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Saeculum - Revista de História - nº 22 - Dossiê História e História da Educação - jan./jun....

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sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [22]; João Pessoa, jan./ jun. 2010 1

N° 22 - Jan./ Jun. 2010

ISSN 0104-8929

sÆculum

2 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [22]; João Pessoa, jan./ jun. 2010.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBAReitor: Rômulo Soares Polari

Vice-Reitora: Maria Yara Campos Matos

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAPró-Reitor: Isac Almeida de Medeiros

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESDiretora: Maria Aparecida Ramos de Meneses

Vice-Diretor: Ariosvaldo da Silva Diniz

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIAChefe: Damião de Lima

Sub-Chefe: Regina Maria Rodrigues Behar

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIACoordenador: Raimundo Barroso Cordeiro Junior

Vice-Coordenador: Elio Chaves Flores

COMISSÃO DE EDITORAÇÃO - SÆCULUMAngelo Emílio da Silva Pessoa

Carla Mary S. OliveiraCláudia Engler Cury (presidente)

Elio Chaves FloresMozart Vergetti de Menezes

Regina Célia GonçalvesRegina Maria Rodrigues Behar

Serioja Rodrigues Cordeiro MarianoTelma Cristina Delgado Dias Fernandes

Azemar dos Santos Soares Jr.(Colaborador Mestrando PPGH-UFPB/ bolsista CAPES)

sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [22]; João Pessoa, jan./ jun. 2010 3

Departamento de HistóriaPrograma de Pós-Graduação em História

Universidade Federal da ParaíbaCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTESCampus Universitário - Conjunto Humanístico - Bloco V

Castelo Branco - João Pessoa - Paraíba - CEP 58.051-970 - BrasilFone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <[email protected]>

Sítio Eletrônico: <http://www.cchla.ufpb.br/saeculum/>

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4 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [22]; João Pessoa, jan./ jun. 2010.

Copyright © 1995-2010 - DH/ PPGH/ UFPB

ISSN 0104-8929 Capa, Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Carla Mary S. Oliveira.

Ilustração das Vinhetas: Albretch Dürer, “Moça Lendo” (detalhe), 1501;desenho a grafite e nanquim castanho sobre papel; 16,1 x 18,2 cm;

Boymans-van Beuningen Museum, Rotterdam, Holanda.

Impresso no Brasil - Printed in Brazil

Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional,conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio.A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal.

Indexada no Latindex (UNAM - México)e no DOAJ - Directory of Open Acess Journals (Lund University - Suécia)

Periódico avaliado como QUALIS B2 na área de História pela Capes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Biblioteca Central - Universidade Federal da Paraíba

S127 Sæculum - Revista de História, ano 16, n. 22 (2010). - João Pessoa: Departamento de História/ Programa de Pós-Graduação em História/ UFPB, jan./jun. 2010.

ISSN 0104-8929

Semestral

210 p. BC/UFPB CDU 93 (05)

MISSÃO DA REVISTASæculum - Revista de História é publicada pelo Departamento de História da UFPB desde 1995 e, a partir de 2004, passou a ser também o periódico do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade. Sua freqüência é semestral, e se trata de uma revista voltada à divulgação e

debate de pesquisas no campo da História e da Cultura Histórica e suas diversas interfaces, abrindo espaço para pesquisadores do Brasil e do exterior.

CONSELHO EDITORIAL

Antônio Paulo Resende (UFPE)Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG)

Carlos Fico (UFRJ)Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN)

Ernesta Zamboni (UNICAMP)Gisafran Mota Jucá (UECE)

João José Reis (UFBA)João Paulo Avelãs Nunes (Univ. de Coimbra)

Jorge Ferreira (UFF)

Leonardo Guimarães Neto (CEPLAN)Luiz Geraldo Silva (UFPR)

Maria de Lourdes Janotti (USP)Pedro Paulo Funari (UNICAMP)

Peter Mainka (Univ. de Wüzburg)Ricardo Pinto de Medeiros (UFPE)

Sílvia Regina Ferraz Petersen (UFRGS)Tereza Baumann (MN-UFRJ)Valdemir Zamparoni (UFBA)

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Sumário

ISSN 0104-8929João Pessoa - PB, n. 22, jan./ jun. 2010

DOSSIÊ: HISTÓRIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃOOrganizadores: Cláudia Engler Cury e Antonio Carlos Ferreira Pinheiro

Uma obra civilizatória: instrução e catequização dos índiosna Província da Parahyba do Norte (1822-1865) ............................................. 11Antonio Carlos Ferreira Pinheiro

Fontes e arquivos da história da educação na Parahyba do Oitocentos:o Lyceu Parahybano ........................................................................................... 25Cristiano Ferronato

Cultura Material da escola em Mensagens Presidenciais:entre o dito e o não dito (Santa Catarina – 1874 a 1930) ........................... 41Vera Lucia Gaspar da SilvaCamila Mendes de JesusAna Paula de Souza Kinchescki

Católicos e protestantes no Nordeste brasileiro do século XX:a educação em questão .................................................................................... 51Maria de Lourdes Porfirio Ramos Trindade dos AnjosCarlos Henrique de Carvalho

A contribuição de Lima Barreto para o entendimento da críticaeducacional brasileira do início do século XX ............................................... 69Silvana Fernandes Lopes

Educação e escolarização em Minas Gerais: o legislativo e o executivocomo produtores da representação dos trabalhadores ................................ 85Irlen Antônio GonçalvesVera Lúcia Nogueira

Professores e políticos em nome da paz: interesses internacionais

por uma história ensinada ................................................................................ 103Juçara Luzia Leite

Editorial ................................................................................................................ 7

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ARTIGOS

As pragmáticas de fins do século XVII:política fabril e manufatureira reativa ........................................................... 117Gabriel Almeida Antunes Rossini

Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco!: centralização políticae representação literária da guerra anti-holandesa na imprensacarioca no Segundo Reinado .......................................................................... 137Artur José Renda Vitorino

Saber médico, cultura e saúde pública no Brasil do século XIX .............. 147Alisson Eugênio

Cultura Histórica, ensino de história e múltiplos saberes ......................... 163Ana Elizabete Moreira de Farias

Relações entre imagens e textos no ensino de História ............................. 173Edlene Oliveira Silva

RESENHA

Tinta negra, páginas brancas: a literatura negra nas aulas de históriae de historiografia ............................................................................................. 191Elio Chaves Flores

ENTREVISTA

A Leitura da Historiografia Clássica para a História da Educação:entrevista com Justino Pereira de Magalhães .............................................. 201

***

Normas para publicação .................................................................................. 207

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EDITORIAL

Prezados Leitores:

As pesquisas em História da Educação vêm ganhando espaço cada vez maior entre os chamados “historiadores de ofício”. Os estudos acerca das práticas educativas; dos processos educacionais; da história das instituições escolares; do papel das políticas de Estado voltadas para a Educação; da história das disciplinas escolares, dentre uma infinidade de temas, têm sido alvo de pesquisas por parte dos historiadores em diversas temporalidades.

Compartilhando das perspectivas teóricas e metodológicas do campo da História, como as filiações com a História Cultural; a História Social inglesa; a Micro História italiana e as linhagens da perspectiva marxista têm dado uma nova face para as pesquisas da História da Educação que passaram, nos últimos vinte anos, a ter maior visibilidade para além dos limites dos cursos de pedagogia e dos estudos relacionados às ideias do pensamento educacional. Nessa perspectiva, as novas abordagens e objetos vêm se constituindo como um espaço de reflexão importante para fortalecermos os ofícios de Clio, que desta feita passa a se interessar mais de perto pelos problemas relacionados com a educação na sua historicidade.

Paralelamente ao seu crescimento e fortalecimento como um domínio es-pecífico de pesquisa, a História da Educação também vem sofrendo críticas no que concerne ao fato de fazer uso de conceitos e categorias de interpretação e análise já consagradas pela História. Preocupados com essa questão, os historiadores da educação abriram um fértil campo de produção do conhecimento histórico que, certamente, tem contribuído para seu desenvolvimento no âmbito da teoria da história. Para tanto, os pesquisadores lançaram mão do conceito de cultura escolar, engendrada a partir de estudos sobre o cotidiano das escolas, dos trabalhos de história comparada e os cuidados com os acervos que passaram a guardar as memórias da escolarização pública e privada no Brasil e em outros países.

É nesse contexto que os editores da revista Sæculum preocupados e antena-dos com todas essas mudanças relacionais de produção de conhecimento acerca da história e da história da educação resolveram destinar este número com um dossiê História e História da Educação. Assim sendo, a revista Sæculum nº 22 apresenta sete ensaios que procuram trazer pesquisas desenvolvidas em várias universidades brasileiras e que vão desde as discussões sobre as fontes e arquivos, educação indígena e cultura material escolar nos oitocentos; a posição de católicos e protes-tantes sobre educação no Nordeste brasileiro contemporaneamente; as interfaces da literatura com a crítica educacional brasileira na obra de Lima Barreto; o papel do Estado no processo de escolarização de trabalhadores em Minas Gerais e os interesses internacionais sobre a história ensinada. Procuramos estabelecer uma espécie de panorama parcial das temáticas e abordagens em História da Educação para permitir ao leitor uma travessia agradável.

Mais cinco artigos compõem a sessão seguinte, que denominamos de fluxo contínuo, com discussões que vão da política fabril e manufatureira no século XVII; sobre o século XIX apresentamos dois artigos, o primeiro deles sobre a representação acerca da guerra anti-holandesa na imprensa carioca e o segundo sobre o saber

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médico e a construção de uma cultura de saúde pública no Brasil. Finalizando o conjunto de artigos dois textos discutem ensino de história, um deles sobre as in-terfaces com a cultura histórica e o outro sobre o papel das imagens no ensino de História. Convidamos os leitores a acompanhar a resenha sobre alguns exemplos de peças poéticas produzidas ao longo dos anos de 1978-2008, em que os autores de Cadernos Negros “pensaram uma história do Brasil vista pela ótica da matriz

cultural africana”.

Por último os editores da Sæculum publicam entrevista inédita – “A Leitura da Historiografia Clássica para a História da Educação” – concedida em Lisboa pelo historiador Justino Pereira de Magalhães, cujo percurso de vida acadêmica diz muito sobre as trajetórias dos pesquisadores em História da Educação brasileiros.

Os Editores

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dossiÊHistória

e

História da Educação

Organizadores:Cláudia Engler Cury

Antonio Carlos Ferreira Pinheiro

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UMA OBRA CIVILIZATÓRIA:INSTRUÇÃO E CATEQUIZAÇÃO DOS ÍNDIOSNA PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE

(1822-1865)1

Antonio Carlos Ferreira Pinheiro2

Considerações Iniciais

A elaboração deste texto insere-se no contexto de discussões que vêm sendo desenvolvidas no grupo de estudo e pesquisa intitulado História da Educação no Nordeste Oitocentista (GHENO)3. Esse Grupo está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba e mantém estreita relação com o Grupo de Estudos e Pesquisas de História da Educação na Paraíba, vinculado ao HISTEDBR – PB “História, Sociedade e Educação no Brasil”. O GHENO tem como objetivo “desenvolver estudos e pesquisas no que tange à instrução das primeiras letras, à instrução secundária e às escolas de ensino superior tanto as públicas quanto as particulares. Para tanto, o Grupo desenvolve pesquisas por meio de duas linhas temáticas: a) Instituições Educacionais e a Formação do Estado Nacional e b) Culturas Educacionais: práticas, sujeitos e representações”4.

Nesse momento, estamos realizando a correção da digitação de toda a documentação que já foi transcrita e catalogada pelo Grupo e que se encontra originalmente no Arquivo Histórico do Estado da Paraíba – FUNESC. Mais recentemente, alguns membros do grupo têm trabalhado com os periódicos e com memorialistas que escreveram sobre a instrução do período imperial.

No transcorrer desse levantamento nos deparamos com alguns documentos que fazem referência aos indígenas localizados na Província da Parahyba do Norte, mais precisamente nas localidades ou freguesias de Mamanguape, Monte-Mor de Preguiça e São Miguel da Baía da Traição5, que distam poucos quilômetros do que hoje se

1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada durante a realização do IV Congresso Brasileiro de História da Educação, ocorrido na cidade de Goiânia, em 2006.

2 Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História (CCHLA-UFPB) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (CE-UFPB). Membro da diretoria (Tesoureiro) da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE. Coordenador do Grupo de Pesquisa História da Educação na Paraíba – HISTEDBR-PB.

3 Este Grupo de Pesquisa denominava-se História da Educação na Paraíba Imperial (século XIX), adotou a atual nomenclatura a partir de janeiro de 2010. Fazem parte hoje do grupo de estudo e pesquisa: Dra. Cláudia Engler Cury (líder), Dra. Mauricéia Ananias (vice líder), Dr. Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, Dra. Fabiana Sena, Cristiano de Jesus Ferronato (doutorando – PPGE-UFPB), Ms. Surya Aaronovich Pombo de Barros, Philipe Henrique Teixeira do Egito (mestrando – PPGE-UFPB), Itacyara Viana Miranda e Thiago Oliveira de Souza (mestrandos – PPGH-UFPB) e os graduandos em Licenciatura em História da UFPB Lucian Souza da Silva, Maday de Souza Martins e Michelle Lima da Silva.

4 Cf. Diretório do CNPq.5 Baia da Traição hoje é um município onde se encontram importantes comunidades indígenas.

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constitui como o município João Pessoa. Essa documentação, em sua grande maioria, trata de questões relativas ao uso e

posse da terra, dos limites de espaços que deveriam ser reservados aos indígenas, ou melhor, de terras que a eles pertenciam e que foram invadidas pelo colonizador branco e mestiço6. Nesse sentido, a documentação encontrada nos fornece indícios de que muitas tensões e conflitos se estabeleceram entre os “civilizados” e os “selvagens” no período imperial brasileiro. Talvez tenha sido a partir desse momento da história brasileira e, mais particularmente, paraibana, que de fato tenha se constituído o início de maior resistência e de luta dos povos indígenas em torno da questão da sua preservação cultural sua permanência em alguns territórios próximos à costa brasileira.

Não queremos aqui esquecer todo o período de ocupação e conquista procedida pelos “invasores” que foi marcada, predominantemente, pelo extermínio e pela expulsão dos povos indígenas para o interior do Brasil. Nesse sentido, não estamos falando que existiu um comportamento passivo desses povos e que o único procedimento adotado por eles tenha sido a fuga. No entanto, temos que considerar que após o período da independência política do Brasil de Portugal, a sociedade e o Estado brasileiro criaram uma série de mecanismos legais e institucionais que contribuíram para a constituição da Nação, tomando como referência alguns elementos culturais que passaram a ser utilizados no processo de “fabricação” de uma identidade nacional. É possível que nesse contexto alguns agrupamentos indígenas tenham decidido permanecer e defender suas terras e suas culturas. Segundo Fonseca, diferentemente do que ocorrera com os negros africanos e brancos o contato entre brancos e índios foi bem menor, inclusive do ponto de vista linguístico7. Assim, a mesma autora, que toma José Honório Rodrigues como inspiração para a sua análise, destaca que:

[...] no começo do século XIX, a língua falada no Brasil ‘ou era muito lusitanizada nos meios brancos das grandes cidades costeiras, ou ainda sofria deficiências na aprendizagem oral que negros e índios revelavam’, num permanente estado de guerra cultural e lingüística. A ‘vitória’ da língua portuguesa, segundo este autor, não se deu de forma tão pacífica ou tão fácil, mas custou esforços, sangue, vidas.8

Nesse sentido é que, neste trabalho, analisamos alguns aspectos relativos à ação civilizadora que foi empreendida tanto pelo Estado brasileiro e pelo poder provincial paraibano quanto pela Igreja Católica, frente às possíveis resistências dos “indígenas paraibanos” em tentar manter e preservar suas culturas, mesmo considerando, em princípio, que estes foram quase que totalmente vencidos e “perdedores” frente ao poder dos brancos e mestiços pertencentes aos grupos dominantes política e

6 Para verificar esse tipo de documentação consultar as caixas referentes aos anos de 1862 a 1867. Documentos do Arquivo Público do Estado da Paraíba da Fundação Espaço Cultural – FUNESC.

7 Estima-se que aproximadamente 300 palavras africanas tenham ingressado no léxico da língua portuguesa no Brasil. FONSECA, Maria Cristina de Assis Pinto. A escrita oficial: manuscritos paraibanos dos séculos XVIII e XIX. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, 2005, p. 85.

8 FONSECA, A escrita oficial, p. 86.

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economicamente. Vale salientar que essa opressão foi facilmente exercida num contexto de uma cultura política e social extremamente hierarquizada e assentada no escravismo e no modelo econômico agrário-exportador que tinha como base a concentração de terras. Daí terem sido, e ainda serem, os indígenas o maior alvo de expropriação de sua riqueza maior: a terra, e os consequentes processos de extermínio, seja em relação à própria vida, seja de seus valores simbólicos e culturais no sentido mais amplo. Nessa perspectiva, entendemos que para além da força bruta, os povos indígenas brasileiros sofreram outro refinado tipo de violência: a cultural. Violência essa produzida a partir da ação educativa implementada pelos poderes constituídos pela recente nação e, principalmente, empreendida pela Igreja Católica.

Entretanto, deparamo-nos com grandes dificuldades no sentido de proceder a uma análise consubstanciada e aportada em fontes que mais de perto estejam relacionadas à problemática educacional indígena relativa ao período imperial na Província da Parahyba do Norte. Essa “escassez documental” tanto se refere às possíveis resistências de ordem cultural, social e econômica empreendida pelos povos indígenas quanto no sentido das ações desenvolvidas pelo poder provincial e da Igreja Católica na Parahyba do Norte.

Trabalhamos, aqui, na perspectiva da longa duração, no sentido de entendermos as permanências e as mudanças que se processaram ao longo de quase todo o período imperial, considerando, todavia, as diversas conjunturas políticas, sociais, econômicas e culturais que terminaram por “condicionar” as políticas implementadas pelo recém-constituído Estado brasileiro para as questões educacionais destinadas aos povos indígenas. Também é mister ressaltar a ação da Igreja Católica, ao que tudo indica manteve o seu tradicional papel de civilizar pela palavra, pelas letras9 com o objetivo de ampliar a “adesão” ou “convertimento” dos “selvagens e primitivos” à cultura lusa e cristã-católica. Assim, a noção de permanência e mudança está embasada nas ideias postas por Hobsbawm:

Em história, na maioria das vezes, lidamos com sociedades e comunidades para as quais o passado é essencialmente o padrão para o presente. Teoricamente, cada geração copia e reproduz sua predecessora até onde seja possível, e se considera em falta para com ela na medida em que falha nesse intento. Claro que uma dominação total do passado excluiria todas as mudanças e inovações legítimas, e é improvável que exista alguma sociedade humana que não reconheça nenhuma delas. A inovação pode acontecer de dois modos. Primeiro, o que é definido oficialmente como ‘passado’ é e deve ser claramente uma seleção particular da infinidade daquilo que é lembrado ou capaz de ser lembrado. Em toda sociedade, a abrangência desse passado social formalizado depende, naturalmente, das circunstâncias. Mas sempre terá interstícios, ou seja, matérias que não participam do sistema da história consciente na qual os homens incorporam, de

9 Expressão retirada do trabalho de João Adolfo Hansen. HANSEN, João Adolfo. A civilização pela palavra. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO, Luciano Mendes Faria & VEIGA, Cynthia Greive (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 19-41.

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um modo ou de outro, o que consideram importante sobre sua sociedade A inovação pode ocorrer, nesses interstícios, desde que não afete automaticamente o sistema e, portanto, não se oponha automaticamente à barreira.[...] Seria interessante investigar que tipos de atividades tendem a permanecer assim relativamente flexíveis, além daquelas que parecem negligenciáveis em um dado momento mas podem se mostrar diferentes numa ocasião posterior.10

É partindo desse referencial interpretativo que passamos a analisar o período de 1822, ano em que se inicia a monarquia brasileira, até 1865. Esta data limite do nosso estudo foi arbitrariamente estabelecida em virtude de se constituir o ano no qual encontramos o último documento no Arquivo em que trabalhamos e que trata do problema que em seguida passamos a discutir.

A historiografia sobre a instrução dos povos indígenas no Brasil:referenciados no período colonial e silenciados no período imperial

A produção historiográfica acerca do trabalho de instrução e catequização de índios no Brasil promovida, principalmente, pela Igreja Católica, restringe-se quase sempre ao período da história colonial, com destaque para os momentos que antecederam as reformas pombalinas ocorridas a partir 1759. A análise sobre o trabalho catequético desenvolvido pelos inacianos e por religiosos pertencentes a outras ordens são bem difundidas na historiografia educacional brasileira. Podemos, grosso modo, separar essa produção historiográfica em três grandes segmentos: um primeiro que analisa a ação educativa e pedagógica dos jesuítas numa perspectiva triunfalista, destacando o trabalho missionário que objetivava apenas difundir a fé cristã no intuito “salvar” os aborígines da ignorância e do inferno. Nesse sentido, a ação catequética dos padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta é bastante ressaltada em tal perspectiva:

Falar das primeiras escolas do Brasil é evocar a epopéia dos Jesuítas no século XVI. Ainda não está feita a sua história, mas todos reconhecem já, sem esforço, que os Jesuítas ocuparam nela o primeiro lugar sob o aspecto da civilização e do progresso. Eles foram os protectores natos da liberdade dos índios; foram os seus farmacêuticos e os seus médicos, ensinaram-lhes as artes e os primeiros passos da industria. (...) os Jesuítas foram, ou procuraram ser, primeiro de tudo, missionários e santos.11

Há também alguns estudos que ressaltam a ação pedagógica e civilizadora realizada por outras ordens religiosas, tais como a dos franciscanos e dos beneditinos. Sobre a ação missionária empreendida pelos franciscanos na colônia (Brasil), destacamos o trabalho de Miranda que salienta, ao longo de suas argumentações,10 HOBSBAWM, Eric. Sobre história: ensaios. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia

das Letras, 1998, p. 22-23.11 LEITE, Serafim. Páginas de história do Brasil. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife: Ed. Nacional,

1937, p. 35-36.

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O empenho dos franciscanos que vieram em 1585, definitivamente, para o Brasil, e a evangelização que ‘com incansável zelo das suas almas trabalhavam em reduzir (os índios) ao grêmio da Igreja’ e foi isto que caracterizou a atividade de Frei Melquior, porque ‘a conversão do Gentio era o principal emprego do zelo de caridade do Padre Custódio’. 12

Num segundo agrupamento encontram-se os trabalhos que centram sua análise na relação política, econômica e ideológica entre a Igreja Católica e o Estado português, isto é, a ação dos religiosos católicos e mais especialmente a jesuítica estava associada à política colonizadora inaugurada por D. João III. Nessa linha de análise, coube aos missionários da Companhia de Jesus promover

[...] os ensaios iniciais de implantação, nas terras brasileiras, de uma política colonizadora que foi ao mesmo tempo religiosa e regalista. [...] Nóbrega procurou desenvolver uma política de posse da terra e de escravos, política essa que poderia assegurar a continuidade dos trabalhos empreendidos pelos jesuítas.13

Sobre algumas especificidades na forma de atuação dos jesuítas e franciscanos podemos elencar, a partir da obra de Miranda, que

[...] devido à falta de mestres-escolas, as ‘Ordens Religiosas facultavam ao povo este progresso cultural. Enquanto as escolas dos Jesuítas de preferência visavam às cidades, as escolas dos franciscanos beneficiavam o interior, onde os padres seculares na qualidade capelães dos engenhos de açúcar instruíam tão somente os filhos da chamada ‘Casa Grande’ ficando, porém os povoados dependentes da caridade dos filhos de S. Francisco. 14

Especial atenção devemos dar à obra de Azevedo15, na qual é possível encontrar tanto a exaltação aos jesuítas, principalmente ao ‘grande apóstolo dos índios’ – Pe. José de Anchieta – quanto no trabalho que estes efetivaram em favor do processo de conquista e colonização do território brasileiro em prol dos interesses da Coroa portuguesa. É oportuno também lembrar que o referido autor analisa a ação da Companhia de Jesus no sentido de deter os influxos de ordem religiosa provocados pela Reforma Luterana.

Um terceiro segmento historiográfico, este mais recente, analisa o período tomando como objeto de estudo as práticas pedagógicas destinadas aos brancos, filhos dos colonos, “gentios”, bugres, índios, negros e mulheres patrocinadas pelos jesuítas, franciscanos e beneditinos nos seminários, conventos, escolas menores (ler

12 MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os franciscanos e a formação do Brasil. 2. ed. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1976, p. 146.

13 HOLANDA, Sérgio Buarque de (dir.) História geral da civilização brasileira: a época colonial- do descobrimento a expansão territorial. São Paulo: Difel, 1985, p. 138-139.

14 MIRANDA, Os franciscanos e a formação..., p. 199.15 AZEVEDO, Fernando de. A Cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil. 6. ed. Rio

de Janeiro: Editora da UFRJ; Brasília: Editora da UnB, 1996.

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e escrever) e até mesmo nos espaços domésticos.Além dos religiosos, os mestres de ofícios também exerceram um papel

significativo no que concerne às questões de ordem educacional no seu sentido mais amplo. Podemos também aqui destacar estudos relacionados à língua, à leitura16 e ao currículo. Nesse agrupamento, aportados por diversas perspectivas teórico-metodológicas, destacamos, entre outros, os trabalhos de Villalta17, Ferreira Jr. e Bittar 18, Paiva19 Hansen20, Ribeiro21, Del Priore e Venâncio22, Sangenis23 e Zotti24.

No que concerne à historiografia paraibana acerca do período colonial destacamos os estudos de Mello25, Lopes26, Silva27 e Rietveld28. Nas referidas obras identificamos a mesma perspectiva de exaltação ao trabalho desenvolvido pelos jesuítas que “em sua missão pacificadora de proteção aos fracos e de formação espiritual, iniciando um trabalho apostólico, catequizando e civilizando os nativos e fundando núcleos de alfabetização”29. Quanto ao trabalho de Silva30, este analisa os primeiros empreendimentos efetivados no período colonial paraibano quanto à instalação do

16 Os livros lidos no período eram predominantemente sacros, entretanto, Del Priore e Venâncio (2001) destacam em seu trabalho a circulação de “leituras proibidas” tanto pela Igreja quanto pelo Estado português.

17 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: NOVAIS, Fernando A. (dir.) & SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil: Vol. 1 - cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 331-385.

18 FERREIRA JR., Amarilio & BITTAR, Marisa. Educação jesuítica e crianças negras no Brasil Colonial. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, vol. 80, n. 196, set./dez. 1999, p.472-482.

19 PAIVA, José Maria de. Educação jesuítica no Brasil colonial. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO, Luciano Mendes Faria & VEIGA, Cynthia Greive (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 43-59.

20 HANSEN, A civilização pela palavra.21 RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira;

FILHO, Luciano Mendes Faria & VEIGA, Cynthia Greive (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 79-94.

22 DEL PRIORE, Mary & VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

23 SANGENIS, Luiz Fernando Conde. Franciscanos na educação brasileira. In: STEPHANOU, Maria & BASTOS, Maria Helena Câmara (orgs.). Histórias e memórias da educação no Brasil - Vol. 1: séculos XVI-XVII. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 93-97.

24 ZOTTI, Solange Aparecida. Sociedade, educação e currículo no Brasil: dos jesuítas aos anos de 1980. Campinas: Autores Associados; Brasília: Plano, 2004.

25 MELO, José Baptista de. Evolução do ensino na Paraíba. 2. ed. João Pessoa: Imprensa Oficial, 1956.

26 LOPES, José Loureiro. Uma história da educação na Paraíba In: MELLO, José Octávio de Arruda (coord.). Capítulos de história da Paraíba. Campina Grande: Grafset, João Pessoa: A União, 1987, p. 448-453.

27 SILVA, José Flávio da. Propedêutica ao ensino superior na Paraíba. Conceitos: educação, mídia, saúde e literatura, João Pessoa, vol. 1, n. 1, 1996, p. 38-43.

28 RIETVELD, Pe. João Jorge. Na sombra do umbuzeiro: história da paróquia de São Sebastião do Umbuzeiro. João Pessoa: IMPRELL, 1999.

29 MELO, Evolução do ensino na Paraíba, p. 12.30 SILVA, Propedêutica...

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ensino superior patrocinado pelos franciscanos, carmelitas e beneditinos. O livro do Pe. Rietveld31 traz interessantes informações sobre a ação da Congregação dos Oratorianos32, que atuaram no sertão paraibano (Cariri), especialmente na Paróquia de São Sebastião do Umbuzeiro, no século XVII. Na análise desenvolvida pelo referido autor ocorreu um

[...] esforço muito grande no sentido de civilizar os Índios através da agricultura. Percebemos a diligencia de alguns missionários, como o Pe. João Alvares que, com suas próprias mãos cavava a terra e para o seu exemplo incitar o Índio ao trabalho ‘por terem estes suma preguiça’.33

Após a saída dos Oratorianos os jesuítas deram continuidade ao trabalho desenvolvido até 1759, quando tiveram que abandonar o lugar e entregar a missão. Segundo algumas inferências realizadas pelo o mesmo autor, já no século XIX trinta índios daquela localidade foram participar da Guerra do Paraguai (1865), tendo retornado, após o conflito, apenas doze deles. Estes receberam terras da Princesa Isabel como pagamento por sua participação na guerra. Alguns anos depois os descendentes daqueles índios receberam, em 1874, a promessa da

[...] fundação do chamado ‘Colégio dos Índios’, para ensinar 600 Índios, tanto matérias teóricas como profissionais práticas. As intenções foram boas, mas os planos nunca foram executados. Nesta época a aldeia abrigava 1500 pessoas de descendência indígena.34

A produção historiográfica sobre a história educacional no período colonial brasileiro assume, também, outra característica, qual seja: as repercussões sobre a organização escolar no Brasil logo após as reformas promovidas pelo Marquês de Pombal, que culminaram com a expulsão dos jesuítas e demais ordens religiosas das possessões lusas. A partir de então, as discussões centram-se no papel que o Estado português exerceu sobre a organização da instrução escolar pública, destacando-se a influência do ideário iluminista que levou à implementação das aulas régias, conforme analisa de forma pormenorizada Cardoso35. É importante ressaltar que praticamente todos os autores do primeiro e segundo segmentos, acima mencionados, avaliam que a expulsão dos jesuítas trouxe graves prejuízos à organização escolar brasileira no período colonial. Tal análise é reiterativamente posta pelos estudiosos da história da educação voltados para o período colonial, tomando sempre como referência as considerações elaboradas por Azevedo, que afirma categoricamente:

Em 1759, com a expulsão dos jesuítas, o que sofreu o Brasil não uma reforma de ensino, mas a destruição pura simples de todo o sistema

31 RIETVELD, Na sombra...32 Congregação de São Felipe Néri.33 MEDEIROS apud RIETVELD, Na sombra..., p. 65.34 RIETVELD, Na sombra..., p. 67.35 CARDOSO, Tereza Maria Rolo Fachada Levy. As Luzes da educação: fundamentos, raízes históricas

e práticas das aulas régias no Rio de Janeiro 1759-1834. Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2002.

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colonial do ensino jesuítico. Não foi um sistema ou tipo pedagógico que se transformou ou se substituiu por outro, mas uma organização escolar que se extinguiu sem que essa destruição fosse acompanhada de medidas imediatas, bastante eficazes para lhe atenuar ou reduzir a sua extensão. 36

Todavia, numa outra vertente, encontramos estudos que ressaltam que a partir do Diretório Pombalino operou-se a substituição de uma política eminentemente catequética por outra, civilizatória, mesmo “reconhecendo-se que a catequização, ainda em meados do XIX, não [deixou] de ser um instrumento fundamental para o processo de assimilação dos índios selvagens”37. Assim, mesmo não tendo sidos afastados os indígenas brasileiros da influência catequética surgiu, a partir dos anos de 1840, um “programa político”, ou seja, uma “política indigenista” que entrou na pauta “como um ramo do ‘serviço público’ integrado à pasta ministerial do Império”38. Assim, aquele momento pode ser considerado extremamente relevante para a história dos povos indígenas, uma vez que estabeleceu que a catequese devesse ser apenas um “meio” para civilizar e integrar as populações indígenas, ladinas ou não, à nação brasileira. Nesse sentido, até certa medida, os ideários propugnados pelo Marquês de Pombal – um dos maiores representantes do iluminismo português – e posteriormente pelo pensamento “andradino”39 foram retomados na perspectiva de um processo civilizatório laico, marcado pela “sagrada” obrigação do Governo do Brasil de “instruir, emancipar e fazer dos Índios e Brasileiros uma nação homogênea e igualmente feliz”40.

Essas diferentes concepções acerca de como deveria se efetivar uma política estatal em relação aos povos indígenas brasileiros provocou muitas discussões, principalmente entre aqueles que estavam exercendo cargos nas câmaras superiores do Império Brasileiro41.

36 AZEVEDO, A Cultura brasileira..., p. 524.37 KODAMA, Kaori. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGP entre as décadas de 1840

e 1860. Rio de Janeiro: Editora da FIOCRUZ; São Paulo: EDUSP, 2009, p. 243.38 KODAMA, Os índios no Império..., p. 244.39 Trata-se das ideias produzidas por José Bonifácio de Andrada e Silva, que na década de 1820,

escreveu vários “Apontamentos” sobre a importância que os povos indígenas tinham para o processo de constituição de uma identidade brasileira e consequentemente da formação da nação. Para maiores informações sobre essa discussão consultar os trabalhos de Ana Rosa Silva e, principalmente, do próprio José Bonifácio. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Construção da Nação e escravidão no pensamento de José Bonifácio – 1783-1823. Campinas: Editora da UNICAMP/ Centro de Memória, 1999. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Projetos para o Brasil. Textos reunidos, organizados comentados por Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000.

40 ANDRADA E SILVA apud SILVA, Construção da Nação..., p. 181.41 Kaori Kodama faz uma análise pormenorizada acerca do papel que os missionários capuchinhos

italianos – Missões de Catequese e Civilização dos Índios de 1845 – deveriam ter nos aldeamentos, além das normatizações elaboradas pelo poder imperial brasileiro, aos quais deveriam estar todos os religiosos subordinados. As discussões centraram-se, principalmente, na questão dos religiosos não poderem administrar as aldeias, fato esse que, segundo Kodama, não se efetivou, ou seja, na prática foram os padres, frades e missionários que terminaram por exercer essa atividade administrativa. Todavia, fazia parte das obrigações dos missionários ministrar aulas de catequese, realizar batismos, registrar os nascimentos, casamentos e óbitos e ensinar as primeiras letras para

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Esta breve indicação bibliográfica sobre a instrução destinada aos povos indígenas teve como objetivo apontar – mesmo considerando que ela foi elaborada no sentido de ressaltar a ação pedagógica dos religiosos católicos, principalmente a dos jesuítas e franciscanos – como estes sujeitos sociais estiveram presentes na história educacional brasileira referente a uma significativa parcela do período colonial. O que percebemos é que logo após as reformas pombalinas e a consequente expulsão dos jesuítas, os indígenas brasileiros quase que desaparecem da cena educacional e escolar salvo, como vimos, algumas discussões tecidas em relação à sua participação no processo de formação do Estado Nacional. Nesse sentido, a historiografia educacional até esse momento produzida é rarefeita e pouco se discute o envolvimento dos indígenas na constituição da história da educação brasileira42.

Os indígenas brasileiros (paraibanos) na cena educacional

Conforme analisamos no item anterior, a historiografia que discute a história educacional relativa aos povos indígenas brasileiros é marcada por poucos e breves estudos a partir do final do século XVII e ao longo do dezenove. No caso específico da historiografia paraibana essa produção é mais ainda rarefeita, salvo os trabalhos acima mencionados.

Constatamos ainda que, no âmbito das legislações e normatizações que foram produzidas durante o período imperial paraibano, não há qualquer referência sobre o tema educação dos indígenas brasileiros43.

Entretanto, em 1822, com a independência do Brasil, e ano que antecede a formação da Assembleia Geral Constituinte de 1823, ouviu-se da Vila do Conde, na província da Parahyba do Norte, a preocupação do escrivão Manuel Batista Miranda, de que “a instrução pública é um dos objetivos mais recomendáveis da Constituição”44. Ressaltou ainda que

Esta villa com território habitado não só de índios, como de grande número de povo de toda qualidade que desgraçadamente vive na

crianças e adultos. KODAMA, Os índios no Império...42 É importante, no entanto, ressaltar que a partir da publicação da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro

de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e dos Parâmetros Curriculares Nacionais, bem como com a publicação da Lei n. 11645/ 2008, que implementou um Plano Nacional das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais, vários estudos no campo educacional tem sido publicados sobre a situação escolar/ educacional dos povos indígenas. Todavia, os estudos no campo da história da educação, como já salientado neste trabalho, ainda são muito rarefeitos. Há também uma produção mais direcionada sobre a questão da política de cotas no ensino superior. Sobre a questão da educação escolar indígena entre outros estudos aqui destacamos o trabalho de Pedro Scandiuzzi. SCANDIUZZI, Pedro Paulo. Educação indígena X educação escolar indígena: uma relação etnocida em uma pesquisa etnomatemática. São Paulo: Editora da UNESP, 2009.

43 Estamos nos referindo ao trabalho de levantamento e catalogação das leis e regulamentos da instrução, organizado por Pinheiro e Cury. PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira & CURY, Cláudia Engler (orgs.). Leis e regulamentos da Instrução da Paraíba no período imperial. Brasília: SBHE/ INEP-MEC, 2004.

44 Documento datado de 19 de janeiro de 1822, que se encontra na Caixa 05 do Arquivo Histórico do Estado da Paraíba – FUNESC. O referido documento se encontra danificado em algumas de suas partes. Daqui em diante citado como: Doc. s/ nº, Cx. 5, 19 jan. 1822, AHEPB-FUNESC.

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maior ___. Por não haver aqui uma escola pública ao menos nas primeiras letras: e como seja este um dos nossos deveres apresentamos a vossas ____ e excelências para providenciarem um negócio tão útil e necessário ao bem público desta mesma Vila.45

Esse documento, que ora estamos analisando, nos fornece indícios que na sociedade brasileira, nos seus mais distantes rincões, em relação à Corte (Rio de Janeiro), estava sim preocupada com a situação de abandono e “prostituição” em que se encontravam os indígenas, uma vez que Manuel Batista de Miranda apontou que era

[...] necessário e útil que haja nesta para instrução dos meninos índios que com este pretexto são desprezados mas que jamais tornam a voltar e quando assim aconteça de a correção do opróbio e males que trás consigo a prostituição a que são seduzidos. 46

O referido escrivão, além de tecer considerações sobre a necessidade de o Governo Provincial ampliar suas ações frente aos agrupamentos indígenas localizados no território paraibano, indicou que fosse implantada uma escola pública na Vila do Conde, uma vez que: “Esta casa se pode estabelecer nesta mesma Vila sem despesa do estado pois que dos redutos do patrimônio dos mesmos índios podemos estabelecer uma porção a mostrar e a quantas educar”47.

Se a reivindicação foi atendida ainda não se sabe, mas é muito provável que solicitação tenha caído no vazio das instâncias burocráticas e o poder provincial tenha se voltado para atender outras demandas.

As reivindicações de diversos segmentos da sociedade do período imperial sobre a necessidade de instalação de cadeiras isoladas ou escolas de primeiras letras, isto é, da constituição da instrução pública, é reincidente nas análises que são realizadas por historiadores que estudam este período da história. Nessa perspectiva, compreendemos que o contexto acima mencionado tenha influenciado o Estado imperial a imprimir uma política de aldeamento, que terminou sendo regulamentada pelo Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845, que normatizou o trabalho “das Missões de catechese, e civilisão dos Índios”48. Nesse Decreto encontra-se, no parágrafo 18 do artigo 1º, estabelecido que se deveria “propor à Assembléa provincial à creação de Escolas de primeiras Letras para os lugares, onde não baste o Missionario para este ensino”. Assim sendo, temos aí esboçado um primeiro movimento de tentativa do Estado Imperial em atender as demandas de escolarização formal destinada aos povos indígenas no século XIX.

Como podemos verificar, mesmo tendo ocorrido toda uma discussão, tanto durante a Assembleia Constituinte de 1823, a partir das recomendações elaboradas

45 Doc. s/ nº, Cx. 5, 19 jan. 1822, AHEPB-FUNESC. Grifo nosso.46 Doc. s/ nº, Cx. 5, 19 jan. 1822, AHEPB-FUNESC. Grifo nosso.47 Doc. s/ nº, Cx. 5, 19 jan. 1822, AHEPB-FUNESC.48 Esse importante documento está constituído de 11 artigos e logo no seu primeiro indica a

necessidade de se criar uma Diretoria Geral de Índios em todas as províncias. Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845. Atas de Leis e Decretos. Quarto Livro das Ordenações do Império do Brasil. S./d.

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pelo José Bonifácio, quanto do momento em que ocorreram os debates para a elaboração do decreto acima mencionado (1844-45), o Estado Imperial terminou por delegar aos missionários cristãos católicos o papel primordial de instruir, catequizar e civilizar os índios.

Esse aspecto ficou tão enfatizado no Decreto de 1845 que nos parágrafos 7º, 9º, 20º e 22º do artigo 1º essa perspectiva foi muitas vezes reiterada. Acompanhemos:

§ 7º [...] pregar a Religião de Jesus Christo, e as vantagens da vida social.§ 9º Diligenciar a edificação de Igrejas [...]§ 20º Esmerar-se em que lhes sejão explicadas as máximas da Religião Catholica, e ensinada a Doutrina Christã, sem que se empregue nunca a força, e violência ; e em que não sejão os pais violentados a fzer batisar os seus filhos, convindo attrahi-los à Religião por meios brandos, e suasorios.§ 22º [...] os Missionários, de quem receberá todos os esclarecimentos para a catechese, e civilisação dos Indios, providenciando no que conhecer em suas faculdades [...]49

Na Província da Parahyba do Norte, alguns anos depois, isto é, já em 1861, os gestores do poder público encaminharam à Diretoria das Terras Públicas e Colonização, vinculado ao Ministério dos Negócios da Agricultura e Comércio, solicitações para urgentemente “methodizar o serviço da catequese a civilização dos índios”. No mesmo documento, também se verifica a preocupação em se “ensinar as primeiras letras e as artes fabris [...] que causas tem até o presente obstáculo a essa obra civilizatória” Nesse sentido, era premente trazer as “luzes sobre a catequese e civilização dos índios” 50.

O documento, elaborado pelo Presidente da Província da Parahyba, Francisco Araújo Lima, nos fornece indícios sobre a carência de professores, ou melhor, “pessoas aptas a auxilia-lo com diligência e acerto em suas benéficas intenções”51.

Na Vila da Preguiça, extinta Vila de Monte-Mor, que era habitada por cerca de trezentos índios, o Cônego João Chrisostomo de Paiva Torres, em 1864, também reivindicou aos dirigentes provinciais atenção àqueles índios que não recebiam instrução alguma52.

Em resposta encaminhada ao Presidente da Província, Sinval Odorico de Moura, o Diretor Geral dos Índios Flávio Clementino da Silva Freire, Barão de Mamanguape, assim o informou:

Cabe-me também dizer a V. Excia. que eu acompanho ao Reverendíssimo missionário em seus sentimentos humanitários

49 Cf. Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845. Atas de Leis e Decretos. Quarto Livro das Ordenações do Império do Brasil. S./d.

50 Documento datado de 24 de setembro de 1861 e que se encontra no Arquivo Histórico do Estado da Paraíba – FUNESC, Caixa 40. Doravante: Doc. s./nº, Cx. 40, 24 set. 1861, AHEPB-FUNESC.

51 Doc. s./nº, Cx. 40, 24 set. 1861, AHEPB-FUNESC.52 Documento datado de 22 de maio de 1864, que se encontra no Arquivo Histórico do Estado da

Paraíba – FUNESC, Caixa 44.

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em referencia a falta de instrução dos índios da Preguiça; todavia acrescentarei que não são somente aqueles índios os únicos que se acham em tais circunstâncias muitos povoados de maior importância permanecem na mesma, se não em piores condições, por que ali ao menos a uma pequena distância existe a florescente cidade de Mamanguape, cujo foco de civilização se expande, e se irradia por todos os seus contornos, devendo aproveitar consideravelmente a Preguiça, pela sua proximidade.

A partir do contato com essa documentação podemos tecer algumas considerações à guisa de conclusão deste trabalho: o primeiro aspecto que fica evidenciado é o de que a concepção de “civilizar” os povos indígenas permaneceu inalterada, desde o período colonial até pelo menos meados do século XIX. O que queremos ressaltar é que mesmo tendo ocorrido profundas mudanças de ordem política institucional, o espírito de uma época parece ter atravessado, quase que de forma incólume, as mudanças sociais, políticas e econômicas processadas ao longo dos primeiros momentos em que se deu a formação do Estado brasileiro, ou seja, um aspecto cultural e, porquê não, também ideológico, alimentado, principalmente, pela Igreja Católica, mas que perpassou muitos outros seguimentos sociais, tais como o dos homens letrados, dos incultos53 e ou populares.

A segunda é que civilizar deveria passar, necessariamente, pela cristianização, ou seja, pela via catequética, o que compreendemos se configurar uma permanência na história educacional dos povos indígenas brasileiros, isto é, os ideais laicos, já tão difundidos pelos letrados e/ou iluministas que não chegaram a se constituir como base para qualquer tipo de proposta alternativa que viesse a alimentar o processo civilizador destinado aos povos indígenas que, pelo contrário, permaneceram sendo considerados selvagens ou primitivos. Na verdade, a permanência dessa perspectiva, quase não sofreu influência, mesmo tendo ocorrido amplos debates na Europa, fomentados especialmente pelos humanistas e iluministas – entre os quais Montaigne, Locke, Montesquieu, Voltaire, Diderot e, especialmente, Rousseau – que já participavam da controvertida teoria da bondade natural dos povos indígenas viventes no Brasil54. Fazemos essa observação acima em virtude de boa parte dos homens letrados brasileiros terem, à época, muito possivelmente, travado contato com essa discussão, uma vez que muitos dos nossos letrados tiveram sua formação na Universidade de Coimbra e, em menor proporção, em Montpellier, na França.

Entretanto, um aspecto merece ser destacado para as futuras investigações – trata-se da existência, na província da Parahyba do Norte, de uma diretoria geral destinada aos índios. Averiguar em que medida essa instância administrativa contribuiu para o processo de escolarização dos povos indígenas “paraibanos” nos parece algo que mereça ser explorado pelos historiadores da Educação. Nesse sentido, se faz necessária uma análise das relações políticas, sociais e culturais que se estabeleceram

53 Inculto aqui assume o sentido restrito de não escolarizado, não letrado, ou seja, todo aquele que não foi cultivado intelectualmente, sem erudição.

54 Para o aprofundamento dessa discussão, consultar o extraordinário estudo realizado por Afonso Arinos de Melo Franco, O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens da teoria da bondade natural. 2ª edição, Rio de Janeiro, RJ: José Olympio; Brasília, DF: INL, 1976.

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entre a monarquia e a Igreja Católica, que aqui nos parecem ter se fortalecido, considerando que o regime de padroado favoreceu o desenvolvimento de práticas pedagógicas, próprias de religiosos daquela instituição para com os povos indígenas do Brasil e, especialmente, da Parahyba do Norte.

RESUMO

A produção historiográfica acerca do trabalho de catequização de índios no Brasil promovida, principalmente, pela Igreja Católica, restringe-se quase sempre ao período da história colonial, com destaque para o momento em que ocorreram as reformas pombalinas (1759). Neste trabalho analisamos alguns aspectos relativos às permanências de ações adotadas tanto pela Igreja Católica quanto pelo recém constituído Estado brasileiro em 1822, que procedeu orientações no sentido de catequizar os povos indígenas para civilizar. No mesmo ano da independência, isto é, em 1822, lideranças da Vila do Conde, localizada na província da Parahyba do Norte, ressaltaram a necessidade de se instalar uma escola pública de primeiras letras visando atender a população daquele território, entre eles os “meninos índios” que por falta de orientação religiosa eram seduzidos para a prostituição. Para consubstanciarmos a nossa análise utilizamos como fontes as correspondências, predominantemente oficiais, que se encontram no Arquivo Histórico do Estado da Paraíba – FUNESC.

Palavras Chave: Educação dos Índios; Processo Civilizatório; Catequese Indígena.

ABSTRACT

The historiography production about Indians conversion in Brazil, promoted mainly by the Catholic Church, almost always focuses the colonial history period, highlighting the called Pombaline Reforms (1759). This paper analyses some aspects relating to continuity of actions adopted by both the Catholic Church and by the newly formed Brazilian State in 1822, which has guidelines to catechize the Indian peoples as a way to civilize them. In 1822, same year of Brazilian Independence, leaders of Vila do Conde, located in the northern province of Parahyba, stressed the need to install a letters public school aiming to attend the population of that territory, among them “Indians boys”, cause for lack of religious orientation were seduced into prostitution. For build these analysis, predominantly official matches are used as sources, mainly documents deposited in the Paraíba State Historical Archives – FUNESC.

Keywords: Indian Education; Civilizing Process; Indian Catechism.

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FONTES E ARQUIVOS DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NA PARAHYBA DO OITOCENTOS:

O LYCEU PARAHYBANO

Cristiano Ferronato1

No percurso de aprendizagem da História da Educação, nos últimos oito anos, removemos certezas e idéias feitas num campo historiográfico tradicionalista, muito ligado à construção do sistema escolar e à legitimação política e ideológica dos fatos educativos. Os investigadores do campo foram confrontados com aparatos inovadores e desafiantes, com uma abordagem multidimensional do objeto crítico e uma linguistic turn que privilegia as fontes discursivas. A abertura à interdisciplinaridade convergiu para o desenvolvimento do processo heurístico e metodológico, do arquivo à narrativa historiográfica.

A partir destas novas abordagens as investigações sobre a História da Educação no Brasil e,por conseguinte, das instituições educativas no Brasil, se tem passado nas últimas décadas por várias transformações. Transformações de caráter teórico e metodológico que muito ajudaram no desenvolvimento desta área de estudos, trazendo novos problemas e novos objetos para a análise.

Munidos de instrumentos de análise vindos de outros campos do saber, como a História, a Linguística e a Sociologia, entre outros, os historiadores da Educação não se contentam mais em explicar seu campo partindo das perspectivas que percebiam a escola a partir apenas das obras de grandes educadores ou estudando a escola a partir do corpus documental elaborado pelo Estado. Tais perspectivas de análise continham em seu núcleo explicações gerais acerca dos modelos escolares e das instituições, o campo da História das instituições educativas é tão complexo que não comporta ser explicado mais por tais perspectivas, uma vez que muitas das atuações do Estado dentro da escola são atuações defasadas, posto que o poder da instituição é maior que o do corpus documentallegal do Estado. Muitas das reformas que o Estado apresenta com relação a modificações dentro da instituição são formas de legalizar o que, dentro daquela instituição, já se estava sendo praticado pelos sujeitos que dela fazem parte.

Desta forma, acompanhando as transformações passadas pelo campo historiográfico e adotando seus modelos teóricos e metodológicos, a História da Educação começou a conceber uma nova forma de análise para suas temáticas.

Dentro destas novas categorias de análise, vindas de campos distintos, destaca-se a História Cultural, que trouxe para o núcleo do debate uma importante contribuição para o campo dos estudos das instituições educativas: a noção de cultura escolar. A cultura escolar tem, no interior dos estudos sobre as instituições educativas, características muito singulares, além de contradições e complexidades que a

1 Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista Capes. Orientando do prof. Dr. Antonio Carlos Ferreira Pinheiro. Entre dezembro de 2009 e maio de 2010 realizou estágio de estudos e pesquisas no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, sob tutoria do prof. Dr. Justino Magalhães.

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transformaram num dos objetos mais trabalhados pelos investigadores da História das instituições educativas no Brasil e na Paraíba, a partir principalmente da influência de investigadores como Roger Chartier e Michel de Certeau, entre outros. A noção de cultura escolar trouxe para o campo da pesquisa um refinamento metodológico e analítico das investigações e possibilitou o fortalecimento do diálogo, por um lado com a historiografia e, por outro, com as demais áreas e ciências da Educação. Esta noção permitiu uma desnaturalização da escola e permitiu a ocorrência de estudos sobre o processo de sua emergência como instituição de socialização dos tempos modernos.

Articulada aos estudos do processo de escolarização esta perspectiva introduziu a necessidade de refletir sobre a relação da escola com as outras instituições responsáveis pela socialização da infância e da juventude, principalmente com a família, a Igreja e o mundo do trabalho. Alguns estudiosos afirmam que é aqui que se encontra um dos grandes limites à realização das pesquisas, que vem a ser o fato de que são poucos os estudos historiográficos sobre as instituições que oferecem subsídios para pensar a relação com a cultura escolar.

Esta linguistic turn atrelada a processos já anunciados por outros pesquisadores ofereceu as bases para a construção de um outro lugar para a História da Educação no interior das chamadas ciências da Educação e contribuiu para o prestígio atual da área, com vários eventos nacionais e internacionais espalhados pelo Brasil.

A introdução destes novos objetos e fontes, como História Oral, as fotografias e autobiografias, por exemplo, no estudo da História da Educação pode, como afirma Diana Vidal, “aumentar a compreensão desses fazeres com e da constituição de corporeidades nos sujeitos da escola”2.

História da Educação e História das Instituições Educativas na Paraíba:Arquivos e Fontes

O aumento do interesse sobre estas questões sugere que reflitamos sobre as questões arquivísticas para não cairmos no erro do produtivismo arquivístico.

No que se refere à questão arquivística, esta tem passado também por transformações motivadas pela viragem linguística citada anteriormente, sendo a partir disso desenvolvido um grande esforço no sentido da preservação e organização dos arquivos escolares e legislativos que se referem à questão educacional, uma vez que a escola produz diversos tipos de documentos e registros, exigidos pela administração e pelo cotidiano burocrático. Estes documentos, por sua vez, perpassam o âmbito apenas pedagógico das instituições educativas.

Na produção desta documentação há toda uma orientação que envolve o funcionamento da instituição, sua organização e controle das atividades. Fora isso, pode-se encontrar nos arquivos escolares outros tipos de documentos, que fogem a uma dada determinação legal.

Estes documentos produzidos dentro de certa intencionalidade registram a cultura

2 VIDAL, Diana Gonçalves. Cultura e práticas escolares: uma reflexão sobre documentos e arquivos escolares. In: SOUZA, Rosa F. & VALDEMARIM, Vera T. (orgs). A cultura escolar em debate: questões conceituais, metodológicas e desafios para a pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2005, p. 3-30.

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material escolar, especificamente sobre determinada instituição sendo, de certa forma, testemunhas da vida institucional, da sua memória.

No desafio lançado pelas novas formulações no campo da História da Educação e das instituições educativas, pode-se também ir além, quando utilizamos o arquivo escolar e buscamos compreender e explicar a existência de uma instituição escolar como o Lyceu Parahybano, por exemplo, mas como nos chama a atenção Justino Magalhães:

[...] sem deixar de integrá-la na realidade mais ampla que é o sistema educativo, [deve-se] contextualizá-la, implicando-a no quadro de evolução de uma comunidade e de uma região, por fim sistematizar e (re) escrever-lhe o itinerário de vida na sua multidimensionalidade, conferindo um sentido histórico.3

Em nossa pesquisa atual de doutoramento sobre o Lyceu Parahybano no oitocentos, na busca pela documentação, nos deparamos com questões de caráter documental que nos levaram a tentar fazer algumas reflexões sobre esta questão, problematizando e descrevendo o percurso que estamos fazendo no campo da História da Educação, mais precisamente no das instituições educativas. A questão da importância dos arquivos para a pesquisa sobre as instituições educativas nos ficou clara quando adentramos pela primeira vez ao Arquivo Público do Estado da Paraíba.

Ao entrarmos no Arquivo Público do Estado da Paraíba, localizado no Espaço Cultural, uma construção dos anos oitenta do século passado que congrega, além do Arquivo Público, Museu, Biblioteca e outras atividades não menos significativas, podemos apreciar a exposição de alguns documentos importantes sobre a História da Província e do Estado da Paraíba. Dentre estes documentos, um que chama a atenção dos historiadores da educação é um Regulamento do Lyceu Parahybano, publicado em 1895. Apenas este fato nos demonstra a importância desta instituição educativa para a antiga Província e para o Estado da Paraíba.

Mas, para além deste documento, que está exposto na entrada do Arquivo Público da Paraíba, ficava-nos uma interrogação: onde estão os outros documentos sobre a História da Educação paraibana, uma vez esta História ainda não tem seus locais de memória? A resposta a estas questões são importantes, uma vez que a História da Educação paraibana ainda não havia sido muito explorada pelos pesquisadores e a documentação não estava, em sua maior parte, localizada e identificada, principalmente no que se refere ao século XIX.

Partindo destas preocupações os professores Antonio Carlos Ferreira Pinheiro e Cláudia Engler Cury deram início à busca desta documentação, ao se integrarem no projeto da Coleção Documentos da Educação Brasileira e publicarem, em 2004, as Leis e Regulamentos da Instrução na Paraíba no Período Imperial4. Este projeto foi

3 MAGALHÃES, Justino. Contributo para a História das Instituições Educativas – entre a memória e o arquivo. In: FERNANDES, Rogério e MAGALHAES, Justino (orgs.).Para a História do Ensino Liceal em Portugal: Actas dos Colóquios do I Centenário da Reforma de Jaime Moniz (1894-1895). Braga, Portugal: Universidade do Minho, 1999, p. 64.

4 CURY, Cláudia Engler & PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira (orgs.). Leis e regulamentos da instrução da Parahyba do Norte no período imperial. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e

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criado pela Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), com o apoio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP),que tem como intuito divulgar fontes importantes para a pesquisa em História da Educação no Brasil e oferecer elementos para a realização de estudos comparativos entre as várias províncias. Este projeto viabilizou a edição de quatro trabalhos sobre as províncias do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Paraíba e Paraná.

O trabalho organizado está dividido em três partes, em que fica evidente como as instituições educativas são importantes no desvendamento da História das instituições educativas paraibanas:

1. Leis e regulamentos gerais referentes à organização da instrução pública;

2. Leis e regulamentos relativos às instituições educacionais: Liceu Paraibano, Colégio Nossa Senhora das Neves, Colégio de Educandos e Artífices e Escola Normal;

3. Leis sobre o cotidiano administrativo: Leis referentes à criação, extinção e reestruturação de cadeiras, Leis referentes à nomeação, transferência, tempo de serviço e jubilamento de professores, Leis referentes a questões salariais, gratificação, afastamento e licença de professores.

Com esta série de documentos foi possível vislumbrar várias outras pesquisas em nível de monografia, mestrado e doutorado sobre a História da Educação da Paraíba, que vão da cultura escolar à educação feminina, passando pela formação do corpo docente e pelas próprias instituições escolares5.

Inserido num processo de continuidade do trabalho iniciado pelos dois professores, é que foi criado, ainda no início dos anos 2000, o Grupo de Pesquisa em História da Educação da Paraíba Imperial – GHEPI, que depois de algum tempo veio a se chamar GHENO – Grupo de Pesquisa da História da Educação do Nordeste Oitocentista. O grupo criado pelos professores doutores Cláudia Engler Cury e Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, com a participação de alunos da graduação da pós-graduação em História e em Educação da Universidade Federal da Paraíba, teve e tem como uma de suas atividades principais fazer a coleta, seleção, organização, análise e posterior divulgação de toda a documentação representativa relativa à História da Educação da Província da Parahyba do Norte no período oitocentista.

O grupo, depois de criado, seguiu para os arquivos na busca de fazer um mapeamento mais aprofundado da documentação sobre a instrução paraibana que ainda se encontrava dispersa. Este trabalho foi feito durante quatro anos, em visitas semanais ao Arquivo Público da Paraíba e também a outros locais, como o

Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2004. CD-ROM.5 Entre estes trabalhos podemos citar: CURY, Cláudia Engler. As escolas de primeiras letras e o Lyceu

Parahybano: cultura material escolar (1822-1864) p. 85-98; EGITO. Philipe Henrique Teixeira do. A instrução feminina da capital da Província da Parahyba do Norte: o Colégio de Nossa Senhora das Neves (1858-1895), p. 125-144; LIMA, Guaraciane. A infância desvalida na Parahyba do Norte: o Colégio de Educandos e Artífices (1865-1874), p. 145-166. In: FERRONATO, Cristiano & PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira (orgs). Temas sobre a instrução no Brasil Imperial (1822-1899). João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2008.

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Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, o Arquivo da Faculdade de Direito de Recife, a Fundação Joaquim Nabuco e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, entre outros, na coleta da documentação. O que se percebeu foi a grande quantidade de documentação dispersa existente, que ainda não havia sido trabalhada e que poderia, ao ser analisada, ajudar para a construção de um painel mais claro sobre a instrução paraibana no século XIX.

Os primeiros contatos com o corpus destes acervos nos permitiram observar a existência de documentos escolares que revelavam indícios, mesmo que poucos, do cotidiano escolar da Província. Esses valiosos documentos se encontravam, muitas vezes, dispersos em locais com condições pouco propícias à sua preservação e em caixas que apenas se referiam ao seu ano de produção, ou seja, sem uma ordem de catalogação. Uma situação que, infelizmente, os historiadores sempre enfrentam ao adentrar em alguns arquivos brasileiros.

Como anunciou Ciro Flamarion Cardoso,

No Brasil, e em geral na América Latina, acontece com freqüência que o historiador, previamente a sua coleta de dados, deva realizar trabalho de arquivista, pondo em ordem materiais não classificáveis e até salvando documentos em perigo de próxima destruição [...].6

Este fato tornou o trabalho mais desafiador.O relato do trabalho de coleta da documentação realizado nos arquivos é

importante, uma vez que nestes momentos existem decisões difíceis a serem tomadas, seja pelo tempo que consumiu –quatro anos –, pela quantidade de pessoas que a pesquisa demandou ou mesmo pela massa documental encontrada. E, talvez, seja mais importante pelo fato de poder servir de inspiração para que outros trabalhos como este sejam realizados.

No ano de 2004 a equipe foi acolhendo vários integrantes, entre estes o autor deste texto que, naquele momento, era aluno de mestrado, pesquisando a instrução na Constituinte de 1823. Ali é que foram sendo vislumbradas algumas possibilidades que nos levaram ao interesse pela pesquisa na área das instituições educativas. Assim, o Lyceu Parahybano, a mais importante instituição educativa paraibana no período imperial, surgiu como o objeto a ser pesquisado.

Não possuindo o Lyceu um arquivo que congregue toda a documentação da instituição, desde sua criação em 1836,uma vez que o arquivo atual da instituição atual apenas guarda a documentação referente ao século XX, decidimos então trabalhar com a documentação legislativa, relatórios de presidentes de províncias, relatórios de diretores da instrução e publicações feitas na imprensa.

No estudo sobre as instituições educativas, o arquivo escolar é uma fonte essencial na pesquisa sobre sua História, uma vez que a trajetória da instituição é construída, como afirma Magalhães “da(s) memória(s) para o arquivo e do arquivo para a memória”7, buscando-se integrar o material encontrado nesses acervos sobre 6 CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 97

(Capítulo “A fase de documentação ou coleta de dados”).7 MAGALHÃES, Justino. Um apontamento metodológico sobre a história das instituições educativas.

In: SOUZA, Cynthia P. &CATANI, Denice B. (orgs.). Práticas educativas, culturas escolares, profissão docente. São Paulo: Escrituras, 1998, p. 61.

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História das instituições escolares. Magalhães se mostra preocupado com seu estado de preservação, que no caso de Portugal, segundo ele é sofrível. No caso do Brasil e, principalmente, da Paraíba, a situação não é diferente, diríamos mesmo que é pior, como já nos referimos anteriormente.

Nesse sentido, o pesquisador português afirma:

[...] Sede privilegiada de uma multiplicidade de acções humanas, pedagógicas, culturais, sociais, afectivas, produto de um quotidiano sempre reinventado, da instituição educativa não resta por vezes mais que um resíduo documental, irregularmente repartido no tempo e pouco representativo, nomeadamente no que se refere à riqueza do quotidiano escolar. Com efeito, a uma gestão do actopedagógico de uma forma geral muito selectiva à quantidade e à qualidade da informação que os interveniente entendem dever conservar [...] tem vindo associar-se por outro lado, a ausência de uma política esclarecidas e conservação, preservação e organização documental, pelo que os fundos documentais das instituições educativas têm ficado dependentes do arbítrio dos agentes responsáveis e dos imprevistos que o tempo e a gestão dos espaços por vezes exíguos, permitem.8

Diana Vidal afirma, a partir de Pierre Nora9, que os arquivos são os lugares de memória, locais de guarda dos acervos, mas, ao mesmo tempo, “constantemente abertos a novas leituras acerca do passado e o presente”10. Com relação à memória, Huyssen avalia

[...] um dos fenômenos culturais e políticos mais surpreendentes dos anos recentes é a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades contemporâneas.11

Em sua utilização como fonte de pesquisa para a compreensão da História das instituições escolares, o arquivo deixa de ser algo relegado ao esquecimento, a depósitos insalubres, ou mesmo de ser entendido como algo inútil e indesejado:

[...] integrado à vida social da escola, o arquivo pode fornecer-lhe elementos para a reflexão sobre o passado da instituição, das pessoas que o freqüentaram ou freqüentam, das práticas que nela se produziram e, mesmo, sobre as relações que estabeleceu e estabelece com seu entorno (cidade e a região na qual se insere).12

Começou-se então, a muitas mãos, a organização da documentação coletada no arquivo. Aos poucos, os papéis que se amontoavam desordenadamente em caixas

8 MAGALHÃES, Contributo para a História..., p.75.9 NORA, Pierre. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História, São

Paulo, PUC-SP, v. 10, dez. 1993, p. 7-28.10 VIDAL, Cultura e prática escolares..., p. 3-30.11 HYUSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro:

Aeroplano, 2000.12 VIDAL, Cultura e prática escolares..., p. 3-30

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de papelão, em envelopes, em pastas e sacolas iam se transformando em fontes e em trabalhos acadêmicos apresentados em vários eventos pelo país.

Estes documentos foram copiados e reunidos seguindo critérios estabelecidos pelo grupo após os primeiros contatos com a documentação. Estes foram sendo agrupados por ano e, à medida em que iam sendo lidos, a História da instrução e das instituições educativas paraibanas ia sendo desvendada, e, com ela, a da principal instituição educativa paraibana na centúria dos Oitocentos: o Lyceu Paraibano.

Memória do Lyceu Parahybano

O Lyceu Provincial Paraibano foi criado em 1836, pela Lei no 11, de 24 de março, pelo então presidente da Província, Manuel Carneiro da Cunha, sendo oficialmente regulamentado em 19 de abril do ano seguinte, com a aprovação de seus Estatutos. O objetivo da criação da instituição era instruir a juventude paraibana que, até aquele momento, tinha que realizar seus estudos fora da Província.

A Lei de criação do Liceu dizia, em seu primeiro artigo:

Art. 1. Fica estabelecido nesta cidade um Lyceo, que será composto dos professores das cadeiras de Latim, Francez, Rhetórica, Philosophia, e primeiro anno de Mathemática, já creadas na mesma cidade, de dous substitutos, um para estas duas ultimas cadeiras, e outra para as trez primeiras, e finalmente um porteiro.13

O Liceu Provincial Paraibano funcionou, inicialmente, no primeiro andar do edifício da Assembleia Legislativa Provincial. Depois foi transferido para um salão do Palácio do Governo e, em 1839, definitivamente transferido para o prédio do antigo Seminário dos Jesuítas, onde permaneceu por cem anos (até 1939). Dali foi levado, em 1938, para o edifício da Avenida Getúlio Vargas, sua sede atual.

Sua instituição foi uma decorrência do Ato Adicional – 12 de Agosto de 1834 – à Constituição de 1824. Este adendo à carta Imperial foi o instrumento legal mais importante para a Educação do período, com implicações que se estenderam até aos nossos dias. A emenda teve como objetivo diminuir os conflitos do período regencial, dividindo o poder ao criar as Assembleias Provinciais e dar a estas, em seu artigo 10º, parágrafo 2º, o direito de legislar “sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, não compreendendo as faculdades de medicina, os cursos jurídicos, academias atualmente existentes e outros quaisquer estabelecimentos de instrução que para o futuro forem criados por lei geral”. Este adendo desencadeou uma vasta discussão entre centralização e descentralização no Brasil Imperial no que se refere à instrução.

A iniciativa da criação do Lyceu Provincial Parahybano representou um esforço dos fundadores da instituição, no sentido de centralizar em uma única unidade de ensino todas as cadeiras dispersas, pelo menos em termos da capital da Província. Até aquele momento o ensino secundário se encontrava fragmentado nas chamadas aulas avulsas, que se assemelhavam às antigas aulas régias do período colonial e que não desapareceram totalmente com a criação do Lyceu.

A partir da criação do Lyceu Provincial a instrução secundária vai começar a

13 CURY & PINHEIRO, Leis e regulamentos..., p. 96.

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despontar, mesmo que lentamente, na pequena Província. O processo de fundação da instituição, assim como de outras semelhantes pelo país, se insere no momento de aperfeiçoamento do homem e de normatização e ordenamento da instrução. A preocupação que existia na mente dos legisladores naquele momento era da construção do Estado e da Nação, por isso a importância da fundação de tais instituições para formar os homens que seriam os dirigentes daquele Estado que estava em construção. A escola passava a ter uma espécie de “missão civilizadora” e, na Província da Paraíba do Norte, esse entendimento não foi diferente.

Os anos entre 1836 e 1846 foram um período de consolidação e normatização da instituição. Neste processo as maiores preocupações dos gestores provinciais com relação ao Liceu eram o número de alunos, os gastos com a Instituição, os métodos e compêndios, a disciplina e os professores. Este processo de normatização fica mais claro a partir da aprovação dos Estatutos de fevereiro 1846, onde alguns importantes aspectos do cotidiano da instituição podem ser resgatados. Estes Estatutos foram aprovados depois de um intenso debate, que envolveu tanto o legislativo como o executivo.

No Relatório do Presidente da Província Agostinho da Silva Neves, de 1844, este diz que:

Este estabelecimento marcha com regularidade, e eu pretendo com mais vagar examinar os methodos, e compêndios pelos quaes ensina, e os estatutos que o regem, para lhes fazer aquellas reformas, que mais azadas forem, para a prosperidade do estabelecimento, e utilidade que deve prestar à Província.14

Em quase todas as instituições criadas pela sociedade existem normas e diretrizes que constituem o seu chamado sistema normativo e que são elaboradas e colocadas em funcionamento para estruturar e dar o ordenamento interno das referidas instituições. É nesse sentido que são elaborados, em 1846, os estatutos do Lyceu Provincial.

Com a promulgação dos Estatutos de 1846 o Liceu Provincial recebeu um grande apoio da administração provincial. Este apoio veio na forma de pessoal, com a chegada de sete professores vitalícios, cinco proprietários e dois substitutos, e um Diretor nomeado pelo Presidente da Província e de mais recursos financeiros.

Com relação ao aporte financeiro da Província no Liceu, podemos perceber que este recebia um grande investimento, e isso pode ser exemplificado quando analisamos os números de 1842. Neste ano a Assembleia Provincial aprovou em seu orçamento um aporte de 6:760,00 para o Liceu de um total de 99:003,207 contos para a Província, ou seja, 6,8% do orçamento provincial se destinava àquela instituição. Os professores tiveram seus salários melhorados e as matrículas tiveram seus valores orçados em 3$200 por ano letivo. A aprovação dos Estatutos, na visão de seu Diretor, davam ao Lyceu uma posição de “mais estabilidade e firmeza”15.

14 PARAHYBA DO NORTE. Relatório que á Assembléa Legislativa da Parahyba do Norte apresentou na sessão ordinária de 1844 o excellentissimo Presidente da mesma Província, Agostinho da Silva Neves. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1844.

15 PARAHYBA DO NORTE. Relatório que á Assembléa Legislativa da Parahyba do Norte apresentou na sessão ordinária de 1842 o excellentissimo Presidente da mesma Província, Pedro Rodrigues

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No Ato de sua criação, o Lyceu teve como matriz curricular inicial as seguintes disciplinas: Latim, Francês, Retórica, Filosofia e o primeiro ano de Matemática. Tais disciplinas, como em todos os outros estabelecimentos de ensino secundário do período, tinham como ênfase a formação do homem civilizado à moda europeia. A esta matriz foram adicionadas, pela Lei de 1839, a cadeira de Inglês, e em 1841 a de Gramática da Língua Nacional e a de Comércio. Esta última havia sido, em 1838, motivo de análise do então Presidente da Província, Joaquim Teixeira Peixoto de Albuquerque, preocupado com o desenvolvimento do comércio da Província:

Seria igualmente interessante que Assembléia se lembrasse de criar h~ua Aula de Comércio, em qual se ensinasse a escripturação por partidas dobradas, reducção de pesos, e medidas, Câmbios, Seguros, avarias & A criação desta cadeira acarretaria com sigo não poucos benefícios, por que devendo esta Província, pela sua localidade, e excelente Porto, ser bastante Comercial, lucraria não pouco, que se applicassem aos estudos mercantis, quando não a todos, pelo menos aos mais necessários, aqueles a que essa vida se quisessem dedicar. O verdadeiro Negociante é h~uhom~e instruído; pelo menos no quem é relativo ao seo emprego, e occupação: elle deve conhecer a Legislação a que está sujeito, pelo gênero de vida que adoptou, as penas em que incorre, pela infração de qualquer Contracto; o modo prático porque deve proceder à escripturação dos seos Livros, e tudo depende de h~u estudo bem coordinado. (...) Esta aula se acha em todos os Paizescivilisados, e entre nós já tem logar em algumas Províncias do Império.16

A leitura e análise dos artigos que compõem os Estatutos de 1846 do Liceu Provincial Paraibano permitem conhecer e avaliar o funcionamento da instituição. O documento é composto de 99 artigos e vários parágrafos, indício que reforça o quão importante era a instituição e a dimensão social que a mesma foi recebendo ao longo dos anos. Os Estatutos trouxeram, em seu corpo, a distribuição dos compêndios, a regulamentação das jubilações, das matrículas, das férias, dos professores, enfim, de toda a organização interna da instituição. O objetivo maior de tal documento era o de ordenar as funções e atribuições no interior da instituição, como a do Diretor, que era indicado pelo presidente da Província e constituía-se como seu mais próximo representante no Liceu. No artigo 10o do capítulo 1º, que trata do pessoal do Lyceu, podemos perceber esta questão da nomeação e da sucessividade.

A partir da aprovação dos Estatutos inicia–se a normatização do pessoal do Liceu, que teve suas funções e atribuições definidas. Nestes ficou definido que o pessoal seria composto por 7 professores, sendo que cinco eram proprietários e 2 substitutos, e de um Bedel, além da Congregação. Um elo importante neste processo eram os professores que, de certa forma, eram responsáveis também por fazer chegar estas práticas ordenadoras a toda a sociedade, cumprindo assim uma espécie de missão

Fernandes Chaves. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1842.16 PARAHYBA DO NORTE. Falla com que excelentíssimo, Presidente da Província da Parahyba do

Norte, o Doutor Joaquim Teixeira Peixoto d’Albuquerque installou a 1.ª Sessão da 2.ª Legislatura d´Assembléia Legislativa Provincial no dia 24 de Junho de 1838.

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civilizadora.O corpo docente do Liceu era basicamente formado por intelectuais conhecidos

da Província e abarcava, em seu meio, um grande número de padres, já que o ensino da Moral se fazia muito importante. Estes professores se tornavam vitalícios a partir de cinco anos de trabalho. A contratação dos professores se dava depois de prestarem exame prévio de habilitação. O recrutamento de professores era uma preocupação constante, visto que o salário era, por vezes, muito baixo, ainda mais em se tratando de uma Província pobre como a Paraíba. Existia, a partir do Estado, um controle com relação à conduta pessoal da vida dos professores, que deviam ser homens de boa conduta, mas em relação aos professores do Lyceu Provincial estes eram sempre vistos como mais preparados e cumpridores dos seus deveres que os docentes de primeiras letras. Os professores do Liceu eram, portanto, um grupo de homens intelectualmente preparados e de grande reconhecimento pela sociedade provincial paraibana, suas origens podem ser buscadas em setores como a religião, o direito, a literatura e a imprensa. O salário dos professores seria de 720 mil réis.

As fontes e o Lyceu Parahybano

Esta renovação metodológica a que estamos nos referindo ao longo do texto, segundo Magalhães, corresponde a um desafio interdisciplinar, constituído pela Sociologia, pela análise organizacional, pelo desenvolvimento dos estudos de currículo, além da Escola dos Annalles, pela Nova História:

No plano histórico, uma instituição educativa é uma complexidade espaço-temporal pedagógica, organizacional, onde se relacional elementos materiais e humanos, mediante papéis e representações diferenciados, entretecendo e projetando futuro (s), (pessoais), através de expectativas institucionais. É um lugar de permanente tensões [...] são projetos arquitetados e desenvolvidos a partir de quadros sócio-culturais.17

Segundo Magalhães, a culminância do ciclo de desenvolvimento da pesquisa acerca da História das instituições educativas se materializa numa síntese crítica onde a realidade-objeto “ganha sentido histórico numa tessitura problematizante”18.

Magalhães destaca, dentre as categorias analíticas e conceituais consideradas por ele fundamentais para a elaboração dessa etnohistoriografia a partir da escola, os seguintes temas: espaço; tempo; currículo; modelo pedagógico escolar; professores; manuais escolares; públicos; cultura; forma de estimulação e resistências; dimensões; níveis de apropriação; transferência da cultura escolar, escolarização; alfabetização; e destinos de vida.

Partindo dessas considerações e tendo o Lyceu Parahybano como o objeto de análise para o doutorado, algumas questões nos foram levantadas: onde se encontravam as fontes documentais produzidas no período sobre a instituição?

Para podermos ter suporte nas pesquisas sobre a História da Educação da Paraíba e do Lyceu Parahybano, contamos com uma grande diversidade tipológica no que

17 MAGALHÃES, Um apontamento metodológico..., p. 61-62.18 MAGALHÃES, Um apontamento metodológico..., p. 61-62.

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se refere às instituições arquivísticas, e entre estas podemos citar:

♦ Arquivo Público do Estado da Paraíba – João Pessoa (PB)♦ Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – Recife

(PE)♦ Fundação Joaquim Nabuco– Recife (PE)♦ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (RJ)♦ Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade

Federal da Paraíba – João Pessoa (PB)♦ Arquivo da Torre do Tombo –Lisboa/Portugal♦ Biblioteca Nacional de Portugal– Lisboa/Portugal♦ Arquivo do Liceu Paraibano – João Pessoa (PB)♦ Arquivo da Cúria Metropolitana– João Pessoa (PB)♦ Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba– João Pessoa (PB)

Tais arquivos são divididos em públicos e privados.Os arquivos públicos, nas três esferas em que estão divididos, a federal, a estadual

e a municipal, têm em sua custódia os registros sobre as políticas, as estratégias e a ações dos governos. Os arquivos privados, de ordens religiosas, educacionais e culturais também custodiam documentos valiosíssimos do ponto de vista histórico e educacional.

No trabalho de resgate das fontes necessárias ao processo de (re)construção da memória é importante o diálogo com a documentação, para que se possa compreender o que foi esquecido ou silenciado. Para Le Goff, (1984) há que tomar a palavra “documento”19 no seu sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, imagem, ou qualquer outra maneira.

Nesse sentido, entre os documentos sobre os quais podemos nos centrar para analisar a História do Lyceu Parahybano no período imperial podemos citar:

1. Anais Legislativos;2. Relatórios de Presidentes de Província;3. Relatórios de Diretores da Instrução Pública;4. Relatos de viajantes;5. Material escrito por professores;6. Imprensa;7. Memorialistas.

Esses documentos nos dão importantes informações de como se encontrava a instrução no período em que os mesmos foram escritos.

Podemos dividir a legislação do período em dois níveis: geral e provincial. A primeira se refere à documentação do Império, o que seria hoje a Federal, e que tinha validade para todas as Províncias. A segunda, a Provincial, teve origem a partir do Ato Adicional de 1834, que deu origem às Assembleias Provinciais. Estas 19 LE GOFF, Jacques. Documento – Monumento. In: LE GOFF, Jacques et al. Memória/História.

Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984, p. 531.

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tinham, entre seus novos deveres, legislar sobre a instrução primária e secundária em seu território.

Até a publicação do Ato de 1834, ou seja, antes da criação das Assembleias Provinciais, todas as leis referentes à instrução eram de competência do Reino, ou seja, eram Leis Gerais. Com a criação das Assembleias Provinciais, cada Província passou a construir sua própria legislação sobre o ensino primário e secundário, uma vez que a legislação do ensino superior ainda vinha do Rio do Janeiro.

Os Anais Legislativos são publicações do poder legislativo e se constituem num registro das atividades que compõem a Assembleia Legislativa. Assim, por esta descrição da fonte de pesquisa, podemos perceber que estas trazem em sua produção uma intencionalidade. O conjunto de atividades do poder legislativo que os Anais registram, no entanto, não contêm a totalidade das ações dos membros daquele poder.

No trabalho com este tipo de fonte é importante levar em conta a proposta levantada por Le Goff, de tratar todos os documentos como monumentos, ou seja, procurar desvendar, a partir de determinado documento, o sujeito que o produziu, as relações de poder estabelecidas por esse último na sociedade, e a maneira como o documentos afirma e é uma afirmação do poder de seu produtor:

[...] dever principal [do historiador é]: a crítica do documentos-qualquer que ele seja- enquanto monumento. O documento não é qualquer coisa que fia por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que ai detinham o poder.20

Na análise do documento está, então, pressuposta a incorporação do seu processo de produção. A produção de todo registro incorpora em si uma dada intenção dos que o produziram, no sentido de deixar uma marca para o futuro. Nesta mesma direção, a possibilidade de estar construindo um registro já evidencia a afirmação dos seus produtores sobre os outros componentes da sociedade.

Portanto, a intencionalidade de registrar, a afirmação de uma imagem para o futuro e a relação de poder que, ao definir quem, como, para quem ou o quê registrar, apresenta-se no próprio registro e é constitutiva do trabalho de análise de qualquer documento, na medida em que nele procuramos seu caráter de monumento21.

Quando um deputado, ou mesmo um presidente de Província, como Joaquim Teixeira Peixoto d’Albuquerque, em 1838, diz que

[...] ou por que seja hum novo estabelecimento, e seja da condição das cousas novas encontrar embaraços, e tropeços, na sua carreira, ou por que lhe falta algumas disposições Legislativas, considero que este estabelecimento inda não nos offerece todas as vantagês.22

Ao fazer isso, chamando a atenção para as condições físicas de um prédio

20 LE GOFF, Documento – Monumento, p. 102-104.21 LE GOFF, Documento – Monumento, p. 102-104.22 PARAHYBA DO NORTE. Falla com que excelentíssimo, Presidente da Província da Parahyba do

Norte, o Doutor Joaquim Teixeira Peixoto d’Albuquerque installou a 1.ª Sessão da 2.ª Legislatura d’Assembléia Legislativa Provincial no dia 24 de Junho de 1838.

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escolar, ou mesmo fazendo uma crítica à atuação do governo na Educação, ele está dando a este tema um estatuto especial, na medida em que estas passam a ser preocupações daquele grupo e, assim, a constar dos Anais da casa legislativa. Trata-se de uma forma de reatualização de poder, pois ao ser determinado a certos setores da sociedade, é também uma forma de legitimar a existência do poder de representação parlamentar.

Desta forma, aquele deputado está afirmando sua identidade de representação, se referindo às reinvindicações da população e também criando momentos em que seu prestígio, enquanto parlamentar, se estende a outros setores da sociedade. Neste momento ocorre a legitimação da atividade parlamentar, da instituição parlamentar e do próprio sistema político:

[...] a própria forma das demandas é já amiúde um indicio do grau de apoio público ao sistema político. Intermediário do apoio ou do dissenso, o Parlamento ajuda a conferir ou a subtrair legitimidade política ao governo.23

Os documentos que registram a as falas dos presidentes de província, e os relatos apresentados por estes às Assembleias Provinciais todos aos anos são, portanto, fontes preciosas de informação para os pesquisadores da História da Educação.

Os chamados relatórios dos diretores da instrução pública e, a partir de 1935, de secretários de Estado da Educação são também importantes fontes para a análise da História da Educação. O primeiro cargo de diretor geral de estudos brasileiros foi criado no Rio de Janeiro, em 15 de março de 1816, pelo príncipe regente D. João. Para o cargo foi nomeado o baiano Visconde de Cairu, José da Silva Lisboa. Mais tarde no artigo 30 da Lei n. 11, de 1849, foi criado o cargo de Diretor da Instrução Pública, tendo sido nomeado como primeiro diretor o Reverendo João do Rego Moura, que também era diretor do Lyceu.

As notícias publicadas em jornais sobre as questões da Instrução Pública, os artigos nas revistas das escolas ou do Lyceu também são um válido e expressivo material de pesquisa. Outro material de valor muito importante – se for encontrado – são as biografias dos educadores, a literatura local, onde romancistas contam sua formação educacional, sua impressão dos professores, dos diretores e a influência que aquela escola tinha na sociedade que a rodeava.

No que se refere aos arquivos das escolas na Paraíba, no período imperial, estes são raros, e por isso é tão difícil se conseguir adentrar tal universo neste período. Contudo, trata-se de é uma fonte de larga importância, uma vez que a partir destes acervos podemos ter acesso à ata de instalação da escola, a seus primeiros estatutos, a seu regimento interno, às autorizações para seu funcionamento, cadernetas de professores, registros de eventos, fotografias, matrículas de alunos, nomes dos professores, programas dos cursos e outros materiais, que são informações muito importantes para o estudo do cotidiano escolar. Em algumas instituições educacionais podemos encontrar uma gama variada de fontes sobre a História da Educação e daquela própria instituição, especialmente quando há um arquivo organizado, o

23 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 3. ed. Brasília: Editora da UnB/ Linha Gráfica, 1991. 2v. (verbetes: Parlamento, Processo Legislativo e Representação Política).

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que não muitas vezes não acontece de fato.Concluindo estas rápidas reflexões, podemos afirmar que muitos esforços têm

sido feitos em prol do resgate da História das instituições educativas na Paraíba do século XIX pelos grupos de pesquisa instalados nos Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba, no sentido de lançar as bases para que se tenha ali um centro de referência com a possibilidade de disponibilizar fontes primárias e secundárias que resultem em estudos e pesquisas sobre a História da Educação local.

Entre estes grupos, além do já citado GHENO – Grupo de Pesquisa em História da Educação no Nordeste Oitocentista, ligado aos programas de Pós-Graduação em Educação e História, temos ainda o HISTEDBR-PB; o Grupo de Pesquisa Ciência, Educação e Sociedade; o grupo Ditadura Militar e Educação na Paraíba/Brasil e, por fim, o grupo Globalização e Educação do Tempo Presente.

É importante destacar a criação recente, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, da linha de pesquisa em História da Educação, que muito tem contribuído no processo de desvendamento da História da Educação paraibana, com a concretização de vários trabalhos em nível de mestrado e doutorado sobre o tema.

Finalmente, o nosso objetivo neste trabalho foi demonstrar a importância e a riqueza documental levantada sobre a História da Educação da Paraíba no século XIX pelos grupos e pesquisadores locais. Nesse sentido, é necessário que se criem políticas de conservação dos arquivos escolares paraibanos, para que estes venham a ser os lugares de memória da Educação. Os acervos escolares possibilitam aos pesquisadores da Educação o desvendamento da cultura escolar em diversas épocas, a partir da intensificação dos estudos sobre cultura escolar, instituições educativas entre outros temas. Os pesquisadores da História da Educação local têm a tarefa da conservação e da organização documental dos arquivos escolares, e isto pode levar a sociedade à conscientização acerca dos cuidados necessários para a preservação de tais fontes.

Retornando ao movimento feito com a documentação sobre o Lyceu Parahybano, recorremos novamente a Magalhães, ao afirmar que no estudo das instituições educativas:

[...] se cruzam-se informações de várias naturezas- orais, arquivísticas, museológicas, arquitetônicas, fontes originais e fontes secundárias [...] um vaivém esclarecido entre a memória e o arquivo.24

A trajetória entre o arquivo e a memória, portanto, implica em perceber múltiplos elementos e o pesquisador pode correr um grande risco, que é a perda de rumo perante uma quase infinita diversidade de fontes. Escrever a História das instituições educativas possibilita a introdução de variados objetos, discursos e olhares para serem analisados, comparados, enfrentados, problematizados e, talvez, isso possibilite um conhecimento mais aprofundado de tais objetos, levando-nos à sua reinvenção.

24 MAGALHÃES, Contributo para a História..., p. 65.

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RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir as possibilidades de utilização dos arquivos escolares no estudo das instituições educativas, tendo como objeto o Lyceu Parahybano. Discute-se também os fundamentos teóricos e metodológicos que abranjam a concepção, uso e tratamento de documentos na pesquisa histórico-educacional e a organização e preservação dos arquivos e fontes. Entende-se no texto que os arquivos escolares podem contribuir significativamente para as pesquisas em História da Educação, por sua acessibilidade, diversidade e tipos de informações. Outro entendimento que aqui se apresenta é o arquivo como um lugar da memória escolar e da pesquisa histórica.Palavras Chave: História da Educação; Arquivo Escolar; Instituições Escolares.

ABSTRACT

This paper discuss the possibilities of using the school records in the educational institutions study, having as main object the Lyceu Parahybano. The theoretical and methodological foundations that cover the conceiving, use and processing of documents in the historical and educational research, as also the organization and preservation of archives and sources are discussed too. These archives are understood as a material culture register that can provide a significantly contribute to Education History research, because of its accessibility and type of information that they carry on. Another understanding here is the archive as a place of memory and historical research.Keywords: Education History; School Archive; Educational Institutions History.

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CULTURA MATERIAL DA ESCOLA EM MENSAGENS PRESIDENCIAIS: ENTRE O DITO E O NÃO DITO

(SANTA CATARINA –1874 A 1930)

Vera Lucia Gaspar da Silva1

Camila Mendes de Jesus2

Ana Paula de Souza Kinchescki3

O presente trabalho ocupa-se de um recorte da pesquisa em andamento – Objetos a Escola: Cultura Material da Escola Graduada (1874-1950) (CNPq FAPESC/ UDESC) –, vinculada ao Projeto Nacional “Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1950)” (CNPq). Trata-se de um trabalho cujo objeto de investigação é a cultura material da escola graduada catarinense, aquela que deu suporte ao projeto de escola moderna consolidado neste estado com a Reforma da Instrução Pública de 1911, mas iniciado nos anos finais do século XIX.

Em relação à base material deste projeto de escolarização, um conjunto de produções e dados tem indicado que no referido período (final século XIX e três quartos do XX) circularam propostas para equipar as instituições com objetos e materiais didático-pedagógicos diversos, os quais subsidiariam a atuação docente. Trata-se de relógios de parede, carteiras que seguiam os modelos adotados em escolas da Europa e dos Estados Unidos da América, armários, quadros, globos, mapas, enfim, um conjunto de novidades pedagógicas que contribuiriam na edificação do projeto de escolarização em marcha. O esforço da pesquisa que abriga o presente trabalho é, além de outras reflexões, cotejar propostas pedagógicas anunciadas e a base material das escolas. Propõe-se igualmente remontar certa cronologia da organização da escola4, em especial da sala de aula da escola graduada, a partir de

1 Doutora em Educação, História da Educação e Historiografia pela Universidade de São Paulo, com estágio de estudos e pesquisa em História da Educação na Universidade de Lisboa, Portugal. Docente da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – ANPED e sócia fundadora da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE. Coordenadora da pesquisa Objetos da Escola: cultura material da escola graduada (1974-1930) (CNPq/ FAPESC/ UDESC), vinculada ao Projeto Nacional “Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1950)”. E-Mail: <[email protected]>.

2 Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Bolsista de Iniciação Científica na pesquisa Objetos da Escola: Cultura material da escola graduada (1870-1950) – (CNPq/ UDESC). E-Mail: <[email protected]>.

3 Graduanda em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Bolsista de Iniciação Científica do projeto Objetos da Escola: quando novos personagens entram em cena (Século XX) (UDESC/ PMUC/ FAPESC/ CNPq), sob orientação da professora Vera Lucia Gaspar da Silva. Este projeto está vinculado à pesquisa Objetos da Escola: cultura material da escola graduada (1974-1930) (CNPq/ FAPESC/ UDESC). E-Mail: <[email protected]>.

4 Valiosa contribuição sobre esta questão está registrada no livro de Dussel e Caruso. DUSSEL, Inés & CARUSO, Marcelo. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003.

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indícios sobre mobiliário, artefatos pedagógicos e edificações.Quanto à escola graduada, esta pode ser traduzida:

[...] por uma gramática ou forma escolar5 que organiza a escolarização por turmas compostas por alunos classificados pelo nível de conhecimento, adota o método simultâneo6, adota um conjunto de conteúdos organizados racionalmente e ordenados num tempo determinado, prevê um sistema de avaliação (instrumentos e formas de aferição), necessita de um docente qualificado7 cujas atividades deverão ser supervisionadas por uma hierarquia que se enreda no poder político estatal, deve ser desenvolvida em edificação8 especialmente projetada, que, em geral, simbolizava de forma ostensiva a presença do Estado nas comunidades e o papel da educação na sociedade que busca se modernizar.9

Quanto à cultura material da escola, um conjunto de reflexões tem colocado esta abordagem cada vez mais em evidência, demonstrando a pluralidade de matizes que esta comporta. A autora Cynthia Greive Veiga é aqui tomada como referência para justamente evidenciar tanto a contribuição desta abordagem quanto a de algumas das diversas possibilidades de seus usos. Visitando autores centrais deste debate, a autora registra:

Toda cultura é impregnada de materialidade, daí porque Richard Bucaille e Jean-Marie Pesez (1989) observam que não houve um esforço por parte dos autores que desenvolvem estudos sobre cultura material em dar uma definição explícita ao termo, tornando esta idéia muitas vezes pouco elucidativa. Bucaille e Pezes tomam o cuidado de não produzir um conceito, devido à imprecisão do termo, na maneira como é apropriado por diferentes áreas do conhecimento e autores que, por sua vez, produz, em alguns casos, uma certa ambigüidade no entendimento e uso da expressão. Por isso, preferem denominar cultura material como noção e idéia. [....] Fazendo uma

5 Adota-se aqui a perspectiva de análise registrada no texto de Vincent, Lahire e Thin. VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard & THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 33, jun./ 2001, p. 7-47.

6 A este respeito, ver: BASTOS, Maria Helena Camara. O ensino mútuo no Brasil (1808-1827). In: BASTOS, Maria Helena Camara & FARIA FILHO, Luciano Mendes de (orgs.). A Escola Elementar no século XIX: o método monitorial/ mútuo. Passo Fundo: Ediupf, 1999, p. 95-118.

7 Ver, por exemplo: SILVA, Vera Lúcia Gaspar da. Sentidos da profissão docente: estudo comparado acerca de sentidos da profissão docente do ensino primário, envolvendo Santa Catarina, São Paulo e Portugal na virada do século XIX para o século XX. Tese (Doutorado em História da Educação e Historiografia). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2004.

8 A este respeito, ver especialmente: SOUZA, Rosa Fátima. Templos de Civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1889-1910). São Paulo: Editora da UNESP, 1998; FARIA FILHO, Luciano Mendes. Dos Pardieiros aos Palácios: cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UPF, 2000.

9 SILVA, Vera Lucia Gaspar da. Objetos da escola: cultura material da escola graduada (1870–1950). 2. ed. Florianópolis: UESC, 2010, p. 16.

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síntese mais geral, temos que a dificuldade de conceituar a cultura material se relaciona ao seu percurso, a indistinção do uso do termo e a ambigüidade na maneira como por vezes é tratada, presente em estudos que subordinam a materialidade na cultura.10

Passados dez anos desta reflexão, reconhecemos que muito se avançou no campo11, mas os indicativos desta autora continuam atuais e merecem ser levados em conta.

Uma incursão pela produção sobre a temática realça a presença, além dos autores franceses antes indicados, de alguns autores espanhóis utilizados como pontos de apoio teórico para análises produzidas no Brasil. Entre estes, destacam-se Antonio Viñao Frago e Agustín Escolano Benito. Para este último, os elementos constitutivos da cultura material pertencem à “caixa negra” da cultura escolar; são materiais que guardam certos testemunhos da “gramática da escolarização”. Ainda na perspectiva deste autor, a cultura material da escola seria então “uma espécie de registro objetivo da cultura empírica das instituições educativas”12.

Situados alguns elementos da base teórica, consideramos que cabe o registro acerca do uso da expressão “objetos da escola”. Aqui ela é um artifício retórico para falar de edificações, mobiliário, materiais didático-pedagógicos e similares que, aos poucos, foram organizando a estrutura material do projeto de escolarização da infância. Estes artefatos da escola13, na presente pesquisa, estão sendo investigados no período que vai de 187014 até a década de 50 do século XX, de modo a sintonizar-se com a periodização proposta pelo Projeto Nacional de Pesquisa (já anunciado), do qual este projeto constitui um desdobramento:

Busca abranger o período em que se inicia a circulação da modernização educacional representada pela escola graduada no Brasil (ou de alguns de seus elementos básicos como a organização da escola primária em classes, a adoção do ensino simultâneo, as

10 VEIGA, Cynthia Greive. Cultura material escolar no século XIX, Minas Gerais. In: I Congresso Brasileiro de História da Educação. Rio de Janeiro, 2000. Anais do I Congresso Brasileiro de História da Educação. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000, p. 1 e p. 3. Disponível em: <http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe1/anais/040_cynthia.pdf/>. Acesso em: 27 mar. 2010.

11 A título de exemplo, indicamos: SOUZA, Rosa Fátima de. História da Cultura Material escolar: um balanço inicial. In: BENCOSTTA, Marcus Levy (org.). Culturas escolares, saberes e práticas educativas: itinerários históricos. São Paulo: Cortez, 2007, p. 163-189; Pro-posições, número especial, dossiê “Cultura Escolar e Cultura Material escolar: entre arquivos e museus”, Campinas, UNICAMP; Revista Brasileira de História da Educação, n. 10, 2001, dossiê “Arquivos escolares: desafios à prática e à pesquisa em História da Educação”, organizado por Diana Vidal, e n. 14, 2007, dossiê “A Cultura Material na História da Educação: possibilidades de pesquisa”, organizado por Rosa Fátima de Souza.

12 Tradução livre das autoras. BENITO, Agustín Escolano. Patrimonio material de la escuela e Historia Cultural. Berlanga de Duero – Soria - Espanha: CEINCE, s./d. (mimeo).

13 A incursão pela literatura da área tem apresentado várias expressões sinônimas como “artefatos escolares”, “objetos da escola” ou “utensílios escolares”, as quais serão aleatoriamente utilizadas neste texto.

14 Optou-se por demarcar o início das investigações nos anos setenta do século XIX para acompanhar a lei de obrigatoriedade do ensino que, no caso de Santa Catarina, data de 1874.

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proposições de inovação educacional pelo método intuitivo) passando pela implantação e consolidação do modelo nas primeiras décadas republicanas até as inflexões sofridas pelo mesmo em virtude da Escola Nova e das alterações no quadro educacional do país durante o governo de Getúlio Vargas.15

A base empírica da pesquisa é constituída de informações recolhidas em documentos escritos - como jornais e revistas de circulação estadual e local, impressos especializados (boletins e revistas pedagógicas, legislação do ensino, relatórios da instrução pública entre outros) e documentos delineadores de propostas curriculares da escola primária e da Escola Normal, relatórios escolares e materiais iconográficos (fotografias e desenhos), livros de compras do estado com vistas a localizar informações acerca de compras de objetos e móveis escolares. Compõem ainda o acervo de fontes relatórios dos presidentes de província e governantes do estado disponíveis na base de dados do Center for Research Libraries. No presente artigo, ocupar-nos-emos basicamente de informações localizadas neste último conjunto de fontes.

O CRL (Center for Research Libraries) é um centro de pesquisa de bibliotecas que se localiza no campus da Universidade de Chicago, com um acervo disponível online pelo link <http://www.crl.edu/>, onde se encontram bibliografias de todo o globo. Em sua base de dados estão disponíveis informações relativas ao Brasil, que acessamos pelo sítio <http://www.crl.edu/brazil/>. Nele encontram-se publicações de fontes documentais primárias, microfilmadas e escaneadas. O acervo documental referente ao Brasil está dividido em: Mensagens Executivas (1889-1993); Relatórios Ministeriais (1821-1960) e Mensagens dos Presidentes das Províncias (1830-1930), separados por província/estado. A coleta dos dados apresentada no presente artigo foi feita em base às Mensagens dos Presidentes das Províncias16 referentes aos anos de 1874 a 1930.

A leitura destes textos provinciais foi feita com o intuito de identificar e destacar relatos sobre a instrução pública que tratam de materiais, objetos escolares ou outro aspecto relacionado à cultura material da escola, ou os mencionam. Na base de dados, os documentos estão armazenados em textos individuais, classificados por ano. Para cada ano, os representantes do estado faziam ao menos um relato da situação em que se encontrava sua administração. Observou-se que, no período de 1874 a 1900, a maioria dos relatos anuais era feita por um dirigente diferente. Entretanto, no intervalo de anos de 1902 a 1930, a situação se modificou sensivelmente, observando-se relatores que permaneciam por três a quatro anos, alternando-se entre Vidal José de Oliveira Ramos Junior, Felippe Schmidt, Coronel Gustavo Richard e Hercílio Pedro da Luz. É possível que este indício de estabilidade esteja vinculado à “nova” organização política levada a cabo pela “recém-instalada” República.

15 SOUZA, Rosa Fátima de. Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1950). Projeto Integrado de Pesquisa – Edital Universal MCT/ CNPq n. 15/ 2007 (Processo n. 480462/ 2007-0). Araraquara: UNESP, 2007, p. 20.

16 Título utilizado pelo banco de dados para distinguir as mensagens apresentadas pelos representantes do Estado nos anos investigados – 1874 a 1930 –, mesmo após a Proclamação da República.

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O corpo das mensagens é dividido por tópicos, tal como uma prestação de contas do governo para a população. Em sua maioria, as mensagens encontram-se divididas da seguinte forma: uma capa, com especificação de quem escrevia o documento; data e local; administração pública; questões do legislativo provincial; eleições; administração da justiça; tesouraria provincial; mesas de rendas; instrução pública; obras públicas; polícia; saúde pública. Dentre os tópicos existentes, nos detivemos naqueles referentes à instrução pública e às obras públicas, por conterem no corpo do texto informações relacionadas ao objeto de pesquisa do nosso trabalho.

Ao final, computamos um conjunto de 56 anos pesquisados, o que compreende o período de 1874 a 1930. Em 23 destes anos, encontramos informações relevantes para a nossa pesquisa, pois forneceram alguns indícios acerca dos objetos escolares das escolas primárias do período. Para organizarmos os dados coletados, criamos tabelas nas quais constam o nome do documento, o ano do relatório, a página que apresenta alguma informação e o resumo desta mensagem, segundo o modelo abaixo:

ANO. NOME DO DOCUMENTO COM DATA E ANO

Página Resumo da Mensagem

Nestas tabelas, os dados ficaram armazenados tal qual o modelo a seguir:

1910: MENSAGEM LIDA PELO EXMO. SR. CORONEL GUSTAVO RICHARD GOVERNADOR DO ESTADO NA 1ª SESSÃO ORDINÁRIA DA 8ª LEGISLATURA DO CONGRESSO REPRESENTATIVO

EM 17 DE SETEMBRO DE 1910

Página Resumo da Mensagem

28Aquisição de um terreno para estabelecer o prédio da escola do sexo masculino do distrito de Trindade. (Inserido na tabela dia 10/02/2010)

OBS.: A observação “Inserido na tabela dia 10/02/2010” faz referência à inserção das informações coletadas em uma tabela utilizada na Pesquisa Nacional pelo Grupo Temático G2 – Cultura Material Escolar. À medida em que os dados são encontrados, a tabela vai sendo preenchida, com vistas tanto à sistematização dos dados como

à organização de estudos comparados entre os diferentes Estados.

A equipe nacional à qual a pesquisa em pauta se vincula adotou, para efeitos de operacionalização, o trabalho a partir de Grupos Temáticos. No caso da pesquisa que abriga este artigo, as atividades estão sendo subsidiadas e discutidas pelo “Grupo Temático G2 - Cultura Material Escolar”, ao qual se vinculam projetos e pesquisadores dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Maranhão. A equipe do G2 estabeleceu bases para nortear o levantamento de dados, adotando categorias comuns para o registro e análise das informações coletadas. A mesma estratégia foi utilizada para sistematizar as informações coletadas no trabalho fruto do presente relato. Assim, foi possível compor o quadro que se segue, no qual registramos os materiais mais recorrentes.

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MATERIAIS MAIS CITADOS

CATEGORIARECORRÊNCIA NAS

MENSAGENS CONSULTADAS

Mobília 6

Utensílios de Escrita 3

Livros e Revistas 10

Materiais Visuais, Sonoros e Táteis 3

Outros Utensílios 3

Prédios 26

TOTAL 51Fonte: Dados extraídos das Mensagens dos Presidentes das Províncias (1874-1930).

Obs.: As informações foram retiradas e contadas considerando apenas o ano; no caso de uma mesma informação aparecer mais de uma vez no mesmo ano, foi contabilizada apenas uma vez.

Os relatos apontam esses materiais, mas não os especificam o que seria importante para um melhor entendimento sobre os objetos adquiridos pelo governo para estruturar as escolas. Trabalhamos aqui com indícios. Por exemplo, observou-se, dentre as mobílias, que muitas das aquisições são anunciadas como iniciativas de modernização do ensino. Estas aquisições se dariam através da compra de mesas, bancos e montagem de um museu escolar, seguindo o proposto pela “nova pedagogia”, que seria coroada pela instalação dos grupos escolares e pelo advento do método intuitivo. Vimos em alguns relatos que estas mobílias eram importadas e há evidências de inspiração governamental nas Exposições Universais.

Quanto aos livros, estes aparecem nos relatos como instrumentos importantes para a manutenção e melhoria do ensino, conforme, por exemplo, o descrito no relatório de 1887 (p.100)17. No texto, o relator informa acerca da importância das mobílias e livros escolares para a instrução, além de registrar que foi feito um contrato para fornecimento de livros escolares. Entre os livros e utensílios da escrita que o representante do governo menciona, alguns eram dirigidos a alunos pobres, um indicativo da expansão da escolarização em favor das camadas menos aquinhoadas do ponto de vista econômico e da assistência aos educandos como “preocupação” governamental.

Embora encontremos referências sobre objetos destinados ao apoio no desenvolvimento de práticas pedagógicas, conforme acima descrito, observa-se maior recorrência de registros relativos a edifícios escolares. Este indicativo instigou-nos no sentido de refinar a investigação para identificar, dentro dos relatórios, os anos nos quais mais apareciam reformas, aluguéis, compra ou construção de edifícios. Objetivávamos organizar os dados numa tabela como a que segue:

17 SANTA CATARINA. Relatorio apresentado à Assembléa Legislativa Provincial de Santa Catharina na 2.a sessão de sua 26.a legislatura, pelo presidente, Francisco José da Rocha, em 11 de outubro de 1887. Rio de Janeiro: Typ. União de A.M. Coelho da Rocha & C., 1888. Base de Dados. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/972/>. Acesso em: 26 mar. 2010.

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EDIFICAÇÕES PARA A ESCOLA

ANO REFORMA ALUGUEL COMPRA CONSTRUÇÃO

Contudo, a volta aos textos revelou-nos que os relatos somente mencionam os prédios escolares18 sem fazer referência clara ao que estava sendo realizado: se eram reformas, aluguéis, compra ou construção. Exemplo disto pode ser conferido no relato de 191319, no qual o governador apresenta uma lista de prédios escolares denominada como:

Figura 1 - Trecho da mensagem de 1913.

A atenção a este aspecto revelou a importância dos números nos relatos dos governantes, relatos estes que expressam certo desejo de se construir escolas espaçosas, claras, arejadas e cômodas nas quais os instrumentos e móveis necessários ao ensino estivessem disponíveis para o auxílio da “missão” do professor. Exemplo disto pode ser observado no relato do Vice-Governador Coronel Vidal José de Oliveira Ramos Júnior em mensagem apresentada ao Congresso Representativo do Estado em 24 de Julho de 190420:

Figura 2 - Trecho da mensagem de 1904.

18 Desde o ano de 1874, utilizava-se o termo “edifício escolar” para se referir ao local onde eram ministradas as aulas da instrução primária, mas não é feita distinção entre prédios próprios, casas locadas ou instalações adaptadas.

19 SANTA CATARINA. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo do Estado em 21 de Julho de 1913 pelo Governador Vidal José de Oliveira Ramos. S./l.: s./r., p. 73. Base de Dados. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u967/>. Acesso em: 26 mar. 2010.

20 SANTA CATARINA. Mensagem apresentada ao Congresso Representativo do Estado em 24 de Julho de 1904 pelo Vice-Governador Coronel Vidal José de Oliveira Ramos Junior. Base de Dados. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u958>. Acesso em: 09 jul. 2010.

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Apesar da afirmação de desejo de melhoria expresso na mensagem, não encontramos informações específicas que indicassem a maneira efetiva de como alcançá-las. Estes relatos eram organizados com dados quantitativos, impossibilitando-nos averiguar acerca das modificações reais operadas nas instituições escolares. O mesmo se traduz nos dados dos indicadores de matrículas que, aumentando a cada ano, sugerem o aumento da demanda escolar e da oferta. São evidências de que, embora os discursos sobre a escola indicassem a necessidade de um conjunto de artefatos para o desenvolvimento da atividade pedagógica, a atenção estava centrada na ampliação da oferta via construção ou instalação de novas unidades. Não dispomos ainda de elementos que permitam afirmar sobre o que havia dentro destas edificações, mas há indicativos de que, à exceção dos grupos escolares, o conjunto de unidades que de fato escolarizou parte significativa da população funcionava de maneira precária, se comparado aos indicativos dos discursos e propostas quanto aos materiais e mobiliário necessários. Trata-se de escolas isoladas, não só na nomenclatura mas também do ponto de vista geográfico, distantes de centros urbanos ou em suas periferias e que acabaram, ao menos no caso catarinense (e poderíamos estender para a realidade brasileira), atendendo, em boa parte da primeira metade do século XX, o maior contingente da população escolar. São edificações geralmente adaptadas ou improvisadas, com escassos recursos e caracterizadas pela prática unidocente. Resta-nos, refletir, para além de um conjunto de aspectos, sobre como se daria a atividade docente preconizada por um método sem a base material que deveria suportá-la já que não se tem encontrado referências que indiquem propostas pedagógicas diferenciadas, quanto aos métodos, para as escolas urbanas e rurais, escolas isoladas ou grupos escolares. As referências até aqui localizadas indicam alterações apenas nos conteúdos, os quais em geral eram mais vastos e aprofundados para os grupos escolares e escolas urbanas, reservando-se uma espécie de rudimentos como conteúdos das escolas isoladas e similares.

Inserirmos aqui, a título de exemplo dos arranjos feitos para viabilizar o funcionamento de instituições escolares, relato de 187521, do presidente da província, Dr. João Thomé da Silva:

Figura 3 - Trecho da mensagem de 1875.

21 SANTA CATARINA. Falla dirigida à Assembléa Legislativa Provincial de Santa Catharina em 21 de março de 1875 pelo exm. sr. presidente da provincia, dr. João Thomé da Silva. Cidade do Desterro, Typ. de J.J. Lopes, 1875, p. 54. Base de Dados. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/962/>. Acesso em: 26 mar. 2010.

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Como demonstra o texto, para economizar recursos e não contratar novos professores, foi estabelecida a contratação de adjuntos, que poderiam dar aula para no máximo 60 alunos cada. Observe-se que o registro data de 1875, antes mesmo das iniciativas mais agressivas de expansão da escola primária. Trata-se de arranjos que colocam em evidência alguns elementos básicos do funcionamento de uma escola: alunos, docentes, espaço físico e alguns artifícios para o aumento da oferta. Contudo, não há referência explícita aos objetos escolares que deveriam compor a cena.

As inquietações acima registradas instigaram-nos a investigar acerca da recorrência de relatos sobre prédios e compará-la com os números de matrícula. No recorte proposto para este artigo, em 38 anos aparecem relatos sobre o número de matriculados, enquanto somente 26 anos fazem referência a prédios construídos, reformados ou alugados. Quanto aos objetos escolares, os números diminuem ainda mais, contabilizando-se somente 22 anos em que são mencionados, sem detalhes e especificação. Este último dado é bastante sugestivo, pois ajuda a corroborar a tese de que, embora o discurso político e pedagógico indicassem a necessidade de uma estrutura material significativa para o desenvolvimento das atividades de ensino como mobília adequada, quadros parietais, globos... a edificação acabava por ser “quase” suficiente para levar a cabo o projeto de escolarização em marcha. Como antes indicado, esta reflexão carece de aprofundamento e é, por certo, bastante cara no interior dos projetos de investigação aos quais estamos vinculadas, mas não poderíamos deixar de pelo menos fazer-lhe menção.

A despeito de mudanças fomentadas em Santa Catarina pela Reforma de 1911, com a introdução dos grupos escolares, os relatos continuam a indagar sobre a qualidade do ensino por não alcançar as expectativas desejadas.

A forma como representantes do estado descrevem seus relatos administrativos, particularmente nos períodos de alternância no poder entre grupos políticos, leva-nos a crer que, assim como nos governos atuais, estes mencionam o governo anterior fazendo uma pequena alusão a tentativas de melhoria na instrução pública sem destacar grandes feitos. Este recurso revela um padrão de discurso político desde sempre vigente de mostrar que, se algum progresso se registrou, ele é todo atribuído à gestão atual, o que se aplica ao ensino da época em estudo, que, segundo os autos, teve algum progresso apenas na gestão do então presidente da província, o que resulta em desmerecimento não só do governo anterior, mas como de todo o processo de construção e modernização do ensino feito no período. António Nóvoa22 alerta para as armadilhas deste tipo de discurso ao indicar suas marcas na historiografia atual:

Vivemos, portanto, sem uma memória construída, o que nos leva a repetir, uma e outra vez, os mesmos diagnósticos e a aplicar velhas soluções sempre com a aparência da novidade. Como se cada geração só conseguisse mobilizar a sua própria memória, as suas próprias recordações e esquecimentos, abdicando assim de uma compreensão

22 NÓVOA, António. Apresentação. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Camara (orgs.). Histórias e Memórias da Educação no Brasil - Vol. I: séculos XVI-XVIII. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 9-13.

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histórica dos fenômenos educativos. 23

Neste cenário consideramos que a História da Educação auxilia em uma percepção de que nossos atos, em especial os referentes à educação, são reflexos de uma cultura construída, que precisa ser investigada, registrada, revisitada para se articular, com alguma propriedade, passado e presente.

Nesta incursão pelo passado, compartilhamos as premissas já anunciadas de que os objetos devem ser vistos como instrumentos que constroem esta história, embutidos de significados que caracterizam uma cultura, a denominada cultura material, a qual, por certo, se enreda na cultura escolar.

Razões como as até aqui expostas reafirmam que é preciso muito mais do que perceber o que está escrito em mensagens, na legislação, sejam lá quais forem as fontes que se adotem. É necessário ter a sensibilidade de apreender aquilo que não foi dito, mas que pode contribuir significativamente para a reflexão. Se, por exemplo, para os primeiros grupos escolares foi anunciado com pompa o aparelhamento com os mais modernos e requintados materiais, prédios e equipamentos, as escolas isoladas ou rurais precisavam funcionar em instalações precárias, embora em bases metodológicas aproximadas. Contudo, o discurso da máquina pública anuncia um projeto educativo que não deixa claras estas distinções, as quais devem ser perseguidas nas entrelinhas.

23 NÓVOA, Apresentação, p. 12.

RESUMOO presente trabalho é um recorte da pesquisa em andamento OBJETOS DA ESCOLA: Cultura Material da Escola Graduada (1874-1950) (CNPq/FAPESC/UDESC), vinculada ao Projeto Nacional “Por uma teoria e uma história da escola primária no Brasil: investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1950)”. Neste trabalho propomo-nos investigar a cultura material da escola graduada catarinense, constituída pela estrutura física e por um universo de objetos utilizados para e no exercício da atividade pedagógica, particularmente aquela levada a efeito nas escolas graduadas do ensino primário da virada do século XIX para o XX. Utilizamos como fonte documentação disponível na base de dados on line do Center for Research Libraries – CRL. Foram selecionados, entre as informações disponíveis, os textos referentes a Santa Catarina, a fim de identificar relatos sobre a instrução pública, tendo como foco a cultura material da escola. Através do que está descrito nas mensagens, percebemos, além do explícito, nuances do não dito, ausências sentidas e que pretendemos problematizar. Palavras Chave: Objetos da escola. Cultura material da escola. Mensagens provinciais.

ABSTRACTThis paper is part of the on-going study OBJECTS OF THE SCHOOL: Material Culture of the Grade School (1874-1950) (CNPq/FAPESC/UDESC), which is part of the national project “Towards a Theory and History of the Elementary School in Brazil: comparative research about grade schools (1870-1950).” In this paper we propose to study the material culture of the grade school in Santa Catarina State, constituted by the physical structure of the pedagogical activity, particularly that undertaken in the elementary grade schools at the turn of the 19th to 20th century. The source for the study is the documentation available in the on-line database of the Center for Research Libraries – CRL. From the information available, we selected texts related to Santa Catarina, to identify the reports about public education, focusing on the material culture of the school. Through what is described in the messages, we realize, beyond what is explicit, nuances of that which is not said, absences felt and which we intend to analyze.Keywords: School Objects; School Material Culture; Provincial Messages.

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CATÓLICOS E PROTESTANTES NO NORDESTE BRASILEIRO NO SÉCULO XX:A EDUCAÇÃO EM QUESTÃO

Maria de Lourdes Porfirio Ramos Trindade dos Anjos1

Carlos Henrique de Carvalho2

Introdução

Em 1889 a República foi proclamada no Brasil e com o novo regime se promulga a Constituição de 1891, que declarou o Estado laico, pelo Decreto 119-A. Também foi instituída a liberdade de cultos religiosos, bem como o casamento civil e a secularização dos cemitérios. Nesse ambiente republicano, já nas últimas décadas do século XIX, escolas americanas de confissão protestante já tinham êxito em São Paulo3, havia também penetração do espiritismo no país4. Então a Igreja brasileira precisava fazer frente a esses desafios. Bispos romanizados foram nomeados e iniciaram a implantação no país da nova política da Igreja, principalmente através da busca de religiosos europeus romanizados. Além disso, a Igreja, acompanhando a federalização da República, também se federalizou criando circunscrições eclesiásticas e bispados em todo o território nacional5.

No Brasil, a constituição do Estado como República Federativa obriga a Igreja também a se federalizar, dividindo o território em dioceses, nomeando bispos, instalando congregações nas circunscrições eclesiásticas e recrutando para seus quadros. A organização da educação também é estadual e não federal. Neste quadro cruza-se a necessidade de federalização da Igreja, os interesses dos diferentes países em difundir sua cultura, os interesses do poder central da Igreja, os interesses de cada uma das congregações em vir para o Brasil e o interesse do estado, dirigentes e elites em promover a instalação dessas congregações aqui no país.

Alguns exemplos ilustram a complexidade deste quadro. Um deles foi o caso da expulsão dos jesuítas do país. Anos depois da restauração da Companhia de Jesus, alguns membros retornaram ao país e reativaram sua antiga rede educacional. Em alguns casos, os arranjos com os governos locais resultaram em convênios

1 Mestre em História da Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda em História da Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente da Rede Oficial de Ensino do Estado de Sergipe e do Município de Aracaju. E-Mail: <[email protected]>.

2 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Em 2008 realizou estágio pós-doutoral na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Docente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. E-Mail: <[email protected]>.

3 HILSDORF, Maria Lúcia S. História da Educação brasileira: leituras. São Paulo: Tomson Learning Edições, 2006.

4 GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, Arquivo Nacional, 1997.

5 MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

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em que os jesuítas conduziriam o colégio público6. Se, aparentemente, há uma busca pela laicização. O PRP Paulista, por exemplo, dá ancoradouro para algumas congregações.

Em La veritè de l’EgliseCatholique7, Lagroye constata uma possível crise pela qual passa a Igreja Católica, mas, como todo balanço de crise, esse é ainda nebuloso devido à proximidade temporal, ele propõem um método para o estudo do que se chama “a crise”: é preciso se interessar pelas relações que unem práticas, justificativas das práticas, concepções da verdade e formas de autoridade e de poder na Igreja. Em outras palavras, é preciso se interrogar sobre o regime da verdade da instituição que, em suma, é aquilo que define o que é a verdade e quem está autorizado a ter acesso e falar sobre ela.

A Igreja se entende educadora universal porque detentora da verdade e, portanto, de uma moral universal. Agindo através de colégios ou simplesmente através da catequese, ou de cursos livres em pensionatos por elas mantidos, as congregações e seus membros carregam consigo essa ideia e todas as suas atividades são intrinsecamente educativas.

Em meados do século XIX iniciou-se um movimento na Europa que iria repercutir no Brasil mais fortemente a partir do século XX. Em decorrência do avanço da secularização e da laicização dos Estados, a Igreja Católica, procurando reaver posições políticas perdidas, buscava a centralização da Igreja nas mãos do papa através da política da romanização e, ao mesmo tempo, permitia a abertura de instituições religiosas menos rígidas que as antigas Ordens. Com regras mais modernas, mais abertas ao mundo, as congregações com superior ou superiora geral proliferaram pela Europa como um todo e com uma característica comum em diferentes países: mais mulheres entravam para a vida religiosa do que homens8.

A chamada crise da Igreja, portanto, é uma construção coletiva de uma visão da realidade e está justamente na dificuldade de suplantar as contradições que os membros vivem em sua relação com a verdade. Certamente situações de crise já foram vivenciadas anteriormente. O período áureo de instalações de congregações católicas estrangeiras no Brasil foi parte de uma reação da Igreja a perda de espaços na Europa e a reação a essa crise foi o ultramontanismo.

Desta forma, a radicalização católica no Brasil se afirma por meio das pregações de Dom Sebastião Leme, líder do episcopado brasileiro, que assume papel fundamental na política social da Igreja no Brasil, conforme dissemos acima.

Do ponto de vista político, temos nele um notável estrategista, criador de formas de convivência com o novo regime e de apoio mútuo entre Igreja e Estado9. Com 6 DALLABRIDA, Norberto. A fabricação escolar das elites: o Ginásio Catarinense na Primeira

República. Florianópolis: Cidade Futura/ UDESC, 2001.7 LAGROYE, Jacques. La verité dans l’Église catholique: contestations et restauration d’un regime

d’autorité. Paris: Belin, 2006.8 Cf. LANGLOIS, Claude. Le catholicisme au féminin: les congrégations françaises à supérieure

générale au XIXe siècle. Paris: Les Editions du Cerf, 1984; MANGION, Carmen M. Contested identities: catholic women religious in nineteenth-century England and Wales. Manchester: Manchester University Press, 2008.

9 O envolvimento da Igreja Católica em assuntos políticos no Brasil é historicamente observado desde os tempos coloniais, através das ações de seus diversos grupos, que se interessavam pela política e, muitos deles, se deixavam envolver com maior ou menor intensidade em situações ligadas ao campo das lutas políticas no país. Esse interesse se manifesta sob formas e profundidades

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esse propósito foi fundado em 1922 o Centro Dom Vital, por Jackson Figueiredo com o apoio de Dom Leme, que já em 1921 criara a revista A Ordem,10 pois seu objetivo é “recatolizar” o Brasil, a partir da manutenção da ordem simbólica religiosa, contribuiria também para a permanência da ordem política, principalmente durante todo governo Vargas, ao discutir, de maneira enfática, temas como educação, ação católica e combate ao comunismo, isso num primeiro momento. Posteriormente, condena o liberalismo, cujo erro fundamental era ignorar a suposta unidade espiritual brasileira, vista pelos intelectuais d’A Ordem como a base de toda unidade nacional.

Com esses princípios, a revista se constituiu no principal canal de divulgação dos valores católicos, na sua ação para se reaproximar do Estado, ou seja, para se compreender o processo de a aproximação [entre Estado e Igreja] cabe lembrar que o período republicano, especialmente até a década de 1920, foi marcado pelas fissuras provocadas pelo decreto de separação assinado unilateralmente, por aqueles que puseram fim ao Império, proclamaram a República, assumiram o governo e decretaram a laicidade do estado igualando, de uma única vez todas as instituições religiosas. A partir de então, embora a separação pouco afetasse a convivência entre o poder público e o poder religioso na vida local e regional, a Igreja passou a perseguir dois objetivos: o primeiro buscou redefinir suas relações com o Estado, manter sua autonomia nos assuntos da religião e garantir a continuidade dos recursos para as obras sociais e institucionais; o segundo visou consolidar sua estrutura interna de acordo com o modelo romano11.

Mas é válido lembrar que a Igreja Católica brasileira, mesmo apresentando essa mudança de rumos, em relação ao Estado e seu papel perante a sociedade, tem que enfrentar divisões internas entre reformistas e os modernizadores conservadores, que evidenciam uma resistência às mudanças propostas12. No entanto, também buscaram estabelecer uma relação de equilíbrio. Sobre essa situação, Scott diz o seguinte:

Como os reformistas, os modernizadores conservadores acreditavam que a Igreja necessitava promover uma participação leiga, mas estavam preocupados em manter a obediência hierárquica do que os reformistas que adotavam a noção de Igreja como o povo de Deus [...] Os reformistas aceitaram a secularização como inevitável e acreditavam que ela traria algumas conseqüências positivas. Eram menos antiprotestantes e mais anticomunistas do que seus predecessores e mais preocupados com a justiça social e com a

diversas de participação, de acordo com as posições dos membros da Igreja perante os movimentos políticos, fossem eles voltados para os setores mais desfavorecidos da sociedade ou para aqueles mais privilegiados. Isso denota que no interior da Igreja Católica, de maneira mais geral, tanto na realidade brasileira como na portuguesa, e não apenas nelas, suas facções eram inspiradas, ou motivadas, por uma visão de homem e de mundo própria de cada momento histórico. Cf. LUSTOSA, Oscar de Figueiredo. Igreja e Política no Brasil. São Paulo: Loyola, 1983.

10 Cf. RODRIGUES, Cândido Moreira. A Ordem: uma revista de intelectuais católicos. Belo Horizonte: Autêntica/ FAPESP, 2005.

11 MARCHI, Euclides. Igreja e Estado Novo: visibilidade e legitimação. In: SZESZ, Christiane Marques et al (orgs.) Portugal-Brasil no século XX: sociedade, cultura e ideologia. Bauru: EDUSC, 2003, p. 209-210.

12 Cf. MORAIS, João Francisco Régis de. Os bispos e a Política no Brasil. São Paulo: Cortez; Campinas: Autores Associados, 1982.

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comunidade.13

Antecedentes Históricos: o Protestantismo Norte-Americano

Tendo em vista essa situação é que este artigo pretende discutir os embates entre protestantes e católicos, com a finalidade de apresentar as polêmicas que se travavam entre as duas doutrinas religiosas, sendo palco dessas disputas o nordeste brasileiro, mais especificamente, nos estados de Pernambuco e Sergipe. Mas é importante destacar que as primeiras eram originárias do sul dos Estados Unidos da América do Norte. Estes para cá vieram fugindo afluíram da Guerra de Secessão, ou seja, o grupo de imigrantes sulistas norte-americanos14 que chegou ao Brasil se estabeleceu principalmente em Santa Bárbara, no interior de São Paulo, em 1865.

Os batistas organizaram uma igreja naquela cidade, a Primeira Igreja Batista estabelecida no Brasil, de língua inglesa. Dentre daqueles imigrantes sulistas norte-americanos que chegaram ao país, os missionários protestantes norte-americanos enviados por suas missões tinham planos de expansão evangelizadora e educacional, objetivando a formação de uma mentalidade cristã protestante. Encontrando ambiente favorável entre aqueles que defendiam a mudança do regime monárquico para o republicano, os quais viam na educação a possibilidade de modernizar a nação.

A Convenção das Igrejas batistas do Sul dos Estados Unidos, com sede na cidade de Richmond, no Estado da Virgínia, nomeou no ano de 1880, os primeiros missionários norte-americanos para o Brasil: Pastor e professor William Buck Bagby e sua esposa Anne Luther Bagby.

Este casal de missionários estava convicto de que o Brasil seria o campo escolhido por Deus para a difusão do evangelho entre os nativos, por achar que o governo agia com justiça, a terra era fecunda, o clima aprazível, possibilitando o favorecimento da expansão do evangelho, da sua crença, de sua cultura, dos seus valores, por acreditar que suas concepções estavam de acordo com a palavra de Deus, a Bíblia Sagrada.

No dia 2 de março de 1881, chegou ao Brasil o casal de missionários batistas norte-americanos Anne e Willian Bagby15, do Rio de Janeiro foram para Santa 13 MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasilense,

2004, p. 65-66.14 Foram somente as igrejas norte-americanas que se interessaram pela propagação do culto

protestante no Brasil. Na década de 30, mandaram para cá seus pastores com o duplo fim; de assistir os americanos e ingleses aqui radicados e investigar as possibilidades de abrir frentes de trabalho evangélico. BARBANTI, Maria Lúcia Spedo Hilsdorf. Escolas Americanas de Confissão Protestante na Província de São Paulo: um estudo de suas origens. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1977.

15 Em 1881, o trabalho batista foi iniciado pelo casal Bagby que veio para Brasil pela insistência do general Hawthorne. Começou o seu labor em Santa Bárbara onde encontrou o ex padre alagoano, Antônio Teixeira de Albuquerque. Sendo aumentadas as fileiras batistas em 1882 pela chegada do missionário Z.C.Taylor, a sede das atividades foi mudada de Santa Bárbara para a Bahia, e o ex padre acompanhou as duas famílias missionárias. Razão desta mudança foi dada pelo Sr. Bagby nos seguintes termos: “Na província da Bahia não há trabalhadores para o Mestre, enquanto nas Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo existe um bom número de missionários e trabalhadores nativos.” Isso é louvável e muito digno de observação visto serem eles, os baptistas, sempre acusado de invadir territórios já ocupados por outra denominação. “Os primeiros batistas não

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Bárbara a fim de estabelecer contatos com os batistas norte-americanos e aprenderem o português. Em 31 de agosto daquele mesmo ano, chegaram a Salvador os membros fundadores da Primeira Igreja Batista do Brasil, o casal Bagby, Clay Taylor, Kstevens Taylor e o ex padre Teixeira de Albuquerque16. Naquele mesmo ano, William Bagby escreveu para a Missão Batista norte-americana de Richmond explicando a escolha da cidade de Salvador para o início do trabalho missionário, justificando a inexistência de trabalho evangélico batista.

No dia 15 de outubro de 1882, fundaram a Primeira Igreja Batista do Brasil. Os Bagby exerceram seu ministério no Brasil implantando igrejas, desenvolvendo várias ações para que o povo tivesse acesso à instrução. Entendia que a educação seria um ponto relevante para expansão da obra missionária.

Diante das suas lentes as lacunas existentes deveriam ser preenchidas pelo casal. Impulsionado por tal convicção envia uma carta para a Missão Batista norte- americana a Junta de Richmond delineando os motivos e justificando a sua escolha pela cidade de Salvador para iniciar um trabalho missionário. Os presbiterianos se estabeleceram em Recife em 1873. Neste período eram comuns os conflitos entre protestantes e católicos. Mesmo diante das adversidades, existia um grupo de fiéis que contribuía de forma significativa para a manutenção das atividades religiosas exercidas pelos batistas. Entre as estratégias utilizadas pelos missionários para divulgação do evangelho e da sua religião estavam as instituições educacionais, e prova disso é que nos idos da década de 1920já existia uma escola destinada ao sexo feminino, o Colégio Agnes Erskine.

Em Pernambuco, a Primeira Igreja Batista de Recife foi organizada em 1886 com seis membros. O Missionário Charles D. Daniel esteve à frente da Igreja por apenas três meses, vindo posteriormente a ser substituído pelo Pastor Melo Lins.

As Perseguições Religiosas: Católicos X Protestantes Batistas

A literatura protestante sobre a memória dos primórdios é plena de exemplos quando se reporta as perseguições, e as lutas travadas pelos cristãos, para exercer as práticas religiosas nas primeiras igrejas batistas. O movimento mais intenso para combater a formação da nova fé surgiu com a reforma protestante em 31 de outubro de 1517. Anos mais tarde Lutero rompeu definitivamente com Roma. Nesse processo histórico discípulos de Lutero disseminaram suas ideias em outros países. Diante do fato a igreja romana reagiu usando práticas violentas. Em 1523, os seguidores passaram a ser sacrificados, e jogados na fogueira como foi o caso em Bruxelas e França. Em 1540, Calvino se estabeleceu em Genebra, após a morte de Francisco I, seu filho Henrique II, passou reprimir os “huguenotes” (seguidores de Calvino) com atos bárbaros.

queriam gastar os seus esforços em uma província já ocupada por outra denominação. Os batistas nunca foram não são, e não poderão ser, segundo as suas próprias crenças, nem separatistas nem proselitadores, todavia não podem deixar de evangelizar em toda parte do mundo porque têm uma mensagem distinta das outras seitas”. MEIN, John. A Causa Baptista em Alagoas (1885-1926). Recife: Tipografia do CAB, 1929.

16 O primeiro brasileiro a se tornar batista foi Antônio Teixeira de Albuquerque, e o primeiro a ser consagrado ao ministério. PEREIRA, José Reis. História dos Batistas no Brasil (1882- 2001). Rio de Janeiro: JUERP, 2001, p. 78.

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A perseguição não impedia a difusão da nova doutrina. O povo entendia o discurso dos reformadores e reproduziam os preceitos ensinados. Mas tarde os filhos das famílias mais abastadas da sociedade foram se convertendo, e com a prática do uso das armas, e diante da violência proposta pelo clero, decidiram se defender. Provavelmente essa não foi uma boa decisão. Uma vez que a mensagem pregada por Calvino era possuidora de teor pacífico. Com essa atitude o conflito religioso se estendeu por três dias, e milhares de “huguenotes” morreram em Paris pelo fio de espada. Conforme a redação de O Jornal Batista se referindo a esse período lembra que,

[...] a violência extrema, a caça aos hereges ou supostos hereges, a fogueira, o cutelo, o garrote e outras formas de suplício, foram usados abundantemente pela igreja por século a fio. Não se pode escusar de culpas na matança de são Bartolomeu a igreja que promoveu as cruzadas, que matou milhares de albigenses e valdenses, que inventou a Inquisição. O crime da noite de São Bartolomeu estava perfeitamente enquadrado na índole católico - romana.17

O clero foi vitorioso, mas deixou registrado na lembrança da humanidade, uma história escrita com sangue, onde milhares de pessoas perderam a vida na defesa de um ideal religioso. No Brasil, no século XIX e XX, foram presenciados atos semelhantes. Na tentativa de entender o pensamento católico, questiono: O que levou o clero, a usar tamanha violência contra o povo?

Para além dos embates travados entre católicos e acatólicos que combateram em defesa dos seus ideais, e presenciaram infortúnios, sofrimentos, dor e morte. Cenas indeléveis marcaram as vidas dos cristãos da região sudestes e nordeste18. Com ênfase para os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Sergipe, que foram retratadas nas páginas da literatura evangélica.

Por iniciativa de Bagby, foi alugado, em 1890, um pequeno salão para a realização dos cultos. Em julho desse ano, deslocou-se para lá o Missionário H. E. Soper, e novos batismos foram efetuados. Um dia Soper, resolveu realizar, com os crentes, um culto ao ar livre, em frente à estação da estrada de Ferro [...]. Mas, irritado com a propaganda e os progressos da pequena igreja batista, o padre local resolveu dar uma demonstração de força. Açulou uma pequena multidão, que acossou os crentes batistas e os apedrejou. Soper, entretanto, não desanimou: apelando para as autoridades, obteve resposta, e o culto, finalmente, se realizou, com a proteção de dez soldados armados de espadas.19

17 A Redação. Há 397 anos, nesta data: 24 de agosto de 1572. O Jornal Batista do Brasil, Rio de Janeiro, 24 ago. 1965, n. 387.

18 Recorrendo as fontes observa-se que o Brasil como um todo sofreu perseguições, no entanto, às regiões mais atingidas registradas por Pereira foram Sudeste (Rio de Janeiro e Minas Gerais) e Nordeste (Pernambuco e Sergipe). PEREIRA, José Reis & PEREIRA, Clovis M. História dos Batistas no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: JUERP, 2001. Cf. WILLIAMS,Clara Lynn. Síntese do trabalho batista em Sergipe (1913-1971). Aracaju: 1971.p.16. (Texto mimeografado)

19 PEREIRA& PEREIRA, História dos Batistas no Brasil.

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A história dos batistas registra as torturas horrendas praticadas contra os protestantes. O fato de ter professado a fé, em crença que não fosse à católica romana, estava destinado à perseguição. No entanto, eram revestidos de tamanha fé, que mesmo diante de tanto conflito, permaneciam firme no seu ideal: Propagar a mensagem do evangelho.

As perseguições continuaram espalhadas pelo Brasil. O missionário Salomão Ginsburg, incursionando pelo Rio de Janeiro para divulgar a mensagem do evangelho, encontrou forte oposição “em forma de vaias e pedradas inconseqüentes”20em três lugares “São Fidélis, em Macaé, na própria cidade de Campos”21.

Na perspectiva de fundar uma igreja em São Fidélis, Ginsburg alugou uma casa, em um lugar central da cidade para iniciar as atividades religiosas. Ao tomar conhecimento do fato o chefe político e pai do delegado de polícia, incomodado, e revestido com todo tipo de fúria juntamente com seus comparsas,

Promoveram verdadeira arruaça em frente da casa onde Salomão pregava; pedras foram lançadas, e uma jovem, dentre os que acompanhavam o pregador, caiu, banhada em sangue. Não satisfeito com esses primeiros resultados, prendeu Ginsburg levando-o para a delegacia, onde o pregador passou a noite, sentado num banco.22

Durante todo esse movimento os batistas sofreram com a intolerância da igreja católica, na tentativa de dominar a mente e o coração do povo. Seus fiéis estavam impossibilitados de conhecer uma nova religião.

Conflitos entre o Clero Católicos e os Batistas em Pernambuco

Em 1895, chegou aos trópicos mensageiros disseminando o evangelho. A historiografia dos batistas retrata a intolerância do clero com os protestantes. Pernambuco também foi alvo das intenções clericais, na tentativa de impedir a disseminação do evangelho. Lançaram mão de atos violentos, que alguns não resistindo às agressões físicas, morreram. Em Nazaré – PE, os batistas pediam que os missionários norte-americanos reabrissem um ponto de pregação naquela região Entzminger concordou, em 21 de julho foi inaugurada a casa onde aconteceriam os cultos, e onde os primeiros adeptos a nova fé foram batizados. Pereira relata os acontecimentos vindouros, e como tudo transcorreu,

A cerimônia foi uma bomba nos arraiais católicos com o vigário à frente. Estimulada pelo padre, pequena multidão investiu à noite contra a casa de cultos, arrombou as janelas, juntou os bancos, mesa, harmônio, despejou querosene em cima e ateou fogo. Sabedor do incidente, Entzminger foi procurar o presidente do Estado, que era então Barbosa Lima, republicano histórico. Este ficou indignado com o ocorrido, e garantiu, com um pequeno contingente policial, a volta do missionário à cidade. No dia aprazado, quando desembarcou em

20 PEREIRA & PEREIRA, História dos Batistas no Brasil, p. 117.21 PEREIRA & PEREIRA, História dos Batistas no Brasil, p. 117.22 PEREIRA & PEREIRA, História dos Batistas no Brasil, p. 117.

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Nazaré, Entzminger encontrou a sua espera cerca de 500 homens armados de cacetes e facas. Á vista dos soldados, de armas embaladas, o grupo se dispersou e não incomodou mais. A 16 de janeiro de 1896, foi organizada a igreja batista da cidade.23

A igreja romana continuava proibindo qualquer iniciativa proposta pelos batistas. Na tentativa de desanimar os missionários, e desmobilizar o grupo a não dar continuidade ao seu projeto religioso, cometiam atrocidades contra o ser humano. Pereira relata como o fato aconteceu. Uma igreja batista foi organizada em Cachoeiras, em casa de Hermenegildo César, recém convertido. Logo ele construiu, anexo à sua casa, um salão para realização dos cultos. Por isso,

O Padre José Bezerra, chefe político e senador estadual, contratou um bando de jagunços para ameaçar Hermenegildo. Este não se deixou intimidar, bem como outros crentes. Numa noite, os jagunços voltaram. Principiaram por saquear e destruir propriedades de outros crentes. Chegando à casa de Hermenegildo, este fugiu, deixando no quarto sua mulher, que dera à luz uma criança de três dias antes. Julgava Hermenegildo que respeitariam uma senhora naquele estado. Não imaginava a que extremos pode chegar o fanatismo. Os celerados entraram no quarto, despiram à senhora e açoitaram-na barbaramente. Depois cortaram os punhos da rede e deixaram a criança cair. A pobre senhora, apavorada, apanhou o filho e fugiu nua, indo esconder-se num açude. A criança não resistiu á queda e morreu, e a senhora, traumatizada, veio morrer poucos anos depois.24

Pernambuco continuou sendo alvo, dessa vez, quem resolveu fazer justiça, foi um frade italiano, Frei Celestino di Pedavoli com a fundação da Liga antiprotestante, que se destinava a proibir o crescimento do evangelho. O clima vivenciado pelos protestantes batistas era de discriminação, preconceito, ameaças de morte e queima de bíblia. Segundo Pereira, Frei Celestino dizia “que as Bíblias protestantes eram falsas, e organizou uma solene queima no adro da igreja da Penha, quando 214 Bíblias e porções foram incineradas”25.

Pereira revelou que Pedavoli descontente com a façanha promovida contra os protestantes, contratou Antônio Silvino, para tirar a vida do missionário Salomão Ginsburg pagando apenas a quantia de duzentos e cinquenta mil reais. Mas, aconteceu que, Antônio Silvino ficou impressionado com a pregação do missionário e a cortesia que lhe dispensou. Após o término do culto, Silvino conversou com Ginsburg e preservou-lhe a vida.

Católicos e Protestantes em Sergipe:a Disputa Pelo Espaço Educacional

Convém lembrar que os embates travados entre clericais e não clericais, não são recentes. Desde 1884, com a implantação do protestantismo em Sergipe pelos

23 PEREIRA & PEREIRA, História dos Batistas no Brasil, p. 118-120.24 PEREIRA & PEREIRA, História dos Batistas no Brasil, p. 120.25 PEREIRA & PEREIRA, História dos Batistas no Brasil, p. 139.

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presbiterianos, existiam divergências entre essas duas religiões. Os católicos, na tentativa de impedir o crescimento da nova fé, utilizavam várias ações como “queima de bíblias,” “tentativa de apedrejamento”; proibição de sepultamentos em cemitérios públicos, onde os católicos eram sepultados. Nascimento assevera que o padre, “determinou que nenhum protestante ao morrer podia ser enterrado no cemitério da cidade, e caso acontecesse a sepultura deveria ser atravessada, o que na época só ocorria com os assassinos”26.

No ano de 1913, os batistas organizaram a Primeira Igreja Batista de Aracaju, sob a direção do Pastor Horácio Gomes. Como ocorria nas outras denominações, aquele grupo religioso também se preocupou com a educação de seus adeptos, pois para ele, o valor da educação estava vinculado à nova vida espiritual por acreditar que o “Evangelho dá estímulo a todas as faculdades do homem e o leva aos maiores esforços para avantajar-se- na senda do progresso”27.

Mesmo existindo conflitos entre católicos e acatólicos, os protestantes de confissão batista continuaram unidos em torno da propagação do evangelho, da distribuição de folhetos, da vendagem de bíblia, e na organização de escolas e igrejas.

Em 1917, poucos tinham oportunidade de examinar a Bíblia. A paixão com que alguns fiéis protestantes evangelizavam gerava influência na vida das pessoas, foi assim que aconteceu com Pastor Melo Lins, e o ex padre Teixeira de Albuquerque, que atuavam no nordeste. Nas viagens os missionários comprovavam a necessidade de implantar escolas. Mildred Cox Mein revelou os anseios do povo dizendo,

Um dos clamores mais insistentes, provocados pela pregação, era o autêntico desejo de ler a Bíblia. A fim de ler, precisa-se conhecer o alfabeto: a fim de assenhorear-se dele, há mister de quem ensine; para ensinar precisa-se de preparo, de método, de ambiente propício. Alguém é obrigado a tomar a iniciativa de providenciar os elementos básicos.28

A situação dos protestantes na década de 1940 não era confortável, existindo acirrados embates entre a Igreja Católica e os não católicos por não professarem a mesma fé. Provavelmente pela postura do clero, o avanço educacional batista em Sergipe pode ter sido consideravelmente comprometido. Conforme Cruz nessa década presenciou-se muitos tumultos e descontentamentos,

Os conflitos entre católicos e protestantes foram mais fortes na década de 40. Houve tempo que o jornal “A Cruzada” atacava muito. Mas havia um jornal dessa Igreja (Presbiteriana Independente) que respondia aos embates se chamava a “A voz da Mocidade”.29

26 FERREIRA, E.F. O presbiterianismo em Lagarto. Apud NASCIMENTO, Ester Fraga Villas-Bôas Carvalho do. A Escola Americana: origens da educação protestante em Sergipe - 1884-1913. São Cristóvão: Grupo de Estudos e Pesquisa em História da Educação UFS/NPGED, 2004, p. 70.

27 RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo e cultura brasileira: aspectos da implantação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1981, p. 184.

28 MEIN, Mildred Cox. Casa Formosa: Jubileu de Ouro do Seminário de Educadoras Cristãs (1917-1967). Recife: Gráfica Editora Santa Cruz, 1967, p. 14.

29 Jonan Joaquim Cruz (81 anos) pastor emérito da Igreja Presbiteriana Independente de Aracaju. Natural de João Pessoa na Paraíba. Estudou Teologia no Seminário Presbiteriano do Norte em Recife – Pernambuco; foi fundador da Associação dos Pastores, que depois recebeu o nome de

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Outro relato vem de um pastor batista que presenciou cenas semelhantes contra os batistas, ao serem sepultados, nas cidades de Nossa Senhora das Dores, e em Boquim.no “Campo Santo”(cemitério).Segundo Waldemar Quirino dos Santos,

[...] o clero não permitia o sepultamento dos “hereges”, “bodes”, “capas verdes” e outros apelidos que eram dados aos convertidos à nova fé. Na verdade, os protestantes eram vistos no imaginário social como personagens do mal, a serviço de Satanás. Também presenciei na minha infância em Aracaju, sepultura de “crentes” fora dos muros dos cemitérios Santa Isabel e São Benedito.30

Na década de 1950, segundo os anais da Convenção Batista Sergipana de 200531, o Estado de Sergipe contava com 11 igrejas batistas espalhadas na capital e no interior.Com a organização do Educandário Americano Batista os conflitos voltaram com mais intensidade entre católicos e protestantes. Tudo era motivo para injúrias através da comunicação radiofônica e da imprensa periódica. O clero considerava uma afronta, um desacato, os batistas erguerem uma instituição e, sem escrúpulo, levar seus fiéis menos avisados para fortalecer as fileiras do protestantismo. Por esse motivo o clero passou a alertar seu rebanho que não caísse nas malhas enganadoras dos batistas. O padre Luciano Cabral Duarte expressou seu sentimento sobre o tema dessa forma:

Os protestantes de Aracaju, da seita Batista vão inaugurar neste ano um Educandário. Segundo estamos informados, o plano é transformá-lo, em seguida, em um ginásio. O rádio está transmitindo com freqüência, anúncios do referido colégio. Nada temos a censurar que os protestantes mantenham o seu educandário para os seus filhos. O colégio, pela sua estrutura essencial, deve ser o continuador e cooperador do lar. Não há de estranhar, pois que os protestantes queiram para os seus filhos, uma educação protestante. Cabe, no entanto, aqui, um reparo da maior importância e gravidade: o colégio protestante de Aracaju não será simplesmente para os meninos protestantes. Ele visa conquistar, para o protestantismo, crianças que não pertencem a famílias protestantes, crianças católicas de cujos corações ele iria arrancar as sementes da fé católica, para aí lançar o germe do espírito da reforma. A prova de que o Colégio não visa simplesmente os filhos dos protestantes é a insistência da propaganda, onde, exceto a sugestão do título (Educandário Americano Batista) nada se diz da orientação religiosa do mesmo. Se o colégio visasse

UMEA (União dos Ministros Evangélicos de Aracaju). Mas, partindo do princípio de que essa união foi organizada para acolher os pastores da cidade e querendo abranger todo o Estado, passou a ser denominada de UMESA (União dos Ministros Evangélicos do Estado de Sergipe). Participou da organização das campanhas evangelísticas de 1964, “Cristo Esperança Nossa”, e em 1965, “Cristo a Única Esperança”. Entrevista concedida em 18 jul. 2005. Até o momento não conseguimos localizar nenhuma edição do jornal A voz da mocidade.

30 Waldemar Quirino dos Santos (75 anos) pastor emérito da Igreja Batista Castelo Forte, Aracaju - SE. Entrevista concedida em 26 jul. 2005.

31 ANAIS da Convenção Batista Sergipana. 58ª Assembléia Anual, 22 a 24 abr. 2005. Propriá: s./r., p. 146.

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simplesmente os filhos dos protestantes, dispensável seria a sofreguidão publicatória. Poucos como são, a notícia do seu colégio já está na boca de todos os protestantes, ou mais precisamente de todos os batistas, pois é desta denominação a iniciativa. Se pois eles fazem questão de lançar aos quadrantes a rede de sua publicidade, é que esperam colher, nas malhas da propaganda, os filhos de famílias católicas pouco avisados. Esta, aliás, a tática já empregada em dezenas de lugares.32

No Educandário Americano Batista tudo transcorria normalmente, com a saúde financeira equilibrada33, o que favoreceu positivamente seu crescimento; é o que demonstra os dados apresentados por Williams na “Síntese do trabalho batista em Sergipe”. Observou-se um crescimento anual na década de 1950 em relação aos alunos católicos matriculados no EAB. Em 1954 eram 22 alunos; no ano seguinte o número de católicos estudando na instituição passou para 35 alunos e em 1960 eram 29 alunos.

No entanto, o clero não estava satisfeito com o que estava posto aos seus olhos; por isso resolveu prevenir os católicos displicentes do grande perigo que corriam se chegassem a matricular seus filhos numa instituição herege como essa e concluiu que:

É melancólica a história dos colégios protestantes no Brasil. Triste história de naufrágio de almas. Tomemos o caso do grande “Ginásio 15 de novembro”, instalado em Garanhuns, com dependências magníficas, financiados pelo dinheiro do protestantismo americano. Fundado numa cidade católica, o “Ginásio 15 de novembro”, por displicência dos católicos de Garanhuns, tem, na sua maioria, alunos de famílias católicas. Os pais alegam que as taxas são cômodas, abrigam-se numa suposta liberdade religiosa dentro do Colégio, e apesar do clamor que se faz, o problema continua. Com que resultado? Como o protestantismo não consegue impor-se por falta de calor espiritual ou por falta de força doutrinária, à maioria dos jovens apenas lhe mata o germe católico trazido de casa, e lhes deixa n’alma a semente da dúvida e da disponibilidade religiosa. O resultado é uma geração de indiferentes: não são católicos, não são protestantes, não são coisa nenhuma. São apenas náufragos da fé.34

Tacitamente a Igreja Católica reconhecia que através da educação os filhos dos seus fiéis poderiam ser influenciados; por este motivo a presença do colégio Batista era considerada uma ameaça aos lares católicos e menos avisados. Neste sentido, Duarte, preocupado, conclamava aos seus adeptos,

[...] ora, é preciso que estas verdades estejam bem presentes aos católicos de Aracaju, neste momento em que a ameaça funesta abre as suas portas na cidade. Nós não somos favoráveis a lutas religiosas.

32 DUARTE, Luciano Cabral. A Cruzada, 20 fev. 1954, p. 3.33 Relatório enviado à Junta de Richmond por Maye Bell Taylor, no ano de 1957. Ata em inglês.34 DUARTE, Luciano Cabral. A Cruzada, 20 fev. 1954, p. 3.

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Muito menos somos por uma anti-cristã intolerância para com as pessoas. Mas somos decididamente, pela defesa da verdade integral de Jesus Cristo, da qual Ele fez depositária a sua Santa Igreja Católica. Não é a mesma coisa crer nisto ou naquilo. A verdade tem as suas exigências. Melhor diria: as suas intransigências. Ela não é como nós queremos, mas como é em si mesma. Não somos nós que lhe damos a forma, mas ela é que nos impõe. Daí a sua intangibilidade, a sua sacialidade. A igreja tem clara, diante dos olhos, a compreensão deste problema. Por isto é que adverte os católicos a que de modo algum entreguem seus filhos para serem educados em colégio contra a orientação católica. 35

Após ter desferido suas críticas incisivas, enviou um recado para aqueles que, por qualquer deslize, resolvessem matricular seus filhos no Educandário Americano Batista, pois teriam a punição da Igreja Católica com a excomunhão, assim informava Duarte:

[...] e, para levar os cristãos ao cumprimento deste dever primordial de preservação da fé dos seus filhos, chega a Igreja ao ponto de dolorosamente, punir com excomunhão todos os que entregam os seus filhos para que sejam educados em alguma religião acatólica (Código de Direito Canônico, Cânon 2319, parágrafo 1º, art. 4º).36

Conclamando a todos os fiéis que se declaravam católicos que guardassem esse patrimônio sagrado e por nenhuma sombra de heresia permitissem que seus filhos fossem atingidos pelos protestantes, esse era o sentimento que movia Duarte:

Se, pois, pela graça de Deus, a nossa população ainda é católica, se, apesar de todos os pesares, nossas famílias ainda consideram como um patrimônio a legar aos seus filhos a verdadeira fé, que vem, sem descontinuidade, dos primeiros apóstolos de Cristo até os nossos dias, se o nosso povo, interrogado, faz questão de se declarar católico, urge, portanto, defender esta fé, guardar este patrimônio, manter a sagrada intangibilidade da doutrina evitando que a mesma seja maculada pela sombra das heresias. Cabe, assim, às famílias católicas a grave obrigação de não enviarem seus filhos a qualquer colégio protestante.37

Os jornais impressos foram às fontes principais para serem veiculados os insultos e controvérsias. Os conflitos não paravam e os anticlericais elegeram como tribuna provavelmente programas de rádio para realização de debates e manifestações. O padre Luciano Cabral Duarte, tomando conhecimento do fato, passava a alertar seus adeptos para que em nenhuma circunstância colocassem seus filhos para estudar na Escola Batista. Se, porém, houvesse desobediência o fiel receberia a excomunhão por parte da Igreja Católica. As ameaças feitas pelo líder religioso parece não encontrar eco nos ouvidos dos seus fiéis. Os dados do quadro a seguir constatam

35 DUARTE, Luciano Cabral. A Cruzada, 20 fev. 1954, p. 3.36 DUARTE, Luciano Cabral. A Cruzada, 20 fev. 1954, p. 3.37 DUARTE, Luciano Cabral. A Cruzada, 20 fev. 1954, p. 3.

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uma significativa presença de alunos católicos no Educandário Americano Batista.

QUADRO I – QUADRO DEMONSTRATIVO DA DISTRIBUIÇÃO DOS ALUNOS DO EDUCANDÁRIOAMERICANO BATISTA PELA OPÇÃO RELIGIOSA

(1961-1971)

ANO CATÓLICOS EVANGÉLICOS BATISTAS

1961 80 - 60

1962 79 - 58

1963 87 95 -

1964 84 79 -

1965 92 80 -

1966 113 83 -

1967 122 - 48

1968 133 7 36

1969 141 - 47

1970 146 - 34

1971 147 - 48Fonte: WILLIAMS, Síntese do trabalho batista em Sergipe.

Depois que D. José Thomaz assumiu a Diocese, a única escola protestante de denominação presbiteriana que existia fechou suas portas. Segundo Barreto38, D. José Thomaz Gomes da Silva era um homem simples, honesto, disciplinado e determinado. Ao assumir o primeiro bispado em Sergipe, ele procurou preencher lacunas deixadas pela Igreja Católica nos espaços espiritual, social e educacional. Além das instituições citadas, empenhou-se em ocupar espaços na imprensa local, entre outras atividades:

Outras medidas foram tomadas para aparelhar a Diocese, a exemplo da criação do boletim “A Diocese de Aracaju: Orgamofficial da Diocese de Aracaju”, que tinha por objetivo reunir “todos os atos da administração diocesana [e recolher] igualmente em seu registro os documentos de acquisição, pertinentes aos direitos da mesma diocese”.39

Enquanto Sergipe esteve sob a ação do bispado de D. José Thomaz, o crescimento educacional dos batistas andou a passos lentos, como se observou anteriormente. Apenas três anos após a sua morte, a partir de 1951, foi que o EAB começou a existir.

Estratégias como estas foram colocadas em prática, com o intuito de barrar o avanço do protestantismo em Sergipe. Mas tamanha coragem, portava aquele povo, que seguia em frente, firme, unido, sem se desviar do caminho que resolveu trilhar; de forma consciente, trazendo consigo as marcas na alma e no corpo, e a 38 BARRETO, Raylane Andrezza Dias Navarro. Os padres de D. José: Seminário Sagrado Coração

de Jesus. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2004, p. 29.

39 BARRETO, Os padres de D. José...,p.31.

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esperança de vislumbrar a liberdade religiosa tão almejada, e o desejo de continuar cultuando ao seu Deus.

A perseguição que existiu entre os protestantes de confissão batista e o clero caracterizou-se como uma disputa de campo. Sem medir as consequências, emergiram na luta, sendo vitorioso o grupo que era detentor do poder econômico. As disputas estão presentes em espaços variados, nas igrejas, no campo educacional, passando pelas associações culturais, entre outras. Freitas explica que,

O estudo do panorama do campo educacional em Sergipe, no período (passagem do século XIX para o século XX), permite apreender aspectos sobre instituições, práticas e saberes que constituíam o projeto de educação para as mulheres neste Estado. No campo educacional participam das “disputas e do jogo” as instituições escolares, as associações culturais e profissionais relacionadas com a escolarização, alunos, pais, professores, diretores e autoridades educacionais. 40

Para entender melhor o significado de Campo educacional, lança-se o olhar para a definição de campo apresentada por Bourdieu:

O campo é um espaço estruturado de posições cujas propriedades dependem das posições neste espaço [...] para que ele funcione é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo [...] que conheçam e reconheçam das leis imanentes do jogo e dos objetos de disputa. [...] A estrutura do campo é um estado de relação de forças entre os agentes ou as instituições engajadas na luta [...] tudo aquilo que constitui o próprio campo, o jogo, os objetos de disputas, todos os pressupostos que são tacitamente aceitos.41

As disputas entre os dois grupos religiosos, na busca pelo domínio do espaço é compreensível, pois entendemos que suas lutas eram legitimas e distintas. No entanto, essa correlação de forças entre agentes religiosos seria mais proveitosa se houvesse uma discussão, na tentativa de romper com desacordos com a rivalidade e conviverem comas novas religiões. Porque tantas dissensões? Para centralizar a cultura religiosa, a rede de escolas? O controle da imprensa? Dos espaços públicos? Para se discutir as questões do nível espiritual, não deveriam ser usadas a força, os ataques físicos e morais, e nem a agressão contra o corpo e a alma.

40 FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno de. Educação, trabalho e ação política: sergipanas no início do século XX. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003, p. 31.

41 BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades dos campos. In: BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. São Paulo: Marco Zero, 1980, p. 89-91.

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QUADRO II – DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO SEGUNDO A RELIGIÃO NAS DÉCADAS DE 1940 E 1950, EM SERGIPE

DENOMINAÇÃO RELIGIOSA

POPULAÇÃO DE ADEPTOS EM 1940

POPULAÇÃO DE ADEPTOS EM 1950

Católicos 537.698 630.081

Protestantes 3.240 6.825

Espíritas 457 2.184

Outras Religiões 568 4.556

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Anuário Estatístico de Sergipe, 1940-1950.

Mesmo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não tendo especificado as diferentes denominações de protestantes existentes no período em Sergipe, entre elas presbiterianos, batistas, metodistas e congregacionais, percebe-se um crescimento significativo desse segmento religioso na década de 1950.

As atividades desenvolvidas pelos missionários norte-americanos foram condenadas pelo clero sergipano. No início do trabalho batista em Sergipe, a presença da igreja católica constituía sério obstáculo aos protestantes. Além do jornal A Cruzada e dos espaços nas revistas e jornais de grande circulação em Sergipe, em 1959, foi inaugurada pelo clero a Rádio Cultura, na gestão do Bispo Dom Fernando Gomes. O missionário Elmer Maurice Treadwell, em um dos seus relatórios para a Junta de Richmond, em 20 de junho de 1951, dava um testemunho do que vivenciou em Sergipe na década de 1950:

Há onze igrejas Batistas e dezesseis congregações no Estado de Sergipe. Durante a estação seca todo 4º domingo de cada mês os membros das três igrejas Batistas (da capital) alugam um ônibus, às vezes dois, e viajam para o interior para visitar as igrejas que são localizadas lá. Um destes serviços especiais foi planejado para a cidade de Estância. Nós escutamos que o padre católico romano tinha queimado algumas bíblias na praça pública, proibindo as pessoas de ler a bíblia dos protestantes. A opinião pública foi contra ele.42

Todavia, o que pode ser constatado é que os batistas não se preocupavam apenas com a questão da educação secular. Além dessa estratégia, ocupavam os espaços encontrados e ao mesmo tempo passavam a firmar seus propósitos em diversas áreas, munidos de recursos financeiros que iam suprindo as necessidades que surgiam, sendo tutelados pela Missão norte-americana. Aos poucos, o trabalho batista no Brasil expandia-se e consolidava-se. O avanço missionário era visível na implantação de igrejas, organização de Seminários de grande porte, hospitais, orfanatos, além da tipografia e da Casa Publicadora Batista que passou a funcionar provavelmente no ano de 1901, no Rio de Janeiro, e prestou à causa batista serviços em publicações de impressos como O Jornal Batista. Para Crabtree,

42 Elmer Maurice Treadwell foi missionário do Campo Sergipano nos anos de 1949-1955. Em relatório enviado à Junta de Richmond relata a perseguição existente em Sergipe pelo clero católico contra os protestantes na década de 1950.

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O maior serviço que a Casa Publicadora prestou à Causa Batista, especialmente nesse primeiro período, foi o da publicação d’O Jornal Batista. Publicar o jornal foi à primeira preocupação dos missionários quando resolveram colocar no Rio a casa editora. E, através dos anos, soube ser um notável repositório de acontecimentos e pessoas da história batista brasileira, tem sido também um sólido doutrinador do povo batista e firme defensor das convicções batistas. Sua coleção é leitura indispensável para quem desejar fazer um estudo sobre o progresso e o pensamento dos batistas brasileiros durante este século.43

Narrativas como essas nos fazem refletir sobre o domínio da igreja católica, e como utilizou o poder para impor a sua crença. No entanto, o legado deixado pelos pioneiros do trabalho batista demonstrou perseverança, convicção no que faziam, questionou, e enfrentou a fúria da igreja católica, mostrando a necessidade de haver respeito para com todos independendo de religião, raça, nacionalidade. Existe no nosso país a liberdade de expressão, portanto, não se deve impedir a presença da diversidade religiosa.

Considerações Finais

Nesse novo cenário a Igreja Católica passa a ter uma função menor, visto que os poderes seculares dela são diminuídos em razão da ampliação do poder estatal. Cria-se, desta maneira, o núcleo da disputa entre legitimação religiosa e secularização, pois até mesmo quando o Estado e a religião atuam conjuntamente, a relação entre eles permanece separada e distinta. Mas apesar desse cenário político contrário aos anseios da Igreja Católica, ainda se entende educadora universal, porque também se vê como detentora da verdade e, portanto, de uma moral universal. Por isso irá agir através de colégios ou simplesmente por meio da catequese, ou de cursos livres em pensionatos por ela mantidos. Atribuições que as congregações e seus membros carregam consigo, como o antiprotestantismo. É o Brasil, na perspectiva católica, que deve nutrir a manutenção da ordem simbólica religiosa para a permanência da ordem política, principalmente durante todo governo Vargas, ao discutir, de maneira enfática, temas como educação, ação católica e combate ao comunismo, isso num primeiro momento.

No século XX, o Brasil os batistas foram proibidos de executar seu projeto de educação e evangelização. O clero romano proclamava ser detentor da “verdade”. No Nordeste brasileiro, os estados de Pernambuco e Sergipe foram também alvos desse movimento.

Pernambuco ficou no centro das intenções clericais, na tentativa de impedir o avanço do protestantismo batista. Lançaram mão de atos violentos, que levaram alguns até a morte. Suas estratégias eram bem definidas, com objetivos claros. Nesse interregno foi criada a Liga antiprotestante que era portadora da mesma finalidade, coibir o crescimento do evangelho. Conforme as fontes, o clima vivenciado pelos protestantes batistas era desolador, com a prática do preconceito, discriminação,

43 CRABTREE, A. R. História dos batistas do Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1962, p. 138.

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ameaça de morte,e queima de bíblias. Foram com essas, e outras ações,que a história pintou um quadro cinzento e imprimiu na memória batista.

Sergipe também foi cenário de conflitos, tanto na capital, quanto no interior. Eram constantes as perseguições, com ataques pessoais, com cognomes depreciativos, ou quando se referia a sepultamento em cemitérios públicos, onde católicos eram sepultados. Se por necessidade, um protestante fosse enterrado no cemitério da cidade, sua sepultura, deveria ser posta de maneira semelhante aos enterramentos dos assassinos.

A questão educacional em Sergipe foi outro tema, que ocupou as pautas das reuniões clericais, as manchetes dos jornais impressos, e a tribuna dos programas de rádio, para realização de debates e manifestações. O padre Luciano Duarte impregnado pelo preconceito, tomando conhecimento dos fatos passava a alertar seus adeptos, para que em nenhuma circunstância, colocassem seus filhos para estudar na escola batista. Se, porém houvesse desobediência o fiel receberia a exclusão por parte da Igreja Católica.

Portanto, consideramos relevante investigar a questão educacional dos batistas na região nordeste do Brasil, pois tal estudo permite acessar novos dados que possibilitam uma melhor compreensão das dificuldades vivenciadas pela sociedade brasileira de então, em meio às “lutas religiosas” entre católicos e protestantes, expressas nas tensões e nos desafios enfrentados pelos protestantes de confissão batistas para professarem sua fé num mundo culturalmente católico. Nesse texto, foi possível acompanhar o processo de superação dos entraves postos na caminhada dos protestantes, mas para além dessa questão este artigo coloca em relevo as possibilidades de os estudos devotados a esta temática, contribuir para as pesquisas sobre a Historia da Educação dos batistas, pois entendemos o conhecimento histórico, em particular sobre a presença protestante no Brasil, como forma de resgatar, atualizar e (re)interpretar a História da Educação Brasileira, em seus múltiplos universos socioculturais.

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RESUMO

Este artigo tem por objetivo apresentar a questão religiosa no nordeste do brasileiro, focando suas análises para os aspectos educacionais, tendo nos estados de Pernambuco e Sergipe o espaço recortado para o estudo. Nessas regiões se verificou intensos embates entre a Igreja Católica e os protestantes. A constatação de todo esses clima de animosidade foi a criação a Liga antiprotestante, com a finalidade de coibir o crescimento deles nos estados citados acima. Tal ação demonstra como o preconceito e a discriminação sobre a presença batista conduziram os discursos católicos. Por outro lado, este artigo possibilita uma melhor compreensão das dificuldades vivenciadas pela sociedade brasileira de então, em meio às “lutas religiosas” entre católicos e protestantes, expressas nas tensões e nos desafios enfrentados por estes para professarem sua fé num mundo culturalmente católico.

Palavras Chave: Protestantes; Católicos; Educação; Nordeste Brasileiro.

ABSTRACT

This article aims to present the issue of religion in northeastern Brazil, focusing on their looks to the educational aspects, and in the states of Pernambuco and Sergipe the space cut for the study. In these regions there has been intense confrontations between the Catholic and Protestant. The finding of any such animosity was to create the Anti-protestant League, in order to curb their growth in the states mentioned above. This action shows how prejudice and discrimination on the presence Baptist led the Catholic discourses. Moreover, this paper provides a better understanding of the difficulties experienced by Brazilian society then, amid the "religious conflicts" between Catholics and Protestants, expressed the tensions and challenges faced by them to profess their faith in a world culturally Catholic.

Keywords: Protestants; Catholics; Education; Brazilian Northeast.

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A CONTRIBUIÇÃO DE LIMA BARRETO PARA O ENTENDIMENTO DA CRÍTICA EDUCACIONAL

BRASILEIRA DO INÍCIO DO SÉCULO XX1

Silvana Fernandes Lopes2

Introdução

Lima Barreto apresenta, ao longo de toda a sua produção jornalística e literária, uma visão bastante atenta da organização escolar brasileira do início do século XX, especialmente do Rio de Janeiro, e formula críticas à falta de especialização do ensino brasileiro, à desarticulação entre os conteúdos escolares e a realidade, à superficialidade teórica e prática desses conteúdos, às deficiências do currículo e à má qualidade de formação de professores e alunos3.

O objetivo último deste artigo é mostrar a fertilidade da utilização do texto literário como fonte para a história e especificamente para a história da educação. Para isso, tomarei como exemplo a obra de Lima Barreto, focalizando nela um dos temas mais recorrentes: o ensino superior. Buscarei demonstrar, então, que a visão crítica desse autor nos auxilia a identificar limites e contradições que marcaram todo o pensamento educacional do início do século XX.

Em um período em que as relações capitalistas se consolidavam no país, as preocupações educacionais se intensificavam significativamente. Numa fase de efervescência política e cultural, diferentes movimentos político-sociais convergiram para a defesa da universalização da educação escolar. Os primeiros especialistas em educação, ou seja, os teóricos e educadores profissionais, canalizando os anseios em torno da educação escolar, acabaram por reduzir o debate a uma discussão meramente pedagógica. E mais do que isso, inspirados no pensamento escolanovista americano e europeu, contribuíram decisivamente para a constituição do liberalismo em ideologia educacional4.

A intensa penetração do ideário liberal na fase de implantação do regime republicano reforçava sobremaneira o “mito da escolaridade” e, à medida que a transição econômico-social avançava, a crença na instituição escolar como a responsável pela posição social dos indivíduos e pelo progresso vai deitando raízes no pensamento educacional brasileiro.

1 Esse assunto é parte da minha Tese de Doutorado em História da Educação, defendida na Faculdade de Educação da UNICAMP em 2002.

2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Departamento de Educação da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Campus de São José do Rio Preto.

3 LOPES, S. F. A educação escolar na Primeira República: a perspectiva de Lima Barreto. In: LOMBARDI, J. C., SAVIANI, D. & NASCIMENTO, M. I. M. (orgs.). Navegando pela História da Educação brasileira. Campinas: Graf. FE; Histed-BR, 2006. CD-ROM.

4 A esse propósito, conferir NAGLE, J. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU; EDUSP, 1974. Também XAVIER, E. S. P. Capitalismo e escola no Brasil: a constituição do liberalismo em ideologia educacional e as reformas do ensino (1931-1961). Campinas: Papirus, 1990.

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Apesar de as ideias educacionais defendidas pelos renovadores circularem nos meios intelectuais desde o período imperial, os primeiros profissionais da educação emergiram nas décadas de 20 e 30. Antes disso, o pensamento educacional era elaborado e divulgado basicamente por publicistas, políticos e literatos. Na insuficiência de literatura educacional específica no período, por meio de sua obra, Lima Barreto oferece uma reflexão interessante sobre a educação escolar do período.

Esse autor justifica explicitamente a sua “intromissão” em assuntos da educação, criticando a produção dos teóricos dessa área, muito influenciados pela psicologia americana.

Sempre foi uma das minhas preocupações a instrução pública. Não quero dizer com isto que vá fazer concorrência ao Senhor Carneiro Leão, ao Senhor Leitão da Cunha ou meu amigo Denis Júnior.Entretanto, sem ter a autoridade especial dêsses senhores que fizeram estudos profundos e transcendentes a respeito, tenho procurado na medida das minhas fôrças concorrer para o progresso do ensino público e disseminar as idéias úteis que encontro aqui e ali, em livros modestos, que os pedagogos de verdade não têm, tão absorvidos andam êles com as cousas dificílimas de psicologia infantil e cousas correlatas. (Uma idéia, p. 130) CRJ – 29 mai. 1920.5

E vai além, afirmando que os romancistas teriam melhores condições de avaliar o ensino, porque em geral se atêm “a observação direta da realidade”, ao contrário do que fariam os especialistas.

Ainda há dias aqui, nestas colunas, tive ocasião de aludir a uma opinião do romancista paulista, Leo Vaz, sôbre tal assunto.Essa opinião, como os senhores devem estar lembrados, vem exarada no seu curioso romance – O Professor Jeremias – que devia estar, a estas horas, em tôdas as mãos.Agora, cabe-me a vez de dar a respeito de instrução pública a opinião de outro romancista, também brilhante, que a adquiriu, não lendo compêndios ou tratados ou estudos yankees, alemães, suecos e noruegueses, mas com a observação direta da realidade. (Uma idéia, p. 130-131) CRJ – 29 mai. 1920.

Lima Barreto sustenta a sua crítica aos educadores profissionais na constatação de que, baseados em uma produção teórica alheia à nossa realidade, os nossos pedagogos propõem alternativas inadequadas a essa realidade e que, por isso, resultam inócuas na solução dos problemas educacionais brasileiros. Além dessa crítica direta, sua produção jornalística é pródiga em ironia ao caráter ultrapassado de muitas dessas teorias.

5 As obras de Lima Barreto estão assim referenciadas neste texto: BA (Bagatelas), CA (Clara dos Anjos), CRJ (Coisas do Reino do Jambom), FM (Feiras e Mafuás), MA (Marginália), NN (Numa e a Ninfa), BR (Os Bruzundangas), RE (Recordações do escrivão Isaías Caminha), TF (Triste fim de Policarpo Quaresma), VM (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá) e VU (Vida Urbana). Nos artigos, crônicas e sátiras são também registrados o título e a data de publicação nos periódicos.

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Últimamente, arranjaram aqui, com as escolas locais, uma universidade anódina e idiota – o que bem mostra o nosso amor às palavras compassadas e pomposas e à figuração, denunciando também tal criação a mentalidade obsoleta dos nossos pedagogos, que ainda namoram instituições fósseis do ensino medieval e falam em radiografia com a linguagem do defunto Rui de Pina, misturada com a do Padre Antônio Vieira, a quem deus tenha em sua santa guarda. Amém, Jesus. (As reformas e os “doutôres”, p. 238) FM – 16 jan. 1921.

Lima Barreto ironiza, portanto, os conhecimentos formulados pelas chamadas “novas correntes” do pensamento pedagógico, ou seja, o escolanovismo.

[...] Nunca fui dado a essas sabedorias infusas e confusas entre as quais ocupa lugar saliente a chamada ‘pedagogia’ [...]. (Como resposta, p. 71) MA – 8 abr. 1922.

Afonso Henriques de Lima Barreto viveu entre 1881 e 1922, mas só postumamente passou a ser reconhecido tanto pelo público leitor quanto pela crítica literária. Mais precisamente, a partir da publicação, em 1956, das suas obras completas6, é que foi possível avaliar a importância de sua produção para a literatura brasileira.

A academia veio a se ocupar da análise desse autor e de sua obra somente a partir da década de 70, e essa análise resultou numa fértil produção que revela a importância de Lima Barreto7. É importante salientar que as contribuições ao entendimento do seu papel no cenário nacional têm se dado não só na área específica da literatura, como também nas áreas das ciências humanas e sociais.

Neste artigo, apresentarei primeiramente a visão de Lima Barreto sobre a educação superior, e também tratarei de questões metodológicas importantes para o uso do texto literário na pesquisa histórica em seguida para, finalmente, procurar verificar até que ponto o pensamento de Lima Barreto expressa os limites históricos da crítica educacional do início do século XX.

Como fontes de investigação, utilizo dois tipos de documentos: a produção jornalística e a produção ficcional limiana. Na produção jornalística busco apreender o ponto de vista explícito do autor, e na ficção, os diferentes pontos de vista expressos por meio de suas personagens, procurando identificar os grupos sociais representados por elas8.

6 As obras completas foram organizadas por Francisco de Assis Barbosa, em colaboração com Antônio Housaiss e M. Cavalcanti Proença.

7 Dentre os muitos estudos, destacam-se os já clássicos: COUTINHO, C. N. O significado de Lima Barreto na literatura brasileira. In: COUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. 2.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. LINS, O. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976; PRADO, A. A. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1976; FANTINATI, C. E. O profeta e o escrivão: estudo sobre Lima Barreto. São Paulo: Hucitec; Assis: Instituto de Letras, História e Psicologia de Assis, 1978; SEVCENKO, N. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999; além de dissertações e teses.

8 Entendo que o autor não pretende apenas mascarar suas posições por meio das personagens, mas há um esforço de expressar o ponto de vista do outro, segundo a sua percepção. Essa questão será mais bem discutida na terceira parte deste texto.

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Lima Barreto e o ensino superior

No conjunto de suas obras, Lima Barreto tratou dos mais variados assuntos, incluindo os principais acontecimentos políticos e costumes do seu tempo. Dentre os temas eleitos pelo autor, o ensino superior aparece como um dos mais recorrentes.

O autor apresenta um detalhado diagnóstico da qualidade do ensino superior das primeiras décadas do século XX.

A precariedade do conhecimento veiculado pela educação superior é exaustivamente discutida na sua obra.

São quase sempre, além de medíocres intelectualmente, ignorantes como um bororó de tudo o que fingiram estudar. Aquilo que os antigos chamavam humanidades, em geral, êles ignoram completamente. Não são falhas, que todos têm na sua instrução; são abismos hiantes que a dêles apresenta. (A superstição do doutor, p. 40) BA – mai. 1918.

No conto Como o “homem” chegou, o doutor Barrado é um notório exemplo de ignorância.

[...] Procurou quem o guiasse até o Rio, embora lhe parecesse curta e fácil a viagem. Examinou bem o mapa e, vendo que a distância era de palmo e meio, considerou que dentro dela não lhe cabia o carro. Por êste e aquêle, soube que os fabricantes de mapas não têm critério seguro: era fazer uns muito grandes, ou muito pequenos, conforme são para enfeitar livros ou adornar paredes. Sendo assim, a tal distância de doze polegadas bem podia esconder viagem de um dia e mais. (Como o “homem” chegou, p. 286-287) CA – 18 out. 1914.

A má formação dos doutores aparece vinculada a uma série de fatores, tais como a inadequação do ensino à realidade, a superficialidade do conteúdo, os problemas na organização curricular e a má qualidade dos professores9.

[...] com o nosso ensino superior feito em pontos manuscritos ou impressos, em cadernos e outros bagaços, muito espremidos, das disciplinas do curso, sem professôres atentos ao progresso do saber professado por êles e, por êles encerrado no dia em que recebem o decreto de nomeação – causa tôda a nossa estagnação intelectual, desalenta os mais animosos, não dá vontade às inteligências livres para o esfôrço mental e vamos assim ficando como os chineses, parados intelectualmente, mas sempre cheios de admiração pelos grotescos exames de Cantão. (A superstição do doutor, p.49) BA – maio/1918

Em grego, as obras consultadas foram ùnicamente duas, tal e qual

9 Para o aprofundamento do assunto, consultar: LOPES, A educação escolar na Primeira República..., p. 1-22.

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como no guarani; e certamente, êsses dois leitores não foram os nossos professôres de grego, porque, desde muito, êles não lêem mais grego [...]. (A Biblioteca, p. 38) MA – 13 jan. 1915.

Outra questão associada à má formação é a crescente facilitação nos exames, tanto nos preparatórios quanto nos do curso superior.

A maioria dos candidatos ao “doutorado” é de meninos ricos ou parecidos, sem nenhum amor ao estudo, sem nenhuma vocação nem ambição intelectual. O que êles vêem no curso não é o estudo sério das matérias, não sentem a atração misteriosa do saber, não se comprazem com a explicação que a ciência oferece da natureza; o que êles vêem é o título que lhes dá namoradas, consideração social, direito a altas posições e os diferencia do filho de “Seu” Costa, contínuo de escritório do poderoso papai. Animados por êsse espírito, vão, com excelentes aprovações, às vêzes, obtendo os exames preliminares e, afinal, matriculam-se na academia, como dizem êles no seu jargão pretensioso – podendo ela ser civil ou militar. Na escola ou faculdade, as cousas se passam muito mais fàcilmente. Não há filho de sujeito mais ou menos notável, que não vá adiante no curso, sem a menor dificuldade. É mais fácil que obter os preparatórios. (A superstição do doutor, p. 40-41) BA – mai. 1918.

Essa sua visão crítica desemboca numa percepção particularmente acurada e demolidora do valor atribuído pela sociedade brasileira aos portadores de título superior.

A rigor, um estudante do curso de Direito, por exemplo, concluído seu curso de quatro ou cinco anos, se tornaria bacharel e, caso defendesse a tese de doutorado seria, então, doutor. No entanto, vamos encontrar certa indiferenciação entre esses dois títulos na sociedade, conforme pode ser depreendido em suas obras.

Lima Barreto cunhou o termo “doutomania” para expressar a ideologia de valorização do título, vigente na sociedade de sua época, também conhecida como bacharelismo. Essa “doutomania” estaria difundida por todas as camadas sociais.

Para a massa total dos brasileiros, o doutor é mais inteligente do que outro qualquer, e só êle é inteligente; é mais sábio, embora esteja disposto a reconhecer que êle é, às vêzes, analfabeto; é mais honesto, apesar de tudo; é mais bonito, conquanto seja um Quasímodo; é branco, sendo mesmo da côr da noite; é muito honesto, mesmo que se conheçam muitas velhacadas dêle; é mais digno; é mais leal e está, de algum modo, em comunicação com a divindade. (A superstição do doutor, p. 42-43) BA – mai. 1918.

Nem os jornais escapam a essa superstição. Antigamente, os autores eram conhecidos pelos seus simples nomes; agora, êles aparecem sempre citados com o seu título universitário. (A instrução pública, p. 92) VU – 11 mar. 1915.

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No romance O Triste fim de Policarpo Quaresma podemos verificar o comportamento dos convidados da festa de noivado de Ismênia em relação ao seu noivo, Cavalcanti, um jovem recém formado em Odontologia.

Cavalcânti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era obrigado a ouvir a observação de outro. – É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava agora a quebrar a cabeça no “deve” e “haver”. Hoje, torço a orelha e não sai sangue.

[...]Nos intervalos da conversa, todos êles olhavam o novel dentista como se fôsse um ente sobrenatural.Para aquela gente tôda, Cavalcânti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma cousa sagrada e de essência superior; e não juntavam à imagem que tinham dêle atualmente, as cousas que porventura êle pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era outra diferente da dêles e fôra ungido de não sei que cousa vagamente fora da natureza terrestre, quase divina. (TF, p. 68-69)

Também podemos encontrar a admiração inspirada pelo médico Doutor Armando Borges.

Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o doutor, gozando aquêle seu sôbre-humano prestígio, ia conversando pausadamente, sentenciosamente, dogmàticamente; e, à proporção que conversava, talvez para que o efeito não lhe dissipasse, virava com a mão direita o grande anelão “simbólico”, o talismã, que cobria a falange do dedo indicador esquerdo, ao jeito de marquise. (TF, p. 158)

Denunciando a “doutomania”, Lima Barreto enfatiza o caráter formal do título de ensino superior. A posse do diploma não era garantia de conhecimento, mas seria um “passaporte” para a riqueza, via casamentos de interesse ou via emprego público.

Nesse sentido, é com frequência que encontramos, nas obras do autor, o título superior como uma possibilidade de ascensão social, por meio de casamentos “vantajosos”.

Crescendo assim pelo Brasil a procura de maridos formados, por parte de herdeiras ricas, o nosso ensino superior vai perdendo o seu caráter próprio e tomando uma feição de aprendizado para noivo, mesclado de baixas preocupações monetárias, nas cogitações dos respectivos alunos. É uma fábrica de caça-dotes.O cidadão ainda não saiu doutor e já sonha casar-se rico; e, durante todo curso, com rápidas olhadelas pelos tratados e apressadas visitas aos laboratórios e gabinetes, só pensa em uma cousa: como é que há de casar-se rico? (A prenda, p. 126) MA – 30 abr. 1921.

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As môças ricas não podem compreender o casamento senão com o doutor; e as pobres, quando alcançam um matrimônio dessa natureza, enchem de orgulho a família tôda, os colaterais, e os afins. (A nobreza de Bruzundanga, p. 56-57) BR

As famílias, os pais, querem casar as filhas com os doutôres; e, se êstes não têm emprêgo, lá correm à Câmara, ao Senado, às secretarias, pedindo, e põem em jôgo a influência dos parentes e aderentes.Então, o orçamento aparece com autorizações de reformas e o bacharelete está empregado, repimpado como diretor, cônsul, enviado extraordinário e diz para nós outros: “Eu venci”. (A instrução pública, p. 92) VU – 11 mar. 1915.

Da perspectiva do noivo, a posse do título era vista como a grande possibilidade para o arranjo de um casamento lucrativo. Em Numa e a Ninfa, o narrador descreve as estratégias de Numa para negociar um bom casamento com seu título de bacharel em direito, casamento esse que se concretiza e Numa consegue, de fato, ascender socialmente.

De indústria, o juiz se mantivera até então solteiro. Esperava, com rara segurança de coração, que o casamento lhe desse o definitivo empurrão na vida. Aproveitara sempre o seu estado civil para encarreirar-se. Ora ameaçava casar com a filha de fulano e obtinha isso; ora deixava transparecer que gostava da filha de beltrano, e conseguia aquilo [...]. (NN, p. 34)

Do ponto de vista das famílias mais abastadas, vê-se que elas procuravam casar suas filhas com bacharéis e doutores, mesmo quando estes eram pobres. Em Triste fim de Policarpo Quaresma, a personagem Coleoni, pai abastado de Olga, que pretende se casar com o Doutor Armando Borges, assim raciocina:

Ela quer um doutor – pensava êle – que arranje! Com certeza, não terá ceitil, mas eu tenho e as cousas se acomodam.Êle se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquês ou o barão de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito aceitável comprar a satisfação de enobrecer a filha com umas meias dúzias de contos de réis. (TF, p. 86)

O importante era o título, que faria com que os genros pudessem exercer cargos públicos ou eletivos e, assim, gerir e aumentar o patrimônio familiar.

A expectativa de ascensão social poderia se concretizar com a ocupação de cargos públicos, mais prestigiados na época do que os da iniciativa privada. Porém, o principal requisito para um candidato a um cargo público, até para se realizar a prática de “favores”, era o de ser portador de um diploma do ensino superior. É a associação entre a má qualidade do ensino superior e o seu caráter de trampolim para o emprego público que sustenta as suas críticas exacerbadas ao oportunismo e à incompetência do funcionalismo público no Brasil.

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Arranjaste um cursozinho muito vagabundinho de bacharel em direito, procuraste os parentes em Minas, politicões, republicanos históricos e com outras condecorações democráticas, e o Rio Branco nomeou-te amanuense, sem concurso, da Secretaria do Exterior. (Carta aberta, p. 201) MA – 08 set. 1917.

Nas primeiras décadas da República houve uma ampliação do ensino superior, em parte pela necessidade concreta de quadros para compor a burocracia e, em parte, pela pressão exercida pelas camadas altas e médias preocupadas com a manutenção ou com a aquisição de prestígio social. Essa situação é identificada por Lima Barreto, que responsabiliza a valorização do título de “doutor” pelo inchaço das nossas escolas superiores.

Êsses privilégios e a diminuição da livre concorrência que êles originam, fazem que as escolas superiores fiquem cheias de uma porção de rapazes, alguns às vêzes mesmo inteligentes, que, não tendo nenhuma vocação para as profissões em que simulam estar, só têm em vista fazer exame, passar nos anos, obter diplomas, seja como fôr, a fim de conseguirem boas colocações no mandarinato nacional e ficarem cercados do ingênuo respeito com que o povo tolo cerca o doutor. (A universidade, p. 119) FM – 13 mar. 1920.

Sentindo que a crendice geral dava êsse prestígio quase divino ao “doutor”, todos os pais, desde que pudessem um bocadinho, começaram a encaminhar os filhos para as escolas ditas superiores. É preciso, no Brasil, ter uma carta nem que seja de embrulhar manteiga; é um aforisma doméstico, conhecido e repetido, nos serões do lar, do norte ao sul do país. (A superstição do doutor, p. 44-45) BA – mai. 1918.

O problema educacional que se colocava desde o Império assim poderia ser resumido: ou se expandia o ensino superior por meio da equivalência e da autonomia dos cursos provinciais e particulares, ou se suprimia a exigência do diploma para o desempenho de cargos públicos10. Com base na denúncia da “doutomania”, Lima Barreto reforça a proposta de extinção do ensino superior, ou, pelo menos, dos privilégios que esse diploma garantia.

Muitas outras medidas radicais me ocorrem, como sejam: uma revisão draconiana nas pensões graciosas, uma reforma cataclismática no ensino público, suprimindo o “doutor” ou tirando dêste a feição de brâmane do código de Manu, cheio de privilégios e isenções; a confiscação de certas fortunas, etc., etc. (No ajuste de contas..., p. 96) BA – 11 mai. 1918.

O Estado da Bruzundanga, de acôrdo com a sua carta constitucional, declararia livre o exercício de qualquer profissão, extinguindo todo e qualquer privilégio de diploma. (O ensino na Bruzundanga, p.

10 Conferir: XAVIER, M. E. et al. História da educação: a escola no Brasil. São Paulo: FTD, 1994, p. 110.

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74-75) BR.

Lima Barreto denuncia que o título superior gozava de um prestígio extraordinário na sociedade brasileira, mas só os membros das camadas mais altas é que tinham acesso a ele. Dessa forma, estaria estabelecido um círculo vicioso que mantinha o status quo. E de fato, a principal função do ensino superior no período era a de fornecedor de diplomas que garantiam a ocupação de cargos de maior remuneração, poder e prestígio11. A expansão de oferta de ensino superior ao longo das primeiras décadas do século XX levou a medidas que acentuaram seu caráter seletivo, como uma estratégia para conter a desvalorização do título e, assim, manter os privilégios dos seus portadores.

Associando as novas exigências de titulação para a ocupação de cargos públicos a um crescimento de “doutores” disponíveis no mercado, o autor critica, de forma sistemática, a não correspondência entre a formação educacional desses “doutores” e as tarefas que teriam que desempenhar na burocracia.

Os doutôres, então, cresceram em número e o exercício da profissão para que estavam oficialmente habilitados, não dando margem, devido à pletora dêles, para o ganho remunerador de cada um, encaminharam-se êles para os empregos públicos que nenhuma capacidade especial exigem.O Tesouro, o Tribunal de Contas, as secretarias ministeriais e outras repartições menos importantes, ficaram cheias de amanuenses, escriturários, oficiais, engenheiros, médicos, advogados, dentistas, farmacêuticos; e, todos êstes, no íntimo ou claramente, se julgam com mais direito às recompensas burocráticas e às promoções que os seus colegas, que não têm título algum. (A superstição do doutor, p. 45-46) BA – mai. 1918.

O aumento de requisitos educacionais para a ocupação de postos de trabalho teria relação não só com o aumento do número de pessoas “qualificadas”, e que precisavam ser incorporadas, porque politicamente interessante, mas também porque assim era possível justificar a exclusão da maioria12.

O trecho abaixo, extraído do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, sintetiza, na voz do seu protagonista-narrador, as questões aqui abordadas.

Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, êsse título dava! Podia ter dois ou mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma. (RE, p. 55)

Considerações Metodológicas

As análises realizadas da obra de Lima Barreto muitas vezes acentuam o caráter memorialista de sua produção, o que conduz a uma espécie de biografismo do

11 Cf. CUNHA, L. A. A universidade temporã: da Colônia à Era Vargas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986, p. 147.

12 Para o aprofundamento dessa questão, consultar: CUNHA, L. A. Educação e desenvolvimento social no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978, particularmente o capítulo 5.

78 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [22]; João Pessoa, jan./ jun. 2010.

autor13. Este trabalho, no entanto, sugere que se siga outro caminho.A literatura é aqui entendida como a expressão de uma visão de mundo e como

tal é um fato social, e não individual. Para o materialismo histórico, o pensamento e o modo de sentir dos homens, tomados individualmente, estão sujeitos à múltiplas determinações e, portanto, as suas experiências, as suas vicissitudes, enfim, a sua vida pessoal, colabora para a constituição de uma visão de mundo. Mesmo considerando essa questão, neste trabalho o eixo norteador é a relação que se estabelece entre a obra do autor e a sua inserção social. Se as experiências pessoais são responsáveis pelas diferenças individuais que explicam muitas das contradições vividas pelos homens dentro de uma mesma classe social, é essa classe que determina, em última instância, a sua visão de mundo.

No caso de Lima Barreto, o contato com a sua biografia revela que os temas e os interlocutores eleitos na sua obra têm uma relação direta com as suas experiências pessoais, mas é possível perceber que as concepções implícitas ou as formas de abordagem desses temas são determinadas, de alguma maneira, pela classe social.

Goldmann14, inspirado na categoria lukacsiana de consciência de classe, formula a noção de consciência possível. As diferentes classes sociais elaborariam diferentes visões de mundo, mesmo que de forma parcial. Essas diferentes consciências estariam situadas em níveis qualitativamente diferentes, isto é, umas permitindo uma maior compreensão da realidade do que outras. A consciência possível seria “o máximo de realidade que poderia conhecer uma classe social sem chocar-se contra os interesses econômicos e sociais ligados a sua existência como classe”15. Colocando em outros termos, havendo uma identidade parcial entre sujeito e objeto, a consciência possível seria o limite máximo que uma determinada classe social poderia ter de consciência da sua própria realidade. “Ela determina os quadros categoriais que estruturam a visão de mundo da classe e, sobretudo, ela define o campo no interior do qual o grupo pode, sem modificar sua estrutura, variar suas maneiras de pensar e de conhecer”16.

Ainda de acordo com Goldmann, somente análises concretas poderiam explicar o grau de desenvolvimento da consciência de classe, num dado momento e num dado lugar. Essas análises operariam com duas categorias: a consciência possível e a consciência real, que seria “o que ela [classe social] conhece, de fato, dessa realidade durante certo período num determinado país”17. Seria, então, a partir dessa avaliação que se compreenderia o papel das diferentes classes sociais, suas visões de mundo ou suas ideologias.

A visão de mundo poderia ser definida como um “ponto de vista coerente e

13 Essa é uma questão bastante polêmica no âmbito da Sociologia e da História da Literatura. Para se ter uma noção das diferentes posições da crítica literária sobre isso, consultar: COUTINHO, N. O significado de Lima Barreto na literatura brasileira. In: __________. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

14 GOLDMANN, L. A criação cultural na sociedade moderna: por uma sociologia da totalidade. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.

15 GOLDMANN, L. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967, p. 146.16 LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen: marxismo e positivismo na

sociologia do conhecimento. 6. ed. São Paulo: Cortez, 1998, p. 142.17 GOLDMANN, Dialética e cultura, p. 146.

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unitário sobre o conjunto da realidade”18 que, em certas condições, se impõe a determinadas classes sociais. Por outro lado, o pensamento e o modo de sentir dos homens, tomados individualmente, estão submetidos a múltiplas influências, não permitindo o mesmo grau de unidade e de coerência no seu ponto de vista particular. Essa mediação entre o geral e o particular explicam as contradições vividas pelos homens dentro de uma mesma classe social.

A categoria classe social torna-se, assim, fundamental na compreensão da consciência de classe/ consciência possível, daí a sua fertilidade como referência. Como entender o pensamento de um autor como Lima Barreto, os seus limites e/ ou contradições, sem levar em conta a sua inserção nas camadas médias do início do século?

A definição ou caracterização da classe média brasileira já é, em si, um problema teórico. Outro problema é encontrar uma unidade ideológica entre os trabalhadores da classe média.

Sem dúvida, há uma unidade mínima, que é a aceitação da hierarquização do trabalho, mas ela não garante uma posição política única. Ao contrário, os estudos sobre a classe média brasileira demonstram a diversidade de posições políticas assumidas pelas frações sociais que a compõem a cada momento histórico. Indicam ainda que, num mesmo momento histórico, essas frações assumem posições muito distintas. Essa extrema diversidade e mobilidade justificam a tendência a nomeá-las camadas médias, ainda que admitindo a unidade mínima que as caracteriza enquanto classe.

A compreensão da ambiguidade ideológica das camadas médias brasileiras é uma peça chave. Os intelectuais, e entre eles os literatos, são representantes dessas camadas médias e expressam, por isso, essa ambiguidade. Nossos literatos do início do século, período eleito para este estudo, traziam as contradições peculiares à intelectualidade da época. Membros das camadas médias, que cresciam com a industrialização, com a urbanização, com a burocratização e com a imigração, faziam parte de um grupo que não pertencia às classes fundamentais, e, portanto, sem condições econômicas e sociais para uma ação política autônoma. Suas atividades ligadas ao aparelho de Estado e ao setor de serviços, fortemente vinculadas à estrutura social gerada pela oligarquia, favoreciam a dependência do status quo. Além disso, havia o medo da proletarização.

Por outro lado, com o avanço da urbanização, o fato de ocuparem postos na burocracia estatal e no comércio imprimia, nessas camadas, a ilusão de uma autonomia em relação aos setores oligárquicos. Mais do que isso, durante esse período se desenvolveram as condições sociais para a profissionalização intelectual e a constituição de um campo intelectual relativamente autônomo. Essa situação peculiar das camadas médias carregava de ambiguidade as suas posições ideológicas, fazendo com que oscilassem entre aliar-se às camadas populares e aderir à elite.

Assim, se nas obras dos intelectuais desse período encontramos um ensaio crítico da sociedade brasileira, expressão da autonomia relativa que sua visada gozava, em relação às suas condições de existência, eles eram levados à cumplicidade com os padrões vigentes, que garantiam o seu status privilegiado. E Lima Barreto se insere

18 GOLDMANN, Dialética e cultura, p. 73.

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nesse quadro social19.Resta, então, reforçar que os conceitos aqui sumariados são utilizados como um

horizonte para a exploração do pensamento do autor. As categorias consciência de classe ou consciência possível, para além das diferenças teóricas que existem na sua formulação básica, guardam uma ideia, que aqui importa, de que a inserção social sustenta e, portanto, ilumina a nossa compreensão das visões de mundo. Além disso, essas categorias desembocam na noção de consciência limite, que traz em si a ideia de progresso e de conservação. Se por um lado, aponta para o máximo de avanço a que um indivíduo pode chegar na sua visada, por outro, implica um limite, determinado pela sua inserção no mundo, além do qual não se pode ir. Essas noções são fundamentais para a compreensão do pensamento social de Lima Barreto.

Lima Barreto e os Limites Históricos da Consciência Educacional

Concebendo a literatura como uma forma de expressão e de intervenção na realidade, Lima Barreto tinha a pretensão de fazer uma leitura crítico-social e por essa, entre outras razões, é considerado um representante do movimento pré-modernista20.

Especialmente nos artigos O destino da literatura, Literatura militante e Literatura e política, do livro Impressões de leitura, podemos encontrar muitas referências ao papel que atribuía à literatura. Fazendo críticas à produção de Coelho Neto, o autor assim se posiciona:

As cogitações políticas, religiosas, sociais, morais, do seu século, ficaram-lhe inteiramente estranhas. Em tais anos, cujo máximo problema mental, problema que interessava tôdas as inteligências de quaisquer naturezas que fôssem, era uma reforma social e moral, o Senhor Neto não se deteve jamais em examinar esta trágica angústia do seu tempo, não deu para o estudo das soluções apresentadas um pouco do seu talento [...].21

Essa posição, afirmada e reiterada por sociólogos e historiadores da literatura22, faz dele uma importante fonte de estudos do início do século.

Retomando a questão já mencionada na introdução deste artigo, os teóricos e educadores profissionais brasileiros se constituíram como tal a partir das décadas de 20 e de 30. Os escolanovistas, como ficaram conhecidos esses primeiros especialistas, 19 Especificamente sobre os limites da intelectualidade desse período, consultar MICELI, S. Intelectuais

à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da República das Letras: sociologia da vida intelectual brasileira (1870-1930). São Paulo: Grijaldo, EDUSP, 1973.

20 Conferir BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1974.21 BARRETO, L. Literatura e política. In: BARRETO, L. Impressões de leitura. São Paulo: Brasiliense,

1956, p. 75.22 Uma delas é a seguinte: “Para Lima Barreto a literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis.

Antes de mais nada, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e as idéias do escritor, da maneira mais clara e simples possível. Devia também dar destaque aos problemas humanos em geral e aos sociais em particular, focalizando os que são fermento de drama, desajustamento, incompreensão. Isto, porque no seu modo de entender ela tem a missão de contribuir para libertar o homem e melhorar a sua convivência”. CÂNDIDO, A. Os olhos, a barca e o espelho. In: __________. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p. 39.

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reivindicavam que a educação fosse discutida e planejada exclusivamente por profissionais da área23.

Num período em que as relações capitalistas no país avançavam, rápida e eficientemente, em direção a uma modernização conservadora, claramente alinhada ao estágio imperialista dos países hegemônicos, a educação tomava uma importância significativa nas preocupações nacionais. A bandeira da universalização da escola foi empunhada por diferentes segmentos da sociedade, desde os mais reconhecidamente conservadores até os mais progressistas que, por motivos diversos, acabaram endossando a ideologia liberal da escola como a instituição responsável pela redenção da sociedade. No âmbito político-institucional, esses intensos debates em torno da escola resultaram, na prática, em um número expressivo de reformas educacionais que visavam, em última instância, à modernização da educação de elite.

Era nesse ambiente que Lima Barreto estava inserido. Atento às mudanças que se operavam na sociedade brasileira, principalmente urbana, o autor questionava e censurava veementemente os resultados sociais desse processo de modernização. Através do estudo de suas obras, é possível identificar um libelo contra a dependência ao capital europeu e americano, a brutal concentração de renda das elites brasileiras e o aumento da miséria da população rural e urbana.

Por outro lado, as suas críticas ao modelo econômico-social não ultrapassavam o limite da ordem capitalista. Não era o sistema capitalista o alvo de seus ataques e sim a forma que esse sistema assumiu no Brasil.

O agravamento das condições de vida e de trabalho dos operários, a influência da Revolução Russa de 1917 e as demais tentativas revolucionárias na Europa marcaram a ascensão da organização do movimento operário no Brasil no período entre 1917 e 1920. Nessa conjuntura, o trabalho de agitação e propaganda desenvolvido pelas lideranças anarquistas e a atividade concreta do anarcossindicalismo na organização de sindicatos e ligas tiveram um peso importante.

No entanto, vivendo num período conturbado em que as questões sociais estavam colocadas e em que o operariado tentava se organizar, não há registro de que Lima Barreto tenha tido qualquer militância em movimentos da época, a não ser a sua contribuição com artigos em jornais libertários, dentre os diversos com os quais colaborou. Mesmo quando propõe uma “revolução social”, aos “moldes” da Revolução Russa, as medidas por ele sugeridas têm um caráter reformista e não revolucionário.

Essa espécie de consciência o confirma como um representante das camadas médias na sua expressão mais progressista, ou mais precisamente, como um típico representante da intelectualidade do início do século XX.

Os literatos, em particular, não se opunham radicalmente à ordem instituída e ao poder constituído, já que dependiam das instituições vigentes que os formavam e os projetavam socialmente como intelectuais, como a escola e a imprensa.

Lima Barreto, em suas denúncias contra a imprensa, frequentes em toda a sua obra, parecia visar o caráter empresarial que crescentemente assumia a atividade jornalística, comprometida com o modo como o capitalismo avançava entre nós.

No entanto, se criticou de forma ácida a grande imprensa da época, tomando

23 Ver: NAGLE, Educação e sociedade...

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o Correio da Manhã, jornal de muito prestígio, como caso típico da corrupção intelectual e submissão ao poder (no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha), por outro lado, exerceu intensamente o jornalismo profissional24, inclusive como colaborador do próprio Correio da Manhã25.

No que se refere especificamente à educação superior, objeto deste trabalho, é possível perceber, pela análise de sua produção, as contradições que marcam as suas críticas e reflexões. O tom da crítica era indiscutivelmente de denúncia; um forte teor de denúncia na avaliação do sistema educacional da época, mas que resulta num esboço de propostas genéricas e superficiais de reformulação desse sistema. Enquanto socialistas e anarquistas procuravam formular e viabilizar um projeto de educação popular, Lima Barreto propunha a extinção do Colégio Pedro II e dos colégios militares como uma solução para a economia de gastos com a educação de elite.

Se por um lado, o autor apresenta uma crítica contundente em relação ao ensino superior, denunciando a ideologia de valorização do “doutor” presente na sociedade, a análise de suas obras acaba por revelar a grande importância que o próprio Lima Barreto atribui à educação superior. As suas críticas se concentram na má qualidade e superficialidade da educação escolar. Assim como ocorreria posteriormente com os escolanovistas, mais do que o caráter elitista do sistema escolar brasileiro, incomoda a péssima qualidade dessa educação de elite.

Expressão dessas limitações, ou desse ranço conservador do autor, e peça exemplar na caracterização da sua consciência crítica da educação de seu tempo, é o trecho que se segue a propósito das “normalistas”.

Há dias fui ao Largo do Estácio que conheci com a velha Igreja do “Espírito Santo”, quando era menino e freqüentava o Colégio Paula Freitas. Desde muito que isso não fazia, de modo que o aspecto da praça me surpreendeu.Não esperava vê-lo assim tão florido de damas e moças, a tagarelarem, a consultarem livros e cadernos, numa atitude de sábios em seu gabinete de trabalho.Estranhei e não compreendi aquêle aspecto do velho largo transformado em pátio de universidade. Que diabo queria dizer aquilo? fiz de mim para mim.Aproximei-me sorrateiramente de um grupo de encantadoras meninas e pus-me a ouvir-lhes a conversa. Uma dizia:– Diva, não foi Pedro Álvares Cabral quem descobriu o Brasil. Você está enganada.– Então, quem foi?– Foi Vicente Yáñez Pinzon.– Quem foi que te disse isto?– É o doutor Felisberto quem o afirma. Não é assim Nair?– É verdade; mas diz também que foi Diogo de Leppe.

24 Não só recebendo por artigo como chegando a ter salário fixo em alguns deles.25 Entre 1905 e 1906. Conferir SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1966, p. 357.

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– Afinal, acode uma quarta môça do grupo, ninguém sabe ao certo quem foi o descobridor do Brasil.Tão proveitosa conversa não me interessava e fui ouvir outra em grupo mais distante.Tratava-se aí da medição do meridiano terrestre. Elas contavam a história dessa medição desde os gregos até Delambre. Causou-me pasmo que aquelas môças soubessem geodésia, quando me parecia ignorarem o teorema de Hiparco. Então, perguntei humildemente a um fiscal de bonde:– Quem são essas môças?– São alunas da Escola Normal. (O “Estácio” atual, p. 158-159) MA – 22 jul. 1922.

Contudo, é impossível não admirar e reverenciar um pensador que pôs a descoberto tantas mazelas de nossa sociedade e da escola por ela produzida.

A acuidade e o brilhantismo do seu enfoque do bacharelismo, do funcionalismo público, da incompetência e da corrupção que impregnava as nossas instituições o colocam, indiscutivelmente, na vanguarda da crítica social produzida em sua época.

Os seus limites, expressos na contradição entre a negação das condições dadas e a sua afirmação explícita ou implícita nos referenciais teóricos e valorativos que embasem as suas reflexões, desvelam, com particular clareza, o caráter histórico do pensamento e da crítica social e educacional.

O diagnóstico que elabora da formação escolar de sua época antecipa as questões básicas que os “teóricos da educação” levantariam, com a autoridade de “especialistas” no célebre “Manifesto dos Pioneiros da educação Nova: ao povo e ao governo”, publicado em 1932. Também nesse documento, assim como na produção teórica dos seus signatários, muitos dos quais exerceram atividades concretas de intervenção na realidade educacional da época, as mesmas limitações se revelam e gradualmente se intensificam com a crise econômica e política dos anos 20 e 30.

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RESUMO

Este artigo procura ampliar a compreensão da crítica educacional do início do século XX, tomando como objeto de exame o pensamento social de Lima Barreto. Até a emergência dos “profissionais da educação”, o pensamento educacional era elaborado por publicistas e literatos, num fértil debate, cujos resultados apareciam na produção jornalística e literária. Por meio do exame de artigos, crônicas, romances e contos de Lima Barreto, é possível apreender uma determinada concepção educacional, subjacente às críticas e à caracterização ficcional da educação escolar, assim como um interessante esboço do perfil cultural da sociedade brasileira do período. Os limites nos quais esbarra a leitura crítica do autor, expressos na contradição entre a negação das condições dadas e a sua afirmação, explícita ou implícita, nos seus referenciais teóricos e valorativos, revelam o caráter histórico do pensamento e da crítica social e educacional.

Palavras Chave: Brasil; Educação; Ensino Superior; Educação na Literatura.

ABSTRACT

This study aims at enhancing the understanding of the educational criticism in the beginning of the twentieth century, focusing on the ideas of Lima Barreto. Before the emergence of the "educational professionals", educational thought was developed by publicists and writers involved in a fertile debate, the results of which became visible in literary and journalistic production. Through the analysis of articles, short texts published in the press, novels and short stories written by Lima Barreto, it’s possible to gather a specific concept of education, underlying his criticism and fictional characterization of school education, as well as an interesting sketch of the cultural profile of Brazilian society at the time. Either explicitly or implicitly, in their evaluative and theoretical references, the limits of the critical readings of the author, which are expressed in the contradiction between negation of the given conditions and their affirmation, unveil the historical aspects of social and educational thinking and criticism.

Keywords: Brazil; Education; High Education; Education in Literature.

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EDUCAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO EM MINAS GERAIS:O LEGISLATIVO E O EXECUTIVO COMO

PRODUTORES DA REPRESENTAÇÃO DOS TRABALHADORES1

Irlen Antônio Gonçalves2

Vera Lúcia Nogueira3

A íntima relação entre as propostas educativas e de instrução com as propostas de constituição de uma nação civilizada, a necessidade de educar e instruir o povo para a garantia da ordem social e a formação técnica, meio para incorporação do povo à nação, são questões que perpassaram os discursos de intelectuais, políticos e legisladores que estiveram imbuídos do pensar a educação republicana.

É fato que nos tempos iniciais da fundação da República as novas demandas, postas pelas mudanças advindas da necessidade de integração do povo à nova ordem republicana e à alocação do trabalhador livre ao mercado de trabalho, evidenciaram a necessidade de reinvenção da escola, como imperativo de atendimento ao projeto de modernização da sociedade. Primeiro, como forma de superação do atraso que a escola vinha representando, especialmente, pelas suas manifestações de precariedade; segundo, pelo que poderia representar como alternativa de um projeto de sociedade civilizada, republicana, portanto, que atendesse aos novos reclames de controle e homogeneização social.

Produzir uma nova escola mediante o desafio de produzir uma nova forma de organização da sociedade, do Estado, foi o esforço de gestores e de legisladores que ocuparam o lugar da produção dos imperativos de controle da vida da população mineira. Tal desafio foi analisado nas Mensagens que os presidentes do Estado enviavam anualmente ao Congresso Legislativo e nos Anais da Câmara dos Deputados e do Senado. Nesses documentos foi possível encontrar e recuperar a explicitação da trama que esteve implicada no processo de produção da escola, de produção da República, principalmente pela revelação dos lugares de produção que

1 Este artigo é produto das seguintes pesquisas: “A escolarização do trabalhador mineiro: as políticas públicas para a educação profissional (1889-1930)” e “A escolarização das atividades manuais e a formação do trabalhador mineiro sob o ponto de vista do léxico republicano (1892-1920)”, coordenadas pelo prof. Dr. Irlen Antônio Gonçalves, que vem sendo desenvolvida no Núcleo de Estudos sobre a Memória, História e Espaços – NEMHE do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. As pesquisas contam com o apoio financeiro da FAPEMIG e do CNPq, respectivamente; e a pesquisa “As representações sobre o trabalhador mineiro sob o ponto de vista do léxico republicano (1892-1924)”, coordenada pela profª Dra. Vera Lúcia Nogueira, desenvolvida na Universidade FUMEC. O artigo é uma ampliação de uma comunicação aprovada para o VIII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, a realizar-se em São Luís – MA, em agosto de 2010.

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Docente do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG. E-Mail: <[email protected]>.

3 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Docente da Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura - FUMEC. E-Mail: <[email protected]>.

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representavam. Nesses lugares tramaram-se os acordos, revelaram-se as discórdias, os ideais, entre outras coisas.

Nas Mensagens dos presidentes tem-se a revelação do lugar do executivo, no qual eles, ao enviarem as suas mensagens ao Congresso Legislativo, o faziam atendendo a duas perspectivas, entre outras. Uma informativa, para prestar contas das ações do governo no transcurso do ano administrativo que se findou, e outra político-administrativa, para mostrar aos legisladores as demandas postas pelo governo, uma vez que era da competência do Congresso a votação dos projetos encaminhados pelo Executivo. Por meio dos Anais, adentramos no Congresso Legislativo e pudemos vê-lo como o lugar da produção desse imperativo de controle. No Congresso é que se davam os debates e embates de tramitação e de produção da legislação. Isso porque, segundo a Constituição do Estado, era da competência do Congresso fazer as leis, interpretá-las e suspendê-las. Uma produção legislativa que contemplava vários âmbitos da vida social, entre os quais o educacional, conforme rezava a Constituição.

O lugar, portanto, a que estamos nos referindo é o daquele que, de um lado, exercia o poder de executar as ações, de criar, reformar, executar e, de outro, daquele que precisava negociar para ver os seus projetos aprovados. Não se pode deixar de realçar que foi no executivo que as leis ganharam o poder de serem colocadas em circulação, uma vez que isso somente poderia ocorrer com a sanção do presidente do Estado.

Esses lugares, como os concebe Michel de Certeau, eram susceptíveis de serem circunscritos “como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos e ameaças”. Lugares de produção das estratégias que visavam impor o querer e o fazer. Circunscrevem-se num próprio, que “é a vitória sobre o tempo, o lugar do querer e do poder”, conforme salientou4. A estratégia, para o autor, pode ser entendida como o “calculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ‘ambiente’”5.

Como postulante de um lugar próprio, um próprio que “é uma vitória sobre o tempo”, a estratégia “permite capitalizar vantagens conquistadas, preparar expansões futuras e obter assim uma independência em relação à variabilidade das circunstâncias”6. Do mesmo modo, também permite “um domínio dos lugares pela vista”, isto é, “uma prática panóptica a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças estranhas em objetos que se podem observar e medir, controlar, portanto, e ‘incluir’ na sua visão”. A estratégia postula, ainda, “um poder que é a preliminar” de um saber, principalmente por permitir e comandar as suas características, pois é nele (no poder) que o saber se produz7.

Neste trabalho, o Executivo e o Congresso Legislativo, são entendidos como lugares de produção da escola, promotores de uma instrução que visava elevar a criança à condição de cidadã, conforme defendido pelo Senador Joaquim Cândido

4 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 99.5 CERTEAU, A invenção do cotidiano, p. 46.6 CERTEAU, A invenção do cotidiano, p. 99.7 CERTEAU, A invenção do cotidiano, p. 100.

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da Costa Senna, quando afirma ser essa a função da instrução primária: “a instrução, porém, sr Presidente, que chamamos primária, deve e deve sempre correr por conta do Estado, porque é essa instrução que abre aos meninos as portas de seus direito, deveres e interesses; é esta instrução que é a destinada a fazer do menino um cidadão”8. Segundo ele, a escola deveria ensinar a leitura, a escrita e a contagem, além das noções de moral, de ciências naturais, de física, de química, de geografia e de história. Irá afirmar que se essas noções fossem aprendidas pelas crianças, já seria um grande progresso no ensino primário a serviço da formação da cidadania. Dessa forma, para ele o Estado seria

[...] obrigado a dar às crianças um mínimo de instrução, um mínimo que lhe é indispensável à compreensão de seus direitos, de seus deveres e de seus próprios interesses. Esta instrução nada tem de especial, nada tem de profissional, ela não tem por fim criar empregados públicos, não tem por fim criar funcionários, nem classes, nem hierarquias; tem por fim, única e exclusivamente, formar o cidadão.9

Em Minas Gerais, assim como em outras unidades da federação brasileira, não era raro encontrar, nesses discursos, a ideia de que a educação era instrumento transformador da sociedade. Essa assertiva se confirma nos argumentos do Senador Mello Franco10, quando do encaminhamento do projeto de lei no Senado mineiro, em 1892, que propunha reformar a instrução pública em Minas Gerais:

Costuma-se dizer que a instrução pública é o fator mais direto e mais poderoso na obra progressiva da civilização; mas convém atender-se que a instrução é um simples instrumento de que se pode fazer bom ou mau uso e não convém isolá-la no meio circundante em que o povo vive; mas dá-la de acordo com o estado atual do desenvolvimento social, porque não é possível assim, de chofre, alterar o estado de civilização.11

A inserção do ensino público primário na pauta das políticas públicas do Estado mineiro pode ser situada ao final do primeiro quatriênio do governo, tendo como marco dessa inclusão as discussões e a proposição do projeto que culminou na primeira reforma republicana, implantada pela Lei n. 41, de 3 de agosto de 1892, dando nova organização à instrução pública do Estado. Durante o Governo Provisório, as demandas mais prementes diziam respeito à própria organização do aparato político-administrativo do Estado. Essa organização significou, de acordo com as palavras do presidente Afonso Augusto Moreira Penna em mensagem dirigida ao Congresso Mineiro, “encaminhar os serviços e adaptar as molas da administração ao novo organismo político. Dessa adaptação, dependeria o retorno à normalidade política no interior das cidades mineiras”, após a mudança de

8 SENNA, Joaquim Cândido da Costa. In: CONGRESSO Mineiro. Anais do Senado (1891-1892). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, s.d.

9 SENNA, Anais do Senado...10 CONGRESSO Mineiro. Anais do Senado mineiro da primeira legislatura, 1892.11 FRANCO, Virgílio M. de Mello. In: CONGRESSO Mineiro. Anais do Senado (1891-1892). Belo

Horizonte: Imprensa Oficial, s.d.

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regime12. “Normalidade” vinculada naquele momento à definição e à construção de todo um aparato legal que estruturasse e sustentasse a nova ordem, estabelecida com a Proclamação da República, em 188913.

A antiga Província mineira passou a se configurar como um dos mais importantes Estados da Federação, em função da sua forte influência política e de suas atividades econômicas. Aliadas a essas características estavam, ainda, a vastidão de seu território e as múltiplas configurações que cada localidade possuía. Tornara-se, então, imperativo para o novo Estado construir uma nova organização espacial, com base em cartas geográficas e políticas14. Era necessário, portanto, conhecer o espaço social, identificar suas forças políticas e principais necessidades, e dar-lhe nova feição. Nesse sentido, tornou-se mister a produção de um conjunto de dispositivos que promovesse a reestruturação da vida social e política de Minas, dentre os quais a Lei estadual n. 2, de 14 de setembro de 1891, que determinou os distritos como a nova base de organização administrativa do Estado. A exigência de se promover a instrução pública primária figurava dentre as condições de criação dos distritos, ao lado da delimitação do número mínimo de mil habitantes; da renda líquida municipal anual de um conto de réis; da criação de Conselho Distrital, além de outras.

No âmbito estadual, uma das primeiras iniciativas do Presidente Afonso Penna havia sido a regulamentação da lei que criou as três Secretarias do Estado: do Interior, da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e a Secretaria das Finanças15. A educação constava das atribuições da Secretaria do Estado do Interior, à qual cabia cuidar dos negócios “referentes à justiça, segurança, estatística, saúde pública, magistratura, instrução pública, eleições e leis, bem como das relações do Estado de Minas Gerais com os governos dos outros estados e com o Governo Federal”16. Como se pode ver, a educação figurava como parte da própria estruturação e construção do novo regime, sendo considerada, inclusive nos municípios, como uma das condições para delimitação geopolítica das regiões.

Assim, após a “reorganização da casa”, restava então pensar na reorganização de um dos mais importantes ramos da administração pública, como bem recorda o Secretário de Estado dos Negócios do Interior, Dr. Manoel Thomaz de Carvalho Britto, anos depois: “Já no período constitucional, organizado o nosso Estado com a adoção de seu estatuto político, foi o momento que o legislador mineiro achou

12 PENNA, Afonso Augusto Moreira. Mensagem dirigida ao presidente do Estado de Minas Gerais em sua terceira sessão ordinária da 1ª legislatura. Ouro Preto: Imprensa do Estado de Minas Geraes, 1893. Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/489/index.html>. Acesso em: 02 jan. 2008.

13 Esse aparato, no âmbito nacional era composto pela Constituição da República, de 24 de fevereiro; no âmbito estadual, pela Constituição do estado de Minas Gerais, de 15 de junho; no âmbito municipal, pela Lei Mineira de número 2, de 14 de setembro de 1891.

14 PENNA, Mensagem..., p. 5.15 Trata-se da Lei n. 6, de 16 de outubro de 1891, cuja regulamentação se deu por meio dos decretos

n. 587, 588 e 589.16 Guia de Fundos e Coleções do Arquivo Público Mineiro. Informações disponíveis em: <http://

www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fundos_colecoes/brtacervo.php?cid=35 - 17k>. Acesso em: 03 mar. 2008.

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próprio para organizar a instrução pública [...] em 1892”17. Pode-se então afirmar que o primeiro triênio da República fora totalmente dedicado à organização político-administrativa do Estado e que, a partir de 1891 começou-se a discutir a política educacional republicana.

Assim, 1891 foi um ano de profundas e acaloradas discussões no Congresso Mineiro sobre o ensino primário que se tornara objeto efetivo da preocupação da elite política e intelectual de Minas incorporando-se definitivamente à pauta das políticas públicas republicanas. Assim, compreendida como um importante “ramo da administração pública” não poderia ficar fora do processo de construção da ordem republicana, conforme afirmação de Delfim Moreira18. A exigência de repensá-la se devia, principalmente, por que se encontrava impregnada do arcaísmo e dos vícios da velha ordem, trazendo no sistema de ensino vigente as marcas de uma configuração considerada anacrônica, inconcebível para as novas concepções do momento. Era preciso mudar a educação e curar a instrução pública, conforme avaliou o deputado Gomes Freire de Andrade:

[...] no tempo do Império, que foi também o tempo das lições de todo o gênero, tratava-se, é verdade, da instrução, mas de que modo? Programas aparatosos, suntuosos museus, magníficas coleções, um pessoal docente numerosíssimo em nossas faculdades de medicina e de direito e a fama do ex-imperador rebrilhava no estrangeiro, como o príncipe sábio protetor das letras; mas e o povo, este conservava-se nas trevas da mais completa ignorância!

� �Era preciso, nas palavras do deputado Teixeira Costa, empreender uma reforma

radical na instrução pública do Estado de forma a “tirá-la do estado desgraçado em que se achava”

� �. Dessa forma, a ideia era a de que a primeira reforma

inaugurasse “uma nova era para o estado, que precisava deveras da instrução”. Pois era inadmissível cogitar, conforme afirmou o deputado Teixeira Costa, “entrar num sistema novo como o atual, em que se dá o direito de voto só a quem sabe ler e escrever, sem que haja a instrução, e esta regular e compatível com as nossas circunstâncias”. Para isso, era necessário, pois, que todos se unissem em torno “de um só pensamento e dessa união nascer [ia] uma reforma digna do Estado e que fizesse a sua felicidade”21. Esse empenho foi reconhecido posteriormente pelo Secretário do Interior, Manoel Thomaz de Carvalho Britto, ao qual assim se referiu:

Proclamada a República Federativa, o governo provisório julgou

17 BRITTO, Manoel Tomaz de Carvalho. Relatórios apresentados ao Exmo. Sr. Dr. João Pinheiro da Silva, Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Dr. Manoel Thomaz de Carvalho Britto, Secretário de Estado dos Negócios do Interior. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1908, p. 18.

18 RIBEIRO, Delfim Moreira da Costa. Relatório apresentado ao sr. dr. Presidente do Estado de Minas Gerais pelo Secretário de Estado de Negócios do Interior, dr. Delfim Moreira da Costa Ribeiro. Volume 1. Filme 070, G-6, Obra Rara. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1904, p. 14.

19 ANDRADE, Gomes Freire de (Barão de Itabira). In: CONGRESSO Mineiro. Anais da Câmara dos Deputados (1891-1892). Belo Horizonte: Imprensa Oficial, s.d., p. 384.

20 COSTA, Manoel Teixeira da. In: CONGRESSO Mineiro. Anais da Câmara dos Deputados (1889-1891). Belo Horizonte: Imprensa Oficial; Arquivo Público Mineiro, s.d., p. 364.

21 COSTA, Anais da Câmara..., p. 364-365.

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coisa urgente uma vasta e profunda reforma do ensino em geral, acusado então do maior descrédito possível. Teve, porém, o ministro reformador a idéia de imprimir uma transformação de métodos na direção de nossos estudos, dando-lhes feição inteiramente nova.22

Uma renovação que seria possível a partir de uma vasta e profunda reforma que alcançasse a essência do ensino pela transformação de seus métodos. Dos métodos, afirmou o deputado Gomes Freire de Andrade, o mais novo, “de conformidade com a pedagogia moderna”, que teria como função primordial a própria transformação do povo mineiro e a sua incorporação à República

� �. Dessa

forma, procede a indagação: como construir um novo homem por meio de um modelo de ensino que o prendia à condição de menoridade, enquanto o momento o reclamava como cidadão e como trabalhador? Como consolidar uma nova ordem sem promover, também, uma transformação das instituições públicas? A educação seria cooptada, portanto, como um dos mecanismos de controle social capaz de promover a construção da nova ordem - a ordem republicana – requerida como essencial à superação da ordem monárquica. Não seria concebível, por conseguinte, mantê-la da mesma forma em que estava, urgia convertê-la em uma “nova forma”. E, não era para o passado que os deputados estavam olhando, pois, como disse o deputado Gomes Freire:

[...] se nós já nos demos tão mal com o passado, como havemos de ir buscar nele ensinamentos no passado? Vamos ver se inovando conseguimos alguma coisa em benefício do povo; porque afinal, si assim não procedermos, isto não se poderá chamar república.

� �Reformar e inovar eram as palavras de ordem, “mas devemos fazê-lo com

critério e prudência, para colhermos das reformas resultados positivos”, disse o deputado Severino Resende25. A política que se assume para a educação, a partir de então, se concretizaria por meio de reformas do ensino.

Em 08 de agosto de 1899, o deputado Ribeiro de Oliveira, membro da Comissão de Instrução Pública da Câmara, apresentou o Projeto de n. 25, com o objetivo de modificar aspectos relacionados ao ensino primário e à escola normal contido na Lei n. 41, de 1892. Em síntese, propunha a mesma medida para ambos: reduzir/ suprimir o número de escolas e simplificar o programa de ensino considerado por alguns legisladores como “espetaculoso”. Nesse sentido, durante as discussões da reforma, os deputados reportaram à Lei n. 41, avaliando e criticando-a. A primeira crítica recaiu sobre a sua incompatibilidade com as condições sociais do Estado, conforme declarou o deputado Vasco Azevedo:

[...] não contesto que seja uma lei bonita nas suas disposições, dando a entender a quem não conhecer as condições especiais do povo mineiro que nós disputamos a palma aos países mais civilizados e de

22 BRITTO, Relatórios..., p. 18.23 ANDRADE, Anais da Câmara..., p. 423.24 ANDRADE, Anais da Câmara..., p. 424.25 RESENDE, Severino de. In: CONGRESSO Mineiro. Anais da Câmara dos Deputados (1891). Belo

Horizonte: Imprensa Oficial; Arquivo Público Mineiro, s.d., p. 421.

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maior aperfeiçoamento na organização da instrução primária.26

Além disso, o deputado a considerava uma lei sem utilidade para o ensino mineiro. Na defesa da lei, o deputado João Pio de Sousa Reis contestou as afirmações do colega: “o que eu posso afirmar é que V. Ex.a não me mostra um documento oficial que critique seriamente a Lei n. 41. [...] o Sr. Presidente do Estado não se referiu à Lei n. 41 porque foi ele um dos grandes colaboradores dessa mesma lei, referiu-se a questões de minudências”27.

Retomando a palavra, o deputado Vasco Azevedo refutou o colega: “questões de minudências são as de que nos ocupamos. Foi condenada virtualmente a Lei n. 41 e podem dar testemunho das inconveniências dessa lei quantos tenham conhecimento prático de sua execução”28. Indignado, João Pio de Sousa Reis, replicou: “V. Ex.a indique qual o artigo da Lei n. 41 que incide nesse grau”29.

O deputado Vasco Azevedo elencou uma série de fatores que considerava problemáticos, dentre os quais: a incompetência dos professores em cumprir o programa; a “multiplicidade e espetaculosidade de matérias”; a criação de professores provisórios; a eleição dos inspetores, que acabou não ocorrendo em várias localidades. Argumentou ainda que os gastos com a instrução primária foram altíssimos e os resultados ínfimos se considerada a cobertura escolar do período30.

Discutido globalmente, em três turnos regimentais, na Câmara dos Deputados, durante todo o mês de agosto, o Projeto de Lei n. 25 foi debatido, contestado, modificado e aprovado31. Independentemente da legislação em vigor, as novas medidas solicitadas ao legislativo eram justificadas em virtude da crise do Estado e consequente necessidade de se diminuírem as despesas públicas, conforme Mensagem presidencial. Argumento que não conseguia, entretanto, convencer a todos os deputados, como Luiz Cassiano Martins Pereira que, assim, se dirigiu aos presentes: “[...] o assunto é de tal magnitude e importância, que eu entendo que por mais precárias que sejam as circunstâncias do Estado, não autorizam a diminuição nem cortes no serviço de instrução do Estado”32. Outros deputados lhe fizeram coro, como o cônego João Pio de Sousa Reis, que destacou: “a Comissão deve tratar de reformar a instrução pública, mas não deve tratar de fazer economias nela”33.

Colocado em discussão, no primeiro turno regimental o Projeto foi apreciado quanto à utilidade e constitucionalidade e, nesse aspecto, fora bastante questionado, especialmente no que diz respeito aos artigos que reduziam o número de escolas

26 AZEVEDO, Vasco. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados - 1899. Cidade de Minas: Imprensa Oficial; Arquivo Público Mineiro, 1899, p. 347.

27 SOUSA REIS, João Pio de. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1889, p. 347.

28 AZEVEDO, Annaes da Câmara..., p. 347.29 SOUSA REIS, Annaes..., p. 347.30 AZEVEDO, Annaes da Câmara..., p. 347.31 O projeto de Lei aludido foi publicado, após aprovação pelo Congresso Mineiro e sansão do

presidente do Estado, sob o número 281, em 1899.32 PEREIRA, Luiz Cassiano Martins. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados.

Belo Horizonte: Imprensa Oficial. Arquivo Público Mineiro, 1899, p. 347.33 SOUSA REIS, Annaes..., p. 347.

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e suprimiam as escolas rurais. Para o deputado Luiz Cassiano Martins Pereira, essa disposição feria a Constituição Mineira que dizia, terminantemente, que o ensino primário seria gratuito e que competiria “privativamente ao Congresso o desenvolvimento da educação pública no Estado”. Dessa forma, destacou que, se o legislador pensou na difusão do ensino a partir da gratuidade do ensino, parecia-lhe inadmissível que o Projeto não contemplasse esse preceito integralmente. Nesse sentido, também o deputado Olímpio Júlio de Oliveira Mourão destacou que o número de distritos de cada município já havia sido limitado a 14 (de acordo com Lei anterior), “de sorte que, povoações muito importantes, superiores até distritos, não poderão ser elevadas a essa categoria em conseqüência do preceito legal”34. E, assim, a limitação do número de distritos também representava a redução no número de escolas e, com isso, o projeto afetaria também as bases do regime democrático, por implicar diretamente no sufrágio, conforme explicitou, destacando outra grande incoerência da lei:

[...] o que a instituição republicana tem de mais claro é o sufrágio universal; e, efetivamente, seja ou não isto uma simples ficção do direito público constitucional, o que é certo é que, adotamos o sufrágio universal como base do regime democrático; por conseguinte, si o Estado exige do cidadão o cumprimento de deveres de ordem cívica e de ordem política, não é lícito que o mesmo Estado lhes retire os meios únicos conducentes ao cumprimento desses deveres. Com o desaparecimento das escolas nesses povoados, é fora de dúvida que a sua população, ficando privada do ensino, permanecerá no analfabetismo, que trará bem grandes inconvenientes para o progresso do nosso Estado. 35

Em contrapartida, o deputado Jayme Gomes de Sousa Lemos argumentou que as escolas rurais não seriam extintas, pois ficariam a cargo das municipalidades, no que foi contestado pelo deputado Luiz Cassiano, que ressaltou:

As municipalidades não poderão acarretar com esse ônus; e, depois desaparecerá a unidade do ensino primário. Como disse, as populações rurais, contribuem para os cofres públicos indiretamente, como até aqui; e, daqui a pouco, terão de contribuir diretamente, por isso que, dentro em breve, ficarão sujeitas a pagar imposto sobre o território que possuem, e não é justo, não é lícito, neste momento, que se lhes retire o único benefício de que imediatamente gozam (apoiados).36

A preocupação dos deputados era bastante pertinente, principalmente se considerarmos que a população mineira era basicamente rural e que vivia do trabalho agrícola, logo, se encontrava assentada nas zonas mais distantes das sedes. O deputado Luiz Cassiano Martins Pereira destacou a função social ocupada pelo ensino primário, associando a este a entrada na vida social. O não acesso acarretaria 34 MOURÃO, Olímpio Júlio de Oliveira. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados.

Belo Horizonte: Imprensa Oficial. Arquivo Público Mineiro, 1899, p. 383.35 MOURÃO, Annaes da Câmara..., p. 383.36 PEREIRA, Annaes da Câmara..., p. 381.

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no aumento do número dos incapazes, incrementando a estatística criminal; enfim contribuindo para que uma grande parte da sociedade ficasse segregada da comunhão social, implicando na ordem e no progresso da nação. Nesse sentido, a vinculação entre analfabetismo e criminalidade, presente nos debates do Congresso Mineiro, remete à influência das ideias europeias que viam no controle moral das camadas populares, a possibilidade do próprio exercício do poder, reforçando a ideia da educação como prevenção ou correção das virtualidades dos sujeitos, o que colocaria em risco a tão cara ordem social37.

A despeito dos argumentos apresentados, a tese da inconstitucionalidade do Projeto não era consensual entre os legisladores. O deputado Vasco Azevedo, por exemplo, “julgando-o perfeitamente constitucional e estando convencido da sua utilidade a fim de melhorar a organização do ensino público primário em Minas, aparelhando-o a prestar reais resultados e incontestáveis vantagens”, declarou o voto; seguido de muitos brados de “muito bem”38. Mesmo os deputados que tentaram impugná-lo, por inconstitucionalidade e utilidade, votaram-no em 1ª discussão sob a possibilidade de apresentar-lhe emendas em segunda discussão. Esse foi o caso do deputado João Velloso que, mesmo contrariado com a medida que suprimia as escolas rurais, “justamente aquelas que contribuem para difundir a instrução por entre as massas populares”, declarou seu voto, “pois [...] é intuitivo que o determinismo deste projeto é a escassez de nossos recursos, que não comportam elevação de despesas; portanto, não intento propor a adoção de medidas que demandem aumento de despesas”39.

Ao longo da segunda discussão do Projeto foram apresentadas várias emendas ao Projeto, dentre as quais aquelas que poderiam atenuar os efeitos das medidas restritivas, relativas ao ensino primário. Nesse sentido, o deputado Pedro Celestino Rodrigues Chaves afirmou:

[...] eu entendo que a medida de ocasião para melhorar-se a instrução pública não é por certo a supressão das escolas. A experiência atesta que a instituição das escolas rurais é o único meio de dispensar-se a instrução elementar à pobreza que vive afastada do centro, por sua condição especial imposta pela necessidade de ganhar a vida. 40

O relator da Comissão, Raposo de Almeida, tentou mostrar aos legisladores que existiam outros espaços produtivos que também contribuíam para a fortuna pública e que nem assim foram lembrados:

Por que razão os nobres deputados não se lembram desses grandes, enormes estabelecimentos de agricultura onde a fortuna pública e particular está representada por centenas de contos de réis,

37 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Tradução de Raquel Ramalhete. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

38 AZEVEDO, Annaes da Câmara..., p. 383.39 VELLOSO, João. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Assembléia Legislativa Provincial de Minas

Gerais. Ouro Preto: Imprensa Oficial, 1889, p. 426.40 CHAVES, Pedro Celestino Rodrigues. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos

Deputados. Cidade de Minas: Imprensa Oficial, 1899, p. 423.

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(apoiados) justamente destes escravos do trabalho, destes contínuos forçados do imposto que se chama o lavrador do café, por que razão os nobres deputados não se lembram das fábricas de mineração, onde se acham estes homens empreendedores que enterram nas misteriosas entranhas da terra seus capitães sem a certeza dos bens que pretendem tirar? 41

Na defesa da criação de escolas nas colônias, como previsto no Projeto, e considerada também por alguns deputados como uma exceção, o relator argumentou que as “considerações são de valor superior” e que, ao propô-la estaria o legislador pensando no futuro, pois:

[...] as colônias agrícolas do Estado são povoadas por estrangeiros que o governo manda vir para se colocarem dentro das nossas terras afim de aumentar a nossa população e a nossa produção, e que, por sua vez, representa um capital que é introduzido no país, e para que não se cria uma raça estranha a nossa dentro da nossa nacionalidade, estabelece-se esta exceção, com fim de realizar assimilação pela língua, um dos meios mais eficazes. 42

Essa ponderação foi contestada pelo deputado João Pio de Sousa Reis que considerou o argumento falso alegando que, sobretudo, não poderiam “abandonar os nossos patrícios para dar instrução aos estrangeiros”43.

Animando os ânimos, a questão da criação de escolas nas colônias, parecia não agradar a todos, como se pode ver no diálogo seguinte:

O sr. Raposo de Almeida: A criação de escola na colônia agrícola obedece a essa consideração de valor muito elevado; ao nacional não lhe faltam elementos de educação; ficam mantidas as escolas das cidades, vilas e distritos.O sr. João Pio:- Perdão; isto é um sofisma.O sr. Raposo de Almeida: - O Estado, mandando vir o estrangeiro e localizando-o fora dos centros populosos, deve procurar dar-lhe instrução.O sr. João Pio: O mesmo acontece ao nacional.O sr. Raposo de Almeida: - O nacional tem completa liberdade de ação não se prende a um lugar; si ai ficar é porque convém aos seus interesses. Demais, se o nobre deputado é amante da instrução, si tem interesse pelo progresso dos espíritos do nosso país, e si sente com o direito, com a coragem precisa para assumir a responsabilidade de combater o projeto na sua parte mais útil e ao mesmo tempo mais nobre, não deve vir impugnar isto que se diz uma exceção, porque, ao menos, essa exceção é um proveito da instrução pública.

41 ALMEIDA, Raposo de. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados. Cidade de Minas: Imprensa Oficial, 1899, p. 470.

42 ALMEIDA, Annaes da Câmara..., p. 471.43 SOUSA REIS, Annaes da Câmara..., p. 471.

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O sr. João Pio: Não estou combatendo o ato em si, estou combatendo o argumento que é falso. 44

A fala seguinte é bastante reveladora do comportamento dos políticos mineiros como representantes dos interesses regionais, mas também como capazes de “conciliar” interesses em benefício do todo, do Estado, como se pode perceber no discurso do deputado João Pio que, declarando não combater o projeto, mas o “argumento falso” do relator da Comissão, reconhece que muito do que ele gostaria de fazer pela sua região, fora esquecido após o pedido do Presidente:

[...] trazia de casa muitos projetos de engrandecimento para o Estado, para a zona em que resido e ao mesmo tempo, de renome para minha pessoa; trouxe-os confeccionados, estudados, meditados, mas colocado nesta cadeira, depois de ler a Mensagem patriótica que o Presidente do Estado dirigiu ao povo mineiro, descarnando-lhe a verdadeira situação de suas finanças, fazendo-o compreender a gravidade do momento que atravessamos e que se prende ao estado geral do país, conservei-me numa posição obscura, modesta, única em que deveria me colocar (não apoiados) mas, compreendo que maior era o meu sacrifício e mais nobre o meu desempenho nesta Casa, desde que correspondesse às altas necessidades do Estado, desde que me colocasse na altura das vistas do programa traçado pelo patriótico governo de Minas. 45

A despeito das posições contrárias à supressão das escolas rurais e das tentativas de impugnação do Projeto, ao final das discussões, os parlamentares mantiveram o Projeto inicial, pouco alterando sua redação quanto ao tema da polêmica por nós destacado. Ao final de todos os termos regimentais, o projeto recebeu 49 emendas, obtendo aprovação em 20, mas nenhuma que revertesse a situação relativa à supressão das escolas. Dessa forma, o projeto foi encaminhando ao Senado, em 31 de agosto de 1899.

No Senado, a tônica dos discursos e palavra de ordem também não era outra, senão: “redução de despesas”. Isso ficou evidente na fala do Senador Joaquim José Álvares dos Santos e Silva, Barão de S. Geraldo, quando discursou sobre a utilidade do Projeto, agora sob n. 17: “[...] o projeto tem a vantagem de prestar serviços econômicos, encaminhando as finanças para um bom resultado. [...] temos uma grande quantidade de escolas que não representam as necessidades da instrução pública”46.

Além disso, o Senador defendeu que a instrução fosse sistematizada e ficasse também a cargo dos municípios e distritos, reduzindo a ação do Estado a determinados pontos, pois o orçamento não contemplaria toda a despesa com a instrução pública. Nessa mesma posição, o Senador José Cândido da Costa Sena, professor de Escola Normal, afirmou: “Aos que me dizem que retrogradamos com o projeto que se

44 CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados. Cidade de Minas: Imprensa Oficial, 1899, p. 472.

45 SOUSA REIS, Annaes da Câmara..., p. 471.46 SANTOS E SILVA, Joaquim José Álvares dos. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes do Senado

Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1899, p. 188.

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discute, direi que retrogradamos no papel, como também, infelizmente, só no papel tenhamos progredido”. E, se posicionado a respeito da extinção das escolas rurais, destacou: “a Supressão das cadeiras rurais é uma triste e dolorosa necessidade imposta pelas condições financeiras do Estado. Demais, é um serviço que deve ir passando aos municípios que também receberam poderosas fontes de rendas”47.

De igual modo à Câmara, não houve consenso entre os Senadores, pois várias foram as manifestações contrárias à supressão das escolas rurais e à restrição das escolas primárias, como foi o caso do Senador Manoel Teixeira da Costa que votou contra o Projeto n. 17 dizendo que “Se o Congresso [...] levou o imposto territorial aos pequenos lavradores, como é que vem ainda privá-los desse benefício das escolas rurais?”48. Após os três turnos de discussões - artigo por artigo - o Projeto foi aprovado em 09 de setembro do mesmo ano, recebendo 23 emendas, dentre as quais nenhuma que resolvesse a questão da extinção das escolas.

Ao receber de volta o Projeto n. 17, para parecer e redação final, a Câmara enfrentaria outros momentos difíceis no processo discussão e votação do Projeto de Lei relativo à segunda reforma republicana. Ao receber a recusa do pedido de prazo regimental para estudar as emendas apresentadas pelo Senado e apresentar a redação final ao projeto, o deputado José Monteiro Ribeiro Junqueira pediu para ser substituído e se afastou da Comissão de Redação, afirmando que de modo algum faria parte da referida Comissão49. Demonstrando uma grande decepção com a atitude do Senado, o deputado João Luiz Alves, assim comentou o retorno do Projeto à Casa:

[...] o projeto foi aprovado e remetido á Câmara alta e lá, quando nós devíamos esperar, devíamos contar com a solidariedade dos provectos e respeitáveis senadores, lá caem as emendas e são mantidas as dez escolas normais, aumentando-se a despesa pública em cerca de 200 contos e nos é reenviado o projeto á ultima hora, quando os trabalhos legislativos estão findos, para obrigar a Câmara dos Deputados a voltar atrás no seu procedimento patriótico. 50

Interrompendo e complementando a fala do colega, o deputado João Pio, também desabafou, indignado: “Impor á Câmara dos Deputados, porque o Senado não tem mais número...”51.

Continuando o seu desabafo, o deputado João Luiz destacou que estava até mesmo com o seu espírito preparado para a repercussão da aprovação da lei:

Eu prefiro o sacrifício do meu voto, eu prefiro arrostar mais uma vez com a impopularidade, a deixar o Poder Executivo sem meios de ação

47 SENNA, Joaquim Cândido da Costa. In: CONGRESSO Mineiro. Anais do Senado 1891-1892. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, p. 189.

48 COSTA, Manoel Teixeira da. In: CONGRESSO Mineiro. Anais da Câmara dos Deputados. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1899, p. 190.

49 RIBEIRO JUNQUEIRA, José Monteiro. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados. Cidade de Minas: Imprensa Oficial, 1899, p. 540.

50 ALVES, João Luiz. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados. Cidade de Minas: Imprensa Oficial, 1899, p. 600.

51 SOUSA REIS, João Pio de. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados. Cidade de Minas: Imprensa Oficial, 1899, p. 600.

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em relação á instrução Publica; é uma exigência imposta pela falta de tempo, contra a qual eu não vou, mas contra a qual eu precisava, do alto desta tribuna, levantar o mais solene protesto, ainda que faça recair sobre o meu procedimento as censuras das localidades feridas, censura essas contra as quais se acha bastante preparado o meu espírito de civismo, porque estou certo de que defendo a causa do engrandecimento do Estado de Minas (Muito bem!). 52

Mas, como destacou e parece ter sido o procedimento de vários outros deputados, era preciso atender ao pedido feito pelo Executivo, ainda que fosse a custo da impopularidade política.

Compondo a Comissão de Instrução Pública, o deputado Antônio Raposo de Almeida redigiu o projeto final e, também, parecendo bastante contrariado, apresentou-o aos parlamentares, de forma bastante irônica, dizendo:

[...] visto como, se não nos é lícito dar lições de patriotismo pelo menos resta-nos a convicção de termos sido patrióticos, suprimindo as escolas rurais, suprimindo as escolas normais, promovendo medidas em ordem a melhorar a nossa situação financeira, decretando uma lei no intuito de auxiliar a administração do Estado e ainda, à última hora, sr. Presidente, fazendo o maior de todos os sacrifícios que o homem público pode fazer – admitir medidas aceitá-las, referendá-las com seu voto, quando absolutamente não correspondem às necessidades de momento e nem ao menos foram justificadas. [...] Por estas razões, sem que esteja em meu ânimo censurar a Câmara dos srs. Senadores, nos atos que praticou... declaro, por parte da Comissão de Instrução Publica, que esta Casa deve dar mais uma prova de patriotismo, votando as emendas, afim de que o governo não fique sem os meios necessários de ação (Muito bem! Muito bem!). 53

Em Sessão Extraordinária, a Câmara dos Deputados votou a favor de todas as emendas propostas pelo Senado e o encaminhou à sanção presidencial, no dia 12 de setembro. Em síntese, a Lei n. 281, aprovada a 16 de setembro de 1899, regulamentada pelo Decreto de n. 1.348, de 08 de janeiro de 1900, manteve os princípios de gratuidade e obrigatoriedade escolar para meninos de ambos os sexos, de sete a treze anos de idade, submetendo-as ao recenseamento escolar; introduziu modificações relativas à criação de escolas, estabeleceu por lei o número de escolas para cada localidade e também transferiu para a Capital quatro escolas que funcionavam em Ouro Preto, antiga capital do Estado; além de promover mudanças no ensino normal. A Lei, mesmo contrariando vários dos legisladores, acabou determinando a extinção das escolas rurais e a criação das escolas coloniais. Assim, reclassificou as escolas primárias, determinando que as que estivessem estabelecidas dentro do perímetro da sede das cidades e vilas fossem consideradas urbanas; e distritais, as estabelecidas dentro do perímetro das sedes dos demais distritos administrativos.

52 ALVES, Annaes da Câmara..., p. 600.53 ALVES, Annaes da Câmara..., p. 600.

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Como se pode ver, a despeito das opiniões contrárias e de toda disposição dos representantes dos interesses públicos em impedir a determinação de se acabar com as escolas nas zonas rurais, a Lei que afetaria praticamente todo o território mineiro fora aprovada. As tensões, as divergências, as tentativas vãs reforçam a ideia de que, a despeito dos interesses locais e das convicções pessoais, os deputados e senadores mineiros, ao final se uniram para assegurar aquilo que se configurava como interesse maior e que pairava sobre todas as regiões, se materializando como um próprio “jeito de se fazer política”. Ainda que as deliberações tivessem provocado indisposição, causado impopularidade e queda de prestígio, não se contrariavam os elevados interesses de manter a ordem e trabalhar para o progresso do Estado. Tampouco fora suficiente para reverter as medidas legais restritivas a preocupação com a escolarização dos trabalhadores mineiros, em sua maioria moradores das zonas rurais.

Se no campo educacional os trabalhadores não obtiveram muito sucesso, a estratégia seria a de percorrer novos caminhos em busca de recursos que pudessem subsidiar as iniciativas operárias de escolarização, por meio de pedidos de subvenção feitos diretamente ao Congresso, por intermédio dos legisladores.

As discussões em torno dos pedidos de subvenção de vários organismos beneficentes evidenciam uma representação dos trabalhadores e da sociedade mineira nos primeiros anos da República. A ausência de uma regulamentação definitiva dessa matéria levava à análise de cada caso e da promulgação de leis específicas elaboradas após a aprovação de cada pedido no Legislativo. Uma dessas situações foi a defesa da representação que o deputado Arthur Queiroga, em 1906, fez em nome da União Operária Beneficente de Diamantina, que mantinha um Lyceu de Artes e Ofícios, subsidiado pelo Governo havia quatro anos. A associação solicitava o restabelecimento “da verba a que tinha direito por força da consignação orçamentária até 1904”. Explicitando o pedido, o deputado, recorrendo aos perigos de uma classe sem instrução e, lançando mão de um discurso paternalista, discursou:

[...] o operariado começa a levantar-se e começa a falar alto contra aqueles a quem se entrega ordinariamente a responsabilidade dos destinos do país; e isso o faz, porque não pode, a não ser tumultuosamente, explicar a seu próprio espírito, que essa existência precária e má, essa anomalia de recursos está baseada na falta de instrução. Quanto a mim, tenho o direito de concluir, que ao poder público cabe dar instrução primária a quem murmura, para que não possa resolver a crise do país pelos meios dolorosos, como na Europa que arroga-se o monopólio da civilização mas que, entretanto, nos mostra em face o quadro doloroso de todas as misérias.Quero o operariado preparado, principalmente, na arte prática, afim de que encontre no seu trabalho meios para matar a míngua do seu lar; quero, pois, que o operariado se levante e bendiga sempre o poder público; quero que ele abençoe à nação e não sei de outro meio de alcançarmos senão difundindo o ensino; e felizmente, é disso que cogitam todos os programas de todos os governos do

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Estado de Minas.54

Com um propósito bastante semelhante, solicitando restabelecimento de subvenção anual de um conto de réis, o deputado Nelson de Senna representou a Associação das Damas de Caridade, de Belo Horizonte, em 24 de julho de 1916. De acordo com o deputado, a subvenção era necessária para a associação

[...] poder continuar a distribuir os socorros que, de alguns anos a esta parte, vem, discreta e proveitosamente, distribuindo à pobreza envergonhada levando o conforto a tantos lares necessitados, e, ao mesmo tempo, poder continuar a manter a escola paroquial que aqui fundou e é freqüentada por mais de 200 crianças, filhas das classes mais desprotegidas da fortuna, que, por carência de calçado, vestuário e outros recursos, não podem vir ao centro freqüentar os grupos escolares oficiais. 55

Finalizando o seu discurso, e falando se si para os colegas, reforça que sua defesa era a da “pobreza envergonhada” que contava com a benevolência de instituições, como a que representava, para sobreviver:

Não tem o orador o menor escrúpulo de assegurar o seu apoio e o seu voto a pedidos de auxílio de semelhante natureza, que visam à manutenção dos socorros distribuídos por essas associações de caridade à pobreza envergonhada, às classes desprotegidas da sorte e que vivem batidas pelo mais atroz infortúnio, não querendo estender a mão na via pública, para receber a esmola; e, ao contrário disso, furtam-se à triste contingência da mendicidade, escondendo a sua miséria e sofrimentos nos lares sem conforto, à espera do socorro salvador de associações benéficas como é a das Damas de Caridade de Belo Horizonte.56

O deputado Nelson de Senna, experiente em representar pedidos de subvenção ao Congresso Mineiro, vinha defendendo os interesses das associações há muito tempo, como no caso da “Associação Mútua Beneficente Municipal” de Belo Horizonte, no ano de 1911:

Sr. Presidente [Prado Lopes], endereço à Câmara, por intermédio da Mesa, uma representação em que a “Associação Mútua Beneficente Municipal”, desta Capital, solicita do Congresso Legislativo do Estado a decretação de um auxílio, modesto que seja, em favor da mesma consignado no orçamento, que teremos de votar esse ano. [...] A nossa missão, portanto, nessa decretação de auxílios, é toda de justiça; e espero que o Congresso Mineiro, atendendo a esses modestos e laboriosos obreiros da nossa capital, quais são os

54 QUEIROGA, Arthur. In: CONGRESSO Mineiro. Anais da Câmara dos Deputados. Belo Horizonte: Imprensa Oficial. Arquivo Público Mineiro, 1906, p. 263.

55 SENNA, Nelson Coelho de. In: CONGRESSO Mineiro. Annaes da Câmara dos Deputados - 1911. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1916, p. 114.

56 SENNA, Annaes da Câmara..., p. 114.

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empregados municipais, operários da Prefeitura de Belo Horizonte, decrete em favor deles o auxílio que solicitam, porquanto si e certo que a sociedade a que eu me refiro tem caráter de mutualidade, não é menos certo que os seus associados arcam com todas as dificuldades inerentes à vida em uma cidade nova, onde a existência é demasiado cara; e para esses humildes proletários a vida tem asperezas que os filhos da fortuna, muitas vezes não conhecem. [...] o Estado deve sempre assistir, consolar e auxiliar a esses que modestamente trabalham e mutuamente se auxiliam (Muito bem!). [...] É invocando os precedentes já habituais nesta Casa do Congresso Mineiro, sempre que aqui tratamos de assuntos de tal natureza, que eu solicito e espero que a ilustrada Comissão de Orçamento e a Câmara acolham e defiram favoravelmente o pedido dos empregados municipais de Belo Horizonte e sócios da “Associação Mútua Beneficente Municipal”. (Muito bem! muito bem!) À Comissão de Orçamento.57

Esse documento bem retrata o procedimento habitual do Congresso, aprovar para depois incluir no orçamento, conforme “precedentes já habituais nesta Casa”; procedimento que gerou a tentativa de regulamentação que era condenada pelo deputado, pois, para Nelson Coelho de Senna, as exigências eram restritivas e absurdas, visto que, “em regra, quem pede a esmola é porque dela carece”58.

Finalmente, ressaltamos que, desde o início da fundação da República, no Brasil e Minas em particular, as questões relacionadas à construção de uma nova ordem social e política, baseada no modelo de uma sociedade republicana sob a égide da modernidade e com influência marcadamente liberal e positivista, tomou conta das preocupações de políticos e intelectuais. Para os gestores e legisladores, pensar em reformar a sociedade incluía não somente o desenvolvimento do progresso material, mas, também, do progresso da mente.

O interesse pela construção de uma nova ordem social e política colocava em evidência o processo de escolarização como forma de produzir e fortalecer o Estado republicano. Nesse sentido, em Minas Gerais, legisladores e governo investiram na viabilização das condições para a implementação de uma educação e de uma instrução que contribuíssem para a constituição da ordem e do progresso em meio a debates tensos e reveladores de posições e lugares distintos no interior da política mineira.

Enfim, vale destacar que o estado de Minas Gerais mantinha uma política, embora carente de regulamentação permanente, de subvencionar e auxiliar aos particulares, às associações de caridade, associações operarias, estabelecimentos de ensino; além de professores particulares que se dedicassem a atender aos “laboriosos obreiros”, ou à “pobreza envergonhada” ou, bem ainda, “às classes desprotegidas da sorte”. Os trabalhadores foram, dessa forma, se constituindo nos e pelos discursos dos legisladores mineiros que, a cada referência que deles faziam, tratavam de adjetivá-los, nomeando-os, enfim, traduzindo-os como “modestos e laboriosos obreiros”, “humildes proletários”, pertencentes às “classes desprotegidas 57 SENNA, Annaes da Câmara..., p. 95.58 SENNA, Annaes da Câmara..., p. 501.

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da sorte”; e “deserdados da fortuna” que, após a lida diária, se dirigiam às escolas em busca do “alimento do espírito”. Responsabilizados pela sua própria condição social, reconheciam os legisladores que “essa existência precária e má, essa anomalia de recursos [estava] baseada na falta de instrução”, e era o poder público a quem caberia “dar instrução primária a quem murmura”. Todas as medidas adotadas pelos legisladores se voltavam para o cumprimento dos princípios iluministas do Estado, que era o de derramar as luzes sobre as camadas pobres da sociedade.

RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o tratamento conferido, pelos legisladores de Minas Gerais, aos agentes sociais que passaram a constituir a sociedade brasileira, a partir do final do século XIX: os trabalhadores assalariados. O diálogo com as fontes, legislação, Anais do Congresso e Mensagens dos Presidentes realizou-se no encontro entre a História da Educação, a História Cultural e a História Política, cujo objeto foi analisado à luz das suas contribuições, seja no uso de seus conceitos ou nas recomendações para o trato das fontes documentais. Tomamos como referência a seguinte premissa: falar da produção da legislação educacional na República é falar da produção da própria República. O mesmo movimento de construção da República é, intrinsecamente, o movimento de construção dos projetos de educação e de instrução. Ao analisarmos os projetos de reforma da instrução pública, apreendemos as representações sobre o trabalhador mineiro, construída nos e pelos discursos proferidos no Legislativo e no Executivo, bem como nas e pelas legislações relativas à política educacional do Estado. Os trabalhadores foram se constituindo nos e pelos discursos dos legisladores mineiros que, a cada referência que deles faziam, tratavam de adjetivá-los, nomeando-os, enfim, traduzindo-os como “modestos e laboriosos obreiros”, “humildes proletários”, pertencentes às “classes desprotegidas da sorte”; e “deserdados da fortuna” que, após a lida diária, se dirigiam às escolas em busca do “alimento do espírito”. Entendemos, com isso, que o tratamento conferido aos trabalhadores mineiros é parte de uma representação que se tinha sobre o conjunto dos trabalhadores brasileiros.

Palavras Chave: Representação Social; República; Trabalhador Mineiro.

ABSTRACT

This paper introduces a reflection on the treatment given by Minas Gerais legislators, to the newest social agents in Brazilian society at late 19th century: employees. The dialogue with the sources, law, Annals of Congress and messages of Presidents took place in the encounter between the history of education, the Cultural history and political history, whose object was examined in the light of these contributions, whether in the use of their concepts or recommendations for treatment of documentary sources. We take as a reference the following premise: talk of the production of educational legislation in the Republic is talking about the production of their own Republic. The same movement of construction of the Republic is, intrinsically, the movement of construction projects, education and instruction. When considering projects for the reform of public instruction, so the representations on the Minas Gerais’ worker, built by the speeches in the legislature and Executive, and laws relating to the State educational policy. Workers were becoming in and by the speeches of Minas Gerais’ legislators who, in every reference to them, qualified and named these men, anyway, translating as “modest and workhorses workers”, “humble proletarians”, “lucky” rogue classes; and “wretched Fortune” that, after the daily deals, were headed to school in search of “food of the spirit”. We believe, therefore, that the treatment accorded to Minas Gerais’ workers is part of a representation that had been on the set of Brazilian workers.

Keywords: Social Representation; Republic; Minas Gerais’ Worker

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PROFESSORES E POLÍTICOS EM NOME DA PAZ:INTERESSES INTERNACIONAIS POR UMA HISTÓRIA

ENSINADA

Juçara Luzia Leite1

O Convênio entre Brasil e Argentina

Em 1932, Stefan Zweig, escritor austríaco pacifista, falava da necessidade de uma “desintoxicação moral da Europa”, alertando para o papel da Educação das novas gerações, às quais seria preciso proporcionar um ensino de História que possibilitasse o confronto de diferentes civilizações apresentadas, destacando suas contribuições para uma História comum, uma “pátria comum ao coração”2. Em 1936, Zweig visitou o Brasil pela primeira vez, trazido por seu editor Abrahão Koogan (Editora Guanabara). De acordo com Stooss-Herbertz3, Zweig era um dos autores estrangeiros mais lido no país. Em 1940 publicou “Brasil, país do futuro”, cujo prefácio foi escrito por Afrânio Peixoto e, no mesmo ano, recebeu o visto de permanência no Brasil mudando-se em pleno Estado Novo, fugindo da guerra na Europa. Entretanto, o país do futuro do pacifista Zweig era palco de uma ditadura de modelo fascista.

A guerra na Europa fora precedida de inflamado debate intelectual a respeito do uso moral da História ensinada. O ensino de História tornara-se tema da agenda das relações internacionais à medida que as nações se preocupavam com a forma em que estavam sendo representadas pela História escolar. Inserido nos debates internacionais, o Brasil também se articulava na promoção de um ensino de História condizente com as discussões de então. Foi nesse contexto que nasceu o “Convênio entre o Brasil e a República Argentina para a Revisão dos Textos de Ensino de História e Geographia”.

O “Convênio entre o Brasil e a República Argentina para a Revisão dos Textos de Ensino de História e Geographia” foi assinado em 1933, por ocasião de visita ao Brasil do Presidente argentino, General Agustín P. Justo, como conseqüência dos votos emitidos, em 1928, durante o X Congresso de História Nacional realizado em Montevidéu. Na ocasião, foram nomeados plenipotenciários por seus respectivos chefes de governo, Afrânio de Mello Franco (Ministro de Estado Brasileiro das Relações Exteriores e ex-embaixador brasileiro na Liga das Nações) e Carlos

1 Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora Associada da Universidade Federal do Espírito Santo. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Uma versão preliminar deste trabalho, com parte da pesquisa aqui apresentada foi aceita para apresentação no VIII Congresso Luso Brasileiro de História da Educação, a realizar-se em agosto de 2010, na cidade de São Luís – MA. E-Mail: <[email protected]>.

2 GIUNTELLA, Maria Cristina. Cooperazione intelletuale e educazione alla pace nell’Europa della Società delle Nazioni. Pádua (Itália): CEDAM, 2001.

3 STOOSS-HERBERTZ, Adelaide. Os leitores e as leituras das obras de Stefan Zweig no Brasil. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, v. 4, n. 2, jun. 2007, p. 1-17. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/vol11Adelaide.php>. Acesso em: 22 abr. 2010.

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Saavedra Lamas (Ministro Argentino das Relações Exteriores e Culto, posteriormente, em 1936, presidiu a Assembléia da Liga das Nações, ano em que recebeu o Nobel da Paz). Tornou-se Decreto em 1934, e Documento do Ministério das Relações Exteriores em 1936, após deliberações da Comissão Brasileira Revisora dos Textos de Ensino de História e Geografia4.

Desde o Congresso em Montevidéu até a assinatura do Convênio, ocorriam no continente alguns embates por fronteiras, incluindo a questão Santana do Livramento – Rivera e os esforços do governo brasileiro para a estatização daquele território5. Somados à disposição internacional para a revisão de livros didáticos protagonizada especialmente pela Liga das Nações, os debates sobre conflitos e disputas territoriais sul americanas marcaram o momento onde os governos de Brasil e Argentina perceberam, dentre outras necessidades, a importância de juntar esforços para a educação de gerações futuras em nome da paz. O eixo desses debates, protagonizados por intelectuais, políticos e professores, era a preocupação sobre os usos públicos da História.

No início do século XX, principalmente – mas não somente - após a 1ª Guerra Mundial, historiadores e educadores passaram a se perguntar sobre a influência que o ensino de História poderia ter nas afinidades e hostilidades entre povos e nações, para além da sua já considerada função cívica. Os chamados “abusos” da História – refletidos em seu ensino para a infância e para a juventude – passaram a ser tema de debates na Europa (especialmente França, Alemanha e Espanha) e nos EUA (the Carnegie Endowment for International Peace), alcançando diversas organizações internacionais (leigas e religiosas), incluindo desde sindicatos de professores até a Liga das Nações (em sua Comissão Internacional de Cooperação Intelectual – CICI). A revisão dos programas escolares e de livros didáticos esteve no centro dessa discussão.

Considerando o contexto europeu e o sul americano, não surpreende o disposto nos quatro artigos do Convênio:

Artigo I – O Governo da República dos Estados Unidos do Brasil e o Governo da República Argentina farão proceder a uma revisão dos textos adotados para o ensino da história nacional em seus respectivos países, expurgando-os daqueles tópicos que sirvam para excitar no ânimo desprevenido da juventude a adversão a qualquer povo americano.

A dimensão fraternal entre as nações seria, dessa forma, o principal objetivo deste Convênio, e a História, em consonância com a compreensão do contexto, era 4 A cópia oficial do Decreto nº 24.395, de 13 de junho de 1934, que “Promulga o Convênio entre o

Brasil e a República Argentina para a revisão dos textos de ensino de História e Geografia, Rio de janeiro, 10 de outubro de 1933” está disponível em <http://www2.mre.gov.br/dai/b_argt_28_563.htm>. Para efeitos de nossa investigação, estamos utilizando o Documento do Ministério das Relações Exteriores Brasileiro, publicado em 1936 pela Imprensa Nacional, e intitulado “Convênio entre o Brasil e a República Argentina para a revisão dos textos de ensino de História e Geographia”, exemplar disponível no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

5 Sobre este tema, ver: RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. Fronteira Brasil – Uruguai: entre o nacional e o regional (1928 – 1938). In: I Jornada de História Comparada. Anais. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística do Estado do Rio Grande do Sul, 2000. Disponível em: <http://www.fee.tche.br/sitefee/download/jornadas/1/s2a2.pdf>. Acesso em: 6 abr. 2010.

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ferramenta fundamental para a construção do futuro.

Artigo II – O Governo da República dos Estados Unidos do Brasil e o Governo da República Argentina farão rever periodicamente os textos adotados para o ensino da geografia, pondo-os de acordo com as modernas estatísticas e procurando estabelecer neles uma noção aproximada da riqueza e da capacidade de produção dos Estados americanos.

Dessa forma, as representações de futuro construídas a partir daquele dado presente pressupunham tratar das riquezas daquelas nações e suas respectivas capacidades de produção. A dimensão do progresso econômico e industrial deveria ser, assim, destacada.

Artigo III – O presente Convênio será ratificado dentro do mais breve possível e suas ratificações se trocarão em Buenos Aires, continuando ele em vigor indefinidamente até ser denunciado pro uma das Partes contratantes, com seis meses de antecipação.

Havia, dessa forma, a previsão da criação de dispositivos para a efetivação do Convênio, o que ocorreria através da designação de uma Comissão e suas tarefas.

Artigo IV – Qualquer Estado americano que o desejar poderá aderir a este Convênio, anunciando esse propósito ao Ministro das Relações Exteriores da República dos Estados Unidos do Brasil. Cada adesão só se fará efetiva depois de com ela se mostrarem de acordo dos Governos da República Argentina e dos outros /estados que, na ocasião, sejam parte neste Convênio.

Estava expressa a intenção de ampliar os objetivos do Convênio considerando a aspiração pan-americana, submetendo, entretanto, ao parecer do Brasil e da Argentina6.

A partir de tais disposições, foi constituída uma Comissão Brasileira Revisora dos Textos de Ensino de História e Geografia formada por: Affonso de E. Taunay (historiador, na época diretor do Museu do Ipiranga e professor da USP), Jonathas Serrano (professor de História do Colégio Pedro II e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), Raja Gabaglia (professor de matemática do Colégio Pedro II e membro da Academia Brasileira de Ciências), Souza Docca (militar gaúcho, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), Othelo Rosa (jornalista gaúcho, subprocurador do estado do Rio Grande do Sul, secretário particular do governador Borges de Aguiar e primeiro secretário estadual de educação), Pedro Calmon Moniz de Bittencourt (professor da Faculdade Nacional de Direito e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), Fonseca Hermes, e Renato Mendonça 6 Ao final da segunda Guerra, a proposta de Revisão já incluía intercâmbios e intelectuais com a

Bolívia, o Chile, o Peru, a Colômbia, o Paraguai, o Uruguai e a República Dominicana. Cf. SILVA, Ana Paula Barcelos Ribeiro da. A história que ensina e constrói: reflexões sobre intercâmbios culturais e intelectuais e escrita da história. In: XIII Encontro de História da ANPUH-Rio. Anais Eletrônicos. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2008, p. 6. Disponível em: <http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1210075482_ARQUIVO_Resumoextendido(Anpuh2008).pdf>. Acesso em: 15 abr. 2010.

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(gramático, autor de A Influência Africana no Português do Brasil).Com o objetivo de realizar o intento par ao qual fora criada, e especificamente em

relação aos livros didáticos de História, a Comissão Brasileira determinou normas constituídas pelos seguintes critérios de análise e revisão:

a) Generalidade – definido como proporção conveniente entre as diferentes seções nas quais a História é dividida, com o objetivo de produzir visão imparcial dos fatos, de modo a “interessar a juventude na avaliação de todos os aspectos do passado nacional”. Esse critério tomava por base uma visão de História neutra e equilibrada.

b) Cordialidade – recomendação explícita contra “comentários deprimentes de referência a povos estrangeiros”. Neste ponto, fica clara a preocupação em não alimentar representações negativas que incitem rancores de qualquer espécie.

c) Solidariedade – orientação para o desenvolvimento de capítulos que contemplem as relações de paz e comércio entre o Brasil e demais nações, “notadamente americanas, dando o devido sentido histórico à solidariedade entre os povos”. Este critério deixa implícita a preocupação com as relações econômicas entre os países, a solidariedade é, nesse sentido, econômica e comercial.

d) Idealismo – instrução para que os livros didáticos de História destaquem a política exterior brasileira como idealista e possuidora de coerentes “sentimentos de conciliação e cordialidade”. Destaque para a intenção brasileira em construir, junto aos países americanos, uma imagem de líder nas relações exteriores e digno de representar o continente nos espaços das relações internacionais.

e) Americanidade – dá atenção ao necessário destaque das relações inter-americanas, com ênfase em “atitudes, iniciativas e fatos, que formam a consciência americanista da nossa civilização e constituem uma segurança dos destinos pacíficos do novo mundo”. Este critério destaca a preocupação na construção de uma dada identidade e pertencimento.

f) Veracidade – critério que parte do pressuposto da existência de uma veracidade histórica e determina que “as suas sínteses excluirão sistematicamente dos temas controversos comentários e divagações, limitando-se à indicação dos fatos”. Especificamente em relação aos assuntos internacionais, recomenda que se evitem as “qualificações ofensivas e os conceitos que atinjam a dignidade dos Estados e os seus melindres nacionais”.

Curiosamente, em relação aos compêndios de Geografia, a Comissão definiu uma única recomendação e critério de análise: “Os compêndios de geografia deverão conter as estatísticas oficiais mais modernas e sempre estabelecer uma noção aproximada da riqueza e capacidade de produção dos Estados estrangeiros”. Tal critério não se distanciava daqueles determinados para os livros de História (mais específicos e cautelosos), mas enfatizava a preocupação com as riquezas territoriais.

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Em pesquisa realizada em 1956, Guy de Hollanda7 atentou para a importância do Convênio no contexto das revisões internacionais dos manuais escolares, destacando o pensamento generalizado de que a difusão de estereótipos étnicos e nacionais era um fator de incompreensão entre os povos. No capítulo intitulado “A Pesquisa de estereótipos e valores nos compêndios de História destinados ao curso secundário brasileiro”, Hollanda recapitula as políticas sobre os livros didáticos adotadas desde a década de 1930, bem como os convênios e acordos firmados pelo Ministério da Educação sobre os ideais religiosos, históricos e geográficos a serem apresentados nos manuais didáticos. Destacando a responsabilidade do historiador nesse sentido, em sua obra, o autor afirmou que: “o que compete ao historiador é procurar compreender o mais possível o sistema de valores vigente na sociedade e na época que estuda, evitando deformar a reconstituição de ambas pela projeção daquele ao qual adere, explícita ou implicitamente” 8.

Considerando a preocupação com os usos da História ensinada, é relevante notar que o Convênio tenha ganhado normas e critérios durante o governo Vargas, que adotara, como uma das estratégias de poder, a regulação do ensino de História e da Língua Portuguesa, e a criação do Ministério da Educação e Saúde. Como expressão da consolidação de tal estratégia, em 30 de dezembro de 1938, ficaram estabelecidas, pelo Decreto-lei n° 1.006, as condições de “produção, importação e utilização do livro didático”. Foi, assim, criada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), vinculada ao Ministério de Educação e Saúde, cuja principal função seria examinar e autorizar o uso dos livros didáticos que deveriam ser adotados no ensino das escolas (públicas e provadas) pré-primárias, primárias, normais, profissionais e secundárias de toda a República.

A guerra na Europa já era, então, uma realidade. A preocupação do governo brasileiro em controlar o conteúdo veiculado nos livros didáticos já não se restringia aos livros de História, Geografia e leitura. O controle do impresso que circulava nas escolas brasileiras era parte de uma estratégia maior que tomava a educação escolar como investida política em meio ao embate por representações.

A guerra por uma correta História ensinada

A preocupação com os usos públicos da História e suas consequências para o acirramento de rancores entre os povos, contudo, fortalecera-se antes da Segunda Guerra, entre os anos de 1914 e 1918, período em que se produziu o que alguns historiadores chamam de “mobilização dos espíritos”, isto é, uma espécie de desarmamento moral das novas gerações. A educação passara, assim, a fazer parte da agenda de associações pacifistas que denunciavam como a propaganda bélica se havia servido da história como instrumento de fomento de ódios antigos e novos. Sobretudo no caso europeu, os programas escolares (e os livros didáticos) passaram a privilegiar uma história mais contemporânea, visando eliminar aspectos que poderiam alimentar comportamentos excessivamente nacionalistas. Relatos de ex-combatentes, por exemplo, foram utilizados para ilustrar os males da guerra9. O

7 HOLLANDA, Guy de. Programas e compêndios de História para o Ensino Secundário Brasileiro: 1931-1956. Rio de Janeiro: INEP/ MEC, 1957, p. 199-212.

8 HOLLANDA, Programas e compêndios..., p. 5.9 GIUNTELLA, Maria Cristina. Enseignement de l’histoire et revision des manuels scolaires dans

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ensino de História e de Geografia estava no centro dessa questão: não apenas os abusos da guerra estavam sendo questionados, mas a própria noção de paz.

Para Maria Cristina Giuntella os primeiros a darem uma atenção especial, nesse sentido, ao ensino de História e Geografia foram os próprios professores que, no caso francês, haviam desenvolvido uma orientação pacifista nos sindicatos. Segundo a pesquisadora italiana, “[...] graças ao trabalho do Sindicato Nacional dos Professores que, no após-guerra, 26 manuais escolares foram boicotados e em conseqüência retirados do comércio; um trabalho de trocas com os professores alemães começou, então, e se seguiu de 1926 a 1936” 10.

A década de 1920 foi marcada por uma discussão ampla, abarcando educadores de tendências opostas, incluindo a presença cada vez maior dos EUA. De acordo com a UNESCO (1950), algumas organizações internacionais não governamentais se incumbiram de protagonizar pesquisas sobre manuais escolares de diferentes países, considerando especialmente os contextos francês, alemão e espanhol11. Em 1921, por exemplo, a Carnegie Endowment for International Peace realizou uma pesquisa sobre as causas da Primeira Guerra e sobre as imagens que os países veiculavam de si e dos outros nos livros didáticos, focando especificamente o caso dos EUA12.

Aos poucos, no cenário internacional do pós-primeira guerra, aos objetivos cívicos do ensino de História, somavam-se os objetivos morais. No período de 1908 a 1934, foi realizada uma série de Congressos Internacionais de Educação Moral. Durante o 3º Congresso (Genebra, agosto de 1922), por exemplo, o ensino de História foi amplamente debatido sob uma perspectiva internacionalista, tendo sido denunciada por muitos congressistas a tendência militarista dada ao ensino de História. Anos depois, durante o 5º Congresso (Paris, setembro de 1930), foi expresso que o ensino de História deveria se tornar cada vez mais voltado para uma concepção de ensino de acordo com um “espírito internacional”13.

Jean-Louis Claparède, nesse mesmo Congresso, propôs alguns critérios que deveriam ser adotados para a avaliação de livros didáticos: “[...] imparcialidade, objetividade nos julgamentos, exclusão de todo espírito de hostilidade ou vingança, o respeito a uma nação, a justa noção da guerra como um evento bárbaro e destruidor, destaque para o desenvolvimento internacional, eliminação de toda forma de

l’entre-deux-guerres. In: BAQUÈS, M-C; BRUTER, A.; TUTIAUX-GUILON, N. (orgs). Pistes didactiques et chemins d’historiens: textes offerts à Henri Moniot. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 161-190.

10 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…, p. 162. Tradução nossa.11 Esse trabalho de revisão da trajetória histórica da adequação dos livros didáticos “para a paz”,

protagonizado pela Unesco, gerou, em 1952, o documento “Étude sur les manuels scolaires d’histoire et de geographie”. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001261/126100fb.pdf>.

12 Para uma análise mais detalhada dos debates internacionais, ver: LEITE, Juçara L. Pensando a paz entre as guerras: o lugar do ensino de História nas relações exteriores. Antíteses, Londrina, v. 3, n. 6, jul./dez. 2010, p. 677-699. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/7925>.

13 CICCHINI, Marco. Un bouillon de culture pour les sciences de l’éducation? Le Congrès international d’éducation morale (1908-1934). Paedagogica Historica. Genéve, v. 40, n. 5/6, out. 2004, p. 633 -656.

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chauvinismo”14. Na ocasião, a então recentemente criada Federação Internacional de Associações de Professores (1926), já tomara como principal atividade a revisão dos livros didáticos considerando o papel da escola no processo de “reconciliação dos povos”. Essa preocupação decorria das expressões do Bureau International de la Paix que, durante os Congressos de Berlim (1924) e Atenas (1929), propôs que uma revisão cuidadosa dos livros didáticos fosse realizada seguindo um espírito pacifista15.

Ao longo desses debates, o papel da CICI (Commission Internationale de Coopération Intellectuelle) se destacou na Liga das Nações. Ainda que o objetivo da CICI não tenha sido eminentemente educacional, ocupou-se de questões da Educação, sobretudo interessando-se na análise dos livros didáticos. De acordo com Jean-Jacques Renoliet (1999), embora o “Pacto da Liga das Nações” não expusesse nenhuma cláusula relativa à cooperação intelectual, seu Conselho adotou em 1921 (apesar da hesitação inglesa) uma proposta francesa que respondia às demandas de diferentes associações internacionais favoráveis à extensão do papel da Liga a favor da consolidação da paz mundial.

Oficialmente criada em janeiro de 1922, a CICI constituiu o primeiro passo da Organisation de Coopération Intellectuelle (OCI), uma das organizações técnicas da Liga das Nações. A OCI compreendia também as Commissions Nationales de Coopération Intellectuelle (1923), o Institut International de Coopération Intellectuelle – IICI – (1925), o Institut International du Cinématographe Éducatif – IICE – (1928), além de diferentes organismos especializados e comitês de especialistas. Segundo a análise de Renoliet (1999), o IICI (proposto pela França em 1924) também exercia o papel de fomentador da influência cultural e política francesa. Destaca-se o fato de que, no período compreendido entre 1926 e 1939, todos os diretores do IICI foram franceses, e ainda que o estatuto do IICI garantia-lhe autonomia em relação à Liga das Nações e ao governo francês, permitindo-lhe relações diplomáticas com as diferentes Nações que lá possuíam delegados.

Em 1926, a Liga das Nações adotou a “Resolução Casarés” como procedimento para a revisão dos livros didáticos, proposta, em 1924, pelo espanhol de mesmo nome. A Resolução determinava que:

[...] cada uma das Comissões Nacionais de Cooperação Intelectual que destacasse em um livro didático estrangeiro uma passagem possível de crítica, poderia submeter ao exame da Comissão do país concernente afim de que ela o corrigisse; é a ela, com efeito, que incumbia a responsabilidade de tomar decisões oportunas. No caso de não haver resposta, o país que havia solicitado as correções poderia recorrer à CICI; a Comissão nacional à qual o país havia se endereçado não era obrigada de expor publicamente as razões pelas quais não havia aplicado a resolução. Dentre as correções a serem feitas, excluíam-se as opiniões de caráter religioso, moral, político ou pessoal. 16

14 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…, p. 164.15 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…, p. 165.16 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…, p. 166. Tradução nossa.

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A “Resolução Casarés” foi adotada apenas três vezes, entre 1926 e 1930, e dela decorreu apenas uma vez a alteração de um livro didático17. Por esta razão, a Resolução sofreu uma ementa em 1932:

[...] as Comissões Nacionais deveriam obrigatoriamente responder às objeções levantadas a propósito de seus livros didáticos. De qualquer forma, tratavam-se de iniciativas oficiosas em razão do caráter não governamental das Comissões Nacionais. 18

De qualquer forma, a CICI continuou a demonstrar sua preocupação coma questão. A partir de 1930, o IICI foi encarregado de conduzir uma pesquisa sobre os livros didáticos de História que se referia, no que diz respeito ao ensino de História, tanto sobre as ações dos países e organizações internacionais quanto às regras adotadas pelas diferentes nações para a escolha dos livros didáticos. De acordo com Giuntella19, essa pesquisa foi publicada pela Liga das Nações, em 1932, com o título “A revisão dos manuais escolares”. Disso resultou a inclusão, em 1932, de uma rubrica consagrada especificamente para a revisão dos livros didáticos de História no Boletim da Cooperação Internacional do IICI20.

A Organisation de Coopération Intellectuelle procurou, através do IICI, facilitar a colaboração de intelectuais no serviço de promoção da paz mundial dentro dos objetivos da Liga das Nações. De fato, o trabalho essencial do IICI consistia mesmo em pesquisas que algumas vezes resultaram em ações promovidas por associações privadas ou não, nos diferentes campos da ação intelectual, tais como, como destaca Renoliet21: o desarmamento moral através do ensino dos princípios da Liga das Nações, da revisão de livros didáticos, e do uso pacífico do cinema e do rádio; uma sistematização do ensino através da equivalência de diplomas, intercâmbio de professores e estudantes, e criação de centros de documentação pedagógica; coordenações em diferentes campos científicos; tradução de obras literárias; conservação e proteção internacional de obras de arte, colaboração entre bibliotecas e arquivos; e a defesa dos direitos intelectuais.

Além da CICI, também o Bureau International d’Éducation (BIE) – do Instituto Jean-Jacques Rousseau, de Genebra –, fundado em 1925, destacou-se na tarefa de revisão dos livros didáticos de História e reuniu uma série de projetos elaborados em nível internacional entre o final do século XIX e o início do século XX. De acordo com Giuntella22, seu objetivo era centralizar e coordenar a documentação educativa e de obras destinadas à formação dos professores. Ainda que tenha sido criada como organização não governamental, tornou-se intergovernamental após uma reforma em seu estatuto ocorrida em 1929. Ainda que se definisse oficialmente como um organismo neutro, o BIE foi extremamente ativo, no período entre guerras, no que diz respeito a uma educação para a paz. Seu primeiro diretor foi Pierre

17 RENOLIET, Jean-Jacques. L'UNESCO oubliée, la Société des Nations et la coopération intellectuelle (1919-1946). Paris: Publications de la Sorbonne, 1999.

18 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…, p. 166. Tradução nossa.19 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…, p. 166. Tradução nossa.20 RENOLIET, L'UNESCO oubliée…21 RENOLIET, L'UNESCO oubliée…22 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…

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Bovet, que foi seguido por Jean Piaget23. Em 1938, o BIE publicou, sob o título de “Élaboration, utilization et choix des manuels scolaires – d’après les données fournies par les Ministères de l”Instruction publique”, o resultado de pesquisa realizada junto a diferentes Ministérios da Educação sobre a interferência do Estado na escolha de livros didáticos de História e sobre a existência de instituições governamentais específicas para a produção dos livros.

Giuntella atenta ainda para a importância, no que diz respeito ao campo do ensino de História, da atuação de organizações religiosas:

[...] mais especificamente a Conférence du Christianisme, prática que constituiu, desde o encontro em Stocolmo em 1925, uma comissão especial para a educação e ensino de história; essa comissão realizou uma pesquisa sobre o nacionalismo nos livros de história, publicada em 1928. Essa pesquisa, muito vasta, foi conduzida por especialistas de diferentes países que efetuaram um trabalho crítico bastante detalhado sobre os manuais tradicionais bem como sobre as revisões conduzidas após a guerra. O trabalho realizado por Jules Prudhomme se revelou particularmente interessante: reconstituiu a gênese e as diferentes fases do boicote a 26 obras julgadas belicistas pelo Sindicato Nacional dos Professores e publicou a lista. A Itália foi a única a publicar os extratos das relações da Comissão Nacional para os manuais escolares, sem o menor comentário. Esta pesquisa representou sem dúvida alguma uma das mais abertas e das mais críticas da época. 24

A pesquisadora italiana destaca também as iniciativas da “Ligue Internationale des Femmes pour la Paix et la Liberté” (LIFPL), constituída em 1919, em Zurique. Desde sua criação, a LIFPL formou uma comissão para a educação e propôs a criação de uma escola normal superior de educação para a paz, de encontros periódicos entre professores e estudantes de países diferentes, a fundação de uma conferência internacional permanente sobre educação e a revisão de livros didáticos de História e de literatura infantil. A LIFPL publicou também, em 1921, editada por Eileen Power, uma bibliografia destinada aos professores de História intitulada “A Bibliography for School Teachers of History”25.

Uma História para uso no futuro

A constatação de que a propaganda política também se servia da História, e de que guerras se alimentavam de noções de paz parecia inevitável. Educar as gerações futuras para um mundo de paz era o objetivo central dos debates acerca da História e seu ensino entres intelectuais, políticos e professores de todo o mundo ocidental. Contudo, de qual futuro se falava? Acordos, Congressos, Comissões, Conferências, Convênios, Decretos... Ferramentas internacionais imperfeitas. Poderia um correto ensino de História prevenir abusos, violências e genocídios?23 Em 1969, o BIE passou a fazer parte da UNESCO, apesar de continuar com sede própria em

Genebra. Ver: <http://www.unesco.org/new/fr/unesco/about-us>; <http://www.ibe.unesco.org/index.php?id=1&L=1> e <http://www.delegfrance-onu-geneve.org/spip.php?article380>.

24 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…, p. 169. Tradução nossa.25 GIUNTELLA, Cooperazione intelletuale...

112 sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA [22]; João Pessoa, jan./ jun. 2010.

De acordo com Joel Hubrecht e Assumpta Mugiraneza, é em uma perspectiva de reflexão acerca da noção de prevenção que convém reexaminar as polêmicas e debates do período entre guerras em torno do ensino de História. É preciso considerar ainda e, sobretudo, os acordos internacionais que se seguiram à Segunda Guerra: Convenção para a Prevenção de Genocídios (1948), Convenção pela Imprescritibilidade dos Crimes contra a Humanidade (1968), Protocolos de Genebra (1977), e Estatuto de Roma (1998). Com base nessa afirmativa, os autores alertam:

A prevenção de genocídios repousa sobre dois pilares indissociáveis: a elaboração e realização de programas políticos na escala dos Estados, de uma parte, e o engajamento dos indivíduos de outra parte. A categorização dos níveis de responsabilidade de Jaspers [...] se revela, uma vez mais, dentre as mais pertinentes. Apoiando-nos sobre ela, podemos afirmar que a prevenção de genocídios se implanta também nos quatro campos identificados por este autor: aquele do direito, da política, da moral e o espiritual (no sentido religioso mas igualmente no sentido da ultrapassagem do homem em outros e da ‘solidariedade metafísica’ evocada por Camus. 26

Concordamos com os autores e, portanto, nesse sentido, destacamos a importância de nossa investigação. Discutir os usos públicos da História, em especial as relações de poder que sustentam os processos de didatização da História e sua relação com os Direitos Humanos se faz mister. Para tanto, é de significativa importância refletir sobre os registros, as formas e as práticas que possibilitam as leituras do passado, considerando as percepções, memórias, sensibilidades e leituras compartilhadas de um passado implicadas na análise das relações de poder inerentes a esses processos – necessariamente políticos.

Richard Aldrich enfatiza a importância atual de se refletir historicamente sobre o que ele denomina “Educação para a sobrevivência”, diferenciada das concepções de “educação para a salvação”, “educação para o estado”, e “educação para o progresso”27. Para o autor, a História da Educação precisa se reposicionar no contexto da historiografia atual, ao lado de outros ramos da História, com o objetivo de imprimir um rumo futuro para a Educação.

Por outro lado, Giuntella recorda que uma reflexão histórica deve considerar que, com o final da Primeira Guerra, tinha-se a ilusão de que a paz era uma aspiração comum. Acreditava-se que o ano de 1919 assistira o triunfo da democracia enquanto que, na verdade, a Europa estava fragmentada e dividida em divergências morais28.

Em um mundo que, pouco a pouco, mergulhava em outra guerra, intelectuais, políticos e professores ainda acreditavam que o ensino de História poderia contribuir para a paz. Em países que haviam adquirido recentemente sua independência, o

26 HUBRECHT, Joel & MUGIRANEZA, Assumpta. Enseigner l’histoire et la prévention des génocides: peut-on prévenir les crimes contre l’humanité? Paris: Hachette, 2009, p. 127. Tradução nossa.

27 ALDRICH, Richard. Education for survival: a historical perspective. History of Education – Journal of the History of Education Society, Londres, v. 39, n. 1, jan. 2010, p. 1-14.

28 GIUNTELLA, Enseignement de l’histoire…

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ensino de História era instrumento de identidade nacional. E o que dizer dos países totalitários, onde os livros didáticos continuavam como propaganda do regime?

Tais preocupações também faziam parte do contexto brasileiro por ocasião da assinatura do “Convênio entre o Brasil e a República Argentina para a Revisão dos Textos de Ensino de História e Geographia”. E é, tomando como base a análise aqui apresentada, que vislumbramos a importância de fontes relacionadas às relações internacionais para investigações da História da Educação e, particularmente, para o campo da História do Ensino de História. Assim, destacamos a necessária articulação entre reflexões e debates anteriores a nossa baliza cronológica, com a análise da produção, distribuição, consumo e ressignificação do saber histórico nas sociedades, privilegiando as questões sobre os Direitos Humanos e os embates, conflitos e consensos que as cercam.

Para as pesquisas em História da Educação, compreender de que forma intelectuais, políticos e professores participaram de acordos normativos para o ensino de História no Brasil da primeira metade do século XX é uma forma de destacar a importância de uma sensibilidade historiográfica que compreende, de forma dinâmica, as práticas e relações de poder expressas nos usos públicos da História.

RESUMO

Em 1933, os governos do Brasil e da Argentina assinaram o “Convênio entre o Brasil e a República Argentina para a Revisão dos Textos de Ensino de História e Geographia”. O documento resultou da repercussão de disposição internacional para a revisão de livros didáticos de História protagonizada, por exemplo, pela Liga das Nações. A partir de tais disposições, foi constituída uma Comissão Brasileira Revisora dos Textos de Ensino de História e Geografia. O presente trabalho analisa esse Convênio e investiga o contexto de sua criação e a execução considerando os esforços internacionais em torno da possibilidade de uma educação de gerações futuras em nome da paz.

Palavras Chave: História da História Ensinada; Livros Didáticos; Educação para a Paz.

ABSTRACT

The Brazilian’s and Argentine’s governments, in 1933, signed the “Convênio entre o Brasil e a República Argentina para a Revisão dos Textos de Ensino de História e Geographia” (Pact between Brazil and Argentina to revision textbooks of History and Geography). The document was resulted from the repercussion of an international inclination to review history’s textbooks starring, for instance, by the League of Nations. Based on these dispositions, was built an “Comissão Brasileira Revisora dos Textos de Ensino de História e Geografia” (Reviewed Brazilian Commission of History’s and Geography’s Textbooks). This paper analyzes this “Agreement” and quest its creation and execution context by considering the internationals endeavors towards possibilities of an educations of futures generations in the name of peace.

Keywords: History of history teaching; Textbooks; Education for Peace.

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AS PRAGMÁTICAS PORTUGUESASDE FINS DO SÉCULO XVII:

POLÍTICA FABRIL E MANUFATUREIRA REATIVA

Gabriel Almeida Antunes Rossini1

Aquilo que poderia ter sido, e o que foi na realidade, apontam para um fim, que está sempre presente.

T. S. Eliot.

Os efeitos da crise econômica em Portugal

Em meados do século XVII, a economia portuguesa atravessava dificuldades estruturais, por um lado, decorrentes das perturbações ocasionadas pela Restauração e, por outro, resultado da conjuntura internacional, que atravessava uma fase crítica em alguns setores, nomeadamente aqueles ligados ao tráfico colonial.

Noya Pinto descreveu a recessão geral que caracterizou o período, como resultante de uma crise agrodemográfica e do metal precioso, que afetou quase todos os setores das atividades europeias e que propiciou oscilações bruscas: altas e baixas de preços, com tendência maior para a baixa até o início do século XVIII2.

Produtos coloniais como o açúcar (então, o principal interesse dos portugueses no Brasil, cujas exportações para Portugal cresciam desde o século XVI acompanhando a expansão da procura no mercado europeu) e o tabaco que ocuparam, durante o século XVII, lugares proeminentes no comércio externo português foram casos emblemáticos das dificuldades enfrentadas.

No caso do açúcar, por exemplo, holandeses, franceses e ingleses haviam iniciado a montagem de suas produções nas Antilhas, a partir de 1640, e os resultados começavam a aparecer. Os seus mercados, protegidos por legislação protecionista, auto abasteciam-se e fechavam-se às exportações de origem brasileira, enquanto os preços, por efeito do excesso de oferta, experimentavam baixas sensíveis3.

1 Doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas. Professor Assistente do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Professor Visitante do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-Mail: <[email protected]>.

2 PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da Economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Brasília: INL, 1979, p. 4.

3 Em 1661, para encorajar a produção de açúcar nas colônias, a Inglaterra fixou direitos preferenciais para as produções provenientes dos Barbados e da Jamaica. Portugal, perante tal fato, apresentou enérgicos protestos porque grande parte do açúcar que entrava na Inglaterra como proveniente das plantações inglesas das índias Ocidentais, e sujeito, portanto, a menores direitos de importação, era na realidade açúcar brasileiro vendido por contrabando. Cf. SIDERI, Sandro. Comércio e poder: colonialismo informal nas relações anglo-portuguesas. Lisboa: Cosmos, 1970, p. 48.

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Vitorino Magalhães Godinho chama atenção para os seguintes dados referentes ao açúcar e ao tabaco: a arroba do primeiro, em 1650, era vendida, em Lisboa, a 3.800 réis; em 1659, por 3.600 réis; em 1668, 2.400 réis. Vinte anos mais tarde, a arroba era vendida por 1.300 ou 1.400 réis. Já com relação ao tabaco: em 1650, o preço em Lisboa, era de 260 réis o arrátel (ou seja, 459 gramas); em 1668 tinha descido para 200 réis e em 1688 caíra para 70 réis. Portanto, o tabaco sofreu queda mais forte do que a do açúcar4.

Embora estes produtos – além de outros gêneros coloniais (couros, madeira, cravo, etc.) e metropolitanos (frutos, azeite e os mais importantes: vinho, cujos grandes concorrentes eram França e Espanha; e o sal, cujo principal competidor era a França) – reduzissem os déficits comerciais portugueses, a queda de seus preços, em virtude da concorrência e das grandes quantidades produzidas, conduziu a uma compressão muito sensível do comércio externo português a partir de 1667, até que em 1670 a crise atingiu severamente os rendimentos do Estado. Num Estado mercantilizado, que retirava do comércio colonial e dos direitos cobrados nas alfândegas, grande parte das suas receitas, a redução das trocas e a baixa dos preços de algumas mercadorias precipitaram situações financeiramente insustentáveis.

*Conjugada com a crise comercial, a crise do metal precioso afligiu Portugal.

Houve forte retração dos níveis de consumo na Europa e dificuldades em conquistar novos mercados, pois os países europeus, frente à crise, reforçaram suas políticas protecionistas o que diminuiu os ingressos externos e consequentemente sua capacidade de importação.

Além disso, não podemos perder de vista, que durante a segunda metade do XVII, a população portuguesa possuía baixo poder de compra (fenômeno acentuado nas zonas rurais). Informação que é corroborada pelo prólogo da uma lei 1668, onde lemos: por “estarem os meus Vassallos deste reino tão atenuados de seus patrimônios, e com tanto empenho, que mal podem com suas rendas acudir ao precisamente necessario, quanto mais as superfluas e escusadas novidades que se experimentam”5.

Em 1675, a análise da balança comercial portuguesa, feita por Duarte Ribeiro de Macedo, então ministro português em França e autor de uma das principais obras do pensamento econômico mercantilista português do século XVII – Discurso Sobre a Introdução das Artes e Ofícios no Reino (1675) –, evidencia o problema: “um terço

4 GODINHO, Vitorino Magalhães. Portugal: as frotas do açúcar e as frotas do ouro (1670-1770). Estudos Econômicos, n. 13, 1983, p. 723. É importante notarmos que mesmo neste contexto adverso o açúcar não deixa de ter presença marcante. Mesmo com volumes e valores em declínio em função da competição antilhana, ele continua a ser, em termos da balança comercial, o principal produto de exportação luso. Cf. SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil - 1500-1820. São Paulo: Companhia Editora Nacional/ MEC, 1977. Ver também: ARRUDA, José Jobson de Andrade. Decadência ou crise do Império Luso-Brasileiro: o novo padrão de colonização do século XVII. Revista USP, São Paulo, 2000, p. 66-79.

5 Pragmática promulgada em 8 de junho de 1668. SILVA, José Justiniano de Andrade. (org.). Coleção cronológica da Legislação Portuguesa - segunda parte: 1657-1674. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859, p. 147. Ao longo do artigo, não realizamos a modernização da escrita das fontes primárias a que tivemos acesso.

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das importações pago em espécie”6.A fuga do moedário português era motivada, fundamentalmente, pela sua

dependência da importação de diversos manufaturados, de produtos de luxo (demanda da aristocracia e do alto clero) e de cereais7.

Ainda em 1697, quando o ouro das Gerais apenas começava a afluir para Lisboa, tal situação persistia e um relatório francês retratou a situação de Portugal: “O dinheiro é raro no reino porque os estrangeiros, e principalmente os ingleses, transportam-no continuamente [...]. Todas as moedas do reino estão cerceadas”8.

Com relação à falta de moeda, o jurista Belchior Rebelo foi taxativo ao redigir um de seus pareceres: “é bem notória a falta que há de moeda de prata neste Reino pela levarem os estrangeiros para fora dele”. E no mesmo documento ainda lemos: “parecem que tem crescido a tal excesso a saca de moeda neste reino que se não se impedir, em breve tempo se achará de todo exausto”. E ainda acrescentava: “a causa infalível de sair o dinheiro deste Reino é entrarem neles tantas fazendas estrangeiras que importam três partes mais que os nossos frutos que se tiram em retorno delas”9.

Frente a essa conjuntura econômica adversa, que encontrava nos reiterados déficits da balança comercial portuguesa sua maior expressão, uma legislação protecionista foi implementada a partir de 1668, destinada principalmente a coibir a importação de têxteis. Tal política objetivava equacionar os déficits e promover as fábricas e manufaturas nacionais. Vejamos.

A reação portuguesa: introdução das artes

Introdução das artes – pelo que se evitará o dano do luxo e das modas, se tirará a ociosidade, se fará o reino mais povoado e aumentarão as rendas reais.

Duarte Ribeiro de Macedo

A política protecionista então implementada constituiu uma resposta a crescente importação de artigos industriais estrangeiros, que havia progredido desde 1640, na sequência dos vários tratados firmados com a França, a Holanda e, sobretudo, com a Inglaterra e que ocasionava uma formidável saída de dinheiro, num contexto pautado pela redução persistentemente da capacidade para importar portuguesa.

Tal legislação foi, fundamentalmente, resultado de uma política mercantilista,

6 Duarte Ribeiro de Macedo, citado por: GODINHO, Portugal: as frotas..., p. 725.7 Frédéric Mauro estudou o problema do abastecimento de cereais em Lisboa no século XVII.

Segundo suas conclusões, raros foram os momentos de abundancia de cereais em Portugal. MAURO, Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico - 1570-1670. Lisboa: Imprensa Universitária/ Estampa, 1989, p. 335. Ver também: SILVA, Luiz Augusto Rebello da. História de Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional, 1971. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal - Vol. V: A Restauração e a Monarquia Absoluta. Lisboa: Verbo, 1980, p. 378.

8 Q. D'O. Portugal, t. 33. Mémoire donné a M. lê Président Rouillé au móis de Juin 1697 par M. De Granges cy devant Cônsul de Ia Nation française a Lisbonne. Apud PINTO, O ouro brasileiro..., p.9.

9 Citado por: MACEDO, Jorge Borges de. Problemas de história da indústria portuguesa no século XVIII. Lisboa: Associação Industrial Portuguesa, 1963, p. 27.

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inspirada nas proposições de Colbert que foram introduzidas em Portugal por, principalmente, Duarte Ribeiro de Macedo com seu Discurso.

Coube a um grupo político muito influente, no âmbito da corte do regente D. Pedro II de Portugal, atribuir os contornos mais definidos a esse episódio da evolução econômica lusa que procurou “aplicar um corretivo a economia portuguesa e ao gênero de vida nacional, que continuava a assentar com demasia sobre a produção agrícola, vinícola e açucareira, com base no comércio marítimo”10.

Eram porta-vozes desse grupo, o Marquês de Fronteira e o terceiro Conde da Ericeira (secretário de Estado de 1675 a 1690), e seu principal teórico Duarte Ribeiro de Macedo. As proposições do grupo procuraram reverter o cenário pautado por uma balança comercial amplamente deficitária e suas consequências.

Dito isso, cabe perguntarmos: quais eram os caminhos possíveis, que poderiam ser adotados pelo grupo do Conde da Ericeira para minimizar os impactos, em Portugal, da recessão então em curso? Como implementar a política protecionista almejada e assim diminuir os déficits comerciais enfrentados e não privar os portugueses das manufaturas que necessitavam?

As possibilidades ou impossibilidades que se apresentavam eram: 1) a importação de cereais (importante elemento na pauta de importações portuguesa) não poderia ser reduzida de forma rápida, pois tal medida geraria escassez e poderia por em risco a ordem social; 2) Fomentar a produção nacional de alimentos também era um procedimento arriscado, já que não teria efeitos no curto prazo, além de contrariar os interesses de parte importante da aristocracia, envolvida com outras atividades, dentre elas a produção vinícola, que ganhava cada vez mais espaço. Como a redução da importação de cereais e o seu cultivo em larga escala, em solo português, não eram viáveis, restava apenas uma opção: 3) reduzir a entrada de produtos manufaturados, substituindo-os por artigos nacionais. Tal como nos diz Duarte Ribeiro de Macedo, “o único meio que ha para evitar este dano, e impedir que o dinheiro saia do Reino, he introduzir nelle as Artes. Não há outra idéia que possa produzir effeito, nem mais segura nem mais infalível”11.

Para tanto, montou-se um sistema de incentivos conducentes à criação de manufaturas por meio da coordenação das atividades, organização do fornecimento de matérias-primas, estandardização das vendas e tarifas fiscais, medidas tendentes a facilitar a comercialização dos produtos e, até pela reserva de encomendas para o Estado, como no caso dos fardamentos militares. Ações que ainda foram complementadas pelo impedimento, por parte da coroa portuguesa, do aumento do preço de venda dos gêneros importados, o que, além de reduzir a margem de lucro dos negociantes diminuía a saída de divisas. É assim que, a partir do último quartel do século XVII, verdadeiramente começou a existir em Portugal uma autentica política industrial.

Em um texto transcrito no livro de L. C. Dias, Lanifícios na Política do Conde da Ericeira, – que em virtude de sua importância e clareza reproduzimos um grande trecho – aparecem os meios pelos quais os lanifícios e as demais atividades deveriam ser incentivados.10 CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Parte I - Tomo I. Rio de Janeiro:

Instituto Rio Branco, 1952, p. 70.11 MACEDO, Duarte Ribeiro. Obras inéditas. Lisboa: Impressão Régia, 1817, p. 34.

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A primeira fabrica que se deve cuidar he a dos pannos. [Para tanto, deve ser] ordenando que na Alfândega não despachem panos grossos de fora do Reino porque aos estrangeiros só lhe he permitido introduzir os finos, e depois de estabelecidas as fabricas se podem também prohibir estes. O mesmo cuidado se pode por também na fabrica das baetas; Deve-se examinar se ha no Reino, [...] as lans que são necessárias para estas duas fabricas, e para facilitar a entrada se devem tirar todos os direitos que pagão as Lans. Se deve ordenar logo [...] que as fazendas dos soldados sejão de pano da terra. A fabrica de chapeos, meas, e fitas se deve também renovar procurando se de fora artífices que fabriquem estes géneros com tal brevidade que se possa uzar delles ainda que sejão mais caros. A fábrica de vidro, e papel estão principiadas, e pondo se cuidado se poderão estabelecer de modo que se escuzem estes géneros de fora. Deve-se prohibir todo o ouro e prata nos vestidos [...]. O Cuidado de melhorar [...], a navegação de alguns rios, a conservação dos portos e barras, e augmento da agricultura. Concerto de caminhos e pontes, que todas estas couzas tem sua travação, e dependência huma das outras, e todas conduzem para o bem publico.12

Portanto, tal como evidencia o texto, a política adotada foi uma combinação de restrições à importação de bens determinados, fomento a produção nacional através de subsídios e até mesmo inversões diretas da Coroa na produção, além de investimentos em infraestrutura. Pela síntese de Jaime Cortesão temos: “Por duas formas buscou o Conde de Ericeira, ‘Colbert de Portugal’, como mais tarde e com respeito se lhe chamou a Câmara dos Comuns, em Londres, remediar o vício nacional do luxo e a carência da indústria de tecidos, inspirando a promulgação das Pragmáticas sobre a suntuária [expressão central das ações empreendidas] e promovendo a criação de fábricas”13.

A carta de intenções que acabamos de ver deu prioridade à manufatura de lã. Ela evidencia que o motor da ação de Ericeira foram os têxteis, o que se explica em virtude do enorme dispêndio resultante das suas importações. Duarte Ribeiro de Macedo chega a afirmar que “as fazendas lavradas que os estrangeiros méttem no Reino, são as que unicamente fazem exceder o valor do que lhes damos em troco”14.

As proposições contidas no trecho do documento acima reproduzido nos permitem vislumbrarmos as formas de ação e as prioridades do Estado português. Tais conjecturas, no âmbito do período do Conde da Ericeira como Vedor da Fazenda, ganham contornos definidos com as diferentes leis Pragmáticas promulgadas.

12 Transcrito em DIAS, Luís F. de Carvalho. Os lanifícios na política económica do Conde da Ericeira. Lanifícios - Boletim Mensal da Federação Nacional dos Industriais de Lanifícios, Lisboa, 1955, p. 67-68.

13 CORTESÃO, Alexandre de Gusmão..., p. 70.14 MACEDO, Obras inéditas, p. 35.

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A consequência legal do ponto de vista do grupo políticodo Conde da Ericeira: as Pragmáticas

No período compreendido entre o fim de 1660 e fins 1690, foram promulgadas sucessivas leis chamadas Pragmáticas Sanções (1668, 1677, 1686 e 1698)15, que nada mais foram do que a consequência legal do ponto de vista do grupo político então dominante que girava em torno do Vedor da Fazenda de Pedro II.

Elas consistiam16 em decisões dos reis com valor de leis e que tinham por objetivo ou limitar o uso de artigos de luxo, acomodando-o às presumíveis possibilidades econômicas das diferentes classes sociais e assim, “evitar a desordem do luxo e vaidade, com que miseravelmente se empobreciam [os vassalos], faltando por esta causa a outras obrigações mais preciosas de suas casas e famílias”17 ou proteger as fábricas e manufaturas nacionais. Portanto, o que estava sendo colocado em prática era uma política de nacionalismo econômico característica do fim do século XVII e de grande parte do século XVIII.

Na estrutura da antiga sociedade portuguesa18 e, nas sociedades de antigo regime em geral, tais promulgações tinham apelo, pois a condição social do indivíduo era claramente indicada pelos seus modos em geral e pelo de vestir em particular. O que foi evidenciado pelo prólogo da pragmática de 1668: Por “estarem os meus Vassallos tão atenuados de seus patrimonios, e com tanto empenho, que mal podem com suas rendas acudir ao precisamente necessario, quanto mais as superfluas e escusadas novidades que se experimentam [promulgo a presente Lei Pragmática]”19.

No preâmbulo da pragmática de 8 de junho de 1668, temos o objetivo almejado por ela: “faço saber [nos diz D. Pedro II] aos que esta lei virem, que, nas Cortes que convoquei para as cousas necessárias a conservação deste Reino, por parte dos Três Estados delle, Eclesiástico, Nobreza e Povo, me foi representado e pedido com grande instancia quizesse atalhar a grande demasia e excessos que há nos trajes, vestidos, guarnições e outras cousas, e feitios delles” 20.

Na pragmática de 1677, por sua vez, o monarca português, considerando a obrigação que tinha de acudir seus vassalos “não só como o exemplo de [sua] Pessoa

15 A promulgação dessas leis não é interrompida no final do século XVII. Em 1749, diante da recessão que se esboçava no país, causada pelo declínio da produção de ouro brasileiro e queda na cotação do quilate dos diamantes, foi decretada a Pragmática de 24 de maio de 1749. Alguns anos depois D. José I (1750-1777) promulgou nova Pragmática. Posteriormente, o Marquês de Pombal promulgou outras duas, em 1762 e em 1765, que vigoraram por mais de um século, legislando sobre o luto. FERREIRA, M. E. C. Pragmáticas. In: SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de História de Portugal - Vol. III. Porto: Figueirinhas, 1979, p. 485.

16 Um comentário se faz necessário sobre o verbete “Pragmáticas”, do Dicionário de História de Portugal. Não houve a promulgação de nenhuma pragmática em 1690, como Ferreira afirma. Houve sim, uma petição datada de 7 de agosto de 1690, que esclarecia alguns pontos da pragmática de 1689. Além deste documento, houve um Alvará de 15 de novembro de 1690, que mandava colocar uma marca nos chapéus feitos em Portugal, para diferenciá-los dos importados. Cf. SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, quarta parte, p. 245 e p. 253-254.

17 Intróito da pragmática promulgada em 8 de junho de 1668. In: SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, segunda parte, p. 147 e segs.

18 Para tanto ver: GODINHO, V. M. A estrutura da antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971.

19 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, segunda parte: 1657-1674, p. 147 e segs.20 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, segunda parte: 1657-1674, p. 147 e segs.

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e Casa Real, mas também procurar por todos os meios possíveis, extinguir os abusos, evitar as ruínas, e moderar os vãos adornos das pessoas, casas e famílias”, nos indica o conjunto de itens que procurava regulamentar, condicionando os usos e costumes dos portugueses: “excesso no custo das galas, o luxo com que se adornavam as casas, se fabricavam os coches, se vestiam os lacaios [...] a dispendiosa vaidade dos funeraes, forma dos lutos”, demasias que acabavam por prejudicar e “envilecer muitas vezes por vários modos as famílias mais nobres, com grande desserviços de Deus, damno da honestidade, dos costumes, do bem publico do Reino e da conservação delle” 21.

Essas promulgações que procuravam regular a vestimenta, os adornos, etc., constituíram, é importante notarmos, expediente hábil da política protecionista empreendida. Com tais leis, que proibiam o uso de certos itens, Portugal evitou restringir diretamente as importações, o que possibilitou a manutenção dos tratados acordados com as potências europeias e, portanto, a conservação do apoio diplomático e/ou militar que então desfrutava, sobretudo da Inglaterra, o que era necessário a Portugal no quadro dos difíceis equilíbrios internacionais de então.

Além disso, a proibição do uso pode ser explicada, também, em virtude do contrabando. Consequência direta das barreiras alfandegárias elevadas, o contrabando, que não havia como ser vencido, pois se ajustava a todas as situações22.

E além de tentar regular o uso de diversos itens, as Pragmáticas possuíam outra faceta, e esta fundamental. Na verdade, elas traduziam a versão lusa das proposições de Colbert, em moda na época. As leis antissuntuárias procuravam arbitrar o comércio internacional através de uma legislação restritiva do consumo de produtos importados e assim reduzir as importações minimizando o déficit da balança comercial portuguesa. Para tanto, protegeu e incentivou as fábricas e manufaturas nacionais, importou técnicas e técnicos23 e concedeu privilégios fiscais e de mercado para certas unidades industriais. Medidas que procuravam possibilitar comprar menos e vender mais. O objetivo era diminuir e substituir importações que o país não estava em condições de pagar.

Ao nos defrontarmos com parte da documentação e da bibliografia que aborda o tema, fica patente que a política protecionista posta em prática não poderia ser levada a cabo se já não existisse uma base de produção nacional, capaz de fornecer,

21 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, terceira parte: 1675-1682, p. 25 e segs.22 O crescente número de estrangeiros em Portugal criou condições muito propicias para o contrabando.

Pelo menos a partir da Restauração, não é possível estudar o comércio externo português sem o ter em conta, tanto na exportação como na importação. Cf. CASTRO, A. de. Comércio Exterior. In: SERRÃO, Dicionário de História de Portugal, p. 631.

23 Com relação às técnicas de produção, os portugueses, sem abandonar os seus tradicionais processos, procuraram assimilar procedimentos de tecelagem novos por meio da contratação de mestres estrangeiros. Para tanto, em 1678 o governo português buscou na Itália mestres para ensinar o fabrico da seda e vidros. SERRÃO, José Vicente. O quadro econômico: configurações estruturais e tendências de evolução. In: HESPANHA, António Manoel (coord.). História de Portugal - Vol. 4: o Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1993, p. 90. Por volta de 1679, chegaram da Espanha, trabalhadores para as fábricas de pano. MACEDO, Problemas de História da indústria portuguesa..., p. 33, Também foram para as fábricas portuguesas trabalhadores franceses (ferro) e ingleses (lanifícios). GODINHO, Portugal: as frotas..., p. 724.

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por meio de diferentes estímulos, os produtos que deixavam de ser importados24. Partindo desta constatação, a pergunta relevante passa a ser: qual o status, no período que abordamos, da produção doméstica, das fábricas e das manufaturas portuguesas?

No caso dos panos de lã, por exemplo, as fábricas já existiam desde tempos distantes em certas regiões do país, principalmente Beira e Alentejo. “Nos primórdios da monarquia [havia] indústria caseira, por toda a parte onde se criasse o gado lanígero, já no período ainda feudal, já mais tarde, quando os povoados constituíram centros econômicos com vida própria25”. Segundo Lúcio de Azevedo, não há documentos que comprovem o acerto de tal afirmação, mas o historiador português a julga correta por analogia de condições em outros países. Para um período um pouco mais recente, no reinado de D. João III, ele nos diz que já “havia no Fundão tecelagens com fim comercial, consoante se infere da nomeação de um recebedor da sisa dos panos para a comarca, em 1529. Nos panos da Covilhã fala Gil Vicente, assim como nos de Alcobaça”26. Essas produções eram decorrentes de trabalho de teares domésticos, as manipulações de antes e depois da tecelagem dividiam-se por diferentes lares. “Era adágio conhecido que se todos os filhos de Adão pecaram, todos os da Covilhã cardaram; e aos habitantes de Castelo de Vide se dava alcunha de cardadores”27.

No período acima considerado por Lúcio de Azevedo, no que se refere à organização da produção, as formas predominantes eram a oficina artesanal e a “indústria” rural dispersa, mais ou menos de acordo com o que a historiografia da especialidade tem chamado proto-industrialização. A primeira, mais característica dos aglomerados populacionais, correspondia a uma forma de divisão social do trabalho e, quando instaladas nos centros urbanos de maior dimensão ficavam sujeitas à disciplina corporativa. Já a indústria dispersa, própria das zonas rurais, era realizada nos domicílios pela família camponesa, que apenas empregava parte do seu tempo de trabalho nessas atividades industriais, complementando as atividades agrícolas28.

Formas de organização mais avançadas, do tipo das manufaturas – que implicavam concentração dos operários e das diferentes operações e fases do trabalho sob um mesmo teto e sob direção de um mesmo capital – só foram promovidas, pela primeira vez de forma significativa, com as políticas fabris e manufatureiras 24 Tem-se confundido esta ‘política industrial’ teorizada por Duarte Ribeiro de Macedo, preconizada

por um importante grupo político do tempo da regência de D. Pedro e posta em execução pelo vedor da Fazenda, conde da Ericeira, com a criação da indústria em Portugal. “Nada mais errado”. MACEDO, Jorge Borges de. Indústria. In: SERRÃO, Dicionário de História de Portugal, p. 530.

25 AZEVEDO, João Lúcio de. Épocas de Portugal econômico. Lisboa: Livraria Clássica, 1928, p.411.

26 AZEVEDO, Épocas de Portugal econômico, p. 411.27 AZEVEDO, Épocas de Portugal econômico, p. 411.28 SERRÃO, O quadro econômico..., p. 95 e seguintes. Antes da conjuntura depressiva, durante

a Guerra de Restauração, algumas atividades manufatureiras estratégicas para o Estado foram organizadas e incentivadas. Destas, destacam-se as ferrarias, fundamentais para o fornecimento do armamento, e a transformação do cânhamo (fabricação de cordas), essencial para a construção naval. PEDREIRA, Jorge Miguel Viana. Estrutura industrial e mercado colonial: Portugal e Brasil. 1780 – 1830. Linda-a-Velha: Difel, 1994, p. 27. Ver também: SERRÃO, Joel & Martins, Gabriela. Da indústria portuguesa do Antigo Regime ao Capitalismo. Lisboa: Livros Horizonte. 1978. DIAS, Os lanifícios na Política econômica...

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implementadas no final do seiscentos, ao longo do período onde prevaleceram as proposições do grupo do conde da Ericeira. Neste momento, parte da produção já se concentrava em fábricas, embora de modestas proporções. Eram essas, além da indústria doméstica, que os paladinos do infante desenvolvimentismo português, procuravam proteger e impulsionar, mesmo sendo notório que os tecidos fabricados nesses estabelecimentos eram “mal obrados e falsificados, assim na conta dos fios como na impropriedade das tintas”29.

A descrição de uma manufatura que operava, em 1680, na Covilhã permite vislumbrarmos a complexidade já existente nas fábricas daquela época. Ela funcionava com 17 teares direcionados para o fabrico de “novos tecidos de tipo inglês”, utilizava 23 pessoas por tear, o que perfaz 381 trabalhadores, a que se acrescentam outros 34 para serviços gerais, num total de 415 pessoas30.

Agora, para darmos continuidade a nossa discussão faremos algumas perguntas sobre a eficácia das Pragmáticas promulgadas. Porém, antes é necessário elencarmos determinadas notas sobre elas, para que possamos apreender, dentre outras coisas, as dificuldades que enfrentaram.

Notas acerca das Pragmáticas

Vejamos algumas passagens das diferentes Pragmáticas que contextualizam a política protecionista portuguesa de fins do XVII.

Além da regulação dos usos e costumes, o elemento constante presente nas entrelinhas das passagens a seguir é a busca por mitigar os danos à economia portuguesa, consubstanciados pela saída dos metais preciosos do reino, decorrente da constante e abundante entrada de manufaturas estrangeiras. A seguir, seguem passagens de algumas pragmáticas que elucidam algumas de suas características e intuitos.

Na pragmática de 1668, foi proibido para qualquer pessoa, independente da qualidade ou condição, o uso em seus: “vestidos [...] de brocados, tellas, tellilbas, lamas, nem de outra quaesquer sedas tecidas, guarnecidas ou bordadas com ouro, prata, ou seda, nem de rendas, passamanes, laçarias, pestans, galões, debruns, rebetes, espiguilhas, ou quaesquer outras guarnições, em que entre ouro, prata seda ou linha”.

Na promulgação de 1677 ficou estabelecido que nenhuma pessoa, independente do título, poderia usar nos reinos e senhorios de Portugal “adornos de suas pessoas, filhos, criados, casa, serviço, e uso, que de novo fizer, de seda, renda fitas, bordados, ou guarnições que tenham ouro ou prata fina, ou falsa”31.

Na pragmática decretada em 1686, por sua vez, lemos no seu introito, “que mostrando a experiência não serem bastante até agora as pragmaticas que mandei publicar a rogo e instancia de meus Vassallos, juntos em Côrtes, nos anos de 1668 e 1677, para moderar as despesas que se tinham introduzido no uso dos vestidos, casas, coches, seges e liteiras; mas antes que se tem aumentado com maior excesso,

29 Regimento de 7 de janeiro de 1690. Sistema ou coleção dos registros reais, t. 2º.30 DIAS, apud MACEDO, Problemas de História da indústria portuguesa..., p. 34.31 Lei Pragmática promulgada em 25 de janeiro de 1677. Capítulo I. In: SILVA, Coleção cronológica

da Legislação Portuguesa, terceira parte: 1675-1682, p. 25 e segs.

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pela grande variedade, com que cada dia se alteram os trages, e se inventam novas manufaturas [...]; determinei fazer nova Pragmatica que inalteravelmente se haja de obedecer, e em que se prohiba o uso das cousas seguintes”32:

Todo o genero de telas e sedas, que levarem prata ou ouro, toda a guarnição de ouro, ou prata, em qualquer genero de alfaias, ou de vestidos [...]. Todo o gênero de chapéus que não forem fabricados nestes Reino. Todos as rendas, que se chamam bordados, ou ponto de Veneza. Todos os adereços de vidros e pedras falsas, ou venham de fora do Reino, ou façam dentre delle [...].

E, mais a frente, no mesmo documento, há uma menção que vincula explicitamente as Pragmáticas e o incentivo às fábricas do reino. Vejamos: “E porque tenho mandado dar novas formas ás fabricas do Reino, para com ellas se suprir o que for necessário a meus Vassallos, prohibindo que se não possa usar de nenhum gênero de pannos negros ou de cor, não sendo fabricados dentro do Reino”.

Por fim, a pragmática de 1698, novamente reafirma as disposições presentes nas anteriores e enfatiza a importância do cumprimento das regulações prescritas. Nela lemos: “houve por bem mandar passar esta nova [pragmática], na qual especialmente declarasse tudo que das outras se devia observar, e o mais que presentemente fosse conveniente, para que esta somente tenha sua devida observancia”33.

Após expormos alguns elementos constituintes das Pragmáticas, cabe perguntarmos: as leis suntuárias atingiram seu objetivo implícito?

As Pragmáticas equacionaram o déficitda balança comercial portuguesa?

Na verdade, não, por diferentes motivos.Em primeiro lugar, como vimos, as Pragmáticas incidiam principalmente sobre o

uso de tecidos e outros artigos estrangeiros, as restrições às importações não fizeram parte de todas as promulgações, o que colocou em segundo plano a vigilância alfandegária relativa à entrada de manufaturas, sobretudo de tecidos – o que pode ser explicado pelos motivos já mencionados: manutenção dos tratados acordados com as potências europeias e em virtude da dificuldade de combater o contrabando.

Por exemplo, o artigo IV da Pragmática de 1677 enfatiza a proibição do uso e não diz nada sobre o impedimento das importações, nele lemos: “nenhuma pessoa se poderá vestir de panno, que não seja fabricado neste Reino; como tambem se não poderá usar de voltas de renda, cintos, talins, boldriés, e chapéos, que não sejam feitos nelle”34.32 Essa e as próximas duas citações dizem respeito: Lei Pragmática promulgada em 9 de agosto de

1686. In: SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, quarta parte: 1683-1701, p. 64-65. Itálico nosso.

33 Lei pragmática promulgada em 8 de junho de 1668. In: SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, segunda parte: 1657-1674, p. 419.

34 Lei Pragmática promulgada em 25 de janeiro de 1677. Capítulo I. In: SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, terceira parte: 1675-1682, p. 26. Itálico nosso. Lúcio de Azevedo nos diz que de 1677 até 1688 não foi suprimido na alfândega o despacho dos panos e, ainda nesse intervalo, se autorizou o uso deles por dois anos. AZEVEDO, Épocas de Portugal econômico, p. 407.

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Somente na Pragmática de 1686, para que ela se tornasse mais efetiva que as anteriores, foram prescritas a proibição da entrada em Portugal dos itens que mencionava e da venda desses artigos nas ruas. Nela lemos: “nas Alfandegas destes Reinos, aonde se não dará despacho a nenhuma das cousas sobreditas, nas quaes se comprehenderão os maços de fio de ouro e prata, logo depois do dia da publicação desta Lei; e para o dito effeito mandarei passar as ordens necessárias pelo conselho de minha Fazenda”35.

E mais a frente: não se “poderá vender pelas ruas, com caixas, ou por outro qualquer modo, algum dos gêneros que são permitidos, ou prohibidos nesta Lei, pelo damno que fazem ao commum de meus Vassallos na maior facilidade das despesas e introducção do luxo”36.

Em segundo lugar, as leis só tinham efeito para os produtos cuja produção portuguesa fosse capaz de substituir e assim, satisfazer o mercado nacional. Quando não era capaz, a pragmática era revogada no todo ou em parte, ou suspensa. Na Pragmática de 1686, consta, por exemplo, que “todos os adereços de vidros e pedras falsas, ou venham de fora do Reino, ou se façam dentro delle”37.

O que é corroborado por passagens do documento, já citado acima, tais como: “aos estrangeiros só lhe he permitido introduzir os [tecidos] finos, e depois de estabelecidas as fabricas se podem também prohibir estes”. Mais a frente: “deve-se cuidar que generos se devem prohibir totalmente para que não venhão de fora, sendo o primeiro que lembra, os sapatos, e outros que ou são escuzados, ou se fabricão entre nos também como pelos estrangeiros”38.

Eram, também, frequentes as autorizações especiais concedida pelo Provedor da Alfândega de Lisboa. Essas se baseavam, sempre, na falta da fabricação nacional e eram decorrentes de necessidades econômicas (construção naval), sociais (concessões a fidalgos) ou religiosas (aquisição de paramentos e ornamentos). Em outros casos a concessão era geral. Exemplos de tais permissões foram as concedidas – após a pragmática de 1677 – para louças e fitas.

E, por fim, houve casos, em que foi necessário revogar ou ignorar as proibições por não ser possível distinguir entre a produção portuguesa e estrangeira, o que fica evidente em diferentes passagens das diversas Pragmáticas. Tomemos a de 1686 como referência, nela ficou proibido “todo o gênero de guarnições nos vestidos, ou mangas delles, quer seja de fitas, quer de bordados, ou de qualquer outra coisa; somente será licito usar de fitas lavradas, ou lisas, sendo fabricadas dentro do Reino, não se aplicando ás guarnições referidas”39.

Ao nos depararmos com regulamentos desse tipo, fica a pergunta: como distinguir as fitas portuguesas das estrangeiras?

35 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, terceira parte: 1675-1682, p. 25 e segs.36 Lei Pragmática promulgada em 9 de agosto de 1686. In: SILVA, Coleção cronológica da Legislação

Portuguesa, quarta parte: 1683-1701, p. 65. Itálico nosso. “As Pragmáticas – nota Jorge Borges de Macedo – que, para evitar o contrabando, proibiam não só a entrada das mercadorias, como o seu uso, tinham propiciado outro tipo de falsificação: a ‘marcação’ das fazendas estrangeiras como portuguesas”. MACEDO, Problemas de história..., p. 49.

37 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, terceira parte: 1675-1682, p. 65.38 Transcrito em Lanifícios, ano 6, n. 61-62, jan./ fev. 1955, p. 67-68. Itálico nosso.39 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, terceira parte: 1675-1682, p. 64.

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Esses fatos, aliados ao amplo contrabando inglês que introduzia em grandes quantidades panos que eram proibidos, situação de que os holandeses se aproveitaram para fazer o mesmo, evidenciam que nunca o mercado português fora totalmente vedado aos lanifícios e demais manufaturas britânicas40 e de outras nações durante a vigência destas leis.

Esta constatação, aliada à persistente dependência portuguesa de manufaturas não produzidas no reino, da importação de cereais e das dificuldades em encontrar novos mercados e bons preços para seus produtos coloniais e metropolitanos fez com que sua balança comercial permanecesse em déficit. Ou seja, mesmo com a política protecionista empreendida, o contexto macroeconômico atribulado permaneceu fazendo com que o escasso moedário português continuasse a fugir do reino.

Além disso, a dificuldade de fazer com que as leis fossem cumpridas as revestia de pouca importância, o que impossibilitava os resultados esperados das diferentes promulgações. Assim, aspecto marcante que perpassa as sucessivas Pragmáticas foi sempre sua ineficácia para o fim que buscavam. O que aparece na carta endereçada a Duarte Ribeiro de Macedo, escrita pelo padre Antonio Viera, sobre a pragmática de 1677, que nos diz: “depois da Pragmática cresceu tudo aquilo que se proibia41”. Assim sendo, a velha mania portuguesa da ostentação conseguiu sempre iludir as disposições proibitivas das leis suntuárias, e o déficit permaneceu.

Podemos ter uma boa ideia disso lendo o artigo II da Lei Pragmática de 1668 que fala: “nenhuma pessoa pode vestir, vestes, nem outra coisa mais, de baixo da roupeta, ou casaca, que o gibão, que não será guarnecido de ouro, nem de prata, nem andará desabotoado; nem assim mais se possa trazer debaixo do calção bombachas de seda com renda, ou outra qualquer guarnição”42.

Por sua vez, no texto da lei de 1677, constava “nenhuma pessoa se poderá vestir de luto comprido, e só usará do curto”43.

Porém, como verificar a qualidade do pano e demais manufaturas que cada um vestia ou usava, na rua, em casa e no luto?

O preâmbulo da Pragmática de 1698 explicita a dificuldade dos próprios executores das leis para operacionalizá-las, em função da grande variedade de elementos abrangidos pelas sucessivas leis. Nele temos o seguinte:

Faço saber [escreve D. Pedro II] aos que esta Lei Pragmatica virem, que, havendo passado varias outras Pragmáticas, e outros Alvarás e Ordens, depois que tenho o governo destes Reinos, sobre o modo de vestir de meus Vassallos, como também sobre os adornos das casas, coches, liteiras, ou seges, poderiam usar, se achava hoje o Rogedor da Supplicaçao, e os mais Ministros, a quem toca a execução dellas, confusos, pela variedade e multidão, e assim não se podia determinar

40 Sobre a eficácia da política protecionista portuguesa, Celso Furtado fez, equivocadamente, a seguinte afirmação: Como resultado da política protecionista implementada, “durante dois decênios, a partir de 1684, o país conseguiu praticamente abolir as importações de tecido”. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, s./d., p. 80.

41 Cartas de 8 de fevereiro e 13 de setembro de 1678. Apud AZEVEDO, Épocas de Portugal econômico, p. 408.

42 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, segunda parte: 1657-1674, p. 419.43 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, terceira parte: 1675-1682, p. 26.

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com certeza quais eram os transgressores; e por este modo vinham aquelas disposições sem observância, sendo ordenadas para bem do Reino em comum, e dos Vassallos em particular, por se lhes evitar a desordem de luxo e da vaidade, com que miseravelmente se empobrecem, faltando por esta causa a outras obrigações mais precisas de suas casas e famílias; e alem disto se passavam os cabedaes do Reino, aos estranhos pelas compras e vendas de mercadorias desnecessárias e inúteis [...]. [Assim,] por bem mando passar esta nova [lei], na qual especialmente declarasse tudo o que das outras se devia observar, e o mais que presentemente fosse conveniente, para que esta somente tenha sua devida observância.

Para auxiliar o trabalho e atenuar as dificuldades dos responsáveis pela fiscalização do cumprimento da lei, o artigo V dessa mesma disposição suntuária, criava “a estampa da forma, em que todos se devem vestir, pela qual hão-de regular [a confecção] [d]os vestidos”, já que “a variedade das modas, de que usam os que fazem, ou mandam fazer vestidos, é a mais damnosa para a Republica”. E, também, estipulou que “os Officiaes de Alfaiate não poderão usar de seus Officios, sem terem a Pragmatica com a estampa em suas tendas, sob pena de incorrerem nas penas”44.

Depois de passarmos pelas Pragmáticas, agora é importante assinalarmos qual era o principal argumento dos adversários das proposições e ações do grupo do Conde da Ericeira, que foram consubstanciadas nas diferentes leis que vimos.

O fundamento da crítica à política portuguesade fomento fabril e manufatureiro

A pedra angular da crítica residia menos na constatação da falta de artigos nacionais que compensassem a interrupção da importação e mais no rompimento dos compromissos assumidos nos tratados complementares anglo-portugueses de 1642, 1654 e 1661 e na possível resultante recusa que os estrangeiros fariam aos produtos portugueses de exportação. Os opositores chamavam atenção, principalmente, para a situação adversa que o açúcar brasileiro poderia encontrar, dada a concorrência com o açúcar dos Barbados e de outras colônias da França e da Inglaterra. Argumentavam que para se vender o açúcar brasileiro era necessário que os mercadores estrangeiros obtivessem um lucro acessório, decorrente da venda de manufaturas estrangeiras em Portugal45.

Contudo, mesmo com esse suposto perigo a realidade amplamente desfavorável da balança comercial deu força aos proponentes coubertistas.

Acerca desse argumento dos opositores da introdução das artes no reino, lemos em Duarte Ribeiro de Macedo uma refutação lúcida e bem articulada, que legitimou

44 SILVA, Coleção cronológica da Legislação Portuguesa, quarta parte: 1683-1701, p. 419-420.45 Cf. MACEDO, Problemas de história..., p. 29 e seguintes. Em um clima de protecionismo

generalizado, os demais Estados, muitas vezes, para importar estes produtos de Portugal exigiam como contrapartida compensações – remoção plena ou parcial dos obstáculos a penetração em Portugal de seus produtos – que não poderiam ser aceitas sob pena de inviabilizar o processo de reestruturação da produção lusa em curso. Cf. MARIUTTI, Eduardo Barros. Colonialismo, Imperialismo e o desenvolvimento econômico europeu. Tese (Doutorado em Economia). Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003, p. 204.

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a empreitada protecionista lusa.

Inicialmente o autor chama a atenção para a seguinte pergunta: qual o I. dano maior, o reino continuar sofrendo a grave sangria de dinheiro ou diminuir, em parte, suas exportações “pela introducção das Artes, que he só o remédio que temos para impedir a extracção do dinheiro, ouro, e prata do Reino”46.

Em um segundo momento afirma que não esta advogando que todas II. as artes sejam introduzidas e fomentadas em Portugal. O que propõe é que sejam introduzidas “as mais necessárias, e as que tem uso comum, e bastarão as que ficão para se comutarem pelas drogas, e fazendas que temos para dar [...]”47.

Segundo Macedo não é a necessidade de Portugal importar manufaturas III. de fora que estimula as suas exportações de gêneros primários. O que, na verdade, condiciona a saída de açúcar tabaco, vinho, etc. é a demanda estrangeira, pois “se necessitarão dellas, a abundancias das [nossas] Artes não as há de difficultar” 48.

Com relação às dificuldades enfrentadas pelas exportações, o autor nos IV. diz: “outro principio há também para facultar, ou difficultar a sahida das nossas drogas, que he o havellas em outra parte a melhor preço, que he o meio de que usão os Holandezes em toda parte do Mundo, e com que se conservarão senhores do Commercio. Tambem a muita abundancia destes gêneros póde ser a causa, ainda que todos necessitem delles” 49.

E por fim, “se não [tiver] sahida as nossas drogas, porque faltarão os V. estrangeiros a virem buscallas, ou pela introdução das Artes, o que não poderá ser, ou porque as tem entre si, nós as navegaremos aonde elles as navegão, porque, em fim, nós lhes ensinamos a Arte de navegar” 50.

A política implementada também se bateu com outros obstáculos internos. A aristocracia e o alto clero sentiram-se lesados com as restrições à importação dos bens de luxo, pois julgavam que seu consumo e ostentação faziam parte de seus privilégios. Os pequenos produtores independentes, temendo pelo seu futuro protestaram contra a criação de grandes unidades de produção. Por fim, como o projeto de industrialização envolveu a utilização de capitais de cristãos-novos, ele acabou contrariando o Tribunal do Santo Ofício. Além destas resistências de cunho social, vigoravam duas dificuldades suplementares que exigiam uma atuação mais ativa do Estado: a) carência de técnicos especializados em Portugal; b) a resistência dos empreendedores privados em investir nas manufaturas: um ramo considerado de risco e que, para os padrões da época, envolvia a imobilização de grande parte do capital em máquinas e instalações. Dificuldades decorrentes de um cenário onde prevalecia uma nobreza e um clero cheio de posses, em face de um povo

46 MACEDO, Obras inéditas, p. 45.47 MACEDO, Obras inéditas, p. 46.48 MACEDO, Obras inéditas, p. 46.49 MACEDO, Obras inéditas, p. 47.50 MACEDO, Obras inéditas, p. 48.

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empobrecido, de sorte que era natural a expansão do luxo, em contraste com a miséria.

Por fim, além dos opositores portugueses, os protestos da classe comercial inglesa contra a obrigatoriedade da população portuguesa usar apenas tecidos produzidos em Portugal surgiram como os primeiros resultados da política implementada.

O protesto da classe comercial inglesa

No final do século, com a criação e expansão de fábricas e manufaturas portuguesas de tecidos foi possível reduzir as compras de pano inglês de forma significativa, o que contribuiu para agravar a crise da indústria têxtil inglesa, decorrente da queda do valor dos tecidos de lã. Como nos diz o professor Manchester: “Entre 1662 e 1701, a exportação de lã da Inglaterra era de mais de 50%. Em 1698, as mercadorias de lã quase atingiram a metade do valor total das exportações gerais. Mas em 1700, não obstante o fato de as exportações gerais aumentarem, os artigos de lã diminuíram em valor. Os protestos por parte dos produtores de lã e dos fabricantes de roupas proclamavam a queda dos preços das mercadorias e sua iminente ruína”51.

O fechamento, embora incompleto, do grande mercado metropolitano e colonial português, em virtude do desenvolvimento de manufaturas em Portugal teve profundo impacto na indústria inglesa e francesa num momento crucial, ocasião – e aqui cometemos um anacronismo consciente – em que à revolução industrial começava a ser disputada. No período compreendido entre 1698 e 1702 apenas algumas centenas de peças de panos de lã foram importadas formalmente desses países52. Informação corroborada pelo The British Merchant, o qual nos diz que só foram enviadas 10.493 peças de panos de lã para Portugal durante o período compreendido entre a Pragmática de 1686 até o tratado de Methuen53. O professor Edgar Prestage, chegou a afirmar, com evidente exagero, que “quanto à indústria, já ela se achava revigorada, não se importando mais panos ingleses”54.

A reação inglesa não se fez esperar e baseou-se na redução dos preços, esperando assim prejudicar a produção portuguesa, já que as importações lusas de manufaturas inglesas nunca foram coibidas totalmente. Contudo, este movimento inglês não obteve bons resultados, pois os tecidos produzidos em Portugal tinham preços bastante inferiores aos similares ingleses, de tal modo que a preponderância dos panos lusos ocorreu tanto nos mercados do interior do país, como nos centros populacionais do litoral. O que demonstra que este processo de organização e coordenação das manufaturas portuguesas, possibilitou que elas concorressem com a indústria estrangeira em bom termo. Como resultado da ascensão das manufaturas portuguesas, houve um ríspido estrangulamento das transações comerciais anglo-portuguesas, que só não tomou proporções maiores pelo fato do poder, em

51 MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973, p. 35. Ver também: SILVA, Luiz Augusto Rebello da. História de Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional, 1871.

52 SHILLINGTON, Violet Mary & CHAPMAN, Annie Beatrice Wallis. The commercial relations of England and Portugal. Nova York: E. P. Dutton & Co., 1908, p. 222.

53 SIDERI, Comércio e poder..., p. 59.54 PRESTAGE, Edgar. Portugal, Brasil e Grã-Bretanha: lição inaugural realizada no King’s College,

Londres, em 8 de outubro de 1923. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925, p. 40.

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Portugal, ser dividido com uma aristocracia latifundiária desinteressada da atividade manufatureira, que já no começo do século XVIII ascende ao poder.

A revitalização da economia atlântica e o fim da políticade incentivos às fábricas e manufaturas portuguesas

A orientação político-manufatureira manteve-se até a década de 1690. A partir de então, o seu próprio fracasso relativo, conjugado com a inversão da conjuntura econômica, com a retomada da prosperidade comercial, com o crescente afluxo de ouro da América Portuguesa, com o estabelecimento de novos compromissos internacionais levaram ao abandono da política industrialista posta em marcha55. Assim, da proibição do uso e da importação de artigos manufaturados estrangeiros nos anos 1670 e 1680, passou-se, com a revogação das Pragmáticas no início do século XVIII, ao consentimento geral do uso e da importação com baixas tarifas alfandegárias.

Sobretudo, três fatores fizeram à coroa abdicar das preocupações anteriores, consubstanciadas nas proposições do grupo do Conde da Ericeira: primeiramente, as novas oportunidades de compensação da balança comercial (através das exportações de vinho metropolitano ou do pagamento em ouro brasileiro); em segundo lugar, o fim da crise econômica que assolou a Europa e a decorrente revitalização da economia atlântica, que começava a conformar-se na década de 1690, grosso modo, resultante dos aspectos que seguem: a) da exploração de novas áreas geográficas; b) da subida do preço do açúcar e da exploração de novos produtos (principalmente o ouro brasileiro); c) da recomposição da força do Estado, que garantiu os monopólios e o sistema de exclusivo, que se constituía no mecanismo por excelência do Antigo Sistema Colonial, através do qual se processava o ajustamento da expansão colonizadora aos processos da economia e sociedade europeia em transição para o capitalismo integral; d) da política de neutralidade portuguesa frente à Guerra da liga de Absburgo e diante do início das disputas que envolviam a sucessão espanhola; e) do impulso dado a exportação dos vinhos portugueses para o mercado britânico. E, por fim, do tratado de Methuen de 1703, que obrigava a abertura do mercado interno aos lanifícios ingleses.

Tais elementos conformaram um contexto onde o período das dificuldades, da escassez de moeda, da contração das receitas do Estado, tinha terminado. Podemos ver a dinâmica da retomada da prosperidade comercial no gráfico a seguir.

55 Mas não se pode inferir daí que se tenha interrompido os incentivos em todos os domínios da indústria. Tal como evidencia Jorge Borges de Macedo no seu trabalho Problemas da História da indústria portuguesa no século XVIII, diversos setores manufatureiros persistiram em Portugal, sobretudo, os do tipo artesanal e doméstico que abasteciam apenas mercados regionais. O autor chegou mesmo a identificar um novo surto manufatureiro ocorrido entre 1720 e 1740, que visou o “fabrico de certos artigos de grande importação (couro, vidro, sedas e papel)”. MACEDO, Problemas da História da indústria..., p. 72.

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GRÁFICO I

Fonte: PEDREIRA, Estrutura industrial e mercado colonial..., p. 42.

Considerações Finais

A dinâmica que procuramos desenhar nas páginas acima – qual seja: desenvolvimento manufatureiro via uma política protecionista, conformada pelas leis Pragmáticas, como resposta à crise e interrupção do mesmo com a retomada da prosperidade comercial – confere a peculiaridade56 da busca portuguesa por construir um parque manufatureiro em fins do XVII e seu fracasso que, em certa medida, perpassa toda a primeira metade do XVIII.

Apesar dos esforços do grupo do conde da Ericeira, a oficina e o trabalho caseiro continuaram a ser a base da atividade “industrial” lusa. “As novas manufaturas criadas não passaram de exceções, tanto no final do século XVII quanto no decurso do século XVIII”57. O que caracteriza a indústria portuguesa ainda no século XVIII é a pequena unidade artesanal pré-capitalista, de produtor independente que visa o mercado local. Não houve no país de Ericeira nada que se compare ao surto das manufaturas organizadas em moldes já capitalistas, característicos das grandes potências, principalmente Inglaterra. Não se formou, em Portugal, na época mercantilista, os pré-requisitos da industrialização moderna58.

No período em que foram implementadas políticas “industrializantes” que vai da promulgação de 1668 a retomada da prosperidade comercial, a partir da década de 1690, o surto manufatureiro foi estimulado pelo impacto, em Portugal, da deterioração da situação econômica geral. Partiu da crise econômica que então 56 Vale chamar atenção para o fato de que a generalização dessa interpretação para o início do

século XIX, feita por dentre outros Godinho e Pedreira, é incorreta, como foi mostrado por José Jobson Arruda em seu trabalho O Brasil no Comércio Colonial, pois minimiza consideravelmente a importância da Colônia brasileira para a economia portuguesa de então. De acordo com essa explicação, nem a abertura dos portos, nem os tratados comerciais de 1810 tiveram importância fundamental para a explicação da crise econômica que Portugal enfrentou no começo do XIX. ARRUDA, José Jobson de Andrade. O Brasil no comércio colonial. São Paulo: Ática, 1980, p. 655 e segs.

57 MACEDO, Problemas da História da indústria..., p. 42.58 Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São

Paulo: Hucitec, 1979, p. 129.

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assolou o país de Camões. Não foi fruto de uma política mercantilista previamente concebida. Foi decorrente de um contexto macroeconômico adverso e praticamente desapareceu quando se iniciou um novo período de prosperidade pautado pela subida do preço do açúcar, da expansão da produção e das exportações vinícola, pela descoberta do ouro na América Portuguesa e, segundo Sideri, também em virtude do suicídio do conde da Ericeira59, que constituiu uma espécie de sinal de reconhecimento da incapacidade de Portugal enveredar por um rumo industrial.

Enquanto os países da Europa continental, por meio de políticas protecionistas, foram criando núcleos que se transformavam em outros tantos polos de desenvolvimento industrial autônomo, em Portugal, tal processo não ocorre solidamente, a não ser com muito atraso no final da época moderna60.

A passagem da penúria comercial à prosperidade – que perdurou durante a primeira metade dos setecentos – determinou uma reorientação das políticas adotadas. A nova conjuntura pela qual passou Portugal no final do século XVII e início do XVIII pôs em cena novas forças políticas, que evidenciam seu poder e seus interesses, de forma inquestionável, em 1703, com a assinatura do Tratado de Methuen.

O cenário português – onde prevalecia a ausência de uma burguesia mercantil dinâmica, uma relativa desorganização do aparelho de Estado e a oposição da aristocracia latifundiária (que fica mais do que evidente no tratado de “paz, comércio e amizade” que assinam no início do XVIII) – aliado a reviravolta conjuntural, foi suficiente para a desarticulação do movimento iniciado pelas políticas do grupo do Conde, posteriormente a sua morte. Estes determinantes negativos foram ainda reforçados pela atitude da Igreja, que claramente preferia a hipótese do livre-câmbio em prejuízo do desenvolvimento da indústria nacional, pois se tal acontecesse estabelecer-se-iam artesões ingleses de religião anglicana, além disso, tal industrialização poderia levar os Judeus a uma nova posição de relevo e influência na vida portuguesa.

Portanto, o desenvolvimento manufatureiro de fins do XVII, não foi mais do que um ponto entre dois períodos da história econômica portuguesa, que Godinho chamou de “ciclo do açúcar do tabaco e do sal” – e “ciclo do ouro brasileiro, do Porto e do Madeira”61.

59 Além da retomada da conjuntura próspera, o fim desse movimento industrialista português, segundo o professor Sandro Sideri, também está atrelado ao suicídio do Conde da Ericeira. Segundo Sideri, tal política identificava-se de tal maneira com a pessoa do Conde, que não subsistiu ao seu suicídio, em 1690. SIDERI, Comércio e poder..., p. 57.

60 O fato é que uma política verdadeiramente protecionista e industrialista não se articula em caráter persistente antes de 1769-1770, isto é, terceira fase da administração pombalina. É que a política de desenvolvimento manufatureiro em Portugal no final do século XVII foi elaborada antes como expediente para enfrentar a crise do mercado colonial e re-equilibrar a balança comercial. “Assim à época do Conde da Ericeira, (...) assim, ainda uma vez, à época do Marquês de Pombal, ou pelo menos até a fase industrialista”. NOVAIS, Portugal e Brasil..., p. 132.

61 GODINHO, Portugal: as frotas..., p. 727.

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RESUMO

Contradizendo muitos dos artigos pertencentes aos tratados internacionais firmados ao longo do século XVII, sobretudo com o Reino Unido – de forma direta e, principalmente, indireta através da proibição do uso e comercialização de manufaturas estrangeiras –, Portugal reagiu à recessão econômica, pautada pela crise do açúcar, do tabaco e dos metais preciosos, que atribuiu as principais características à segunda metade do século XVII. Para minorar as adversidades que enfrentava cuja expressão mais evidente era constituída pelos reiterados déficits de sua balança comercial, Portugal empreendeu uma política macroeconômica conformada por duas vertentes fundamentais. Por um lado, articulou uma legislação protecionista, a partir de 1668. Essa era destinada principalmente a coibir a importação de têxteis, tal política objetivava equacionar os déficits comerciais e promover as fábricas e manufaturas nacionais. Por outro lado, Portugal passou a direcionar esforços para minimizar as dificuldades decorrentes do entesouramento e do cerceamento de seu numerário. Sem deixar de fazer as referências necessárias aos elementos que conformaram a política monetária portuguesa de então, o objetivo central do presente artigo é analisar a implementação e os resultados da política protecionista portuguesa consubstanciada nas Pragmáticas Sanções. Ao longo do texto, veremos a articulação do conjunto de medidas adotadas – criação de manufaturas, organização do fornecimento de matérias-primas, estandardização das vendas e tarifas fiscais, reserva de encomendas para o Estado, etc. – que procuravam minimizar os efeitos, em Portugal, da grande crise econômica em curso.

Palavras Chave: Crise Econômica; Política Mercantilista; Introdução das Artes.

ABSTRACT

Contradicting many of the items belonging to the international treaties signed during the seventeenth century, particularly the United Kingdom - directly and mainly indirect through the prohibition of the use and sale of foreign manufactures - Portugal responded to economic recession, marked by the crisis sugar, tobacco and precious metals, which gave the main features of the second half of the seventeenth century. To alleviate the hardships that faced the expression of which was made more evident by the repeated deficits in its balance of trade, Portugal has undertaken a macroeconomic policy made up of two key. On the one hand, articulated a protectionist legislation, from 1668. This was primarily designed to curb imports of textiles, such a policy was intended to equate the deficits and promote the national factories and manufacturing. Furthermore, Portugal has direct efforts to minimize the difficulties arising from leakage of hoarding and the curtailment of their cash. The first of these aspects, the Portuguese protectionist policy embodied in the Pragmatic sanctions, is the object of this paper. Throughout the text, see the joint set of measures adopted - creating manufacturing, organizing the supply of raw materials, standardization of sales and tax rates, booking orders for the state, etc. - seeking to minimize the effects in Portugal, the ongoing crisis. After discussing the guidelines of this policy, some questions regarding its effectiveness.

Keywords: Economic Crisis; mercantilist policy; Introduction of the Arts.

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“DESAGRAVOS DO BRASIL EGLÓRIAS DE PERNAMBUCO”:

CENTRALIZAÇÃO POLÍTICA E REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DA GUERRA ANTI-HOLANDESA NA IMPRENSA CARIOCA NO SEGUNDO REINADO1

Artur José Renda Vitorino2

Introdução

Em nossos estudos em torno da História Regional, não nos propomos tomar a região meramente como recorte espacial e suporte físico envolvendo uma diversidade de áreas do conhecimento histórico. Consideramos que a região, como linha de pesquisa, exige estudos e reflexões de caráter teórico e metodológico específicos desse recorte, e uma abordagem integradora, envolvendo as várias esferas da existência, nos seus vários níveis de realidade, visando reconstruir analiticamente o processo histórico de sua construção. A região, então, é uma construção histórica que não está a priori definida geograficamente e, muito menos acabada, de uma perspectiva física e natural.

É desta forma que compreendemos a região de Pernambuco, que foi constituindo sua identidade social e política desde o período colonial3, e, especialmente ao longo do Oitocentos, ela foi se diferenciando de uma outra região, a região Centro-Sul do Brasil, cujo epicentro era a cidade do Rio de Janeiro, capital do vice-reinado (1763) e depois do Brasil independente. A centralização em torno do Rio de Janeiro, especialmente após a transmigração da corte em 1808, foi um ato político-administrativo que influenciou e enlaçou as demais regiões brasileiras em torno de si. E essa força centrípeta, exercida pela Corte imperial do Rio de Janeiro sobre as demais províncias do Brasil, ganhou mais força após a implementação das políticas de Estado gerenciadas pelo partido Conservador a partir dos anos 1840.

Pernambuco buscou escapar dessa força centrípeta a fim de ganhar autonomia regional através de um projeto federalista4. Mas a tônica dessa nossa exposição não recairá em torno desse problema. A nossa contribuição será em buscar uma explicação do porquê das produções historiográficas sobre o período da guerra contra

1 Este título tem como referência o livro Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, de Dom Domingos Loreto Couto, concluído em 1757. Sua publicação só veio a ocorrer em 1904, nos volumes dos Anais da Biblioteca Nacional, por iniciativa de Manuel Cícero Peregrino da Silva.

2 Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. Docente da Faculdade de História do Centro de Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. E-Mail: <[email protected]>.

3 MELLO, Evaldo Cabral de. A ferida de narciso: ensaio de história regional. São Paulo: Editora Senac-SP, 2001.

4 MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004.

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os holandeses pelos brasílicos5 no século XVII terem sido resgatadas e publicadas em pleno século XIX, e isso quando a tutela do Rio de Janeiro sobre o Norte do país era inconteste e irreversível.

A Corte imperial e a centralização Saquarema

Ao longo do Segundo Reinado (1831-1889), que as políticas financeiras praticadas pelos partidos Conservador e Liberal eram diametralmente opostas quando um deles estava no comando da pasta da Fazenda. Enquanto os Liberais tomavam medidas para descentralizar a emissão e aumentar a moeda em circulação para facilitar o crédito e estimular as transações comerciais internas e o setor exportador; os Conservadores procuravam segurar as rédeas da economia ao centralizar a emissão e enxugar o meio circulante para manter uma moeda brasileira forte e estável, e uma taxa cambial alta.

Ao aumentar as moedas em circulação, o partido Liberal consequentemente estimulava a especulação na bolsa de valores, o que desestabilizava o valor da moeda, mas aumentava os rendimentos dos exportadores. No entanto, ao mesmo tempo, ele procurava reduzir os gastos públicos para assim poder reduzir os impostos. Já o partido Conservador, mesmo aplicando medidas monetárias restritivas para estabilizar o valor da moeda e dar impulso a uma taxa cambial alta, também favorecia as grandes casas comerciais engajadas na importação, as instituições bancárias inglesas e aumentava os gastos públicos, o que o forçava a financiar a dívida pública através da alta de juros, do aumento de impostos e da realização de empréstimos externos.

De uma perspectiva política, seria provável, como já salientou Raymundo Faoro6, que os fazendeiros estivessem mais próximos do partido Liberal do que do Conservador, visto que os mandamentos descentralizadores e até federalistas dos liberais poderiam atribuir o comando político aos poderes locais, já que, do outro lado, o partido Conservador, com seus próceres Vasconcelos, Olinda, Eusébio, Itaboraí, Uruguai e Paraná, apesar de ter estabelecido uma aliança de magistrados e fazendeiros, esta ligação estava sobreposta pelo princípio que fez surgir o partido Conservador: o fundamental e preponderante princípio do triunfo do centralismo.7

5 FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia: história da guerra brasílica - viagem da armada da Companhia de Comércio e Frotas do Estado do Brasil. Produção e organização de Murilo de Andrade Lima Lisboa. Edição atualizada e revista por Paula Maciel Barbosa. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001 [1675].

6 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1988, p. 341-397; FAORO, Raymundo, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. 3. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1988, p. 162.

7 Sobre os princípios do partido Liberal, instaurados a partir de 1831, e os do partido Conservador, datados de 1836 em diante, ver: BRASILIENSE, Américo, Os programas dos partidos e o 2o Imperio - Primeira parte: exposição de principios. São Paulo: Typographia de Jorge Seckler, 1878. Uma investigação histórica da famosa afirmação atribuída a Hollanda Cavalcanti – “Não há nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”. Ver: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987. Há de ressaltar que os dois partidos mantiveram uma fidelidade programática canina: o partido Conservador defendeu sempre as instituições-base do Segundo Reinado: Poder Moderador, Senado vitalício, Conselho de Estado, através de ações políticas centralizadoras – enquanto o Liberal as combateu, inclusive através de rebeliões.

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Contra as tendências centrífugas desencadeadas durante a Regência (1831-1840), o partido Conservador, diante do território já herdado, vislumbrou que, além do território, um Estado se define pela centralização do poder (político e administrativo). Estabelecido por sua elite política nacional, o Estado monárquico precisava de receita para se manter.

Os gabinetes conservadores e liberais, ao lidarem com as contas do governo agiam de forma diferenciada: o partido Conservador mostrava-se, através do orçamento aprovado, estar mais próximo dos grupos comerciais mais representativos do setor exportador e importador e da concentração do poder no Rio de Janeiro através do monopólio de emissão; ao contrário do partido Liberal, que com determinada linha orçamentária tendia a favorecer os empreendedores nacionais e os produtores rurais8.

Contudo, devido à força inercial político-administrativa implementada pelos Conservadores9, mesmo quando o partido Liberal estava no centro decisório do poder, os resultados de suas ações tendiam a favorecer os interesses das grandes casas comerciais importadoras e exportadoras, dos banqueiros e dos senhores do crédito, em detrimento aos interesses dos senhores proprietários rurais e dos empreendedores e comerciantes nacionais10.

Ao contrário do que supõe parte da historiografia, o fazendeiro de café apresentava uma dependência diante do processo de circulação controlado pelos financiadores da produção – bancos, casas comerciais e comissários. Deste modo, havia um domínio do capital mercantil na economia cafeeira, em que a cidade controlava e drenava o lucro do campo para ela.

Com a abolição do comércio negreiro internacional, o capital da cáfila de negreiros foi absorvido pelo mecanismo bancário e monetário monitorado pelo partido Conservador. A inversão do capital dos mercadores negreiros para a capital do império foi o fator preponderante que catalisou o maior centro financeiro e comercial do país, configurando nela uma economia urbana mercantil cuja dinâmica entrelaçou o veio exportador agrícola com o veio importador de manufaturados e alimentos.

Dentre as características dessa economia urbana mercantil da Corte depois de 1850, estava a subordinação da economia agrícola exportadora do Vale do Paraíba fluminense a ela, ou seja, a grande maioria dos senhores de terra era dependente do crédito e da moeda alocados na cidade. Tal mecanismo fez drenar grande parte dos excedentes da exportação agrícola para os comissários e banqueiros instalados no Rio de Janeiro. Num lance político realizado pelo partido Conservador, a exígua economia monetária brasileira foi garroteada por um mecanismo centralizador que fazia com que todos os rendimentos monetizados fossem remetidos para a Corte. Os comerciantes desta cidade, aliados à tradição mercantilista, financiaram e ganharam

8 ALMEIDA, Tito Franco de. A grande politica: balanço do Imperio no reinado actual - liberaes e conservadores - estudo politico-financeiro. Rio de Janeiro: Imperial Instituto Artistico, 1877.

9 MATTOS, O tempo saquarema.10 Conforme demonstrou Carvalho, a elite política frequentemente provou ser capaz de agir contra

poderosos setores da classe dominante. Um forte exemplo disso foi a promulgação da Lei do Ventre Livre, pelo Gabinete conservador chefiado pelo Visconde de Rio Branco, que foi realizada apesar da ferrenha oposição dos plantadores de café das três províncias chave do Império: Rio, São Paulo e Minas. CARVALHO, José Murilo de. Teatro de sombras: a política imperial. São Paulo: Vértice/ Editora dos Tribunais; Rio de Janeiro, IUPERJ, 1988, p. 50-83.

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com a importação dos mais diversos produtos, fazendo do Rio um centro importador e consumista.

As amarras do sistema bancário ao desenvolvimento econômico não foram somente uma consequência lógica da dinâmica do capital mercantil, mas foi também o resultado do mecanismo político instituído pelo partido Conservador. A política monetária e a arrecadação fiscal implementada pelos conservadores fizeram com que todo o ritmo de acumulação dependesse das institucionalizações estatais, subordinando a agricultura exportadora, atravancando o desenvolvimento manufatureiro e drenando os lucros monetizados da acumulação produtiva mais dinâmica do país para a capital do Império. A Corte, constituindo-se no epicentro da economia nacional, vai absorver os lucros produtivos através do sistema bancário e de crédito. Este sistema, por sua vez, realimentou, através dos comissários, a produção agrícola exportadora e tonificou a importação de bens de consumo.

Para manter essa dominação, os Conservadores adotavam uma política monetária e de crédito que restringiam o desenvolvimento do mercado interno. A reprodução da miséria era um cálculo político para produzir a dependência econômica duplamente articulada: de um lado, o apoio dos votantes e eleitores aos Conservadores significaria um emprego numa repartição pública; de outro, como o mercado interno estava preso aos interesses do capital mercantil, ele não foi capaz de realizar a generalização do trabalho assalariado e bloqueou o crescimento da produção manufatureira, cujo mercado interno ficou incapacitado de incorporar o conjunto da população aos frutos do seu crescimento econômico11.

Quanto à Província de Pernambuco, que compõe um dos principais capítulos do nativismo da política e da historiografia do Segundo Reinado, atesta-nos Evaldo Cabral de Mello que:

A história financeira do Império registra o fato inusitado de que as províncias do norte, que produziam apenas cerca de um terço da receita, eram também as que transferiam maiores saldos para o caixa do Estado. Isso de devia basicamente a que gastos governamentais concentravam-se no centro-sul, não só por motivo da presença administrativa no Rio de Janeiro, mas também por causa dos investimentos em imigração estrangeira e em obras de infra-estrutura. Como o sistema fiscal continuava a repousar nos impostos gerados

11 Graham (1973) e Eisenberg estudaram o processo modernizador em seus aspectos econômicos, discutindo até que ponto a modernização efetivamente ocorreu, ou se não ultrapassou os limites (como no caso dos engenhos centrais nordestinos estudados por Eisenberg) de uma “modernização sem mudanças”, conservadora. Também, sobre como as idéias de três intelectuais (Rebouças, Joaquim Nabuco e Alfredo Taunay) influenciaram nas reformas éticas e morais do país, embora cada um deles defendesse um ponto de vista distinto – Rebouças, motivado pelas mudanças nos Estados Unidos, defendia reformas “americanas”; Nabuco, “inglesas” e Taunay ,“francesas”, ver: CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan/ IUPERJ-UCAM, 1998. Ainda sobre se haveria um processo modernizador geral que acabaria vencendo todos os arcaísmos no Brasil, a análise de Graham (1997) sobre a perenidade da patronagem brasileira desde o Império configura uma negativa categórica da teoria da modernização. GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e a modernização do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1973; GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. EISENBERG, Peter L. Modernização sem mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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pelo comércio exterior, eram as grandes províncias exportadoras que pagavam a fatura da unidade do Império, enquanto as que encontravam menos dependentes do mercado internacional viam-se menos oneradas pelo fisco imperial.12

Aliada à drenagem de receita líquida das províncias do Norte (especialmente da de Pernambuco) para o Centro-Sul do Império13, que como uma força centrípeta fazia escoar para o Rio de Janeiro os rendimentos da produção advindos dos quatro cantos do país, Pernambuco ainda remoía a derrota da nobreza na guerra civil de 1710-1711, que aniquilara as pretensões autonomistas relativamente a Lisboa, assim como também se ressentia das déblâcles de 1817 e 1824, que culminara na revolução de 1848, por vergar de vez “a ferida de narciso” pernambucana à centralização imposta pelo Rio de Janeiro. O libelo intitulado A liberdade no Brasil, seu nascimento, vida, morte e sepultura de Affonso D’Albuquerque Mello14, que surgiu no Recife em 1864, trazia estampado em seu título o sentimento dessa província com relação à economia política que transpassava a querela verbal entre conservadores e liberais quando um deles ocupava o centro decisório de poder de Estado na Corte imperial do Rio de Janeiro.

Pernambuco colonial e a sua Representação Literária no século XIX

Tendo em vista os testes autonomistas compostos pelos pernambucanos no processo da Independência - 1817, a junta de Gervásio Pires Ferreira (1821-1822) e 1824 – seria bastante rico reconstituir o debate historiográfico acerca dos estudos sobre a guerra anti-holandesa em meio às discussões políticas presentes na Corte imperial do Rio de Janeiro sob os efeitos das intenções federalistas da Província de Pernambuco, sobretudo com a revolta Praieira de 1848.

Para tanto, não terá sido indiferente que o Castrioto Lusitano (1679) tenha tido uma primeira reedição condensada em 1844; que a Memórias Diárias da Guerra do Brasil (1654), de Duarte Albuquerque Coelho, tratando da “guerra de resistência” (1630-1637) ao invasor, fossem publicadas em folhetim no Jornal do Commercio em 1855; e que a discussão sobre a guerra holandesa se reacendesse nos saraus, revistas e jornais do Segundo Reinado nos anos 1840-1870.

Evaldo Cabral de Mello explica essa retomada do brio pernambucano pela imprensa do Rio de Janeiro de meados de Oitocentos a partir dos acontecimentos antes e depois da Praieira. Já para Alencastro15, e apesar de seu caráter antimonárquico, a apropriação imperial do nativismo pernambucano também pode ser entendida como um modo de lustrar o ego dos brasileiros diante da humilhante estratégia adotada pelo Brasil de manter o tráfico negreiro mesmo perante o poderio militar inglês e da retórica diplomática de declarar esse ato brasileiro como uma ação pirata pela 12 MELLO, A ferida de narciso..., p. 108-109.13 VILLELA, André A. Distribuição regional das receitas e despesas do Governo Imperial. In: XXXII

Encontro Nacional de Economia. Anais do XXXII Encontro Nacional de Economia. João Pessoa: UFPB, 2004.

14 MELLO, Affonso D’Albuquerque. A liberdade no Brasil, seu nascimento, vida, morte e sepultura. 2. ed. revista e atualizada, com apresentação de Nelson Saldanha. Recife: FUNDAJ/ Editora Massangana, 1989 [1864].

15 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Desagravo de Pernambuco e Glória do Brasil: a obra de Evaldo Cabral de Mello, Novos Estudos, São Paulo, CEBRAP, n. 26, mar. 1990, p. 219-228.

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legislação nacional e internacional. A chegada maciça de proletários portugueses ao Rio de Janeiro a partir da década de 1840, também pôs à baila o quanto o escravismo, gerado pelo colonialismo português havia centúrias, tinha incutido na população livre uma aversão ao trabalho manual, e tal estereótipo travara o arranque do país rumo à sua modernização. E como tanto o mercado atacadista quanto o de retalhos estava sob o controle dos portugueses, toda carestia da cesta alimentar que afetava os nacionais livres urbanos era imputada à ganância presente no espírito mercantil e industrioso dos portugueses residentes no Brasil. Nessa delimitação da nação e do nacionalismo, os desagravos de antanho sofridos e vencidos por Pernambuco seriam agora contabilizados como as glórias do Brasil contra qualquer estrangeiro que viesse a ser tornar inimigo.

De fato, quanto ao tráfico negreiro, ele havia sido proibido por lei brasileira somente em 7 de novembro de 1831; mas, sob vistas grossas do Estado, esse comércio ainda continuou a existir ilegalmente por muito mais tempo, até que uma segunda lei aprovada em 4 de setembro de 1850 pôs definitivamente um fim nele. Nesse momento, alguns políticos eram acusados de serem financiados pelos traficantes e outros argumentavam que o tráfico precisava acabar de vez porque a direção dos negócios brasileiros estava quase de todo nas mãos de traficantes luso-brasileiros que viviam no Rio de Janeiro, em Salvador e no Recife. Por terem os traficantes altas somas de capital, muitos figurões em dificuldades financeiras recorriam a eles para pedir dinheiro emprestado. Além disso, os fazendeiros não compravam os escravos dos traficantes ou especuladores à vista, mas em troca de hipotecas, geralmente terra.

Para os políticos brasileiros, a Grã-Bretanha utilizava-se de um palavreado “humanista” para pressionar o Brasil a acabar com o tráfico. Mas, pela perspectiva econômica, a questão determinante era que o Brasil havia se negado, em 1844, a dar continuidade à ratificação feita em 1827 do tratado comercial de 1810, que concedia altas vantagens aos exportadores ingleses para venderem seus produtos no mercado brasileiro – que constituía, também, um canal de reexportação de produtos da Albion para a costa da África. O contencioso chegou a ponto de o Parlamento inglês aprovar o Bill Aberdeen, em agosto de 1845, que permitiu à Marinha Real britânica radicalizar e tomar como mira de seus vasos de guerra os negreiros que traficavam africanos escravos no Atlântico Sul. Conforme dados fornecidos por Alencastro, “entre 1840 e 1848, enumeram-se quinhentos e cinqüenta e seis navios, na sua maioria, brasileiros, confiscados ou afundados pela frota inglesa”16.

Em meio a esse clima de conflito entre a Inglaterra e o Brasil, os senadores e deputados da Assembleia Geral brasileira reclamavam que a Inglaterra não tinha moral para coagir o Brasil, pois ela havia sido a primeira grande potência narcotraficante do mundo, ao obrigar a China a comprar ópio após derrotá-la em guerra em 1842; além do mais, os ingleses não precisavam de tantos braços, porque tinham ocupado um grande território na Índia, podendo servir-se de seus 40 milhões de habitantes.

Mas naquele tempo, em que a pilhagem era internacional e corria à solta, a

16 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Bahia, Rio de Janeiro et le nouvel ordre colonial 1808-1860. In: CHASE, Jeanne (org.). Géographie du capital marchant aux Amériques - 1760-1860. Paris: École des Hautes Etudes, 1987, p. 136.

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Inglaterra resolveu mudar a situação e tomar conta de vez do pedaço, utilizando-se do argumento da força e da força do argumento. Assim, de um lado concedia aos vasos de guerra da Royal Navy poderes para interceptar e, eventualmente, apresar quaisquer barcos negreiros que singravam no Atlântico Sul; e de outro, usava a artimanha retórica da diplomacia e classificava o Brasil como um Estado-pirata.

Quanto ao sentimento antilusitano, ele não estava presente somente na província de Pernambuco. Os conflitos xenófobos entre nacionais e portugueses podiam ser encontrados no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia. Conforme era anotado no Jornal do Commercio quando de sua retrospectiva dos acontecimentos mais importantes que havia ocorrido no ano de 1854:

Em Pernambuco deu-se um pequeno desaguisado, nascido dessa velha rivalidade que divide uma parte da população nacional e a população portuguesa. Se da diuturnidade dessa rivalidade nos dá testemunho o principio do commercio de retalho constantemente apregoado pelos homens da agitação, não podemos deixar de ver a presteza com que foi acalmado o incidente a que nos referimos sem que delle ficassem dolorosos vestígios, a prova evidente de que muito vão perdendo a sua intensidade ódios tão desarrozoados quão anti-patrioticos.Todavia, na mais grave occurrencia do anno [de 1854] vamos achar o pernicioso impulso desses ódios. Na Bahia, na segunda cidade do império, verificou-se essa occurrencia. O pintor encarregado do panno da boca do theatro entendeu que devia buscar na historia da província o assumpto de sua pintura, e escolheu, como facto capital, a vinda do primeiro governador portuguez ás terras recentemente descobertas do Brazil, por ter sido esse o alvorecer da civilisação neste abençoado torrão americano. Não o entenderão assim as paixões tumultuarias que se alentão com aquelles velhos ódios: o panno do theatro foi considerado como um insulto á nacionalidade, e provocou um motim em que chegou a ser desrespeitada a autoridade publica, que todavia conseguio domina-lo sem derramamento de sangue. Esse incidente foi aproveitado pela imprensa da agitação para manter em alarma a população pacífica, e para obrigar o governo á mais activa vigilancia.17

Ao nosso ver, o alvo a ser atingido com a publicação em forma de folhetim dos feitos brasílicos nas lutas contra os holandeses em Pernambuco, de 1630 a 1638, através das Memórias Diárias da Guerra do Brasil, de Duarte de Albuquerque Coelho18, não eram os portugueses. A retomada desse orgulho de conseguir expulsar 17 Jornal do Comercio, Rio de Janeiro, 2 jan. 1855, p. 1-2.18 Escritas em castelhano, estas “Memórias” foram publicadas em 1654 em Madri, com a dedicatória

do autor ao Rei Don Fernando IV, de Espanha. A edição espanhola (288 p.) já era rara no século XIX, possuindo a Biblioteca Nacional um exemplar; na ótica de editores posteriores, a tradução, publicada no Rio de Janeiro em 1855 não merece crédito. Na versão publicada em 1981 seguiu-se a confrontação da edição de 1944 do Governo de Pernambuco com o texto original por Durval Mendes. Cf. COELHO, Duarte de Albuquerque, Memórias diárias da Guerra do Brasil: 1630-1638. 2. ed. Apresentação e índice onomástico de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1982 [1654].

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o inimigo externo das fronteiras nacionais tinha em mira os Estados Unidos.Ainda não era uma questão diplomática internacional, mas o contencioso retórico

permeava a crônica da política internacional a respeito da livre navegação no Amazonas. O tom da imprensa – e aqui estamos nos reportando ao diário carioca que publicou em suas páginas as “Memórias” – era de vigilância diante dos atos dos americanos para que houvesse a livre navegação do Amazonas. “A ambição dos Estados-Unidos não tem limites [...] E depois de Cuba, já ahi desponta no futuro das suas aspirações o Amazonas, o Amazonas que é nosso, e que elles quererião que lhes entregasse o coração da América Meridional!”, detonava o Jornal do Commercio de 1º de janeiro de 185519.

Na década de 1960, tanto Reis20 quanto Luz21 já haviam mostrado que havia um plano de ocupar a Amazônia com milhares de negros norte-americanos, elaborado pelo Governo dos Estados Unidos na segunda metade do século XIX, defendido pelo Ministro Plenipotenciário de Washington, Gal. James Watson Webb, e pelo brasileiro Tavares Bastos. Mais recentemente, Horne22 mostra que os argumentos de Matthew Fontaine Maury23, em torno da ideia de tornar a região Amazônica como a válvula de escape dos Estados Unidos, não eram elucubrações vazias, já que a Amazônia pertencente, mas mal governada e administrada pelo império do Brasil, era considerado naquele momento o deepest South dos Estados Unidos.

A nossa hipótese, dessa forma, gira em torno da ideia de que a retomada da guerra dos brasílicos contra os holandeses em pleno século XIX era parte de um projeto no qual Benedict Anderson denominou de “comunidades imaginadas”24. A formação do Brasil necessitava de narrativas que conseguissem captar a presumível essência nacional do povo brasileiro. Mas, para a centralização Saquarema, a construção de uma ideia geral das origens do Brasil e dos brasileiros, deveria ser a partir do Rio de Janeiro, capital do Império brasileiro. Deste modo, a guerra contra os holandeses era um feito pernambucano que deveria ser pensado só como um pressuposto metonímico, de que a parte (Pernambuco) representava o todo (a nação brasileira). A partir dessa perspectiva unificadora do Segundo Reinado, o brio pernambucano seria o caput da alma brasileira, que não teria medo de repudiar o inimigo externo caso este – no caso os Estados Unidos – resolvesse ocupar a Amazônia.

19 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1º jan. 1855, p. 1.20 REIS, Arthur Cézar Ferreira. A Amazônia e a cobiça internacional. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira; Manaus: Superintendência da Zona Franca de Manaus, 1982 [1965].21 LUZ, Nícia Vilela, A Amazônia para os negros americanos: as origens de uma controvérsia

internacional. Rio de Janeiro: Saga, 1968.22 HORNE, Gerald. The deepest south: the United States, Brazil, and the African slave trade. Nova

York/ Londres: New York University Press, 2007.23 O livro de Maury, intitulado The Amazon River and Atlantic Slopes of South America, foi editado

em 1853. Naquele mesmo ano também foi lançado no Rio de Janeiro, em edição brasileira.24 Em Imagined Communities Benedict Anderson afirmou: “My point of departure is that nationality,

or, as one might prefer to put is in view of that word’s multiple significations, nation-ness, as well as nationalism, are cultural artifacts [sic] of a particular kind”. ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: reflections on the origin and spread of Nationalism. Londres: Verso, 2002, p. 4.

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RESUMO

Circunscrito à segunda metade do século XIX, discorreremos como as ações políticas, adminis trat ivas e f inanceiras cr iadas e implementadas pelos Saquaremas, instalados na Corte imperial do Rio de Janeiro a partir da década de 1840, atuaram no Norte do país, mais especificamente na província de Pernambucano; e como essas ações foram absorvidas e refletidas pela produção historiográfica pernambucana e pela imprensa carioca em meados do século XIX.

Palavras Chave: História Regional; Representação Literária; Centralização Monárquica.

ABSTRACT

Circumscribed to the second half of century XIX, we will discourse as the actions politics, administrative and financial created and implemented for the Saquaremas, installed in the imperial Cut of Rio de Janeiro since the decade of 1840, they had acted in the North of the country, more specifically in the province of Pernambucano, and as these actions had been absorbed and reflected for the history of the history of Pernambuco production.

Keywords: Regional His tory; Li terary Representation; Monarchic Centralization.

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SABER MÉDICO, CULTURA E SAÚDE PÚBLICANO BRASIL DO SÉCULO XIX1

Alisson Eugênio2

A reforma sanitária é a base de todas as reformas e inclui todas as outras. Promovê-la, portanto, é a filantropia mais apurada3.

Se no século XIX o progresso foi concebido como uma espécie de motor da trajetória dos povos, graças à impactante influência do pensamento ilustrado no ideário de diversos campos de atuação, especialmente no filosófico, científico, político e econômico, então, cabe perguntar, qual seria o seu sentido? Segundo os autores que escreveram sobre esse assunto, entre a Enciclopédia de Denis Diderot e Jean d’Alembert e o Grande Dicionário Universal do Século XIX dirigido por Pierre Larousse, a resposta é: a civilização, que, como conceito, a partir da Ilustração, passou a significar a passagem do estado da barbárie para uma forma superior de organização social.4 Com esse significado, tal conceito pode ser interpretado como a expressão da autoimagem que “a classe alta européia” forjou para si mesma, caracterizando “o tipo específico de comportamento através do qual essa classe se sentia diferente de todos aqueles que julgava mais simples ou mais primitivo”5.

Com base nesse julgamento, que foi construído lentamente durante a Idade Moderna, os setores mais abastados e intelectualizados da Europa ocidental foram se afastando de determinadas práticas sociais, definidas pelos historiadores da cultura como populares, quer dizer, comum a todos, ou aceita coletivamente, de forma que, em 1800, “as haviam abandonado às classes baixas”6. Em meio a esse abandono, pressionou o povo a reformar a sua cultura, principalmente em relação a hábitos que começaram a ser considerados bárbaros e, assim, contrários à civilização; em particular os que os médicos entenderam, a partir das transformações do seu campo de conhecimento, como perigosos à saúde pública.

No Brasil, desde pelo menos a transferência da sede da Coroa portuguesa para o Rio de Janeiro, essa pressão também pode ser observada, sendo a elite médica que aqui atuou no século XIX um dos setores da sociedade que mais se empenharam para combater práticas interpretadas como bárbaras, sobretudo em matéria de salubridade. Isso porque a péssima situação sanitária da população, conforme

1 Este artigo é uma versão revisada do segundo capítulo da minha tese de doutorado, A reforma dos costumes no Brasil do século XIX, defendida em setembro de 2008.

2 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Docente do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas.

3 DOMSLEN, John. Salubridade pública: observações sobre a vital importância da saúde pública em relação à riqueza, poder e prosperidade deste Império. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1878, p. 68.

4 BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 25.5 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1993, p. 54.6 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995,

p. 291.

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percepção dos que tinham a incumbência de melhorá-la, entre os quais os chefes de governo, estava há muito tempo, segundo testemunho, por exemplo, do então presidente da Província de Minas Gerais, Antônio da Costa Pinto, impresso no seu relatório enviado à Assembleia Legislativa em 1837, “roubando à sociedade um número considerável de indivíduos”.

Por isso, como as causas dessa subtração demográfica relacionavam-se, como explicavam os profissionais da medicina da época, com hábitos que deveriam ser enfrentados, devido ao dano que provocavam à saúde pública, era necessário fazer, conforme reiterou o referido presidente no mesmo documento, em concordância com o discurso médico a esse respeito, “uma reforma dos costumes”7. Essa necessidade está embasada em um conjunto de propostas formuladas por médicos para combater as más condições de saúde no Brasil desde 1808, quando, com a conversão do Rio de Janeiro na nova sede do trono português, foi iniciada a criação das primeiras instituições médicas neste país, como a Fisicatura-mor (encarregada da vigilância dos assuntos atinentes à salubridade pública).

Um dos motivos que, segundo os autores das propostas destinadas a atingir tal finalidade, mais colaboravam para a insalubridade da sociedade brasileira eram algumas práticas que, para eles e boa parte das pessoas mais bem informadas, estavam na contramão da civilização. Por essa razão, elas deveriam ser alvos de uma reforma, quer dizer, de um esforço sistemático de transformação de atitudes e valores, por meio da qual seriam eliminadas ou controladas. Tal esforço remete ao que, a partir do final do século XVIII, começou a ser chamado de “polícia médica”, isto é, um conjunto de teorias e ações político-administrativas, organizado para garantir a segurança da saúde da população, quando os efeitos das doenças passaram a ser encarados pelo Estado como problema social e econômico.

O primeiro texto de medicina publicado pela Impressa Régia em 1808, escrito sob a ordem do príncipe regente por Manuel Vieira da Silva, é um marco inicial da organização da polícia médica no Brasil. Pois, o seu autor, como chefe da Fisicatura-mor, propôs meios para resolverem os problemas sanitários do Rio de Janeiro; meios que, para serem colocados em prática, dependeram da intervenção governamental na vida social. Com esse objetivo, afirmou que havia chegado “a feliz época” em que este país sairá “da desgraça que o rodeia” para “entrar na história das nações policiadas”8.

A noção de policiamento, cada vez mais em voga na época, estava sendo construída como forma de definir o empenho político-administrativo de mobilização de recursos materiais e humanos necessários ao rigoroso controle social, para o bom funcionamento e segurança da sociedade, em todas as esferas da vida cotidiana9. No caso da saúde pública, esse empenho cabia ao médico, que, com base no seu campo de conhecimento e na noção de “polícia médica”, deveria assessorar o Estado “a promover, quanto lhes fosse possível, a felicidade dos seus vassalos”10. Afinal, como recorrentemente se afirmava, a ele “cumpre mais do que a todos

7 Arquivo Público Mineiro, Relatórios dos presidentes da província, 1837, p. 15.8 SILVA, Manuel Viera da. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para

melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808, p. 5.9 MACHADO, Roberto. Danação da norma. Rio de Janeiro: Graal, 1978.10 SILVA, Reflexões..., p. 5.

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fazer chegar ao legislador e ao governo a necessidade de disposições, que ponham a população a coberto dessa longa série de enfermidades que ceifam milhares de vidas, pelo estado mefítico da atmosfera”, indicando “os meios de prevenir esses males e”, assim, desempenhando o maior e o mais sagrado dever que lhe impõe a nobre profissão médica.

Essa preocupação inédita de enfrentar as doenças, reunindo as forças da ciência e da política, vinha ocorrendo desde a Ilustração, quando o cuidado com a saúde pública aos poucos foi sendo transformado, do ponto de vista social, em uma questão humanitária, e, do ponto de vista econômico, em uma condição para o progresso. Em relação a esse último ponto de vista, cada vez mais foi se tornando nítida a percepção de que as enfermidades exerciam grande entrave à prosperidade material, devido aos seus crescentes impactos na estrutura demográfica e aos seus efeitos desestabilizadores nas atividades produtivas, em decorrência da maior interdependência social em curso no Ocidente a partir da Revolução Industrial.

Por esse motivo, a medicina foi transformada na época em instrumento de intervenção na sociedade, para que as causas das moléstias, sobretudo as que se manifestavam com maior frequência de forma epidêmica, pudessem ser combatidas preventivamente para evitar que provocassem tanta mortandade. Pois, “sem vassalos, e vassalos robustos, o Estado necessariamente virá a ficar paralítico, sem forças, sem energia, e tendendo a cada dia para a sua inteira ruína”, porque, “sem gente robusta, nem a agricultura, nem as artes, nem as ciências poderão dar passo”, conforme advertiu Francisco de Mello Franco no final do século XVIII11.

Essa relação entre saúde e progresso expressa nessa advertência foi evocada ao longo do século XIX por médicos que atuaram no Brasil, como, por exemplo, José Maria Bomtempo que, ao refletir em 1814 sobre “a conservação da nossa espécie”, lembrou que isso é a principal fonte das riquezas e forças do Estado, e John Domslen que em 1878 reiterou que “a riqueza e o poder de uma nação consistem na saúde da população”12. Por isso, afirmou esse último autor:

O axioma do grande Franklin, que ‘a saúde é a riqueza das nações’, escrito há cerca de cem anos, quando o seu país tinha somente três milhões de habitantes, e, por conseguinte, livre está da maior parte das moléstias que agora nos afligem, deve nos impressionar e nos servir de guia e de exemplo a respeito da grande importância da saúde pública.13

Com esses argumentos, a elite médica ora queria reafirmar a importância da medicina nas sociedades modernas e, com efeito, destacar o papel que os seus profissionais poderiam desempenhar para o avanço delas, ora queria cobrar do poder público maior atenção para com um “objeto de tão palpitante utilidade”, do qual depende o sucesso da “Pátria na senda da prosperidade e civilização”14. Assim, as más condições de saúde, sendo definitivamente compreendidas após a Ilustração 11 FRANCO, Francisco de Mello. Tratado da educação física dos meninos para uso da nação

portuguesa. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1790, p. VI.12 DOMSLEN, Salubridade..., p. 11.13 DOMSLEN, Salubridade..., p.65.14 MELLO, Joaquim Pedro. Generalidades acerca da educação física dos meninos. Tese apresentada

à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1846, p. I.

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como um obstáculo a esse sucesso, precisavam ser combatidas, o que levou o Estado no mundo inteiro a assumir aos poucos o compromisso político de mobilizar todos os recursos para melhorá-las. Como o saber médico na mesma época foi transformado em instrumento estratégico para se atingir esse objetivo, os seus profissionais foram motivados a ampliar a sua dedicação ao estudo das causas responsáveis pela alta mortalidade da população e, com isso, encontrar soluções para diminuí-la.

Entre elas, apontaram a necessidade de se enfrentar um conjunto de práticas sociais tidas como nocivas à saúde, as quais propuseram que fossem eliminadas ou ao menos controladas para “a conservação dos povos”15, e, consequentemente, para que pudessem “existir prósperas manufaturas e uma agricultura produtiva”16.

As práticas que deveriam ser confrontadas para que essa finalidade fosse alcançada são em resumo as seguintes: o despejo de sujeira nas ruas, o uso das igrejas como cemitérios, o abate de reses no perímetro urbano, a venda de alimentos estragados, o descuido com asseio pessoal, a falta de maior precaução com as gestantes e os recém-nascidos, a contratação de amas-de-leite, a aversão à vacinação contra a varíola e a prostituição.

Tais práticas dizem respeito à cultura vivenciada ou tolerada por toda a sociedade, levando alguns médicos à reflexão sobre o que as determinava como forma de entendê-las melhor. Um deles, Francisco de Mello Franco, afirmou que elas são resultados do “império absoluto que os hábitos exercitam nas faculdades intelectuais e na economia física do homem”, entendendo que “hábito é o mesmo que costume já radicado” e, dessa forma, “o homem na sociedade, sendo obrigado a ganhar hábitos bons, outros ruins, por eles se governa”17. Outro, Francisco Ramirez Vaz, explicou que isso se deve ao fato de que “o homem não pode conservar-se tal como saiu das mãos do criador”, pois “as impressões dos agentes que o rodeiam, a repetição das mesmas ações e o império de um gênero de vida uniforme mudam a sua organização”, razão pela qual “o hábito é a sua segunda natureza”. E, sendo assim, concluiu: “Já que não podemos eximir-nos das leis do hábito, forcejemos ao menos por conservar somente os que estiverem em harmonia com a nossa saúde, e por banir de nós todos os demais”18.

Essas palavras finais constituem a essência de parte das propostas médicas que visavam melhorar as condições sanitárias no Brasil do século XIX, erradicando determinadas práticas e controlando outras, consideradas prejudiciais à saúde pública como a seguir será exposto, as quais podem ser classificadas em dois grupos. As pertinentes ao corpo da cidade (o despejo de sujeira nas ruas, o uso das igrejas como cemitérios, o abate de reses no perímetro urbano e a venda de alimentos estragados) e as pertinentes aos corpos dos seus habitantes (o descuido com asseio pessoal, a falta de maior precaução com as gestantes e os recém-nascidos, a contratação de

15 BOMTEMPO, José Maria. Compêndios de medicina prática, feitos por ordem de Sua Alteza Real. Rio de Janeiro: Régia Officina Tipográphica, 1815, p. VIII.

16 DOMSLEN, Salubridade…, p. 9.17 FRANCO, Francisco de Mello. Elementos de higiene ou ditames teoréticos e práticos para conservar

a saúde e prolongar a vida. 3. ed. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1823, p. 14-16.

18 VAZ, Francisco Ramirez. Compêndios de higiene popular. Elvas: Tipografia da Voz do Alentejo, 1860, p. 61-62. Divulgado no Brasil pelo médico Manuel de Castro Sampaio que o adaptou para o português nacional.

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amas-de-leite, a aversão à vacinação contra a varíola e a prostituição).Ao propor a erradicação das práticas citadas no primeiro grupo, a elite médica

objetivou promover um conjunto de novas atitudes relacionadas com a higiene do espaço urbano. Porque, baseada no conceito de miasmas, quer dizer, exalações provenientes da decomposição de matérias orgânicas19, entendiam que a sujeira responsável por tais exalações causava sérios problemas de saúde, como explicou José Eustáquio Gomes:

Desde remota antiguidade que se há reconhecido, e o sublime fundador da Medicina o demonstrou até a evidência, que as águas represadas e corrompidas, que os depósitos de matérias de origem animal, vegetal em fermentação pútrida, dão nascença a emanações pestilenciais que produzem envenenamentos miasmáticos, e que fazem aparecer essas enfermidades malignas e perniciosas, essas epidemias mortíferas que tanto devastam as populações.20

Isso ocorria porque os miasmas, ao serem conduzidos pela respiração ao organismo, geravam um desequilíbrio nas suas funções vitais que favorecia o surgimento de doenças, conforme explicavam os médicos da época. Por esse motivo, os que entre eles se dedicavam a pesquisas converteram em objeto privilegiado de estudo do seu campo de conhecimento todo o tipo de hábito e circunstância que produziam emanações miasmáticas, procurando, a partir de investigações sobre tal assunto, explicar à sociedade e ao Estado como a emissão delas poderia ser diminuída.

A circunstância que mais favorecia a produção dessas emanações era a reunião dos aspectos morfoclimáticos com as más condições higiênicas do espaço urbano. Para se ter uma ideia da preocupação médica com essa perigosa combinação, 47 teses foram elaboradas sobre a influência do clima, da vegetação e do relevo sobre a saúde e 46 sobre questões relativas à higiene pública na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre as décadas de 1830 e 188021.

Antes dessas teses, alguns autores abordaram ambos os temas, como Manuel Vieira da Silva que perguntou se o morro do Castelo, que estava localizado no centro da capital do Império, deveria ser demolido, porque, na interpretação de muitos médicos, favorecia a concentração de miasmas sobre ela22. Enquanto ele procurou explicar que o referido morro não era responsável pela insalubridade da cidade, e sim a produção de exalações de matérias orgânicas em decomposição, que nele encontravam barreira para se dispersar, José Maria Bomtempo, argumentou que ela, por ter sido “fundada em dois grandes vales, se poderia compreender em uma formosíssima planície, se fosse possível demolir o grande morro de Santo Antônio, e se” fosse realizado “o projeto de demolição do morro do Castelo”. Porque, “com a demolição destes obstáculos, por todas as vezes que soprasse a viração, toda cidade ficaria lavada e pura sua atmosfera”, uma vez que, sem “estes obstáculos”, haveria 19 KURY, Lorelai Brilhante. O império dos miasmas: a Academia Imperial de Medicina. Dissertação

(Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1990, p. 74-75.20 Anais da Medicina Pernambucana, ano 1, n. 2, 1842, p. 122.21 Conforme foi possível levantar no catálogo de teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

produzido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, v.1, 1985. 22 SILVA, Reflexões..., p. 8.

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“uma livre ventilação”23.O fato é que tal projeto só foi concretizado no século seguinte, em 1921, e

por motivações arquitetônicas e de engenharia urbana, quando a cidade crescia vertiginosamente e começava a sofrer com o problema da circulação humana, automobilística e maior especulação imobiliária. Além do mais, seria muito difícil derrubar acidentes geográficos de significativo volume e elevação, como o mencionado morro, com os recursos tecnológicos da época, de forma que a visão de Manuel Vieira da Silva acabou prevalecendo, qual seja, a de confrontar as más condições da higiene pública, uma vez que, segundo ele, se esta fosse melhorada a topografia da capital, por si só, não poderia ser tomada como causa de insalubridade.

A sujeira das ruas

No século XIX, o asseio urbano não era muito lisonjeiro em todo o mundo, pois as pessoas ainda estavam sendo acostumadas com as novas regras higiênicas, que os sanitaristas começaram a divulgar somente com o avanço dos estudos médicos impulsionados pela Ilustração. Por esse motivo, enquanto essa divulgação não havia produzido os efeitos esperados, convivia-se nas cidades com todo o tipo de imundície. No Brasil, há muitos testemunhos sobre isso, como o de um cronista inglês que observou porcos em grande abundância remexendo o lixo das ruas Rio de Janeiro no final da década de 181024.

A convivência com animais no espaço urbano, além dos que serviam como meio de transporte, era muito comum no país dada a estratégia de sobrevivência (a de engordarem criações nos quintais) de grande parte das famílias. Todavia, a partir do dia primeiro de outubro de 1828, quando o governo imperial decretou uma lei que impôs a obrigação às Câmaras Municipais de cuidar das questões relativas à saúde pública, reiterou-se a proibição de tal convívio, dessa vez de acordo com as objeções a esse respeito formuladas pela elite médica. Em Mariana, por exemplo, “o abuso de muitos de seus habitantes trazerem porcos pelas ruas públicas” não deveria ser mais tolerado, e para isso os proprietários receberiam multa de “mil e duzentos reis”, conforme foi estipulado, “por cada cabeça que” fosse achada solta25.

Contudo, em 1866, a direção de um jornal local, O Constitucional, depois de lembrar que “a Câmara representa perante os munícipes o mesmo papel que um bom pai representa na família”, acusou os seus membros de negligência em relação a esse papel, alegando que “as ruas são imundas e entulhadas de cavalos, bois, porcos, cabritos, carneiros”, e outros inconvenientes à salubridade. Essa situação atravessou todo o século XIX em muitas localidades brasileiras, pois em 1886 os delegados da recém-criada Inspetoria Geral de Higiene testemunharam que no vasto interior do Império continuava havendo “grande quantidade de criação de porcos solta pelas ruas”, como em Teófilo Otoni, o que cada vez mais estava sendo interpretado como algo muito preocupante do ponto de vista da higiene pública26.

23 BOMTEMPO, José Maria. Plano ou regulamento interno para os exercícios da Academia Médico-Cirúrgica. In: __________. Trabalhos médicos. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1825, p. 4-6.

24 Relato de viagem de James Justinian Morier. Trecho traduzido por Jean Marcel Carvalho França. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 26 fev. 2006, p. 10.

25 Arquivo da Câmara Municipal de Mariana. Registro de Editais, livro 193, 1828, p. 12, verso.26 Arquivo Público Mineiro, Relatórios de Saúde Pública, p.1-26, cx. 8, 1886, p. 19.

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Tal preocupação com a presença de animais nas vias públicas, sobretudo com os que não tinham a função de transporte, deve-se ao fato de que eles revolviam lixo e espalhavam excrementos aonde iam, aumentando a produção de miasmas que os médicos tanto tentavam diminuir, levando um deles, Góes Siqueira, à seguinte constatação:

Se os conselhos e medidas indicadas pela higiene pública não permanecessem quase que unicamente sobre o papel, se fossem uma realidade, não veríamos no seio das nossas povoações vastos e perenes focos de infecção, de onde se desprendem emanações as mais deletérias e nocivas à saúde da população; não veríamos a penetração de mil outros abusos com ofensa daquilo que a ciência previdentemente prescreve e aconselha.27

Esses animais podiam ser vistos transitando pelo espaço urbano, porque as pessoas tinham o “péssimo costume de engordarem porcos em chiqueiros no centro da cidade”, dos quais rotineiramente escapavam, segundo opinião do relator da situação sanitária da Província de Minas Gerais que, por causa dessa prática e de outras não menos insalubres, concluiu: “Ainda está longe o tempo em que o povo reconheça a vantagem da higiene”28.

Outro problema que contribuía para as más condições higiênicas das cidades era o pouco cuidado com os resíduos residenciais e os de determinadas atividades econômicas, porque o seu destino final de um modo geral, em boa parte das vezes, acabava sendo o espaço público. Segundo José Pinheiro de Freitas Soares, em seu Tratado de polícia médica, publicado em 1818, como nas habitações do Reino normalmente faltavam “cloacas, era d’antes costume fazer conduzir por mulheres pretas os excretos às praias”. Porém, “hoje muitas famílias se servem das ruas para semelhantes despejos”, onde “igualmente deitam todo o lixo das casas”29.

No Brasil, esse problema persistiu por todo o século XIX, como mostrou Gilberto Freyre30, porque só muito lentamente a sociedade e as autoridades governamentais começaram a colocar em prática os ensinamentos médicos relativos ao asseio público, apesar do empenho de muitos autores para mostrar o quanto a sujeira urbana prejudica a saúde da população. Por exemplo, em uma das edições da Revista Médica Brasileira, afirmou-se em 1842: “Que triste idéia não se apresenta ao médico que encara a higiene pública de nosso país”, pois até na capital há inúmeros “focos de emanações mortíferas que de tempos em tempos ceifam os seus habitantes”, como as suas “esquinas” que, “encharcadas de urina, recheiam a atmosfera do produto da sua decomposição”31.

Isso ocorria “por não haver em ponto algum de nossas cidades, principalmente no Rio de Janeiro, cloacas públicas para o serviço do povo, o que dá lugar às imundices que se nota nas nossas ruas, sendo raras aquelas em que não abundem” também “matérias fecais”, como observou Tobias Rabelo Leite em sua tese concluída sobre 27 Gazeta Médica da Bahia, ano 1, n. 1, 10 jul. 1866, p. 5.28 Arquivo Público Mineiro, Relatórios de saúde pública, p. 1-26, cx. 7, 1880, p. 1.29 SOARES, José Pinheiro de Freitas. Tratado de polícia médica. Lisboa: Tipografia da Academia

Real das Ciências de Lisboa, 1818, p. 351-2.30 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.31 Revista Médica Brasileira, n. 9, v. 1, 1842, p. 486.

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esse assunto em 1849. Assim, segundo ele , algumas providências urgentes, como a construção de “casas públicas para essa necessidade destinadas e vigilância policial, acostumariam o povo em breve”, que se forem tomadas inicialmente “na capital do Império” poderão ser seguidas como “exemplo às outras” municipalidades32.

Além dos transeuntes, das residências vinha outra parte de toda essa sujeira observada nas cidades, porque, como testemunhou o mesmo autor na capital do país, “o despejo das suas imundices é feito em barris que”, depois de “cheios são conduzidos por pretos para serem lançados no litoral, quando não em algum canto de nossas ruas”33.Após ter feito essa descrição, afirmou: “Ao alcance de todos está o conhecimento dos males provenientes desse costume”, porque impregna a atmosfera “de pútridos miasmas”, que, “por longo tempo conservado pela dificuldade do livre trânsito de ar nas ruas desta cidade abafada por montanhas, produz graves danos a seus habitantes”, tanto “aos ricos em seus vastos e dourados salões, quanto aos pobres em suas choupanas”34.

Apesar disso, a população continuou a se comportar da mesma maneira por muito tempo. Pois as autoridades governamentais precisavam construir um sistema de esgoto para, em seguida, obrigar os proprietários “a mandar fazer à sua custa pias e cloacas nos seus respectivos prédios”, como já havia proposto José Pinheiro de Freitas Soares em 181835.

A implantação de rede sanitária demorou a ocorrer na maioria dos municípios, e assim até em Ouro Preto, capital de Minas Gerais e sede de uma escola de farmácia, nas ruas ainda afloravam nos idos de 1867 “aglomeradas imundices de grande número de casas”, segundo relato do inspetor de saúde pública Domingos Eugênio Nogueira36.

Era como se as pessoas vivessem conforme “a lei da natureza, sem a menor regra de higiene”, contrariando o progresso da civilização, como opinou Francisco Felizardo Ribeiro, ao relatar as condições de salubridade de Congonhas do Sabará, onde, segundo ele, “o asseio da maioria das casas”, sendo “nenhum”, causava “horror”37. E o pior, o que as árvores poderiam fazer para a diminuição da concentração de miasmas produzidos por tanta sujeira, “pela purificação e balanceamento do ar, jazem quase todas por terra reduzidas a cinzas”, pois o “destruidor machado tem tudo derrubado e inexorável continua a aniquilar”, lamentaram em 1842 os membros da Sociedade de Medicina de Pernambuco em uma representação enviada ao governo da província38.

Se as árvores podiam limpar o ar das exalações miasmáticas, mais do que conservá-las, era preciso cultivar “certas plantas que obram como desinfetante”, tais como “jacinto, mignolite, heliotrópio, limão, hortelã, cravo, alfazema, louro, cereja”, etc., propôs John Domslen no seu texto sobre salubridade pública. Isso porque,

32 LEITE, Tobias Rabelo. Breves considerações acerca da polícia sanitária. Tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1849, p. 6-7.

33 LEITE, Breves..., p. 434 LEITE, Breves..., p. 4-5.35 SOARES, Tratado..., p. 352.36 Arquivo Público Mineiro, Correspondências recebidas pelas secretarias do governo, SG 526, 1869,

p. 23.37 Arquivo Público Mineiro, Ofícios ao governo da província, SP 574, 1855, p. 101.38 Anais da Medicina Pernambucana, ano 2, n. 3, 1842, p. 125.

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segundo ele, na “opinião decidida dos mais ilustrados químicos, tão poderoso é esse grande purificador da atmosfera, que distritos inteiros podem ser remidos das funestas malárias que nos infestam, cobrindo-os simplesmente com vegetação aromática”. Por essa razão, todos, “querendo, podem produzir este importante e poderoso meio higiênico, tanto os opulentos proprietários, que muitas terras rodeiam os seus nobres palacetes, assim como o pobre trabalhador que tem somente o lumiar da janela para por o seu humilde vaso de flores, colaborando dessa maneira para a saúde e prosperidade geral”39.

Além de excrementos, jogava-se no espaço urbano muita sujeira das casas e estabelecimentos comerciais. Por essa razão, a elite médica sugeriu, enquanto não fosse montado um sistema de asseio público, a promoção “da limpeza das ruas, obrigando os proprietários e inquilinos que habitam as casas a limpar cada uma das suas testadas de oito em oito dias”, advertindo que não deveria “ficar isenta dessa obrigação pessoa de qualquer qualidade ou condição”40.

Mas essa ideia não vingou imediatamente no Brasil, e assim a sujeira acabava indo parar na maioria das vezes nos quintais, em terrenos baldios, nos leitos dos cursos de água e até mesmo nas vias públicas, como confirmam vários depoimentos originários de diversas partes do país. Em Recife, nos Anais da Medicina Pernambucana, um de seus colaboradores, José Eustáquio Gomes, após chamar a atenção “para as ruas desta cidade” e criticar “a falta de conveniente esgoto” que atrai “vermes e inoportunos insetos”, relatou que o mesmo ocorria nas margens dos rios e nas praias, onde os moradores entulhavam “imundices, lixo, despejo das casas, animais em putrefação e até cadáveres”41. Em Salvador, a direção da Gazeta Médica da Bahia frequentemente reclamava dos “montes de lixo acumulados às portas durante parte do dia”, razão pela qual ela elaborou a seguinte crítica: “É tão necessária a observância dos preceitos de higiene, e está tão firmemente consagrada sua aplicação em todos os povos cultos, que o menosprezo deles pelas autoridades incumbidas de velar pela salubridade pública demonstra sempre uma criminosa negligência ou obstinada ignorância”42. Em Ouro Preto, onde até “ossadas procedentes de açougues” eram vistas em alguns lugares43, insistentemente médicos empregados por órgãos do governo local alertavam para a necessidade de “remover todo o lixo que for encontrado na cidade, como acontece com o montueiro que se tem formado junto à Ponte dos Contos”, como uma das precauções contra as doenças44.

Por tudo isso, Góes Sequeira, inspetor de saúde pública da Bahia, cobrou “o estabelecimento e execução de um sistema de asseio e limpeza pública” para resolver “um dos problemas mais graves e complicados” de Salvador, as suas más condições higiênicas, que retratava o que se passava no Império, de acordo com as “exigências da salubridade pública, da indústria e da agricultura”45.

Em todos os municípios, onde a presença médica era significativa e combativa, essa cobrança foi recorrente. Nas últimas décadas do século XIX, porém, o Estado 39 DOMSLEN, Salubridade…, p. 38-39.40 SOARES, Tratado..., p. 348.41 Anais da Medicina Pernambucana, ano 1, n. 2, 1842, p. 61.42 Gazeta Médica da Bahia, ano 2, n. 45, 15 abr. 1868, p. 228.43 Arquivo Público Mineiro, Relatórios de saúde pública, p. 1-26, cx. 2, 1887, p. 8.44 Arquivo Público Mineiro, Correspondências das secretarias de governo, SG 530, 1886, p. 8.45 Arquivo Público Mineiro, Correspondências..., n. 17, 10 mar. 1867, p. 202.

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começou a contratar empresas para construírem rede de esgotos, como a The Rio de Janeiro City Improvements Company Ltd. em 1862, e para cuidarem da limpeza urbana, como a Aleixo Gary e Cia. em 1871, ambas no Rio de Janeiro, inaugurando uma nova fase na história do asseio público neste país.

Cemitérios

Durante a Antiguidade, as sociedades normalmente ou cremavam os mortos, ou os enterravam em locais afastados das povoações. Entretanto, com a morte do imperador Constantino, responsável pela transformação do cristianismo em religião oficial de Roma, isso começou a mudar no Ocidente, pois ele foi sepultado na Basílica dos Santos Apóstolos, abrindo um precedente que foi seguido pelo clero, pelas pessoas de grande distinção social e posteriormente por todas as pessoas que podiam pagar para serem enterradas nas igrejas ou capelas que frequentavam.

Assim, com o tempo, o que era um privilégio de poucos foi se tornando habitual em toda a massa dos fiéis, até que, ao longo da segunda metade do século XVIII, a elite médica europeia, impulsionada pela Ilustração e pela consequente reformulação do seu saber (da qual derivou a sua maior preocupação com a higiene pública expressa na formulação da teoria dos miasmas), passou a questionar tal hábito e a localização dos cemitérios nas cidades. Em Portugal, por exemplo, surgiram obras como a de Vicente Coelho de Seabra Telles Silva publicada em 1800: Memória sobre os prejuízos causados pelas sepulturas dos cadáveres nos templos, e métodos de os prevenir que levaram o seu governo a proibir, por meio da carta régia de 11 de janeiro de 1801, enterramentos dentro das igrejas46.

Essa proibição somente surtiu efeito após término do debate, que se arrastou no Ocidente até aproximadamente o final da primeira metade do século XIX, promovido pela elite médica em torno de uma esfera da vida cotidiana (o destino dos corpos dos mortos) há séculos restrita ao domínio exclusivo da Igreja e da família47.

Com a transferência da sede da Coroa portuguesa para o Brasil, onde igualmente a sociedade estava acostumada a conviver com sepulturas nas povoações, os médicos que acompanharam a família real fomentaram na Colônia o debate relativo à questão dos enterramentos que na Europa já vinha sendo travado há algumas décadas. Um dos autores que inicialmente lidaram com esse tema foi Manuel Vieira da Silva. No seu texto, publicado em 1808 para apontar meios que pudessem melhorar a situação sanitária do Rio de Janeiro, lembrou que “os enterros dentro das igrejas têm merecido a reprovação de todas as sociedades cultas”, motivo pelo qual tal hábito também deveria ser reprovado “nesta cidade em razão do calor atmosférico, da pouca largura das suas ruas e do modo porque se sepultam os corpos na Misericórdia, deixando-os quase expostos ao calor e ao ar”, contribuindo para a formação “de gazes sufocadores da vida”. Por isso, “não pode duvidar-se que é necessário estabelecer cemitérios nas extremidades da cidade” e ter mais cuidados com as inumações, como jogar “uma porção de terra calcária” nas sepulturas e esperar o tempo suficiente “para a perfeita decomposição dos cadáveres” antes de um novo sepultamento48.

46 SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História da medicina brasileira. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 503.

47 ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.48 SILVA, Reflexões..., p. 12-14

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Alguns anos depois, em 1812 a Imprensa Régia editou uma obra do médico italiano Scipião Piatoli que havia sido vertida para o francês por Vicq d’Azir e, desta versão, para o português por José Correia Picanço, com o título de: Ensaio sobre os perigos das sepulturas dentro das cidades e nos seus contornos, que se tornou uma das referências mais citadas pelos profissionais que abordaram esse assunto posteriormente no Brasil. Já em 1818 foi a vez de José Pinheiro de Freitas Soares insistir que os enterramentos deveriam ser “estabelecidos fora das igrejas e dos cemitérios dentro das cidades e vilas”, porque essa prática “tem sido origem de muitas epidemias e de muitas mortes repentinas”, ocasionadas pelos miasmas da putrefação dos corpos49.

A frequente reafirmação desses argumentos levou o governo imperial a impor em novembro de 1825 o fim dos sepultamentos em igrejas e o deslocamento deles para cemitérios instalados fora da capital, alegando, em conformidade com a elite médica, que assim seriam eliminadas as “desagradáveis conseqüências de tão danoso costume, produzido e conservado pela ignorância e superstição”50. Como tal imposição acabou sendo ignorada, três anos mais tarde o mesmo governo ordenou, no conjunto dos artigos da lei que ampliou as responsabilidades das Câmaras Municipais, entre elas a de cuidar da saúde pública, que em todas as povoações as inumações fossem feitas extramuros.

Mas, essa ordem saiu do papel vagarosamente e em poucos lugares, como em Salvador, onde a tentativa de se cumpri-la motivou uma revolta em 1836, conhecida como “cemiterada”. Durante ela, uma multidão, após protestar em frente ao palácio da presidência da província, marchou em direção ao novo cemitério há alguns quilômetros dali e investiu-se contra ele, não deixando sobrar mais do que os seus escombros, conforme descreveu João José Reis51.

Enquanto isso ocorria na capital da Bahia, na Corte, como em todo o Império, a tradição dos sepultamentos intramuros seguia sem maiores entraves, a não ser o da objeção oficial do Estado que continuava letra morta e o da medicina que, naquela altura, já tinha se convertido em uma espécie de cruzada médica contra “o bárbaro costume das sepulturas dentro das igrejas e dos cemitérios no meio das cidades” que estava deixando o país “muito atrás da civilização moderna”52. Por isso, a Sociedade de Medicina de Pernambuco resolveu enviar um ano após a sua inauguração ocorrida em 1841, tal como a sua congênere fluminense havia feito mais de uma vez desde sua criação em 1829, uma representação ao governo provincial, cobrando a “fundação do cemitério” longe da cidade, chamando a sua atenção para “os inconvenientes resultantes dos enterramentos nas igrejas”53.

Devido à persistência desse hábito, José Ferreira Passos dedicou tese explicando as razões disso, “levado pela transcendência de uma inovação, de que resultariam vantagens reais à sociedade”. Pois, segue explicando: “As inumações intramuros” são “uma prática secular que, além de ser indecorosa e manifestamente contrária ao respeito e majestade que devem presidir a casa do Senhor, é sobremaneira anti-

49 SOARES, Tratado..., p. 16. 50 REIS, João José. A morte é uma festa. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1995, p. 275.51 REIS, A morte..., p.13-17. 52 Semanário de Saúde Pública, ano 2, n. 114, 28 jul. 1832, p. 392.53 Anais Medicina Pernambucana. ano 2, n. 3, 1842 p. 122.

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higiênica”54. Sendo assim, elas somente permaneciam em plena vigência em toda a nação por dois motivos, segundo tal autor. O primeiro é que muitas pessoas “timbram em não tolerar a menor inovação nos costumes estabelecidos”, apegando-se a um hábito cuja erradicação é “exigida pela experiência de todos os dias e reclamada pelos progressos com que as ciências nos têm felicitado”55.

O segundo é que, apesar de os “médicos, como verdadeiros amigos da humanidade” dedicarem, “indicando medidas mais conducentes ao grande fim que” têm em vista, “tanto zelo em prol da higiene”, há “uma apatia estúpida” naqueles a quem compete escutar “as suas vozes eloqüentes”, e assim “a casa do Senhor continua a ser o laboratório de produtos miasmáticos que abafam o cheiro delicioso do incenso!”56.

Nessa passagem do seu texto, ele criticava as autoridades que decretavam leis, mas não se empenhavam para colocá-las em prática, talvez porque a revolta popular contra o afastamento dos cemitérios para longe da cidade eclodida em Salvador servia como exemplo do que poderia acontecer novamente a qualquer momento. Por essa razão, os médicos tiveram que repetir por mais alguns anos que “as inumações nos templos, e em cemitérios dentro das povoações, é sempre uma das principais fontes de insalubridade”, como reiterou Augusto César Ernesto de Moura em 1849.

Depois de tanto insistir para que o poder público tornasse efetivas as medidas já decretadas a mais de duas décadas, eis que epidemias, primeiro a de febre amarela em 1850, depois a de cólera em 1855, provocaram uma quantidade enorme de vítimas fatais, principalmente nas cidades litorâneas, ao ponto de cadáveres ficarem insepultos porque os tradicionais cemitérios intramuros não deram conta de receber tantos mortos. Com isso, a realidade começou a mudar, pois o medo coletivo do contágio disseminou-se na população, como normalmente ocorria em contextos epidêmicos, transformando os cadáveres em objeto de repugnância, porque eles poderiam transmitir a peste57.

Dessa maneira trágica, portanto, que se deu o ensejo para a criação de cemitérios extramuros a partir da década de 1850, como o de Pernambuco (1851), o da Corte (1852) o da capital da Paraíba (1856) e o de São Paulo (1858), entre outros tantos que passaram a abrigar os mortos longe dos vivos. No entanto, no vasto interior do país, a construção desses estabelecimentos demorou muito mais tempo, como em Minas Gerais, onde, excluindo raros municípios, por exemplo, o de Juiz de Fora, as inumações intramuros só começaram a ser banidas no final do século XIX, apesar de, desde pelo menos os anos 1840, o discurso médico sobre esse tema ter sido assimilado por boa parte das autoridades públicas.

Uma delas, o chefe do poder executivo da Província de Minas Gerais, Francisco José de Souza Soares, em seu relatório enviado à Assembleia da Província, solicitou, “entre as providências necessárias à saúde pública, o estabelecimento de cemitérios” em lugar adequado, porque era “repugnante entrar numa igreja para fazer oração e

54 PASSOS, José Ferreira. Breves considerações sobre a influência perniciosa das inumações praticadas. Tese apresentada à Faculdade Medicina do Rio de Janeiro, 1846, prólogo.

55 PASSOS, Breves..., p. 8. 56 PASSOS, Breves..., p. 11.57 DELUMEAU, Jean. O medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 107-111.

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ter de sofrer os efeitos da podridão, ou sair dali para não se expor a um contágio”58. Mesmo com essa solicitação, que, conforme “determinado por lei e pelas posturas”, deveria se “cumprir imediatamente”59, nada havia mudado, motivando o médico Eduardo Ernesto Pereira da Silva a aproveitar a ocasião da epidemia de cólera, reinante em quase todas as províncias em 1855 e já nas fronteiras de Minas, para lembrar que a proximidade entre os vivos e os mortos era prejudicial à saúde.

Essa lembrança foi feita em uma carta enviada ao governo provincial, na qual ele criticou “o costume de se enterrarem os cadáveres dentro dos templos”, porque “inteiramente contrário à saúde dos viventes pelos danos que causam à saúde pública”, pois dele resultam “miasmas pútridos que contaminam a pureza do ar, pela repetida abertura das sepulturas que em ocasiões semelhantes se torna necessária”. Por esse motivo, “podem agravar o mal e o tornar muito mais estragador, se por ventura com o tempo não se prevenir tão péssimo costume, estabelecendo-se o quanto antes cemitérios em lugares altos apropriados à correnteza dos ventos”60.

Cessada a epidemia, e sem fazer grandes estragos na maioria das localidades mineiras, esse antigo costume permaneceu com todo vigor por vários anos em boa parte dos municípios, inclusive na “capital e na cidade de Mariana”, segundo informação do presidente da província João Florentino Meira de Vasconcelos, que em seu relatório de 1881 o considerou “anômalo e excepcional”, pois “em todas as outras províncias, existem cemitérios públicos ou particulares situados em lugares apropriados e afastados do centro populoso”. Por isso, concluiu que “é intuitivo o quanto semelhante prática é contrária e ofensiva à higiene pública e saneamento do clima dessas localidades, especialmente da capital, onde mais notável se torna esse abuso pela sua população, importância e civilização”61.

No ano seguinte, medidas concretas começaram a ser tomadas em relação a essa prática. Theófilo Ottoni, na abertura das atividades da Assembleia Legislativa, informou que “este costume intolerável, condenado por todos os preceitos da higiene”, estava com os dias contados, pelo menos em Ouro Preto. Pois “uma comissão de médicos, depois de exame acurado”, escolheu um local, “a três quilômetros” da cidade para a construção do tão reclamado cemitério, faltando, porém “autorização de crédito no orçamento” da província para o início das obras62.

Essa autorização só ocorreu em 1886, quando a Inspetoria de Saúde Pública comunicou o lançamento da pedra fundamental do futuro cemitério público. Na ocasião, comentou que a decisão de erguê-lo em um local tão adequado proporcionará um “grande melhoramento de que vai ser dotada a Capital, com o qual as suas condições higiênicas entrarão em uma fase mais compatível com o estado atual de progresso e civilização”63.

Às vésperas da República, a elite médica já havia conseguido convencer a população e o Estado de que não somente as igrejas, mas também as cidades deviam deixar de ser abrigo dos mortos, o que possibilitou a reforma de um costume

58 Arquivo Público Mineiro, Relatórios dos presidentes da província, 1844, p. 9.59 Arquivo Público Mineiro, Relatórios dos presidentes da província, 1844, p. 9.60 Arquivo Público Mineiro, Ofícios do governo da província, SP 574, 1855, p. 8.61 Arquivo Público Mineiro, Relatórios dos presidentes da província, 1881, p. 32.62 Arquivo Público Mineiro, Relatórios..., 1882, p. 16.63 Arquivo Público Mineiro, Correspondências das secretarias de governo, SG 530, 1886, p. 18.

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tradicionalmente vivenciado desde a Alta Idade Média.

Matadouros

O abate de rezes também deveria, segundo os médicos que escreveram sobre as condições de higiene pública no século XIX, ser afastado das povoações pelas mesmas razões que as inumações intramuros: produziam grande quantidade diária do pior tipo de miasmas, isto é, aquele derivado da decomposição de restos mortais. Enquanto a condução de cargas tinha que ser feita sobre o lombo de muares puxados por tropeiros, os matadouros tiveram que ficar o mais próximo possível dos centros comerciais para facilitar o transporte de carne, dada a ausência de recursos técnicos que pudessem conservar alimentos perecíveis até chegar à mesa do consumidor com boa qualidade.

Porém, à medida que o espaço urbano dilatava-se, tais estabelecimentos precisavam ser afastados das habitações, como forma de prevenção (conforme o quadro explicativo então predominante em relação à patologia) de doenças extremamente infecciosas, que de vez em quando se manifestavam de forma epidêmica, matando milhares de pessoas, como o cólera.

Desde 1808 pelo menos, quando o governo português foi forçado a transferir a sua sede para o Brasil, a elite médica já se mostrava preocupada com os locais onde as rezes eram sacrificadas para satisfazer as necessidades cotidianas do consumo humano de proteína animal. Assim, Manuel Vieira da Silva, ao propor, no mesmo ano, soluções destinadas à melhoria das condições de saúde do Rio de Janeiro, argumentou “que o matadouro deveria ser mudado” de lugar para evitar a emissão na “atmosfera de péssimos gazes que se formam” no seu recinto, o que igualmente precisava ser feito com os açougues. Pois essa decisão impediria os “prejuízos em razão da condução das carnes” provocados pela “corrupção de que elas são suscetíveis durante o seu transporte”64.

Uma década depois, José Pinheiro de Freitas Soares lembrou que uma das obrigações da “polícia médica” em todo o Reino e suas províncias é a seguinte: determinar que “os matadouros sejam colocados fora das cidades, vilas e povoações em sítios bem arejados, onde perto hajam rios, ou ribeiros de água corrente, e se possível for semeados de árvores para promover o asseio e entreter a pureza do ar”65.

Essas recomendações, com a expansão urbana impulsionada pelo crescimento demográfico, aos poucos tiveram que ser aplicadas pelas Câmaras Municipais, que muitas vezes, alegando falta de verbas, demoravam a concretizá-las, como a de São Paulo. Esta, pressionada desde1830 para desativação do antigo abatedouro de gado, por ter ficado muito próximo do centro da cidade, só inaugurou o novo em 1849, o qual quase quarenta anos depois deixou de funcionar pelo mesmo motivo, quando outro foi criado nas extremidades da Vila Mariana66.

Em Recife não foi diferente, como vários testemunhos apontam. Em 1842, por 64 SILVA, Reflexões..., p. 23-26.65 SOARES, Tratados..., p. 120.66 Esses dados sobre São Paulo foram obtidos no texto de celestino Giordano, A necessidade de um

novo matadouro em São Paulo na primeira metade do século XIX, apresentado no XXIV Simpósio Nacional de História, São Leopoldo, 2007.

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exemplo, a Sociedade de Medicina de Pernambuco enviou uma representação ao governo da província, solicitando a mudança da localização dos estabelecimentos especializados no abate de reses, argumentando o seguinte: “Não é crível, nem verossímil, que, em uma capital da ordem desta, os matadouros estejam no estado em que estão”, decorrente da “matança de gado feita com tanta imperícia e negligência!”, ao ponto de o enorme volume das “poças de sangue que cobrem a sua superfície, entrando prontamente em decomposição”, provocar, em quem “aproximar-se de tão infectos lugares” um mal “cheiro intolerável”. Assim, respirando o ar da localidade, “os moradores de seu contorno sofrem lento, mas verdadeiro envenenamento miasmático”, e por isso a “sua remoção e melhoramento na matança são de primeira necessidade”67.

O mesmo pode ser dito para Salvador, onde a direção da Gazeta Médica da Bahia divulgou no dia 31 de outubro de 1866 uma parte do relatório do inspetor de saúde da província, José Góes Sequeira, para informar que um dos seus mais eminentes colaboradores já havia alertado o chefe do poder executivo dobre “as más condições de salubridade do matadouro público, e dos inconvenientes da sua conservação quase no centro de uma freguesia populosa”. No mencionado documento, tal inspetor, após ter lembrado que “a remoção do matadouro público” para um local adequado, “como há 12 anos foi aconselhado pela extinta Comissão de Higiene”, da qual fez parte, seria preciso, conforme suas próprias palavras:

Ainda hoje vermos hoje permanecer, quase no centro de um vasto povoado semelhante estabelecimento, o qual, a despeito de quaisquer trabalhos e melhoramentos que nele se façam, achando-se em perfeito antagonismo com as leis e preceitos que a higiene previdentemente prescreve, será sempre um pernicioso foco de infecção, uma causa perene de insalubridade.68

Da mesma maneira, em Ouro Preto, a renovação do espaço onde convenientemente o sacrifício diário de gado deveria ser feito, conforme a elite médica determinava, demorava a ocorrer. Para se ter uma noção dessa demora, em 1886 a Inspetoria de Saúde Pública ainda insistia para que, com o avanço das habitações na direção do antigo matadouro, era urgente a sua “remoção para fora da cidade”69.

Esse problema da localização dos abatedouros de reses, a qual não podia ser muito distante das cidades, devido ao problema do transporte e da conservação da carne, e nem muito perto, para evitar que os miasmas de tais estabelecimentos saturassem a atmosfera urbana, persistiu até que em fins do século XIX a invenção da tecnologia de refrigeração de alimentos perecíveis abriu caminho ao surgimento dos modernos frigoríficos.

Diante do exposto, percebe-se que a elite médica, desde a transformação do Rio de Janeiro na nova sede da Coroa portuguesa, empenhou-se para combater algumas práticas relativas ao espaço público que, com a consolidação da higiene como forma de prevenção de enfermidades, ela passou a considerar prejudicial à salubridade. Apesar desse empenho, no final da década de 1870 as condições de

67 Anais da Medicina Pernambucana, ano 2, n. 3, 1842, p. 133.68 Gazeta Médica da Bahia , ano 1, n. 9, 1866, p. 99.69 Arquivo Público Mineiro, Relatórios dos presidentes da província, 1886, p. 39.

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saúde no Brasil ainda continuavam muito aquém do ideal, levando John Domslen a fazer o seguinte alerta: “A nação precisa despertar sobre essa grande questão da saúde pública”, da qual dependem “o poder, a riqueza e a felicidade do país”, qual seja, “aumentar o termo médio da duração da vida”, combatendo “toda mortalidade prematura”, o que exige uma “reforma sanitária”70.

Cooperar para promovê-la constituiu-se em uma missão, destinada a impulsionar o progresso do país, que vários médicos se atribuíram, como um componente da própria identidade da sua profissão e como forma de aproximar o seu campo de conhecimento do Estado, com o objetivo de institucionalizá-lo. Dessa forma, eles puderam transformá-lo aos poucos em instrumento de intervenção na sociedade e de organização da cidade moderna, tal como estava ocorrendo no Ocidente desde a Ilustração, o que fez deles um dos principais agentes reformadores de hábitos insalubres na sociedade brasileira, como os seus pares europeus, à medida que o seu saber foi sendo edificado.

70 DOMSLEN, Salubridade…, p. 68.

RESUMO

A elite médica que atuou no Brasil ao longo do século XIX empenhou-se para melhorar as condições de higiene da sua população. Parte das propostas que os seus membros construíram para atingir essa finalidade constitui o objeto deste artigo.

Palavras Chave: Medicina; Progresso; Higiene.

ABSTRACT

The medical elite who acted in Brazil throughout century XIX pledged itself to improve the conditions of hygiene of its population. Part of the proposals that its members had constructed to reach this purpose constitutes the object of this article.

Keywords: Medicine; Progress; Hygiene.

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CULTURA HISTÓRICA, ENSINO DE HISTÓRIAE MÚLTIPLOS SABERES1

Ana Elizabete Moreira de Farias2

Nos últimos anos tem-se verificado a ampliação do número de pesquisas em torno da História da Educação e do ensino de história. No entanto, como afirma Fonseca3, esses estudos carecem de uma sistematização quanto à possibilidade de inovação nas investigações, uma vez que eles privilegiam as reformas curriculares, a análise dos currículos, o estudo das instituições escolares e a formação de professores. Ou seja, esses estudos levam em consideração a história das políticas, da organização e do pensamento educacional.

Autores como Gonçalves e Faria Filho4 ressaltam a necessidade de uma “virada” para o estudo da história das culturas escolares que possa contribuir com a produção de uma cultura historiográfica, além de criar condições para um diálogo fecundo e criativo com os historiadores e demais estudiosos. Um dos caminhos para a emergência e consolidação desse tema está diretamente ligado ao diálogo com a história cultural francesa.

O reconhecimento da importância da história da Educação para a historiografia, por parte dos historiadores que trabalham na perspectiva da história cultural, está atrelado à necessidade de dar visibilidade aos diversos sujeitos que participam da cultura escolar, notadamente aos professores e alunos. Para tanto, uma das contribuições analíticas mais utilizadas é a de Roger Chartier5, tomando como base as categorias de prática, representação e apropriação.

Ao definir as noções de práticas, representações e apropriações, o autor conclui que: as representações elaboradas ou produzidas pelos sujeitos sociais são apreensões do “real”, ou parte desse “real”, que é constitutivo de uma prática – complexa, múltipla, diferenciada, contraditória – dotada de significações de mundo. E como elo entre a prática e a representação, o autor ressalta a importância da apropriação que “[...] tem por objetivo uma história das representações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem”6, ou seja, as condições e os processos de construção do sentido do real.

1 Trecho do primeiro capítulo da dissertação intitulada Educação contextualizada e a convivência com o Semi-Árido no assentamento Acauã – PB, defendida em março de 2009, sob orientação do Prof. Dr. José Jonas Duarte da Costa. Disponível para download em: <http://www.cchla.ufpb.br/ppgh/2009_mest_ana_farias.pdf>.

2 Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba. E-Mail: <[email protected]>..3 FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História e ensino de história. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,

2004.4 GONÇALVES, Irlen Antônio & FARIA FILHO, Luciano Mendes de. História das culturas e das

práticas escolares: perspectivas e desafios teórico-metodológicos. In: VALDENARIN, Vera Teresa & SOUZA, Rosa Fátima de (orgs.). A cultura escolar em debate: questões conceituais, metodológicos e desafios para a pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2005, p. 31-57.

5 CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa: Difel, 2002.6 CHARTIER, História Cultural, p. 26.

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Chartier afirma ainda que a história cultural tem por objeto principal identificar os diferentes lugares e momentos em que uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler, acrescentando em seguida que

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.7

De acordo com essa noção e tomando por empréstimo as concepções de Gonçalves e Faria Filho, a relação entre cultura escolar e história cultural pode ser explicada, considerando que

[...] tanto a temática – cultura escolar – quanto a abordagem – história cultural – contribuem para a criação de um lugar confortável para a educação no terreno da cultura, só que agora não mais ancorado nos estudos sociológicos, mas, historiográficos.8

Essa influência possibilitou novas articulações entre as formas de pensar as práticas e o mundo social, tornando a história da Educação mais sensível à pluralidade que atravessa a sociedade (discursos, visões de mundo, condutas, ações, etc.), estreitando o diálogo entre as “ciências da Educação” e a História (historiografia).

Ao utilizar as categorias de representações, práticas e apropriações, Chartier abriu a possibilidade de pensar a cultura histórica para além dos quadros da historiografia, incorporando as práticas educativas (cultura escolar) e os diversos conhecimentos divulgados/ produzidos pelos meios de comunicação de massa. Contudo, boa parte dessa discussão ainda não atende às demandas do campo da Educação e da própria História no que se refere à cultura escolar.

A ideia de traçar um perfil da “cultura escolar” nos diferentes períodos históricos apresenta-se como primordial, no sentido de apreender as especificidades dos pensamentos e ações educacionais em diferentes contextos, além de alimentar novos questionamentos em torno das perspectivas teóricas do campo da historiografia e da cultura escolar como objeto de investigação por parte dos historiadores. Para tanto, torna-se necessário vislumbrar algumas noções de cultura histórica e, a partir daí, pensar o ensino e a cultura escolar como construtores de um novo paradigma para a pesquisa histórica.

Nessa perspectiva, pensar o ensino da história hoje pressupõe um debate amplo na medida em que incorpora as noções de cultura histórica que estão sendo discutidas pelos historiadores. Dessa forma, optamos por dialogar com as interpretações defendidas por Le Goff9, Flores10 e Neves11, por considerá-las importantes para o propósito desse artigo, já que compartilhamos a ideia de que o conhecimento

7 CHARTIER, História cultural, p. 17.8 GONÇALVES & FARIA FILHO, A cultura escolar em debate..., p. 53.9 LE GOFF, Jacques. História e memória. 2. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.10 FLORES, Elio Chaves. Dos feitos e dos ditos: História e Cultura Histórica. Sæculum - Revista de

História, João Pessoa, DH/PPGH/UFPB, n. 16, jan./jun., 2007, p. 83-102.11 NEVES, Joana. Participação da comunidade, ensino de História e cultura histórica. Sæculum -

Revista de História, João Pessoa, DH/UFPB, n. 6/7, dez. 2001, p. 35-47.

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da História não se processa apenas na sala de aula, mas habita outras esferas do cotidiano.

A concepção de cultura histórica deve ser pensada para além do campo da historiografia e do cânone historiográfico, nos fala Flores. Nesse sentido, ao reunir as contribuições de outras categorias profissionais, como é o caso dos cineastas, cronistas, jornalistas, memorialistas, etc., proporciona a difusão e apropriação de saberes históricos e de um “pensar histórico”.

Nesse sentido, cabe aos profissionais da História “direcionar” esses saberes, possibilitando ao estudante ver como ele próprio produz História. Nas palavras de Flores, “[...] o ensino de História, prerrogativa dos profissionais da história e das culturas escolares, precisa, cada vez mais, ser mediado pelos saberes históricos, responsáveis em grande parte pelas porosidades intrínsecas à cultura histórica”12, diminuindo a perigosa disparidade entre a enorme proliferação metodológica na historiografia e a sua ausência ao nível dos saberes escolares.

Considerando que a cultura histórica engloba múltiplos saberes produzidos pela sociedade, Le Goff destaca que

A história da história não se deve preocupar apenas com a produção histórica profissional mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica ou, melhor, a mentalidade histórica de uma época.13

Dessa forma, o saber científico, que é reconhecido como produto da reflexão acadêmica, encontra-se também formado por experiências individuais e coletivas nem sempre consideradas pela academia, mas que se mesclam e se confundem nas práticas culturais, também históricas. Esse autor ressalta que a história produzida pelos historiadores é “a única que tem vocação científica”, apesar de que ela tem “a sorte ou a infelicidade” de ser feita também por “amadores”.

O autor considera ainda que a “mentalidade histórica” e a “cultura histórica” são a mesma coisa, sem, no entanto, explicitar essa “igualdade” de conceitos. Essa “confusão” foi criticada por Flores que afirma: “mentalidade histórica” prescinde de qualquer sinal de letramento, “sendo atributo inconteste também das sociedades ágrafas e pré-capitalistas”14. Já a cultura histórica necessita de categorias profissionais que a tornem acessíveis e possuidoras de um “sentido histórico”.

Ampliando a noção de cultura histórica, Neves chama atenção para o papel da “identidade social”,

[...] a concepção de cultura histórica, que norteia as reflexões sobre o tema em pauta, entende-a como identidade social de uma dada comunidade, (parte e expressão concreta de uma sociedade mais ampla) construída a partir do conhecimento da referida comunidade e dos indivíduos que a integram, fundamentado por uma visão crítica do processo histórico por meio do qual essa comunidade se constitui e se situa na contemporaneidade. [...] Em sua construção

12 FLORES, Dos feitos e dos ditos..., p. 96.13 LE GOFF, História e Memória, p. 48.14 FLORES, Dos feitos e dos ditos..., p.96.

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é possível (imprescindível) destacar o papel do ensino de história, bem como reconhecer a importância fundamental (imprescindível) da participação da comunidade.15

Fica clara, portanto, a importância dada pela autora ao ensino de história, ao processo de troca entre a História (saber científico e saber escolar) e o conhecimento histórico produzido na/ pela realidade (saber não científico, identidade social, senso comum). Aproximando-se do que Le Goff chamou de “amadorismo”, Neves demonstra uma enorme preocupação com o papel do historiador nesse processo de mediação do conhecimento histórico com a realidade, ao defender que

[...] mais do que nunca os historiadores têm a responsabilidade de definir o seu próprio, específico e intransferível papel, bem como equacionar a relação entre o conhecimento acadêmico ou cientificamente produzido e as outras formas de produção do saber, na construção da cultura histórica.16

Nessas circunstâncias, os questionamentos são direcionados para a importância do saber popular e o saber acadêmico/ científico reproduzido/ transmitido/ construído na escola e para a inevitabilidade do diálogo entre Memória e História. Neves, fazendo referências a Le Goff, às suas considerações em torno da memória coletiva e à história feita pelos historiadores, percebe a importância do exercício da crítica, pela qual a História deve corrigir as visões tradicionais e estereotipadas de si: “a informação histórica fornecida pelos historiadores de ofício teria a responsabilidade de colocar a sociedade diante de si mesma, até mesmo para (re)conhecer suas limitações”17.

Neves aponta ainda a necessidade de corrigir a História a partir da memória, no sentido de dar vez aos novos agentes da história que foram/são escamoteados pela “ciência”, buscando o auxílio da memória. Neste sentido, defende que essa relação deve se processar de maneira que as duas – memória e história18 – se completem, ampliando e traçando novos rumos para a história e a sociedade como um todo.

No entanto, Flores, ao citar Joana Neves, ressalta a recorrência das palavras comunidade e senso comum como formadores da cultura histórica. Noções que seriam extremamente complicadas quando inseridas nos debates historiográficos.

[...] a autora [Neves 2002] coloca uma complexidade a mais na definição conceitual de cultura histórica: o senso comum produzido pela memória das comunidades. Essa complexidade gera uma aporia historiográfica da qual não sei me desvencilhar: nem tudo que é atinente ao passado, especialmente ao passado historiográfico – o passado registrado e narrado –, pode ser cultura histórica. O rigor epistemológico do conceito precisa ser preservado, sob pena de sua inviabilidade operacional.19

15 NEVES, Participação da comunidade..., p. 36.16 NEVES, Participação da comunidade..., p. 46.17 NEVES, Participação da comunidade..., p. 42.18 A discussão entre memória e história é bem ampla, e as próprias noções de história, memória e

memória social, ganham contornos próprios a depender da abordagem e dos atores escolhidos. 19 FLORES, Dos feitos e dos ditos..., p. 100.

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Pensando os “limites” da utilização da noção de cultura histórica, Flores não nos oferece enunciados que definam esse impasse. Talvez nem tenha sido sua intenção quando produziu o texto “Dos feitos e dos ditos: história a cultura histórica”, mas essa discussão é importante, visto que a produção do saber histórico evidencia-se como instrumento de leitura do mundo e não mera disciplina. E, nesse sentido, ao se trabalhar com a noção de cultura histórica a partir do ensino, entendemos que o conhecimento histórico deve ser orientado no sentido de indagar a relação dos sujeitos com os seus objetos de conhecimento. Ou seja, significa pensar o ensino de história para além da sala de aula, incorporando conhecimentos que sirvam para a vida.

Pode-se afirmar que um elemento comum em todas as noções de cultura histórica diz respeito às contribuições das outras categorias profissionais e outros campos disciplinares, e à necessidade de apreensão/ apropriação desses conhecimentos pelos historiadores, em especial, pelos professores de História. Desse modo, pode-se perceber que a noção de cultura histórica é extremamente complexa e que os três autores aqui referenciados, embora abordem a questão a partir de enunciados e recortes distintos, possuem o entendimento de que os conhecimentos elaborados pelo conjunto da sociedade – profissionais de outras áreas, amadores, senso comum, comunidade, etc. – são importantes para a constituição da “cultura histórica” e do ensino de História.

Cabe lembrar que o debate não se esgota com esses autores. A discussão em torno da cultura histórica é mais ampla e complexa, mas para balizar as discussões que estão sendo empreendidas nesse artigo, esses autores dão conta das categorias e das relações que são imprescindíveis para o nosso trabalho.

Cultura escolar: entre a transposição didática e/ou dimensão cotidiana escolar

Embora cultura escolar não seja um conceito simples de delimitar, considera-se que na escola foram sendo historicamente construídas normas e práticas definidoras dos conhecimentos que seriam ensinados e dos valores e comportamentos que seriam inculcados, gerando o que se pode chamar de cultura escolar. Conhecimentos, valores e comportamentos que, embora tenham assumido uma expressão peculiar na escola e, principalmente, em cada disciplina escolar, são produtos e processos relacionados com as lutas e os embates da sociedade que os produziu e foi também produzida nessa e por essa escola.

Entendendo que o debate em torno da noção de cultura escolar é extremamente plural, e que não conseguiríamos apresentá-lo em suas particularidades, os autores a serem discutidos foram divididos em dois grupos: os que entendem a cultura escolar como transposição didática20 – Forquin21 e Perrenoud22 – e os que colocam 20 Entendemos por transposição didática o movimento que traduz o processo de transformação do

saber acadêmico em objeto de ensino de uma disciplina específica. Nessa perspectiva, a escola se-ria o lugar privilegiado de recepção e de reprodução do conhecimento acadêmico adaptado pelos currículos, livros didáticos e, principalmente, pelo professor ao meio escolar.

21 FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas. 1993.

22 PERRENOUD, Philippe. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote, 1993.

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as variáveis “tempo e espaço escolar” como referências para analisar a cultura escolar – Chervel23, Julia24, Vinão Frago25.

Forquin, a partir das concepções sociológica e etnológica da palavra cultura, estabelece uma diferenciação entre cultura da escola e cultura escolar. Para esse autor, a cultura da escola está atrelada às influências dos diferentes meios sociais e sujeitos que compõem a escola, especialmente alunos e professores com seu saberes e valores subjacentes à sua realidade. O autor define cultura escolar “como o conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, normalizados, rotinizados, sob o efeito dos imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas”26.

No mesmo sentido, Perrenoud considera a cultura escolar como o conjunto de conteúdos cognitivos “fabricados artesanalmente” até torná-los ensináveis no contexto da escola. Neste caso, a escola e o professor seriam os elementos chaves da cultura escolar, por serem os responsáveis pela transmissão dos saberes, da cultura e das práticas em conhecimentos apropriáveis pelos alunos.

As concepções de Forquin e Perrenoud não levam em consideração o universo criativo da escola. Ao pensar a escola como agente de “transmissão deliberada” e/ou fabricação artesanal de conteúdos, os autores não reconhecem nela a capacidade de agente produtor de um saber próprio, significativo e que possa possibilitar a construção de novos saberes. Para eles, o professor e a escola não passam de transmissores de conhecimentos, transformando os saberes produzidos na academia em saberes escolares apropriáveis.

Em contraposição às concepções de Forquin e Perrenoud, André Chervel chama atenção para a produção de uma cultura própria dentro da escola, a qual não seria superior ou inferior aos demais saberes. Para este autor, a concepção de transposição didática legitima a hierarquia entre os saberes. Nesse sentido, essas análises tradicionais não explicam a forma como a “cultura” poderia interferir/ interagir na definição dos conteúdos e nas metodologias que constituem as disciplinas escolares.

Chervel afirma que conteúdos e metodologias não podem ser entendidos separadamente do contexto em que a escola está inserida. Nesse sentido, os conteúdos escolares não seriam vulgarizações ou meras adaptações de um conhecimento produzido em “outro lugar”, mesmo que tenham relações com esses outros saberes ou ciências de referência. O autor afirma que o conhecimento escolar deve ser estudado historicamente, a partir do papel que a escola exerce em cada momento histórico, e, além disso, é extremamente importante entender a escola como lugar de produção de um saber próprio.

23 CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, 1990, p. 177-229.

24 JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 1, 2001, p. 9-41.

25 FRAGO, Antonio Viñao. Historia de la educación e historia cultural: posibilidades, problemas, cuestiones. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 0, set./ dez.1995, p. 63-82. _______________. El espacio y el tiempo escolares como objeto histórico. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro, Instituição de Estudos da Cultura e Educação Continuada, n. 7, 2000, p. 100-118.

26 FORQUIM, Escola e cultura, p. 167. [Grifos nossos]

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Partindo dessa perspectiva, Gonçalves e Faria Filho, fazendo referência a Chervel e a relação que a escola estabelece com a sociedade, destacam que

[...] o sistema escolar é dotado de um poder criativo, poder este exercido na relação que a escola desenvolve com a sociedade, desempenhando um papel de formação do individuo e, dessa forma, de uma cultura que impactará diretamente a vivência desse indivíduo na sociedade. [...] [o sistema escolar] forma não só os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global.27

Essa compreensão possibilita o entendimento de que as práticas e experiências escolares são criativas, indicando que a cultura escolar não é passiva, é, sim, produtora de conhecimentos e modos próprios de pensar. Em outras palavras, a vida interna da escola reelabora, segundo a sua dinâmica interna, as normas, valores, práticas, dando-lhes uma coloração nova, mas nem por isso alheia ao encadeamento geral da sociedade e das instituições normatizadoras da educação. A organização e a estrutura de funcionamento e, portanto, de tomada de decisões no cotidiano escolar é peculiar, pois as escolas são instituições especiais e diferentes das demais organizações sociais.

Trabalhando na mesma perspectiva, Vinão Frago considera que o tempo e o espaço escolar são importantes para se pensar a educação e a cultura escolar como objeto histórico. Para esse autor, qualquer atividade humana precisa de um espaço e de um tempo determinados, uma vez que são elementos básicos constitutivos da atividade humana. No entanto, ao analisar o sistema educacional, Vinão Frago afirma que o espaço diz respeito ao lugar específico da escola, já o tempo escolar seria um tempo conflituoso, uma vez que engloba o tempo pensado pelos pedagogos (tempo teórico); o tempo normatizado, prescrito pelas leis e regulamentos e o tempo escolar onde se processam os acontecimentos da escola.

O autor compreende a cultura escolar como o conjunto de aspectos institucionalizados que caracterizam a escola como instituição educacional. Entre essas características institucionais inclui-se o modo de ser e viver as particularidades da escola (dimensão cotidiana). Dessa forma,

La cultura escolar, así entendida, estaría constituida, en una primera aproximación, por un conjunto de teorías, ideas, principios, normas, pautas, rituales, inercias, hábitos y práticas – formas de hacer y pensar, mentalidades e comportamientos – sedimentadas a lo largo del tiempo en forma de tradiciones, regularidades y reglas de juego no puestas en entredicho y compartidas por sus actores en el seno de las instituciones educativas.28

Apesar de compreender a cultura escolar pelo mesmo ponto de referência – tempo e espaço escolar – Julia restringe a noção de cultura escolar ao

[...] conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem

27 GONÇALVES e FARIA FILHO, A cultura escolar em debate, p. 36.28 FRAGO, El espacio y el tiempo..., p. 29.

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a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).29

Segundo Julia, a análise da cultura escolar requer o exame do conjunto das normas e práticas definidoras dos conhecimentos que determinada sociedade deseja que sejam ensinados, e dos valores e comportamentos a serem incorporados. Parece claro, portanto, que ver a cultura escolar como objeto histórico implica analisar o significado imposto aos processos de transmissão de saberes e “inculcação” de valores dentro desse espaço. Assim, estudar a cultura escolar é estudar os processos e produtos das práticas escolares, isto é, práticas que permitem a transmissão/ produção de conhecimentos e a imposição de condutas.

É importante que os conteúdos ensinados na escola guardem uma relação direta com a realidade mais próxima, realidade essa que deve se apropriar de todo o conhecimento produzido, social, político, cultural e economicamente, a partir das próprias formas de ver, sentir e viver o mundo (cultura escolar/ histórica).

E as concepções de Julia e de Chervel respaldam a compreensão de que a escola e os sujeitos que a compõem possibilitam a criação de um “campo” propício para a construção de novos conhecimentos a partir da realidade e de suas problematizações. Dessa forma, a escola é considerada um espaço institucional, cuja função social é a de promover a sociabilidade, a produção e a ampliação de saberes acumulados, se tornando peça fundamental e estratégica para a produção de novos conhecimentos.

Referendando a necessidade da história/ historiografia articular-se com a educação, a política e a arte, Rüsen afirma que o conhecimento da ciência da história deve manter sempre relação com a prática. Essa relação pode e deve englobar a didática do ensino de história, aproximando o campo da historiografia do ensino de história, pois o saber histórico elaborado nas pesquisas guardariam relação direta com a práxis. Nesse sentido, o autor referenda:

[...] refletir sobre o uso prático do saber histórico é um requisito básico da ciência da história [...]. Deve-se investigar, explicitar e fundamentar os pontos de vista e os particulares que se aplicam ao uso prático do saber histórico. A relação para com a vida, inerente à práxis científica mesma, precisa ser refletida. Essa relação pode então ser utilizada conscientemente quando a ciência da história (melhor: os historiadores) é chamada a explicitá-la. E os especialistas são constantemente chamados (quando não, forçados) a isso, por exemplo, na elaboração de diretrizes curriculares para o ensino de história, na elaboração de projetos de pesquisa ou nos comitês de planejamento de museus. Só essas circunstâncias já bastariam para evidenciar que a relação do saber histórico com a prática não se esgota no debate sobre a objetividade [...].30

29 JULIA, A cultura escolar..., p. 10. [Grifos do autor]30 RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história - formas e funções do conhecimento histórico.

Brasília: Editora da UnB, 2007, p. 15-16.

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A preocupação com o uso prático do saber histórico pode contribuir para a autoafirmação e autocompreensão das crianças e dos jovens ao longo do tempo de suas vidas. Seria, pois extrair do lastro da história pontos de vista e perspectivas para a orientação do agir, nos quais tenha espaço a subjetividade e a busca de uma relação livre consigo mesma e com seu mundo – cultura histórica. É ler nas entrelinhas, aprofundando e ampliando o entendimento sobre o conhecimento histórico, no intuito de descobrir como e onde a experiência do presente influenciou a compreensão sobre o passado.

Segundo Jacques Le Goff, o termo cultura histórica se apresenta como possibilidade de entendimento desse diálogo entre história/ saber/ sociedade, visto que mantém relação direta com as demais áreas de conhecimento que lidam com a cultura. Este termo se estabelece a partir da busca pela nomeação de tudo aquilo que, nas sociedades, constitui ou produz práticas e/ ou discursos.

Partindo dessa premissa, o saber histórico escolar é fundamental, pois dele depende em grande parte a compreensão que a sociedade tem de si. Para Seffner, é especialmente na escola que a grande maioria da população tem contato com a produção de conhecimentos das humanidades. Isso pressupõe a importância e a necessidade de desenvolver uma vivacidade que conduza os alunos a se apropriar do saber histórico como parte de sua vida pessoal.

É, sem dúvida, um grande desafio articular essas preocupações com a prática de ensino. No entanto, não devemos abrir mão de tentar, pois as pessoas se utilizam cotidianamente dos próprios lugares de produção de saberes para construir mecanismos de sobrevivência, forma de reinventarem o cotidiano e a prática.

E a escola, na medida em que é considerada como espaço institucional, cuja função social é a de promover a sociabilidade, a produção e a ampliação de saberes acumulados, se torna peça fundamental e estratégica para a formação crítica do indivíduo, permitindo ao aluno fazer uso desse conhecimento para a melhoria da qualidade de vida, bem como a produção de novos conhecimentos. Nesse sentido, o conhecimento histórico e todos os outros conhecimentos têm que estar enraizados, se sua interpretação do tempo busca ter influência sobre as disposições mentais profundas do agir.

Nesse sentido, o ensino de História deve ser entendida de forma plural, uma vez que ela estabelece relações com os aspectos econômicos, políticos e ideológicos que perpassam o conjunto da sociedade. Deve se apresenta como elemento de compreensão da realidade por possibilitar o entendimento da sociedade enquanto um todo constituído por diversas partes que envolvem sujeitos e construções éticas, de cidadania, democracia, valores, relações de poder, conceitos e preconceitos, direitos e deveres, etc.

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RESUMO

O presente artigo discute a relação entre a cultura histórica e a cultura escolar como possibilidade de trabalho do historiador, referendado as suas contribuições para o ensino de história. Para tanto, partimos das reflexões feitas a partir das aproximações da História Cultura, segundo a abordagem de Roger Chartier, e a História da Educação. Esse diálogo torna possível entendimento da História como elemento de compreensão da realidade. Realidade essa que favorece a compreensão da sociedade enquanto um todo constituído por diversas partes que envolvem sujeitos e construções éticas, de cidadania, democracia, valores, relações de poder, conceitos e preconceitos, direitos e deveres.

Palavras Chave: Cultura Histórica; Cultura Escolar; História.

ABSTRACT

The present study discusses the relationship between the historical culture and school culture as a possible work of the historian, referred to their contributions to the teaching of history. The starting point of reflections from the approaches of History Culture, according to the approach of Roger Chartier, and History of Education. This dialogue makes it possible understanding of history as an element of understanding reality. Reality that fosters understanding of society as a whole made up of parts that involve the subjects and ethical constructions of citizenship, democracy, values, power relations, concepts and prejudices, rights and duties.

Keywords: Historical Culture; School Culture; History.

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RELAÇÕES ENTRE IMAGENS E TEXTOSNO ENSINO DE HISTÓRIA

Edlene Oliveira Silva1

[...] a realidade não exige de nós que a reduzamos aos limites do nosso pensamento: ela nos convida antes a nos fundirmos na ausência dos seus [limites]. Assim, a palavra sempre velada do símbolo pode nos proteger do pior dos erros: o da descoberta de um sentido definitivo e último das coisas e dos seres2.

Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs3, todo material pode ser didático, mesmo sem ser criado especificamente para esse fim. Vai depender do uso que o professor fizer dele. É inegável a importância de um documento oficial, que se constitui como diretriz curricular para a educação no Brasil, demonstrar a preocupação em problematizar a centralidade do livro didático, já que esse, juntamente com o quadro e giz, constitui-se como parte do tripé da metodologia de ensino da maioria dos professores brasileiros. “O livro didático é o principal veiculador de conhecimentos sistematizados, o produto cultural de maior divulgação entre os brasileiros que têm acesso a educação escolar”4. A variedade de outros recursos pedagógicos, como filmes, fotografias, documentos de época, literatura, pinturas (inclusive as imagens e fragmentos de fontes históricas presentes no interior do próprio livro didático), quando utilizados adequadamente pelo professor, podem originar um sem número de possibilidades de construção do conhecimento por parte do aluno.

As relações entre a produção escrita e a imagética – dentre outras linguagens, acessada ou não pela Internet – se tornaram atualmente elementos centrais dos debates em torno de novas formas de ensinar História. Neste ponto reside uma questão importante, pois não se pode perder de vista que tanto as fontes verbais quanto as visuais são expressões complementares da vida social. Não se trata, portanto, de oposição entre elas, simples interação ou do estabelecimento de uma hierarquia que classifica as fontes escritas como mais “confiáveis”, instituindo uma relação direta entre escrita e conhecimento e subestimando o papel didático e cognitivo da imagem. O importante é ressaltar que toda e qualquer fonte está sempre imersa em condições sociais de produção e são discursos representacionais do real. As fontes expressam valores políticos, sociais, culturais e religiosos, que devem ser lidos de forma crítica e não como verdades naturais e inquestionáveis.

1 Doutora em História pela Universidade de Brasília. Docente do Departamento de História e da Pós-Graduação Lato Sensu em História Cultural da Universidade de Brasília. E-mail: <[email protected]>.

2 ALLEAU, René. As ciências dos símbolos: contribuição para o estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 21.

3 Cf. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: História (ensino Fundamental - 5ª a 8ª séries). Brasília: MEC/ SEF, 1998.

4 FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História: experiências, reflexões e aprendizados. Campinas: Papirus, 2003, p. 49.

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As Imagens no Campo Historiográfico

Especialmente no campo historiográfico, as imagens, sejam elas fixas ou em movimento, conquistaram um espaço privilegiado cada vez mais diverso. No Brasil, nos últimos 20 anos, verifica-se o aparecimento de novas problematizações acerca das representações veiculadas pela imprensa escrita, falada e/ ou televisionada, investigações sobre simbologias de monumentos, reflexões sobre o papel social desempenhado por vitrais, pinturas e esculturas religiosas, análises de filmes, fotografia, etc. As imagens, em seu sentido mais diversificado, têm se tornado fonte de inúmeras pesquisas historiográficas, sobretudo para especialistas da área de História Cultural, Social e do Cotidiano, não se restringindo ao campo dos historiadores da Arte. A influência da Escola dos Annales foi fundamental para esse novo estatuto das imagens e outros documentos, o que ampliou os objetos de estudo da história.

No entanto, apesar da importância dos Annales, outros movimentos foram também relevantes para o estudo das representações imagéticas, como a denominada “Escola de Frankfurt”. Adorno e Horkheimer, em suas investigações, analisam a produção de imagens no contexto capitalista (especialmente o cinema, a televisão e as novas obras de arte) como bens de mercado destinados a atender formas de consumo manipuladas e ideológicas. Para tais autores, o sistema da indústria cultural massifica padrões estéticos e cognitivos, impedindo a formação de sujeitos autônomos e independentes, capazes de desenvolver um espírito crítico, autônomo e questionador.

Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos [...[ paralisam essas capacidade em virtude de sua própria constituição objetiva.5

A função ideológica das imagens tratadas por Adorno e Horkheimer nos leva a pensar que estas não podem ser vistas como a realidade “nua e crua”, como reflexo neutro do real, mas antes como uma produção de sentido normativo por parte dos autores.

Entretanto, o poder do indivíduo de (re)significar e de subverter as ideologias não deve ser subestimado, já que o sujeito não pode ser visto simplesmente como receptáculo passivo das mensagens veiculadas, seja pelo livro didático, na TV, na propaganda ou nos filmes. Esta questão é muito interessante, pois no ensino de História vemos que ainda grande parte dos professores e alunos trata as fontes escritas e imagéticas como comprovação histórica para explicar determinado fato. Porém, podemos problematizar que esses mesmos professores e alunos poderão tanto (re)significar as mensagens veiculadas pela escrita e pela imagem, como também 5 HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 45.

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introjetá-las quase que acriticamente. Lembro que na obra O Queijo e os Vermes, o historiador Carlo Ginzburg nos apresenta a narrativa de Menocchio, moleiro italiano do século XVI que foi considerado herege pela Inquisição por interpretar à sua maneira a criação divina.

As fontes históricas são representações do mundo elaboradas pelos seus autores dentro de suas condições de produção, do contexto histórico no qual estão inseridos, das ideologias que possuem e das posições institucionais que assumem, como salienta Michel de Certeau em sua ‘operação historiográfica’:

Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como uma relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura).6

Nesse sentido, o verbal e o visual contribuírem para o processo de ensino-aprendizagem em História, mas também informam valores, crenças, ideologias que interferem na forma como os alunos passam a perceber a si mesmos e representar os indivíduos ou grupos sociais em uma dada sociedade, inclusive, na qual estão inseridos.

Refletindo a função da imagem, Meireles assevera que “a imagem enquanto representação do real estabelece identidade, distribui papéis e posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, instala modelos formadores, delimita territórios, aponta para os que são amigos e os que se deve combater”7.

A utilização das imagens como função ideológica e pedagógica das massas é muito antiga. Na Idade Média, por exemplo, a iconografia tinha função educativa primordial nas sociedades iletradas. No medievo, as imagens são compreendidas como um texto, um discurso. Uma cena representando Adão, Eva e a serpente no Paraíso tem relação direta com a cultura religiosa do período, significando a Queda do homem, a mundanidade do corpo e do sexo, a inferioridade e demonização da mulher, a punição divina para a desobediência humana... Ou seja, existe toda uma mensagem textual implícita que esta representação visual informa e institui, que, é bem conhecida pelos medievos na sua vivência cotidiana, seja por meio dos sermões dos padres – nos quais posteriormente “O Teatro Jesuítico” terá função educativa central no Brasil Colônia –, seja pela difusão dessas ideias “boca a boca” no seio da comunidade. É preciso, então, conhecer a história da criação cristã para poder compreender a imagem citada, o que seria muito difícil para um chinês do século XIV, por exemplo. Diferentemente daquelas pessoas a quem a experiência forneceu referências necessárias para a compreensão deste quadro, um chinês ou um indiano, sem contato com a cultura ocidental, não reconheceria os ensinamentos bíblicos expressos na imagem. Nesse sentido, Baxandall pontua que os “fatos culturais que agem sobre a percepção são importantes para o entendimento das pinturas de uma época”8.6 CERTEAU, Michel de. A Operação Historiográfica. In: __________. A escrita da história. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 66.7 MEIRELLES, William Reis. História das imagens: uma abordagem, múltiplas facetas. Pós-História,

n. 3, 1995, p. 101.8 BAXANDAL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência na Itália da renascença. Rio de

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Para os letrados medievos, “porta vozes” autorizados da Igreja e do Estado, aquilo que os indivíduos não pudessem entender por meio da escrita deveria ser apreendido por intermédio das imagens. Segundo Honório de Autun, respeitável pensador do século XII, “o objetivo da pintura era triplo: servia, antes de tudo, para embelezar a casa de Deus (igrejas); mas também para rememorar a vida dos santos e, por fim, para o deleite dos incultos, porque a pintura, em suas palavras, era a literatura dos laicos”9. A linguagem visual, deste modo, revestia-se de caráter didático, objetivando educar as massas, ao mesmo tempo em que legitimava a ideologia da Igreja e da monarquia.

Giovani de Gênova, no fim do século XIII, resumiu também a tripla função das imagens:

Sabeis que três razões têm presidido a instituição de imagens nas igrejas. Em primeiro lugar, para a instrução de pessoas simples, pois são instruídas por elas como pelos livros. Em segundo lugar, para que o ministério da encarnação e os exemplos dos santos pudessem melhor agir em nossa memória, estando expostos diariamente aos nossos olhos. Em terceiro lugar, para suscitar sentimentos de devoção, que são eficazmente despertados por meio de coisas vistas que coisas ouvidas.10

Assim, a complementaridade entre mensagens e imagens pode ser percebida desde os primórdios da humanidade, antes mesmo do surgimento do registro das palavras pela escrita. Como assevera Martine Joly,

No começo havia a imagem. Para onde quer que nos voltemos, há imagem. “Por toda parte no mundo o homem deixou vestígios de suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos, nas pedras, dos tempos mais remotos do paleolítico à época moderna”. Esses desenhos destinavam-se a comunicar mensagens, e muitos deles constituíram o que se chamou “os precursores da escrita”.11

Se considerarmos o antigo alfabeto egípcio, vemos um claro exemplo da relação íntima entre as imagens e a linguagem. Os chamados hieróglifos são um conjunto de símbolos de três tipos: caracteres figurativos, cópia direta dos objetos (pictogramas); caracteres simbólicos, que exprimiam por vários processos as ideias abstratas (ideogramas) e caracteres fonéticos, que tinham um valor silábico ou alfabético (fonogramas). O caráter pictográfico dos hieróglifos marca exatamente o poder do comunicativo/ informativo da imagem12.

O nosso discurso verbal contemporâneo também está permeado de imagens. Santaella e Noth dividem o mundo das imagens em dois domínios, sendo o primeiro das representações visuais: filmes, fotografias, pinturas, desenhos, gravuras, etc. O segundo é o domínio imaterial das imagens, que se desenvolvem no plano

Janeiro: Paz e Terra, 1991.9 MACEDO, Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de História. In: KARNAL, Leandro (org.).

História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2008, p.120.10 BAXANDAL, O olhar renascente... p. 49.11 JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996, p. 17-18.12 Cf. BAKOS, Margaret Marchiori. O que são hieroglifos. São Paulo: Brasiliense, 1996.

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mental em forma de visões, alucinações, sonhos, fantasias e imaginações. Um exemplo da imagem mental corresponde à impressão que temos quando lemos ou ouvimos a descrição de um lugar, a capacidade de imaginá-lo e descrevê-lo como se estivéssemos lá:

Ambos os domínios da imagem não existem separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese. Não há imagem como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que a produziram, do mesmo modo, que não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais.13

Somente a percepção da estreita correlação entre a figura concreta e a imaginada pode abarcar a complexidade da imagem e seu aspecto simbólico. Mircea Eliade nos alerta que o símbolo

[...] revela certos aspectos da realidade – os mais profundos – que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as modalidades mais secretas do ser.14

Vivemos em uma sociedade visual com intensas transformações tecnológicas onde uma avalanche de imagens tem atravessado o espaço social e o mundo do espetáculo exerce uma influência considerável nas relações sociais. Por todos os lugares em que andamos, encontramos imagens que formam sentidos e criam significados. Tal situação pode interferir na naturalização das imagens por parte de professores e alunos. Mas o trabalho com imagens em sala de aula pode ainda se constituir em uma experiência riquíssima de aprendizado, servindo para o questionamento das verdades imagéticas e, portanto, para a sua desnaturalização. As ideias são frutos de uma determinada realidade e nelas estão inseridos elementos que podem formar conceitos ou questioná-los, contribuindo ainda para compreender o contexto no qual foram produzidas. Além disso, utilizando as palavras de Mário Feijó, “a cultura contemporânea é cada vez mais visual, e isso fortalece todas as formas de comunicação que têm por base ou exploram a imagem”15.

No entanto, apesar de as pesquisas atuais terem avançado muito no tratamento das imagens, percebendo-as não como meras ilustrações de textos, este parece ser um recurso que ainda precisa ser mais explorado no ensino de História e, consequentemente na formação do professor dessa disciplina, pois os docentes ora aparecem priorizando o documento escrito, ora trabalhando as imagens em sala de aula de maneira inadequada. Analisando o papel do historiador no campo da arte, Ivan Gaskell assevera que “embora os historiadores utilizem diversos tipos de material como fonte, seu treinamento em geral os leva a ficarem mais à vontade com os documentos escritos”16. 13 SANTAELLA, Lúcia & NOTH, Winfred. Imagem, cognição, semiótica e mídia. São Paulo:

Iluminuras, 1998, p. 15.14 ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 9.15 FEIJÓ, Mario. Quadrinhos em ação: um século de história. São Paulo: Moderna, 1997, p. 8.16 GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas.

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Chamando a atenção para esse aspecto, a educadora Áurea Maria Guimarães pontua o poder da capacidade imaginativa e crítica que a utilização das imagens na sala de aula pode proporcionar ao aluno. Segundo Guimarães, a interpretação de uma imagem não é jamais uma descrição literal, pois instiga a criatividade e a percepção do observador, ultrapassando os comandos ou diretrizes traçadas pelo educador:

Ser educador hoje é buscar o visível que se esconde nas imagens da linguagem. Que imagens os alunos trazem quando lêem um texto, assistem um filme, uma aula de Física, Química, Biologia, ouvem uma música, admiram um quadro de arte, refletem sobre uma notícia de jornal? O sentido dos filmes, dos textos, das disciplinas não está na literalidade da forma como aparecem, mas nos espaços intersticiais, entendidos como lugares de folga onde as imagens percorrem livremente os caminhos em relação às atividades que designam o lado oficial da instituição. Falamos de corpos que se expressam nos filmes, nas pinturas, na poesia. Corpos que sofrem, que reconhecem a perda, mas que ao serem vistos e re-imaginados pelo observador reinventam novas imagens, gestos e palavras. Volto-me agora para a sala de aula, procurando pensar nos corpos que a ocupam. O que esses corpos falam? Que imagens eles trazem para nós? Em que condições eles estão enquanto seres humanos?17

Além das deficiências na formação, não seria essa interpretação – espontânea, autônoma e livre – que a imagem evoca a grande barreira que intimida os professores a trabalhar melhor tais fontes dentro da escola? Essa é uma questão a se pensar. Aquilo que não se pode mensurar é sempre temido. Os estudos psicanalíticos de Jung e as análises antropológicas de René Guénon sustentam que a imagem acessa níveis inconscientes incapazes de serem atingidos apenas pelos textos escritos e falados. Para Guenón, “o simbolismo sintético abre possibilidades de concepção verdadeiramente ilimitadas, enquanto que a linguagem, com significações mais definidas e mais determinadas, impõe sempre limites mais ou menos estreitos ao entendimento”18. Aqui encontra-se o paradoxo do educador “pós-moderno”: como trabalhar as imagens de forma didática sem conter ou reprimir a autonomia da capacidade imaginativa do aluno? Eis uma pergunta que temos que desvendar.

Que não se vá dizer, portanto, que a forma simbólica só é boa para o vulgar; o contrário é que seria verdade; ou, melhor ainda, ela é boa para todos, pois ajuda a compreender, de modo mais ou menos completo e mais ou menos profundo, a verdade que representa, na medida das possibilidades intelectuais próprias de cada um. É assim que as mais altas verdades, que não seriam de modo algum comunicáveis ou transmissíveis por qualquer outro meio, tornam-

São Paulo: Editora da UNESP, 1992, p. 237.17 GUIMARÃES, Áurea Maria. Imagens e memória na (re)construção do conhecimento. In: Reunião

Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Caxambu: 2000. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/23/textos/1603t.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2009.

18 GUÉNON, René. Símbolos fundamentais da ciência sagrada. São Paulo: IRGET, 2008, p. 7.

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se acessíveis até certo ponto desde que sejam, se pudermos assim dizer, incorporadas aos símbolos, que as dissimularão sem dúvida a muitos, mas que as manifestarão em todo seu esplendor aos olhos daqueles que sabem ver.19

Textos e Imagens no Livro Didático de História

Dentre os estudos sobre o uso da imagem no ensino de História, um trabalho importante é o da professora Circe Bittencourt, “Livro didático entre textos e imagens”20. Neste artigo, a autora faz uma reflexão sobre as diversas ilustrações presentes nos livros didáticos de História e a possibilidade de trabalhá-las de maneira crítica, contribuindo para a construção do conhecimento por parte do aluno e não apenas como forma ilustrativa para deixar o texto e as páginas dos livros mais atraentes. Bittencourt utiliza um autor do século XIX, Jonathas Serrano, professor do Colégio D. Pedro II, que defendia a utilização das imagens na sala de aula pois, para ele, estas possibilitariam ao aluno “concretizar noções abstratas” e “presenciar outras experiências não vivenciadas por eles”.

A autora propõe uma metodologia de trabalho de forma a articular texto e imagem e possibilitar uma leitura crítica do acervo de ilustrações, usando como exemplo as representações das populações indígenas nos livros didáticos. Nas primeiras obras didáticas, os grupos indígenas eram representados como selvagens e as cenas escolhidas eram predominantemente de guerras, atos violentos e rituais antropofágicos. Uma imagem recorrente é a do bispo Sardinha (1496-1556) e seus companheiros sendo devorados pelos Caetés. Nela, é perceptível o destaque dado aos religiosos no sentido de ressaltar a importância histórica da obra missionária e civilizatória do trabalho da catequese. Os clérigos eram apresentados muitas vezes como heróis e mártires.

Já os índios são representados não como sujeitos históricos, mas como indivíduos que agem e reagem a partir das ações e vontades dos colonizadores. Se parceiros dos estrangeiros e seus ideais, eram considerados “bons selvagens”; se rebeldes, vistos como maus. A primeira História do Brasil, escrita por Varnhagen, exalta os feitos portugueses e deprecia os índios e negros. Nesta obra, os indígenas aparecem como “falsos, infiéis, ingratos, imorais”. Para Varnhagen, os colonizadores “não mataram e escravizaram os índios! É injusto afirmá-lo. Os donatários se preocupam com os indígenas, eles procuram cooptá-los, defendê-los, tutelá-los, cristianizá-los. A força só foi usada apenas contra os mais ferozes”21.

De forma geral, os livros didáticos até recentemente procuravam apresentar uma identidade comum,

[...] na qual os grupos étnicos formadores da nacionalidade brasileira apresentavam-se de maneira hegemônica e não conflituosa [...]. Portanto, o negro africano e as populações indígenas, compreendidas não em suas especificidades etno-culturais, eram os cooperadores da

19 GUENON, Símbolos fundamentais..., p. 8.20 Cf. BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In: ________ (org). O Saber

histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997.21 VARNHAGEM, apud BITTENCOURT, Livros didáticos..., p. 54.

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obra colonizadora e civilizatória conduzida pelo branco português/ europeu e cristão.22

Bittencourt indica alguns procedimentos para o tratamento das imagens em sala de aula como, por exemplo, a necessidade de se separar a imagem do texto e da legenda no primeiro momento de discussão de um tema. A intenção é que possa ocorrer, do ponto de vista dos alunos, uma leitura espontânea deixando fluir o que eles veem e outras imagens possíveis. A partir daí, a autora sugere o aprofundamento das questões colocadas por meio de uma investigação mais detida sobre a imagem escolhida: quem fez, quando fez, qual o contexto histórico, como e porque foi produzida. Uma dica metodológica importante seria, então, comparar ilustrações de um mesmo tema em períodos diferentes ou comparar diferentes versões de um mesmo tema numa mesma época. O interessante seria promover um espaço para que o aluno elabore, a partir do seu universo de representações, uma leitura própria sobre o acontecimento em discussão e seus próprios conceitos. A utilização das imagens é uma via fecunda para isso. Nesse sentido, como assevera Rocha, “definir previamente os conceitos nem sempre é um caminho produtivo”23.

A sugestão de separar texto e imagem/ legenda é fundamental, pois se pensarmos na especificidade das imagens visuais veremos que comentários e legendas ou mesmo títulos podem modificar os sentidos das imagens. O que pode também servir para mostrar a pluralidade e polissemia de sentidos existentes nas representações imagéticas. No entanto, algumas imagens dependem das informações textuais para serem compreendidas. O professor precisa estar também atento a esta questão. Baxandall utiliza o desenho de uma planta do Santo Sepulcro do século XV para mostrar que sem essa informação prévia não se consegue compreender a imagem24.

Ana Heloisa Molina, em seu artigo “Ensino de História e imagem: possibilidades de pesquisa”25, ao abordar a questão da leitura de fontes visuais na sala de aula, afirma que os professores, apesar de reconhecerem as potencialidades das imagens como ferramenta pedagógica, utilizam estas como forma de transmitir e não mediar o conhecimento, ou seja, ao invés de trabalhar didaticamente a imagem, simplesmente a apresentam como objeto “pronto” ou como algo ilustrativo, na tentativa de motivar os alunos em um momento de aprendizagem, captar a atenção ou estabelecer conexões com os temas apresentados.

Marcos Silva analisou essa questão ainda em 1992, mas pelo estudo de Molina, feito em 2007, percebe-se que essa problemática continua atual quase vinte anos depois. Para Silva,

[...] no caso da formação dos profissionais, temos observado falhas que se manifestam especialmente quando formamos ou recém-formados

22 NADAI, Elza. O ensino de história e a pedagogia do cidadão. In: PINSKY, Jaime (org.). O ensino de história e a criação do fato. São Paulo: Contexto, 1992, p. 24-25.

23 ROCHA, Ubiratan. Reconstruindo a História a partir do imaginário do aluno. In: NIKITIUK, S. L. (org.). Repensando o ensino de História. São Paulo: Cortez, 1996, p. 47.

24 BAXANDALL, O olhar renascente..., p. 43.25 MOLINA, Ana Heloisa. Ensino de História e imagem: possibilidades de pesquisa. Domínios da

imagem, Dossiê “Aprendizagem significativa subversiva”, Séries Estudos, Campo Grande, Mestrado em Educação da UCDB, n. 21, jan./jun. 2006, p. 24.

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são convidados a elaborarem projetos de pesquisa, o que se liga a raridade de atividades sistemáticas de pesquisa em Graduação, além da escassez de contatos com fontes visuais e bibliografia específica sobre as mesmas.26

Além de reconhecer a complementaridade da linguagem visual e escrita como fontes no ensino de História, é interessante também questionarmos algumas de suas especificidades. As imagens não são espelhos da realidade, nem devem ser utilizadas na condição de ilustração de temas, numa perspectiva ingenuamente “realista”, como se as imagens retratassem alguma realidade histórica. Daí ser preciso ainda analisar a relação entre ver e saber, com intuito de esclarecer/ compreender a fusão entre recepção e produção como processo para novas interpretações.

A Escrita na Imagem

Os materiais didáticos são, para Ernesta Zamboni, expressões de representações e “em cada um deles devemos adotar um procedimento específico para analisá-los”27. A autora em seu artigo “Representações e Linguagens no Ensino de História” trabalha mais detidamente com a fotografia no processo de ensino-aprendizagem de História.

A fotografia como linguagem documental representa uma dada realidade em um determinado momento e, assim como outras representações imagéticas, não deve ser vista como “o que realmente ocorreu”, nem portadora de uma neutralidade. O fotógrafo interfere na imagem clicada pela sua lente, pois é um sujeito que escolhe o tema que está sendo registrado, uma pessoa que tem um olhar direcionado e repleto de significados e significantes: “A fotografia é um tipo de representação que expressa a relação existente entre dois sujeitos: o fotógrafo e o fotografado”28.

Em seu texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Benjamim29 discute como a invenção da fotografia modifica a noção de arte, pensando o fotografar como algo diferente do olhar e mostrando o que a imagem fotográfica possui de específico. Para ele, o olhar pode perceber o movimento de um homem que caminha, mas a câmara ao fotografar, por meio de seus recursos auxiliares (câmara lenta, ampliação), mostra a atitude deste homem na exata fração de segundo que captura o momento. A fotografia permite tantas interpretações que para Joly, “mais do que qualquer outra imagem pode gerar o sonho e a ficção”30.

A famosa foto de que retrata o presidente Jânio Quadros de pés trocados é exemplar nesse sentido. A fotografia, que rendeu o Prêmio Esso de Reportagem de 1962 ao fotógrafo Erno Schneider, marcou definitivamente a imagem do ex-presidente, sendo considerada uma metáfora quase profética da instabilidade política 26 SILVA, Marcos. A construção do saber histórico: historiadores e imagens. Revista de História, São

Paulo, Universidade de São Paulo-USP, , n. 125/126, ago.-dez/ 1991 a jan.-jul./ 1992, p.118.27 Cf. ZAMBONI, Ernesta. Representações e linguagens no ensino de História. Revista Brasileira de

História, São Paulo, ANPUH, vol. 18, n. 36, 1998, p. 89-101. Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 4 fev. 2009.

28 ZAMBONI, Representações..., p. 118.29 BENJAMIN, Walter. Imagens. In: FURTADO, Fernando Fábio Fiorese; ALVARENGA, Nilson

Assunção & PERNISA JR., Carlos (orgs.). Walter Benjamin: imagens. Rio de Janeiro: Mauad, 2008, p. 94.

30 JOLY, Introdução à análise..., p 122.

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de seu governo, uma vez que a foto foi tirada pouco tempo antes da renúncia de Jânio, sempre indeciso entre as ideologias de esquerda e a direita.

Uma questão que se coloca seria a complexidade da fotografia com relação às outras imagens (desenho, pintura, gravura) e mais particularmente, a da sua relação com a realidade. O caráter único do encontro entre fotógrafo e fotografado também implica em uma atitude específica diante do mundo, do tempo e do espaço. O caráter de registro mecânico do mundo, que o ato fotográfico constitui, tem duas consequências principais: em primeiro lugar, desde o seu surgimento, considerou-se a fotografia como uma cópia perfeita do real, uma mimese perfeita, esquecendo-se de que como todo documento histórico é uma construção de uma certa realidade. Alguns elementos interferem na criação da imagem fotográfica, como por exemplo, o tipo de ângulo, de filme, a cor, a intensidade, a luz, etc.

[...] sabe-se que toda essa operações correspondem a toda uma espécie de escolhas e de manipulações feitas além da tomada: escolha do tema, do filme, do foco, do tempo de exposição, da aberturado diafragma, etc. A todas as escolhas, ainda é preciso acrescentar as escolhas feitas no momento da tomada – enquadramento, iluminação, pose do modelo, ângulo da tomada, etc.31

A fotografia não apenas registra práticas humanas, ela mesma é uma prática humana. Daí, como assinala Silva, “ser possível pensar em sua sociabilidade como algo que não está somente por trás do ato de fotografar, mas nesse próprio ato”32. A fotografia de uma mesma pessoa numa matéria de jornal, numa foto com os amigos, num edital de moda, num fundo colorido, em preto e branco, numa foto de família, nunca terá o mesmo significado.

A fotografia é uma fonte histórica que demanda por parte do historiador um novo tipo de crítica. O testemunho é válido, não importando se o registro fotográfico foi feito para documentar um fato ou representar um estilo de vida. No entanto, parafraseando Jacques Le Goff, há que se considerar a fotografia, simultaneamente como imagem/documento e como imagem/monumento. No primeiro caso, considera-se a fotografia como índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas, lugares nos informam sobre determinados aspectos desse passado – condições de vida, moda, infra-estrutura urbana ou rural, condições de trabalho etc. No segundo caso, a fotografia é um símbolo, aquilo que, no passado, a sociedade estabeleceu como a única imagem a ser perenizada para o futuro. Sem esquecer jamais que todo documento é monumento, se a fotografia informa, ela também conforma uma determinada visão de mundo.33

Em seu trabalho com a recuperação da memória e a construção da história dos

31 JOLY, Introdução à análise..., p. 128.32 SILVA, A construção do saber..., p. 127.33 MAUAD, Ana. Através da imagem: fotografia e História – interfaces. Tempo. Rio de Janeiro, vol. 1,

dez. 1996, p. 79.

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índios guaranis no Brasil, Borges34 mesclou a análise de diferentes representações imagéticas, pranchas de Debret, fotografias e o desenho dos índios, e percebeu um resultado muito interessante. Por exemplo, ao mostrar para um grupo de índios guaranis uma imagem de Debret que retrata o apresamento de indígenas nos campos de Curitiba, foi solicitado que eles descrevessem a cena e depois a reproduzissem em um desenho. A gravura apresentada era um olhar do colonizador sobre os autóctones, cuja representação fenotípica era mais próxima dos traços europeus que dos indígenas.

O resultado da reprodução dessa imagem realizado por um guarani foi, no mínimo, curioso. As índias foram retratadas com traços indígenas, porém vestidas. O autóctone manteve o fenótipo nativo, entretanto incluiu um importante elemento que revelava o seu processo de “aculturação”: as roupas ocidentais. No comentário escrito pelo guarani sobre sua versão da gravura de Debret, a captura dos índios foi justificada pela rebeldia da tribo que não obedecia ao cacique. Tal exemplo mostra como a imagem é um poderoso veículo de significados e significantes, uma vez que permite uma maior mescla e interface de referências culturais dificilmente expressas pelo discurso escrito e falado. Trabalhar a experiência de Borges em sala de aula é explicitar, dentre outros aspectos, a fronteira dos encontros civilizacionais e os consequentes processos de etnocentrismo/ “aculturação”.

Outro exemplo da linguagem contida na imagem pode ser percebido no culto iconográfico russo, representado, por exemplo, pela figura emblemática de Lênin na antiga União Soviética. Para Benjamim, “os retratos e imagens de Lênin são ícones mais presentes na nova organização russa. É tamanha a influência, que eles são encontrados por toda a cidade, ganhando um sentido quase místico e santo”35.

As imagens representavam o pensamento de Lênin: “a revolução socialista, o partido, os camaradas e afins estariam sendo atualizadas através da imagem de Lênin. Toda vez que ela é encontrada em um busto, um cartaz ou uma foto, lá, também estariam todas as ideias atualizadas por elas36”. Nas escolas, as imagens de Lenin prevaleciam.

As paredes são tomadas por quadro, desenhos e modelos de papelão. São paredes de templo nas quais as crianças doam diariamente os próprios trabalhos à coletividade. O vermelho prevalece; os trabalhos estão impregnados de emblemas soviéticos e cabeças de Lenin.37

Da mesma forma como na Idade Média, a imagem teve função pedagógica fundamental na antiga sociedade soviética, predominantemente rural e analfabeta. Cartazes, desenhos, filmes, quadros, porcelanas, tecidos com motivos de guerra dão explicações de como se deu “a Revolução de 1917” e se constituem em instrumentos centrais para exaltar o homem do povo, o revolucionário e a nova nação. Essas imagens criam uma identificação entre

34 BORGES, Paulo H. P. Ymã, ano mil e quinhentos: escolarização e historicidade Guarani Mbya na aldeia de Sapukai. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1998, p. 87-88.

35 Walter Benjamin, apud PERNISA JR., Carlos & LANDIN, Marisa. O pensamento como imagem. In: FURTADO, ALVARENGA & PERNISA JR., Walter Benjamin..., p.39.

36 Walter Benjamin, apud PERNISA JR. & LANDIN, O pensamento como imagem, p.39.37 Walter Benjamin, apud PERNISA JR. & LANDIN, O pensamento como imagem, p.39.

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as massas e o seu líder Lenin, mas também com os ideais da “Revolução”, com os sovietes, etc., ajudando na construção de uma identidade nacional.

A Imagem na Escrita

Joly inicia seu texto com uma frase do cineasta francês Jean-Luc Godard: “palavra e imagem são como cadeira e mesa: se você quiser se sentar à mesa, precisa de ambas”. Nessa frase, apesar de Godard utilizar dois objetos diferentes (mesa e cadeira) para designarem a palavra e a imagem em suas especificidades enquanto linguagem, o cineasta sugere que elas são complementares: uma precisa da outra serem eficazes. As “relações entre imagem/ linguagem são na maioria das vezes abordadas em termos de exclusão, ou em termos de interação, mas raramente em termos de complementaridade”38.

A relação, portanto, é circular e simbiótica, pois as imagens criam textos assim como os textos geram imagens. Um escritor pode se inspirar em uma paisagem ou em uma gravura para elaborar um livro, bem como um pintor pode retratar na tela sua impressão sobre um poema ou uma obra literária. Pintor e escritor, seja de onde parta a inspiração, trabalham simultaneamente com o texto e imagem que produtos da linguagem, vista aqui como uma forma de se expressar no mundo.

Atualmente há uma discussão sobre se a proliferação da imagem na nossa sociedade acarretaria o desaparecimento da civilização da escrita e até da linguagem verbal. No entanto, para Joly, a imagem não exclui a linguagem, porque esta quase sempre acompanha a primeira, seja “na forma de comentários, escritos ou orais, títulos, legendas, artigos de imprensa (...)”39.

A complementaridade das imagens e das palavras também reside no fato de que se alimentam umas das outras. Não há qualquer necessidade de uma co-presença da imagem e do texto para que esse fenômeno exista. As imagens engendram as palavras que engendram as imagens em um movimento sem fim.40

Para Benjamim, “o pensamento seria construído através de noções visualizadas, imagens seriam utilizadas na sua construção, ou seja, a construção de um novo paradigma estético, cuja tentativa é pensar através de imagens”41. Um dos momentos em que a questão da imagem do pensamento se destaca é o trecho de “Sobre o conceito de História”, em que Benjamim faz uma análise de um desenho do pintor suíço Paul Kleee, Angelus Novus:

Há um quadro de Klee que se chama Ângelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incasavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os

38 JOLY, Introdução à análise..., p. 115.39 JOLY, Introdução à análise..., p. 116.40 JOLY, Introdução à análise..., p. 121.41 Walter Benjamin, apud PERNISA JR. & LANDIN, O pensamento como imagem, p. 27.

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mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-la. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.42

O que Benjamim faz é pensar a partir da imagem. Ou seja, ele cria um texto, um significado espontâneo ao ver o quadro. É uma nova maneira de se perceber o anjo, ou seja, houve a criação do conhecimento a partir da imagem que deixa de ser mera ilustração: “Pensar por meio das imagens, mas também pensar com imagens”43.

Assim, quer queiramos, quer não, as palavras e as imagens revezam-se, interagem, complementam-se e esclarescem-se com uma energia revitalizante. Longe de se excluir, as palavras e as imagens nutrem-se e exaltam-se umas as outras. Correndo o risco de um paradoxo, podemos dizer que quanto mais se trabalha sobre as imagens mais se gosta das palavras.44

Um exemplo de imagem textual está presente no discurso de Ramon Llull, pensador do século XIII, para explicar a seu filho como os diabos devoram os homens no Inferno. Para tanto, Llull recorre à imagem dos cães devorando a carniça:

Quando fores para fora dos muros da cidade e encontrares as bestas mortas que o homem expulsa para o vale, verás muitos cães, grandes e pequenos, que roerão aquelas bestas, as orelhas, os olhos, a cara, os braços e as pernas, e entrarão do ventre e roerão teus ossos e comerão teu coração e tuas entranhas, então é certo, filho, que cogites nos infernados, que estarão pelos campos e virão os demônios semelhantes aos cães, leões e serpentes, e morderão aqueles homens, suas cabeças, seus braços e seus membros e não poderão morrer nem escapar daquela pena.45

É possível dizer que, nos estudos linguísticos, a palavra imagem é um dos sinônimos comuns dados à metáfora. A metáfora é uma figura de linguagem que fundamenta uma relação de semelhança entre um sentido próprio e o figurado. Para se construir um discurso metafórico é indispensável desenvolver a capacidade figurativa/ imaginativa. Podemos exemplificar melhor esse caráter imagético da metáfora através de símbolos conhecidos em quase todas as sociedades. Pode-se dizer que a suástica é metáfora do nazismo, assim como a cruz é metáfora do cristianismo.

A palavra suástica, por exemplo, tem origem no sânscrito (svastika) e originalmente significava bem-estar e sorte, também podendo retratar a roda das múltiplas encarnações pregadas pelo hinduísmo e pelo budismo, chamada de samsara. Esteve presente em outras civilizações como a grega e romana, mas sempre com acepções 42 Walter Benjamin, apud PERNISA JR. & LANDIN, O pensamento como imagem, p. 28.43 Walter Benjamin, apud PERNISA JR. & LANDIN, O pensamento como imagem, p. 28.44 JOLY, Martine. Op.cit., p.133. 45 LLULL, Ramon. Doutrina para crianças. Apud COSTA, Ricardo. A morte e as representações do

além na Idade Média: Inferno e Paraíso na obra Doutrina para crianças (c. 1275) de Ramon Llull. Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/pub/morte.htm>. Acesso em: 21 jun. 2009.

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positivas. No século XX, a propaganda do partido nazista passa a usar a suástica como referência aos ancestrais arianos (proto-indo-europeus) do povo alemão. A partir de então, após o genocídio do holocausto, a suástica vai ser mundialmente identificada como um símbolo de sofrimento, terror e morte.

Um detalhe interessante é que a suástica nazista é uma inversão do símbolo original, pois ela está direcionada para a direita, enquanto as representações mais antigas a apresentam voltada para a esquerda. Já a cruz cristã tem o mesmo percurso. Originalmente, é dos símbolos mais antigos da humanidade, geralmente representando os quatro pontos cardeais e a fusão do humano (horizontal) com o divino (vertical). No império romano passa a ser utilizada para o martírio de condenados e, após a crucificação de Jesus, fica associada à morte e ressurreição de Cristo. Uma boa reflexão a fazer com os alunos é questionar: se Jesus tivesse sido morto enforcado ou esfaqueado, os cristãos de hoje poderiam cultuar a forca ou o punhal e carregá-los em seus pescoços como símbolos de sua fé? É inegável que a força do símbolo é universal, pois não necessita de tradução linguística. O símbolo significa e informa sem precisar descrever figurativamente.

O símbolo é transdisciplinar, no sentido em que ele jamais limita o sentido a um único nível de realidade. Assim, toda imagem simbólica é essencialmente multireferencial. O símbolo do círculo, por exemplo, pode tanto remeter a significações geométricas quanto a significações metafísicas, ou ainda a significações éticas... O símbolo nos orienta para ordens de realidade múltiplas (moral, poética, espiritual...), sem ser limitado a designar um referente particular tirado da experiência comum.46

Apesar de não ser uma fonte tradicionalmente reconhecida da História, gostaria de terminar esse artigo falando do mundo dos sonhos que, como pontua Koselleck, todos os dias, e mais ainda à noite, acompanham o homem que age e sofre47. Para o autor, os sonhos pertencem ao âmbito das “ficções” humanas, na medida em que, advindos da esfera onírica do aparelho psíquico, não oferecem uma representação ancorada no mundo referencial objetivo. Mas isto não impede que eles façam parte da realidade da vida e possam ser objeto da história e do ensino de história. Um exemplo dessa possibilidade é dado por Koselleck quando afirma que, para o historiador do Terceiro Reich, a documentação dos sonhos representa uma fonte de primeira ordem, revelando camadas que não são atingidas nem mesmo pelas anotações dos diários pessoais. Dos sonhos relatados pelo autor, destaco o do advogado judeu vivenciado na década de 1930.

Dois bancos existem no Tiergarten (um parque de Berlim), um verde, como de costume, e outro amarelo (os judeus, então, só podiam sentar-se em bancos pintados de amarelo), e entre os dois há um cesto para papel. Sento-me no cesto e penduro no pescoço um letreiro,

46 GALVANI, Pascal. Autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural. In: Educação e transdisciplinaridade II. São Paulo: Triom/UNESCO, 2002, p. 105.

47 KOSSELECK, Reinhardt. Terror e sonho: anotações metodológicas para as experiências do tempo do Terceiro Reich. In: __________. Passado e futuro: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: contraponto/PUC- Rio, 2006, p.251.

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como fazem os mendigos cegos e como também as autoridades obrigam os ‘violadores da raça’ a fazer: “se for necessário, deixarei lugar para o papel”.48

Este sonho apresenta, em linguagem imagética, a experiência do terror vivido por este judeu em um campo de concentração nazista. Tal situação o marcou profundamente, deixando registros nas camadas inconscientes da sua personalidade que puderam, apenas a partir dos sonhos, ser elaborados. “Os sonhos dos campos de concentração nos revelam um terreno onde a razão humana parece falhar, onde a linguagem emudece”49. O silenciamento é uma característica dos Estados Totalitários. O autor cita um sonho de uma faxineira, no ano de 1933, no qual emudecer parece um recurso de sobrevivência: “sonhei que no sonho, por cautela eu falava russo (não falo russo, nem falo sonhando) para que eu mesma não me entendesse e para que também ninguém me entendesse caso eu dissesse alguma coisa sobre o Estado, pois é proibido e tem que ser denunciado”50.

A mesma ação da fantasia inconsciente, em torno da qual o sonho e o devaneio (fantasia consciente) se constroem, irá constituir para o sujeito, na vida de vigília, sua relação com a realidade, ou, melhor dizendo, sua própria realidade, uma vez que a realidade é, em essência, realidade psíquica.51

Com isso, o historiador e porque não o professor de História são impelidos a um terreno no qual as tradicionais fontes escritas e orais – construções produzidas a partir de uma certa racionalidade discursiva – mostram-se insuficientes para nos dizer o que se passa. Ao se alcançar esse espaço fronteiriço, somos remetidos às metáforas dos sonhos e suas imagens, pois são elas a melhor expressão possível das dinâmicas inconscientes da personalidade (ou do indivíduo, se preferir). Assim, o sonho e os devaneios, exaustivamente estudados por Freud, também podem ser fonte e instrumento de trabalho do historiador [que tem a função de/ que precisa] tecer as tramas da história, preenchendo as lacunas deixadas pelos registros factuais.

Assim, para Antonio Marcos Coutinho, os arquivos também nos invadem, embaralhando nossas fantasias, nossas imagens-reminiscência de uma infância distante e até nossas horas de sono. Quando dormimos, as vozes masculinas e femininas dos “arquivos passam a soar desconcertantes nas nossas cabeças. Aqueles rostos, que abandonam as gavetas, vêm abrigar-se em nossos sonhos, atrapalhando enredos, virando-nos do avesso. Teríamos ousado penetrar num tempo proibido”52.

48 KOSSELECK, Terror e sonho..., p. 253.49 KOSSELECK, Terror e sonho..., p. 255.50 KOSSELECK, Terror e sonho..., p. 256.51 JORGE, Marco Antonio Coutinho. As quatro dimensões do despertar — sonho, fantasia, delírio,

ilusão. In: Ágora. Rio de Janeiro, v. VIII, n. 2 jul/dez 2005, p. 278.52 NUNES, Clarice. História da educação: espaço do desejo. Em Aberto, Brasília, INEP, n, 6, v.

1, 1989, p. 41. Disponível em: <http://emaberto.inep.gov.br/ index.php/emaberto/article/view-File/739/659>. Acesso em: 10 mai. 2009..

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RESUMO

A intenção do presente artigo é mostrar como documentos escritos e iconográficos são fontes históricas equivalentes e complementares, porque os textos engendram figuras e as imagens transmitem textos. Vistos pelo historiador como discursos/ narrativas, as imagens e textos precisam ser analisados como um fragmento do passado, sem qualquer pretensão de neutralidade, pois atendem as condições sociais de produção de uma dada época. Assim o estudo histórico das fontes visuais não deve ser subestimado em relação aos textos escritos sob a pena de se restringir a apreensão do conhecimento histórico.

Palavras Chave: Textos; Imagens; Ensino de História.

ABSTRACT

This article aims at showing how written and iconographic documents are equivalent and complementary historical sources, because texts beget figures and images transmit texts. Perceived by historians as discourse/ narratives, images and texts should be analyzed as a fragment of the past, with no intention of neutrality since they meet the social conditions of production in a given period. Therefore, the historical study of visual sources should not be underestimated in relation to written texts, under the risk of restricting the historical knowledge holding.

Keywords: Texts; Images; History Teaching.

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resenha

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TINTA NEGRA, PÁGINAS BRANCAS:A LITERATURA NEGRA NAS AULAS DE

HISTÓRIA E DE HISTORIOGRAFIA

Elio Chaves Flores1

RIBEIRO, Esmeralda & BARBOSA, Márcio. (orgs.). Cadernos Negros, três décadas: ensaios, poemas, contos. São Paulo: Quilombhoje; Brasília: SEPPIR, 2008, 333 p. Il.

A expressão "cadernos", numa era de ferramentas virtuais, soa um pouco escrever artesanalmente à moda dos românticos oitocentistas: ao bico de pena. A par disso, também podem implicar corpus fragmentários de atividades intelectuais que, encadernados, sustentam concepções de história e de cultura histórica. Antonio Gramsci, no cárcere do fascismo italiano, não deixou de escrever suas cartas filosóficas e políticas que, mais tarde, teriam grande aceitação entre os intelectuais das esquerdas como reflexões de renovação da própria tradição marxista e da “cultura revolucionária”. Mas se Gramsci fosse negro ou afrodescendente sua escrita em cadernos teria o mesmo reconhecimento? Qual seria a diferença entre um escritor marxista branco e um escritor marxista negro na perspectiva do materialismo cultural?

Stuart Hall, um expoente da diáspora negra contemporânea, no denso ensaio “A relevância de Gramsci para o estudo de raça e etnicidade”, observa que devido às circunstâncias de produção numa epocalidade racialmente transtornada “os Cadernos [gramscianos] representam uma proeza intelectual surpreendente”2. O próprio Gramsci pode iluminar uma resenha sobre um livro que reúne trinta anos de literatura negra no Brasil. Dos seus Cadernos do Cárcere é possível apoderar-se das ideias de que “literatura não gera literatura”, “ideologias não geram ideologias”, “superestruturas não geram superestruturas senão como herança de inércia e passividade”, pois elas são geradas “pela intervenção do elemento ‘masculino’, a história”. Dessas ideias incompletas e polêmicas, retiradas de um diálogo negativo de Antonio Gramsci com Benedetto Croce (Cultura e Vida Moral), passamos a outra que nos acompanhará até ao final de nossa análise: “se o mundo cultural pelo qual se luta é um fato vivo e necessário, sua expansividade será irresistível, ele encontrará os seus artistas”3.

Borradores filosóficos, notas esparsas ou cadernos literários parecem não ser muito considerados nos currículos de história e nos argumentos historiográficos quando

1 Doutor em História Social pela Universidade federal Fluminense. Docente de História da África no Curso de Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. Vice coordenador do PPGH-UFPB. Pesquisador do CNPq, com o projeto “Visões da África e Práticas Emancipatórias dos Intelectuais Afro-Brasileiros (1944-1988)”.

2 HALL, Stuart. A relevância de Gramsci para o estudo de raça e etnicidade. In: ____ Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização de Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: UNESCO, 2003, p. 296.

3 GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Tradução e seleção de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 10-12.

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são produzidos por escritores e escritoras negras nesse Brasil contemporâneo com forte atualização culturalista das mestiçagens, hibridizações e crioulizações4. Em defesa de nós mesmos, historiadores, poderíamos argumentar que a historiografia escorre de nossas entranhas sempre datada ao passo que a literatura salta a própria sombra de quem a germinou, despedaçando a duração e a materialidade dos fatos em representações metafóricas. Aqui podemos parafrasear Machado de Assis, o afrodescendente, e afirmar que os documentos poéticos, o conto e a poesia, por exemplo, se afirmam pelo instinto narrativo, ao rés do chão, algo como coisa miúda, desmonumentalizando a história, coisa e nome que, como vimos, Antonio Gramsci acusou de masculino.

Peguemos alguns exemplos dessas peças poéticas produzidas ao longo dos trinta anos (1978-2008) em que os Cadernos Negros pensaram uma história do Brasil vista pela ótica da matriz cultural africana. Pensar historicamente não é um atributo especificamente historiográfico. O primeiro desses exemplos vem de um conto de Cuti (Luiz Silva), “Lembrança das Lições”, em que a professora, D. Isabel (ironia cortante ao 13 de maio), repete uma aula de história à moda da tradição eurocêntrica brasileira como se tivesse contando uma viagem de férias:

Sou na infância.A palavra escravidão vem como um tapa e os olhos de quase todos os moleques da classe estilingam um não sei o quê muito estranho em cima de mim. A professora nem ao menos finge não perceber. Olha-me também. Tento segurar a todos franzindo a testa e petrificando o olhar, mas não dá. Um calor me esquenta o rosto e umas lágrimas abaixam-me a cabeça pra que ninguém as veja.A aula continua. E eu detectando risos e fazendo um grande esforço para não lhes dar crédito. Enquanto a professora olha umas fichas amarelecidas, a sala enche-se de gargalhadas surdas. Ela continua. A cada palavra do discurso pressinto uma nova avalanche de insultos contra mim, e contra um eu mais amplo que abraça meus iguais na escola e estende-se pelas ruas envolvendo muitas pessoas, sobretudo meus pais. E ela recomeça sempre do mesmo jeito acentuado: ‘Os negros escravos eram chicoteados...’ e dá mais peso à palavra negro e mais peso à palavra escravo! Parece que tem um martelo na língua e um pé-de-cabra abrindo-lhe o sarcasmo de canto de boca, de onde me faz caretas um pequeno diabo cariado. A cada investida dela vou mordendo meu lápis, triturando-o.

4 As perguntas de Gruzinski, cuja obra é uma espécie de mantra culturalista da hibridização, são fundamentais para um diálogo profícuo em torno das conexões históricas modernas: “Essa volta ao passado é apenas um modo de falar sobre o presente, pois o estudo das mestiçagens de ontem levanta uma série de indagações que permanecem atuais. Genericamente, eis algumas delas: as misturas resultantes da expansão ocidental expressam uma reação à dominação européia? Ou são uma repercussão inelutável desta, e até mesmo uma forma astuciosa de enraizar nossos costumes no seio das populações subjugadas? Até que ponto uma sociedade ocidental pode tolerar a eclosão proliferante de expressões híbridas? (...) Que sentido, que limites e que ciladas se escondem na metáfora tão cômoda da mistura? Por último, como se desenvolve − se é que ele existe − um pensamento mestiço?”. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 19.

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O clima pegajoso se estende na sala. O outro garoto negro da classe permanece de cabeça baixa o tempo todo. Nenhuma reação. Uma caverninha humana. Imóvel.Minha respiração, sinto-a dificultada.− É você, macaco. Você é escravo. – cochicha um aluno branco dirigindo-se a mim. Sussurro uma vingança pra depois e sinto pela primeira vez um ódio grande, repentino metálico, um ódio branco. A professora, em face de minha reação explodindo nas contrações do rosto, pede atenção com forte autoridade. Manuseia outra vez as fichinhas velhas e prossegue: ‘Os NEGROS ESCRAVOS eram vendidos como CARNE VERDE, peças, desprovidos de qualquer humanidade. Eram humildes e não conheciam a civilização. Vinham porque o Brasil precisa de?... Vejamos quem é que vai responder...’ Tremo, encolhido, dolorido, diante da possibilidade de ser chamado. Eu quero sumir. Meu coração bate vertical e meus intestinos se revoltam. Saio apressado da sala sem pedir licença. Chego à privada em tempo.Alivio o desespero das entranhas.Olho as paredes e a porta do cubículo rabiscadas, procurando espaço. Contenho com bastante esforço um choro que me vem insistente para afogar o mundo. Limpo-me com um jornal não sujo de todo e fico ainda sentado sobre o vaso branco, pensando, vagando, como um prisioneiro perpétuo. A cor do vaso desperta-me tramas. Primeiro levanto-me e chuto-o com a sola do sapato, depois sou levado pelo vento das imagens, das idéias: ‘ponho fogo na escola... desocupada... papel de caderno debaixo da mesa dela... acendo o fósforo... quem me xingá de negrinho... são tudo besta... vou comprá um canivete... dô porrada mesmo!...’ E a porta passa a me servir de lousa... acho graça das coisas que escrevo e continuo.A agressividade estridente da companhia surpreende-me com a ponta de meu lápis já gasta. É o término do período.[...]Chegamos ao quarto ano com a malandragem bem burilada. Já não damos importância ao fato de nos chamarem pela cor. Entre a molecada, quase sempre fazem isso com medo, medo do Neguinho-eu e do Neguinho-Joel. O medo deles é o que nos importa, nos dá alento, ilusão de respeito.É o dia da festa. O dia do diploma. Nossos pais comparecem, sorriem às professoras, e vamos todos cantar o hino debaixo da bandeira verde amarela azul e branca. Verde... meu pai e minha mãe verdes por um instante... CARNE VERDE. E as gargalhadas surdas balançam o pendão da esperança. Com a mão sobre o lado esquerdo do peito não dou importância ao Joel, que faz piadas. ‘Ouviram do Ipiranga...’ todos cantam. Fico mudo e triste, até sentir dentro do peito um batuque forte que me vem de longe, do que não sei de mim. Euforia inexplicável. Descubro o Coração.

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O tempo não tem tréguas e as lembranças servem de alerta e lamento. Não é todo dia que se é lançado ao passado como uma flecha em busca de um alvo que sempre nos é obscuro...5

Alguns comentários se afiguram necessários depois dessa longa citação cuja ficcionalidade não esvazia a forte dimensão interpretativa da história, antes a confirma. A historiografia cultural da escravidão, pujante nos últimos trinta anos, passou a ver o universo social da escravidão como sendo legal e legítimo a partir de algumas séries documentais em que não apenas os senhores possuíam escravos, mas também pelo fato de muitos negros libertos, quando com alguma posse, comprarem escravos. Bem, aqui estamos diante de uma interpretação do passado histórico em que repousa uma provável neutralidade axiológica do pesquisador que se preserva dos anacronismos historiográficos, inadmissíveis nos ofícios de Clio. Também podemos admitir que a sua ciência não tenha cor, visto que ele interpreta as suas fontes com método e racionalidade amplamente reconhecidos e aceitos pelos seus pares. Lembremos impiedosamente de Jörn Rüsen: “Não é possível pensar nenhum tipo de dominação cuja legitimação não recorra aos saberes históricos”.6

Entretanto, a professora do conto, que sabemos ter o nome de D. Isabel, não deixa de ser a metáfora íntegra da ciência, história masculina, que é ensinada na escola básica com toda a carga de uma disciplina científica que “explica” a história do Brasil, no caso em foco, o que foi a escravidão. Mas como a ciência que lhe professa, D. Isabel não diz como a escravidão foi exercida pelos senhores brancos e como foi sentida pelos negros escravizados. Os “encobrimentos e as frestas” da historiografia da mestiçagem acabam reforçando mitografias étnicas na nossa cultura escolar.7 Assim, a divisória semântica marca a separação entre historiografia da mestiçagem e literatura negra nesses últimos trinta anos: se historiograficamente a escravidão passa a ser vista como legal (senhores mestiços, brancos pobres, negros libertos e escravizadores) simplesmente porque amplos setores sociais a praticavam, a literatura negra, que também se debruça sobre esse mesmo passado, a sente “como um tapa” e que a “história da escravidão já espancou muita gente por dentro”.

Por certo que o atual estatuto da historiografia não se permite mais buscar a verdade atrás dos fatos ou mesmo das suas representações mais paradigmáticas, senão os seus indícios, verossimilhanças e versões metodologicamente livres de qualquer inspeção mais rigorosa de uma ciência usada em século e décadas. Entretanto, o escritor negro sente o passado que não cessa e pode ainda “sentir um batuque forte” que lhe vem de longe, de uma ancestralidade que cruzou o Atlântico. De modo que a tese, elaborada ficcionalmente pela pena de Cuti (Luiz Silva), está sujeita à verificação historiográfica: a escravidão não é a flecha que nos lança ao

5 CUTI (Luiz Silva). Lembrança das Lições. In: RIBEIRO, Esmeralda & BARBOSA, Márcio (orgs.). Cadernos Negros, três décadas: ensaios, poemas, contos. São Paulo; Brasília: Quilombhoje; SEPPIR, 2008, p. 181-84.

6 RÜSEN, Jörn. História viva: Teoria da História - Vol. III: formas e funções do conhecimento his-tórico. Brasília: Editora da UnB, 2007, p. 127. Para aprofundar o debate em torno das “tradições historiográficas”, ver a entrevista de Astor Antônio Diehl, “História, teoria da história e culturas historiográficas”, publicada na última Saeculum, n. 21, jul/ dez., 2009, p. 219-234.

7 Para uma síntese da “historiografia da escravidão e da família escrava”, ver a introdução de: ROCHA, Solange Pereira da. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual. São Paulo: Editora da UNESP, 2009, p. 25-75.

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passado, ela é antes o alvo que ainda nos é profundamente obscuro. Presente vivo: senzala/favela! Lembremos agora serenamente do mesmo Rüsen: “A dimensão estética não se deixa reduzir às funções de efetivação dos interesses políticos e das interpretações científicas. Como meio próprio e peculiar da experiência e da interpretação histórica, ela se caracteriza por um manejo específico”8.

Outro conto nos remete aos debates sobre os valores civilizatórios que, na tradição historiográfica brasileira, situa-se no conjunto da modernidade ocidental. O conto, “Civilização”, de Oswaldo de Camargo, narra a ascensão funcional de um músico negro “descoberto” por um empresário cultural branco. Vejamos dois momentos cruciais do conto:

Saí, pois de manhã, sentei-me num banco da Praça da República, onde conversei com José do Patrocínio (Patrocínio, sim senhor, que sarro!, o cara nem sabe ler, bebe como um porco, fede a catinga e os engraxates chamam ele de José do Patrocínio; oh, José do Patrocínio!).Abri meu Cruz e Sousa, aquela edição de papel mendigo do Zélio Valverde, li dois poemas, não buliram comigo. Eu estranhei: se Cruz e Sousa não bole comigo é porque estou bem ruinzinho, estou começando a ficar podre e um sujeito podre precisa ganhar dinheiro, se não, fede, descasca, fica gretado e todo mundo fala: aquele é um sem eira nem beira e se é um preto: é um preto ‘tu’ e não um preto ‘sim, senhor’.(...)Subi na ‘Neurotic’s House’ porque Fred foi com a minha cara, foi e ainda vai:– Gosto de você, preto, você provou que um preto pode livrar-se de sua carga... Gosto de você, preto, gosto mesmo...E ele me ajeita o nó da gravata, sorrindo, muito loiro, muito fino e bonito, como um branco.E sua mão, no meu ombro, me belisca a carne até o osso, testando a resistência...– Gosto de você, preto, gosto mesmo...Um odor áspero, de colônia, me envolve, como nuvens de Civilização.9

Com efeito, Oswaldo de Camargo trabalha ironicamente as representações das relações raciais “humanitárias” em que para um negro galgar a civilização precisaria ser elevado por um branco e, mais do que isso, que somente o branco (civilizado) é que poderia extrair algum talento do negro. As representações históricas permeiam o negro dócil, a única forma de integração no mundo do outro, o Ocidente. O autor alude à gramática da linguagem imperativa das “reverências que empinam o traseiro, mas empurram o carro do êxito pra frente”. Nem os referenciais negros da república das letras, José do Patrocínio e Cruz e Sousa, parecem escapar desse estado de coisas da bárbara frase de efeito que tenta produzir o apagamento das

8 RÜSEN, História viva..., p, 131.9 CAMARGO, Oswaldo de. Civilização. In: RIBEIRO & BARBOSA, Cadernos Negros..., p. 227-32.

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tensões raciais supostamente resolvidas discursivamente: “– Gosto de você, preto, gosto mesmo...”. Na casa historiográfica grande trata-se simplesmente da evocação às hibridizações simbólicas, freyrismos oniscientes, mas no “negro escrito” uma delicadeza desse tipo fede à civilização.

Nas construções poéticas dos últimos trinta anos os dois lados do Atlântico surgem como signos de diáspora. Não há outra nomeação para povos arrancados pela raiz de um continente: dispersão. E da África para o Brasil esse movimento ajudou a gerar alguns regionalismos. No poema, “A noite te convida”, de Ademiro Alves – Sacolinha, a estrutura do mito da Mãe África é assim construído:

África mãe, Brasil filho,O leite do mundo habitou as suas tetas.Mamilos perfeitos acalentados de açoite.Seu ventre sempre foi livreGerando toda a história desse universo mal agradecidoSe ser mãe é dádiva de DeusEntão a África é o berçário onde Ele nasceu.(...)Tragam-me a garrafa com o líquido da cultura nordestinaVou me embriagar desse sincretismo puro e natural.Noite! Termo abstratoQue absorve o sentimento africano.África mãe, África pai, África.Sinônimo de negro.10

Ao cantar o africanismo na ampla diáspora, o lírico Sacolinha não apenas ameniza a concepção gramsciana de história (masculina), mas também injeta nas suas veias abertas, a feminilidade de processos geradores de culturas históricas. No caso africanista, as culturas musicais de “tambores confeccionados pelas mãos, arquitetas do mundo”. A metáfora do “nordeste líquido” não deixa de aludir à práxis proferida por Solano Trindade ao lembrar das mãos negras: “plantei os canaviais do nordeste”.

Ainda em torno das representações africanistas, a poesia “Negritude”, de Celinha, aponta a identidade negra no fulcro das construções históricas da travessia atlântica. São as águas, fronteiras líquidas, que aportam nos continentes e fazem de cada negro “um pedaço de terra”, um quilombo. Jean-Paul Sartre já havia dito no seu ensaio seminal sobre a poesia negra: “A liberdade é cor da noite”.11 A autora, ao se situar na negritude o “eu lírico” abre o seu poema para os golpes da própria história:

De mimparte N E G R I T U D E um golpe mortalnegrura rasgando o ventre da noitepunhal golpeando o colo do diaum punho mais forte que as fendas de aço

10 SACOLINHA, Ademiro Alves. A noite te convida. In: RIBEIRO & BARBOSA, Cadernos Negros..., p. 113-14.

11 SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difel, 1978, p. 104.

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das portas trancadasda casa da história.12

A radicalidade da negritude como a dimensão da africanidade aparece, também de forma visceral, no poema de Elizandra, “Sou seu HIV”, uma leitura contemporânea da história da escravidão. É mais uma vez Sartre quem nos interpela: por que não haveríamos de vomitar nossa branquidão e suicidar o Narciso benevolente? Vale a pena ler esses fragmentos:

Divirta-se!No teu momento de distraçãoTranscendência, gozo e alucinaçãoSutilmente penetro na sua fortalezaInjeto meu vírus. Ai, que beleza!Demoro um tempo para ser percebidaQuando perceber já estou acabando com a sua vidaVou acabando com sua imunidadeComo corda vou amarrando seus braçosDeixando-te sem mobilidadeSeus glóbulos vou matando sem piedadeSou poeta destruidora de alienaçãoSaudando minha ancestralidade(...)Mesmo que não apague as chicotadasQuero vida decente para a futura geraçãoSei que vocês continuam se achando superioresMas não se esqueça que sou seu HIVEstou entrando devagarzinho e levarei aos poucosTudo que nos foi roubado.13

Algum historiador ousaria aplicar o conceito de anacronismo a essa interpretação literal da história? Evidentemente que a autora, ao não fazer historiografia, transita pela cultura histórica e joga em nossos rostos historiográficos – atualizadamente eurocêntricos, sim, porque odiamos o anacronismo – um presentismo que exitamos em admitir como nosso: o racismo à brasileira14. Então, como anjos barrocos da história, somos voltados para o passado e, via mestiçagem, salvamos a civilização nos trópicos. Assim transitamos alegremente da montanha para o pântano, da cultura historiográfica para a cultura escolar? Sim, pois não! Evidentemente que aqueles historiadores que conhecem as periferias de algumas capitais brasileiras sabem das relações temporais dessa síntese secular da poética de Elizandra: “Lixo, esgoto, escravidão e senzala”. Afinal, a história não é uma ciência presentista por excelência?

Para os pesquisadores, a edição evocativa da literatura negra contemporânea traz 12 CELINHA. Negritude. In: RIBEIRO & BARBOSA, Cadernos Negros..., p. 118-19.13 ELIZANDRA. Sou seu HIV. In: RIBEIRO & BARBOSA, Cadernos Negros..., p. 130-32.14 A primeira parte da obra resenhada é composta pelos ensaios de Florentina Souza, Maria Nazareth

Soares Fonseca, Maria Cândida Ferreira de Almeida, Fausto Antônio e Elio Ferreira que, de uma forma ou de outra, tratam de nossas experiências raciais contemporâneas. Ver RIBEIRO & BARBOSA, Cadernos Negros..., p. 43-108.

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ainda um rico acervo fotográfico e todas as capas originais dos trinta volumes dos Cadernos Negros, publicados entre 1978 e 2008. A última sessão contém pequenos textos publicados nas orelhas e quartas capas dos volumes que os organizadores chamaram africanisticamente de Orikis (cânticos pelos quais a emoção sopra) onde se podem conhecer reflexões de vários artistas e intelectuais negros atuantes no Brasil. O título da resenha é uma homenagem ao oriki de Aroldo Macedo, aos escrever para os Cadernos Negros, nos seus 20 anos: “Quanta tinta negra em páginas brancas...”. Nesse sentido, a obra também se constitui numa rara base documental para o ensino de história e de literatura na educação básica. Dito isso, relembremos o pensador italiano do início da resenha: a negritude brasileira, nas últimas três décadas, finalmente, encontrou os seus artistas. Nesse mesmo período, muitos historiadores aderiram às fontes literárias e apostaram teórica e metodologicamente em buscar “a lógica social do texto” e, de fato, “dessacralizaram a literatura”15. Foi assim que respiramos ares novos em história cultural. Talvez estejamos no limiar de um novo empreendimento nos ofícios de Clio: dessacralizar a historiografia, especialmente a historiografia da mestiçagem.

15 CHALHOUB, Sidney & PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (orgs.). A História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 7-13.

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entrevista

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A LEITURA DA HISTORIOGRAFIA CLÁSSICAPARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Entrevistadores: Antonio Carlos Ferreira Pinheiro1, Claudia Engler Cury2 e Cristiano Ferronato3

Sæculum: O Sr. é hoje um dos historiadores da educação portuguesa mais conhecidos no Brasil sendo citado e referenciado nos trabalhos académicos. Conte-nos um pouco sobre a sua formação académica.

Justino Magalhães: A minha formação académica foi simultânea com o exercício docente e muito sobreposta com a investigação. Comecei por fazer o Curso de Magistério Primário; já a leccionar no Ensino Primário, fiz a Licenciatura em História. Estagiei e trabalhei no Ensino Secundário. Mas é de estagiário no Ensino Superior que guardo a experiência mais crítica e intensa, em termos de esforço e caminho pessoal. Tinha tido uma aproximação à História da Educação no Curso de Magistério Primário e, mais tarde, na Licenciatura em História. Entrei na Universidade para leccionar História da Educação.

Não sei se existe o autodidacta, seguramente não o sou. Conduzo a vida reagindo às circunstâncias; cedo idealizei um horizonte e me pus a andar, ainda que o caminho, penoso e demorado, tenha sido um acúmulo de tacteio e aquisição. As minhas referências são colegas, professores e pessoas sábias, a quem tomo por mestres. Sempre li tudo, ora com regra e objectivo, ora por curiosidade, exploração da linha de horizonte, erudição, devaneio. Entreteço problemas, fontes, hipóteses. Cruzo leituras, mas o mais gratificante é ler e reler os clássicos. Fiz a graduação em História quando corria a Revolução de Abril4, cumpri uma boa parte das disciplinas sob a modalidade de dissertação, individual ou em grupo, e guardo dos professores a mais grata recordação: disponíveis na procura e aconselhamento; rigorosos na verificação; pragmáticos no labor historiográfico. Alguns, vim a encontrá-los quando entrei para a Universidade como professor. De outros, aprendi a tenacidade, a dureza

1 Professor Associado do Departamento de Metodologia da Educação, no Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba e Docente Permanente dos Programas de Pós-Graduação em História e em Educação da mesma instituição.

2 Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba e Docente Permanente dos Programas de Pós-Graduação em História e em Educação da mesma instituição.

3 Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista CAPES.4 Revolução de Abril (ou dos Cravos) é o nome dado ao golpe de Estado militar que derrubou,

sem derramamento de sangue e sem grande resistência das forças leais ao governo, o regime ditatorial herdado de Oliveira Salazar e aos acontecimentos históricos, políticos e sociais que se lhe seguiram, até à aprovação da Constituição Portuguesa, em abril de 1976. O regime que vigorava em Portugal desde 1933 cedia, de um dia para o outro, à revolta das forças armadas, lideradas por jovens oficiais. O levantamento, usualmente conhecido pelos portugueses como 25 de Abril, foi conduzido em 1974 por oficiais intermédios da hierarquia militar (o MFA), na sua maior parte capitães que tinham participado na Guerra Colonial. Os oficiais de baixa patente, os oficiais milicianos. estudantes recrutados, muitos deles universitários, vendo suas carreiras interrompidas, cedo aderiam. É consensual ter trazido essa revolução, conduzida por esses jovens, a liberdade ao povo português, oprimido durante décadas. Denomina-se “Dia da Liberdade” o feriado nacional instituído em Portugal para comemorar a revolução iniciada no dia 25 de abril de 1974.

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argumentativa e o cruzamento entre o arquivo e a biblioteca.

Mas a vida também depende de quem dá a mão ou confia em nós no momento certo. Destes, que são muitos, não posso esquecer Ribeiro Dias, Fortunato Queirós, Norberta Amorim, Ribeiro da Silva, António Nóvoa, António Viñao, Anne-Marie Chatier.

Sæculum: Quais pensadores, intelectuais ou historiadores que mais o influenciaram?

Justino Magalhães: Como referi, leio e releio os clássicos. Procuro-os em boas colectâneas e logo que possível passo à leitura integral. Em contraponto aos clássicos, sejam eles historiadores (como Lucien Febvre, Marc Bloch, Braudel, Vitorino Magalhães Godinho, Michel de Certeau, Harvey Graff, Joel Serrão, Ferreira Gomes), pedagogos (como Coménio, Rousseau, Herbart, Dewey, Decroly), filósofos (como Montaigne, Descartes, Locke, Kant, Vico, Montesquieu, Verney, Condorcet, Durkheim, Gadamer, Habermas, Foucault, Ricoeur), ou sociólogos (como Norbert Elias, Max Weber, Raymond Boudon, Pierre Bourdieu), leio os críticos e os “abridores” de caminho (por exemplo, Freinet, Neil, Ivan Illich, Paulo Freire). Mas entre uns e outros coloco aqueles em cuja escola me procuro inscrever, aqueles que estão a fazer o caminho, conceptualizando, revendo, ampliando os temas e as perspectivas em que estou a trabalhar (de que dou os exemplos de Jack Goody, Peter Burke, Geertz, Snyders, Roger Chartier, Jacques Revel, François Furet, Lepetit, Noiriel, Hartog, Julia, Popkewitz, Jean Houssaye, Boaventura Sousa Santos, António Nóvoa). Estes últimos, que são muitos e diferenciados, estudo-os com olhar crítico e sentido pragmático, pois que é por eles que a ciência avança. Eis os três vectores que sustentam e dão sentido à minha formação. Contudo, a estrutura mais sólida e profunda sedimenta nos clássicos, em quem joeirando a poeira, afinando o encanto do novo, contrariando a efemeridade, encontro a reinvenção do caminho. É do clássico que parto; é com o clássico que confronto o novo. Promissora ou radical, a inovação, ainda que efémera, atrai e inquieta. Por ela se esboçam os destinos, mas são os autores conceituados que consolidam o caminho.

A sina do histórico-pedagógico, como domínio epistémico e factor de transformação é recriar o binómio classicismo/inovação. Não pode deixar de fazê-lo através da argúcia crítica, da tenacidade argumentativa, da densidade informativa, da projecção do sentido, geradas numa cuidada hermenêutica, na depuração e no equilíbrio dos discursos dos mestres. Mestres são os que desvelam a construção do caminho.

Sæculum: Com esse contato com os pesquisadores percebeu alguma mudança em seu trajeto como investigador da história da educação?

Justino Magalhães: Na minha trajectória pessoal tenho procurado, como referi, uma reinvenção permanente, transitando entre arquivo e biblioteca, lendo e relendo clássicos e mestres, perscrutando as linhas de inovação junto dos mais ousados. O que tenho verificado desde que, na década de noventa, comecei a orientar teses de mestrado e doutoramento, é que, hoje, entre os jovens candidatos a investigadores se

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distinguem com mais nitidez os credencialistas daqueles que querem sedimentar a sua formação. Esta alteração ter-se-á ficado a dever ou a que as circunstâncias científicas e académicas mudaram, nomeadamente, por exemplo, face ao não reconhecimento automático do doutoramento na carreira profissional dos professores, ou ao facto de hoje a maior procura ser de candidatos jovens. Um segundo aspecto é o de que estes jovens são mais disponíveis para cumprir as etapas laboratoriais do ofício, inclusive na prática da leitura e da escrita científicas. Isto, que é uma constatação geral, espero que venha a repercutir-se na História da Educação.

Sæculum: Como se deu a aproximação com os historiadores da educação brasileira?

Justino Magalhães: A minha aproximação ao Brasil foi rápida e intensa, ficando a dever-se à participação activa nos Congressos Luso-Brasileiros; à orientação de Seminários, Cursos e Conferências em diferentes Universidades Brasileiras; à intervenção em eventos científicos. Mais recentemente, tenho sido Professor Visitante em diferentes Universidades e tenho podido orientar e supervisionar Estágios de Doutoramento e Programas de Pós-Doutoramento. Foram editados dois livros meus no Brasil, para além de uma diversidade de artigos, capítulos de livros, participação em Actas. Nos planos científico e académico devo muito ao Brasil, onde fiz amigos e onde me sinto enobrecido. Não posso deixar de particularizar quanto de honroso e fecundo foi para mim ter-me sido confiada a Conferência de Abertura do 1º Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (Lisboa, 26-28 de Janeiro de 1996). Devo tal distinção aos Membros da Comissão Organizadora, cujo reconhecimento público aqui reitero, aproveitando o ensejo para homenagear o Professor Rogério Fernandes que acaba de deixar-nos. Desde a fundação que, a convite do Professor Dermeval Saviani, acompanho os trabalhos da Rede HISTEDBR; estive na ANPED em 1996, a convite dos GT’s de História e de Alfabetização; tenho contado com o melhor acolhimento junto das sucessivas Direcções da Sociedade Brasileira de História da Educação.

Sæculum: Uma das obras mais conhecidas do Sr. no Brasil é Tecendo Nexos: história das instituições educativas, publicada em 2004. O Sr. visualiza mudanças nas perspectivas que o animaram a escrever a referida obra e as suas pesquisas atuais?

Justino Magalhães: Tecendo Nexos resume as minhas Provas de Agregação5 5 O título de agregado é um título acadêmico atribuído pelasuniversidades e institutos universitários

portugueses que atesta a qualidade do currículo acadêmico, profissional, científico e pedagógico, a capacidade de investigação e a aptidão para dirigir e realizar trabalho científico independente. O título acadêmico de agregado é atribuído num ramo do conhecimento ou numa especialidade, mediante a aprovação em provas públicas. As Provas de Agregação consistem numa prova de habilitação de acesso a concurso para professor catedrático e são constituídas: pela apreciação e discussão do currículo do candidato, incidindo especialmente sobre a atividade relevante de investigação, formação ou orientação avançadas e sobre a autoria de trabalhos científicos de qualidade reconhecida desenvolvidos após a obtenção do grau de doutor; sobre as suas atividades de investigação presentes e projetos e programas de trabalho futuros; sobre outros aspectos

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(defendidas em 2000); Alquimias da Escrita retomava aspectos metódicos da minha tese de doutoramento (1994). São duas obras onde procurei abrir caminho. Foram bem acolhidas por colegas, investigadores e estudantes do Brasil; têm sido discutidas em seminários e citadas nos estudos da especialidade. Em Tecendo Nexos discuto a instituição educativa como objecto epistémico histórico-pedagógico e esboço um percurso investigativo. É uma obra que tinha subjacente uma empiria, mas não incluiu o trabalho empírico. Esta não-inclusão tem, uma vez ou outra, dado lugar a leituras acentuadamente dedutivas, com prejuízo para um dos aspectos fundamentais do objecto epistémico - a singularidade da instituição educativa como construção histórica. Tomada como objecto singular, a instituição educativa faz parte de um todo, mas ela própria funciona e ganha sentido, nos planos histórico e pedagógico, como totalidade. A composição e a dialéctica instituinte cruzam o singular com o transversal, mas na experiência educativa e no destino dos educandos é a singularidade que prevalece. Esse é um dos desafios de investigação, no que se refere a testemunhos, categorias e modalidades de representação, argumento, prova e comunicação escrita, que Tecendo Nexos não deixa inteiramente resolvida.

Creio que a temática e o objecto epistémico de Tecendo Nexos não estão esgotados, mas é preciso retomar a investigação empírica, prosseguir o debate, aprofundar o marco conceptual. Um dos aspectos mais notórios da instituição educativa é a longevidade, repercutindo na memória colectiva e nas memórias individuais, para além da materialidade e das experiências formativas. A efeméride e a comemoração, bem assim como a constituição de associações de ex-alunos são veículos, de algum modo, directos dessa repercussão, mas há heranças e repercussões socioculturais e individuais bem menos evidentes e nem por isso menos significativas.

Sæculum: Comente em linhas gerais acerca do quadro atual das pesquisas sobre a história da Educação em Portugal.

Justino Magalhães: Creio que a História da Educação em Portugal se ressente hoje de um período de grande intensidade e inovação. Debate-se com algum desalento e alguma perda de visibilidade editorial. É um momento crítico que deverá preparar um novo ciclo, fazendo repensar e consolidando o caminho. Foram localizadas e compendiadas as principais fontes, abertos novos campos historiográficos, criados novos objectos epistémicos. Necessário se torna, entre outros aspectos, aprofundar o tirocínio da operação historiográfica, intensificar os percursos interpretativo e explicativo dos principais ciclos, avanços, indeterminações e linhas de evolução da educação, da aculturação escrita e da escolarização da Sociedade Portuguesa.

Sæculum: O que o Sr. aconselharia do ponto de vista teórico-metodológico relevantes no currículo, designadamente a sua obra pedagógica, a orientação de dissertações e teses no âmbito de mestrados e doutoramentos, a difusão do conhecimento e da cultura e a prestação de serviços à comunidade; pela apresentação, apreciação e discussão de um relatório sobre uma unidade curricular, grupo de unidades curriculares, ou ciclo de estudos, no âmbito do ramo do conhecimento ou especialidade em que são prestadas as provas; por um seminário ou lição sobre um tema dentro do âmbito do ramo do conhecimento ou especialidade em que são prestadas as provas, e sua discussão. O título acadêmico de agregado é titulado por uma carta de agregação emitida pela instituição de ensino superior que o conferiu.

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para um jovem que desejasse ingressar no âmbito da pesquisa em História da Educação?

Justino Magalhães: Regresso aqui ao início deste meu apontamento. Se alguma coisa poderei recomendar a um jovem investigador, tal decorre do meu modo de fazer. Sempre que, em sede de doutoramento ou de tutoria, mo pedem, proponho um exercício de projecção, na base de um dilema, pergunto ao meu interlocutor se quer continuar a correr daqui a dez e de preferência vinte anos, ou se aspira ao brilho no imediato. Esta decisão estratégica reflecte-se no modo de andar, mas sobretudo na gradação, na densidade e maturação da formação. Ao primeiro, que é o que me entusiasma mais, recomendo trabalho e trabalho: ler os clássicos, alicerçando bem a casa e construindo-a com uma planta de estrutura resistente, mas que admita um recheio flexível, ou mesmo amovível. Escolha um tema complexo e vasto que possa ser apresentado por etapas. Não devem ser queimadas etapas, nem as que são necessárias ao ofício de historiador, nem as que são necessárias à sedimentação do caminho, ou, objecto a objecto, à consolidação do labor historiográfico. O caminho é uma combinatória de discipulação e mestria, transitando por diferentes escolas e cotejando diferentes perspectivas, viajando por diferentes centros e laboratórios, mas levando sempre os clássicos na bagagem.

Se, ao contrário, alguém pretende, por necessidade ou opção, um brilho imediato, deverá escolher um tema curto e actual, procurar um instrutor credenciado, de preferência publicamente bem cotado, procedendo a uma economia de leituras e a uma oportuna aplicação teórico-conceptual. Em qualquer das circunstâncias, a ciência não deveria comportar oportunismos.

Lisboa, 30 de junho de 2010.

Justino Magalhães.

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Esta revista foi impressa em papel Pólen 80g/m2 (miolo) e papel Supremo 240g/m2 (capa), com tiragem de 500 exemplares, em em junho de 2010.

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