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“Sertão – Fronteira do Medo” – Socorro Ferraz e Bartira Ferraz

Date post: 19-Nov-2023
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Socorro Ferraz Bartira Ferraz Barbosa Sertão Fronteira do Medo
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Socorro Ferraz

Bartira Ferraz Barbosa

Ser tãoFronteira do Medo

Projeto FunculturaAldeias e Missões Indígenas no Semiárido de Pernambuco

Sertão: Fronteira do Medo

Produtor e Coordenador EditorialItamar Morgado

Autoras e PesquisadorasSocorro Ferraz e Bartira Ferraz Barbosa

Projeto Gráfico e DiagramaçãoLaura Morgado

Assistente de ProduçãoDora Lucena

RevisãoOlga Barbosa Araújo

Assessoria de Imprensa CASA Agenciamento Literário e Projetos Culturais

editor

Sumário

Apresentação • 07

Introdução • 11

Prefácio • 20

Paisagem Sertaneja • 31

Vestígios Indígenas • 49

Sob o Domínio do Medo • 129

Missões, Aldeias, Currais • 181

Ordenando o Caos • 227

Dispersão • 247

Índice de ilustrações • 267

Fontes • 269

Referências Bibliográficas • 273

Imagens da Conquista: a presença indígena

em ilustrações e mapas • 97

5

“Os índios mais por medo que por amor

se hão de remir”

Manoel da Nóbrega

7

Apresentação

Sertão Fronteira do Medo é fruto das pesquisas individuais

das professoras Socorro Ferraz e Bartira Ferraz Barbosa,

cujos textos, pela sua complementaridade, foram reunidos

em um único volume, visando à publicação de um trabalho

consistente, capaz de suprir lacunas na historiografia colonial

pernambucana sobre a saga das populações indígenas da

região do Médio São Francisco. As pesquisas abrangem desde

a chegada dos colonizadores à região até as tensas relações

estabelecidas entre esses grupos, os nativos e as ordens

religiosas de ação missionária em Pernambuco, durante o

processo de colonização.

As pesquisadoras, principiando pela delimitação da região

geográfica onde os grupos indígenas habitavam e onde se

implantaram as missões religiosas, no Sertão de Pernambuco,

no período final do século XVII a meados do século XVIII,

analisaram fontes primárias para desenvolver seus estudos.

Elas utilizaram documentos relativos aos aspectos geográficos

e populacionais, à política indigenista portuguesa, ao controle

8

político-econômico da Coroa portuguesa na distribuição de

títulos e terras, e ao importante papel desempenhado pela

Igreja Católica nessas complexas relações.

Está presente no texto a repercussão socioeconômica das

atividades das fazendas de gado no processo de interiorização

da pecuária, atividade empurrada para o interior pela

monocultura da cana de açúcar, exitosa na zona da mata.

A fazenda de gado, autossustentável, devoradora de terras

ocupadas por índios, opor-se-á em várias ocasiões à execução

da catequese e à administração das aldeias, como política

colonizadora do Estado Português.

O tema é objeto de estudo de Bartira Ferraz desde 1988,

quando apresentou a monografia para graduação na UFPE

Subsídios para a História das Missões em Pernambuco, e em

posteriores trabalhos de mestrado e doutorado, apresentados

no Brasil e no exterior. Além da participação em grupos de

pesquisas acadêmicas e atividades docentes no Departamento

de História da UFPE. Essa convivência com o tema resultou

em uma constante expansão de seus interesses pelo assunto

e numa lista de títulos publicados.

Socorro Ferraz detém significativa produção bibliográfica

9

sobre o tema entre livros e artigos publicados; a sua pesquisa

aborda a presença indígena nessa região no seu passado

histórico mais antigo, e posteriormente suas relações

com os colonizadores através de alianças e de guerras,

investigando como o contato entre essas culturas resultou

na dominação dos nativos, na dispersão e miscigenação deles

e no desaparecimento da maior parte das suas etnias, o que

põe em risco esse importante patrimônio imaterial do nosso

Estado.

A dificuldade de se preservar a identidade histórica

dessas populações deve-se em parte à presença de uma

visão historiográfica etnocêntrica e, também, à escassez

documental, pela precariedade em que se encontram nossos

arquivos eclesiásticos, cartoriais e públicos.

Essa carência foi parcialmente contornada pelo esforço

das autoras, que estenderam suas pesquisas aos acervos

cartoriais e eclesiásticos da região do médio São Francisco,

ainda existentes, e aos acervos documentais do Arquivo

Histórico Ultramarino e da Biblioteca da Ajuda, em Portugal.

Na Holanda, no Arquivo Nacional da WIC – Companhia das

Índias Ocidentais e na biblioteca da Universidade de Leiden,

foram consultados mapas e documentos do século XVII, que

representam e confirmam a visão europeizante do sertão.

As fontes utilizadas, todas elas, seja a crônica, seja a

documentação administrativa normativa civil ou eclesiástica,

do período colonial, trazem em si a marca do medo. Medo

como fenômeno social, produzido pelas relações de poder.

11

Introdução

Sertão Fronteira do Medo trata de um espaço geográfico vasto,

maior que a área mantida pelo sistema colonial português

na costa do Brasil. Um espaço representado pela cartografia

como um território ‘despovoado’, como um lugar do

desconhecido no oeste das terras brasileiras. O sertão, nos

tempos coloniais, constituía uma fronteira física e, ao mesmo

tempo, imaginária para as populações do litoral. Assim, ela

foi representada cartograficamente pelos Estados modernos

do século XVI, Portugal e Espanha, que se aventuraram para

conquistar terras e riquezas a partir de diferentes pontos do

litoral. O termo sertão aparece na documentação portuguesa

sobre a África ocidental a partir do século XV; também foi

usado para nominar e para confirmar os limites das conquistas

e, sobretudo, para apontar a fronteira de diferentes grupos

nativos em áreas não facilmente atingidas pela expansão

marítima e comercial no Atlântico, nos tempos modernos.

Este estudo trata de um sertão como fronteira de domínios

que distingue espaços e limites do mundo conhecido com

(esq.) Mapa da América de Diego Gutiérrez (1562)

(acima)Detalhe do mapa

14

o desconhecido, às vezes imaginado e recriado pelo medo.

Sertão, com diferentes marcas: clima, população e hábitos de

sobrevivência baseados no conhecimento da natureza que aos

europeus colonizadores pareciam diferenças impenetráveis.

Sobre o sertão de Pernambuco poucos estudos foram

publicados, comparativamente ao número de obras que se

ocuparam da região litoral-mata. As obras mais conhecidas

não esgotam informações sobre as populações indígenas,

relativas à ocupação portuguesa, ao desenvolvimento

socioeconômico durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX. As

pesquisas são limitadas, sobretudo, quanto à utilização de

fontes primárias, o que produziu inúmeras generalizações

como a que indica a existência de nativos tapuias

antropófagos, sem estudos antropológicos complementares;

divulgadas por textos e imagens ilustrativas em mapas

sobre os sertões do Brasil, com cenas de esquartejamento

e assado humano, elevaram o grau de repulsa dos europeus

aos nativos brasileiros. Exemplo, o mapa de Gutiérrez1 do

1 Diego Gutiérrez foi um cosmógrafo e cartógrafo espanhol que serviu na Casa de la

Contratación de 1554 a 1569. Seu mapa da América foi um dos exemplares cheios de

acidentes geográficos e preconceitos da época. Apenas duas cópias sobreviveram aos

15

século XVI. Portanto, este livro aponta para a necessidade

de ver o sertão por um olhar de dentro, que esclareça sobre

sua ocupação humana mais antiga, seus conquistadores pré-

históricos e os mais novos dos tempos modernos. Tomou-

se por base a pesquisa documental, a análise e os debates

sobre fenômenos históricos relacionados à conquista e com a

colonização dos portugueses e de outros europeus em regiões

anteriormente ocupadas por grupos indígenas. Colaborando

para a compreensão do problema, âmbitos disciplinares da

História, da Geografia, da Antropologia Social e das Ciências

Naturais e seus cruzamentos constituíram as muitas leituras

feitas para a composição deste trabalho. Dos séculos XVI e

XVII, utilizou-se a História da Província de Santa Cruz a

que vulgarmente chamamos Brasil, de Pero de Magalhães

Gândavo, de 1575, o livro de Gabriel Soares de Souza,

Tratado Descritivo do Brasil, de 1587, A História do Brasil

de 1500 a 1627 de Frei Vicente do Salvador, escrito em

nossos dias. Uma está na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, onde pode ser

vista, e a outra está na Biblioteca Britânica.

16

1627, o mapa de Marcgraf Brasilia qua parte paret Belgis de

1647, a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino

relativa a Pernambuco, de 1590 a 1825; do século XVIII ao

XIX a documentação encontrada no Arquivo Público Jordão

Emerenciano, e o Atlas de Halfeld, publicado no Rio de

Janeiro, em 1860; do século XX, consultamos os escritos de

Capistrano de Abreu, os Anais Pernambucanos de Pereira da

Costa, as análises de Barbosa Lima Sobrinho, o mapa etno-

-histórico de Kurt Nimuendaju, obras de Manuel Correia de

Andrade como Paisagens e Problemas do Brasil, em A Terra e

o Homem do Nordeste e Paisagens do Nordeste Pernambuco

e Paraíba, de Mario Lacerda de Melo e o Sumidouro do São

Francisco de Abdias Moura. Incluem-se também outros

títulos de obras contemporâneas, monografias e teses

produzidas nos programas de graduação e de pós-graduação

de universidades, que possibilitaram melhor conhecimento

sobre diferentes comunidades localizadas nos sertões.

Em seu livro Os Índios na História do Brasil, Regina

Celestino de Almeida (2010) afirma que até pouco tempo

muitos historiadores, como Varnhagem, justificavam o

‘desaparecimento’ do índio da história do Brasil baseados

17

na condição de vítima dada aos nativos das várias regiões

brasileiras. Aculturação, papéis secundários e perda de suas

culturas em contato com o mundo colonial (Varnhagen:1845),

parece não ter sido o único resultado do encontro violento

entre indígenas e colonizadores. Ao contrário, eles não

foram apenas vítimas de confrontos relacionados às guerras

(Puntoni: 2002), reagiram de acordo com suas possibilidades,

usaram estratégias políticas e alianças para a obtenção de

cargos, posses de terras e participação na burocracia colonial

portuguesa e holandesa. Uma nova produção de estudos

históricos coloca o índio, inclusive o do sertão, como sujeito

ativo no processo de colonização, agindo por interesses

próprios e formas diversas.

Ainda foram incluídos neste livro, resultados de pesquisas

anteriores, desenvolvidas na década de 1980, no projeto

Itaparica de Salvamento Histórico, UFPE-CHESF e na década

de 2010, no projeto Opara, UFPE-CHESF, no Projeto de

Integração do Rio São Francisco com as bacias hidrográficas

do Nordeste do Brasil em 2012, e no projeto Rotas Afro-

indígenas em Pernambuco Colonial UFPE e UB (Universidade

de Barcelona). Estas pesquisas abordam o debate sobre a

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presença indígena nos sertões nordestinos de tempos pré-

-históricos aos coloniais, procurando observar e analisar as

ocupações, as dominações impostas pelos discursos, pelas

leis e normativas, assim como pela vigilância e pelo medo.

Uma documentação consistente que permitiu ver os nativos

como atores com suas ações e submissões no processo de

colonização e controle dos territórios, envolvendo diferentes

áreas dos sertões nordestinos e suas fronteiras coloniais.

Alguns manuscritos e documentos impressos revelam

espaços geopolíticos e de poder indígena que chamam

atenção, sobretudo os relacionados com a participação

de nativos em guerras de conquista e de defesa no Brasil.

Alguns mapas ilustram, ainda que de maneira pouco segura,

indicações da existência de espaços indígenas resistentes e

em processo de adaptação nos tempos coloniais.

Finalmente, essa recente discussão sobre o

‘desaparecimento’ dos índios atinge um amplo leque de

preconceitos e atitudes etnocêntricas, racistas e excludentes

que tem dominado largamente a práxis política, jurídica e

intelectual das repúblicas latino-americanas, desde suas

fundações. Neste contexto, a finalidade deste livro é fazer

19

uma releitura de documentos históricos que tratam sobre

conflitos étnicos e sociais e relações de poder envolvendo

grupos indígenas brasileiros, colonos, instituições

governamentais e religiosas.

Este trabalho se ocupa, primordialmente, com

acontecimentos que tiveram lugar na região sertaneja do São

Francisco e de suas relações com as outras regiões, quando os

fatos o exigirem.

20

Prefácio

Falar sobre o sertão é, em si, um desafio. Termo prenhe de

múltiplas definições e de infinitas percepções. Em um ponto

todos concordam: é o espaço ainda por conhecer, conquistar

e colonizar.

Onde começa e onde acaba o sertão? Fronteira sempre

móvel que se define a cada conquista do colonizador, seus

limites são fluidos e devem ser compreendidos não por meros

fatores geográficos, mas pelos históricos e sociais relativos à

conquista e à colonização.

O que caracteriza esse espaço para aqueles que sobre ele

desejam marchar e nele viverem e produzirem? As visões

são múltiplas, aparentemente opostas, mas, que na sua

essência, se complementam e justificam sua incorporação.

É lá que vivem as feras, humanas e animais, às vezes vistas

como feitas da mesma matéria. É onde está a possibilidade

de serem encontradas riquezas e de obter-se a liberdade de

explorar bens e garantir a autonomia aos que se tornarem

senhores de terras e serem agraciados com mercês reais pela

conquista.

21

É, enfim, onde as possibilidades são infinitas e as riquezas

inesgotáveis. Todo sonho de enriquecer é possível de ser

alcançado, dependendo apenas da capacidade e habilidade

de cada um. Mas, ante o desconhecido e a presença de feras

animais e humanas, é também o locus do medo e onde

as relações de dominação devem basear-se na força e na

propagação do medo entre os opositores.

Os tradicionais estudos sobre a conquista dos sertões na

historiografia brasileira partem de pressupostos comuns: a

ideia do vazio humano, ignorando a existência de grupos

que ali viviam desde tempos imemoriais e a saga gloriosa e

civilizatória dos conquistadores.

Estas são sempre as figuras centrais das narrativas, os

responsáveis pela transformação dos sertões em espaços

produtivos e incorporados à dinâmica econômica, social

e política da metrópole ou do Estado Nacional. Os demais

grupos sociais, particularmente os indígenas, surgem como

entraves a serem superados e sua participação fica restrita

aos movimentos de oposição à chegada da civilização. Depois

desaparecem como se em nada tivessem contribuído para a

transformação dos sertões e, menos ainda, como grupos que

22

permaneceram nesses espaços e estabeleceram múltiplas

formas de convivência e sobrevivência ante a nova realidade.

O presente livro de duas brilhantes pesquisadoras - Maria

do Socorro Ferraz Barbosa e Bartira Ferraz Barbosa -, e ainda

mais extraordinárias por serem mãe e filha em perfeita

sintonia em suas pesquisas e análises, nos permite percorrer

outras trilhas para conhecermos a história da conquista dos

sertões pernambucanos, particularmente da região do Médio

São Francisco.

Inicialmente apresentam o cenário onde ocorreram os

eventos que irão analisar com competência a partir de vasta

documentação. Além de revelar as caraterísticas naturais

da região, buscam tornar compreensíveis as relações

socioeconômicas estabelecidas pelos grupos humanos a

partir desse ecossistema.

Em seguida desmistificam o vazio humano dos sertões

antes da conquista. Usando dados obtidos em pesquisas

arqueológicas, históricas e antropológicas, as autoras nos

permitem perceber a grande diversidade de grupos indígenas

que habitavam o Médio São Francisco. Da mesma maneira,

informam-nos acerca das datações de sua presença em vários

23

momentos e pontos dessa região, seus deslocamentos em

busca de melhores áreas para a prática de suas atividades de

subsistência e para fugir do contato com o colonizador.

Assim, as autoras ressaltam a presença de alguns desses

grupos nos vários períodos históricos – da Colônia aos dias

atuais – apontando para sua sobrevivência, apesar de sua

presença ser omitida induzindo-nos ao erro de os crermos

extintos e ou integrados em tal nível que perderam suas

identidades e suas expressões socioculturais particulares.

Em seguida, levam-nos a uma competente e profunda

reflexão de como a imagem genérica, prenhe de preconceitos,

de falsas oposições e de incompreensão desses índios vai

sendo construída no imaginário europeu e brasileiro através

de textos e de representações na cartografia e como estas

vão se acentuando à medida que a conquista avança e os

indígenas estabelecem suas variadas formas de resistência.

As indicações da presença indígena na cartografia

europeia é um dos pontos mais inovadores desse livro,

inclusive por confirmar a existência da grande massa de

população indígena em Pernambuco, apontar as várias

atividades econômicas que exerciam e o grande número

24

de aldeias e aldeamentos que existiam e que vai sendo

diminuído com o passar dos anos. Realidade que só pode

ser compreendida no contexto da conquista, dominação, da

busca de mercês e da justificativa das ações adotadas pelos

conquistadores.

Da mesma forma, essas fontes vão criando a imagem

do sertão ameaçador no qual a presença europeia é vista

como uma vitória, um ganho e uma forma de construir um

novo mundo no qual a barbárie não mais ocupará espaços

importantes para a civilização e a cristandade.

Nessa direção, adentram pelas relações de dominação

instaladas inicialmente no litoral e depois nos sertões entre

índios, missionários, autoridades régias, grandes potentados

e, até mesmo, pequenos lavradores, agricultores, criadores de

gado, escravos de origem africana, quilombolas, portugueses,

franceses e holandeses. A riqueza da análise demonstra a

complexidade dessas relações: conflitos, alianças mutantes,

negociações, dominação e exploração são constantes.

A luta pela terra e mão de obra indígena, fosse livre,

escrava, aldeada, descida, conquistada ou aliada, que atuava

como trabalhador nas várias atividades econômicas e inclusive

25

como guerreiros envolvidos na defesa dos interesses de um

desses segmentos, são os eixos dessa realidade numa capitania

que enriquece com o açúcar. Seus moradores precisam de um

mercado produtor de alimentos e de outros produtos para

sustentar aqueles que se voltam preferencialmente para a

atividade açucareira. Há um mercado consumidor próspero e

o sertão, longe do litoral, é um espaço ideal para satisfazê-lo

por não competir pelas áreas adequadas ao plantio da cana de

açúcar. Consequentemente, a expansão ultrapassa os limites

atuais do Estado de Pernambuco, o que também é objeto de

análise cuidadosa de Socorro e Bartira.

Não menos importante é o trato da questão das missões

religiosas que são criadas no Médio São Francisco e que

atendiam à política dual da Coroa portuguesa. Teria que haver

índios destinados ao cativeiro para satisfazer as necessidades

dos colonos e os interesses econômicos e expansionistas

da Coroa e aqueles que deveriam ser catequizados e

transformados em agentes de propagação do cristianismo e

defensores dos projetos coloniais.

O destaque que atribuem às dificuldades de conversão

dos aldeados e conflitos de interesses entre missionários,

26

índios e colonos merece atenção. Essa é uma realidade em

que avanços e recuos, conflitos, disputas e alianças marcam

a história das relações coloniais.

A partir dos dados coletados, as autoras identificam e

localizam os vários aldeamentos que, segundo a legislação

colonial do período, teriam suas sesmarias demarcadas e

doadas. No desenrolar da narrativa, fica implícito o processo

de expropriação vivido pelos povos indígenas de Pernambuco.

Da mesma forma, é possível identificar a presença de várias

ordens religiosas, as peculiaridades de suas atuações, os

conflitos entre os missionários e sua capacidade de resistência

às pressões dos colonos.

Dentre estes, destaca-se a ação dos Garcia d’Ávila e

dos Saldanha na expulsão de missionários, na retirada de

índios aldeados das missões e na conquista das terras dos

aldeamentos. Também ressaltam as denúncias feitas pelos

colonos contra essas ordens e que serão posteriormente

usadas nos meados do XVIII para justificar a implantação

do Diretório Pombalino nas demais capitanias para além da

Amazônia.

Para finalizar, apontam como essa realidade não decorreu

27

de decisões heroicas e pessoais, mas da política implantada

pela Coroa portuguesa. A preocupação com solidificar

a conquista e expandi-la vai se expressar nos estímulos à

crescente expansão para o Oeste através da concessão de

sesmarias e outras mercês, o que resultaria em maiores

lucros para uma metrópole sempre às voltas com dificuldades

financeiras.

Até mesmo as leis definidas como protetoras, como nos

chamam a atenção as autoras, devem ser analisadas pela

ótica dessa política expansionista. As sesmarias concedidas

aos índios, na verdade, além de não terem sido respeitadas

no processo de expansão, representavam uma significativa

redução dos seus territórios, inviabilizando, muitas vezes, a

capacidade de se sustentarem.

Finalmente, é destacado como essa política metropolitana

levou à dispersão de tribos indígenas, à desterritorialização e

a transformações profundas nas suas formas de viver e de se

relacionar com a sociedade envolvente.

O uso da força e a difusão do sentimento do medo

levaram esses grupos humanos à invisibilidade, ao silêncio e

à busca de refúgios onde puderam sobreviver. Assim podemos

28

entender as abordagens da historiografia e a atual negação ao

reconhecimento desses povos sobreviventes, que abandonam

o silêncio e a invisibilidade na busca por seus direitos.

O livro aqui apresentado é uma obra rara que, ao analisar a

conquista dos sertões do Médio São Francisco, faz-nos refletir

não apenas sobre o passado e sobre a presença indígena

nessa região. Faz-nos repensar o presente e nos oferece a

oportunidade de conhecer uma nova forma de fazer história,

inclusiva e coerente com a complexidade dos momentos

históricos analisados.

Parabéns às autoras e boa leitura a todos que tiverem esse

livro em suas mãos.

Maria Hilda Baqueiro Paraiso

Profª. Titular da Universidade Federal da Bahia

31

A Paisagem Sertaneja

Os espaços indígenas, constituintes da paisagem do nordeste

pré-colonial, estavam dotados de dimensões simbólicas e

culturais tão importantes quanto as dimensões políticas,

econômicas e culturais que os europeus construíram no seu

continente, no seu espaço. Duas considerações podem ser

destacadas nesses espaços: primeiro, em relação à natureza,

isto é, ao solo, relevo, hidrografia, fauna e flora; e, segundo,

a respeito da paisagem, conjunto de formas, que, num dado

momento, exprime as heranças que representam as sucessivas

relações entre homem e natureza. Formas que, combinadas à

vida que as animam, delineiam os espaços indígenas (Santos,

1999: 83). Ao espaço, enquanto continente de todos os

objetos materiais, sistemas e, portanto, dos acontecimentos

relacionados ao homem, pode ser acrescentado outro

ponto de análise, o do espaço como campo da história,

apreendida através de leituras de documentos e pesquisas

contemporâneas (Barbosa, 2007: 36).

Aldeias, caminhos, campos de plantação e de caça,

32

assim como portos e fronteiras constituíam elementos que

animavam e delineavam os espaços indígenas. Mesmo quando

europeus já se faziam presentes na costa de Pernambuco para

atividades de escambo, este espaço era ocupado na forma que

a economia e a cultura nativas exigiam.

Com o projeto colonizador instaurado, foi introduzido

um grande contingente populacional africano, no litoral,

com o intuito de realizar o sistema escravista de produção

do açúcar e a consequente transformação dos espaços e

territórios indígenas pré-coloniais; motivo de mudanças e

criação de novas paisagens.

Considerando a região da capitania de Pernambuco como

parte do espaço português colonial, torna-se necessário

definir o termo espaço que se utiliza neste trabalho. A opção

foi pela definição que diz ser o espaço a soma indissociável

entre sistemas de objetos e sistemas de ações. Nem sistemas

de objetos apenas, nem unicamente sistemas de ações, mas

sistemas de objetos e de ações que se influenciam e cuja soma

nos dá o espaço total (Santos, 1999: 98-99).

Estavam em jogo nessa região, os espaços, incluindo

o espaço português, que se insinuava com o início da

33

Paisagem Sertaneja

colonização sendo depois a este incorporado o espaço

holandês, no século XVII, e os territórios e as fronteiras

indígenas desde antes do contato. Por conseguinte, em nome

da necessidade de controlar e de explorar diferentes grupos

indígenas, os invasores brancos, fixados na costa e nas regiões

do interior do Brasil, aprofundaram rivalidades e vinganças

entre os índios e com essas manobras puderam realizar a

submissão dos nativos e a produção mercantil sob violentas

formas de dominação. Portos, feitorias, engenhos de açúcar e

outras estruturas apoiadoras do desenvolvimento econômico

das metrópoles europeias, provocaram transformações na

paisagem, antes refletindo apenas as intervenções nativas.

O resultado dessas mudanças para atender o projeto colonial

foi a divisão econômica da paisagem, submetida, até certo

ponto, aos diferentes aspectos ambientais do litoral, da mata

e do sertão.

O termo sertão, provavelmente, foi grafado à primeira

vez na língua portuguesa, na Crônica da Guiné, manuscrito

gótico, datado de 1453, encontrado por Ferdinan Denis em

1837, na Biblioteca de Paris. O manuscrito trata da conquista

da Guiné em terras africanas e no capítulo XII narra os

34

assaltos às populações nativas, como se pode ler:

“E sendo afastados do mar quanto podia ser uma légua,

acharam ali um caminho, o qual guardaram, presumindo

que poderia por ali acudir a algum homem ou mulher que

eles pudessem filhar2; ... Antão Gonçalves pos em prazimento

aos outros que fossem mais avante seguir sua intenção ... e

contentes os outros, partiram dali seguindo por aquele sertão

espaço de tres léguas, onde acharam rastros de homens e

moços, cujo número seriam de quarenta até cinquenta ...”

Em português seiscentista, em 20 de dezembro de 1546,

o donatário Duarte Coelho escreveu ao rei D. João III, sobre os

acontecimentos da Capitania e utiliza a palavra sertão dentro

do conceito de terras longínquas: “... eu estava esperando a hora

em que Deus for servido de me dar possibilidade para seguir esta

empresa do sertão que tanto desejo por servir a Vossa Alteza ...”3

Os colonizadores usaram o termo sertão no sentido de nomear

2 A palavra filhar nesse contexto significa escravizar.

3 Das cinco cartas de Duarte Coelho ao rei D. João III, esta é a segunda. As cinco

foram publicadas por José Antonio Gonsalves de Mello e Cleonir Xavier de Albuquerque,

Recife, Fundaj, Editora Massangana,1997, p.105.

35

Paisagem Sertaneja

terras agrestes, longe de aglomerados urbanos. Nem sempre

são lugares muito distantes dos núcleos de povoamento, mas

devem lembrar um lugar do interior, pouco povoado. O nome

sertão traz em si uma ideia, contraditória àquela de litoral.

O conceito de sertão era completamente desconhecido dos

índios, que transitavam em espaços geográficos diversos,

levados por suas necessidades e ou suas tradições. Conviviam

com as diferenças climáticas no que os múltiplos espaços

ofereciam numa relação de autossustentabilidade.

Para os estudiosos contemporâneos, o sertão do nordeste

é uma região quente e seca, integrada à colonização

portuguesa, no século XVII, pela busca de terras para o gado e

sem perder de vista a possibilidade de encontrar o ouro. Esta

procura se iniciou tanto a partir de Olinda, vila principal da

capitania de Pernambuco, quanto a partir de Salvador, vila

principal da capitania da Bahia. Este movimento deu-se na

direção do litoral para o interior e os rios foram os meios

principais para se alcançar os destinos escolhidos.

A região sertaneja do São Francisco, em Pernambuco, é em

relação às outras regiões do Estado, a da mata e a do agreste,

a mais vasta territorialmente, na observação contemporânea

36

do fenômeno. Na cartografia dos séculos XVI e XVII não se

registra a região agreste; aparecem apenas duas regiões, a do

litoral e a do sertão, que eram fronteiriças (Barbosa, 2007).

O clima dessa região é considerado seco e se apresenta

com influências de diferentes massas de ar, baixo índice de

nebulosidade e incidência de irradiação solar; os índices mais

altos de precipitação pluviométrica são da ordem de 1500

mm e os mais baixos, cerca de 350 mm, na nascente e entre

Paulo Afonso e Sento Sé, respectivamente. O solo é recoberto

por uma vegetação de caatinga, cuja densidade e porte variam

consideravelmente, conforme as condições climáticas e

edáficas locais, segundo Manoel Correia de Andrade (1963);

e de acordo com a maior ou menor quantidade de chuvas, o

clima desta área é classificado como tropical com chuvas de

verão.

A temperatura diurna média, no período mais seco,

marca 40°C. As chuvas são mais frequentes entre o outono

e o inverno; são precipitações de baixa densidade e às vezes

tempestuosos aguaceiros, que segundo Gilberto Osório e

Raquel Caldas (1984), acontecem quando o ar frio da frente

polar atlântica se introduz sob a massa de ar tépido dos

37

Paisagem Sertaneja

alísios. O relevo acidentado é de baixa altitude, com duas

depressões semiáridas: a sertaneja e a do São Francisco.

Ambas fazem parte do planalto da Borborema.

A expressão “tristes trópicos”, de Claude Lévi Strauss,

quando se referiu ao interior do Brasil, pode ser mitigada

com a frase de Auguste Saint-Hilaire (1937): “há ali toda a

melancolia do universo, com um sol ardente e os ardores do verão”.

Na opinião do jornalista Euclides da Cunha, que esteve nessa

região em missão de trabalho, fazendo a cobertura jornalística

de Canudos, o Sertão pareceu-lhe muito estranho: as tardes

passavam rápidas, sem crepúsculo, prestes a serem afogadas

na noite. Diante de trovoadas fortes que reboavam como

aguaceiros diluvianos, Euclides da Cunha escreveu em seu

livro, Os Sertões, sua impressão sobre o fenômeno:

“ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o

deserto. Sobre o solo que as amarílis atapetam, ressurge

finalmente a flora tropical” (Cunha, 1963).

À entrada dessa região sertaneja, observa-se um maciço

continental, demarcado pelo Rio São Francisco4 por um lado,

4 Deve-se esta denominação ao piloto florentino Américo Vespúcio, que juntamente

com André Gonçalves chegaram até sua foz, a 04 de outubro, de 1501, dia consagrado

38

e, pelo outro lado o rio Vaza-Barris, denominado Irapiranga

pelos índios tupinambás. Logo se percebe a predominância da

caatinga que, ao contrário da vegetação exuberante da floresta,

procura o sol, apresenta suas árvores quase sem troncos,

esguias e esmagadas pelo calor solar, e muito semelhantes

umas às outras. A vegetação de caatinga predomina em todo

vale médio do São Francisco. Os mandacarus, os xiquexiques,

os cabeças-de-frade, caracterizam a flora dessa região e, mais

uma vez, utilizando informações de Euclides da Cunha,

suas raízes são solidárias, retendo as águas e as terras que se

desagregam formando o solo arável em que se reproduzem.

Há, entretanto, árvores, com as quais o homem sertanejo

tem uma relação mais profunda: o Juazeiro, o Umbuzeiro

e a Jurema. O Juazeiro continua verde durante todo o ano,

nunca perde suas folhas; o Umbuzeiro é uma árvore sagrada

para o sertanejo, produz um fruto saboroso, que o alimenta

e mitiga sua sede; a Jurema é um vegetal usado em práticas

religiosas dos caboclos e rituais indígenas, em forma de

bebida “euforizante”.

a São Francisco de Assis. Os nativos o conheciam pelo nome de Opará.

39

Paisagem Sertaneja

A rede hidrográfica da região é dominada pelo Rio São

Francisco, rio de planalto, cujo leito tem rupturas, declives

e navegabilidade inconstante. O botânico francês Saint-

Hilaire, já citado anteriormente, quando o avistou pela

primeira vez, em Capão do Cleto, no início do século XIX,

descreveu seu curso como “lento e majestoso” (Hilaire, op.

cit.). É o rio mais caudaloso que banha Pernambuco. Das

nascentes até a foz tem 3.161 km de extensão. De todos os

sistemas fluviais do Brasil é o terceiro rio em extensão e o

único formado totalmente em território brasileiro. O Rio

tem trinta e seis afluentes. De sua nascente até a foz corre

para leste e nordeste, depois se volta para o norte, inclina-

se para nordeste, mais uma vez para o norte, depois para o

sudeste até desaguar no oceano Atlântico. Para além do São

Francisco, a rede hidrográfica da região semiárida é modesta,

constituída de rios nem sempre perenes. Portanto, a vida

nessa região está na dependência deste rio. Registramos as

seguintes alterações no nível do rio, durante o seu curso: na

parte que pertence a Minas Gerais, próximo às cabeceiras,

a cachoeira de Casca D’Anta e as corredeiras de Pirapora

estão a mil quilômetros abaixo daquela; a cachoeira de Paulo

40

Afonso está a mil e novecentos quilômetros abaixo da de

Pirapora; as corredeiras de Sobradinho, já em terras baiana

e pernambucana, estão a mil e trezentos quilômetros de

Pirapora e a de Itaparica a quarenta e quatro quilômetros

acima de Paulo Afonso (Pierson, 1977: 35). Após a cachoeira

de Paulo Afonso, o rio corre ladeado por paredões de pedra

de mais ou menos 50 metros. O rio pode ser dividido

fisiograficamente em quatro regiões: alto São Francisco,

médio São Francisco, submédio São Francisco e baixo São

Francisco. A parte alta compreende o trecho do rio entre a

nascente e um ponto abaixo das corredeiras de Pirapora; nesse

trecho estão numerosas corredeiras e cachoeiras. Na parte

média, próxima à cachoeira de Itaparica, estão as corredeiras

de Sobradinho até Juazeiro. E, na parte baixa, descrita entre

um ponto abaixo da cachoeira de Paulo Afonso até o nível

do mar, está o trecho navegável, que vai de Piranhas até o

mar. Estas mudanças no seu curso determinaram o modo de

vida dos homens dessa região desde os tempos mais remotos

até a contemporaneidade. Donald Pierson observou (op.cit.

p. 36), que dada a instável condição das barrancas, o São

Francisco nesse trecho médio muda frequentemente a sua

41

Paisagem Sertaneja

calha, não apenas dentro como fora das barrancas, que o

contêm. Se olharmos do alto de um avião notaremos o curso

de velhos leitos abandonados, parcialmente recobertos de

vegetação. Ao abrir um novo leito, o rio carrega, às vezes,

enormes massas de árvores ou de arbustos, plantações e até

casas, que se encontrem à sua frente. Todos esses detritos

podem se depositar nos bancos de areia, nas ilhas, trazendo

dificuldades à navegação.

Ao longo do curso do Rio São Francisco há uma grande

quantidade de ilhas, todas ricas em solo fértil, ao contrário

do solo pedregoso encontrado em suas margens e nas

barrancas. Halfeld5, no Atlas e Relatório concernente à

exploração do Rio São Francisco, levantou e localizou 334

ilhas desde o Carinhanha até o tributário Xingó. Pereira da

Costa (1953: v.5) conseguiu nomear 71 delas no trecho que

5 Halfeld, Fernando H. G. Atlas e Relatório Concernente a Exploração do Rio São

Francisco desde a Cachoeira da Pirapora até ao Oceano Atlântico, levantado por ordem

do Governo de S. M. I. o Senhor Dom Pedro II, pelo Engenheiro Civil Henrique Guilherme

Fernando Halfeld em 1852,1853 e 1854. Rio de Janeiro: Lithographia Imperial, 1860.

No Brasil foi contratado como oficial mercenário do Corpo de Tropas Estrangeiras do

Exército Brasileiro, tendo dado baixa em 1830.

42

se estende entre o Rio Moxotó, onde o Rio São Francisco

entra no território alagoano, até um local chamado Pau-da-

História, limite com a Bahia. Vários historiadores, geógrafos,

antropólogos e pesquisadores em geral têm diferentes

informações sobre a quantidade de ilhas e ilhotas, porque

ao longo do tempo muitas se agregaram a outras, algumas

foram destruídas por inundações e enxurradas. Por exemplo,

Figueira de Melo, citado por Pereira da Costa, indica apenas as

ilhas de Assunção, a de Santa Maria, a Grande e a da Vargem

e as ilhotas do Pontal, do Saco, Inhanhuns, Missão, São Félix,

Cajucu, Rato, Cabaços e Goiases, indo contra a posição de

Halfeld e de Pereira da Costa.

Há uma relação da Câmara Municipal de Santa Maria

da Boa Vista, feita pelo Conselheiro Sérgio Teixeira de

Macedo, apresentada em forma de relatório à Assembleia

Legislativa de Pernambuco, em 1857, na qual se registram as

edificações locais, chamadas de ‘próprios’; nesta relação são

mencionadas as seguintes ilhas localizadas no São Francisco,

nos limites descritos acima: Pequena, Ingazeira, da Roca,

do Bento, da Vaca, do Leandro, do Caraputé, dos Fuzis, do

Capim, do Redondo, do Sorobabé/Estreito, do Iapecuru, do

43

Paisagem Sertaneja

Sabonete, da Salina, da Pitada, do Mato Grosso, do Pananan,

do Panananzinho, da Cachoeira de Ferrete, do Estevão, das

Areias.

As mais conhecidas dos cronistas e citadas como

territórios habitados por povos indígenas são: ilha de

Sorobabé/Sorobabel, ilha do Acará, ilha de Assunção (antiga

Pambu), ilha do Arapuá, ilha do Cavalo, ilha de Santa Maria,

ilha de Inhanhum, ilha dos Coripós, ilha do Pontal, ilha de

Aricobé, ilha de Belém.

A descrição sobre o Rio São Francisco feita por Donald

Pierson é do início do século XX. Mas, ao longo da história da

ocupação dessa região, há vários relatos. Além da expedição

realizada por Halfeld, que resultou na publicação do seu

Relatório de Viagem e Estudo ao longo do Rio São Francisco,

em 1869, foi publicado o livro Explorations of the Highlands

of the Brazil (Burton, 1869), e nele há registro interessante

sobre o trecho da cachoeira de Itaparica. Segundo o autor, há

passagens subterrâneas pela cachoeira e, entre as serras de

Tacaratu e a de Itaparica, forma-se um estreito canal onde

o rio penetra e corre profundo e violentamente. Este lugar

era conhecido pelos cronistas dos tempos coloniais como

44

o sumidouro do São Francisco. Utilizando-se o Atlas e o

Relatório de Fernando Halfeld, como fonte de informações,

podemos citar muitas ilhas ao longo desse caminho de águas,

a partir da divisa com a Bahia, pelo lugar denominado Pau da

História, passando pelo Carinhanha e na divisa com Alagoas,

pelo rio Moxotó. Ao longo do seu percurso, o rio margeia

vários municípios dos estados de Minas Gerais, Bahia,

Pernambuco, Alagoas e Sergipe.

Uma informação antiga e bizarra sobre o Rio São Francisco

encontra-se em uma carta que o Conde Maurício de Nassau,

em 1636, enviou ao Príncipe de Orange. Após as informações

sobre as vitórias e conquistas, escreve Maurício de Nassau:

“parecendo-me este lugar muito próprio para hostilizar o

País inimigo principalmente onde o Rio mais se estreita,

sendo de uma largura imensa, construí na margem dele uma

fortaleza respeitável a seis milhas distante da praia com a

intenção de construir outra menor na boca dele; será difícil

encontrar em outra parte um rio mais recomendável pela sua

grandeza e excelência; pois a largura é tal que em algumas

partes não chegará a vencer uma bala de seis libras; é tão

arrebatado que longe da sua foz, lá no largo oceano, as águas

45

Paisagem Sertaneja

dele conservam sua doçura; é tão profundo que em alguns

lugares tem 08 braças de alto, em outros 12 e em outros 15;

é de difícil acesso pelas areias que circundam as suas bocas.

Ele tem uma natureza diversa dos outros rios. No inverno,

em que a continuação das chuvas inunda os campos, não sai

do leito. No verão, em que faltam aos outros as águas, [o rio]

transborda por toda a parte. Perguntando aos portugueses a

razão disto me responderam que no sertão, 06 ou 07 milhas

distantes do mar, concorre grande abundância de neve e de

gelo, que desfazendo-se com o calor do estio, engrossavam as

suas águas”6.

A importância desse Rio é assinalada desde os primeiros

tempos, por autoridades do Governo português e pelos

vários cronistas, que o visitaram. Gabriel Soares de Souza

(1851), autor do Tratado Descritivo do Brasil, capitão-mor e

governador da conquista e descobrimento do São Francisco,

projetava chegar às cabeceiras deste Rio, para encontrar

minas de ouro. Apesar de não ter logrado seu intento, deixou

aos estudiosos do Brasil seiscentista uma obra etnográfica

6 Nassau, Mauricio. Documento reproduzido nas cartas de Bagnuolo.

46

sobre os índios de várias regiões do Brasil e também a crônica

sobre várias capitanias. Sobre o Rio São Francisco destacamos

as seguintes observações do autor citado:

“Está o Rio de São Francisco em altura de dez graus e um

quarto, o qual tem na boca da barra duas léguas de largo,

por onde entra a maré com o salgado para cima duas léguas

somente e daqui para cima é água doce que a maré faz recuar

outras duas léguas não havendo água do monte. A este rio

chama o gentio Opará o qual é muito nomeado entre todas

as nações, das quais foi sempre muito povoado e tiveram

uns com outras sobre os sítios grandes guerras, por ser a

terra muito fértil pelas ribeiras e por acharem neles grandes

pescarias. Ao longo deste rio, vivem agora alguns caités de

uma banda, e da outra vivem os tupinambás; mais acima

vivem os tapuias de diferentes castas ...”

49

Vestígios Indígenas

A existência de grupos humanos em uma região subentende

algum conhecimento desse grupo sobre o meio, a construção

de espaços necessários aos processos antropológicos relativos

ao desenvolvimento e à luta diária pela sobrevivência. Em

uma área como a antiga capitania de Pernambuco, diferentes

locais, indicados por pesquisas arqueológicas, históricas e

antropológicas, foram escolhidos por populações indígenas

que, através da manipulação de recursos existentes na

natureza, desenvolveram suas culturas. Locais de habitação,

de trabalho, e de práticas de rituais funerários, entre outros

usos, também chamados contemporaneamente pelos

arqueólogos de sítios arqueológicos; são marcos espaciais

importantes para a pesquisa de hábitos, culturas e migrações

desenvolvidas por páleo-indígenas ao fim do Pleistoceno.

Portanto, os espaços ocupados por grupos humanos pré-

-históricos representam estruturas de ocupação consideradas

importantes quando vistas em relação às fontes de matéria-

prima e de outros elementos identificados no espaço,

Mapa de áreas arqueológicas (Barbosa, 2007)

51

Vestígios Indígenas

inseridos na chamada macroestrutura (Coelho, 2003: 227).

A pesquisa arqueológica desenvolvida por vários

especialistas confirma a presença de grupos humanos pré-

-históricos nos sertões de Pernambuco. Na região do médio

São Francisco, sítios arqueológicos foram localizados

em áreas protegidas, no caso dos abrigos-sob-rocha, nas

semiprotegidas e também em áreas abertas, localizadas nas

terras planas de ilhas ou às margens do Rio São Francisco e de

riachos existentes na região. Nos diversos espaços levantados,

vestígios marcaram diferentes atividades humanas neles

desenvolvidas e o tipo de permanência dos grupos nesses

espaços: de curta duração, para coleta de matéria-prima e

confecção de artefatos, ou de maior duração, para habitação

ou plantio. As escavações arqueológicas e os estudos da

geografia física e humana têm sido caminho seguro para se

obter algumas respostas aos problemas que os historiadores

têm enfrentado. Estudos dirigidos pela arqueóloga Gabriela

Martin obtiveram datações muito antigas sobre a presença

de populações pré-históricas nessa região; no sítio Letreiro

do Sobrado, na antiga Petrolândia, foram obtidas datações

de 980, 1230, 1630, 6390 anos Antes do Presente (AP); no

52

sítio Abrigo do Sol Poente obteve-se a datação de 2760 AP e

no sítio Gruta do Padre, nessa mesma região, conseguiram-

se datações entre mais ou menos 2000 e mais ou menos

7000 anos AP (Martin, 1997). Estas pesquisas arqueológicas

ampliaram-se desde 1980, numa extensão geográfica que

abrange quatro estados do Nordeste: Pernambuco, Sergipe,

Piauí e parte da Bahia, que antes de 1824 pertenciam à

Comarca do São Francisco, na qual se inseria a capitania de

Pernambuco.

Sobre a ocupação humana no Sertão, o geógrafo Aziz

Ab’Saber (1987) entende que as migrações indígenas do

final do Pleistoceno se deslocaram através de vales e áreas

deprimidas, situadas entre platôs, onde o universo ecológico

e biótico, composto por brejos e margens de rios, facilitava

a sobrevivência de grupos, que neles poderiam procurar a

adaptação sobre o meio que se transformava em volta, a

partir de novas condições climáticas. Parece ter sido esta

a paisagem do médio São Francisco, porque os vestígios

arqueológicos dos humanos aparecem em regiões de brejos e

ou de microclimas, em sua maioria.

No município de Petrolândia foram levantados sítios

53

Vestígios Indígenas

formados por abrigos fechados ou semifechados, como o da

Gruta do Padre, o Abrigo do Anselmo, o Abrigo do Sol Poente,

o Letreiro do Sobrado, com grafismos por incisão; o abrigo

no Icó, e os sítios abertos chamados Letreiro de Petrolândia,

com gravuras realizadas em afloramento rochoso à margem

do Rio São Francisco. Os sítios Várzea Redonda e Barrinha

apresentaram material lítico. Todos próximos à cidade de

Petrolândia. No município de Floresta, na Serra do Arapuá,

estão os sítios Riacho do Olho d’Agua I e II, contendo gravuras

e pinturas rupestres. Em Belém do São Francisco, foram

encontrados três sítios na fazenda Pajeú, e, no município de

Itacuruba, estão vários sítios líticos na Barra do Pajeú, e às

margens do riacho do Espinho. No município de Tacaratu,

o sitio Antenor, localizado na área da aldeia Jeripancó, na

margem esquerda do rio Moxotó, apresentou material lítico

tecnicamente semelhante às peças encontradas na gruta do

Padre, assim como ao material achado em outros sítios dessa

área, chamada de Itaparica (Coelho, 2003: 228-241).

No sertão do São Francisco, pesquisadores responsáveis

pelo projeto Xingó escavaram o maior cemitério indígena

até então encontrado no Nordeste brasileiro: o Cemitério

54

do Justino. Encontrado no vale médio do citado rio, no atual

município de Canindé, em Sergipe; local expressivo para

a ocupação pré-histórica pela sua ligação entre o Rio São

Francisco e o Riacho de Curitiba, onde escavações realizadas

pelo projeto de salvamento arqueológico de Xingó levaram

a datações radiocarbônicas que indicam ter sido praticado

enterramento humano neste sítio-necrópole em 1280,

1770, 2500, 3270, 4340 e 8950 anos AP. Desse sítio, foram

exumados 157 esqueletos completos, fora os que foram

destruídos por enterramentos posteriores (Martin, 1997:

78-81). Jacionira Silva chama atenção para existência de

diferentes culturas:

“A área arqueológica de Xingó, tomando-se como exemplo o

sítio/acampamento de céu aberto chamado de Sítio do Antenor

tem, até o presente momento, se caracterizado de forma distinta

da área arqueológica de Itaparica, de sítios de céu aberto,

quando comparados os aspectos de variedade de tipos e formas

de artefatos do equipamento doméstico” (Silva, op. cit. p. 241).

Dados sobre grupos pré-históricos ceramistas existentes

na região do sertão foram obtidos através do projeto

Cultivadores Pré-históricos do Semiárido Nordestino,

55

Vestígios Indígenas

desenvolvido pelo Laboratório de Arqueologia da Universidade

Federal de Pernambuco. Ao contrário do que afirmam

alguns pesquisadores sobre a utilização e desenvolvimento

da cerâmica indígena pré-histórica, ligada principalmente

à cultura do plantio da mandioca em regiões úmidas, foi

possível concluir que esta região semiárida apresenta

também condições para o desenvolvimento da cultura da

mandioca; portanto, de grupos indígenas ceramistas.7

Informações sobre a existência de sítios pré-históricos

com cerâmica e material lítico nessa região levaram à

escavação do sítio arqueológico Aldeia Baião, localizado no

sopé da chapada do Araripe, no município de Araripina,

onde Pernambuco faz fronteira com o Piauí a Oeste e com o

Ceará ao Norte. Os tipos de utensílios cerâmicos, produzidos

por este grupo nativo estudado durante a pesquisa no sítio

7 As pesquisas arqueológicas no Brasil, no tocante a grupos ceramistas, estão

basicamente restritas às áreas litorâneas e amazônicas de domínio das formações

florestais úmidas e semiúmidas. Estas pesquisas levaram à conclusão de que os grupos

de povos ceramistas se desenvolveram em regiões mais úmidas, e só aparecem em

regiões semiáridas por pressões externas, ou como grupo de caçadores coletores,

ficando a cerâmica associada a grupos de povos agricultores.

56

Aldeia Baião, levaram à constatação de que também nessa

região se produziu cerâmica utilitária e que as técnicas de

produção utilizadas pelo grupo foram pelo menos de onze

tipos de formas diferentes. Portanto, a cerâmica, para este

grupo, era uma prática cultural bem conhecida (Nascimento,

1991: 143-193).

Além da arqueologia, estudos linguísticos podem dar

informações valiosas acerca desses grupos humanos. Greg

Urban, no livro de Manuela Carneiro da Cunha, História

dos Índios no Brasil, escreveu que é possível obter, através

do estudo das línguas nativas, esclarecimentos acerca da

cultura indígena brasileira. Estas análises podem sugerir a

existência de diferentes grupos étnicos, tanto no período que

antecedeu ao contato com os europeus como depois. Estes

conhecimentos sugerem que na capitania de Pernambuco

foram encontrados diferentes grupos de uma mesma família

linguística e grupos de línguas tidas como isoladas. Constam

como línguas isoladas para a região em estudo as línguas

Tuxá/Truká, Pankararú, Tarairiú, Choko e Umã (Urban, 1998:

87-99).

Em Pernambuco, os cursos médio e baixo do Rio São

57

Vestígios Indígenas

Francisco tiveram um papel peculiar na comunicação

com outras regiões que se faziam ligar por rios tributários

temporários, como os rios Moxotó e Pajeú. A bacia do São

Francisco e seus tributários serviram, assim, como caminho

de muitos grupos humanos pré-históricos, desde o fim do

Pleistoceno (Martin, 1997: 50). Também os rios Capibaribe e

Ipojuca, entre outros, que ligavam o litoral à região Agreste, e

os caminhos por terra, foram utilizados por diferentes grupos

linguísticos, permitindo e facilitando as comunicações entre

eles.

Missionários, como padre Manoel da Nóbrega e outros,

que estudaram a cultura indígena através das línguas

faladas, dividiram os nativos em dois grupos: os que falavam

línguas aparentadas, homogeneizadas e denominadas, pelos

próprios jesuítas, de língua geral, e os outros, cujas línguas

não demonstravam maiores relações entre si, considerados,

também por esses religiosos, como pertencentes ao grupo gê

ou tapuia.

O padre Antônio Vieira, quando esteve no Brasil no século

XVII, escreveu sermões sobre a vida social e moral na colônia,

declarando que:

58

“A segunda circunstância que pede grande cabedal de amor

de Deus, é a dificuldade das línguas no Brasil e que é uma

empresa muito difícil aprender estas línguas, só com estudo e

muito trabalho”.

E continua a sua pregação:

“Se é trabalho ouvir a língua que não entendeis, quanto

maior trabalho será haver de entender a língua que não ouvis?

O primeiro trabalho é ouvi-la; o segundo percebê-la; o terceiro

reduzi-la à gramática e a preceitos; o quarto estudá-la; o quinto

(e não o menor, e que obrigou a São Jerônimo a limar os dentes)

o pronunciá-la. E depois de todos esses trabalhos ainda não

começastes a trabalhar porque são disposições somente para o

trabalho” (Vieira, 1940).

Neste receituário do padre Antônio Vieira logo se nota a

utilização da língua para o objetivo maior da colonização que

é formular preceitos ideológicos e fazer com que os mesmos

sejam responsáveis por mudanças radicais na cultura dos

indígenas. Os cronistas do período são unânimes em afirmar

que, da mesma forma com que os indígenas recebiam as

novas informações dos missionários, com a mesma facilidade

as abandonavam. Por outro lado, o contato, para qualquer

finalidade, dependia das dificuldades quase “desesperantes do

59

Vestígios Indígenas

empreendimento, a primeira das quais resultava da penosíssima

inteligência das línguas faladas pelos indígenas” (Vieira, op.

cit).

Curt Nimuendaju, nome indígena de Kurt Unkel8,

diferentemente dos jesuítas, considerou três grandes

famílias linguísticas: gê, kariri e tupi. Segundo este etnólogo,

as línguas isoladas foram fulniô, xokó, pankpara, araru e

pataxó; todos, grupos isolados que podem ser o resultado de

8 Autor de um mapa etno-histórico, concluído em 1944, editado pelo IBGE em

colaboração com a Fundação Nacional Pró-Memória. Rio de Janeiro: IBGE, 1987.

Kurt Unkel nasceu em Jena na Alemanha e foi um autodidata e declarou não ter tido

nenhuma instrução acadêmica. Conheceu a tribo Guarani no oeste de São Paulo em

1905 e permaneceu com eles até 1907. Foi aí que perdeu o nome primitivo de Kurt Unkel

para Curt Nimuendaju. Durante muitos anos viajou pelo interior do Brasil fazendo

pesquisas junto a grupos indígenas. Viajou a serviço do Museu Nacional e do Museu

Paraense e dos museus de Gotemburgo, Dresden, Hamburgo, Leipzig, Viajou, também,

a serviço para o Carnegie Institute e para a Universidade da Califórnia. Divulgou

seus trabalhos em revistas especializadas, principalmente em etnologia em centros

como Berlim, Viena, Paris e Stuttgart. Este mapa, conforme o autor, não se baseia

em trabalho de nenhum outro autor. A classificação linguística da quase totalidade

das tribos foi examinada e documentada por ele. Excepcionalmente usou alguma

classificação de Paul Rivet e de Koch-Grünberg. Desenhou três exemplares desse mapa:

um para o Museu Goeldi, outro para a Smithsonian Institution e um terceiro para o

Museu Nacional.

60

famílias linguísticas que se dispersaram e que são referências

mais antigas. As línguas tuxá/truká, tarairiu e umã não foram

citadas por ele.

As cartas do Padre Fernão Cardim, escritas de Londres

ao Rei de Portugal, referidas por Serafim Leite (1949: 132-

137), remetem-nos a diálogos sobre diferentes regiões e

populações indígenas, em contato com portugueses no início

da colonização, com muitos detalhes, inclusive sobre o litoral

da capitania de Pernambuco e regiões do sertão. Autores

do século XVI como Gabriel Soares de Souza (1991) e Hans

Staden (1945) afirmam estarem no litoral do Brasil aldeias

de nativos de “língua geral”. Este termo resultou de uma

uniformização léxica de vários dialetos e veio a ser fixado

na Gramática do padre José de Anchieta, após o trabalho de

pesquisa de vocabulário realizado por padres e missionários

jesuítas, no século XVI. Hoje, estes dialetos são classificados

como pertencentes ao tronco linguístico tupi. A ausência

do termo tupi para designar uma língua ou etnia nativa

existente no litoral do Brasil durante os séculos XVI e XVII,

onde se dizia falar a “língua geral”, com raras exceções, chama

atenção para o início da sua utilização.

61

Vestígios Indígenas

Pesquisando entre documentos e obras impressas nos

séculos XVI, XVII e XVIII, não foi encontrado o uso do termo

tupi para designar a língua mais falada na costa do Brasil,

conhecida também como a “língua geral dos índios da costa

do Brasil”. Com este significado, o termo veio a aparecer

em notas de Francisco Adolfo de Varnhagen, escritas para

o Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa,

publicadas em 1851. Varnhagen afirma que a maioria das

tribos do Brasil teria pertencido aos ‘tupis’ e que todas as

outras teriam sido chamadas de ‘tapuias’.9 Curiosamente,

o primeiro volume dos Beitrage zur Ethnographie Amerika’s

zumal Brasiliens escrito por Von Martius, publicado em 1867,

não traz o termo tupi no título, apesar de seu conhecimento

sobre as obras supracitadas, mas traz uma longa explicação

sobre os ‘tupis’ como sendo o conjunto de várias nações

com diferentes territórios, e usa o termo tupi para ilustrar

o mapa colocado no final da sua obra (Martius, 1867). As

9 Varhagem faz esta afirmação nas notas 221 e 222, após exames de muitos códices

manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, publicadas na quarta

edição do Tratado descritivo do Brasil, de 1587, pela coleção Brasiliana, vol. 117.

Companhia Editora Nacional, EDUSP, São Paulo, 1971.

62

diferenças linguísticas podiam ser significativas entre as

tribos indígenas existentes no litoral e pelos sertões, mesmo

havendo entre elas relações amistosas ou hostis. No entanto,

a língua geral, hoje dita tupi, a mais falada entre nativos da

costa do nordeste brasileiro, foi dada como instrumento

comum. Compreendê-la e poder falá-la significou muitas

vezes sobreviver entre nativos, como testemunhou Hans

Staden em seu relato recheado de frases e palavras da ‘língua-

geral’ usada pelos tupinambás10.

O conhecimento da “língua geral” revelou-se um

importante elemento facilitador para o povoamento

português e a colonização. Seu conhecimento e divulgação

implicaram na necessidade de criar uma gramática da ‘língua

geral’, baseada no modelo latino de gramática, como a que

foi construída pelo padre jesuíta José de Anchieta, editada

10 No capítulo XXV, Staden mostra, entre outras passagens do seu texto, como

dominava a comunicação; escrevia a língua nativa e a traduzia. Neste capítulo,

explica por que os tupinambás devoram os inimigos: “Não o fazem por fome, mas

para dar largas ao ódio e à inveja. Quando nos combates, gritam com grande fúria:

‘dete immeraya schermiuramme heiwoe!’ A ti te sucedam todas as desgraças, ó minha

comida!” In: Hans Staden. Narração breve e verdadeira sobre o comércio e costumes dos

Tupin Inbas, cujo prisioneiro eu fui. Op. cit. p. 53-54.

63

Vestígios Indígenas

em 1595.11 Padres-missionários não somente aprenderam a

utilizá-la, como obrigaram sua aprendizagem entre nativos

de outras tradições linguísticas. A gramática da língua

mais usada na costa do Brasil, escrita por Anchieta, foi

utilizada em forma de manuscrito a partir do ano de 1556

no Colégio da Bahia; com base em uma língua franca, tinha

função utilitária e sua sistematização objetivava garantir a

comunicação (Puntoni, 1998:5-19).

Relações interétnicas e articulações políticas entre nativos

e diferentes frentes colonizadoras podem ser detectadas

através da documentação histórica e cartográfica existentes;

do mesmo modo, tornaram-se conhecidas as articulações, por

vezes políticas, nas quais guerras e alianças protagonizaram

o jogo entre aldeias de um mesmo grupo indígena ou entre

nativos e as diferentes frentes colonizadoras com as quais

ocorriam trocas.

Detalhes sobre territórios e espaços ocupados por nativos

11 Com o título: Arte de Gramática da Lingoa mais usada na Costa do Brasil. Pelo

padre Joseph de Anchieta da Companhia de Jesus, esta obra é considerada a primeira

gramática da língua guarani por estudiosos como W.N. Dominguez e a primeira

gramática do Tupi por Plínio Ayrosa.

64

do litoral e do sertão da capitania de Pernambuco são

encontrados no Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares

de Sousa, no Tratado da Terra e Gente do Brasil, de Fernão

Cardim, no relato de frei Martinho de Nantes e no Tratado

de História da Província de Santa Cruz de Pero de Magalhães

Gândavo. Sobre um fator que possibilitou a sobrevivência da

colonização portuguesa no Brasil, Gândavo escreveu:

“que não se pode numerar nem compreender a multidão

de bárbaro gentio que semeou a natureza por toda esta terra

do Brasil; porque ninguém pode pelo sertão dentro caminhar

seguro, nem passar por terra onde não ache povoações de índios

armados contra todas as nações humanas, e assim como são

muitos, permitiu Deus que fossem contrários uns dos outros,

e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se

assim não fosse os portugueses não poderiam viver na terra, nem

seria possível conquistar tamanho poder de gente” (Gândavo,

1995: 24).

Citados por cronistas e por documentos manuscritos

coevos, caetés e tabajaras aparecem como habitantes do

litoral da capitania de Pernambuco. Na costa predominavam

aldeias de nativos caetés, que se localizavam entre o Rio

65

Vestígios Indígenas

São Francisco e a divisa da capitania de Itamaracá, onde

começava o território tabajara ou tabayré, todos falantes

da “língua geral”. Os tabajaras tinham aldeias na divisa da

capitania de Pernambuco com a de Itamaracá até o rio Abiay,

que divide a capitania de Itamaracá da capitania da Paraíba.

Tabajara era termo usado para designar inimigos da mesma

origem, ou o mesmo que inimigos cunhados, aqueles que

poderiam ser aprisionados em guerras travadas entre aldeias

por motivo de expansão ou contração de seus territórios, ou

por vingança (Gama, 1979: 30-31).

Os potiguares foram vizinhos dos tabajaras no litoral

Norte; seus territórios se estendiam pela costa da Paraíba,

pelos sertões e pelo litoral dos atuais estados do Rio Grande

do Norte e Ceará. No entanto, a cartografia portuguesa

colonial não tratou sobre as fronteiras ou sobre os territórios

indígenas existentes no período da ocupação portuguesa

na capitania de Pernambuco e suas vizinhas, mesmo tendo

bastante informação dos cronistas da época. Há registros de

termos nativos referentes às populações indígenas existentes

nos territórios conquistados ou em vias de serem ocupados

pelos colonos portugueses. As observações de Gabriel Soares

66

de Sousa sobre os caetés poderiam ter sido uma fonte

primordial para a cartografia. Atente-se para esta:

“Este gentio nos primeiros annos da conquista d’este estado

do Brasil senhoreou d’esta costa da boca do rio de S. Francisco até

o rio Parahyba, onde sempre teve guerra cruel com os Pitiguares,

e se matavam e comiam uns aos outros em vingança de seus

ódios, para a execução da qual entravam muitas vezes pela terra

dos Pitiguares e lhes faziam muito damno. Da banda do rio São

Francisco guerreavam estes Pitiguares em suas embarcações

com os Tupinambás, que viviam da outra parte do rio, em cuja

terra entravam a fazer seus saltos, onde captivavam muitos, que

comiam sem lhes perdoar.... Pela parte do sertão, confinava este

gentio com os Tapuias e Tupinaês, e se faziam cruéis guerras, para

cujas aldeias ordinariamente havia fronteiros, que as corriam e

salteavam. E quando os Caytés, matavam, ou captivavam alguns

contrários d’estes, tinham por mor honra, que quando não faziam

outro tanto aos Pitiguares nem aos Tupinambás. Este gentio é

da mesma cor baça, e tem a vida e costumes dos Pitiguares, e a

mesma língua que é em tudo como a dos Tupinambás, em cujo

titulo se dirá muito de suas gentilidades.

São estes Caytés mui bellicosos e guerreiros, mas mui

67

Vestígios Indígenas

atraiçoados e sem nenhuma fé nem verdade, o qual fez os dannos

que fica declarado, à gente da nação do bispo, a Duarte Coelho,

e a muitos navios e caravelões, que se perderam n’esta costa,

dos quaes não escapou pessoa nenhuma, que não matassem

e comessem, cujos damnos Deus não permitiu, que durassem

mais tempo; mas ordenou de os destruir d’esta maneira.

Confederaram-se os Tupinambás seus visinhos com os Tupinaês

pelo sertão, e ajuntaram-se uns com os outros pela banda de

cima, d’onde os Tapuais também apertavam estes Caytés,

e deram-lhes nas costas, e de tal feição os apertaram, que os

acabaram de desbaratar; e os que não puderam fugir para a

Serra do Aquetiba não escaparam de mortos ou captivos. D’estes

captivos iam comendo os vencedores quando queriam fazer suas

festas, e venderam d’elles aos moradores de Pernambuco e aos

da Bahia infinidade de escravos a troco de qualquer cousa, ao

que iam ordinariamente caravelões de resgate, e todos vinham

carregados d’esta gente, a qual Duarte Coelho de Albuquerque

por sua parte acabou de desbaratar.

E d’esta maneira se consumiu este gentio, do qual não há

agora senão o que se lançou muito pela terra dentro, ou se

misturou com seus contrários sendo seus escravos, ou se aliaram

68

por ordem de seus casamentos. Por natureza são estes caités

(a grafia muda aqui de y para i) grandes musicos e amigos de

bailar, são grandes pescadores de linha e nadadores, também são

mui cruéis uns para os outros para se venderem, o pai aos filhos,

os irmãos e parentes uns aos outros; e de maneira são cruéis, que

aconteceu o anno de 1571 no Rio de S. Francisco estando n’elle

algumas embarcações da Bahia resgatando com este gentio,

em uma de um Rodrigo Martins, estavam alguns escravos

resgatados, em que entrava uma índia Caité (novamente com

i), a qual enfadada de lhe chorar uma criança sua filha a lançou

no rio, onde andou de baixo para cima um pedaço sem se afogar,

até que de outra embarcação se lançou um índio a nado, por

mando de seu senhor que foi tirar; onde a baptizaram e durou

depois alguns dias. E como no titulo dos Tupinambás se conta

por extenso a vida e costumes, que toca a mor parte do gentio que

vive na costa do Brasil, temos que basta o que está dito até agora

dos Caité” (Souza, 1971: 34-36).Foram, portanto, os caetés

classificados por Soares de Sousa como pertencentes ao

conjunto de nativos falantes da “língua-geral”, e foi dito que

estes viviam em regiões do litoral pertencentes à capitania

de Pernambuco e faziam guerra contra seus vizinhos: os

69

Vestígios Indígenas

Tupinambás, os Tupinaês e os Tapuias, pelo lado dos sertões, e

os Pitiguares ou Potiguares nas fronteiras do litoral ao Norte

e os Tupinambás nas do litoral Sul do Rio São Francisco.

Com o início da colonização portuguesa no litoral, e

depois com a sua expansão pelos sertões da capitania de

Pernambuco, tribos reconhecidas como não pertencentes

ao grupo linguístico dominante na costa (caetés, tabajaras

e potiguares) começaram a ser conhecidas. Os nativos

não falantes da “língua–geral” das terras de Pernambuco

localizavam-se nas regiões do Agreste e do Sertão. Lá, ficaram

por algum tempo intocados, e não mantiveram, como os

trairirus, contatos com colonos no litoral, do século XVI a

meados do século XVII. Sobre esses nativos não pertencentes

ao tronco linguístico tupi, uma das primeiras referências é a

do padre jesuíta Juan de Azpilcueta Navarro, escrita em maio

de 1555.12 Ele relata ter entrado pelos sertões em missão,

por ordem do padre Manoel da Nóbrega, para descobrir

outras nações de nativos. Nessa viagem, o jesuíta Azpilcueta

12. Carta do padre Juan de Azpilcueta escrita de Porto Seguro a 24 de maio de 1555. In

Cartas Jesuíticas II. Cartas Avulsas 1550-1568. Publicações da Academia Brasileira.

Officina Industrial Graphica , Rio de Janeiro, 1931. p. 146-151.

70

e mais doze companheiros encontraram nativos tapuia, e

Azpilcueta os descreve, sendo esta provavelmente a primeira

de muitas outras descrições que apareceram. Gabriel Soares

de Sousa (Op.Cit: 360-419) e padre Fernão Cardim (1998:

198-227) entre outros, fizeram também relatos sobre os

tapuias. Anchieta escreveu:

“diversas nações de outros bárbaros de diversas línguas a

que estes índios (os tupi, carijós) chamam de tapuya, .... porque

todos os que não são de sua nação tem por tais e com todos tem

guerra”.13

Línguas e dialetos indígenas tiveram para a catequese

grande importância, pois se tratava de substituir culturas

nativas pelo evangelho cristão, ensinado por padres e

missionários através dos trabalhos de catequese. Batista

Caetano considera vários significados para o termo tapuia: o

composto de tapy-eyi, que significa comprado, aprisionado,

cativo, ou ainda récua ou chusma; taba-eyi, a récua ou plebe,

do povo; ou ainda o termo tapyi, que significa choça, cabana,

13. José de Anchieta. “Informações do Brasil e de suas capitanias (1584)”. In: Cartas,

informações, fragmentos históricos e sermões. Itatiaia/Edusp, Belo Horizonte/São

Paulo, 1998. p. 310

71

Vestígios Indígenas

termo que pode ter sido alterado de tog-pii ou to-pil, que

quer dizer casa pequena, ou talvez, de top, folha, com algum

outro sufixo que, nesse caso, tem relação com tapuol, folha

em chilidugu, língua dos nativos chilenos.14

A respeito da língua dos tapuias, Von Martius afirma

existirem várias, e não apenas uma, como se pensava

anteriormente, designando a todas elas de tapuia. Ele

destacou a existência de três línguas, uma delas a língua Jê.

Posteriormente, ao se estudarem as outras duas, verificou-

se pertencer uma delas também à família Macro-Jê (Melatti,

1980: 33). O jesuíta Juan de Azpilcueta Navarro usou o termo

tapuzas, Gabriel Soares de Sousa tapuia, e Anchieta, tapiia.

Portanto, várias foram as formas do termo Tapuia, de que já

se fez uso.

No dizer de Cardim:

“Há outras nações contrárias e inimigas destas (as tupi), de

diferentes línguas, que em nome geral se chamam tapuyas que

tambem entre si são contrárias;” (Cardim, 1997: 197).

14. Notas de Batista Caetano em Tratados da Terra e Gente do Brasil (1590) de Fernão

Cardim. Edusp/Itatiaia, São Paulo/Belo Horizonte, 1980.

72

Os primeiros contatos, durante o século XVI, que

produziram a imagem bipolar da humanidade indígena

no Brasil, foram sendo assimilados, inicialmente, pelo

convívio com nativos da costa e com alguns dos sertões,

que se consideravam diferentes dos tapuias. Com aqueles,

os portugueses se aliaram. A distinção linguística foi uma

preocupação que nasceu também das ações missionárias,

pois, do entendimento, mesmo que generalizado, das

diversas línguas tapuia, dependia o sucesso da substituição

das culturas indígenas pelo evangelho pregado através da

catequese. Nas ações missionárias entre os nativos não

falantes da “língua geral”, foi comum o uso de nativos como

tradutores, pois, estudar as diferentes línguas tapuia e propor

uma gramática para cada uma, como o fez Anchieta para a

“língua geral” (Anchieta, 1980), seria obra que demandaria

tempo e uma política de exploração econômica dos espaços

nos sertões do ‘Novo Mundo’ não podia esperar. Afirma

Puntoni, “a imensa heterogeneidade dos povos habitantes das

terras interiores da região Nordeste era compreendida, então,

como um mundo da alteridade em relação ao universo tupi”, e a

polaridade tupi/tapuia demonstra também a sobrevivência

73

Vestígios Indígenas

de povos nativos de “língua-geral” vivendo em aldeias em

contato com missionários, em paralelo aos contrários destes

pela língua e costumes, os tapuias, que viviam sem catequese

(Puntoni, 2002: 64-65).

Todas as línguas tapuia foram desprezadas durante esse

período, com exceção da língua kariri de nativos tapuia que

viveram na capitania de Pernambuco. Os kariris, ou kiriris,

formavam numerosas tribos que habitavam diferentes regiões

dos sertões nordestinos. A língua kariri foi uma das poucas

línguas tapuia a serem trabalhadas no período colonial, nos

séculos XVI e XVII. Registram-se, de Luiz Vicêncio Mamiani,

dois trabalhos, um sobre a gramática kariri, e outro sobre

o catecismo na língua kariri.15 Para Batista Caetano, não

está resolvido que o kiriri seja, efetivamente, e no rigor da

palavra, dialeto da língua-geral; mas vê-se que tem muito

dele, assim como do kechuacabu, e, principalmente, dos

15. Mamiani, Luiz Vicêncio. Pe. (S.J.). Arte de Gramatica da língua Brasílica da naçam

kiriri. Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, 1699. Também dele Catecismo da doutrina

christã na língua brasílica da naçam kiriri. Lisboa: Officina Officina de Miguel

Deslandes, 1698. (ed. Fac-similar). Prefácio: Rodolfo Garcia. Imprensa Nacional, Rio

de Janeiro 1942.

74

dialetos pampeanos, como o dos chiquitos, de cujo extenso

vocabulário tem-se apenas ligeiro extrato.16 Essas afirmações

suscitam controvérsias sobre suas origens, mas demonstram

serem esses nativos antigos nesta região, pela sua relação

multicultural refletida na linguagem oral.

Gabriel Soares de Sousa e o padre Fernão Cardim, no

século XVI, e fontes portuguesas, francesas e holandesas,

do século XVII, como Frei Vicente do Salvador, Martinho de

Nantes, Luiz Vicêncio Mamiani, Barleus, Roulox Baro, Elias

Herckman, que deixaram trabalhos impressos, assim como

a cartografia de diferentes autores, forneceram informações,

interpretações e mesmo pistas sobre diferentes línguas e

grupos nativos.

A história dos grupos indígenas do período colonial toma

como ponto de partida a análise da documentação colonial

composta por apresentações e descrições de aldeias, povos,

flora e fauna encontradas nas terras conquistadas por

portugueses. As descrições dos territórios e das fronteiras

16. In notas de Barbosa Lima Sobrinho na segundo edição da Relação de Uma Missão

no Rio São Francisco Frei Martinho de Nantes. São Paulo, Ed. Nacional, Brasiliana,

1979. p. 104-105.

75

Vestígios Indígenas

dos nativos da capitania de Pernambuco, referentes ao período

colonial, estendem-se do século XVI até o século XIX. Textos e

imagens, apesar de pretenderem ser informativos em relação

aos diferentes territórios e aos diversos grupos indígenas,

exprimem dificuldades em perceber e distinguir diferenças

culturais nativas. Estes embaraços levaram à generalização de

conceitos sobre povos com diferentes línguas e de grupos com

diferentes dialetos.

Sociedades nativas foram vistas e interpretadas por grande

parte dos cronistas coloniais como selvagens e cruéis, mesmo

quando aliadas aos portugueses ou aos franceses. Chegaram

a ser inseridas na categoria de animais quando as referências

estão relacionadas com a zoologia. No testamento de Maurício

de Nassau há alusão aos nativos dentro desta linha de

raciocínio, mesmo que este príncipe tenha sido considerado

um homem do mundo moderno, por muitos historiadores.

Descrevendo sobre os perigos dos estrangeiros se adentrarem

nos sertões, no seu testamento, ele se expressou da seguinte

forma:

“estrangeiros franceses, holandeses e ingleses que vão ao

interior cobrar dívidas ou portugueses que aí moram são atacados

Mapa de João Albernaz I com as principais “nações” indígenas. (Século XVII).Acervo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

77

Vestígios Indígenas

pelos negros dos matos, pelos tigres e outros animais.”

Manuel Ayres de Casal, na sua Corografia Brazilica ou

Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil, em trecho

reservado à zoologia, refere-se aos nativos em geral e a algumas

nações, como sendo repartidas em hordas e tribos. Sobre os

nativos puri, escreveu:

“São inimigos formidáveis dos Coroados: usam arco e flecha

arpoada: estimam muito qualquer instrumento de ferro, e

sobre todos o machado. As peles dos animais nem lhes servem

de vestuário, nem de colchão, nem de cobertor. Entre outros

quadrúpedes selváticos, são bem conhecidos os veados, os porcos,

os macacos...”17.

Nessa obra, que também foi o primeiro estudo naturalista

sobre a terra do Brasil, publicada no Brasil em 1817, Ayres

de Casal expõe uma relação de cerca de 80 tribos indígenas

ao lado de plantas e animais. Com efeito, a todos os nativos,

com exceção dos tupinambás foi dada a condição de canibais.

Há, também, referências à diminuição de muitos povos

17. Casal, Pe. Manuel Ayres de. Corografia Brazilica ou Relação Histórico-Geográfica do

Reino do Brasil. Coleção Reconquista do Brasil, vol. 27. EDUSP, Livraria Itatiaia Editora,

Belo Horizonte, 1976. p.15

78

nativos, o que não nos espanta pela época de sua publicação

(Schwanborn, 1998: 193). Ao contrário de Ayres de Casal, os

tupinambás foram vistos como canibais por quase todos os

cronistas dos séculos XVI e XVII.

A Breve Descrição Sobre os Costumes dos Tapuias feita

por Elias Herckman em 1639, traduzida do holandês por

Alfredo de Carvalho e o trabalho do alemão Paul Ehrendeich,

traduzido por Oliveira Lima, serviram de base aos estudos

de Pereira da Costa (Costa, 1951, vol. 5: 169-174).

Provavelmente, complementam os de Curt Nimuendaju,

que teve acesso a todos esses estudos etnográficos sobre

grupos indígenas e suas localizações na região do sertão do

São Francisco. Em seu mapa etno-histórico, concluído em

1944, Curt Nimuendaju localizou geograficamente povos

indígenas brasileiros, organizou um índice deles, cujos

nomes foram ordenados alfabeticamente. Outra contribuição

deste estudioso é a identificação e a catalogação dos povos

indígenas, o quantitativo populacional de algumas tribos,

além de informar a data, o ano ou o século em que cada tribo

foi documentada. O total de tribos catalogadas chega a 1400.

Das informações gerais sobre o Brasil pinçamos as que dizem

79

Vestígios Indígenas

respeito a Pernambuco:

Tabajara – este grupo indígena vivia mais próximo ao

litoral e localizava-se nas vizinhanças do rio Capibaribe,

durante os séculos XVI e XVII; desde então, estes índios

foram documentados.

Kariri – esses índios localizavam-se em vários espaços de

Pernambuco e na região do Sertão; foram documentados

primeiramente em 1759;

Xucuru – estes índios migravam entre o Agreste e o Sertão.

Foram documentados em 1619 e 1733; aparecem em

áreas, correspondentes às nascentes dos rios Moxotó,

Pajeú, Parnaíba, Capibaribe e Ipanema.

Pankararu – índios que se localizavam na região do sertão,

próximo a Tacaratu. Documentados em 1746;

Rodela – grupo indígena localizado em uma vasta área do

Sertão do médio São Francisco, compreendendo tanto a

80

margem esquerda do rio quanto a direita. O que significa

dizer parte de Pernambuco e parte da Bahia. Foram

documentados no século XVII, durante a guerra contra os

holandeses, como integrando o terço dos índios de Filipe

Camarão e em 1836;

Pipipã – índios encontrados perto do rio Moxotó,

documentados em 1802;

Exu ou ichu – localizados mais para o Sertão do Araripe,

perto da divisa com o Ceará, nos lugares onde hoje estão as

cidades de Exu, Bodocó e Ipubi;

Pimenteira – localizados no Sertão de Cabrobó; foram

documentados no século XVII;

Tamanquim – encontravam-se nas proximidades de

Petrolina. Foram documentados em 1748;

Umã-Vouê – localizavam-se próximo à região do Pajeú.

No mapa, há uma indicação que este grupo indígena se

81

Vestígios Indígenas

movimentou para o Sul, na direção do Rio São Francisco.

Foram documentados em 1801;

Quesque – estavam próximos ao rio Pajeú e foram

documentados em 1678;

Fulniô – localizavam-se próximos à cidade atual de Águas

Belas, foram documentados em 1746;

Garanhum – localizavam-se na região Agreste e foram

documentados no século XIX.

Chokó – aldeados entre a ribeira do Pajeú e o rio Moxotó.

Observando, ainda, o mapa de Curt Nimuendaju, nota-se

uma forte movimentação dos tabajaras e dos kariris. As

migrações desses dois grupos são intensas e eles as realizaram

em várias direções; tanto para o interior de Pernambuco

quanto para o litoral ou para regiões vizinhas, para além das

fronteiras da capitania de Pernambuco. Suas aldeias podem

ser encontradas em muitos espaços da Capitania.

Na segunda metade do século XVIII, por volta de 1760, o

governo de Pernambuco solicitou a Manoel de Gouvea Alvares,

82

cavaleiro da Ordem de Cristo e Ouvidor Geral das Comarcas

das Alagoas18 e da parte sul de Pernambuco, na região do

São Francisco, uma relação dos novos estabelecimentos das

vilas e lugares dos índios da capitania de Pernambuco. Esta

relação é semelhante àquela que organizou Pereira da Costa e

publicou nos Anais Pernambucanos. Provavelmente, Pereira

da Costa se fundamentou nas informações do Ouvidor

Geral das Comarcas de Alagoas. Esta relação nomeia grupos

indígenas, aldeias e o quantitativo populacional de algumas:

Ansus ou Anchus – ocupavam as encostas da serra do

Araripe até a região central do Rio São Francisco. Deles

nasceu o nome da povoação de Exu, situada na encosta da

serra.

Akroás – habitavam a ribeira do São Francisco, na comarca

do mesmo nome. Estes índios foram parceiros dos

mokoazes e rodeleiros; acusados de desestabilizar fazendas

18. Nesse período Alagoas pertencia à Capitania de Pernambuco e na escala

administrativa funcionava uma ouvidoria, subordinada a Pernambuco.

83

Vestígios Indígenas

de criação de gado, uma parte foi exterminada e outra

empurrada para os confins de Goiás, nos últimos anos do

século XVII.

Anaupirás – Frei Vicente do Salvador em sua História do

Brasil de 1500 a 1627 refere-se a este grupo como um dos

poucos que conheciam o ouro e se enfeitavam com algumas

peças; habitavam o alto São Francisco mais próximo à

região das minas.

Arakapás – estes índios habitaram primitivamente uma

ilha no São Francisco, conhecida como Aracapá, nome

originário desta tribo.

Ararobá – índios que habitaram a serra que tinha o mesmo

nome de Ararobá; depois ela foi designada Cimbres e o

aldeamento destes índios se deu em meados do século

XVII.

Arikobés – aldeia de índios considerada tupi por falar a

‘“língua geral”. Sua localização estava no rio Grande,

84

afluente do Rio São Francisco, com missão dirigida por

franciscanos no século XVII. Este grupo ainda existia em

1815.

Avís e pipipans – estes dois grupos foram reduzidos em uma

aldeia situada na caatinga entre os vales dos rios Moxotó

e Pajeú, ambos afluentes do São Francisco. Em meados do

século XVIII, foram reduzidos pelo capitão Antonio Vieira

de Melo.

Porús e brankararus - localizados na ilha de Sorobabé,

aldeia Nossa Senhora do Ó, aí foram aldeados 30 casais,

desde 1702; parte deste mesmo grupo fixou-se, também, na

ilha de Acará, aldeia Nossa Senhora de Belém, na ribeira do

Pajeú, sob a administração de um missionário capuchinho

italiano. Também pertencentes ao mesmo grupo étnico

habitaram a ilha de Santa Maria e a Ilha de Assunção,

antiga Pambu, aldeia do beato Serafim, administrada por

missionário capuchinho italiano, constituída de 80 fogos19,

19. Fogos significa casas habitáveis.

85

Vestígios Indígenas

todas se localizavam no Rio São Francisco.

Karacus - localizavam-se no riacho Jacaré, que nasce

em Ouricuri e desagua no riacho da Brígida; a aldeia

denominava-se também Jacaré; foram aldeados em 1802.

Esses tapuias tiveram uma aldeia no Brejo do Gama.

Também estavam nos sertões da Serra Negra no atual

município de Floresta.

Karapotó – descendentes dos kariri, localizados na Serra

do Cumati, entre 1681 a 1685 foram reduzidos à fé

católica por padres capuchinhos franceses. O chefe deles

foi nomeado governador dos índios e mestre de campo.

Karaíba – situavam-se na ribeira do Cupeti à margem do

São Francisco; daí originou-se a povoação Caraíba, que

pertenceu ao município de Santa Maria da Boa Vista. A

povoação Caraíba faz divisa com a povoação de Cabrobó.

Kariris - localizados em várias ilhas: na ilha do Aracapá,

aldeia de São Francisco, localizada na freguesia de Rodelas,

86

se constituía de 100 fogos; na ilha do Pambu, aldeia Nossa

Senhora da Conceição com 100 fogos e 80 casais; na ilha

do Cavalo, aldeia São Félix com 60 casais, administrada

por Domingos de Brexe, capuchinho italiano; na ilha

de Arapuá, também chamada de Santa Maria, na aldeia

Santo Antonio com 30 casais; na ilha de Inhanhum, aldeia

Nossa Senhora da Piedade; ao todo se constituíam de

170 casais em 300 fogos. Em 1670, os kariris ocupavam

as margens do Rio São Francisco, em frente de Cabrobó.

Em 1672, chegou ao médio São Francisco o capuchinho

francês Martinho de Nantes para dar continuidade à

catequização iniciada pelos jesuítas. Uma bandeira, em

1791, afugentou-os da povoação. Após inúmeros conflitos,

estes índios apresentaram-se ao governador D. Tomás

José de Melo, que os ‘perdoou’ e recomendou ao Coronel

Roque de Carvalho Brandão que os aldeassem em um lugar

chamado Olho d’Água da Gameleira, em 1801. Desde a

Carta Régia de 14 de setembro de 1758, estas terras eram

incultas e de mata virgem, portanto lugar a ser desbravado

pelos próprios índios.

Karipós - localizados na ilha dos Coripós, aldeia Nossa

87

Vestígios Indígenas

Senhora do Pilar, desde 1702, na ilha de Santa Maria, se

constituíam em 25 casais.

Fulniô – localizados em Águas Belas, na serra do Cumati,

na aldeia Cumati; em 1762 eram 410 almas, distribuídas

em 130 fogos.

Ichuz - localizados na aldeia do Senhor Cristo do Araripe,

em Exu. Alguns índios dispersos foram localizados,

também, em Tacaratu, no Pajeú, aldeia Brejo dos Padres,

por exemplo; estes índios também eram chamados de

inxú (abelha negra) e ocuparam a zona central do rio São

Francisco para o norte, até a serra do Araripe.

Makoazes – ocupavam territórios ribeirinhos do Rio

São Francisco que passaram a fazer parte da comarca de

mesmo nome. Com outros índios aliados lutaram contra

propritários invadindo fazendas de gado no século XVII.

As guerras contra estes índios os levaram a migrar para o

interior de Goiás durante o final do século XVII e princípio

do século XVIII.

88

Mariquitos – viviam entre a margem esquerda do rio

Moxotó e o sertão das Alagoas e, segundo Fernandes Gama,

esses índios eram belicosos e venceram muitas lutas com

ajuda de suas mulheres.

Omaris - habitavam no sertão do São Francisco e

foram aldeados com outros índios na missão do Jacaré,

localizada na Serra Negra, que estava antes de 1806 sob a

administração do Frei Vital de Frascarolo, passando depois

para a missão da Baixa Verde para ficar sob os cuidados

religiosos de frei Ângelo Maurício de Nisa.

Pankurus ou Pankararus – ocupavam e atualmente

ocupam terras próximas à povoação de Tacaratu e foram

aldeados na missão chamada de Brejo dos Padres.

Paraquiós ou paratiós – viviam no Sertão do São Francisco

e formaram a população da aldeia chamada de Macacos,

localizada na paróquia de Ararobá, atual Belém do São

Francisco.

89

Vestígios Indígenas

Rodelas – índios habitantes das margens esquerda e direita

do Rio São Francisco, formaram a aldeia de Rodela. Em

1645, a aldeia indígena dos Rodelas tinha por chefe um

índio do mesmo nome. Vem dessa aldeia a origem da

povoação de Cabrobó, na segunda metade do século XVII.

Em meados do século XVIII, a freguesia de Rodelas se

estendia da antiga Comarca do Rio São Francisco até a

lagoa de Parnaguá, no Piauí. Podemos também assinalar

que este Sertão de Rodelas alcançava Cabrobó pelo rio

Pajeú, rio sagrado da tribo e afluente do São Francisco.

Subindo, margeando o São Francisco até o Carinhanha,

seguindo pela margem esquerda chegava às nascenças do

rio, alcançando o Piauí. Os índios rodela foram aliados dos

índios makoases e acroás do Piauí. Suas aldeias estavam

localizadas tanto na margem esquerda, em Cabrobó, como

na margem direita, no aldeamento de São Batista em

território baiano.

O chefe rodela participou da guerra contra os holandeses

aliando-se aos portugueses e enviando 200 índios tapuia

ao terço comandado por Filipe Camarão. Seguindo

90

instruções do governador geral do Brasil, D. Fernando

Mascarenhas, Conde da Torre, estes índios deveriam

inquietar os holandeses na capitania de Pernambuco,

destruindo seus engenhos na região do rio Ipojuca. Vinte

anos após o término da guerra contra os holandeses, em

1674, Francisco Rodela recebeu o posto de capitão dos

índios da aldeia de Rodela, no Rio São Francisco, concedido

pelo governador geral do Brasil, o visconde de Barbacena.

Tamaqueús ou Tamaquiúz – foram aldeados na missão

Nossa Senhora dos Remédios, localizada na ilha do Pontal

no Rio São Francisco, com registros entre 1705 e 1745,

quando dirigida por missionário franciscano.

Tuxás - descendentes dos índios rodela ocupavam várias

ilhas do São Francisco, depois foram reduzidos à ilha

dos Cavalos, no município de Cabrobó. Também foram

localizados na Ribeira do Pajeú, na aldeia da Missão Nova

do São Francisco do Brejo.

Umães - aldeados junto com os índios da nação Vouê no

91

Vestígios Indígenas

local chamado de Olho d’Água da Gameleira, em Cabrobó.

Em meados de 1844 viviam na área da Baixa Verde.

Umãs ou inhamuns - estavam localizados na ilha de

Arapuá, também conhecida como Santa Maria, com 257

fogos e 667 almas, foram documentados em 1761;

Xokós – aldeados na missão de Jacaré, situada na Serra

Negra, hoje Floresta, e depois para a da Baixa Verde (hoje

Triunfo). Desses índios vem a povoação de Chokó, na

Comarca de Flores.

Xukurus ou xokurus – localizados em 1746 em um

grande aldeamento com 642 habitantes situado na serra

do Ararobá, onde estavam sob a administração de um

sacerdote da ordem de São Felipe Neri. São chamados de

Jokurus no auto da instalação da vila de Cimbres, em 1762.

Os limites da capitania de Pernambuco se estendiam da foz

do Rio Santa Cruz, na ilha de Itamaracá até a foz do Rio

São Francisco, com sessenta léguas de terra no litoral e no

92

interior. Como o interior era desconhecido no início do século

XVI, na Carta de Doação da capitania de Pernambuco houve

uma especificação quanto ao limite real da Capitania, que era

o Rio São Francisco, cujas águas pertenceriam a Pernambuco,

e sua margem direita. Portanto, o seu limite não poderia ser

sessenta léguas retas, pois deveria seguir o curso do Rio, já

que suas águas pertenciam à capitania de Pernambuco. Todas

as ilhas localizadas no rio também pertenciam à capitania de

Pernambuco. Esta determinação na Carta de Doação do Rei

ao Donatário “deveria entrar na mesma largura pelo sertão e

terra firme adentro tanto quanto poderem entrar e for de minha

conquista”, instigava o donatário a expandir e interiorizar

o domínio português. Por causa desses limites iniciais

alargados, e depois subtraídos no século XIX, é que vários

grupos indígenas como os rodelas e os tamanquins, nesse

período, já se encontravam em espaços políticos não mais

pertencentes à capitania de Pernambuco.

Capistrano de Abreu, em seu livro “Caminhos Antigos

e Povoamento do Brasil”, afirma que Duarte Coelho e seus

sucessores tinham como meta dos seus governos atingirem

o Rio São Francisco, explorá-lo e ocupar as terras em seu

93

Vestígios Indígenas

entorno. Para alcançar este objetivo, Duarte Coelho escolheu a

via marítima. As cartas do próprio Duarte Coelho confirmam

suas ações como também o relatório da viagem de Gabriel

Soares de Souza, em busca de minas de ouro. Portanto, desde

1639, já se atingira terras do médio São Francisco. Afirma

Capistrano de Abreu que os pernambucanos se importaram

mais com a conquista do Nordeste do que com o seu próprio

sertão. Provavelmente Capistrano desconhecia documentos

de 1738, indicadores de três caminhos de penetração

para o sertão pernambucano, publicados por José Antonio

Gonsalves de Mello (Mello, 1966). Baseado em documentos

encontrados na Coleção Alberto Lamego da Faculdade de

Filosofia da Universidade de São Paulo, dois desses caminhos

acompanhavam os vales dos rios Ipojuca e Capibaribe; este

caminho se alongava até a ribeira do Pajeú, cruzava na direção

de Cabrobó até chegar ao São Francisco; o caminho de Ipojuca

acompanhava o seu próprio vale, alcançava o rio Moxotó e

daí, atingia o São Francisco. O terceiro roteiro é um caminho

antigo, que foi feito por ordem de Azeredo Coutinho e que

comunicava Olinda com o São Francisco. Estes roteiros, que

partiam do litoral chegavam até o extremo limite a sudoeste

94

do território da capitania de Pernambuco que, no século

XVIII, atingia o Carinhanha. (Mello, 1966). Todos se valiam

de antigas trilhas indígenas; era a oportunidade do viajante,

através do Rio São Francisco, alcançar Minas, Bahia, Alagoas,

Sergipe, Ceará e Piauí.

Alguns estudos sobre densidade populacional indígena

indicam, com pequena possibilidade de erro, que a população

ameríndia no território brasileiro era de 2 milhões 431

mil habitantes; para o Vale do São Francisco era de 100

mil habitantes. A fonte é John Hemming em Red Gold: the

conquest of the Brazilian Indians, Londres, 1987, citado por

(Couto, 1995).

Levando-se em consideração os grupos indígenas

sobreviventes registrados nos séculos XVIII e XIX por

autores citados anteriormente, pelos cronistas e pelos

padres missionários, que sobre esse tema escreveram, pode-

se concluir que a população nativa nessa região realmente

poderá ter sido maior do que as anotações feitas por John

Hemming. A guerra, a escravidão, os maus tratos, as

mudanças culturais impingidas a essa população produziram

sua redução a números inferiores às populações ocupantes

95

Vestígios Indígenas

dos antigos lugares dos índios. Basta notar a informação sobre

a formação dos exércitos coloniais para enfrentar indígenas

insubmissos no interior da capitania. Um dos batalhões do

exército organizado pelos portugueses foi constituído de

vinte mil negros, sendo a sua maioria, gentios da terra.

97

Imagens da ConquistaA presença indígena em ilustrações e mapas

No século XVI, através de planisférios, atlas, mapas e

ilustrações, surgiam as primeiras representações de

territórios, populações e fronteiras conquistadas pelos

portugueses e espanhóis na América. Novas rotas e caminhos

ligavam culturas de Norte ao Sul e de Leste a Oeste, com

participação de múltiplos canais de informação, como

aconteceu com a rota marítima para as Índias encontrada

por Vasco da Gama, em 1497. Rota que só foi possível

graças ao esforço de muitos, inclusive do navegador e piloto

muçulmano Ahmed Ibn Majib, que acompanhou Vasco da

Gama saindo de Malindi, na costa oriental da África para

chegar a Calicut (Thrower, 2002: 73).

Portanto, não é possível reconhecer apenas a cartografia

portuguesa moderna como resultado de estudos e ações

apenas de europeus fidalgos e cientistas ilustrados pelo

conhecimento da astronomia, da matemática e da física.

Credita-se a ela o resultado do conhecimento acumulado por

98

diferentes povos e culturas que passaram a ser explorados e

registrados pelos conquistadores e o resultado do saber de

cientistas e informantes de diferentes continentes explorados

nos tempos coloniais. Uma cartografia, que tem na sua

formação, como fator principal, a soma de conhecimentos

resultantes de relações antigas e modernas, formalmente

representadas por espaços e ações humanas incluindo ações

africanas, americanas, asiáticas e europeias. A carta de Pero

Vaz de Caminha (Caminha: 2008) sobre o “descobrimento do

Brasil”, uma das primeiras narrativas enviadas ao rei Dom

Manuel I, em Portugal, para dar conhecimento sobre os

feitos da expedição comandada por Pedro Álvares Cabral,

deve ter sido utilizada para a feitura de muitos mapas,

como foi para o famoso mapa Terra Brasilis que faz parte do

Atlas Miller. Também conhecido como Atlas Lopo Homem-

Reinel. Trata-se de um atlas português, de 1519, ilustrado,

incluindo uma dezena de cartas náuticas. Trabalho realizado

pelos cartógrafos Lopo Homem, Pedro Reinel e Jorge Reinel e

ilustrado pelo miniaturista António de Holanda.

Sendo o Rei o leitor principal a quem se destina a carta

escrita em 1500, Caminha constrói texto informativo sobre

“Terra Brasilis” (1519) Pedro Reinel e Lopo Homem, Atlas Miller, Biblioteca Nacional de Paris.

100

a viagem, os nativos, os animais e a flora que encontra,

descrevendo o que vislumbra com poucas dúvidas.

Na disputa por terras, portugueses e castelhanos

encontraram via pacífica de convivência por meio do Tratado

de Tordesilhas, assinado no dia 7 de julho de 1494. Das

navegações de Vasco da Gama, das de Cabral, entre outras,

cresceu o conhecimento sobre cartografia dos continentes

banhados pelo Atlântico e aumentava a produção de mapas e

portulanos na Europa. Novas rotas e culturas passaram a ser

apreciadas apesar das diferenças consideradas e justificadas

com preconceito como escreve Caminha: “Allí por entonces

não houve mais fala nem entendimento com eles, por sua barbarie

ser tamanha que não se entendia nem se ouvia ninguem”

(Caminha, 2008: 109). Os textos narrativos de Caminha e

de Colombo, que tornaram mais segura a cartografia, deram

lugar a novos olhares sobre a paisagem na qual se incluía

a natureza e seus habitantes, mesmo que os colonizadores

não estivessem aptos a compreender completamente o que

viam e ouviam. Para entender a cartografia com territórios

e paisagens, incluindo elementos naturais e culturas

autóctones, Milton Santos (1999) e J. B. Harley (2005)

101

Imagens da Conquista

defendem ser ela um território composto de representações

de espaços e sistemas de objetos, que podem ser lidos como

textos. Nestas cartas náuticas, portulanos e mapas, podem-

se encontrar cenas de gente comum da terra como se fossem

cenas de um espetáculo. Portanto, em estudos envolvendo

geografia e paisagem, concordamos com Jean-Marc Besse que

afirma que, a comunicação entre a cartografia e a experiência

paisagística se estabelece tanto pelo plano de conteúdos

como pela relação de percepção e pensamentos existente nas

ações entre objeto e sujeito.

Terras e índios do Brasil fazem parte da cartografia

moderna construída a partir do século XVI; uma cartografia

carregada inicialmente em detalhes corográficos e

topográficos que, aos poucos nos fala sobre ações humanas

representadas em espaços geográficos. Assim, as paisagens

incluídas na cartografia do período colonial passam a ser um

meio de representar a diversidade de culturas em diferentes

espaços geográficos; servem também como ferramenta para

análise do confronto entre territórios e fronteiras, como as

registradas no Nordeste do Brasil, do século XVI ao XIX. A

Geografia e a História das conquistas das terras indígenas,

Mapa Kunstmann II (1502-1506)Mapoteca Ministério das Relações Exteriores, RJ

103

Imagens da Conquista

trabalhadas interdisciplinarmente, passam a ser temas

constantes auxiliando a cartografia, com o surgimento da

paisagem, que inaugura uma nova forma de representar

o mundo humano e natural com seus diferentes planos de

visão.

A carta de Caminha e as cartas de Américo Vespúcio

sobre o Brasil formam parte dos documentos que dariam

jurisdição ao reino português sobre terras no Novo Mundo,

mas também vão auxiliar na produção de documentos como

os planisférios de Cavério, de Kunstmann II e o de Cantino.

O planisfério de Kunstmann II ressalta para o Brasil uma

pequena parte da costa acima do cabo de São Roque e o rio

Cananeia, associada à imagem de um assado humano, como

já relatado em carta de Vespúcio. A leitura ou interpretação

que fazemos é de que estes documentos manuscritos e

cartografados parecem comunicar que terras e culturas

distintas estariam em contato pelo Atlântico: por um lado as

indígenas americanas do continente recém “descoberto” a ser

conquistado e, por outro, culturas da Europa e da África.

Neste sentido, observamos que, na maior parte da

cartografia do século XVI sobre as possessões portuguesas

(acima) Brasilia et Peruvia

(detalhe)

(esquerda) Brasilia et Peruvia (1593).

Cornelius de Jode (1568-1600)

Brasilia (ca. 1616). Petrus Bertius (1565-1629).

107

Imagens da Conquista

na América, aparecem poucos termos indígenas. Termos que

se intensificam em mapas do século XVII, como o de Petrus

Bertius e o de Cornelius de Jode. De exemplo nos servem os

mapas Terra Brasilis e Kunstmann II. Neles podem ser lidas

dezenas de pontos colocados no litoral, onde são assinaladas

referências aos rios e a outros acidentes geográficos

atingidos por expedições exploratórias que percorreram a

costa do Brasil. Pernambuco constitui um desses raros

termos de origem nativa, que, com várias formas de grafia,

aparece em diferentes fontes cartográficas do século XVI.

Como ‘Pernambuquo’ foi inscrito em mapa do Atlas de Lopo

Homem de 1519 atribuído a Jorge Reinel. Como ‘Parnãbuco’

aparece inscrito no litoral, na mesma altura do mapa

anteriormente citado, no mapa de Gaspar Viegas datado de

aproximadamente 1534. Em mapa atribuído a Pedro Reinel,

datado de 1535, o mesmo ponto foi assinalado como ‘Per

Nambuia’. Com a grafia ‘Pernambuco’, o termo foi encontrado

em mapas de Diogo Ribeiro de 1527 e de 1529; no primeiro,

em meio de uma frase onde diz ser ele um porto.20 A partir

20. Cortesão, Armando. Portugaliae Monumenta Cartographica. Academia

Typus cosmographicus universalis (1532). Sebastian Münster (1489-1552)Colaboradores: Grynaus, Simon, 1493-1541; publicado em Basilea, Suíça

109

Imagens da Conquista

de 1540, o termo Pernambuco passou a ser utilizado com

maior frequência que os demais citados anteriormente na

maioria dos mapas e das cartas náuticas produzidas na época,

termo que representava o porto português mais importante

da capitania Nova Lusitânia. Pela frequência do uso do

seu nome em documentos manuscritos e cartográficos, e

pela importância do lugar como referência portuguesa na

América do Sul, a Capitania passa a ser chamada pelo nome

de Pernambuco.

Provavelmente, o mapa português mais antigo, que traz

alguma informação sobre os nativos da costa de Pernambuco,

é atribuído a Gaspar Viegas, datado aproximadamente de

1534. Nele, está assinalado, entre nomes de rios e cabos que

figuram ao longo do litoral do Brasil, a expressão ‘rei tabaiyo’

acima da inscrição ‘portuari parnãbuco’.21 Esta localização

do grupo indígena Tabajara corresponde à descrição citada

acima baseada em José Bernardes Gama.

Portuguesa de História. Lisboa, 1960. Estampas 22, 18, 38, 39.

21. In Portugaliae Monumenta Cartográphica. Direção de Armando Cortesão.

Publicado pela Academia Portuguesa de História. Lisboa, 1960. Estampa 55.

110

Sobre os nativos caetés pouco foi encontrado na

cartografia portuguesa dos séculos XVI e XVII, o que confirma

as informações sobre a agressiva ocupação portuguesa nessa

região, e comprova a exterminação dos caetés no litoral com

ajuda dos tabajaras, mencionada por cronistas e documentos

coloniais. No entanto, em um mapa etnográfico francês de

Nicolas Sanson D’Abbeville, publicado em 1656, entre muitos

povos nativos assinalados, estão os ‘caetaé’, chamados pelos

portugueses de caeté, localizados nos sertões da capitania de

Pernambuco, onde muitos se refugiaram das perseguições e

escravidão sofridas no litoral.

Observa-se nesse mapa uma linha pontilhada, que corre

da região norte até a região sudeste, (denominadas assim

contemporaneamente) e que sugere uma divisão da região

colonizada pelos portugueses em relação às áreas nativas

sem presença portuguesa; esta presença, nesse mapa,

aparece apenas no litoral, onde os acidentes geográficos –

rios, ilhas, cabos e vilas- estão assinalados. Percebe-se nele,

também, que todos os povos que estão do lado interno

do mapa estão classificados como atinentes à área onde

predominavam povos tapuias, que no mapa, aparece como

111

Imagens da Conquista

tapuiae. Ainda em mapa, do cosmógrafo régio Albernaz I,

datado de aproximadamente 1632, observa-se o registro

de povos potiguar, caeté e tapuia envolvidos nas guerras de

conquistas, dos séculos XVI e XVII.

Durante o século XVII, o porto de Pernambuco se integra

ao mercado internacional. Muitos cartógrafos europeus

passaram a representá-lo em seus mapas e cartas náuticas.

À escola holandesa de cartografia desse século são atribuídos

os melhores trabalhos cartográficos sobre o Nordeste do

Brasil. Entre os cartógrafos holandeses que se destacam com

seus mapas e cartas náuticas sobre Pernambuco, podem ser

citados os autores Jean Bleau, Johan Vingboons, Cornelis B.

Golijath, Hessel Gerritsz e Georg Marcgraf. A Carta Geral da

costa do Brasil do Atlas de Johan Vingboons, de 1660, que

demonstra os limites entre as capitanias de Pernambuco,

Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte pertencente ao

acervo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico

Pernambucano, pode ser um exemplo ao lado do mapa de

Georg Marcgraf datado de 1647 em sua primeira edição.

Em dois mapas de Vingboons, um registra aldeias com

missões e o outro assinala engenhos do nordeste brasileiro

Mapa mural Brasilia qua parte paret Belgis (1647).

Acervo da Biblioteca da Universidade de Leiden.

114

holandês, datado aproximadamente de 1660. A cartografia

comprova como as missões jesuíticas portuguesas e as

missões criadas por missionários da Igreja Reformada

foram longe na sua tarefa catequizadora em conquistas e

defesas do território contra invasores, sejam brancos ou

outros indígenas. Com mais destaque, tomamos o mapa

mural Brasilia qua parte paret Belgis de Marcgraf, impresso

em 1647, sob os cuidados de Jean Bleau, a pedido da WIC –

Companhia das Índias Ocidentais. Com pontos conhecidos

da ocupação do litoral ao sertão, pode ser um exemplo do

trabalho conjunto de europeus com indígenas e mestiços,

pois dele deve ter participado o padre mestiço Manuel de

Moraes.

A cartografia holandesa do século XVII demonstra

ainda, com muito detalhe, a importância econômica da

região produtora de açúcar existente em torno do porto

de Pernambuco. Os investimentos e os lucros aplicados e

obtidos com o desenvolvimento da exploração da produção

açucareira nesta região fazem do Nordeste tema em vários

suportes, incluindo a pintura holandesa no século XVII.

A produção de mapas impressos em Amsterdam com

115

Imagens da Conquista

financiamento da WIC incluiu trabalhos dirigidos por Jean

Bleau, Georg Marcgraf e Johannes de Laet entre outros.

Esses, juntamente com os mapas de Vingboons, servem

para dar uma visão sobre algumas áreas e espaços indígenas

no período do contato e ou da dominação colonial sobre os

territórios nativos. Marcgraf apresenta trabalho detalhista

sobre capitanias do nordeste do Brasil no mapa-mural Brasilia

qua parte paret Belgis. Nesta obra, ele detalha a localização

de tipos de aldeias indígenas, engenhos, caminhos, portos,

currais, salinas e missões. O mapa de Marcgraf apresenta

ainda seis cenas atribuídas ao paisagista e pintor Frans Post,

todas elas referindo-se ao mundo social e cultural colonial

envolvendo população escrava, índios livres em diferentes

situações, engenho de açúcar, casa de produção de farinha de

mandioca, missão com índios saindo para guerra e animais

em meio à flora brasileira. A localização das aldeias muito se

deve aos trabalhos de informação do padre jesuíta Antonio

Moraes, que se tornou protestante depois de aliado aos

holandeses. Portanto, no mapa de Georg Marcgraf, Brasilia

qua parte paret Belgis, de 1647, diferentes ações ocorridas

nos espaços indígenas conquistados no nordeste do Brasil

Cena de canibalismo e de caça a emas e

ao gado – Desenhos atribuídos a Frans Post

inseridos no mapa de Marcgraf Brasilia

qua parte paret Belgis (1647).

118

podem ser acompanhadas. Temas envolvendo escravidão,

monoculturas, expedições e conquistas foram inseridos.

Nesta época, considerada de ouro para a cartografia

holandesa, Pernambuco figurava como o porto holandês mais

importante para a saída do açúcar do nordeste brasileiro, em

direção às refinarias localizadas nos Países Baixos. Era o porto

de entrada para a vila do Recife, a capital do Brasil holandês,

onde estava armazenado o açúcar bruto para exportação,

como bem documentou Jean Bleau, em gravura de 1643,

feita para a WIC - Companhia das Índias Ocidentais, a

empresa com maior número de ações comerciais destinadas

ao Atlântico português. Estava ali também registrado o antigo

porto indígena caeté, denominado por estes de paranambuco.

Este porto, com suas ilhas e terras, passou a ser controlado

pelos conquistadores.

Apesar de utilizar aspectos gerais encontrados na

cartografia europeia da época, o mapa Brasilia qua parte paret

Belgis reúne de maneira original, e com mais complexidade

e quantidade de informações, temas envolvendo distintas

culturas em espaços do mundo colonial e do ainda não

colonizado, localizado nos sertões do nordeste do Brasil, no

119

Imagens da Conquista

século XVII. Seu poder de comunicação chama atenção quanto

ao uso de símbolos e paisagens que seguem ideais de ordem,

riqueza, beleza e sentimentos. Ideais, que parecem seguir

propositalmente uma ordem de importância. Traduzindo seu

título, colocado em latim, temos uma primeira explicação

sobre o que mais importa comunicar neste mapa mural,

ou seja: a parte do Brasil que cabia aos Países Baixos. Título

que nos dá a entender tratar-se de mapa que reúne vários

interesses envolvendo grupos no Brasil e nos Países Baixos

(Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).

Em relação à geografia humana, observa-se neste mapa

que a fronteira do Sertão está bem assinalada quando se

distingue, no litoral, a ocupação do espaço colonial europeu

assinalando a presença africana e indígena e, quando quer

marcar o Sertão, o faz por imagens relacionadas com a

presença de grupos tapuias. O mapa chama atenção para

o termo genérico Indiarum como conceito aplicado aos

grupos tupis das zonas colonizadas em contraposição às

“Aldeas das Tapijya” como espaços povoados nos sertões fora

do marco colonial. A diferença deve-se ao uso de distintos

termos em latim: Domus Indiarum, conceito de casa ou

120

fogo fixo dos índios do tronco tupi já integrados ao mundo

colonial, e Domicilium Tapijyurum, como sede/domicílio de

indígenas do tronco linguístico macro-gê, kariri e de outras

línguas não classificadas, localizados no interior e mais

distanciados do controle colonial. O mapa ainda faz alusão

aos espaços assinalados como Lugar despovoado ou Domicilia

deserta, o que pode indicar aldeias anteriormente ocupadas

por grupos, que podem ter sido reduzidos às missões, ou

podem ter sido escravizados por descimentos ou que, ante

a pressão portuguesa ou holandesa, abandonaram suas

malocas por zonas de refúgio no interior. Por outro lado,

os estragos que causaram as epidemias, que assolaram os

territórios indígenas nos sertões, poderiam explicar alguns

despovoamentos nestas e noutras áreas (Barbosa, Ruiz-

Peinado, Scott e Piqueras, 2013). Portanto, na cartografia

com paisagem, em que homens aparecem em cenários

construídos segundo distintos planos de visão, nasce uma

nova forma de representação do mundo que leva o espectador

a experimentar uma estética da natureza via imagens. A

paisagem utilizada para ilustrar a cartografia moderna vai

unir natureza, geografia e ações humanas.

121

Imagens da Conquista

As palavras nus, bárbaros, selvagens e antropófagos,

em imagens e argumentos para a conversão, escravidão e

extermínio de indígenas, foram usadas na efetivação de

políticas colonialistas. A terra fértil para as novas plantações

e para pasto de rebanhos foi tirada dos nativos por ‘guerras

justas’. A produção de imagens de antropófagos, propagada

pelos colonizadores, serviram de etiquetas para captar

a atenção de um público europeu ávido por notícias e

descrições sobre as terras americanas. Em todo caso, foi a

imagem que justificou e facilitou tarefas da conquista e da

colonização, que levaram a cabo, portugueses, franceses e

holandeses (Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).

Quando, em 1549, o mercenário alemão Hans Staden foi

capturado pelos tupinambás, durante a defesa da fortificação

portuguesa de São Felipe, não imaginava que, oito anos mais

tarde, o relato de suas vivências durante os nove meses de

cativeiro, se converteria em um êxito de vendas que veio a

modelar a opinião europeia sobre os indígenas brasileiros e,

por extensão, nativos de toda a América. Gravuras e pinturas

reinterpretando livremente a odisseia de Staden de maneira

exagerada tornaram-se comuns, como as conhecidas

122

narrativas das viagens ao Brasil de Jean de Léry, descritivas

dos costumes dos tupinambá, ou as de Theodoro de Bry que

representam a visão gráfica tupinambá mais difundida do

final do século XVI até o final do XVII. A obra do franciscano

André Thevet intitulada As singularidades da França

Antártica, 1557, com suas 41 gravuras, ajudou também a

definir a imagem e a visão do selvagem canibal da América.

Em todas essas representações se visualiza sempre o lado

mais selvagem e mórbido da antropofagia com cenas do

banquete do ato canibal, ocultando-se as explicações rituais

e religiosas presentes na própria narrativa de Hans Staden

(Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).

O título da obra do alemão não poderia ser mais eloquente

e tendencioso na hora de apresentar os seus captores nativos:

Warhaftige Historia und beschreibung eyner landtschafft der

Wilnen Nacketen Grimmigen Menschfresser Leuthen in der

Newenwelt America  [1557]. (Staden, 1983 - A verdadeira

história e narrativa de uma terra de gente selvagem, nus,

bárbaros e canibais.) Canibalismo e ferocidade pedem

resistência e justeza na aplicação do conceito de ‘guerra

justa’, que tão bons resultados haviam dado já na América

123

Imagens da Conquista

espanhola, durante a conquista. Conceito que suscitou

a intervenção de teólogos e juristas do nível de Francisco

de Vitoria, de Francisco Suárez ou de Domingo de Soto,

vinculados à famosa Escuela de Salamanca. Da aplicação da

‘guerra justa’ deriva a escravidão indígena, consequência

jurídica tão necessária para se tornar realidade os espaços

econômicos que portugueses e holandeses desenvolveram

no nordeste do Brasil com constante necessidade de mão de

obra. A implantação dos engenhos de açúcar ou das fazendas

agropecuárias não se explica sem o controle da mão de obra e

da utilização do trabalho escravo indiscriminadamente.

São do século XVI as primeiras imagens de canibais pelo

litoral e sertão do Brasil em mapas impressos por diferentes

reinos da Europa, como a de Petrus Bertius (1565-1629) de

título Brasilia, data provável 1616, e a de título Brasilia et

Peruvia de Cornelius de Jode de 1593.

Noutra ilustração mais antiga encontramos em um

mapa-mundi de Sebastian Munster, impresso na Suíça no

ano de 1532, um nativo que chega à cena puxando um cavalo

carregando o corpo de um prisioneiro que será abatido e

posteriormente assado, como indica a cena à sua frente.

124

No século XVII, o Padre Cadornega, em sua História Geral

das Guerras Angolanas (1680), justificará o resgate de cativos,

pelas práticas canibais dos “bárbaros” africanos e o tráfico de

escravos para o Brasil. Segundo ele: “e com estes resgates se

evitam não haver tantos açougues de carne humana, e instruídos

da Fé de Nosso Senhor Jesus Cristo indo batizados e catequizados

se embarcam para as partes do Brasil ou para outras que têm

uso católico” (Cadornega, 1972: 13-14). O que parece ter

sido semelhante, no século XVI, quando os portugueses

contataram com nativos tupinambás, caetés ou potiguares

do litoral e os classificaram todos como índios da costa,

falantes da língua geral; os não aliados foram considerados

antropófagos, selvagens e inimigos dos portugueses.

Para os caetés, por exemplo, foi decretado como castigo,

por parte da Coroa portuguesa, a escravidão perpétua, em

1562. Os motivos? Sua rebeldia com o contato e a falta de

submissão aos agentes coloniais, além de uma “constante

prática canibal que havia de ser extirpada”, segundo as

autoridades portuguesas. Os mesmos motivos que levaram

os castelhanos a acusar de hostis e antropófagos aos índios

caribes das Antilhas Menores e com a mesma consequência

125

Imagens da Conquista

imediata, a escravidão. Por sorte de Staden, este não foi visto

por seus captores como um indivíduo de energia suficiente

e ‘espírito’ para ser sacrificado e consumido ritualmente;

assim seus “selvagens, nus, ferozes e canibais” acabaram

por livrarem-se do hóspede inconveniente (Barbosa, Ruiz-

Peinado, Scott e Piqueras, 2013).

Quando os europeus conseguem estabelecer alianças e

pactos com grupos da costa utilizando estes como mão de

obra em engenhos, fazendas e vilas, a fronteira do espaço

dito de nativos antropófagos e selvagens, se translada para o

interior dominado pelos tapuias. Portanto, o tapuia, do século

XVII holandês, era o caeté do século XVI português. O discurso

do colonizador utilizou aqueles elementos das culturas

indígenas que, reais ou não, pois não se tem confirmação

de que os tapuias praticaram o canibalismo, facilitavam

as estratégias de dominação e de conquista de territórios a

‘civilizar’. Por isso, os grupos tupis do século XVII, das zonas

de ocupação holandesa, já não são selvagens. São englobados

na categoria de índios (Aldea das Indias). Enquanto os tapuias

sem controle, livres e donos do sertão, mantiveram uma

identidade própria, definida pelos europeus através de suas

126

observações: confrontação; ausência de vestimentas e de

ordens, intolerância e vícios, que vão justificar seu controle

por parte dos interesses políticos e econômicos europeus.

No mapa observamos como, apesar de suas atividades

de caça às emas, por exemplo, e abate de animais, como o do

gado europeu, os quais cobriam de sobra suas necessidades

de aportes proteicos, ao tapuia é atribuída a festa canibal,

atributo pelo qual seria sempre invocado no imaginário

europeu do século XVII. Seu mundo é o do ‘selvagem’ e do

enfrentamento constante em lutas interétnicas, onde o

arco e as flechas ou o tacape servem para atacar contrários

e os preparar para o festim e o prazer canibal. Seu espaço

é o mato, a natureza indomada onde transita com inteira

liberdade para buscar seus recursos alimentícios (Barbosa,

Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).

Os tapuias foram livres até seu espaço ser reivindicado

para o avanço colonial e para o gado escapado dos currais.

A presença do gado foi a ponta de lança de um mundo

colonial que começava a pressionar os territórios indígenas.

Esta imagem no mapa de Marcgraf representa a interação

entre o mundo “selvagem do Sertão” e o mundo ordenado da

colônia. Em seu nomadismo, os “bárbaros do Sertão” resistem

127

Imagens da Conquista

a ter domicílio fixo, o “Domus”, o que quer dizer que eles

não querem ser considerados parte de um mundo alheio aos

seus interesses; mundo este, que só entende de trabalhos

forçados, missões religiosas, produtividade e aculturação.

Georg Marcgraf e Jean Bleau, mostram-nos

definitivamente a formação de um mundo colonial onde

primam motivações econômicas e políticas que nada têm a

ver com as realidades nativas dos territórios originais. Dá aos

leitores a visão de um mundo europeu, que exige na maioria

das vezes a transformação radical do modo de viver indígena;

força sua entrada na história moderna europeia através de

imagens estereotipadas e de discursos de marcado caráter

eurocêntrico. Neste complexo mapa, apareceram, também,

espaços geopolíticos com superposição de elementos

culturais indígenas, europeus e afro-americanos. Incluem-se

nestes espaços os contatos entre culturas, estando em cena

distintos grupos étnicos de três áreas do Atlântico. Neste

mapa de Marcgraf localizam-se grupos africanos refugiados

pelos sertões, onde se assinala Tapera de Angola, como local

de morada de africanos em área tradicionalmente indígena

(Barbosa, Ruiz-Peinado, Scott e Piqueras, 2013).

129

Sob o Domínio do Medo

No início da colonização a legislação incentivava a ocupação

das terras. A partir de 1549, com a instituição do Governo

Geral, isto é, com a presença do Estado português, surgiram

exigências para tal fim. Por exemplo, a prerrogativa do

registro na Provedoria é da legislação de 1549, a confirmação

das cartas pelo Rei já é um requisito do século XVII. A carta

régia de 1699 torna obrigatório o pagamento do foro. Com a

legislação mais rigorosa sobre os prazos de aproveitamento

da terra, e a ocupação indiscriminada feita anteriormente à

regulamentação, a extensão das terras doadas foi diminuindo,

pois, caso a terra não fosse utilizada economicamente

dentro do prazo de cinco anos, seria considerada terra

devoluta.22 As medições sempre utilizaram limites naturais

22. Conforme podemos observar no documento transcrito:

“Sesmaria de três léguas de terra de cumprido e uma de largo no riacho de Moxotó

doada a Alexandre da Silva Carvalho e seus herdeiros morador no sertão de Ararobá

nas cabiceiras do Moxotó vertentes do Rio São Francisco pelo Capitão Mor General

Luis José Correia de Sá, em 26 de novembro de 1753, não podendo suceder ao suppe

130

e ou propriedades ou posses de outros, o que facilitou a

incorporação de grandes quantidades de terras aos domínios

dos fazendeiros ou o argumento de que a terra era devoluta,

portanto, não pertencia nem ao Estado nem aos particulares.

Em geral, os criadores de gado recebiam sesmarias muito

extensas. Um dos mais conhecidos foi Garcia D’ Ávila, que

através de inúmeras solicitações conseguiu construir um

império, mesmo sem ter a confirmação da carta de anuência

do Rei.

Desde o início, a colonização portuguesa foi marcada por

uma reação dos nativos. Os conflitos com os índios estiveram

presentes ainda quando Duarte Coelho se alojara no canal de

Santa Cruz, que separa a ilha de Itamaracá do continente,

local denominado ‘os marcos’; Igarassu e Olinda foram suas

próximas conquistas. Dos ‘marcos’, Duarte Coelho ordenou

iniciar a povoação de Igarassu, batizada pelos cristãos de

vila de São Cosme e São Damião, distando uma légua dos

‘Marcos’. Nesta primeira povoação, os colonos enfrentaram a

por tempo algum Religiões salvo satisfazendo todos os encargos, e sendo obrigado a

pagar o foro anual de 4$ a povoar a dita terra no prazo de cinco anos sob pena de lhe ser

declarada devoluta e a dar caminhos livres”. Livro de Foros N3 f3, p. 51.

131

Sob o Domínio do Medo

fúria dos nativos, que se desentenderam com os portugueses

e cercaram a vila, por muitos dias; estes, ameaçados pela

fome, foram salvos pelos habitantes de Itamaracá. Nessa

ocasião, Duarte Coelho já se encontrava em Olinda, quatro

léguas distantes de Igarassu, na direção sul, e, lá também

enfrentava guerra contra os índios caetés. Por esta razão, não

pôde vir auxiliar os habitantes de Igarassu. Terminado o cerco

à povoação de Igarassu, com os nativos mais apaziguados e

afastados da sede, Duarte Coelho entregou o comando desta

vila a um vianense, Afonso Gonçalves e foi se estabelecer em

uma região mais alta, mais defensiva, onde instalou a sede do

Governo, fez funcionar a Câmara e outorgou a 12 de março

de 1537 o foral da Vila de Olinda23.

Gabriel Soares de Souza na sua Notícia do Brasil de 1587

reporta-se a esses fatos:

23. O nome Foral é impróprio, uma vez que não tinha tal documento este tipo de

diploma. Mesmo assim, o ‘Foral de Olinda’ é um documento importante por ser o mais

antigo em relação a este município e contém dados sobre a colonização de Pernambuco.

Comparar com Fontes Repatriadas. Anotações de História Colonial. Maria do Socorro

Ferraz Barbosa, Vera Lúcia Costa Acioli e Virgínia Almoedo de Assis. Recife. Editora

Universitária da UFPE. 2006.

132

“Chegando Duarte Coelho a este porto [de Pernambuco]

desembarcou nele e fortificou-se, onde agora está a vila [de

Olinda] em um alto livre de padrastos, da melhor maneira

que foi possível, onde fez uma torre de pedra e cal, que ainda

agora está na praça da vila, onde muitos anos teve muitos

trabalhos de guerra com o gentio e franceses, que em sua

companhia andavam, dos quais foi cercado muitas vezes,

ferido e mui apertado, onde lhe mataram muita gente; mas

ele com a constância de seu esforço, não desistiu nunca da

sua pretensão e não tão somente se defendeu valorosamente,

mas ofendeu e resistiu aos inimigos, de maneira que os

fez afastar da povoação e despejar as terras vizinhas aos

moradores dela, de onde depois seu filho, do mesmo nome lhe

fez guerra, maltratando e cativando este gentio, que é o que

se chama caité, que o fez despejar a costa toda, como esta o

é hoje em dia, e afastar mais de cinqüenta léguas pelo sertão

(Mello, 1979: 237-238).

Em muitas ocasiões Igarassu e Olinda foram atacadas

pelos caetés com o apoio dos franceses, que já se encontravam

no litoral fazendo trocas com os indígenas desde as primeiras

expedições exploratórias. O que viria a ser Recife, nessa

133

Sob o Domínio do Medo

época já era uma povoação de pescadores. A comunicação

entre Olinda e Recife era feita com barcos por mar e, também

por terra, utilizando-se o istmo de areia, que liga o Recife a

Olinda.

Sem demora, Duarte Coelho percebeu a necessidade

de alianças com algumas nações indígenas para fazer frente

aos franceses e aos gentios, que resistiam à presença dos

portugueses. Como os índios caetés se deslocavam muito

frequentemente, tanto pela costa como pelo interior, e naquele

momento estavam aliados aos franceses, o governador da

Capitania decidiu enfrentar os dois inimigos. Enfraquecer

o poder de ataque dos caetés trazia outro benefício, que era

a possibilidade de aliança com outras tribos indígenas, suas

inimigas. Para tanto, Duarte Coelho, que contava apenas

com reduzido contingente militar, organizou uma expedição

que varreu a costa de Pernambuco e se adentrou com suas

embarcações pelo Rio São Francisco (Mello, 1979: 238).

As alianças com os indígenas tabajaras24 deram-se a partir

24. “Tabajara era termo usado para designar inimigos da mesma origem ou o mesmo

que inimigos cunhados, aqueles que poderiam ser aprisionados em guerras travadas

entre aldeias...” Barbosa, Ferraz Bartira. Op. cit. p.12. Daí se infere que os tabajaras

134

do concubinato entre homens brancos, como Vasco Fernandes

de Lucena e Jerônimo de Albuquerque, com mulheres

nativas. Alguns cronistas afirmam que a subordinação de

parte dos nativos aos portugueses se deveu à astúcia destes

e ao medo que suas ações, muitas vezes perversas, causavam

aos nativos e que estes as tomavam como milagres, ou seja,

realizadas por seres muito superiores a eles.

A partir da confirmação dessas alianças com os gentios,

Duarte Coelho contou com uma retaguarda de guerreiros

e, ao descer pela costa até o Rio São Francisco, encontrou

muitos franceses que faziam o resgate do pau-brasil; guerreou

contra estes, fez acordos de paz com chefes nativos, trazendo

de volta índios que haviam sido escravizados por tribos

inimigas. Amedrontados com a situação, os índios fugiram e

lhes deixaram as terras. Duarte Coelho começou o negócio do

açúcar - os engenhos, para o qual já havia trazido os contratos

de Portugal. Iniciou-se, também a troca com os nativos: caças,

frutas do mato, peixe e mariscos a troco de foices, machados,

tinham a mesma origem tupi dos caetés, mas estavam divididos pelas inimizades

antigas e ou novas, provocadas pelos europeus.

135

Sob o Domínio do Medo

anzóis, facas. Com as trocas também negociavam homens e

mulheres, nativos, que se tornariam escravos para o trabalho

ou para a vida sexual dos colonizadores.

Mais ou menos apaziguada a Capitania, viajou Duarte

Coelho a Lisboa para rever contratos, dar notícias ao Rei e

provavelmente conseguir financiamentos. Na sua ausência,

dirige a Capitania, sua mulher, Dona Beatriz de Albuquerque

assistida por seu irmão Jerônimo de Albuquerque. Na

segunda viagem empreendida por Duarte Coelho a Lisboa o

seu intento era requerer ao Rei seus serviços, que passava dos

vinte mil cruzados por ano. A Capitania rendia anualmente ao

Rei sessenta mil cruzados, fora os rendimentos do pau-brasil

e os direitos do açúcar produzido por dezenas de engenhos.

Não teve êxito no seu intento, foi mal recebido pelo Rei e

já adoentado veio a falecer dias depois desse encontro, em

Lisboa.

A Capitania ficou sob a responsabilidade de Dona Beatriz

e do seu irmão Jerônimo de Albuquerque. As queixas contra

os nativos, que continuavam atacando os portugueses e os

seus escravos africanos, eram frequentes, até que Jerônimo

de Albuquerque chamou representantes da Câmara da vila de

136

Olinda e da burocracia reinol à sua residência, formando pela

primeira vez em Pernambuco uma espécie de conselho para

decidir o que fazer com estes grupos indígenas de diferentes

nações. A maioria dos conselheiros presentes optou pela

guerra, mas Vasco Fernandes de Lucena ponderou mostrando

que a guerra indistinta contra várias tribos não ajudaria aos

colonos. Provavelmente uniria os grupos indígenas, até os

que não eram aliados entre si, porque os inocentes pagariam

pelos pecadores. Sugere, então, Vasco Fernandes que os

próprios índios descubram quem está causando prejuízos

aos brancos. Após embebedá-los, os portugueses assistiram

alguns índios acusando seus próximos e daí surgiu uma luta

entre eles. Jerônimo de Albuquerque resolveu castigá-los

colocando os considerados culpados na boca de um canhão,

espatifando-os. Com esta inimizade e esta divisão entre os

gentios puderam os portugueses alargar seus engenhos para

os lados da várzea do Capibaribe (Salvador, 1965:136-137).

Dando sequência às informações, Frei Vicente do Salvador, ao

comentar sobre o êxito da colonização de Pernambuco, coloca

como fatores importantes a bondade dos governantes, a paz

com os índios, garantida pela miscigenação e pelo aumento

137

Sob o Domínio do Medo

da prole. Lamenta que os indígenas não tenham amado os

colonos e justifica a guerra e as atrocidades afirmando que,

somente poderia haver paz se houvesse temor.

Com o terror instaurado entre as populações nativas,

a construção socioeconômica da capitania de Pernambuco

realizou-se a partir da expansão da área cultivável, e, para

tanto, foi imprescindível a ‘limpeza étnica’, principalmente a

expulsão ou dizimação dos índios, que ocupavam as várzeas.

O que movia os colonos era a obtenção da terra. As ‘guerras

justas’ estiveram como biombos da violência. Duas guerras

contra os gentios, caeté e tabajara, os empurraram para os

sertões de dentro; atemorizados, os tabajaras capitularam e

fizeram uma aliança duradoura e proveitosa com e para os

luso-brasileiros.

Sendo a Capitania ambicionada pelas gentes de Portugal

e de outras capitanias, que queriam fazer seus engenhos e

fazendas aqui, o capitão donatário Duarte de Albuquerque

Coelho, filho do velho Duarte Coelho, resolveu atender a

esta demanda. Mas seria preciso disponibilizar as terras,

que se espraiavam pelo Cabo de Santo Agostinho e eram

propícias à plantação de cana de açúcar; a dificuldade

138

no empreendimento, mais uma vez, era a presença dos

indígenas caeté, que as habitavam e não eram seus aliados.

A mesma fórmula foi aplicada: organizar uma ação militar

reunindo homens brancos para comandar vários batalhões

de indígenas recém-aliados, e de negros. Com muita

astúcia e engodo, os nativos de diferentes tribos foram

jogados uns contra os outros. As tropas eram, na verdade,

um conglomerado de negros e indígenas comandados por

homens brancos e proprietários da colônia: o batalhão de

Igarassu, comandado por Fernão Lourenço; o de Paratibe, por

Gonçalo Mendes Leitão; da várzea do Capibaribe, Cristóvão

Lins; moradores e mercadores, chamados de gente da vila

(de Olinda) organizaram 03 companhias. A primeira sob o

comando do capitão dos vianenses, João Paes; a segunda,

comandada pelo capitão dos que vinham do Porto, Bento Dias

de Santiago e a terceira pelo capitão dos lisboetas, Gonçalves

Mendes d’Élvas, mercador. As seis companhias estavam

constituídas por vinte mil negros (índios e africanos), sendo

a maioria dos gentios, provavelmente, tabajaras e potiguares

contrários aos caetés, alojados no Cabo de Santo Agostinho.

Da ilha de Itamaracá, comandados pelo Capitão Pero Lopes

139

Sob o Domínio do Medo

Lobo, vieram 35 soldados brancos e 2000 índios flecheiros.

Comandava toda a tropa Duarte de Albuquerque Coelho,

acompanhado de D. Filipe de Moura e de D. Filipi Cavalcanti

(de origem italiana), genros de Jerônimo de Albuquerque. A

guerra foi exitosa nos seus objetivos; grande parte dos que a

fizeram construíram seus engenhos. Um deles, João Paes, que

viria a ser o Morgado do Cabo, construiu 08 engenhos, um

para cada filho. Mas, as terras perto do rio Sirinhaen também

eram férteis e estavam ocupadas pelos renitentes indígenas

da tribo caeté. A guerra os dizimou e causou muito temor aos

outros gentios. Diz Frei Vicente do Salvador:

“à fama dessas duas vitórias ficou todo o gentio desta costa

até o rio São Francisco tão atemorizado que se deixavam

amarrar dos brancos como se fossem seus carneiros e ovelhas.

E assim, iam de barcos por esses rios e os traziam carregados

deles a vender por dois cruzados ou mil réis cada um, que é o

preço de um carneiro” (Salvador, 1965:198).

Por Pereira da Costa, temos informações sobre a aliança

dos caetés com os franceses e sobre os frequentes ataques

destes contra instalações da colonização portuguesa, na

região. Em muitas ocasiões as vilas de Olinda e de Igarassu

Cartógrafo Nicolás Vallard. 1547. Escola de Dieppe – França

Imagens do contato dos indígenas da costa, acima

da Bahia, com os franceses interessados no escambo do

pau-brasil.

141

Sob o Domínio do Medo

foram sitiadas pelos índios caetés, ajudados pelos franceses,

o que resultou numa guerra dos portugueses contra os

caetés, que foram banidos dos territórios próximos ao litoral

afastando-se “mais de cinquenta léguas para o sertão”. Muitos

morreram e muitos foram vendidos como escravos aos

moradores de Pernambuco e Bahia. Os que se interiorizaram

misturaram-se aos seus antigos inimigos como escravos ou se

casaram com outras etnias. Os caetés eram grandes músicos

e dançarinos, eram pescadores de linha e bons nadadores.

Esta nação de índios se movimentava desde a boca do Rio São

Francisco até o Rio Paraíba; foram inimigos dos potiguares

e guerrearam também contra os tupinambás. Entretanto,

quando se organizaram em uma confederação, apesar das

guerras entre si, juntaram-se aos tupinambás e aos seus

vizinhos tapuias do Sertão.

As atrocidades praticadas pelas autoridades da Capitania

foram tantas que o rei D. Sebastião chama o donatário

a Lisboa, após uma denúncia de moradores da própria

Capitania. O medo que os colonos conseguiram incutir

aos nativos a partir da violência da guerra possibilitou aos

governantes acordos de paz, mas, sobretudo uma atitude

142

de apatia e de submissão dos nativos diante de inimigos tão

cruéis. Os cronistas, que se ocuparam com a aventura da

ocupação portuguesa, no Nordeste, também descreveram a

forma valente como os indígenas resistiram à presença da

dominação dos lusos. O quase extermínio dos caetés pelos

portugueses auxiliados pelos tabajaras, informação que nos

chega através dos cronistas da época, é uma prova de que este

grupo indígena não se rendeu e nem fez alianças, preferindo

se refugiar em outras áreas, no Ceará, Maranhão e Pará, por

exemplo.

A política de ocupação das terras, para o cultivo da cana

de açúcar ou de outra atividade lucrativa, sejam as do ‘Sertão

de Dentro’ ou as do ‘Sertão de Fora’, tornou-se o alvo número

um da colonização. Este objetivo teve seu desdobramento em

todos os níveis de ação das partes interessadas. Por exemplo,

planejar uma ação contra os caetés significava observá-los,

espioná-los, em suas aldeias e ter, entre índios de outros

povos, indivíduos que soubessem falar a língua dos caetés

para introduzi-los nas suas aldeias. Estas informações nos

dão a ideia da complexidade da colonização. Além do cultivo

da cana de açúcar, da importação da mão de obra escrava, da

143

Sob o Domínio do Medo

preocupação com as novas tecnologias para a produção do

açúcar, nem sempre introduzidas, os senhores de engenho

e a burocracia, que deles dependia, deveriam resolver o

problema da expansão da área cultivável.

Se os senhores do açúcar em algum momento se

preocuparam com as novas tecnologias, destinadas ao fabrico

do açúcar, teria sido mais pelo problema do custo final do

açúcar do que pelo aumento da produção; não demonstraram

disposição para mudar a forma de cultivo da cana de açúcar.

A base do sistema foi a escravidão e a disponibilidade da

terra para o aumento da produção. A escravidão indígena não

foi suficiente. As guerras contra os nativos possibilitaram

o acesso à terra, mas não à mão de obra indígena. A vinda

compulsória dos africanos substituiu definitivamente o

braço indígena; esta situação foi mais rápida em Pernambuco

e na Bahia do que em outras capitanias, principalmente as

do Norte. A documentação da época tem mostrado que, na

resistência que os indígenas ofereceram ao homem branco,

o negro não foi poupado. Mais tarde, com a formação dos

quilombos no interior da capitania, houve certo apoio, não

de tribos indígenas organizadas, mas de indivíduos dispersos

144

descendentes de índios.

A produção de açúcar se expandiu da capitania de

Pernambuco, para as capitanias de Itamaracá e da Paraíba.

A liderança na produção esteve com Pernambuco e

praticamente o embarque do produto do nordeste para os

portos europeus sempre foi realizado a partir do porto do

Recife. Para comparar com outras capitanias que produziam

açúcar no século XVI, vejamos os números: em 1590 havia 6

engenhos em São Vicente, 36 na Bahia e 66 em Pernambuco

(Normando, 1975:38). A produção não cessou de aumentar e

consequentemente Pernambuco passou por transformações

expressas na opulência da sociedade, descrita pelos cronistas

da época.

Quando Gabriel Soares de Souza escreveu sobre o

Brasil, o século XVI ainda não havia terminado como também

a União Ibérica (1580 a 1640). Em 1587, ele oferta o seu

livro Tratado Descritivo do Brasil a Cristóvão de Moura, em

Madri. Entre muitas informações importantes que o livro

contém, destacamos as que se referem a Pernambuco nos

primeiros decênios, porque podemos compará-las a outras

observações feitas por Fernão Cardim e pelo Padre Antonio

145

Sob o Domínio do Medo

Pires, também do século XVI. Os dois primeiros ressaltam as

rendas e as riquezas obtidas pela produção de açúcar, nesta

capitania. Na informação do cronista Gabriel Soares de Souza

(1851:27-29), a capitania de Pernambuco já apresentava uma

estrutura poderosa em termos de renda:

“...mais de cem homens tinham rendas entre mil e dez mil

cruzados. Chegaram a esta terra pobres e se tornaram ricos.

Todos os anos saem do porto de Pernambuco quarenta e

cinqüenta navios carregados de açúcar e pau-brasil.” “...

Esta vila de Olinda terá setecentos visinhos pouco mais ou

menos, mas tem muito mais no seu termo, porque em cada

um d’estes engenhos vivem vinte a trinta visinhos, fora os

que vivem nas roças.”

Sobre a defesa da Capitania, o autor afirmou que o governo

da Capitania pode reunir uns três mil homens de peleja,

juntamente com os moradores de Igarassu e uns quatro a

cinco mil escravos da Guiné. Ainda na sua escrita, aparece

um lembrete preocupante às autoridades da metrópole em

relação à defesa, considerada por ele bastante exposta aos

corsários.

Em 14 de julho de 1585, chega a Pernambuco, o padre

146

Fernão Cardim acompanhando o padre Cristóvão de

Gouveia, visitador dos Jesuítas, no Brasil. De sua missão

nesta Capitania ficaram impressões escritas em forma de

carta, sobre a sociedade de Pernambuco. Quando retornou ao

Colégio da Bahia, em 16 de outubro de 1585, enviou-a ao Padre

Provincial da Ordem em Portugal.25 Os pontos principais

tratados por Cardim, sobre a capitania de Pernambuco

em seus primeiros decênios, podem ser resumidos a

seguir: o religioso descreve minuciosamente a viagem, o

comportamento e hábitos dos seus pares, dentro dos navios

e quando se deslocam para a terra, para os conventos onde

são instalados. É um observador sagaz sobre a vida dos seus

irmãos dentro dos conventos e também sobre a sociedade

mundana, que se move na Capitania. Faz comparações entre

a sociedade pernambucana e a sociedade lisboeta, entre os

costumes dos indígenas e os hábitos dos portugueses e luso-

brasileiros. Percebeu diferenças culturais na alimentação

25. Esta carta foi publicada por Pereira da Costa nos Anais Pernambucanos. Vol.1.

Recife. Arquivo Público Estadual. 1951, pp 511-512-513. Há informações sobre os

presentes em forma de alimento que os padres receberam. Pães, bolos, aves, ovos, vinhos

e outros que comparados à pauta alimentar do índio vê-se grande diferença.

147

Sob o Domínio do Medo

dos indígenas quando os padres da Companhia visitaram

uma aldeia. Os índios ofereceram durante a ceia peixinhos

de moqué assados, batatas, cará mangará e outras frutas da

terra. Os padres consideraram a comida pobre diante da dieta

alimentar deles próprios: patos, galinhas, queijos, vinhos,

frutas, trigo, carnes bovinas etc.

Esta visitação permaneceu em Pernambuco por três

meses. Na opinião do padre Fernão Cardim, não apenas a

sociedade de Olinda é faustosa, como também há muita

fartura de alimentos e de adornos, dentro dos conventos.

O autor apresenta observações argutas e transmite uma

informação curiosa sobre um rito que se verificou no refeitório

dos padres, quando se recitava orações em homenagem ao

Padre Ignácio de Azevedo, martirizado, juntamente com os

seus companheiros. É que uma das orações foi efetuada em

língua de Angola, por um irmão de 14 anos e que depois

a traduziu para o português. Por esta informação podemos

inferir que, jovens, muito jovens, já entravam para a vida

conventual e já se deslocavam de um continente ao outro.

Talvez, se possa entender que houvesse colégios na África,

como os havia em Olinda, para formar futuros irmãos, que

148

Cardim denominava de “irmãos estudantes”; diferente desse

objetivo havia outro colégio dedicado aos filhos dos brancos,

os principais da terra: são estudantes de humanidades.

Comentando sobre a sociedade livre de Pernambuco, fez

as seguintes referências:

“a gente da terra é honrada; há homens muito grossos de

40, 50, e 80 mil cruzados de seu; alguns devem muito pelas

grandes perdas que tem com a escravaria de Guiné, que

lhe morrem muito, e pelas demasias e gastos grandes que

teem seu tratamento”. “... vestem-se e as mulheres e filhos

de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas; e nisto

tem grandes excessos. As mulheres são muito senhoras e não

muito devotas. São muito dados a festas e banquetes. Os

vianezes são senhores de Pernambuco. Tem passante de dois

mil vizinhos entre vila e termo, com muita escravaria da

Guiné, que serão perto de dois mil escravos; os índios da

terra já são poucos. Há 66 engenhos e lavram-se alguns anos

duzentas mil arrobas de assucar. Enfim em Pernambuco se

acha mais vaidade que em Lisboa.”

Trinta e seis anos antes, padres da Companhia de Jesus

comentaram aos seus superiores, através de cartas, sobre

149

Sob o Domínio do Medo

acontecimentos na capitania de Pernambuco. Um deles,

o padre Antonio Pires, escreve aos irmãos do Collegio de

Jesus de Coimbra, em 2 de agosto de 1551, relatando que

permaneceram em Pernambuco pouco mais que um mês.

Nesse período realizaram muitos serviços apostólicos:

propiciaram a paz com os índios; casaram homens que viviam

amancebados com índias e com brancas. Há muito tempo as

índias forras andavam em pecado com os cristãos e os padres

conseguiram torná-las cristãs. Como tal, não deveriam

acompanhar seus homens ao sertão. Portanto, obrigaram aos

colonos, que as tinham, manterem uma casa, onde deveriam

ser recolhidas, e nessa casa esperariam algum homem

trabalhador que as quisesse para o casamento. Escreve o padre

Pires que são muitas mulheres nesta situação. Somente em

Olinda são mais de quarenta e a estas se agregam também

mulheres gentias. Uma delas era tão inteligente que passou a

explicar a doutrina às outras e por esta razão as autoridades

a ‘nomearam’ meirinha. Os senhores de engenho reagiram a

casamentos de colonos com escravas, com as quais estavam

amigados, com medo de que, uma vez casadas, conseguissem

a sua liberdade. O padre, entretanto, não defendeu a alforria

150

para as escravas e sim a salvação das suas almas. Outra

informação interessante é a existência de escolas separadas

para crianças brancas e indígenas (Nóbrega, 1931: 118-120).

Da vila de Olinda, em 14 de setembro de 1551, o padre

Manoel da Nóbrega escreveu a El Rei Dom João III sobre a

sociedade de Pernambuco alarmado com os maus costumes,

desde os praticados pelos eclesiásticos até os que são comuns

aos cristãos; sejam colonos, negros ou índios. Comentou

que o sertão está cheio de filhos de cristãos “grandes e

pequenos, machos e fêmeas” e se criam nos costumes dos

gentios. Referia-se aos índios dizendo que se encontram

mais calmos, do que em outros lugares, porque receberam

terras e o Capitão não permite que lhes façam agravos.

Para o jesuíta, a justiça e a Igreja eram muito mal dirigidas.

Justificou os desmandos da Capitania à velhice do Donatário,

apesar de considerar virtuosos tanto ele quanto sua mulher

Dona Beatriz de Albuquerque; sugeriu que a Coroa assumisse

maiores prerrogativas na defesa da costa do Brasil. Nas

informações sobre os escravos, mostrou claramente que

são muitos e, deles os colonos colhem muitos frutos. Para

terminar, informa ao Rei que Thomé de Souza lhe pediu um

151

Sob o Domínio do Medo

padre que acompanhasse uma ‘certa gente’ numa entrada,

que se fará em busca do ouro. Prometeu que o atenderá,

porque também interessa à Companhia a descoberta do ouro

para o Thesouro de Jesus Christo Nosso Senhor.

De simples observadores, quando acompanhavam os

visitantes de suas ordens religiosas, os padres acabaram por se

transformar em cronistas ou relatores do que viam e ouviam

e os seus escritos são fundamentais para os historiadores do

período colonial. As ordens religiosas foram se instalando na

colônia e participando de atividades econômicas, além do seu

mister principal. Com exceção dos franciscanos, que faziam

voto de pobreza, as demais ordens, como a dos jesuítas,

dos beneditinos e dos carmelitas eram autossustentáveis;

participavam da economia colonial por meio de estipêndios,

empréstimos, propriedades rurais e urbanas.

Em Pernambuco estas ordens atuaram e investiram na

produção de açúcar para exportação, na criação do gado, na

compra de escravos e participaram também do mercado

financeiro a partir de hipotecas e rendimentos. Enquanto

152

os jesuítas26 foram considerados os grandes proprietários

da América Latina, foram os beneditinos os melhores

administradores. Já na metade do século XVII, os beneditinos

possuíam onze engenhos em todo o Brasil: dois na Bahia, três

em Pernambuco, dois na Paraíba e quatro no Rio de Janeiro.

Stuart B. Schwartz (1983) estudou a atuação dos

beneditinos, enquanto proprietários de engenhos de

açúcar, no Brasil, e fez um recorte para Pernambuco: os três

engenhos de Pernambuco eram Mussurepe, São Bernardo e o

Goitá. As terras de Mussurepe foram adquiridas pela Ordem

em 1609, mas em 1629 já estava montado o engenho e

produzindo cerca de 3000 arrobas de açúcar, por ano. Destas,

16 arrobas eram destinadas ao donatário da capitania. O

engenho produzia, além de açúcar, aguardente, e sua renda

era equivalente a metade dos recursos anuais do mosteiro

de Olinda. Em 1667, o engenho empregava 83 escravos. Isto

seria considerado um plantel de um engenho de médio porte.

A fama de bons administradores que tinham os beneditinos

26. Os jesuítas herdaram de Domingos Mafrense- que não tinha filhos- cinquenta

fazendas de gado no Piauí. Expulsos do Brasil no século XVIII, as terras foram

incorporadas à Coroa Brasileira, após a Independência, no século XIX.

153

Sob o Domínio do Medo

parece ser confirmada pelos documentos de contabilidade

dos engenhos e dos mosteiros deixados por eles. No século

XVIII, após um balanço da situação dos três engenhos de

Pernambuco, o açúcar e os subprodutos representavam 2/3

da renda anual da Ordem. A capacidade empresarial dos

beneditinos é reconhecida pelas inovações que introduziram

na produção e no fabrico do açúcar, assim como na relação

com a mão de obra escrava. Com relação aos escravos, parece

ter havido incentivo à formação de famílias entre estes,

como também recompensas pelo aumento da natalidade. Se

uma escrava conseguisse manter seis filhos vivos não faria

trabalhos penosos. Um dia da semana era livre para trabalhar

sua própria roça; alguns engenhos dos beneditinos foram

administrados por escravos africanos.

A relação das ordens religiosas, que intervinham na

atividade produtiva da colônia, com os outros senhores de

engenho e mesmo com a burocracia reinol não era muito

cordial. Os religiosos queriam frequentemente dispensa de

impostos e de outras obrigações com o governo da Capitania e

com a Coroa. O episódio em que se envolveu o governador Geral

do Brasil, Diogo Botelho, em 1602, é elucidativo: nomeado

154

governador geral do Brasil, desembarca em Pernambuco

em 1602, e aí permanece pouco mais de um ano. Com ele

vieram dois religiosos, agostinianos, para fundar uma casa da

ordem em Pernambuco; o povo não consentiu, justificando

as devidas despesas com os religiosos da Companhia de Jesus

(jesuítas), os de Nossa Senhora do Carmo (carmelitas), os do

patriarca São Bento (beneditinos) e os de nosso seráfico São

Francisco (franciscanos). Os moradores arrecadaram uma

polpuda esmola com os senhores de engenho e devolveram

os agostinianos a Lisboa. Portanto, os conflitos não eram

limitados aos brancos versus índios ou brancos versus negros,

mas entre os próprios brancos; entre civis e religiosos,

autoridades e colonos. Enfim, era uma sociedade conflituosa.

Documentos do Arquivo Histórico Ultramarino, do

Arquivo Público de Pernambuco, dos Arquivos Cartoriais e

Paroquiais de Pernambuco, informações contidas nos Anais

Pernambucanos de Pereira da Costa e, ainda, os escritos

de cronistas coevos do período colonial fundamentam o

conhecimento contemporâneo sobre entradas e bandeiras,

alianças e conflitos entre os índios, entre índios e portugueses

e entre índios e holandeses.

Missão com índios aldeados em Pernambuco, por Albert Eckhout

(1641-1643)

156

É interessante ressaltar o fato de que nem sempre uma

tribo ou povo indígena, constituído de várias aldeias, estava

em sua totalidade aliada ou em conflito com outros grupos

étnicos. É o caso dos tabajaras; nem todos os caciques

tabajaras em Pernambuco acompanharam as alianças do

cacique tabajara Braço de Peixe com Jerônimo de Albuquerque

e Vasco Fernandes. Também as relações de concubinato entre

brancos e nativos não possibilitaram alianças permanentes

com todas as aldeias de uma mesma tribo. Através dessas

alianças, e se aproveitando de conflitos entre tribos, os

potentados de Pernambuco prearam índios e os trouxeram

de suas aldeias como cativos para o trabalho nos engenhos.

Com a expansão destas fábricas de açúcar, a mão de obra

indígena foi substituída pela mão de obra africana; os nativos

passaram a fazer parte de um grupo de reserva utilizado

nas guerras contra outros grupos indígenas inimigos ou

contra outros europeus invasores. Também, devemos

assinalar o papel que a catequese possibilitou na utilização

desses índios: incutindo nos nativos outra formação com

relação a conceitos sobre religião, pecado, propriedade

privada, morte, obediência ao trabalho, hierarquia, ética

157

Sob o Domínio do Medo

e outros, naturalizando a manipulação e a cooptação dos

índios. Os não cooptados utilizaram suas estratégias de

guerra: assaltos rápidos e de surpresa, as armadilhas e o

não enfrentamento do inimigo cara a cara; por outro lado,

as estratégias de guerra dos índios foram agregadas à ação

dos exércitos convencionais, como por exemplo, a formação

de um grupo de índios flecheiros dentro da formação dos

exércitos convencionais dos batalhões ibéricos, acostumados

a um tipo de guerra com artefatos pesados, incluindo suas

próprias roupas. Os potentados tinham o seu poder social e

econômico medido pela quantidade de flecheiros indígenas à

sua disposição, o que demonstra complexidade no processo

de colonização. Para tanto algumas nações ou tribos indígenas

deveriam estar em campos opostos. Na opinião de Idalina

Pires (1990) não havia unidade entre os indígenas diante do

conquistador branco. Velhas rivalidades tribais foram aliadas

dos conquistadores.

A documentação do Arquivo Histórico Ultramarino

revela que a repressão portuguesa foi violenta e, respaldada

nas recomendações das autoridades reais. Uma Carta Régia

de 1688 ao governador geral do Brasil, Mathias da Cunha,

158

recomenda ao capitão-mor, Manuel de Abreu Soares que

“dirija a entrada e guerra que há de se fazer aos bárbaros como

entender que possa ser mais ofensiva, degolando-os e seguindo-

os até os extinguir”. As atrocidades cometidas por Domingos

Jorge Velho levaram o Bispo de Pernambuco D. Francisco de

Lima a escrever ao Rei denunciando-o como um “dos maiores

selvagens com quem havia topado”.

A documentação da época demonstra também a oscilação

dos monarcas entre recomendar ações repressoras ou não

aprová-las. Todavia os colonos e a administração local estavam

muito distantes da justiça e do Estado lusitano e, na dúvida,

optavam por ações violentas que precediam a realização

dos seus interesses. Os cronistas que escreveram sobre a

aventura da ocupação portuguesa, no nordeste, também

relatam a forma corajosa como parte dos indígenas resistiu

à presença lusa em seus territórios. O quase extermínio dos

caetés, pelos portugueses auxiliados pelos tabajaras, é uma

prova de que aquele grupo nativo jamais se rendeu e nem fez

alianças. Bartira Barbosa (2007:67) chama atenção para o

seguinte fato:

159

Sob o Domínio do Medo

“sobre os nativos caetés, foi encontrada apenas uma

referência na cartografia portuguesa dos séculos XVI e XVII,

o que confirma as informações sobre a agressiva ocupação

portuguesa na capitania de Pernambuco, e comprova o

extermínio deles no litoral, com a ajuda dos tabajaras...”.

Por outro lado, há referências aos caetés na cartografia

francesa do século XVI ao XVIII, incluindo o de Claude

d’Abeville, datado de 1640, indicativo do não extermínio

deste grupo até o século XVIII.

É ainda de Frei Vicente do Salvador27 a informação de que

no século XVI saiu de Pernambuco expedição comandada

por Francisco de Caldas e Gaspar Dias de Ataíde, a qual

entrou muitas léguas pelo Sertão do Rio São Francisco. Eles

tinham o apoio do chefe indígena tabajara, Braço de Peixe;

entretanto, a expedição foi malograda porque os índios

liderados por este chefe se insurgiram contra os portugueses

e, consequentemente contra ele próprio. Outra expedição

dirigida ao Sertão do São Francisco saiu de Pernambuco

27. Frei Vicente do Salvador tomou hábito na Bahia, em1599; foi enviado a Pernambuco

em 1600, daí, foi missionar índios na Paraíba, mais ou menos por volta de 1603.

160

em 1578, comandada por Diogo de Castro, que conhecia a

língua dos índios, considerado um sertanista experimentado,

juntamente com Francisco Barbosa da Silva; constituída por

70 homens, não conseguiu seu intento, que era encontrar ouro

ou pedras preciosas. Nesta expedição, dois índios chamados

Seta e Porquinho ajudaram a carregar mantimentos e

sugeriram vender ao capitão uma aldeia de índios contrários.

Porquinho aconselha ao capitão uma troca desses índios

contrários por ferramentas a serem utilizadas em suas

roças e sementeiras. Nesta expedição os portugueses, com

a ajuda de indígenas, conseguiram escravizar 1500 índios e

trucidar 600, numa ação violenta sob a responsabilidade de

Diogo de Castro. As bandeiras desciam o rio Real e traziam

índios escravizados para Pernambuco com a intermediação

dos mamelucos. Muitas foram realizadas com este objetivo.

A comandada por Francisco de Caldas e Gaspar Dias de

Ataíde dirigiu-se ao Rio São Francisco com muitos soldados e

ajudados por Braço de Peixe, um dos chefes tabajara, mataram

índios e escravizaram os demais (Salvador, op. Cit.: 209).

No século XVII, a crônica será um gênero importante,

juntamente com a correspondência entre as autoridades

Mapa deLuís Teixeira (1582-1585)

162

portuguesas de Lisboa e de além-mar; esta última constitui

atualmente a documentação do Arquivo Histórico

Ultramarino, em Lisboa. Ambas são importantes para se

conhecer sobre a conquista e a ocupação de terras no Brasil.

Pero de Magalhães Gândavo (1995:49) e outros cronistas

vão tratar sobre as terras e as gentes do Brasil dando conta

da presença de populações de diferentes etnias, regidas por

culturas próprias, rivalidades e aproximações. As informações

deste cronista confirmam as de Frei Vicente do Salvador.

Escreveu Gândavo sobre a capitania de Pernambuco:

“esta é uma das melhores terras, e que mais tem realçado

os moradores que em todas as outras capitanias desta

província: os quais foram sempre mui favorecidos e ajudados

pelos índios da terra, de que alcançaram muitos infinitos

escravos com que granjeiam suas fazendas”.

E sobre os índios faz a seguinte descrição:

“Estes índios são de cor baça e cabelo corredio: tem o rosto

amassado e algumas feições dele à maneira dos Chins. Vivem

todos muito descansados sem terem outros pensamentos

senão de comer, beber e matar e por isso engordam muito;

mas com qualquer desgosto pelo conseguinte tornam a

163

Sob o Domínio do Medo

emagrecer. A língua de que usam em toda costa é uma: ainda

que em certos vocábulos difira nalgumas partes: mas não de

maneira que se deixem uns aos outros de entender: e isto até

a altura de vinte e sete graus, que daí por diante há outra

gentilidade de que nós não temos muita notícia, que falam

já outra língua diferente. Esta de que trato que é geral pela

costa é mui branda, e a qualquer nação fácil de tomar. Alguns

vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas e outros

que não servem senão para os machos. Carece de três letras.

Não tem nem F nem L nem R, cousa digna de espanto, porque

assim não tem nem Fé, nem Lei, nem Rei”.

Todos os cronistas, escritores/narradores do período

colonial dão testemunho da escravização indígena,

descrevendo, inclusive seus comportamentos como

trabalhadores compulsórios. Gaspar Barlaeus28 quando se

28. Barlaeus, Gaspar. 1584-1648. História dos feitos recentemente praticados durante

oito anos no Brasil. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1980. P.133.

Gaspar van Baerle, latinista, que viveu contemporaneamente a João Mauricio de

Nassau foi incumbido por este para escrever a crônica dos acontecimentos em

Pernambuco, no tempo em que Nassau governou esta Colônia “de maneira imparcial à

luz de documentação fornecida”.

164

refere ao item escravos, durante o período holandês, reporta

o seguinte:

“Dos escravos uns são índios, outros africanos e outros

trazidos do Maranhão. Já antes compraram os portugueses

escravos índios cativados pelos tapuias, ou reduziram à

escravidão, por se terem aliados a nós (os holandeses), os

que abandonaram, na baía da Traição, o Almirante Balduíno

Henrique. Todos foram já libertados. Os maranhenses

comprados como escravos pelos portugueses aos seus

cativadores mantivemo-los no estado servil, por não lhe

devermos nenhum benefício”.

Os nativos habitantes da região do São Francisco foram

descritos, pelo menos no século XVI e XVII, como grupos

indígenas pertencentes a sociedades desorganizadas e

isoladas, o que denota preconceito. Desde muito tempo, esses

grupos haviam se articulado por laços de parentesco, pelas

necessidades de troca, e também por um sistema combinado

de alianças e rivalidades. Este modus vivendi, antes da

chegada dos primeiros europeus, possibilitou a formação de

cadeias de comunicação, de circulação entre elementos de

várias etnias e trocas de alguma produção, seja de produtos

165

Sob o Domínio do Medo

cultiváveis, seja de produtos artesanais. Se observarmos

o mapa etno-histórico de Nimuendaju perceberemos que

etnias indígenas como a kariri, potiguar, tabajara, caeté,

rodela, pankararu e outras, se movimentavam pelo território.

Nessas migrações poderiam ser bem recebidos ou rechaçados

por outros grupos étnicos.

Outro estereótipo construído pelo colonizador é o que

define suas habilidades e aptidões. Nos setecentos, o carimbo

de preguiçosos, traidores, bêbados, indolentes, é conhecido em

todo o território brasileiro da época e aparece explicitamente

na correspondência de alguns administradores para o Reino

e até em alguns cronistas do século XVII e XVIII. Até no

Testamento de Maurício de Nassau aparece o preconceito:

“... não se pode fazer muito fundamento em gente ínfima, pois

um dia dizem a verdade, em outros enganam com muitas

mentiras.”

Há, entretanto, autoridades que divergem. No Arquivo

Público do Estado de Pernambuco, há documentos

produzidos por autoridades luso-brasileiras que desmentem

muitos desses preconceitos sobre os nativos. Leonardo F.

Gominho (1966:87) informa que o Juiz do Julgado do Pajeú,

166

da Comarca de Flores, Francisco Barbosa Nogueira, enviou ao

Governador de Pernambuco muitos ofícios e comunicações

sobre conflitos entre índios e proprietários de terras, naquela

região. Um deles destaca a ação dos irmãos Gomes de Sá,

que desde o final do século XVII perseguiam e exterminavam

índios na região sertaneja e do São Francisco. Mais de cem

anos depois, em 1801, continuavam suas investidas contra

aqueles que ainda sobreviviam. Alexandre Gomes de Sá,

acompanhado de dez homens, embrenhou-se pelas caatingas

caçando índios, sendo morto por eles. Cypriano Gomes de Sá

instigou a Manoel Dias da Silva, comandante das tropas, no

Sertão, a organizar uma bandeira contra o gentio brabo da

Ribeira do Pajeú e Riacho do Navio. Esta autoridade dirigiu-

se ao Governador de Pernambuco em 1801 comunicando

que esses gentios estavam atacando as fazendas da região,

“pondo em fuga os moradores daqueles lugares; que muitos têm

deixado suas fazendas e se acham desertas”. Acusava os índios

de criminosos, ladrões e facínoras, não apenas os índios,

também, os seus diretores. Exigia que aquela autoridade

os castigasse e os prendesse. Na realidade, esses índios

eram as sobras de duas nações Pipipães e Chocós. Viviam

167

Sob o Domínio do Medo

atemorizados, foragidos e embrenhados nas matas do riacho

do Navio, na freguesia de Fazenda Grande, hoje Floresta.

Outro documento da mesma autoridade – o Juiz do

Julgado do Pajeú – Francisco Barbosa Nogueira, enviado ao

Governador de Pernambuco, informa que uma tropa de índios

brabos das nações Umãs e Oés, foi à sua presença, juntamente

com o vigário de Cabrobó, solicitando batismo e aldeamento;

os nativos foram atendidos e encaminhados à aldeia do Brejo

da Gameleira. Talvez, o documento mais contundente, no

qual transparece a situação dos índios, seja a Carta do Juiz do

Julgado do Pajeú respondendo às inquirições do Governador

de Pernambuco. O mesmo deseja saber se as denúncias feitas

pelo Comandante Manoel Dias são verdadeiras sobre atos de

vandalismo praticados pelos índios Pipipan e Chocó da região

e se estão mancomunados com escravos fugidos. Fazendo

um resumo do documento, a resposta do Juiz do Julgado do

Pajeú é a seguinte:

“o requerimento do Comandante Manoel Dias é despido de

verdade. Não me consta que agreguem escravos fugidos nem

criminosos; menos que tenham destruído fazendas, feito fugir

os vaqueiros. Excelentíssimos senhores que antecederam

Mapa das missões jesuíticas, segundo

Serafim Leite, 1953.

169

Sob o Domínio do Medo

V. Excelência expediram ordens para Bandeiras por

representações das mesmas causas, que esta está composta,

em virtude delas se tem feito nos índios desumanas matanças

e não conquistas, abusando-se assim das saudáveis ordens

que sabiamente determinavam prenderem índios para se

aldearem. Aqui, temos feito um trabalho de aldeamento e

esses indivíduos os irmãos Gomes de Sá e o Comandante

Manuel Dias têm destruído. Muitas bandeiras tratam de

matar os índios, homens, mulheres, velhos e crianças até de

peito. Depois da Conquista não houve mais resistência às

bandeiras. O que acontece é que os índios quando recebem

informações que vão ser destruídos fogem para os matos,

dispersam-se e desaparecem”.

Um documento datado de 1761, no Arquivo Histórico

Ultramarino, comprova a subordinação dos índios e o

controle das comunicações e relações entre índios de aldeias

separadas. A presença de líderes indígenas como Antonio

Preto e Manuel Pianguy era considerada ameaçadora, porque

estes índios tinham muitos seguidores. Ambos foram presos

sem culpa formada. As ordens eram destinadas a conciliar os

índios bravios ao grêmio da Igreja e aldear os índios reduzidos

170

e remeter os criminosos à prisão; organizar as 12 malocas

que se tornariam as aldeias do São Francisco para melhor

instruírem-se e civilizarem-se.

Outro documento do Arquivo Público de Pernambuco

noticia que uma força policial entrara na aldeia de Nossa

Senhora das Montanhas, cujos missionários eram da

congregação de São Felipe Neri. Os índios Paraquiós e Pipipães

não ofereceram resistência, mas se refugiaram nos matos. As

tropas fizeram uma varredura e, encontrando os fugitivos,

tentaram uma conciliação, mas os índios não cederam

separar-se do ‘corso’29 a que estavam habituados. O combate

cessou a partir de prisões e mortes. O que restou dessa

população foi transferido para a ilha do Rio São Francisco,

depois denominada povoação de Belém.

Além dos conflitos entre índios e colonos e autoridades

locais de Pernambuco, pode-se observar dissensões entre

as autoridades acerca do estabelecimento dos índios. O

29. Corso, nesse contexto, significa modo de vida errante, isto é, os índios não se

comprometiam em ficar reduzidos a um aldeamento dirigido por religiosos ou por

autoridades civis ou militares.

171

Sob o Domínio do Medo

governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva30,

por ofício, dirigiu-se ao Secretário de Estado da Marinha e

Ultramar confirmando sobre a devassa que abriu contra o

ouvidor de Pernambuco, Bernardo Coelho da Gama, que em

aliança com o ouvidor da Paraíba, perseguia os índios que

estavam estabelecidos em determinado local.

As ‘Guerras Justas’ possibilitaram aos colonos a utilização

do indígena como mão de obra servil. Embora a contribuição

indígena, dentro dessa relação escravista, tenha sido limitada,

foi de fundamental importância, para os luso-brasileiros, o

desalojamento dessa população, primeiro para a implantação

dos engenhos de açúcar, rapadura e aguardente, e depois para

as fazendas de gado. Empurrando os nativos para o interior

ou mudando suas aldeias para regiões menos férteis ou na

proximidade de tribos rivais, os campos seriam ocupados

com o gado e se evitaria a caça nas fazendas dos colonos.

Esses conflitos com os indígenas pela posse da terra

modificaram as relações de trabalho nessa região, e pouco

a pouco, em número limitado, comparado ao litoral, a

30. Governou Pernambuco de 16 de fevereiro de 1756 a 08 de setembro de 1763.

172

escravidão de origem africana compôs a paisagem do

Sertão. A necessidade de novos braços, seja para a lavoura

de subsistência, seja para a do algodão, ou para a cultura da

cana de açúcar (matéria prima para o fabrico da rapadura e

aguardente ou mesmo para a atividade da pecuária), levou o

colono a buscar um plantel de escravos negros de acordo com

sua riqueza; desse modo, complementava a mão de obra de

origem indígena ou mesmo familiar.

As investidas dos portugueses no sentido de ampliar os

domínios da capitania de Pernambuco na região do médio

São Francisco chocavam-se com o poderio da Casa da Torre.

As vilas, que hoje são conhecidas como Floresta, Itacuruba,

Belém de São Francisco e Cabrobó, que atualmente pertencem

a Pernambuco, estavam integradas aos domínios da família

Ávila, da Casa da Torre. Esta sesmaria abrangia tanto a

margem direita do Rio São Francisco quanto a esquerda.

A distribuição de terras aos colonos através das sesmarias

foi uma ação eficaz na redução dos espaços dos índios.

No registro de terras de Pernambuco, entre 1858 a 1861,

podemos verificar o alto número de registros de posse de

terras, legalizadas através do Estado em antigos territórios

173

Sob o Domínio do Medo

ou lugares dos índios. Por exemplo, das dezessete solicitações

de posse de terras, dez faziam fronteira ao Sul com a serra

do Umã, e sete faziam fronteira com a serra do Arapuá, o

que significa que os índios ficaram confinados às missões

na serra do Arapuá e na do Umã, cercados e sem mobilidade

para o corso.

A presença holandesa em Pernambuco foi responsável

por algumas mudanças nas relações dos índios com os

diferentes colonizadores; desejosos de informações sobre o

país, as gentes e as riquezas, os holandeses vão atrair alguns

caciques de algumas tribos prometendo-lhes mais respeito

nas relações, comparando-as com as que haviam sido

experimentadas com os portugueses. O modelo de cooptação

dos índios não difere muito em suas finalidades: manter

a ocupação, ter um exército na retaguarda de soldados

treinados e eficientes na arte da guerra, manter uma mão

de obra que lhe possa garantir o conhecimento da terra, das

gentes e das possibilidades de exploração. Mesmo no pouco

tempo em que os holandeses estiveram nesses domínios,

houve também tentativas de cooptá-los pela religião, pela

missionação protestante. Talvez o diferencial seja na forma

174

de fazê-lo, mas não com menos crueldade e menos engodo.

A invasão holandesa determinou o adentramento de

proprietários portugueses e seus descendentes, os quais

procuraram locais mais seguros para iniciar uma nova

atividade – fazendas de gado – e passaram a ter relações

comerciais com Salvador, como capital do domínio da União

Ibérica. Nesta nova atividade, os índios, já submetidos ao

domínio português, foram a mão de obra mais eficiente, como

tangedores do gado e conhecedores de caminhos e atalhos

por onde as boiadas deveriam seguir para Salvador ou Recife

ou para a região das minas; as mulheres indígenas serviram

nas fazendas como mão de obra básica de uma agricultura

de subsistência, da cultura do algodão, como produtoras de

redes e panos grossos nos teares e, geralmente, como mães de

uma nova geração de mestiços. O Rio São Francisco passou a

ser o limite entre os dois territórios, o holandês e o ibérico,

e entre atividades econômicas diferenciadas: a agricultura

canavieira e a atividade criatória, conforme oficializou a

Coroa portuguesa em Carta Régia de 1701. O mapa mural

Brasília qua parte paret Belgis, atribuído a Georg Marcgraf,

documenta os pontos conquistados pelos holandeses nas

175

Sob o Domínio do Medo

capitanias do Nordeste do Brasil, aldeias indígenas, missões

em aldeias indígenas, engenhos, salinas, fazendas de gado,

vilas e povoações, confirmando, desse modo, a presença das

duas colonizações.

A Carta sugere a extensão do plantio da cana de açúcar

nessa região, o que se traduz na presença desta cultura

principalmente para o fabrico de rapadura e aguardente,

conforme mencionou-se anteriormente. Contudo, todas

as povoações da região sertaneja tiveram suas origens nas

fazendas de gado, comercializando animais (gado vacum,

cavalar e cabrum) ou produzindo carnes e couros para outras

regiões. A cana de açúcar se desenvolveu aí como atividade

econômica complementar, produzindo aguardente e

rapadura. A cultura do algodão logo se expandiu, a princípio

como matéria prima para a fabricação de pano grosso e,

depois, no século XIX, como matéria prima valorizada pelo

mercado externo.

A atividade agrícola encontraria no algodão, planta nativa,

a sua maior vocação. Em fins do século XVIII e começo do

século XIX, esta atividade torna-se rentável em virtude da

Revolução Industrial e da Independência dos Estados Unidos

176

terem estimulado o mercado. Pecuária e algodão, os dois

esteios da economia do sertão, desenvolveram-se articulados

tanto com as regiões exportadoras do açúcar e tabaco quanto

com a atividade aurífera e a indústria do charque, no Piauí.

Esta articulação com o Piauí foi feita a partir de expedições

e viagens exploratórias, que visavam desalojar os franceses

do Maranhão, e terminou por estabelecer quatro vias de

comunicação; uma com o Maranhão, outra com o Ceará,

através da Serra do Ibiapava, e duas outras com a Bahia. Um

caminho alcançava o Rio São Francisco na altura da Fazenda

Sobrado, cujo proprietário era Domingos Afonso Mafrense

Sertão, e o segundo caminho foi aberto na cabeceira do Rio

Canindé. Conforme informações do Padre Miguel Carvalho,

nenhum caminho chegou ao Rio São Francisco utilizando

o rio Gurgueia. Estes roteiros foram, provavelmente, os

caminhos antigos de índios para suas intercomunicações e,

também, para suas marchas de guerra. Quase todos seguiam

a direção do interior para o mar.

No fim do século XVII, os conquistadores, que eram

um conglomerado de guerreiros e viviam em arraiais, vão

se transmudar em curraleiros. Adaptar-se-ão às novas

Aldeias indígenas: 1. São João, 2. Nova, 3. Pousjeneq, 4. Nassau, 5.São Miguel,

Mapa feito por Johan Vingboons Ca. 1660 com as principais vilas e aldeias com missão.Fonte IAHGPE(Barbosa, 2007:169).

6. Tapisserama, 7. Tapisserica, 8. Cavallos, 9. Maurítia, 10. Tapoa,

11. Goregae, 12. Carece,13. Masiopebú, 14. Pontal, 15. Ortagny,

16. Mopabú, 17. Tapeupó, 18. Taypówaypó

Aldeias Indígenas no médio São Francisco

(Século XVII) Fonte: Bartira Ferraz

179

Sob o Domínio do Medo

contingências tendo o gado como móvel da nova era. Se por

um lado os conquistadores vão anexando mais terras aos

seus domínios e ocupando-os com o gado, por outro, dar-

se-á o despovoamento com o aniquilamento ou expulsão

de milhares de indivíduos que povoavam essas terras. É

a substituição das gentes pelo gado. Longe dos centros

comerciais, as propriedades que vão surgir nessa região são

conhecidas como fazendas mistas, autossustentáveis, nas

quais conviviam atividades ligadas ao gado, à agricultura

de subsistência, às casas de farinha, ao tear, para fiar panos

grossos e outras produções artesanais. Todas essas atividades,

fundamentais aos núcleos de população, dependiam da mão

de obra indígena e de um Senhor, que já carregava o poder

da conquista, demonstrado na violência da guerra contra os

índios.

181

Missões, Aldeias e Currais

No século XVI, o projeto missionário para o Brasil passava

a fazer parte da política da Coroa portuguesa, atendendo

assim aos objetivos de ampliação dos domínios da monarquia

e da igreja católica. Desde o início, este projeto esteve

praticamente sob a responsabilidade dos jesuítas, cujo

intento era oferecer uma constituição teocrática aos povos

indígenas, e nesta carta se colocavam contrários à escravidão

dos nativos (Oliveira Martins, 1978 p.26). Projeto político-

religioso com fins econômicos, parece ter sido executado

por etapas. A fase inicial foi marcada por ações de contatos

com povos da costa, para a instalação das obras religiosas

missionárias, resultando, para os nativos aliados, o batismo

e a catequese nas aldeias. A Igreja, através deste projeto

missionário, participava da luta para implantação de uma

nova sociedade na colônia, defendendo o território colonial

português e mitigando a resistência dos nativos ao invasor.

Nesta fase, os grupos indígenas vencidos migravam para o

interior, numa tentativa de sobrevivência, que nem sempre

182

era exitosa. Lá, no interior, outros grupos podiam lhes

oferecer resistência.

O contato dos brancos com os índios deu-se numa relação

a princípio de escambo, de trocas, na qual ainda não havia lugar

para o julgamento dos costumes dos nativos. À proporção que

essas relações foram se dando no mesmo território, ocupado

por brancos e índios, de culturas diferentes, os colonizadores

quiseram obrigar aos nativos um raciocínio análogo ao seu,

sem, contudo, nenhuma explicação convincente. Nem

os brancos explicitaram suas condutas, nem os índios

entendiam o que deveriam fazer. Rousseau fundamenta

Tzvetan Todorov (1993:30) quando afirma “o universal é o

horizonte de entendimento entre dois particulares”. Além do

etnocentrismo, defendido pelos portugueses, que deduz o

universal apenas a um particular, preconceito instalado no

raciocínio dos brancos em relação à sua superioridade diante

dos nativos, havia a incomunicabilidade linguística.

Índios e colonizadores tiveram línguas e costumes

como barreira e, ambos os lados, careciam de diálogo

nas negociações políticas. Na realidade, foram duas ou

mais culturas particulares que se encontraram, mas não

183

Missões, Aldeias e Currais

dialogaram, não atingiram o universal, não conseguiram o

entendimento. A guerra funcionou como linguagem mais

rápida e eficaz para incutir o medo e a dominação; portanto,

esta solução foi recorrente, entre outras possibilidades,

principalmente no enfrentamento à rebeldia indígena.

A favor dos colonizadores, a bula Inter Coetera de 1493,

legitima a conquista, o povoamento e a evangelização31 aos

soberanos de Portugal e Castela. Esta bula trata também do

direito do padroado e da política de ampliação dos domínios

da Igreja Católica Apostólica Romana, já definida para a costa

da África, exploração iniciada pelos portugueses desde o início

do século XV, com suas ações missionárias (Barbosa, 2007:

117). No século XVI, D. João II, usando a igreja como veiculo

de seu governo, confirma o poder dado aos representantes

católicos que chegam ao Brasil, como consta no Regimento

de Thomé de Souza de 1548:

“Porque a principal cousa que moveo a mandar povoar as

ditas terras do Brasil foi pêra que a gente dela se convertese a

31. Ver Charles Boxer. O Império Marítimo Português 1415-1825. Rio de Janeiro,

Edições 70, 1969.

184

nossa santa fee católica ... e pêra eles mais folgarem de ho ser

(Cristãos) tratem bem todos os que forem de paz.” 32

Os jesuítas33 não foram os primeiros religiosos a pisarem

na Terra de Santa Cruz nas expedições do início do século XVI.

No entanto, foram escolhidos pelo rei de Portugal para iniciar

a conversão dos indígenas. Uma ação missionária construída

desde o século XVI, com ajuda de estudos das línguas e

dialetos indígenas, foi desenvolvida para a catequização dos

nativos. Alguns jesuítas se destacaram no século XVII com

textos escritos voltados para catequese indígena e para a

utilização dos serviços indígenas. Padre Antônio Vieira, com

seu texto “Relatos de Visitas”, produzido entre 1658 a 1661 e

Alonso de La Peña Montenegro, que no ano de 1668 publicou

em Quito seu livro Itinerário para Párocos de Índios, são duas

provas documentais sobre o pensamento e as ações religiosas

32. Regimento de Tomé de Souza, datado de 1548, citado e analisado in Georg Thomas,

Política indigenista dos Portugueses no Brasil 1500-1640, São Paulo, edições Loyola,

1982, p.59-17.

33. A Companhia de Jesus, reconhecida em 1538 pelo Papa, não atingia mil membros.

Seu fundador, Ignácio de Loyola, ainda vivia e as Constituições da ordem estavam

ainda em vias de redação. Sua dimensão missionária original é ainda pouco nítida.

185

Missões, Aldeias e Currais

tidas como modelo para a catequização e o aproveitamento

do braço nativo (Barros e Fonseca, 2010: 660-662).

Dentro desta lógica, e, ao perceber a resistência indígena

caeté, Duarte Coelho procura receber jesuítas e outros

missionários no intuito de conseguir transformar as terras

da sua capitania em um lugar seguro. O modo de dominar

os índios para o projeto colonial dos portugueses não diferia

muito do que pensavam os jesuítas. Nóbrega e Anchieta,

os fundadores das missões no Brasil, cooperavam com os

capitães nas guerras contra os indígenas e defendiam como

estratégia o seguinte: “os índios mais por medo que por amor se

hão de remir”. Citado por (Martins,1978:31)

No mapa de Luís Teixeira,34 impresso na segunda metade

do século XVI, pode ser visto o convento dos jesuítas, o dos

Franciscanos, e o de São Bento na vila de Olinda.

34. Luís Teixeira foi cartógrafo da Coroa portuguesa, tendo colaborado com Abraham

Ortelius no Theatrum Orbis Terrarum. Pertenceu a uma família de cartógrafos,

incluindo o seu pai Pero Fernandes, seu irmão Domingos Teixeira e seus filhos Joao

Teixeira Albernaz, o Velho, e Pedro Teixeira Albernaz. A atividade desta familia de

cartógrafos se estendeu do século XVI até ao fim do século XVIII.

186

Em uma segunda fase, as lutas continuaram; para vencer

os nativos, hostis à instalação de portos, de vilas, de engenhos

e de ordens religiosas, uma população colonial ainda rala,

mas armada, respondia aos ataques com apoio de tropas

indígenas aliadas; assim, pouco a pouco, o controle de alguns

pontos da costa ao norte do Rio São Francisco até os limites

com o canal de Santa Cruz em Itamaracá, passou às mãos dos

conquistadores.

Em 1598, com o fim das campanhas de conquista, no

litoral, travadas pelas lideranças luso-pernambucanas até

o Rio Grande do Norte, alguns chefes da etnia potiguar

aceitaram fazer aliança com os portugueses em troca da paz.

Aliança que levava às guerras contra índios rebeldes. Os

potiguares, que viviam pelo litoral do Rio Grande do Norte até

o rio Capibaribe Mirim, na capitania da Paraíba, se dividiram,

uma parte das comunidades foi deslocada para Pernambuco

para fazer a defesa das fronteiras portuguesas, como foi o

caso da população aldeada por jesuítas, na missão de São

Miguel, onde nasceu o líder potiguar Filipe Camarão. Nesta

fase ainda, foram fundados engenhos de cana de açúcar

na Paraíba e no Rio Grande do Norte, em terras dos índios

187

Missões, Aldeias e Currais

potiguar.

Paralelo às guerras de conquista, que desbarataram

o poder dos nativos caeté, tabajara e potiguar nas duas

primeiras etapas, houve a necessidade de se manter o controle

e as alianças conseguidas através de patentes distribuídas

aos líderes nativos durante o século XVII. Afora os caetés,

condenados à escravidão perpétua, desde o século XVI, foram

agraciados com patentes burocráticas e militares, antes

estendidas apenas para portugueses ou luso-brasileiros, os

principais líderes aliados das nações tabajara e potiguar, para

a manutenção do sistema de ocupação colonial, mesmo que

indígenas dessas nações vivessem nas missões sob regime de

servidão.

Nesta segunda fase aparecem documentos escritos,

voltados para uma elite indígena, o que diferenciava da fase

inicial da colonização. Produziu-se apenas documentação

oficial entre os altos escalões administrativos governamentais

e entre os religiosos, seus superiores e a Corte, para informar

e regulamentar as políticas coloniais. Resulta destas duas

fases que todos os grupos indígenas do litoral tiveram, de

fato, seus territórios ou grande parte deles incorporados às

188

novas demarcações normatizadas com o estabelecimento

das capitanias hereditárias. Na capitania Nova Lusitânia,

depois chamada Pernambuco, fronteiras e limites ficaram

controlados por acordos e alianças com as populações das

missões, responsáveis em deter os ataques contra os núcleos

coloniais. Manter esses limites ou expandir as fronteiras

estava atrelado aos resultados das missões e da continuação

das alianças de Duarte Coelho e Jerônimo de Albuquerque

com os caciques de aldeias potiguar e tabajara instaladas

em uma área rica em solo fértil, necessário às plantações

de cana de açúcar. Para os índios aliados chegavam parcos

‘afagos’ da colonização. Os líderes das populações nativas

aliadas e catequizadas por missionários foram agraciados

com patentes de capitão e sargento, com pagamentos,

quando comprovados seus serviços; as patentes podiam ser

hereditárias e diferenciavam os líderes dos demais índios da

mesma missão; estes estavam forçados aos serviços coloniais

ou aos serviços da guerra.

Devido aos constantes ataques dos caetés à vila de Igarassu,

durante o século XVI, dois representantes da Companhia de

Jesus, os padres Manoel da Nóbrega e Antônio Pires, foram

189

Missões, Aldeias e Currais

recebidos em Olinda, em 1551, com a missão de implantar o

primeiro colégio e iniciar obras de catequese com os índios.

Manoel da Nóbrega, jesuíta e superior da primeira missão em

Pernambuco, realiza poucos trabalhos junto às populações

nativas; visita apenas quatro áreas indígenas das quais não

se tem o nome. Em sua carta a Dom João III, datada de 14

de setembro de 1551, Nóbrega (1988) se coloca contrário ao

donatário dizendo ao rei: “... é já velho e falta-lhe muito para o

bom regimento da justiça, e por isso a jurisdição de toda a costa

devia ser de V. A.”. As atividades do Real Colégio dos jesuítas

em Olinda, construído parcialmente com subsídios da Coroa

e com o açúcar comercializado pelos jesuítas, só tiveram

início no ano de 1568, como escola elementar.

A missão de converter os nativos revela-se difícil pelas

diferenças culturais e adaptação mútua dos grupos em

questão: colonos, missionários e indígenas. Os nativos da

costa com quem tiveram contatos iniciais foram os que

primeiramente serviram de cobaias para as experiências

de trocas e escambo, de catequese, de trabalho forçado

nas lavouras de cana. A conversão do nativo, cujo lema era

promover mudanças na vida indígena, implicava ao mesmo

190

tempo em ensinar aos nativos os elementos essenciais do

cristianismo e fazê-los abandonarem seus costumes ditos

selvagens, como para melhor servirem à colonização35. Ainda

como resultado das duas fases do projeto missioneiro, grupos

indígenas de Pernambuco e da Bahia teriam migrado para o

Maranhão e o Pará entre 1560 e 1580 quando da ocupação

portuguesa das capitanias no nordeste. (Barros apud

Fernandes, 1963: 47).

A organização das missões religiosas teve nessa segunda

fase a inclusão da produção de textos para a catequese

em línguas nativas e de textos para a administração das

populações indígenas aldeadas. Chegaram nesse período, ao

Brasil, missionários de outras ordens religiosas. As reduções

se multiplicaram no final do século XVI e meados do XVII,

ao longo da costa com a presença de padres, de tropas reais e

tropas nativas apoiadas por lideranças indígenas cooptadas

nas aldeias.

O controle das populações nativas, através do trabalho de

35. Charlote de Castelnau-L’Estoile. Les Ouvriers d’une Vigne Steérile. Les Jésuites et la

conversion des indiens au Brésil. 1580 – 1620. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa-

Paris, 2000. p3.

191

Missões, Aldeias e Currais

catequização, continuava com as máximas de fazer os nativos

decorarem os textos das missas em latim e do fornecimento

de indígenas para o trabalho obrigatório em obras do governo

da Capitania ou em terras de colonos. A distribuição do

braço nativo, por via de reduções para servir às atividades

coloniais, era o resultado esperado pela Coroa em nome da

fé e da “civilização dos selvagens”. Portanto, nesta segunda

fase, as reduções se espalham pelo litoral Norte e Sul a partir

de Salvador da Bahia e de Olinda, também para regiões

interioranas como a da Zona da Mata de Pernambuco. Missões

sempre construídas em lugares estratégicos, escolhidos após

incursões que visavam o reconhecimento físico e humano

da região para instalação da população indígena aliada ou

vencida.

Este foi o caso da missão jesuíta na aldeia de São Miguel,

localizada na ribeira do Muçuí, onde nasceu o líder potiguar

Filipe Camarão, hoje município de Pau d’Alho. Aldeia

organizada após aliança entre o chefe potiguar conhecido

por Camarão, o Velho, e o donatário de Pernambuco em fins

do século XVI. Foi também o caso da aldeia de Meretibe em

Pernambuco, para onde chegou o padre Manoel de Morais

no ano de 1629. Portanto, o registro sobre as populações das

192

aldeias nesta segunda fase passou a ser de extrema importância

para o controle do trabalho nativo, mas, sobretudo, para o

recrutamento de guerreiros que engrossavam as tropas

dos terços indígenas para as guerras contra holandeses e

franceses, ocorridas no Norte e no Nordeste do Brasil.

O mapa publicado por Serafim Leite referente às missões

jesuíticas desenvolvidas nos séculos XVI e XVII mostra bem a

expansão das áreas das missões jesuíticas no litoral do Brasil

e o acompanhamento delas seguindo conquistas no sentido

norte e sul, mas também algumas para o oeste (Leite, 1953).

Pereira da Costa afirma que na capitania de Pernambuco

existiam, em 1630, onze missões de diferentes ordens, todas

próximas ao litoral. Na região denominada Zona da Mata

havia, segundo ele, as missões de São Miguel de Iguna, Caeté

ou Nossa Senhora de Ipojuca, Moçuigh, São Miguel em Pau

d’Alho onde habitaram o chefe Poti e Antônio Filipe Camarão

(Costa, op. cit. Vol.2:77). Após 1630, com a invasão dos

holandeses em Pernambuco, os aldeamentos com missões

sofreram muitos ataques, chegando alguns a desaparecer

pelo abandono da sua gente que migrava para o Maranhão,

Ceará, Piauí e Pará. A partir de 1635, no período considerado

193

Missões, Aldeias e Currais

‘de paz’, durante a dominação holandesa na Capitania, os

antigos núcleos missionários foram reorganizados e noutros

foram estabelecidos padres holandeses para instruírem os

nativos na religião reformada e garantir-lhes os foros de

cidadãos livres (Costa, op.cit.).

Os franciscanos, que já no ano de 1585 tinham fundado

um convento em Olinda com seminário para a educação dos

filhos de índios convertidos, passaram ao serviço das missões

no Brasil, tendo já organizado em 1588 três grandes aldeias

situadas em Itamaracá, Itapissuma e Pontas de Pedras no

litoral de Pernambuco. Suas obras continuavam a crescer,

atingindo, em 1619, o número de quinze reduções, ficando

nove situadas na Paraíba e seis em Pernambuco (Costa,

op.cit). Também os religiosos oratorianos e capuchinhos

estabeleceram-se no Brasil durante o século XVII. A chegada

dos capuchinhos é comentada por Eduardo Hoornaert:

“A chegada deles não estava ligada a percursos coloniais

portugueses. Os primeiros que chegaram no Maranhão,

eram quatro franceses ligados à tentativa francesa de

colonizar o Maranhão: dois entre eles se tornaram famosos

pelos seus escritos de grande valor cultural: Yves d’Everux e

194

Claude d’Abeville, [....] Estes primeiros missionários haviam

chegado em 1612, e em 1614 chegaram mais dez; todos

foram expulsos em 1617 com a derrota dos franceses no

Maranhão.” (Hoornaert, 1982: 63-64)

Nesse período, as informações compiladas pelos

missionários jesuítas procuravam registrar as diferentes

populações nativas; ressaltamos as fornecidas pelo padre

Manuel de Morais publicadas em livro do século XVII

“Historia ou Annaes dos feitos da Companhia Privilegiada das

Indias Occidentaes, desde o seu começo até ao fim”, (Johannes de

Leat, 1909). Entre as informações dadas por este missionário

constam nomes de líderes indígenas e número de guerreiros,

por aldeias localizadas por ele na capitania de Pernambuco e

suas anexas até a do Rio Grande do Norte. Todas elas, aldeias

de nativos falantes do tupi, com população caeté, potiguar e

tabajara.

Na Tabela seguinte, seguem dados do padre Manuel de

Morais, publicada por Laet, quando ele teria se entregado ao

Coronel Areiszewsky, em 1635, tornando-se informante/

aliado dos holandeses. As informações dele diferem das

informações do mapa publicado no Atlas de Johan Vingboons

195

0 1 . Pe r n a m b u c o

Aldeia Padre Chefe Indígena Tribo População geral e de guerreiros

São Miguel, Muçuí ou Mocnigh

Manuel de Morais

Antonio Filipe Camarão e Estevão ou

Tebu

Potiguar e Tabajara

600 habitantes170 guerreiros

Aldeia Velha, também chamada

Caeté ou N. S. Ipojuca

Jerônimo ou Jerona e Toupinambouto ou

Serenibe

Caeté 1100 habitantes400 guerreiros

São Miguel de Iguna

Manuel (Manu) e João (Jani)

Potiguar e Tabajara

600 habitantes200 guerreiros

Segu

ndo

o P

. Man

uel

de M

orai

s (L

aet)

Segu

ndo

o A

tlas

de Jo

han

Vin

gboo

ns

Ca. 1

660

TOTAL 03 aldeias 2300 habitantes770 guerreiros

Aldeia Meritibe

São João

Nova

Pousjeneq

Nassau

São Miguel

Manuel de Morais

196

São João de Carrese

Guatasar de Souza 600 habitantes200 guerreiros

Santo André de Itapecerica

Joressi e Melchior Taiasica

1200 a 1300 habitantes500 guerreiros

Tabuçurana ou N. S. Assunção

Marco ou Maru Kuyasana

600 habitantes150 guerreiros

Segu

ndo

o P

. Man

uel

de M

orai

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aet)

Segu

ndo

o A

tlas

de

Joha

n Vin

gboo

ns

Ca. 1

660

TOTAL 03 aldeias 2500 habitantes850 guerreiros

Tapisserica

Cavalos ou Goiana

Mauritia

0 2 . I t a m a r a c á

Aldeia Padre Chefe Indígena Tribo População geral e de guerreiros

04 chefes

197

Jaraguaçu ou Eguararaca

Francisco Araduti

Jacknigh(São Miguel do

Urutagui)

João Javarati (ou Simão Soares, Jaguarari tio de

Filipe Camarão)

Iapuã ou Iguapuã no

Pontal

Francisco Cavaraia

Francisco Gopeka

Índio Diogo Botelho

Manibassu

Engenho Valadares

Segu

ndo

o P

. Man

uel d

e M

orai

s (L

aet)

Segu

ndo

o A

tlas

de

Joha

n Vin

gboo

ns

Ca. 1

660

TOTAL 06 aldeias

Tapoa

Goregae

Carece

0 3 . Pa r a í b a

Aldeia Padre Chefe Indígena Tribo Observação

06 chefes

Potiguar

Tapoa ou Urecutuva

Inicoça ou Jaocoça

Pindaúna

198

Ca. 1660.Ao lado das informações dadas pelos religiosos,

militares e indígenas, foi possível também a construção de

mapas sobre os diferentes núcleos populacionais existentes

nesta fase; como os especializados por temas, produzidos

pelos irmãos Vingboons para o Atlas sobre os domínios da

Companhia das Índias Ocidentais no Brasil.

Rigorosamente planejado, o trabalho nas missões

dependia da forma de organização das populações reunidas

nas unidades urbano-rurais de área de trinta a quarenta

léguas em quadra ou em círculo. Os diferentes resultados da

produção agrícola dessas áreas variavam segundo o número

de habitantes e qualidade das terras. Em geral se buscava

terras férteis para a produção da agricultura de subsistência

e criação de gado. Uma agricultura com base na mandioca,

no algodão e hortaliças cultivadas com o uso de ferramentas

vindas da Europa. Controladas pelas autoridades, registradas

nos livros de batismo, casamento e óbito, as populações das

missões no Nordeste do Brasil foram sendo reduzidas, tanto

no sentido físico quanto no que diz respeito às suas terras, do

litoral ao Sertão.

Neste processo, as missões instauradas na capitania de

199

Missões, Aldeias e Currais

Pernambuco e suas anexas passam para a terceira fase que

ocorre com os adentramentos das bandeiras, doações de

sesmarias e implantação de fazendas de gado nos sertões.

Neste terceiro movimento, missões católicas surgem às

margens do Rio São Francisco, no trecho entre Petrolina e

Paulo Afonso, pelos mesmos motivos que as surgidas nas

fases anteriores. O trabalho missionário pelos sertões

nordestinos foi iniciado pelos jesuítas pelo Rio São Francisco,

a partir de Penedo e, seguindo o rio na direção do interior, foi

instalada a Missão de Porto Real do Colégio e, distando dela

02 léguas, a de São Brás. Por outras vias fluviais como a do

rio Ipojuca e a do rio Capibaribe também se deram entradas

seguidas por religiosos.

As Missões religiosas do vale do Rio São Francisco

faziam parte da Província de Santo Antonio do Brasil, cujas

instalações datam da segunda metade do século XVII, e as

disposições regulamentais aparecem no Alvará de 1700,

assinado por D. Pedro II, Rei de Portugal. Na região foram

assentadas as seguintes missões no início da colonização:

Juazeiro, Rodelas, Pambu, Aracapá, Coripós, Zorobabel,

Unhum, Pontal e Pajeú, localizadas nas ilhas fluviais, onde

200

anteriormente estavam instaladas aldeias de indígenas,

sedentários, dedicados à agricultura. O serviço de catequese

dos índios se iniciou no século XVI e os missionários deram

preferência às populações que habitavam as ilhas e terras

ribeirinhas do São Francisco: em Penedo, a primeira ação

seguiu pelas ilhas do baixo São Francisco, depois pelo médio,

nas Ilhas do Pontal, meia légua abaixo do limite ocidental

do hoje município de Petrolina; Pequena, Missão Caraputé,

Inhanhum, Missão Velha, Marrecas, Ilha Grande, Santa

Maria, São Félix, Itapirá, Aracapá, Várzea e São Miguel – todas

elas serviam para a agricultura e para a criação de gado.

Dezessete anos depois da expulsão dos holandeses, já

se registra a presença de capuchinhos franceses, graças a

Relação Sucinta e Sincera do Padre Martinho de Nantes Entre os

Índios chamados Carirís.36 A missão se realizou entre 1671 e

1688. O roteiro de sua viagem, do porto do Recife até o São

36. O padre Martinho de Nantes chega a esta região como missionário e deixou

importantes informações sobre a vida dos índios e a situação deles em relação aos

colonos e à política indigenista do governo português. Há na Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro um exemplar de primeira edição desta obra. O pesquisador Frederico

Edelweiss publicou uma edição fac-similar, na Bahia em 1953.

201

Missões, Aldeias e Currais

Francisco, atravessou uma região montanhosa, na qual se

instalara a missão dirigida por outro capuchinho, o padre

Anastácio. Alcançaram Rodelas, onde havia outra missão

dirigida pelo padre Domfront; continuaram até a aldeia de

Pambu. Para se avaliar as distâncias, segundo Martinho de

Nantes, o padre Domfront, para celebrar missas em outras

aldeias, percorria distâncias de 100 léguas: de dez em dez

léguas, celebrava uma missa.

Um mapa geral do médio São Francisco, com os diferentes

grupos indígenas e as missões, nos dá uma primeira impressão

da dimensão do problema assumido pelas ordens religiosas

nos sertões, no século XVII (Barbosa, 1991).

Missões Jesuítas, Franciscanas, Capuchinhas e Oratorianas

Assim como no litoral, a colonização do sertão também se

fez com a ação evangelizadora dos missionários jesuítas,

franciscanos, capuchinhos e oratorianos. Trabalharam em

missões pelo sertão do médio São Francisco os jesuítas,

202

padre Jacob Roland, nascido em Amsterdam e padre João

de Barros, português, fundadores da missão de Santa Teresa

dos Quiriris (Kariri), em Canabrava em 166737. Ao padre

João de Barros pertence o primeiro trabalho linguístico sobre

as línguas kariri, oacaze e procaze, mais tarde aproveitado

pelo padre Mamiani, jesuíta italiano que redigiu o melhor

catecismo em língua kariri (Hoornaert, op. cit.: 72 e 73) de

título: “Catecismo da Doutrina Cristã na Língua Brasileira da

Nação Quiriri, composto pelo padre Luiz Vicencio Mamiani da

Companhia de Jesus, Missionário da Província do Brasil, Lisboa,

1698”.

Contra o poderio da família Garcia d’Ávila, senhora de

quase todas aquelas terras no médio São Francisco, colocaram-

se os jesuítas da missão Cana Brava. Os missionários:

padre Jacob Rolando, padre João de Barros e o padre jesuíta

Jacob Clê, de outra missão cujo nome não se encontra nos

registros, apenas sabe-se que distava desta última, duas

léguas, e que foram envolvidos na luta pelas terras indígenas

37. Lima Sobrinho, Barbosa. Comentando o livro de Pe. Martin de Nantes, “Relação de

uma Missão no Rio São Francisco”. p. 117.

203

Missões, Aldeias e Currais

das missões. Também entraram em confronto com os donos

da Casa da Torre, os capuchinhos, padre Martinho de Nantes

e o padre Anastácio d’Audierne, pela maneira violenta com

que os fazendeiros agiam nesta região envolvendo nativos e

missionários (Puntoni, 2002:49-87).

Foi a partir de 1646 que chegaram capuchinhos em

Pernambuco, desviados da rota para a África. Estabeleceram-

se inicialmente em Olinda (1649) e posteriormente no

Recife (1656) e Rio de Janeiro (1653). Segundo Frei Venâncio

Willeke as missões eram fundadas nas aldeias que melhor

correspondiam às expectativas da conversão, tendo como

rito a construção do “calvário” à entrada das aldeias, que

consistia em um ou três cruzeiros. Mesmo assim, não foi fácil

para os religiosos conseguirem a confiança dos nativos. Em

muitos casos, os missionários deveriam provar de coragem

e destemor em relação aos poderosos das aldeias, como o

pajé, detentor do poder espiritual, e por isso o maior rival dos

missionários (Willeke,1974: 16). O medo do enfrentamento

do outro passava pelo sentimento do descohecido. Ser

um pajé, um curandeiro, um feiticeiro ou um missionário

significava ser ouvido, liderar, orientar decisões quanto a

204

problemas que surgiam dentro ou fora do grupo. O diálogo

entre lideranças de diferentes culturas se tornava difícil

diante de tamanho estranhamento e falta de tradução dos

comportamentos culturais. Pelos relatos de Martinho de

Nantes, havia preconceiro de ambas as partes. O fenômeno

da morte lhe chamou atenção. Neste sentido ele descreve

ocorrências relacionadas com o poder sobre a vida e a morte

que ele nomeou de “casos estranhos”:

“Casos estranhos. Eu fui, eu mesmo, a causa inocente da

morte de um homem de outra nação, que imaginou que

eu o havia enfeitiçado, pelo fato de o haver admoestado

verbalmente, por haver feito, em relação a uma das mulheres

de nossa aldeia, que tinha ligeira dor num de seus braços,

essa espécie de rezas que procurávamos evitar. Esse homem

foi tomado de tal terror ao ouvir o tom de minhas palavras,

pois não entendia o português, que não pôde sair do lugar e

foi preciso levá-lo daí, e morreu poucos dias depois, vítima

da própria imaginação. Isso deu motivo a que alguns de seus

companheiros me ameaçassem de morte. Esses pobres cegos

imaginam que os padres e os religiosos são os feiticeiros dos

brancos: é assim que denominam aos portugueses e a todos

205

Missões, Aldeias e Currais

os brancos em geral; mas estão persuadidos de que os que

chamam feiticeiros dos brancos sabem muito mais que os

seus próprios feiticeiros; e é por essa razão que os temem

extraordinariamente e tanto se persuadem desse erro, que

é difícil convencê-los do contrário. Isso me valeu em várias

ocasiões em que corri risco de vida; pois que sem o receio de

que eu me valesse de alguma praga que os fizesse morrer, ou

adoecer, ou sofrer algum mal, não me teriam poupado; falo

das outras aldeias que não eram cristãs e nas quais eu não

morava, e também das tribos selvagens, em que me encontrei

em diversos momentos” (Nantes 1980: 17).

Mas, o medo do desconhecido, o não domínio da língua,

em que falou Martinho de Nantes, o fato de tê-lo enfrentado

quando o admoestou, o desmoralizou diante dos seus pares.

O que Martinho de Nantes não quis compreender nem

explicitar foi o terror, que a sua fala provocou, um terror tão

medonho que fez paralisar todas as ações do índio. No seu

testemunho, o medo também mata.

Para esses nativos a presença dos missionários pregando

uma nova religião e uma nova sociedade deveria ser muito

estranha, pois esta missão franciscana, dirigida pelo padre

206

Martinho de Nantes em companhia do padre também

capuchinho Teodoro de Lucé, foi uma das primeiras que se

instalou no médio São Francisco. Dos seus trabalhos como

missionário, o padre Martinho de Nantes deixou um livro

datado de 1685, impresso em Paris em 1687 (Nantes, op.

Cit: 20).

O período de 1679 a 1863 corresponde à atuação de

missionários franciscanos no médio São Francisco, período

que compreende também o trabalho deles em antigas áreas

de missões jesuitas, quando da expulsão dos inacianos em

1699, como ocorreu com as missões denominadas Caruru,

Rodelas e Araxá. Outro exemplo foi o das missões jesuíticas

estabelecidas em aldeias de nativos kariris, Oacazes e Procazes,

administradas pelo padre João de Barros; entre elas citamos

as das ilhas de Araxá e Sorobabel, constituída por indígenas

Procazes e Brancararus (Costa, op. cit, vol. 5:38). Estas foram

assumidas por missionários franciscanos após a retirada dos

jesuítas iniciadores do trabalho missionário nesta região. A

missão de Sorobabel localizava-se na ilha do mesmo nome no

município de Itacaruba e constituía-se em terreno de aluvião

como as demais ilhas do São Francisco. Segundo Serafim Leite,

207

Missões, Aldeias e Currais

já em 1696, existia na ilha de Sorobabel um aldeamento com

capela, que fora construída pelos missionários com ajuda dos

nativos38. Com a padroeira Nossa Senhora do Ó, Sorobabel

foi dirigida depois por missionários franciscanos, no período

de 1702 a 1761, aos quais, Frei Venâncio Willeke (op. cit: 88)

atribui a construção de uma igrejinha e casa para morada dos

padres.

No lugar dos tapuya rodeleiro do Rio São Francisco, na

altura do rio Pajeú39, uma missão jesuítica se instalou por

volta de 1645; sob a invocação de São João Batista. Nesse

aldeamento, os nativos foram doutrinados vivendo da caça,

pesca e agricultura nas suas terras; e foi através do contato

com os portugueses que eles se incorporaram à luta contra os

holandeses com duzentos tapuyas, juntamente com a gente do

terço, comandado pelo capitão-mor potiguar Filipe Camarão.

Posteriormente, os bandeirantes quiseram se servir deles

nas suas entradas e bandeiras contra os seus irmãos, o que

38. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Sertão de Pernambuco.

p. 127.

39. Costa, A. F. Pereira da - Anais Pernambucanos. v. 4. p. 79.

208

causou a fuga de muitos nativos da missão de Rodelas para

o Piauí, onde ficaram conhecidos pelo nome de Pimenteiras.

Esta migração ocorreu pelos anos de 1685, quando a aldeia

de Rodelas já era ocupada pelas fazendas de gado, onde se

formou posteriormente o centro de comércio e exportação

de gado para a Bahia e para Minas Gerais (Costa,op. cit. vol.4:

79). Na missão de Rodelas foram aldeados nativos tuxás

e a partir dela desenvolveu-se a cidade baiana de Rodelas,

localizada quase em frente à confluência do rio Pajeú com o

São Francisco. Aí habitam ainda hoje tuxás remanescentes

do antigo aldeamento.

Outras missões jesuítas como Assunção e Santa

Maria da Boa Vista instalaram-se no médio São Francisco

pernambucano. Os povos truká e tuxá, descendentes dos

rodelas, ocupam hoje algumas ilhas do Rio São Francisco;

os trukás vivem na Ilha de Assunção e os tuxás na Ilha

dos Cavalos, ambas pertencem ao município de Cabrobó.

Tudo indica que também tenha se estabelecido na missão

de Rodelas o padre Francisco Domfront, missionário e

contemporâneo do padre Martinho de Nantes, que relata:

209

Missões, Aldeias e Currais

“Francisco de Domfront viera também a Pernambuco para

atender a necessidades de sua missão dos rodela, sobre o

mesmo rio,...”40

Na ilha de Acará, também chamada de Axará ou Araxá, a

aldeia de Nossa Senhora de Belém foi instalada pelos jesuítas

entre os nativos procazes. A partir de 1702, esta aldeia

recebeu os índios brancararu, no período da administração

franciscana da missão, iniciado em 1699, com a expulsão

dos jesuítas. Por último, a aldeia de Nossa Senhora de Belém,

na ilha de Acará, foi dirigida por missionários Capuchinhos

italianos, que continuaram aldeando procazes e brancararus.

A guerra contra os nativos da missão jesuíta Cana Brava,

durante o final da década de setenta do século XVII, teve

como consequência a retirada dos inacianos e a vitória da

família Dias d’Ávila, que ficou com o domínio das terras

desta missão e a administração da população que dela restou.

Posteriormente a esta guerra, a Casa da Torre estabeleceu em

terras pernambucanas, na margem esquerda do rio e bem

próximo à ilha de Acará, uma fazenda denominada Cana

40. Nantes, Pe. Martinho de. Relação de uma Missão no Rio São Francisco. p. 2.

210

Brava, que no mapa “Roteiro de viagem do Recife à Carinhanha,

pelo Ipojuca de 1738” aparece registrada41. Desta fazenda

surgiu um povoado que, por lei estadual, em 13 de junho de

1902 foi elevado à categoria de Vila com o nome de Belém e,

no ano de 1953, passou a ser cidade e ficou chamada Belém

de São Francisco.

Outra missão jesuítica foi instalada na ilha de Assunção,

conhecida durante o século XVII como ilha do Pambu. Nela

serviu como religioso o capuchinho francês padre Martinho

de Nantes, que instalou sua missão entre nativos kariris

na ilha Aracapá, próxima à ilha do Pambu, na segunda

metade do século XVII.42 Hoje, habitam a ilha de Assunção

remanescentes da tribo truká que, como os tuxás, pertenciam

ao grupo de nativos rodeleiro.

Consta na relação de Pereira da Costa que a missão de

Nossa Senhora de Assunção, localizada na ilha do mesmo

nome no Rio São Francisco, foi instalada em 23 de setembro

de 1761 e, como a de Santa Maria, dirigida por jesuítas; nela,

41. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Op. Cit. p. 147.

42. Nantes, Pe. Martinho. Op. cit. p. 18.

211

Missões, Aldeias e Currais

construíram igreja e convento de porte considerável. Os

aldeamentos da ilha de Assunção e Santa Maria prosperaram

tanto que foram os únicos a receber, em toda a capitania de

Pernambuco, o título de Vila, para Santa Maria, e o de Vila

Real, para Assunção. Até 1792, a igreja de Nossa Senhora

da Conceição, erguida pelos jesuítas na ilha de Assunção

funcionava como matriz, quando, nesta data, uma grande

cheia arrasou a ilha e a matriz foi transferida para a antiga

igreja de Nossa Senhora da Conceição, erguida em data

imprecisa na fazenda dos Dias d’Ávila43, onde hoje existe a

cidade de Cabrobó. Após a enchente de 1792, a Igreja da

ilha de Assunção foi abandonada e nunca mais restaurada,

sobrando dela apenas uma parte das paredes de uma lateral

que, devido à composição da base em pedras e pé-direito

alto, demonstra ter pertencido a um grande edifício. Nos

terrenos que a circunda e no espaço que correspondia ao seu

interior, os índios que moram na ilha da atual reserva truká,

habitualmente enterram seus mortos, e ocupam pequenas

casas perto das ruínas.

43. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Op. Cit. p. 177

212

Igualmente utilizada como sede de uma missão jesuítica,

a ilha de Santa Maria, no Rio São Francisco, pertencente ao

município do mesmo nome, foi habitada primeiramente por

índios tapuya kariri. Transformada em paróquia e depois

em vila, em 1761, quando da sua instalação pelo Ouvidor

da Comarca das Alagoas44, Dr. Manoel de Gouveia Álvares,

dando-lhe por termo muitas ilhas do Rio São Francisco, desde

as das Vacas até a ilha dos Caricós, incluindo as margens do

rio. Na ilha de Santa Maria foi construída, para a missão,

uma capela com devoção a Santa Maria, que decaiu em 1817,

quando apresentava um aspecto humilde; a população,

de apenas 160 vizinhos, composta por nativos caçadores,

pescadores e agricultores isentos de tributos; as mulheres

entregues à indústria de fiação e tecidos de algodão, cultivado

na ilha, e ainda no trabalho da olaria utilitária para uso

interno e para exportação.

Em 1852 a igreja de Santa Maria, na ilha do mesmo

nome, estava em ruínas, e ao seu lado, igualmente caídos,

o convento e casas de colunas de pedras; tudo construído

44. Nesta data Alagoas não era uma capitania, era uma ouvidoria de Pernambuco.

213

Missões, Aldeias e Currais

por missionários da Companhia de Jesus. Poucos indígenas

restavam lá em 1855. Fazendeiros vizinhos apossaram-se

das suas terras, e afugentaram os índios para o continente

onde se refugiaram na Serra Negra, no atual município de

Floresta. A ilha de Santa Maria perdia o seu predicamento de

Vila em 1838, passando a ser propriedade particular (Costa,

op. cit. vol.10: 153).

Os capuchinhos franceses e italianos não aparecem

frequentemente em missões litorâneas. Pertencendo à

ordem de São Francisco, os capuchinhos são oriundos da

Primeira Ordem dos Frades Menores. Esta Primeira Ordem

fracionou-se inicialmente em conventuais e espirituais

devido à introdução de reformas baseadas em princípios

dos dominicanos, adotadas pelos conventuais que, por sua

vez, dividiram-se em não ordenados e ordenados. Destes

derivam os capuchinhos que, criando especializações

internas, geraram distintos cargos e atividades, cabendo aos

frades ordenados, por dedicação aos serviços externos, maior

parcela de poder nas decisões da Ordem. Atuavam junto

aos fiéis e viviam em comunidades abertas à participação,

por meio de estudos, para atualizarem suas pregações que,

214

segundo pensavam, deveriam ser mais intensas e constantes.

Com o nome de capuchinhos, passaram a formar um grupo

autônomo concretizado em 1528.45

A ação dos capuchinhos se caracterizou também pela

formação de missionários preparados em cursos especiais e

que tiveram como proposta de ação um trabalho adequado

às missões em comunidades indígenas. Com relação à sua

estrutura administrativa, os capuchinhos caracterizavam-

se também pela menor hierarquização interna e aceitaram

receber pagamento do Estado através de côngruas mensais

como os jesuítas e franciscanos. Segundo a antropóloga e

historiadora Maria Hilda Baqueiro Paraíso:

“Formava a Ordem dos capuchinhos a mais facilmente

controlável pelos mecanismos governamentais, sendo a que

oferecia menos resistência às determinações emanadas do

Estado. Era, consequentemente, os que não contestavam a

política indigenista vigente ou mantinha qualquer tipo de

atrito com o governo. Isso pode ser comprovado no momento

45. Paraíso, Maria Hilda Baqueiro. Os Capuchinhos e os Índios do Sul da Bahia: Uma

análise preliminar de sua atuação. p. 151 e 152.

215

Missões, Aldeias e Currais

da expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, ocasião em

que as missões capuchinhas nem se quer foram molestadas.”

(op. cit.: 152)

Os capuchinhos, no entanto, diferenciavam-se dos demais

missionários por dependerem da congregação romana, isto

é, eram “missionários apostólicos” e não “reais”; dependiam

do Papa e não do Rei, o que os distanciavam um pouco do

sistema colonial. Outras missões teriam sido fundadas pelos

capuchinhos italianos entre os kariri na aldeia de Nossa

Senhora da Piedade, situada na ilha de Inhanhum no ano de

1705. A sua extinção foi em 1761.46

Pereira da Costa afirma que até o século XIX os capuchinhos

fundaram missões como é o caso da aldeia chamada de Jacaré

ocupada pelos nativos pipipã. Considerados tapuias, os pipipã

ou Pipipõ tinham originalmente os seus aldeamentos nas

caatingas, entre os vales dos rios Moxotó e Pajeú. Os pipipã

foram reduzidos pelo capitão Antônio Vieira de Melo, em

meados do século XVIII; em 1802 a missão era dirigida por

46. Miranda, Maria do Carmo Tavares de. Os Franciscanos e a Formação do Brasil. p.

172.

216

Frei Vital de Frascarolo e levava o nome de Jacaré, situando-

se na Serra Negra, local escolhido pelos nativos devido à

fertilidade e abundância de mel e caça. Em 1804, formava um

núcleo de 135 habitantes e, em 1823, foram banidos de suas

terras por José Francisco da Silva e Cipriano Nunes da Silva,

que nelas situaram uma fazenda agropastoril, localizada na

Serra Negra entre o rio Moxotó e o riacho do Navio, na região

entre Vila Bela, Tacaratú, Floresta e Lagoa de Baixo.47

A missão do Pontal, instalada pelos franciscanos na

ilha do mesmo nome, no Rio São Francisco, corresponde à

aldeia Nossa Senhora dos Remédios composta pelos índios

tamakeus. A ilha do Pontal fica situada no município de

Petrolina e nela existe ainda a capela de Nossa Senhora dos

Remédios. A capela tem aspecto singelo e é constituída por

uma nave com uma única porta central de entrada sob a qual

fica o coro, cujo acesso se dá por uma escadinha de madeira

íngreme. A nave comunica-se com a capela-mor através do

arco-cruzeiro. A capela-mor, pouco mais estreita que a nave,

tem ao fundo o altar-mor constituído por simples mesa em

planos sobre o qual existe um oratório em madeira que abriga

47. Costa, A. F. Pereira da. Op. cit. v. 5. p. 170.

217

Missões, Aldeias e Currais

a imagem da Virgem dos Remédios. Um vão lateral comunica

a capela-mor com a sacristia pelo lado esquerdo de quem

entra na capela.48

Missões da Ordem de São Felipe Neri

Os últimos missionários a atuarem em Pernambuco

foram os padres oratorianos. Imbuídos no movimento da

reforma cristã, chegam à segunda metade do século XVII os

padres João Duarte do Sacramento e João Rodrigues Vitória.

Com a autorização pelo Estado português, em 1674, estes

se estabeleceram na ermida de São Gonçalo, no Cabo de

Santo Agostinho, de onde adentraram posteriormente pelas

cabeceiras do rio Capibaribe aos sertões do Rio São Francisco.

Segundo Pereira da Costa, com a expulsão dos jesuítas, os

oratorianos assumiram três das missões daqueles, em

Pernambuco: a de Ararobá com nativos xukuru/kariri, na

atual cidade de Pesqueira, a de Ipojuca, e a de Ararota em

48. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Sertão do São

Francisco. p. 215.

218

Limoeiro, localizada na freguesia de São Lourenço da Mata.

Após 1690 os oratorianos partem para fundar novas

aldeias, devido à volta dos jesuítas na administração das suas

missões, o que provoca a interiorização dos primeiros, que

saem em busca de novas aldeias para o trabalho de catequese.

Ainda no século XVII, os oratorianos da congregação de São

Felipe Neri dirigiram uma aldeia chamada Brejo dos Padres,

localizada nas proximidades da atual cidade de Tacaratu,

no município do mesmo nome.49 Neste aldeamento eles

teriam construído uma capela sob a invocação de Santo

Antônio, durante o século XVII, a qual ainda hoje existe e

é composta por uma nave, capela-mor e pequena sacristia

lateral. A capela guarda no seu interior imagens em madeira

de Santo Antônio, São Francisco, Santa Rita, São José, Nossa

Senhora da Saúde, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora

da Conceição e dois crucifixos.50 Hoje, a capela pertence à

reserva dos pankararu, descendentes dos primeiros indígenas

49. Inventário do Patrimônio Cultural do Estado de Pernambuco. Sertão do São

Francisco. p. 75.

50. Id. Ibid. p. 98.

219

Relação de aldeias indígenas em ilhas e ribeiras do Rio São Francisco - Séc. XVII

Município Tribo Localização

Santa Maria da Boa Vista

Santa Maria da Boa Vista

Santa Maria da Boa Vista

Orocó

Orocó

Orocó

Orocó

Cabrobó

Cabrobó

Belém do São Francisco

Belém do São Francisco

Itacuruba

Tamakeu

Karipó

Kariri

Kariri

Kariri

Kariri

Kariri

Kariri

Kariri

Poru e Brancararu

Poru e Brancararu

Poru e Brancararu

Ilha do Pontal

Ilha dos Caipós

Ilha de Inhanhum

Ilha Santa Maria da Boa Vista

Ilha de São Miguel

Ilha do Cavalo (São Félix)

Ilha de Aracapá

Ilha de Assunção

Ilha de Pambu

Ilha de Beato Serafim (Vargem)

Ilha de Acará

Ilha de Sorobabel

Tacaratu Pankararu Aldeia Brejo dos Padres

220

ali aldeados, cuja população vive da agricultura, da caça e da

criação de gado.

De uma maneira geral, as missões que fizeram parte da

ocupação do médio São Francisco, não mantiveram boas

relações entre si, com exceção dos capuchinhos e jesuítas

que se apoiaram mutuamente para a realização de viagens

e instalações de missões, como relata padre Martinho de

Nantes, a respeito de quando procurou instalar sua missão

entre os kariri e da ajuda que obteve dos jesuítas contra

as guerras provocadas por Francisco Dias d’Ávila contra os

nativos e suas missões.51 O mesmo não ocorreu entre os

missionários oratorianos e os demais catequizadores, como

comenta Eduardo Hoornaert (op. cit:69):

“O núncio de Portugal aprovou no dia 19 de março de

1674 a ideia de trabalho missionário recomendando (aos

oratorianos) que evitassem os frades capuchinhos a fim de

não ter atrito com eles”.

Esta era uma estratégia política que pretendia afastar

51. Nantes, Pe. Martinho de Relação de uma Missão no rio São Francisco. pp. 2, 54 a

57.

221

Missões, Aldeias e Currais

os oratorianos dos capuchinhos que poderiam auxiliá-

los e aconselhá-los, ficando a ocupação das terras pelos

colonos sem nenhuma resistência organizada por parte dos

missionários.

As acusações feitas pelos colonos contra os missionários

foram as seguintes: as missões se tornaram ricas demais;

não obedeciam nem ao bispo, nem à justiça dos ouvidores,

nem ao clero secular; os indígenas ficaram demasiadamente

unidos aos missionários e adestrados para a guerra; havia

falta de comunicação com a Corte; as terras eram usurpadas

por nativos e missionários. Além disso, nas missões, era

proibido o ingresso aos portugueses e por fim, os missionários

insultavam os ministros e emissários do rei.

A afirmação de que as missões enriqueceram não há de

ser de todo verdadeira para todas as missões, se observadas

as descrições do casario e dos edifícios religiosos das missões.

Em relato do padre Martinho de Nantes, ele comenta que

as missões viviam do que plantavam, caçavam e coletavam,

e que sua missão fora construída com a ajuda dos nativos

da própria aldeia e a construção feita com madeira e barro,

coberta de palha. Ainda expôs que, economizando pequenas

222

esmolas recebidas de portugueses, somadas à remuneração

das missões, que lhes eram encomendadas, empregava a

maior parte do dinheiro na compra de ferramentas, facas,

pano para vestir os indígenas e gastava pouco consigo.

Mas, o enriquecimento se deu entre ordens religiosas que

investiram em fazendas de gado e em engenhos de açúcar

como foi o caso dos beneditinos (Schwartz, 1983: 29-52). Na

capitania de Pernambuco, pertenciam-lhes três engenhos:

Mussurepe, o mais antigo, adquirido em 1609. Este engenho,

situado às margens do rio Capibaribe em Paudalho na zona

da mata norte tinha, em 1620, uma produção anual de três

mil arrobas de açúcar. Em 1663 empregava 82 escravos

e sua produção de açúcar e aguardente correspondia à

metade dos recursos necessários para o mosteiro de Olinda.

Outros dois engenhos beneditinos, o São Bernardo e o Goitá

também produziam açúcar para o mosteiro de São Bento.

Em Itamaracá, a fazenda Jaguaribe, com plantações e muitos

escravos, enriquecia também o convento dos beneditinos

de Olinda. Neste caso, os engenhos e fazendas não eram

de propriedade da ordem e sim do convento, constituíam

a principal fonte de renda e estavam integrados em um

223

Missões, Aldeias e Currais

sistema que compreendia lavoura de subsistência e olaria

para o sustento dos engenhos e convento.

Outra acusação contra os missionários refere-se à falta

de obediência desses ao bispo, ouvidores, clero secular ou à

justiça. Provavelmente ela se baseia em episódios onde os

missionários não aceitaram que os nativos de suas missões

entrassem em guerra contra outros indígenas rebelados,

como foi o caso da guerra contra a missão Canabrava. Com a

justificativa de que as terras eram usurpadas por missionários

e de que nelas estava proibida a entrada de portugueses, as

autoridades coloniais apoiavam as invasões nas terras das

missões de forma que suas áreas de caça, coleta e plantação

diminuíam com a invasão do gado de fazendas vizinhas que,

além de tudo, destruía as terras cultivadas.

A falta de comunicação com a Corte e os insultos

dirigidos aos ministros e emissários do Rei foram formas

que os missionários encontraram para demonstrar uma

pseudoautonomia, ignorando qualquer tipo de relação, sem

a qual não teria sido possível a sobrevivência. O fato dos

missionários estarem subordinados a uma ordem regular,

cujas casas-mãe se localizavam em Roma, longe do poder real

224

de suas nações, facilitou alguns lances de autonomia. Mesmo

porque, muitas vezes, a política das nações se imbricava com

o poder estabelecido em Roma. Em alguns momentos, os

superiores dos missionários perceberam conflitos de poder

dentro da burocracia real e disso tiraram algum proveito.

A carta de Martinho de Nantes52 à rainha de Portugal,

suplicando proteção para os missionários, é uma das muitas

existentes em arquivos históricos, e pode ser indício de que

um padre pudesse se dirigir a uma instância maior de poder

sem a interferência de intermediários.

A diminuição dos trabalhos missionários na capitania

de Pernambuco, no sentido do litoral ao sertão, durante os

séculos XVII e XVIII revela que, passo a passo, os espaços

indígenas foram ocupados pelos espaços coloniais português

e holandês; o trabalho catequizador e de redução dos nativos

em áreas organizadas para as missões auxiliou a construção

do mundo colonial e dos seus interesses. Neste processo de

superposição de espaços, na segunda metade do século XVIII,

muitas missões foram devolvidas às antigas ordens que as

52. Nantes, Pe Martinho de. Op. cit. p. 54 a 57.

225

Missões, Aldeias e Currais

administravam, outras se extinguiram por abandono, sendo

substituídas pelas missões volantes de número reduzido.

A lei de 1755 ordenando liberdade a todos os nativos do

Brasil, a expulsão dos jesuítas e a nova política para as áreas

indígenas, e a lei de 1758, que ordenava a instalação dos

‘Diretórios dos Índios’53 e a fundação de vilas em lugar de

aldeias indígenas, paróquias em lugar de missões e párocos

em lugar de missionários, encerrou a participação do trabalho

missionário como a mão longa da política colonialista

portuguesa, na capitania de Pernambuco.54

53. Veja-se o trabalho de Ângela Domingues, “Quando os Índios eram Vassalos.

Colonização e relação de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII”.

Publicado pela Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos

Portugueses- 1ª edição. Lisboa, 2000.

54. Sobre a regularização deste processo de instalação dos diretórios dos índios, ver

doc. do AHU, Pernambuco papeis avulsos/caixa 50, de 16-09-1760.

227

Ordenando o caos

Da leitura dos documentos produzidos pelas autoridades

portuguesas e das narrativas produzidas por cronistas, ambos

do período colonial, compreende-se que, desde o início do

contato entre brancos e índios, estes deveriam servir aos

interesses daqueles; seja como escravos, como súditos ou

como trabalhadores livres.

A regulamentação dos espaços destinados aos colonos

tinha como premissa o tratado de Tordesilhas, o que

significava confirmar o pertencimento da terra brasilis aos

portugueses. Incluindo nesse conceito a indeterminação e

a possível mobilidade da linha imaginária de Tordesilhas.

Portanto, a legislação inicial vai apenas dirimir as dúvidas

em relação ao que é da Coroa e o que pode ser dos colonos.

Esta intervenção, jurídico-política, não inclui os habitantes

nativos do Brasil.

Do século XVI ao XVII, a política da Coroa portuguesa foi

de incentivar os colonos a ocupar terras a oeste. A forma mais

rápida de realizar este intento foi através da guerra contra os

228

índios, dizimando os mais resistentes e submetendo, pelo

medo e pelo terror, os que deixaram de resistir. À proporção

que a colonização avançava para o interior, era inevitável a

colisão, tanto com os índios, com suas nações mais ou menos

organizadas nesses espaços dentro da sua própria lógica,

quanto com os colonos entre si, que também disputavam

as melhores terras, e depois com as missões, com menos

fome de terras. Aos poucos, a presença do homem branco

foi se firmando como fazendeiro, não apenas produtor de

alimentos; na sequência, estes fazendeiros, em sua maioria,

vão se transformar em criadores de gado. A partir desse

momento, o Estado português necessitou organizar jurídica

e socialmente este espaço.

A partir de 1549, com a instituição do Governo Geral, isto

é, com a presença do Estado português na Colônia, algumas

regras foram impostas à ocupação destas terras. Por exemplo,

a exigência do registro na Provedoria é da legislação de 1549,

a confirmação das cartas pelo Rei já é uma exigência do século

XVII. A Carta Régia de 1699 torna obrigatório o pagamento

do foro. Com a legislação mais rigorosa sobre os prazos de

aproveitamento da terra, e a ocupação indiscriminada feita

229

Ordenando o Caos

anteriormente à regulamentação, a extensão das terras

doadas poderia ter diminuido, pois, caso a terra não fosse

utilizada economicamente dentro do prazo de cinco anos,

seria considerada terra devoluta.55

Os critérios que regularam a outorga de sesmarias não

foram tão bem definidos. E muito menos fiscalizados. A

distância temporal na continuidade da regulamentação foi

fundamental para o não cumprimento desta. Veja-se, por

exemplo, no parágrafo anterior, as datas de regulamentação

sobre a ocupação da terra, elas distam praticamente

um século umas das outras. No Livro 2 de Registro das

Sesmarias, do século XVIII, constatam-se exigências, mas,

também, certa frouxidão na distribuição das terras, pela

forma como as autoridades procediam. O capitão donatário

55. Conforme podemos observar no documento transcrito.

“Sesmaria de três léguas de terra de cumprido e uma de largo no riacho de Moxotó

doada a Alexandre da Silva Carvalho e seus herdeiros morador no sertão de Ararobá

nas cabiceiras do Moxotó vertentes do Rio São Francisco pelo Capitão Mor General

Luis José Correia de Sá, em 26 de novembro de 1753, não podendo suceder ao suppe

por tempo algum Religiões salvo satisfazendo todos os encargos, e sendo obrigado a

pagar o foro anual de 4$ a povoar a dita terra no prazo de cinco anos sob pena de lhe ser

declarada devoluta e a dar caminhos livres ,,, . Livro de Foros N3 f3, p. 51.

230

de Pernambuco em 1734, Duarte Sodré Pereira Tibão, ao

despachar favoravelmente a concessão de sesmaria de umas

“terras despovoadas e desertas entre a Serra da Borborema e

o rio do Pajeú para nelas criarem seus gados de toda a casta”

ao Vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição

de Rodelas, Francisco Ferreira e ao Sr. Manoel da Costa

Calado, ordena ao capitão-mor daquele distrito colocar

editais públicos nas portas das igrejas, inclusive das da

vizinhança, para que, havendo alguma pessoa ocupando

anteriormente estas terras, se apresentasse.56 Ora, se esta

autoridade despachou favoravelmente esta concessão e

depois perguntou se há alguém já ocupante da referida terra,

é porque ela, a autoridade, não tem a certeza da justiça de sua

concessão; mas concede, mesmo sabendo que esta situação,

se confirmada, vai gerar um longo processo acompanhado

de conflitos e de violência. No mesmo documento é exigido

um fiador que garanta o pagamento do foro ao governo de

Pernambuco.

Há inúmeros documentos que confirmam esta prática,

56. In Documentação Histórica Pernambucana - Sesmarias – vol 1 – 1689/1730.

231

Ordenando o Caos

também registrada pelo historiador Warren Dean, em artigo

intitulado “Os Latifúndios e a Política Agrária Brasileira no

século XIX”.57 As petições assinadas, solicitando doações

de sesmarias, trazem informações esclarecedoras sobre a

legislação vigente. Por elas sabemos que todos os solicitantes

deveriam atender a determinadas exigências para aquisição

de datas58, que são as seguintes: registrar uma carta-petição

no Livro da Provedoria e esperar a carta de confirmação da

doação para poder se instalar o que nunca foi empecilho para

a ocupação da terra; indicar um fiador para segurança do

pagamento anual do foro; os valores eram variáveis, mas,

a maioria das cartas de confirmação aponta o pagamento

do foro no valor de 4$000 (quatro mil réis) por ano, o que

não representava para a época um valor imperdível; pagar

o dízimo à Ordem de Cristo; utilizar a terra solicitada na

agricultura ou criação de gado dentro de um prazo máximo

de cinco anos, caso o solicitante não conseguisse se instalar,

57. DEAN, Warren. Os Latifúndios e a Política Agrária Brasileira no século XIX. In “A

Moderna História Econômica”, organizada por Pelaez e Buescu. APEC, Rio de Janeiro.

1975.

58. Datas são também chamadas as sesmarias, as concessões de terras.

232

perdia a concessão. Quem fiscalizava essas terras nos confins?

Tudo isto eram prerrogativas da lei, porém havia um ditado

muito conhecido e praticado no período colonial, não só no

Brasil, mas em toda América Latina: “a lei é boa, mas não

posso cumpri-la”. A documentação aponta para a ocupação

da terra antes da legalização jurídica. É curioso notar que as

autoridades não concediam sesmarias a religiosos regulares e

sim aos seculares.

A distribuição de sesmarias, sem interrupção até o

século XIX, não impossibilitou a ocupação das terras por

meio de posses. Muitos proprietários, que tinham suas

datas autorizadas, também eram posseiros, como indica a

documentação de Registros de Terras Públicas, em Pernambuco,

no século XIX. Eles ocupavam terras devolutas ou que não se

encontravam em nenhum registro. Após a Lei de Terras, de

1850, inúmeros registros de posses de terra foram declarados

por seus ocupantes às autoridades imperiais, indicando

inclusive a localização das mesmas.59

59. Os posseiros deveriam declarar suas posses aos Vigários de suas Paróquias e

os mesmos deveriam remeter os livros de registros de terras de suas Paróquias ao

Ministério de Negócios de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, no Rio de Janeiro.

233

Ordenando o Caos

Como escreveu o poeta Drummond, “no meio do caminho

tinha uma pedra”, a pedra no sapato dos colonos foram os

missionários. O papel destes na colonização é bastante

polêmico. Não cabe, neste estudo, resolver esta questão, mas

cabe descrever a intervenção deles na política de concessão

de terras, não aos índios, mas às missões dirigidas por estas

ordens religiosas, que estavam a salvo do clero secular.

A legislação ‘protetora’ dos habitantes naturais da terra

regulamentou seus espaços, reduzindo, não apenas seus

territórios, mas suas identidades culturais. A destruição da

cultura nativa vai ser feita através de uma política de Estado

em aliança com os missionários. Aos índios não lhes foi

permitido o sentimento de pertencimento à terra, e sim de

permanência em alguns espaços, desde que delimitados e

tutelados por missionários e não muito longe da mão longa

do Estado.

A administração portuguesa, após a expulsão dos

holandeses, sob o pretexto de reconstituir os aldeamentos dos

indígenas, após as conhecidas ‘guerras justas’, recomendava

Daí a importância dos párocos, além da salvação das almas.

234

a presença de homens brancos na região, para cuidar do

destino dos índios. No final do século XVII, por volta de

1690, há uma solicitação do governador de Pernambuco,

D. Antonio Félix Machado e Silva, ao Governador Geral do

Brasil, que reduzisse as vinte aldeias, que estavam sob sua

jurisdição, para oito, na seguinte localização: desde o Rio

São Francisco até o Ceará. O pedido não foi concedido. O

reclamo do governador de Pernambuco expressa o desejo

que a administração geral do Brasil realizasse aquilo que as

suas competências não lhe permitiam: diminuir o território

ocupado pelas aldeias e dessa forma as 12 aldeias, que não

estariam sob a jurisdição ou ‘proteção’ do Estado português

seriam transformadas em terras disponíveis.

Prevendo possíveis conflitos, o rei de Portugal, D. Pedro II,

por Carta Régia de 20 de janeiro de 1690, criou uma Vara de

Juiz em cada uma das freguesias do Sertão: Cabrobó, Cimbres

e Garanhuns. Entretanto, esses Julgados foram constituídos

no papel, mas na realidade eles vão funcionar precariamente,

muito tempo depois.

A Carta Régia de 28 de março de 1692 ordenava ao

governador de Pernambuco, Antonio Félix Machado da Silva

235

Ordenando o Caos

Castro, Marquês de Monte Belo, que “se estabelecessem

aldeias, para que nelas os índios pudessem viver na medida

em que fossem convertidos pelos missionários, religiosos

regulares”. A mesma carta régia ordenava ao mesmo

governador que, “à proporção que se fossem ‘reduzindo’

os indígenas do Sertão ao grêmio da Igreja, devessem ser

restabelecidas as aldeias, para que nelas se conservassem na

doutrina, dirigida por padres missionários”.

Em 1700, por alvará de 23 de novembro, foi determinado

que cada aldeamento ou missão recebesse uma légua quadrada

de terras para o sustento dos índios e dos missionários. Cada

aldeia deveria se constituir pelo menos de 100 casais, apesar

de se ter fundado aldeias com número de casais bem inferior

a esta recomendação.

Outra carta régia, em 1700, determina ao novo governador

de Pernambuco, D. Fernando Martins Mascarenhas de

Lencastro, que faça acompanhar aos missionários, que forem

ao sertão pregar o cristianismo aos índios e convertê-los,

tropas para enfrentar os bárbaros e outros perigos dessa

região. Os aldeamentos e missões se multiplicaram na região

do São Francisco e algumas aldeias ‘de índios mansos’ foram

236

fundadas para proteger arraiais e fazendas de gado invadidas

por outros índios que resistiam à presença dos brancos, como

os Aracoazes e Mocoazes.

Na perspectiva da lógica da Coroa portuguesa, os índios,

em princípio, poderiam escolher o local onde fundariam

suas aldeias sem interferência de sesmeiros e ou donatários.

Esta decisão, entretanto, deveria ser tomada em audiência,

na Junta das Missões e com sua aprovação. Este mesmo

princípio deveria ser respeitado quando fosse necessária a

divisão de grandes aldeamentos; pela legislação vigente era

recomendado a cada aldeia receber uma légua quadrada e

igual número de casas. Esta lei foi executada precariamente

sob a responsabilidade dos ouvidores gerais, que deveriam

proceder à medição e demarcação das terras.

Para proteger colonos estabelecidos em fazendas de gado,

em regiões fronteiriças com aldeias indígenas refratárias às

ações missionárias ou governamentais, criavam-se arraiais

de índios mansos, trazidos de outras regiões para enfrentar

os “facinorosos bárbaros” acusados de invasões constantes às

fazendas estabelecidas.

No intuito de acelerar o povoamento do interior

237

Ordenando o Caos

de Pernambuco, o Rei ordena a D. Fernando Martins

Mascarenhas de Lencastro a implantação de novas missões

religiosas. Os colonos desde cedo reagiram e negaram

conceder às missões uma légua quadrada de terra para o

patrimônio delas, bem como mais uma légua quadrada

para cada missão ou aldeamento de índios tapuias, não

obstante ameaças de punições do Governo aos colonos. Os

donos de grandes sesmarias como os Ávila, os Guedes de

Brito, Domingos Afonso Sertão, para exemplificar, reagiram

negativamente a essa nova política. De alguma forma,

o governo português conseguiu instaurar parte da ordem

proposta e os aldeamentos terminaram por ser agraciados

com uma légua quadrada de terras. Em fins do século XVII,

os padres missionários haviam fundado vários arraiais de

índios ‘mansos’ no Alto São Francisco.

No século XVIII o Estado português oficializa uma

‘política civilizatória’ para os índios: primeiro, fundaram

aldeamentos e missões por toda parte, principalmente nos

vastos territórios da região do Rio São Francisco; segundo,

organizaram esses aldeamentos fundamentados em leis –

ordens régias, cartas régias, decretos – e em ações religiosas,

238

militares e civis; terceiro, o fizeram com intervenção direta

na organização da produção econômica: gado, couros,

algodão. Para tanto a Coroa portuguesa determinou auxílio

anual de 300$000 (trezentos mil réis) anuais, para cada

aldeia, destinados à compra de ferramentas e outros objetos

necessários à agricultura, tentando fixar os índios em seus

novos lugares. Essa contribuição real era recebida pelo bispo

diocesano, que por sua vez fazia a distribuição. Como se pode

observar, a igreja se colocava como a mão longa do Estado

português nos casos em que era inconveniente ao Estado a

relação direta com os habitantes das aldeias indígenas.

Uma ordem régia de 1701 determinava que a demarcação

das aldeias e a nomeação dos seus respectivos capitães-mores

fossem realizadas de acordo com a satisfação dos índios e

missionários. Registrado por Pereira da Costa (op. cit. Vol

7: 159-160) o aldeamento da Missão do Jacaré foi escolhido

pelos índios, em 1802, na Serra Negra (hoje município de

Floresta), por ter este lugar terras férteis e abundância de mel

e caça. Esses índios haviam sido desbaratados por guerras

e escravização, pertenciam a várias tribos: pipipan, omari,

chocó e caracu. Estabeleceram-se no sítio do Jacaré e no sítio

239

Ordenando o Caos

Gameleira. Observe-se que a determinação real para que

assim acontecesse em todos os aldeamentos, data de um

século antes. Um ano depois do estabelecimento dos índios

na Serra Negra e na Gameleira, em vista de denúncia de que

as terras eram de má qualidade para o cultivo e pela ausência

de água, os índios passaram a fazer suas plantações na serra

do Periquito. Em virtude dessas dificuldades requereram ao

Governador autorização para se estabelecerem em um sítio

com melhores condições. O aldeamento era povoado por 200

nativos das tribos citadas acima. Na comunicação feita ao

Rei, muito respeitosamente enviaram suas armas de guerra e

alguns objetos de seus pertences. As autoridades atenderam

aos seus reclamos e, de acordo com o missionário que os

assistia, esses grupos de índios foram transmudados para a

Baixa Verde, na Serra Grande do Pajeú, em Cabrobó.

Esse entendimento da Coroa reflete a dimensão das novas

estruturas político-jurídicas criadas para manter o controle

e a governabilidade da colonização na América. Observa-se

que esta nova política trazia responsabilidades a todos os

envolvidos: administradores, religiosos, colonos e indígenas.

Em pesquisa recente, do final do século XX, encontrou-

240

se registros históricos, nos arquivos eclesiásticos da

Missão de Nossa Senhora do Ó, na ilha de Zorobabel, em

Itacuruba, Pernambuco. A documentação informa que a

Missão de Zorobabel foi fundada pelos jesuítas em 1696 e

neste mesmo ano foram expulsos por causa de conflitos de

terras com prepostos dos poderosos proprietários Garcia

D’Ávila, senhores da Casa da Torre. A demarcação das terras,

reservadas para a aldeia, deve ter sido o móvel da questão. Por

ordem do governador Geral do Brasil, João de Lencastro, as

terras doadas aos missionários deveriam ser demarcadas em

torno de duas ou três léguas para cada aldeia. O Provincial

da Ordem cumpria as determinações daquela autoridade

quando foi acusado de invadir as terras de Catarina Fogaça e

Leonor Pereira Marinho, esposa e irmã do falecido Francisco

Dias D’Ávila. Na realidade, as terras das duas senhoras

distavam 150 léguas das aldeias referidas, conforme se pode

constatar na defesa que elas (as mulheres) fizeram ao serem

acusadas de terem participado da expulsão dos indígenas. O

governador João de Lencastro, reconhecendo o direito natural

dos índios às terras, critica a política de extensão da Casa da

Torre, que a esta altura se estendia a mais de quatrocentas

241

Ordenando o Caos

léguas a partir do litoral.

Através de correspondência do padre jesuíta Alexandre

Gusmão ao seu superior, sabe-se que as terras de Catarina

Fogaça e Leonor Pereira Marinho sufocavam duas mil almas

de índios, o que restou da população indígena nas aldeias do

Rio São Francisco, em 1696.

Procedendo como agente do Rei, o Governador Geral

do Brasil, cumprindo a missão de moderar conflitos, tenta

interceder em favor dos jesuítas que, indignados com o não

cumprimento do Alvará de 1700, o que ordenava demarcar

uma légua quadrada de terras para instalação das missões,

ameaçavam se retirar do trabalho missionário. O Governador

não obteve êxito em seu intento, os colonos continuavam

irredutíveis em suas posições contrárias à doação de terras

às missões e consequentemente os jesuítas se retiram das

missões avisando aos seus superiores, por carta de 11 de

fevereiro de 1710. Durante dez anos lutaram pela implantação

do Alvará Real, mas os colonos levaram vantagem.

Através de documentos do Arquivo Histórico

Ultramarino, que tratam desta questão, sabe-se que o Bispo e

o Governador de Pernambuco, Fernão Martins Mascarenhas

242

enviaram religiosos àquela região, para amenizar a situação

das missões, sob o protesto do arcebispo da Bahia, João

Franco de Oliveira. Esta atitude do Arcebispo comprova que a

posição da igreja não tinha unicidade sobre um mesmo tema,

no Brasil colonial. Outros documentos da mesma fonte, o

Arquivo Histórico Ultramarino, comprovam a associação

de Leonor Pereira Marinho com a Coroa portuguesa na

exploração do salitre, no vale do Rio São Francisco e na

permissão da escravidão indígena para esta atividade. Este

fato explica a retirada estratégica dos jesuítas da região. De

resto, D. Leonor Pereira Marinho recebeu como recompensa,

pelos serviços prestados à Coroa um “foro de fidalgo” para

sua filha.

Os conflitos com os jesuítas levaram as autoridades a

atrair outras ordens religiosas. Sempre através de leis mais

‘brandas’ para a atividade missionária, mas sem poder

político para fazer cumpri-las. Por exemplo: tentando atrair

missionários, a Lei de 1703 confirmou o Alvará de 1700 e

ampliou, minimamente, o território das Missões: além da

légua quadrada, já concedida, acrescentou-se área para a

Igreja, para o adro, para o terreno, em torno dos muros e para

243

Ordenando o Caos

a horta do vigário; ao historiador, leitor dessa documentação

parece que as leis eram criadas para todo o território,

entretanto eram cumpridas onde havia possibilidades para

tal.

Mesmo onde a legislação era executada, o resultado

seriam ninharias, que não mudavam a política de ocupação

territorial, nem o extermínio da população indígena;

os colonos, cada vez mais ávidos por terras para o gado,

avançavam na direção dos antigos territórios indígenas.

Interpretando as decisões reais, a burocracia local

deveria resguardar o território limitado aos índios e, a partir

dessa aldeia indígena, fixar a presença da administração

do Estado português. Este plano, entretanto, não foi bem

acolhido, chocava-se com a ambição dos colonos na ocupação

indiscriminada da terra.

Sem a presença dos jesuítas, as autoridades portuguesas

oferecem a direção das Missões aos Franciscanos que,

já estavam à frente de algumas missões desde 1703. A

preocupação das autoridades se revela em não controlar a

população indígena, desta região, já reduzida e em parte,

cristianizada. Sem a liderança dos padres, provavelmente

244

os indígenas, inconformados, se tornariam grupos de

assaltos às fazendas da região ou alvo fácil dos colonos, e

se dispersariam. Na intenção de resolver este problema, o

Governo de Pernambuco oferece aos Carmelitas de Santa

Tereza a direção das três missões do Rio São Francisco e esta

nova tarefa foi realizada por padres franciscanos, franceses e

italianos até 1761, quando foram extintas.

247

Dispersão

A separação dos índios de suas famílias, de sua parentela, do

seu habitat, de suas crenças, sucedeu desde o momento em

que o governo português decidiu organizar a colonização do

Brasil, tendo como fundamento a implantação dos engenhos

de cana de açúcar. As questões da terra e da mão de obra se

colocavam como primazias para o êxito do empreendimento.

Os índios não conheciam o conceito de propriedade privada,

mas praticavam a ocupação da terra de acordo com sua

utilidade sazonal. Por esta razão, os nativos se deslocavam

do interior para o litoral de acordo com o ‘calendário’ da

economia indígena; também, por esta necessidade, os índios

se transferiam para lugares mais distantes ou mais próximos

de suas malocas. Portanto, a vastidão da terra era de vital

importância para o índio.

Este conflito de modelos econômicos de produção e

organização, pela impossibilidade do diálogo, como se

explicitou nos capítulos anteriores, justificou desde logo

a recorrência da guerra, de parte a parte. Os portugueses

248

viram na extensão da ocupação da terra a segurança para a

produção do açúcar sem levar em consideração o outro, que

já a ocupava.

Ocupadas as terras pelos portugueses através da

violência e iniciada a plantação de cana de açúcar no litoral

e zona da mata, a próxima etapa foi adquirir mão de obra

de graça fazendo incursões no interior, onde os índios se

escondiam. Com efeito, estes acontecimentos já foram

descritos anteriormente, no capítulo Sob o Domínio do

Medo. Mesmo com a resistência indígena, principalmente

dos caetés, e da intermediação dos missionários para não

aniquilar completamente o nativo, o projeto colonizador, foi

se concretizando pela ausência de união entre as diversas

tribos, pela força das armas e pelo medo.

O medo foi o principal elemento nas relações de força

entre os luso-brasileiros e os índios; o medo impingido às

populações nativas resultou para elas na escravidão, nos

castigos, no sumiço de seus espaços territoriais e na perda da

identidade cultural e de suas crenças; por sua vez, a reação

indígena à presença dos portugueses ameaçava o projeto

colonizador: a não ocupação das terras e consequentemente a

249

Dispersão

não realização da colonização e a não aceitação da utilização

servil da mão de obra indígena.

Quais foram os condutos produtores deste sentimento?

Discursos, rituais religiosos, demonstração de superioridade

através do conhecimento técnico e prática da violência, a

guerra. Para Delumeau (2009), o medo é uma emoção choque

desencadeada diante de uma situação de ameaça, não só

aos indivíduos, mas às coletividades e às civilizações. Em

muitos momentos a produção desse sentimento concorreu

para legitimar projetos civilizatórios e justificar prática de

violência.

O medo esteve presente em praticamente todas as ‘ações

civilizatórias’ na Colônia: nas leis, que possibilitaram a perda

do espaço indígena, que legitimaram a escravidão perpétua

dos caetés; nas autoridades e suas representações, nas

missões e seus diretores, nas escolas, na educação, nas missas,

batismos e outros rituais, nos exércitos e na demonstração

da superioridade bélica. No estudo sobre o poder, Foucault

nota dois pontos, vigiar e punir, que podem ser aplicados à

história dos povos indígenas, invertendo-se a ordem para

efeito de análise: punir e vigiar.

250

Na lógica da colonização os portugueses iniciaram pela

punição, demonstrando força; os sobreviventes, uma vez

submetidos, passavam a ser vigiados institucionalmente,

culturalmente, mudando a sua visão de mundo. Todos os

atos punitivos foram exercidos pelas autoridades portuguesas

e pelos colonos e toda a vigilância pelas missões. Segundo a

economia do poder, é mais eficaz e mais rentável vigiar que

punir. Mas, no Novo Mundo, a vigilância não surtiu o efeito

desejado pelo grande número de habitantes existentes, pela

vastidão das terras, pelas dificuldades de comunicação e pela

resistência oferecida ao projeto colonizador. Por esta razão, a

punição foi aplicada em primeiro lugar, e depois a vigilância

para manter a conquista das ‘almas’.

Uma vez solucionada a questão do uso da terra, o

problema da mão de obra para cultivá-la, com a importação

de africanos e o afastamento dos indígenas para regiões

mais distantes, cuidaram as autoridades de definir as áreas a

serem ocupadas pelo gado, e depois delimitaram os espaços

dos índios, criando as missões sob o controle de religiosos

regulares; ainda sob pressão dos colonos, foram criadas as

reduções, que para os índios eram uma espécie de prisões

251

Dispersão

vigiadas.

À proporção que os índios foram sendo excluídos,

exterminados do seu habitat ou sendo reduzidos às missões

e às reduções, as fazendas de gado foram agregando as

terras ‘desocupadas’. Apesar do seu menor valor econômico

em relação ao escravo e ao gado, essas terras foram a base

territorial na qual se amparou um poder político. Assim

como as fronteiras territoriais, elas limitavam-se até onde

a vista alcançava, e isto justificava a ação de expulsão dos

índios das suas próprias terras.

A análise da propriedade da terra, nessa região, a renda

fundiária, que é sua expressão econômica, a tímida expansão

da pequena propriedade, têm sido alvo acanhado de estudos

especializados. Consideramos de importância fundamental

as teses históricas baseadas em análises socioeconômicas e

culturais para se esclarecer como se definiu e se formou esta

sociedade.

A região sertaneja, por causa da irregularidade do seu

regime pluviométrico descrita no capítulo Sertão e Paisagem,

tem problemas quanto à ocupação e ao aproveitamento

humano da terra (Melo L.M., Recife, CEPE, 2012). Portanto,

252

a terra não seria propícia a ‘plantation’, modo de produção

que se estabeleceu na zona da mata e litoral. Então, que tipo

de sociedade e modelo econômico aí se estabeleceu?

Ainda que essa sociedade tenha se formado com uma

população livre quantitativamente maior que a população

escrava dos negros da terra – índios, ou de africanos, mas

igualmente despossuída, a pobreza e o latifúndio foram

fatores predominantes para a concentração de poder nas

mãos de poucos; provavelmente, a estrutura de poder que aí

se desenvolveu foi tão fechada quanto o era na região da zona

da mata.

Embora haja disparidades relativas à riqueza entre

as duas economias, a açucareira e a agropastoril, foram

complementares; a economia agropastoril jogou um

importante papel em relação ao mercado interno,

utilizando o Rio São Francisco e os caminhos entre regiões

para comercializar a produção do gado, couros, produtos

alimentícios, como a aguardente e a rapadura.

Infelizmente há pouquíssimos dados sobre o século

XVIII. A documentação encontrada referente à ocupação

253

Dispersão

das terras é do século XIX60. Através dela compreende-se o

funcionamento desses estabelecimentos fundiários, que se

constituíram ao longo dos séculos. Desde o início do processo

de ocupação percebe-se a importância da família, da parentela

ou mesmo de agregados, que pudessem em conjunto se

auxiliar mutuamente e traçar estratégias de sobrevivências.

As atividades agrícolas e pecuárias, apoiando-se no grupo

familiar, incluindo os agregados, parecem ter procurado

otimizar a utilização da mão de obra de que dispunha. Nos

inventários post mortem os pecuaristas registram, para

efeito de impostos e de repartição da herança, a presença

de escravos; nos inventários dos agricultores são raros esses

registros.

O processo de produção na região sertaneja não exigia mão

de obra numerosa como na região do açúcar; portanto, o grupo

familiar poderia ser responsável se o estabelecimento não

produzisse em grande escala. Esta relação de trabalho parece

60. São inventários post mortem, livros de registros de terras, livros de tombo das

paróquias e livros de nota dos tabeliães, que foram consultados.

“A Formação Social do Médio São Francisco”. Pesquisa coordenada por Socorro Ferraz e

financiada pelo CNPq.

254

ter uma dependência com o patrimônio, seja na perspectiva

da herança seja na possibilidade de agregar riquezas. Não

aparece, nos inventários, o trabalho assalariado. O valor da

terra não convida a que a mesma se transforme em moeda.

Os escravos e o gado, ou seja, os bens móveis, são os mais

valiosos. A terra como meio de produção era o mais barato

e o mais importante por assegurar à permanência do grupo

familiar, um modo de vida e um sistema de representação.

Nesses inventários não existe a presença indígena como

partícipe da produção.

Nas fazendas, nos sítios e nas roças, a família desempenhou

um papel fundamental, principalmente nos séculos XVIII e

XIX. O século XVII é representado pelos conquistadores que,

em sua maioria, chegaram para ‘as guerras justas’ contra o

gentio e para ocuparem as datas recebidas como sesmeiros.

A terra era um patrimônio familiar com conteúdo ideológico;

era também um meio de trabalho, necessário à produção;

no sertão, não foi objeto de especulação. Não se vendia e

comprava terras com a dinâmica que as mercadorias exigem.

Além do apego ao patrimônio, o preço era muito baixo. A terra

tinha valor de meio de produção, de lugar de pertencimento,

255

Dispersão

de entrelaçamento com a parentela; portanto, ela é o

território patrimonial, no qual agricultores e pecuaristas

estavam enraizados. As fazendas de algodão, no século XIX,

período de maior demanda, foram responsáveis pela modesta

repartição das grandes propriedades em algumas sub-regiões,

mas em outras confirmaram o latifúndio.

Nos estudos sobre a propriedade fundiária da região

sertaneja as terras públicas, também chamadas de devolutas,

não aparecem sendo distribuídas com as populações

indígenas. Por outro lado, registros dos cronistas dos séculos

XVI, XVII e XVIII, e mesmo a legislação do Estado português

guardada no Arquivo Histórico Ultramarino, confirmam

ações de trabalho compulsório, venda de seres humanos e

maus tratos dos colonizadores, em relação às populações

nativas. Essas informações são indícios de que os índios

foram obrigados a praticar o trabalho servil nesse modelo

econômico.

Para responder à pergunta “Para onde foram os índios,

nessa sociedade?” Seria necessário fazer um levantamento

da estrutura fundiária e mapear as grandes e pequenas

propriedades, verificando-se se a pequena poderá ser

256

considerada uma unidade de produção familiar com

capacidade de reprodução, e se a grande propriedade inclui

vários modos de produção: o que se baseia na mão de obra livre

e o que se fundamenta na mão de obra escrava. Importante

é buscar definições sobre o que é ser livre e o que significa ser

escravo, naquela região e naquela época.

São poucos os estudos sobre esta sociedade, porque há

dificuldades com a documentação. Talvez esta zona cinzenta

que interfere na historiografia regional tenha sido responsável

pela não desmistificação de estereótipos. Um deles é que não

houve trabalho escravo nos sertões. Aceitar esta premissa

ideológica é defender a ideia que a ‘civilização’ recebida pelos

índios através da evangelização e das leis, que regularam suas

vidas os transformaram em vassalos.

Uma boa parte das tentativas de reconstituição das

economias regionais do país, desde a colônia, por parte

dos historiadores, guiou-se por uma perspectiva um

tanto equivocada, tendendo a equacionar o problema da

escravidão em termos de uma teoria da plantation e não

do modo de produção escravista. Tal orientação produziu

nos meios acadêmicos a ideia de um modelo colonizador,

257

Dispersão

estritamente fechado em um sistema produtivo constituído

de três elementos: a grande propriedade, o trabalho escravo,

e a economia de exportação.

Esta abordagem do sistema colonial explica, em parte,

a história da escravidão, mas oculta o estudo de formas

peculiares de exploração da mão de obra africana e da mão de

obra indígena, comuns a várias economias regionais, como

é o caso da região sertaneja, onde nem sempre combinaram

entre si aqueles três elementos próprios da plantation.

De certa forma, construir a história do escravismo no

sertão, seja de africanos ou de índios da terra, exige por parte

do pesquisador uma atitude de ruptura com esta visão que

não consegue desligar o trabalho escravo da organização

típica da produção dos engenhos de açúcar. Tem razão o

brasilianista Robert Slenes ao considerar que “para conhecer

a fundo a escravidão no Brasil e resolver as questões atualmente

em debate precisa-se de mais estudos locais e de menos ênfase

sobre a ‘plantation’.” Estudos sobre a economia do Sertão, no

século XIX, podem contribuir para o desenvolvimento desta

linha de pesquisa, proposta por Slenes, que tem avançado em

termos de história da escravidão e da servidão em diversas

258

regiões do país.

Outra tese repetida pela historiografia regional diz

respeito ao surgimento de uma estrutura de poder mais

aberta no sertão que na zona da mata, tendo em vista certas

peculiaridades do modo de produzir naquela região. Ora, a

ocupação da terra deu-se, a princípio, por apropriação, com

muita semelhança como se deu no litoral e Zona da Mata; nas

sesmarias ou as posses, onde se circunscreviam as fazendas

de gado, de algodão ou pequenos engenhos de açúcar para a

produção de aguardente e rapadura; o restante do espaço era

livre, em termos; não para a ocupação de nações indígenas.

As propriedades que surgiram não tinham limites, como já

foi dito, e o isolamento delas dos centros comerciais era uma

realidade; portanto, as fazendas mistas vão predominar; nelas

encontramos várias atividades, como a pecuária, a agricultura

de subsistência, casas de farinha, teares para fiar pano grosso

e outras atividades artesanais, que complementavam as

necessidades fundamentais do grupo; e tudo isto dependia

de um único senhor. Esta concentração de poder, aliada ao

desafio da conquista, traduzida na violência da guerra contra

os indígenas, não são premissas favoráveis à formação de

259

Dispersão

uma estrutura de poder mais aberta do que a da sociedade

que se formou no litoral do Nordeste.

A repartição das terras e a divisão das heranças não

foram determinantes à fragmentação daquelas. As fortunas

cresciam e diminuíam, mas não parecem ter modificado

a natureza do latifúndio. Esta estabilidade deve-se, ao que

tudo indica, aos casamentos entre as mesmas famílias, e

também ao fato de que os ‘donos’ não tinham conhecimento

dos limites dos seus domínios e os levantamentos feitos

oficialmente pelas autoridades eram imprecisos.

Na região sertaneja o gado foi criado à solta, o que

significa dizer que as fazendas não tinham cercas, que as

terras livres também eram ocupadas pelo gado, e que a água

existente era utilizada coletivamente. O vaqueiro poderia ser

um homem livre ou um escravo. Devido às dificuldades de

sobrevivência, em muitas circunstâncias estiveram lado a

lado o branco e o negro, o cafuzo e o índio. Superficialmente,

pode parecer esta sociedade mais democrática que a da zona

da mata, entretanto quando aprofundamos o olhar podemos

perceber as condições reais daquela convivência. Uma carta

do Governador da capitania do Piauí, João Pereira Caldas,

260

dirigida ao Ministro de Ultramar, em nove de outubro de

1766, é um documento preciso para avaliar o seu conceito

sobre os homens desta Capitania: “o costume aqui nesses

sertões é que brancos, mulatos e pretos tem a mesma estima e se

tratam com recíproca igualdade e quando ocorre o contrário as

vidas aqui correm perigo”.

Esta observação é válida para o Sertão de Pernambuco.

Assim como nos Sertões do Piauí, o indígena não era

mencionado, assim também acontecia em Pernambuco.

Esta ‘tolerância racial’ dos brancos em relação aos negros

e mulatos estava na dependência direta de uma aliança

que facilitasse o extermínio dos nativos ou, na melhor das

hipóteses, os afastassem de suas terras férteis. Os nativos

estiveram fora da administração, portuguesa ou brasileira,

do sistema de trabalho, a não ser como administradores de

sua própria gente, ou à frente de batalhões de índios, nas

guerras. A participação como mão de obra em alguma fatia

do mundo do trabalho, como guias ou vaqueiros, ocorreu

muito isoladamente e estes não foram registrados nem como

escravos nem como trabalhadores assalariados; as mulheres

colaboraram nos serviços domésticos, acompanharam seus

261

Dispersão

maridos nas guerras, pode-se dizer que foram responsáveis

pela intendência, na constituição dos batalhões; cuidavam

da alimentação, dos remédios, de encontrar fontes de água

e novos caminhos. Das atividades produtivas do sertão,

provavelmente a pecuária foi aquela em que o índio se

sentiu mais à vontade, pela brecha de liberdade que lhe

proporcionava. A presença desta suposta liberdade também

pode se perceber através da documentação contida nos

Livros de Casamento e Batismo e, nos inventários post

mortem, do século XIX. Aí, vemos a formação de algumas

famílias de escravos africanos, famílias de índios e também

o compadrio de índios com africanos e afrodescendentes.

O pesquisador, ao se debruçar sobre esta documentação,

pode localizar famílias escravas, inclusive legitimadas pelos

casamentos religiosos. Ao contrário, na Zona da Mata, pela

forma de exploração e pelas condições de sobrevivência dos

escravos nas senzalas, o aparecimento da família escrava não

é registrado na historiografia com frequência.

Durante o século XIX, após a Independência do Brasil, os

destinos das terras públicas estiveram sob a responsabilidade

das Províncias. Não há nenhum registro de distribuição dessas

262

terras para os índios, que continuavam sendo acossados para

abandonar o que restou dos seus espaços. Na crônica colonial,

essa população, que segundo estimativas para o início da

colonização chegava a 100 mil habitantes, nessa região,

depois da presença das missões, ela ainda aparece entre as

preocupações dos missionários e da burocracia reinol, mas

após a extinção dessas, a população indígena está registrada

na documentação policial.

Além dos conflitos entre índios e colonos e autoridades

locais de Pernambuco pode-se observar dissensões entre

as autoridades acerca do estabelecimento dos índios. O

governador de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, por

ofício, dirigiu-se ao Secretário de Estado da Marinha e

Ultramar confirmando sobre a devassa que abriu contra o

ouvidor de Pernambuco, Bernardo Coelho da Gama que,

em aliança com ouvidor da Paraíba, perseguia os índios que

estavam estabelecidos em determinado local.

Esta documentação oficial diz muito sobre o destino dos

índios. Após séculos de perseguições, não houve alternativa

que não fosse a dispersão.

Os escritores, de uma maneira geral, têm se debruçado

263

Dispersão

sobre o Sertão com olhares românticos, quase mitificando

a terra e o homem. Os historiadores contemporâneos

ampliam esse olhar e buscam respostas que os auxiliem na

compreensão da história dessa região, desde sua ocupação

mais antiga à formação dessa sociedade.

Observando de forma mais acurada esta sociedade, através

dos Livros de Batismo, de Óbito, dos livros dos Inventários,

dos Livros de Tombo da Igreja e da documentação cartorial,

do século XIX, além de entrevistas com moradores mais

antigos da região, no século XX, podemos compreendê-la

com mais clareza. Apesar de violenta, fechada em um poder

patriarcal, esta sociedade enfrentou muitos desafios, desde

as intempéries do clima, as secas periódicas, a distância dos

centros litorâneos, o abandono das autoridades, e por fim

rematou por encontrar algumas respostas: para manter a

relação vaqueiro/patrão criou o regime de quarteação, no qual

o vaqueiro podia se apropriar de 1% da produção do gado; para

comercializar a sua produção e receber mercadorias de outras

paragens utilizou o Rio São Francisco como via de acesso

a outras capitanias e províncias, surgindo um significativo

mercado interno; para vestir seus vaqueiros, protegendo-os

264

da vegetação espinhosa, inventou o gibão de couro, as camas,

as mesas, os assentos, objetos para guardar comida sólida

e líquida, enfim uma civilização do couro; para preservar a

carne e levá-la a grandes distâncias, ou mesmo para conservá-

la como alimento às populações sertanejas, buscou o uso

do sal e inventou a charqueada; para solucionar conflitos

entre os homens, instituiu uma ética própria, baseada na

fronteira entre homens rudes e místicos, facínoras e heróis,

cangaceiros e fanáticos.

Sertão é uma palavra definidora de muitos conceitos.

Tem origem latina no verbo ser/sero que quer dizer ligar

com fio, tecer, juntar, atar, engajar, encadear. Desta palavra

latina se derivaram outras como desero, deserni, desertum,

que se traduz na língua portuguesa por destacar-se, soltar-se,

desertar.

É sintomático que a palavra na sua origem tenha um

conceito e na sua evolução tenha se dirigido para outro,

que lhe é oposto: atar e soltar, juntar e destacar, encadear e

desertar. O sertão é dialeticamente os dois conceitos, os dois

lados de uma mesma moeda. É uma região de fronteira entre

climas, entre homens, entre tradições, entre a colonização

265

Dispersão

portuguesa e a holandesa, entre o sistema de trabalho escravo

organizado e os quilombos, entre o sistema de trabalho

indígena compulsório e a forma nativa de uma economia

coletora.

267

Ilustrações e tabelas

• Mapa América de Diego Gutiérrez, 1562

• Mapa de área arqueológica para Pernambuco, Barbosa, 2007

• Mapa Estados do Brasil, João Albernaz I, século XVII

• Mapa Terra Brasilis de 1519

• Mapa Kunstmann II, ca. 1502

• Mapa Brasilia e Peruvia, de Cornelius de Jode, 1593

• Detalhe do Mapa Brasilia e Perugia

• Mapa Brasilia de Petrus Bertius, ca. 1616

• Detalhe de mapa de Sebastian Munster, 1532

• Mapa Brasilia qua parte paret Belgis, 1647

• Ilustração de Frans Post do mapa de Marcgraf (1)

• Ilustração de Frans Post do mapa de Marcgraf (2)

• Mapa de Nicolás Vallard, 1547

• Pintura de Albert Eckhout sobre missão em Pernambuco, ca.

1641

• Mapa do litoral de Perna`mbuco de Luís Teixeira, ca. 1582-

1584

• Mapa das missões jesuítas de Serafim Leite, 1953

268

• Tabela aldeias indígenas

• Mapa Vingboons, século XVII

• Mapa Aldeias com missões no São Francisco, Barbosa,

2007

• Tabela aldeias com missões capuchinhas no São

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GOVERNADOR DE PERNAMBUCOPaulo Câmara

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Este livro foi composto em Phoreus Cherokee, corpos

11 e 18. Miolo impresso em papel couchê 115g/m² e capa

em papel cartão triplex 250g/m². Impresso pela Companhia

Editora de Pernambuco - CEPE, em novembro de 2015.


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