixo”, e, dentro deste, os grupos “9611 – Coletores de lixo e material reciclável”, “9612 – Classificadores de resíduos” e “9613 – Varredores e afins” (Ibidem, 2017 p. 116)

Em reconhecimento a atividade da catação de material reciclável e tudo que

pode ser recuperado do fluxo de resíduos daquilo que não pode designá-los

simplesmente como catadores não configura como uma gafe, porém aquela singela

e potente advertência de Baú fez com que eu revisse toda a categoria e atualizasse

o vocabulário para melhor adequar esta pesquisa a realidade mais ampla. Para

tanto, foi preciso revisitar um pouco das origens à contemporaneidade que se

constrói a categoria de catador e suas transformações ao longo da história, pois esta

implica na própria percepção de identidade desses sujeitos cidadãos e

trabalhadores.

REMINISCÊNCIAS ENTRE CAÇADORES-COLETORES E CATADORES

Datados desde o paleolítico, os caçadores-coletores são descritos como

povos que subsistem por meio da coleta de alimentos vegetais, pesca e caça de

animais, sem o exercício da domesticação dos mesmos exceto o cachorro. Essa

definição, de acordo com a Enciclopédia de Cambridge dos Caçadores e Coletores,

é apenas um ponto de partida para entender o sentido de como coletivos humanos,

que tem como base caçar e coletar, é uma das mais bem-sucedidas adaptações da

humanidade, representando a origem que ocupou cerca de 90% da nossa história

enquanto espécie (LEE; DALY, 1999 p. 34).

Os antropólogos Tim Inglod e Claude Meillassoux são taxativos ao afirmarem

que caçadores e coletores, num contexto de relações sociais de bando, produziam

um distinguido modo de produção, pois este termo abrange muito mais do que a

simples coleta de alimentos; se descrevem com práticas, técnicas e ferramentas que

necessariamente são incorporadas nas redes relações sociais e ecológicas

(INGOLD, 1988; MEILLASSOUX, 1969, apud ELLEN, 1994 p. 201).

Muito além do que um simples modo de subsistência, as práticas de caça e

coleta conformam relações sociais de produção. Em conformidade com a tese de

modo de produção catador-coletor de Ingold e Meillassoux, o antropólogo Roy Ellen

(1994) complementa que:

53

Cada rede pode ser conceituada como um modo específico de produção situada no espaço histórico e evolutivo através do qual os seres humanos interagem socialmente para produzir, circular e consumir coisas ou imagens de acordo com o valor. Assim, nenhum modo de subsistência pode ser entendido exceto como parte de uma estrutura socialmente constituída, nem pode ser abordada analiticamente à parte deste contexto, pois é inevitavelmente uma consequência da ação que é em parte proposital e tem suas origens em particularidades sociais e relações de apropriação. As pessoas produzem sua própria subsistência, enquanto a consciência social é parte integrante da produção. Há, então, muito mais ao processo de trabalho do que uma mera sequência de execuções comportamentais (ELLEN, 1994, p. 198).

Ainda que seja um modo de vida que perdura até hoje sob diferentes

aspectos22, mesmo que em escala mínima, o que tem a ver a sociedade dos

caçadores-coletores com os catadores/recicladores do presente em termos de

comparações e similaridades? Ou mais especificamente com os recicladores

associados desta pesquisa? Argumento que, além da questão prática que rememora

uma ação circunscrita à técnica de coletar para sobreviver – que no caso desta

pesquisa são os materiais recicláveis – diversos antropólogos modernos23 ressaltam

a elaboração de um sentido de organização coletiva como parte da adaptação

ecológica, supondo que as pessoas associam-se e envolvem-se em várias formas

de cooperação e compartilhamento, uma vez que partilham da essência da

socialidade humana (INGOLD, 1999, p. 585) e da reciprocidade (MAUSS, 2003) em

relações sociais.

Os pontos acima descritos tangenciam o sentido das formas associativas e

nos convidam a perceber que similaridades, mesmo quando apresentadas em

comparações diferentes no tempo e espaço humano, aparecem com singularidades

nítidas, se reproduzindo dentro de uma associação de catadores e recicladores,

ainda que sob outros aspectos e inseridos a um outro modo de produção totalmente

diferente dos caçadores-coletores do passado e do presente.

22 “Hoje, o número de populações existentes de coleta de alimentos é muito pequeno e sua distribuição é restrita a apenas algumas zonas periféricas: as tundras e florestas do norte circumpolar, florestas tropicais e savanas áridas – em geral, lugares onde o cultivo pode ser praticado apenas com dificuldade. Atualmente, existem menos de um quarto de milhão de catadores de alimentos, representando 0,003% da humanidade. Mas, apesar da escassez de seus números, seus importância para a compreensão da pré-história humana e da evolução social, e para generalizações informadas sobre a cultura humana e a organização social, é imenso.” (INGOLD 1994 p. 201) 23 Ver STEWARD 1955 pp. 122-150; STEWARD 1969 p. 187; TURNBULL 1968; Ingold 1986 pp. 176–177; WINTERHALDER and Smith 1992; BETTINGER 1991 p. 84; SERVICE 1962; LÉVI-STRAUSS 1949; MURDOCK (1949) em On the social relations of the hunter-gatherer band, de Tim Ingold para The Cambridge Encyclopedia of Hunters and Gatherers (LEE; DALY, 1999).

54

A importância dessa experiência histórica e social dos caçadores e coletores

também situa em uma posição que resiste as duras penas, no presente entre formas

contemporâneas que atualizam a categoria de coletor/catador em transformação

com o tempo. Se encarado para além de uma simples ilustração, as linhas que se

seguem poderão ampliar o conhecimento sobre essa categoria de modo a

reconhecer que as dificuldades que esse segmento enfrenta não são de hoje. Elas

adentram no histórico de lutas, com derrotas e conquistas, pelo reconhecimento da

sua identidade como sujeito e cidadão numa categoria profissional construída com

base na realidade do próprio trabalho num contexto de desigualdade social e de

renda24 brutal no Brasil.

CATADORES NA NATUREZA: UMA CONDIÇÃO BIOLÓGICA PARA A RECICLAGEM DA VIDA

O passado humano nos mostra as transformações e as diferentes

configurações do trabalho que hoje chamamos de “catação”. Contudo, tais formas

não são novas nem estranhas à ordem da natureza, uma vez que a existência da

catação e de catadores entre os seres vivos extrapolam os limites de nossa espécie.

Os catadores do mundo animal são tão diversos que, para destacá-los em sua

totalidade, seria necessária uma investigação muito minuciosa das classificações

taxonômicas da biologia.

Os catadores da natureza estão há tanto tempo nessa atividade que,

corriqueiramente, seus caminhos se entrecruzam com os catadores humanos

(PHILLIPS, 2000); são vermes, fungos, insetos, ratos, porcos e outros animais

detritívoros, como os famosos abutres dos lixões (IPT, 1995) que, por exemplo

muitos catadores e recicladores, constatam em suas biografias a competição com a

24 É corrente que a desigualdade de renda esteja dentro do espectro das desigualdades sociais (de renda, moradia, educação, saúde, cultura, participação, cidadania). Ao ressaltar a desigualdade de renda neste paragrafo chamo a atenção para atualização do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2019 em específico a respeito da renda. O relatório lembrou que desigualdade de renda brasileira mostrou que os 10% mais ricos receberam mais de 41,9% da renda total do país. Quando consideradas todas as formas de renda, não apenas as reportadas nas pesquisas domiciliares, as estimativas sugerem que os 10% mais ricos de fato concentram 55% do total da renda do país. Assim, a concentração da renda no Brasil continua sendo uma das mais altas do mundo e de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil está em segundo lugar em má distribuição de renda entre nossa população, atrás apenas do Catar, quando analisado o 1% mais rico. No Brasil, o 1% mais rico concentra 28,3% da renda total do país (no Catar essa proporção é de 29%). Ou seja, quase um terço da renda está nas mãos dos mais ricos. Fonte: UNDP. Relatório de Desenvolvimento Humano, 2019. Disponível em:<http://hdr.undp.org/en/2019-report/download.>. Disponível em 08/10/2020.

55

presença destes nos entremeios das sobras de materiais e de alimentos no antigo

lixão de Araçatuba.

Enquanto os catadores se desdobram em busca do valor de troca que os

resíduos sólidos proporcionam ao serem convertidos por meio da reciclagem, os

outros seres vivos disputam o valor de uso que ainda resta nos resíduos orgânicos

como fonte de alimento e energia. Essa catação se difere muito do humano, pois, o

que lhes interessam, em parte ou exclusivamente, é tão somente o material em

estado de decomposição ou putrefação. É sabido que dentro do ambiente séptico

dos lixões e vazadouros, muitos desses animais são vetores de doenças que podem

afetar a saúde humana (LEONARD, 2011).

Mais para o bem do que para o mal, esses animais prestam um trabalho útil

ao operar uma cadeia muito sui generis de reciclagem, que se traduz na

transformação biológica da matéria morta em matéria viva. Ao digerirem por

completo a podridão expelida pelos organismos mortos, os catadores da natureza

redefinem as bases da cadeia alimentar, retraçam o circuito temporal da vida e

colocam em suspensão a morte definitiva, espaçando as linhas da existência em

harmonia com a continuação do ciclo da vida no planeta Terra (HAWKINGS, 2006).

Das atividades dos recicladores orgânicos, as minhocas se destacam na

reelaboração da transitoriedade da vida, suavizando o status da morte permanente

para afirmar uma nova vida. Basicamente é isso que foi escrito em muitas das

passagens do livro The Formation of Vegetable Mould Through the Action of Worms,

with Observations on their Habits25 (1881) de Charles Darwin, conforme consta na

leitura do ensaísta britânico Adam Phillips em seu livro Darwin’s Worms (2000).

Ao explorar as funções laborais deste tipo de verme, o pai do evolucionismo

biológico rejeitou a associação linguística típica sobre os vermes como carência,

morte, decadência e, em vez disso, os observou em fundamental importância para a

criação e recomposição do mundo (PHILLIPS, 2000). O valor do trabalho destes

sofisticados seres que se ocupam da ingestão e digestão do material orgânico é

conduzir a uma transição de outro tipo, que não é obliterada, mas transformadora da

25 Em tradução livre ficaria: “A Formação de Mofo Vegetal através da Ação de Minhocas, com Observações sobre seus hábitos” (tradução nossa). Entretanto esse livro, ainda pouco conhecido do público, nunca foi traduzido para o português.

56

matéria; uma perda que acaba se tornando um ganho criativo no caminho da

renovação.

Ao louvar o trabalho inesgotável do ser que produz adubo, que torna o solo

humífero rico em nutrientes para fertilizar a terra e energizar a vida vegetal no solo,

Darwin está celebrando a resistência e a criatividade da natureza diante dos

obstáculos que tanto a própria natureza como também, sobretudo, as culturas

humanas, deixaram como restos residuais orgânicos ou inorgânicos. Pode-se dizer

que elas, as minhocas – e porque não também os outros animais supracitados –

substituíram um mito da criação cristã por um mito da manutenção secular, ao deixar

a seguinte indagação: foram os vermes que criaram a terra ou foi Deus? (HAWKINS,

2006, p. 124).

Por fim, o que Darwin encontra nas minhocas é um universo moral muito útil a

servir de questionamento para se pensar a natureza da reciprocidade. Em respeito a

isso, Phillips (2000) conclui que:

(...) uma espécie de generosidade colaborativa, como se as minhocas, ao contrário à sabedoria proverbial, estão do lado da vida. ‘Arqueólogos’, Darwin escreve, ‘deveriam ficar gratos pelas minhocas, pois elas protegem e preservam, por um longo e indefinido tempo os objetos, não sujeito a deterioração, que é jogado na superfície da terra, enterrando-o debaixo de terra’. E as minhocas também ‘preparam o terreno de maneira excelente para o crescimento de plantas com raízes fibrosas e para mudas de todos tipos’. Eles preservam o passado e criam as condições para crescimento futuro. Nenhuma divindade é necessária para estas continuidades tranquilizadoras (op. cit. p. 56, tradução minha).

POÉTICAS DA CATAÇÃO: O TRAPEIRO

A atividade para com os restos e os descartes da produção moderna começa

a chamar a atenção no final do século XIX. Em contraposição à atividade industrial

diurna, alguns sujeitos perambulavam pela noite das grandes cidades na

incumbência de catar restos de coisas materiais abandonados pela lógica produtiva-

consumidora anterior. Consequência da própria modernização nas cidades,

enquanto os proletários das indústrias buscavam o sono dos justos, estes catadores

permaneciam acordados “no rastro deixado pelo desenvolvimento tecnológico e

hiper-capitalista da metrópole global, na urgência constitutiva da subjetividade. Um

homem que resgata o que é desnecessário, inútil e descartado. Um homem que

coleciona trapos” (SILVA; ESTELLES, 2014 p. 8).

57

Despertados para noite das metrópoles, nas ruas e calçadas, entre trapos e

restos de materiais, coletando objetos e coisas não mais úteis a outrem, esses

sujeitos se deparavam com outros grupos sociais, como, por exemplo, a boemia da

época composta por intelectuais, artistas, dândis e as elites da classe burguesa, que

se entregavam ao lazer e a fruição. Pela miscelânea da vida noturna, perambulavam

também os batedores de carteira, varredores de rua judeu, pedintes profissionais,

mulheres da vida, rufiões, tocadores de realejo, artesões esfarrapados, bêbados e

todos demais “tipos sociais” que o famoso conto O homem da multidão de Edgar

Allan Poe 26 já tratou de pormenorizar em intensas descrições sobre os sujeitos

excetuados da ordem capitalista (OLIVEIRA, 2017 p. 74).

Além da burguesia festiva, vez ou outra, algum trabalhador exausto escolhia

permutar a noite de quietude pelo ócio que a anestesia do álcool ou os delírios dos

jogos de sorte-azar proporcionam. Ocultos na multidão da noite fantasmagórica, a

literatura sociológica da época tratou os sujeitos estranhos a rotina do sistema

capitalista como uma “não classe” (MARX; ENGELS, 2007), em virtude de que

escapam o âmbito da definição clássica mais abrangente sobre o conceito classe,

ou seja, burguesia e proletariado (MARX e ENGELS, 2005 p. 40). Desse período de

intensa reflexão, no imperativo de dar conta da realidade com todos os seus

desdobramentos concretos, surge o termo lúmpen para classificá-los.

O próprio conceito lúmpen guarda, em sua origem conceitual, reminiscências

que corresponde objetivamente a atividade do trapeiro, o catador de trapos. Para

além dos sinônimos empregados, a semelhança conceitual se consubstancia com a

própria categoria de trapeiro pois, etimologicamente:

A palavra Lúmpen tem o significado original de “farrapo velho e sujo”, “pano de chão”, mas também é usada no sentido de “andrajo”. Figuradamente, Lumpen pode significar “vadio”, “vagabundo”, enquanto a derivação Lump é usada com o sentido fortemente pejorativo de “escória”, “mau-caráter”, “trapaceiro”. Marx utiliza Lump e Lúmpen para designar o indivíduo vadio, que não se ocupa de nenhuma atividade socialmente produtiva. (N. T.) (MARX; ENGELS, 2007 pp. 558-559).

Ao trabalhar o conceito de lúmpen pela primeira vez em a Ideologia Alemã

(MARX; ENGELS, 2007), Karl Marx reposiciona o termo e articula com o conceito de

proletariado a partir de uma crítica a Max Stirner (1806-1856). Na passagem de O

Único e a sua Propriedade (1845), Stirner frequentemente usa o termo lúmpen; Marx

26 Esses são alguns dentre os mais de 19 grupos sociais diferentes que, ao longo do conto, o narrador flâneur, o autor observador-participante, coleta sobre os passantes.

58

crítica esse uso, e aplica como prefixo, reformulando o conceito para

“lumpenproletariat”. Lúmpen que originalmente significava “trapos” começou se

significar “uma pessoa em trapos”.

No sentido da linguagem anglo-saxônica, anteriormente, a palavra lúmpen, se

conectava a sinônimos como, por exemplo, “ragamuffin” (maltrapilho), que

posteriormente passou a significar “riff-raff’” (algo como pessoas de má reputação ou

indesejáveis) ou “knave” (vagabundo). Segundo o Dicionário do Pensamento

Marxista:

O principal significado da expressão lumpemproletariado não está tanto na referência a qualquer grupo social específico que tenha papel social e político importante, mas antes no fato de ela chamar a atenção para o fato de que, em condições extremas de crise e de desintegração social em uma sociedade capitalista, grande número de pessoas podem separar-se de sua classe e vir a formar uma massa “desgovernada”, particularmente vulnerável às ideologias e aos movimentos reacionários” (BOTTOMORE, 2001 p. 353).

De categoria a conceito, o termo lumpemproletariado se estabelece pela

transgressão da divisão social do trabalho e da rígida dicotomia das classes sociais;

ele então se generaliza, ocupa espaço e se inscreve entre os antagonismos de

classe. Em contrapartida aos estereótipos que perduram sobre o conceito, e através

dos caminhos que trespassam a boêmia, o recolhedor de trapos trabalha como

intermediário representativo de uma espécie de indústria doméstica da rua

(CERTEAU, 1994), passando assim a ser mais bem identificado. Na França tornou-

se o chiffonier, na Inglaterra o ragpicker, e na tradução para o português, o trapeiro

se constituiu como uma identidade graças a um nicho muito especifico de escritores

e poetas boêmios das metrópoles europeias do final do século XIX, fascinados a que

ponto os sujeitos nos limites da miséria humana se expõem (BENJAMIN, 2017 p.

21).

Longe de uma romantização sobre pauperismo deste sujeito perante a sua

atividade ordinária e banal com os trapos, alguns desses observadores que, nos

dizeres de Walter Benjamin foram “os primeiros investigadores do pauperismo”

(Idem), transformaram em personagens de suas obras. O poeta da boêmia,

Baudelaire a frente – reconhecido e reforçado por Walter Benjamin – incorpora uma

experiência urbana de alteridade mínima (CLIFFORD, 2008) muito profunda a

respeito do trapeiro; experiência essa que, ao ser assumida por este poeta francês

sensibilizado, reconhece que o sofrimento da pauperização, advindo da

racionalidade castradora imposta sobre a vida humana na égide do capitalismo, é

59

capaz de levar o sujeito da sociedade sedentária, comum a natureza das cidades,

ao nomadismo urbano, no rastro dos objetos e das memórias deixadas na cultura

material.

Desta forma, o trapeiro passou a servir como inspiração na literatura de Henry

Mayhew e Charles Lamb27 (MOSER, 2017), na fotografia do francês Eugène Atget e,

especialmente, na poesia do também francês Charles Baudelaire. A esse último,

segue uma descrição adequada do trabalho do trapeiro:

Eis um homem cuja função é de recolher o lixo de mais de um dia na vida da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, perdeu, partiu é catalogado e colecionado por ele. Vai compulsando os anais da devassidão, o cafarnaum da escória. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; procede como um avarento com seu tesouro, juntando o entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, voltariam a ganhar forma de objetos úteis ou agradáveis (BAÚDELAIRE, Oeuvres I, p. 249-250 apud BENJAMIN, 2017, p. 81).

OS PROBLEMAS COM NOMEAÇÕES

A palavra usada para denominar as pessoas que catam resíduos é de origem

inglesa, predominantemente chamados de pickers (SAMSON, 2009, p.2). No Brasil,

picker é catador em português, do verbo catar, ou seja, aquele que busca, procura,

recolhe. Em relação ao ofício de catador, em especificação ao objeto, a palavra

pode vir com os seguintes complementos: catador de lixo, catador de papel, catador

de latinha e o atual catador de materiais recicláveis, são alguns dos nomes mais

comuns para se referir ao sujeito cujo trabalho é dedicado a ser catador; este pode

ser também determinado pelo veículo utilizado na catação, como carrinho de mão,

carroça, cavalo ou carro. A este último, a denominação da categoria de catador

passa a ser também chamada de carrinheiro ou carroceiro.

Além de pickers, existem muitos termos usados para se referir a diversidade

de pessoas que resgatam os materiais recicláveis do fluxo de resíduos para venda

ou reuso. Ainda em inglês temos: rag picker, reclaimer, informal resource recoverer,

binner, recycler, poacher, salvager, scavenger, e waste picker; em espanhol:

cartonero, chatarrero, pepenador, clasificador, minador e reciclador; e em português:

27 Em um curto mais potente artigo intitulado “throw me away”: Prolegômenos para uma antropologia literária do resíduo”, o literato especialista em literatura comparada Christian Moser (2015) explora com muito primor a estetização do trapeiro nas obras London Labour and the London Poor de Henry Mayhew e Elia and The Last Essays of Elia de Charles Lamb.

60

catador, catador de materiais recicláveis, recicladores (SAMSON, 2009) – este

último é um termo bem mais recente.

Quando o valor se torna a maneira como as pessoas representam a

importância de suas próprias ações, simultaneamente para si mesmas e para os

outros, de acordo como antropólogo David Graeber, é o que “surge em ação; isto é o

processo pelo qual a "potência" invisível de uma pessoa - sua capacidade de agir - é

transformada em formas concretas e perceptíveis” GRAEBER, 2001 p. 45. A esse

respeito, quando as nomeações não são bem-vindas ou não representam a agência

necessária ao sujeito em seu processo de identificação, os resultados do conceito

de valor terão reelaborados e ressignificados através de muita luta. Enquanto

atuante por uma série de reconhecimentos, a sua identidade de catador/reciclador

está em jogo das relações as próprias circunstâncias e transformações; como

identidades que são, serão sempre relacionais e situacionais (LEACH, 1996).

Em reposta às agregações indesejadas a categoria profissional do

catador/reciclador dentro da denominação de catadores de lixo, os catadores

colombianos, por exemplo, tomaram a atitude de rejeitar a alcunha em virtude de

sua origem depreciativa (MEDINA, 2007). Os catadores colombianos conseguiram

expurgar a palavra gallinazo, que em espanhol significa abutre, e que era associada

para referi-los, devido a compartilharem o espaço do seu trabalho com as aves

detritívoras (MEDINA, 2007, p 155). De acordo com Martin Medina (2007), que

estuda sobre este contexto, ao conseguirem substituir gallinazo e basuriego para

catadores e recicladores, se construíram atitudes das próprias pessoas catadoras

em revalorizar seu trabalho a partir da identificação de uma categoria profissional de

trabalho.

Na Argentina, o termo cirurjas, derivada da palavra cirurgião, era aplicada aos

catadores em tom depreciativo, uma vez que a associação se refere a rasgar ou

cortar os sacos de lixo/resíduo ao invés de abri-los para retirar as coisas úteis à

reciclagem (SCHAMBER, 2006). Em 2002, na capital da Argentina, Buenos Aires, a

legislação municipal tornou a atividade de catador de resíduos legal, e impôs uma

nova classificação de registro profissional:

De acordo com essa norma, essa incorporação deve ser realizada no âmbito de uma gestão abrangente de resíduos que permita a reciclagem, e anular a disposição final com base no enterro indiscriminado em aterros sanitários, como está sendo feito agora. ‘Também afirma que os cartoneros

61

ou cirurjas, que na lei são chamados recuperadores urbanos, deve se registrar em um registro (Registro Único e Obrigatório de Recuperação/RUR) e que, consequentemente, eles obterão uma roupa credencial apropriada para o trabalho’ (SCHAMBER, 2006 p. 79-80, tradução minha).

O que se vê nos dois países vizinhos ao nosso não é apenas a mudança de

um nome, e sim a conjugação de valor sobre outro olhar nas identidades e

nomeações que orbitam o saber-fazer dos catadores e recicladores, que vai para o

íntimo das próprias relações intersubjetivas e volta interessada pelas relações de

alteridade e representação própria pelo seu conteúdo. Esse levante de catadores e

recicladores por reconhecimento é uma resposta justa em prol da categoria

profissional do catador/reciclador.

Nada mais justo para o sujeito catador, que vive no meio da relação paradoxal

entre desigualdade e o ambiente ordenado(r), para nos revelar o valor que:

[A] riqueza produz abundância de resíduos, enquanto a pobreza não o faz; (...) Pobreza encoraja a eficiência na reutilização e reciclagem de materiais residuais, enquanto a riqueza não o faz; e (...) meios de subsistência urbanos construídos a partir da conservação de recursos e reciclagem, ironicamente e tragicamente, se baseiam nas desigualdades de renda e de consumo que persistem (BEALL; FOX 2009, p. 144 apud RIAL 2016, p. 22).

AS ORIGENS DOS CATADORES E RECICLADORES NO BRASIL

A repugnante tarefa de carregar lixo e os dejetos da casa para as praças e praias era geralmente destinada ao único escravo da família ou ao de menor status ou valor. Todas as noites, depois das dez horas, os escravos conhecidos popularmente como “tigres” levavam tubos ou barris de excremento e lixo sobre a cabeça pelas ruas do Rio. Os prisioneiros realizavam esse serviço para as instituições públicas (LUCCOCK, 1951 p.89 apud EIGENHEER, 2009 p. 95).

O trecho acima é um relato de viajante, escrito pelo comerciante inglês John

Luccock, datado do período em que esteve no Brasil, no início do século XIX (1808-

1818). De acordo o livro A História do Lixo (2009), do filósofo, educador e

especialista em resíduos, Emílio Maciel Eigenheer, conta que nos relatos de

viajantes e documentos de jornais e históricos disponíveis, há escritos que mostram

que o padrão higiênico de coleta de resíduos deixou muito a desejar e em nada

mudou do século XVI até XIX. Cabiam aos tigres ou cabungos, nome dado aos

escravos que tratavam dos descartes e dos dejetos como catadores, o transporte

das imundices (EIGENHEER, 2009 p. 95).

Dos trabalhos sujos que os negros africanos da diáspora escravizados eram

obrigados a realizar, o mais sujo, literalmente, era o trabalho dos tigres. Na

62

incumbência de levarem toda a sujeira embora da casa-grande, os tigres

equilibravam pesados tonéis acima da cabeça com os dejetos até despejarem em

lagos, rios ou mares.

Barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro de casa, debaixo da escada ou num outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios e de podres. Às vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés (FREYRE, 2006 p. 550).

Por vezes, partes do conteúdo desses barris, que continham ureia e amônia,

vazavam e escorriam sob a pele negra deixando marcas brancas. A reação química

desses dejetos produzia um tipo de chorume que, inevitavelmente, vazava por entre

as frestas do tonel de madeira. Com efeito, em contato com pele negra, deixava

marcas listradas, com alternâncias de faixas pretas e outras descoloridas, fazendo

com que parecessem como a de um animal listrado, o que refletiu no apelido

pejorativo de tigre.

Concomitante ao período de atuação dos tigres no Brasil, nos países de

origem dos viajantes e aventureiros dos trópicos, mais privilegiadamente na

Alemanha, já contavam com avanços dos sistemas sanitários e de limpeza urbana.

Podemos incluir: limpeza de ruas, sistema de coleta seletiva, locais corretos para a

destinação final dos resíduos, bem como a implementação de taxas municipais para

organizar a coleta e centros de triagem de resíduos; tecnologias e organização,

como veículos de tração animal para coletar resíduos, utilização e reposição de

vasilhames de diversos tipos adequados para o acolhimento do lixo, como inovação

para uma padronização de coleta do lixo e limpeza de rua (EIGENHEER, 2009 p.

75-76).

Gilberto Freyre (2006) associa a exploração desses escravos nas atividades

de catadores urbanos a um atraso do poder público em relação ao interesse na

implementação de sistemas de saneamento e de limpeza no Brasil Imperial. A

disponibilização e o abuso da mão de obra escrava dos tigres eram considerados de

baixo custo, o que retardou o Império do Brasil em criar redes de saneamento

básico, limpeza e escoamento de dejetos, pelo menos nas cidades litorâneas

brasileiras (FREYRE, 2006). O trabalho dos tigres era muito comum na capital da

época, o Rio de Janeiro, dado também que as fossas eram proibidas devido à

proximidade da cidade com o lençol freático. Somente em meados do século XIX,

63

ficou um pouco mais ordenado ao instituir horários, locais determinados de despejo,

barris fechados e carroças para o seu recolhimento, mas ainda assim era feito por

escravos (EIGENHEER, 2009 p. 101).

Os períodos das inovações com o descarte e os resíduos, tidas

modernizantes, chegaram mais tardiamente no Brasil. Durante um tempo, por não

haver sistematização alguma sobre os serviços de limpeza urbana, além dos tigres,

outros sujeitos como prostitutas, prisioneiros de guerra, condenados, ajudantes de

carrascos, coveiros e mendigos tinham como tarefa relegada o árduo trabalho de

retirar resíduos dos olhares das elites e da nobreza, incluso o destino dos cadáveres

(VELLOSO, 2004, p. 25).

Esses seres humanos que trabalhavam sob pilhas de resíduos acabavam

sendo escolhidos de acordo com a subocupação ou com o papel social que

desempenhavam na base da divisão social do trabalho. Ainda que se saliente a

diferença que, no caso dos cabungos, os sujeitos eram negros africanos

escravizados, na passagem de modo de produção econômico colonial para o atual

modo de produção, dos tigres aos catadores de resíduos do século XX houve

mudanças, mas muitas das assimetrias sociais do passado permanecem

conjugadas a profunda desigualdade do presente.

CONSTITUINDO-SE COMO UM CATADOR

Nos estudos sobre o trabalho dos catadores de resíduos sólidos no Brasil,

observações parecidas que ressaltam as hierarquias das ocupações nos postos de

trabalho, a invisibilidade da população negra, as desigualdades de gênero e de

classe se cruzam na biografia comum do sujeito catador brasileiro. Segundo dados

do Instituto de Pesquisa e Econômica Aplicada, o IPEA, cerca de 66,1% do total de

387.910 catadores no Brasil são negros e pardos, ou seja, duas a cada três pessoas

que exercem a profissão de catador se declaram negros ou negras (IPEA, 2013a, p.

44); assim o é na ACREPOM:

“eu sou mulher negra e catadora”, diz com orgulho a coordenadora da associação, Silvinha, tão logo que nos conhecemos no ambiente da pesquisa de campo. Silvinha não está só, com ela Luzimara, Seu Paulo, William entre outros associados da ACREPOM estão na porcentagem de negros ou pardos que trabalham como catadores28

28 (Trecho do diário de campo)

64

Uma vez que não existem registros oficiais ou pesquisas atualizadas sobre a

situação social dos catadores da cidade de Araçatuba(FIORANI, 2018 p. 30-34) 29, o

apoio em dados oficiais do estado sobre a Situação Social das Catadoras e dos

Catadores de Material Reciclável e Reutilizável Região Sudeste (IPEA, 2013b) se

faz muito importante em apresentar quem são esses catadores. Nesse sentido, o

IPEA acrescenta que:

De acordo com o Censo Demográfico de 2010, considerando que o total de mulheres negras e homens negros representam 52,0% da população brasileira, pode-se notar que o percentual dessa parcela da população na atividade de catação é superior ao de negros na população brasileira total. No Sudeste, esse percentual é o segundo menor, chegando a 63,0%, abaixo apenas do Sul (41,6%). São Paulo é o estado com o percentual mais baixo da região, 54,1%. Já o Espírito Santo apresenta a maior representatividade de negras e de negros entre esses trabalhadores da reciclagem, com 75,4% (IPEA 2013b, p. 12).

Os dados não desmentem a sondagem interpretativa a particularidade étnico-

racial dos recicladores associados da ACREPOM. Essa incidência deve ser notada

num quadro muito mais amplo, que tem a ver com o processo histórico de formação

econômica. Para Ianni (1972), na sociedade brasileira pós-abolição, homens e

mulheres que então escravizados, após a recusa imposta pela sociedade racista

brasileira como trabalhadores assalariados sendo preteridos pelos imigrantes

brancos europeus, passaram a fazer parte da base trabalhadora da sociedade,

sobretudo rural, porém para o discurso oficial sua participação foi escamoteada, pois

o negro não poderia ser aquele que passou a ser considerado trabalhador

assalariado ideal e responsável por elevar o patamar da economia brasileira. Não

obstante em obscurecer a base de mão-de-obra produtiva no Brasil, o governo

novecentista passou a fazer propaganda para receber estrangeiros para ocupar este

ou aquele posto de trabalho, de modo que excluísse na prática o histórico do negro

como o primeiro trabalhador brasileiro para beneficiar e associar a condição de

trabalhador assalariado ao homem branco, imigrante e europeu.

29 Numa tentativa de explorar os dados, a jornalista Adrieli Prêto Fiorani, em seu trabalho de TCC (ALÉM DO LIXO: GRANDE REPORTAGEM SOBRE CATADORES DE RECICLÁVEIS), desenvolveu, na pesquisa de campo, uma metodologia para conhecer os catadores de recicláveis no ambiente onde trabalham. A pesquisadora usa como exemplo dois estudos de caso de organização coletiva de catadores, sendo um a associação ACREPOM e a outra a cooperativa COOPERARAÇÁ. Infelizmente nos resultados em nove gráficos diferentes desenvolvidos, não se encontrou nenhum sobre a situação social étnica/racial dos coletivos de catadores/recicladores, o que não retira a importância infográfica pioneira para com os dados sobre a situação social dos catadores de Araçatuba (FIORANI, 2018).

65

Com transporte incluso para o Brasil, os estrangeiros foram privilegiados na

ocupação dos postos de trabalhos braçais já existentes no Brasil rural. Como novos

trabalhadores foram distribuídos nas diferentes fazendas de acordo com que as

demandas industriais no meio rural eram acolhidas. Em relação ao meio urbano, o

contingente de trabalhadores imigrantes fora de fato pioneiros nas bases da

produção fabril. Neste período em que se excluiu e marginalizou protagonismo negro

na sociedade de classes como força de trabalho primeiro no Brasil (FERNANDES,

1978), se inaugura o primeiro processo de industrialização nacional, elaborado como

uma estratégia governamental de incentivo à permanência de imigrantes europeus

brancos para suprir os postos de mão-de-obra nas indústrias (IANNI, 1972).

Na República Velha (1889-1930), as populações negra, parda, indígena e

seus descendentes, restaram apenas demandas de trabalho cujas atividades eram

tão malfadadas quanto aquelas do modo de produção escravagista, dominante nos

períodos do Brasil Colônia (1500-1822) e Império (1822-1889). A política que

estimulou a vinda para o Brasil de portugueses, espanhóis, italianos, japoneses,

alemães, sírios e libaneses no final do século XIX e no início do século XX, resultou

na soma de milhões de novos brasileiros, porém a base da política-ideológica oficial

do governo era apostar de que a leva de imigrantes europeus passariam a contribuir

com a tentativa de branqueamento racial da população brasileira (FERNANDES,

1978). Em paralelo a esse plano racialista, o trabalho assalariado, pago e

privilegiado, ficou associado ao trabalho dos brancos. O negro no Brasil foi relegado

como classe excluída, a ser explorada em serviços braçais, sem nenhum

reconhecimento, num modo de produção onde se sobrepôs mais amargamente a

lógica da exploração, marcando, de maneira deletéria, a vida desses trabalhadores,

inclusive para as próximas gerações.

Na modernidade brasileira, as cidades de médio e grande porte absorveram

esses fatores excludentes para com os sujeitos e reproduziram, materialmente, nas

diferentes formas de habitar os bairros e o centro urbano, condições de segregações

espaciais, sociais e raciais que não só refletem as incessantes desigualdades como

também o sentimento de medo, úteis a manutenção de uma rígida e hierárquica

reorganização simbólica das pessoas no meio urbano. Sobre essa tendência

segregacionista nas cidades, observando de perto o exemplo da metrópole de São

Paulo e a ação dos agentes produtores do espaço e de sua organização, Teresa

66

Caldeira (2000, p. 211) aponta três tipos de segregação socioespacial que

continuam a marcar as relações sociais no espaço social ao longo do tempo. Elas

são respectivamente:

a) Século XIX: imigrantes, trabalhadores e as elites estavam no mesmo

espaço. As principais diferenças se destacam nas questões das moradias:

que a elite burguesa estava nos antigos casarões e os trabalhadores em

cortiços;

b) Início do século XX – 1940: higienistas e sanitaristas médicos pensam,

atuam e modificam o plano urbano de habitações e moradias com base na

questão da saúde pública. Nesse período é que começam a surgir as

regiões periféricas, nos lugares ermos. Há o surgimento da relação de

conflito entre centro e periferia, devido a própria segregação espacial e

social que se engendra a partir desse processo de higienização social.

c) A partir de 1980: acentua-se o processo migratório do campo para a

cidade, advindo do histórico do êxodo rural que se iniciou em 1960. Há um

boom gigantesco de famílias periféricas nas regiões mais afastadas da

cidade. Este é o momento da proliferação das favelas (ocupação do

espaço onde não existe posse legal do terreno).

O CENÁRIO DA PESQUISA

Guardadas as devidas proporções quantitativas, Araçatuba, interior de São

Paulo, qualitativamente também reproduz a geograficamente a lógica

segregacionista padrão que se desenvolveu historicamente. Atualmente com uma

área total de 1.167,126 km² e com quase 200mil habitantes, a cidade cujo nome

possivelmente vem do vocabulário indígena nheengatu ou abanheenga30 31, é a

30 Para o escritor Célio Pinheiro e a jornalista Odete Costa Bodstein, a origem do nome Araçatuba é um mistério. No livro A história de Araçatuba (1997), os autores apresentam outra hipótese que indica que a origem do termo poderia ser o nome da filha de um cacique dos caingangues que dominavam a região antes do início da urbanização. Todavia, afirmam que não conseguem identificar a origem etimológica do nome próprio. Outra possibilidade que os autores aventam seria que Araçatuba tem a ver com o nome de uma corredeira, o ar-haçá-ty-bo, que contraído resulta em haru-aça-tu-bo que, para os povos originários da época na região, identifica o local fluvial onde as águas correm num movimento forte e rápido por um caminho estreito elevado por pedras. Mas o que ficou mais comum mesmo é a referência a fruta Araçá, constatada por antigo engenheiro civil que afirmou que quando fazia as primeiras medições de terra na região de Araçatuba, havia encontrado muitos araçás-silvestres e araçazinhos no local. 31 Na matéria do Jornal A Comarca, de 2 de dezembro de 1964, existe uma contestação sobre o nome da cidade, pois atualmente não existem tantos pés de araçás no município, árvore de fácil

67

junção de UAN=fruta e ÇA=olhos (FREITAS, 1936 apud PINHEIRO; BODSTEIN

1997). Da matriz linguística Tupi, o ara’sá, que quer dizer frutas que possuem olhos

(FERREIRA, 1986 p. 153) foi aportuguesada, tornou-se “Araçá”, revelando assim o

fim do período origem dos povos que habitavam antes da formação como cidade.

A construção da estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que marca o início do

processo modernizante no interior paulista, redesenhou a formação geográfica do

que hoje é a cidade Araçatuba. A execução desta ferrovia fez parte de uma era

político-econômica brasileira que visava a interiorização e a ligação do nosso país

com outros da América do Sul, em busca tanto de recursos naturais, primeiramente

ouro e pedras preciosas, como de recursos humanos para trabalho na agricultura do

café. Povoada antigamente por indígenas, que se referiam a região como abundante

em araçás, ou seja, araçá+tuba (abundância), a cidade evidenciava que anterior ao

primeiro ciclo econômico da cidade, da indústria cafeeira, revela que o local era

ocupado pelos povos Caingangue, juntamente com os índios Coroados, que se

estabeleciam nos limites que margeiam os rios Tietê, Paraná e Paranapanema

(PINHEIRO; BODSTEIN, 1997).

Paralelamente a invasão dos locais dos indígenas no interior de São Paulo,

começa a se alastrar a marcha para o oeste para fins econômicos rurais e interesses

por terras. No clarão da pólvora em meio a mata, dos fazendeiros e agrimensores

contra os indígenas, os bugreiros – homens contratados que matavam indígenas,

invadiam, matavam e ocupavam as suas terras – tinham como estratégia o

enfrentamento armado feito por meio de tocaias empregadas contra os autóctones,

que resistiam da mesma forma. Por onde se desenhava a Estrada de Ferro

Noroeste do Brasil, um vagão de tábuas de madeiras que servia como dormitório e

cozinha dos trabalhadores da ferrovia, marcou o início do processo da modernidade

no interior paulista ao inaugurar oficialmente, em 1908, a cidade chamada

Araçatuba.

Dos grupos de interesses que predominaram no controle dos respectivos

ciclos econômicos do café, do algodão, da pecuária e da atual cana-de-açúcar,

crescimento no tipo de vegetação que compõe toda Araçatuba e região noroeste do Estado de São Paulo. O jornal aponta que em alguns mapas antigos realmente existia um córrego chamado de Araçatuba, mas ao mesmo tempo o local era viveiro natural de muitas araras, o que poderia ter feito que a cidade fosse chamada de Araratuba e, posteriormente, ter tido o nome alterado para Araçatuba

em referência ao antigo rio.

68

perpassam o domínio da aristocracia rural da época até a formação contemporânea

da estrutura agrária compostos por latifúndios, médios e grandes propriedades rurais

para arrendamento de terras e uso de agrotóxico. No contexto da força de trabalho,

as famílias pobres e imigrantes, sobretudo japoneses e italianos e seus

descendentes, formaram a mão-de-obra primeira de lavradores e pequenos

proprietários na região (Idem).

Na história dos ciclos econômicos o que mais predominou e perdurou ao

longo de mais de cinco décadas em Araçatuba foi a pecuária, em específico, a

conhecida pecuária de boi-gordo, ou seja, de gado de corte – motivo de nostalgia

dos citadinos, que lembram da cidade ser conhecida antigamente como a “capital

brasileira do boi-gordo”. Tempos depois, em contexto de crise, recessão e

desemprego, que marcaram as décadas de 1980 e 1990 do intenso neoliberalismo,

“ganhar a vida” como catador era uma escolha possível dentro das possibilidades

restritas para não cair na miséria. A história de vida de alguns dos recicladores

associados da ACREPOM, especialmente na vida daqueles que tiveram contato

com a prática de catação em meio ao antigo lixão de Araçatuba, é o resultado mais

brutal que as restrições do mercado de trabalho podem trazer.

Em grande medida, a história da associação em Araçatuba remonta com esse

contato de resgate dos catadores do antigo lixão, onde muitos não tinham nem ao

menos carteira de identidade ou certidão de nascimento que os identificassem. Edna

Flor, que na época estava como ativista católica, sempre rememora que o ponto

nevrálgico para a construção e continuidade de uma associação de catadores foi

quando o grupo de pessoas que integravam o Centro Direitos Humanos e a Pastoral

da Juventude conheceram de perto a realidade dos catadores do lixão da cidade e

se sensibilizaram com a vida precária, a fome, a miséria, os vícios em álcool e

drogas e a exclusão social.

Celestino José Marques de Oliveira, presidente da ACREPOM, conta que

graças ao trabalho iniciado por esse grupo, dezenas de pessoas foram resgatadas,

pois antes:

Eles separavam os materiais recolhidos e tentavam vender; eram latinhas, plásticos e ferro. A partir da constatação dessa realidade, nasceu a ideia de se fazer um projeto para melhorar a qualidade de vida e cidadania daqueles que são nossos irmãos. Além de fome, a maioria havia perdido documentos e existia um preconceito com relação a eles. Logo no início desse trabalho,

69

a mãe de um dos catadores morreu, literalmente, de fome, não deu tempo de socorrê-la (Celestino 2018).

Ao trocarem a alcunha estigmatizada de catador de lixo para catador de papel

em meados dos anos 1990, esses novos associados da ACREPOM fizeram história

ao terem, coletivamente falando, seu trabalho valorizado, e o resgate mínimo de sua

cidadania espoliada pelos processos mais baixos que as desigualdades sociais

possam produzir. A questão é que a categoria moralmente negativa de catador de

lixo nunca lhes coube. “Nunca fomos catadores de lixo”, disse sorridente Baú, em

uma entrevista, ao contar sua experiência de autorreconhecimento:

Eu acho que eu já era catador de material reciclável antes mesmo de falarem que eu era. Eu só não era chamado assim, mas também se falaram que eu era catador de lixo naquela época que eu estava no aterro, eu não ligo. Nunca liguei. Era encontrar o material reciclável que me interessava (Baú, 8 de dezembro de 2018).

O problema na nomeação da atividade com materiais recicláveis não é

exclusividade do outro, aquele que está distante do catador, mas que não deixa de

identificá-lo. Mesmo próximo a esses trabalhadores da reciclagem, a dificuldade em

objetivar um nome em comum a referente atividade profissional, também incide

entre os próprios pesquisadores e acadêmicos. Até o momento “não há movimento

que desenvolveu uma posição de consenso sobre o assunto. Um problema,

portanto, que permanece sobre o termo a ser usado ao escrever sobre essa

atividade em escala global” (SANSOM, 2009 p. 2, tradução minha).

Quando acessei as lembranças sobre os remanescentes que eram do antigo

lixão, e hoje são associados da ACREPOM, sugere que a ocupação de catador não

tem sido nada fácil. Independentemente de ser no lixão ou não, esta atividade ainda

se desenvolve precariamente com baixos salários, muitas vezes sem registros

profissionais e na inexistência de direitos previdenciários, seguridade social e

garantias para aposentadorias, além das latentes condições de insegurança que

circulam contra esses sujeitos durante o saber-fazer do catador.

A solidariedade entre os seus pares no lixão, e o reconhecimento da penúria

que enfrentavam juntos, amenizavam o duplo estigma que incidem por estarem na

miséria e na proximidade de matéria poluente dos resíduos. Essa dupla

estigmatização que incide sobre a pobreza e a negritude, e que pode vir a se

desdobrar na criminalização da pobreza e na reprodução do racismo estrutural,

70

evidencia as profundas desigualdades geridas por um modelo político-econômico

injusto.

Os discursos e o imaginário em torno do trabalho dos catadores de materiais

recicláveis tendem a apontá-lo como uma atividade “precária”, exercida por sujeitos

em lugares à margem da sociedade, do Estado, da constituição e, em alguns casos,

distante da cidadania e da humanidade. O substrato dessas narrativas fez com que

os termos preferidos por esses trabalhadores para nomear seu próprio ofício fossem

desconhecidos. Igualmente como segue sendo ignorado o crescente número de

resíduos dispensados, os sujeitos e as atividades a eles relacionados, são

retratados nas narrativas a partir das mesmas chaves simbólicas que compreende,

tristemente, o prisma do estigma a partir das condições de existência próxima a

graves entraves econômicos, sociais e ambientais.

Mesmo contando com técnicas e tecnologias de trabalho mais avançadas,

garantia e segurança mínima para a reprodução do trabalho e renda, e o gozo de

uma situação mais confortável que o passado, os associados em questão não se

encontram tão distantes socialmente dos demais que compartilham as atividades

relacionadas com resíduos e materiais recicláveis, e que estão fora da organização

social em cooperativas, associações, movimentos. Por partilharem do estigma que

permeiam o meio em que vivem e ou trabalham, a assimilação de todo esse

contexto recai sob o catador como uma fonte de perigo, de degradação moral, que

corrobora com olhares de suspeição.

A noção de estigma conceitualizada por Erving Goffman é interessante para

melhor compreender a situação de marginalização vivenciada pelo catador de

material reciclável. Para este sociólogo americano, o estigma é um:

(...) atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso. Por exemplo, alguns cargos na América obrigam os seus ocupantes que não tenham a educação universitária esperada a esconderem isso; outros cargos, entretanto, podem levar os que os ocupam e que possuem uma educação superior a manter isso em segredo para não serem considerados fracassados ou estranhos (GOFFMAN, 1988, p.13).

É constituinte da caracterização do estigma, bem como suas aplicações

taxonômicas, uma visão deturpada ou distorcida sobre o outro desconhecido, e

71

sobre as fronteiras das diferenças que nos separam em vez de unir. Ao reproduzir o

sofrimento que essas atribuições possuem:

O termo estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspectiva: assume o estigmatizado que a sua característica distintiva já é conhecida ou imediatamente evidente ou então que ela não é nem conhecida pelos presentes e nem imediatamente perceptível por eles. No primeiro caso, está se lidando com a condição do desacreditado, no segundo com a do desacreditável. Esta é uma diferença importante, mesmo que um indivíduo estigmatizado em particular tenha, provavelmente, experimentado ambas (GOFFMAN, 1988, p.7).

É evidente que o estigma atribuído a esses trabalhadores tem um cunho

negativo, e que nomeá-los como catadores de lixo é um dos efeitos que repousa na

desqualificação desses sujeitos que trabalham e tiram o seu sustento dos resíduos;

é levar a frente uma desconsideração do eu sobre o outro, fundamentado em

julgamentos morais e pré-conceitos em relação a atributos, estereótipos e

linguagens, dentro do que se considera como norma, a ser conservado na estrutura

social e cultural por um coletivo específico em detrimento do outro.

O estigma junto a precarização, no caso dos catadores, é uma força conjunta

que converge contra esses sujeitos. Para o sociólogo Giovane Alves, o próprio

processo de precarização é “condição histórica ontológica da força de trabalho como

mercadoria” e, como tal, a força de trabalho se constituiu como mercadoria,

desconfigurando o trabalho vivo levando-o a um “estigma da precariedade social”.

No entanto, se a precariedade é uma condição, a precarização seria “um processo

social de cunho histórico-político concreto, de natureza complexa, desigual e

combinada, que atinge o mundo do trabalho”, é ele “um atributo modal da

precariedade” (ALVES, 2007, p. 113 a 115).

A importância de repensarmos nas categorias, de como nomear os catadores

de encontro ao que eles se percebem, é importante não porque são relacionados

apenas a lixo, aos resíduos, aos rejeitos, mas porque, sem a devida reflexão sobre o

conteúdo excludente e preconceituoso que há nessas atribuições, o perigo de

estigmatizá-los como bêbados vagabundos e/ou loucos é ainda maior por falta de

conhecimento próximo a essa realidade.

PRIMEIRO PASSO: QUEM SÃO OS CATADORES NA MODERNIDADE?

Por trabalharem com o resíduo das outras pessoas, e exercerem o continuo

papel de lidar com a perda e a separação, os catadores urbanos são afetados pelas

72

atitudes sociais dos outros. O preconceito e discriminação que ainda são sujeitados,

e a evidência de evasão humana em relação aos nossos próprios resíduos,

consequentemente, corroboram ainda mais na dificuldade em reconhecer o papel

positivo do trabalho do catador na sociedade. Um distanciamento social que se se

projetou com base em conteúdos emocionais e bases materiais, no fundo,

“correspondem a uma fuga ao real, a uma recusa de enfrentar a perda, a separação,

e a morte”, onde “o ego desenvolve-se sublimando estes fantasmas” (DOUGLAS,

1991, p. 88).

Na tensão entre a repulsa emocional ou piedade, admiração ou

reconhecimento pela atividade do catador, nosso imaginário social reelabora

diferentes olhares sobre o processo da catação de resíduos e dos sujeitos

envolvidos nisso. O malgrado olhar sob a figura do catador nas cidades, a omissão e

os segredos que envolvem a produção e o consumo de mercadorias, desagua em

conflitos sobre a correta destinação dos resíduos; enfim, de todo esse

distanciamento físico e imposições de fronteiras simbólicas, que tem a ver

profundamente com as estratégias de sobrevivências nas formas de vida na

modernidade, o filósofo Zygmunt Baúman reflete que:

Os coletores de lixo são os heróis não decantados da modernidade. Dia após dia, eles reavivam a linha de fronteira entre a normalidade e patologia, saúde e doença, desejável e repulsivo, aceito e rejeitado, o comme il faut e o comme il ne faut pas, o dentro e o fora do universo humano (...) é a divisa que prediz – literalmente, invoca – a diferença entre eles: a diferença entre o admitido e o rejeitado, o incluído e o excluído (...) Todas as divisas provocam ambivalência, mas esta é excepcionalmente fértil. Não importa o quanto se tente, a fronteira que separa o “produto útil” do “refugo” é uma zona cinzenta: um reino da indefinição, da incerteza – e do “perigo” (BAUMAN, 2005, pp. 39-40).

As formas com as quais os catadores dão para a sua atividade de recolher os

resíduos nas cidades são praticadas desde a antiguidade32 (EIGENHEER, 2009) e,

certamente, o resultado deste trabalho foi absolvido no desenvolvimento de técnicas

urbanísticas para a disposição e o tratamento adequado dos resíduos e dejetos

(WALDMAN, 2010). O filósofo Emílio Maciel Eigenheer, elogia as contribuições do

32 Em meu trabalho de conclusão de curso de bacharel em Antropologia Social e Cultural, intitulado “VIDA OU MORTE DE UMA COOPERATIVA DE RECICLADORES NA PERIFERIA: INTRODUÇÃO AO ESTUDO ETNOGRÁFICO NO CASO DA CRIAS-BGV, PELOTAS-RS” (2015) fiz um breve levantamento histórico-cultural sobre o papel dos catadores, desde a antiguidade até a atualidade, onde procurei demonstrar as transformações dessa categoria ao longo da dialética dos séculos no mundo ocidental. Tal bricolagem histórico-cultural se encontra melhor desenvolvido em Waldman (2010) e EIGENHEER (2009) – ambos os autores e suas respectivas obras, bem como o meu TCC, compõe parte da referência bibliográfica desta dissertação.

73

gerenciamento de resíduos nas cidades da antiguidade que produziam um a

significativa para a limpeza urbana, presente até hoje na tradição ocidental

(EIGENHEER, 2009, p. 20).

As bases práticas de coleta e a catação de resíduos presentes hoje na

modernidade, por exemplo, se firmaram com mais força na era da industrialização

no século XIX (MEDINA, 2007). Entretanto, foi apenas no último meio século que,

devido a condições socioeconômicas estruturantes, de urbanização, colonialismo,

imperialismo e o comércio global de resíduos (O’NEIL et al., 2005, p. 798), um

grande número de trabalhadores de mão-de-obra pouco qualificada, principalmente

nos países em desenvolvimento, adentrou a expansão da atividade de catador como

parte de mais uma atividade precarizada e do setor da economia informal.

A catação de material reciclável feita, por exemplo, pela ACREPOM em

Araçatuba, ou em outras associações e cooperativas do gênero, ou mesmo

catadores autônomos, se dissocia bastante da coleta de lixo, que é

fundamentalmente um trabalho que se preocupa com a remoção da sujeira e o

manuseio na organização desta no meio urbano. Em relação a coleta de lixo, a

atividade é composta por trabalhadores assalariados do serviço de coleta de

resíduos, de limpeza e conservação de áreas públicas, que se complementam com

varredores de ruas (garis), coletores de lixo domiciliar (lixeiro, agente da coleta de

lixo) e coletores de resíduos sólidos de serviços de saúde.

O que une ambos, catadores de reciclável e coletores de lixo, é o meio de

trabalho que envolve contato direto com sujeira ou perigo físico, mas também certa

inteligibilidade que a prática do seu ofício demanda. O conceito de trabalho físico

contaminado proposto por Ashforth e Kreiner (1999) parece ser um indicador

convincente para estabelecer diferenças entre esses dois tipos de ofício, porém,

como a realidade concreta da divisão social do trabalho expõe visões que mais nos

impõe desafios do que comuns acordos, as classificações entre o que é catador e o

que é coletor entram em confusões em dois sentidos interpretativos: primeiro, de

nível de senso comum e, por conseguinte, a nível institucional-acadêmico; ambas as

incertezas precisam ser melhores exploradas, pois, ao reconhecer de fato quem são

(ou foram) os catadores, conhecemos o quão é vigoroso o equilíbrio mantido pelo

seu trabalho em relação ao sistema sócio-econômico-ecológico.

74

Apesar do tema desta dissertação tenha como mote principal o

beneficiamento dos resíduos em materiais recicláveis e o protagonismo das relações

de trabalho dos recicladores na associação, penso que é importante citar essa

experiência histórica e social, presente em formas contemporâneas que estão

atualizando a categoria de catador em transformação com o tempo.

75

CAPITULO 2

Seja no atacado ou no varejo, todos os dias carregamentos de novos

produtos de consumo e bens de necessidades chegam aos montes nos mais

diversos estabelecimentos comerciais. Antes de virem à luz com suas devidas

marcas, atrativos publicitários e destaques nas prateleiras, cada um desses

permanecem indistintos dentro de uma caixa de papelão. Enquanto as qualidades

dos produtos permanecem ocultas em invólucros e embalagens, as quantidades de

caixas e mais caixas se acumulam, e se acumularão por não ser o objeto do desejo

do consumidor.

Se desmiuçássemos a história por trás de cada produto e bens de

necessidades consumidos teríamos a percepção que muitos desses estão presentes

no cotidiano do consumo comum das famílias. Certamente, por estes rastros

chegaríamos a uma conclusão comum de que pertenceram um dia ao espaço de um

supermercado como, por exemplo, o Supermercado Pão de Açúcar de Araçatuba,

um dos muitos parceiros da associação que doa, entre várias coisas, o papelão em

forma de caixas que um dia serviram para proteger produtos antes de chegarem até

ACREPOM.

A simplicidade com que olhamos uma caixa de papelão que serve, a priori,

para proteger o produto de intemperes e danos externos, esconde também as

escolhas do consumo mediada pelo poder de compra e hierarquias de padrões de

opção que, no fundo, representam valores de escala simbólico. Um caso

interessante para nos debruçarmos sobre isso, por exemplo, aconteceu dentro do

supermercado Pão de Açúcar Araçatuba, antigo conveniado da associação em

questão.

É sabido que a rede de supermercado Pão de Açúcar, pertencente ao Grupo

Pão de Açúcar (GPA), se destaca por estar situado geralmente em bairros nobres e

possui foco nos consumidores de perfil cosmopolita das classes de consumidores de

maior poder aquisitivo (popularmente conhecido como classes A e B). Primando pela

variedade e qualidade dos produtos que suas prateleiras oferecem, este singular

supermercado condiciona a estratégia de trabalhar com produtos líderes do reino

das marcas.

76

Embora não se restrinja exclusivamente a classe abastada, o ato do consumo

neste supermercado coloca em evidência um senso de exclusividade e identidade

como um significado simbólico para todos os consumidores que adentram a esse

espaço. O antigo acordo de doação de materiais estabelecida da ACREPOM com

Pão de Açúcar findou-se recentemente (meados de 2018), mas enquanto perdurou,

esta parceria cresceu, inclusive contando com intermediação exclusiva de um

reciclador da associação ACREPOM no ecoponto mantido pelo GPA do lado do

estacionamento desse supermercado.

De acordo com o site da empresa33, em parceria com a gigante multinacional

britânica-neerlandesa de bens de consumo, a Unilever, desde 2001 o Grupo Pão de

Açúcar mantém em suas lojas o que chamam de “Estações de Reciclagem Pão de

Açúcar-Unilever”, ou seja, são pontos de entrega voluntário, os PEV’s, para acolher

o descarte de materiais recicláveis como papel, plástico, metal, vidro, óleo de

cozinha usado, eletrônicos entre outros, sejam de clientes ou não.

Percebi que o reciclador da ACREPOM que cumpre todo o seu horário no

supermercado é um sujeito inibido e de poucas palavras. Além de me reconhecer e

cumprimentar com tímida cordialidade, o nosso pouco contato naquele final do mês

de fevereiro de 2018, num fim de tarde, acabou se restringindo a uma observação

pontual – não uma observação participante como gostaria. Por fim, este encontro

acabou assinalando pontos desconhecidos por esse pesquisador no processo que

antecede o beneficiamento dos resíduos para a reciclagem, a saber, o consumo.

Enquanto observava o reciclador em sua função comum, tentava captar algo

diferente no sentido das ocorrências dos doadores e dos gestos do reciclador.

Porém nenhuma novidade, apenas subscreviam o que me foi antecipado pelo

presidente da associação, o senhor Celestino, sobre aquele ecoponto e as

responsabilidades com os resíduos eletrônicos que chegam no supermercado Pão

de Açúcar circundam as mesmas diretrizes da recepção da doação no galpão.

Como parte da experiência de observação no Pão de Açúcar, entro no

supermercado e, depois de um café e outro na padaria, sigo à deriva pelas

prateleiras. Sem portar carrinho ou cestinhas de compras, tomo certa distância para

33 PÃO DE AÇUCAR. Estações de Reciclagem Pão de Açúcar Unilever: para onde vão os resíduos descartados? Disponível em:< https://content.paodeacucar.com/sustentabilidade/estacoes-de-reciclagem-pao-de-acucar>. Acesso em 08/10/2020.

77

observar as pessoas em seus atos de consumo. Ser apanhado por seguranças ou

consumidores, nesta ação que chamo de voyerismo etnográfico é o que menos

quero. Assim mantenho distanciamento dos sujeitos, capturando os atos de compra

por meio de olhadelas.

Para o antropólogo Daniel Miller, comprar coisas no supermercado não pode

ser apenas uma ação de pura e simples necessidade, e sim é também um ato de

amor (MILLER, 2002 p. 29). Dado que o consumo está numa perspectiva coletiva,

para aqueles sujeitos que compram coisas no supermercado, em específicos

mantimentos alimentícios, pressupõe compartilha posterior que não se limita

somente à saciedade que o alimento proporciona ao grupo familiar.

Miller (2002) levantou que as donas de casa têm essa predileção as compras

em supermercado, pois estão firmemente empenhadas em aferir as preferências dos

membros da sua família ao um melhor modo que una os desejos dos indivíduos e

parentes em orientação a preocupação com alimentos mais saudáveis, ou o que

elas acham que é o melhor para eles, pois dessa forma, o desejo de influenciar o

marido e os filhos se sobressai na equação de preferências individuais e alimentos

comuns e saudáveis do dia-a-dia (Ibidem, p. 30).

Por coincidência, naquele fim de tarde e início de noite, em um dia comum da

semana, contei, por cima, que a maioria do público consumidor era composto por

mulheres adultas, comprando alimentos que fazem parte do universo comum da

cozinha de um núcleo família. Igual a Miller (2002 p. 31), evidenciei também que o

ato de compra de alimentos em supermercados mobiliza muito mais as mulheres do

que os homens, devido ao íntimo do sujeito mulher, em especial a dona-de-casa, de

se orgulhar e se identificar com essa preocupação, como sendo um dos elementos

que compõem os atos de amor. Mesmo sem atestar a veracidade desta tese com os

sujeitos no supermercado, tomei a acepção do autor de que “comprar é antes de

qualquer coisa um ato de amor” (Ibidem, p.32) como um padrão a minha incursão

naquele local.

Ao observar os fatores visuais como idade aparente, roupas e acessórios,

presumi que estes reluzem a sujeitos oriundos da classe média alta, típico dos

frequentadores do Pão-de-Açúcar. Furtivamente, sigo duas clientes no

78

supermercado e observo mais atentamente seus atos de compra. A estas chamarei

de consumidora 1 e consumidora 234.

Consumidora 1: senhora de meia-idade observa os produtos e lê os rótulos com atenção antes de coloca-los no carrinho. São alimentos comuns, como café, arroz, feijão, macarrão, molho de tomate. Em um instante, depois de transitar pelas prateleiras dos alimentos básicos, a senhora vira o carrinho e se encaminha ao final da fila na seção do açougue, possivelmente para comprar uma carne nobre. Enquanto a mesma aguarda ser atendida, chego mais próximo e reparo com mais atenção os produtos que estavam em seu carrinho. Vejo que o diferencial está explicito em marcas exclusivos que compõe àqueles produtos alimentícios rotineiros. Por serem marcas que estampam requinte e sofisticação, como por exemplo, as caixas que contém cápsulas de café expresso da marca Café L’OR, os molhos pesto, quatro queijos e extrato de tomate da Barrilla e ou Taeq, os condimentos do Kit Heinz, todos eles em vidros elegantes ou em embalagens jeitosas e resistentes que pressupõe requinte. Alimentos da linha orgânica também permeiam entre as escolhas dessa senhora: duas caixinhas de 500g/cada de feijão pré-cozido a vapor e mais algumas embalagens arroz integral, parboilizado e uma pré-pronto especial de risoto, quase todos com menos de 500g/cada. Um vidro de suco de uva de 1 litro importado complementava o carrinho – embalagem deste suco, com uma representação idealizada e bucólica da natureza prende atenção. De fato, não eram alimentos tão comuns assim, pois aqueles produtos extrapolam os preços dos seus pares de marcas mais comuns, porém, sem o involucro da marca não são de forma alguma alimentos desconhecidos do grande público familiar. Consumidora 2: uma jovem, acompanhada de um rapaz, se estagnaram na área das bebidas alcoólicas, mais precisamente na estante de madeira rustica, bem cuidada, repleta de vinhos. Deduzo que seja um casal entre 20-30 anos que estão escolhendo um bom vinho. A prateleira da adega com suas centenas de rótulos desnorteia o consumidor menos habitual, mas não era o caso daqueles dois que se focam na parte dos vinhos tintos italianos, conforme a bandeirinha da Itália à frente definia a prateleira eleita. Não hesitam em pegar as garrafas com mãos; permitem-se a sedução pelos rótulos de diferentes regiões, o formato estético das garrafas, observam a marcas das uvas, a procedência dos produtores, enquanto provavelmente planejam quais seriam a melhor das opções. Mesmo próximo a eles, camuflado como um consumidor, não escuto abordagens sobre preços. Em poucos minutos, o rapaz se afasta dos vinhos e de sua companheira, para se encontrar com mais familiaridade na prateleira das cervejas gourmet. Enquanto ele enche o carrinho com os diferentes sabores que cerveja da marca Colorado oferece, sozinha, sem se importar com a não presença do seu companheiro, a moça continua no mesmo processo de observação inebriante sobre os vinhos. Depois de um tempo de apuração, num ato de completa autonomia, ela pega duas garrafas de vinhos italianos – da mesma marca, creio eu –, um em cada mão, e os colocam cuidadosamente na parte debaixo do carrinho, sem misturar com as outras coisas. Por fim, a jovem sugere ao rapaz um queijo gorgonzola para harmonizar com o vinho. Ele concorda com a cabeça enquanto empurra o carrinho rumo ao caixa.

Cenas como estas que reforçam a compra e o consumo de alimentos de

marcas, são comuns no supermercado Pão de Açúcar. O GPA entende que sua

marca tem a capacidade de coadunar ou mesmo transcender os produtos que

comercializam, para além do requinte que o designer da sua identidade visual e

34 (Reflexões a partir de trechos de diário de campo)

79

arquitetura sui generis possa oferecer. No sentido das marcas que seduzem para a

compra e consumo, podemos interpretar que essas são “ações ligadas à

administração das marcas” (MARTINS, 2006 p. 8), conhecidas dentro do âmbito das

culturas organizacionais como branding, faz a união da própria marca desse

supermercado de alto padrão com a comercialização de marcas de produtos

distintos e exclusivos, não deixam a desejar na filosofia da competição e dos

negócios.

No intuito de vender seus produtos, o supermercado em questão aposta em

pelo menos duas visões que estereotipam o consumo, a saber: a visão hedonista

que, sob o prisma da ordem midiática e publicitária, prega o consumo como forma

de prazer, felicidade, sucesso; e a visão naturalista, que associa o consumo na

configuração das necessidades e do desejo (caráter biológico e psicológico)

(ROCHA, 2004 p. 10-11).

Compreendido isso melhor que ninguém, eles investem pesado no marketing

voltado para uma união entre valores econômicos e simbólicos que realçam ainda

mais o poder de extensão das marcas que oferecem para alcançar nichos de

consumidores da vez maiores, como é o caso das cervejas artesanais e sua

disposição em prateleiras especiais.

Na prateleira reservada as cervejas artesanais, havia kits da cerveja Colorado sendo vendidas – as mesmas que foram adquiridas pela consumidora 2. Um desses kits é composto por quatro sabores diferentes com 600 ml cada. Como apreciador daquela marca de cerveja, sou suspeito a elogiar os sabores, mas a título de curiosidade o kit observado trazia as cervejas carro-chefe da marca: a levemente doce, encorpada e refrescante Appia (nome vem do latim que significa mel, composto de mel das flores das laranjeiras); a maltada e com leveduras de alta fermentação chamada Caium (do Tupi que refere a uma antiga bebida fermentada de cereais e mandioca fabricada antigamente pelos índios brasileiros); a Demoiselle, que homenageia um dos aviões inventados por Santos Dummont; por fim, como não poderia faltar, uma IPA chamada Indica, com detalhes de toques de rapadura dentro da formula autêntica da cerveja India Pale Ale (IPA)35. Assim, além dos ingredientes tipicamente brasileiros, essas cervejas

Colorado contam com maltes importados.

Como o escopo aqui não é apresentar uma classificação sobre o gosto da

cerveja Colorado, retornei à minha atenção a questão dos materiais que revestem o

famoso fermentado alcoólico, não sem antes brevemente apontar que, por inflação

das visões hedonistas e naturalistas sobre o consumo neste supermercado, a

35 Todos as descrições dos sabores e ingredientes dessas cervejas foram adaptadas do texto no site da própria Cervejaria Colorado.

80

questão do gosto assume a proeza distintiva ao humano, capaz de criar o consumo

desses produtos como uma “arte”, que transforma o ato de alimentar

profundamente. Ao privilegiarmos o gosto, nos distanciamos cada do alimento como

uma simples manutenção do nosso organismo, para ser capaz de fazer atestar os

dizeres de Brillat-Savarin de que: “1. O Universo nada significa sem a vida, e tudo o

que vive come. 2. Os animais se repastam; o homem come; somente o homem de

espírito sabe comer” (SAVARIN, 1995, p. 15)Do descarte as doações: notas sobre

fetichismo da mercadoria e reciprocidade das doações de resíduos recicláveis a

catadores e recicladores.

Do supermercado para a casa, as relações de afeto e emoções se desdobram

na partilha. A consumidora então pode enfim “expressar seu amor e devoção no

mesmo grau em que consegue trazer à tona os desejos muito específicos e muitas

vezes passageiros de cada objeto individualizado do amor.” (MILLER, 2002, p. 122).

Posteriormente, não haverá apenas a transformação dos alimentos em comida, mas

principalmente a preparo dos alimentos traduzidos como carinho e reciprocidade.

À primeira vista, o material que embala e organiza o kit de garrafas Colorado

lado a lado é feito de papelão, mais especificamente papelão ondulado, também

conhecido como papelão plissado. Embora contenha o mesmo tipo de fibras de

celulose, o papelão ondulado é reforçado por três camadas, sendo duas capas

planas, interna e externa, que abrigam o chamado miolo ou onda. A camada interna

e externa são lisas e tem a função de revestimento e proteção, a camada interna é

levemente mais fina do que a camada externa, já a intermediária, que nomeia esse

tipo papelão, é um enchimento mais volumoso, de maneira a formar uma estrutura

composta por um ou mais elementos ondulados, espessos, que como capas, fixam

uma a outra (PARAIBUNA, 2016 p. 60).

Para além da composição do papelão ondulado que protege, o designer da

embalagem da Cervejaria Colorado tem um caráter muito importante para se

observar:

A capa externa do papelão não está em branco ou o comum bege; das cores amarelas que rementem a brasilidade, da logomarca do urso marrom da Cervejaria Colorado, até a disposição das garrafas para melhor visibilidade dos diferentes rótulos personalizados individualmente ao tipo e o papelão ondulado toma forma de uma maleta com alças, vão além da praticidade instrumental. O decorativo fica por conta de desenhos do Cristo Redentor, de Penas indígenas, do Cangaceiro com óculos e chapéu típico – em alusão clara ao famoso cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, vulgo

81

Lampião, numa espécie de miscelânia artística que busca apreender a totalidade da representação da cultura popular brasileira. Do canto superior direito do kit a mensagem estilizada “Bem menos, beba melhor”36 ao inferior direito a hashtag “#KDoURSO”, a comunicação que conecta com a atualidade tanto da saúde pública em relação ao uso de bebidas alcoólicas37 quanto do universo das redes sociais38. Todos esses elementos do designer não nos deixam com a dúvida de este não é mais apenas um papelão ondulado em forma de caixa que chegam aos milhares na ACREPOM.

No tocante o designer das embalagens, cada vez mais sofisticadas, inclusivas

e requintadas, representa a novidade da atual “terceira Revolução Industrial [que]

corresponde a terceira era do capitalismo artista” (LIPOVETSKY; SERROY, 2015 p.

225). Do gosto de uma cerveja ao invólucro compostos por rótulos e caixas

estetizadas, tudo passa a ser racionalizado de modo a tornar o produto, em

proporções de aparência e estilo, um consumo individualizado e diferente, que

propiciará uma experiência particular não só pelo gosto, mas em grande medida

pelo visual encantador.

Ainda que as cervejas Colorado se baseiem em traduzir o consumo de seu

produto pela ótica da exclusividade, a lógica da mecanização na produção de todas

as mercadorias (caixa, rótulo, garrafa, bebida) alcança produções nacionais e se

prolifera pelos termos das mais amplas variedades estéticas, posteriormente vindo a

influenciar e incentivar o próprio consumo. Na era do capitalismo globalizado

(LIPOVETSKY; SERROY, 2015 p. 235), o consumo da marca Cervejaria Colorado

permitiu que, por exemplo, sua Vixnu, uma IPA com toque de rapadura,

36 Como uma forma de entrar na questão importante da Redução de Danos, a frase “Beba bem, beba melhor” da Cervejaria Colorado é assertiva. Uma propaganda consciente sobre as consequências que o produto que eles comercializam podem causar é uma forma de ser responsável com o consumidor. 37 É sabido que a bebida alcoólica é uma droga lícita altamente prestigiada nos meios de consumo. Por ser uma droga, que pode levar ao vício e causar graves danos à saúde, o álcool é uma questão de suma importância para a saúde pública. Segundo Drauzio Varella, “o conceito de dependência de álcool leva em conta muitos fatores, entre eles o descontrole quando se começa a beber. Concentrar grandes quantidades em poucas ocasiões podem ser prejudiciais”. YOUTUBE. Beber poucas vezes, mas em grande quantidade: Drauzio Comenta #93. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=aH2S8BagG6M>. Acesso em 11/010/2020. 38 As hashtag são tags, ou palavras-chave (relevantes), que se valem dos termos associados a uma informação, tópico ou discussão que se deseja indexar de forma explícita nas redes sociais do mundo virtual. Comumente concatenada a rede social Twitter, o símbolo cerquilha (#) vira hiperlink dentro da rede, indexável assim aos seus mecanismos de busca. Os outros usuários que clicarem na hashtag “#KDoURSO” (ou buscá-lo em mecanismos como o Google) terão acesso a todos que participaram da discussão. Se usada a mesma hashtag com muita frequência no Twitter, essas ficaram agrupadas no menu Trending Topics (ou Assuntos do Momento), encontrado na barra lateral do microblog, que listam em tempo real as frases mais publicadas no Twitter do mundo todo. Num mundo de hoje onde a visibilidade virtual é estratosférica, essa ferramenta é um grande aliado para o comerciante. WIKIPÉDIA. Twitter. Disponível em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/Twitter#Trending_Topics>. Acesso em 08/10/2020.

82

transcendesse as fronteiras nacionais com uma premiação internacional no World

Beer Awards 201639.

O aspecto do designer, que compreende a forma da caixa colorida na

embalagem de papelão que resguarda o vidro ao rótulo chamativo com desenhos

exclusivos, vai muito além de uma proteção e se sobressaem a outros tipos de

produtos do gênero etílico. Ao apostar na variedade e inovação, a Cervejaria

Colorado escapa a homogeneização massiva tão comum as cervejas da AB InBev

porque, se antes a atividade técnica e criativa do designer era meramente

instrumental, hoje eles estão alicerçados a serviço da reprodutibilidade técnica do

estilo (LIPOVETSKY; SERROY, 2016).

Muito mais que futilidades, essas utilidades conferem valor(es) subjetivo de

uso ao produto, mas quando o objeto útil é transformado em mercadoria, em algo

destinado ao comércio, seu valor não mais será medido apenas pela utilidade.

Concretamente, a passagem da produção ao consumo se realiza por meio da

aquisição de mercadorias. Mercadoria, como visto na introdução desta pesquisa, é

um produto qualquer destinado as trocas, que tem valor (ou valores), uma vez que

foi despendido determinado esforço para produzi-lo – valor-trabalho (MARX, 2017).

De igual maneira que a que sua produção exigiu o dispêndio de determinada

quantidade de trabalho humano para confecção de mercadorias, será o mesmo no

processo de valoração dos resíduos para reciclagem. É isso que vai medi-los. O

trabalho despendido na produção do objeto é propriedade objetiva do mesmo: seu

valor. Transformar “trabalho” em unidade de valor exige que se considerem os

trabalhos indiferenciados e reduzidos a trabalho abstrato (MARX, 2017, p 278). Em

outras palavras: alocar trabalhos distintos implica em abstrair as diferenças

existentes, reproduzir as assimetrias de relações de trabalho. entre eles e em reduzir

os diversos tipos de trabalho ao caráter comum que eles possuem como dispêndio

de força de trabalho humano.

Em outras palavras, para a produção de mercadorias se realiza por trabalho

sedimentado, e o mundo das mercadorias, das qualidades, transforma trabalho em

quantidade, substrato igualizante, igualdade qualitativa que identifica o valor de troca

dos produtos.

39CERVEJARIA COLORADO. Disponível em:<https://www.cervejariacolorado.com.br/noticias/index/page:1>. Acesso em 08/10/2020.

83

Por isso, afirmar Marx (2017, p. 149):

Na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens tentam decifrar o sentido desse hieróglifo, desvelar o segredo de seu próprio produto social, pois a determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem.

Se o trabalho no capitalismo é também uma forma de mercadoria, o valor

trabalho é objetificado. Somam-se a mercadoria impressão de a dupla face (valor de

uso e valor(es) – valor de troca). A contradição é que o preço pago ao trabalhador

pelo dispêndio do seu tempo de trabalho acaba sendo inferior ao preço daquilo que

foi produzido durante o mesmo período tempo: o valor da força de trabalho

confunde-se com o valor do trabalho, indicando a ilusão de que o trabalho foi pago

em sua totalidade (MARX, 2017). Duas medidas sinalizam o território das

ambivalências onde são resolvidas as questões de atribuição de valor(es). A maior

valoração da mercadoria em relação ao que foi pago à força que a produziu é a

mais-valor do proprietário-patrão. A ambiguidade é, enfim, o lucro que não será do

trabalhador.

O mundo do trabalho desaparece na enfeitiçada mercadoria. O trabalho

transforma-se em valor e as mercadorias adquirem vida própria, uma vez que sua

origem se torna segredo. Marx descreve esse fenômeno dizendo que:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta, pois, como um estímulo subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma objetiva de uma coisa que está fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho (MARX, 2017, p. 147).

Aliado a publicidade e o marketing, os feitos mágicos do consumo adentram

as nossas dispensas, estão nas nossas mesas e permeiam as relações sociais; as

sobras, ou tão simplesmente os invólucros não consumidos objetivamente, serão

descartados. As caixas de papelão que não forem para o lixo, se tiverem sorte,

poderão chegar como doações a ACREPOM como resíduos a serem beneficiados

para a reciclagem ou reutilização num ciclo de reciprocidade (MAUSS, 2003).

84

Outro parceiro da ACREPOM que doa grandes quantidades de papelão é a

loja Palácio dos Armarinhos. O setor de loja de armarinhos40 pode ser caracterizado

por comércios que vendem objetos utilizados nas atividades de costura e

artesanatos, especialmente itens que serão usados para costura de roupas e

customizações em geral, doa o papelão em forma de caixas que um dia serviram

para proteger produtos como: linhas, agulhas, bordados, fitas, fechos de roupa,

linhas de crochê, linhas para bordado, botões, papéis de presente, envelopes,

tecidos, laços, fitas, papéis e miudezas em geral.

Além do supermercado citados e da loja de armarinhos, caixas de papelão

que entram na forma de doação para associação, vem de muitos outros lugares que

são parceiros da associação. Entre eles destaco: a Santa Casa de Araçatuba,

algumas farmácias do centro da cidade, mercearias e distribuidoras de bebidas

próximas a ACREPOM.

DESFAZENDO AS CONFUSÕES: AS DIFERENÇAS BÁSICAS ENTRE LIXO E RESÍDUO

A ingenuidade do olhar desavisado pode induzir o sujeito observador a

cristalizar o imaginário que a cultura ocidental simbolicamente reproduz sobre os

nossos montantes de resíduos descartados no meio urbano. Se isso acontece, a

ACREPOM, ou outras associações e cooperativas do mesmo gênero, por exemplo,

poderão ser confundidas como simples depósitos de lixo, e pior, em alusão disto,

incorrer na errônea estereotipação do associado-reciclador como catador de lixo,

reforçando assim a marginalização que ainda paira sobre a figura do catador de

material reciclável.

Lixo é o que não trabalhamos aqui na associação. Muitos já conhecem aqui, mas como estou há anos, vivi para ver gente perguntar se trabalhávamos com lixo, ou com limpeza de lixo em casa, de volumosos, sabe? Tem uma placa gigante ali!” – desabafa Alessandra, secretária da ACREPOM, perplexa com uma minoria desatenta. (...) Houve época – continua Alessandra – que no passado, alguns não nos conheciam e tínhamos uma pintura à frente da associação com informações sobre o que recebemos de doação. Hoje já somos bem conhecidos na cidade ( Alessandra, 2018).

40 De modo geral, os armarinhos antes vendiam materiais para suprir a necessidade de pequenas confecções e costureiras em uma localidade pequena. É possível que a origem da palavra armarinho seja referente aos pequenos armários ou estante que as pessoas costumavam usar para guardar materiais miúdos ou peças de roupa ou costura.

85

Mesmo com o letreiro “ACREPOM: A Coleta que transforma” à frente da

associação, há a reprodução de velhos hábitos do descarte na hora da doação. A

confusão que não diferencia resíduos e lixo advém da configuração em que ambos

os materiais sofreram no ato do descarte. Embora cada vez mais raro esse tipo de

confusão chegando a ACREPOM, vale ressaltar que tanto dentro quanto fora dos

estabelecimentos de catadores e recicladores, o lixo permanece como sinônimo de

coisa indesejada ou inútil. Esta categorização é importante e persistente para além

da ordem da separação e classificação das coisas materiais; se levarmos em conta

o sentido figurado da palavra lixo, seu uso representa uma forma pejorativa de

chamamento como, por exemplo, ralé, escória, gentalha, corja.

O universo semântico ocidental daquilo que não presta e é jogado fora, nos

ensina que aquilo que é tido como inútil e indesejável decompõe-se em outros

sinônimos que agregam e resguardam sentidos complementares com a própria

etimologia da palavra lixo, seja esta em inglês (rubbish, waste, trash, junk e

garbage), em alemão (abfall, mull e kehricht), em castelhano (basura), em francês

(déchet), em italiano (refuiti), em catalão (residu), ou:

em português, a origem da palavra lixo é controvertida. Aparentemente procede de lix, palavra latina que significa cinza ou lixívia. A lix se vincula com o afazer dos escultores, que geram resíduos desbastando a rocha com seu cinzel. Consequentemente, dado que o supérfluo foi retirado, faz-se necessário definir o destino do resíduo: qual seja, do lixo (WALDMAN, 2010, p. 18).

A possibilidade universal de sublinhar que a “noção de lixo enquanto ‘resto’,

constitui aspecto axial, é atestado por uma variegada jurisprudência” (WALDMAN,

2010, p.19). Se a chiste de que “existem palavras e conceitos em alemão para tudo”

for verdadeira, por exemplo, o conceito de Abfall41, que significa tanto “resíduo”

como “desperdício” em alemão, a assimilação acaba corroborando em nuances com

“despojos”, “lixo” e “restos”, trazendo à baila as ambiguidades quase irresolutas que

flutuam entre lixo e resíduos.

Por ser tratarem de coisas materiais que, em um dado momento, se tornaram

residuais, o descarte, acima de tudo, revela o ponto de vista da exclusão humana

41 Pode-se explorar mais além do que tão-somente semelhanças linguísticas do nosso “lixo” com “Abfall” dos alemães. Através da lente de uma antropologia estruturalista levistraussiana, explicações sintéticas universais que dizem sobre nível do inconsciente das relações entre termos (LÉVI-STRAUSS, 2008), que escapam as essencializações da etimologia da palavra, que vai além das substancializações em termos sinonímicos, enseja a compreensão que a expressão lixo pode não necessariamente estar conotada por sentidos negativos, ainda que sua soma de valor possa tender ao zero.

86

sobre o material que se segregou. Waldeman ratifica que tais acepções imputadas a

estes elementos residuais (lixo e resíduo) podem indicar outras redes de

significados, tamanho é o caráter ambíguo daquilo que se descarta (WALDEMAN,

2010, p. 18). Porém há certa equivalência cultural entre lixo e resíduo que não está

apenas na esfera dos enunciados; a reprodução pelo senso comum que descarta,

atesta uma veracidade prática indiferente sobre aquilo posto na lata de lixo, mesmo

que nem tudo que foi descartado consiste em lixo em absoluto.

Individual, ou coletivamente, das mais comuns as mais diversas e

indescritíveis, as coisas materiais são jogadas fora, rejeitadas, descartadas aos

montes em um ritmo colossal. Os últimos dados compilados pelo Panorama dos

Resíduos Sólidos no Brasil 2018/2019 da Associação Brasileira de Empresas de

Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE)42, mostra que no ano de 2018 o

Brasil gerou 79 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos, volume suficiente

para encher 546 estádios do tamanho do Maracanã, o maior estádio do Brasil43. São

números que crescem a cada ano, em média 1% em relação ao ano anterior (2017),

desse montante:

92% (72,7 milhões) foi coletado. Por um lado, isso significa uma alta de 1,66% em comparação a 2017: ou seja, a coleta aumentou num ritmo um pouco maior que a geração. Por outro, evidencia que 6,3 milhões de toneladas de resíduos não foram recolhidas junto aos locais de geração (ABRELPE, 2019 p. 11).

Para desfazer as ambiguidades do que está sendo descartado, foi preciso

observar que todo material tem aparecido como lixo nas sociedades sempre vem

acrescido com significado de substância negativa e desprezível – uma sutil diferença

que será fundamental na demarcação do que é resíduo e sua possiblidade de ser

reciclável. Nesse sentido, tampouco podemos nos esquecer dos agentes que dão

42 Importante ressaltar que este Panorama, oriundos de fonte primária, compilados e tratados com base em critérios científicos, continua sendo o único relatório de âmbito nacional com números atualizados anualmente. Em vista a consistência alcançada, e das informações do Panorama da ABRELPE terem sido referendadas por diversos estudos acadêmicos, pesquisas e publicações subsequentes, esta dissertação não poderia deixar de elencar os dados da ABRELPE ao longo do texto. Segundo a apresentação do Panorama ABRELPE 2018/2019, este documento “é a única publicação do país sobre gestão de resíduos sólidos que traz um cenário nacional e cenários regionais consolidados, com indicação das tendências e dos desafios para esse setor, nos diferentes âmbitos de sua aplicação. Dessa forma, facilita a estruturação e a implementação de ações, programas e políticas públicas que permitam superar os déficits observados e fazer os avanços necessários para atendimento da legislação vigente e das novas demandas da sociedade” (ABRELPE, 2019 p. 5). 43G1. Reveja o primeiro episódio da série 'Parte de VC', 2019. Disponível em:< https://redeglobo.globo.com/sp/tvtem/noticia/reveja-o-primeiro-episodio-da-serie-parte-de-vc.ghtml>. Acesso em 08/10/2020.

87

conta do reordenamento das coisas fora de lugar, do descarte, pois são eles que

reclassificam e ressignificam alguns sentidos que passam despercebidos na

miscelânea lixo-resíduo existentes no descarte desatento.

O descarte irregular que vemos nas ruas, calçadas e terrenos baldios, que

altera expressivamente a paisagem, a estética das cidades e serve de rótulo ao que

não queremos mais. Independentemente de uma possível utilidade futura para além

da definição categórica sobre a matéria não desejada, lixo e resíduos são

decupados pela prática da catação, separação e tratamento realizado por setores

especialistas. Por conseguinte, se distingue outras significações, congruente a uma

visão padronizada e institucional que vem sendo adotada em manuais, programas e

estatutos sobre tratamento de resíduos e lixo mundo a fora. Não à toa, a questão do

lixo passou a ser debate da Organização Mundial de Saúde (OMS) desde o final dos

anos 1990, que pondera o que é lixo para além da arbitrariedade do ponto de vista

do sujeito que descarta, reconhecendo o olhar do especialista para intervir na

separação e destinação correta (PNUD, 1998).

Deste mesmo modo, fica justaposto ao significado econômico que tipifica o

“lixo” tudo o que se joga fora, seja objeto ou substância que se considera inútil ou

cuja existência em dado meio é tida como nociva (WALDEMAN, 2010) é, portanto,

um não valor. Em resumo, o lixo é qualquer coisa que seu proprietário não quer

mais, que foi descartado em certo espaço e um dado tempo e que para outrem não

possui nenhum valor de conteúdo mercadológico na futura troca comercial.

Identificado o conteúdo de valor do lixo como nulo, as visões sobre este

fenômeno proporcionam uma síntese da sua forma, que compreende: aparências de

pestilência e de sujidade na construção de situações ameaçadoras. Essas são

características fundamentais que fazem parte do imaginário judaico-cristão, onde os

aspectos de negatividade são anunciados e tratados dentro do plano do impuro

(DOUGLAS, 1991) e, não raramente, relacionados com o bestiário dos seres

maléficos, demoníacos e infernais. De forma tácita às regras inescrutáveis do lixo

são apresentadas na bíblia:

Providencie um lugar fora do acampamento para suas necessidades. Junto com o equipamento, tenha sempre uma pá. Quando você sair para fazer as necessidades, cave com ela e ao terminar, cubra os excrementos. Lembre-se que Javé seu Deus anda pelo acampamento para protegê-lo e entregar seus inimigos a você. Portanto, o acampamento deve ser santo, para que

88

Javé não veja nada de inconveniente e não se afaste de você (DEUTERÔNOMIO, 23: 13-15).

Para os herdeiros da cosmovisão monoteísta, sobretudo judaico-cristã,

resíduos se confundem a lixo, pois acabam se vinculando “à classe das substâncias

impuras, nojentas, imundas, devendo ser mantidas à distância das comunidades

para que estas se beneficiem da benevolência do supremo criador” (WALDMAN,

2010 p. 26). Não raro, asseveramos que os descartes devem ser feitos com certo

distanciamento devido a sujeira associada a coisa material desordeira, à priori, por

ser inservível e inferior.

As questões negativas que conectam a sujidade com o descarte, se

apresentam com muita força no desenho urbanístico das primeiras cidades. Situado

no universo linguístico hebraico, a palavra Gehena ou Gehinom é sinônimo bíblico

para inferno, e deriva diretamente em referência ao antigo Vale de Hinnom. Nas

cercanias de Jerusalém, longe dos muros da cidade sagrada, a situação do vale

representaria o profano. Neste local, onde circulavam sujeitos estigmatizados e

doentes terminais, se realizavam o descarte de carcaças, cadáveres de criminosos e

doentes, e todos os elementos da sujidade que proviam de Jerusalém e região, que

eram descartados e queimados, atiçados com enxofre pelos hebreus para que o

fogo se faça naturalmente (Idem).

As descrições do passado mencionadas acima remontam perfeitamente o

arquétipo do que há tempos conhecemos como lixão. Quer seja ele antigo ou

moderno, sua mera lembrança, ou sua cruel existência, inunda a nossa memória,

trazendo consigo os significados simbólicos a ele atribuído e reificado,

representando assim as mais profundas conexões com as marginalidades e os

estereótipos; pior, quando não estão sob a forma condensada de lixão, podem se

encontrar materializados ilegalmente, como as modernas reminiscências de

fragmentos que são despojados próximos de centros urbanos, áreas rurais, vilarejos,

bairros afastados, ou mais comumente, em meio a terrenos baldios e matas

florestais.

No Brasil, o descarte irregular nos locais não apropriados representa hoje em

dia 40,5% do todo descartado que é:

Despejado em locais inadequados por 3.001 municípios. Ou seja, 29,5 milhões de toneladas de RSU acabaram indo para lixões ou aterros controlados, que não contam com um conjunto de sistemas e medidas

89

necessários para proteger a saúde das pessoas e o meio ambiente contra danos e degradações (ABRELPE, 2019 p. 11).

O sentido que provoca a desordem do descarte é consequência direta do mal

gerenciamento das coisas consumidas, mas, independentemente disso, esta

atribuição está fortemente integrada à estruturação da vida social, e se inscreve até

os dias atuais como uma ordem frente ao caos indômito.

Das experiências penosas de ordenação frente ao caos que as aparências

nada afetivas dos descartes desordenados provocam, o argumento estrutural do

arqueólogo Leroi-Gourham de que:

O primeiro momento da evolução em que aparece a figuração é também aquele em que o espaço do habitat é abstraído do caos exterior. ‘O papel do homem organizador do espaço traduz num ordenamento sistemático’ (LEROI-GOURHAM, 1965, p. 130).

Parece apropriado que para garantir nosso modo de organização de sentido

no mundo, buscamos a preferência pela ordem, do que ser caótico (DOUGLAS,

1991). Porém, mesmo com as incontáveis transformações culturais que desaguaram

pelo processo civilizador da Modernidade, o embate dialético entre “lixo” e “resíduo”

continua vivo para além dos vocábulos e dos fatos históricos; abrange

principalmente, as práticas e simbologias a eles associados. Em suma à ordem, o

lixo acabou virando “aquilo que se varre da casa, do jardim, da rua, e se joga fora;

entulho; tudo o que não presta e se joga fora; sujidade; sujeira; imundície; coisa ou

coisas inúteis; velhas; sem valor” (FERREIRA, 2004, p. 520). Neste sentido, a

retificação da qual se discerne “lixo” de “resíduo” começa a aparecer no uso da

linguagem corrente e dos fluxos práticos (CALDERONI, 2003).

A DIALÉTICA DOS RESÍDUOS NA PRÁTICA: CONCEITOS E CLASSIFICAÇÕES

Por Mary Douglas (1991), vimos que a sujeira aliada como sentido residual

está vulgarmente associada como lixo. À medida que Michael Thompson consente

com essa perspectiva, ele a rompe e disserta sobre a possibilidade das qualidades

dos objetos, muito mais pelo seu conteúdo do que por sua forma (Ibidem, 1979, p.

97). Segundo Thompson (1979), as coisas são distinguidas entre “objetos

transitórios”, que sofrem ação do tempo e diminuem de valor (exemplo, alimentos

perecíveis, tecnologia antiga), e “objetos duráveis”, que aumentam de valor ao longo

do tempo (exemplo, antiguidades e raridades).

90

O gradiente de valor de um objeto descartado é transitório e declina até virar

pó. Quando não desliza para a categoria de lixo, este pode ter a possibilidade de ser

redescoberto e ter uma sobrevida de uso como produtos vintages, reutilizados em

novos valores-de-uso, ou se reinventar pelo potencial valor-de-troca que os resíduos

recicláveis possuem quando destinados a confecção de novas e diferentes

mercadorias. Essa fronteira de possibilidade permeável entre lixo e resíduo se

transforma de acordo com as convenções culturais, ou na dependência das

respostas às pressões sociais que, imbuídas de interesses e poder, conseguem

modificar as condições de usos e valores a seu favor (Ibidem, pp. 7-11). Em face de

status de valor, sujeitos e coletivos de catadores e recicladores não permutam

resíduos por lixo.

Na contramão do senso comum, enfatizo que “lixo” e “resíduo” são distintos,

principalmente, do ponto de vista das lógicas econômicas, sendo o lixo sem valor de

uso e valor de troca, e o resíduo o contrário desse; o resíduo pode ser

potencialmente útil e viável economicamente em ambos os espectros de valores, já

o resíduo não, aonde a distinção vai de encontro as qualidades observáveis e

concretas que possibilitem as trocas comerciais, ou seja, de restituir novos valores

de uso e/ou valores de troca. Neste mesmo sentido, destaca que lixo e resíduo não

podem se confundir, pois, diferentes do lixo, os resíduos surgem das atividades

humanas coletivas e que, mediante as ações transformativas (reciclagem,

reutilização, ressignificação e etc.), agregam valores que vão além dos econômicos,

são valores sociais e ambientais (ROMANSINI, 2005). De qualquer forma, a

literatura apresentada até o momento sobre o conceito de lixo, resume que estes

são as sobras que foram jogadas fora, as quais não possuem mais utilidade e nem

atribuição de valor.

O resíduo sólido surge também como um termo mais técnico, definido e sem

as conotações negativas que a palavra lixo carrega como os palavrões, os jargões e

as simbologias – como visto no tópico anterior, descrevem as intercorrências

desfavoráveis. Não é por mera preferência que a literatura especializada e a

legislação incluíram a lei e o decreto referentes ao Plano Nacional de Resíduos

Sólidos em suas observações, e sim, mais especificadamente, em resposta as

transformações socioculturais globais, tipicamente de origem da modernidade, de

origem da dialética do descarte.

91

Na qualidade dialética, o novo conceito de resíduo, ou mais apropriadamente,

resíduos sólidos, são a antítese conceitual que se depara com a tese da categoria

lixo na disputa a ser superada por uma síntese que solucione o próprio problema

dos rejeitos jogados fora. A partir da leitura de Leandro Konder sobre a “Dialética da

Natureza” em Frederich Engels – uma condição prévia da existência da dialética

humana (ou pré-dialética) – é possível reduzir, no essencial, a três leis gerais que

concluem a proposta dialética como um todo, são elas (KONDER 2008, pp. 55-57):

1) lei da passagem da quantidade a qualidade (e vice-versa);

2) lei da interpenetração dos contrários;

3) lei da negação da negação.

Arbitrárias e reduzidas em três leis, o materialismo dialético em Engels tem

suas limitações (KONDER, 2008 p. 58)44. Todavia, do modo teórico de como está

disposto, é possível observar empiricamente o efeito da dialética que o caso do

embate do lixo com resíduos sólidos projeta uma transformação de tendência a

afirmar a receptividade que temos hoje a respeito do conhecimento e das práticas

que envolvem reciclagem e reutilização dos resíduos sólidos. Em reconhecimento ao

potencial de síntese dessa equação dialética (tese-antítese), os resíduos sólidos

passaram a ser chamados também de materiais recicláveis ou reutilizáveis, pois são

matérias-primas que irão compor novos produtos, ou gerar energia, restituindo

valores e utilidades pertencentes as mercadorias que consumimos hoje, e diante

disso precisam atender a novas classificações.

AS CATEGORIAS DOS RESÍDUOS: CONVERGÊNCIA DE CONCEITOS E CLASSIFICAÇÕES

Profissionais como os da ACREPOM que lidam com o tema da reciclagem,

principalmente nas questões práticas constatam o crescente uso da nomenclatura

“resíduos sólidos” ao invés de “lixo”, e isso vem perpassando tanto nas áreas

técnicas, como na administração pública e, aos poucos, na sociedade em geral. Dias

(2002) enfatiza que, na atualidade, o termo “lixo” tem sido objeto de releitura teórica

44 Para Leandro Konder, o brilhantismo de Engels em desenvolver o conceito de dialética (da natureza), como leis é arbitrário e possui limites por duas razões: primeiro, os próprios princípios da dialética não se prestam muito bem as quaisquer codificações e, segundo, os exemplos de Engels sobre a dialética não estão pautados nas ciências exatas, e sim nas ciências naturais, sendo estas posteriormente absorvidas pelas ciências sociais através da práxis dos processos revolucionários que a encapsulou como tendência política a ser seguida (KONDER, 2008 p. 58).

92

nos meios acadêmicos, sendo conferidas novas vertentes as classificações de

determinado material ou coisa sempre julgada como “inútil”, modificando assim da

“cultura do lixo” para a “cultura dos resíduos sólidos”, ou seja, quando os resíduos,

tornam-se matéria-prima alinhada ao potencial de reaproveitamento. Para Waldman

(2010), nas últimas décadas o termo “resíduo” tem sido constantemente utilizado

para além da codificação jurídica e do mundo técnico-operacional, expandindo-se no

espectro social, o que decorre de uma percepção crescente que visa outra

possibilidade ao fim do descarte, passando assim a ter um cunho menos negativo do

que a noção estanque do descarte como “lixo”.

Do ponto de vista do poder público em geral, no que tangencia sua

responsabilidade na gestão dos resíduos, a autoridade municipal precisa saber e

reconhecer qual foi o processo ou atividade, são suas partes constituintes e

características, que originou o descarte de resíduos. Para tal, além das

conceituações, os resíduos sólidos passam a serem classificados, ordenadamente

em dois sentidos complementares, que é quanto a sua origem geradora e quanto ao

nível de periculosidade ou risco que apresentam para a saúde e à ecologia.

Classificação quanto à origem, a lei 12.305/2010 agrupa os resíduos sólidos

que seguem (BRASIL, 2010a, art. 13):

a) Resíduos domiciliares (RSD) ou resíduos sólidos domésticos;

b) Resíduos de limpeza urbana ou simplesmente resíduos públicos;

c) Resíduos Sólidos Urbanos (RSU);

d) Resíduos de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços ou

apenas resíduos comerciais;

e) Resíduos dos serviços públicos de saneamento básico que está aliado a

Estações de Tratamento de Água (ETAs) e a Estações de Tratamento de Esgoto

(ETEs);

f) Resíduos industriais;

g) Resíduos de serviços de saúde (RSS), conhecido antes pela alcunha de lixo

hospitalar;

h) Resíduos da construção civil (RCC), no passado chamado de entulho;

93

i) Resíduos agrossilvopastoris ou resíduos agrícolas;

j) Resíduos de serviços de transportes; k) Resíduos de mineração.

Classificação quanto à periculosidade, para o manejo seguro e destinação

final correspondente aos resíduos inseguros. Com essa finalidade, a lei 12.305/2010

e a norma NBR 10.004 (BRASIL, 2010a, art. 13; ABNT, 2004, p. 3) atestam:

a) Resíduos perigosos: que são aqueles que, por razão de suas características

de concentração de elementos químicos, propriedades físicas e substância

biológica, podem acarretar ou favorecer risco de morte ou incidências de

doenças graves, incapacitantes ou irreversíveis (BRASIL, 2010, art. 13);

b) Resíduos não perigosos e não inertes: que por terem propriedades como

combustibilidade, biodegradabilidade ou solubilidade em água, dependendo das

condições como são manuseados, podem oferecer risco à saúde ou ao meio

ambiente (ABNT, 2004, p. 5);

c) Resíduos não perigosos inertes: que são aqueles resíduos que não dissolvem,

não inflamam e nem degradam quando dispostos no solo, mas oferece risco

devido ao grande volume gerado em sua produção e consumo, tais como restos

de construção, entulhos de demolição, pedras e areias retiradas de escavações,

vidros e certos tipos de plástico e borracha (ABNT, 2004, p. 5).

Outros entendimentos e classificações que compreendam a nova realidade a

referida situação de transformação que distingue lixo de resíduo, pode contribuir

para uma mudança de paradigmas e atitudes na sociedade, aproximando-nos da

problemática socioambiental e geoglobal dos resíduos sólidos, bem como a nossa

participação na perspectiva compartilhada do ciclo de vida dos produtos (produção,

consumo e descarte), da gestão pública e do poder político. A institucionalização

político-ideológica desses aspectos ajuda na criação de metas importantes que irão

contribuir para a eliminação dos lixões e institui instrumentos de planejamento nos

níveis nacional, estadual, microrregional, intermunicipal e metropolitano e municipal;

impor que estabelecimentos particulares ou privados elaborem seus Planos de

Gerenciamento de Resíduos Sólidos, também assenta o Brasil em patamar de

igualdade aos principais países desenvolvidos no que concerne ao marco legal e

inovador como a inclusão de catadoras e catadores de materiais recicláveis e

reutilizáveis, tanto na Logística Reversa quando na Coleta Seletiva. Além disso, os

94

instrumentos da PNRS ajudarão o Brasil a atingir uma das metas do novíssimo

Plano Nacional sobre Mudança do Clima.

O economista brasileiro Ricardo Abramovay (2013) vai mais além. Para ele,

termos como responsabilidade compartilhada dos geradores de resíduos (que sinaliza

o compromisso que vinculará o Estado, empresas e consumidor na separação e

destinação correta do lixo e do resíduo), poluidor-pagador (lógica de vigiar e punir) e

logística reversa (estrutura que buscará lógicas para recolhimento e reciclagem dos

produtos no pós-consumo) ainda são desconhecidos do grande público, mas, em

breve, tornarão parte do cotidiano dos brasileiros, propondo então uma nova era na

destinação dos resíduos sólidos.

As alterações do paradigma na abordagem dos resíduos estão presentes na

Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) no Brasil45

É bastante atual e contém instrumentos importantes para permitir o avanço necessário ao País no enfrentamento dos principais problemas ambientais, sociais e econômicos decorrentes do manejo inadequado dos resíduos sólidos. Prevê a prevenção e a redução na geração de resíduos, tendo como proposta a prática de hábitos de consumo sustentável e um conjunto de instrumentos para propiciar o aumento da reciclagem e da reutilização dos resíduos sólidos (aquilo que tem valor econômico e pode ser reciclado ou reaproveitado) e a destinação ambientalmente adequada dos rejeitos (aquilo que não pode ser reciclado ou reutilizado).

Os recicladores da ACREPOM estão cientes dos aspectos mais elementares

que ocorrem no interior dessas mudanças. São conhecedores desta não pelo estudo

ou leitura formal das normativas técnicas e jurídicas, ou da sua inclusão ou exclusão

da plataforma institucional para destinação e tratamento dos resíduos sólidos na

sociedade, mas pelos treinamentos, reuniões regulares que os capacitam ao

trabalho e, mais preferencialmente, para a maioria desses associados, pelo próprio

histórico de vida que cada um tem para com suas próprias práticas acumuladas e

compartilhadas dentro e fora do galpão.

A princípio, sobre esse conhecimento local, tal como não aparece uma única

vez a palavra lixo na lei e nem decreto que instituiu a PNRS, a categoria lixo sequer

é mencionada pelos recicladores da ACREPOM quando estão avaliando os

processos de beneficiamento dos materiais doados na associação ou coletados nos

45.EURECICLO. Tudo o que você precisa saber sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Disponível em:< http://www.mma.gov.br/política-de-resíduos-sólidos>. Acesso em 09/10/2020.

95

estabelecimentos parceiros; o que se tem com os resíduos na associação são

elaborações de conceitos êmicos operacionais de seco ou úmido, e limpo ou sujo.

Os resíduos que aparecem na teoria do PNRS são na prática materiais,

objetos, coisas, bens e substâncias que foram descartadas, jogadas fora, ou doados

aos associados e cooperativas de catadores/recicladores, como resultado da ação

humana e de suas atividades frente ao fim do consumo em seu estado anterior

quando tinham status de mercadoria. Conceitualmente, os resíduos apresentam-se

“nos estados sólido e semissólido, que resultam das atividades de origem industrial,

doméstica, hospitalar, comercial, agrícola, de serviços e de varrição” (ABNT, 2004,

p. 7). Na lógica da PNRS, o lixo corresponde então aos rejeitos, isto é, parte de

resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e

ou recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis,

devem ser descartados de forma ambientalmente satisfatória (BRASIL, 2010a).

Todavia, antes de destacarmos as mudanças finais que são submetidos os

estados dos resíduos sólidos para mercadorias, ou seja, do enigma de que os

produtos que consumimos vêm do fato de que é pelo fruto direto do trabalho que se

assume como forma-mercadoria, é preciso pontuar que nos entremeios os resíduos

sólidos também têm suas classificações diversas, o que é positivo, pois favorecem

para o trabalhador catador ou reciclador nas questões práticas que precisam para

resolver o beneficiamento deste, e também para estimulo curioso dos chamados

“consumidor sustentável” e “consumidor politizado” (PORTILHO, 2005, 2009).

96

CAPÍTULO 3

Posterior às coletas e doações, é dentro do galpão da associação, durante o

processo de beneficiamento, que os recicladores discernem o que é resíduo

reciclável e o que vai virar lixo, traçando um paralelo, respectivamente, a

compreensão particular do que é sujo e do que é limpo em seus próprios termos

“nativos”. Sensivelmente, isso envolve também uma percepção apurada do estado

do material doado em ser ou não beneficiado e a experiência do reciclador em

atestar tais qualidades que contribuirão ao futuro valor de mercado.

A sujeira pode importunar ou transgredir a ordem de alguns dos materiais

doados que chegaram até a ACREPOM, literalmente, sujando-os, mas o alerta que

fica é que não se trata de uma questão natural, pois as classificações locais

contradizem o consenso de que resíduos e sujeira possuem relações homogêneas.

Se o que importa é saber o que é sujeira, e o porquê da existente correlação dessa

em atuar contra os resíduos recicláveis, a análise de Mary Douglas, nas páginas de

abertura de sua magnum opus, Pureza e Perigo, retifica que:

A sujeira46 absoluta só existe aos olhos do observador. Se nos esquivamos dela, não é por causa de um medo cobarde nem de um receio ou de um terror sagrado que sintamos. As ideias que temos da doença também não dão conta da variedade das nossas reações de purificação ou de evitamento da impureza. A sujeira é uma ofensa contra a ordem. Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; pelo contrário, esforçamo-nos positivamente por organizar o nosso meio (DOUGLAS, 1991 pp. 6-7).

É relevante constatar que na referida obra há apenas uma única passagem

em que é possível deduzir diretamente a aproximação com o tema a respeito do

lixo/resíduos. Este assunto aparece quando a autora disserta sobre a eliminação das

impurezas residuais por via das práticas ritualísticas que dão conta da sujeira.

Douglas (1991) argumenta que quando removida da sociedade, a sujeira abafa a

identidade das coisas por um processo de “dissolução e de empobrecimento”:

As suas origens esquecidas reúnem-se à massa dos dejetos comuns. Ninguém quer vasculhar nestes desperdícios em busca de alguma coisa, o que equivaleria a ressuscitar a identidade. Desprovidos de identidade, os

46 A obra Pureza e Perigo de Mary Douglas usada como referência para esta dissertação é de Portugal. Segundo a nota do tradutor português, optou-se por utilizar os conceitos de impureza e poluição como equivalente das noções inglesas uncleaness, dirt, defilement, pollution. Embora tradução mais correta de dirt, em inglês, para português seja sujeira, a opção pela noção de impureza usada ao longo da obra se fundamenta na explicação de que “a própria impureza é pouco mais do que uma representação e esta se encontra imersa num medo específico que impede a reflexão: com a impureza entramos no reino do Terror” (RICOEUR apud Douglas, 1991 p.6). O termo sujidade ou o adjetivo imundo surgirão no texto da tradução portuguesa, porém apenas em domínios orgânicos que não trazem implicações de ordem ritualística tão pautada pela autora em toda a obra.

97

dejetos não são perigosos e nem sequer são objeto de percepções ambíguas. Ocupam um lugar bem definido num monte de lixo (ibidem, p. 116).

Segundo Carmen Rial (2016, p. 18) 47, muitas pesquisas e revisões teóricas

da literatura antropológica sobre resíduos têm como ponto de partida o trabalho

seminal de Mary Douglas, o que praticamente sujeita as pesquisas com essa

temática a uma abordagem simbólica como via regra. Embora justificado o

reconhecimento da autora britânica, na posterior análise etnológica dos dados desta

dissertação, identificou-se ao menos dois problemas reais que uma apreciação

estritamente simbólica omitiria quando postos em tensão ao campo etnográfico

sobre o beneficiamento de resíduos sólidos feitos por catadores/recicladores

urbanos e suas as conceitualizações êmicas a respeito do entendimento de sujeira:

Primeiro, é substancial apreender que sujeira não é exatamente a mesma

coisa que resíduo. O livro de Mary Douglas submete dados culturais a uma análise

simbólica comparativa dos ritos que diferentes culturas humanas se ocupam no

banimento da sujeira, e perfila a sujeira enquanto impureza dentro dos arranjos e

das regras culturais, como exemplo, as instruções do Levítico48 que obriga às

práticas rituais, legais e morais, e constroem tabus e sanções pautados na

preservação do humano em não decair no pecado das abominações sujas. Porém, o

que se vê no livro Levítico sobre o camelo, a lebre e o texugo, é que eles são

considerados impuros para tradição alimentar dos judeus (DOUGLAS, 1991 p.35),

mas não são tidos como resíduos ou lixo pela própria cultura judaica.

Segundo, nenhum dos exemplos das sociedades ditas “primitivas” analisadas

por Mary Douglas menciona alguma periculosidade que faz referência diretamente a

lixo ou a resíduos. Muito pelo contrário, para a autora, em sua única passagem

sobre os resíduos ou lixo, a prevalente ambiguidade que existe sobre esses dois

fenômenos é apenas retificada passivamente. O embasamento simbólico, por si só,

não explica porque as confusões que correlacionam resíduos a sujeiras ainda são

comuns, a ponto de interferir tanto na lógica produtiva de organizações exclusivas

47 A frente da organização do livro O Poder do Lixo: abordagens antropológicas dos resíduos sólidos, a antropóloga Carmen Rial, na introdução intitulada “Abordagens antropológicas dos resíduos sólidos nas sociedades pós-industriais”, escrita em conjunto com o também antropólogo Freek Colombijn, os autores citam os seguintes pesquisas importantes na área sobre antropologia dos resíduos (EVANS, CAMPBELL e MURCOTT, 2013, p. 8; JAFFE e DURR, 2010, p. 3-5; JEWITT, 2011, p. 610; KIRBY, 2011, pp. 14-15; O’BRIEN, 2011 [2008], p. 125-133 apud RIAL 2016, p.18). 48 Levítico é o terceiro livro da Bíblia, e compõe o Antigo Testamento cristão.

98

de trabalho e renda com resíduo reciclável, quanto reiterar certa desordem presente

nas práticas cotidianas do descarte no meio urbano.

Os dois problemas localizados não desconsideram de modo algum

importância de que em Douglas (1991) a questão da poluição/impureza/sujeira está

relacionada ao perigo e que, ao lidar com essas condições adversas às ordens, o

humano compreende as hierarquias culturais e as posições sociais que o envolve e

os se classificam, ritualmente ou não, entre pessoas que vão lidar com esse tipo de

desordem e outras que não vão. Como resultado desses antagonismos (e tantos

outros também), inscrevemos no plano da cultura mais um capítulo das hierarquias e

das desigualdades.

Posto isto, o que se segue são descrições etnográficas coletadas na pesquisa

de campo, e que a posterior análise dos dados construídos com pelos catadores-

recicladores associados, mostrando os caminhos para a solução do problema na

relação do descarte/doação e lixo/resíduo.

A SUJEIRA DESCONSIDERADA

Todos os dias os associados têm que dar conta de impurezas que,

inexoravelmente, adentram os espaços e impregnam as coisas que estão na

associação; do hall de atendimento ao galpão, o pó, a poeira, entre outras partículas

homólogas ou sobras de matéria orgânica, passam longe de qualquer processo

adequado para reapropriação do valor de troca nesta associação49. Essas

impurezas se resumem como lixo na ACREPOM, e precisam ser eliminadas com

destreza e limpeza.

Além dos maquinários e adjacências que fazem parte galpão, o escritório, os

banheiros, a cozinha, o refeitório, a recepção e os lugares onde os associados

recicladores e demais pessoas transitam, também passam pela ação da limpeza. O

galpão é limpo pela manhã, e os outros locais no período da tarde, pois a faxina

preferencial no galpão lança, irremediavelmente, impurezas, sobretudo terra, que

penetram em outros cômodos e espaços de circulação.

49 O reaproveitamento desses tipos elementos materiais orgânicos, em especial o pó de serragem, as folhas e os galhos secos das podas de árvores são uteis a ordem da reciclagem feita pela coleta seletiva municipal de poder público e Araçatuba. Não menos importante, são as sobras de alimentos que, a depender do senso de criatividade do consumidor consciente, servem como composteira para adubar alimentos como legumes e verduras em hortas urbanas comunitárias ou particulares.

99

De comum acordo entre todas as partes envolvidas, no final de cada reunião

semanal com os associados se estabelece um cronograma impresso e fixado no

quadro de avisos que determina a limpeza coletiva e as atribuições individuais com

os nomes dos associados e dos locais que devem se ocupar durante toda a

semana. Quando não se consegue horário para a limpeza semanal devido à rotina

ou outros imprevistos, esta pode ser negociada particularmente de reciclador para

reciclador, inclusive, se for necessário, contando com a abertura da ACREPOM aos

sábados apenas para determinações de limpezas. Neste caso, se o reciclador limpa

sua parte aos sábados, ele adiciona o tempo trabalhado ao banco de horas para

futuramente abonar um dia de trabalho.

Ao longo dos dias da semana, as responsabilidades com a limpeza são

findadas, e o associado responsável risca o seu nome da listagem. O galpão que

abriga a esteira é onde os recicladores passam a maior parte do dia; estes locais de

produção devem se encontrar limpo na segunda-feira. Mesmo coberto por um teto

que o abriga das chuvas e do sol forte do interior paulista, as laterais de sua

estrutura são abertas e não protegem das lufadas de ventos que levantam a poeira

do chão de terra batido.

As vassouras disponíveis acabam não dando conta quando o problema se

refere a um ruído vindo esteira:

Do galpão uma fala chama a atenção: “A esteira está quebrada!” – exclama um dos associados. O rádio sintonizado o dia todo na frequência local com as músicas mais pedidas é desligado e um raro silêncio toma conta do galpão. A esteira elétrica é ligada e desligada repetidas vezes, mas sem sucesso no seu funcionamento padrão. Pelo barulho, a esteira permanece estagnada, mas os demais associados não podem parar; os homens descarregam e recebem as doações normalmente, e as mulheres separam com as próprias mãos as doações nas bags. Dois recicladores, que conhecem um pouco sobre manutenção, entram em cena e apontam que o rangido na esteira denuncia dificuldades na movimentação das suas engrenagens. Deduziram que há algo travando os rolamentos que a fazem funcionar. Baú pega as ferramentas mecânicas e a parte elétrica fica a cargo do Seu Paulo. Notadamente Baú, Seu Paulo e mais um ou outro associado, os “da velha guarda”, se destacam quando o assunto são pequenos reparos. Tempo vai, tempo vem, e a esteira continua sem funcionar.50

A esteira quebrada gerou preocupações, pois a mecânica local não trouxe de

volta à normalidade pretendida. Cogitaram chamar a mecânica autorizada para que

técnicos pudessem fazer a manutenção correta, haja vista que este tipo de serviço,

50 (Trecho do diário de campo)

100

embora raro, não sai do bolso dos associados, pois é coberto pelo seguro de

assistência que a associação tem para com os equipamentos doados. Pouco antes

de isso acontecer, um dos associados, que trabalha mais como motorista na coleta

de resíduos sólidos urbanos doados do que com os recicladores no galpão, chega a

ACREPOM, guarda a chave da EFFA e se prontifica a observar mais de perto o

problema. Seu nome é Valdecir, e é reconhecido entre os recicladores como alguém

que também entende da mecânica.

Acompanho Valdecir próximo à esteira, juntos, retiramos os bags onde são

depositados cada tipo de resíduo em vias de beneficiamento que já passaram pela

esteira. Homens e mulheres se unem na atividade do banimento das coisas sujas

com vassoura e pano de limpeza. Com local mais limpo, se observou que os

problemas com engrenagens eram devido ao acumulo de sujeira entre as frestas e

rolamentos. Embaixo da esteira, Valdecir usa uma faca e um alicate dentado para

dar conta de retirar restos inconvenientes de plásticos e fios que se acumularam

entre as fissuras e roldanas da esteira. Em geral, parte da manutenção advém deste

motivo corriqueiro, mas vale ressaltar que a esteira está há quase duas décadas na

ACREPOM; demais peças são difíceis de apresentar algum problema, como, por

exemplo, a parte elétrica, comenta o reciclador. Com óleo e graxa, Valdecir encerra

a manutenção sem a necessidade de chamar um técnico.

Das práticas que os coletivos humanos se ocupam em banir a sujeira como

impureza, representa parte do caráter simbólico da limpeza e sua importância no

papel concreto de restituir um caminho para a ordem. Contraditoriamente ao que

possa se pensar, às impurezas acabam tendo um papel positivo para a persistência

da ordem cultural, pois:

Indo à caça das impurezas, cobrindo esta superfície de papel, decorando aquela, arrumando, não somos movidos pela ansiedade de escapar à doença: reordenamos positivamente o espaço que nos rodeia (o que é um ato positivo), tornamo-lo conforme a uma ideia. Não há aqui nada de temeroso ou de irracional. O gesto que fazemos é criativo, o que tentamos é relacionar a forma e a função, impor uma unidade à experiência (DOUGLAS, 1991, p. 7).

Pó e poeira não são apenas partes dos vestígios que impregnam e

deterioram, antes fazem parte do aspecto maior das coisas sujas enquanto

incomodo à separação e ordem correta (Ibidem, 1991).

101

O LIMPO E SUAS INSTITUCIONALIZAÇÕES: DO LOCAL AO GLOBAL

Na limpeza do galpão da ACREPOM a água entra em cena como um

elemento da natureza que impugna a sujeira, que é o elemento da cultura. Observo

os associados usarem água para limpar o chão, os carrinhos, e às vezes os

materiais como parte do processo de beneficiamento dos mesmos. Desde o século

XIX vamos assistir com vigor o reforço desse juízo de valor proporcionado pela

limpeza e, mais ainda, a limpeza íntima, principalmente no que se refere ao trato

com as roupas e higiene corporal, é reproduzida de modo global na modernidade

desde quando “as nossas ideias sobre a impureza estão dominadas pelo nosso

conhecimento dos organismos patogénicos” (Ibidem, p. 30).

As não tão novas representações de classe sobre a limpeza, estão inscritas

no sempre limpo local de atendimento e secretaria da ACREPOM, na consciência

dos cuidados higiênicos pessoais dos recicladores após manusear materiais

residuais, no uso das ferramentas e, principalmente, no olhar especialista sobre as

doações de todo o tipo. Tais concepções práticas são apenas uma fração direta de

um sem número de institucionalizações higiênicas perpetrado contexto a fora

através da lógica burguesa que, no poder dominante desde século XVIII, conquistou

os espaços societários legitimou o fator da limpeza nestes e na corporalidade como

ideologia que protege e avigora corpos rígidos, fortalecidos, longe das antigas

representações da nobreza “ociosa e devassa” (VIGARELLO, 1991, p. 134).

Assemelha-se a simplicidade a rotina quase diária da limpeza com água entre

os corredores da associação, porém, o despretensioso hábito do uso da água como

fonte pudica para eliminação da sujeira é relativamente novo na conjuntura histórica

da institucionalização da higiene e da limpeza em nossas relações sociais

contemporâneas. Par ao banimento das ambivalências perturbadoras provocada

pelas sujeiras, na modernidade ocidental novas ideias sobre o corpo e adequadas

práticas de limpeza começaram na passagem do século XVIII para o século XIX, a

ressignificar o vigor do organismo a ser estimulado pelo elemento água (Ibidem,

1991).

Anterior a constatação moderna de limpeza com a água, esta era considerada

impudica, veículo de doenças, que trouxe a cólera, e que causou o temor da peste

negra que assolou o medievo europeu. A essa nova concepção que passou a ser a

água que revigora, o historiador Georges Vigarello complementa que:

102

Por sua vez, há um deslocamento do significado de certas práticas. O banho de rio, por exemplo, até então reservado ao jogo ou a algumas curas isoladas é agora considerado como um instrumento de saúde; está reforçando o exercício, técnica revigorante (Ibidem, p. 151).

A afeição por representações que corroborem a perspectivas positivas a

saúde corporal passam a ser considerada a salvaguarda contra as doenças. Desde

século XVII e XVIII, Vigarello (1991) observa que surge a roupa branca como

representante ideal de limpeza para a burguesia, sendo comum os camareiros

pessoais participarem da higiene intima do patrão. Já no século XIX, torna-se

impensável a presença de alguém estranho nos momentos de higiene pessoal,

muitas vezes se estendendo aos familiares. Essas novas posturas pudicas,

originado pela classe burguesa, mostra que as práticas que envolvem o corpo nas

sociedades capitalistas estão alicerçadas no avanço da ciência e da tecnologia,

corroborando para que a higiene e a limpeza se personalizem cada vez mais. A

ciência do final do século XVIII que legitima a limpeza protetora dos corpos e dos

locais, é a mesma que, mais tarde, entra na paranoia em relação aos

microrganismos, dos agentes patológicos, levando ideia de higiene aos paroxismos.

Médicos, higienistas, sanitaristas, administradores públicos propõem, na passagem

do século, a lavagem das paredes, a desinfecção das casas, rígidas quarentenas, e

uma série de perseguição sem tréguas à sujidade; há, literalmente, intercorrência de

eventos de higienização social nas cidades que também passa a ser fundamental

nesse novo processo a legitimação da cultura burguesia (Ibidem, p. 116) sob a

cultura proletariado.

Com local limpo da ACREPOM, o beneficiamento dos resíduos recicláveis se

reinicia. Apesar disso, para além do conceito de sujeira apresentada como impureza,

as categorias localizadas de “sujo” e “limpo” continuam a circular no contexto dos

recicladores, no entanto agora se referem aos objetos residuais doados ou

coletados. “Limpar a sujeira do galpão” para os associados tem mais a ver com uma

das etapas do beneficiamento dos resíduos sólidos urbanos do que abolir a sujeira

propriamente dita ou, em outros termos, sobre o que apreendemos normalmente

que é sujeira.

Partindo de um escopo mais reflexivo das categorias culturais que circulam na

organização dos recicladores para limpar a sujeira, temos um entendimento

simbólico de limpeza versus sujeira um tanto quanto sui generis, por assim dizer. A

surpresa agora é que tal conceito se referem agora as doações, mediando forças e

103

classificações de próprio ou improprio no processo de beneficiamento que permitirá,

ou não, a reelaboração da matéria-prima para a venda como reciclável.

ORDENANDO AS DOAÇÕES: PRÁTICAS PARA O BENEFICIAMENTO DOS RESÍDUOS

Agosto de 2018, último sábado do mês, uma experiência empírica atípica me

aguardava. Mesmo sem nenhum associado presente51, e com as portas fechadas

para a recepção e beneficiamento dos resíduos, a ACREPOM não deixa de receber

as doações. Na frente do portão principal da associação, servindo ao público

transitivo 24 horas por dia/7 dias da semana, há bags identificados com a

classificação dos materiais mais relevantes (papel, papelão, plástico), à postos para

as doações.

Sentado no banco da praça do Monumento Torii, à frente da associação,

observo principalmente o vai e vem de carros parando com suas doações. O

monumento está construído na rotatória Tosca de Castro Kohl, na Rua Rangel

Pestana, a mesma da ACREPOM.

O movimento é rápido: os motoristas mal iniciam a rotatória, dão seta à direita, estacionam na enorme calçada de terra e concreto que integra o portão, descem e, do porta-malas ou do banco traseiro, retiram sacos e mais sacos de resíduos, despejam nos bags da ACREPOM e tomam o rumo antes mesmo do sinaleiro da rotatória fechar.

A proximidade da ACREPOM com o monumento construído em 2008, que

homenageia a colônia japonesa de Araçatuba, convida a uma analogia simbólica

significativa com a associação de recicladores: o inconfundível portal de dez metros

de altura em arquitetura tradicional típica japonesa representa um limiar que

simboliza a estrutura da separação e, ao mesmo tempo, da proximidade, entre o

mundo dos homens e dos kamis (seres espirituais e divinos). O portal Torii é essa

passagem entre mundos e, cotidianamente, é atravessado pelos recicladores da

ACREPOM com os seus carrinhos a caminho do mundo dos resíduos recicláveis.

A metáfora simbólica que une ambos os portões, está na transição entre um

estado a outro: da passagem do impuro ao puro que o atravessar daquele portal,

ligado à tradição xintoísta, proporciona o encontro com espíritos da natureza,

protetores ancestrais, que são guardiões sagrados ou kamis, que só concederão sua

51 A associação normalmente não abre sábados, salvo raras exceções que incluem urgência na limpeza do galpão, o que não era o caso naquele dia.

104

energia e dádiva que interconectam universos e forças extra-planares para seres

livres da impureza; e da transformação do estado sujo para limpo, de resíduo para

reciclável, que acontece portões adentro da ACREPOM, que a ação prática do

reciclador pode proporcionar durante o beneficiamento das doações.

No romance As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, podemos interpretar que

os catadores52 são tidos como divinizados na cidade fictícia de Leônia, tamanha é a

responsabilidade e gratidão que carregam em suas mãos, que:

São acolhidos como anjos e a sua tarefa de remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeito silencioso, como um rito que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas fora, ninguém mais quer pensar nelas (Ibidem, 1990 pp. 105-107).

Motivados pela mesma razão prática de resgatar o resíduo do esgotamento,

da sujeira e das impurezas que atrapalham e contaminam talvez os recicladores

sejam mesmo esses anjos, ou os kamis da linguagem japonesa. Afinal, são os

objetos descartados que quando jogados fora, momento que para nós é considerado

como uma solução final, para eles é apenas o início de práticas criativas e

representativas entre separação e união, a serem realizadas depois em outro portal,

objetivamente, dentro do galpão da ACREPOM.

De um portão ao outro, naquele sábado os doadores não contavam com a

mediação dos catadores ou recicladores e a acurácia do trabalho coletivo da

ACREPOM. Depois de observar essas doações, levanto e vejo o que tem dentro dos

bags.

Ao abri-los, nenhuma surpresa: as confusões que permeiam o ordenamento para uma separação correta dos resíduos na hora do descarte estavam presentes no meu olhar. Julgo não ser muitas as coisas que estão, por assim dizer, fora do seu lugar, mas não posso deixar de concordar com a fala de um experiente associado, porteiro da ACREPOM, que lamenta a maneira descuidada que alguns doadores ainda depositam materiais inservíveis, decompostos orgânicos e ou resíduos insatisfatórios a qualquer padrão mínimo de reciclagem53.

A preocupação sincera desse senhor é de conhecimento de todos os

associados. Em virtude disso, a ACREPOM sempre alerta aos doadores que, às

vezes, um só elemento de material fora do lugar pode prejudicar aos outros ou até

mesmo invalidar todo o material que poderia ser propício à fase de beneficiamento,

52 Catadores é uma licença poética da minha parte, pois o autor se refere aos lixeiros como anjos. Apesar disso, o sentido de catadores e não lixeiros está relacionado como uma espécie de sondagem a categoria profissional. 53 (Trecho de diário de campo)

105

principalmente se este estiver sujo. A esses materiais, a denominação êmica de sujo

surge para justificar as perdas de doações advindas do malgrado fator de contato.

A sujeira como símbolo de perigo e poder (DOUGLAS, 1991, p.72), revela

uma força que impregna a materialidade e traz prejuízos a esta no processo de

reciclagem devido ao contágio que a mistura entre sujos e limpos pode ocasionar.

Porém, em posteriores visitações, revelaram que muitas dessas misturas,

principalmente de materiais dentro das bags externas, são tão iguais as muitas

cenas que presenciei de doações realizadas na recepção da ACREPOM, onde são

entregues caixas amontoadas de materiais heterogêneos a de resíduos recicláveis,

e da qual não cabem qualquer lógica de classificação como sujeira ou material sujo.

Indistintos à ótica do doador – e do pesquisador – se comparado com a

excelência do manuseio e compartimentação feito na associação, não há qualquer

constrangimento na mistura de diferentes materiais, desde que sejam lidos como

limpos. A esse respeito, a secretária da ACREPOM explica:

Alguns não separam sempre certo o material que vai doar. Uns não sabem e mesmo assim fazem; outros pedem informação, nos ligam para saber como separar adequadamente. Nos aconselhamos, mas não podemos cobrar por aquilo que a gente mesmo faz trabalhando. Os associados já se acostumaram com isso e levam numa boa. É trabalho nosso separar direitinho, tem que estar limpinho, mesmo porque sabemos o que o nosso parceiro [comprador] quer – resume Alexandra, sobre os montes de resíduos que diariamente chegam na associação.54

Diferente dos atos contaminantes entre sujo e limpo, o fato de mesclar papel

com plástico, ou papelão com eletrônico, por exemplo, na mesma bag, não causa

impasse algum aos associados, porque o próprio processo de separação dentro do

galpão, com o posterior e imprescindível auxílio da esteira de triagem, é parte

integrante da rotina de atividades no trabalho de beneficiamento dos resíduos

sólidos urbano, seja para venda como reciclagem ou reutilização. O processo de

prática dos recicladores da ACREPOM sobre a aparente desordem dão os primeiros

ritmos para prometidas reinvenções materiais que futuramente se transformarão.

O comportamento por parte do associado reciclador frente ao descarte do

outro não consiste em condenar moralmente as coisas doadas fora

desordenadamente. Em vez disso, pela criatividade, inventividade, e principalmente

pelo caráter prático e tecnológico para a ressignificação do valor de troca das coisas

54 (Alexandra, fev. 2018)

106

(MARX, 2017), o trabalho coletivo supera a aparente desordem, subsumindo-a uma

nova ordem das coisas.

Despidos do valor negativo e de julgamentos morais que vimos sobre os

despojos descartados como lixo ou junto a resíduos, os recicladores da ACREPOM

estão determinados de antemão em imbuir ordem aos resíduos. Não há mágica no

trabalho associativista dos recicladores que faça afrouxar as categorias e o

simbolismo presente, e sim um saber-fazer coletivo, constantemente compartilhados

sobre como lidar com materiais descartados de modo transformador. Ao menos, por

meio das práticas aprendidas e partilhadas, em um primeiro momento dentro do

galpão, é assim que se estabelece a relação entre os recicladores com o reciclável

recém-doado.

Perante esse contexto de trabalho conjunto entre recicladores, a observação

mais geral do filósofo Michel de Certeau não poderia estar mais correta para validar

a “prática dissimulativa” que incidem na “sucata” 55 em um espaço coletivo de

trabalho que difere das fábricas comuns:

Com cumplicidade de outros trabalhadores (deste modo põem em xeque a concorrência fomentada entre eles pela fábrica) ele realiza “golpes” no terreno da ordem estabelecida. Longe de ser uma regressão para unidades artesanais ou individuais de produção, o trabalho com a sucata reintroduz no espaço industrial (ou seja, na ordem vigente) as táticas “populares” de outrora em outros espaços. (CERTEAU, 2014, pp. 82-83).

Diferentemente de quem não está diretamente envolvido nos domínios dos

resíduos sólidos urbanos, da reciclagem ou da reutilização das coisas materiais

jogadas fora, restam incertezas socialmente compartilhadas sobre o destino do seu

descarte. Incertezas essas que vão além das referências conceituais trabalhadas no

tema aqui manifestadas, mas que encontram na dificuldade de reconhecer que o

caos que ronda a ordem, apaga a importância sobre o resíduo e toma corpo material

na aparição fantasmagórica como lixo.

Vigia de provocações, como observado na associação e na história, o aspecto

de sujeira no resíduo o faz declinar rapidamente em sentido ao lixo; quando a cultura

material residual está suja ou fora do lugar que julgamos pertencer, a desordem será

implacável em acelerar esse processo. A simples premonição de um possível

rebaixamento dos resíduos recicláveis acende um alerta aos recicladores para

55 No capítulo 3 A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer coloca preservo o termo sucata que não deixa de ser uma forma residual dos materiais descartados, principalmente aqueles feitos de aço e ferro valorizados em qualquer associação ou cooperativa de reciclagem.

107

manter ordenado a ser o contrário. A busca pela ordenação desse caos

momentâneo é, sem dúvida, uma busca por exercer ou tomar o controle sobre o

poder.

Nos tumultos e intercorrências provocativas que afetam a ordem das coisas

materiais, o caos que tangencia as relações com as coisas não é de origem implícita

nos objetos que nos servem (INGOLD, 2012); afirmar o contrário é desconsiderar

não só o poder do beneficiamento local, como também qualquer possibilidade de

ressignificação das coisas descartadas. A organização do “caos”56, como algo

“fechada em sua superfície” ou prescrita de modo reducionista, não estão

encerradas em uma configuração interna; seu principal meio de relação é a

superfície externa das redes de relações, que é “uma interface entre a ‘substância’

mais ou menos sólida de um objeto e o ‘meio’ volátil que o circunda” (GIBSON, 1979

p. 16, 106 apud INGOLD, 2012, p. 31).

Ainda que “ordem” seja encarada como um guia, ou um modo onde “se

distribuem elementos nas relações de coexistência” naquele grupo social

(DECERTEAU, 1994, p. 201), contra a desordem como força destrutiva dos

elementos, a bem da verdade Mary Douglas irá dizer que o próprio contexto que se

produz a desordem, fornece os próprios meios seus simbólicos e materiais para

combatê-la:

Quem diz ordem diz restrição, seleção dos materiais disponíveis, utilização de um conjunto limitado de todas as relações possíveis. Ao invés, a desordem é, por implicação, ilimitada; não exprime nenhum arranjo, mas é capaz de gerá-lo indefinidamente. É por isto que aspirando à criação de ordem, não condenamos pura e simplesmente a desordem. Admitimos que esta destrói os arranjos existentes; mas também que tem potencialidades. A desordem é, pois, ao mesmo tempo, símbolo de perigo e de poder (DOUGLAS, 1991 p. 72).

Portanto, o primeiro comportamento dos recicladores frente à desordem não

gira em torno de condenar qualquer objeto ou qualquer ideia que contradiga as

nossas preciosas classificações. Ou seja, o que era rejeitado, desprezado,

desvalorizado, e que por isso encontrava-se desordenado, a partir da ação primeira

dos catadores e recicladores, que é a coleta ou catação, começa a ter seu valor

redescoberto. É pelo beneficiamento dos resíduos, no posterior procedimento feito

no galpão, que os resíduos tornar-se-ão matéria-prima desejada pela indústria

compradora de reciclagem. Muito possivelmente, será na Indústria ou na Usina de

56 O caos referido no texto de Tim Inglod, aqui é tratado como sinônimo de desordem.

108

Reciclagem que se reprocessarão esta matéria-prima de modo a atender a produção

de mercadorias passíveis de receber novamente o desejo do consumidor, e um novo

valor de uso.

Conforme observado anteriormente neste capítulo, os fluxos e as

transformações da matéria que entram pela associação, que venceram a tensa

liminaridade residente entre lixo e resíduo, e reconquistam um valor de troca como

reciclável útil a produção industrial para futuras novas mercadoras, prova a

derrubada do pensamento hiliomórfico sobre as coisas e artefatos, onde praticantes

impõe formas internas da mente sobre um mundo material “lá fora” (INGOLD,

2012).A “sujeira” considerável.

Num mundo dividido entre a ordem e a desordem, as experiências históricas

coletivas no contexto moderno ocidental proporcionaram a descobertas da

transmissão de agentes patogênicos e contágio (DOUGLAS 1991, p. 30),

relacionados à questão da sujeira que pode impregnar não só as coisas materiais

associada ao descarte, como também os espaços onde os objetos e sujeitos

circulam.

A sujeira será, por conseguinte, aquilo que confunde, transgride ou mesmo

devasta uma dada ordem cultural sofrerá sempre de mais sujeira onde certos

elementos são selecionados e outros rejeitados para a instauração de determinada

ordem cultural (Ibidem, p. 7). Porém, este fator dos contatos entre os materiais

atípicos revelados pelos próprios recicladores como sujos, no meio de potenciais

resíduos satisfatórios a reciclagem, que são tidos como limpos, não chegam as

demasiadas considerações simbólicas elaboradas por ritos de poluição, purificação,

cura, fertilidade entre outros descritos em Pureza e Perigo. O processo de

beneficiamento dentro da ACREPOM é muito mais em decorrência de uma prática

recente da vida social que, apurada por um setor especialmente urbano, se esforça

para chegar a uma solução viável e sustentável.

Para além do simples funcionalismo que se possa aplicar as técnicas que

advém do submundo da informalidade dos catadores, não podemos esquecer que a

história da ACREPOM se conecta com o setor histórico do trabalhado precário do

brasileiro. Evidentemente, perder para a sujeira o material limpo, é também perder o

tempo de trabalho e, consequentemente, o potencial valor de troca que o resíduo

sólido ainda poderia proporcionar no processo de beneficiamento para a reciclagem.

109

Tal advento causa uma desordem nas relações de trabalho na ACREPOM e afeta,

ao mesmo tempo, a produtividade e a renda ao final do mês.

O relato de uma recicladora da ACREPOM sobre um recente episódio com

cascas de bananas, revela o que acarreta a mistura dos materiais limpos com os

materiais sujos:

Foi eu e mais uma [recicladora] para abrir as bags da entrada; nossa que cheiro, parecia podre, era podre. A minha colega pensou que era papel podre, mas eu disse que era cheiro de banana estragada. Dito e feito tinha várias cascas de bananas do meio para baixo no bag. Se fosse só papel sujo dava para separar, mas resto de frutas, alimento não dá não. Foi tudo para o lixo.

Outra associada confidenciou que notou excremento humano dentro da bag

externa. Os que presenciaram o espantoso encontro desagradável concordaram e

rememoram casos parecidos, trazendo à tona inservibilidade que acomete algumas

doações improprias ou irresponsáveis. Entre os temidos materiais inservíveis, que

sujam o material limpo da ACREPOM estão: compostos orgânicos e demais

resíduos degradados e ou não mais satisfatórios à reciclagem naquele local de

beneficiamento.

Em relação aos materiais considerados inservíveis, para formalizar sobre o

que é e o que fazer o art. 3º do decreto nº 9.37357 apresenta as diretrizes para

destinação correta de material inservível58, evitando desperdício e o descarte urbano

indiscriminado. O referido artigo condensa que os critérios definidores de inservíveis

são:

I - ocioso - bem móvel que se encontra em perfeitas condições de uso, mas não é aproveitado; II - recuperável - bem móvel que não se encontra em condições de uso e cujo custo da recuperação seja de até cinquenta por cento do seu valor de mercado ou cuja análise de custo e benefício demonstre ser justificável a sua recuperação; III - antieconômico - bem móvel cuja manutenção seja onerosa ou cujo rendimento seja precário, em virtude de uso prolongado, desgaste prematuro ou obsoletismo; IV - irrecuperável - bem móvel que não pode ser utilizado para o fim a que se destina devido a perda de suas características ou em razão de ser o seu

57BRASIL. Decreto Nº 9.373, de 11 de maio de 2018. Disponível. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9373.htm>. Acessado em 08/10/2020. 58 De âmbito da Administração Pública Federal, este decreto serve de modelo na elaboração de regimentos dos municípios brasileiros. Baseado no artigo citado é assim que a Prefeitura de Araçatuba, e também a ACREPOM e outras associações, cooperativas e iniciativas de catadores e recicladores, entram em acordos com para se adaptarem, em seus próprios termos, o que seria um material considerado genericamente como inservível e impróprio para nestes contextos locais.

110

custo de recuperação mais de cinquenta por cento do seu valor de mercado ou de a análise do seu custo e benefício demonstrar ser injustificável a sua recuperação.

Podemos então dizer que a noção dos inservíveis, tanto dentro como fora da

ACREPOM, adentram a categoria do lixo, pois não há mais nada que se possa fazer

na condição de quaisquer futuros usos ou valores, deixados então deixados a coleta

seletiva. Em vista dos que sucumbiram, os resíduos recicláveis que ficam e serão

beneficiados, e que mais abundam essa associação que RDO, ou resíduos sólidos

domiciliares e/ou resíduos comerciais com características similares.

O problema realmente se instaura quando alguma coisa contamina e faz sujar

o material limpo, que até então era garantido ao beneficiamento que revaloriza. As

formas com que as sujeiras começam se embrenhar entre as coisas e os objetos

são microscópicas, mas sua dimensão se expande e assume uma enorme

preocupação compartilhada pelos associados e recicladores em relação ao fator de

contaminação que gera dano aos demais materiais. O manuseio e processamento

de materiais recicláveis os expõem diariamente a perigos e condições insalubres

(OMS 1995). A heterogeneidade própria da composição dos RSU é motivo de

preocupação as formas de reciclagem, reutilização e compostagem, pois a

contaminação pode vir de elementos perigosos que rondam ou fazem parte dos

resíduos sólidos e que, com o tempo de exposição em meio ao descarte irregular,

produz compostos físico-químicos que se desprendem da matéria e podem, por

exemplo, se proliferar no ambiente por meio de altas concentrações de metais

nocivos (HARGREAVES et al., 2008 apud LEONARD, 2011).

Por mais apurado que seja a técnica dos recicladores no serviço de

beneficiamento, operar os resíduos sólidos neste estágio revela perigo eminente a

saúde humana. Em escalas maiores, com tecnologia de ponta – o que infelizmente

não é o caso da ACREPOM, empreender tal processo geraria dispêndios custosos

em detrimento da segregação material após sua coleta e da má qualidade que se

encontra para ser recuperado. No fim, mesmo que beneficiados, acaba não

compensando, seja pela média final dos custos, seja pelo baixo valor de mercado

que este tipo de reciclável mais não atinge qualitativamente (BOHM et al., 2010).

Independentemente de o material tipo inservível ser da ordem dos

decompostos orgânicos ou não, os casos e relatos que escutei na ACREPOM sobre

o descarte incorreto e descompromisso com a separação correta pós-consumo,

111

convocam um olhar para que a relação dos contatos de poluição e contágios

precisam ser tratados de antemão, não só pelos nossos protagonistas – os

catadores e recicladores, mas prioritariamente pelos coadjuvantes – a comunidade

envolvente, pois a estes decorre a responsabilidade primeira em reduzir o fluxo de

resíduos misturados através de uma etapa anterior de separação e descarte, um

processo que corresponde a uma pré-beneficiamento.

O pré-beneficiamento, como o próprio nome diz, antecede a fase do

beneficiamento que se desenvolve no interior de galpões e organizações de

reciclagem. Não distante dos processos mais práticos do beneficiamento, muito do

pré-beneficiamento se assemelha com este, como a triagem por categorias “úmido

ou seco”, ou seja, reciclável ou não reciclável mas essencial, e separação entre

recicláveis não perigosos, não recicláveis não perigosos e perigosos, o que tem sido

chamado pelos catadores e recicladores como limpos e sujos. O complemento que

dará o sentido ao pré-beneficiamento está em admitir as responsabilidades iniciadas

desde o processo produtivo, passando pelo consumo e concluídas na etapa pós-

consumo de um determinado produto ou uso mercadoria que gera resíduo.

O mais interessante desta perspectiva do pré-beneficiamento é que todo este,

enquanto processo, já está composto como demanda social e reconhecida como

política pública sob o nome de “responsabilidade compartilhada”. Neste contexto,

todos nós somos, sejam fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes,

poder público, os consumidores e, até os catadores de materiais recicláveis, são

envolvidos como atores, sendo os donos dos meios de produção e os comerciantes

em acordo setorial de natureza contratual firmada com o poder público (BRASIL,

2010a)

Para Lima e Guivant:

A responsabilidade compartilhada desafia governos, empresas e cidadãos a mudar sua forma de compreensão e relação com os resíduos sólidos em geral, além de mostrar que as soluções dependem da colaboração ativa entre esses atores, afinal, todos, de alguma maneira, são poluidores e, portanto, devem pagar um preço pela proteção ambiental (RIAL, 2016 p. 360).

O pré-beneficiamento enquanto parte complementar a responsabilidade

compartilhada do PNRS estimula as comunidades a separar os diferentes tipos de

materiais, e acaba exortando a reponsabilidade como ímpeto de um ato individual. A

‘separação na fonte geradora’ é um item essencial para o gerenciamento integrado

112

de resíduos, que visa à operação deste dentro do sistema, e para a gestão em

definir decisões, ações e procedimentos adotados em nível estratégico (LIMA,

2001), visto que aumenta o desempenho em caso necessário a incineração, reduz o

consumo de energia dos processos, bem como evita contágios e contaminações,

sejam aquelas que afetam a parcela orgânica, ou os dos materiais reaproveitavam,

incrementando valor agregado (ZHUANG, et. al. 2008).

No entanto ainda que todas as medidas antes do descarte responsável sejam

tomadas, e os maiores níveis de recuperação e reciclagem apareçam, a quantidade

geral dos resíduos sólidos que ainda acabam indo para aterros sanitários é alta, pois

a taxa de geração de lixo/resíduo é crescente (LEONARD, 2011) em comparação a

taxa de recicláveis e recuperáveis destinados corretamente, bem como o número de

organizações coletivas dispostas a fazer este trabalho ainda é insuficiente a

demanda. Assim, além de alçar bons índices de reciclagem, será necessário buscar

medidas práticas e educativas para prevenir a geração de resíduos como um todo.

Para Levenson (1993), deverão assumir estratégias que efetivem a redução

do fluxo dos resíduos/lixo: a atividade dos fabricantes, a partir de transformações na

extração, produção e criação de mercadorias que objetivem a redução de toxidade,

volume e carga dos produtos e bens de necessidades, assim como aumentar a vida

útil do valor de uso das coisas e o potencial e reciclabilidade coligada; ao

comportamento dos consumidores em modificar seu padrão de consumo

descartável, priorizando produtos duráveis, reutilizáveis e recicláveis, ou mais

radicalmente, diminuir o consumo global de mercadorias (LOBER, 1996).

Do exposto, enumeram-se como diretrizes prioritárias para as atuais políticas

de gestão de resíduos da responsabilidade compartilhada: (i) evitar ou, nos casos

em que não for possível, diminuir a produção de resíduos; (ii) reutilizar ou, quando

não for possível, reciclar resíduos (pré-beneficiamente); (iii) utilizar a energia contida

nos resíduos; e, por fim, (iv) tornar inertes os resíduos, antes da disposição final.

Consoante com o era ouvido dentro do galpão sobre sujeira e as ocorrências

desagradáveis dos materiais sujos e limpos, sou trazido a realidade com a fala de

Celestino: “Que bom que você veio. Temos uma surpresa que chegou para você”.

O evidente tom de ironia em Celestino aponta para um caso inusitado à frente

do portão de doações. Um enorme contêiner da empresa Nestlé, unidade de

113

Araçatuba, fincado na terra, entre o portão e o galpão, impede o transporte dos

carrinhos, do caminhão e de maquinários automotivos dos compradores que

auxiliam na reciclagem. Até aquele momento, tudo que se sabia era que a parceria

com a Nestlé Araçatuba já não existia mais. Átonos a situação, os associados da

ACREPOM tiveram que se conformar com a mudança repentina da rotina de

trabalho, pois em nenhum momento cogitaram desprezar as toneladas do material

pelo ex-parceiro de doações.

Infelizmente, as ligações de Celestino não obtiveram respostas sobre a

surpresa do material em contêiner; convocando uma reunião de emergência. O

retorno feito pelo presidente da associação aos associados traziam informações

vagas:

Todos sabem que a Nestlé não está mais conosco há algum tempo. Depois de anos, dispensaram nosso serviço no final do passado [2017]. Parece que vai vir mais um contêiner hoje, amanhã ou depois, não sei. “O que é algo no mínimo estranho, não acham? Bem, – responde ele mesmo a indagação – não me pergunte, pois também não sei” – encerra Celestino com um sorriso amarelo enquanto os trabalhadores unidos voltam ao galpão.

Decerto, para todos, deparar com aquela produção não estava nos planos, no

entanto, a recusa material não era bem-vinda. A prioridade repentina para a

produtividade no contêiner alterou a rotina dos associados, principalmente os que

trabalham diretamente no galpão. A rotina e os cronogramas dos trabalhos, que

haviam sido previamente traçados no início da semana, ou seja, na segunda-feira, e

incluíam o hábito de sair as ruas com os carrinhos e com os transportes automotores

em encontro aos estabelecimentos e suas doações previamente agendadas, bem

como todas as demais práticas que ocorrem rotineiramente no galpão, tiveram que

ser alteradas naquela manhã de terça-feira, dia 13 de fevereiro 2018.

Mesmo afetando de algum modo a rotina semanal preestabelecida, devido a

quantidade colossal do material doado, a ACREPOM disponibilizou o espaço e pôs

todos os associados envolvidos na reciclagem em mãos à obra. Nas primeiras horas

de trabalho, funcionários da ACREPOM, inclusive alguns do grupo de apoio, cientes

da intensa atividade, colocaram suas energias em prática para que, mobilizados,

dessem conta de ao menos descarregar todo o material do contêiner ainda naquele

período. As consternações entre os associados ficam ainda mais vivas quando foi

aberto o contêiner e um cheiro enjoativo exalou por todo o local.

114

O contêiner, com sua capacidade máxima de material, foi enfrentado por dois associados homens vestidos com avental, máscara, luvas e botas de borracha (EPI) sobre o uniforme da ACREPOM; a esses couberam o trabalho mais duro de retirar os resíduos juntos e amarrados uns aos outros ainda no engradado. O fedor podre atrapalhou os associados presentes que, mesmo habituados a odores desagradáveis a devido rotina que aquele trabalho como reciclador lhes impõe, tiveram que improvisar uma veste de tecido ou usar as máscaras n9559. Unindo-se a esses dois que enfrentavam a montanha de resíduos, ou outros recicladores passaram a selecionar, na parte de baixo do contêiner, o material pertinente ou não para a reciclagem em bags.

Em vistas das dificuldades que se multiplicaram – o odor fétido do material em

estado de putrefação, somado ao sol de verão do meio-dia no interior paulista

tornava aquilo mais complicado – o montante de material homogêneo, sensibilizou a

todos os associados ali presente, que não se imiscuíram diante do desafio iniciado

por aqueles dois catadores que subiram nos montes de resíduos. Ainda assim,

Silvinha revela que terão que dar conta no dia seguinte.

Presente entre eles pus-me a fazer o mesmo, testemunhando os detalhes de

como cada trabalhador posicionava o material em estado terrível de putrescência

longe dos outros. Enquanto uns associados se antecipavam com bags destinadas a

resíduos inviabilizados para a produção, outros ficavam responsáveis pelo

recolhimento do material propício à reciclagem. Envoltos de centenas de garrafinhas

e bags, uma associada que estava presente, sentada trabalhando na base do

contêiner, de maneira descontraída, me diz como proceder para beneficiar aquele

produto para a reciclagem:

Foi, primeiro você tira o lacre, se tiver leite podre pode jogar na pia, se não tiver já coloca nessa bag que é para alumínio. O plástico você tira e separa também na bag. Só depois a garrafinha é colocada por último na outra bag que é dos PETs. No fim, é a prensa do Seu Paulo faz o resto. (Cida) (...) Esse plástico nós chamamos de plástico leite; o plástico leite é muito bom o preço, você sabe (...). Mas também o alumínio é bom, viu? (...) Então se preocupe mais em tirar o lacre inteirinho para nós, pois é assim que o comprador quer, ele não aceita de qualquer jeito. Já teve vezes do material voltar (...) – explica Luzimara ao observar-me junto às recicladoras.

O material presente, da submarca Molico, era um PET resistente que servia

de alimentos à base de laticínio. Com pouco mais de 200 ml cada, quase todas as

embalagens não estavam completamente vazias, dando impressão que não se

tratava de um descarte comum proveniente da etapa pós-consumo. Ao romper o

59 As máscaras n95 fazem parte do equipamento de proteção individual (EPI) que funciona como uma barreira contra contaminações de vias aéreas. A mascara n95 é um acessório muito utilizado por equipes de saúde, por trabalhadores rurais ou trabalhadores industriais expostos a produtos químicos, poeira, fumaça contaminantes ou não.

115

lacre de umas tantas embalagens, as sobras do conteúdo alimentício estavam

coalhadas, descortinando assim o odor característico de leite apodrecido.

A percepção dos associados com essas garrafinhas de laticínio apodrecidas é

que um só material inservível, pertencente ao tipo sujo, em meio a outros materiais

do tipo limpo pode prejudicar ou invalidar o restante do material que seria propício a

próxima fase – a do beneficiamento dos resíduos sólidos urbanos. Fato este ainda

mais premente quanto aplicado ao container vindo da empresa Nestlé que, repleto

de materiais perdendo capacidade de beneficiamento e valor de troca para a

reciclagem, subverteu a ordem local em prol do que seriam os “melhores ganhos”

para seu negócio, e convocou a mobilização inesperada de todos e todas para

encarar o “presente” do antigo parceiro.

Em competição com os trabalhadores recicladores associados, estão os

recicladores da natureza citados no capítulo anterior. Ambos, juntos pela matéria

residual, mas por objetivos inversos: os associados preocupados em recuperar o

valor, especialmente o valor de troca dos produtos residuais, enquanto a natureza

interessa apenas a absorvê-los. Os catadores da natureza em sua laboriosa tarefa

microscópica da decomposição contam com o poder de proliferação e muito tempo

finito para se desenvolver. A condição da competição microbiota dispõe do contexto

perfeito para situação de contágio e contaminação.

Elementos químicos, biológicos e patológicos podem ser reproduzidos no

processo dos recicladores da natureza e assinalam que, àqueles resíduos, se não

tratados, fatalmente poderão causar doenças e gerar implicações sanitárias graves.

A atuação dos recicladores associados é também um avanço contra as outras forças

da natureza, pois esta, alheia a nossa ordem, tornam-se a sujeira que se pretende

eliminar. Neste momento, o conhecimento sobre a sujeira é tomado para além de

um mero constructo cultural, “ela é, simultaneamente, ‘objetivo’, quantificável que

afeta negativamente a saúde humana e ecológica” (JAFFE; DÜR, 2010, p. 5 apud

COLOMBIJN; RIAL, 2016 p. 18).

A dissonância entre os fluxos que envolvem as misturas de materiais limpos e

sujos são feitos de modo mais crítico e técnico pelos sujeitos humanos que estão na

lida diária com a materialidade das coisas em desordem. Residuais sólidos de

origem urbana são materiais propensos a muitas fontes de perturbação, pois ao

transitarem no estado anterior entre as condições de consumo e da subjetividade do

116

valor de uso, perpassam por diferentes etapas de armazenamento e manuseio, que

fazem parte da circulação de mercadorias na nossa vida social, como também

possuíram uma vida social (APPADURAI, 2008 p.15) antes de serem rejeitados do

sistema de circulação das mercadorias.

Fora da circulação de valor de uso, o estado da sujeira vem a reboque

impregnar os fragmentos e os rejeitos descartados, o que piora a situação dos

resíduos e ameaçam o resgate futuro do valor de troca do material que interessa aos

negócios dos catadores e recicladores. A depender de circunstancias de tempo,

exposição, externalidades de contato para a contaminação e natureza do material, a

preocupação dos recicladores é latente e justificada, pois o que está em jogo é o

resgate da identidade do material que começa a ser apagada gradativamente e

torna impossível o beneficiamento para a reciclagem.

Parafraseando e adaptando o argumento de Mary Douglas à problemática

dessas misturas que se encontram em perigo de contágio do sujo com o limpo, o

que temos é um estado de “semi-identidade” comprometedor e intruso, que

pulveriza, dissolve e empobrece mais aceleradamente o processo que limita todas

as substâncias físicas a impurezas, para no fim, acabar com qualquer identidade

ainda presente e ser esquecido junto a massa de dejetos comuns (DOUGLAS, 1991

p. 116).

Somando-se a data de validade vencida e a repugnância que os resíduos

aparentavam dentro do contêiner, o dia duro de trabalho refez a fase de separação

que classifico como pré-beneficiamento dos resíduos, rendendo assim toneladas de

materiais limpos nas bags e um contêiner vazio à espera de outro. Da totalidade dos

resíduos limpos no contêiner, outros tipos de materiais distintos e propícios a

diferentes formas de beneficiamento para a reciclagem começam a aparecer. São

eles: o PET das garrafinhas, o lacre de alumínio, o rótulo de plástico colorido e o

plástico transparente que enfardava as garrafinhas.

Não exclusiva aos recicladores da ACREPOM, a imposição prática contra a

desordem, o enfrentamento aos catadores da natureza e seu meio potencialmente

proliferador de sujeita a doenças, prolongam a finitude dos materiais prontos para

serem reprocessados. Com base na evidencia empírica coletada, a técnica de

recuperação dos resíduos contraria a redução genérica relativista de Douglas de que

há um desinteresse humano sobre os resíduos físicos descartados ou, em suas

117

próprias palavras, de que “ninguém quer vasculhar nestes desperdícios em busca de

alguma coisa, o que equivaleria a ressuscitar a identidade” (DOUGLAS, 1991 p.

116), pois o que temos na ação recicladora observada são as renovações de

diferentes identidades como matérias-primas beneficiadas e prontas para as

transformações mercantis.

Dos remanescentes do contêiner, o que sobrou estão nas bags tidas como

lixo. Essas são posteriormente retiradas pelo associado na tentativa de preservar os

demais antes que o contato de sujeira contamine outras cargas, e prontas a

aguardar a coleta seletiva municipal para o encaminhamento correto. Como norma

para todo o tipo de material inservível na ACREPOM, os recicladores reportam ao

grupo de apoio a perda do material, que particularmente se refere ao processamento

incorreto do pré-beneficiamento do doador na separação e no descarte incorretos.

Uma parte non-grata que todos os trabalhos de salvação têm que lidar, são

as perdas. Embora não tenha elaborado uma estimativa mais exata sobre a perda

do material aqui na ACREPOM, tomo como referência um bag observado no dia da

prática de campo do sábado em frente ao Monumento Torii. Por conseguinte,

quando ocorre, suponho que no máximo até 5% dos materiais podem vir a ser

discordantes na classificação de que como deveria compor a bag no ato do pré-

beneficiamento. Desses, uma menor parte pode ou não apresentar materiais

inservíveis com potencialidades de prejudicar toda a futura produção de um bag,

cuja capacidade é de aproximadamente 200 Kg.

Quando a ocorrência do tipo sujo representa uma perda do tipo limpo, deve-

se avisar imediatamente o coordenador para que o mesmo possa atualizar na

planilha de materiais dos quilogramas pesados e, se houver possibilidades de

rastrear a doação ou mesmo o doador, caberá a coordenadora Silvinha da

ACREPOM contatá-los e alertá-los sobre a desordem. Celestino diz que os

episódios que trazem prejuízos de contato entre materiais sujos e limpos, que fazem

perder dezenas de quilos, como no caso dos contêineres ou as cascas de bananas

ou de Raimundo, que em sua rotina com o carrinho até Santa Casa da Araçatuba, já

se deparou com descarte totalmente inapropriado de seringas e agulhas usadas,

são cada vez mais raros, porém acontecem imprevisivelmente.

Ressalta-se que a ACREPOM, como um dos principais circuitos de base para

reciclagem em Araçatuba, exige alto nível de coordenação entre todos os elos da

118

sua cadeia produtiva, a fim de evitar a contaminação e deterioração dos demais

materiais expostos ao contágio dos sujos – uma responsabilidade que raramente vai

além do horário comum de trabalho. Além dos treinamentos específicos e a

experiência prática individual de que cada um deles compartilha, os associados da

ACREPOM têm à disposição o EPI básico para manuseio correto quando casos

assim vêm à tona.

Desta experiência de campo as conclusões sobre a questão deste tipo de

sujeira (dos sujos) são baseadas nas falas dos próprios recicladores que reforçam o

compromisso da responsabilidade compartilhada com as fontes doadoras por meio

do diálogo, pois estas não podem se furtar ao trabalho mínimo de pré-

beneficiamento do seu descarte doado. A ACREPOM não pode fazer esse trabalho

toda vez, muito menos irão aceitar doações em estado mais próximo dos sujos do

que dos limpos. Para que entre em conformidade com os padrões mínimos para ser

considerado apto a transformações que as indústrias recicladoras exigem, há a

necessidade central do que os recicladores chamam de beneficiamento: um

processo que estamos compreendendo como coleta, transporte, unido a um

emaranhado de técnicas manuais e uso de maquinário tecnológico propício da

transformação do resíduo a matéria-prima para reciclagem.

DAS PARTICULARIDADES DOS RESTOS AOS IMPASSES ACUMULATIVOS

No galpão, as embalagens plásticas que embrulhavam alimentos, como as

garrafinhas PET’s ou potes de sorvete industrializado, demarcam claramente uma

lógica básica de separação padrão do consumo em duas etapas: daquilo que foi

consumido (alimento e outros) e o que não foi. O que sobra do processo comum de

consumo alimentar, que não serventia, é simplesmente o resto – ou àquilo que não

mais interessa ao consumidor, principalmente quando se trata de invólucros

alimentícios. O destino comum dessas sobras e restos serão as lixeiras, mas

eventualmente podem ir parar nos coletores de coleta seletiva de resíduos

recicláveis e não recicláveis, ou nas associações e cooperativas do gênero.

Dado as incertezas do futuro dos restos, pode ser que o seu potencial para se

tornar matéria-prima tenha se perdido no processo de recirculação das mercadorias

e consumo, e com o tempo de exposição e as formas desordenadas de descarte,

atestam que o resto é relativo (MOSER, 2015 p. 228); por sua vez, o resto relativiza-

119

se ainda mais ao encontrar duas oposições: o excesso e o desperdício. Nessa

dialética, o excesso pode ser um tanto quanto embaraçoso para nós, mas para

catadores e recicladores o excesso pode vir a se configurar positivamente quando

representa um excesso de resíduos-doações.

Apesar de não implicar obrigatoriamente em “malefício ou ameaça à

existência” (SILVEIRA; MORAES, 2007 p. 1 apud WALDMAN 2010 p. 19), o excesso

aliado ao resíduo é lesivo por ocupar/invadir um espaço, até mesmo em locais

propícios como a ACREPOM. A visibilidade dos resíduos enquanto restos em

excesso em contextos de beneficiamento para a reciclagem, só não é maligno

porque quase tudo de material que adentra em organizações de catadores e

recicladores são passíveis de uma futura reutilização/reciclagem das coisas com

novo valor. Na impossibilidade de serem revalorizados, vimos que aos restos sobre

o encontro com o lixo, que não possui valor algum.

Na ação de “jogar fora as coisas”, que se tornaram restos, a relação do sujeito

com o objeto material passa por mediações de capacidades dos valores, objetivas

de valor de troca e subjetivas de valor de uso (MARX, 2017). Novamente, a

relativização sobre o que está sendo dado como resto entra em cena na decisão

intersubjetiva de jogar fora as coisas, do descarte propriamente dito, pois esta pode

pertencer tanto ao universo dos excessos quanto dos desperdícios. Tanto uma

acepção quanto a outra, são observados como resquícios e restos, posto que se

jogou fora e está perturbando o espaço da sociabilidade.

Quando ultrapassam os limites de seus usos originais, há uma perda do

status de valor de uso, e consequentemente de valor de troca também, uma vez

que, enquanto mercadorias em usufruto, as coisas e objetos adentram ao caminho

da finitude. Interessado na questão de como o objeto em particular passa a ser dado

como resto, o antropólogo Octave Debray se ocupa a refletir sobre esta distinta

passagem. Perscrutando os limites exauridos do material, Debray relata que:

Eles se abrem a uma transferência. Esvaziados de suas faculdades de ainda serem (úteis), obtêm o poder de dizer de suas travessias na História. No uso do resto se estabelece uma relação com o tempo que passa. O resto é dispensado, o fim do uso (perda) e a plenitude da História (conservação). Isso se refere à ordem do inútil (BATAILLE, 1973). São as passagens, os intervalos que o tempo ocupa como formas de articulação entre o passado, o presente e o futuro (DEBRAY, 2017 p. 21).

120

Mesmo que as coisas materiais se livrem do nosso espaço de vida, elas

continuamente se projetam em outro lugar, hierarquicamente destinado àqueles que

se ocuparão dos restos na cornucópia do descarte. Ainda assim, para a maioria, o

que resta após a vida entendida pós-consumo é o que proibimos de conhecer: o

potencial dos resíduos banidos em partes, fragmentos, ou simplesmente restos em

que associações do tipo como a ACREPOM se debruçam a ressignificá-los por meio

de trabalho e renda. Latinhas, papéis, papelão, garrafas plásticas e todos os demais

restos em excessos são valorizados dentro da ACREPOM. Há montanhas desses

resíduos recém-doados ou coletados dentro de incontáveis bags à espera de

beneficiamento, ou que já foram beneficiados.

Na associação, é possível descrever dois momentos em que as mesmas

doações podem ou não ocupar duas etapas distintas de embalagem protetiva, que

são a bag e o fardo. Em um primeiro momento, recém-doados a toda sorte, os

resíduos logo entram nas bags que protegem o próprio conteúdo, ao mesmo tempo

em que atenta ao especialista em reciclagem que o status mercadoria, que um dia

revestiu esses objetos ou bens materiais com valor de uso já não existe mais, e o

valor de troca, se ainda não desapareceu, está em vias de se perder para sempre.

Enquanto restos desperdiçados, sem nenhum tipo de valor (de uso e de troca), a

ACREPOM reserva o mesmo tratamento que normalmente damos às coisas neste

estado de rejeição próximo; arbitrariamente, o resíduo passa a ser lixo e será

enfardado à espera da coleta seletiva; quando não receberem o resíduo em questão

de segunda mão, os associados veem de perto o efeito da convergência do tempo e

uso sobre a materialidade; próximo ao limite do total do desgaste, o resto está

contíguo ao lixo.

Do pré-beneficiamento, ou seja, da separação pós-consumo e descarte, ao

beneficiamento, o contexto cultural desta atividade perpassa a sociedade, que se

projeta também com base na triagem das pessoas que irão se ocupar mais

atentamente sob esses objetos não mais pertencentes aos indivíduos consumidores.

Lixeiros, garis, catadores, trecheiros, em sua maioria negros e pardos, como visto

anteriormente, são os sujeitos mais comuns na linha de frente nas ocupações deste

tipo de trabalho em beneficiamento; em relação ao pré-beneficiamento, que favorece

o trabalho catador ou reciclador em suas demandas práticas, é estimulado por um

121

setor curioso dos chamados “consumidor sustentável” e ou “consumidor politizado”

(PORTILHO, 2005, 2009).

Indo a caça ou a salvação dos restos, os associados da ACREPOM se

deparam não só com desperdício contínuo de potenciais trocas recicláveis que

poderiam se perder para sempre se seu trabalho não fosse feito, como também

possíveis restos elegíveis para um tempo a mais de uso. A esses últimos,

compostos pelos mais diversos restos, durante uma atividade semanal de

observação participante dentro e fora do galpão, em meados de fevereiro de 2018.

Destaco em termos quantitativos, respectivamente:

a) Os plásticos oriundos dos parceiros comerciais e residenciais: fragmentos de

plásticos, potes e garrafinhas, ainda (re) aproveitáveis; sacolinhas novas e nunca

usadas de supermercado; brinquedos velhos de plástico, com pouca ou nenhuma

avaria, que poderiam servir de lazer para outras crianças; embalagens vazias de

diferentes produtos em bom estado para reuso;

b) Os livros e cadernos das escolas públicas de Araçatuba: folhas de papel

soltas, brancas, pautadas ou não, sem rasura alguma; cadernos inteiros, novos e

seminovos; apostilas escolares de anos anteriores, de diversas disciplinas,

novas, lacradas;

c) Nos papéis doados pelos bancos parceiros e o Fórum Justiça Estadual de

Araçatuba a serem desfragmentados: documentos em papel, textos amassados e

folhas soltas contendo dados e documentos sigilosos de clientes dos bancos;

croquis de construções civis, documentos com dados judiciais e criminais;

d) Nas doações ou do ecoponto dos eletrônicos no supermercado Pão de

Açúcar: peças como ferro, aço, cobre e alumínios ainda intactos, e até mesmo

utilizáveis tecnologicamente, ou reutilizáveis, como peças ou mesmo celulares

velhos de anos anteriores, gabinetes de computadores, máquinas e ou

dispositivos eletro-eletrônico-domésticos.

É grossa a interpretação que julga, através somente da experiência pessoal

desta em campo, a viabilidade e a reutilização de alguns restos descartados e

observados como desperdício. Reitero assim o dever de reintegrá-los como parte

das ambiguidades existente no mundo do descarte, pois no interior do que se joga

fora, o sentido do desperdício adquire característica limiar, pois – literalmente –

122

adentra “em terra de ninguém entre várias dicotomias”, desestabilizando questões

simbólico-práticas de eficiência/ineficiência, utilidade/inutilidade, ordem/desordem,

ganho/perda, limpa/ suja, vivo/morto, fértil/estéril (LIPOVETSKY, 2007 pp. 20-23).

De modo em geral, o que mais chega à ACREPOM são materiais

configurados como restos por outrem. Em síntese esses restos, correspondem a

partes de materiais e objetos comuns que um dia formaram uma totalidade, uma

mercadoria usufruída. Na ACREPOM, é fácil presenciar que são os restos

significativos que movimentam a rotina de trabalho e renda associativista. A

celeridade dos associados da ACREPOM de tão logo agendar e ir coletar as

doações, demonstra não só o designío do especialista para o primeiro contato com

os restos, como também pode promover, pelas boas práticas recíprocas de doação

e coleta, a consciência de que a existência dos restos demonstra um caráter finito

dos recursos materiais na Terra.

Tanto o lixo, como o resíduo, configurados como restos, revelam certo tipo de

abandono das coisas. Como resíduos sólidos urbanos de toda sorte, essas coisas

materiais descartadas ou doadas que não mais tem dono e que, se não fosse a ação

de coleta por catadores e recicladores em salvá-los, casualmente estariam

ocupando o espaço definido pela lixeira, rua ou locais públicos. Seja por descarte ou

doação, o abandono do resíduo é revelador de uma lógica circulatória contraditória,

que coexiste entre estar em todo lugar (SCANLAN, 2005 p. 179) como excesso, e de

não ter lugar (DOUGLAS, 1991), como abandono e desperdício.

De qualquer forma, o desperdício elucubrado acima aparece muito mais como

indicativo de um arquivo, se não confiável, especulativo (RATHJE e MURPHY 2001

p. 4), das reminiscências do valor de uso do consumo anterior ainda presente. Para

compreender esse processo há dois caminhos igualmente profícuos: perscrutar o

sentido diacrônico de como, onde, porque os materiais chegaram àquela situação de

restos, e o outro, sincrônico. Opto pelo segundo e recorro a escutar os sujeitos de

pesquisa e seus relatos sobre o que eles compreendem o que seria restos em

desperdício e restos em excesso.

123

ELETRÔNICOS, DESPERDÍCIO E OBSOLESCÊNCIA DA MERCADORIA

Em meio a um local de descarte para a associação, de propriedade de um

dos principais parceiros da doação, as lembranças de Raimundo sobre o "impróprio"

e o desperdício se afloram durante a coleta e ele relembra um pouco das coisas

mais estranhas que já se deparou por ali:

Sabe André, uma vez eu encontrei uma seringa por aqui também. No mesmo momento parei de trabalhar e vi por ali por perto uma enfermeira ou técnica, estava toda de branco. Avisei ela das seringas. Em poucos minutos uma equipe vestida com máscaras foi recolher o material. Tinha novas e usadas junto (...) algumas estavam vencidas, outras não (...) só voltei a trabalhar normalmente na outra semana, claro, depois de me sentir seguro – (Raimundo, 2019). (...) Outra vez, se eu te contar, você não acredita: encontrei um monitor, desses fininhos [LCD], novinho em folha, por ali jogado; o mais estranho foi ver é que não era um, mas alguns descartados, dentro da caixa mesmo, com nota fiscal e tudo. Uma coisa de louco! Como que alguém pode joga isso fora? Avisei a direção [da parceria] pessoalmente e eles tomaram providências. Sei depois que foi feito uma sindicância sobre o ocorrido e me parece que alguém foi punido por estar se desfazendo de material comprado com dinheiro público (Raimundo, 2019).

Os encontros com os materiais eletroeletrônicos parecem suscitar nos

recicladores lembranças que denunciam as negligências desperdiçadas e respostas

de apropriações criativas:

Baú prepara o almoço enquanto aguardo sentado a entrevista previamente agendada. Hoje é domingo e almoço sai mais cedo na casa do reciclador, pois Baú tem um compromisso marcado com o filho em situação de reeducando. Em tempo, com a panela no fogo, Baú arruma o notebook. A deixa para iniciar a entrevista com esse trabalhador da ACREPOM, foi surpreendida quando: ‘Coleguinha, você sabia que esse notebook veio lá da ACREPOM? Eu achei no meio das doações’ respondeu sorridente Baú. Como se não bastasse o notebook, outro computador completo, com gabinete, monitor, teclado e mouse funcionando na escrivaninha também foi achado. Essas coisas configuram entre as apropriações criativas de Baú.

O encanto que elabora reapropriações de uso pode vir a se perder quando o

desperdício é verificado pelos recicladores nos seguintes quesitos: se pode ou não

ser consumidos novamente com segurança, se são utilizáveis ou inutilizáveis.

Particularmente, isso se refere com mais força a respeito dos eletrônicos, pois, por

exemplo, há pilhas e baterias que chegam a bom estado de uso, funcionando e com

carga, mas por possuem componentes tóxicos, não podem ser misturados com

outros ou mesmo reutilizadas em outros aparelhos. A recomendação é que mesmo

baterias de ión/lítio, que são mais modernas, que contêm invólucro de proteção e

são usadas como fonte para alimentar a energia de notebooks e celulares, têm suas

124

substâncias tóxicas que extravasam se não forem devidamente descartadas

enquanto resíduos eletrônicos (LEONARD, 2011 p. 51).

A estação do ecoponto dos eletrônicos da ACREPOM fica no estacionamento

do supermercado Pão de Açúcar, e destoava do padrão de coleta seletiva que o Pão

de Açúcar-Unilever oferece em suas unidades. O diferencial começa pelo próprio

ecoponto dos eletrônicos instalado pela ACREPOM – algo novo que complementa o

padrão papel, plástico, metal e óleo no ecoponto da multinacional. Um reciclador da

ACREPOM com conhecimentos básicos sobre eletrônicos cumpre seu horário por ali

atendendo as doações no próprio local, reorganizando o material dentro da coletora

e controlando os espaços de modo que seja adequado ao posterior transporte

desses resíduos até a associação.

O reciclador associado que cuida dos eletrônicos explicou que é necessário

um tipo de cuidado a mais com desses resíduos, pois pode ser altamente tóxico sem

que ninguém saiba. De fato, a razão pela qual reciclar materiais do tipo eletrônico

representa perigo é porque eles não podem ser descartados de qualquer jeito ou

mesmo conservados em aterros sanitários (LEONARD, 2011 p. 34), o que justifica e

exige o esforço de alguém com um pouco de conhecimento para o beneficiamento

deste. Assim, os resíduos eletrônicos são recebidos por este especialista que tem a

opção de ou organizá-lo na coletora pronta para o transporte, ou começar, ali

mesmo, em um minúsculo espaço atrás do ecoponto, o beneficiamento dos resíduos

eletrônicos.

Com luvas, proteção ocular e ferramentas próprias, o reciclador dos resíduos

eletrônicos da ACREPOM pode fazer a remoção da bateria de um celular velho com

segurança, ou a separação das diferentes peças que compõe as coisas eletrônicas

em geral como, por exemplo, computadores, CPU’s e materiais de informática, que

sempre possuem dezenas de materiais misturados e entrelaçados. O computador

completo, igual ao que foi apropriado por Baú, é um bom exemplo dessa

periculosidade que envolve os resíduos eletrônicos: um microcomputador tem cromo

hexavalente presente na tela do monitor de vidro; bário e chumbo nos componentes

plásticos; mercúrio, berílio, chumbo, cádmio, nas placas de circuitos e coolers da

Unidade de Sistemas (CPU). Ressalta-se ainda que o plástico de um computador

tem um revestimento de fogo-retardante, que embora sirva como dispositivo de

alerta, seus compostos bromados, expostos em lenta queima, libera substâncias

125

tóxicas (SILICON VALLEY TOXICS COALITION/ELECTRONICS TAKEBACK

CAMPAIGN, 2008 apud LEONARD, 2011 p. 52).

A profusão cada vez maior de diversos elementos eletrônicos desperdiçados,

atestado no campo de pesquisa e na realidade, corresponde diretamente ao fator da

obsolescência sobre os materiais e vêm a sobrepesar muito mais nos produtos

tecnológicos do que nos demais. Na intenção de atender a oferta e a demanda por

mercadorias cada vez mais novas e tecnológicas, o mercado se vê compelido a

velocidade de produção e circulação generalizada de mercadorias e,

consequentemente, as próprias condições que circunscrevem e definem os limites

da dialética contraditória do capitalismo, “põe em movimento não apenas grandes

potenciais produtivos, mas também, simultaneamente, forças maciças tanto

diversificadas como destrutivas” (MÉSZÁROS, 2011 p. 676).

Há a existência de uma obsolescência planejada e pensada nas mercadorias

(LEONARD, 2011), ou taxa de utilização decrescente do valor de uso da mercadoria,

que é o termo categorizado por Mészáros (2011 p. 675), que igualmente informa a

deterioração e degradação consciente ou intencional empregada nos componentes

da mercadoria; uma técnica muito realizada, principalmente pós-Segunda Guerra

(MEZAROS, 2011; LEONARD 2011), pelas próprias indústrias no momento da

criação dos seus produtos no capitalismo contemporâneo.

O capital não considera valor de uso (o qual corresponde diretamente à necessidade) e valor de troca como coisas separadas, mas como um modo que subordina radicalmente o primeiro ao último (Ibidem, p. 566). O que significa que uma mercadoria pode variar de um extremo ao outro, isto é, desde ter seu valor de uso realizado, num extremo da escala, até, no outro extremo, jamais ser usada, sem por isso deixar de ter, para o capital, a sua utilidade expansionista e reprodutiva. Essa tendência decrescente do valor de uso das mercadorias, ao reduzir a sua vida útil e desse modo agilizar o ciclo reprodutivo, tem se constituído num dos principais mecanismos graças ao qual o capital vem atingindo seu incomensurável crescimento ao longo da história (MEZAROS, 2002, p.567).

O termo obsolescência na mercadoria começa a aparecer no setor da

produção das mercadorias. Há pesquisas e desenvolvimentos dentro das empresas

e indústrias para absorver métodos e técnicas de produção que visam elaborar uma

mercadoria que siga as normas qualitativas, ao mesmo tempo em que,

quantitativamente, possa competir na mesma velocidade com outros concorrentes

no mercado consumidor (LEONARD, 2011). No capital, a contradição que se

apresenta sobre essa equação qualidade e quantidade incorrem pela criação de

126

obsolescências nas novas mercadorias, onde a vida útil sempre será menor do que

outro produto que o antecedeu.

A baixa capacidade de vida útil das mercadorias proporciona a garantia da

ética capitalista da mais-valia, a exploração dos recursos humanos e da natureza, e

a justificativa para a concorrência. Decorrente do emprego de materiais de mais

baixa qualidade:

A obsolescência pré-fabricada aumenta a taxa de desgaste e frequentes modificações no modelo aumentam a taxa de substituição (....) O resultado líquido é uma intensificação na taxa de procura de reposição, e um surto geral na renda e no emprego. Sob esse aspecto, como em outros, as campanhas de vendas constituem um poderoso antídoto para a tendência do capitalismo monopolista de afundar-se num estado de depressão crônica. (BARAN, P. & SWEEZY, 1974, pp.135-136).

Determinadas técnicas e conhecimento sobre as mercadorias são criadas de

modo a induzir sua obsolescência de valor e de uso na vida cotidiana com maior

intensidade do que era antigamente. Produzir metas que só uma economia

altamente produtiva exige, transforma o consumo em consumismo; o sentido é no

convencimento de que as compras, rituais contemporâneos de consumo, busquem a

satisfação espiritual e egóica por vias de um consumo baseado em mercadorias

limitadas no aspecto mais comum, ou seja, o físico, pois são facilmente gastas,

substituídas e descartadas num ritmo cada vez mais acelerado. Junto a outros

conjuntos de estratégias, que envolvem a aliança com publicidade, normatizam e

sistematizam os conceitos de obsolescência planejada e percebida (LEONARD, p.

101-102) ou “obsolescência embutida” e “obsolescência prematura” (MEZAROS, pp.

670-671)

A intenção de maior taxa lucro move em tendência a precarização, numa

“crescente velocidade de circulação e do turnover de capital”, essenciais nos

desdobramentos que constrói o “capitalismo de consumo” (Ibidem, p. 670). Eivada

de contradições, essa conjuntura da produção em massa, acelera a vida útil dos

produtos e determinar a sua “morte” à medida que sabota a qualidade da

mercadoria. O resultado desta circulação mais rápida de novos produtos é o valor de

uso da mercadoria cada vez mais decrescente. Ou, em outras palavras:

Torna-se, desse modo, necessário divisar meios que possam reduzir a taxa pela qual qualquer tipo particular de mercadoria é usada, encurtando deliberadamente sua vida útil, a fim de tornar possível o lançamento de um contínuo suprimento de mercadorias superproduzidas no vórtice da circulação que se acelera. A notória “obsolescência planejada” em relação aos “bens de consumo duráveis” produzidos em massa; a substituição, o

127

abandono ou o aniquilamento deliberado de bens e serviços que oferecem um potencial de utilização intrinsecamente maior (por exemplo, o transporte coletivo) em favor daquelas cujas taxas de utilização tendem a ser muito menores, até mínima (como o automóvel particular) e que absorvem uma parte considerável do poder de compra da sociedade.

Embora Leonard estabeleça diferenças entra a obsolescência planejada e a

obsolescência tecnológica, sendo esta ultima “que ocorre quando alguns avanços da

tecnologia tornam a versão anterior de fato ultrapassada – caso do telefone, que

substituiu o telégrafo” (LEONARD, 2011 p. 102), as técnicas atuais do setor

produtivo das mercadorias eletrônicas visam unificar as duas formas de

obsolescências. A respeito dessas transformações, para o sociólogo alemão

Wolfgang Fritz Haug:

[A] técnica modificou radicalmente o padrão do valor de uso em várias áreas de consumo privado, levando à resistência e durabilidade menores. Essa técnica de diminuição do tempo de uso foi discutida sob o conceito de “obsoletismo artificial”, traduzido pela expressão “deterioração do produto”. As mercadorias são fabricadas com uma espécie de detonador, que dá início a sua autodestruição interna depois de um tempo devidamente calculado (HAUG, 1997, p. 53).

Esse novo padrão técnico corresponde ao que foi observado com muita

frequência na ACREPOM sobre doação de resíduos eletrônicos, pois dos mais

diversos, como barbeadores e bugigangas elétricas, aos mais comuns, como TV’s e

celulares, em sua maioria chegam como doações possuindo aspecto razoável e

conservado. Rara são as vezes que, em meio ao galpão, um desses resíduos

eletrônicos chegam a ser ressuscitados a vida como era em sua etapa anterior a

resíduo, mas nada que um reparo não possa dar jeito de conspirar de encontro ao

avanço que a própria produção capitalista conquistou anos antes em termos de

durabilidade das mercadorias.

Para alguns recicladores, os resíduos eletrônicos têm crescido muito como

doação para a ACREPOM. A lógica da obsolescência da mercadoria, em sua

visibilidade, se demonstra muito forte no de processo destruição do valor de uso de

mercadorias eletrônicas. A sacola de celulares descartados e doados na ACREPOM

vem crescendo; os mais antigos, dos anos 90-2000, não estão mais, enquanto que,

os que mais aparecem são de uma nova geração que há tempos permutaram as

peças mais resistentes, de ferro ou aço, por componentes menos resistentes, de

plástico ou polímero. Diante das novidades que o mercado de smartphones oferece,

muitos consumidores já adquiriram novos smartphones e ainda estão pensando

como darão conta de mais um desperdício de resíduo. Espera-se que o resultado

128

desse descarte, antes mesmo de completar a vida útil de dois anos, venha a ser em

forma de doação como resíduo eletrônico para esta associação.

Mais que sintoma das relações de consumo na cultura da modernidade, a

obsolescência provoca o desperdício com um problema de origem da

superprodução de mercadorias. Este por sua vez produz efeitos e afeta a sociedade,

principalmente ao sinalizar a vitalidade dos elementos inorgânicos da matéria, se

ainda podem ser úteis e valorosos dentro em sua rede de circulação (GREGSON e

CRANG 2010 p. 1030). Os resíduos materiais eletrônicos em Araçatuba sobram

como restos que, ao passarem por um processo de tecnologia de tratamento, serão

incinerados ou aterrados; se acaso for tornar-se outra coisa, os resíduos materiais

serão reconfigurados na medida em que cabe a recuperação de recursos, ou seja,

reciclagem, reutilização e remanufatura (Ibidem, p. 1026).

VIDRO

Como toda a regra tem exceção, nem todos os restos são bem-vindos para o

beneficiamento em reciclagem como, por exemplo, o vidro60.

Tivemos problemas com o vidro. É difícil ter comprador. Conseguimos um muito recentemente. Sabe por que isso?“– pergunta Celestino, que em seguida responde ele mesmo: “Os compradores de vidros os querem inteiros”“. “Não pode ter restos, cacos de vidro, pois segundo o comprador isso gera custos.”

Durante o hiato da falta do comprador de vidro, a associação se deparou com

o excesso deste que continuava chegando. Sem efetivar o valor de troca do material

beneficiado, os associados passaram a ter que recusar as doações do tipo vidro.

Perder os potes de vidros, copos, garrafinhas, com condições reutilizáveis, ou ter

que dar um fim completo a todos esses não é algo que os associados gostariam,

pois com a “perda do valor de uso, tanto a função quanto o significado de um objeto

também se perderam” (ASSMANN, 2011 p. 412).

Enquanto restos, os vidros pecaram pelo excesso. Naquele momento, a

situação do vidro na ACREPOM estava decaindo de resíduo para lixo. Todos os dias

60 Tal dificuldade para com a questão da reciclagem de vidros foi observada também por esse pesquisador em um outro contexto de coletivo de catadores (BONIFÁCIO, 2015 p. 82). A similaridade nos diferentes contextos, de Pelotas/RS e Araçatuba/SP, revela que o vidro era classificado como material a ser limpo, não porque era sujo, mas pela ausência e esperança por compradores. No caso de Pelotas, o material em questão criou um excesso perturbador, fazendo que inúmeros materiais compostos por vidros que se acumulassem aos montantes que iam ao redor do terreno da cooperativa CRIAS-BGV a entrada do galpão desta cooperativa.

129

a mesma condição que afeta as coisas que caem da mesa ou da mão, que ficam

esquecidas no chão, de maneira bastante genérica, é o que rotineiramente os

associados se deparam nas doações que perderam seu valor de uso e caiu na

inutilidade completa. Porém, o atual estado do vidro, simbolicamente, representava

o decaimento da materialidade de conotações metafísicas (ASSMANN, 2011 p.

412), com o decaimento do Paraíso: o decaimento do estado primitivo da Criação,

da unidade de Deus; Abfall (decaimento) denota tanto a lei quanto a hierarquia,

como também é a separação e a culpa original.

Para o vidro, o galpão havia se tornado um espaço transitório ao decaimento,

uma espécie de limbo que estoca este resíduo. Considerando o decaimento como

um sinônimo de pecado, a preocupação do senhor Celestino não era à toa: procurar

e não encontrar algum comprador viável para o vidro justificava o temor de perdê-lo

para sempre. Prestes a um desfecho cruel, diante do vidro acumulado surgiu a ideia

de uma oficina de trabalho artesanal que ensine o associado interessado a fazer

copinhos ou recipientes com o vidro estocado.

Os vidros, quase todos inteiros, empoeirados em uma enorme prateleira, sem

perspectiva alguma de um futuro valor de troca (MARX, 2017), sofreram uma

intervenção artesanal que os resgataram do decaimento completo. O workshop de

artesanato com os vidros deu suporte à recuperação do valor de uso destes objetos,

sejam conservados as suas antigas formas, ou dando-lhes um novo significado. Por

meio da manipulação criativa e artesanal do material, o associado-artesão gesta

uma espécie de contramemória cultural (ASSMANN, 2011).

De acordo com Aleida Assmann (2011), em Espaços da recordação, o

conceito de contramemoria cultural sugere que o papel desta é de resgatar os

elementos da cultura que tenham sido descartados (ASSAMNN, 2011 p. 413).

Nesse sentido, observando a transformação da materialidade na ação dos sujeitos

no contexto local onde os vidros estão em acumulação, o artesanato promoveu

também um novo tipo de arquivamento, que se afasta da imagem do excesso

assustador, para consistir agora uma vidraria composto por copos e recipientes para

líquidos que ainda guardam, de maneira estética, os rótulos das antigas marcas que

um dia pertenceram esses invólucros.

O arquivamento em vidraria é registro de mais um determinado

acontecimento importante. Pressupondo uma seleção do que é considerado mais

130

importante, por aquele que construiu este arquivo em vidros, o senhor Celestino

inscreve mais um capítulo presente na história oficial da ACREPOM. Esse registro

arquivado é a versão que permanece, e é considerada pelos demais devido ao

esforço de resgate do valor de uso da materialidade do vidro. Sem esse lampejo

inventivo do artesanato, os vidros virariam lixo, e a ACREPOM acarretaria ônus

econômico sobre este material que, mesmo ocupando na escala dos preços a

posição de um baixo valor de troca no mercado dos recicláveis (CEMPRE), ainda

sim representa renda e responsabilidade com as doações.

Vidro que entra no galpão passou a ser melhor arquivado. Disposto em

prateleira, reconfigurados como garrafas, potes, copos, vasos, estilizados com

pinturas e desenhos; os vidros deixaram de ser serventia de embalagem ou

revestimento para um só produto comercializado pelo mercado para se tornar objeto

artesanal. Seu proveito agora está presente nos mais diferentes usos: dos copinhos

d’agua próximo ao bebedouro dos associados, passando aos vários vasinhos de

flores que fazem parte da decoração do hall de entrada do atendimento, até o

arquivamento exposto e organizado um a um em prateleiras prontas para, se

quiserem, expressar um futuro negócio pautado no valor de troca (MARX, 2017),

àquele cliente que, por acaso, o deseja tê-lo como mercadoria.

REUTILIZAÇÃO

Se na ACREPOM o vidro foi um material que gerou impasses pela falta de

compradores, dificuldades na acomodação e consumo de tempo para aquela

reelaboração criativa, o mesmo não acontece com o papelão e o jornal. Ambos os

materiais, assim que entram na associação pelas doações, logo vão para a mão de

clientes desejosos. Acomodado com zelo próximo à entrada da associação, o jornal

e o papelão são vendidos por quilo no varejo, bastando o cliente apontar o quanto

quer do material, para em seguida ele ser pesado e sinalizar o preço.

Os clientes que habitualmente compram o jornal da associação são pintores,

serventes de pedreiros e ajudantes em geral da construção civil. É na recepção da

ACREPOM, com a mediação da secretária Alessandra, que o negócio de venda do

papelão e dos jornais se concretizam; percebe-se uma saída constante desses dois

materiais para reutilização:

No intervalo do almoço dos recicladores, sentado, observei que ao menos duas pessoas comprando jornais. Deram sorte. Não é sempre que se tem.

131

O primeiro levou 10 quilos; o segundo, os 20 quilos restantes. Em menos de 20 minutos, R$30,00. Segundo Alexandra, o preço básico (e módico) de R$1,00 o quilo serve a ambos os materiais reutilizáveis (jornais e papelão).

Em determinada ocasião, pude presenciar a falta que os jornais acarretam

nos lucros a mais à associação:

Depois de atender ao telefone, Alexandra completa: “todo momento é assim, quando não ligam para separar [jornais] e depois vir buscar, eles vêm assim mesmo e dão com a cara no muro. As pilhas de jornais ficam à vista de quem passa pela calçada. Volta e meia se vê alguém observando se tem”.

Depois de um tempo, houve discussão entre os gestores sobre o aumento do

preço devido a oferta e procura. No entanto, conforme ficou compreendido, um

possível aumento faria com que o cliente decida por outros meios para adquirir o

material para seus determinados fins particulares. O preço do jornal para reutilização

não é simbólico.

Converter em dinheiro para o caixa, anotar o que saiu de peso e o que entrou

como moeda, é a tarefa de todos os que se responsabilizaram pela venda. No final

do mês, as notas serão somadas com o montante da produção mensal do galpão,

agregando assim um pouco a mais de renda aos dividendos dos recicladores.

PRESERVAÇÃO DOS JORNAIS E DO PAPELÃO

Efetivar o aumento do dinheiro em caixa e a posterior divisão dos lucros aos

associados, é o resultado final de um processo anterior de preservação dos

mesmos. Alessandra enfatiza que o papelão e, principalmente, os jornais, que forem

doados “tem que chegar novos”, “tem que ter qualidade para reuso”, pois, em suas

palavras, os clientes não querem um jornal velho.

Curiosamente, o uso da palavra “reuso” pelos associados, ou reutilização,

para se referir ao jornal, monstra o duplo valor de uso que decresce seguidamente:

Em suas mais diferentes perspectivas, o primeiro valor de uso de um jornal é

formativo, informativo, intrinsicamente político-educativo – mesmo que não seja

propriamente político ou sobre política –, cujo conteúdo frequentemente se encontra

entrelaçado pela atividade intelectual. Transposto o aoristo em estatuto textual e/ou

fotográfico, o jornal remeterá a um determinado aparelho hegemônico de classe,

decisivo para criação do senso comum (LIGUORI; VOZA, 2017, 448-449). Assim

que impresso, se o jornal serve ao capital, ele adquire um valor de troca que se

confunde com o valor de uso, torna-se, por excelência, uma mercadoria.

132

Como mercadoria, o apregoar de Gramsci sobre os jornais, em seu texto Os

Jornais e os Operários de 1916, permanece atual e merece destaque:

A mercadoria é aquela folha de quatro ou seis páginas que todas as manhãs ou todas as tardes vai injetar no espírito do leitor os modos de sentir e de julgar os fatos da atualidade política que mais convém aos produtores e vendedores de papel impresso. Estamos dispostos a discorrer, com os operários especialmente, sobre a importância e a gravidade daquele ato aparentemente tão inocente que consiste em escolher o jornal que se pretende assinar?

De mercadoria a descarte, o jornal pode ter uma segunda chance de valor de

uso. Sem interesse pelas notícias do passado, novos compradores poderão utilizar

para proteger ou embrulhar coisas materiais, proteção de pisos, revestimentos e

obras em geral. Após este tipo de uso, o jornal torna-se material inservível. O

destaque a questão da qualidade de uso não foi suprimida

Para os recicladores mais antigos, a preferência da associação por trabalhar

somente com a venda para reutilização desses materiais por duas razões: a falta de

compradores que os queiram como reciclável e a alta procura individual para reuso.

Em se tratando dos jornais, as duas justificativas continuam presentes, o que os

torna cada vez mais raros; a saber, de alguns anos para cá, o consumo de

informação por mídia virtual tem mais espaço do que a mídia impressa, acarretando

em uma descontinuidade de beneficiamento e desinteresse dos mesmos dentro e

fora das indústrias recicladoras. A boa ideia da ACREPOM foi preservar os jornais

no momento da coleta deste apenas para reutilização.

Ao acompanhar Daniel em campo, reflito no diário de campo:

Dessa vez ele não almoçou com os associados. Aproveitou que durante o trajeto passava na casa de sua avó, foi lá e fez o horário de almoço. O horário de almoço é livre para que os associados façam as suas coisas. Outro motivo que fez com que Daniel não viesse para o almoço foi a produção oriunda da Folha da Região. “Eles [jornaleiros da FR] são muito atarefados. Todas as quartas-feiras eles preferem me atender neste horário do almoço, assim não cumpro o meu horário estabelecido para o almoço e posso remanejar a entrega”.

Atualmente, a única fonte específica do jornal como resíduo de reuso para

associação vem do popular jornal araçatubense Folha da Região que há muitos

anos é parceiro nas doações para a ACREPOM – tão raro são as vezes que um

indivíduo doa jornal, que os associados nem recordam quando foi a última vez.

133

Para que os jornais sejam vendidos como material reutilizado, eles precisam

estar em boas condições, e isso envolve discernir as categorias nativas de resíduo

limpo e sujo, para classificá-lo adequadamente.

Se o jornal entregue pela Folha da Região estiver em más condições, rasgado, sujo, vai para fardamento. Isso é raro, porque dentro deste jornal há uma política de separação dos recicláveis. Não vêm só jornais, vem copinhos descartáveis, folhas impressas, vem de tudo e tudo em boas condições na hora de ser coletado. Do contrário, eu nem pegaria -.

No caso do papelão, as origens das doações são as mais diversas. Sua

venda para a reutilização não é exclusiva igual ao jornal, pois por apresentar maior

número de doadores, abundância desse material, o principal vínculo é para o

beneficiamento. Diferente do jornal, o papelão, como material residual na

ACREPOM, é extremamente abundante e representa, ao lado do papel, o segundo

maior volume de material que chega até a associação.

Na esteira do universo da reciclagem, o descarte de resíduos domésticos se

destaca por serem os mais comuns a estarem configurados como restos de nosso

consumo. Todos os dias, os recicladores associados vasculham o interior desses

recipientes, selecionam na acurácia do olhar e novamente separam os resíduos, a

fim de pôr em partida os circuitos dos mercados de reciclagem que se valem dos

restos mortais do consumo urbano. Através destes circuitos, estes materiais serão,

eventualmente, beneficiados para o status de matéria-prima nos diferentes

processos industriais para a produção de uma nova mercadoria.

A abundância de resíduos recicláveis espalhada por toda a ACREPOM é fruto

direto da lógica da produção ao longo do desenvolvimento do sistema capitalista,

que desde o início do processo de urbanização das cidades europeias na segunda

metade do século XVIII (DIAS, 2002), contou com automatização do modo de

produção industrial para o consumo de bens de uso e necessidades. É no contexto

urbano que podemos observar como as mudanças no modo de consumo da

população, que passou a comprar produtos cada vez mais industrializados,

corroboraram com aumentou sucessivo da produção de resíduos sólidos urbanos.

Caminhar pelo galpão da ACREPOM é deparar-se com a facilidade pela qual

consumimos cotidianamente materiais descartáveis com os quais, eventualmente,

associações e cooperativas de catadores terão de lidar no pós-consumo. A primeira

imagem que se tem quando o portão da área externa da associação é aberto, é de

134

se deparar com montanhas de bags de resíduos recicláveis organizados ou que

estão em vias de serem.

Prensados e ensacados em bag especiais, essas montanhas juntas formam

uma cordilheira de resíduos que ultrapassam um pouco mais que minha altura,

estando pronto para o transporte para a usina de reciclagem. Consequência direta

do crescimento da produção e consumo de coisas, objetos e bens, dos mais comuns

aos mais complexos, entre os montes que formam essa cordilheira, os materiais

plásticos ficam entre os mais visíveis nessas montanhas.

Embora os resíduos recicláveis de papel e papelão sejam o carro chefe dos

materiais doados à ACREPOM, objetos de origem plástica não ficam atrás e são tão

valiosos quanto.

Para Celestino:

O plástico é um recurso valioso demais para ser enviado ao aterro ou ficar poluindo por aí. A indústria quer que esses materiais voltem a ser reciclados sempre que possível. Quando os plásticos não podem ser reciclados de maneira sustentável, ainda sim os plásticos não recicláveis poderiam ser reutilizados, como é o caso dos retornáveis, contribuindo para que menos petróleo fosse explorado. (Celestino, fevereiro de 2018).

Quarta-feira, dia 7 de fevereiro de 2018, Daniel, o motorista do caminhão da

ACREPOM, segue a rota para o supermercado Pão de Açúcar61. Segundo consta na

regularidade dos trajetos da semana, todas as quartas-feiras os recicladores

seguem motorizados na rota dos plásticos. Nomeio como rota dos plásticos, porque

tanto o caminhão como a picape da associação, voltam carregados com todo o tipo

de plástico oriundo de estabelecimentos alimentícios parceiros da associação.

Acompanhando o trajeto do caminhão junto com os recicladores e, como se não

bastasse a montanha de plásticos doados por esses locais, percebo que alguns

domicílios, nas redondezas da associação, também são contemplados com a coleta

e, sem nenhuma surpresa, mais resíduos plásticos são espremidos na caçamba.

Segundo o Dicionário de Etimologia On-line62, a palavra “plástico” deriva do

grego πλαστικός (plastikos), que significa "capaz de ser moldado" e, por sua vez, de

πλαστός (plastos), que significa "moldado". A característica de plasticidade ou

61 Cabe contextualizar que primeiro dia que observei o caminhão indo ao supermercado Pão de Açúcar foi também. No início de 2018, o contrato com essa empresa terminou e que não faz mais parte dos planos de coleta dos recicladores. 62DICIONÁRIO DE ETIMOLOGIA ON-LINE. Disponível em:<https://www.etymonline.com/search?q=plastic>. Acesso em 09/10/2020.

135

maleabilidade do material durante a fabricação permite que ele seja fundido,

prensado ou extrusado em uma variedade de formas, como: filmes, fibras, chapas,

tubos, garrafas, caixas e etc. O substantivo comum “plástico” não deve ser

confundido com o adjetivo técnico plástico. O adjetivo é aplicável a qualquer material

que sofra uma configuração plástica ou mudança permanente na forma, quando este

é forçado além de um determinado ponto. Por exemplo, o alumínio estampado ou

forjado exibe plasticidade nesse sentido, mas não é plástico. Por outro lado, alguns

plásticos, em suas formas acabadas, quebram antes de deformar e, portanto, não

possuem plasticidade no sentido técnico.

O plástico existe desde 1600 A.C, quando os povos mesoamericanos

exploraram a capacidade de materiais residuais, como ovos e proteínas do sangue,

que são polímeros orgânicos, e usaram como borracha natural para fazer bolas,

faixas e estatuetas; perpassando pela Idade Média, que imitavam as propriedades

dos chifres dos animais, tratando-as com proteínas do leite (caseína) e soda

cáustica, para serem usados como janelas e lanternas (ANDRADY, NEAL 2009, p.

1977); mas foi na Modernidade, no início do século XX, mais precisamente em Nova

Iorque em 1907, onde foi criado o primeiro plástico totalmente sintético do mundo

que foi a baquelite, por Leo Baekeland, que cunhou o termo "plásticos" (AMERICAN

CHEMICAL SOCIETY, 1993, p. 2).

Desde então, eles estão praticamente em tudo:

Quase qualquer pessoa pode citar uma dúzia de produtos plásticos familiares: eletrodomésticos, utensílios de cozinha, tampos, pavimento, telefones, brinquedos, revestimentos, artigos esportivos, embalagens, autopeças, placas de circuito. Mas alguns são menos visíveis: implantes médicos – de substituições da articulação do quadril para marcapassos a novas lentes para pacientes com catarata – são feitos de materiais sintéticos. Assim como as espaçonaves e satélites com os quais exploramos nosso universo (AMERICAN CHEMICAL SOCIETY, 1993 p. 1) (tradução nossa).

Diante do exposto sobre o conceito de descartabilidade, consideremos, por

exemplo, o comum copinho plástico, usado e descartado por um dos colaboradores

que doam a ACREPOM. Em um exercício de imaginação, supondo que um

funcionário de um dos parceiros doadores use em média três copos de plástico por

dia de trabalho como recipiente para água e ou café, ao final de um ano uma única

pessoa descartará 720 copos. Se a vida útil de um copo descartável não chega a um

minuto, jogado na natureza, sem ação dos catadores para a reciclagem, o tempo de

decomposição pode durar 450 anos.

136

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que apenas no

Brasil cerca de 720 milhões de copos descartáveis por dia são jogados fora como

resíduo ou lixo. Se dividirmos a quantidade de copos utilizados diariamente pela

população registrada no último censo pelo próprio IBGE, pouco mais de 208,4

milhões de pessoas, teremos cerca de 3,45 copos por pessoa sendo consumidos

diariamente no Brasil, gerando um total de aproximadamente 1500 toneladas de

resíduos plásticos. A produção de resíduo/lixo plástico classifica o Brasil como o 4º

maior produtor, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia, gerando, em todo o

território brasileiro, incríveis 11 milhões de toneladas de lixo plástico por ano (KAZA

et. al. 2018). Para piorar a situação de abundância deste enquanto resíduo, o

relatório “Solucionar a Poluição Plástica – Transparência e Responsabilização"

(WWF 2019), feita pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF, sigla em inglês),

aponta que nosso país é um dos que menos recicla o plástico: apenas 1,2% é

reciclado, ou seja, 145.043 toneladas.

OBSERVANDO OS PLÁSTICOS

Na associação local, os recicladores pontuam diferenças entre os tipos de

plásticos que são doados. Assim que chegam, ao observar o que receberam, os

associados distinguem os resíduos plásticos, classificando-os como plástico mole ou

plástico duro. Em geral, ambas as classificações fazem parte da mesma ordem dos

termoplásticos, a subdivisão mais comum e abundante no mundo dos plásticos. Os

termoplásticos são formados por polímeros de alta densidade molecular, cuja

existência física pode ser na forma linear ou de estrutura ramificada (HARPER, 1999

p. 11).

O prefixo termo representa a dupla capacidade de transformação desses

plásticos de acordo com a oscilação da temperatura; quando aquecidos, os plásticos

se liquefazem formando um líquido altamente viscoso, capaz de ser maleável ou

moldável de acordo com os equipamentos usados no processamento de plásticos,

para depois enrijecerem nos contornos frios de um produto-mercadoria. A depender

da temperatura, do arrefecimento, e das técnicas de moldagem, de acabamento e

extrusão, o material irá se solidificar produzindo os mais diferentes produtos comuns

que servem no nosso dia a dia.

137

Entre os punhados de plásticos a serem beneficiados, não é raro ver que

numa mesma sacola – ela mesma de plástico, a bag propriamente dita, garrafas

PET’s juntas em uma única cor. Para ser aceito o beneficiamento dos plásticos pets

para as Usinas Recicladoras, há duas ordens de separação, que são elas: por cores,

verde, transparente ou leitoso; e por conteúdo, pet refrigerante, água, suco, pote ou

óleo comestível e etc. Depois de separados, tiram-se os rótulos, tampinhas e demais

adereços, igualmente úteis ou não aos outros tipos de plástico reciclável.

Durante as separações, a manual e a da esteira, sou convidado por um dos

recicladores a observar a classificação mais de perto. Completando o padrão

utilizado pelas indústrias que fabricam e reciclam plásticos, o associado mostra a

existência de um número, envolto pelo símbolo internacional da reciclagem (o

triângulo), que estão fixados na base dos produtos, ou nos rótulos plásticos que

foram consumidos, e que define o tipo de plástico. Essa numeração, que vai do

número um até o sete, é extremamente importante, pois indica a durabilidade,

toxicidade, possibilidade de reutilização, ou ainda, no caso da associação em

questão, a capacidade de reciclagem, a fim de indicar se este processo compensa

financeiramente.

Segundo o reciclador presente na demonstração, estas numerações devem

estar presentes em todos os tipos de plástico, e devem servir para alertar o também

consumidor, sobretudo, a respeito do descarte para a coleta seletiva, e quanto a

orientação na separação devida de cada material plástico aceita no trabalho

reciclável.

Concebido de acordo com critérios internacionais, tais numerações no Brasil

seguem a norma técnica do plástico (NBR 13.230:2008).

Número 1 - PET ou PETE (Tereftalato de Polietileno), das famosas garrafas

PET;

Número 2 - PEAD (Polietileno de Alta Densidade) encontrado nas

embalagens de detergente e óleos automotivos, sacolas de supermercados,

tampinhas de garrafa, potes plásticos;

Número 3 PVC (Policloreto de Polivinila) dos conhecidos canos de PVC, mas

que aqui se expandem também como garrafas d’água, potes de condimentos,

garrafas de sucos, pedaços de mangueiras e outros;

138

Número 4 - PEBD (Polietileno de Baixa Densidade) encontrado embalagens,

composição de peças de computador, brinquedos, garrafas, sacos de lixo e

também as lâminas que compõe a caixa de leite;;

Número 5 - PP (Polipropileno), que estão presentes em embalagens de

salgadinhos, biscoitos, sopas instantâneas, barrinhas de cereais, chocolates,

rótulos das garrafas PET, ovos de páscoa, no plástico laminado, ou seja, que

se caracterizam principalmente por plásticos metalizados, mas também pode

ser transparente, opaco ou fosco;

Número 6 - PS (Poliestireno) utilizado em potes para iogurtes, sorvetes,

doces, frascos, pratos, tampas, copos descartáveis, aparelhos de barbear

descartáveis e brinquedos resinados; e por fim.

Número 7 - BOPP (Película de Polipropileno Biorientada, em português) uma

variação do PS, elemento coringa do plástico, um plástico que requer um

processo complexo e caro para ser reciclado e que por esse motivo não é

reciclado de fato.

Devido a diversidade de plásticos oriundos da família dos termoplásticos, por

serem baratos, leves, resistentes a corrosões e apresentarem propriedades de

isolamento elétrico (WWF, 2019 p. 40), reverte sendo extremamente vantajosos ao

ciclo de reciclagem, uma vez que mesmo com o aquecimento suas propriedades

químicas não mudam, possibilitando ao material ser moldado em outros formatos ou

tipos de plástico. Nesse sentido, termoplásticos são potencialmente recicláveis.

Feita manualmente na esteira, a separação do plástico por tipos leva em

consideração a densidade. Os resíduos plásticos que chegam até ACREPOM são

classificados pelos recicladores em dois tipos: plástico duro e plástico mole.

As garrafinhas e o rótulo podem vir acompanhados. Se estivem juntos, o rotulo será plástico mole, enquanto a tampinha é considerado plástico duro. Daí tem duas opções, ou ensacá-los nas bags, se forem plástico mole, ou enfardar com a máquina (prensa), amarrar com fitas plásticas que – muitas vezes nós mesmos fazemos com resto e sobra de plástico, para a organização do plástico duro.

Depois da separação, os que são ditos como plástico duro, em geral os

plásticos mais densos, ou plástico duro, como os da família dos PETs, dos PS e

PEAD, por exemplo, entram na máquina de prensagem localizada próxima a esteira

do galpão. A ACREPOM conta atualmente com duas presas, cada destinada a uma

atividade diferente com os materiais: a menor, chamada de prensa de cima – nome

139

dado pelos recicladores, pois é a prensa que fica logo na entrada, é muito usada

para beneficiamento dos papéis e papelão; e a prensa de baixo, que fica ao lado da

esteira.

Um pouco maior do que a outra, a prensa de baixo tem uma pressão mais

forte para resistir aos materiais duros, aguentando facilmente o trabalho bruto

industrial. Quem mais está a frente dela é o reciclador Paulo, ou Seu Paulo, como é

carinhosamente conhecido pelos demais.

Paulo, homem negro, alto, com um olhar simpático e alegre, é sempre visto amassando plásticos, potes, garrafas brancas e plásticos duros com potência do motor da prensa que é de 5CV, como apontado na etiqueta do produto. Logo, dificilmente, não se resolve o problema em comprimir punhados de plásticos duros. Porém, logo pela manhã, enquanto compatibilizava todos os plásticos separados no dia anterior como um fardo, a máquina de prensar parou; tentou-se novamente e nada. Sem perder tempo e em vistas de atender o parceiro comprador, um associado, o mais baixinho de todos, de repente subiu o monte [plástico]. Em meio a música tema de carnaval que tocava na rádio local, embalou a sapatear com o ritmo, como se estivesse em um desfile de escola de samba.

Enquanto a prensa de cima é operada ora por Baú ou Raimundo, Sr. Paulo é

o único que fica na prensa de baixo. Diz ter ciúme da prensa, por isso chama para si

a responsabilidade deste cargo, o qual também aprendeu sozinho a concertá-la,

caso precise. Não é por menos a exclusividade no uso da prensa, pois ao lidar com

uma força de 15 toneladas de maneira natural com a dureza relativa desses

termoplásticos, que correspondem praticamente em média 80% de todo plástico

doado a ACREPOM, há a necessidade de trabalhar quase todo o expediente ao lado

da máquina, não rara as vezes tendo que para quando ela enguiça.

A exclusividade para trabalhar apenas com plásticos é da prensa de baixo – a

prensa de cima, por ter um potencial menor, não opera com plástico, servindo a

resíduos recicláveis de papéis e papelão. Ao ligá-la, a prensa de baixo resolve todo

o trabalho: os materiais estremecem uns aos outros, mesclam-se em uma forma

quadrangular que descaracteriza toda a particularidade que cada material teve um

dia, quando era marcado por rótulo que o qualificava nas identidades das

mercadorias.

Dos materiais mais duros como os potes, aos materiais mais flexíveis, como a

garrafinha comum de água; da bag para a prensa, e da prensa para o fardamento,

somente um especialista agora é capaz de distinguir qual é qual nos enfardados dos

plásticos duros e moles. O barulho da prensa revela a potência para esmagar tudo

140

sem discriminação. O som que produz no achatar dos plásticos é de um ruído

poderoso, que provoca alegria em Seu Paulo que:

Experto coloca o fone de ouvido sem tirar o protetor auricular, sintoniza na conhecida rádio Club FM e cai no passo de samba que acompanha o som da prensa. Quase com que uma magia do som da prensa, na sintonia do rádio que fica ligado aos fundos do galpão durante todo o expediente, próximo a esteira e a prensa, começa a tocar sambas-enredos carnavalescos. Estamos na segunda semana de fevereiro de 2018, tempo de carnaval, e o rádio, assim como o sapatear ajeitado de Seu Paulo, sintonizam-se a prensa hidráulica em operação. O samba no pé aconteceu e contagiou os outros a sambarem também, deixando o ambiente de trabalho mais animado.

O samba para Seu Paulo é mais do que essa cena. Naquela mesma semana

do Carnaval 2018, enquanto opera a máquina, ele conta que foi sambista da

Mangueira em 1988 e 1989. Este último ano, de 1989, por acaso foi o ano em que a

Beija-Flor e seu lixo revolucionário63 causou delírio coletivo, único, que hipnotizou os

milhares de corações dos foliões que lotavam a Sapucaí. Apesar de ter perdido o

título para a Imperatriz, injustamente64, pois a escola de Nilópolis apresentou um

belíssimo e ácido enredo "Ratos e urubus larguem a minha fantasia", do ilustre

carnavalesco Joãosinho Trinta, este samba e enredo marcaram a passarela para

sempre como sendo um dos desfiles mais impactantes do carnaval carioca de todos

os tempos, que escancara o luxo das elites e o lixo da pobreza em contrastes,

revelando uma pujante crítica social a desigualdade65 vindoura dos anos em que o

neoliberalismo surgiu e se potencializaria nos anos de 1990.

Seu Paulo, atenta para perceber que sem um suporte de papelão,

improvisado na base e no topo, o processo chamado de enfardamento não fica

63G1. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/rio/ha-25-anos-lixo-revolucionario-da-beija-flor-reinava-no-

sambodromo-11406236#ixzz58tACtH75>. Acesso em 09/10/2020. 64G1. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/rio/carnaval/2016/perdeu-titulo-ganhou-historia-18454713>.

Acesso em 09/10/2020. 65 Pertinente ao universo do tema desta pesquisa, segue um trecho da explicação sobre este enredo, que é um

enredo-protesto, para a reflexão: “A ideia deste enredo não surgiu como inspiração. Ele foi provocado pela

percepção da enorme quantidade de sujeira, de lixo que nos cerca e nos está sufocando. É o lixo físico, mental e

espiritual deste país. É o lixo da falta de amor, da honestidade e do respeito à vida. Tremendas falhas que vem

provocando o aumento do grande povo de rua abandonado, escorraçado e esquecido. Quantidade enorme de mendigos, famintos, desocupados, loucos, pivetes, meretrizes, travestis povoam os espaços do Brasil. É a falta de

empregos, de orientação e tantas outras carências. Por outro lado, existe um luxo causador de tantas calamidades.

É o luxo de gastarem milhões de dólares com armamentos, politicagem, igrejas, negociatas e tantas outras

falcatruas. O dinheiro gasto no Carnaval é tirado do próprio Carnaval e ainda dá lucro, gera empregos,

desenvolve um enorme artesanato e atrai turistas. E a organização, hoje, das Escolas é um exemplo de que a

honestidade gera dinheiro. Em plena crise as Escolas estão arrecadando bastante para fazerem grandes desfiles.

Não há mais diferenças. O dinheiro é suficiente para todas. Nós que participamos da Estrutura das Escolas de

Samba temos, portanto, o direito de reclamar, de protestar com os descalabros da vida brasileira. E é um desafio

fazer isto através da brincadeira do Carnaval”. Disponível em:<http://www.galeriadosamba.com.br/escolas-de-

samba/beija-flor-de-nilopolis/1989/>. Acesso em 09/10/2020.

141

correto nas laterais. “Talvez uma prensa mais moderna, de última geração, teria

resolvido esse problema”, “uma que funcione logo de começo, sabe?” – confidencia

o reciclador. Como estamos falando de uma prensa que foi adquirida pela

ACREPOM há mais de dez anos, cada fardamento que sai da prensa tem pouco

mais de 200 kg, sendo necessário, ao final do processo, que um associado ajude a

amarrar o material com uma tira de plástico ainda na prensa, dando o acabamento

final de fardo de plástico duro, como chamam aqui na associação os materiais

plásticos análogos ao PEAD. Outro associado mais forte, se junta ao que amarrou e

os dois, logo depois que o Seu Paulo abriu as chapas metálicas nas laterais da

prensa, aplicam grande força para pegar pelas alças que se formaram no passar das

tiras. Dobrando as pernas, com as costas retas, os dois conseguiram levantar a

carga66 e por logo ao lado da prensa em cima de paletes, na parte aberta da

ACREPOM.

Tanto a posição da prensa, que traça a divisa entre o chão do galpão e terra

da área aberta, como os paletes anteriormente colocados para aguentar o peso do

material/mercadoria, foram anteriormente planejados de forma a evitar os obstáculos

no caminho ou trajeto. Logo, sabendo de antemão onde irão colocar a carga antes

de levantá-la, sem precisar assim, de um ponto de descanso, que poderia ser

necessário se a distância de descarga não fosse mínima. Arrumado em paletes, dão

sustentação e equilíbrio da carga, o material está pronto para ser vendido e

transportado para a usina de reciclagem competente. A coordenadora da produção,

Silvinha, avalia o trabalho, anota o peso e, após determinada quantidade se

acumular sob o palete, ela liga para o comprador vir buscar. Os ajustes de posição

final destes materiais que foram separados, prensados e enfardados, fica a cargo de

mais um associado que se uni depois que descarrega a carga. Depois disso, o

anterior material residual aparece como mercadoria em forma de matéria-prima.

Um dia depois do trabalho finalizado com prensa, o caminhão da empresa

compradora chega para pegar a mercadoria. Ao adentrar pelo portão principal, que

se dispõe tanto a receber doação de médio a grande volume, quanto na entrega da

mercadoria aos compradores, o caminhão vai de ré do início ao fim. O veículo

66 Uma evidente técnica de ergonomia é aplicada. Seu objetivo é elaborar, mediante a contribuição de diversas

disciplinas científicas que a compõem, um corpo de conhecimentos que, dentro de uma perspectiva de aplicação,

deve resultar numa melhor adaptação ao homem dos meios tecnológicos e dos ambientes de trabalho e de vida

(INTERNATIONAL ERGONOMICS ASSOCIATION, 2015, tradução nossa) Cabe ressaltar que houve

treinamentos dentro da associação para que se respeite essa lógica para que não ocorram acidentes.

142

possui o que eles chamam de garra sucateiro acoplada na forma de guindaste

hidráulico para que, fardo a fardo, se coloque organizadamente em cima da

carroceria. Os paletes que serviram de apoio ficam e fardos partem com o

transporte.

Todo o processo desse tipo de beneficiamento dentro da associação

ACREPOM se adequa em parte o que se chamam de reciclagem mecânica. Embora

a reciclagem mecânica envolva também das mais simples as mais complexas

práticas manuais com o resíduo reciclável, para Zanin e Mancini (2009), o

procedimento de reciclagem mecânica é o mais completo quando feito pelas

indústrias de reciclagens que disponham de toda a tecnologia, pois, como vimos

anteriormente em relação aos termoplásticos, estes apresentam facilidades nos

termos de reciclagem, diferente dos termos fixos. Os procedimentos de reciclagem

mecânica também abarcam o papel e o papelão, ou tipo de material que quer se

beneficiar para matéria-prima reciclável, uma vez que se utilizam, em maior ou

menor medida, em seu circuito completo de operações, a tendência passar pela

coleta dos resíduos, separação, prensagem, fragmentação, pré-lavagem, lavagem,

enxágue, moagem e secagem e etc.

Na etapa de separação dentro do galpão, como vimos, as lógicas obedecem

ou separação manual ou o auxílio desta com a esteira. Fora do galpão, em uma

usina de reciclagem, outro beneficiamento é realizado, que se desdobra por

diferentes técnicas, como a separação por magnetismo, propriedades elétricas e

propriedades ópticas (HARPER, 1999). O Brasil usa em grande medida a separação

manual, o que gera uma dependência direta com prática do saber-fazer dos

primeiros que manejaram esta tarefa, ou seja, de responsabilidade dos catadores e

recicladores.

Outro fator importante é a qualidade. As empresas e indústrias de reciclagem

dão preferência em trabalhar com cooperativas e associações do gênero da coleta

seletiva, pois reconhecem que o material é mais limpo, resistente, preservado,

diferente dos materiais provenientes de lixões ou aterros sanitários. A estes últimos,

sobram os famosos atravessadores. Em resumo, o que ambas as partes querem,

são resultados satisfatórios no processo de reciclagem como um todo, por isso os

associados da ACREPOM se preocupam com a separação criteriosa que atenda os

seguintes requisitos mínimos do mercado (PLASTIVIDA, 2010): separação por tipo

143

de plástico, por cor e por tipo de produto que esses plásticos, enquanto embalagem

acondicionaram.

Depois de separados e prensados dentro da associação, o plástico que chega

à usina de reciclagem é logo moído. Existem diferentes tipos de moimento, com

martelo ou faca, sendo as facas os mais utilizados no ramo da reciclagem com

plásticos. Depois de moídos, o material é fragmentado com a mesma técnica com

que se moeram, até se tornarem unidades pequenas conhecidas como flocos

(flakes) (HARPER, 1999; ZANIN e MANCINI, 2009; PLASTIVIDA, 2010).

Uma etapa de lavagem do plástico se segue depois do material moído. Nas

técnicas de lavagem usam-se água e produtos químicos, que são agitados e tem a

sua temperatura controlada para retirada de contaminantes ou impurezas

impregnadas. Por passar por um procedimento químico, é necessário que a água da

lavagem receba uma intervenção adequada para a sua reutilização ou emissão em

esgoto como efluente (Zanin e Mancini, 2009).

O plástico já lavado é então secado. No caso de reciclagem de termoplásticos

finos, como plástico filme ou sacolas, há um processo de aglutinação antes da

extrusão. A velocidade do atrito dos fragmentos lavados e secos contra a parede do

aglutinador, um equipamento rotativo com pás localizadas na parte de baixo do

corpo do equipamento, semelhante a um liquidificador, provoca elevação da

temperatura, levando à formação de uma massa plástica viscosa. O aglutinador

também é utilizado para incorporação de aditivos, como cargas, pigmentos e

lubrificantes (HARPER, 1999 pp. 727-728).

Depois de todos esses processos, o material plástico chega a extrusora para

formação granular, ou seja, em matéria-prima que abastecerá as indústrias para a

manufatura de novas mercadorias. A função primeira da extrusora é fundir e tornar a

massa plástica viscosa mais homogênea, para depois força-la a sair por um

cabeçote que alonga e filamentar a massa, igual a um espaguete, que será resfriado

com água. Por fim, ele é picotado em granulador e transformado em grãos plásticos

(pellets) (HARPER, 1999 p. 169).

Pode se servir várias vezes a reciclagem dos termoplásticos, ainda que cada

reprocessamento custe, obviamente, a perda de propriedades em cada reciclagem,

o que pode vir a degradar devido ao alto número de re-ciclos (HARPER, 1999 pp.

144

14-15), essa matéria-prima servirá para novos produtos nas industrias destinadas a

produção da mercadoria para o consumo comercial.

Das usinas de recicláveis para a indústria de produção de bens, é que

identidade desses produtos tornar-se-ão mercadorias. A ordem da produção entra

em cena e determina a restituição em forma de mercadoria, fazendo desaparecer os

amalgamas de elementos materiais do mesmo tipo conduzidos até então pela ordem

do reciclável em dois momentos subsequentes: catadores/recicladores e usina de

reciclagem.

Nada mais significativo a ACREPOM do que o material papel. Papel e

papelão são os únicos materiais que compõem parte no nome da associação –

Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais Recicláveis de Araçatuba.

Isso se deve, segundo o grupo gestor, porque desde a origem da associação,

ambos eram (e continuam sendo) os principais, senão os únicos, tipos de materiais

coletados pelos primeiros associados no início à jornada de beneficiamento dos

resíduos para a reciclagem dentro do galpão. Antes da ACREPOM agregar outros

resíduos a sua lógica produtiva de trabalho e renda com reciclagem, papel e papelão

foram os materiais constitutivos da história desta associação que, não por acaso,

reserva especial afeição a doação deste material em seu espaço, bem como os

recicladores associados a ACREPOM são chamados, vez ou outra, de papeleiros

(catador de papel mais a palavra catador) por alguns doadores, parceiros e até

mesmo pelo grupo gestor quando se refere a origem da identidade da ACREPOM.

O papel e o papelão têm importância não apenas no nome da associação. De

acordo com a coordenadora da produção, Silvinha, mais da metade do material

beneficiado pela ACREPOM é composto por papel ou papelão. Papel branco, papel

misto (colorido), jornal, papelão ondulado, são alguns dos resíduos recicláveis que

abundam dentro das bags da associação. Tal situação se desdobra também no

contexto nacional pois, em geral, papel e papelão são materiais valiosos dentro do

esquema da reciclagem como um todo.

Conforme o recente Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil 2018/2019, da

ABRELPE (2019), sobre o volume de materiais recicláveis coletados pelas

cooperativas e associações de catadores e recicladores, a categoria que abrange os

papéis (e suas respectivas subdivisões) representam o maior volume do total

coletado pelas cooperativas e associações de catadores nos anos de 2017 e 2018:

145

foram 55.742 toneladas em 2017 e 43.571 toneladas em 2018, refletindo,

respectivamente ao ano, 62,6 % e 65,0% entre todos os demais materiais coletados

como o plásticos, alumínio, outros metais (sucata e cobre, por exemplo), vidros e

outros materiais (eletroeletrônicos, óleos e gorduras residuais e outros materiais não

especificados) (ABRELPE, 2019 p. 56).

Se no Brasil a disponibilidade do papel como resíduo supera e muito os

demais tipos de resíduos coletados67, de prontidão podemos supor que a produção

deste material que entrar em nossas vidas é gigantesca. O consumo do papel faz

parte fundamental na vida escolar e acadêmica, nas nossas leituras e escritas. No

mundo do trabalho, o papel circula dentro de escritórios e no meio da produção, nas

impressões de tinta e nos usos em cadernos ou blocos de notas. No universo do

lazer, os estilos dos papeis também se fazem presentes em indescritíveis infinidades

de formas e aplicações.

Além de estar presente materialmente em todos os tipos, formatos e

tamanhos, ocupando múltiplos espaços, o uso abundante do papel se faz muito

vigente na produção e consumo da memória. Das centenas de quilos de papel que

chegam diariamente ACREPOM, como resíduos descartados, o papel configurado

com escrita é de longe o mais abundante. Livros, apostilas educacionais, cadernos

escolares de anos anteriores, e outros papéis com escritos, sejam impressos ou

manuscritos, passam a se apresentar, paralelamente ao contorno residual material

no local, como um rastro a ser decifrado, no qual é provável encontrarmos vestígios

para além da cultura material do descarte, ou seja, não apenas do que foi escrito,

mas o que também não se escreveu, sobretudo, se pensarmos que, no Brasil, há

ainda presente uma literatura indígena e africana de diáspora que tem seus

pertencimentos calcados nos elos da cultura oral.

Certa vez chega a ACREPOM, dentro de antigos envelopes bancários de

plástico, centenas de quilos de papeis gravados no antigo aspecto das

ultrapassadas impressoras matriciais, ou de impacto, semelhante ao da máquina de

escrever, no qual uma fita é pressionada no papel a fim de imprimir a letra por letra.

67 A título de interesse, abaixo da primeira posição papel, nos anos de 2017 e 2018 respectivamente, temos: em

2º lugar o plástico (14.442T com 17,1% em 2017 e 11.308T com 16,9% em 2018); 3º lugar vidros (10.015T com

11,9% em 2017 e 6.738T com 10,0% em 2018); 4º outros metais (5.892T com 7,0% em 2017 e 4.469T com

6,7% em 2018) 5º alumínio (625T com 0,7% em 2017 e 434T com 0,6% em 2018) e em 6º, e último lugar,

orgânicos e outros materiais (587T com 0,7% em 2017 e 528T com 0,8% em 2018) (ABRELPE, 2019 p. 56).

146

Esses documentos vieram todos de um banco parceiro, mas por estarem na ordem

como arquivo morto.

É preciso lembrar que para beneficiar papeis e documentos de papel doados

que contém dados sigilosos a ACREPOM conta com um grande equipamento, a

fragmentadora industrial de papeis. Ocupando um cômodo na parte de dentro da

associação, em meio várias tiras espalhas pelo chão, a fragmentadora trabalha para

picar enormes quantidades de papeis doados, oriundos, principalmente, das

parcerias mais discretas, com dados sigilos, por exemplo, de arquivos que

correspondem à relação bioética entre médico e paciente, dados bancários, entre

outros.

Não foi o caso, desta vez, de usar a fragmentadora com os papeis do banco.

Por serem menos que a metade do tamanho que representa um papel A4, a

fragmentadora não iria aceitar, determinando que o trabalho de picar papel ficasse

por conta dos recicladores. Me junto aos recicladores neste trabalho manual,

aprendendo o fragmentar, rasgando com as mãos, em várias partes esses antigos

documentos que continham dados como nomes, endereços, número de conta,

comprovantes, registros, declarações, transações e etc.

Segundo relatado pelos recicladores, é raro ver esse trabalho manual de

rasgar papel sigiloso. Num outro momento, o reciclador Márcio me chama para ler

um papel aparentemente comum. Era uma cartilha de porte de armas especificando

o modelo e número de registro. Por ter autorização da posse e do porte, a assinatura

do delegado local encontra-se no documento, assim como demais dados do usuário,

o reciclador classifica como sigiloso e encaminha a fragmentadora, para somente

depois ter o seu destino correto. Assisto o processo e vejo o documento, com

identificações pessoais, como nome, endereço, telefone, passar uma vez na

máquina e se converter em indistintas tiras de papel. Assim, o gigante picador de

papel garante sigilo e acerca de documentos com dados pessoais ou outros,

respeitando privacidade. Essa é uma questão que a Edna Flor sempre comenta:

Veja bem: o papel, que nunca falta, só essa semana (ultima semana de julho de 2018) vieram aqui picotar papel na nossa mais nova fragmentadora industrial. Podem ser documentos sigilosos, e se quiserem podem acompanhar. Trabalhamos de ‘graça’, por assim dizer, com a fragmentadora. (terça-feira, 31 de julho de 2018).

147

No que diz respeito ao preço dos resíduos de papel/papelão pagos por

fábricas de reciclagem no Brasil, o preço pode variar de estado para estado. No

estado de São Paulo, de acordo com último registro do comércio de referência de

publicações, a CEMPRE informa nº 15768, a cotação do 'papel branco’ (o mais

valioso da classe do papel) é R$ 800,00/tonelada69. Desde então, de 2017 para

2018, o preço quase que dobrou ao ano anterior que era R$ 450,00/toneladas.

O mercado de resíduos obriga um preço sobre a transação, se o preço é pago

pelo fornecedor ou pelo comprador. Porém, ninguém diz que, quando eles lhe

pedirem para separar papel de resíduos orgânicos, por exemplo, que alguém pode

querer pagar por ele, ou ser pago para se livrar dele, em algum lugar bem abaixo da

linha do preço. É um risco que se corre no âmbito geral dos catadores/recicladores,

sejam eles organizados ou não em cooperativas ou associações. A ACREPOM não

pode colher esse ônus sob pena de prejudicar a renda final do mês de cada

reciclador associado, por isso sempre as informações sobre a melhor forma de

separar corretamente seu resíduo são constantemente repassados aos recicladores

que vão as ruas para lembrar os doadores parceiros sobre essa responsabilidade

compartilhada, sob pena de ter a venda do papel. Em relação ao papel, a empresa

que a ACREPOM tem contrato é a aparadora CIMAR.

68COMPROMISSO EMPRESARIAL PARA RECICLAGEM (CEMPRE). . Disponível

em:<http://cempre.org.br/cempre-informa/id/115/preco-dos-materiais-reciclaveis>. Acesso em 09/10/2020. 69 Para a CEMPRE, esse e demais preços de todos os tipos de resíduos para venda dos recicláveis são praticados

por programas de coleta seletiva, sendo a informação de sua inteira responsabilidade. A associação CEMPRE

informa aos programas de coleta seletiva e associações/cooperativas para que providenciem a publicação dos

preços recicláveis atualizados, solicitam o envio de cotações até o dia 15 de cada mês ímpar do ano (janeiro,

março, maio, julho, setembro, novembro).

148

CAPÍTULO 4

BREVE HISTÓRIA DA ACREPOM

Partindo de uma preocupação social político-religiosa, um coletivo de pessoas

se deparou à época com problema da marginalidade, miséria e precarização entre

os catadores de material reciclável de Araçatuba. Deste acometimento até a

construção de fato do galpão para o trabalho e renda com reciclagem, foi um

processo que englobou pouco mais de dois anos (1996-1998). De cunho incialmente

assistencialista, a formalização do caráter associativista atual e a história da origem

da ACREPOM merece destaque nesta dissertação, ainda nas poucas linhas que se

seguem.

Fundada há pouco mais de duas décadas, a história da Associação dos

Catadores de Papel, Papelão e Materiais Recicláveis de Araçatuba, a ACREPOM,

faz parte das primeiras experiências de cooperativismo e associativismo no âmbito

dos catadores e recicladores que começaram a se multiplicar no Brasil ainda na

década de 1990. Há pouco tempo, a ACREPOM gozava de ser a única organização

de trabalho e renda de catadores através do beneficiamento de materiais recicláveis.

O contexto recente da constituição de 1988 foi favorável para se pensar a

organização coletiva dos elementos marginalizados, inviabilizados e espoliados da

sociedade brasileira.

No que especificamente se refere a coletividades de catadores e recicladores,

a respeito disso, naquele período:

A partir da década de 1990, as campanhas de coleta seletiva e inclusão de catadores começaram a se multiplicar, principalmente em razão de políticas e ações no gerenciamento de resíduos apoiadas por governos, organizações não governamentais, instituições sociais, incubadoras etc. Consequentemente, começam a surgir alternativas para fortalecer os catadores e deixá-los mais independentes. Uma das alternativas que tem se mostrado bastante eficaz é a organização em cooperativas [ou associações] (PINHEL, 2013 p. 20).

O ano era 1995 e a Igreja Católica lançou sua Campanha da Fraternidade

(CF) com temática sobre os “Excluídos”70. Na cidade de Araçatuba, interior de São

70 Conforme praxe anual da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) há exatos 55 anos (1964 – 2019), em 1995 lançou a XXXIII Campanha da Fraternidade com o tema “A Fraternidade e os Excluídos”, cujo lema era “Eras tu, senhor?!”. Segundo a CNBB, objetivo geral era: “Quer contemplar aqueles que seriam os mais abandonados, os que se sentem esquecidos, negados na sua humanidade. E não se refere só aos excluídos pela situação econômica. Há excluídos também nos países ricos, que têm muitos recursos. O fato, porém, de o Brasil ser um país de Terceiro Mundo,

149

Paulo, um articulado grupo composto principalmente por pessoas que integravam o

Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) e a Pastoral da Juventude (PJ), se

uniram para somar em solidariedade a querela ecumênica em questão. A princípio, a

preocupação com o assunto iniciado pela conjuntura religiosa, levou-os a refletir

política e economicamente sobre a questão dos excluídos na cidade, em especial os

catadores.

No decorrer do momento que mais se movimentam as comunidades católicas

de base em prol da Campanha da Fraternidade, ou seja, no período que se estende

por toda a quaresma desde o lançamento da campanha (Quarta-feira de Cinzas),

aquele diligente grupo visitou diversas pessoas em condições existenciais de

exclusão e miserabilidade.

Dormiam dentro dos próprios carrinhos de coleta, ou pelas ruas e praças, ou nos fundos de depósitos, ao lado de papelão e outros materiais, totalmente expostos à chuva, frio e em situação de total insalubridade. Um indicador triste, porém, real: alguns catadores de papel ao morrerem, eram sepultados como indigentes. Não havia quem procurasse identificar ao menos os nomes71.

Por intermédio desses primeiros ativistas, constataram que aproximadamente

mais de cem pessoas estavam trabalhando com a coleta de papéis pela cidade,

muitas delas sobrevivendo em situações precárias de desigualdade social e miséria.

Por meio de ações em campo, conseguiram contatar diretamente os catadores das

ruas e das praças da cidade que ali barganhavam sua força de trabalho para

garantir a próxima refeição. Ao longo de outras reuniões semanais e encontros

comunitários organizados pelo grupo que se seguiram durante o resto do ano de

1995 e todo o decorrer do ano, decidiram dar continuidade a temática da CF mesmo

depois do fim da CF “A Fraternidade e os Excluídos”.

Houve uma intensa agenda de visitações a atravessadores em depósitos de

materiais recicláveis, que se encontravam em péssimas condições, atrás de

catadores. O grupo composto por ativistas do CDDH de Araçatuba e membros da

comunidade da PJ se constituíram “grupo de apoio permanente” ao enfrentamento

da realidade com os catadores. Segundo a fundadora da ACREPOM, a atual vice-

dominado por um sistema que fabrica e acentua a exclusão, torna mais dramática a situação de mendigos, prostitutas, encarcerados, doentes e outros.”. https://campanhas.cnbb.org.br/campanha/fraternidade1995 71 Trecho da história oficial da ACREPOM retirada do seu site. Mesmo tomando algumas notas com os associados ou gestores sobre a origem da história da associação, o enredo que toca o sensível sempre rememora essa imagem comum das condições de vida dos catadores do passado. Às vezes fragmentada, às vezes mais diminuta, tal descrição da citação. Assim, optou-se por copiá-la.

150

prefeita da cidade de Araçatuba (Administração 2017/2020), Edna Flor, o ponto

crucial para que se constituísse uma futura associação de catadores se deu depois

que o grupo visitou o antigo lixão de Araçatuba e percebeu de perto as indignas

condições de vida dos catadores que viviam e trabalham naquele lugar.

Os sonhos e as ideias começaram a ser trabalhadas na medida em que a luta

pela conscientização de um espaço dedicado exclusivamente para (re) inserção

social desses papeleiros passassem a ser a ordem do dia. Constituir o espaço de

trabalho, um galpão, para que os associados pudessem se organizar no trabalho e

renda, seria a garantia dos seus direitos fundamentais mais básicos.

Além dos ativistas do grupo de apoio, é bom ressaltar que outras pessoas, de

diversas áreas (professores, assistentes sociais, administradores, psicólogos,

engenheiros, comunidade ecumênica), se juntaram ao processo inicial do projeto,

que consistiu em: visitações in loco junto a catadores e catadoras; convite para as

reuniões de organização associativista; monitorias de planejamento coletivo de

trabalho e renda; busca por parceiros e patrocinadores para a construção de um

galpão que atenda as atividades de reciclagem; e assistência social, psicológica e

educacional, no intuito de fomentar a busca por melhores condições de vida para

cada um dos futuros associados.

Mesmo em meio as dificuldades em agregar assiduidade dos catadores e

catadoras nos encontros, percebeu-se uma integração muito vindoura dos próprios

interessados que se sentiram encorajados a abraçar o projeto. Somado ao

protagonismo de uma das pessoas da pastoral, a advogada popular Edna Flor, a

associação de catadores começou a ser fundada. Em meados do ano de 1996

nasce de então Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Materiais

Recicláveis de Araçatuba, ou apenas ACREPOM, como todos os araçatubenses

viriam a conhecer.

A materialização para o trabalho e renda com recicláveis aconteceu em junho

de 1997, quando se efetivou um convênio com a Cáritas Brasileira (entidade

Católica) que, em regime de comodato, entregou os primeiros equipamentos para o

galpão. Contando com prensa, elevador para fardos, balança, triturador de vidro e

de papéis, além de 25 carrinhos destinados à coleta, os catadores se tornaram

efetivamente trabalhadores associados. Logo em seguida, a Prefeitura Municipal de

151

Araçatuba cedeu, a título de empréstimo, o prédio que contém o atual galpão e a

sede da ACREPOM, localizado no centro da cidade.

No ano de 2002, foi desativado o maior lixão da cidade de Araçatuba.

Algumas famílias que dali tiravam o seu sustento na seleção e separação dos

resíduos depositados a céu aberto, foram para a ACREPOM que, na época, foi a

primeira entidade a organizar a coleta seletiva em alguns bairros da cidade. Os 12

novos recicladores, que eram antigos catadores de lixo, realizaram a primeira

experiência de coleta seletiva em Araçatuba. Posteriormente, alguns desses foram

absorvidos como associados e, entre esses, uns permanecem até hoje.

Atualmente a ACREPOM desenvolve com os associados um valorizado

trabalho de atenção psicológica e de assistência social, atendendo a todos de

acordo com as necessidades individuais e coletivas. Para tanto, mantém um

conjunto de casas alugadas no bairro Jardim Dona Amélia em Araçatuba, que ainda

abriga alguns associados e seus familiares que não tinham onde morar ou como

pagar aluguel. Além de oferecem quatro refeições diárias balanceadas (café da

manhã, almoço, café da tarde e jantar), a associação conta com o auxílio de

assistência médica oftalmológica e odontológica (através de convênios pré-

estabelecidos entre a ACREPOM e os planos de saúde), encaminhamentos para

tratamentos hospitalares, inclusão em programas de alfabetização de adultos e

educação formal – Educação de Jovens e Adultos, o EJA, trabalhos de

reestabelecimento de vínculos familiares e outras atividades com os catadores e

catadoras que os qualifiquem como trabalhadores com uma identidade cidadã,

portadores de direitos e deveres na vida social.

NÃO SOMOS UMA COOPERATIVA, SOMOS UMA ASSOCIAÇÃO: RECONHECENDO O ERRO DO ANTROPÓLOGO

Não somos uma cooperativa, somos uma associação!”, ou “Cooperativa é a COOPEARARÇÁ” – frases que sempre ouvia dos recicladores quando confundia a ACREPOM como uma cooperativa. (...) Certa vez o porteiro da ACREPOM reparou na falha, veio até mim, e respeitosamente disse: ‘Por que você sempre confunde a gente com cooperativa? Você sabia que esta associação ajuda na casa, alimentação, psicólogo, consulta médica? Eu mesmo quando precisei [psicólogo/médico] foi muito bom. Eu nem sabia que precisa tomar remédio’. Depois de incontáveis vezes errando, cinco minutinhos de diálogo bastaram. Acho que finalmente absorvi à correção. Daquele dia em diante, não errei mais.

152

As retificações verbais sobre este embaraço entre associação e cooperativa

surtiram efeito reflexivo e desconstrutivo após a fala deste porteiro. O relato pessoal

em questão, coeso as observações mais atentas sobre os constantes cuidados

assistenciais do grupo gestor para com os recicladores, corroborou para

desconstruir os repetidos equívocos que a minha confusão rotineira entre

associação e cooperativa provocava nos ouvidos dos associados da ACREPOM.

Antes da conversa com aquele senhor, nunca havia reparado nas diferenças,

achava que as correções dos recicladores eram mera formalidade; incorria no erro

de trocar associativismo com cooperativismo, e vice-versa, não de propósito, mas

por uma teimosia tautológica que havia incorporado.

À época, principalmente na etapa de pesquisa bibliográfica, anterior ao campo

etnográfico propriamente dito, por muito ler sobre as relações cooperativistas, suas

questões técnicas, normativas, formalidades, legislação e história, me convenci que

as similaridades entre cooperativismo e associativismo superavam quaisquer

diferenças que, porventura, uma ou outra bibliografia destacava. Muito dessa crença

grosseira havia tomado corpo antes, quando em meu trabalho de conclusão de

curso (TCC) de graduação em Antropologia Social e Cultural pela Universidade

Federal de Pelotas (UFPel), abordava, do ponto de vista etnográfico, o

cooperativismo em um estudo de caso sobre a CRIAS-BGV72, uma cooperativa de

catadores da periferia de Pelotas, interior do Rio Grande do Sul.

Acreditando estar plenamente imbuído a despeito de todas as considerações

mais gerais sobre cooperativismo, passei a reproduzir um reducionismo comparativo

entre associativismo e cooperativismo, apreendendo-os, erroneamente, com

sinônimos do sentido organizativo ou coletivo de pessoas em esquemas mais

horizontais que adentram as lógicas institucionais e normas legais para reproduzir

suas atividades de trabalho e renda. Como consequência, o descuido acabou sendo

replicado, ainda na ordem do pré-campo etnográfico73, e no posterior decorrer da

técnica de observação participante na etnografia sobre a ACREPOM.

72 Cooperativa de Trabalho, Reciclagem, Integração e Ação Social do Bairro Getúlio Vargas, Pelotas/RS, ou apenas CRIAS-BGV ocasionou no meu TCC pela Universidade Federal de Pelotas em 2015. Para informações Vida ou Morte de uma Cooperativa de Recicladores na Periferia: introdução ao estudo etnográfico no caso da CRIAS-BGV, Pelotas-RS. 73 Pré-campo etnográfico ou campo exploratório foi realizado quando tive que formatar o projeto de pesquisa como parte do processo de seleção, e posterior, admissão no corpo discente do mestrado pelo PEPG em Ciências Sociais da PUC-SP – a saber, a título do projeto foi: Reciclagem, catadores e

153

Antes que as cobranças no campo etnográfico fizessem refletir mais de perto

sobre o caráter de solidariedade e reciprocidade que envolve a prática social do

associativismo, o universo associativista-cooperativista, suas origens e

preocupações pela obtenção do bem-estar social dos trabalhadores e pessoas mais

pobres, bem como reunir melhorias nas condições sociais e econômicas daqueles

que participam como integrantes de um mesmo corpo social de organização estão

na ordem do dia destes dois sistemas doutrinários, cujas origens, enquanto

configuração política-ideológica fazem parte da história das lutas sociais do início do

século XIX na forma de resistência e proteção coletiva contra o desemprego e as

más condições que o sistema de trabalho vigente inflige (PADILHA; LIMA, 2004).

Em virtude desta generalização comparativa, que em grande medida pode vir

a corresponder tanto a origem histórico-contextual em comum, como também por

influência do pensamento e ontologia (RÊGO e MOREIRA, 2013), a referente

epígrafe desta dissertação buscou expressar singularmente a dinâmica corriqueira,

mas também a complementariedade que existe entre as ideias de associação e

cooperação com os ideais do associativismo e cooperativismo, presentes dentro da

sociedade. Mas em termos históricos, como política-ideológica, o associativismo e o

cooperativismo devem ser lidos como um movimento moderno, que propiciam suas

próprias ferramentas práticas e teóricas que possibilitem incidir numa outra

hegemonia (LIGUORI; VOZA, 2017, p. 365-368) para contrapor as relações e

divisões sociais verticais do mundo do trabalho reproduzidas no capitalismo. Deste

modo, tais organizações precisam ser refletidas para não incorrer mais ao erro

empírico e teórico.

ASSOCIAÇÃO E COOPERAÇÃO; ASSOCIATIVISMO E COOPERATIVISMO: NOTAS PARA UM ESCLARECIMENTO

Disposto em expressões que hoje podemos classificar como idealista e

romântico, o manifesto doutrinário P. C. Plockboy, publicado em 1659, da onde foi

retirado a frase da epígrafe, traçava apontamentos sobre uma organização

societária pautado em um sistema de “Associações Livres” que, mesmo anterior

àquele período, já se revestia com caracteres que fizeram esse tipo de organização

de trabalho e renda distinto de outras. No entanto, o que essa obra-manifesto,

inclusão social: Uma etnografia sobre catadores e cooperativismo no interior de SP. Assimilado as devidas diferenças proporcionadas pelo próprio campo etnográfico, a mudança se refletiu da adequação do título, e mais profundamente ao conteúdo escrito no quarto capítulo desta dissertação.

154

escrita há quase quatro séculos, não pormenoriza, é que os procedimentos que irão

fazer parte do fenômeno do ideário associativista e cooperativista, de impulso as

solidariedades em organizações coletivas, esteve presente nas mais diversas

manifestações sociais ao longo da história.

Em Klaes (2005) é possível discorrer que certo pensamento pré-associativista

ou pré-cooperativista74 não é nada novo75; a “história do Movimento Cooperativo é

também a História da Cooperação, porquanto, naturalmente, a ‘ideia’ precedeu ao

‘movimento’ em muitos milhares de anos (KLAES, 2005 p. 34). Com base em uma

releitura histórico-cultural, o referido autor cita que existiram ao longo da

humanidade experiências concretas, historicamente relatadas, de organizações

humanas para o trabalho e promoção de práticas de solidariedade e ajuda-mutua,

que se fizeram presentes em distintos contextos geográficos ao longo do tempo

(Ibidem, pp. 32-42).

Na mesma esteira de Klaes, Diva Pinho (2004 p.15) realizou uma prospecção

cronológica de experiências esparsas e efêmeras no Brasil que se assemelham o

que tem sido chamado de relações pré-associativistas ou pré-cooperativistas:

1530/40: movimentos messiânicos sebastianistas, originários de Portugal, com algum conteúdo de cooperativista/associativista comunitário integral. 1600 – 1695: República das Palmeiras, instalada na parte superior do Rio São Francisco, na região conhecida como Serra da Barriga, formava um conjunto de comunidades. Inicialmente atraiu escravos fugidos de grandes engenhos de açúcar de Pernambuco; depois, vieram escravos de outras regiões, índios, mamelucos, mulatos e brancos, compondo uma população estimada entre 20 e 30 mil pessoas, em uma área de aproximadamente 350 km². Foi o maior quilombo do Brasil. Praticavam a solidariedade e a democracia direta; usavam a terra como propriedade coletiva. Seus últimos

74 Embora o referido autor trabalhe com a forma cooperativismo, em nenhum momento ele estabelece diferenças deste com o associativismo. Pelo contrário, em várias passagens de sua obra ele reforça termos como “associação” como prática do cooperativismo, e atesta uma suposta simetria simplesmente baseado numa generalização sua a respeito do Artigo 5º da Constituição Federal (CF) de 1988, inciso XVIII - “a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo” (KLAES, 2005 p. 119) e dos sete princípios aprovados pelo Congresso Internacional de Cooperativas de 1937 em Paris, dos quais quatro foram considerados como principais para Klaes, pois abarcavam os aspectos do associativismo (adesão livre; controle democrático; distribuição das sobras e interesse limitado ao capital) (KLAES, 2005 p. 170). Devido as incorrências tanto teóricas, como sentidas na prática da minha pesquisa de campo, o autor é usado como mais um dos exemplos que aferem tais erros e que estes, portanto, não deixam de serem replicados também a temas que versam o associativismo. 75 Dentre as intenções desta dissertação, não se encontra um breve apanhado histórico do que foi as formas ditas cooperativistas/associativistas anterior ao recorte da Revolução Industrial, período que se apresentam formalmente como movimento. Considero, para além da curiosidade, que poderia ser importante observar como se comportavam esses fenômenos de outra organização no seio do trabalho, que são condensados no segundo capítulo da Tese de Doutorado em Engenharia da Produção “Cooperativismo e ensino a distância”, de Luiz Salgado Klaes (Klaes, 2005). Assim, recomendo, fortemente, a leitura do capítulo citado na integra.

155

e principais líderes foram Canga Zumba e Zumbi dos Palmares. Foi desmantelada depois de resistir a cerca de 40 expedições da administração colonial, comandadas por alguns dos melhores chefes militares da coroa portuguesa e também por bandeirantes. A experiência durou quase um século.

1610: Rio Grande do Sul – primeiras reduções jesuítas no Brasil. Segundo alguns estudiosos, iniciava-se uma construção de um Estado Cooperativo em bases integrais.

O potencial do aporte dos filósofos e ensaístas da Era das Luzes

(Iluminismo), como por exemplo, em maior medida, as ideias filosóficas

disseminadas por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujos preceitos básicos de

que cada indivíduo se coloca para o coletivo e serve-se do coletivo de cada

indivíduo, seja compartilhando saberes, trocas materiais e configurações de trabalho

se apresentam sob formas convenções humanas (ROSSEAU, 2007), também

apontam como uma convergência doutrinária para esses tipos de organizações

ainda no século XVIII.

Facilmente apontado como um ideário para organizações do tipo

associativista e cooperativista, em O Contrato Social (1762) o grande filósofo francês

descreve a necessidade de agregação como condição para o não perecimento do

ser social:

Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e dirigir as que existem, eles não têm outro meio para se conservar senão formar por agregação uma soma de forças que possa prevalecer sobre a resistência, colocá-las em jogo por uma só motivação e fazê-las agir de comum acordo. Essa soma de forças só pode nascer da cooperação de muitos (...). Essa dificuldade, retornando ao meu tema, pode ser enunciada nos seguintes termos: ‘Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, ao unir-se a todos, obedeça somente a si mesmo e continue tão livre quanto antes’. Esse é o problema fundamental para qual o contrato social oferece a solução (ROUSSEAU, 2007, pp. 32-33).

Rui Namorado (2005) admite a existência de um incerto “associativismo-

cooperativismo” – sem ênfase ao sufixo ismo – antes do século XIX, mas ressalta

que, enquanto movimento, estes só emergiram conjugado ao capitalismo moderno

do início do século XIX, como uma forma de resistência coletiva dos trabalhadores.

Por isso, para este jurista português, estudioso sobre o tema do cooperativismo – e

não do associativismo propriamente dito, irá dizer que este “se integrou com

naturalidade na galáxia associativa” (NAMORADO, 2005 p. 2). Como força de

estruturação, que se acha diretamente ligada a fonte do movimento operário, é onde

156

se encontra o “código genético” do associativismo e cooperativismo moderno

(NAMORADO, 2005 p. 1).

Em Klaes há uma naturalização no interior desses sentimentos de associação

e cooperação que, mais cedo ou mais tarde, evoluiriam a institucionalização do

presente como parte do “fenômeno que tem acompanhado a evolução do homem

desde seus primórdios” (KLAES, 2005 p. 34). Porém, no que se refere ao ‘código

genético’ desses movimentos de trabalho e renda, Namorado considera legítimo

buscá-lo “na parte que o radica historicamente no movimento operário (Ibidem, 2005

p.3); assim o faz o artigo de Rêgo e Moreira (2013) que começa criticando Klaes –

mas valido não apenas a este, cuja proposta comparativa de concepção de

associação com associativismo, ou cooperação com cooperativismo, e vice-versa,

na maioria das vezes, mais complica do que esclarece, principalmente na medida

em que erra ao confundir de maneira hipotética a seguinte defesa da tese de que:

O cooperativismo [ou associativismo] é um movimento que remonta ao início da história da humanidade. Em outras palavras, ele já seria encontrado em sociedades antigas e feudais, portanto se constituiria em algo muito antigo; e também seria algo natural na medida em que é encontrado até entre os animais (RÊGO e MOREIRA, 2013 p. 63).

Os vestígios do passado que instituíam essas particularidades

organizacionais não apresentam conteúdos que correlacionam a um sistema

econômico coeso, devido ao próprio cenário dos sistemas político-econômico antigo

e feudal limitados em seu caráter fragmentário e autocontido. Em geral, a atividade

econômica dos “associativistas e cooperativistas do passado” se baseavam quase

que exclusivamente em atividades agropastoris, de domínio regional doméstico; em

primeiro lugar envolvia a agricultura familiar de subsistência ou cultivo em pequena

escala, sendo secundária essa socialidade para organização do comércio local e o

artesanato.

Para a ciência histórica, é inegável que tais experiências de outrora podem

ser lidas como cooperação ou associação, ainda que muito de suas referências

tenham se perdido no crepúsculo do tempo e na disseminação do espaço. Porém, a

importância no quadro geral do pensamento em que se conformaram essas

expressões não estava conceituada como a que apreciamos hoje, ou seja,

associativismo e cooperativismo, pois estes são epifenômeno dos conflitos que tem

origem com a nascente Modernidade. Assim, a ambicionada similaridade não se

sustenta, uma vez que é no início da modernidade que o associativismo e o

157

cooperativismo se originam como movimento social, político e ideológico organizado,

capaz de buscar alternativas na gestão social de trabalho em contraponto o presente

modo de produção predominante (REGO e MOREIRA, 2013).

Na perspectiva sociológica dos termos, Costa (2007, p. 58) explana que:

(...) não se pode confundir o ato de cooperar com o cooperativismo, pois, enquanto o primeiro pode ser entendido como qualquer ato ou ação de colaborar com outras pessoas em qualquer formação socioeconômica, o segundo só pode ser entendido como um movimento social que procurou, através da associação, fugir de uma opressão social resultante de um determinado período histórico e de um determinado sistema, ou seja, o capitalismo concorrencial do século XIX.

É preciso então relativizar o ponto de vista antropológico mais abrangente de

Klaes (2005), que equipara as manifestações coletivas e organizações das relações

de trabalho, que são próprias do homem enquanto ser social, como sistemas

associativistas e ou cooperativistas. O mesmo vale para as contribuições das

manifestações doutrinárias e do pensamento rousseauniano que, por exemplo,

fortalecem a justificativa a associação e cooperação de modo inerente ao ser social

pela prerrogativa da complementariedade do benefício do sujeito e da coletividade.

Em poucas palavras, com base nas observações de campo na ACREPOM, as

relações que reproduzem as formas contemporâneas do associativismo consistem,

principalmente, em formas de ajuda mútua, desenvolvimento das atividades com

devidos fins coletivos, possibilidade de partilha dos benefícios que integram o grupo

organizado e aumento da produtividade sob outra lógica, por assim dizer, menos

hierarquizada e desigual que a atual divisão social do trabalho na lógica da

propriedade privada dos meios de produção do sistema capitalista atual.

UMA OUTRA HEGEMONIA DOS TRABALHADORES E POVOS OPRIMIDOS: O ASSOCIATIVISMO

O fato é que, ainda incertas no plano material e na ordem prática como

movimento moderno, as chamadas manifestações doutrinárias condecoraram o

imaginário social com novas ideias associativistas e cooperativistas, ainda que só

fossem introduzidas no século XIX num sistema econômico em expansão, a saber, o

sistema capitalista (SCHNEIDER 2012).

O controle do trabalho aos mandos do capital através do ideário da

propriedade privada dos meios de produção e na realidade da divisão social do

trabalho e das trocas colaborou com o crescimento ininterrupto da composição

158

orgânica do capital total, ou seja, do resultado do capital variável (despesa com a

compra da força de trabalho) que diminui relativamente ao capital constante

(matéria-prima, edifícios, máquinas, instrumentos) (MARX, 2017 p. 277). Em termos

concretos, em um ambiente pautado por uma maior produtividade que conjugue a

produção de produtos e mercadorias em um mesmo período de tempo ou menor, só

é possível através da exploração da própria força de trabalho assalariada e

acumulação de mais-valor.

Para o bom funcionamento da produção no sistema capitalista, é necessário

garantir o processo de acumulação. Na teoria marxista, o capitalismo é uma força

em expansão de si mesmo, mais especificamente da expansão do valor, ou seja,

uma somatória das representações de valores no capital, geralmente tendo na

expressão do dinheiro o melhor dos elementos que justifique a transformação pelo

trabalho humano em um valor maior a ser extraído através de lucros; não atoa, a

finalidade do processo é o acúmulo do valor como dinheiro que ultrapassou a sua

determinação como medida dos valores ou equivalente geral, tornando-se a própria

forma da riqueza.

Dado a essência do capital que se define pela obtenção de valores

econômicos e comerciais usado pelos capitalistas na obtenção do valor adicional, o

mais-valor surge como fundamento do lucro, que é uma forma específica de

exploração, a diferencia specifica [diferença específica] da produção capitalista, um

excedente que se forma pela exploração da força de trabalho em condições sempre

vendáveis, capaz de submeter a classe trabalhadora a produzir um produto líquido

que pode ser vendido por mais do que ela recebe como salário (MARX, 2017 p.

695); “lucro e salário são as formas específicas que o trabalho excedente e o

trabalho necessário assumem quando empregados pelo capital” (BOTTOMORE,

2001 p. 360)

Isso requer que as relações de propriedade estejam definidas e

hierarquizadas para que permitam que os objetos, transfigurados em valores,

circulem, sejam apropriados e se expandam pela acumulação; tem que transformar

parte da mais-valor em capital constante e outra parte em capital variável, podendo-

se conseguir isso de duas maneiras: ou pura e simplesmente alarga-se a escala de

produção, permanecendo constante o nível técnico, ou introduzem-se

159

aperfeiçoamentos técnicos, e, nesse caso, o número de operários diminui

relativamente.

Uma parte dos trabalhadores não poderá mais vender a sua força de trabalho

e perderá os seus empregos. Marx designa esta fração da classe operaria por

exército industrial de reserva. Exigiu resistência dos trabalhadores e povos

oprimidos que deflagraram o cooperativismo e o associativismo como um dos

grandes movimentos sociais de trabalhadores organizados. Assim, nos grandes

centros urbanos e rurais da Inglaterra, França e Alemanha, formam o princípio desse

movimento cooperativista e associativista moderno de defesa e de libertação do

trabalho capitalizado pela lógica do mais-valor (MARX, 2017), como uma luta contra

os efeitos do recente liberalismo econômico da época e do próprio efeito da

Revolução Industrial.

Nesse sentido, complementa que:

Essa ligação ao movimento operário deixou marca no universo cooperativo,

em termos verdadeiramente estruturantes. E deixou‐os através dos

princípios de Rochdale. (...) Ora, na primeira versão dos princípios coletivos está bem presente o enraizamento da cooperatividade [e associatividade] no movimento operário, o qual, por essa via, continua a ser uma raiz viva na atualidade (NAMORADO, 2005 p.4).

Por isso, esquecer essa marca genética pode significar a subalternização da

lógica mais profunda da cooperatividade e associatividade. As intensidades da luta

pela economia dos resíduos são mais vivas no fluxo do Sul Global (RIAL, 2016 p. 6),

principalmente em sociedades que possuem um grande contingente de coletivos

menos favorecidos que necessitam desses materiais descartados em vias de

reciclagem por uma questão básica de subsistência por meio deste trabalho e renda;

não alheios, por meio da atual administração da prefeitura, projetam e vislumbram

parcerias sobre sistema cooperativista-associativista como uma forma de

deliberarem a área disponível para trabalho e renda dentro do aterro sanitário.

Além das questões citadas no primeiro capítulo sobre a história da

ACREPOM e seu elo associativista, que pontuam elementos sobre o nível

assistencial prestado, uma justificativa para a ACREPOM não ser confundida como

cooperativa se fundamenta porque o fenômeno do cooperativismo, enquanto

expressão moderna dos movimentos de lutas dos trabalhadores e povos oprimidos,

embora geneticamente ligado a estes, não está mais socialmente circunscrito

apenas a esse estrato social de classe.

160

A recente história do cooperativismo no Brasil, datada do final do século XIX,

mostra que uma das primeiras forças oficiais do cooperativismo se deu por

agrupamentos de camponeses pobres e pequenos agricultores, particularmente

entre imigrantes europeus e asiáticos, que cooperavam uns com os outros em busca

do crédito agrícola para enfrentar os percalços no solo brasileiro (PINHO, 2004),

mas posteriormente, depois de abarcar profissionais liberais, empresários, artistas, e

demais profissionais do meio urbano, a via do cooperativismo tomou contornos que

se assemelham a um alinhamento empresarial de titularidade coletiva (NAMORADO,

2005 p. 3).

A essa nova noção de cooperativismo como vinculo empresarial, Rui

Namorado destaca:

Que uma cooperativa é uma síntese de associação e de empresa. Isto significa que estamos perante um verdadeiro entrelaçamento de duas componentes e não perante uma simples colagem de duas partes que se limitassem a sobrepor-se. Pode legitimamente dizer-se que a cooperativa é uma associação, mas não é uma associação qualquer; e que sendo também uma empresa, não é uma empresa qualquer. É uma associação que se projeta numa empresa. É uma empresa impulsionada por uma associação. É uma associação cujo princípio ativo é uma atividade empresarial. É uma empresa com uma atmosfera associativa (NAMORADO, 2005 p.8).

No campo dessas novas relações cooperativistas-empresariais, a Aliança

Cooperativa Internacional (ACI), uma federação cooperativa não governamental ou,

mais precisamente, uma união cooperativa que representa as cooperativas e o

movimento cooperativo em todo o mundo, fundada em 1895, em meados do século

XX reformulou a noção de cooperativismo, atualmente optando pela seguinte

definição:

Uma cooperativa é uma associação autônoma de pessoas, que se unem, voluntariamente, para satisfazer necessidades e aspirações econômicas, sociais e culturais comuns, através de uma empresa de propriedade conjunta e democraticamente controlada (MACPHERSON; LEITE 1996, p.9).

Os novos princípios, valores e a noção do cooperativismo hoje – que já não é

a mesma de antigamente76 – não cabem as lógicas desenvolvidas dentro e fora da

76 Namorado irá dizer que se antes só tinham sistematizados os princípios cooperativistas das primeiras experiências, a partir de 1995, em um congresso realizado em Manchester, ao comemorar-se o centenário da fundação, a ACI passou a traduzir uma nova visão do fenômeno cooperativo, através de uma concepção tripolar da identidade cooperativa (princípios, valores e noção), embora continuem a circular os princípios cooperativistas absorvidos desde a primeira experiencia cooperativista da Sociedade dos Pioneiros de Rochdale (1844), exercendo um papel central, uma importância nuclear (NAMORADO, 2005 p. 5).

161

ACREPOM. As falas quase uníssonas de Grasi e Celestino que resumem que a

ACREPOM “não é uma empresa, que o objetivo não é o lucro, e sim garantir o

trabalho e renda aos recicladores para que eles consigam se sustentar”, alertam que

as dimensões das relações de trabalho e economia entre os associados recicladores

consistem em uma parte desta atividade organizada, mas não o todo sobretudo se

for observar que a constituição destas relações do tipo associativista se conformam

também fora das relações de produção no galpão.

Primordialmente, é correto afirmar que a renda proveniente da atividade

econômica de reciclagem mobiliza os associados recicladores em torno da produção

local. No entanto, o tempo de pesquisa de campo, levou esse pesquisador a

observar que as práticas sociais na ACREPOM são muito mais que meros gastos de

energia da força de trabalho, concentração em torno do beneficiamento dos resíduos

recicláveis e o cotidiano do esquema da produção coletiva, a qual poderiam se

resumir facilmente na seguinte forma: o catador recebe x doações, trabalha x dias

no beneficiamento desses materiais e receberá o equivalente total dividido entre

todos os associados recicladores.

Ao longo de pouco mais de duas décadas de associativismo, a ACREPOM

conquistou prestígio na cidade de Araçatuba/SP, sendo facilmente reconhecida

pelos seus munícipes. Prestígio esse que não se contém apenas ao reconhecimento

das lógicas locais de geração de trabalho e renda, que são retribuídas por meio de

doações individuais ou coletivas de resíduos recicláveis, mas, além disso, a

consideração vem pelas atividades desenvolvidas entre os próprios associados com

o grupo gestor e os parceiros ou voluntários, em questões similares que gravitam no

sistema de economia solidária/geração de trabalho e renda associativista, contando

com assessoria especializada e acompanhamento assistencial.

Dentre as questões do associativismo praticado pela ACREPOM, destacam-

se:

Assessorias em questões específicas da organização interna como:

confecção dos estatutos, atualização das atas de reuniões e acordos locais

com parcerias; busca por convênios com órgãos públicos; termos de

parcerias com universidades, seja para cursos de formação ou atendimento

em nível de parceria – responsabilidade compartilhada, instalação de PEV’s;

termo de compromisso com voluntários e parceiros;

162

Assessoria para a realização de cursos e encontros de formação e

capacitação para os associados recicladores, parceiros/voluntários e

membros do grupo de apoio sobre os gerenciamentos que fundamentam a

economia solidária, o associativismo e o cooperativismo;

Assessoria do grupo gestor para a intervenção junto ao Poder Público: pela

defesa do acesso e permanência de moradia para os associados

recicladores; promoção da assistência social e de saúde; implantação da

Coleta Seletiva no Município;

Assessoria aos associados recicladores para viabilização de documentos

(RG, CPF, Título de Eleitor, Certidão de Nascimento, CNH e etc), localização

de familiares; garantia da assistência à saúde (tratamento médico,

odontológico e psicológico/psiquiátrico, especialmente nos casos de

alcoolismo ou de doença mental);

Assessoria de acompanhamento no intercâmbio com outros grupos

semelhantes, para partilha de experiências e incentivo a outros projetos de

geração de renda na região;

Assistência para estudos de viabilidade econômica e para a realização de

pareceres técnico-administrativos;

Assistência para a coordenação, organização e atualização das práticas das

equipes internas de coleta e separação dos materiais recicláveis;

Assistência a inclusão social dos catadores e catadoras, com medidas

facilitadoras para o acesso à educação formal, a espaços de cultura e lazer,

bem como à formação quanto ao desenvolvimento sustentável, meio-

ambiente e cidadania.

Tamanho reconhecimento vindo dos doadores e parceiros é resultado direto

dessas políticas internas de assistência e das assessorias parceiras e voluntárias.

Para o presidente da associação, tais ganhos sociais e trabalhistas já poderiam

classificar facilmente a ACREPOM dentro dos parâmetros de uma Organização da

Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), uma vez que esta instituição do

Terceiro Setor, sem fins lucrativos, com independência administrativa e financeira,

age como colaboradora do Estado na execução de programas na área da saúde,

educação, social e meio ambiente.

Essas organizações sem fins lucrativos e não-governamentais constituem aquilo que se denomina terceiro setor, sem serem consideradas nem estado

163

nem mercado. (...). São organizações públicas privadas, porque não estão voltadas à distribuição de lucros para acionistas ou diretores, mas para a realização de interesses públicos, entretanto, desvinculadas do aparato estatal. Essa nova realidade que está sendo construída estabelece uma nova relação entre Estado e Sociedade, entre público e privado. (...) Com a Lei 9.790, de 23.03.1999, o Estado dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, definido os termos em que deve ocorrer a parceria dessas instituições com o Estado, na realização de ações sociais de sua competência (JUNQUEIRA, 2004, pp. 31, 33).

Porém, no intuito de preservar uma autonomia associativista conquistada, e

visualizando os fortes vínculos construídos ao longo de mais de 20 anos de

existência, a ACREPOM decidiu permanecer no seu próprio estado de

associativismo, cultivando parcerias como a Fundação Banco do Brasil (FBB), o

financiamento oriundo do Ministério do Trabalho e Emprego e Secretaria Nacional

de Economia Solidária (MTE/SENAES), o contato de assessoria com o Movimento

Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (MNCR) que, por

exemplo, realizam formação política dos catadores e das catadoras, “capacitação

técnica para o trabalho”, gestão administrativa das associações e cooperativas de

autogestão, logística, “Economia Solidária”, políticas públicas entre outros temas

(MNCR, 2011), questões essas que já subscrevem o que seria se a ACREPOM

fosse uma OSCIP.

Segundo Marx “as relações sociais das pessoas em seus trabalhos aparecem

como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações

sociais entre coisas, entre produtos de trabalho” (2017, p. 152). Seguindo esse

sentido, da qual destaco mais uma vez nesta dissertação que o caráter das relações

de trabalho e produção são relações sociais, tão importantes quanto a garantia do

trabalho e renda, a natureza da associação relacionada a promoção de assessoria e

assistência social, cultural, educacional, filantrópica, representação política e defesa

dos interesses desta distinta categoria de trabalhadores, precisa ser revelada para

que se faça jus a um outro tipo de beneficiamento que acontece com os associados

recicladores da ACREPOM, e que tem a ver com a busca e conquista do que se

entende como “cidadania” e “inclusão social” em seus sentidos mais amplos.

164

CONHECENDO OS PARCEIROS E VOLUNTÁRIOS: AS REUNIÕES E AS FESTAS COMO PONTO ENCONTRO PARA O FORTALECIMENTO DAS RELAÇÕES ASSOCIATIVISTAS

Em uma das ocasiões que participei como convidado das reuniões do grupo

gestor da ACREPOM, conheci o Lázaro Pereira, presidente do Conselho Municipal

de Defesa do Meio Ambiente de Araçatuba-SP, o COMDEMA. Segundo Grasiella,

ele há muito tempo é próximo à ACREPOM, tendo auxiliado desde as questões mais

burocráticas da relação parceria/associação, até a prestação de solidariedade com

os recicladores. O senhor Lázaro Pereira, ou Lazim, como todos o chamam, leva o

nome da ACREPOM à frente como representante da sociedade civil junto aos outros

conselheiros77 nos assuntos ligados à pasta da Defesa do Meio Ambiente na cidade.

Além de discussões gerais e atualizações sobre a Ata do último COMDEMA,

realizada no dia 07/02/2018 – cujo tema debatido envolvia uma futura colaboração

dos associados da ACREPOM como um canal de comunicação junto à comunidade

local sobre coleta seletiva, podas, programas de mudas, etc., da Secretaria

Municipal de Meio Ambiente de Araçatuba (SMMAS) – a visita de Lazim trazia

novidade: ACREPOM acabara de receber uma picape EFFA V21 branca, com baú

isotérmico para coleta. Recentemente emplacado, pude presenciar, no final daquela

manhã, uma benfeitoria entregue aos trabalhadores de coleta de materiais

recicláveis da ACREPOM em convênio com a Associação Brasileira da Indústria de

Produtos de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, a ABIHPEC, entidade

privada sem fins lucrativos que firma parcerias com entidades sociais para fins de

coleta das embalagens dos seus produtos, com finalidade principal de congregar as

indústrias nacionais do setor, instaladas em todo país e de todos os portes,

promovendo e defendendo os seus legítimos interesses, com vistas ao

desenvolvimento econômico que representam78.

Celebrado incialmente em setembro de 2015 com a ACREPOM, o convênio

da prefeitura de Araçatuba com o programa de reciclagem da ABIHPEC começou a

77 De acordo com nº 19.941, de 28 de Março de 2018, que nomeia os conselheiros em defesa do meio ambiente, o conselho é composto tanto por representantes da esfera do poder público, como secretários do poder executivo, vereadores, professores e diretores de instituições públicas – Universidades públicas, Diretoria de Ensino e Policia Ambiental – quanto representantes da sociedade civil, como a ACREPOM. 78ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE HIGIENE PESSOAL, PERFUMARIA E COSMÉTICOS (ABIHPEC). Disponível em:<https://abihpec.org.br/institucional/>. Acesso em 09/10/2020.

165

contemplar associações e cooperativas de catadores e recicladores da cidade no

ano de 2017. Pelo que foi relatado pelo representante da ABIHPEC, os

investimentos até agora somam aproximadamente R$ 250 mil. O convênio com

ABIHPEC não gera despesas para os cofres públicos municipais ou para as

associações e cooperativas, afirmou a vice-prefeita, Edna Flor, presente na reunião,

que completa:

Exigem apenas a contrapartida das cooperativas através da prestação de contas sobre as quantidades de material coletado. São 25 famílias na ACREPOM e 18 na COOPERARAÇÁ sendo assistidas pelo convênio. A associação, como compromisso de logística reversa, destina equipamentos às entidades parceiras.

Além do convênio com a ACREPOM na cidade, a título de conhecimento, a

COOPERARAÇÁ também foi contemplada. No ano de 2017, a cooperativa recebeu

da ABIHPEC duas prensas, paleteira e uma impressora. De acordo com a entrevista

ao jornal local Folha da Região79, Sônia Maria de Souza Garcia, presidente da

COOPERARAÇÁ, esclarece que todos os meses são enviadas informações à

ABIHPEC sobre o rendimento da cooperativa de catadores.

Temos sempre que aumentar a nossa meta. Com nosso trabalho cada vez melhor, conquistamos mais benefícios que melhoram nossas condições de trabalho e, consequentemente, melhoras para nossa produtividade e para o

meio ambiente (em entrevista ao jornal local).80

Em se tratando da ACREPOM, o fortalecimento desse convênio com a

ABIHPEC já brindou a associação com prensa, computadores, impressora e novos

bebedouros de água ao longo do ano de 2017. No dia da reunião, 13/02/2018, o

representante da ABIHPEC também estava presente especialmente para entregar

mais uma contribuição, que era o veículo utilitário com picape. Durante a reunião de

entrega do veículo, com fins de simbolizar a gratificação, foi negociado também a

plotagem de publicidade com símbolo da ABIHPEC e da ACREPOM. Lazim e o

representante mencionaram que esta plotagem deveria fazer referência ao programa

“Dê a Mão para o Futuro – Reciclagem, Trabalho e Renda”, pois é um projeto que

acontece a nível nacional e que foi desenvolvido incialmente pela ABIHPEC, em

posterior conjunto com a Associação Brasileira das Indústrias de Produtos de

Limpeza (ABIPLA) e a Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas

Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (ABIMAPI) em vistas a atender a

79 FOLHA DA REGIÃO. Disponível em:<http://www.folhadaregiao.com.br/2019/02/27/convenio-municipal-com-industria-rende-esteira-de-triagem-para-associacao-de-catadores>. Acesso em 09/10/2020. 80 Idem.

166

PNRS, a contemplar as questões ambientais, a responsabilidade compartilhada e

inclusão social, pontos considerados essenciais para as indústrias do setor se

adequarem ao andamento das políticas públicas que alude a logística reversa.

Em outra reunião que participo com o grupo gestor, que sempre acontecem

as terças-feiras, foi tocado a respeito do parceiro Pão de Açúcar, que no início do

ano de 2018, dispensou o ecoponto de resíduos eletrônicos que era vinculado em

específico a ACREPOM. Conforme observado em minhas visitas de campo, o foco

com resíduos eletrônicos era novidade no padrão do PEV do Pão de Açúcar-

Unilever deste supermercado em Araçatuba. Na reunião, ouço que a gerência do

supermercado alegou que não tinha necessidade da intermediação da ACREPOM

com o Pão de Açúcar e com isso um dos associados que ficava permanentemente

no seu cotidiano de serviço, devido a sua habilidade com ferramentas e com

conhecimento com esse tipo reciclável, teve que ser realocado no setor de

beneficiamento de materiais eletrônicos dentro da ACREPOM, mas que ainda, por

falta de espaço, teria que ser estudado onde poderia ser esse lugar. Por hora, entre

o galpão e os fundos da biblioteca da associação, contando somente com a sombra

de uma gigantesca arvore, este reciclador opera em uma mesa suas habilidades

com os eletrônicos.

Se por um lado uma parceria de anos se encerra, do outro, uma nova

parceria acontece. Na mesma reunião em que se confirmou o fim da parceria do

GPA com a ACREPOM, foi relatado, com alegria, que as negociações de parceria

com o POP Center de Araçatuba, antigo camelódromo, foram concluídas com

sucesso. Dessa nova parceria, um dos catadores que estava trabalhando de modo

autônomo entre as lojinhas recolhendo o que lhe interessava como resíduo

reciclável, foi aos poucos mobilizado a se tornar um associado da ACREPOM, pois

para a associação esse sujeito, que possui conhecimentos sobre catação de

material reciclável, poderia contribuir coletivamente de modo associativista com

outros recicladores. Assim, de igual maneira, a presença do logo da associação se

fará presente nas latas de coleta presentes no POP Center Araçatuba. Com isso,

estabeleceram-se novos vínculos que vão incluir visitas predeterminadas para

recolher in loco o resíduo reciclável e transportá-lo até a associação.

Dia 30 de julho de 2018, Grasi me telefona para avisar que amanhã (31 de julho de 2018), às 13hrs, é dia de festa na ACREPOM e que eu estava convidado a pedidos dos associados. Ao chegar, me deparo com uma

167

enorme faixa dentro da antiga garagem, hoje espaço de trabalho da carga e descarga dos carrinhos. Era o aniversário da ACREPOM e a faixa continha, além do nome e do lema “A Coleta que transforma” que compõe associação, agradecimento a sociedade no apoio aos 22 anos de lutas pela associação, recicladores e reciclagem. “Comemorar em grande estilo mais um ano de existência da nossa associação. Vocês gostaram desta decoração?” pergunta despretensiosamente Celestino ao público que ia chegando.

No dia da festa, indaguei o senhor Celestino sobre o porquê da decoração,

mas ele não soube explicar direito, disse apenas que queria “embelezar e enfeitar o

espaço para os convidados”. Um fator que não é único ou exclusivo em dias

festivos, pois ao longo das observações participante pude perceber que

“decorações” do mesmo tipo, de antiguidades exibidas em outros cômodos da

ACREPOM, fazem parte do cotidiano e transforma o espaço de uma associação de

catadores de materiais recicláveis em um lugar mais informal e acolhedor de objetos

doados que podem perdurar esteticamente ressignificados, longe do processo

comum e transitório que o beneficiamento dos resíduos sólidos proporciona ao

mercado de recicláveis.

Do cômodo escuro à entrada principal no espaço coberto da ACREPOM, a

ideia decorativa para a festa surgiu espontaneamente. Desempoeirados, cada peça

pode revelar uma possível biografia de como chegou até a associação; do telefone

de disco vintage a aquela famosa máquina de costura da vó, são as que mais

chamam a atenção. No entanto, para saber os segredos que há por trás dessas

histórias, o curioso terá que dispor de tempo para ouvi-las. Com o sorriso aberto,

Celestino se mostra receptivo para resumir, ou melhor, a presumir, como essas

peças chegaram à associação ou quais eram suas funções no passado.

Envolta da decoração de bom gosto, as pessoas começam a acostar-se. Edna Flor chega com duas senhoras, amigas da pastoral católica. Ambas avisam a todos, em voz audível, que o padre está a caminho da festa para rezar uma missa em comemoração. (...) ‘O momento agora, gente, é de agradecer a Deus por tudo isso e pedir que para que Ele nos ajude tanto pela questão atual do meio ambiente, que foi inclusive lembrada recentemente pelo nosso Papa Franscico81, e a

81 Ultimamente, o pontífice máximo da Igreja Católica tem lembrado os fiéis sobre a importância de preservação do meio ambiente; fato esse que foi oficializado em sua carta encíclica Laudato Si (sobre o cuidado da casa comum, dirigido aos bispos, padres, religiosos e fiéis de todo o mundo, demostrando a apreensão no modo como o homem vem cuidando do ambiente em que vive). No dia 05 de junho de 2018, pelo Twitter, o Papa Francisco lembrou o Dia Mundial do Meio Ambiente com a seguinte mensagem. “Senhor despertai em nós o louvor e a gratidão pela nossa Terra e por todos os seres que criastes”. Instituído pelas Organizações das Nações Unidas (ONU), o Dia Mundial do Meio Ambiente acontece anualmente em 5 de junho, quando a instituição promove a conscientização e ações em todo o mundo em relação ao meio ambiente. Disponível

168

ACREPOM tem essa responsabilidade pela 70 toneladas comercializadas por mês e que deixaram de ir para o aterro sanitário (...) Então gente, quero passar ao padre Messias a palavra. (Edna Flor, 31 de julho de 2018).

Tão logo o recado dado, eis que o padre José Manoel Messias chega para

iniciar a festa com uma tradicional oração do “Pai Nosso” e demais agradecimentos

em tom de reza:

Estou há 24 anos como padre e presencio essa realidade que foi dita pela nossa irmã [Edna Flor]. Esses dias eu vi no Globo Repórter, uma criança, naquele quadro o ‘Brasil que eu quero’, foi perguntada o que você quer para o Brasil do futuro e ela respondeu: ‘Eu quero comer. Eu quero comida’. Uma criança de rua, lá de São Paulo, nos mostra que aqui, em Araçatuba, na ACREPOM as pessoas com vidas parecidas hoje podem comer, ter uma casa, ter uma família. A família é o essencial na vida, a ACREPOM é como uma família também, pois unidos estão recuperando a dignidade. Essas pessoas precisam ser tratadas como irmão e irmã nossa, como cidadão, e a ACREPOM tá dando essa força para vocês. Juntos, se levantando, se encontrando trabalhando, partilhando, para a busca pelo pão de cada dia. O maior presente da vida é a diginidade. ACREPOM é uma associação de irmão, que luta pela vida e dignidade. Rezo para que isso continue crescendo cada vez mais. Que Deus abençoe a todos, pois eu estou desde o começo somando junto com vocês. Amém!

Além do padre, outras autoridades locais começam a aparecer para

comemorar o aniversário da associação. Reconheço algumas delas, como Lazim, a

senhora Edna Flor, o representante local da ABIHPEC, alguns conselheiros do

CONAMA, enquanto outras, como voluntários, especialmente da pastoral, são me

apresentados por Grasi e demais recicladores que fazem questão de me identificar

como ‘antropólogo da ACREPOM’ ou ‘nosso antropólogo’, o que me deixa

extremamente lisonjeadopelo reconhecimento.

Estes rostos, que não são parte do grupo gestor e muito menos do rol dos

associados recicladores, se fazem presente nas festas que a ACREPOM promove

ou é convidada a participar. Nas duas oportunidades em que fui convidado e

compareci em festas, que foram a festa aniversário da ACREPOM (31/07/2018) e na

2ª Edição do Arraiá da Solidariedade na Praça Rui Barbosa em Araçatuba/SP

(23/06/2018) – da qual a ACREPOM participou como convidada administrando uma

barraquinha com vendas de pizza – muito parceiros e voluntários estavam

presentes, sejam para prestigiar como aconteceu na festinha de aniversário, sejam

para contribuir financeiramente comprando comidas na Festa Junina realizada pelo

Fundo Social de Solidariedade de Araçatuba (FSS) com apoio de entidades ligadas

em:<https://noticias.cancaonova.com/especiais/pontificado/francisco/no-twitter-papa-francisco-lembra-o-dia-mundial-do-meio-ambiente/>. Acesso em 09/10/2020.

169

à Secretaria Municipal de Assistência Social e particulares, todas de natureza

beneficentes e que tiveram as rendas revertidas para seus próprios benefícios.

Nos eventos e festas partindo do olhar de dentro para fora, colaboraram com

o sentido de coletivo, para as relações que conformam esse distinto associativismo

da ACREPOM. Nestes ambientes, foi possível circular entre os diversos grupos de

mulheres e homens, conversar, ouvir música caipira e religiosa, sentir os cheiros das

comidas tradicionais e típicas de festas, comer, abraçar e conhecer os voluntários e

os parceiros que fazem a ACREPOM se desenvolver cada vez mais. Enfim, são

esses momentos que possibilitaram a este pesquisador também a aproximação com

o cotidiano dos associados, corroborando futuramente nas visitas de pesquisa, fora

do espaço da produção, que seriam realizadas no final do ano de 2018.

Em relação a essas festas, mais especificamente a festa comunitária e

beneficente dos festejos de São João, pode ser percebida como um espaço de

privilegiado para não só para o estudo antropológico contemporâneo (MAGNANI),

mas também por ser uma festa interpretada como “antiga” no Brasil, e por esta festa

em específico em Araçatuba constituírem-se como uma festa “das entidades”, os

laços de sociabilidade e reciprocidade atuam em sua conformação, marcando as

autonomias das entidades em suas organizações com as barraquinhas e venda de

bebidas e comidas. O Arraiá da Solidariedade é uma festa pensada e realizada de

entidade para entidade, que com apoio da Prefeitura Municipal de Araçatuba atraiu

um público externo maior, considerado como consumidores, posto que a atitude

destes ancoram-se na ordem econômica: uma oportunidades para essas entidades

fazerem negócio, aumentar um pouco mais a renda e informarem seus projetos,

uma vez que todo o resultado da comercialização das barraquinhas reverte para a

própria entidade, que decidirão como melhor serão investidos o lucro.

Embora possa parecer que mini pizzas não sejam uma comida típica

tradicional de festa junina, tendo em vista que em outras barraquinhas vendiam

canjica, pamonha, milho cozido, pipoca, bolo de milho, arroz-doce, broa de milho,

cocada, quentão, vinho quente, pé-de-moleque, paçoca, bolo de amendoim, e etc.,

no geral isso pouco importa, uma vez que o contexto é agregador de outras

questões que fazem refletir para além do seria “típico”. Neste sentido, Maciel (2001)

aponta que:

170

A constituição de uma cozinha típica vai assim mais longe que uma lista de pratos que remetem ao “pitoresco”, mas implica no sentido destas práticas associadas ao pertencimento. Nem sempre o prato considerado “típico”, aquele que é selecionado e escolhido para ser o emblema alimentar da região é aquele de uso mais cotidiano. Ele pode, sim, representar o modo pelo qual as pessoas querem ser vistas e reconhecidas (MACIEL, 2001, p. 152).

A ênfase do reconhecimento dos consumidores para com ACREPOM resultou

em dinheiro arrecadado nesta festa junina beneficente, que servirá para os próprios

associados recicladores. As dimensões lúdicas que constituem palco principal de

uma festa típica, tradicional e caipira de São João no Brasil, naquele contexto, para

as entidades que ali trabalhavam, é também uma dimensão política, não só pelo

envolvimento de autoridades do poder pública – a primeira-dama do município e

presidenta do Conselho deliberativo do FSS, Deomerce Damasceno, que abriu a

festa daquele ano com uma fala onde destacou que as barracas eram custeadas

pela prefeitura, tanto a locação como a padronização visual das mesmas – mas

principalmente para as próprias entidades no fortalecimento dos seus vínculos com

parcerias e voluntários já constituídos, e também daqueles que virão a ser. Para o

antropólogo José Guilherme Magnani (2009) as festas, os momentos de lazer, os

feriados religiosos, os jogos recreativos realizados nas periferias, tornaram-se o

ponto de partida para entender o potencial criativo representado por essas esferas

nas vidas de nossos sujeitos, interlocutores e colaboradores de pesquisa.

A Igreja do Divino Espírito Santo, no bairro Alvorada, em Araçatuba, a mesma

do pároco que celebrou as comemorações dos 22 anos de ACREPOM, é a ponte

como representante da parceria da instituição católica. A proximidade com os

simbolismos católicos, presente nas roupas e assessórios dos ativistas da pastoral,

no engajamento a oração como um ritual agradecimento foi, e continua sendo, uma

parte importante na constituição da ACREPOM e a assistência prestada por parte da

Igreja local, não se restringe apenas a experiência associativista da ACREPOM. Em

um âmbito global, a Igreja possui relações com empreendimentos coletivos do tipo

cooperativistas e associativistas e, especialmente no caso do Brasil, há forte

influência de um associativismo de fundo religioso (WANDERLEY, 2007).

Para o sociólogo Eduardo Wanderley (2007), a especificidade do Brasil neste

caráter relacional da Igreja com organizações associativista e cooperativistas

representam muito bem o que foi o contexto da América Latina no projeto histórico

recente, da passagem do final do século XX e início do século XXI, caracterizado por

171

uma nova política popular instrumentalizada pela Igreja; especialmente por conta

das ramificações mais progressistas da Igreja, houve uma renovação da sua frente

pastoral que surtiu efeito na criação e ou no fortalecimento de organizações

coletivas (WANDERLEY, 2007 p. 168). Se antes a Igreja católica e suas

comunidades eclesiásticas e frentes pastorais estavam envolvidas mais com as

camadas superiores da pirâmide hierárquica que compõe a nossa sociedade, hoje

estas frentes religiosas, institucionalizadas, se voltam para os alicerces de um novo

associativismo82 (AVRITZER, 1997 p. 163-164), e inclui um trabalho de base que

busca “o contato direto, a conscientização e a organização das pessoas em grupos

de base” (CESEP, 1988b apud WANDERLEY, 2007 p. 58).

Dentre as contribuições desenvolvidas em quatro níveis, a saber,

conscientização, valores, militância partidária e movimentos (SEDOC, 1989 apud

WANDERLEY, 2007 p. 169), essa última abrange grupos informais, associações,

cooperativas, entre outras instituições. Como esses tipos de organizações,

cooperativistas e associativista, existem aos milhares e com muita força no universo

da reciclagem (IPEA, 2013ª p. 26), então podemos inferir que geralmente muitas

destas estão, ou estiveram em algum momento, apoiadas pela Doutrina Social da

Igreja em sua opção pelos pobres83.

O panorama que se desenha sobre o viés deste tipo de apoio por parte da

Igreja Católica com os pobres da sociedade é muito positivo para ambos os lados.

Para a religião, em específico, ao possuir traços que renovam as alas do

pensamento católico, num sentido mais progressista e menos conservador, estas

estão operando no propósito democrático para a superação da pobreza

82 Com base nos estudos de Wanderley (2006; 2007) é possível inferir que esse movimento atual da Igreja condiz com a sua própria origem cristã, do catolicismo popular tradicional, anterior ao processo de romanização, que sobrevive em espaços não controlados por autoridades eclesiásticas, e do catolicismo de massa, privatizado e estabelecido em prol do poder monástico e dos interesses das classes dominantes (CESEP 1988b, p. 123 apud WANDERLEY, 2007, p. 57). 83 Curiosamente, no mesmo ano de criação da ideia de uma associação (ACREPOM) em Araçatuba, em 1995, a Campanha da Fraternidade daquele sobre as “massas excluídas” e o 9º Encontro Interclesial de CEB’s que teve por tema central “CEB’s e as Massas excluídas”, provocou sinais de mudanças no comportamento dessas organizações e da comunidade católica no sentido de maior consciência da realidade social por edificação democrática na sociedade brasileira que inclua os pobres (WANDERLEY, 2007 p. 58). Ademais, segundo o antropólogo e historiador britânico Paulo Freston, “em termos absolutos, o Brasil foi o país que registrou o maior crescimento da população evangélica, em todo o mundo, nos últimos anos” (FAPESP, 2019 p. 12-13). Essa proporção do avanço de seitas e religiões pentecostais e neopentecostais frente ao predomínio católico no nosso país, vem preocupando o episcopado em Roma, o que pode ter motivado o alerta para que a Igreja crie novas estratégias ideológicas e dispositivos práticos para não perder mais filiados para outras religiões.

172

(WANDERLEY, 2007). Para a associação ACREPOM, a parceria tem se

materializado com base em doações que vão desde equipamentos para o trabalho

do beneficiamento dos materiais na reciclagem (prensa, esteira) até um condomínio

de 10 casas simples, com o preço fixo de R$ 100,00 o aluguel por casa.

Além de reforçar as qualidades de reciprocidade, fraternidade e igualdade, a

familiaridade com que o representante da Igreja local reproduz em sua vai além das

trocas concretas efetivadas por meio de doações financeiras ou de materiais para a

reciclagem, ao longo de pouco mais de 20 anos de parceria entre a Igreja e a

ACREPOM. Tanto a Doutrina Social da Igreja, como os coletivos de grupos

informais, associações, cooperativas, entre outras instituições sociais, se adequam a

narrativa idealista de que operam e lutam em oposição ao capitalismo, estruturando,

pelo viés da economia solidária adequada a essas formas de trabalho e renda, um

papel de superar o modo de produção vigente, para construir, de uma maneira que

não deixa de ser institucionalizada, um ordenamento social distinto as relações

capitalistas (WANDERLEY, 2007; SINGER, 2001).

É inegável o papel positivo da estrutura de parceria da associação com Igreja,

pois esta assegura alternativas para superar as dificuldades que ainda ocorrem na

geração de trabalho e renda para os catadores. Mesmo que sob sistema

assistencialista, a Igreja colabora para que os associados se deem conta de resolver

problemas coletivos que atingem diretamente o enfrentamento da pobreza e miséria

latente na camada dos sujeitos catadores que trabalham com material reciclável.

A presença de sujeitos da pastoral nas festas, reuniões e demais eventos que

incluem a ACREPOM é habitual, mesmo porque foi graças a iniciação da Pastoral

da Juventude (PJ) da cidade, no ano de 1995, que se despertou um senso de

comunidade para atender o problema social da miserabilidade dos catadores de

Araçatuba, a fim de mobilizá-los para resolver essa necessidade de forma

organizada em um associação, para que assim enfrentassem, ao menos localmente,

as causas estruturais que envolvem o desemprego e abandono. A identificação

mútua entre os agentes da pastoral e os recicladores é observada quando, na festa,

alguns associados se aproximam das duas mulheres da pastoral para conversas

informais.

Além dos vínculos de amizades convencionais com as pessoas da pastoral,

os recicladores reconhecem o histórico da pastoral de Araçatuba como aliados na

173

continuidade pelo trabalho e renda. Isso ficou muito evidente quanto Ramón, um dos

associados, em meio a todos na festa de aniversário de 22 anos da associação,

relata a importância da Pastoral da Sobriedade de Araçatuba no recente serviço

prestado para superar seu problema de alcoolismo pendente.

A Igreja, segundo o padre Messias, tem acompanhado diretamente os

anseios da associação ACREPOM. No nível associativista, um dos projetos mais

antigos desenvolvidos pela Igreja do Divino Espirito Santo é a pastoral da

sobriedade. Claudemir, um dos associados que trabalha como motorista, conta que

fez acompanhamento com esse pessoal da pastoral, no bairro Alvorada. Na

realidade, revela Claudemir, ele foi um dos associados que passou por tratamento

antes e que, ao se encontrar psicologicamente estabelecido para atividades laborais,

foi indicado pela própria pastoral ao trabalho como reciclador associado, pois, para

Claudemir, o desemprego e a instabilidade no setor de construção civil dificultariam

seu retorno e permanência como pedreiro.

Reservadamente, dirigindo a picape da ACREPOM, Claudemir expõe um

pouco sobre sua vida e como chegou a ACREPOM:

O tratamento começou a dar certo juntamente com a ajuda do CAPS. (...) as pessoas que trabalham lá na pastoral, que tem influência, me indicou aqui e, graças a Deus, conseguiram me encaixar para trabalhar. Foi onde eu conheci a ACREPOM e a reciclagem. Comecei como catador de papel e papelão. (Claudemir, agosto de 2018).

Claudemir se orgulha de estar há anos sóbrio e cumprindo normalmente sua

rotina de trabalho. O trabalho e renda associativista oportunizou custear uma

carteira de motorista para veículos pesados. Dessa forma, sóbrio há alguns anos, é

o mais novo motorista para dirigir o veículo utilitário com picape. Claudemir é um dos

sujeitos recicladores da associação que passaram ou passam por esse tipo de

tratamento; ao que consta, a Pastoral da Sobriedade em Araçatuba se desenvolveu

primeiro para atender os associados da ACREPOM, para somente depois atender

outras pessoas na mesma situação.

Alcoolismo e toxicodependência entre os catadores de material reciclável são,

infelizmente comum. Assim como está permanentemente proibido trabalhar sob

estados alterados em consequência de drogas ou álcool, o trabalho terapêutico da

pastoral é de aconselhamento a sobriedade durante os dias de não trabalho, nos

momentos de lazer, principalmente para aqueles que estão na luta contra o vício

174

dessas substâncias. Nesse sentido, o papel da associação, em todas reuniões

semanais ou mensais, é sempre fortalecer as indicações terapêuticas e médicas

Se antes foi militância da PJ que motivou e mobilizou o engajamento de

voluntários para a construção desta associação, hoje é a ala da Pastoral da Saúde

Nacional (PSN) que presta o maior auxílio aos associados da ACREPOM,

desenvolvendo junto a eles a dimensão comunitária na promoção, prevenção e

educação para a saúde, por meio de atendimento individual, debates, palestras,

encontros educativos sobre prevenção de doenças, alimentação adequada,

saneamento básico e higiene atenção básica no caso de doença ou saúde. O mais

importante da atuação da Pastoral da Saúde, a qual pude observar ao longo da

etnografia, foi dimensão político-Institucional junto a entidades governamentais

responsáveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e instituições privadas prestam

serviços e formam profissionais na área de saúde, para agendamentos de consultas

médicas, odontológicas e demais assistências em saúde.

O vício em bebidas alcoólicas e drogas é uma questão premente encontrado

na biografia de boa parte dos recicladores desta associação. Na própria origem da

ACREPOM, esses vícios constituíram o primeiro desafio a ser vencido para que, em

seguida, fosse possível a organização dos catadores como associados.

Presentemente, a mobilização da Pastoral junto ao corpo gestor da associação

continua sendo essencial nas estratégias que culminam em histórias de vitórias,

como as dos atuais recicladores Baú e Claudemir, por exemplo, que há anos se

encontram sóbrios e livres da dependência alcoólica que durante anos consumiram

suas vidas. Porém, Grasi, Alexandra, Celestino, Edna e os catadores mais antigos,

guardam na memória as marcas de abandono, doenças, mortes.

Num dos primeiros dias de visitação, dentre todas as apresentações, chamou

a atenção a este pesquisador algumas imagens que compõem um mural de

fotografias, em sua maioria com fotos de rostos de pessoas. Na parede da entrada

da pequena biblioteca da associação, por sinal abarrotada de livros doados ou

catados, é impossível não notar o mural de fotos com cerca de 21 imagens de rostos

diferentes. Acima do mural estilizado, o letreiro entalhado na madeira deixa

subentendido a lembrança e a saudade dos recicladores da ACREPOM que

faleceram.

175

Se adentrarmos aos aspectos das memórias, ela inevitavelmente ganha

contornos coletivos (HALBWACHS, 1990). A reminiscência da imagem do outro

ainda pulsa na memória dos vivos que foram seus colegas e amigos, que dividiram

os espaços não só de trabalho, mas essencialmente de sociabilidades. Os

antecedentes de muitos dos que partiram apresentam as tristes semelhanças com o

histórico de vítimas do vício em álcool e ou outras drogas, relata Grasi na primeira

vez que me interessei em saber um pouco mais sobre o mural.

Em sua análise sobre a memória coletiva, Maurice Halbwachs (1990) enfatiza

a força dos diferentes pontos de referência que estruturam nossa memória e que a

inserem na memória da coletividade a qual pertencem os sujeitos nos seus grupos

de relações sociais. O mural “Espaço-memória D. Teresinha e Amigos” é um desses

pontos de referência, marcante para os associados e amigos reforçarem a

lembrança afetiva sobre o outro não mais presente.

Em seus bons anos como assistente social da ACREPOM, Grasi menciona

um ou outro reciclador associado com que teve contato e recorda a causa mortis.

Entre alguns, destaco: um senhor que simplesmente não resistiu e, pouco antes de

falecer, preferiu abandonar os companheiros de trabalho e se entregar as bebidas; a

senhorinha de idade avançada na foto falecida ainda nos primeiros anos da

associação (início dos anos 2000) em decorrência de um câncer de pele; a foto da

D. Teresinha, mãe de Edna Flor, falecida de causas naturais. Tirando a foto de um

ou outro, mais jovens, em seus pouco mais de 30 ou 40 anos, todas as demais

pessoas tinham certa idade mais avançada.

Converso sobre o mural com alguns associados. O convívio entre

recicladores não se restringe as sociabilidades no ambiente de trabalho dentro

galpão. Isso demonstra, que o compartilhamento de laços de vizinhança, amizade, e

até mesmo do terreno das casas dos associados recicladores da ACREPOM, faz

com que os mortos sejam lembrados em outras situações, sem necessariamente

reduzir as narrativas rememoradas apenas aos eventos que transcorreram sobre a

morte do indivíduo.

Em relação aos falecidos, os sentimentos de perdas e saudades sobressaem

ante as demais emoções que esses tipos de lembranças tendem a produzir ao

serem narradas. Mesmo não conhecendo os sujeitos em questão, sou transportado

a uma complexa ficção de que as lembranças que ficaram são para mim, e

176

principalmente para o outro que conviveu e relatou correspondente a impressões

profundas que se justapõem a realidade, acrescentam lembranças que não se

confundem e evoluem, pois, em síntese:

(...) a morte, que põe um fim a vida fisiológica, não interrompe bruscamente a corrente dos pensamentos, de modo que eles se desenvolvem no interior do círculo daquele cujo corpo desapareceu. Algum tempo ainda nós o imaginamos como se ainda vivesse, ele permanece engajado à vida quotidiana, imaginamos o que ele diria e faria em tais circunstancias. É depois da morte de alguém que a atenção dos seus se fixa com maior força sobre sua pessoa. É então, também, que sua imagem é a menos nítida, que ela se transforma constantemente, conforme as diversas partes de sua vida que evocamos. Em realidade, nunca a imagem de um falecido se imobiliza. (HALBAWCKS, p. 74).

Não existe apenas memórias ruins sobre a passagem desses associados e

suas contribuições antes de virem a falecer. Boas lembranças continuam vivas. O

estreitamento de laços corroborou para que uma recicladora, Maria do Carmo,

viesse a se tornar uma vez vice-presidente da ACREPOM logo após o falecimento

de D. Teresinha, mãe de Edna Flor, que desempenhava um papel parecido e tinha

na associada uma amiga. Apesar das diferenças das origens sociais e econômicas,

seus caminhos se entrecruzaram e uma amizade verdadeira floresceu. “Só tenho

boas lembranças da minha amiga, D. Teresinha”, lembra Maria do Carmo.

A associada Luzimara tem muitas dessas boas passagens para contar,

especialmente porque ela é, assim como a grande maioria dos que já faleceram

foram, associados a ACREPOM desde de 1996. Ela se lembra dessas pessoas,

uma colega de trabalho da associação, moradora do mesmo bairro humilde. Além de

voltarem sempre juntas depois do expediente de trabalho, se juntavam aos finais de

semana para congregar um almoço de domingo, ou sentar a frente da calçada e

jogar conversa fora, como comadres por exemplo. Ocasionalmente durante essas

reuniões mais particulares, uniam-se os filhos, os netos, os maridos, parentes em

geral, enfim, das famílias que, naquele momento de convivialidade, dada as

simetrias entre elas, se tornavam uma só.

Como consequência das relações sociais fora do ambiente de trabalho, os

familiares dos associados se envolviam nas atividades extramuros que os laços de

amizade traziam de dentro para fora. Não era raro presenciar algum integrante da

família de um reciclador indo até a associação para outros propósitos distintos da

doação de materiais. A filha de uma das recicladoras, que vende panos de prato no

centro de Araçatuba, estava ali próxima e decidiu dar uma passadinha para

177

cumprimentar a mãe e beber uma água gelada. Naturalmente, o vínculo afetivo

dentro do ambiente de trabalho colaborou para que relações interfamiliares dos

associados se desenvolvessem em outros níveis; amizades, mas também namoros,

casamentos, cuidados com as crianças, era e são sociabilidades que continuam

sendo partilhados entre as famílias.

A preocupação dos recicladores com seus pares associados é muito presente

nas interações sociais. A ordem social local presente se desenvolveu com base nas

relações passadas, e isso se reproduz até hoje como princípios de valorização

comunal que são esperados quando as interações sociais convergem em

respectivas representações e expectativas (GOFFMAN, 2002) que são construídas

entre eles e possuem amplo valor simbólico.

Se focar no aspecto da morte, pelas “feridas da memória” (RICOUER, 2005,

p. 1), reeditadas através das lembranças contadas, pude perceber que as

brevíssimas descrições de alguns fragmentos da vida desses catadores falecidos

certamente se assemelham à algumas biografias de catadores ao redor do mundo,

ou mais propriamente, com sujeitos que enfrentam a liminaridade na busca pela

sobrevivência entre a miséria e pobreza.

Diante dos parcos fragmentos biográficos que me são apresentados, abaixo

de cada foto há os símbolos da estrela da vida e da cruz da morte, com as devidas

datas de nascimento e falecimento. Entre uma foto e outra, é possível asseverar que

muitos dos recicladores associados da ACREPOM que partiram para o outro plano

foram catadores do lixão de Araçatuba. Mais um triste episódio que compõe aquele

mesmo personagem estigmatizado citado nessa dissertação, nada novo à realidade

das cidades brasileiras, que são os excluídos.

Paradoxalmente, os relatos de cunho emocional que envolve relembrar dos

colegas de trabalho que estão nas fotos, são apresentados fora daquela esfera a

qual o trabalho possibilitou o estreitamento das reciprocidades. Não haveria de ser

diferente, pois muitos desses moraram juntos no mesmo terreno de casas mantidas

pela associação aos recicladores. São relatos pessoais, pequenas frases que

contam, com naturalidade e ponderação, as subjetividades e adversidades que os

excluídos enfrentam além da esfera de produção capitalista e como consequência

desta.

178

Ouvir esses estratos de vida, de como eram, do que gostavam das risadas,

das tristezas, das vitorias e das derrotas, me levou a concluir que é preciso

circunscrever também o processo de exclusão para a esfera do sensível, que

ampliasse o conceito original de exclusão com outros elementos junto ao mundo do

trabalho. Para tal efeito, o conceito elaborado por Escorel é justo em caracterizar a

exclusão como “processo de vulnerabilidade, fragilização e ruptura dos vínculos em

várias dimensões na vida social” (ESCOREL, 2006 p. 258), e que, portanto, atinge,

em termos relativos, o relato memorial sobre a experiência do outro.

Era uma vitória possuir a experiência no saber-fazer da catação informal de

papéis, latinhas e outros materiais encontrados nas ruas ou nos lixões em um

ambiente novo que era a associação, convivendo com outros excluídos e suas

diversas maneiras de ganhar a vida. Visto em não confundi-los como mendigos,

ainda que em alguns aspectos econômicos e materiais se assemelhem a esses por

estarem desempregados devido a desindustrialização no Brasil; fora do mercado

oficial de trabalho formal por conta do continuo barateamento da mão-de-obra, que

os empurram para o subemprego e a informalidade; e outros adventos de

sucessivas crises cíclicas e estruturais da economia capitalista.

Como já foi mencionado durante boa parte do Capítulo 1 desta dissertação,

cabe ressaltar, novamente, que os catadores de materiais recicláveis, ou o

segmento de pessoas que sobrevivem diretamente da coleta de materiais

recicláveis, como o leitor desejar, subdivide em dois grupo: os catadores que

trabalham na ruas, domicílios, estabelecimentos e os que trabalham nos lixões

(BASTOS 2003, p. 28). Seja no primeiro grupo, foco dessa pesquisa, ou no

segundo, há uma tendência no desenvolvimento desses participando de alguma

organização com finalidade de seguranças, associação, descanso e garantia de

trabalho e renda.

Emergindo diante do problema que compõe os catadores nos lixões, é que a

associação de catadores se constituiu. Da primeira leva de recicladores associados

em Araçatuba, muitos eram os catadores do lixão que já sustentavam a base que

movimenta a indústria da reciclagem local. Foi para atender os lamentos, os sonhos,

as vozes, que se construiu a ACREPOM na história de um dos grupos de excluídos

que, na maioria das vezes, são completamente abandonados à própria sorte.

179

Recuperar esse sentido emocional, pelo menos em formas de brevíssimos

relatos é importante, e o mural de fotos contribuiu na recuperação do que Walter

Benjamin (2012) ousou chamar como sentido aurático da foto. A aura daquelas

fotografias atua de forma recíproca, principalmente por aqueles que tiveram contato

próximo com os colegas de trabalho que já se foram. A aura é uma figura singular,

composta de elementos espaciais e temporais; a aparição única de uma coisa

distante, por mais próxima que ela esteja (BENJAMIN 2012, p. 101). Retirar aquele

objeto de seu invólucro, do seu espaço sagrado dentro da associação, seria destruir

sua aura, descaracterizar a forma de percepção e a capacidade de captar e

recuperar memórias bem-vindas do “semelhante” em sua alteridade cidadã no

mundo.

180

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O início deste empreendimento etnográfico advém das relações que meu

antigo campo investigativo de pesquisa relegou. À época, ao final da etnografia que

compôs a escrita do meu TCC, que também versava sobre estes distintos sujeitos

(catadores e recicladores organizados), proporcionou novas reflexões com a mesma

força que as questões que o trabalho anterior deixou em suspensão ou incompleto.

Assim, o caráter desta dissertação tem um cunho de completude para com esse

outro principalmente no sentido de mostrar as relações de trabalho de catação e

reciclagem que acontecem na associação apresenta, enquanto no caso da

etnografia passada não acontecia e eles se encontravam “desempregados”.

Outro ponto é que esta dissertação também navega pelas águas da ambição

de produzir uma análise antropológica dos resíduos sólidos e suas transformações.

Se esta ideia serviu como ponto de partida para a etnografia apresentada, ao final

dele resta a convicção de completude em observar que os esforços desses sujeitos

catadores e recicladores associados não são dedicados ao “lixo”, mas precisamente

ao seu avesso, os valores que estão na faceta invisível dos objetos descartados e

somente a ordem do trabalho poderão revelar.

O foco nos dois limites finais da forma-mercadoria, lixo ou resíduo, provocou o

sentido de olharmos para este em primeiro plano, no seu sentido relacional com o

humano. Compreendidos através da história da limpeza urbana, da ação presente

dos catadores e recicladores, da relação produção-consumo, o descarte das coisas

e objetos, inevitavelmente, faz parte de fenômenos sociais mais abrangentes. A

concreta separação do “útil” e “inútil” no inevitável ato descarte das coisas e objetos,

seja como lixo ou como resíduo, pode se circunscrever o que Marcel Mauss (1872-

1950) conceituou como fato social total, tamanho é a força que esse processo,

aparentemente simples “jogar as coisas fora”, tem de se conectar com questões

complexas que permeiam entre sistemas biopsicossociais e é vivido/simbolizado em

diversos enfoques sociais, culturais, econômicos, jurídicos morais, políticos e

religiosos

Os aspectos mais visíveis dessas duas formas de descarte tangenciam

estigmas e marginalizações. Quando expostos a luz da história, na modernidade é

possível observar que ao passo da construção de estigmas e preconceitos que

181

permeiam culturas na relação do ser com o seu descarte, houve um investimento de

saberes científicos e procedimentos técnicos, a grande maioria institucionalizados, a

fim de trata-los. Pouco desse tratamento contemporâneo sobre os meios e os

possíveis finais das coisas descartadas, converteu-se em beneficies; mundialmente

falando, pode-se abstrair que das malgradas experiências recentes, do final do

século XIX até meados do XX, o investimento público nas cidades sobre esse

sentido, por exemplo, criou perspectivas de higienização social até hoje vivenciadas.

O distanciamento que o descarte produz sobre a matéria, revela o contexto de

ser quase sempre em lugares afastados, provisórios, longe do perímetro urbano, o

que, por correspondência, associa-o a lógica dos estigmas e dos mecanismos de

afastamento. Nesse sentido, uma antropologia dos resíduos sólidos dificilmente não

se deparará com a incorporação também destas características análogas em

sujeitos que aparecem invisibilizados em meio aos monturos dos rejeitos do pós-

consumo, que são os sujeitos catadores e recicladores.

O foco nos objetos durante a relação humanos e resíduos, mais

especificamente, dos catadores e recicladores com materiais descartados,

perscrutam valores que podem surgir a partir da reelaboração desta materialidade

marginal, em suspensão, potencialmente contaminada, em matéria-prima desejosa

as construções das mercadorias. A pesquisa buscou nestas relações, das palavras e

das práticas, das coisas residuais com esses distintos sujeitos, seus sentidos

investidos que transformam e renovam a matéria. A abordagem etnográfica sobre a

restituição dos materiais residuais e a sua transformação em matéria-prima

apresentou acesso a uma dupla percepção de materialidade: à dimensão visível dos

objetos, dos materiais em si, e a materialidade enquanto realidade das relações

concretas. Com a etnografia abriu-se a possibilidade de construção teórica guiada

por muitas das contribuições do materialismo histórico dialético.

O contexto observado, uma associação de catadores e recicladores da cidade

de Araçatuba, correspondeu ao desvelamento deste mundo apresentado, no qual os

objetos descartados deixavam uma posição residual para assumir um papel central

em uma dinâmica economia da reciclagem. Acompanhamento do trabalho dos

catadores e recicladores, dentro e fora do galpão, movimenta e é parte de um

circuito comercial específico. Ao descrever o conjunto de etapas, técnicas e

conhecimentos que eles dominavam e exerciam em suas atividades cotidianas, a

182

etnografia acabou por revelar o invisível, a potência de valor resistente em resíduos

recicláveis. A efetivação desta potencialidade dependia da mediação destes

catadores e recicladores juntos na execução bem sucedida do seu trabalho. Operar

a ordem em aparente desordem compreende a operação de complexos processos

simbólicos, sociais e materiais. Por meio destes processos, eles produziam a

recriação do valor de troca das coisas descartadas. A transformação destas em

“materiais recicláveis”, ou seja, matéria-prima corresponde em conversão de dinheiro

para estes trabalhadores e também à valorização dos objetos antes da finitude.

183

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