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Simbologia animal na «Chanson de Roland»

Date post: 26-Jan-2023
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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS LICENCIATURA EM LÍNGUAS, LITERATURAS E CULTURAS 1º ANO LITERATURA FRANCESA MEDIEVAL Docente: Ana Paiva Morais Discente: Beatriz Sertório, nº 38225 Simbologia animal na Chanson de Roland Lisboa, 2012
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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

LICENCIATURA EM LÍNGUAS, LITERATURAS E CULTURAS – 1º ANO

LITERATURA FRANCESA MEDIEVAL

Docente: Ana Paiva Morais

Discente: Beatriz Sertório, nº 38225

Simbologia animal na Chanson de Roland

Lisboa, 2012

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Índice

Introdução

4

I. Relação do animal com o Homem medieval 6

II. Representações animais na Idade Média 8

III. Simbologia em La Chanson de Roland

3.1. O Urso 10

3.2. O Leão 13

3.3. O Cavalo 17

3.4. Serpentes, víboras, dragões e demónios 19

Conclusão

25

Bibliografia

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3

«For the Middle Ages, the whole universe was a symbol. » «It knew that everything on earth is

a sign, everything is an image, that the visible is of value only in the measure that it covers the

invisible» (Saint Dionysius the Areopagite)

A Idade Média está repleta de simbologia, para quem a souber procurar. Ao

escolhermos adoptar uma posição de transferência do nossa própria mentalidade para

o contexto da mentalidade medieval, por oposição à nossa visão moderna das imagens

do passado, podemos começar a entender a necessidade que tinha esta sociedade

ligada, principalmente e de forma íntima, ao Cristianismo, de encontrar significado e

reflexos divinos em toda a criação de Deus.

Esta necessidade espiritual em associação à crescente importância dada aos estudos

de Anatomia e de outros ramos das ciências naturais explica a prática da codificação

dos diversos elementos naturais em símbolos.

O primeiro sistema de códigos profundamente desenvolvido é o da heráldica – a arte

ou, até mesmo, a ciência de criar brasões. Na verdade, por volta do séc. XII, esta já

teria adquirido uma linguagem própria orientada por regras estritas, apresentando-se

como a mais completa criação codificada que o intelecto humano havia alcançado.

Apoiando-se na iconografia bíblica, os símbolos, então, renascem criando-se uma

renovada memória colectiva de uma longa tradição de simbolismo cristão.

Na Bíblia, e, compreensivelmente, na arte heráldica, é frequente a representação de

animais. Nunca usados de forma arbitrária e tendo, geralmente, uma profunda raison

d’être, os animais ganham dimensão não só nos livros destinados à explicação das suas

propriedades mas até mesmo na produção literária medieval.

Neste trabalho, a obra explorada é a épica canção de gesta do fim do séc. XII, La

Chanson de Roland. Apesar do destaque dado aos animais presentes na obra, pretende

dar-se aqui um panorama mais amplo de uma tradição que está, em grande extensão,

esquecida. Os nossos contemporâneos esqueceram o significado de algumas das mais

antigas simbologias invocadas na Bíblia, já os estudiosos da Idade Média,

provavelmente, não terão nunca a chave para desbloquear todo o conhecimento

impregnado nas obras escritas e conhecidas nesta altura. Da nossa distante visão

4

moderna, podemos mesmo evocar palavras de um poeta do séc. XIX que sugere este

desvio das nossas origens, da incapacidade que o Homem moderno tem de ler na

Natureza o que o Homem medieval leu e tentou preservar:

«La Nature est un temple où de vivants pilliers

Laissent parfois sortir de confuses paroles;

L’homme y passe à travers des forêts de symboles

Qui l’observent avec des regards familiers. »

(BAUDELAIRE, Correspondances, v.1-4)

A Natureza não é apenas um livro mas um templo. Resta aos estudiosos de hoje pegar

nessas “palavras confusas” que nos foram deixadas e procurar reavivar a memória dos

nossos antepassados, humanos e animais, que nos olham com “olhares familiares”,

explorando este universo harmónico de símbolos onde nada é por acaso, tudo é

ordem e espelha a criação divina.

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I. Relação do animal com o Homem medieval

«But ask the animals, and they will teach you, or the birds of the air, and they will tell you; or speak to the

earth, and it will teach you, or let the fish of the sea inform you. Which of all these does not know that the

hand of the Lord has done this? In his hand is the life of every creature and the breath of all mankind. » (Job

12:7-10).

Desde sempre, o Homem tem uma relação de proximidade com o animal. Não só pela

necessidade primordial do Homem de caçar pela sua sobrevivência, mas também num

domínio mais próximo do espiritual, talvez até mesmo místico. No dia-a-dia do Homem

da Idade Média, tanto os animais domésticos como os selvagens estão presentes,

vivendo ambos em permanente convívio. Por esta razão, podemos, então, entender a

proliferação de textos e ideias que se desenvolvem em torno desta relação.

Numa altura em que predomina a religião Cristã, as palavras da Bíblia ganham uma

dimensão enfática, influenciando a forma como é visto o animal. Na perspectiva cristã,

podemos, assim, encontrar o conceito de “livro da natureza”, tomando o mundo

natural como um livro no qual o Homem deve procurar conhecimento e compreensão

das suas origens. Nesta linha, o animal, como parte do mundo natural, surge como um

modelo que Deus colocou na Terra para que os humanos retirem dele o seu exemplo.

No entanto, apesar desta origem divina, desenvolvem-se, na Idade Média, duas

correntes de pensamento contraditórias. Por um lado, surge um sentimento previsível

de parentesco entre o Homem e o animal; por outro, sente-se a necessidade de opor,

o mais nitidamente possível, o Homem (criado à imagem de Deus) ao animal (criatura

submissa e imperfeita), com a intenção de demonstrar a inferioridade do segundo.

Apesar da predominância desta última corrente, o pensamento da primeira difunde-se

num grande número de textos e géneros que procuram no animal, um reflexo das

características dos humanos.

Estas comparações levam, consequentemente, a sociedade medieval a questionar-se

acerca da extensão real das suas semelhanças com os animais, questões também

impulsionadas pela prática da dissecação e estudo dos animais a partir da Antiguidade

Grega. Serão as semelhanças apenas físicas ou também psicológicas? Terão eles

alguma espécie de responsabilidade moral? Será legítimo processar um animal por um

6

crime cometido?1 A um nível mais religioso questionam: Os animais vão para o céu?

Ressuscitam? Sejam quais forem as conclusões, a verdade é que na Idade Média o

animal é sempre utilizado como exemplo, seja um exemplo a seguir ou a rejeitar.

O estudo destas questões, inter-relações e até dos próprios bestiários foi durante

muito tempo ignorado. No entanto, a partir dos anos 60, entende-se o animal como

uma forma de estudar a História. O animal está presente em todas as

épocas/circunstâncias e relaciona-se tanto com factores sociais como económicos,

materiais ou religiosos. As suas representações estão presentes em todos os domínios

da arte e cada uma apresenta-se como uma forma de desvendar a evolução da sua

simbologia.

É também importante lembrar que a Idade Média dura cerca de 1000 anos. As

utilizações dos animais mudam ao longo do tempo, tendo em conta a evolução cultural

do ambiente que os rodeia, as variabilidades inerentes à natureza polivalente dos

animais e as modificações de equilíbrio no ecossistema. Por esta razão, é importante

não desassociar as simbologias que os animais adoptam dos contextos em que estas

aparecem. No entanto, os textos especificamente dedicados às propriedades dos

animais mantêm-se quase inalterados ao longo do tempo.

O que se altera é o modo de utilização das propriedades já conhecidas. No âmbito da

Literatura, por essa razão, a apropriação dos animais como símbolos também se altera

conforme o contexto, de obra para obra, de género para género. Na altura a que

remonta a Chanson de Roland, e embora o pensamento medieval tenha uma natureza

predominantemente teocêntrica, as obras literárias apropriam-se, quase na sua

totalidade, de um antropocentrismo que relega o papel dos animais para segundo

plano. O animal é relevante nas obras apenas na medida em que se relaciona com o

Homem ou com Deus, sendo utilizado como instrumento harmonizador e criador de

sentido (ZINK, 1984, p. 48). Apenas à medida que as canções de gesta se tornam mais

romanescas, é que os animais adquirem um papel mais relevante do ponto de vista

afectivo.

1 Esta questão levou, de facto, à realização de processos de animais em tribunal. Em França, o primeiro

processo deste tipo que se conhece data de 1226, tendo um porco sido queimado vivo por ter devorado uma criança.

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II. Representações animais na Idade Média

«Le monde n’est pas une fabrication, qui doit entièrement origine à une main extérieure, ou le

résultat de je ne sais quel coup de dês. Il s’est arrangé pour naître, pour naître, afin de s’en procurer

connaissance, à l’image de Son Créateur et, dans une ressemblance simultanée, innombrable,

inépuisable, continuelle et active avec lui, se produire et se reproduire …» (CLAUDEL, Paul, Oeuvres

en prose, Pléiade apud Bestiaire Roman: Textes Médiévaux, p.8)

A Idade Média bebe o seu conhecimento acerca dos animais, em livros como o

Physiologus, tendo sempre como base os ensinamentos retirados da Bíblia, fábulas e

mitos vindos de toda a parte do mundo. Este livro, escrito em Grego, remonta ao séc. II

D.C. e representa quase cinquenta animais atribuindo-lhes simbologias cristãs. Esta

tradição de utilizar o animal ao serviço da pregação cristã surge, então, das metáforas

e símbolos que constituem a Bíblia, como forma de facilitar a assimilação da

mensagem de Deus. Assim, é construída a ideia de que o animal foi criado para a

instruir e guiar o Homem, surgindo frequentemente nas mais diversas formas de arte

tanto para ilustrar as virtudes cristãs como para advertir os pecadores.2

Mais tarde, o Physiologus foi completo por autores enciclopédicos (exemplo das

Etymologies de Isidoro de Sevilha, inspirada nas Histoires naturelles de Plínio, o Velho),

herdeiros da tradição naturalista do Historia Animalium de Aristóteles. Desta junção de

abordagens distintas, surgem os bestiários3. Compostos em verso ou prosa, combinam

considerações morais com aspectos científicos, descritivos da natureza de cada animal,

tendo como objectivo a edificação do cristão. Estes eram usualmente ilustrados, sendo

que as iluminuras tinham também como função servir de “linguagem visual” para o

público iletrado.

Para maior divulgação das morais contidas nos bestiários, as representações podiam

também ser encontradas fora dos manuscritos, por exemplo, em mosteiros e igrejas,

tanto gravadas em pedra como em madeira, utilizadas até mesmo na mobília como

elemento decorativo, tecidas nas tapeçarias, pintadas nas paredes ou em mosaicos.

2 Esta ambiguidade das características animais está na base da criação dos Bestiários de Cristo e Bestiários de Satanás. 3 Assim designados por tratarem da natureza dos animais (bêtes). Existiam ainda os volucrários (restritos

à natureza dos pássaros), florilégios (da natureza das plantas) e lapidários (das propriedades dos minerais e pedras preciosas).

8

Acerca desta ampla visibilidade, Charles Haddon Spurgeon conclui no seu Everybody’s

Sermon: «Every animal that you see, every spot you visit, has a sermon for you. »

(SPURGEON, 1858)

Estas ilustrações, no entanto, não costumam ser realistas, pois em grande parte dos

casos os artistas nunca tinham tido a oportunidade de ver um exemplo da criatura

ilustrada. Assim, o ilustrador baseava o seu desenho em meras descrições ou em

outras gravuras que, eventualmente, poderia ter visto. Isto leva a que muitos

manuscritos tenham animais realmente peculiares4, enquanto outros são verdadeiras

obras de arte.

O bestiário mais antigo é o de Philippe de Thaon (cerca de 1120), partilhando o séc. XII

com as compilações em latim do Physiologus, e o Bestiaire divin de Guillaume, le Clerc

(cerca de 1150). Posteriormente, destacam-se o Bestiaire em latim de Pierre de

Beauvais, a sua tradução para o francês, e a obra De Animalibus de Albert le Grand

(1260), todas estas obras cumprindo a sua dupla função moral e didáctica.

Vários outros géneros literários dedicaram-se, igualmente, à representação de

animais: as fábulas (exemplo do Roman de Renard, o famigerado “trickster” da Idade

Média) e as sátiras denunciavam as imoralidades da sociedade; para além disso havia

ainda os tratados de caça, precisos, realistas, procurando responder à curiosidade do

Homem acerca dos animais que caça. As suas representações iconográficas, no

entanto, abundam nas margens de diversos manuscritos.

Apesar de não ser conhecida a verdadeira data do primeiro manuscrito de Chanson de

Roland, e embora seja estimada uma data posterior à do aparecimento dos primeiros

bestiários, podemos considerar tanto os mais antigos como os posteriores como

representantes do pensamento medieval que foi reproduzido e repetido nos bestiários

até cerca de 1250, mantendo-se quase inalterado. Os principais apoios da obra serão,

no entanto, os que surgem até ao séc. XII.

4 Esta peculiaridade ou estranheza podia dever-se também à falta de capacidades do ilustrador, que

poderia tratar-se apenas de um monge escolhido como o mais artístico do seu mosteiro, e não um

verdadeiro artista (BADKE, 2004 apud The Medieval Bestiary - Introduction).

9

III. Simbologia em La Chanson de Roland

«Quand Roland voit qu’on va livrer bataille, il devient plus féroce qu’un lion ou qu’un leopard»

(Corpus, p. 207)

Os animais aparecem nas produções literárias medievais de forma a contribuírem para

o sentido global das obras, sendo necessário interpretar as suas aparições em função

do contexto das mesmas.

Na Chanson de Roland, embora não exista este componente, os animais são também

evocados de forma simbolicamente significativa, aparecendo principalmente nos

sonhos premonitórios de Carlos Magno. Estão quase ausentes as criaturas fantásticas

que frequentemente marcavam presença nos textos da época, mas são representados

certos animais com uma carga simbólica importante. Aqui serão referidos alguns dos

mais relevantes, bem como uma tentativa de interpretação do papel de cada um na

atribuição de sentido à narrativa.

3.1. O Urso

O urso é um dos animais mais recorrentes na Chanson de Roland e também um com

uma longa tradição simbólica.

Na simbologia cristã, à semelhança de outros animais que hibernam igualmente, o

urso é visto como um símbolo da

Ressurreição quando desperta na

Primavera. Nesta mesma linha divina, e a

partir da crença antiga de que as crias de

urso nasciam sem qualquer forma, tendo

de ser a mãe a moldá-los ao lambê-los, o

urso torna-se também um emblema do

missionário que molda os novos cristãos

ao feitio da palavra de Deus.

Ilustração 1

10

Na linha oposta, – a do Satanás e da fúria divina – sendo digno de notar que a

ambiguidade simbólica é característica da maioria dos animais, o urso representa

ocasionalmente o Diabo ou, mais frequentemente, o braço direito da ira castigadora

de Deus. Ao apoiarmo-nos nos

episódios da Bíblia, podemos recordar

o de Eliseu, o profeta, que ao ser

desrespeitado por uns jovens, os

amaldiçoa em nome do Senhor e dois

ursos fêmea saem das profundezas da

floresta, atacando quarenta e dois dos

jovens irreverentes.

Nesta via de punição, podemos,

então, enquadrar um episódio da

Chanson de Roland, quando Ganelon

é castigado pela sua traição ao ser

entregue aos moços de cozinha, à

semelhança do urso que é caçado, esfolado e acorrentado. (Laisse 137)

Para além disso, e em relação ao episódio da Bíblia previamente descrito, em que dois

ursos são enviados à Terra por Deus (movimento descendente), é interessante referir,

na direcção inversa, o ritual praticado na Idade Média que consistia em sacrificar ursos

como forma de comunicar com a divindade (movimento ascendente). Também aqui é

possível encontrar o paralelismo com Ganelon. Da mesma forma que durante estes

sacrifícios, os praticantes diziam ao urso o que desejariam dizer a Deus, actuando o

animal como mediador entre dois mundos, também Ganelon serve de mediador e

porta-voz entre o mundo cristão e o mundo pagão.

No entanto, nas primeiras visões de Carlos Magno (Laisses 56-57) a identificação do

urso é algo ambígua. Nestas fala-se de um urso cruel que morde o braço direito de

Carlos Magno. Tendo em conta que o seu braço direito é representando por Roland,

este urso tanto pode ser, novamente, Ganelon, cuja traição vai provocar a morte de

Roland, como Marsílio que, efectivamente, o mata. Seguindo sempre a linha

Ilustração 2

11

demoníaca, o urso é também retratado, juntamente com outros “serventes

animalescos do Diabo”, no sonho de Carlos Magno que pressagia a batalha contra

Baligant (Laisse 185). Numa segunda visão de Carlos Magno, o imperador imagina-se

em Aix-la-Chapelle, aprisionando um urso com uma corrente, desta vez associado,

novamente, à punição de Ganelon.

Numa dimensão mais próxima do Naturalismo, reconhecemos, por outro lado, as

semelhanças entre o urso e o Homem, sendo possível considerá-lo como uma espécie

de criatura intermediária entre o mundo dos animais e dos humanos. À semelhança do

Homem, os ursos, ao contrário de outros animais, abraçam-se mutuamente quando

acasalam, e adoptam frequentemente a posição bípede, por concentrarem a sua força

nos braços e nas pernas. A partir desta aproximação do urso à figura humana

podemos, então, denotar a lição moral inerente à sua associação com Ganelon, ao

estilo dos bestiários.

O urso como análogo do Homem traidor, evoca assim a figura bíblica de Judas, que

entrega Jesus Cristo aos seus capturadores

por 30 moedas de prata. Associada a este

símbolo, podemos ainda destacar que a

avareza é uma característica

frequentemente conotada com o urso,

juntamente com o mau temperamento ou

a brutalidade.

No entanto, o urso foi também o rei dos

animais a dada altura, associado a qualidades como a da força, braveza, determinação

e a sua reputação de invencibilidade. Curiosamente, durante o Império de Carlos

Magno ocorre um verdadeiro massacre de ursos, sendo interessante analisar nesta

perspectiva a posição vitoriosa do Imperador face ao urso (e ao urso simbólico,

Ganelon) na Chanson de Roland. Historicamente, esta “exterminação”deveu-se à

veneração do urso por certos povos germânicos como um verdadeiro deus, objecto de

Ilustração 3

12

cultos religiosos. Considerou-se então necessário exterminá-los para converter esses

povos bárbaros ao Cristianismo.

Esta perseguição da Igreja ao urso (que termina apenas no século XIII) contribui então

para a sua decadência e, consequente, destrono como rei dos animais, mas alimenta

também, paradoxalmente, o seu paralelismo com Deus, apresentando-se como seu

rival – uma espécie de anti-Cristo. Evocando outros dois animais muito importantes

hierarquicamente, na Bíblia pode-se ler como Deus é equiparado ao urso, na sua

braveza, ao ameaçar o destino do povo de Israel se não ouvir a sua mensagem: «So I

will be to them like a lion; like a leopard by the road I will lurk; I will meet them like a

bear deprived of her cubs.» (Hosea 13:8-9).

3.2. O Leão

O leão ocupa, na maioria das culturas e épocas, a posição cimeira da hierarquia animal.

Na verdade, a sua designação Grega (Leo) significa “rei” em Latim, daí este ser,

geralmente, o primeiro animal a ser apresentado nos bestiários.

O seu estatuto de realeza deve-

se a várias qualidades que lhe

são atribuídas. Entre elas, o

poder, a, vigia, a coragem, a

dignidade e a justiça. A

associação ao enorme poder

leva a que conquistadores e

príncipes como, por exemplo, Alexandre, o Grande, sejam cunhados nas moedas da

época com a pele da cabeça de um leão. Para além disso, a admiração pela sua

soberania compele numerosas legiões Romanas a adoptar a figura do leão como

insígnia, sendo também o animal mais representado na tradição heráldica.

A sua qualidade de vigilante, por sua vez, ascende-o a um poder maior. Esta baseia-se

numa crença antiga de que o leão dorme de olhos abertos, dia ou noite, conotando-o

com a omnisciência de Deus que tudo vê. Acerca desta característica, podemos ler no

Bestiaire Divin de Guillaume le Clerc:

Ilustração 4

13

«Quer quand il dort, li oil When the lion sleeps, his eye

veille; watches;

En dormant a les euz overz, In sleep his eyes are open,

Et clers et luisanz et apers. » Clear and gleaming and awake.

Mas pode juntar-se uma outra analogia divina a esta particularidade. Na Idade Média,

as pessoas acreditavam que as crias de leão nasciam mortas e eram trazidas de volta à

vida pelos pais que exalavam vida para dentro delas no terceiro dia após o seu

nascimento. Assim, o leão surge ainda como símbolo da Ressurreição, sendo também

possível encontrar esta associação nas palavras de Guillaume:

«Quand cest lion fut en croiz When the lion was put on the

mis cross

Par les Ieves, ses anemis, By the Jews, his enemis,

Qui les jugièrent a grand tort, Who judged him so wrongfully,

L’umanité i soffrit mort His humanity suffered death then

Quand l’ésperit de cors When he rendered the spirit

rendi from the body,

En la saincte croiz s’endormi; and fell asleep on the holy cross;

Si que la deite veilla.» But the divine nature kept watch.

Desta forma, o leão é comparado a um guardião, como Deus que mesmo depois da

morte do seu corpo, permanece vigilante pelas almas dos fiéis.

Acerca destas crenças antigas (muitas delas provadas como erradas na época

medieval) é importante lembrar as palavras de Santo Agostinho: «The important thing

is to consider the significance of a fact and not to dispute it’s authenticity.»

14

(Commentaries on the Psalms, C.II apud CHARBONNEAU-LASSAY, Louis, Le Bestiaire du

Christ, p. 8), que estão, aliás, de acordo com toda a tradição simbólica medieval, onde

a contribuição para um sentido e uma harmonia de todas as coisas é mais relevante do

que a veracidade dos factos.

Na Chanson de Roland, o leão é inicialmente conotado com Roland, podendo ler-se:

«Quand Roland voit qu’on va livrer bataille, il devient plus féroce qu’un lion ou qu’un

léopard.» (Laisse 88)

Roland adquire então um estatuto de heroicidade, ligado à braveza e à coragem do rei

dos animais que nada teme.

Numa interpretação mais ampla, podemos mesmo interpretar a morte do “leão”

Roland a partir da expectativa da sua ressurreição, ou imaginá-lo como um guardião

que mesmo depois de ter morrido, mantém sempre os olhos abertos de forma a

proteger os seus companheiros em batalha. É, sobretudo, o espírito feroz de Roland

que se mantém vivo na narrativa.

Ainda antes da morte de Roland,

encontramos, posterior a esta

primeira referência, uma segunda:

«Quand on sait qu’il n’y aura pas

de prisionniers, on se défend à

mort dans ce genre de bataille.

Cela rend les Français féroces

comme des lions» (Laisse 142). A ferocidade típica do leão é agora atribuída aos

franceses.

Tendo em conta a extensa simbologia cristã atribuída ao leão, esta associação aos

povos francês, é na verdade a associação do leão aos missionários da Cristandade. Aos

servos de Carlos Magno cabia a missão de expandir o Cristianismo e,

consequentemente, o seu Império, da mesma forma que ao leão cabia a função de agir

como mensageiro de Deus.

Ilustração 5

15

A esta nova associação divina, liga-se a característica física do rugido do leão em

associação ao poder do discurso de Deus. Por esta mesma razão, era frequente o

aparecimento de representações do leão nos púlpitos das igrejas medievais.

Devido a uma outra qualidade já referida – a da justiça –, também nos tribunais era

possível encontrar o leão, juntamente com a conhecida expressão: «inter leones et

coram populo» («between the lions and before the assembled people»), justificando-

se a capacidade de justiça do leão pelo seu discernimento em relação às presas, não

atacando apenas qualquer criatura indefesa, e atacando somente em situação de

autêntica necessidade de comida.

Numa outra laisse da Chanson de Roland, podemos procurar incluir a representação do

leão como símbolo do Sol, pela sua ligação à divindade e pela cor do seu pêlo, e como

símbolo da passagem do tempo. Esta última propriedade deriva da representação

comum de um leão cria e um leão adulto encostados de costas um para o outro, de

forma a representar o nascer e o pôr-do-sol, a juventude e a idade adulta, o passado e

o futuro. Na obra, encontramos uma passagem em que se apela a que se deixe os

mortos na posição que se encontram mas que, ao mesmo tempo, seja impedido que

«bête ou lion n’y touche» (Laisse 178). Como interpretação possível, podemos sugerir

uma preocupação com o impedimento da eventual ressurreição dos corpos, da

inevitável passagem da vida para a morte que o leão incarna. É também importante

destacar a importância das posições dos corpos no momento da morte, em relação ao

movimento solar aparente.

Já na laisse 185, numa visão de Carlos Magno, é descrita a sua luta com um leão

imenso, como representativa do confronto entre dois reis – o Rei Imperador e o rei

sarraceno Baligant.

Embora na Chanson de Roland, a vertente demoníaca do leão não seja explorada para

além da medida em que, como dito acima, este surge como representante do inimigo

(Baligant), o urso, à semelhança de numerosos animais que são também símbolos de

Deus (como já vimos o caso do urso), serve também, noutros contextos, como imagem

alegórica do Anti-Cristo. «Le même animal peut-être à la fois une chose et son

16

contraire» (DURLIAT, Marcel. Le monde animal et ses représentations iconographiques

du XIe au XVe siècle, p. 75).

3.3. O Leopardo

Na iconografia da Idade Média, a única coisa que distinguia o leão do leopardo era a

pose em que eram representados: o leão de perfil e o leopardo de frente. A posição

lateral era reveladora de maior dignidade, sendo frequentemente representado na

arte heráldica, de perfil e com as patas fronteiras em direcção ao Céu. Considerava-se

que as qualidades activas dos leões se encontravam na parta fronteira do seu corpo,

sendo representativas da sua natureza divina; por sua vez, a parte posterior do seu

corpo seria relativa à sua humanidade

(à semelhança de Cristo que possuí

também estas duas naturezas).

Para além desta característica, o

leopardo possuí ainda outra que lhe

confere uma posição de inferioridade

em relação ao leão. Nos bestiários,

este não era visto como uma

verdadeira espécie mas apenas como o resultado de um leão com uma pantera, tanto

pelas semelhanças aparentes como pela sua designação (leo-pardus ou leão-pantera).

Por causa desta insinuação, os cristãos viam então no leopardo o símbolo do fruto da

relação incestuosa ou ilegítima, o bastardo.5

Fisicamente, acreditava-se que os leopardos tinham o poder de mudar a cor da sua

pele de forma a iludir outros animais ou pessoas, habilidade equipara à do Diabo de se

disfarçar para ludibriar a humanidade. O leopardo era então o símbolo, do impostor,

que levava as almas a extraviar-se do caminho de Deus.

5 Na heráldica, o uso do leopardo pode significar que o primeiro portador das armas nasceu de uma relação adúltera.

Ilustração 6

17

Esta criatura portadora de pouca dignidade face ao rei dos animais, é representada na

Chanson de Roland durante a primeira visão de Carlos Magno (Laisses 56-57). Nesta

visão, após um urso atacar o seu braço direito (Roland), aparece um leopardo vindo do

lado da região de Ardenne, tentando ferozmente atacar Carlos Magno.

Champagne-Ardenne é, na verdade, uma região francesa localizada a Nordeste do país.

Tendo em conta o contexto da obra, podemos recordar que na zona Nordeste de

Espanha, onde se desenrola a narrativa, está Saragoça, o único local que se mantém

resistente ao poder do Imperador. A imagem do leopardo lembra-nos então o duplo

perfeito de Carlos Magno, a encarnação máxima da ameaça pagã, Baligant. Estes são

semelhantes em poder e em força, assim como o são o leão e o leopardo, mas a

associação de Baligant ao leopardo reforça a sua menor dignidade, contribuindo para a

total coesão da construção das personagens.

3.4. O Cavalo

O cavalo é o animal que de forma mais óbvia se relaciona com a canção de gesta,

devido à sua utilização como veículo de batalha.

Segundo a Mitologia grega, Poseidon é o deus dos cavalos e seu criador, devido à

fluidez dos seus movimentos e a sua rapidez, assemelhando-se, nesse aspecto, às

ondas do mar. O sacrifício de cavalos em honra de Poseidon era, por essa razão,

frequente, associando assim o cavalo à comunicação com o poder superior.

No entanto, a sua dimensão mais importante é aquele em que o cavalo se liga ao plano

do Homem. Neste plano, Platão propõe, em Phaedros, uma imagem, que já vem dos

poetas clássicos, da alma representada por dois cavalos atrelados. O condutor que guia

os cavalos seria o Pensamento, a consciência, enquanto os dois cavalos

representariam, individualmente, o Ardor e o Desejo. Um dos cavalos seria paciente e

sábio, enquanto o outro seria indomável e rebelde. Se a carroça encontrasse um

obstáculo, o cavalo rebelde poderia aproveitar-se disso para travar o outro cavalo e ir

contra o condutor. Se o cavalo desobediente for o mais forte dos dois, a carroça não

18

pode seguir a direcção dos deuses. No entanto, se o cavalo mais forte for o cavalo

obediente, isso torna-se possível (CHARBONNEAU-LASSAY, Louis. Le Bestiaire du Christ,

p. 95-96). Esta analogia da alma que é incapaz de alcançar o reino dos céus sem passar

primeiro por obstáculos exprime também as tendências para o Bem e para o Mal com

que qualquer pessoa pode ver-se confrontada ao longo da vida. Neste plano, o cavalo

surge como uma extensão do humano, do cavaleiro que o doma.

Este ponto é interessante tendo em conta que na iconografia cristã é raro encontrar

representações dos cavalos sem os seus respectivos cavaleiros. Na Simbologia cristão,

o cavalo montado representava Jesus Cristo, sendo que o animal correspondia à sua

parte humana e o cavaleiro ao seu elemento divino.

Esta ligação relaciona-se também com as

características que são atribuídas aos cavalos

nos bestiários, entre elas, a de eterna

lealdade perante o seu cavaleiro. Dizia-se que

os cavalos conheciam os seus mestres,

alterando o seu comportamento perante

diferentes cavaleiros. É também

compreensível esta espécie de simbiose que

se verifica, tendo em conta o permanente

contacto que o Homem medieval tem com o

cavalo.

A Chanson de Roland refere inúmeros cavaleiros em batalha, no entanto é interessante

notar a posição que o cavalo ocupa no contexto da obra. Apesar da sua lealdade e

relação íntima com os cavaleiros, a narrativa indica-nos apenas o nome de alguns

cavalos, referindo em maior número os nomes das espadas de cada cavaleiro (por

exemplo, Veillantif6, o nome do cavalo de Roland, é mencionado cinco vezes, enquanto

o da sua espada, Durendal, é mencionada sete).

6 O nome do cavalo de Roland contribui para a estrutura harmoniosa de uma obra marcada pela não passagem do tempo. Veillantif (vieil + antif) é denunciador desta situação.

Ilustração 7

19

Cavalo e cavaleiro são como um só, dispensando-se a referência ao nome dos animais

que são recebem qualquer tipo de destaque individualmente.7

Isto acontece também porque a dimensão afectiva do animal nesta obra (e, como já

mencionado, em todas as canções de gesta da mesma altura) está totalmente fora de

questão. Roland vê o seu cavalo morrer sem fazer qualquer tipo de observação. No

entanto, tenta quebrar a sua espada, com a preocupação de não a deixar ir parar às

mãos dos pagãos, seus adversários. Por outro lado, a importância dada às espadas dos

restantes cavaleiros faz com que mesmo estes pareçam apenas importar como

representantes da missão que lhes foi incumbida, sendo que a espada de Roland surge

quase como que um alter-ego do mesmo. A espada é o símbolo do seu caminho na

direcção de Deus e da sua determinação na missão de espalhar a Cristandade.

Outro aspecto relevante é referido nos bestiários. Quando os cavalos sentem a batalha

aproximar-se, o som das trompetas deixa-os bravos e alegres. Esta característica tem

uma conotação íntima com o espírito épico que se elogiava nas canções de gesta. Um

herói definia-se pela sua alegre aceitação dos sacrifícios, em prol de uma causa, fosse

ela motivada por objectivos pessoais de glória e fama, ou pelo engrandecimento da

sua pátria. Com este aspecto da natureza dos cavalos em mente, podemos ver como a

sua presença na obra pode contribuir para o sentido global da obra, delimitando de

forma precisa os dois lados que movem toda a narrativa. Opõe-se assim o grito de

guerra dos cristãos “Montjoie”, ilustrador do seu sacrifício voluntário e determinação

alegre, à deslealdade de um sarraceno do qual se diz que «jamais personne ne l’a vu

plaisanter ni rire» (Laisse 113).

Simbolicamente, importam também as cores dos cavalos, podendo conotá-los de

forma positiva ou negativa. No entanto, em Chanson de Roland os cavalos importam

exclusivamente como meros utensílios de combate. Para os cavaleiros da canção de

gesta, a única particularidade do cavalo que lhes interessa é a sua capacidade

enquanto «rapides chevaux de combat» (Laisse 90).

7 Em relação a esta união, é interessante a referência ao costume que data, especialmente, do primeiro milénio da nossa era, de enterrar cavalo e cavaleiro numa única campa.

20

3.5. Serpentes, víboras, dragões e demónios

Na Laisse 185 da Chanson de Roland, num sonho premonitório de Carlos Magno,

«serpents, vipères, dragons, démons (…)» precipitam-se sobre os Franceses,

representando o exército de Baligant. O inimigo é então descrito através de animais

frequentemente designados como serventes do Diabo.

A serpente é dos animais mais frequentemente

conotados de forma negativa, pois esta é a

protagonista do episódio da rendição de Eva à

tentação. Eva é então influenciada pela serpente que

a leva a comer o fruto proibido, dizendo-lhe que tal

transgressão não a matará. Assim, a serpente ganha

a reputação de mentirosa e traiçoeira. É também

frequentemente representada com a cara de uma

mulher, enfatizando esta sua relação com a mulher

pecadora (Eva por oposição a Ave virgem/mulher

pura).

A sua capacidade de enganar pela palavra surge também associada ao seu veneno e à

sua língua que surge representada como dardos ou setas aguçadas, de forma a realçar

o mal causado pelas palavras traiçoeiras e falaciosas. Em relação às suas características

físicas importa também notar a oposição entre o direito, o caminho de Deus, e o

torcido e angular que representa o corpo da serpente. Lembramos assim a expressão:

«Paien unt tort e chrestïens unt dreit» traduzido para inglês por Simon Gaunt: «Pagans

are wrong and Christians are right» (Gender and genre in medieval French literature,

p.30). Ou, em La Chanson de Roland, «A nous le bon droit, à ces canailles le tort»

(Laisse 93). As serpentes têm também uma má visão, podendo esta ser análoga a uma

visão mais elevada, a que vê a luz divina. Para além disso, podemos ler nos Bestiários

que uma serpente nunca ataca o Homem quando está nu, como analogia ao Homem

Ilustração 8

21

despido dos seus pecados. Esta característica lembra também o episódio bíblico da

criação, em que Adão e Eva, nus, apercebem-se que pecaram e apressam-se a vestir-

se, sendo que a nudez representaria o estado puro, enquanto o estar vestido seria, por

sua vez, associado à humanidade corrompida.

No entanto, como acontece comummente, até mesmo a serpente tem o seu lado

luminoso, sendo que a sua característica física da mudança de pele pode ser associada

a uma renovação, restauração e imortalidade, em analogia à Ressurreição. Numa

apropriação mais geral desta simbologia, pode mesmo dizer-se: «like the snake who

sheds his unwanted husk, the believer must cast off the “old man” in order to begin a

new life» (CHARBONNEAU-LASSAY, Louis, Le Bestiaire du Christ, p. 155).

Em associação a esta, refere-se também que quando a serpente vai beber água ao rio

não transporta o seu veneno consigo, atirando-o, em vez disso, para um buraco.

Analogamente, o humano quando bebe da fonte da vida eterna, ou seja, quando vai à

Igreja ouvir a palavra divina, não deve transportar o seu “veneno” de superficialidades

terrestres.

Retomando a primeira linha, o simbolismo negativo, proeminente na serpente está

também intimamente relacionado com o do dragão (criatura considerada tão real

como qualquer outra figurada nos bestiários). Na Bíblia, Satanás é referido como «the

dragon, that serpent of old, who is the Devil and Satan» (Rev 20:2).

O dragão faz parte da categoria das serpentes e é, para a Idade Média, a maior de

todas as criaturas vivas. Como a serpente, está associada a uma tendência

enganadora, assim como a outras inclinações negativas associadas, por exemplo à

raiva e ao ódio. O dragão é a criatura expulsa dos Céus por São Miguel e os seus anjos,

Ilustração 9

22

descendo à Terra para devorar e tentar os devotos. Pode ler-se também que nascia

num sítio muito quente, no clima ardente da Etiópia (associação ao Inferno) e o que a

sua vítima preferida era o elefante, interpretando-se assim o dragão como o diabo que

se aproveita das pessoas magnificentes, desviando-os do caminho recto de Deus.

Nos antigos relatos das batalhas, os dragões em confronto com os heróis costumam

ainda personificar o triunfo do Bem sobre o Mal. Como relato histórico, o Imperador

Constantino encomendou, aliás, uma representação de si próprio a matar um dragão,

simbolizando a sua conversão ao Cristianismo. Esta vitória é então também, a da

Cristandade sobre os infiéis e o paganismo.

Em relação às características que lhe são atribuídas, algumas são semelhantes às do

urso ou do leão, sublinhando a sua magnitude. O dragão é então portador de força,

sabedoria, vigilância, e, por outro lado, da inveja e da avareza.

Desta forma, existem também dragões bons, sendo crença comum na época medieval

que o sangue destes dragões ao serem feridos em disputa com os malévolos, tinha

propriedades curativas8, sendo associado ao sangue, igualmente curativo, tanto do

corpo como da mente, de Cristo.

Opostamente, e em associação directa ao

Diabo, o dragão é a criatura que ilumina o céu,

da mesma forma que o Diabo se faz passar por

um anjo da luz, enganando os menos

perspicazes.

Por sua vez, a víbora (cuja aparência nos

Bestiários tanto se assemelha à das serpentes

como à dos dragões) é referida pelo Santo

Ambrósio como a criatura mais vil que existe. Nos bestiários, a sua caracterização

8 Só no séc. XVII é descoberta a verdadeira natureza do que, na Idade Média, se acreditava ser sangue seco de dragão que havia caído no deserto durante algum monstruoso confronto no céu. Tratava-se, na verdade, de uma substância vegetal que tinha a sua origem nos frutos secos de diferentes tipos de palmeiras.

Ilustração 10

23

resume-se ao fenómeno que se dá no momento do nascimento das suas crias. O

nascimento das crias da víbora acontece, perturbadoramente, de forma forçada. Estas

não esperam para serem expelidas, pelo contrário forçam a sua saída através do corpo

da mãe, causando a sua morte. Também no momento da concepção, o macho cospe a

sua semente para dentro da fêmea que, levada pelo desejo arranca a sua cabeça Assim

morrem os dois progenitores, um durante a relação sexual e outro no momento do

parto.

Esta característica apresenta-se nos textos medievais como o ponto de partida para

um sermão acerca das relações entre homem e mulher, advertindo para os pecados

que advêm de ceder a vícios como o desejo ou a luxúria – exemplo do adultério.

Como interpretar então o aparecimento destas vis criaturas em associação ao exército

de Baligant? Desde a serpente que desvia Eva do percurso de Deus, à subversão do

dragão como símbolo do triunfo do Cristianismo, à víbora que adverte os pecadores

com um fim trágico …Todos estes animais simbólicos contribuem afinal para a visão do

leitor de dois lados perfeitamente distintos na obra: o dos cristãos, os heróicos leões,

bravos e dignos guerreiros; e o dos pagãos, indignos veneradores e representantes de

Satanás.

Ilustração 11

24

Conclusão

«La mémoire a deux portes, la vue et l’ouïe; et chacune ouvre sur un chemin qui y conduit, la

peinture et la parole.» (FOURNIVAL, Richard, 1250. Le Bestiarie d’Amour apud. BIANCIOTTO,

Gabriel. Bestiaires Du Moyen Age, p. 219)

A partir deste trabalho é possível conceber a cultura medieval como uma cultura dos

sentidos. A memória é construída tanto a partir da palavra ouvida como a partir da

iconografia. Apercebemo-nos então que a dimensão visual tinha uma grande

importância, afigurando-se mesmo como instrumento democratizador, que, por um

lado, permitia um maior acesso ao conhecimento, mas servia também como forma de

difundir a religião cristã, com a qual a sociedade medieval tem um grande elo de

ligação.

O recurso aos símbolos revela então uma cultura onde nada assume um valor neutro.

A partir da simbologia animal, as representações e os textos relativos aos animais

alimentam o imaginário do Homem medieval, ao mesmo tempo que o personificam e

procuram formar.

Neste trabalho, o foco foi virado para a simbologia cristã e para a tradição dos

bestiários, no entanto, houve o intuito de analisar estes textos não só no contexto da

Chanson de Roland mas também como reflexo da mentalidade de uma época que

durante muito tempo foi ignorada mas que, afinal, é tão rica culturalmente.

Ao conhecermos de forma mais profunda os símbolos que regiam as sociedades

anteriores à nossa, adquirimos também um maior conhecimento da nossa própria

simbologia, das nossas origens e, até mesmo, das nossas características enquanto

humanos em permanente contacto com a Natureza.

25

Bibliografia

1. Corpus:

Chanson de Roland (Pierre Jonin ed.), Collection Folio, Editions Gallimard, 1979.

2. Estudos:

DURLIAT, Marcel. Le monde animal et ses représentations iconographiques du

XIe au XVe siècle. In: Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes

de l'enseignement supérieur public. 15e congrès, Toulouse, 1984. pp. 73-92.

L’animal exemplaire au Moyen Âge V-XV siécles (1999) (dir. Jacques Berlioz,

Marie Anne Polo de Beaulieu). Presses Universitaires de Rennes, Collection

«Histoire»

PASTOREAU, Michel. L’ours – Histoire d’un roi déchu. Paris: Seuil, 2007

ZINK, Michel. Le monde animal et ses représentations dans la littérature du

Moyen Âge. In: Actes des congrès de la Société des historiens médiévistes de

l'enseignement supérieur public. 15e congrès, Toulouse, 1984. pp. 47-71.

3. Outras obras citadas:

BAUDELAIRE, Charles (1972). Les fleurs du mal. France: Librairie Générale

Française

BIANCIOTTO, Gabriel (1980). Bestiaires Du Moyen Age. Paris: Stock + Moyen

Age

CHARBONNEAU-LASSAY, Louis (1940). Le Bestiaire du Christ. Desclée: De

Brouwer & Cie. France.

26

GAUNT, Simon, Gender and genre in medieval French literature, 1995.

Cambrige: Cambridge University Press

SOLMS, E. De. Bestiaire Roman: Textes Médiévaux (1977). La Pierre-qui-Vire:

Zodiaque, Print.

The Aberdeen Bestiary: http://www.abdn.ac.uk/bestiary/bestiary.hti <29.

Maio. 2013>

The Bestiary: a book of beasts:

http://uwdc.library.wisc.edu/collections/HistSciTech/Bestiary <29. Maio. 2013>

Christ Story Bestiary: http://ww2.netnitco.net/~legend01/beast.htm <29. Maio.

2013>

The Medieval Bestiary: http://bestiary.ca/index.html <29. Maio. 2013>

4. Ilustrações:

Ilustração 1: British Library, Harley MS 4751, Folio 15r - «A mother bear licks

her cub into shape»

Ilustração 2: Profeta Eliseu e os 2 ursos

Ilustração 3: PHÉBUS, Gaston, Livre de Chasse, De l’ours et de toute sa nature.

France, Paris, XV siècle. BnF, Départment des manuscrits, Français 616 folio 27

v.

Ilustração 4: PHGCOM, Coin of Alexander the Great, III, 2007, self-made,

photographed at the British Museum

27

Ilustração 5: British Library, Royal MS 12 C. xix, Folio 6r - «The lion is the king of

the beasts»

Ilustração 6: Koninklijke Bibliotheek, KB, KA 16, Folio 61r - «The offspring of a

mating between a lion and a pard»

Ilustração 7: Bodleian Library, MS. Ashmole 1511, Folio 32v - «A spirited and

finely-drawn horse.»

Iustração 8: Rebecca Kennison, Adam, Eve, and the (female) serpent at the

entrance to Notre Dame Cathedral in Paris, 1991

Ilustração 9: Kongelige Bibliotek, Gl. kgl. S. 1633 4º, Folio 57r - «The snake

crawls with hidden steps»

Ilustração 10: Morgan Library, MS M.81, Folio 78r - «A dragon attacks its

enemy, the elephant. »

Ilustração 11: Museum Meermanno, MMW, 10 B 25, Folio 40r - «The young of

the viper eat their way out of their mother's side»


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