Date post: | 19-Nov-2023 |
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Projeto FunculturaAldeias e Missões Indígenas no Semiárido de Pernambuco
Sertão: Fronteira do Medo
Produtor e Coordenador EditorialItamar Morgado
Autoras e PesquisadorasSocorro Ferraz e Bartira Ferraz Barbosa
Projeto Gráfico e DiagramaçãoLaura Morgado
Assistente de ProduçãoDora Lucena
RevisãoOlga Barbosa Araújo
Assessoria de Imprensa CASA Agenciamento Literário e Projetos Culturais
editor
Sumário
Apresentação • 07
Introdução • 11
Prefácio • 20
Paisagem Sertaneja • 31
Vestígios Indígenas • 49
Sob o Domínio do Medo • 129
Missões, Aldeias, Currais • 181
Ordenando o Caos • 227
Dispersão • 247
Índice de ilustrações • 267
Fontes • 269
Referências Bibliográficas • 273
Imagens da Conquista: a presença indígena
em ilustrações e mapas • 97
7
Apresentação
Sertão Fronteira do Medo é fruto das pesquisas individuais
das professoras Socorro Ferraz e Bartira Ferraz Barbosa,
cujos textos, pela sua complementaridade, foram reunidos
em um único volume, visando à publicação de um trabalho
consistente, capaz de suprir lacunas na historiografia colonial
pernambucana sobre a saga das populações indígenas da
região do Médio São Francisco. As pesquisas abrangem desde
a chegada dos colonizadores à região até as tensas relações
estabelecidas entre esses grupos, os nativos e as ordens
religiosas de ação missionária em Pernambuco, durante o
processo de colonização.
As pesquisadoras, principiando pela delimitação da região
geográfica onde os grupos indígenas habitavam e onde se
implantaram as missões religiosas, no Sertão de Pernambuco,
no período final do século XVII a meados do século XVIII,
analisaram fontes primárias para desenvolver seus estudos.
Elas utilizaram documentos relativos aos aspectos geográficos
e populacionais, à política indigenista portuguesa, ao controle
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político-econômico da Coroa portuguesa na distribuição de
títulos e terras, e ao importante papel desempenhado pela
Igreja Católica nessas complexas relações.
Está presente no texto a repercussão socioeconômica das
atividades das fazendas de gado no processo de interiorização
da pecuária, atividade empurrada para o interior pela
monocultura da cana de açúcar, exitosa na zona da mata.
A fazenda de gado, autossustentável, devoradora de terras
ocupadas por índios, opor-se-á em várias ocasiões à execução
da catequese e à administração das aldeias, como política
colonizadora do Estado Português.
O tema é objeto de estudo de Bartira Ferraz desde 1988,
quando apresentou a monografia para graduação na UFPE
Subsídios para a História das Missões em Pernambuco, e em
posteriores trabalhos de mestrado e doutorado, apresentados
no Brasil e no exterior. Além da participação em grupos de
pesquisas acadêmicas e atividades docentes no Departamento
de História da UFPE. Essa convivência com o tema resultou
em uma constante expansão de seus interesses pelo assunto
e numa lista de títulos publicados.
Socorro Ferraz detém significativa produção bibliográfica
9
sobre o tema entre livros e artigos publicados; a sua pesquisa
aborda a presença indígena nessa região no seu passado
histórico mais antigo, e posteriormente suas relações
com os colonizadores através de alianças e de guerras,
investigando como o contato entre essas culturas resultou
na dominação dos nativos, na dispersão e miscigenação deles
e no desaparecimento da maior parte das suas etnias, o que
põe em risco esse importante patrimônio imaterial do nosso
Estado.
A dificuldade de se preservar a identidade histórica
dessas populações deve-se em parte à presença de uma
visão historiográfica etnocêntrica e, também, à escassez
documental, pela precariedade em que se encontram nossos
arquivos eclesiásticos, cartoriais e públicos.
Essa carência foi parcialmente contornada pelo esforço
das autoras, que estenderam suas pesquisas aos acervos
cartoriais e eclesiásticos da região do médio São Francisco,
ainda existentes, e aos acervos documentais do Arquivo
Histórico Ultramarino e da Biblioteca da Ajuda, em Portugal.
Na Holanda, no Arquivo Nacional da WIC – Companhia das
Índias Ocidentais e na biblioteca da Universidade de Leiden,
foram consultados mapas e documentos do século XVII, que
representam e confirmam a visão europeizante do sertão.
As fontes utilizadas, todas elas, seja a crônica, seja a
documentação administrativa normativa civil ou eclesiástica,
do período colonial, trazem em si a marca do medo. Medo
como fenômeno social, produzido pelas relações de poder.
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Introdução
Sertão Fronteira do Medo trata de um espaço geográfico vasto,
maior que a área mantida pelo sistema colonial português
na costa do Brasil. Um espaço representado pela cartografia
como um território ‘despovoado’, como um lugar do
desconhecido no oeste das terras brasileiras. O sertão, nos
tempos coloniais, constituía uma fronteira física e, ao mesmo
tempo, imaginária para as populações do litoral. Assim, ela
foi representada cartograficamente pelos Estados modernos
do século XVI, Portugal e Espanha, que se aventuraram para
conquistar terras e riquezas a partir de diferentes pontos do
litoral. O termo sertão aparece na documentação portuguesa
sobre a África ocidental a partir do século XV; também foi
usado para nominar e para confirmar os limites das conquistas
e, sobretudo, para apontar a fronteira de diferentes grupos
nativos em áreas não facilmente atingidas pela expansão
marítima e comercial no Atlântico, nos tempos modernos.
Este estudo trata de um sertão como fronteira de domínios
que distingue espaços e limites do mundo conhecido com
14
o desconhecido, às vezes imaginado e recriado pelo medo.
Sertão, com diferentes marcas: clima, população e hábitos de
sobrevivência baseados no conhecimento da natureza que aos
europeus colonizadores pareciam diferenças impenetráveis.
Sobre o sertão de Pernambuco poucos estudos foram
publicados, comparativamente ao número de obras que se
ocuparam da região litoral-mata. As obras mais conhecidas
não esgotam informações sobre as populações indígenas,
relativas à ocupação portuguesa, ao desenvolvimento
socioeconômico durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. As
pesquisas são limitadas, sobretudo, quanto à utilização de
fontes primárias, o que produziu inúmeras generalizações
como a que indica a existência de nativos tapuias
antropófagos, sem estudos antropológicos complementares;
divulgadas por textos e imagens ilustrativas em mapas
sobre os sertões do Brasil, com cenas de esquartejamento
e assado humano, elevaram o grau de repulsa dos europeus
aos nativos brasileiros. Exemplo, o mapa de Gutiérrez1 do
1 Diego Gutiérrez foi um cosmógrafo e cartógrafo espanhol que serviu na Casa de la
Contratación de 1554 a 1569. Seu mapa da América foi um dos exemplares cheios de
acidentes geográficos e preconceitos da época. Apenas duas cópias sobreviveram aos
15
século XVI. Portanto, este livro aponta para a necessidade
de ver o sertão por um olhar de dentro, que esclareça sobre
sua ocupação humana mais antiga, seus conquistadores pré-
históricos e os mais novos dos tempos modernos. Tomou-
se por base a pesquisa documental, a análise e os debates
sobre fenômenos históricos relacionados à conquista e com a
colonização dos portugueses e de outros europeus em regiões
anteriormente ocupadas por grupos indígenas. Colaborando
para a compreensão do problema, âmbitos disciplinares da
História, da Geografia, da Antropologia Social e das Ciências
Naturais e seus cruzamentos constituíram as muitas leituras
feitas para a composição deste trabalho. Dos séculos XVI e
XVII, utilizou-se a História da Província de Santa Cruz a
que vulgarmente chamamos Brasil, de Pero de Magalhães
Gândavo, de 1575, o livro de Gabriel Soares de Souza,
Tratado Descritivo do Brasil, de 1587, A História do Brasil
de 1500 a 1627 de Frei Vicente do Salvador, escrito em
nossos dias. Uma está na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, onde pode ser
vista, e a outra está na Biblioteca Britânica.
16
1627, o mapa de Marcgraf Brasilia qua parte paret Belgis de
1647, a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino
relativa a Pernambuco, de 1590 a 1825; do século XVIII ao
XIX a documentação encontrada no Arquivo Público Jordão
Emerenciano, e o Atlas de Halfeld, publicado no Rio de
Janeiro, em 1860; do século XX, consultamos os escritos de
Capistrano de Abreu, os Anais Pernambucanos de Pereira da
Costa, as análises de Barbosa Lima Sobrinho, o mapa etno-
-histórico de Kurt Nimuendaju, obras de Manuel Correia de
Andrade como Paisagens e Problemas do Brasil, em A Terra e
o Homem do Nordeste e Paisagens do Nordeste Pernambuco
e Paraíba, de Mario Lacerda de Melo e o Sumidouro do São
Francisco de Abdias Moura. Incluem-se também outros
títulos de obras contemporâneas, monografias e teses
produzidas nos programas de graduação e de pós-graduação
de universidades, que possibilitaram melhor conhecimento
sobre diferentes comunidades localizadas nos sertões.
Em seu livro Os Índios na História do Brasil, Regina
Celestino de Almeida (2010) afirma que até pouco tempo
muitos historiadores, como Varnhagem, justificavam o
‘desaparecimento’ do índio da história do Brasil baseados
17
na condição de vítima dada aos nativos das várias regiões
brasileiras. Aculturação, papéis secundários e perda de suas
culturas em contato com o mundo colonial (Varnhagen:1845),
parece não ter sido o único resultado do encontro violento
entre indígenas e colonizadores. Ao contrário, eles não
foram apenas vítimas de confrontos relacionados às guerras
(Puntoni: 2002), reagiram de acordo com suas possibilidades,
usaram estratégias políticas e alianças para a obtenção de
cargos, posses de terras e participação na burocracia colonial
portuguesa e holandesa. Uma nova produção de estudos
históricos coloca o índio, inclusive o do sertão, como sujeito
ativo no processo de colonização, agindo por interesses
próprios e formas diversas.
Ainda foram incluídos neste livro, resultados de pesquisas
anteriores, desenvolvidas na década de 1980, no projeto
Itaparica de Salvamento Histórico, UFPE-CHESF e na década
de 2010, no projeto Opara, UFPE-CHESF, no Projeto de
Integração do Rio São Francisco com as bacias hidrográficas
do Nordeste do Brasil em 2012, e no projeto Rotas Afro-
indígenas em Pernambuco Colonial UFPE e UB (Universidade
de Barcelona). Estas pesquisas abordam o debate sobre a
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presença indígena nos sertões nordestinos de tempos pré-
-históricos aos coloniais, procurando observar e analisar as
ocupações, as dominações impostas pelos discursos, pelas
leis e normativas, assim como pela vigilância e pelo medo.
Uma documentação consistente que permitiu ver os nativos
como atores com suas ações e submissões no processo de
colonização e controle dos territórios, envolvendo diferentes
áreas dos sertões nordestinos e suas fronteiras coloniais.
Alguns manuscritos e documentos impressos revelam
espaços geopolíticos e de poder indígena que chamam
atenção, sobretudo os relacionados com a participação
de nativos em guerras de conquista e de defesa no Brasil.
Alguns mapas ilustram, ainda que de maneira pouco segura,
indicações da existência de espaços indígenas resistentes e
em processo de adaptação nos tempos coloniais.
Finalmente, essa recente discussão sobre o
‘desaparecimento’ dos índios atinge um amplo leque de
preconceitos e atitudes etnocêntricas, racistas e excludentes
que tem dominado largamente a práxis política, jurídica e
intelectual das repúblicas latino-americanas, desde suas
fundações. Neste contexto, a finalidade deste livro é fazer
19
uma releitura de documentos históricos que tratam sobre
conflitos étnicos e sociais e relações de poder envolvendo
grupos indígenas brasileiros, colonos, instituições
governamentais e religiosas.
Este trabalho se ocupa, primordialmente, com
acontecimentos que tiveram lugar na região sertaneja do São
Francisco e de suas relações com as outras regiões, quando os
fatos o exigirem.
20
Prefácio
Falar sobre o sertão é, em si, um desafio. Termo prenhe de
múltiplas definições e de infinitas percepções. Em um ponto
todos concordam: é o espaço ainda por conhecer, conquistar
e colonizar.
Onde começa e onde acaba o sertão? Fronteira sempre
móvel que se define a cada conquista do colonizador, seus
limites são fluidos e devem ser compreendidos não por meros
fatores geográficos, mas pelos históricos e sociais relativos à
conquista e à colonização.
O que caracteriza esse espaço para aqueles que sobre ele
desejam marchar e nele viverem e produzirem? As visões
são múltiplas, aparentemente opostas, mas, que na sua
essência, se complementam e justificam sua incorporação.
É lá que vivem as feras, humanas e animais, às vezes vistas
como feitas da mesma matéria. É onde está a possibilidade
de serem encontradas riquezas e de obter-se a liberdade de
explorar bens e garantir a autonomia aos que se tornarem
senhores de terras e serem agraciados com mercês reais pela
conquista.
21
É, enfim, onde as possibilidades são infinitas e as riquezas
inesgotáveis. Todo sonho de enriquecer é possível de ser
alcançado, dependendo apenas da capacidade e habilidade
de cada um. Mas, ante o desconhecido e a presença de feras
animais e humanas, é também o locus do medo e onde
as relações de dominação devem basear-se na força e na
propagação do medo entre os opositores.
Os tradicionais estudos sobre a conquista dos sertões na
historiografia brasileira partem de pressupostos comuns: a
ideia do vazio humano, ignorando a existência de grupos
que ali viviam desde tempos imemoriais e a saga gloriosa e
civilizatória dos conquistadores.
Estas são sempre as figuras centrais das narrativas, os
responsáveis pela transformação dos sertões em espaços
produtivos e incorporados à dinâmica econômica, social
e política da metrópole ou do Estado Nacional. Os demais
grupos sociais, particularmente os indígenas, surgem como
entraves a serem superados e sua participação fica restrita
aos movimentos de oposição à chegada da civilização. Depois
desaparecem como se em nada tivessem contribuído para a
transformação dos sertões e, menos ainda, como grupos que
22
permaneceram nesses espaços e estabeleceram múltiplas
formas de convivência e sobrevivência ante a nova realidade.
O presente livro de duas brilhantes pesquisadoras - Maria
do Socorro Ferraz Barbosa e Bartira Ferraz Barbosa -, e ainda
mais extraordinárias por serem mãe e filha em perfeita
sintonia em suas pesquisas e análises, nos permite percorrer
outras trilhas para conhecermos a história da conquista dos
sertões pernambucanos, particularmente da região do Médio
São Francisco.
Inicialmente apresentam o cenário onde ocorreram os
eventos que irão analisar com competência a partir de vasta
documentação. Além de revelar as caraterísticas naturais
da região, buscam tornar compreensíveis as relações
socioeconômicas estabelecidas pelos grupos humanos a
partir desse ecossistema.
Em seguida desmistificam o vazio humano dos sertões
antes da conquista. Usando dados obtidos em pesquisas
arqueológicas, históricas e antropológicas, as autoras nos
permitem perceber a grande diversidade de grupos indígenas
que habitavam o Médio São Francisco. Da mesma maneira,
informam-nos acerca das datações de sua presença em vários
23
momentos e pontos dessa região, seus deslocamentos em
busca de melhores áreas para a prática de suas atividades de
subsistência e para fugir do contato com o colonizador.
Assim, as autoras ressaltam a presença de alguns desses
grupos nos vários períodos históricos – da Colônia aos dias
atuais – apontando para sua sobrevivência, apesar de sua
presença ser omitida induzindo-nos ao erro de os crermos
extintos e ou integrados em tal nível que perderam suas
identidades e suas expressões socioculturais particulares.
Em seguida, levam-nos a uma competente e profunda
reflexão de como a imagem genérica, prenhe de preconceitos,
de falsas oposições e de incompreensão desses índios vai
sendo construída no imaginário europeu e brasileiro através
de textos e de representações na cartografia e como estas
vão se acentuando à medida que a conquista avança e os
indígenas estabelecem suas variadas formas de resistência.
As indicações da presença indígena na cartografia
europeia é um dos pontos mais inovadores desse livro,
inclusive por confirmar a existência da grande massa de
população indígena em Pernambuco, apontar as várias
atividades econômicas que exerciam e o grande número
24
de aldeias e aldeamentos que existiam e que vai sendo
diminuído com o passar dos anos. Realidade que só pode
ser compreendida no contexto da conquista, dominação, da
busca de mercês e da justificativa das ações adotadas pelos
conquistadores.
Da mesma forma, essas fontes vão criando a imagem
do sertão ameaçador no qual a presença europeia é vista
como uma vitória, um ganho e uma forma de construir um
novo mundo no qual a barbárie não mais ocupará espaços
importantes para a civilização e a cristandade.
Nessa direção, adentram pelas relações de dominação
instaladas inicialmente no litoral e depois nos sertões entre
índios, missionários, autoridades régias, grandes potentados
e, até mesmo, pequenos lavradores, agricultores, criadores de
gado, escravos de origem africana, quilombolas, portugueses,
franceses e holandeses. A riqueza da análise demonstra a
complexidade dessas relações: conflitos, alianças mutantes,
negociações, dominação e exploração são constantes.
A luta pela terra e mão de obra indígena, fosse livre,
escrava, aldeada, descida, conquistada ou aliada, que atuava
como trabalhador nas várias atividades econômicas e inclusive
25
como guerreiros envolvidos na defesa dos interesses de um
desses segmentos, são os eixos dessa realidade numa capitania
que enriquece com o açúcar. Seus moradores precisam de um
mercado produtor de alimentos e de outros produtos para
sustentar aqueles que se voltam preferencialmente para a
atividade açucareira. Há um mercado consumidor próspero e
o sertão, longe do litoral, é um espaço ideal para satisfazê-lo
por não competir pelas áreas adequadas ao plantio da cana de
açúcar. Consequentemente, a expansão ultrapassa os limites
atuais do Estado de Pernambuco, o que também é objeto de
análise cuidadosa de Socorro e Bartira.
Não menos importante é o trato da questão das missões
religiosas que são criadas no Médio São Francisco e que
atendiam à política dual da Coroa portuguesa. Teria que haver
índios destinados ao cativeiro para satisfazer as necessidades
dos colonos e os interesses econômicos e expansionistas
da Coroa e aqueles que deveriam ser catequizados e
transformados em agentes de propagação do cristianismo e
defensores dos projetos coloniais.
O destaque que atribuem às dificuldades de conversão
dos aldeados e conflitos de interesses entre missionários,
26
índios e colonos merece atenção. Essa é uma realidade em
que avanços e recuos, conflitos, disputas e alianças marcam
a história das relações coloniais.
A partir dos dados coletados, as autoras identificam e
localizam os vários aldeamentos que, segundo a legislação
colonial do período, teriam suas sesmarias demarcadas e
doadas. No desenrolar da narrativa, fica implícito o processo
de expropriação vivido pelos povos indígenas de Pernambuco.
Da mesma forma, é possível identificar a presença de várias
ordens religiosas, as peculiaridades de suas atuações, os
conflitos entre os missionários e sua capacidade de resistência
às pressões dos colonos.
Dentre estes, destaca-se a ação dos Garcia d’Ávila e
dos Saldanha na expulsão de missionários, na retirada de
índios aldeados das missões e na conquista das terras dos
aldeamentos. Também ressaltam as denúncias feitas pelos
colonos contra essas ordens e que serão posteriormente
usadas nos meados do XVIII para justificar a implantação
do Diretório Pombalino nas demais capitanias para além da
Amazônia.
Para finalizar, apontam como essa realidade não decorreu
27
de decisões heroicas e pessoais, mas da política implantada
pela Coroa portuguesa. A preocupação com solidificar
a conquista e expandi-la vai se expressar nos estímulos à
crescente expansão para o Oeste através da concessão de
sesmarias e outras mercês, o que resultaria em maiores
lucros para uma metrópole sempre às voltas com dificuldades
financeiras.
Até mesmo as leis definidas como protetoras, como nos
chamam a atenção as autoras, devem ser analisadas pela
ótica dessa política expansionista. As sesmarias concedidas
aos índios, na verdade, além de não terem sido respeitadas
no processo de expansão, representavam uma significativa
redução dos seus territórios, inviabilizando, muitas vezes, a
capacidade de se sustentarem.
Finalmente, é destacado como essa política metropolitana
levou à dispersão de tribos indígenas, à desterritorialização e
a transformações profundas nas suas formas de viver e de se
relacionar com a sociedade envolvente.
O uso da força e a difusão do sentimento do medo
levaram esses grupos humanos à invisibilidade, ao silêncio e
à busca de refúgios onde puderam sobreviver. Assim podemos
28
entender as abordagens da historiografia e a atual negação ao
reconhecimento desses povos sobreviventes, que abandonam
o silêncio e a invisibilidade na busca por seus direitos.
O livro aqui apresentado é uma obra rara que, ao analisar a
conquista dos sertões do Médio São Francisco, faz-nos refletir
não apenas sobre o passado e sobre a presença indígena
nessa região. Faz-nos repensar o presente e nos oferece a
oportunidade de conhecer uma nova forma de fazer história,
inclusiva e coerente com a complexidade dos momentos
históricos analisados.
Parabéns às autoras e boa leitura a todos que tiverem esse
livro em suas mãos.
Maria Hilda Baqueiro Paraiso
Profª. Titular da Universidade Federal da Bahia
31
A Paisagem Sertaneja
Os espaços indígenas, constituintes da paisagem do nordeste
pré-colonial, estavam dotados de dimensões simbólicas e
culturais tão importantes quanto as dimensões políticas,
econômicas e culturais que os europeus construíram no seu
continente, no seu espaço. Duas considerações podem ser
destacadas nesses espaços: primeiro, em relação à natureza,
isto é, ao solo, relevo, hidrografia, fauna e flora; e, segundo,
a respeito da paisagem, conjunto de formas, que, num dado
momento, exprime as heranças que representam as sucessivas
relações entre homem e natureza. Formas que, combinadas à
vida que as animam, delineiam os espaços indígenas (Santos,
1999: 83). Ao espaço, enquanto continente de todos os
objetos materiais, sistemas e, portanto, dos acontecimentos
relacionados ao homem, pode ser acrescentado outro
ponto de análise, o do espaço como campo da história,
apreendida através de leituras de documentos e pesquisas
contemporâneas (Barbosa, 2007: 36).
Aldeias, caminhos, campos de plantação e de caça,
32
assim como portos e fronteiras constituíam elementos que
animavam e delineavam os espaços indígenas. Mesmo quando
europeus já se faziam presentes na costa de Pernambuco para
atividades de escambo, este espaço era ocupado na forma que
a economia e a cultura nativas exigiam.
Com o projeto colonizador instaurado, foi introduzido
um grande contingente populacional africano, no litoral,
com o intuito de realizar o sistema escravista de produção
do açúcar e a consequente transformação dos espaços e
territórios indígenas pré-coloniais; motivo de mudanças e
criação de novas paisagens.
Considerando a região da capitania de Pernambuco como
parte do espaço português colonial, torna-se necessário
definir o termo espaço que se utiliza neste trabalho. A opção
foi pela definição que diz ser o espaço a soma indissociável
entre sistemas de objetos e sistemas de ações. Nem sistemas
de objetos apenas, nem unicamente sistemas de ações, mas
sistemas de objetos e de ações que se influenciam e cuja soma
nos dá o espaço total (Santos, 1999: 98-99).
Estavam em jogo nessa região, os espaços, incluindo
o espaço português, que se insinuava com o início da
33
Paisagem Sertaneja
colonização sendo depois a este incorporado o espaço
holandês, no século XVII, e os territórios e as fronteiras
indígenas desde antes do contato. Por conseguinte, em nome
da necessidade de controlar e de explorar diferentes grupos
indígenas, os invasores brancos, fixados na costa e nas regiões
do interior do Brasil, aprofundaram rivalidades e vinganças
entre os índios e com essas manobras puderam realizar a
submissão dos nativos e a produção mercantil sob violentas
formas de dominação. Portos, feitorias, engenhos de açúcar e
outras estruturas apoiadoras do desenvolvimento econômico
das metrópoles europeias, provocaram transformações na
paisagem, antes refletindo apenas as intervenções nativas.
O resultado dessas mudanças para atender o projeto colonial
foi a divisão econômica da paisagem, submetida, até certo
ponto, aos diferentes aspectos ambientais do litoral, da mata
e do sertão.
O termo sertão, provavelmente, foi grafado à primeira
vez na língua portuguesa, na Crônica da Guiné, manuscrito
gótico, datado de 1453, encontrado por Ferdinan Denis em
1837, na Biblioteca de Paris. O manuscrito trata da conquista
da Guiné em terras africanas e no capítulo XII narra os
34
assaltos às populações nativas, como se pode ler:
“E sendo afastados do mar quanto podia ser uma légua,
acharam ali um caminho, o qual guardaram, presumindo
que poderia por ali acudir a algum homem ou mulher que
eles pudessem filhar2; ... Antão Gonçalves pos em prazimento
aos outros que fossem mais avante seguir sua intenção ... e
contentes os outros, partiram dali seguindo por aquele sertão
espaço de tres léguas, onde acharam rastros de homens e
moços, cujo número seriam de quarenta até cinquenta ...”
Em português seiscentista, em 20 de dezembro de 1546,
o donatário Duarte Coelho escreveu ao rei D. João III, sobre os
acontecimentos da Capitania e utiliza a palavra sertão dentro
do conceito de terras longínquas: “... eu estava esperando a hora
em que Deus for servido de me dar possibilidade para seguir esta
empresa do sertão que tanto desejo por servir a Vossa Alteza ...”3
Os colonizadores usaram o termo sertão no sentido de nomear
2 A palavra filhar nesse contexto significa escravizar.
3 Das cinco cartas de Duarte Coelho ao rei D. João III, esta é a segunda. As cinco
foram publicadas por José Antonio Gonsalves de Mello e Cleonir Xavier de Albuquerque,
Recife, Fundaj, Editora Massangana,1997, p.105.
35
Paisagem Sertaneja
terras agrestes, longe de aglomerados urbanos. Nem sempre
são lugares muito distantes dos núcleos de povoamento, mas
devem lembrar um lugar do interior, pouco povoado. O nome
sertão traz em si uma ideia, contraditória àquela de litoral.
O conceito de sertão era completamente desconhecido dos
índios, que transitavam em espaços geográficos diversos,
levados por suas necessidades e ou suas tradições. Conviviam
com as diferenças climáticas no que os múltiplos espaços
ofereciam numa relação de autossustentabilidade.
Para os estudiosos contemporâneos, o sertão do nordeste
é uma região quente e seca, integrada à colonização
portuguesa, no século XVII, pela busca de terras para o gado e
sem perder de vista a possibilidade de encontrar o ouro. Esta
procura se iniciou tanto a partir de Olinda, vila principal da
capitania de Pernambuco, quanto a partir de Salvador, vila
principal da capitania da Bahia. Este movimento deu-se na
direção do litoral para o interior e os rios foram os meios
principais para se alcançar os destinos escolhidos.
A região sertaneja do São Francisco, em Pernambuco, é em
relação às outras regiões do Estado, a da mata e a do agreste,
a mais vasta territorialmente, na observação contemporânea
36
do fenômeno. Na cartografia dos séculos XVI e XVII não se
registra a região agreste; aparecem apenas duas regiões, a do
litoral e a do sertão, que eram fronteiriças (Barbosa, 2007).
O clima dessa região é considerado seco e se apresenta
com influências de diferentes massas de ar, baixo índice de
nebulosidade e incidência de irradiação solar; os índices mais
altos de precipitação pluviométrica são da ordem de 1500
mm e os mais baixos, cerca de 350 mm, na nascente e entre
Paulo Afonso e Sento Sé, respectivamente. O solo é recoberto
por uma vegetação de caatinga, cuja densidade e porte variam
consideravelmente, conforme as condições climáticas e
edáficas locais, segundo Manoel Correia de Andrade (1963);
e de acordo com a maior ou menor quantidade de chuvas, o
clima desta área é classificado como tropical com chuvas de
verão.
A temperatura diurna média, no período mais seco,
marca 40°C. As chuvas são mais frequentes entre o outono
e o inverno; são precipitações de baixa densidade e às vezes
tempestuosos aguaceiros, que segundo Gilberto Osório e
Raquel Caldas (1984), acontecem quando o ar frio da frente
polar atlântica se introduz sob a massa de ar tépido dos
37
Paisagem Sertaneja
alísios. O relevo acidentado é de baixa altitude, com duas
depressões semiáridas: a sertaneja e a do São Francisco.
Ambas fazem parte do planalto da Borborema.
A expressão “tristes trópicos”, de Claude Lévi Strauss,
quando se referiu ao interior do Brasil, pode ser mitigada
com a frase de Auguste Saint-Hilaire (1937): “há ali toda a
melancolia do universo, com um sol ardente e os ardores do verão”.
Na opinião do jornalista Euclides da Cunha, que esteve nessa
região em missão de trabalho, fazendo a cobertura jornalística
de Canudos, o Sertão pareceu-lhe muito estranho: as tardes
passavam rápidas, sem crepúsculo, prestes a serem afogadas
na noite. Diante de trovoadas fortes que reboavam como
aguaceiros diluvianos, Euclides da Cunha escreveu em seu
livro, Os Sertões, sua impressão sobre o fenômeno:
“ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o
deserto. Sobre o solo que as amarílis atapetam, ressurge
finalmente a flora tropical” (Cunha, 1963).
À entrada dessa região sertaneja, observa-se um maciço
continental, demarcado pelo Rio São Francisco4 por um lado,
4 Deve-se esta denominação ao piloto florentino Américo Vespúcio, que juntamente
com André Gonçalves chegaram até sua foz, a 04 de outubro, de 1501, dia consagrado
38
e, pelo outro lado o rio Vaza-Barris, denominado Irapiranga
pelos índios tupinambás. Logo se percebe a predominância da
caatinga que, ao contrário da vegetação exuberante da floresta,
procura o sol, apresenta suas árvores quase sem troncos,
esguias e esmagadas pelo calor solar, e muito semelhantes
umas às outras. A vegetação de caatinga predomina em todo
vale médio do São Francisco. Os mandacarus, os xiquexiques,
os cabeças-de-frade, caracterizam a flora dessa região e, mais
uma vez, utilizando informações de Euclides da Cunha,
suas raízes são solidárias, retendo as águas e as terras que se
desagregam formando o solo arável em que se reproduzem.
Há, entretanto, árvores, com as quais o homem sertanejo
tem uma relação mais profunda: o Juazeiro, o Umbuzeiro
e a Jurema. O Juazeiro continua verde durante todo o ano,
nunca perde suas folhas; o Umbuzeiro é uma árvore sagrada
para o sertanejo, produz um fruto saboroso, que o alimenta
e mitiga sua sede; a Jurema é um vegetal usado em práticas
religiosas dos caboclos e rituais indígenas, em forma de
bebida “euforizante”.
a São Francisco de Assis. Os nativos o conheciam pelo nome de Opará.
39
Paisagem Sertaneja
A rede hidrográfica da região é dominada pelo Rio São
Francisco, rio de planalto, cujo leito tem rupturas, declives
e navegabilidade inconstante. O botânico francês Saint-
Hilaire, já citado anteriormente, quando o avistou pela
primeira vez, em Capão do Cleto, no início do século XIX,
descreveu seu curso como “lento e majestoso” (Hilaire, op.
cit.). É o rio mais caudaloso que banha Pernambuco. Das
nascentes até a foz tem 3.161 km de extensão. De todos os
sistemas fluviais do Brasil é o terceiro rio em extensão e o
único formado totalmente em território brasileiro. O Rio
tem trinta e seis afluentes. De sua nascente até a foz corre
para leste e nordeste, depois se volta para o norte, inclina-
se para nordeste, mais uma vez para o norte, depois para o
sudeste até desaguar no oceano Atlântico. Para além do São
Francisco, a rede hidrográfica da região semiárida é modesta,
constituída de rios nem sempre perenes. Portanto, a vida
nessa região está na dependência deste rio. Registramos as
seguintes alterações no nível do rio, durante o seu curso: na
parte que pertence a Minas Gerais, próximo às cabeceiras,
a cachoeira de Casca D’Anta e as corredeiras de Pirapora
estão a mil quilômetros abaixo daquela; a cachoeira de Paulo
40
Afonso está a mil e novecentos quilômetros abaixo da de
Pirapora; as corredeiras de Sobradinho, já em terras baiana
e pernambucana, estão a mil e trezentos quilômetros de
Pirapora e a de Itaparica a quarenta e quatro quilômetros
acima de Paulo Afonso (Pierson, 1977: 35). Após a cachoeira
de Paulo Afonso, o rio corre ladeado por paredões de pedra
de mais ou menos 50 metros. O rio pode ser dividido
fisiograficamente em quatro regiões: alto São Francisco,
médio São Francisco, submédio São Francisco e baixo São
Francisco. A parte alta compreende o trecho do rio entre a
nascente e um ponto abaixo das corredeiras de Pirapora; nesse
trecho estão numerosas corredeiras e cachoeiras. Na parte
média, próxima à cachoeira de Itaparica, estão as corredeiras
de Sobradinho até Juazeiro. E, na parte baixa, descrita entre
um ponto abaixo da cachoeira de Paulo Afonso até o nível
do mar, está o trecho navegável, que vai de Piranhas até o
mar. Estas mudanças no seu curso determinaram o modo de
vida dos homens dessa região desde os tempos mais remotos
até a contemporaneidade. Donald Pierson observou (op.cit.
p. 36), que dada a instável condição das barrancas, o São
Francisco nesse trecho médio muda frequentemente a sua
41
Paisagem Sertaneja
calha, não apenas dentro como fora das barrancas, que o
contêm. Se olharmos do alto de um avião notaremos o curso
de velhos leitos abandonados, parcialmente recobertos de
vegetação. Ao abrir um novo leito, o rio carrega, às vezes,
enormes massas de árvores ou de arbustos, plantações e até
casas, que se encontrem à sua frente. Todos esses detritos
podem se depositar nos bancos de areia, nas ilhas, trazendo
dificuldades à navegação.
Ao longo do curso do Rio São Francisco há uma grande
quantidade de ilhas, todas ricas em solo fértil, ao contrário
do solo pedregoso encontrado em suas margens e nas
barrancas. Halfeld5, no Atlas e Relatório concernente à
exploração do Rio São Francisco, levantou e localizou 334
ilhas desde o Carinhanha até o tributário Xingó. Pereira da
Costa (1953: v.5) conseguiu nomear 71 delas no trecho que
5 Halfeld, Fernando H. G. Atlas e Relatório Concernente a Exploração do Rio São
Francisco desde a Cachoeira da Pirapora até ao Oceano Atlântico, levantado por ordem
do Governo de S. M. I. o Senhor Dom Pedro II, pelo Engenheiro Civil Henrique Guilherme
Fernando Halfeld em 1852,1853 e 1854. Rio de Janeiro: Lithographia Imperial, 1860.
No Brasil foi contratado como oficial mercenário do Corpo de Tropas Estrangeiras do
Exército Brasileiro, tendo dado baixa em 1830.
42
se estende entre o Rio Moxotó, onde o Rio São Francisco
entra no território alagoano, até um local chamado Pau-da-
História, limite com a Bahia. Vários historiadores, geógrafos,
antropólogos e pesquisadores em geral têm diferentes
informações sobre a quantidade de ilhas e ilhotas, porque
ao longo do tempo muitas se agregaram a outras, algumas
foram destruídas por inundações e enxurradas. Por exemplo,
Figueira de Melo, citado por Pereira da Costa, indica apenas as
ilhas de Assunção, a de Santa Maria, a Grande e a da Vargem
e as ilhotas do Pontal, do Saco, Inhanhuns, Missão, São Félix,
Cajucu, Rato, Cabaços e Goiases, indo contra a posição de
Halfeld e de Pereira da Costa.
Há uma relação da Câmara Municipal de Santa Maria
da Boa Vista, feita pelo Conselheiro Sérgio Teixeira de
Macedo, apresentada em forma de relatório à Assembleia
Legislativa de Pernambuco, em 1857, na qual se registram as
edificações locais, chamadas de ‘próprios’; nesta relação são
mencionadas as seguintes ilhas localizadas no São Francisco,
nos limites descritos acima: Pequena, Ingazeira, da Roca,
do Bento, da Vaca, do Leandro, do Caraputé, dos Fuzis, do
Capim, do Redondo, do Sorobabé/Estreito, do Iapecuru, do
43
Paisagem Sertaneja
Sabonete, da Salina, da Pitada, do Mato Grosso, do Pananan,
do Panananzinho, da Cachoeira de Ferrete, do Estevão, das
Areias.
As mais conhecidas dos cronistas e citadas como
territórios habitados por povos indígenas são: ilha de
Sorobabé/Sorobabel, ilha do Acará, ilha de Assunção (antiga
Pambu), ilha do Arapuá, ilha do Cavalo, ilha de Santa Maria,
ilha de Inhanhum, ilha dos Coripós, ilha do Pontal, ilha de
Aricobé, ilha de Belém.
A descrição sobre o Rio São Francisco feita por Donald
Pierson é do início do século XX. Mas, ao longo da história da
ocupação dessa região, há vários relatos. Além da expedição
realizada por Halfeld, que resultou na publicação do seu
Relatório de Viagem e Estudo ao longo do Rio São Francisco,
em 1869, foi publicado o livro Explorations of the Highlands
of the Brazil (Burton, 1869), e nele há registro interessante
sobre o trecho da cachoeira de Itaparica. Segundo o autor, há
passagens subterrâneas pela cachoeira e, entre as serras de
Tacaratu e a de Itaparica, forma-se um estreito canal onde
o rio penetra e corre profundo e violentamente. Este lugar
era conhecido pelos cronistas dos tempos coloniais como
44
o sumidouro do São Francisco. Utilizando-se o Atlas e o
Relatório de Fernando Halfeld, como fonte de informações,
podemos citar muitas ilhas ao longo desse caminho de águas,
a partir da divisa com a Bahia, pelo lugar denominado Pau da
História, passando pelo Carinhanha e na divisa com Alagoas,
pelo rio Moxotó. Ao longo do seu percurso, o rio margeia
vários municípios dos estados de Minas Gerais, Bahia,
Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
Uma informação antiga e bizarra sobre o Rio São Francisco
encontra-se em uma carta que o Conde Maurício de Nassau,
em 1636, enviou ao Príncipe de Orange. Após as informações
sobre as vitórias e conquistas, escreve Maurício de Nassau:
“parecendo-me este lugar muito próprio para hostilizar o
País inimigo principalmente onde o Rio mais se estreita,
sendo de uma largura imensa, construí na margem dele uma
fortaleza respeitável a seis milhas distante da praia com a
intenção de construir outra menor na boca dele; será difícil
encontrar em outra parte um rio mais recomendável pela sua
grandeza e excelência; pois a largura é tal que em algumas
partes não chegará a vencer uma bala de seis libras; é tão
arrebatado que longe da sua foz, lá no largo oceano, as águas
45
Paisagem Sertaneja
dele conservam sua doçura; é tão profundo que em alguns
lugares tem 08 braças de alto, em outros 12 e em outros 15;
é de difícil acesso pelas areias que circundam as suas bocas.
Ele tem uma natureza diversa dos outros rios. No inverno,
em que a continuação das chuvas inunda os campos, não sai
do leito. No verão, em que faltam aos outros as águas, [o rio]
transborda por toda a parte. Perguntando aos portugueses a
razão disto me responderam que no sertão, 06 ou 07 milhas
distantes do mar, concorre grande abundância de neve e de
gelo, que desfazendo-se com o calor do estio, engrossavam as
suas águas”6.
A importância desse Rio é assinalada desde os primeiros
tempos, por autoridades do Governo português e pelos
vários cronistas, que o visitaram. Gabriel Soares de Souza
(1851), autor do Tratado Descritivo do Brasil, capitão-mor e
governador da conquista e descobrimento do São Francisco,
projetava chegar às cabeceiras deste Rio, para encontrar
minas de ouro. Apesar de não ter logrado seu intento, deixou
aos estudiosos do Brasil seiscentista uma obra etnográfica
6 Nassau, Mauricio. Documento reproduzido nas cartas de Bagnuolo.
46
sobre os índios de várias regiões do Brasil e também a crônica
sobre várias capitanias. Sobre o Rio São Francisco destacamos
as seguintes observações do autor citado:
“Está o Rio de São Francisco em altura de dez graus e um
quarto, o qual tem na boca da barra duas léguas de largo,
por onde entra a maré com o salgado para cima duas léguas
somente e daqui para cima é água doce que a maré faz recuar
outras duas léguas não havendo água do monte. A este rio
chama o gentio Opará o qual é muito nomeado entre todas
as nações, das quais foi sempre muito povoado e tiveram
uns com outras sobre os sítios grandes guerras, por ser a
terra muito fértil pelas ribeiras e por acharem neles grandes
pescarias. Ao longo deste rio, vivem agora alguns caités de
uma banda, e da outra vivem os tupinambás; mais acima
vivem os tapuias de diferentes castas ...”
49
Vestígios Indígenas
A existência de grupos humanos em uma região subentende
algum conhecimento desse grupo sobre o meio, a construção
de espaços necessários aos processos antropológicos relativos
ao desenvolvimento e à luta diária pela sobrevivência. Em
uma área como a antiga capitania de Pernambuco, diferentes
locais, indicados por pesquisas arqueológicas, históricas e
antropológicas, foram escolhidos por populações indígenas
que, através da manipulação de recursos existentes na
natureza, desenvolveram suas culturas. Locais de habitação,
de trabalho, e de práticas de rituais funerários, entre outros
usos, também chamados contemporaneamente pelos
arqueólogos de sítios arqueológicos; são marcos espaciais
importantes para a pesquisa de hábitos, culturas e migrações
desenvolvidas por páleo-indígenas ao fim do Pleistoceno.
Portanto, os espaços ocupados por grupos humanos pré-
-históricos representam estruturas de ocupação consideradas
importantes quando vistas em relação às fontes de matéria-
prima e de outros elementos identificados no espaço,
51
Vestígios Indígenas
inseridos na chamada macroestrutura (Coelho, 2003: 227).
A pesquisa arqueológica desenvolvida por vários
especialistas confirma a presença de grupos humanos pré-
-históricos nos sertões de Pernambuco. Na região do médio
São Francisco, sítios arqueológicos foram localizados
em áreas protegidas, no caso dos abrigos-sob-rocha, nas
semiprotegidas e também em áreas abertas, localizadas nas
terras planas de ilhas ou às margens do Rio São Francisco e de
riachos existentes na região. Nos diversos espaços levantados,
vestígios marcaram diferentes atividades humanas neles
desenvolvidas e o tipo de permanência dos grupos nesses
espaços: de curta duração, para coleta de matéria-prima e
confecção de artefatos, ou de maior duração, para habitação
ou plantio. As escavações arqueológicas e os estudos da
geografia física e humana têm sido caminho seguro para se
obter algumas respostas aos problemas que os historiadores
têm enfrentado. Estudos dirigidos pela arqueóloga Gabriela
Martin obtiveram datações muito antigas sobre a presença
de populações pré-históricas nessa região; no sítio Letreiro
do Sobrado, na antiga Petrolândia, foram obtidas datações
de 980, 1230, 1630, 6390 anos Antes do Presente (AP); no
52
sítio Abrigo do Sol Poente obteve-se a datação de 2760 AP e
no sítio Gruta do Padre, nessa mesma região, conseguiram-
se datações entre mais ou menos 2000 e mais ou menos
7000 anos AP (Martin, 1997). Estas pesquisas arqueológicas
ampliaram-se desde 1980, numa extensão geográfica que
abrange quatro estados do Nordeste: Pernambuco, Sergipe,
Piauí e parte da Bahia, que antes de 1824 pertenciam à
Comarca do São Francisco, na qual se inseria a capitania de
Pernambuco.
Sobre a ocupação humana no Sertão, o geógrafo Aziz
Ab’Saber (1987) entende que as migrações indígenas do
final do Pleistoceno se deslocaram através de vales e áreas
deprimidas, situadas entre platôs, onde o universo ecológico
e biótico, composto por brejos e margens de rios, facilitava
a sobrevivência de grupos, que neles poderiam procurar a
adaptação sobre o meio que se transformava em volta, a
partir de novas condições climáticas. Parece ter sido esta
a paisagem do médio São Francisco, porque os vestígios
arqueológicos dos humanos aparecem em regiões de brejos e
ou de microclimas, em sua maioria.
No município de Petrolândia foram levantados sítios
53
Vestígios Indígenas
formados por abrigos fechados ou semifechados, como o da
Gruta do Padre, o Abrigo do Anselmo, o Abrigo do Sol Poente,
o Letreiro do Sobrado, com grafismos por incisão; o abrigo
no Icó, e os sítios abertos chamados Letreiro de Petrolândia,
com gravuras realizadas em afloramento rochoso à margem
do Rio São Francisco. Os sítios Várzea Redonda e Barrinha
apresentaram material lítico. Todos próximos à cidade de
Petrolândia. No município de Floresta, na Serra do Arapuá,
estão os sítios Riacho do Olho d’Agua I e II, contendo gravuras
e pinturas rupestres. Em Belém do São Francisco, foram
encontrados três sítios na fazenda Pajeú, e, no município de
Itacuruba, estão vários sítios líticos na Barra do Pajeú, e às
margens do riacho do Espinho. No município de Tacaratu,
o sitio Antenor, localizado na área da aldeia Jeripancó, na
margem esquerda do rio Moxotó, apresentou material lítico
tecnicamente semelhante às peças encontradas na gruta do
Padre, assim como ao material achado em outros sítios dessa
área, chamada de Itaparica (Coelho, 2003: 228-241).
No sertão do São Francisco, pesquisadores responsáveis
pelo projeto Xingó escavaram o maior cemitério indígena
até então encontrado no Nordeste brasileiro: o Cemitério
54
do Justino. Encontrado no vale médio do citado rio, no atual
município de Canindé, em Sergipe; local expressivo para
a ocupação pré-histórica pela sua ligação entre o Rio São
Francisco e o Riacho de Curitiba, onde escavações realizadas
pelo projeto de salvamento arqueológico de Xingó levaram
a datações radiocarbônicas que indicam ter sido praticado
enterramento humano neste sítio-necrópole em 1280,
1770, 2500, 3270, 4340 e 8950 anos AP. Desse sítio, foram
exumados 157 esqueletos completos, fora os que foram
destruídos por enterramentos posteriores (Martin, 1997:
78-81). Jacionira Silva chama atenção para existência de
diferentes culturas:
“A área arqueológica de Xingó, tomando-se como exemplo o
sítio/acampamento de céu aberto chamado de Sítio do Antenor
tem, até o presente momento, se caracterizado de forma distinta
da área arqueológica de Itaparica, de sítios de céu aberto,
quando comparados os aspectos de variedade de tipos e formas
de artefatos do equipamento doméstico” (Silva, op. cit. p. 241).
Dados sobre grupos pré-históricos ceramistas existentes
na região do sertão foram obtidos através do projeto
Cultivadores Pré-históricos do Semiárido Nordestino,
55
Vestígios Indígenas
desenvolvido pelo Laboratório de Arqueologia da Universidade
Federal de Pernambuco. Ao contrário do que afirmam
alguns pesquisadores sobre a utilização e desenvolvimento
da cerâmica indígena pré-histórica, ligada principalmente
à cultura do plantio da mandioca em regiões úmidas, foi
possível concluir que esta região semiárida apresenta
também condições para o desenvolvimento da cultura da
mandioca; portanto, de grupos indígenas ceramistas.7
Informações sobre a existência de sítios pré-históricos
com cerâmica e material lítico nessa região levaram à
escavação do sítio arqueológico Aldeia Baião, localizado no
sopé da chapada do Araripe, no município de Araripina,
onde Pernambuco faz fronteira com o Piauí a Oeste e com o
Ceará ao Norte. Os tipos de utensílios cerâmicos, produzidos
por este grupo nativo estudado durante a pesquisa no sítio
7 As pesquisas arqueológicas no Brasil, no tocante a grupos ceramistas, estão
basicamente restritas às áreas litorâneas e amazônicas de domínio das formações
florestais úmidas e semiúmidas. Estas pesquisas levaram à conclusão de que os grupos
de povos ceramistas se desenvolveram em regiões mais úmidas, e só aparecem em
regiões semiáridas por pressões externas, ou como grupo de caçadores coletores,
ficando a cerâmica associada a grupos de povos agricultores.
56
Aldeia Baião, levaram à constatação de que também nessa
região se produziu cerâmica utilitária e que as técnicas de
produção utilizadas pelo grupo foram pelo menos de onze
tipos de formas diferentes. Portanto, a cerâmica, para este
grupo, era uma prática cultural bem conhecida (Nascimento,
1991: 143-193).
Além da arqueologia, estudos linguísticos podem dar
informações valiosas acerca desses grupos humanos. Greg
Urban, no livro de Manuela Carneiro da Cunha, História
dos Índios no Brasil, escreveu que é possível obter, através
do estudo das línguas nativas, esclarecimentos acerca da
cultura indígena brasileira. Estas análises podem sugerir a
existência de diferentes grupos étnicos, tanto no período que
antecedeu ao contato com os europeus como depois. Estes
conhecimentos sugerem que na capitania de Pernambuco
foram encontrados diferentes grupos de uma mesma família
linguística e grupos de línguas tidas como isoladas. Constam
como línguas isoladas para a região em estudo as línguas
Tuxá/Truká, Pankararú, Tarairiú, Choko e Umã (Urban, 1998:
87-99).
Em Pernambuco, os cursos médio e baixo do Rio São
57
Vestígios Indígenas
Francisco tiveram um papel peculiar na comunicação
com outras regiões que se faziam ligar por rios tributários
temporários, como os rios Moxotó e Pajeú. A bacia do São
Francisco e seus tributários serviram, assim, como caminho
de muitos grupos humanos pré-históricos, desde o fim do
Pleistoceno (Martin, 1997: 50). Também os rios Capibaribe e
Ipojuca, entre outros, que ligavam o litoral à região Agreste, e
os caminhos por terra, foram utilizados por diferentes grupos
linguísticos, permitindo e facilitando as comunicações entre
eles.
Missionários, como padre Manoel da Nóbrega e outros,
que estudaram a cultura indígena através das línguas
faladas, dividiram os nativos em dois grupos: os que falavam
línguas aparentadas, homogeneizadas e denominadas, pelos
próprios jesuítas, de língua geral, e os outros, cujas línguas
não demonstravam maiores relações entre si, considerados,
também por esses religiosos, como pertencentes ao grupo gê
ou tapuia.
O padre Antônio Vieira, quando esteve no Brasil no século
XVII, escreveu sermões sobre a vida social e moral na colônia,
declarando que:
58
“A segunda circunstância que pede grande cabedal de amor
de Deus, é a dificuldade das línguas no Brasil e que é uma
empresa muito difícil aprender estas línguas, só com estudo e
muito trabalho”.
E continua a sua pregação:
“Se é trabalho ouvir a língua que não entendeis, quanto
maior trabalho será haver de entender a língua que não ouvis?
O primeiro trabalho é ouvi-la; o segundo percebê-la; o terceiro
reduzi-la à gramática e a preceitos; o quarto estudá-la; o quinto
(e não o menor, e que obrigou a São Jerônimo a limar os dentes)
o pronunciá-la. E depois de todos esses trabalhos ainda não
começastes a trabalhar porque são disposições somente para o
trabalho” (Vieira, 1940).
Neste receituário do padre Antônio Vieira logo se nota a
utilização da língua para o objetivo maior da colonização que
é formular preceitos ideológicos e fazer com que os mesmos
sejam responsáveis por mudanças radicais na cultura dos
indígenas. Os cronistas do período são unânimes em afirmar
que, da mesma forma com que os indígenas recebiam as
novas informações dos missionários, com a mesma facilidade
as abandonavam. Por outro lado, o contato, para qualquer
finalidade, dependia das dificuldades quase “desesperantes do
59
Vestígios Indígenas
empreendimento, a primeira das quais resultava da penosíssima
inteligência das línguas faladas pelos indígenas” (Vieira, op.
cit).
Curt Nimuendaju, nome indígena de Kurt Unkel8,
diferentemente dos jesuítas, considerou três grandes
famílias linguísticas: gê, kariri e tupi. Segundo este etnólogo,
as línguas isoladas foram fulniô, xokó, pankpara, araru e
pataxó; todos, grupos isolados que podem ser o resultado de
8 Autor de um mapa etno-histórico, concluído em 1944, editado pelo IBGE em
colaboração com a Fundação Nacional Pró-Memória. Rio de Janeiro: IBGE, 1987.
Kurt Unkel nasceu em Jena na Alemanha e foi um autodidata e declarou não ter tido
nenhuma instrução acadêmica. Conheceu a tribo Guarani no oeste de São Paulo em
1905 e permaneceu com eles até 1907. Foi aí que perdeu o nome primitivo de Kurt Unkel
para Curt Nimuendaju. Durante muitos anos viajou pelo interior do Brasil fazendo
pesquisas junto a grupos indígenas. Viajou a serviço do Museu Nacional e do Museu
Paraense e dos museus de Gotemburgo, Dresden, Hamburgo, Leipzig, Viajou, também,
a serviço para o Carnegie Institute e para a Universidade da Califórnia. Divulgou
seus trabalhos em revistas especializadas, principalmente em etnologia em centros
como Berlim, Viena, Paris e Stuttgart. Este mapa, conforme o autor, não se baseia
em trabalho de nenhum outro autor. A classificação linguística da quase totalidade
das tribos foi examinada e documentada por ele. Excepcionalmente usou alguma
classificação de Paul Rivet e de Koch-Grünberg. Desenhou três exemplares desse mapa:
um para o Museu Goeldi, outro para a Smithsonian Institution e um terceiro para o
Museu Nacional.
60
famílias linguísticas que se dispersaram e que são referências
mais antigas. As línguas tuxá/truká, tarairiu e umã não foram
citadas por ele.
As cartas do Padre Fernão Cardim, escritas de Londres
ao Rei de Portugal, referidas por Serafim Leite (1949: 132-
137), remetem-nos a diálogos sobre diferentes regiões e
populações indígenas, em contato com portugueses no início
da colonização, com muitos detalhes, inclusive sobre o litoral
da capitania de Pernambuco e regiões do sertão. Autores
do século XVI como Gabriel Soares de Souza (1991) e Hans
Staden (1945) afirmam estarem no litoral do Brasil aldeias
de nativos de “língua geral”. Este termo resultou de uma
uniformização léxica de vários dialetos e veio a ser fixado
na Gramática do padre José de Anchieta, após o trabalho de
pesquisa de vocabulário realizado por padres e missionários
jesuítas, no século XVI. Hoje, estes dialetos são classificados
como pertencentes ao tronco linguístico tupi. A ausência
do termo tupi para designar uma língua ou etnia nativa
existente no litoral do Brasil durante os séculos XVI e XVII,
onde se dizia falar a “língua geral”, com raras exceções, chama
atenção para o início da sua utilização.
61
Vestígios Indígenas
Pesquisando entre documentos e obras impressas nos
séculos XVI, XVII e XVIII, não foi encontrado o uso do termo
tupi para designar a língua mais falada na costa do Brasil,
conhecida também como a “língua geral dos índios da costa
do Brasil”. Com este significado, o termo veio a aparecer
em notas de Francisco Adolfo de Varnhagen, escritas para
o Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa,
publicadas em 1851. Varnhagen afirma que a maioria das
tribos do Brasil teria pertencido aos ‘tupis’ e que todas as
outras teriam sido chamadas de ‘tapuias’.9 Curiosamente,
o primeiro volume dos Beitrage zur Ethnographie Amerika’s
zumal Brasiliens escrito por Von Martius, publicado em 1867,
não traz o termo tupi no título, apesar de seu conhecimento
sobre as obras supracitadas, mas traz uma longa explicação
sobre os ‘tupis’ como sendo o conjunto de várias nações
com diferentes territórios, e usa o termo tupi para ilustrar
o mapa colocado no final da sua obra (Martius, 1867). As
9 Varhagem faz esta afirmação nas notas 221 e 222, após exames de muitos códices
manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, publicadas na quarta
edição do Tratado descritivo do Brasil, de 1587, pela coleção Brasiliana, vol. 117.
Companhia Editora Nacional, EDUSP, São Paulo, 1971.
62
diferenças linguísticas podiam ser significativas entre as
tribos indígenas existentes no litoral e pelos sertões, mesmo
havendo entre elas relações amistosas ou hostis. No entanto,
a língua geral, hoje dita tupi, a mais falada entre nativos da
costa do nordeste brasileiro, foi dada como instrumento
comum. Compreendê-la e poder falá-la significou muitas
vezes sobreviver entre nativos, como testemunhou Hans
Staden em seu relato recheado de frases e palavras da ‘língua-
geral’ usada pelos tupinambás10.
O conhecimento da “língua geral” revelou-se um
importante elemento facilitador para o povoamento
português e a colonização. Seu conhecimento e divulgação
implicaram na necessidade de criar uma gramática da ‘língua
geral’, baseada no modelo latino de gramática, como a que
foi construída pelo padre jesuíta José de Anchieta, editada
10 No capítulo XXV, Staden mostra, entre outras passagens do seu texto, como
dominava a comunicação; escrevia a língua nativa e a traduzia. Neste capítulo,
explica por que os tupinambás devoram os inimigos: “Não o fazem por fome, mas
para dar largas ao ódio e à inveja. Quando nos combates, gritam com grande fúria:
‘dete immeraya schermiuramme heiwoe!’ A ti te sucedam todas as desgraças, ó minha
comida!” In: Hans Staden. Narração breve e verdadeira sobre o comércio e costumes dos
Tupin Inbas, cujo prisioneiro eu fui. Op. cit. p. 53-54.
63
Vestígios Indígenas
em 1595.11 Padres-missionários não somente aprenderam a
utilizá-la, como obrigaram sua aprendizagem entre nativos
de outras tradições linguísticas. A gramática da língua
mais usada na costa do Brasil, escrita por Anchieta, foi
utilizada em forma de manuscrito a partir do ano de 1556
no Colégio da Bahia; com base em uma língua franca, tinha
função utilitária e sua sistematização objetivava garantir a
comunicação (Puntoni, 1998:5-19).
Relações interétnicas e articulações políticas entre nativos
e diferentes frentes colonizadoras podem ser detectadas
através da documentação histórica e cartográfica existentes;
do mesmo modo, tornaram-se conhecidas as articulações, por
vezes políticas, nas quais guerras e alianças protagonizaram
o jogo entre aldeias de um mesmo grupo indígena ou entre
nativos e as diferentes frentes colonizadoras com as quais
ocorriam trocas.
Detalhes sobre territórios e espaços ocupados por nativos
11 Com o título: Arte de Gramática da Lingoa mais usada na Costa do Brasil. Pelo
padre Joseph de Anchieta da Companhia de Jesus, esta obra é considerada a primeira
gramática da língua guarani por estudiosos como W.N. Dominguez e a primeira
gramática do Tupi por Plínio Ayrosa.
64
do litoral e do sertão da capitania de Pernambuco são
encontrados no Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares
de Sousa, no Tratado da Terra e Gente do Brasil, de Fernão
Cardim, no relato de frei Martinho de Nantes e no Tratado
de História da Província de Santa Cruz de Pero de Magalhães
Gândavo. Sobre um fator que possibilitou a sobrevivência da
colonização portuguesa no Brasil, Gândavo escreveu:
“que não se pode numerar nem compreender a multidão
de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra
do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar
seguro, nem passar por terra onde não ache povoações de índios
armados contra todas as nações humanas, e assim como são
muitos, permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros,
e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se
assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra, nem
seria possível conquistar tamanho poder de gente” (Gândavo,
1995: 24).
Citados por cronistas e por documentos manuscritos
coevos, caetés e tabajaras aparecem como habitantes do
litoral da capitania de Pernambuco. Na costa predominavam
aldeias de nativos caetés, que se localizavam entre o Rio
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Vestígios Indígenas
São Francisco e a divisa da capitania de Itamaracá, onde
começava o território tabajara ou tabayré, todos falantes
da “língua geral”. Os tabajaras tinham aldeias na divisa da
capitania de Pernambuco com a de Itamaracá até o rio Abiay,
que divide a capitania de Itamaracá da capitania da Paraíba.
Tabajara era termo usado para designar inimigos da mesma
origem, ou o mesmo que inimigos cunhados, aqueles que
poderiam ser aprisionados em guerras travadas entre aldeias
por motivo de expansão ou contração de seus territórios, ou
por vingança (Gama, 1979: 30-31).
Os potiguares foram vizinhos dos tabajaras no litoral
Norte; seus territórios se estendiam pela costa da Paraíba,
pelos sertões e pelo litoral dos atuais estados do Rio Grande
do Norte e Ceará. No entanto, a cartografia portuguesa
colonial não tratou sobre as fronteiras ou sobre os territórios
indígenas existentes no período da ocupação portuguesa
na capitania de Pernambuco e suas vizinhas, mesmo tendo
bastante informação dos cronistas da época. Há registros de
termos nativos referentes às populações indígenas existentes
nos territórios conquistados ou em vias de serem ocupados
pelos colonos portugueses. As observações de Gabriel Soares
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de Sousa sobre os caetés poderiam ter sido uma fonte
primordial para a cartografia. Atente-se para esta:
“Este gentio nos primeiros annos da conquista d’este estado
do Brasil senhoreou d’esta costa da boca do rio de S. Francisco até
o rio Parahyba, onde sempre teve guerra cruel com os Pitiguares,
e se matavam e comiam uns aos outros em vingança de seus
ódios, para a execução da qual entravam muitas vezes pela terra
dos Pitiguares e lhes faziam muito damno. Da banda do rio São
Francisco guerreavam estes Pitiguares em suas embarcações
com os Tupinambás, que viviam da outra parte do rio, em cuja
terra entravam a fazer seus saltos, onde captivavam muitos, que
comiam sem lhes perdoar.... Pela parte do sertão, confinava este
gentio com os Tapuias e Tupinaês, e se faziam cruéis guerras, para
cujas aldeias ordinariamente havia fronteiros, que as corriam e
salteavam. E quando os Caytés, matavam, ou captivavam alguns
contrários d’estes, tinham por mor honra, que quando não faziam
outro tanto aos Pitiguares nem aos Tupinambás. Este gentio é
da mesma cor baça, e tem a vida e costumes dos Pitiguares, e a
mesma língua que é em tudo como a dos Tupinambás, em cujo
titulo se dirá muito de suas gentilidades.
São estes Caytés mui bellicosos e guerreiros, mas mui
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Vestígios Indígenas
atraiçoados e sem nenhuma fé nem verdade, o qual fez os dannos
que fica declarado, à gente da nação do bispo, a Duarte Coelho,
e a muitos navios e caravelões, que se perderam n’esta costa,
dos quaes não escapou pessoa nenhuma, que não matassem
e comessem, cujos damnos Deus não permitiu, que durassem
mais tempo; mas ordenou de os destruir d’esta maneira.
Confederaram-se os Tupinambás seus visinhos com os Tupinaês
pelo sertão, e ajuntaram-se uns com os outros pela banda de
cima, d’onde os Tapuais também apertavam estes Caytés,
e deram-lhes nas costas, e de tal feição os apertaram, que os
acabaram de desbaratar; e os que não puderam fugir para a
Serra do Aquetiba não escaparam de mortos ou captivos. D’estes
captivos iam comendo os vencedores quando queriam fazer suas
festas, e venderam d’elles aos moradores de Pernambuco e aos
da Bahia infinidade de escravos a troco de qualquer cousa, ao
que iam ordinariamente caravelões de resgate, e todos vinham
carregados d’esta gente, a qual Duarte Coelho de Albuquerque
por sua parte acabou de desbaratar.
E d’esta maneira se consumiu este gentio, do qual não há
agora senão o que se lançou muito pela terra dentro, ou se
misturou com seus contrários sendo seus escravos, ou se aliaram
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por ordem de seus casamentos. Por natureza são estes caités
(a grafia muda aqui de y para i) grandes musicos e amigos de
bailar, são grandes pescadores de linha e nadadores, também são
mui cruéis uns para os outros para se venderem, o pai aos filhos,
os irmãos e parentes uns aos outros; e de maneira são cruéis, que
aconteceu o anno de 1571 no Rio de S. Francisco estando n’elle
algumas embarcações da Bahia resgatando com este gentio,
em uma de um Rodrigo Martins, estavam alguns escravos
resgatados, em que entrava uma índia Caité (novamente com
i), a qual enfadada de lhe chorar uma criança sua filha a lançou
no rio, onde andou de baixo para cima um pedaço sem se afogar,
até que de outra embarcação se lançou um índio a nado, por
mando de seu senhor que foi tirar; onde a baptizaram e durou
depois alguns dias. E como no titulo dos Tupinambás se conta
por extenso a vida e costumes, que toca a mor parte do gentio que
vive na costa do Brasil, temos que basta o que está dito até agora
dos Caité” (Souza, 1971: 34-36).Foram, portanto, os caetés
classificados por Soares de Sousa como pertencentes ao
conjunto de nativos falantes da “língua-geral”, e foi dito que
estes viviam em regiões do litoral pertencentes à capitania
de Pernambuco e faziam guerra contra seus vizinhos: os
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Vestígios Indígenas
Tupinambás, os Tupinaês e os Tapuias, pelo lado dos sertões, e
os Pitiguares ou Potiguares nas fronteiras do litoral ao Norte
e os Tupinambás nas do litoral Sul do Rio São Francisco.
Com o início da colonização portuguesa no litoral, e
depois com a sua expansão pelos sertões da capitania de
Pernambuco, tribos reconhecidas como não pertencentes
ao grupo linguístico dominante na costa (caetés, tabajaras
e potiguares) começaram a ser conhecidas. Os nativos
não falantes da “língua–geral” das terras de Pernambuco
localizavam-se nas regiões do Agreste e do Sertão. Lá, ficaram
por algum tempo intocados, e não mantiveram, como os
trairirus, contatos com colonos no litoral, do século XVI a
meados do século XVII. Sobre esses nativos não pertencentes
ao tronco linguístico tupi, uma das primeiras referências é a
do padre jesuíta Juan de Azpilcueta Navarro, escrita em maio
de 1555.12 Ele relata ter entrado pelos sertões em missão,
por ordem do padre Manoel da Nóbrega, para descobrir
outras nações de nativos. Nessa viagem, o jesuíta Azpilcueta
12. Carta do padre Juan de Azpilcueta escrita de Porto Seguro a 24 de maio de 1555. In
Cartas Jesuíticas II. Cartas Avulsas 1550-1568. Publicações da Academia Brasileira.
Officina Industrial Graphica , Rio de Janeiro, 1931. p. 146-151.
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e mais doze companheiros encontraram nativos tapuia, e
Azpilcueta os descreve, sendo esta provavelmente a primeira
de muitas outras descrições que apareceram. Gabriel Soares
de Sousa (Op.Cit: 360-419) e padre Fernão Cardim (1998:
198-227) entre outros, fizeram também relatos sobre os
tapuias. Anchieta escreveu:
“diversas nações de outros bárbaros de diversas línguas a
que estes índios (os tupi, carijós) chamam de tapuya, .... porque
todos os que não são de sua nação tem por tais e com todos tem
guerra”.13
Línguas e dialetos indígenas tiveram para a catequese
grande importância, pois se tratava de substituir culturas
nativas pelo evangelho cristão, ensinado por padres e
missionários através dos trabalhos de catequese. Batista
Caetano considera vários significados para o termo tapuia: o
composto de tapy-eyi, que significa comprado, aprisionado,
cativo, ou ainda récua ou chusma; taba-eyi, a récua ou plebe,
do povo; ou ainda o termo tapyi, que significa choça, cabana,
13. José de Anchieta. “Informações do Brasil e de suas capitanias (1584)”. In: Cartas,
informações, fragmentos históricos e sermões. Itatiaia/Edusp, Belo Horizonte/São
Paulo, 1998. p. 310
71
Vestígios Indígenas
termo que pode ter sido alterado de tog-pii ou to-pil, que
quer dizer casa pequena, ou talvez, de top, folha, com algum
outro sufixo que, nesse caso, tem relação com tapuol, folha
em chilidugu, língua dos nativos chilenos.14
A respeito da língua dos tapuias, Von Martius afirma
existirem várias, e não apenas uma, como se pensava
anteriormente, designando a todas elas de tapuia. Ele
destacou a existência de três línguas, uma delas a língua Jê.
Posteriormente, ao se estudarem as outras duas, verificou-
se pertencer uma delas também à família Macro-Jê (Melatti,
1980: 33). O jesuíta Juan de Azpilcueta Navarro usou o termo
tapuzas, Gabriel Soares de Sousa tapuia, e Anchieta, tapiia.
Portanto, várias foram as formas do termo Tapuia, de que já
se fez uso.
No dizer de Cardim:
“Há outras nações contrárias e inimigas destas (as tupi), de
diferentes línguas, que em nome geral se chamam tapuyas que
tambem entre si são contrárias;” (Cardim, 1997: 197).
14. Notas de Batista Caetano em Tratados da Terra e Gente do Brasil (1590) de Fernão
Cardim. Edusp/Itatiaia, São Paulo/Belo Horizonte, 1980.
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Os primeiros contatos, durante o século XVI, que
produziram a imagem bipolar da humanidade indígena
no Brasil, foram sendo assimilados, inicialmente, pelo
convívio com nativos da costa e com alguns dos sertões,
que se consideravam diferentes dos tapuias. Com aqueles,
os portugueses se aliaram. A distinção linguística foi uma
preocupação que nasceu também das ações missionárias,
pois, do entendimento, mesmo que generalizado, das
diversas línguas tapuia, dependia o sucesso da substituição
das culturas indígenas pelo evangelho pregado através da
catequese. Nas ações missionárias entre os nativos não
falantes da “língua geral”, foi comum o uso de nativos como
tradutores, pois, estudar as diferentes línguas tapuia e propor
uma gramática para cada uma, como o fez Anchieta para a
“língua geral” (Anchieta, 1980), seria obra que demandaria
tempo e uma política de exploração econômica dos espaços
nos sertões do ‘Novo Mundo’ não podia esperar. Afirma
Puntoni, “a imensa heterogeneidade dos povos habitantes das
terras interiores da região Nordeste era compreendida, então,
como um mundo da alteridade em relação ao universo tupi”, e a
polaridade tupi/tapuia demonstra também a sobrevivência
73
Vestígios Indígenas
de povos nativos de “língua-geral” vivendo em aldeias em
contato com missionários, em paralelo aos contrários destes
pela língua e costumes, os tapuias, que viviam sem catequese
(Puntoni, 2002: 64-65).
Todas as línguas tapuia foram desprezadas durante esse
período, com exceção da língua kariri de nativos tapuia que
viveram na capitania de Pernambuco. Os kariris, ou kiriris,
formavam numerosas tribos que habitavam diferentes regiões
dos sertões nordestinos. A língua kariri foi uma das poucas
línguas tapuia a serem trabalhadas no período colonial, nos
séculos XVI e XVII. Registram-se, de Luiz Vicêncio Mamiani,
dois trabalhos, um sobre a gramática kariri, e outro sobre
o catecismo na língua kariri.15 Para Batista Caetano, não
está resolvido que o kiriri seja, efetivamente, e no rigor da
palavra, dialeto da língua-geral; mas vê-se que tem muito
dele, assim como do kechuacabu, e, principalmente, dos
15. Mamiani, Luiz Vicêncio. Pe. (S.J.). Arte de Gramatica da língua Brasílica da naçam
kiriri. Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, 1699. Também dele Catecismo da doutrina
christã na língua brasílica da naçam kiriri. Lisboa: Officina Officina de Miguel
Deslandes, 1698. (ed. Fac-similar). Prefácio: Rodolfo Garcia. Imprensa Nacional, Rio
de Janeiro 1942.
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dialetos pampeanos, como o dos chiquitos, de cujo extenso
vocabulário tem-se apenas ligeiro extrato.16 Essas afirmações
suscitam controvérsias sobre suas origens, mas demonstram
serem esses nativos antigos nesta região, pela sua relação
multicultural refletida na linguagem oral.
Gabriel Soares de Sousa e o padre Fernão Cardim, no
século XVI, e fontes portuguesas, francesas e holandesas,
do século XVII, como Frei Vicente do Salvador, Martinho de
Nantes, Luiz Vicêncio Mamiani, Barleus, Roulox Baro, Elias
Herckman, que deixaram trabalhos impressos, assim como
a cartografia de diferentes autores, forneceram informações,
interpretações e mesmo pistas sobre diferentes línguas e
grupos nativos.
A história dos grupos indígenas do período colonial toma
como ponto de partida a análise da documentação colonial
composta por apresentações e descrições de aldeias, povos,
flora e fauna encontradas nas terras conquistadas por
portugueses. As descrições dos territórios e das fronteiras
16. In notas de Barbosa Lima Sobrinho na segundo edição da Relação de Uma Missão
no Rio São Francisco Frei Martinho de Nantes. São Paulo, Ed. Nacional, Brasiliana,
1979. p. 104-105.
75
Vestígios Indígenas
dos nativos da capitania de Pernambuco, referentes ao período
colonial, estendem-se do século XVI até o século XIX. Textos e
imagens, apesar de pretenderem ser informativos em relação
aos diferentes territórios e aos diversos grupos indígenas,
exprimem dificuldades em perceber e distinguir diferenças
culturais nativas. Estes embaraços levaram à generalização de
conceitos sobre povos com diferentes línguas e de grupos com
diferentes dialetos.
Sociedades nativas foram vistas e interpretadas por grande
parte dos cronistas coloniais como selvagens e cruéis, mesmo
quando aliadas aos portugueses ou aos franceses. Chegaram
a ser inseridas na categoria de animais quando as referências
estão relacionadas com a zoologia. No testamento de Maurício
de Nassau há alusão aos nativos dentro desta linha de
raciocínio, mesmo que este príncipe tenha sido considerado
um homem do mundo moderno, por muitos historiadores.
Descrevendo sobre os perigos dos estrangeiros se adentrarem
nos sertões, no seu testamento, ele se expressou da seguinte
forma:
“estrangeiros franceses, holandeses e ingleses que vão ao
interior cobrar dívidas ou portugueses que aí moram são atacados
Mapa de João Albernaz I com as principais “nações” indígenas. (Século XVII).Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
77
Vestígios Indígenas
pelos negros dos matos, pelos tigres e outros animais.”
Manuel Ayres de Casal, na sua Corografia Brazilica ou
Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil, em trecho
reservado à zoologia, refere-se aos nativos em geral e a algumas
nações, como sendo repartidas em hordas e tribos. Sobre os
nativos puri, escreveu:
“São inimigos formidáveis dos Coroados: usam arco e flecha
arpoada: estimam muito qualquer instrumento de ferro, e
sobre todos o machado. As peles dos animais nem lhes servem
de vestuário, nem de colchão, nem de cobertor. Entre outros
quadrúpedes selváticos, são bem conhecidos os veados, os porcos,
os macacos...”17.
Nessa obra, que também foi o primeiro estudo naturalista
sobre a terra do Brasil, publicada no Brasil em 1817, Ayres
de Casal expõe uma relação de cerca de 80 tribos indígenas
ao lado de plantas e animais. Com efeito, a todos os nativos,
com exceção dos tupinambás foi dada a condição de canibais.
Há, também, referências à diminuição de muitos povos
17. Casal, Pe. Manuel Ayres de. Corografia Brazilica ou Relação Histórico-Geográfica do
Reino do Brasil. Coleção Reconquista do Brasil, vol. 27. EDUSP, Livraria Itatiaia Editora,
Belo Horizonte, 1976. p.15
78
nativos, o que não nos espanta pela época de sua publicação
(Schwanborn, 1998: 193). Ao contrário de Ayres de Casal, os
tupinambás foram vistos como canibais por quase todos os
cronistas dos séculos XVI e XVII.
A Breve Descrição Sobre os Costumes dos Tapuias feita
por Elias Herckman em 1639, traduzida do holandês por
Alfredo de Carvalho e o trabalho do alemão Paul Ehrendeich,
traduzido por Oliveira Lima, serviram de base aos estudos
de Pereira da Costa (Costa, 1951, vol. 5: 169-174).
Provavelmente, complementam os de Curt Nimuendaju,
que teve acesso a todos esses estudos etnográficos sobre
grupos indígenas e suas localizações na região do sertão do
São Francisco. Em seu mapa etno-histórico, concluído em
1944, Curt Nimuendaju localizou geograficamente povos
indígenas brasileiros, organizou um índice deles, cujos
nomes foram ordenados alfabeticamente. Outra contribuição
deste estudioso é a identificação e a catalogação dos povos
indígenas, o quantitativo populacional de algumas tribos,
além de informar a data, o ano ou o século em que cada tribo
foi documentada. O total de tribos catalogadas chega a 1400.
Das informações gerais sobre o Brasil pinçamos as que dizem
79
Vestígios Indígenas
respeito a Pernambuco:
Tabajara – este grupo indígena vivia mais próximo ao
litoral e localizava-se nas vizinhanças do rio Capibaribe,
durante os séculos XVI e XVII; desde então, estes índios
foram documentados.
Kariri – esses índios localizavam-se em vários espaços de
Pernambuco e na região do Sertão; foram documentados
primeiramente em 1759;
Xucuru – estes índios migravam entre o Agreste e o Sertão.
Foram documentados em 1619 e 1733; aparecem em
áreas, correspondentes às nascentes dos rios Moxotó,
Pajeú, Parnaíba, Capibaribe e Ipanema.
Pankararu – índios que se localizavam na região do sertão,
próximo a Tacaratu. Documentados em 1746;
Rodela – grupo indígena localizado em uma vasta área do
Sertão do médio São Francisco, compreendendo tanto a
80
margem esquerda do rio quanto a direita. O que significa
dizer parte de Pernambuco e parte da Bahia. Foram
documentados no século XVII, durante a guerra contra os
holandeses, como integrando o terço dos índios de Filipe
Camarão e em 1836;
Pipipã – índios encontrados perto do rio Moxotó,
documentados em 1802;
Exu ou ichu – localizados mais para o Sertão do Araripe,
perto da divisa com o Ceará, nos lugares onde hoje estão as
cidades de Exu, Bodocó e Ipubi;
Pimenteira – localizados no Sertão de Cabrobó; foram
documentados no século XVII;
Tamanquim – encontravam-se nas proximidades de
Petrolina. Foram documentados em 1748;
Umã-Vouê – localizavam-se próximo à região do Pajeú.
No mapa, há uma indicação que este grupo indígena se
81
Vestígios Indígenas
movimentou para o Sul, na direção do Rio São Francisco.
Foram documentados em 1801;
Quesque – estavam próximos ao rio Pajeú e foram
documentados em 1678;
Fulniô – localizavam-se próximos à cidade atual de Águas
Belas, foram documentados em 1746;
Garanhum – localizavam-se na região Agreste e foram
documentados no século XIX.
Chokó – aldeados entre a ribeira do Pajeú e o rio Moxotó.
Observando, ainda, o mapa de Curt Nimuendaju, nota-se
uma forte movimentação dos tabajaras e dos kariris. As
migrações desses dois grupos são intensas e eles as realizaram
em várias direções; tanto para o interior de Pernambuco
quanto para o litoral ou para regiões vizinhas, para além das
fronteiras da capitania de Pernambuco. Suas aldeias podem
ser encontradas em muitos espaços da Capitania.
Na segunda metade do século XVIII, por volta de 1760, o
governo de Pernambuco solicitou a Manoel de Gouvea Alvares,
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cavaleiro da Ordem de Cristo e Ouvidor Geral das Comarcas
das Alagoas18 e da parte sul de Pernambuco, na região do
São Francisco, uma relação dos novos estabelecimentos das
vilas e lugares dos índios da capitania de Pernambuco. Esta
relação é semelhante àquela que organizou Pereira da Costa e
publicou nos Anais Pernambucanos. Provavelmente, Pereira
da Costa se fundamentou nas informações do Ouvidor
Geral das Comarcas de Alagoas. Esta relação nomeia grupos
indígenas, aldeias e o quantitativo populacional de algumas:
Ansus ou Anchus – ocupavam as encostas da serra do
Araripe até a região central do Rio São Francisco. Deles
nasceu o nome da povoação de Exu, situada na encosta da
serra.
Akroás – habitavam a ribeira do São Francisco, na comarca
do mesmo nome. Estes índios foram parceiros dos
mokoazes e rodeleiros; acusados de desestabilizar fazendas
18. Nesse período Alagoas pertencia à Capitania de Pernambuco e na escala
administrativa funcionava uma ouvidoria, subordinada a Pernambuco.
83
Vestígios Indígenas
de criação de gado, uma parte foi exterminada e outra
empurrada para os confins de Goiás, nos últimos anos do
século XVII.
Anaupirás – Frei Vicente do Salvador em sua História do
Brasil de 1500 a 1627 refere-se a este grupo como um dos
poucos que conheciam o ouro e se enfeitavam com algumas
peças; habitavam o alto São Francisco mais próximo à
região das minas.
Arakapás – estes índios habitaram primitivamente uma
ilha no São Francisco, conhecida como Aracapá, nome
originário desta tribo.
Ararobá – índios que habitaram a serra que tinha o mesmo
nome de Ararobá; depois ela foi designada Cimbres e o
aldeamento destes índios se deu em meados do século
XVII.
Arikobés – aldeia de índios considerada tupi por falar a
‘“língua geral”. Sua localização estava no rio Grande,
84
afluente do Rio São Francisco, com missão dirigida por
franciscanos no século XVII. Este grupo ainda existia em
1815.
Avís e pipipans – estes dois grupos foram reduzidos em uma
aldeia situada na caatinga entre os vales dos rios Moxotó
e Pajeú, ambos afluentes do São Francisco. Em meados do
século XVIII, foram reduzidos pelo capitão Antonio Vieira
de Melo.
Porús e brankararus - localizados na ilha de Sorobabé,
aldeia Nossa Senhora do Ó, aí foram aldeados 30 casais,
desde 1702; parte deste mesmo grupo fixou-se, também, na
ilha de Acará, aldeia Nossa Senhora de Belém, na ribeira do
Pajeú, sob a administração de um missionário capuchinho
italiano. Também pertencentes ao mesmo grupo étnico
habitaram a ilha de Santa Maria e a Ilha de Assunção,
antiga Pambu, aldeia do beato Serafim, administrada por
missionário capuchinho italiano, constituída de 80 fogos19,
19. Fogos significa casas habitáveis.
85
Vestígios Indígenas
todas se localizavam no Rio São Francisco.
Karacus - localizavam-se no riacho Jacaré, que nasce
em Ouricuri e desagua no riacho da Brígida; a aldeia
denominava-se também Jacaré; foram aldeados em 1802.
Esses tapuias tiveram uma aldeia no Brejo do Gama.
Também estavam nos sertões da Serra Negra no atual
município de Floresta.
Karapotó – descendentes dos kariri, localizados na Serra
do Cumati, entre 1681 a 1685 foram reduzidos à fé
católica por padres capuchinhos franceses. O chefe deles
foi nomeado governador dos índios e mestre de campo.
Karaíba – situavam-se na ribeira do Cupeti à margem do
São Francisco; daí originou-se a povoação Caraíba, que
pertenceu ao município de Santa Maria da Boa Vista. A
povoação Caraíba faz divisa com a povoação de Cabrobó.
Kariris - localizados em várias ilhas: na ilha do Aracapá,
aldeia de São Francisco, localizada na freguesia de Rodelas,
86
se constituía de 100 fogos; na ilha do Pambu, aldeia Nossa
Senhora da Conceição com 100 fogos e 80 casais; na ilha
do Cavalo, aldeia São Félix com 60 casais, administrada
por Domingos de Brexe, capuchinho italiano; na ilha
de Arapuá, também chamada de Santa Maria, na aldeia
Santo Antonio com 30 casais; na ilha de Inhanhum, aldeia
Nossa Senhora da Piedade; ao todo se constituíam de
170 casais em 300 fogos. Em 1670, os kariris ocupavam
as margens do Rio São Francisco, em frente de Cabrobó.
Em 1672, chegou ao médio São Francisco o capuchinho
francês Martinho de Nantes para dar continuidade à
catequização iniciada pelos jesuítas. Uma bandeira, em
1791, afugentou-os da povoação. Após inúmeros conflitos,
estes índios apresentaram-se ao governador D. Tomás
José de Melo, que os ‘perdoou’ e recomendou ao Coronel
Roque de Carvalho Brandão que os aldeassem em um lugar
chamado Olho d’Água da Gameleira, em 1801. Desde a
Carta Régia de 14 de setembro de 1758, estas terras eram
incultas e de mata virgem, portanto lugar a ser desbravado
pelos próprios índios.
Karipós - localizados na ilha dos Coripós, aldeia Nossa
87
Vestígios Indígenas
Senhora do Pilar, desde 1702, na ilha de Santa Maria, se
constituíam em 25 casais.
Fulniô – localizados em Águas Belas, na serra do Cumati,
na aldeia Cumati; em 1762 eram 410 almas, distribuídas
em 130 fogos.
Ichuz - localizados na aldeia do Senhor Cristo do Araripe,
em Exu. Alguns índios dispersos foram localizados,
também, em Tacaratu, no Pajeú, aldeia Brejo dos Padres,
por exemplo; estes índios também eram chamados de
inxú (abelha negra) e ocuparam a zona central do rio São
Francisco para o norte, até a serra do Araripe.
Makoazes – ocupavam territórios ribeirinhos do Rio
São Francisco que passaram a fazer parte da comarca de
mesmo nome. Com outros índios aliados lutaram contra
propritários invadindo fazendas de gado no século XVII.
As guerras contra estes índios os levaram a migrar para o
interior de Goiás durante o final do século XVII e princípio
do século XVIII.
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Mariquitos – viviam entre a margem esquerda do rio
Moxotó e o sertão das Alagoas e, segundo Fernandes Gama,
esses índios eram belicosos e venceram muitas lutas com
ajuda de suas mulheres.
Omaris - habitavam no sertão do São Francisco e
foram aldeados com outros índios na missão do Jacaré,
localizada na Serra Negra, que estava antes de 1806 sob a
administração do Frei Vital de Frascarolo, passando depois
para a missão da Baixa Verde para ficar sob os cuidados
religiosos de frei Ângelo Maurício de Nisa.
Pankurus ou Pankararus – ocupavam e atualmente
ocupam terras próximas à povoação de Tacaratu e foram
aldeados na missão chamada de Brejo dos Padres.
Paraquiós ou paratiós – viviam no Sertão do São Francisco
e formaram a população da aldeia chamada de Macacos,
localizada na paróquia de Ararobá, atual Belém do São
Francisco.
89
Vestígios Indígenas
Rodelas – índios habitantes das margens esquerda e direita
do Rio São Francisco, formaram a aldeia de Rodela. Em
1645, a aldeia indígena dos Rodelas tinha por chefe um
índio do mesmo nome. Vem dessa aldeia a origem da
povoação de Cabrobó, na segunda metade do século XVII.
Em meados do século XVIII, a freguesia de Rodelas se
estendia da antiga Comarca do Rio São Francisco até a
lagoa de Parnaguá, no Piauí. Podemos também assinalar
que este Sertão de Rodelas alcançava Cabrobó pelo rio
Pajeú, rio sagrado da tribo e afluente do São Francisco.
Subindo, margeando o São Francisco até o Carinhanha,
seguindo pela margem esquerda chegava às nascenças do
rio, alcançando o Piauí. Os índios rodela foram aliados dos
índios makoases e acroás do Piauí. Suas aldeias estavam
localizadas tanto na margem esquerda, em Cabrobó, como
na margem direita, no aldeamento de São Batista em
território baiano.
O chefe rodela participou da guerra contra os holandeses
aliando-se aos portugueses e enviando 200 índios tapuia
ao terço comandado por Filipe Camarão. Seguindo
90
instruções do governador geral do Brasil, D. Fernando
Mascarenhas, Conde da Torre, estes índios deveriam
inquietar os holandeses na capitania de Pernambuco,
destruindo seus engenhos na região do rio Ipojuca. Vinte
anos após o término da guerra contra os holandeses, em
1674, Francisco Rodela recebeu o posto de capitão dos
índios da aldeia de Rodela, no Rio São Francisco, concedido
pelo governador geral do Brasil, o visconde de Barbacena.
Tamaqueús ou Tamaquiúz – foram aldeados na missão
Nossa Senhora dos Remédios, localizada na ilha do Pontal
no Rio São Francisco, com registros entre 1705 e 1745,
quando dirigida por missionário franciscano.
Tuxás - descendentes dos índios rodela ocupavam várias
ilhas do São Francisco, depois foram reduzidos à ilha
dos Cavalos, no município de Cabrobó. Também foram
localizados na Ribeira do Pajeú, na aldeia da Missão Nova
do São Francisco do Brejo.
Umães - aldeados junto com os índios da nação Vouê no
91
Vestígios Indígenas
local chamado de Olho d’Água da Gameleira, em Cabrobó.
Em meados de 1844 viviam na área da Baixa Verde.
Umãs ou inhamuns - estavam localizados na ilha de
Arapuá, também conhecida como Santa Maria, com 257
fogos e 667 almas, foram documentados em 1761;
Xokós – aldeados na missão de Jacaré, situada na Serra
Negra, hoje Floresta, e depois para a da Baixa Verde (hoje
Triunfo). Desses índios vem a povoação de Chokó, na
Comarca de Flores.
Xukurus ou xokurus – localizados em 1746 em um
grande aldeamento com 642 habitantes situado na serra
do Ararobá, onde estavam sob a administração de um
sacerdote da ordem de São Felipe Neri. São chamados de
Jokurus no auto da instalação da vila de Cimbres, em 1762.
Os limites da capitania de Pernambuco se estendiam da foz
do Rio Santa Cruz, na ilha de Itamaracá até a foz do Rio
São Francisco, com sessenta léguas de terra no litoral e no
92
interior. Como o interior era desconhecido no início do século
XVI, na Carta de Doação da capitania de Pernambuco houve
uma especificação quanto ao limite real da Capitania, que era
o Rio São Francisco, cujas águas pertenceriam a Pernambuco,
e sua margem direita. Portanto, o seu limite não poderia ser
sessenta léguas retas, pois deveria seguir o curso do Rio, já
que suas águas pertenciam à capitania de Pernambuco. Todas
as ilhas localizadas no rio também pertenciam à capitania de
Pernambuco. Esta determinação na Carta de Doação do Rei
ao Donatário “deveria entrar na mesma largura pelo sertão e
terra firme adentro tanto quanto poderem entrar e for de minha
conquista”, instigava o donatário a expandir e interiorizar
o domínio português. Por causa desses limites iniciais
alargados, e depois subtraídos no século XIX, é que vários
grupos indígenas como os rodelas e os tamanquins, nesse
período, já se encontravam em espaços políticos não mais
pertencentes à capitania de Pernambuco.
Capistrano de Abreu, em seu livro “Caminhos Antigos
e Povoamento do Brasil”, afirma que Duarte Coelho e seus
sucessores tinham como meta dos seus governos atingirem
o Rio São Francisco, explorá-lo e ocupar as terras em seu
93
Vestígios Indígenas
entorno. Para alcançar este objetivo, Duarte Coelho escolheu a
via marítima. As cartas do próprio Duarte Coelho confirmam
suas ações como também o relatório da viagem de Gabriel
Soares de Souza, em busca de minas de ouro. Portanto, desde
1639, já se atingira terras do médio São Francisco. Afirma
Capistrano de Abreu que os pernambucanos se importaram
mais com a conquista do Nordeste do que com o seu próprio
sertão. Provavelmente Capistrano desconhecia documentos
de 1738, indicadores de três caminhos de penetração
para o sertão pernambucano, publicados por José Antonio
Gonsalves de Mello (Mello, 1966). Baseado em documentos
encontrados na Coleção Alberto Lamego da Faculdade de
Filosofia da Universidade de São Paulo, dois desses caminhos
acompanhavam os vales dos rios Ipojuca e Capibaribe; este
caminho se alongava até a ribeira do Pajeú, cruzava na direção
de Cabrobó até chegar ao São Francisco; o caminho de Ipojuca
acompanhava o seu próprio vale, alcançava o rio Moxotó e
daí, atingia o São Francisco. O terceiro roteiro é um caminho
antigo, que foi feito por ordem de Azeredo Coutinho e que
comunicava Olinda com o São Francisco. Estes roteiros, que
partiam do litoral chegavam até o extremo limite a sudoeste
94
do território da capitania de Pernambuco que, no século
XVIII, atingia o Carinhanha. (Mello, 1966). Todos se valiam
de antigas trilhas indígenas; era a oportunidade do viajante,
através do Rio São Francisco, alcançar Minas, Bahia, Alagoas,
Sergipe, Ceará e Piauí.
Alguns estudos sobre densidade populacional indígena
indicam, com pequena possibilidade de erro, que a população
ameríndia no território brasileiro era de 2 milhões 431
mil habitantes; para o Vale do São Francisco era de 100
mil habitantes. A fonte é John Hemming em Red Gold: the
conquest of the Brazilian Indians, Londres, 1987, citado por
(Couto, 1995).
Levando-se em consideração os grupos indígenas
sobreviventes registrados nos séculos XVIII e XIX por
autores citados anteriormente, pelos cronistas e pelos
padres missionários, que sobre esse tema escreveram, pode-
se concluir que a população nativa nessa região realmente
poderá ter sido maior do que as anotações feitas por John
Hemming. A guerra, a escravidão, os maus tratos, as
mudanças culturais impingidas a essa população produziram
sua redução a números inferiores às populações ocupantes
95
Vestígios Indígenas
dos antigos lugares dos índios. Basta notar a informação sobre
a formação dos exércitos coloniais para enfrentar indígenas
insubmissos no interior da capitania. Um dos batalhões do
exército organizado pelos portugueses foi constituído de
vinte mil negros, sendo a sua maioria, gentios da terra.
97
Imagens da ConquistaA presença indígena em ilustrações e mapas
No século XVI, através de planisférios, atlas, mapas e
ilustrações, surgiam as primeiras representações de
territórios, populações e fronteiras conquistadas pelos
portugueses e espanhóis na América. Novas rotas e caminhos
ligavam culturas de Norte ao Sul e de Leste a Oeste, com
participação de múltiplos canais de informação, como
aconteceu com a rota marítima para as Índias encontrada
por Vasco da Gama, em 1497. Rota que só foi possível
graças ao esforço de muitos, inclusive do navegador e piloto
muçulmano Ahmed Ibn Majib, que acompanhou Vasco da
Gama saindo de Malindi, na costa oriental da África para
chegar a Calicut (Thrower, 2002: 73).
Portanto, não é possível reconhecer apenas a cartografia
portuguesa moderna como resultado de estudos e ações
apenas de europeus fidalgos e cientistas ilustrados pelo
conhecimento da astronomia, da matemática e da física.
Credita-se a ela o resultado do conhecimento acumulado por
98
diferentes povos e culturas que passaram a ser explorados e
registrados pelos conquistadores e o resultado do saber de
cientistas e informantes de diferentes continentes explorados
nos tempos coloniais. Uma cartografia, que tem na sua
formação, como fator principal, a soma de conhecimentos
resultantes de relações antigas e modernas, formalmente
representadas por espaços e ações humanas incluindo ações
africanas, americanas, asiáticas e europeias. A carta de Pero
Vaz de Caminha (Caminha: 2008) sobre o “descobrimento do
Brasil”, uma das primeiras narrativas enviadas ao rei Dom
Manuel I, em Portugal, para dar conhecimento sobre os
feitos da expedição comandada por Pedro Álvares Cabral,
deve ter sido utilizada para a feitura de muitos mapas,
como foi para o famoso mapa Terra Brasilis que faz parte do
Atlas Miller. Também conhecido como Atlas Lopo Homem-
Reinel. Trata-se de um atlas português, de 1519, ilustrado,
incluindo uma dezena de cartas náuticas. Trabalho realizado
pelos cartógrafos Lopo Homem, Pedro Reinel e Jorge Reinel e
ilustrado pelo miniaturista António de Holanda.
Sendo o Rei o leitor principal a quem se destina a carta
escrita em 1500, Caminha constrói texto informativo sobre
100
a viagem, os nativos, os animais e a flora que encontra,
descrevendo o que vislumbra com poucas dúvidas.
Na disputa por terras, portugueses e castelhanos
encontraram via pacífica de convivência por meio do Tratado
de Tordesilhas, assinado no dia 7 de julho de 1494. Das
navegações de Vasco da Gama, das de Cabral, entre outras,
cresceu o conhecimento sobre cartografia dos continentes
banhados pelo Atlântico e aumentava a produção de mapas e
portulanos na Europa. Novas rotas e culturas passaram a ser
apreciadas apesar das diferenças consideradas e justificadas
com preconceito como escreve Caminha: “Allí por entonces
não houve mais fala nem entendimento com eles, por sua barbarie
ser tamanha que não se entendia nem se ouvia ninguem”
(Caminha, 2008: 109). Os textos narrativos de Caminha e
de Colombo, que tornaram mais segura a cartografia, deram
lugar a novos olhares sobre a paisagem na qual se incluía
a natureza e seus habitantes, mesmo que os colonizadores
não estivessem aptos a compreender completamente o que
viam e ouviam. Para entender a cartografia com territórios
e paisagens, incluindo elementos naturais e culturas
autóctones, Milton Santos (1999) e J. B. Harley (2005)
101
Imagens da Conquista
defendem ser ela um território composto de representações
de espaços e sistemas de objetos, que podem ser lidos como
textos. Nestas cartas náuticas, portulanos e mapas, podem-
se encontrar cenas de gente comum da terra como se fossem
cenas de um espetáculo. Portanto, em estudos envolvendo
geografia e paisagem, concordamos com Jean-Marc Besse que
afirma que, a comunicação entre a cartografia e a experiência
paisagística se estabelece tanto pelo plano de conteúdos
como pela relação de percepção e pensamentos existente nas
ações entre objeto e sujeito.
Terras e índios do Brasil fazem parte da cartografia
moderna construída a partir do século XVI; uma cartografia
carregada inicialmente em detalhes corográficos e
topográficos que, aos poucos nos fala sobre ações humanas
representadas em espaços geográficos. Assim, as paisagens
incluídas na cartografia do período colonial passam a ser um
meio de representar a diversidade de culturas em diferentes
espaços geográficos; servem também como ferramenta para
análise do confronto entre territórios e fronteiras, como as
registradas no Nordeste do Brasil, do século XVI ao XIX. A
Geografia e a História das conquistas das terras indígenas,
103
Imagens da Conquista
trabalhadas interdisciplinarmente, passam a ser temas
constantes auxiliando a cartografia, com o surgimento da
paisagem, que inaugura uma nova forma de representar
o mundo humano e natural com seus diferentes planos de
visão.
A carta de Caminha e as cartas de Américo Vespúcio
sobre o Brasil formam parte dos documentos que dariam
jurisdição ao reino português sobre terras no Novo Mundo,
mas também vão auxiliar na produção de documentos como
os planisférios de Cavério, de Kunstmann II e o de Cantino.
O planisfério de Kunstmann II ressalta para o Brasil uma
pequena parte da costa acima do cabo de São Roque e o rio
Cananeia, associada à imagem de um assado humano, como
já relatado em carta de Vespúcio. A leitura ou interpretação
que fazemos é de que estes documentos manuscritos e
cartografados parecem comunicar que terras e culturas
distintas estariam em contato pelo Atlântico: por um lado as
indígenas americanas do continente recém “descoberto” a ser
conquistado e, por outro, culturas da Europa e da África.
Neste sentido, observamos que, na maior parte da
cartografia do século XVI sobre as possessões portuguesas
(acima) Brasilia et Peruvia
(detalhe)
(esquerda) Brasilia et Peruvia (1593).
Cornelius de Jode (1568-1600)
107
Imagens da Conquista
na América, aparecem poucos termos indígenas. Termos que
se intensificam em mapas do século XVII, como o de Petrus
Bertius e o de Cornelius de Jode. De exemplo nos servem os
mapas Terra Brasilis e Kunstmann II. Neles podem ser lidas
dezenas de pontos colocados no litoral, onde são assinaladas
referências aos rios e a outros acidentes geográficos
atingidos por expedições exploratórias que percorreram a
costa do Brasil. Pernambuco constitui um desses raros
termos de origem nativa, que, com várias formas de grafia,
aparece em diferentes fontes cartográficas do século XVI.
Como ‘Pernambuquo’ foi inscrito em mapa do Atlas de Lopo
Homem de 1519 atribuído a Jorge Reinel. Como ‘Parnãbuco’
aparece inscrito no litoral, na mesma altura do mapa
anteriormente citado, no mapa de Gaspar Viegas datado de
aproximadamente 1534. Em mapa atribuído a Pedro Reinel,
datado de 1535, o mesmo ponto foi assinalado como ‘Per
Nambuia’. Com a grafia ‘Pernambuco’, o termo foi encontrado
em mapas de Diogo Ribeiro de 1527 e de 1529; no primeiro,
em meio de uma frase onde diz ser ele um porto.20 A partir
20. Cortesão, Armando. Portugaliae Monumenta Cartographica. Academia
Typus cosmographicus universalis (1532). Sebastian Münster (1489-1552)Colaboradores: Grynaus, Simon, 1493-1541; publicado em Basilea, Suíça
109
Imagens da Conquista
de 1540, o termo Pernambuco passou a ser utilizado com
maior frequência que os demais citados anteriormente na
maioria dos mapas e das cartas náuticas produzidas na época,
termo que representava o porto português mais importante
da capitania Nova Lusitânia. Pela frequência do uso do
seu nome em documentos manuscritos e cartográficos, e
pela importância do lugar como referência portuguesa na
América do Sul, a Capitania passa a ser chamada pelo nome
de Pernambuco.
Provavelmente, o mapa português mais antigo, que traz
alguma informação sobre os nativos da costa de Pernambuco,
é atribuído a Gaspar Viegas, datado aproximadamente de
1534. Nele, está assinalado, entre nomes de rios e cabos que
figuram ao longo do litoral do Brasil, a expressão ‘rei tabaiyo’
acima da inscrição ‘portuari parnãbuco’.21 Esta localização
do grupo indígena Tabajara corresponde à descrição citada
acima baseada em José Bernardes Gama.
Portuguesa de História. Lisboa, 1960. Estampas 22, 18, 38, 39.
21. In Portugaliae Monumenta Cartográphica. Direção de Armando Cortesão.
Publicado pela Academia Portuguesa de História. Lisboa, 1960. Estampa 55.
110
Sobre os nativos caetés pouco foi encontrado na
cartografia portuguesa dos séculos XVI e XVII, o que confirma
as informações sobre a agressiva ocupação portuguesa nessa
região, e comprova a exterminação dos caetés no litoral com
ajuda dos tabajaras, mencionada por cronistas e documentos
coloniais. No entanto, em um mapa etnográfico francês de
Nicolas Sanson D’Abbeville, publicado em 1656, entre muitos
povos nativos assinalados, estão os ‘caetaé’, chamados pelos
portugueses de caeté, localizados nos sertões da capitania de
Pernambuco, onde muitos se refugiaram das perseguições e
escravidão sofridas no litoral.
Observa-se nesse mapa uma linha pontilhada, que corre
da região norte até a região sudeste, (denominadas assim
contemporaneamente) e que sugere uma divisão da região
colonizada pelos portugueses em relação às áreas nativas
sem presença portuguesa; esta presença, nesse mapa,
aparece apenas no litoral, onde os acidentes geográficos –
rios, ilhas, cabos e vilas- estão assinalados. Percebe-se nele,
também, que todos os povos que estão do lado interno
do mapa estão classificados como atinentes à área onde
predominavam povos tapuias, que no mapa, aparece como
111
Imagens da Conquista
tapuiae. Ainda em mapa, do cosmógrafo régio Albernaz I,
datado de aproximadamente 1632, observa-se o registro
de povos potiguar, caeté e tapuia envolvidos nas guerras de
conquistas, dos séculos XVI e XVII.
Durante o século XVII, o porto de Pernambuco se integra
ao mercado internacional. Muitos cartógrafos europeus
passaram a representá-lo em seus mapas e cartas náuticas.
À escola holandesa de cartografia desse século são atribuídos
os melhores trabalhos cartográficos sobre o Nordeste do
Brasil. Entre os cartógrafos holandeses que se destacam com
seus mapas e cartas náuticas sobre Pernambuco, podem ser
citados os autores Jean Bleau, Johan Vingboons, Cornelis B.
Golijath, Hessel Gerritsz e Georg Marcgraf. A Carta Geral da
costa do Brasil do Atlas de Johan Vingboons, de 1660, que
demonstra os limites entre as capitanias de Pernambuco,
Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte pertencente ao
acervo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico
Pernambucano, pode ser um exemplo ao lado do mapa de
Georg Marcgraf datado de 1647 em sua primeira edição.
Em dois mapas de Vingboons, um registra aldeias com
missões e o outro assinala engenhos do nordeste brasileiro
114
holandês, datado aproximadamente de 1660. A cartografia
comprova como as missões jesuíticas portuguesas e as
missões criadas por missionários da Igreja Reformada
foram longe na sua tarefa catequizadora em conquistas e
defesas do território contra invasores, sejam brancos ou
outros indígenas. Com mais destaque, tomamos o mapa
mural Brasilia qua parte paret Belgis de Marcgraf, impresso
em 1647, sob os cuidados de Jean Bleau, a pedido da WIC –
Companhia das Índias Ocidentais. Com pontos conhecidos
da ocupação do litoral ao sertão, pode ser um exemplo do
trabalho conjunto de europeus com indígenas e mestiços,
pois dele deve ter participado o padre mestiço Manuel de
Moraes.
A cartografia holandesa do século XVII demonstra
ainda, com muito detalhe, a importância econômica da
região produtora de açúcar existente em torno do porto
de Pernambuco. Os investimentos e os lucros aplicados e
obtidos com o desenvolvimento da exploração da produção
açucareira nesta região fazem do Nordeste tema em vários
suportes, incluindo a pintura holandesa no século XVII.
A produção de mapas impressos em Amsterdam com
115
Imagens da Conquista
financiamento da WIC incluiu trabalhos dirigidos por Jean
Bleau, Georg Marcgraf e Johannes de Laet entre outros.
Esses, juntamente com os mapas de Vingboons, servem
para dar uma visão sobre algumas áreas e espaços indígenas
no período do contato e ou da dominação colonial sobre os
territórios nativos. Marcgraf apresenta trabalho detalhista
sobre capitanias do nordeste do Brasil no mapa-mural Brasilia
qua parte paret Belgis. Nesta obra, ele detalha a localização
de tipos de aldeias indígenas, engenhos, caminhos, portos,
currais, salinas e missões. O mapa de Marcgraf apresenta
ainda seis cenas atribuídas ao paisagista e pintor Frans Post,
todas elas referindo-se ao mundo social e cultural colonial
envolvendo população escrava, índios livres em diferentes
situações, engenho de açúcar, casa de produção de farinha de
mandioca, missão com índios saindo para guerra e animais
em meio à flora brasileira. A localização das aldeias muito se
deve aos trabalhos de informação do padre jesuíta Antonio
Moraes, que se tornou protestante depois de aliado aos
holandeses. Portanto, no mapa de Georg Marcgraf, Brasilia
qua parte paret Belgis, de 1647, diferentes ações ocorridas
nos espaços indígenas conquistados no nordeste do Brasil
Cena de canibalismo e de caça a emas e
ao gado – Desenhos atribuídos a Frans Post
inseridos no mapa de Marcgraf Brasilia
qua parte paret Belgis (1647).
118
podem ser acompanhadas. Temas envolvendo escravidão,
monoculturas, expedições e conquistas foram inseridos.
Nesta época, considerada de ouro para a cartografia
holandesa, Pernambuco figurava como o porto holandês mais
importante para a saída do açúcar do nordeste brasileiro, em
direção às refinarias localizadas nos Países Baixos. Era o porto
de entrada para a vila do Recife, a capital do Brasil holandês,
onde estava armazenado o açúcar bruto para exportação,
como bem documentou Jean Bleau, em gravura de 1643,
feita para a WIC - Companhia das Índias Ocidentais, a
empresa com maior número de ações comerciais destinadas
ao Atlântico português. Estava ali também registrado o antigo
porto indígena caeté, denominado por estes de paranambuco.
Este porto, com suas ilhas e terras, passou a ser controlado
pelos conquistadores.
Apesar de utilizar aspectos gerais encontrados na
cartografia europeia da época, o mapa Brasilia qua parte paret
Belgis reúne de maneira original, e com mais complexidade
e quantidade de informações, temas envolvendo distintas
culturas em espaços do mundo colonial e do ainda não
colonizado, localizado nos sertões do nordeste do Brasil, no
119
Imagens da Conquista
século XVII. Seu poder de comunicação chama atenção quanto
ao uso de símbolos e paisagens que seguem ideais de ordem,
riqueza, beleza e sentimentos. Ideais, que parecem seguir
propositalmente uma ordem de importância. Traduzindo seu
título, colocado em latim, temos uma primeira explicação
sobre o que mais importa comunicar neste mapa mural,
ou seja: a parte do Brasil que cabia aos Países Baixos. Título
que nos dá a entender tratar-se de mapa que reúne vários
interesses envolvendo grupos no Brasil e nos Países Baixos
(Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).
Em relação à geografia humana, observa-se neste mapa
que a fronteira do Sertão está bem assinalada quando se
distingue, no litoral, a ocupação do espaço colonial europeu
assinalando a presença africana e indígena e, quando quer
marcar o Sertão, o faz por imagens relacionadas com a
presença de grupos tapuias. O mapa chama atenção para
o termo genérico Indiarum como conceito aplicado aos
grupos tupis das zonas colonizadas em contraposição às
“Aldeas das Tapijya” como espaços povoados nos sertões fora
do marco colonial. A diferença deve-se ao uso de distintos
termos em latim: Domus Indiarum, conceito de casa ou
120
fogo fixo dos índios do tronco tupi já integrados ao mundo
colonial, e Domicilium Tapijyurum, como sede/domicílio de
indígenas do tronco linguístico macro-gê, kariri e de outras
línguas não classificadas, localizados no interior e mais
distanciados do controle colonial. O mapa ainda faz alusão
aos espaços assinalados como Lugar despovoado ou Domicilia
deserta, o que pode indicar aldeias anteriormente ocupadas
por grupos, que podem ter sido reduzidos às missões, ou
podem ter sido escravizados por descimentos ou que, ante
a pressão portuguesa ou holandesa, abandonaram suas
malocas por zonas de refúgio no interior. Por outro lado,
os estragos que causaram as epidemias, que assolaram os
territórios indígenas nos sertões, poderiam explicar alguns
despovoamentos nestas e noutras áreas (Barbosa, Ruiz-
Peinado, Scott e Piqueras, 2013). Portanto, na cartografia
com paisagem, em que homens aparecem em cenários
construídos segundo distintos planos de visão, nasce uma
nova forma de representação do mundo que leva o espectador
a experimentar uma estética da natureza via imagens. A
paisagem utilizada para ilustrar a cartografia moderna vai
unir natureza, geografia e ações humanas.
121
Imagens da Conquista
As palavras nus, bárbaros, selvagens e antropófagos,
em imagens e argumentos para a conversão, escravidão e
extermínio de indígenas, foram usadas na efetivação de
políticas colonialistas. A terra fértil para as novas plantações
e para pasto de rebanhos foi tirada dos nativos por ‘guerras
justas’. A produção de imagens de antropófagos, propagada
pelos colonizadores, serviram de etiquetas para captar
a atenção de um público europeu ávido por notícias e
descrições sobre as terras americanas. Em todo caso, foi a
imagem que justificou e facilitou tarefas da conquista e da
colonização, que levaram a cabo, portugueses, franceses e
holandeses (Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).
Quando, em 1549, o mercenário alemão Hans Staden foi
capturado pelos tupinambás, durante a defesa da fortificação
portuguesa de São Felipe, não imaginava que, oito anos mais
tarde, o relato de suas vivências durante os nove meses de
cativeiro, se converteria em um êxito de vendas que veio a
modelar a opinião europeia sobre os indígenas brasileiros e,
por extensão, nativos de toda a América. Gravuras e pinturas
reinterpretando livremente a odisseia de Staden de maneira
exagerada tornaram-se comuns, como as conhecidas
122
narrativas das viagens ao Brasil de Jean de Léry, descritivas
dos costumes dos tupinambá, ou as de Theodoro de Bry que
representam a visão gráfica tupinambá mais difundida do
final do século XVI até o final do XVII. A obra do franciscano
André Thevet intitulada As singularidades da França
Antártica, 1557, com suas 41 gravuras, ajudou também a
definir a imagem e a visão do selvagem canibal da América.
Em todas essas representações se visualiza sempre o lado
mais selvagem e mórbido da antropofagia com cenas do
banquete do ato canibal, ocultando-se as explicações rituais
e religiosas presentes na própria narrativa de Hans Staden
(Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).
O título da obra do alemão não poderia ser mais eloquente
e tendencioso na hora de apresentar os seus captores nativos:
Warhaftige Historia und beschreibung eyner landtschafft der
Wilnen Nacketen Grimmigen Menschfresser Leuthen in der
Newenwelt America [1557]. (Staden, 1983 - A verdadeira
história e narrativa de uma terra de gente selvagem, nus,
bárbaros e canibais.) Canibalismo e ferocidade pedem
resistência e justeza na aplicação do conceito de ‘guerra
justa’, que tão bons resultados haviam dado já na América
123
Imagens da Conquista
espanhola, durante a conquista. Conceito que suscitou
a intervenção de teólogos e juristas do nível de Francisco
de Vitoria, de Francisco Suárez ou de Domingo de Soto,
vinculados à famosa Escuela de Salamanca. Da aplicação da
‘guerra justa’ deriva a escravidão indígena, consequência
jurídica tão necessária para se tornar realidade os espaços
econômicos que portugueses e holandeses desenvolveram
no nordeste do Brasil com constante necessidade de mão de
obra. A implantação dos engenhos de açúcar ou das fazendas
agropecuárias não se explica sem o controle da mão de obra e
da utilização do trabalho escravo indiscriminadamente.
São do século XVI as primeiras imagens de canibais pelo
litoral e sertão do Brasil em mapas impressos por diferentes
reinos da Europa, como a de Petrus Bertius (1565-1629) de
título Brasilia, data provável 1616, e a de título Brasilia et
Peruvia de Cornelius de Jode de 1593.
Noutra ilustração mais antiga encontramos em um
mapa-mundi de Sebastian Munster, impresso na Suíça no
ano de 1532, um nativo que chega à cena puxando um cavalo
carregando o corpo de um prisioneiro que será abatido e
posteriormente assado, como indica a cena à sua frente.
124
No século XVII, o Padre Cadornega, em sua História Geral
das Guerras Angolanas (1680), justificará o resgate de cativos,
pelas práticas canibais dos “bárbaros” africanos e o tráfico de
escravos para o Brasil. Segundo ele: “e com estes resgates se
evitam não haver tantos açougues de carne humana, e instruídos
da Fé de Nosso Senhor Jesus Cristo indo batizados e catequizados
se embarcam para as partes do Brasil ou para outras que têm
uso católico” (Cadornega, 1972: 13-14). O que parece ter
sido semelhante, no século XVI, quando os portugueses
contataram com nativos tupinambás, caetés ou potiguares
do litoral e os classificaram todos como índios da costa,
falantes da língua geral; os não aliados foram considerados
antropófagos, selvagens e inimigos dos portugueses.
Para os caetés, por exemplo, foi decretado como castigo,
por parte da Coroa portuguesa, a escravidão perpétua, em
1562. Os motivos? Sua rebeldia com o contato e a falta de
submissão aos agentes coloniais, além de uma “constante
prática canibal que havia de ser extirpada”, segundo as
autoridades portuguesas. Os mesmos motivos que levaram
os castelhanos a acusar de hostis e antropófagos aos índios
caribes das Antilhas Menores e com a mesma consequência
125
Imagens da Conquista
imediata, a escravidão. Por sorte de Staden, este não foi visto
por seus captores como um indivíduo de energia suficiente
e ‘espírito’ para ser sacrificado e consumido ritualmente;
assim seus “selvagens, nus, ferozes e canibais” acabaram
por livrarem-se do hóspede inconveniente (Barbosa, Ruiz-
Peinado, Scott e Piqueras, 2013).
Quando os europeus conseguem estabelecer alianças e
pactos com grupos da costa utilizando estes como mão de
obra em engenhos, fazendas e vilas, a fronteira do espaço
dito de nativos antropófagos e selvagens, se translada para o
interior dominado pelos tapuias. Portanto, o tapuia, do século
XVII holandês, era o caeté do século XVI português. O discurso
do colonizador utilizou aqueles elementos das culturas
indígenas que, reais ou não, pois não se tem confirmação
de que os tapuias praticaram o canibalismo, facilitavam
as estratégias de dominação e de conquista de territórios a
‘civilizar’. Por isso, os grupos tupis do século XVII, das zonas
de ocupação holandesa, já não são selvagens. São englobados
na categoria de índios (Aldea das Indias). Enquanto os tapuias
sem controle, livres e donos do sertão, mantiveram uma
identidade própria, definida pelos europeus através de suas
126
observações: confrontação; ausência de vestimentas e de
ordens, intolerância e vícios, que vão justificar seu controle
por parte dos interesses políticos e econômicos europeus.
No mapa observamos como, apesar de suas atividades
de caça às emas, por exemplo, e abate de animais, como o do
gado europeu, os quais cobriam de sobra suas necessidades
de aportes proteicos, ao tapuia é atribuída a festa canibal,
atributo pelo qual seria sempre invocado no imaginário
europeu do século XVII. Seu mundo é o do ‘selvagem’ e do
enfrentamento constante em lutas interétnicas, onde o
arco e as flechas ou o tacape servem para atacar contrários
e os preparar para o festim e o prazer canibal. Seu espaço
é o mato, a natureza indomada onde transita com inteira
liberdade para buscar seus recursos alimentícios (Barbosa,
Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).
Os tapuias foram livres até seu espaço ser reivindicado
para o avanço colonial e para o gado escapado dos currais.
A presença do gado foi a ponta de lança de um mundo
colonial que começava a pressionar os territórios indígenas.
Esta imagem no mapa de Marcgraf representa a interação
entre o mundo “selvagem do Sertão” e o mundo ordenado da
colônia. Em seu nomadismo, os “bárbaros do Sertão” resistem
127
Imagens da Conquista
a ter domicílio fixo, o “Domus”, o que quer dizer que eles
não querem ser considerados parte de um mundo alheio aos
seus interesses; mundo este, que só entende de trabalhos
forçados, missões religiosas, produtividade e aculturação.
Georg Marcgraf e Jean Bleau, mostram-nos
definitivamente a formação de um mundo colonial onde
primam motivações econômicas e políticas que nada têm a
ver com as realidades nativas dos territórios originais. Dá aos
leitores a visão de um mundo europeu, que exige na maioria
das vezes a transformação radical do modo de viver indígena;
força sua entrada na história moderna europeia através de
imagens estereotipadas e de discursos de marcado caráter
eurocêntrico. Neste complexo mapa, apareceram, também,
espaços geopolíticos com superposição de elementos
culturais indígenas, europeus e afro-americanos. Incluem-se
nestes espaços os contatos entre culturas, estando em cena
distintos grupos étnicos de três áreas do Atlântico. Neste
mapa de Marcgraf localizam-se grupos africanos refugiados
pelos sertões, onde se assinala Tapera de Angola, como local
de morada de africanos em área tradicionalmente indígena
(Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).
129
Sob o Domínio do Medo
No início da colonização a legislação incentivava a ocupação
das terras. A partir de 1549, com a instituição do Governo
Geral, isto é, com a presença do Estado português, surgiram
exigências para tal fim. Por exemplo, a prerrogativa do
registro na Provedoria é da legislação de 1549, a confirmação
das cartas pelo Rei já é um requisito do século XVII. A carta
régia de 1699 torna obrigatório o pagamento do foro. Com a
legislação mais rigorosa sobre os prazos de aproveitamento
da terra, e a ocupação indiscriminada feita anteriormente à
regulamentação, a extensão das terras doadas foi diminuindo,
pois, caso a terra não fosse utilizada economicamente
dentro do prazo de cinco anos, seria considerada terra
devoluta.22 As medições sempre utilizaram limites naturais
22. Conforme podemos observar no documento transcrito:
“Sesmaria de três léguas de terra de cumprido e uma de largo no riacho de Moxotó
doada a Alexandre da Silva Carvalho e seus herdeiros morador no sertão de Ararobá
nas cabiceiras do Moxotó vertentes do Rio São Francisco pelo Capitão Mor General
Luis José Correia de Sá, em 26 de novembro de 1753, não podendo suceder ao suppe
130
e ou propriedades ou posses de outros, o que facilitou a
incorporação de grandes quantidades de terras aos domínios
dos fazendeiros ou o argumento de que a terra era devoluta,
portanto, não pertencia nem ao Estado nem aos particulares.
Em geral, os criadores de gado recebiam sesmarias muito
extensas. Um dos mais conhecidos foi Garcia D’ Ávila, que
através de inúmeras solicitações conseguiu construir um
império, mesmo sem ter a confirmação da carta de anuência
do Rei.
Desde o início, a colonização portuguesa foi marcada por
uma reação dos nativos. Os conflitos com os índios estiveram
presentes ainda quando Duarte Coelho se alojara no canal de
Santa Cruz, que separa a ilha de Itamaracá do continente,
local denominado ‘os marcos’; Igarassu e Olinda foram suas
próximas conquistas. Dos ‘marcos’, Duarte Coelho ordenou
iniciar a povoação de Igarassu, batizada pelos cristãos de
vila de São Cosme e São Damião, distando uma légua dos
‘Marcos’. Nesta primeira povoação, os colonos enfrentaram a
por tempo algum Religiões salvo satisfazendo todos os encargos, e sendo obrigado a
pagar o foro anual de 4$ a povoar a dita terra no prazo de cinco anos sob pena de lhe ser
declarada devoluta e a dar caminhos livres”. Livro de Foros N3 f3, p. 51.
131
Sob o Domínio do Medo
fúria dos nativos, que se desentenderam com os portugueses
e cercaram a vila, por muitos dias; estes, ameaçados pela
fome, foram salvos pelos habitantes de Itamaracá. Nessa
ocasião, Duarte Coelho já se encontrava em Olinda, quatro
léguas distantes de Igarassu, na direção sul, e, lá também
enfrentava guerra contra os índios caetés. Por esta razão, não
pôde vir auxiliar os habitantes de Igarassu. Terminado o cerco
à povoação de Igarassu, com os nativos mais apaziguados e
afastados da sede, Duarte Coelho entregou o comando desta
vila a um vianense, Afonso Gonçalves e foi se estabelecer em
uma região mais alta, mais defensiva, onde instalou a sede do
Governo, fez funcionar a Câmara e outorgou a 12 de março
de 1537 o foral da Vila de Olinda23.
Gabriel Soares de Souza na sua Notícia do Brasil de 1587
reporta-se a esses fatos:
23. O nome Foral é impróprio, uma vez que não tinha tal documento este tipo de
diploma. Mesmo assim, o ‘Foral de Olinda’ é um documento importante por ser o mais
antigo em relação a este município e contém dados sobre a colonização de Pernambuco.
Comparar com Fontes Repatriadas. Anotações de História Colonial. Maria do Socorro
Ferraz Barbosa, Vera Lúcia Costa Acioli e Virgínia Almoedo de Assis. Recife. Editora
Universitária da UFPE. 2006.
132
“Chegando Duarte Coelho a este porto [de Pernambuco]
desembarcou nele e fortificou-se, onde agora está a vila [de
Olinda] em um alto livre de padrastos, da melhor maneira
que foi possível, onde fez uma torre de pedra e cal, que ainda
agora está na praça da vila, onde muitos anos teve muitos
trabalhos de guerra com o gentio e franceses, que em sua
companhia andavam, dos quais foi cercado muitas vezes,
ferido e mui apertado, onde lhe mataram muita gente; mas
ele com a constância de seu esforço, não desistiu nunca da
sua pretensão e não tão somente se defendeu valorosamente,
mas ofendeu e resistiu aos inimigos, de maneira que os
fez afastar da povoação e despejar as terras vizinhas aos
moradores dela, de onde depois seu filho, do mesmo nome lhe
fez guerra, maltratando e cativando este gentio, que é o que
se chama caité, que o fez despejar a costa toda, como esta o
é hoje em dia, e afastar mais de cinqüenta léguas pelo sertão
(Mello, 1979: 237-238).
Em muitas ocasiões Igarassu e Olinda foram atacadas
pelos caetés com o apoio dos franceses, que já se encontravam
no litoral fazendo trocas com os indígenas desde as primeiras
expedições exploratórias. O que viria a ser Recife, nessa
133
Sob o Domínio do Medo
época já era uma povoação de pescadores. A comunicação
entre Olinda e Recife era feita com barcos por mar e, também
por terra, utilizando-se o istmo de areia, que liga o Recife a
Olinda.
Sem demora, Duarte Coelho percebeu a necessidade
de alianças com algumas nações indígenas para fazer frente
aos franceses e aos gentios, que resistiam à presença dos
portugueses. Como os índios caetés se deslocavam muito
frequentemente, tanto pela costa como pelo interior, e naquele
momento estavam aliados aos franceses, o governador da
Capitania decidiu enfrentar os dois inimigos. Enfraquecer
o poder de ataque dos caetés trazia outro benefício, que era
a possibilidade de aliança com outras tribos indígenas, suas
inimigas. Para tanto, Duarte Coelho, que contava apenas
com reduzido contingente militar, organizou uma expedição
que varreu a costa de Pernambuco e se adentrou com suas
embarcações pelo Rio São Francisco (Mello, 1979: 238).
As alianças com os indígenas tabajaras24 deram-se a partir
24. “Tabajara era termo usado para designar inimigos da mesma origem ou o mesmo
que inimigos cunhados, aqueles que poderiam ser aprisionados em guerras travadas
entre aldeias...” Barbosa, Ferraz Bartira. Op. cit. p.12. Daí se infere que os tabajaras
134
do concubinato entre homens brancos, como Vasco Fernandes
de Lucena e Jerônimo de Albuquerque, com mulheres
nativas. Alguns cronistas afirmam que a subordinação de
parte dos nativos aos portugueses se deveu à astúcia destes
e ao medo que suas ações, muitas vezes perversas, causavam
aos nativos e que estes as tomavam como milagres, ou seja,
realizadas por seres muito superiores a eles.
A partir da confirmação dessas alianças com os gentios,
Duarte Coelho contou com uma retaguarda de guerreiros
e, ao descer pela costa até o Rio São Francisco, encontrou
muitos franceses que faziam o resgate do pau-brasil; guerreou
contra estes, fez acordos de paz com chefes nativos, trazendo
de volta índios que haviam sido escravizados por tribos
inimigas. Amedrontados com a situação, os índios fugiram e
lhes deixaram as terras. Duarte Coelho começou o negócio do
açúcar - os engenhos, para o qual já havia trazido os contratos
de Portugal. Iniciou-se, também a troca com os nativos: caças,
frutas do mato, peixe e mariscos a troco de foices, machados,
tinham a mesma origem tupi dos caetés, mas estavam divididos pelas inimizades
antigas e ou novas, provocadas pelos europeus.
135
Sob o Domínio do Medo
anzóis, facas. Com as trocas também negociavam homens e
mulheres, nativos, que se tornariam escravos para o trabalho
ou para a vida sexual dos colonizadores.
Mais ou menos apaziguada a Capitania, viajou Duarte
Coelho a Lisboa para rever contratos, dar notícias ao Rei e
provavelmente conseguir financiamentos. Na sua ausência,
dirige a Capitania, sua mulher, Dona Beatriz de Albuquerque
assistida por seu irmão Jerônimo de Albuquerque. Na
segunda viagem empreendida por Duarte Coelho a Lisboa o
seu intento era requerer ao Rei seus serviços, que passava dos
vinte mil cruzados por ano. A Capitania rendia anualmente ao
Rei sessenta mil cruzados, fora os rendimentos do pau-brasil
e os direitos do açúcar produzido por dezenas de engenhos.
Não teve êxito no seu intento, foi mal recebido pelo Rei e
já adoentado veio a falecer dias depois desse encontro, em
Lisboa.
A Capitania ficou sob a responsabilidade de Dona Beatriz
e do seu irmão Jerônimo de Albuquerque. As queixas contra
os nativos, que continuavam atacando os portugueses e os
seus escravos africanos, eram frequentes, até que Jerônimo
de Albuquerque chamou representantes da Câmara da vila de
136
Olinda e da burocracia reinol à sua residência, formando pela
primeira vez em Pernambuco uma espécie de conselho para
decidir o que fazer com estes grupos indígenas de diferentes
nações. A maioria dos conselheiros presentes optou pela
guerra, mas Vasco Fernandes de Lucena ponderou mostrando
que a guerra indistinta contra várias tribos não ajudaria aos
colonos. Provavelmente uniria os grupos indígenas, até os
que não eram aliados entre si, porque os inocentes pagariam
pelos pecadores. Sugere, então, Vasco Fernandes que os
próprios índios descubram quem está causando prejuízos
aos brancos. Após embebedá-los, os portugueses assistiram
alguns índios acusando seus próximos e daí surgiu uma luta
entre eles. Jerônimo de Albuquerque resolveu castigá-los
colocando os considerados culpados na boca de um canhão,
espatifando-os. Com esta inimizade e esta divisão entre os
gentios puderam os portugueses alargar seus engenhos para
os lados da várzea do Capibaribe (Salvador, 1965:136-137).
Dando sequência às informações, Frei Vicente do Salvador, ao
comentar sobre o êxito da colonização de Pernambuco, coloca
como fatores importantes a bondade dos governantes, a paz
com os índios, garantida pela miscigenação e pelo aumento
137
Sob o Domínio do Medo
da prole. Lamenta que os indígenas não tenham amado os
colonos e justifica a guerra e as atrocidades afirmando que,
somente poderia haver paz se houvesse temor.
Com o terror instaurado entre as populações nativas,
a construção socioeconômica da capitania de Pernambuco
realizou-se a partir da expansão da área cultivável, e, para
tanto, foi imprescindível a ‘limpeza étnica’, principalmente a
expulsão ou dizimação dos índios, que ocupavam as várzeas.
O que movia os colonos era a obtenção da terra. As ‘guerras
justas’ estiveram como biombos da violência. Duas guerras
contra os gentios, caeté e tabajara, os empurraram para os
sertões de dentro; atemorizados, os tabajaras capitularam e
fizeram uma aliança duradoura e proveitosa com e para os
luso-brasileiros.
Sendo a Capitania ambicionada pelas gentes de Portugal
e de outras capitanias, que queriam fazer seus engenhos e
fazendas aqui, o capitão donatário Duarte de Albuquerque
Coelho, filho do velho Duarte Coelho, resolveu atender a
esta demanda. Mas seria preciso disponibilizar as terras,
que se espraiavam pelo Cabo de Santo Agostinho e eram
propícias à plantação de cana de açúcar; a dificuldade
138
no empreendimento, mais uma vez, era a presença dos
indígenas caeté, que as habitavam e não eram seus aliados.
A mesma fórmula foi aplicada: organizar uma ação militar
reunindo homens brancos para comandar vários batalhões
de indígenas recém-aliados, e de negros. Com muita
astúcia e engodo, os nativos de diferentes tribos foram
jogados uns contra os outros. As tropas eram, na verdade,
um conglomerado de negros e indígenas comandados por
homens brancos e proprietários da colônia: o batalhão de
Igarassu, comandado por Fernão Lourenço; o de Paratibe, por
Gonçalo Mendes Leitão; da várzea do Capibaribe, Cristóvão
Lins; moradores e mercadores, chamados de gente da vila
(de Olinda) organizaram 03 companhias. A primeira sob o
comando do capitão dos vianenses, João Paes; a segunda,
comandada pelo capitão dos que vinham do Porto, Bento Dias
de Santiago e a terceira pelo capitão dos lisboetas, Gonçalves
Mendes d’Élvas, mercador. As seis companhias estavam
constituídas por vinte mil negros (índios e africanos), sendo
a maioria dos gentios, provavelmente, tabajaras e potiguares
contrários aos caetés, alojados no Cabo de Santo Agostinho.
Da ilha de Itamaracá, comandados pelo Capitão Pero Lopes
139
Sob o Domínio do Medo
Lobo, vieram 35 soldados brancos e 2000 índios flecheiros.
Comandava toda a tropa Duarte de Albuquerque Coelho,
acompanhado de D. Filipe de Moura e de D. Filipi Cavalcanti
(de origem italiana), genros de Jerônimo de Albuquerque. A
guerra foi exitosa nos seus objetivos; grande parte dos que a
fizeram construíram seus engenhos. Um deles, João Paes, que
viria a ser o Morgado do Cabo, construiu 08 engenhos, um
para cada filho. Mas, as terras perto do rio Sirinhaen também
eram férteis e estavam ocupadas pelos renitentes indígenas
da tribo caeté. A guerra os dizimou e causou muito temor aos
outros gentios. Diz Frei Vicente do Salvador:
“à fama dessas duas vitórias ficou todo o gentio desta costa
até o rio São Francisco tão atemorizado que se deixavam
amarrar dos brancos como se fossem seus carneiros e ovelhas.
E assim, iam de barcos por esses rios e os traziam carregados
deles a vender por dois cruzados ou mil réis cada um, que é o
preço de um carneiro” (Salvador, 1965:198).
Por Pereira da Costa, temos informações sobre a aliança
dos caetés com os franceses e sobre os frequentes ataques
destes contra instalações da colonização portuguesa, na
região. Em muitas ocasiões as vilas de Olinda e de Igarassu
Cartógrafo Nicolás Vallard. 1547. Escola de Dieppe – França
Imagens do contato dos indígenas da costa, acima
da Bahia, com os franceses interessados no escambo do
pau-brasil.
141
Sob o Domínio do Medo
foram sitiadas pelos índios caetés, ajudados pelos franceses,
o que resultou numa guerra dos portugueses contra os
caetés, que foram banidos dos territórios próximos ao litoral
afastando-se “mais de cinquenta léguas para o sertão”. Muitos
morreram e muitos foram vendidos como escravos aos
moradores de Pernambuco e Bahia. Os que se interiorizaram
misturaram-se aos seus antigos inimigos como escravos ou se
casaram com outras etnias. Os caetés eram grandes músicos
e dançarinos, eram pescadores de linha e bons nadadores.
Esta nação de índios se movimentava desde a boca do Rio São
Francisco até o Rio Paraíba; foram inimigos dos potiguares
e guerrearam também contra os tupinambás. Entretanto,
quando se organizaram em uma confederação, apesar das
guerras entre si, juntaram-se aos tupinambás e aos seus
vizinhos tapuias do Sertão.
As atrocidades praticadas pelas autoridades da Capitania
foram tantas que o rei D. Sebastião chama o donatário
a Lisboa, após uma denúncia de moradores da própria
Capitania. O medo que os colonos conseguiram incutir
aos nativos a partir da violência da guerra possibilitou aos
governantes acordos de paz, mas, sobretudo uma atitude
142
de apatia e de submissão dos nativos diante de inimigos tão
cruéis. Os cronistas, que se ocuparam com a aventura da
ocupação portuguesa, no Nordeste, também descreveram a
forma valente como os indígenas resistiram à presença da
dominação dos lusos. O quase extermínio dos caetés pelos
portugueses auxiliados pelos tabajaras, informação que nos
chega através dos cronistas da época, é uma prova de que este
grupo indígena não se rendeu e nem fez alianças, preferindo
se refugiar em outras áreas, no Ceará, Maranhão e Pará, por
exemplo.
A política de ocupação das terras, para o cultivo da cana
de açúcar ou de outra atividade lucrativa, sejam as do ‘Sertão
de Dentro’ ou as do ‘Sertão de Fora’, tornou-se o alvo número
um da colonização. Este objetivo teve seu desdobramento em
todos os níveis de ação das partes interessadas. Por exemplo,
planejar uma ação contra os caetés significava observá-los,
espioná-los, em suas aldeias e ter, entre índios de outros
povos, indivíduos que soubessem falar a língua dos caetés
para introduzi-los nas suas aldeias. Estas informações nos
dão a ideia da complexidade da colonização. Além do cultivo
da cana de açúcar, da importação da mão de obra escrava, da
143
Sob o Domínio do Medo
preocupação com as novas tecnologias para a produção do
açúcar, nem sempre introduzidas, os senhores de engenho
e a burocracia, que deles dependia, deveriam resolver o
problema da expansão da área cultivável.
Se os senhores do açúcar em algum momento se
preocuparam com as novas tecnologias, destinadas ao fabrico
do açúcar, teria sido mais pelo problema do custo final do
açúcar do que pelo aumento da produção; não demonstraram
disposição para mudar a forma de cultivo da cana de açúcar.
A base do sistema foi a escravidão e a disponibilidade da
terra para o aumento da produção. A escravidão indígena não
foi suficiente. As guerras contra os nativos possibilitaram
o acesso à terra, mas não à mão de obra indígena. A vinda
compulsória dos africanos substituiu definitivamente o
braço indígena; esta situação foi mais rápida em Pernambuco
e na Bahia do que em outras capitanias, principalmente as
do Norte. A documentação da época tem mostrado que, na
resistência que os indígenas ofereceram ao homem branco,
o negro não foi poupado. Mais tarde, com a formação dos
quilombos no interior da capitania, houve certo apoio, não
de tribos indígenas organizadas, mas de indivíduos dispersos
144
descendentes de índios.
A produção de açúcar se expandiu da capitania de
Pernambuco, para as capitanias de Itamaracá e da Paraíba.
A liderança na produção esteve com Pernambuco e
praticamente o embarque do produto do nordeste para os
portos europeus sempre foi realizado a partir do porto do
Recife. Para comparar com outras capitanias que produziam
açúcar no século XVI, vejamos os números: em 1590 havia 6
engenhos em São Vicente, 36 na Bahia e 66 em Pernambuco
(Normando, 1975:38). A produção não cessou de aumentar e
consequentemente Pernambuco passou por transformações
expressas na opulência da sociedade, descrita pelos cronistas
da época.
Quando Gabriel Soares de Souza escreveu sobre o
Brasil, o século XVI ainda não havia terminado como também
a União Ibérica (1580 a 1640). Em 1587, ele oferta o seu
livro Tratado Descritivo do Brasil a Cristóvão de Moura, em
Madri. Entre muitas informações importantes que o livro
contém, destacamos as que se referem a Pernambuco nos
primeiros decênios, porque podemos compará-las a outras
observações feitas por Fernão Cardim e pelo Padre Antonio
145
Sob o Domínio do Medo
Pires, também do século XVI. Os dois primeiros ressaltam as
rendas e as riquezas obtidas pela produção de açúcar, nesta
capitania. Na informação do cronista Gabriel Soares de Souza
(1851:27-29), a capitania de Pernambuco já apresentava uma
estrutura poderosa em termos de renda:
“...mais de cem homens tinham rendas entre mil e dez mil
cruzados. Chegaram a esta terra pobres e se tornaram ricos.
Todos os anos saem do porto de Pernambuco quarenta e
cinqüenta navios carregados de açúcar e pau-brasil.” “...
Esta vila de Olinda terá setecentos visinhos pouco mais ou
menos, mas tem muito mais no seu termo, porque em cada
um d’estes engenhos vivem vinte a trinta visinhos, fora os
que vivem nas roças.”
Sobre a defesa da Capitania, o autor afirmou que o governo
da Capitania pode reunir uns três mil homens de peleja,
juntamente com os moradores de Igarassu e uns quatro a
cinco mil escravos da Guiné. Ainda na sua escrita, aparece
um lembrete preocupante às autoridades da metrópole em
relação à defesa, considerada por ele bastante exposta aos
corsários.
Em 14 de julho de 1585, chega a Pernambuco, o padre
146
Fernão Cardim acompanhando o padre Cristóvão de
Gouveia, visitador dos Jesuítas, no Brasil. De sua missão
nesta Capitania ficaram impressões escritas em forma de
carta, sobre a sociedade de Pernambuco. Quando retornou ao
Colégio da Bahia, em 16 de outubro de 1585, enviou-a ao Padre
Provincial da Ordem em Portugal.25 Os pontos principais
tratados por Cardim, sobre a capitania de Pernambuco
em seus primeiros decênios, podem ser resumidos a
seguir: o religioso descreve minuciosamente a viagem, o
comportamento e hábitos dos seus pares, dentro dos navios
e quando se deslocam para a terra, para os conventos onde
são instalados. É um observador sagaz sobre a vida dos seus
irmãos dentro dos conventos e também sobre a sociedade
mundana, que se move na Capitania. Faz comparações entre
a sociedade pernambucana e a sociedade lisboeta, entre os
costumes dos indígenas e os hábitos dos portugueses e luso-
brasileiros. Percebeu diferenças culturais na alimentação
25. Esta carta foi publicada por Pereira da Costa nos Anais Pernambucanos. Vol.1.
Recife. Arquivo Público Estadual. 1951, pp 511-512-513. Há informações sobre os
presentes em forma de alimento que os padres receberam. Pães, bolos, aves, ovos, vinhos
e outros que comparados à pauta alimentar do índio vê-se grande diferença.
147
Sob o Domínio do Medo
dos indígenas quando os padres da Companhia visitaram
uma aldeia. Os índios ofereceram durante a ceia peixinhos
de moqué assados, batatas, cará mangará e outras frutas da
terra. Os padres consideraram a comida pobre diante da dieta
alimentar deles próprios: patos, galinhas, queijos, vinhos,
frutas, trigo, carnes bovinas etc.
Esta visitação permaneceu em Pernambuco por três
meses. Na opinião do padre Fernão Cardim, não apenas a
sociedade de Olinda é faustosa, como também há muita
fartura de alimentos e de adornos, dentro dos conventos.
O autor apresenta observações argutas e transmite uma
informação curiosa sobre um rito que se verificou no refeitório
dos padres, quando se recitava orações em homenagem ao
Padre Ignácio de Azevedo, martirizado, juntamente com os
seus companheiros. É que uma das orações foi efetuada em
língua de Angola, por um irmão de 14 anos e que depois
a traduziu para o português. Por esta informação podemos
inferir que, jovens, muito jovens, já entravam para a vida
conventual e já se deslocavam de um continente ao outro.
Talvez, se possa entender que houvesse colégios na África,
como os havia em Olinda, para formar futuros irmãos, que
148
Cardim denominava de “irmãos estudantes”; diferente desse
objetivo havia outro colégio dedicado aos filhos dos brancos,
os principais da terra: são estudantes de humanidades.
Comentando sobre a sociedade livre de Pernambuco, fez
as seguintes referências:
“a gente da terra é honrada; há homens muito grossos de
40, 50, e 80 mil cruzados de seu; alguns devem muito pelas
grandes perdas que tem com a escravaria de Guiné, que
lhe morrem muito, e pelas demasias e gastos grandes que
teem seu tratamento”. “... vestem-se e as mulheres e filhos
de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas; e nisto
tem grandes excessos. As mulheres são muito senhoras e não
muito devotas. São muito dados a festas e banquetes. Os
vianezes são senhores de Pernambuco. Tem passante de dois
mil vizinhos entre vila e termo, com muita escravaria da
Guiné, que serão perto de dois mil escravos; os índios da
terra já são poucos. Há 66 engenhos e lavram-se alguns anos
duzentas mil arrobas de assucar. Enfim em Pernambuco se
acha mais vaidade que em Lisboa.”
Trinta e seis anos antes, padres da Companhia de Jesus
comentaram aos seus superiores, através de cartas, sobre
149
Sob o Domínio do Medo
acontecimentos na capitania de Pernambuco. Um deles,
o padre Antonio Pires, escreve aos irmãos do Collegio de
Jesus de Coimbra, em 2 de agosto de 1551, relatando que
permaneceram em Pernambuco pouco mais que um mês.
Nesse período realizaram muitos serviços apostólicos:
propiciaram a paz com os índios; casaram homens que viviam
amancebados com índias e com brancas. Há muito tempo as
índias forras andavam em pecado com os cristãos e os padres
conseguiram torná-las cristãs. Como tal, não deveriam
acompanhar seus homens ao sertão. Portanto, obrigaram aos
colonos, que as tinham, manterem uma casa, onde deveriam
ser recolhidas, e nessa casa esperariam algum homem
trabalhador que as quisesse para o casamento. Escreve o padre
Pires que são muitas mulheres nesta situação. Somente em
Olinda são mais de quarenta e a estas se agregam também
mulheres gentias. Uma delas era tão inteligente que passou a
explicar a doutrina às outras e por esta razão as autoridades
a ‘nomearam’ meirinha. Os senhores de engenho reagiram a
casamentos de colonos com escravas, com as quais estavam
amigados, com medo de que, uma vez casadas, conseguissem
a sua liberdade. O padre, entretanto, não defendeu a alforria
150
para as escravas e sim a salvação das suas almas. Outra
informação interessante é a existência de escolas separadas
para crianças brancas e indígenas (Nóbrega, 1931: 118-120).
Da vila de Olinda, em 14 de setembro de 1551, o padre
Manoel da Nóbrega escreveu a El Rei Dom João III sobre a
sociedade de Pernambuco alarmado com os maus costumes,
desde os praticados pelos eclesiásticos até os que são comuns
aos cristãos; sejam colonos, negros ou índios. Comentou
que o sertão está cheio de filhos de cristãos “grandes e
pequenos, machos e fêmeas” e se criam nos costumes dos
gentios. Referia-se aos índios dizendo que se encontram
mais calmos, do que em outros lugares, porque receberam
terras e o Capitão não permite que lhes façam agravos.
Para o jesuíta, a justiça e a Igreja eram muito mal dirigidas.
Justificou os desmandos da Capitania à velhice do Donatário,
apesar de considerar virtuosos tanto ele quanto sua mulher
Dona Beatriz de Albuquerque; sugeriu que a Coroa assumisse
maiores prerrogativas na defesa da costa do Brasil. Nas
informações sobre os escravos, mostrou claramente que
são muitos e, deles os colonos colhem muitos frutos. Para
terminar, informa ao Rei que Thomé de Souza lhe pediu um
151
Sob o Domínio do Medo
padre que acompanhasse uma ‘certa gente’ numa entrada,
que se fará em busca do ouro. Prometeu que o atenderá,
porque também interessa à Companhia a descoberta do ouro
para o Thesouro de Jesus Christo Nosso Senhor.
De simples observadores, quando acompanhavam os
visitantes de suas ordens religiosas, os padres acabaram por se
transformar em cronistas ou relatores do que viam e ouviam
e os seus escritos são fundamentais para os historiadores do
período colonial. As ordens religiosas foram se instalando na
colônia e participando de atividades econômicas, além do seu
mister principal. Com exceção dos franciscanos, que faziam
voto de pobreza, as demais ordens, como a dos jesuítas,
dos beneditinos e dos carmelitas eram autossustentáveis;
participavam da economia colonial por meio de estipêndios,
empréstimos, propriedades rurais e urbanas.
Em Pernambuco estas ordens atuaram e investiram na
produção de açúcar para exportação, na criação do gado, na
compra de escravos e participaram também do mercado
financeiro a partir de hipotecas e rendimentos. Enquanto
152
os jesuítas26 foram considerados os grandes proprietários
da América Latina, foram os beneditinos os melhores
administradores. Já na metade do século XVII, os beneditinos
possuíam onze engenhos em todo o Brasil: dois na Bahia, três
em Pernambuco, dois na Paraíba e quatro no Rio de Janeiro.
Stuart B. Schwartz (1983) estudou a atuação dos
beneditinos, enquanto proprietários de engenhos de
açúcar, no Brasil, e fez um recorte para Pernambuco: os três
engenhos de Pernambuco eram Mussurepe, São Bernardo e o
Goitá. As terras de Mussurepe foram adquiridas pela Ordem
em 1609, mas em 1629 já estava montado o engenho e
produzindo cerca de 3000 arrobas de açúcar, por ano. Destas,
16 arrobas eram destinadas ao donatário da capitania. O
engenho produzia, além de açúcar, aguardente, e sua renda
era equivalente a metade dos recursos anuais do mosteiro
de Olinda. Em 1667, o engenho empregava 83 escravos. Isto
seria considerado um plantel de um engenho de médio porte.
A fama de bons administradores que tinham os beneditinos
26. Os jesuítas herdaram de Domingos Mafrense- que não tinha filhos- cinquenta
fazendas de gado no Piauí. Expulsos do Brasil no século XVIII, as terras foram
incorporadas à Coroa Brasileira, após a Independência, no século XIX.
153
Sob o Domínio do Medo
parece ser confirmada pelos documentos de contabilidade
dos engenhos e dos mosteiros deixados por eles. No século
XVIII, após um balanço da situação dos três engenhos de
Pernambuco, o açúcar e os subprodutos representavam 2/3
da renda anual da Ordem. A capacidade empresarial dos
beneditinos é reconhecida pelas inovações que introduziram
na produção e no fabrico do açúcar, assim como na relação
com a mão de obra escrava. Com relação aos escravos, parece
ter havido incentivo à formação de famílias entre estes,
como também recompensas pelo aumento da natalidade. Se
uma escrava conseguisse manter seis filhos vivos não faria
trabalhos penosos. Um dia da semana era livre para trabalhar
sua própria roça; alguns engenhos dos beneditinos foram
administrados por escravos africanos.
A relação das ordens religiosas, que intervinham na
atividade produtiva da colônia, com os outros senhores de
engenho e mesmo com a burocracia reinol não era muito
cordial. Os religiosos queriam frequentemente dispensa de
impostos e de outras obrigações com o governo da Capitania e
com a Coroa. O episódio em que se envolveu o governador Geral
do Brasil, Diogo Botelho, em 1602, é elucidativo: nomeado
154
governador geral do Brasil, desembarca em Pernambuco
em 1602, e aí permanece pouco mais de um ano. Com ele
vieram dois religiosos, agostinianos, para fundar uma casa da
ordem em Pernambuco; o povo não consentiu, justificando
as devidas despesas com os religiosos da Companhia de Jesus
(jesuítas), os de Nossa Senhora do Carmo (carmelitas), os do
patriarca São Bento (beneditinos) e os de nosso seráfico São
Francisco (franciscanos). Os moradores arrecadaram uma
polpuda esmola com os senhores de engenho e devolveram
os agostinianos a Lisboa. Portanto, os conflitos não eram
limitados aos brancos versus índios ou brancos versus negros,
mas entre os próprios brancos; entre civis e religiosos,
autoridades e colonos. Enfim, era uma sociedade conflituosa.
Documentos do Arquivo Histórico Ultramarino, do
Arquivo Público de Pernambuco, dos Arquivos Cartoriais e
Paroquiais de Pernambuco, informações contidas nos Anais
Pernambucanos de Pereira da Costa e, ainda, os escritos
de cronistas coevos do período colonial fundamentam o
conhecimento contemporâneo sobre entradas e bandeiras,
alianças e conflitos entre os índios, entre índios e portugueses
e entre índios e holandeses.
156
É interessante ressaltar o fato de que nem sempre uma
tribo ou povo indígena, constituído de várias aldeias, estava
em sua totalidade aliada ou em conflito com outros grupos
étnicos. É o caso dos tabajaras; nem todos os caciques
tabajaras em Pernambuco acompanharam as alianças do
cacique tabajara Braço de Peixe com Jerônimo de Albuquerque
e Vasco Fernandes. Também as relações de concubinato entre
brancos e nativos não possibilitaram alianças permanentes
com todas as aldeias de uma mesma tribo. Através dessas
alianças, e se aproveitando de conflitos entre tribos, os
potentados de Pernambuco prearam índios e os trouxeram
de suas aldeias como cativos para o trabalho nos engenhos.
Com a expansão destas fábricas de açúcar, a mão de obra
indígena foi substituída pela mão de obra africana; os nativos
passaram a fazer parte de um grupo de reserva utilizado
nas guerras contra outros grupos indígenas inimigos ou
contra outros europeus invasores. Também, devemos
assinalar o papel que a catequese possibilitou na utilização
desses índios: incutindo nos nativos outra formação com
relação a conceitos sobre religião, pecado, propriedade
privada, morte, obediência ao trabalho, hierarquia, ética
157
Sob o Domínio do Medo
e outros, naturalizando a manipulação e a cooptação dos
índios. Os não cooptados utilizaram suas estratégias de
guerra: assaltos rápidos e de surpresa, as armadilhas e o
não enfrentamento do inimigo cara a cara; por outro lado,
as estratégias de guerra dos índios foram agregadas à ação
dos exércitos convencionais, como por exemplo, a formação
de um grupo de índios flecheiros dentro da formação dos
exércitos convencionais dos batalhões ibéricos, acostumados
a um tipo de guerra com artefatos pesados, incluindo suas
próprias roupas. Os potentados tinham o seu poder social e
econômico medido pela quantidade de flecheiros indígenas à
sua disposição, o que demonstra complexidade no processo
de colonização. Para tanto algumas nações ou tribos indígenas
deveriam estar em campos opostos. Na opinião de Idalina
Pires (1990) não havia unidade entre os indígenas diante do
conquistador branco. Velhas rivalidades tribais foram aliadas
dos conquistadores.
A documentação do Arquivo Histórico Ultramarino
revela que a repressão portuguesa foi violenta e, respaldada
nas recomendações das autoridades reais. Uma Carta Régia
de 1688 ao governador geral do Brasil, Mathias da Cunha,
158
recomenda ao capitão-mor, Manuel de Abreu Soares que
“dirija a entrada e guerra que há de se fazer aos bárbaros como
entender que possa ser mais ofensiva, degolando-os e seguindo-
os até os extinguir”. As atrocidades cometidas por Domingos
Jorge Velho levaram o Bispo de Pernambuco D. Francisco de
Lima a escrever ao Rei denunciando-o como um “dos maiores
selvagens com quem havia topado”.
A documentação da época demonstra também a oscilação
dos monarcas entre recomendar ações repressoras ou não
aprová-las. Todavia os colonos e a administração local estavam
muito distantes da justiça e do Estado lusitano e, na dúvida,
optavam por ações violentas que precediam a realização
dos seus interesses. Os cronistas que escreveram sobre a
aventura da ocupação portuguesa, no nordeste, também
relatam a forma corajosa como parte dos indígenas resistiu
à presença lusa em seus territórios. O quase extermínio dos
caetés, pelos portugueses auxiliados pelos tabajaras, é uma
prova de que aquele grupo nativo jamais se rendeu e nem fez
alianças. Bartira Barbosa (2007:67) chama atenção para o
seguinte fato:
159
Sob o Domínio do Medo
“sobre os nativos caetés, foi encontrada apenas uma
referência na cartografia portuguesa dos séculos XVI e XVII,
o que confirma as informações sobre a agressiva ocupação
portuguesa na capitania de Pernambuco, e comprova o
extermínio deles no litoral, com a ajuda dos tabajaras...”.
Por outro lado, há referências aos caetés na cartografia
francesa do século XVI ao XVIII, incluindo o de Claude
d’Abeville, datado de 1640, indicativo do não extermínio
deste grupo até o século XVIII.
É ainda de Frei Vicente do Salvador27 a informação de que
no século XVI saiu de Pernambuco expedição comandada
por Francisco de Caldas e Gaspar Dias de Ataíde, a qual
entrou muitas léguas pelo Sertão do Rio São Francisco. Eles
tinham o apoio do chefe indígena tabajara, Braço de Peixe;
entretanto, a expedição foi malograda porque os índios
liderados por este chefe se insurgiram contra os portugueses
e, consequentemente contra ele próprio. Outra expedição
dirigida ao Sertão do São Francisco saiu de Pernambuco
27. Frei Vicente do Salvador tomou hábito na Bahia, em1599; foi enviado a Pernambuco
em 1600, daí, foi missionar índios na Paraíba, mais ou menos por volta de 1603.
160
em 1578, comandada por Diogo de Castro, que conhecia a
língua dos índios, considerado um sertanista experimentado,
juntamente com Francisco Barbosa da Silva; constituída por
70 homens, não conseguiu seu intento, que era encontrar ouro
ou pedras preciosas. Nesta expedição, dois índios chamados
Seta e Porquinho ajudaram a carregar mantimentos e
sugeriram vender ao capitão uma aldeia de índios contrários.
Porquinho aconselha ao capitão uma troca desses índios
contrários por ferramentas a serem utilizadas em suas
roças e sementeiras. Nesta expedição os portugueses, com
a ajuda de indígenas, conseguiram escravizar 1500 índios e
trucidar 600, numa ação violenta sob a responsabilidade de
Diogo de Castro. As bandeiras desciam o rio Real e traziam
índios escravizados para Pernambuco com a intermediação
dos mamelucos. Muitas foram realizadas com este objetivo.
A comandada por Francisco de Caldas e Gaspar Dias de
Ataíde dirigiu-se ao Rio São Francisco com muitos soldados e
ajudados por Braço de Peixe, um dos chefes tabajara, mataram
índios e escravizaram os demais (Salvador, op. Cit.: 209).
No século XVII, a crônica será um gênero importante,
juntamente com a correspondência entre as autoridades
162
portuguesas de Lisboa e de além-mar; esta última constitui
atualmente a documentação do Arquivo Histórico
Ultramarino, em Lisboa. Ambas são importantes para se
conhecer sobre a conquista e a ocupação de terras no Brasil.
Pero de Magalhães Gândavo (1995:49) e outros cronistas
vão tratar sobre as terras e as gentes do Brasil dando conta
da presença de populações de diferentes etnias, regidas por
culturas próprias, rivalidades e aproximações. As informações
deste cronista confirmam as de Frei Vicente do Salvador.
Escreveu Gândavo sobre a capitania de Pernambuco:
“esta é uma das melhores terras, e que mais tem realçado
os moradores que em todas as outras capitanias desta
província: os quais foram sempre mui favorecidos e ajudados
pelos índios da terra, de que alcançaram muitos infinitos
escravos com que granjeiam suas fazendas”.
E sobre os índios faz a seguinte descrição:
“Estes índios são de cor baça e cabelo corredio: tem o rosto
amassado e algumas feições dele à maneira dos Chins. Vivem
todos muito descansados sem terem outros pensamentos
senão de comer, beber e matar e por isso engordam muito;
mas com qualquer desgosto pelo conseguinte tornam a
163
Sob o Domínio do Medo
emagrecer. A língua de que usam em toda costa é uma: ainda
que em certos vocábulos difira nalgumas partes: mas não de
maneira que se deixem uns aos outros de entender: e isto até
a altura de vinte e sete graus, que daí por diante há outra
gentilidade de que nós não temos muita notícia, que falam
já outra língua diferente. Esta de que trato que é geral pela
costa é mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns
vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas e outros
que não servem senão para os machos. Carece de três letras.
Não tem nem F nem L nem R, cousa digna de espanto, porque
assim não tem nem Fé, nem Lei, nem Rei”.
Todos os cronistas, escritores/narradores do período
colonial dão testemunho da escravização indígena,
descrevendo, inclusive seus comportamentos como
trabalhadores compulsórios. Gaspar Barlaeus28 quando se
28. Barlaeus, Gaspar. 1584-1648. História dos feitos recentemente praticados durante
oito anos no Brasil. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1980. P.133.
Gaspar van Baerle, latinista, que viveu contemporaneamente a João Mauricio de
Nassau foi incumbido por este para escrever a crônica dos acontecimentos em
Pernambuco, no tempo em que Nassau governou esta Colônia “de maneira imparcial à
luz de documentação fornecida”.
164
refere ao item escravos, durante o período holandês, reporta
o seguinte:
“Dos escravos uns são índios, outros africanos e outros
trazidos do Maranhão. Já antes compraram os portugueses
escravos índios cativados pelos tapuias, ou reduziram à
escravidão, por se terem aliados a nós (os holandeses), os
que abandonaram, na baía da Traição, o Almirante Balduíno
Henrique. Todos foram já libertados. Os maranhenses
comprados como escravos pelos portugueses aos seus
cativadores mantivemo-los no estado servil, por não lhe
devermos nenhum benefício”.
Os nativos habitantes da região do São Francisco foram
descritos, pelo menos no século XVI e XVII, como grupos
indígenas pertencentes a sociedades desorganizadas e
isoladas, o que denota preconceito. Desde muito tempo, esses
grupos haviam se articulado por laços de parentesco, pelas
necessidades de troca, e também por um sistema combinado
de alianças e rivalidades. Este modus vivendi, antes da
chegada dos primeiros europeus, possibilitou a formação de
cadeias de comunicação, de circulação entre elementos de
várias etnias e trocas de alguma produção, seja de produtos
165
Sob o Domínio do Medo
cultiváveis, seja de produtos artesanais. Se observarmos
o mapa etno-histórico de Nimuendaju perceberemos que
etnias indígenas como a kariri, potiguar, tabajara, caeté,
rodela, pankararu e outras, se movimentavam pelo território.
Nessas migrações poderiam ser bem recebidos ou rechaçados
por outros grupos étnicos.
Outro estereótipo construído pelo colonizador é o que
define suas habilidades e aptidões. Nos setecentos, o carimbo
de preguiçosos, traidores, bêbados, indolentes, é conhecido em
todo o território brasileiro da época e aparece explicitamente
na correspondência de alguns administradores para o Reino
e até em alguns cronistas do século XVII e XVIII. Até no
Testamento de Maurício de Nassau aparece o preconceito:
“... não se pode fazer muito fundamento em gente ínfima, pois
um dia dizem a verdade, em outros enganam com muitas
mentiras.”
Há, entretanto, autoridades que divergem. No Arquivo
Público do Estado de Pernambuco, há documentos
produzidos por autoridades luso-brasileiras que desmentem
muitos desses preconceitos sobre os nativos. Leonardo F.
Gominho (1966:87) informa que o Juiz do Julgado do Pajeú,
166
da Comarca de Flores, Francisco Barbosa Nogueira, enviou ao
Governador de Pernambuco muitos ofícios e comunicações
sobre conflitos entre índios e proprietários de terras, naquela
região. Um deles destaca a ação dos irmãos Gomes de Sá,
que desde o final do século XVII perseguiam e exterminavam
índios na região sertaneja e do São Francisco. Mais de cem
anos depois, em 1801, continuavam suas investidas contra
aqueles que ainda sobreviviam. Alexandre Gomes de Sá,
acompanhado de dez homens, embrenhou-se pelas caatingas
caçando índios, sendo morto por eles. Cypriano Gomes de Sá
instigou a Manoel Dias da Silva, comandante das tropas, no
Sertão, a organizar uma bandeira contra o gentio brabo da
Ribeira do Pajeú e Riacho do Navio. Esta autoridade dirigiu-
se ao Governador de Pernambuco em 1801 comunicando
que esses gentios estavam atacando as fazendas da região,
“pondo em fuga os moradores daqueles lugares; que muitos têm
deixado suas fazendas e se acham desertas”. Acusava os índios
de criminosos, ladrões e facínoras, não apenas os índios,
também, os seus diretores. Exigia que aquela autoridade
os castigasse e os prendesse. Na realidade, esses índios
eram as sobras de duas nações Pipipães e Chocós. Viviam
167
Sob o Domínio do Medo
atemorizados, foragidos e embrenhados nas matas do riacho
do Navio, na freguesia de Fazenda Grande, hoje Floresta.
Outro documento da mesma autoridade – o Juiz do
Julgado do Pajeú – Francisco Barbosa Nogueira, enviado ao
Governador de Pernambuco, informa que uma tropa de índios
brabos das nações Umãs e Oés, foi à sua presença, juntamente
com o vigário de Cabrobó, solicitando batismo e aldeamento;
os nativos foram atendidos e encaminhados à aldeia do Brejo
da Gameleira. Talvez, o documento mais contundente, no
qual transparece a situação dos índios, seja a Carta do Juiz do
Julgado do Pajeú respondendo às inquirições do Governador
de Pernambuco. O mesmo deseja saber se as denúncias feitas
pelo Comandante Manoel Dias são verdadeiras sobre atos de
vandalismo praticados pelos índios Pipipan e Chocó da região
e se estão mancomunados com escravos fugidos. Fazendo
um resumo do documento, a resposta do Juiz do Julgado do
Pajeú é a seguinte:
“o requerimento do Comandante Manoel Dias é despido de
verdade. Não me consta que agreguem escravos fugidos nem
criminosos; menos que tenham destruído fazendas, feito fugir
os vaqueiros. Excelentíssimos senhores que antecederam
169
Sob o Domínio do Medo
V. Excelência expediram ordens para Bandeiras por
representações das mesmas causas, que esta está composta,
em virtude delas se tem feito nos índios desumanas matanças
e não conquistas, abusando-se assim das saudáveis ordens
que sabiamente determinavam prenderem índios para se
aldearem. Aqui, temos feito um trabalho de aldeamento e
esses indivíduos os irmãos Gomes de Sá e o Comandante
Manuel Dias têm destruído. Muitas bandeiras tratam de
matar os índios, homens, mulheres, velhos e crianças até de
peito. Depois da Conquista não houve mais resistência às
bandeiras. O que acontece é que os índios quando recebem
informações que vão ser destruídos fogem para os matos,
dispersam-se e desaparecem”.
Um documento datado de 1761, no Arquivo Histórico
Ultramarino, comprova a subordinação dos índios e o
controle das comunicações e relações entre índios de aldeias
separadas. A presença de líderes indígenas como Antonio
Preto e Manuel Pianguy era considerada ameaçadora, porque
estes índios tinham muitos seguidores. Ambos foram presos
sem culpa formada. As ordens eram destinadas a conciliar os
índios bravios ao grêmio da Igreja e aldear os índios reduzidos
170
e remeter os criminosos à prisão; organizar as 12 malocas
que se tornariam as aldeias do São Francisco para melhor
instruírem-se e civilizarem-se.
Outro documento do Arquivo Público de Pernambuco
noticia que uma força policial entrara na aldeia de Nossa
Senhora das Montanhas, cujos missionários eram da
congregação de São Felipe Neri. Os índios Paraquiós e Pipipães
não ofereceram resistência, mas se refugiaram nos matos. As
tropas fizeram uma varredura e, encontrando os fugitivos,
tentaram uma conciliação, mas os índios não cederam
separar-se do ‘corso’29 a que estavam habituados. O combate
cessou a partir de prisões e mortes. O que restou dessa
população foi transferido para a ilha do Rio São Francisco,
depois denominada povoação de Belém.
Além dos conflitos entre índios e colonos e autoridades
locais de Pernambuco, pode-se observar dissensões entre
as autoridades acerca do estabelecimento dos índios. O
29. Corso, nesse contexto, significa modo de vida errante, isto é, os índios não se
comprometiam em ficar reduzidos a um aldeamento dirigido por religiosos ou por
autoridades civis ou militares.
171
Sob o Domínio do Medo
governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva30,
por ofício, dirigiu-se ao Secretário de Estado da Marinha e
Ultramar confirmando sobre a devassa que abriu contra o
ouvidor de Pernambuco, Bernardo Coelho da Gama, que em
aliança com o ouvidor da Paraíba, perseguia os índios que
estavam estabelecidos em determinado local.
As ‘Guerras Justas’ possibilitaram aos colonos a utilização
do indígena como mão de obra servil. Embora a contribuição
indígena, dentro dessa relação escravista, tenha sido limitada,
foi de fundamental importância, para os luso-brasileiros, o
desalojamento dessa população, primeiro para a implantação
dos engenhos de açúcar, rapadura e aguardente, e depois para
as fazendas de gado. Empurrando os nativos para o interior
ou mudando suas aldeias para regiões menos férteis ou na
proximidade de tribos rivais, os campos seriam ocupados
com o gado e se evitaria a caça nas fazendas dos colonos.
Esses conflitos com os indígenas pela posse da terra
modificaram as relações de trabalho nessa região, e pouco
a pouco, em número limitado, comparado ao litoral, a
30. Governou Pernambuco de 16 de fevereiro de 1756 a 08 de setembro de 1763.
172
escravidão de origem africana compôs a paisagem do
Sertão. A necessidade de novos braços, seja para a lavoura
de subsistência, seja para a do algodão, ou para a cultura da
cana de açúcar (matéria prima para o fabrico da rapadura e
aguardente ou mesmo para a atividade da pecuária), levou o
colono a buscar um plantel de escravos negros de acordo com
sua riqueza; desse modo, complementava a mão de obra de
origem indígena ou mesmo familiar.
As investidas dos portugueses no sentido de ampliar os
domínios da capitania de Pernambuco na região do médio
São Francisco chocavam-se com o poderio da Casa da Torre.
As vilas, que hoje são conhecidas como Floresta, Itacuruba,
Belém de São Francisco e Cabrobó, que atualmente pertencem
a Pernambuco, estavam integradas aos domínios da família
Ávila, da Casa da Torre. Esta sesmaria abrangia tanto a
margem direita do Rio São Francisco quanto a esquerda.
A distribuição de terras aos colonos através das sesmarias
foi uma ação eficaz na redução dos espaços dos índios.
No registro de terras de Pernambuco, entre 1858 a 1861,
podemos verificar o alto número de registros de posse de
terras, legalizadas através do Estado em antigos territórios
173
Sob o Domínio do Medo
ou lugares dos índios. Por exemplo, das dezessete solicitações
de posse de terras, dez faziam fronteira ao Sul com a serra
do Umã, e sete faziam fronteira com a serra do Arapuá, o
que significa que os índios ficaram confinados às missões
na serra do Arapuá e na do Umã, cercados e sem mobilidade
para o corso.
A presença holandesa em Pernambuco foi responsável
por algumas mudanças nas relações dos índios com os
diferentes colonizadores; desejosos de informações sobre o
país, as gentes e as riquezas, os holandeses vão atrair alguns
caciques de algumas tribos prometendo-lhes mais respeito
nas relações, comparando-as com as que haviam sido
experimentadas com os portugueses. O modelo de cooptação
dos índios não difere muito em suas finalidades: manter
a ocupação, ter um exército na retaguarda de soldados
treinados e eficientes na arte da guerra, manter uma mão
de obra que lhe possa garantir o conhecimento da terra, das
gentes e das possibilidades de exploração. Mesmo no pouco
tempo em que os holandeses estiveram nesses domínios,
houve também tentativas de cooptá-los pela religião, pela
missionação protestante. Talvez o diferencial seja na forma
174
de fazê-lo, mas não com menos crueldade e menos engodo.
A invasão holandesa determinou o adentramento de
proprietários portugueses e seus descendentes, os quais
procuraram locais mais seguros para iniciar uma nova
atividade – fazendas de gado – e passaram a ter relações
comerciais com Salvador, como capital do domínio da União
Ibérica. Nesta nova atividade, os índios, já submetidos ao
domínio português, foram a mão de obra mais eficiente, como
tangedores do gado e conhecedores de caminhos e atalhos
por onde as boiadas deveriam seguir para Salvador ou Recife
ou para a região das minas; as mulheres indígenas serviram
nas fazendas como mão de obra básica de uma agricultura
de subsistência, da cultura do algodão, como produtoras de
redes e panos grossos nos teares e, geralmente, como mães de
uma nova geração de mestiços. O Rio São Francisco passou a
ser o limite entre os dois territórios, o holandês e o ibérico,
e entre atividades econômicas diferenciadas: a agricultura
canavieira e a atividade criatória, conforme oficializou a
Coroa portuguesa em Carta Régia de 1701. O mapa mural
Brasília qua parte paret Belgis, atribuído a Georg Marcgraf,
documenta os pontos conquistados pelos holandeses nas
175
Sob o Domínio do Medo
capitanias do Nordeste do Brasil, aldeias indígenas, missões
em aldeias indígenas, engenhos, salinas, fazendas de gado,
vilas e povoações, confirmando, desse modo, a presença das
duas colonizações.
A Carta sugere a extensão do plantio da cana de açúcar
nessa região, o que se traduz na presença desta cultura
principalmente para o fabrico de rapadura e aguardente,
conforme mencionou-se anteriormente. Contudo, todas
as povoações da região sertaneja tiveram suas origens nas
fazendas de gado, comercializando animais (gado vacum,
cavalar e cabrum) ou produzindo carnes e couros para outras
regiões. A cana de açúcar se desenvolveu aí como atividade
econômica complementar, produzindo aguardente e
rapadura. A cultura do algodão logo se expandiu, a princípio
como matéria prima para a fabricação de pano grosso e,
depois, no século XIX, como matéria prima valorizada pelo
mercado externo.
A atividade agrícola encontraria no algodão, planta nativa,
a sua maior vocação. Em fins do século XVIII e começo do
século XIX, esta atividade torna-se rentável em virtude da
Revolução Industrial e da Independência dos Estados Unidos
176
terem estimulado o mercado. Pecuária e algodão, os dois
esteios da economia do sertão, desenvolveram-se articulados
tanto com as regiões exportadoras do açúcar e tabaco quanto
com a atividade aurífera e a indústria do charque, no Piauí.
Esta articulação com o Piauí foi feita a partir de expedições
e viagens exploratórias, que visavam desalojar os franceses
do Maranhão, e terminou por estabelecer quatro vias de
comunicação; uma com o Maranhão, outra com o Ceará,
através da Serra do Ibiapava, e duas outras com a Bahia. Um
caminho alcançava o Rio São Francisco na altura da Fazenda
Sobrado, cujo proprietário era Domingos Afonso Mafrense
Sertão, e o segundo caminho foi aberto na cabeceira do Rio
Canindé. Conforme informações do Padre Miguel Carvalho,
nenhum caminho chegou ao Rio São Francisco utilizando
o rio Gurgueia. Estes roteiros foram, provavelmente, os
caminhos antigos de índios para suas intercomunicações e,
também, para suas marchas de guerra. Quase todos seguiam
a direção do interior para o mar.
No fim do século XVII, os conquistadores, que eram
um conglomerado de guerreiros e viviam em arraiais, vão
se transmudar em curraleiros. Adaptar-se-ão às novas
Aldeias indígenas: 1. São João, 2. Nova, 3. Pousjeneq, 4. Nassau, 5.São Miguel,
Mapa feito por Johan Vingboons Ca. 1660 com as principais vilas e aldeias com missão.Fonte IAHGPE(Barbosa, 2007:169).
6. Tapisserama, 7. Tapisserica, 8. Cavallos, 9. Maurítia, 10. Tapoa,
11. Goregae, 12. Carece,13. Masiopebú, 14. Pontal, 15. Ortagny,
16. Mopabú, 17. Tapeupó, 18. Taypówaypó
179
Sob o Domínio do Medo
contingências tendo o gado como móvel da nova era. Se por
um lado os conquistadores vão anexando mais terras aos
seus domínios e ocupando-os com o gado, por outro, dar-
se-á o despovoamento com o aniquilamento ou expulsão
de milhares de indivíduos que povoavam essas terras. É
a substituição das gentes pelo gado. Longe dos centros
comerciais, as propriedades que vão surgir nessa região são
conhecidas como fazendas mistas, autossustentáveis, nas
quais conviviam atividades ligadas ao gado, à agricultura
de subsistência, às casas de farinha, ao tear, para fiar panos
grossos e outras produções artesanais. Todas essas atividades,
fundamentais aos núcleos de população, dependiam da mão
de obra indígena e de um Senhor, que já carregava o poder
da conquista, demonstrado na violência da guerra contra os
índios.
181
Missões, Aldeias e Currais
No século XVI, o projeto missionário para o Brasil passava
a fazer parte da política da Coroa portuguesa, atendendo
assim aos objetivos de ampliação dos domínios da monarquia
e da igreja católica. Desde o início, este projeto esteve
praticamente sob a responsabilidade dos jesuítas, cujo
intento era oferecer uma constituição teocrática aos povos
indígenas, e nesta carta se colocavam contrários à escravidão
dos nativos (Oliveira Martins, 1978 p.26). Projeto político-
religioso com fins econômicos, parece ter sido executado
por etapas. A fase inicial foi marcada por ações de contatos
com povos da costa, para a instalação das obras religiosas
missionárias, resultando, para os nativos aliados, o batismo
e a catequese nas aldeias. A Igreja, através deste projeto
missionário, participava da luta para implantação de uma
nova sociedade na colônia, defendendo o território colonial
português e mitigando a resistência dos nativos ao invasor.
Nesta fase, os grupos indígenas vencidos migravam para o
interior, numa tentativa de sobrevivência, que nem sempre
182
era exitosa. Lá, no interior, outros grupos podiam lhes
oferecer resistência.
O contato dos brancos com os índios deu-se numa relação
a princípio de escambo, de trocas, na qual ainda não havia lugar
para o julgamento dos costumes dos nativos. À proporção que
essas relações foram se dando no mesmo território, ocupado
por brancos e índios, de culturas diferentes, os colonizadores
quiseram obrigar aos nativos um raciocínio análogo ao seu,
sem, contudo, nenhuma explicação convincente. Nem
os brancos explicitaram suas condutas, nem os índios
entendiam o que deveriam fazer. Rousseau fundamenta
Tzvetan Todorov (1993:30) quando afirma “o universal é o
horizonte de entendimento entre dois particulares”. Além do
etnocentrismo, defendido pelos portugueses, que deduz o
universal apenas a um particular, preconceito instalado no
raciocínio dos brancos em relação à sua superioridade diante
dos nativos, havia a incomunicabilidade linguística.
Índios e colonizadores tiveram línguas e costumes
como barreira e, ambos os lados, careciam de diálogo
nas negociações políticas. Na realidade, foram duas ou
mais culturas particulares que se encontraram, mas não
183
Missões, Aldeias e Currais
dialogaram, não atingiram o universal, não conseguiram o
entendimento. A guerra funcionou como linguagem mais
rápida e eficaz para incutir o medo e a dominação; portanto,
esta solução foi recorrente, entre outras possibilidades,
principalmente no enfrentamento à rebeldia indígena.
A favor dos colonizadores, a bula Inter Coetera de 1493,
legitima a conquista, o povoamento e a evangelização31 aos
soberanos de Portugal e Castela. Esta bula trata também do
direito do padroado e da política de ampliação dos domínios
da Igreja Católica Apostólica Romana, já definida para a costa
da África, exploração iniciada pelos portugueses desde o início
do século XV, com suas ações missionárias (Barbosa, 2007:
117). No século XVI, D. João II, usando a igreja como veiculo
de seu governo, confirma o poder dado aos representantes
católicos que chegam ao Brasil, como consta no Regimento
de Thomé de Souza de 1548:
“Porque a principal cousa que moveo a mandar povoar as
ditas terras do Brasil foi pêra que a gente dela se convertese a
31. Ver Charles Boxer. O Império Marítimo Português 1415-1825. Rio de Janeiro,
Edições 70, 1969.
184
nossa santa fee católica ... e pêra eles mais folgarem de ho ser
(Cristãos) tratem bem todos os que forem de paz.” 32
Os jesuítas33 não foram os primeiros religiosos a pisarem
na Terra de Santa Cruz nas expedições do início do século XVI.
No entanto, foram escolhidos pelo rei de Portugal para iniciar
a conversão dos indígenas. Uma ação missionária construída
desde o século XVI, com ajuda de estudos das línguas e
dialetos indígenas, foi desenvolvida para a catequização dos
nativos. Alguns jesuítas se destacaram no século XVII com
textos escritos voltados para catequese indígena e para a
utilização dos serviços indígenas. Padre Antônio Vieira, com
seu texto “Relatos de Visitas”, produzido entre 1658 a 1661 e
Alonso de La Peña Montenegro, que no ano de 1668 publicou
em Quito seu livro Itinerário para Párocos de Índios, são duas
provas documentais sobre o pensamento e as ações religiosas
32. Regimento de Tomé de Souza, datado de 1548, citado e analisado in Georg Thomas,
Política indigenista dos Portugueses no Brasil 1500-1640, São Paulo, edições Loyola,
1982, p.59-17.
33. A Companhia de Jesus, reconhecida em 1538 pelo Papa, não atingia mil membros.
Seu fundador, Ignácio de Loyola, ainda vivia e as Constituições da ordem estavam
ainda em vias de redação. Sua dimensão missionária original é ainda pouco nítida.
185
Missões, Aldeias e Currais
tidas como modelo para a catequização e o aproveitamento
do braço nativo (Barros e Fonseca, 2010: 660-662).
Dentro desta lógica, e, ao perceber a resistência indígena
caeté, Duarte Coelho procura receber jesuítas e outros
missionários no intuito de conseguir transformar as terras
da sua capitania em um lugar seguro. O modo de dominar
os índios para o projeto colonial dos portugueses não diferia
muito do que pensavam os jesuítas. Nóbrega e Anchieta,
os fundadores das missões no Brasil, cooperavam com os
capitães nas guerras contra os indígenas e defendiam como
estratégia o seguinte: “os índios mais por medo que por amor se
hão de remir”. Citado por (Martins,1978:31)
No mapa de Luís Teixeira,34 impresso na segunda metade
do século XVI, pode ser visto o convento dos jesuítas, o dos
Franciscanos, e o de São Bento na vila de Olinda.
34. Luís Teixeira foi cartógrafo da Coroa portuguesa, tendo colaborado com Abraham
Ortelius no Theatrum Orbis Terrarum. Pertenceu a uma família de cartógrafos,
incluindo o seu pai Pero Fernandes, seu irmão Domingos Teixeira e seus filhos Joao
Teixeira Albernaz, o Velho, e Pedro Teixeira Albernaz. A atividade desta familia de
cartógrafos se estendeu do século XVI até ao fim do século XVIII.
186
Em uma segunda fase, as lutas continuaram; para vencer
os nativos, hostis à instalação de portos, de vilas, de engenhos
e de ordens religiosas, uma população colonial ainda rala,
mas armada, respondia aos ataques com apoio de tropas
indígenas aliadas; assim, pouco a pouco, o controle de alguns
pontos da costa ao norte do Rio São Francisco até os limites
com o canal de Santa Cruz em Itamaracá, passou às mãos dos
conquistadores.
Em 1598, com o fim das campanhas de conquista, no
litoral, travadas pelas lideranças luso-pernambucanas até
o Rio Grande do Norte, alguns chefes da etnia potiguar
aceitaram fazer aliança com os portugueses em troca da paz.
Aliança que levava às guerras contra índios rebeldes. Os
potiguares, que viviam pelo litoral do Rio Grande do Norte até
o rio Capibaribe Mirim, na capitania da Paraíba, se dividiram,
uma parte das comunidades foi deslocada para Pernambuco
para fazer a defesa das fronteiras portuguesas, como foi o
caso da população aldeada por jesuítas, na missão de São
Miguel, onde nasceu o líder potiguar Filipe Camarão. Nesta
fase ainda, foram fundados engenhos de cana de açúcar
na Paraíba e no Rio Grande do Norte, em terras dos índios
187
Missões, Aldeias e Currais
potiguar.
Paralelo às guerras de conquista, que desbarataram
o poder dos nativos caeté, tabajara e potiguar nas duas
primeiras etapas, houve a necessidade de se manter o controle
e as alianças conseguidas através de patentes distribuídas
aos líderes nativos durante o século XVII. Afora os caetés,
condenados à escravidão perpétua, desde o século XVI, foram
agraciados com patentes burocráticas e militares, antes
estendidas apenas para portugueses ou luso-brasileiros, os
principais líderes aliados das nações tabajara e potiguar, para
a manutenção do sistema de ocupação colonial, mesmo que
indígenas dessas nações vivessem nas missões sob regime de
servidão.
Nesta segunda fase aparecem documentos escritos,
voltados para uma elite indígena, o que diferenciava da fase
inicial da colonização. Produziu-se apenas documentação
oficial entre os altos escalões administrativos governamentais
e entre os religiosos, seus superiores e a Corte, para informar
e regulamentar as políticas coloniais. Resulta destas duas
fases que todos os grupos indígenas do litoral tiveram, de
fato, seus territórios ou grande parte deles incorporados às
188
novas demarcações normatizadas com o estabelecimento
das capitanias hereditárias. Na capitania Nova Lusitânia,
depois chamada Pernambuco, fronteiras e limites ficaram
controlados por acordos e alianças com as populações das
missões, responsáveis em deter os ataques contra os núcleos
coloniais. Manter esses limites ou expandir as fronteiras
estava atrelado aos resultados das missões e da continuação
das alianças de Duarte Coelho e Jerônimo de Albuquerque
com os caciques de aldeias potiguar e tabajara instaladas
em uma área rica em solo fértil, necessário às plantações
de cana de açúcar. Para os índios aliados chegavam parcos
‘afagos’ da colonização. Os líderes das populações nativas
aliadas e catequizadas por missionários foram agraciados
com patentes de capitão e sargento, com pagamentos,
quando comprovados seus serviços; as patentes podiam ser
hereditárias e diferenciavam os líderes dos demais índios da
mesma missão; estes estavam forçados aos serviços coloniais
ou aos serviços da guerra.
Devido aos constantes ataques dos caetés à vila de Igarassu,
durante o século XVI, dois representantes da Companhia de
Jesus, os padres Manoel da Nóbrega e Antônio Pires, foram
189
Missões, Aldeias e Currais
recebidos em Olinda, em 1551, com a missão de implantar o
primeiro colégio e iniciar obras de catequese com os índios.
Manoel da Nóbrega, jesuíta e superior da primeira missão em
Pernambuco, realiza poucos trabalhos junto às populações
nativas; visita apenas quatro áreas indígenas das quais não
se tem o nome. Em sua carta a Dom João III, datada de 14
de setembro de 1551, Nóbrega (1988) se coloca contrário ao
donatário dizendo ao rei: “... é já velho e falta-lhe muito para o
bom regimento da justiça, e por isso a jurisdição de toda a costa
devia ser de V. A.”. As atividades do Real Colégio dos jesuítas
em Olinda, construído parcialmente com subsídios da Coroa
e com o açúcar comercializado pelos jesuítas, só tiveram
início no ano de 1568, como escola elementar.
A missão de converter os nativos revela-se difícil pelas
diferenças culturais e adaptação mútua dos grupos em
questão: colonos, missionários e indígenas. Os nativos da
costa com quem tiveram contatos iniciais foram os que
primeiramente serviram de cobaias para as experiências
de trocas e escambo, de catequese, de trabalho forçado
nas lavouras de cana. A conversão do nativo, cujo lema era
promover mudanças na vida indígena, implicava ao mesmo
190
tempo em ensinar aos nativos os elementos essenciais do
cristianismo e fazê-los abandonarem seus costumes ditos
selvagens, como para melhor servirem à colonização35. Ainda
como resultado das duas fases do projeto missioneiro, grupos
indígenas de Pernambuco e da Bahia teriam migrado para o
Maranhão e o Pará entre 1560 e 1580 quando da ocupação
portuguesa das capitanias no nordeste. (Barros apud
Fernandes, 1963: 47).
A organização das missões religiosas teve nessa segunda
fase a inclusão da produção de textos para a catequese
em línguas nativas e de textos para a administração das
populações indígenas aldeadas. Chegaram nesse período, ao
Brasil, missionários de outras ordens religiosas. As reduções
se multiplicaram no final do século XVI e meados do XVII,
ao longo da costa com a presença de padres, de tropas reais e
tropas nativas apoiadas por lideranças indígenas cooptadas
nas aldeias.
O controle das populações nativas, através do trabalho de
35. Charlote de Castelnau-L’Estoile. Les Ouvriers d’une Vigne Steérile. Les Jésuites et la
conversion des indiens au Brésil. 1580 – 1620. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa-
Paris, 2000. p3.
191
Missões, Aldeias e Currais
catequização, continuava com as máximas de fazer os nativos
decorarem os textos das missas em latim e do fornecimento
de indígenas para o trabalho obrigatório em obras do governo
da Capitania ou em terras de colonos. A distribuição do
braço nativo, por via de reduções para servir às atividades
coloniais, era o resultado esperado pela Coroa em nome da
fé e da “civilização dos selvagens”. Portanto, nesta segunda
fase, as reduções se espalham pelo litoral Norte e Sul a partir
de Salvador da Bahia e de Olinda, também para regiões
interioranas como a da Zona da Mata de Pernambuco. Missões
sempre construídas em lugares estratégicos, escolhidos após
incursões que visavam o reconhecimento físico e humano
da região para instalação da população indígena aliada ou
vencida.
Este foi o caso da missão jesuíta na aldeia de São Miguel,
localizada na ribeira do Muçuí, onde nasceu o líder potiguar
Filipe Camarão, hoje município de Pau d’Alho. Aldeia
organizada após aliança entre o chefe potiguar conhecido
por Camarão, o Velho, e o donatário de Pernambuco em fins
do século XVI. Foi também o caso da aldeia de Meretibe em
Pernambuco, para onde chegou o padre Manoel de Morais
no ano de 1629. Portanto, o registro sobre as populações das
192
aldeias nesta segunda fase passou a ser de extrema importância
para o controle do trabalho nativo, mas, sobretudo, para o
recrutamento de guerreiros que engrossavam as tropas
dos terços indígenas para as guerras contra holandeses e
franceses, ocorridas no Norte e no Nordeste do Brasil.
O mapa publicado por Serafim Leite referente às missões
jesuíticas desenvolvidas nos séculos XVI e XVII mostra bem a
expansão das áreas das missões jesuíticas no litoral do Brasil
e o acompanhamento delas seguindo conquistas no sentido
norte e sul, mas também algumas para o oeste (Leite, 1953).
Pereira da Costa afirma que na capitania de Pernambuco
existiam, em 1630, onze missões de diferentes ordens, todas
próximas ao litoral. Na região denominada Zona da Mata
havia, segundo ele, as missões de São Miguel de Iguna, Caeté
ou Nossa Senhora de Ipojuca, Moçuigh, São Miguel em Pau
d’Alho onde habitaram o chefe Poti e Antônio Filipe Camarão
(Costa, op. cit. Vol.2:77). Após 1630, com a invasão dos
holandeses em Pernambuco, os aldeamentos com missões
sofreram muitos ataques, chegando alguns a desaparecer
pelo abandono da sua gente que migrava para o Maranhão,
Ceará, Piauí e Pará. A partir de 1635, no período considerado
193
Missões, Aldeias e Currais
‘de paz’, durante a dominação holandesa na Capitania, os
antigos núcleos missionários foram reorganizados e noutros
foram estabelecidos padres holandeses para instruírem os
nativos na religião reformada e garantir-lhes os foros de
cidadãos livres (Costa, op.cit.).
Os franciscanos, que já no ano de 1585 tinham fundado
um convento em Olinda com seminário para a educação dos
filhos de índios convertidos, passaram ao serviço das missões
no Brasil, tendo já organizado em 1588 três grandes aldeias
situadas em Itamaracá, Itapissuma e Pontas de Pedras no
litoral de Pernambuco. Suas obras continuavam a crescer,
atingindo, em 1619, o número de quinze reduções, ficando
nove situadas na Paraíba e seis em Pernambuco (Costa,
op.cit). Também os religiosos oratorianos e capuchinhos
estabeleceram-se no Brasil durante o século XVII. A chegada
dos capuchinhos é comentada por Eduardo Hoornaert:
“A chegada deles não estava ligada a percursos coloniais
portugueses. Os primeiros que chegaram no Maranhão,
eram quatro franceses ligados à tentativa francesa de
colonizar o Maranhão: dois entre eles se tornaram famosos
pelos seus escritos de grande valor cultural: Yves d’Everux e
194
Claude d’Abeville, [....] Estes primeiros missionários haviam
chegado em 1612, e em 1614 chegaram mais dez; todos
foram expulsos em 1617 com a derrota dos franceses no
Maranhão.” (Hoornaert, 1982: 63-64)
Nesse período, as informações compiladas pelos
missionários jesuítas procuravam registrar as diferentes
populações nativas; ressaltamos as fornecidas pelo padre
Manuel de Morais publicadas em livro do século XVII
“Historia ou Annaes dos feitos da Companhia Privilegiada das
Indias Occidentaes, desde o seu começo até ao fim”, (Johannes de
Leat, 1909). Entre as informações dadas por este missionário
constam nomes de líderes indígenas e número de guerreiros,
por aldeias localizadas por ele na capitania de Pernambuco e
suas anexas até a do Rio Grande do Norte. Todas elas, aldeias
de nativos falantes do tupi, com população caeté, potiguar e
tabajara.
Na Tabela seguinte, seguem dados do padre Manuel de
Morais, publicada por Laet, quando ele teria se entregado ao
Coronel Areiszewsky, em 1635, tornando-se informante/
aliado dos holandeses. As informações dele diferem das
informações do mapa publicado no Atlas de Johan Vingboons
195
0 1 . Pe r n a m b u c o
Aldeia Padre Chefe Indígena Tribo População geral e de guerreiros
São Miguel, Muçuí ou Mocnigh
Manuel de Morais
Antonio Filipe Camarão e Estevão ou
Tebu
Potiguar e Tabajara
600 habitantes170 guerreiros
Aldeia Velha, também chamada
Caeté ou N. S. Ipojuca
Jerônimo ou Jerona e Toupinambouto ou
Serenibe
Caeté 1100 habitantes400 guerreiros
São Miguel de Iguna
Manuel (Manu) e João (Jani)
Potiguar e Tabajara
600 habitantes200 guerreiros
Segu
ndo
o P
. Man
uel
de M
orai
s (L
aet)
Segu
ndo
o A
tlas
de Jo
han
Vin
gboo
ns
Ca. 1
660
TOTAL 03 aldeias 2300 habitantes770 guerreiros
Aldeia Meritibe
São João
Nova
Pousjeneq
Nassau
São Miguel
Manuel de Morais
196
São João de Carrese
Guatasar de Souza 600 habitantes200 guerreiros
Santo André de Itapecerica
Joressi e Melchior Taiasica
1200 a 1300 habitantes500 guerreiros
Tabuçurana ou N. S. Assunção
Marco ou Maru Kuyasana
600 habitantes150 guerreiros
Segu
ndo
o P
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uel
de M
orai
s (L
aet)
Segu
ndo
o A
tlas
de
Joha
n Vin
gboo
ns
Ca. 1
660
TOTAL 03 aldeias 2500 habitantes850 guerreiros
Tapisserica
Cavalos ou Goiana
Mauritia
0 2 . I t a m a r a c á
Aldeia Padre Chefe Indígena Tribo População geral e de guerreiros
04 chefes
197
Jaraguaçu ou Eguararaca
Francisco Araduti
Jacknigh(São Miguel do
Urutagui)
João Javarati (ou Simão Soares, Jaguarari tio de
Filipe Camarão)
Iapuã ou Iguapuã no
Pontal
Francisco Cavaraia
Francisco Gopeka
Índio Diogo Botelho
Manibassu
Engenho Valadares
Segu
ndo
o P
. Man
uel d
e M
orai
s (L
aet)
Segu
ndo
o A
tlas
de
Joha
n Vin
gboo
ns
Ca. 1
660
TOTAL 06 aldeias
Tapoa
Goregae
Carece
0 3 . Pa r a í b a
Aldeia Padre Chefe Indígena Tribo Observação
06 chefes
Potiguar
Tapoa ou Urecutuva
Inicoça ou Jaocoça
Pindaúna
198
Ca. 1660.Ao lado das informações dadas pelos religiosos,
militares e indígenas, foi possível também a construção de
mapas sobre os diferentes núcleos populacionais existentes
nesta fase; como os especializados por temas, produzidos
pelos irmãos Vingboons para o Atlas sobre os domínios da
Companhia das Índias Ocidentais no Brasil.
Rigorosamente planejado, o trabalho nas missões
dependia da forma de organização das populações reunidas
nas unidades urbano-rurais de área de trinta a quarenta
léguas em quadra ou em círculo. Os diferentes resultados da
produção agrícola dessas áreas variavam segundo o número
de habitantes e qualidade das terras. Em geral se buscava
terras férteis para a produção da agricultura de subsistência
e criação de gado. Uma agricultura com base na mandioca,
no algodão e hortaliças cultivadas com o uso de ferramentas
vindas da Europa. Controladas pelas autoridades, registradas
nos livros de batismo, casamento e óbito, as populações das
missões no Nordeste do Brasil foram sendo reduzidas, tanto
no sentido físico quanto no que diz respeito às suas terras, do
litoral ao Sertão.
Neste processo, as missões instauradas na capitania de
199
Missões, Aldeias e Currais
Pernambuco e suas anexas passam para a terceira fase que
ocorre com os adentramentos das bandeiras, doações de
sesmarias e implantação de fazendas de gado nos sertões.
Neste terceiro movimento, missões católicas surgem às
margens do Rio São Francisco, no trecho entre Petrolina e
Paulo Afonso, pelos mesmos motivos que as surgidas nas
fases anteriores. O trabalho missionário pelos sertões
nordestinos foi iniciado pelos jesuítas pelo Rio São Francisco,
a partir de Penedo e, seguindo o rio na direção do interior, foi
instalada a Missão de Porto Real do Colégio e, distando dela
02 léguas, a de São Brás. Por outras vias fluviais como a do
rio Ipojuca e a do rio Capibaribe também se deram entradas
seguidas por religiosos.
As Missões religiosas do vale do Rio São Francisco
faziam parte da Província de Santo Antonio do Brasil, cujas
instalações datam da segunda metade do século XVII, e as
disposições regulamentais aparecem no Alvará de 1700,
assinado por D. Pedro II, Rei de Portugal. Na região foram
assentadas as seguintes missões no início da colonização:
Juazeiro, Rodelas, Pambu, Aracapá, Coripós, Zorobabel,
Unhum, Pontal e Pajeú, localizadas nas ilhas fluviais, onde
200
anteriormente estavam instaladas aldeias de indígenas,
sedentários, dedicados à agricultura. O serviço de catequese
dos índios se iniciou no século XVI e os missionários deram
preferência às populações que habitavam as ilhas e terras
ribeirinhas do São Francisco: em Penedo, a primeira ação
seguiu pelas ilhas do baixo São Francisco, depois pelo médio,
nas Ilhas do Pontal, meia légua abaixo do limite ocidental
do hoje município de Petrolina; Pequena, Missão Caraputé,
Inhanhum, Missão Velha, Marrecas, Ilha Grande, Santa
Maria, São Félix, Itapirá, Aracapá, Várzea e São Miguel – todas
elas serviam para a agricultura e para a criação de gado.
Dezessete anos depois da expulsão dos holandeses, já
se registra a presença de capuchinhos franceses, graças a
Relação Sucinta e Sincera do Padre Martinho de Nantes Entre os
Índios chamados Carirís.36 A missão se realizou entre 1671 e
1688. O roteiro de sua viagem, do porto do Recife até o São
36. O padre Martinho de Nantes chega a esta região como missionário e deixou
importantes informações sobre a vida dos índios e a situação deles em relação aos
colonos e à política indigenista do governo português. Há na Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro um exemplar de primeira edição desta obra. O pesquisador Frederico
Edelweiss publicou uma edição fac-similar, na Bahia em 1953.
201
Missões, Aldeias e Currais
Francisco, atravessou uma região montanhosa, na qual se
instalara a missão dirigida por outro capuchinho, o padre
Anastácio. Alcançaram Rodelas, onde havia outra missão
dirigida pelo padre Domfront; continuaram até a aldeia de
Pambu. Para se avaliar as distâncias, segundo Martinho de
Nantes, o padre Domfront, para celebrar missas em outras
aldeias, percorria distâncias de 100 léguas: de dez em dez
léguas, celebrava uma missa.
Um mapa geral do médio São Francisco, com os diferentes
grupos indígenas e as missões, nos dá uma primeira impressão
da dimensão do problema assumido pelas ordens religiosas
nos sertões, no século XVII (Barbosa, 1991).
Missões Jesuítas, Franciscanas, Capuchinhas e Oratorianas
Assim como no litoral, a colonização do sertão também se
fez com a ação evangelizadora dos missionários jesuítas,
franciscanos, capuchinhos e oratorianos. Trabalharam em
missões pelo sertão do médio São Francisco os jesuítas,
202
padre Jacob Roland, nascido em Amsterdam e padre João
de Barros, português, fundadores da missão de Santa Teresa
dos Quiriris (Kariri), em Canabrava em 166737. Ao padre
João de Barros pertence o primeiro trabalho linguístico sobre
as línguas kariri, oacaze e procaze, mais tarde aproveitado
pelo padre Mamiani, jesuíta italiano que redigiu o melhor
catecismo em língua kariri (Hoornaert, op. cit.: 72 e 73) de
título: “Catecismo da Doutrina Cristã na Língua Brasileira da
Nação Quiriri, composto pelo padre Luiz Vicencio Mamiani da
Companhia de Jesus, Missionário da Província do Brasil, Lisboa,
1698”.
Contra o poderio da família Garcia d’Ávila, senhora de
quase todas aquelas terras no médio São Francisco, colocaram-
se os jesuítas da missão Cana Brava. Os missionários:
padre Jacob Rolando, padre João de Barros e o padre jesuíta
Jacob Clê, de outra missão cujo nome não se encontra nos
registros, apenas sabe-se que distava desta última, duas
léguas, e que foram envolvidos na luta pelas terras indígenas
37. Lima Sobrinho, Barbosa. Comentando o livro de Pe. Martin de Nantes, “Relação de
uma Missão no Rio São Francisco”. p. 117.
203
Missões, Aldeias e Currais
das missões. Também entraram em confronto com os donos
da Casa da Torre, os capuchinhos, padre Martinho de Nantes
e o padre Anastácio d’Audierne, pela maneira violenta com
que os fazendeiros agiam nesta região envolvendo nativos e
missionários (Puntoni, 2002:49-87).
Foi a partir de 1646 que chegaram capuchinhos em
Pernambuco, desviados da rota para a África. Estabeleceram-
se inicialmente em Olinda (1649) e posteriormente no
Recife (1656) e Rio de Janeiro (1653). Segundo Frei Venâncio
Willeke as missões eram fundadas nas aldeias que melhor
correspondiam às expectativas da conversão, tendo como
rito a construção do “calvário” à entrada das aldeias, que
consistia em um ou três cruzeiros. Mesmo assim, não foi fácil
para os religiosos conseguirem a confiança dos nativos. Em
muitos casos, os missionários deveriam provar de coragem
e destemor em relação aos poderosos das aldeias, como o
pajé, detentor do poder espiritual, e por isso o maior rival dos
missionários (Willeke,1974: 16). O medo do enfrentamento
do outro passava pelo sentimento do descohecido. Ser
um pajé, um curandeiro, um feiticeiro ou um missionário
significava ser ouvido, liderar, orientar decisões quanto a
204
problemas que surgiam dentro ou fora do grupo. O diálogo
entre lideranças de diferentes culturas se tornava difícil
diante de tamanho estranhamento e falta de tradução dos
comportamentos culturais. Pelos relatos de Martinho de
Nantes, havia preconceiro de ambas as partes. O fenômeno
da morte lhe chamou atenção. Neste sentido ele descreve
ocorrências relacionadas com o poder sobre a vida e a morte
que ele nomeou de “casos estranhos”:
“Casos estranhos. Eu fui, eu mesmo, a causa inocente da
morte de um homem de outra nação, que imaginou que
eu o havia enfeitiçado, pelo fato de o haver admoestado
verbalmente, por haver feito, em relação a uma das mulheres
de nossa aldeia, que tinha ligeira dor num de seus braços,
essa espécie de rezas que procurávamos evitar. Esse homem
foi tomado de tal terror ao ouvir o tom de minhas palavras,
pois não entendia o português, que não pôde sair do lugar e
foi preciso levá-lo daí, e morreu poucos dias depois, vítima
da própria imaginação. Isso deu motivo a que alguns de seus
companheiros me ameaçassem de morte. Esses pobres cegos
imaginam que os padres e os religiosos são os feiticeiros dos
brancos: é assim que denominam aos portugueses e a todos
205
Missões, Aldeias e Currais
os brancos em geral; mas estão persuadidos de que os que
chamam feiticeiros dos brancos sabem muito mais que os
seus próprios feiticeiros; e é por essa razão que os temem
extraordinariamente e tanto se persuadem desse erro, que
é difícil convencê-los do contrário. Isso me valeu em várias
ocasiões em que corri risco de vida; pois que sem o receio de
que eu me valesse de alguma praga que os fizesse morrer, ou
adoecer, ou sofrer algum mal, não me teriam poupado; falo
das outras aldeias que não eram cristãs e nas quais eu não
morava, e também das tribos selvagens, em que me encontrei
em diversos momentos” (Nantes 1980: 17).
Mas, o medo do desconhecido, o não domínio da língua,
em que falou Martinho de Nantes, o fato de tê-lo enfrentado
quando o admoestou, o desmoralizou diante dos seus pares.
O que Martinho de Nantes não quis compreender nem
explicitar foi o terror, que a sua fala provocou, um terror tão
medonho que fez paralisar todas as ações do índio. No seu
testemunho, o medo também mata.
Para esses nativos a presença dos missionários pregando
uma nova religião e uma nova sociedade deveria ser muito
estranha, pois esta missão franciscana, dirigida pelo padre
206
Martinho de Nantes em companhia do padre também
capuchinho Teodoro de Lucé, foi uma das primeiras que se
instalou no médio São Francisco. Dos seus trabalhos como
missionário, o padre Martinho de Nantes deixou um livro
datado de 1685, impresso em Paris em 1687 (Nantes, op.
Cit: 20).
O período de 1679 a 1863 corresponde à atuação de
missionários franciscanos no médio São Francisco, período
que compreende também o trabalho deles em antigas áreas
de missões jesuitas, quando da expulsão dos inacianos em
1699, como ocorreu com as missões denominadas Caruru,
Rodelas e Araxá. Outro exemplo foi o das missões jesuíticas
estabelecidas em aldeias de nativos kariris, Oacazes e Procazes,
administradas pelo padre João de Barros; entre elas citamos
as das ilhas de Araxá e Sorobabel, constituída por indígenas
Procazes e Brancararus (Costa, op. cit, vol. 5:38). Estas foram
assumidas por missionários franciscanos após a retirada dos
jesuítas iniciadores do trabalho missionário nesta região. A
missão de Sorobabel localizava-se na ilha do mesmo nome no
município de Itacaruba e constituía-se em terreno de aluvião
como as demais ilhas do São Francisco. Segundo Serafim Leite,
207
Missões, Aldeias e Currais
já em 1696, existia na ilha de Sorobabel um aldeamento com
capela, que fora construída pelos missionários com ajuda dos
nativos38. Com a padroeira Nossa Senhora do Ó, Sorobabel
foi dirigida depois por missionários franciscanos, no período
de 1702 a 1761, aos quais, Frei Venâncio Willeke (op. cit: 88)
atribui a construção de uma igrejinha e casa para morada dos
padres.
No lugar dos tapuya rodeleiro do Rio São Francisco, na
altura do rio Pajeú39, uma missão jesuítica se instalou por
volta de 1645; sob a invocação de São João Batista. Nesse
aldeamento, os nativos foram doutrinados vivendo da caça,
pesca e agricultura nas suas terras; e foi através do contato
com os portugueses que eles se incorporaram à luta contra os
holandeses com duzentos tapuyas, juntamente com a gente do
terço, comandado pelo capitão-mor potiguar Filipe Camarão.
Posteriormente, os bandeirantes quiseram se servir deles
nas suas entradas e bandeiras contra os seus irmãos, o que
38. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Sertão de Pernambuco.
p. 127.
39. Costa, A. F. Pereira da - Anais Pernambucanos. v. 4. p. 79.
208
causou a fuga de muitos nativos da missão de Rodelas para
o Piauí, onde ficaram conhecidos pelo nome de Pimenteiras.
Esta migração ocorreu pelos anos de 1685, quando a aldeia
de Rodelas já era ocupada pelas fazendas de gado, onde se
formou posteriormente o centro de comércio e exportação
de gado para a Bahia e para Minas Gerais (Costa,op. cit. vol.4:
79). Na missão de Rodelas foram aldeados nativos tuxás
e a partir dela desenvolveu-se a cidade baiana de Rodelas,
localizada quase em frente à confluência do rio Pajeú com o
São Francisco. Aí habitam ainda hoje tuxás remanescentes
do antigo aldeamento.
Outras missões jesuítas como Assunção e Santa
Maria da Boa Vista instalaram-se no médio São Francisco
pernambucano. Os povos truká e tuxá, descendentes dos
rodelas, ocupam hoje algumas ilhas do Rio São Francisco;
os trukás vivem na Ilha de Assunção e os tuxás na Ilha
dos Cavalos, ambas pertencem ao município de Cabrobó.
Tudo indica que também tenha se estabelecido na missão
de Rodelas o padre Francisco Domfront, missionário e
contemporâneo do padre Martinho de Nantes, que relata:
209
Missões, Aldeias e Currais
“Francisco de Domfront viera também a Pernambuco para
atender a necessidades de sua missão dos rodela, sobre o
mesmo rio,...”40
Na ilha de Acará, também chamada de Axará ou Araxá, a
aldeia de Nossa Senhora de Belém foi instalada pelos jesuítas
entre os nativos procazes. A partir de 1702, esta aldeia
recebeu os índios brancararu, no período da administração
franciscana da missão, iniciado em 1699, com a expulsão
dos jesuítas. Por último, a aldeia de Nossa Senhora de Belém,
na ilha de Acará, foi dirigida por missionários Capuchinhos
italianos, que continuaram aldeando procazes e brancararus.
A guerra contra os nativos da missão jesuíta Cana Brava,
durante o final da década de setenta do século XVII, teve
como consequência a retirada dos inacianos e a vitória da
família Dias d’Ávila, que ficou com o domínio das terras
desta missão e a administração da população que dela restou.
Posteriormente a esta guerra, a Casa da Torre estabeleceu em
terras pernambucanas, na margem esquerda do rio e bem
próximo à ilha de Acará, uma fazenda denominada Cana
40. Nantes, Pe. Martinho de. Relação de uma Missão no Rio São Francisco. p. 2.
210
Brava, que no mapa “Roteiro de viagem do Recife à Carinhanha,
pelo Ipojuca de 1738” aparece registrada41. Desta fazenda
surgiu um povoado que, por lei estadual, em 13 de junho de
1902 foi elevado à categoria de Vila com o nome de Belém e,
no ano de 1953, passou a ser cidade e ficou chamada Belém
de São Francisco.
Outra missão jesuítica foi instalada na ilha de Assunção,
conhecida durante o século XVII como ilha do Pambu. Nela
serviu como religioso o capuchinho francês padre Martinho
de Nantes, que instalou sua missão entre nativos kariris
na ilha Aracapá, próxima à ilha do Pambu, na segunda
metade do século XVII.42 Hoje, habitam a ilha de Assunção
remanescentes da tribo truká que, como os tuxás, pertenciam
ao grupo de nativos rodeleiro.
Consta na relação de Pereira da Costa que a missão de
Nossa Senhora de Assunção, localizada na ilha do mesmo
nome no Rio São Francisco, foi instalada em 23 de setembro
de 1761 e, como a de Santa Maria, dirigida por jesuítas; nela,
41. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Op. Cit. p. 147.
42. Nantes, Pe. Martinho. Op. cit. p. 18.
211
Missões, Aldeias e Currais
construíram igreja e convento de porte considerável. Os
aldeamentos da ilha de Assunção e Santa Maria prosperaram
tanto que foram os únicos a receber, em toda a capitania de
Pernambuco, o título de Vila, para Santa Maria, e o de Vila
Real, para Assunção. Até 1792, a igreja de Nossa Senhora
da Conceição, erguida pelos jesuítas na ilha de Assunção
funcionava como matriz, quando, nesta data, uma grande
cheia arrasou a ilha e a matriz foi transferida para a antiga
igreja de Nossa Senhora da Conceição, erguida em data
imprecisa na fazenda dos Dias d’Ávila43, onde hoje existe a
cidade de Cabrobó. Após a enchente de 1792, a Igreja da
ilha de Assunção foi abandonada e nunca mais restaurada,
sobrando dela apenas uma parte das paredes de uma lateral
que, devido à composição da base em pedras e pé-direito
alto, demonstra ter pertencido a um grande edifício. Nos
terrenos que a circunda e no espaço que correspondia ao seu
interior, os índios que moram na ilha da atual reserva truká,
habitualmente enterram seus mortos, e ocupam pequenas
casas perto das ruínas.
43. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Op. Cit. p. 177
212
Igualmente utilizada como sede de uma missão jesuítica,
a ilha de Santa Maria, no Rio São Francisco, pertencente ao
município do mesmo nome, foi habitada primeiramente por
índios tapuya kariri. Transformada em paróquia e depois
em vila, em 1761, quando da sua instalação pelo Ouvidor
da Comarca das Alagoas44, Dr. Manoel de Gouveia Álvares,
dando-lhe por termo muitas ilhas do Rio São Francisco, desde
as das Vacas até a ilha dos Caricós, incluindo as margens do
rio. Na ilha de Santa Maria foi construída, para a missão,
uma capela com devoção a Santa Maria, que decaiu em 1817,
quando apresentava um aspecto humilde; a população,
de apenas 160 vizinhos, composta por nativos caçadores,
pescadores e agricultores isentos de tributos; as mulheres
entregues à indústria de fiação e tecidos de algodão, cultivado
na ilha, e ainda no trabalho da olaria utilitária para uso
interno e para exportação.
Em 1852 a igreja de Santa Maria, na ilha do mesmo
nome, estava em ruínas, e ao seu lado, igualmente caídos,
o convento e casas de colunas de pedras; tudo construído
44. Nesta data Alagoas não era uma capitania, era uma ouvidoria de Pernambuco.
213
Missões, Aldeias e Currais
por missionários da Companhia de Jesus. Poucos indígenas
restavam lá em 1855. Fazendeiros vizinhos apossaram-se
das suas terras, e afugentaram os índios para o continente
onde se refugiaram na Serra Negra, no atual município de
Floresta. A ilha de Santa Maria perdia o seu predicamento de
Vila em 1838, passando a ser propriedade particular (Costa,
op. cit. vol.10: 153).
Os capuchinhos franceses e italianos não aparecem
frequentemente em missões litorâneas. Pertencendo à
ordem de São Francisco, os capuchinhos são oriundos da
Primeira Ordem dos Frades Menores. Esta Primeira Ordem
fracionou-se inicialmente em conventuais e espirituais
devido à introdução de reformas baseadas em princípios
dos dominicanos, adotadas pelos conventuais que, por sua
vez, dividiram-se em não ordenados e ordenados. Destes
derivam os capuchinhos que, criando especializações
internas, geraram distintos cargos e atividades, cabendo aos
frades ordenados, por dedicação aos serviços externos, maior
parcela de poder nas decisões da Ordem. Atuavam junto
aos fiéis e viviam em comunidades abertas à participação,
por meio de estudos, para atualizarem suas pregações que,
214
segundo pensavam, deveriam ser mais intensas e constantes.
Com o nome de capuchinhos, passaram a formar um grupo
autônomo concretizado em 1528.45
A ação dos capuchinhos se caracterizou também pela
formação de missionários preparados em cursos especiais e
que tiveram como proposta de ação um trabalho adequado
às missões em comunidades indígenas. Com relação à sua
estrutura administrativa, os capuchinhos caracterizavam-
se também pela menor hierarquização interna e aceitaram
receber pagamento do Estado através de côngruas mensais
como os jesuítas e franciscanos. Segundo a antropóloga e
historiadora Maria Hilda Baqueiro Paraíso:
“Formava a Ordem dos capuchinhos a mais facilmente
controlável pelos mecanismos governamentais, sendo a que
oferecia menos resistência às determinações emanadas do
Estado. Era, consequentemente, os que não contestavam a
política indigenista vigente ou mantinha qualquer tipo de
atrito com o governo. Isso pode ser comprovado no momento
45. Paraíso, Maria Hilda Baqueiro. Os Capuchinhos e os Índios do Sul da Bahia: Uma
análise preliminar de sua atuação. p. 151 e 152.
215
Missões, Aldeias e Currais
da expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, ocasião em
que as missões capuchinhas nem se quer foram molestadas.”
(op. cit.: 152)
Os capuchinhos, no entanto, diferenciavam-se dos demais
missionários por dependerem da congregação romana, isto
é, eram “missionários apostólicos” e não “reais”; dependiam
do Papa e não do Rei, o que os distanciavam um pouco do
sistema colonial. Outras missões teriam sido fundadas pelos
capuchinhos italianos entre os kariri na aldeia de Nossa
Senhora da Piedade, situada na ilha de Inhanhum no ano de
1705. A sua extinção foi em 1761.46
Pereira da Costa afirma que até o século XIX os capuchinhos
fundaram missões como é o caso da aldeia chamada de Jacaré
ocupada pelos nativos pipipã. Considerados tapuias, os pipipã
ou Pipipõ tinham originalmente os seus aldeamentos nas
caatingas, entre os vales dos rios Moxotó e Pajeú. Os pipipã
foram reduzidos pelo capitão Antônio Vieira de Melo, em
meados do século XVIII; em 1802 a missão era dirigida por
46. Miranda, Maria do Carmo Tavares de. Os Franciscanos e a Formação do Brasil. p.
172.
216
Frei Vital de Frascarolo e levava o nome de Jacaré, situando-
se na Serra Negra, local escolhido pelos nativos devido à
fertilidade e abundância de mel e caça. Em 1804, formava um
núcleo de 135 habitantes e, em 1823, foram banidos de suas
terras por José Francisco da Silva e Cipriano Nunes da Silva,
que nelas situaram uma fazenda agropastoril, localizada na
Serra Negra entre o rio Moxotó e o riacho do Navio, na região
entre Vila Bela, Tacaratú, Floresta e Lagoa de Baixo.47
A missão do Pontal, instalada pelos franciscanos na
ilha do mesmo nome, no Rio São Francisco, corresponde à
aldeia Nossa Senhora dos Remédios composta pelos índios
tamakeus. A ilha do Pontal fica situada no município de
Petrolina e nela existe ainda a capela de Nossa Senhora dos
Remédios. A capela tem aspecto singelo e é constituída por
uma nave com uma única porta central de entrada sob a qual
fica o coro, cujo acesso se dá por uma escadinha de madeira
íngreme. A nave comunica-se com a capela-mor através do
arco-cruzeiro. A capela-mor, pouco mais estreita que a nave,
tem ao fundo o altar-mor constituído por simples mesa em
planos sobre o qual existe um oratório em madeira que abriga
47. Costa, A. F. Pereira da. Op. cit. v. 5. p. 170.
217
Missões, Aldeias e Currais
a imagem da Virgem dos Remédios. Um vão lateral comunica
a capela-mor com a sacristia pelo lado esquerdo de quem
entra na capela.48
Missões da Ordem de São Felipe Neri
Os últimos missionários a atuarem em Pernambuco
foram os padres oratorianos. Imbuídos no movimento da
reforma cristã, chegam à segunda metade do século XVII os
padres João Duarte do Sacramento e João Rodrigues Vitória.
Com a autorização pelo Estado português, em 1674, estes
se estabeleceram na ermida de São Gonçalo, no Cabo de
Santo Agostinho, de onde adentraram posteriormente pelas
cabeceiras do rio Capibaribe aos sertões do Rio São Francisco.
Segundo Pereira da Costa, com a expulsão dos jesuítas, os
oratorianos assumiram três das missões daqueles, em
Pernambuco: a de Ararobá com nativos xukuru/kariri, na
atual cidade de Pesqueira, a de Ipojuca, e a de Ararota em
48. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Sertão do São
Francisco. p. 215.
218
Limoeiro, localizada na freguesia de São Lourenço da Mata.
Após 1690 os oratorianos partem para fundar novas
aldeias, devido à volta dos jesuítas na administração das suas
missões, o que provoca a interiorização dos primeiros, que
saem em busca de novas aldeias para o trabalho de catequese.
Ainda no século XVII, os oratorianos da congregação de São
Felipe Neri dirigiram uma aldeia chamada Brejo dos Padres,
localizada nas proximidades da atual cidade de Tacaratu,
no município do mesmo nome.49 Neste aldeamento eles
teriam construído uma capela sob a invocação de Santo
Antônio, durante o século XVII, a qual ainda hoje existe e
é composta por uma nave, capela-mor e pequena sacristia
lateral. A capela guarda no seu interior imagens em madeira
de Santo Antônio, São Francisco, Santa Rita, São José, Nossa
Senhora da Saúde, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora
da Conceição e dois crucifixos.50 Hoje, a capela pertence à
reserva dos pankararu, descendentes dos primeiros indígenas
49. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Sertão do São
Francisco. p. 75.
50. Id. Ibid. p. 98.
219
Relação de aldeias indígenas em ilhas e ribeiras do Rio São Francisco - Séc. XVII
Município Tribo Localização
Santa Maria da Boa Vista
Santa Maria da Boa Vista
Santa Maria da Boa Vista
Orocó
Orocó
Orocó
Orocó
Cabrobó
Cabrobó
Belém do São Francisco
Belém do São Francisco
Itacuruba
Tamakeu
Karipó
Kariri
Kariri
Kariri
Kariri
Kariri
Kariri
Kariri
Poru e Brancararu
Poru e Brancararu
Poru e Brancararu
Ilha do Pontal
Ilha dos Caipós
Ilha de Inhanhum
Ilha Santa Maria da Boa Vista
Ilha de São Miguel
Ilha do Cavalo (São Félix)
Ilha de Aracapá
Ilha de Assunção
Ilha de Pambu
Ilha de Beato Serafim (Vargem)
Ilha de Acará
Ilha de Sorobabel
Tacaratu Pankararu Aldeia Brejo dos Padres
220
ali aldeados, cuja população vive da agricultura, da caça e da
criação de gado.
De uma maneira geral, as missões que fizeram parte da
ocupação do médio São Francisco, não mantiveram boas
relações entre si, com exceção dos capuchinhos e jesuítas
que se apoiaram mutuamente para a realização de viagens
e instalações de missões, como relata padre Martinho de
Nantes, a respeito de quando procurou instalar sua missão
entre os kariri e da ajuda que obteve dos jesuítas contra
as guerras provocadas por Francisco Dias d’Ávila contra os
nativos e suas missões.51 O mesmo não ocorreu entre os
missionários oratorianos e os demais catequizadores, como
comenta Eduardo Hoornaert (op. cit:69):
“O núncio de Portugal aprovou no dia 19 de março de
1674 a ideia de trabalho missionário recomendando (aos
oratorianos) que evitassem os frades capuchinhos a fim de
não ter atrito com eles”.
Esta era uma estratégia política que pretendia afastar
51. Nantes, Pe. Martinho de Relação de uma Missão no rio São Francisco. pp. 2, 54 a
57.
221
Missões, Aldeias e Currais
os oratorianos dos capuchinhos que poderiam auxiliá-
los e aconselhá-los, ficando a ocupação das terras pelos
colonos sem nenhuma resistência organizada por parte dos
missionários.
As acusações feitas pelos colonos contra os missionários
foram as seguintes: as missões se tornaram ricas demais;
não obedeciam nem ao bispo, nem à justiça dos ouvidores,
nem ao clero secular; os indígenas ficaram demasiadamente
unidos aos missionários e adestrados para a guerra; havia
falta de comunicação com a Corte; as terras eram usurpadas
por nativos e missionários. Além disso, nas missões, era
proibido o ingresso aos portugueses e por fim, os missionários
insultavam os ministros e emissários do rei.
A afirmação de que as missões enriqueceram não há de
ser de todo verdadeira para todas as missões, se observadas
as descrições do casario e dos edifícios religiosos das missões.
Em relato do padre Martinho de Nantes, ele comenta que
as missões viviam do que plantavam, caçavam e coletavam,
e que sua missão fora construída com a ajuda dos nativos
da própria aldeia e a construção feita com madeira e barro,
coberta de palha. Ainda expôs que, economizando pequenas
222
esmolas recebidas de portugueses, somadas à remuneração
das missões, que lhes eram encomendadas, empregava a
maior parte do dinheiro na compra de ferramentas, facas,
pano para vestir os indígenas e gastava pouco consigo.
Mas, o enriquecimento se deu entre ordens religiosas que
investiram em fazendas de gado e em engenhos de açúcar
como foi o caso dos beneditinos (Schwartz, 1983: 29-52). Na
capitania de Pernambuco, pertenciam-lhes três engenhos:
Mussurepe, o mais antigo, adquirido em 1609. Este engenho,
situado às margens do rio Capibaribe em Paudalho na zona
da mata norte tinha, em 1620, uma produção anual de três
mil arrobas de açúcar. Em 1663 empregava 82 escravos
e sua produção de açúcar e aguardente correspondia à
metade dos recursos necessários para o mosteiro de Olinda.
Outros dois engenhos beneditinos, o São Bernardo e o Goitá
também produziam açúcar para o mosteiro de São Bento.
Em Itamaracá, a fazenda Jaguaribe, com plantações e muitos
escravos, enriquecia também o convento dos beneditinos
de Olinda. Neste caso, os engenhos e fazendas não eram
de propriedade da ordem e sim do convento, constituíam
a principal fonte de renda e estavam integrados em um
223
Missões, Aldeias e Currais
sistema que compreendia lavoura de subsistência e olaria
para o sustento dos engenhos e convento.
Outra acusação contra os missionários refere-se à falta
de obediência desses ao bispo, ouvidores, clero secular ou à
justiça. Provavelmente ela se baseia em episódios onde os
missionários não aceitaram que os nativos de suas missões
entrassem em guerra contra outros indígenas rebelados,
como foi o caso da guerra contra a missão Canabrava. Com a
justificativa de que as terras eram usurpadas por missionários
e de que nelas estava proibida a entrada de portugueses, as
autoridades coloniais apoiavam as invasões nas terras das
missões de forma que suas áreas de caça, coleta e plantação
diminuíam com a invasão do gado de fazendas vizinhas que,
além de tudo, destruía as terras cultivadas.
A falta de comunicação com a Corte e os insultos
dirigidos aos ministros e emissários do Rei foram formas
que os missionários encontraram para demonstrar uma
pseudoautonomia, ignorando qualquer tipo de relação, sem
a qual não teria sido possível a sobrevivência. O fato dos
missionários estarem subordinados a uma ordem regular,
cujas casas-mãe se localizavam em Roma, longe do poder real
224
de suas nações, facilitou alguns lances de autonomia. Mesmo
porque, muitas vezes, a política das nações se imbricava com
o poder estabelecido em Roma. Em alguns momentos, os
superiores dos missionários perceberam conflitos de poder
dentro da burocracia real e disso tiraram algum proveito.
A carta de Martinho de Nantes52 à rainha de Portugal,
suplicando proteção para os missionários, é uma das muitas
existentes em arquivos históricos, e pode ser indício de que
um padre pudesse se dirigir a uma instância maior de poder
sem a interferência de intermediários.
A diminuição dos trabalhos missionários na capitania
de Pernambuco, no sentido do litoral ao sertão, durante os
séculos XVII e XVIII revela que, passo a passo, os espaços
indígenas foram ocupados pelos espaços coloniais português
e holandês; o trabalho catequizador e de redução dos nativos
em áreas organizadas para as missões auxiliou a construção
do mundo colonial e dos seus interesses. Neste processo de
superposição de espaços, na segunda metade do século XVIII,
muitas missões foram devolvidas às antigas ordens que as
52. Nantes, Pe Martinho de. Op. cit. p. 54 a 57.
225
Missões, Aldeias e Currais
administravam, outras se extinguiram por abandono, sendo
substituídas pelas missões volantes de número reduzido.
A lei de 1755 ordenando liberdade a todos os nativos do
Brasil, a expulsão dos jesuítas e a nova política para as áreas
indígenas, e a lei de 1758, que ordenava a instalação dos
‘Diretórios dos Índios’53 e a fundação de vilas em lugar de
aldeias indígenas, paróquias em lugar de missões e párocos
em lugar de missionários, encerrou a participação do trabalho
missionário como a mão longa da política colonialista
portuguesa, na capitania de Pernambuco.54
53. Veja-se o trabalho de Ângela Domingues, “Quando os Índios eram Vassalos.
Colonização e relação de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII”.
Publicado pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses- 1ª edição. Lisboa, 2000.
54. Sobre a regularização deste processo de instalação dos diretórios dos índios, ver
doc. do AHU, Pernambuco papeis avulsos/caixa 50, de 16-09-1760.
227
Ordenando o caos
Da leitura dos documentos produzidos pelas autoridades
portuguesas e das narrativas produzidas por cronistas, ambos
do período colonial, compreende-se que, desde o início do
contato entre brancos e índios, estes deveriam servir aos
interesses daqueles; seja como escravos, como súditos ou
como trabalhadores livres.
A regulamentação dos espaços destinados aos colonos
tinha como premissa o tratado de Tordesilhas, o que
significava confirmar o pertencimento da terra brasilis aos
portugueses. Incluindo nesse conceito a indeterminação e
a possível mobilidade da linha imaginária de Tordesilhas.
Portanto, a legislação inicial vai apenas dirimir as dúvidas
em relação ao que é da Coroa e o que pode ser dos colonos.
Esta intervenção, jurídico-política, não inclui os habitantes
nativos do Brasil.
Do século XVI ao XVII, a política da Coroa portuguesa foi
de incentivar os colonos a ocupar terras a oeste. A forma mais
rápida de realizar este intento foi através da guerra contra os
228
índios, dizimando os mais resistentes e submetendo, pelo
medo e pelo terror, os que deixaram de resistir. À proporção
que a colonização avançava para o interior, era inevitável a
colisão, tanto com os índios, com suas nações mais ou menos
organizadas nesses espaços dentro da sua própria lógica,
quanto com os colonos entre si, que também disputavam
as melhores terras, e depois com as missões, com menos
fome de terras. Aos poucos, a presença do homem branco
foi se firmando como fazendeiro, não apenas produtor de
alimentos; na sequência, estes fazendeiros, em sua maioria,
vão se transformar em criadores de gado. A partir desse
momento, o Estado português necessitou organizar jurídica
e socialmente este espaço.
A partir de 1549, com a instituição do Governo Geral, isto
é, com a presença do Estado português na Colônia, algumas
regras foram impostas à ocupação destas terras. Por exemplo,
a exigência do registro na Provedoria é da legislação de 1549,
a confirmação das cartas pelo Rei já é uma exigência do século
XVII. A Carta Régia de 1699 torna obrigatório o pagamento
do foro. Com a legislação mais rigorosa sobre os prazos de
aproveitamento da terra, e a ocupação indiscriminada feita
229
Ordenando o Caos
anteriormente à regulamentação, a extensão das terras
doadas poderia ter diminuido, pois, caso a terra não fosse
utilizada economicamente dentro do prazo de cinco anos,
seria considerada terra devoluta.55
Os critérios que regularam a outorga de sesmarias não
foram tão bem definidos. E muito menos fiscalizados. A
distância temporal na continuidade da regulamentação foi
fundamental para o não cumprimento desta. Veja-se, por
exemplo, no parágrafo anterior, as datas de regulamentação
sobre a ocupação da terra, elas distam praticamente
um século umas das outras. No Livro 2 de Registro das
Sesmarias, do século XVIII, constatam-se exigências, mas,
também, certa frouxidão na distribuição das terras, pela
forma como as autoridades procediam. O capitão donatário
55. Conforme podemos observar no documento transcrito.
“Sesmaria de três léguas de terra de cumprido e uma de largo no riacho de Moxotó
doada a Alexandre da Silva Carvalho e seus herdeiros morador no sertão de Ararobá
nas cabiceiras do Moxotó vertentes do Rio São Francisco pelo Capitão Mor General
Luis José Correia de Sá, em 26 de novembro de 1753, não podendo suceder ao suppe
por tempo algum Religiões salvo satisfazendo todos os encargos, e sendo obrigado a
pagar o foro anual de 4$ a povoar a dita terra no prazo de cinco anos sob pena de lhe ser
declarada devoluta e a dar caminhos livres ,,, . Livro de Foros N3 f3, p. 51.
230
de Pernambuco em 1734, Duarte Sodré Pereira Tibão, ao
despachar favoravelmente a concessão de sesmaria de umas
“terras despovoadas e desertas entre a Serra da Borborema e
o rio do Pajeú para nelas criarem seus gados de toda a casta”
ao Vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição
de Rodelas, Francisco Ferreira e ao Sr. Manoel da Costa
Calado, ordena ao capitão-mor daquele distrito colocar
editais públicos nas portas das igrejas, inclusive das da
vizinhança, para que, havendo alguma pessoa ocupando
anteriormente estas terras, se apresentasse.56 Ora, se esta
autoridade despachou favoravelmente esta concessão e
depois perguntou se há alguém já ocupante da referida terra,
é porque ela, a autoridade, não tem a certeza da justiça de sua
concessão; mas concede, mesmo sabendo que esta situação,
se confirmada, vai gerar um longo processo acompanhado
de conflitos e de violência. No mesmo documento é exigido
um fiador que garanta o pagamento do foro ao governo de
Pernambuco.
Há inúmeros documentos que confirmam esta prática,
56. In Documentação Histórica Pernambucana - Sesmarias – vol 1 – 1689/1730.
231
Ordenando o Caos
também registrada pelo historiador Warren Dean, em artigo
intitulado “Os Latifúndios e a Política Agrária Brasileira no
século XIX”.57 As petições assinadas, solicitando doações
de sesmarias, trazem informações esclarecedoras sobre a
legislação vigente. Por elas sabemos que todos os solicitantes
deveriam atender a determinadas exigências para aquisição
de datas58, que são as seguintes: registrar uma carta-petição
no Livro da Provedoria e esperar a carta de confirmação da
doação para poder se instalar o que nunca foi empecilho para
a ocupação da terra; indicar um fiador para segurança do
pagamento anual do foro; os valores eram variáveis, mas,
a maioria das cartas de confirmação aponta o pagamento
do foro no valor de 4$000 (quatro mil réis) por ano, o que
não representava para a época um valor imperdível; pagar
o dízimo à Ordem de Cristo; utilizar a terra solicitada na
agricultura ou criação de gado dentro de um prazo máximo
de cinco anos, caso o solicitante não conseguisse se instalar,
57. DEAN, Warren. Os Latifúndios e a Política Agrária Brasileira no século XIX. In “A
Moderna História Econômica”, organizada por Pelaez e Buescu. APEC, Rio de Janeiro.
1975.
58. Datas são também chamadas as sesmarias, as concessões de terras.
232
perdia a concessão. Quem fiscalizava essas terras nos confins?
Tudo isto eram prerrogativas da lei, porém havia um ditado
muito conhecido e praticado no período colonial, não só no
Brasil, mas em toda América Latina: “a lei é boa, mas não
posso cumpri-la”. A documentação aponta para a ocupação
da terra antes da legalização jurídica. É curioso notar que as
autoridades não concediam sesmarias a religiosos regulares e
sim aos seculares.
A distribuição de sesmarias, sem interrupção até o
século XIX, não impossibilitou a ocupação das terras por
meio de posses. Muitos proprietários, que tinham suas
datas autorizadas, também eram posseiros, como indica a
documentação de Registros de Terras Públicas, em Pernambuco,
no século XIX. Eles ocupavam terras devolutas ou que não se
encontravam em nenhum registro. Após a Lei de Terras, de
1850, inúmeros registros de posses de terra foram declarados
por seus ocupantes às autoridades imperiais, indicando
inclusive a localização das mesmas.59
59. Os posseiros deveriam declarar suas posses aos Vigários de suas Paróquias e
os mesmos deveriam remeter os livros de registros de terras de suas Paróquias ao
Ministério de Negócios de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, no Rio de Janeiro.
233
Ordenando o Caos
Como escreveu o poeta Drummond, “no meio do caminho
tinha uma pedra”, a pedra no sapato dos colonos foram os
missionários. O papel destes na colonização é bastante
polêmico. Não cabe, neste estudo, resolver esta questão, mas
cabe descrever a intervenção deles na política de concessão
de terras, não aos índios, mas às missões dirigidas por estas
ordens religiosas, que estavam a salvo do clero secular.
A legislação ‘protetora’ dos habitantes naturais da terra
regulamentou seus espaços, reduzindo, não apenas seus
territórios, mas suas identidades culturais. A destruição da
cultura nativa vai ser feita através de uma política de Estado
em aliança com os missionários. Aos índios não lhes foi
permitido o sentimento de pertencimento à terra, e sim de
permanência em alguns espaços, desde que delimitados e
tutelados por missionários e não muito longe da mão longa
do Estado.
A administração portuguesa, após a expulsão dos
holandeses, sob o pretexto de reconstituir os aldeamentos dos
indígenas, após as conhecidas ‘guerras justas’, recomendava
Daí a importância dos párocos, além da salvação das almas.
234
a presença de homens brancos na região, para cuidar do
destino dos índios. No final do século XVII, por volta de
1690, há uma solicitação do governador de Pernambuco,
D. Antonio Félix Machado e Silva, ao Governador Geral do
Brasil, que reduzisse as vinte aldeias, que estavam sob sua
jurisdição, para oito, na seguinte localização: desde o Rio
São Francisco até o Ceará. O pedido não foi concedido. O
reclamo do governador de Pernambuco expressa o desejo
que a administração geral do Brasil realizasse aquilo que as
suas competências não lhe permitiam: diminuir o território
ocupado pelas aldeias e dessa forma as 12 aldeias, que não
estariam sob a jurisdição ou ‘proteção’ do Estado português
seriam transformadas em terras disponíveis.
Prevendo possíveis conflitos, o rei de Portugal, D. Pedro II,
por Carta Régia de 20 de janeiro de 1690, criou uma Vara de
Juiz em cada uma das freguesias do Sertão: Cabrobó, Cimbres
e Garanhuns. Entretanto, esses Julgados foram constituídos
no papel, mas na realidade eles vão funcionar precariamente,
muito tempo depois.
A Carta Régia de 28 de março de 1692 ordenava ao
governador de Pernambuco, Antonio Félix Machado da Silva
235
Ordenando o Caos
Castro, Marquês de Monte Belo, que “se estabelecessem
aldeias, para que nelas os índios pudessem viver na medida
em que fossem convertidos pelos missionários, religiosos
regulares”. A mesma carta régia ordenava ao mesmo
governador que, “à proporção que se fossem ‘reduzindo’
os indígenas do Sertão ao grêmio da Igreja, devessem ser
restabelecidas as aldeias, para que nelas se conservassem na
doutrina, dirigida por padres missionários”.
Em 1700, por alvará de 23 de novembro, foi determinado
que cada aldeamento ou missão recebesse uma légua quadrada
de terras para o sustento dos índios e dos missionários. Cada
aldeia deveria se constituir pelo menos de 100 casais, apesar
de se ter fundado aldeias com número de casais bem inferior
a esta recomendação.
Outra carta régia, em 1700, determina ao novo governador
de Pernambuco, D. Fernando Martins Mascarenhas de
Lencastro, que faça acompanhar aos missionários, que forem
ao sertão pregar o cristianismo aos índios e convertê-los,
tropas para enfrentar os bárbaros e outros perigos dessa
região. Os aldeamentos e missões se multiplicaram na região
do São Francisco e algumas aldeias ‘de índios mansos’ foram
236
fundadas para proteger arraiais e fazendas de gado invadidas
por outros índios que resistiam à presença dos brancos, como
os Aracoazes e Mocoazes.
Na perspectiva da lógica da Coroa portuguesa, os índios,
em princípio, poderiam escolher o local onde fundariam
suas aldeias sem interferência de sesmeiros e ou donatários.
Esta decisão, entretanto, deveria ser tomada em audiência,
na Junta das Missões e com sua aprovação. Este mesmo
princípio deveria ser respeitado quando fosse necessária a
divisão de grandes aldeamentos; pela legislação vigente era
recomendado a cada aldeia receber uma légua quadrada e
igual número de casas. Esta lei foi executada precariamente
sob a responsabilidade dos ouvidores gerais, que deveriam
proceder à medição e demarcação das terras.
Para proteger colonos estabelecidos em fazendas de gado,
em regiões fronteiriças com aldeias indígenas refratárias às
ações missionárias ou governamentais, criavam-se arraiais
de índios mansos, trazidos de outras regiões para enfrentar
os “facinorosos bárbaros” acusados de invasões constantes às
fazendas estabelecidas.
No intuito de acelerar o povoamento do interior
237
Ordenando o Caos
de Pernambuco, o Rei ordena a D. Fernando Martins
Mascarenhas de Lencastro a implantação de novas missões
religiosas. Os colonos desde cedo reagiram e negaram
conceder às missões uma légua quadrada de terra para o
patrimônio delas, bem como mais uma légua quadrada
para cada missão ou aldeamento de índios tapuias, não
obstante ameaças de punições do Governo aos colonos. Os
donos de grandes sesmarias como os Ávila, os Guedes de
Brito, Domingos Afonso Sertão, para exemplificar, reagiram
negativamente a essa nova política. De alguma forma,
o governo português conseguiu instaurar parte da ordem
proposta e os aldeamentos terminaram por ser agraciados
com uma légua quadrada de terras. Em fins do século XVII,
os padres missionários haviam fundado vários arraiais de
índios ‘mansos’ no Alto São Francisco.
No século XVIII o Estado português oficializa uma
‘política civilizatória’ para os índios: primeiro, fundaram
aldeamentos e missões por toda parte, principalmente nos
vastos territórios da região do Rio São Francisco; segundo,
organizaram esses aldeamentos fundamentados em leis –
ordens régias, cartas régias, decretos – e em ações religiosas,
238
militares e civis; terceiro, o fizeram com intervenção direta
na organização da produção econômica: gado, couros,
algodão. Para tanto a Coroa portuguesa determinou auxílio
anual de 300$000 (trezentos mil réis) anuais, para cada
aldeia, destinados à compra de ferramentas e outros objetos
necessários à agricultura, tentando fixar os índios em seus
novos lugares. Essa contribuição real era recebida pelo bispo
diocesano, que por sua vez fazia a distribuição. Como se pode
observar, a igreja se colocava como a mão longa do Estado
português nos casos em que era inconveniente ao Estado a
relação direta com os habitantes das aldeias indígenas.
Uma ordem régia de 1701 determinava que a demarcação
das aldeias e a nomeação dos seus respectivos capitães-mores
fossem realizadas de acordo com a satisfação dos índios e
missionários. Registrado por Pereira da Costa (op. cit. Vol
7: 159-160) o aldeamento da Missão do Jacaré foi escolhido
pelos índios, em 1802, na Serra Negra (hoje município de
Floresta), por ter este lugar terras férteis e abundância de mel
e caça. Esses índios haviam sido desbaratados por guerras
e escravização, pertenciam a várias tribos: pipipan, omari,
chocó e caracu. Estabeleceram-se no sítio do Jacaré e no sítio
239
Ordenando o Caos
Gameleira. Observe-se que a determinação real para que
assim acontecesse em todos os aldeamentos, data de um
século antes. Um ano depois do estabelecimento dos índios
na Serra Negra e na Gameleira, em vista de denúncia de que
as terras eram de má qualidade para o cultivo e pela ausência
de água, os índios passaram a fazer suas plantações na serra
do Periquito. Em virtude dessas dificuldades requereram ao
Governador autorização para se estabelecerem em um sítio
com melhores condições. O aldeamento era povoado por 200
nativos das tribos citadas acima. Na comunicação feita ao
Rei, muito respeitosamente enviaram suas armas de guerra e
alguns objetos de seus pertences. As autoridades atenderam
aos seus reclamos e, de acordo com o missionário que os
assistia, esses grupos de índios foram transmudados para a
Baixa Verde, na Serra Grande do Pajeú, em Cabrobó.
Esse entendimento da Coroa reflete a dimensão das novas
estruturas político-jurídicas criadas para manter o controle
e a governabilidade da colonização na América. Observa-se
que esta nova política trazia responsabilidades a todos os
envolvidos: administradores, religiosos, colonos e indígenas.
Em pesquisa recente, do final do século XX, encontrou-
240
se registros históricos, nos arquivos eclesiásticos da
Missão de Nossa Senhora do Ó, na ilha de Zorobabel, em
Itacuruba, Pernambuco. A documentação informa que a
Missão de Zorobabel foi fundada pelos jesuítas em 1696 e
neste mesmo ano foram expulsos por causa de conflitos de
terras com prepostos dos poderosos proprietários Garcia
D’Ávila, senhores da Casa da Torre. A demarcação das terras,
reservadas para a aldeia, deve ter sido o móvel da questão. Por
ordem do governador Geral do Brasil, João de Lencastro, as
terras doadas aos missionários deveriam ser demarcadas em
torno de duas ou três léguas para cada aldeia. O Provincial
da Ordem cumpria as determinações daquela autoridade
quando foi acusado de invadir as terras de Catarina Fogaça e
Leonor Pereira Marinho, esposa e irmã do falecido Francisco
Dias D’Ávila. Na realidade, as terras das duas senhoras
distavam 150 léguas das aldeias referidas, conforme se pode
constatar na defesa que elas (as mulheres) fizeram ao serem
acusadas de terem participado da expulsão dos indígenas. O
governador João de Lencastro, reconhecendo o direito natural
dos índios às terras, critica a política de extensão da Casa da
Torre, que a esta altura se estendia a mais de quatrocentas
241
Ordenando o Caos
léguas a partir do litoral.
Através de correspondência do padre jesuíta Alexandre
Gusmão ao seu superior, sabe-se que as terras de Catarina
Fogaça e Leonor Pereira Marinho sufocavam duas mil almas
de índios, o que restou da população indígena nas aldeias do
Rio São Francisco, em 1696.
Procedendo como agente do Rei, o Governador Geral
do Brasil, cumprindo a missão de moderar conflitos, tenta
interceder em favor dos jesuítas que, indignados com o não
cumprimento do Alvará de 1700, o que ordenava demarcar
uma légua quadrada de terras para instalação das missões,
ameaçavam se retirar do trabalho missionário. O Governador
não obteve êxito em seu intento, os colonos continuavam
irredutíveis em suas posições contrárias à doação de terras
às missões e consequentemente os jesuítas se retiram das
missões avisando aos seus superiores, por carta de 11 de
fevereiro de 1710. Durante dez anos lutaram pela implantação
do Alvará Real, mas os colonos levaram vantagem.
Através de documentos do Arquivo Histórico
Ultramarino, que tratam desta questão, sabe-se que o Bispo e
o Governador de Pernambuco, Fernão Martins Mascarenhas
242
enviaram religiosos àquela região, para amenizar a situação
das missões, sob o protesto do arcebispo da Bahia, João
Franco de Oliveira. Esta atitude do Arcebispo comprova que a
posição da igreja não tinha unicidade sobre um mesmo tema,
no Brasil colonial. Outros documentos da mesma fonte, o
Arquivo Histórico Ultramarino, comprovam a associação
de Leonor Pereira Marinho com a Coroa portuguesa na
exploração do salitre, no vale do Rio São Francisco e na
permissão da escravidão indígena para esta atividade. Este
fato explica a retirada estratégica dos jesuítas da região. De
resto, D. Leonor Pereira Marinho recebeu como recompensa,
pelos serviços prestados à Coroa um “foro de fidalgo” para
sua filha.
Os conflitos com os jesuítas levaram as autoridades a
atrair outras ordens religiosas. Sempre através de leis mais
‘brandas’ para a atividade missionária, mas sem poder
político para fazer cumpri-las. Por exemplo: tentando atrair
missionários, a Lei de 1703 confirmou o Alvará de 1700 e
ampliou, minimamente, o território das Missões: além da
légua quadrada, já concedida, acrescentou-se área para a
Igreja, para o adro, para o terreno, em torno dos muros e para
243
Ordenando o Caos
a horta do vigário; ao historiador, leitor dessa documentação
parece que as leis eram criadas para todo o território,
entretanto eram cumpridas onde havia possibilidades para
tal.
Mesmo onde a legislação era executada, o resultado
seriam ninharias, que não mudavam a política de ocupação
territorial, nem o extermínio da população indígena;
os colonos, cada vez mais ávidos por terras para o gado,
avançavam na direção dos antigos territórios indígenas.
Interpretando as decisões reais, a burocracia local
deveria resguardar o território limitado aos índios e, a partir
dessa aldeia indígena, fixar a presença da administração
do Estado português. Este plano, entretanto, não foi bem
acolhido, chocava-se com a ambição dos colonos na ocupação
indiscriminada da terra.
Sem a presença dos jesuítas, as autoridades portuguesas
oferecem a direção das Missões aos Franciscanos que,
já estavam à frente de algumas missões desde 1703. A
preocupação das autoridades se revela em não controlar a
população indígena, desta região, já reduzida e em parte,
cristianizada. Sem a liderança dos padres, provavelmente
244
os indígenas, inconformados, se tornariam grupos de
assaltos às fazendas da região ou alvo fácil dos colonos, e
se dispersariam. Na intenção de resolver este problema, o
Governo de Pernambuco oferece aos Carmelitas de Santa
Tereza a direção das três missões do Rio São Francisco e esta
nova tarefa foi realizada por padres franciscanos, franceses e
italianos até 1761, quando foram extintas.
247
Dispersão
A separação dos índios de suas famílias, de sua parentela, do
seu habitat, de suas crenças, sucedeu desde o momento em
que o governo português decidiu organizar a colonização do
Brasil, tendo como fundamento a implantação dos engenhos
de cana de açúcar. As questões da terra e da mão de obra se
colocavam como primazias para o êxito do empreendimento.
Os índios não conheciam o conceito de propriedade privada,
mas praticavam a ocupação da terra de acordo com sua
utilidade sazonal. Por esta razão, os nativos se deslocavam
do interior para o litoral de acordo com o ‘calendário’ da
economia indígena; também, por esta necessidade, os índios
se transferiam para lugares mais distantes ou mais próximos
de suas malocas. Portanto, a vastidão da terra era de vital
importância para o índio.
Este conflito de modelos econômicos de produção e
organização, pela impossibilidade do diálogo, como se
explicitou nos capítulos anteriores, justificou desde logo
a recorrência da guerra, de parte a parte. Os portugueses
248
viram na extensão da ocupação da terra a segurança para a
produção do açúcar sem levar em consideração o outro, que
já a ocupava.
Ocupadas as terras pelos portugueses através da
violência e iniciada a plantação de cana de açúcar no litoral
e zona da mata, a próxima etapa foi adquirir mão de obra
de graça fazendo incursões no interior, onde os índios se
escondiam. Com efeito, estes acontecimentos já foram
descritos anteriormente, no capítulo Sob o Domínio do
Medo. Mesmo com a resistência indígena, principalmente
dos caetés, e da intermediação dos missionários para não
aniquilar completamente o nativo, o projeto colonizador, foi
se concretizando pela ausência de união entre as diversas
tribos, pela força das armas e pelo medo.
O medo foi o principal elemento nas relações de força
entre os luso-brasileiros e os índios; o medo impingido às
populações nativas resultou para elas na escravidão, nos
castigos, no sumiço de seus espaços territoriais e na perda da
identidade cultural e de suas crenças; por sua vez, a reação
indígena à presença dos portugueses ameaçava o projeto
colonizador: a não ocupação das terras e consequentemente a
249
Dispersão
não realização da colonização e a não aceitação da utilização
servil da mão de obra indígena.
Quais foram os condutos produtores deste sentimento?
Discursos, rituais religiosos, demonstração de superioridade
através do conhecimento técnico e prática da violência, a
guerra. Para Delumeau (2009), o medo é uma emoção choque
desencadeada diante de uma situação de ameaça, não só
aos indivíduos, mas às coletividades e às civilizações. Em
muitos momentos a produção desse sentimento concorreu
para legitimar projetos civilizatórios e justificar prática de
violência.
O medo esteve presente em praticamente todas as ‘ações
civilizatórias’ na Colônia: nas leis, que possibilitaram a perda
do espaço indígena, que legitimaram a escravidão perpétua
dos caetés; nas autoridades e suas representações, nas
missões e seus diretores, nas escolas, na educação, nas missas,
batismos e outros rituais, nos exércitos e na demonstração
da superioridade bélica. No estudo sobre o poder, Foucault
nota dois pontos, vigiar e punir, que podem ser aplicados à
história dos povos indígenas, invertendo-se a ordem para
efeito de análise: punir e vigiar.
250
Na lógica da colonização os portugueses iniciaram pela
punição, demonstrando força; os sobreviventes, uma vez
submetidos, passavam a ser vigiados institucionalmente,
culturalmente, mudando a sua visão de mundo. Todos os
atos punitivos foram exercidos pelas autoridades portuguesas
e pelos colonos e toda a vigilância pelas missões. Segundo a
economia do poder, é mais eficaz e mais rentável vigiar que
punir. Mas, no Novo Mundo, a vigilância não surtiu o efeito
desejado pelo grande número de habitantes existentes, pela
vastidão das terras, pelas dificuldades de comunicação e pela
resistência oferecida ao projeto colonizador. Por esta razão, a
punição foi aplicada em primeiro lugar, e depois a vigilância
para manter a conquista das ‘almas’.
Uma vez solucionada a questão do uso da terra, o
problema da mão de obra para cultivá-la, com a importação
de africanos e o afastamento dos indígenas para regiões
mais distantes, cuidaram as autoridades de definir as áreas a
serem ocupadas pelo gado, e depois delimitaram os espaços
dos índios, criando as missões sob o controle de religiosos
regulares; ainda sob pressão dos colonos, foram criadas as
reduções, que para os índios eram uma espécie de prisões
251
Dispersão
vigiadas.
À proporção que os índios foram sendo excluídos,
exterminados do seu habitat ou sendo reduzidos às missões
e às reduções, as fazendas de gado foram agregando as
terras ‘desocupadas’. Apesar do seu menor valor econômico
em relação ao escravo e ao gado, essas terras foram a base
territorial na qual se amparou um poder político. Assim
como as fronteiras territoriais, elas limitavam-se até onde
a vista alcançava, e isto justificava a ação de expulsão dos
índios das suas próprias terras.
A análise da propriedade da terra, nessa região, a renda
fundiária, que é sua expressão econômica, a tímida expansão
da pequena propriedade, têm sido alvo acanhado de estudos
especializados. Consideramos de importância fundamental
as teses históricas baseadas em análises socioeconômicas e
culturais para se esclarecer como se definiu e se formou esta
sociedade.
A região sertaneja, por causa da irregularidade do seu
regime pluviométrico descrita no capítulo Sertão e Paisagem,
tem problemas quanto à ocupação e ao aproveitamento
humano da terra (Melo L.M., Recife, CEPE, 2012). Portanto,
252
a terra não seria propícia a ‘plantation’, modo de produção
que se estabeleceu na zona da mata e litoral. Então, que tipo
de sociedade e modelo econômico aí se estabeleceu?
Ainda que essa sociedade tenha se formado com uma
população livre quantitativamente maior que a população
escrava dos negros da terra – índios, ou de africanos, mas
igualmente despossuída, a pobreza e o latifúndio foram
fatores predominantes para a concentração de poder nas
mãos de poucos; provavelmente, a estrutura de poder que aí
se desenvolveu foi tão fechada quanto o era na região da zona
da mata.
Embora haja disparidades relativas à riqueza entre
as duas economias, a açucareira e a agropastoril, foram
complementares; a economia agropastoril jogou um
importante papel em relação ao mercado interno,
utilizando o Rio São Francisco e os caminhos entre regiões
para comercializar a produção do gado, couros, produtos
alimentícios, como a aguardente e a rapadura.
Infelizmente há pouquíssimos dados sobre o século
XVIII. A documentação encontrada referente à ocupação
253
Dispersão
das terras é do século XIX60. Através dela compreende-se o
funcionamento desses estabelecimentos fundiários, que se
constituíram ao longo dos séculos. Desde o início do processo
de ocupação percebe-se a importância da família, da parentela
ou mesmo de agregados, que pudessem em conjunto se
auxiliar mutuamente e traçar estratégias de sobrevivências.
As atividades agrícolas e pecuárias, apoiando-se no grupo
familiar, incluindo os agregados, parecem ter procurado
otimizar a utilização da mão de obra de que dispunha. Nos
inventários post mortem os pecuaristas registram, para
efeito de impostos e de repartição da herança, a presença
de escravos; nos inventários dos agricultores são raros esses
registros.
O processo de produção na região sertaneja não exigia mão
de obra numerosa como na região do açúcar; portanto, o grupo
familiar poderia ser responsável se o estabelecimento não
produzisse em grande escala. Esta relação de trabalho parece
60. São inventários post mortem, livros de registros de terras, livros de tombo das
paróquias e livros de nota dos tabeliães, que foram consultados.
“A Formação Social do Médio São Francisco”. Pesquisa coordenada por Socorro Ferraz e
financiada pelo CNPq.
254
ter uma dependência com o patrimônio, seja na perspectiva
da herança seja na possibilidade de agregar riquezas. Não
aparece, nos inventários, o trabalho assalariado. O valor da
terra não convida a que a mesma se transforme em moeda.
Os escravos e o gado, ou seja, os bens móveis, são os mais
valiosos. A terra como meio de produção era o mais barato
e o mais importante por assegurar à permanência do grupo
familiar, um modo de vida e um sistema de representação.
Nesses inventários não existe a presença indígena como
partícipe da produção.
Nas fazendas, nos sítios e nas roças, a família desempenhou
um papel fundamental, principalmente nos séculos XVIII e
XIX. O século XVII é representado pelos conquistadores que,
em sua maioria, chegaram para ‘as guerras justas’ contra o
gentio e para ocuparem as datas recebidas como sesmeiros.
A terra era um patrimônio familiar com conteúdo ideológico;
era também um meio de trabalho, necessário à produção;
no sertão, não foi objeto de especulação. Não se vendia e
comprava terras com a dinâmica que as mercadorias exigem.
Além do apego ao patrimônio, o preço era muito baixo. A terra
tinha valor de meio de produção, de lugar de pertencimento,
255
Dispersão
de entrelaçamento com a parentela; portanto, ela é o
território patrimonial, no qual agricultores e pecuaristas
estavam enraizados. As fazendas de algodão, no século XIX,
período de maior demanda, foram responsáveis pela modesta
repartição das grandes propriedades em algumas sub-regiões,
mas em outras confirmaram o latifúndio.
Nos estudos sobre a propriedade fundiária da região
sertaneja as terras públicas, também chamadas de devolutas,
não aparecem sendo distribuídas com as populações
indígenas. Por outro lado, registros dos cronistas dos séculos
XVI, XVII e XVIII, e mesmo a legislação do Estado português
guardada no Arquivo Histórico Ultramarino, confirmam
ações de trabalho compulsório, venda de seres humanos e
maus tratos dos colonizadores, em relação às populações
nativas. Essas informações são indícios de que os índios
foram obrigados a praticar o trabalho servil nesse modelo
econômico.
Para responder à pergunta “Para onde foram os índios,
nessa sociedade?” Seria necessário fazer um levantamento
da estrutura fundiária e mapear as grandes e pequenas
propriedades, verificando-se se a pequena poderá ser
256
considerada uma unidade de produção familiar com
capacidade de reprodução, e se a grande propriedade inclui
vários modos de produção: o que se baseia na mão de obra livre
e o que se fundamenta na mão de obra escrava. Importante
é buscar definições sobre o que é ser livre e o que significa ser
escravo, naquela região e naquela época.
São poucos os estudos sobre esta sociedade, porque há
dificuldades com a documentação. Talvez esta zona cinzenta
que interfere na historiografia regional tenha sido responsável
pela não desmistificação de estereótipos. Um deles é que não
houve trabalho escravo nos sertões. Aceitar esta premissa
ideológica é defender a ideia que a ‘civilização’ recebida pelos
índios através da evangelização e das leis, que regularam suas
vidas os transformaram em vassalos.
Uma boa parte das tentativas de reconstituição das
economias regionais do país, desde a colônia, por parte
dos historiadores, guiou-se por uma perspectiva um
tanto equivocada, tendendo a equacionar o problema da
escravidão em termos de uma teoria da plantation e não
do modo de produção escravista. Tal orientação produziu
nos meios acadêmicos a ideia de um modelo colonizador,
257
Dispersão
estritamente fechado em um sistema produtivo constituído
de três elementos: a grande propriedade, o trabalho escravo,
e a economia de exportação.
Esta abordagem do sistema colonial explica, em parte,
a história da escravidão, mas oculta o estudo de formas
peculiares de exploração da mão de obra africana e da mão de
obra indígena, comuns a várias economias regionais, como
é o caso da região sertaneja, onde nem sempre combinaram
entre si aqueles três elementos próprios da plantation.
De certa forma, construir a história do escravismo no
sertão, seja de africanos ou de índios da terra, exige por parte
do pesquisador uma atitude de ruptura com esta visão que
não consegue desligar o trabalho escravo da organização
típica da produção dos engenhos de açúcar. Tem razão o
brasilianista Robert Slenes ao considerar que “para conhecer
a fundo a escravidão no Brasil e resolver as questões atualmente
em debate precisa-se de mais estudos locais e de menos ênfase
sobre a ‘plantation’.” Estudos sobre a economia do Sertão, no
século XIX, podem contribuir para o desenvolvimento desta
linha de pesquisa, proposta por Slenes, que tem avançado em
termos de história da escravidão e da servidão em diversas
258
regiões do país.
Outra tese repetida pela historiografia regional diz
respeito ao surgimento de uma estrutura de poder mais
aberta no sertão que na zona da mata, tendo em vista certas
peculiaridades do modo de produzir naquela região. Ora, a
ocupação da terra deu-se, a princípio, por apropriação, com
muita semelhança como se deu no litoral e Zona da Mata; nas
sesmarias ou as posses, onde se circunscreviam as fazendas
de gado, de algodão ou pequenos engenhos de açúcar para a
produção de aguardente e rapadura; o restante do espaço era
livre, em termos; não para a ocupação de nações indígenas.
As propriedades que surgiram não tinham limites, como já
foi dito, e o isolamento delas dos centros comerciais era uma
realidade; portanto, as fazendas mistas vão predominar; nelas
encontramos várias atividades, como a pecuária, a agricultura
de subsistência, casas de farinha, teares para fiar pano grosso
e outras atividades artesanais, que complementavam as
necessidades fundamentais do grupo; e tudo isto dependia
de um único senhor. Esta concentração de poder, aliada ao
desafio da conquista, traduzida na violência da guerra contra
os indígenas, não são premissas favoráveis à formação de
259
Dispersão
uma estrutura de poder mais aberta do que a da sociedade
que se formou no litoral do Nordeste.
A repartição das terras e a divisão das heranças não
foram determinantes à fragmentação daquelas. As fortunas
cresciam e diminuíam, mas não parecem ter modificado
a natureza do latifúndio. Esta estabilidade deve-se, ao que
tudo indica, aos casamentos entre as mesmas famílias, e
também ao fato de que os ‘donos’ não tinham conhecimento
dos limites dos seus domínios e os levantamentos feitos
oficialmente pelas autoridades eram imprecisos.
Na região sertaneja o gado foi criado à solta, o que
significa dizer que as fazendas não tinham cercas, que as
terras livres também eram ocupadas pelo gado, e que a água
existente era utilizada coletivamente. O vaqueiro poderia ser
um homem livre ou um escravo. Devido às dificuldades de
sobrevivência, em muitas circunstâncias estiveram lado a
lado o branco e o negro, o cafuzo e o índio. Superficialmente,
pode parecer esta sociedade mais democrática que a da zona
da mata, entretanto quando aprofundamos o olhar podemos
perceber as condições reais daquela convivência. Uma carta
do Governador da capitania do Piauí, João Pereira Caldas,
260
dirigida ao Ministro de Ultramar, em nove de outubro de
1766, é um documento preciso para avaliar o seu conceito
sobre os homens desta Capitania: “o costume aqui nesses
sertões é que brancos, mulatos e pretos tem a mesma estima e se
tratam com recíproca igualdade e quando ocorre o contrário as
vidas aqui correm perigo”.
Esta observação é válida para o Sertão de Pernambuco.
Assim como nos Sertões do Piauí, o indígena não era
mencionado, assim também acontecia em Pernambuco.
Esta ‘tolerância racial’ dos brancos em relação aos negros
e mulatos estava na dependência direta de uma aliança
que facilitasse o extermínio dos nativos ou, na melhor das
hipóteses, os afastassem de suas terras férteis. Os nativos
estiveram fora da administração, portuguesa ou brasileira,
do sistema de trabalho, a não ser como administradores de
sua própria gente, ou à frente de batalhões de índios, nas
guerras. A participação como mão de obra em alguma fatia
do mundo do trabalho, como guias ou vaqueiros, ocorreu
muito isoladamente e estes não foram registrados nem como
escravos nem como trabalhadores assalariados; as mulheres
colaboraram nos serviços domésticos, acompanharam seus
261
Dispersão
maridos nas guerras, pode-se dizer que foram responsáveis
pela intendência, na constituição dos batalhões; cuidavam
da alimentação, dos remédios, de encontrar fontes de água
e novos caminhos. Das atividades produtivas do sertão,
provavelmente a pecuária foi aquela em que o índio se
sentiu mais à vontade, pela brecha de liberdade que lhe
proporcionava. A presença desta suposta liberdade também
pode se perceber através da documentação contida nos
Livros de Casamento e Batismo e, nos inventários post
mortem, do século XIX. Aí, vemos a formação de algumas
famílias de escravos africanos, famílias de índios e também
o compadrio de índios com africanos e afrodescendentes.
O pesquisador, ao se debruçar sobre esta documentação,
pode localizar famílias escravas, inclusive legitimadas pelos
casamentos religiosos. Ao contrário, na Zona da Mata, pela
forma de exploração e pelas condições de sobrevivência dos
escravos nas senzalas, o aparecimento da família escrava não
é registrado na historiografia com frequência.
Durante o século XIX, após a Independência do Brasil, os
destinos das terras públicas estiveram sob a responsabilidade
das Províncias. Não há nenhum registro de distribuição dessas
262
terras para os índios, que continuavam sendo acossados para
abandonar o que restou dos seus espaços. Na crônica colonial,
essa população, que segundo estimativas para o início da
colonização chegava a 100 mil habitantes, nessa região,
depois da presença das missões, ela ainda aparece entre as
preocupações dos missionários e da burocracia reinol, mas
após a extinção dessas, a população indígena está registrada
na documentação policial.
Além dos conflitos entre índios e colonos e autoridades
locais de Pernambuco pode-se observar dissensões entre
as autoridades acerca do estabelecimento dos índios. O
governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, por
ofício, dirigiu-se ao Secretário de Estado da Marinha e
Ultramar confirmando sobre a devassa que abriu contra o
ouvidor de Pernambuco, Bernardo Coelho da Gama que,
em aliança com ouvidor da Paraíba, perseguia os índios que
estavam estabelecidos em determinado local.
Esta documentação oficial diz muito sobre o destino dos
índios. Após séculos de perseguições, não houve alternativa
que não fosse a dispersão.
Os escritores, de uma maneira geral, têm se debruçado
263
Dispersão
sobre o Sertão com olhares românticos, quase mitificando
a terra e o homem. Os historiadores contemporâneos
ampliam esse olhar e buscam respostas que os auxiliem na
compreensão da história dessa região, desde sua ocupação
mais antiga à formação dessa sociedade.
Observando de forma mais acurada esta sociedade, através
dos Livros de Batismo, de Óbito, dos livros dos Inventários,
dos Livros de Tombo da Igreja e da documentação cartorial,
do século XIX, além de entrevistas com moradores mais
antigos da região, no século XX, podemos compreendê-la
com mais clareza. Apesar de violenta, fechada em um poder
patriarcal, esta sociedade enfrentou muitos desafios, desde
as intempéries do clima, as secas periódicas, a distância dos
centros litorâneos, o abandono das autoridades, e por fim
rematou por encontrar algumas respostas: para manter a
relação vaqueiro/patrão criou o regime de quarteação, no qual
o vaqueiro podia se apropriar de 1% da produção do gado; para
comercializar a sua produção e receber mercadorias de outras
paragens utilizou o Rio São Francisco como via de acesso
a outras capitanias e províncias, surgindo um significativo
mercado interno; para vestir seus vaqueiros, protegendo-os
264
da vegetação espinhosa, inventou o gibão de couro, as camas,
as mesas, os assentos, objetos para guardar comida sólida
e líquida, enfim uma civilização do couro; para preservar a
carne e levá-la a grandes distâncias, ou mesmo para conservá-
la como alimento às populações sertanejas, buscou o uso
do sal e inventou a charqueada; para solucionar conflitos
entre os homens, instituiu uma ética própria, baseada na
fronteira entre homens rudes e místicos, facínoras e heróis,
cangaceiros e fanáticos.
Sertão é uma palavra definidora de muitos conceitos.
Tem origem latina no verbo ser/sero que quer dizer ligar
com fio, tecer, juntar, atar, engajar, encadear. Desta palavra
latina se derivaram outras como desero, deserni, desertum,
que se traduz na língua portuguesa por destacar-se, soltar-se,
desertar.
É sintomático que a palavra na sua origem tenha um
conceito e na sua evolução tenha se dirigido para outro,
que lhe é oposto: atar e soltar, juntar e destacar, encadear e
desertar. O sertão é dialeticamente os dois conceitos, os dois
lados de uma mesma moeda. É uma região de fronteira entre
climas, entre homens, entre tradições, entre a colonização
265
Dispersão
portuguesa e a holandesa, entre o sistema de trabalho escravo
organizado e os quilombos, entre o sistema de trabalho
indígena compulsório e a forma nativa de uma economia
coletora.
267
Ilustrações e tabelas
• Mapa América de Diego Gutiérrez, 1562
• Mapa de área arqueológica para Pernambuco, Barbosa, 2007
• Mapa Estados do Brasil, João Albernaz I, século XVII
• Mapa Terra Brasilis de 1519
• Mapa Kunstmann II, ca. 1502
• Mapa Brasilia e Peruvia, de Cornelius de Jode, 1593
• Detalhe do Mapa Brasilia e Perugia
• Mapa Brasilia de Petrus Bertius, ca. 1616
• Detalhe de mapa de Sebastian Munster, 1532
• Mapa Brasilia qua parte paret Belgis, 1647
• Ilustração de Frans Post do mapa de Marcgraf (1)
• Ilustração de Frans Post do mapa de Marcgraf (2)
• Mapa de Nicolás Vallard, 1547
• Pintura de Albert Eckhout sobre missão em Pernambuco, ca.
1641
• Mapa do litoral de Perna`mbuco de Luís Teixeira, ca. 1582-
1584
• Mapa das missões jesuítas de Serafim Leite, 1953
268
• Tabela aldeias indígenas
• Mapa Vingboons, século XVII
• Mapa Aldeias com missões no São Francisco, Barbosa,
2007
• Tabela aldeias com missões capuchinhas no São
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GOVERNADOR DE PERNAMBUCOPaulo Câmara
SECRETARIA DE CULTURA
Secretário de Cultura: Marcelino Granja
Secretária Executiva: Silvana Meireles
Gerente Geral de Articulação com Instituições de Ensino: Antonieta Trindade
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Este livro foi composto em Phoreus Cherokee, corpos
11 e 18. Miolo impresso em papel couchê 115g/m² e capa
em papel cartão triplex 250g/m². Impresso pela Companhia
Editora de Pernambuco - CEPE, em novembro de 2015.