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Tentativas de fazer algo da vida - Google Groups

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Transfiguração, Rafael .

Para André Botelho

Terça, 1o de janeiro de 2013Continuo não gostando de velhos neste novo ano. Do arrastar de

pés por trás dos andadores, da impaciência fora de propósito, doeterno reclamar, dos biscoitinhos com chá, dos gemidos e doslamentos.

Eu mesmo tenho oitenta e três anos e três meses.

Quarta, 2 de janeiroUm monte de açúcar de confeiteiro se espalhou. Para poder

limpar direito a mesa com um paninho, a sra. Smit pôs a travessacom folhados de maçã numa cadeira por um instante.

Nisso a sra. Voorthuizen chegou e, sem nem perceber, sentou-secom seu traseiro enorme sobre os folhados.

Só quando a sra. Smit foi procurar a travessa para colocá-la denovo na mesa alguém teve a ideia de conferir embaixo da sra.Voorthuizen. Quando ela se levantou, três folhados estavamgrudados em seu vestido florido.

— Combinaram perfeitamente com a estampa — disse Evert. Euquase engasguei de tanto rir.

Esse maravilhoso começo de ano deveria ter dado margem auma gargalhada geral, mas em vez disso provocou uns quarenta ecinco minutos de queixumes sobre quem seria o culpado. Recebiolhares de reprovação vindos de todos os lados por aparentementeter achado graça. E eu... eu murmurei um pedido de desculpa.

Em vez de rir ainda mais alto, murmurei um pedido de desculpa.Eu, Hendrikus Gerardus Groen, sou sempre correto, atencioso,

simpático, educado e prestativo. Não que eu realmente seja tudoisso, mas não me atrevo a ser diferente. Quase nunca digo o quequero dizer. Sempre escolho o caminho mais seguro. Minhaespecialidade: agradar a gregos e troianos. Meus pais tiveram visãode futuro quando me nomearam Hendrik: não é fácil encontraralguém mais obediente. Como dizia o livrinho escolar: “Não conheceo Hendrik, que sempre tira o chapéu tão educadamente quandopassa?”. Este sou eu.

Vou acabar numa espiral de depressão, pensei. Foi aí que tomei a

decisão de também dar voz ao verdadeiro Hendrik Groen: duranteum ano inteiro, darei minha opinião, sem censura, sobre a vidaneste lar de idosos no norte de Amsterdã.

Se eu morrer antes do fim do ano, será por força maior. Nessecaso, vou pedir a meu amigo Evert Duiker que leia em meu funeraluma pequena seleção de meu diário. Quando eu estiver deitadonum caixão na salinha do crematório O Horizonte, bem lavado earrumado, o desconfortável silêncio deverá ser quebrado pela vozrascante de Evert, que lerá algumas passagens divertidas para umpúblico desconcertado.

Só uma coisa me preocupa: e se Evert morrer antes de mim?Isso não seria elegante da parte dele, principalmente porque

tenho mais doenças e tumores. A gente precisa poder contar com omelhor amigo. Vou falar com ele sobre isso.

Quinta, 3 de janeiroEvert ficou entusiasmado, mas não quis prometer que viverá mais

do que eu. Também tem lá suas preocupações. A primeira é queele, depois de ler meu diário, teria que procurar outro lugar paramorar. A segunda preocupação é o estado de sua dentadura. Issopor causa de uma tacada de bilhar descuidada do sr. Vermeteren.Desde que teve catarata no olho direito, Vermeteren precisa deajuda para mirar. Evert, sempre solícito, estava atrás dele dandoinstruções, com o nariz na altura do taco.

— Um pouco mais à esquerda, depois ataque com profundidadee...

E, antes que ele tivesse terminado, Vermeteren bateu o taco comforça bem no meio da dentadura de Evert. Carambolas!

Evert agora anda por aí como se estivesse trocando de dentição.Mal dá para entender o que ele diz, de tanto que sibila. Essadentadura precisa ser arrumada antes que ele tenha que fazer aleitura em meu funeral. Por azar, o protético teve síndrome deesgotamento. Duzentos mil euros anuais, uma bela de umaassistente, três viagens por ano ao Havaí e, ainda assim,estressado. Como é possível? Talvez não tenha sabido lidar comtantos velhos dentes postiços em que os restos de comidapermaneciam por tanto tempo que até criavam larvas. Por assimdizer.

Os bolinhos de Ano-Novo que eles estão servindo lá embaixo, nasala de estar, só podem ter vindo de uma loja de caridade. Ontemde manhã peguei um por educação e levei vinte minutos paracomer, sem falar que fingi que ia amarrar o cadarço para poderenfiar o último pedaço na meia.

Por isso é que as travessas ainda estão cheias. Normalmente,tudo o que é gratuito desaparece num piscar de olhos aqui.

Sempre servem café às 10h30 na sala de estar. Quando às 10h32o café ainda não chegou, os primeiros moradores começam a olharexasperados para o relógio. Como se tivessem mais o que fazer.Com o chá, que deve ser servido às 15h15, é a mesma coisa.

Um dos momentos mais emocionantes do dia: que tipo de biscoitovai ser servido hoje? Anteontem e ontem, no café e no chá, noentanto, bolinhos velhos de Ano-Novo. Porque é claro que “nós” nãovamos jogar comida fora. Preferimos morrer engasgados com ela.

Sexta, 4 de janeiroOntem fiz um passeio até a floricultura e comprei bulbos num

vasinho. Daqui a uma semana, quando os jacintos florirem, tereialcançado uma nova primavera.

A maioria dos quartos deste asilo continua com os enfeites deNatal até abril, junto a espadas-de-são-jorge pra lá de velhas e aprímulas em estado terminal. “Pecado jogar fora.”

Se a natureza pode desempenhar um papel alentador na vida deuma pessoa, não é esse o caso na sala-quarto de um velhoholandês. Ali o estado das plantas, em geral, é um reflexo fiel dasituação em que seu cuidador se encontra: à espera de um fimangustiante. Por não terem mais nada a fazer, ou por estarem muitoesquecidos, os velhinhos regam as plantas três vezes por dia. Como tempo, nem as espadas-de-são-jorge resistem.

A sra. Visser me convidou para tomar chá amanhã à tarde. Eudevia ter recusado, nem que fosse só porque ela fede, mas disseque iria visitá-la com prazer. Lá se foi minha tarde. Deus, como eusou paspalho. No momento decisivo, não consegui pensar emnenhuma desculpa e, agora, vou ter que aguentar mexericos e boloseco. Como ela consegue em tão pouco tempo transformar os bolosmais molhadinhos em pedaços de papelão, é um mistério. Paracada fatia é preciso três xícaras de chá. Amanhã vou tomar umaatitude e recusar a segunda fatia. Será o início de uma nova vida.

Uma nova vida de sapatos bem lustrados. Passei metade damanhã fazendo isso. Com os sapatos, até que foi rápido. Perditempo mesmo foi para tirar a graxa das mangas da minha camisa.Mas agora estão brilhando. Os sapatos. As mangas, no final, acabeienrolando. Não consegui mais limpar.

Com certeza isso vai dar margem a algum comentário. “Como osenhor consegue deixar as mangas sempre tão sujas, sr. Groen?”

A vida aqui é feita de nunca ou sempre. Um dia dizem que acomida “nunca chega na hora e está sempre quente demais” e nodia seguinte que “sempre chega cedo demais e nunca está quente”.

Já fiz, bem delicadamente, as pessoas se lembrarem dedeclarações anteriores bastante conflitantes, mas lógica não é oforte por aqui. “Com certeza, o senhor é quem sabe melhor, não é,sr. Groen?”

Sábado, 5 de janeiroOntem o jantar foi novamente uma festa: tinha nasi goreng no

cardápio. A maioria dos velhos rapazes e moças daqui é fã de purêcom legumes. Não adianta vir com frescuras exóticas para cimadeles. Quando o espaguete chegou à Holanda, em meados dosanos 1960, aquilo já era demais. Não cabia no esquema: segunda-feira chicória, terça couve-flor com molho branco, quarta carnemoída, quinta vagem, sexta peixe, sábado sopa com pão e domingocarne assada. Quando queriam fazer algo muito diferente, comiamcarne moída na terça e depois passavam o resto da semanaperdidos.

Não somos fãs de frescuras estrangeiras. Em geral, podemosescolher com uma semana de antecedência entre três menusdiferentes, mas de vez em quando dá problema. Ontem, por algumarazão desconhecida, só tinha nasi goreng , o arroz frito indonésio.Entrega errada ou qualquer coisa assim. Com certeza não foi culpado nosso cozinheiro.

Então, a escolha era nasi ou nasi . Pessoas com dietascomplicadas receberam pão.

Houve uma onda de ultraje. A sra. Hoogstraten van Dam, queinsiste em ser chamada assim, pegava só os pedacinhos de ovocozido; Van Gelder não “engolia” o nasi , mas devorou um pote delegumes em conserva; e o gordo Bakker exigiu, em voz bem alta,molho de carne sobre o seu arroz.

Meu amigo Evert, que às vezes come aqui quando está cansadode seus próprios dotes culinários, ofereceu molho de pimenta paraseus desavisados companheiros de mesa.

— Vocês querem um pouco de ketchup no nasi ?

Depois se fez de joão sem braço quando a sra. De Prijker tossiu adentadura na conserva de legumes. A mulher foi removida porenfermeiros quando já perdia o fôlego, e na sequência Evert circuloucom a dentadura para que um e outro a experimentassem, como sefosse o sapatinho de cristal da Cinderela. E sua cara de inocentequando foi chamado a comparecer à chefia do departamento? Eleaté ameaçou denunciar à saúde pública que tinha “encontrado” umadentadura na conserva de legumes.

Antes do jantar ainda fui tomar chá com a sra. Visser. Suaconversa é ainda mais sem graça que seu chá. Disse-lhe que omédico tinha me proibido de comer bolo. E por quê? Falei que erapor causa de minha contagem sanguínea. Está um pouco alta, devinte a vinte e cinco. Deixei escapar essa bobagem sem pensar,mas ela achou que fazia sentido. Acabei tendo que levar três fatiasde bolo para quando a contagem baixasse. Elas estão agora nofundo do aquário no terceiro andar.

Domingo, 6 de janeiroComeço a gotejar cada vez mais. Cuecas brancas são muito boas

para destacar manchas amarelas. Cuecas amarelas seriam maispráticas. Morro de vergonha das moças da lavanderia. Então, o quefaço agora é esfregar à mão as piores manchas antes de mandarlavar. Digamos que seja uma pré-pré-lavagem. Se eu nãoentregasse nada, poderia levantar suspeitas. “O senhor pôs mesmocuecas limpas, sr. Groen?”, perguntaria a gorda do serviço delimpeza, que recolhe a roupa suja. “Não, dona gorda do serviço delimpeza, esta cueca velha está tão grudada em meu traseiro quevou ficar com ela para o resto da vida”, gostaria de responder.

É um dia difícil: o corpo range em todas as juntas. Nada podeconter o declínio. Há no máximo um dia em que uma ou outra coisaincomoda menos, mas melhorar mesmo não vai melhorar nuncamais. O cabelo não vai de repente voltar a crescer. Ao menos nãona cabeça – apenas no nariz e nas orelhas. A artérias não vão seabrir de novo. Os inchaços não desaparecerão, e a torneira láembaixo não deixará de pingar. É uma via de mão única para ocaixão. Você jamais ficará mais jovem, nem um dia, nem uma hora,nem um minuto.

Estou aqui reclamando como um velho. Se estou mesmo comvontade de fazer isso, melhor ir lá para baixo me sentar na sala deestar. Lá esse é o passatempo número um. Acho que nunca passamais de meia hora sem que alguém mencione alguma doença.

Acho que estou meio melancólico. Dizem para a gente aproveitara velhice, mas, que droga, nem sempre é fácil.

Hora de dar um passeio, afinal é domingo à tarde. Em seguida,um pouco de Mozart com um belo copo de conhaque. Talvez passar

na casa de Evert, que, com seu jeitão sem meias palavras, temboas qualidades terapêuticas.

Segunda, 7 de janeiroFiquei sabendo que começaram ontem uma investigação sobre a

morte repentina dos peixes do terceiro andar. Tinha bastante boloboiando na água.

Não foi muito inteligente de minha parte jogar o bolo da sra.Visser no aquário. Se ela ficar sabendo que os peixes morreram deoverdose de bolo molhado, as pistas levarão direto a mim. Tenhoque preparar minha defesa e mais tarde vou procurar o jurisconsultoDuiker para pedir uns conselhos. Evert é especialista em mentirasbrancas.

Animais de estimação são proibidos nesta casa de repouso, comexceção de peixes e passarinhos, “desde que não tenham mais quedez e vinte centímetros de comprimento, respectivamente”, segundoestá escrito no regulamento. Isso é para evitar que criemos tubarõese focas.

Muitos donos de animais sofreram quando foram separados sempiedade de seus cães e gatos ao se mudar para o Lar do Ocaso.Não importa quão calmo e tranquilo, quão velho e doente oquadrúpede seja, regras são regras: vai para o asilo de animais.

“Não, minha senhora, não faz diferença se o Rakker é o único serneste mundo que se importa com a senhora; nós não podemos abrirexceções.”

“Certo, seu gato passa o dia inteiro na janela, mas, se permitirmosum gato, logo virá alguém querendo três dogues dinamarqueses noparapeito. Ou um crocodilo roxo.”

A sra. Brinkman é a recordista aqui. Conseguiu esconder umvelho bassê no armarinho da pia durante sete semanas, antes quefosse descoberto. Provavelmente houve uma traição na história.

Todos aqui viveram os anos de guerra e, ainda assim, são capazesde delatar um cãozinho idoso para a diretora. E, em vez de adiretora punir severamente o colaboracionista e mandá-lo para outrolugar, preferiu deportar o cachorrinho para o asilo de animais. Ocãozinho ainda chorou lá por dois dias inteiros e depois morreu detristeza. E onde estava a sociedade protetora dos animais?

A diretora achou melhor não contar nada para a sra. Brinkman.Quando, depois de três dias, ela descobriu o bonde certo parachegar ao asilo de animais, seu cachorrinho já estava enterrado.

A sra. Brinkman perguntou se, quando ela mesma morrer, seucachorrinho poderia ser reenterrado a seu lado. Foi informada deque “isso vai contra as regras”.

Amanhã de manhã tenho que ir ao médico.

Terça, 8 de janeiroHavia um aviso pregado no painel de recados ao lado do

elevador.Foi encontrada uma grande quantidade de bolo no aquário do

terceiro andar. Os peixes morreram por causa do bolo. Quem puderdar alguma informação sobre esse incidente é chamado acomparecer o mais rapidamente possível à sala da sra. De Roos,chefe do departamento. Se desejado, o anonimato será garantido.

Às 11h, fui até a sra. De Roos. Que estranha brincadeira dodestino um sobrenome assim, que remete a uma rosa. Se aludisse auma urtiga já era demais para ela.

Seria de esperar que pessoas muito feias, para compensar,fossem um pouco mais gentis, mas aqui parece que acontece ocontrário: ela é um sólido muro de mau humor.

Enfim: sra. De Roos, portanto.Contei a ela que talvez pudesse oferecer alguns esclarecimentos

sobre o incidente do bolo. Ela imediatamente tornou-se todaouvidos. Disse-lhe que não quis recusar o bolo feito pela sra. Vissere, então, tinha deixado as fatias num pratinho na mesa da copa doterceiro andar, acreditando que um dos moradores apreciaria opresentinho anônimo. Para minha decepção, tive que constatar que,de uma maneira ou de outra, o bolo terminara dentro do aquário emeu pratinho azul havia desaparecido.

A sra. De Roos escutava com franca desconfiança. Por que eumesmo não tinha comido? Por que justamente no terceiro andar?Alguém podia confirmar minha história?

Pedi que ela mantivesse o episódio entre nós. Ela disse que ia vero que poderia fazer por mim.

Em seguida, foi imediatamente descobrir como a sra. Visser tinhaconseguido assar um bolo. Era proibido cozinhar nos quartos. Aindame apressei em dizer que não estava certo de que ela é quem otinha feito, mas já era tarde demais: o incidente do bolo havia setornado público. Eu perderia a simpatia da sra. Visser, o que não eraem si um desastre. Mas a desconfiança nesta ala, na qual isso jáexiste de sobra, seria alimentada durante semanas, e as fofocaspipocariam por toda parte.

Também fui ao médico. Ele estava doente. Se na segunda-feiraele ainda não estiver melhor, virá um substituto. Em caso deemergência, podemos ir ao médico de uma casa de repousoconcorrente. Tem gente que prefere morrer a deixar “o charlatão doLar do Crepúsculo” olhar seu enrugado saco de ossos. Já outrosquerem ser levados de helicóptero para o hospital por qualquerpum. Para mim, não faz diferença qual médico me diz que já não hámuito a ser feito.

Quarta, 9 de janeiroFiquei um pouco chateado ontem com a história dos peixes

mortos. Por causa dos nervos e do chá da sra. Visser, tive uma fortediarreia. Passei metade da manhã no banheiro com uma revistavelha que peguei emprestada na sala de estar.

Bonito nome, “sala de estar”, mas vende gato por lebre. “SalãoRRR” seria melhor. Os três erres significando: resmungar, reclamare ridicularizar. Tarefas diárias, para alguns.

Evert deu uma passada aqui e me contou pela porta do banheirosobre os mais recentes desdobramentos: agora todo mundodesconfia de todo mundo e vê em cada morador um potencialassassino de peixes. Minha ausência provocou suspeita. Pergunteia Evert se ele poderia espalhar casualmente a notícia da minhadiarreia, como um tipo de álibi. Eu mesmo não podia fazer mais quedeixar a porta do banheiro e a do corredor um pouco abertas.Normalmente, aguento o cheiro, mas agora estou nauseado de mimmesmo. Em duplo sentido, porque eu realmente sou um bosta, umametáfora que neste caso cai muito bem.

Falando em mau cheiro, tenho que dar uma saída. Depois de umdia comendo torradas com comprimidos de carvão ativado, atrevo-me a me aventurar lá fora novamente. Vou procurar uma celidônia-menor, que segundo o jornal e o calendário da rede de observaçãofenológica (ou algo assim) é o primeiro sinal da primavera. Se eu,por acaso, além de uma celidônia-menor, encontrar também unha-de-cavalo, cicuta-dos-prados ou violeta-de-cheiro, aí a primavera érealmente um fato. Só não sei que cara essas plantinhas têm.

A natureza se adiantou em algumas semanas. Mas – má notíciapara as aves migratórias que neste ano resolveram ficar em casa –

o frio vai voltar.

Quinta, 10 de janeiroEste asilo tem um jardim bonito, que, por razões desconhecidas,

fica fechado. No inverno, ninguém pode entrar. Provavelmente porexcesso de zelo. A direção é que sabe o que é melhor para osmoradores.

Portanto, se a pessoa quer tomar um ar fresco nesta época doano, tem que sair e andar nas imediações da casa de repouso.Prédios feios do fim dos anos 1960. Tristes gramados cobertos delixo. Quase dá para imaginar carrinhos da prefeitura passando ànoite não para recolher, mas para esparramar lixo pelas ruas epracinhas. A gente caminha num mar de latinhas, pacotes desalgadinhos e jornais velhos. Os primeiros moradores dessesprédios se mudaram quase todos para alguma casa geminada emPurmerend ou Almere. Só os que não tinham recursos ficaram.Famílias turcas, marroquinas e surinamesas preencheram osapartamentos livres. Isso resultou numa mistura pouco agradável.

Meu raio de ação atualmente é de mais ou menos quinhentosmetros para cada lado, com um banco para uma pausa bem nomeio. Não aguento muito além disso. O mundo está ficandopequeno. Saindo da casa de repouso, tenho quatro rotas diferentesde mais ou menos um quilômetro.

Evert acabou de passar aqui. Ele está adorando o alvoroço porcausa dos peixes mortos e elaborou um plano para pôr mais lenhana fogueira. Quer fazer um segundo ataque, desta vez combiscoitos judaicos. Ontem, pegou o ônibus até um supermercado aalguns quilômetros daqui para comprá-los. No mercadinho anexo aoasilo eles se lembrariam de sua compra. Os biscoitos agora estãoem seu armário. Perguntei se estavam seguros lá.

— Este é um país livre e todos têm direito de esconder quantosbiscoitos quiserem em casa — disse ele.

O tipo de biscoito me incomoda um pouco. Mas é umabrincadeira; são biscoitos rosados. Ele espera que provoquem umbonito efeito de cor.

Sábado, 12 de janeiroA diretora, sra. Stelwagen – com certeza ainda vamos falar sobre

ela outras vezes –, anunciou uma medida ambiental: os termostatosnos aposentos dos residentes não podem ser regulados acima devinte e três graus. Se os velhinhos ainda tiverem frio, que coloquemum agasalho, essa é a mensagem. Tem uma senhora nascida naIndonésia que costuma deixar a temperatura em vinte e sete graus.Há potinhos com água por toda parte em seu quarto, para aumidade do ar. As plantas tropicais ficam lindas. Não há umtamanho máximo para as plantas nos quartos, mas imagino queStelwagen já esteja mexendo os pauzinhos para isso.

A sra. Stelwagen é sempre simpática, está constantementedisposta a escutar e a fazer uma observação alentadora,escondendo sob um verniz de empatia uma dose doentia depresunção e desejo de poder. Ela tem quarenta e dois anos e já é achefe aqui há um ano e meio, mas está sempre disposta a puxar osaco ou o tapete para ser promovida, dependendo de quem está nafrente. Venho observando-a meticulosamente há um ano.

Também tenho uma informante: a secretária dela, sra.Appelboom. Anja Appelboom foi durante vinte e três anos secretáriado antigo diretor, o sr. Lemaire, que não sobreviveu aos cortes defuncionários depois da última fusão e se aposentouantecipadamente. Ela tem mais dois anos até se aposentar e estádeterminada a não se deixar humilhar por Stelwagen, que arebaixou com a nomeação de uma nova gerente. Anja ainda temacesso às atas de todas as reuniões e a notas confidenciais. Atéalguns anos atrás, ela era minha vizinha e me salvou do asilo deindigentes, conseguindo um lugar para mim aqui. Talvez eu fale

mais sobre isso outra hora.Tomo café com ela quase toda quinta-feira de manhã. Nesse

horário, a diretora e a gerente estão em reunião com os chefes dosdepartamentos e a diretoria regional. Tornar-se diretora regional é opróximo passo que Stelwagen quer dar.

Nessa hora, Anja e eu conversamos. Volta e meia ela pergunta:“Você pode guardar um segredo?”. E aí vem um pequeno desabafosobre as manipulações de Stelwagen. Já colecionamos algumas.

Domingo, 13 de janeiroOntem à noite, Evert jogou seis biscoitos no aquário do segundo

andar. Os peixinhos comeram até explodir. Os corpinhos estãoboiando em meio aos farelos. Irrompeu-se o maior caos na casa.

Durante o café, ele simplesmente fez que ia ao banheiro, subiu aescada, olhou bem ao redor e jogou na água os biscoitos que levavasob o casaco. O saco plástico foi direto para o lixo, o que em termosde pistas foi um pouco bobo, mas por sorte a faxineira agora jáesvaziou todas as lixeiras.

O aquário fica num canto bastante escuro, e ontem à noiteninguém notou nada. A operação não foi de todo sem riscos, porquese fosse pego ele talvez tivesse que chamar imediatamente ocaminhão de mudança. É provável que, no fundo, ele nem receasseser pego, mas se fosse posto contra a parede iria negar, mentir econtinuar jurando de pés juntos. De acordo com ele, é assim que ojogo deve ser jogado. Sua filosofia: viver não é mais que matar otempo da maneira mais agradável possível. Só assim se pode curtira vida. Eu o invejo. Mas aprendo rápido.

Estava bem tenso ontem, porque Evert tinha me avisado antessobre a investida, de maneira que eu pudesse ter um bom álibi. Nãofoi fácil. Tive que esperar na sala de estar até que dois moradoresdo meu andar subissem.

— Vou com vocês. É mais agradável ter companhia.O sr. e a sra. Jacobs me olharam com certo estranhamento.Hoje de manhã, um pouco depois das nove, foi dado o alarme. A

caminho da igreja, a sra. Brandsma viu os peixes boiando de costas.Parece que ainda houve uma tentativa de abafar o caso, mas,quando foi chamar a enfermeira de plantão, Brandsma foi contando

para todos que encontrava no caminho. Meu vizinho acabou debater em minha porta:

— Nem imagina o que acabei de ouvir...Estou ansioso para escutar o que vão dizer daqui a pouco, na

hora do café.

Segunda, 14 de janeiroMais crueldade animal: a sra. Schreuder aspirou seu canário sem

querer quando limpava a gaiola. Quando, depois de algunsdesesperadores minutos, ela finalmente conseguiu abrir o aspiradorde pó, já não havia muito de seu alegre assobiador. Ela devia terdesligado o aparelho imediatamente. Seu Pietje ainda sobrevivia,mas sucumbiu após alguns instantes. Schreuder está inconsolável econsumida pela culpa.

A assistência dada pelos funcionários à vítima resumiu-se aoconselho de guardar a gaiola o mais rápido possível.

Todos aqui têm opinião formada sobre biscoitos num aquário,mas, se você perguntar o que acham da guerra na Síria, irão olhá-locomo se lhes tivesse pedido que explicassem a teoria darelatividade. Ter alguns peixinhos boiando é bem mais grave que aexplosão de um ônibus cheio de mulheres e crianças num paísdistante.

Mas deixemos de hipocrisia: estou me divertindo com o escândalodos peixes, não posso negar. A consternação que tomou conta detodos os moradores é impressionante. Daqui a pouco vou de novopara a sala de estar ter uma prazerosa conversa sobre peixes.

O inverno chegou. Ainda não caiu nenhum floco de neve, masontem já vi o primeiro velhinho saindo com meias de lã por cima dossapatos. Para não escorregar.

Terça, 15 de janeiroCaiu a primeira neve do ano, o que significa: ninguém mais sai e

todos enchem a despensa. Lá embaixo, no nosso mercadinho, jánão se encontram mais biscoitos amanteigados nem chocolate. Poisé, a guerra.

Graças a Deus a juventude de hoje não passou por isso, somospraticamente a última geração que viveu a guerra e, em breve, todomundo estará livre das eternas velhas histórias sobre sopa de bulbode tulipa e caminhar sete horas à procura de umas poucascenouras.

O saldo é de sete peixes mortos.Ontem a polícia foi chamada. Os dois jovens agentes realmente

não faziam ideia de como tratar o caso. Nem sombra da prontidãoque a gente sempre vê na televisão. Primeiro, esquadrinharam oaquário por todos os lados. Como se considerassem se eles aindapoderiam ser reanimados.

— É, eles estão mortos — disse um deles.— Provavelmente por causa do biscoito — disse o outro.A diretora tinha dado ordens para que deixassem os peixes

mortos ali boiando como provas do crime. Talvez ela estivessemesmo esperando um patologista, vá saber.

Os agentes, de qualquer maneira, pareciam querer ir embora oquanto antes. A diretora ergueu a voz para exigir uma amplainvestigação, mas o policial mais jovem disse que, nesse caso, seriaprimeiro necessário prestar queixa.

— E pode-se fazer isso agora mesmo?Não, só era possível com hora marcada na delegacia ou pela

internet.

— Sim, mas o que deve ser feito com os corpos, então?O agente sugeriu a lata de lixo.— Mas não deixe por muito tempo. Ou então o vaso sanitário.E logo em seguida os dois deixaram o prédio.— Tenham uma boa noite.A sra. Stelwagen ficou chocada.— Que absurdo! Acho isso um escândalo. Não se pode tratar os

cidadãos dessa forma.Foi bom ouvi-la tão furiosa e impotente. Felizmente, sua

onipotência não vai além dos muros desta casa.

Quarta, 16 de janeiroEvert apareceu para uma visita. A fim de evitar a sala de estar,

fizemos uma caminhada arrastando os pés pela neve: cinco minutosandando, cinco minutos descansando. A escolha é inevitável. Vaiser um andador, um triciclo motorizado ou um minicarro tipo CantaLX ? Três alternativas sexy.

Na semana passada, um garoto de uns dezesseis, dezesseteanos estava se exibindo na escola secundária aqui na esquina comum Canta vermelho-tomate que ele com certeza pegou emprestadoda avó. Ele levava no carrinho as mochilas das meninas maisbonitas da escola até a casa delas. As meninas mesmo iam atrás,de bicicleta. Até hoje nunca vi um rapazinho que andasse numtriciclo motorizado ou com um andador para se divertir. Por essemotivo, minha preferência é um Canta bonito e todo incrementado.Ainda que eu acabe em meio ao monte de motoristas incrivelmenteruins que circulam por aí com uma lata de sardinha daquelas.

Pouco tempo atrás, um Canta sem freio entrou com tudo numaloja de doces, provocando uma devastação de jujubas e sequilhos.Duas gordas ficaram grudadas contra o para-brisa em estado dechoque. O cachorrinho delas estava preso embaixo do pedal dofreio. A realidade supera a fantasia.

Aqui no asilo quase todas as conversas tratam da neve ou dogrande assassinato dos peixes. Os velhinhos imaginam as maisfantásticas teorias da conspiração e alguns não têm pudores emfazer insinuações infundadas: a sra. Greetje D. foi vista por doismoradores no corredor do respectivo aquário perto da hora doassassinato...

O fato de o quarto dela ficar naquele corredor e de ela não poder

entrar pela janela não pareceu argumento forte o suficiente paraessas pessoas. Pobre Greetje, um passarinho que mal pesaquarenta quilos, que sempre desvia o olhar timidamente, mas nuncafez mal a uma mosca nem a um peixe.

Depois da visita da polícia, a diretora realizou uma reuniãoinformativa “para afastar um pouco a intranquilidade”. Comunicouque todos os quartos no segundo andar foram minuciosamenteinspecionados, por mera formalidade. Como se o quarto do culpadoainda estivesse salpicado de migalhas de biscoito. Ninguémperguntou se a diretora tinha direito de inspecionar os quartos. Nemeu. Não ousei.

Na mesa do café, sim, foram feitas sugestões para que quartosde outros andares também fossem cuidadosamente examinados. Ea isso muitas cabeças assentiram veementemente: “Com certeza”.

Quinta, 17 de janeiroReli meu próprio diário. Talvez esteja um tanto melancólico até

agora. Também há pessoas interessantes aqui, sabe?!Naturalmente, há meu amigo Evert. Ele mora numa residência

assistida com seu cachorro, um vira-lata velho, bonzinho,preguiçoso e muito inteligente. O bichinho se chama Mohammed.Quando Evert às vezes está sofrendo muito de gota, eu levo o Mopara passear. Por causa do meu raio de ação, o passeio não é lágrande coisa, mas o raio de ação do Mo é ainda menor. Umavoltinha no prédio, não mais que isso. Um jorrinho numas dezárvores e uma vez por dia um cocô na grama, que eu tenho querecolher num saco plástico porque ficam me espionando de dezenasde quartos. Se eu deixasse o cocô onde foi feito, brigariam paradecidir quem seria o primeiro a me denunciar.

Depois tem Edward. Ele não fala muito. Por causa de umderrame, é difícil entender o que diz. Mas escolhe com cuidado aspalavras, que mal podem ser decifradas. Quando ele diz algumacoisa, a gente sabe que vale a pena perguntar algumas vezes: “Oque você disse?”. O que ele economiza em tempo de conversa, usapara observações perspicazes.

Grietje: uma gracinha, simpática e atenciosa, sem ser aduladora.Graeme, por enquanto o último desta seleção, parece inseguro e

introvertido, mas diz as coisas com sinceridade, sem ofender.Com essas pessoas, eu me sento com prazer à mesa do café.

Isso acontece mais ou menos naturalmente, porque algo que parecetão simples como sentar-se ou não em um lugar aqui obedece aestritas regras implícitas. Todos têm lugar fixo: à mesa, no bingo, no“música para se movimentar”, na sala de leitura. Se quiser ser

odiado, é só se sentar no lugar de alguém. E permanecer sentadoquando um dos velhos infantiloides parar ao lado de sua cadeira edisser: “Eu me sento aqui”.

“Bom, segundo minha percepção, o senhor está de pé, bem naminha frente.”

Isso se, ao chegar perto de uma cadeira vazia, já não tiverescutado antes: “Este é o lugar da sra. Fulana de Tal!”. Por essemotivo, todos aqui logo se desculpam e mudam de cadeira, quandona verdade deveriam se sentar e dizer, apontando para as cadeirasvazias: “Hoje ela pode se sentar em outro lugar ou que se dane”.

Sexta, 18 de janeiroJá faz três dias que temos uma recomendação da direção para

não sair do prédio. Afinal, uma fratura de quadril pode acontecer aqualquer hora. Isso significa que o ambiente não é dos melhores.Não que os moradores estejam sempre querendo passear quandoas calçadas estão escorregadias, mas, mesmo assim, a maioria temsua ida diária às lojas, à caixa de correio ou ao parque. E, quandouma coisa é proibida, a necessidade que temos dela aumenta. Hojeos velhinhos estão sentados diante das janelas olhando para a neveque não quer derreter. E reclamando da prefeitura, que limpa asruas para os carros, mas deixa as calçadas e as pistas para bicicletacobertas com aquele mingau marrom. Nisso eles têm razão.

Os funcionários limparam a neve da calçada em frente ao asilopara que possamos caminhar sem impedimento da porta até oônibus da Connexxion. Mas a angustiante incerteza do que seencontrará pela frente na hora de descer do ônibus faz com que amaioria decida não sair. O medo é um conselheiro muito consultado.

A comoção em torno dos peixes acalmou um pouco. Era sóesperar que surgisse alguma coisa para distrair. Bem, além da neve,há o boato de que o conselho distrital quer aumentar o valorcobrado para estacionar na rua. Os velhinhos temem que as visitasdiminuam caso seus filhos tenham que colocar um euro a mais noparquímetro. Filhos assim, que por causa de um mísero euro fazemainda menos visitas, eu preferiria que nem aparecessem mais.Quando comentei isso na mesa do café, de maneira muitoescrupulosa, acharam que para mim era fácil falar porque não tenhofilhos e, de qualquer forma, nunca recebo visitas.

Há um fundo de verdade nisso. Depois de quase todos os nomes

em meu calendário de aniversários há uma cruzinha. Das pessoassem cruzinha, duas não sei se ainda estão vivas. Uma delas nãosabe mais quem eu sou. Sobram só Evert e Anja. Graeme e Grietjenão estão anotados. Não é uma lista de amigos muitoimpressionante. Ou você mesmo morre cedo, ou terá que enfrentaruma longa procissão de funerais. Atualmente, tenho no máximomais cinco funerais para ir, sem contar aqueles aos quais vou porcortesia.

Sábado, 19 de janeiroSexta é “dia de exercício divertido para a terceira idade”. Aí as

galinhas velhas ciscam pelos corredores nos mais estranhos trajesesportivos a caminho da sala de ginástica. As senhoras realmenteperdem toda a vergonha, e não é uma visão agradável. Leggingscor-de-rosa sobre pernas magras e ossudas ou, ao contrário,empelotadas de gordura, blusinhas justas sobre os restos tristes doque um dia foram seios. A decadência na vitrine. Assim, eu, comovelho, não acho nenhum exercício divertido.

O cenário: uma sala de reunião pouco utilizada, com as mesasempurradas para os cantos e as cadeiras postas em círculo. Osexercícios em geral são realizados sentados para não ofender oscadeirantes. Ao ritmo de uma musiquinha alegre, balançam-se umpouco braços e pernas. E geme-se. E anunciam-se em voz altadoenças que impedem a prática de determinados movimentos:“Esse, com meu estoma, não posso fazer”.

Em seguida é hora de jogar bola. Digamos que a bola nãodesgasta muito. Exercitam-se principalmente as cordas vocais,ovacionando os outros pelos desempenhos mais rudimentares.Como uma mãe que aplaude um bebê que depois de vintetentativas finalmente pega uma bola: “Isso mesmo! Muito bem!”.

O clima em campo era esportivo, podemos dizer.Na verdade, ontem participei do “exercício divertido para a

terceira idade” pela primeira vez. E também pela última. Quando ainstrutora, “Pode me chamar de Tine”, insistiu depois da aula paraque eu voltasse na semana que vem, eu logo disse que minhaparticipação seria só aquela.

— Ah, e por quê? — perguntou ela, desconfiada.

— Porque não consigo me concentrar nos movimentos comtantas mulheres bonitas em volta. Fico todo tenso — disse, sempensar.

Quando me dei conta do que tinha dito, corei. Mais que durante aaula de ginástica.

É, estou quase dizendo as coisas abertamente! Estou melhorandomuito. Talvez seja graças a este diário.

Tine ficou boquiaberta, sem saber o que dizer. O sarcasmo eraevidente, mas não tão óbvio que ela pudesse dizer alguma coisacontra, ainda mais com todas as velhas jararacas ainda em tornodela. A maioria delas ainda se acha “até bastante atraente”. Com avelhice, a autocrítica diminui consideravelmente. Ao contrário do queacontece com as crianças, que vão melhorando ao longo dos anos.

Domingo, 20 de janeiroNós, velhos, não somos os culpados pela crise. Segundo os

cálculos de um renomado instituto, um idoso que recebeaposentadoria terá um aumento médio de dois euros (!) por mês.Henk Krol e o seu partido 50Plus não fizeram todo aquele alvoroçopor nada. Aqui no asilo, esse partido foi com folga o mais votadonas eleições do ano passado. É que alguns moradores não gostammuito de homossexuais, senão Henk teria tido ainda mais votos.Ainda que o sr. Hagedoorn só tenha votado nele porque pensou queHenk Krol fosse irmão do jogador de futebol Ruud Krol. O mesmoHagedoorn também se perguntava na época se o ex-primeiro-ministro japonês, Naoto Kan, era parente do comediante Wim Kan.

Pessoas com boas pensões complementares agora recebemmenos, mas continuam tendo cada vez mais. Aliás, esse tipo depessoa não mora aqui.

É impressionante o quanto nossos residentes são econômicos.Mesmo quem só recebe a aposentadoria básica consegue poupar,Deus sabe como.

No ano passado, um bolão feito numa casa de repouso ganhouum prêmio milionário na loteria. Boa parte dos ganhadores ficoudesolada com toda a confusão criada por aquele dinheiro.

Eu mesmo estou cuidando para estar bem no vermelho quandomorrer.

Baseado no calendário religioso que ganhei no bingo emdezembro, calculei que o sol, a partir do dia mais curto, 21 dedezembro, até agora, um mês depois, está nascendo onze minutosmais cedo e se pondo trinta e sete minutos mais tarde. Estranho,não?

De fato, estou um pouco constipado, e o calendário religioso estápendurado no banheiro. Traz textos recomendados da Bíblia, mastambém receitas, aforismos e piadas. Amanhã, 21 de janeiro, é diade Santa Agnes, virgem e mártir, falecida no ano 304 d.C. Só paraconstar.

Houve de novo um bafafá nos jornais sobre um rapaz comproblemas mentais que era mantido acorrentado na instituição emque estava internado. Por que motivo, eles não informam; acho queé porque ele costumava bater nas pessoas. Aqui, na ala onde ficamos dementes, moram velhinhos que mal conseguem ficar em pé,quanto mais bater em alguém, mas que também estão ali deitadostais quais um escapista que esqueceu como fazer o truque. Venhamdar uma olhada, paparazzi.

Segunda, 21 de janeiroHoje minha filha faria cinquenta e seis anos. Tento imaginar que

aparência ela teria agora. A imagem ficou congelada numamenininha encharcada de quatro anos, inerte nos braços de umvizinho. Eu a vi chegando em segundos que nunca maisterminaram.

Apenas quinze ou vinte anos depois veio o primeiro dia em quenão pensei nela.

Ninguém sai: tempestade de neve!Ainda mais tristeza: Duiker tem diabetes.E já tem há um bom tempo. Evert não se atém exatamente ao

que o doutor recomenda, e a assistente do médico, delicadamente,o fez entender isso.

— Pois é, sr. Duiker, se o senhor continuar bebendo, comendo efumando de maneira imprudente, realmente não há muito que euainda possa fazer pelo senhor.

— Essas são, por acaso, as únicas coisas que ainda tornam avida interessante, minha menina.

— Não sou sua menina.— Nem minha médica, senhora assistente.Algum medo Evert tem. Antigamente ele era cliente assíduo do

bar do bairro, onde tinha amizade com um freguês gordo comdiabetes que, nas noites “normais”, bebia vinte e cinco cervejinhas.Em casa, bebia mais alguns uisquinhos. Sempre usava o diminutivopara que soasse mais inofensivo.

Em determinado dia, o dedão do pé do amigo ficou preto. Teveque ser amputado. Em seguida, mais dedos. Depois o pé, uma parteda perna. Tudo o que ficava preto tinha que ser cortado no hospital.

Eles o conheciam bem por lá. Era um cara bacana, para quem eraimpossível parar de beber e fumar. Por um tempo, ainda ia ao barcom uma prótese na perna, até que foi obrigado a passar para acadeira de rodas e não pôde mais ir. Dois meses mais tarde, estavamorto.

O pesadelo de Evert: pretejar aos poucos nas extremidades e serentregue a médicos e enfermeiras.

Amanhã volto a escrever sobre coisas alegres.

Terça, 22 de janeiroNovamente um rebuliço por causa do estacionamento pago. O

sempre mal-humorado sr. Kuiper apresentou uma proposta àcomissão de moradores para introduzir estacionamento pago dentrodo prédio.

Quase ninguém mais anda só com bengala. Em vez disso, amaioria se apoia nesses andadores com quatro rodas, freio de mãoe cestinho de compras. Quando se fica cansado, também é possívelusá-lo para sentar. Um número menor de pessoas usa um triciclomotorizado, também dentro do prédio. Um veículo assim tomabastante espaço. E parece que eles estão ficando cada vezmaiores. É um símbolo de status.

A direção teme congestionamentos e pediu que andadores etriciclos motorizados sejam usados o mínimo possível no interior doedifício. Um choque para as pernas doloridas de todos os mancos.Mas foi quando Kuiper sugeriu, assim como a prefeitura deAmsterdã, resolver o problema introduzindo o estacionamento pagoque a coisa pegou fogo. Bom, o tal Kuiper realmente não bate bem.

Este asilo foi construído no fim dos anos 1960, quando os filhosficaram ocupados demais para ter seus velhos pais e mães emcasa. Ou simplesmente não tinham vontade de fazê-lo, e eu seria oúltimo a não compreender isso. Enfim, os lares de idososcomeçaram a brotar por toda parte quarenta anos atrás. E tãodeliciosamente espaçosos! Quartinhos de vinte e quatro metrosquadrados, incluindo banheiro e um cantinho para a cozinha. Paracasais, oito metros quadrados a mais para um quarto de dormir àparte. Nos últimos vinte anos, houve duas reformas muito mais oumenos, mas o espaço continua pequeno demais. Nunca foi levado

em conta que haveria uma frota de veículos sobre rodas. O elevadorsó suporta dois triciclos ou quatro andadores ao mesmo tempo.Antes que tudo isso tenha entrado e estacionado, vão bem unsquinze minutos. Sem falar nas trombadas impacientes contra pernasalheias. E nos que param bem em frente à porta do elevadorenquanto tem gente para sair. Como solução, a diretora reivindicouum elevador só para os funcionários. Com isso, as filas nos outroselevadores ficaram ainda mais longas. É preciso sair mais cedo parachegar a tempo ao local de destino. Bem que podiam darinformações de tráfego. Até pouco tempo atrás, eu ia pela escada,mas já não consigo mais, então, necessariamente, com frequênciame encontro na fila.

Se algum dia acontecer um incêndio grave aqui, todos osmoradores serão cremados de uma só vez. Só os funcionáriosconseguirão sair em segurança.

Quarta, 23 de janeiroInformei-me com meu médico, de leve, sobre a eventual

possibilidade de conseguir a pílula que põe fim a todos os males.Ele fez de conta que não me entendeu: “Não existe remédio assim,infelizmente”. Não ousei insistir na pergunta.

Aliás, ele achou minha lista de problemas impressionante:gotejamento, dor na perna, tontura, caroços, eczema. Só que nãopodia fazer muito a respeito. Um unguento, uma pomada, umremedinho aqui, um bálsamo ali. E ele ainda encontrou mais umanovidade: pressão alta. Eu ainda não tinha. Agora tenho pílulas paraisso também.

A moradora mais velha morreu, a sra. De Gans. Fazia anos que jáestava mais esquecida que um peixinho dourado e tinha de ficaramarrada à cadeira, porque de outra forma sempre escorregava;mesmo assim, hip hip hurra, chegou aos noventa e oito anos. Já eranascida na Primeira Guerra Mundial.

Três meses atrás, um vereador veio trazer um bolo em seuaniversário porque ela era a moradora mais velha do bairro.Puseram-na à mesa diante do bolo para um fotógrafo de umjornalzinho das redondezas, mas num instante de desatenção elacaiu de cara no glacê. Isso rendeu uma foto incrível. Infelizmente, adiretora não permitiu que o jornal a publicasse sob nenhumacircunstância. O vereador, que gosta tanto de aparecer nos jornais,mandou vir outro bolo, mas quando ele chegou a sra. De Gans tinhacaído no sono e foi impossível acordá-la.

E agora ela não acordará nunca mais. A diferença não é tãogrande entre antes e depois da morte.

Acho que não vou à cremação. Não me sinto bem nessas

situações.

Quinta, 24 de janeiroO clima na casa é cada vez pior. A neve está caindo há mais de

uma semana e sopra um cortante vento leste. Então, todo mundofica de mau humor aqui dentro por não poder sair. Pequenascaminhadas diárias e compras são, normalmente, as atividades emtorno das quais gira a vida. Quando elas não acontecem, há aindamais tempo para reparar nos outros. O dia tem que ser preenchidode alguma maneira.

Ontem, eu quis pôr o nariz para fora, tomar um pouco de arfresco, então fui me sentar no banco ao lado da porta de entrada.Depois de alguns minutos, o porteiro me fez entender que aquilonão era adequado. Um ancião arroxeado em frente à porta não eraboa publicidade.

— O senhor pode olhar para fora pela janela.Eu ainda rosnei:— Só quero tomar um ar, refrescar o nariz.— Azular o nariz, sr. Groen, o senhor está com o nariz azul.O sr. Hoogdalen tem há alguns meses um novo triciclo

motorizado. Três dias atrás, seu filho, dono de uma oficinamecânica, levou o veículo e, hoje de manhã, o trouxe de volta, todoincrementado. Spoilers, pneus mais largos, GPS , buzina,equipamento de som com amplificadores e, como cereja do bolo,airbag. Tudo completamente desnecessário, mas nem por issomenos bonito. Hoogdalen dava voltinhas pela casa orgulhoso comoum pavão em seu triciclo-Lamborghini. Naturalmente, houvecomentários ácidos e invejosos, mas por sorte ele também causouadmiração. É assim que deve ser: continuar vivendo e fazendo ascoisas que lhe dão prazer.

Depois da atriz que antigamente interpretava Mamaloe, cujapartida foi muito sentida aqui, morreu a segunda celebridadeholandesa do ano: Ellen Blazer, “famosa” diretora de TV que dirigiu,entre outros, o programa da apresentadora Sonja Barend. Era umadas poucas celebridades no país que só era conhecida de nome.

— Que cara ela tinha? — alguém perguntou ontem na hora docafé.

Ninguém sabia. Então também acabou imediatamente a graça.Talvez esta seja a melhor maneira de ser famoso, se só amigos econhecidos souberem quem é você.

Hoje de manhã tinha um artigo sobre Ellen no jornal. De quemserá que os jornais já têm o obituário pronto? Se eu ligasse para umjornal fazendo essa pergunta, será que responderiam? Ou talvezalgo mais específico, por exemplo: será que, se pedisse, NelsonMandela poderia dar uma olhada antes em seu próprio obituário emudar uma coisinha aqui e ali?

Sexta, 25 de janeiroPor um triz, o destino não me golpeou. Assustei-me com uma

moto que quase me atropelou na calçada e, no instante seguinte, euestava estatelado no chão.

“Faz de conta que não aconteceu nada” é o reflexo instintivo emcasos assim, e esse reflexo ainda funciona muito bem. Eu mearrastei até levantar, espanei a neve do casaco e dei uma olhadinhaem volta para ver se alguém tinha visto. Felizmente, conseguicaminhar de volta para casa sem nenhum arranhão. Quandocumprimentei o porteiro, ele me olhou com olhos arregalados:

— O que aconteceu?— Nada de mais. Levei um escorregão.— Nada de mais? O senhor está todo ensanguentado!Pus a mão na cabeça no lugar que ele apontou e realmente

estava bem grudento. Chamaram uma enfermeira, que veio logofalando de pontos, e, no fim da história, tive que passar uma hora emeia esperando no pronto-socorro com minha cabeçaensanguentada. E agora, com um turbante branco, pretendo ficar omáximo possível sem sair do quarto para evitar toda a baboseiramoralista.

“Dói muito?” Geralmente começa assim, mas cedo ou tarde vem:“Você não devia ir para a rua com o chão escorregadio”. Isso é oque me dá mais dor de cabeça.

— Este chapéu branco ficou bem em você — veio Evert jogarmais sal na ferida. Mesmo que falte sal para derreter o gelo nasruas, Evert ainda tem uma boa reserva para uso pessoal.

Como punição, derrotei-o no xadrez. Geralmente, conduzo o jogopara um final bastante equilibrado, em que às vezes um ganha, às

vezes o outro, mas agora foi xeque-mate em quinze minutos.— A pancada fez bem a você — observou ele. — Pelo menos em

relação ao xadrez.Falei que amanhã espero estar muito melhor no bilhar também.— Sua memória, sim, levou um golpe, Henk, porque o bilhar é só

daqui a três dias.Ele tinha razão. Estranho eu ter me equivocado completamente.

Sábado, 26 de janeiroÚltimo sábado do mês: noite de bingo. Idosos pra lá de velhos

viciados em jogo disputam uma caixa de bombons de cereja. Opresidente da associação de moradores lê pessoalmente osnúmeros sorteados. Não se atreva a falar nada nessa hora. Se elecanta o quarenta e quatro, a sra. Slothouwer invariavelmente diz“Inverno da Fome”, e toda a sala olha incomodada.

Um grupo quis recentemente mudar o bingo para a noite dequarta-feira sob o argumento de que no sábado muitos familiaresvêm fazer visita, o que não é verdade. O verdadeiro motivo foiprovavelmente a programação da televisão. O clube de canto daquarta-feira à noite protestou imediatamente e sugeriu a noite desegunda-feira, mas o clube de bilhar não quis nem saber. Elesacharam muito melhor que fosse na sexta-feira à noite. Issoprovocou resistência feroz dos participantes de “exercício divertidopara a terceira idade”, que estão cansados demais da ginástica datarde para jogar bingo à noite.

Quando, depois de três reuniões, a associação de moradoresainda não tinha encontrado uma solução, nosso Salomão particular,a sra. Stelwagen, decidiu que por enquanto fica tudo como semprefoi. As relações no seio da associação foram bastante prejudicadas.As espadas estão sendo afiadas.

Assédio moral nas escolas e na internet é um assunto popular nojornal e na TV , mas não se escuta muito sobre isso nas casas derepouso. Anciãos respeitáveis não infernizam ninguém. Isso é ummal-entendido. Passe um dia aqui dentro e você verá. Temosverdadeiros especialistas. As sras. Slothouwer, duas irmãssolteironas, são uma dupla temida. Uma delas deixou solta a tampa

do saleiro, a outra passou o sal para a vítima mais frequente, a sra.De Leeuw, que virou todo o sal e mais a tampa sobre seu ovocozido. A sra. De Leeuw olhou embaraçada do ovo para o saleirovazio e depois para os lados.

— Não posso fazer nada, a culpa é só sua. A senhora é sempredesajeitada — espicaçou uma das Slothouwer, enquanto a irmãconcordava com um movimento de cabeça.

Não faço a menor ideia do que as leva a fazer isso. A sra. DeLeeuw, ao contrário de seu nome, que remete a um leão, é umcarneirinho medroso. Por via das dúvidas, ela sempre se desculpaantes por qualquer coisa que aconteça de errado perto dela. Parachamar atenção para o bullying aqui dentro, será preciso alguémcometer suicídio e deixar uma carta bem específica sobre seusmotivos.

Domingo, 27 de janeiroTentei, mas não consegui ficar até o final do bingo. Quando

começou uma briga por causa do quinto prêmio – um salsichão defígado do Aldi, de noventa centavos –, disse que estava comenxaqueca e fui para o meu quarto. É prático ter enxaqueca porqueé algo aceito como desculpa em toda parte. Quando cheguei aqui eninguém me conhecia, apresentei minha enxaqueca inventada e,desde então, já fiz uso dela inúmeras vezes. Espremer um pouco osolhos e esfregar a mão na testa é o suficiente. Alguém semprepergunta preocupado se por acaso não estou com enxaqueca.Então preciso “deitar um pouquinho”. Nenhuma chateação para meulado e fim de papo.

Estou chegando agora da sala de leitura. Às vezes dou umapassadinha lá quando fazem o culto ecumênico no domingo. Numasemana é celebrado por um pastor, na outra por um padre. Elespassam despercebidos, porque os dois são quase tão velhos quantoos fiéis. O pastor é engraçado. O padre é da velha escola e pregainferno e danação. No fim, não faz muita diferença, porque os doissão quase ininteligíveis.

Com a morte à espreita, uma boa quantidade de moradores seagarra à fé.

Depois da cerimônia, tem pãozinho doce e café coado. Ontemhouve uma agitação por causa do aumento da contribuição pessoalàs casas de repouso. Saiu no jornal: virá um “ajuste de equivalênciapatrimonial” de oito por cento sobre quatro por cento do patrimôniodeclarado. Falaram horrores a respeito. Quando Graeme perguntouquem teria que dar a contribuição pessoal, só a sra. Bregmanlevantou a mão. Achou que ele estava falando da contribuição para

a associação de moradores.Aqui vive principalmente gente pobre, com no máximo uma

aposentadoria complementar.Engraçado que mesmo o partido dos idosos, o 50Plus, votou a

favor do aumento da contribuição pessoal no Parlamento. O líder dopartido, Henk Krol, explicou por quê: “Tínhamos acabado de chegarà câmara e vimos todo mundo votando a favor, até o PartidoSocialista. Nós simplesmente fomos ludibriados”. Li em voz altaessa citação do jornal. Alguns acharam que os outros partidosdeveriam ter avisado Henk.

Segunda, 28 de janeiroHoje de manhã, na hora do café, cumprimentei o sr. Hoogdalen

pelo belo triciclo motorizado. Ele me mostrou tudo. Só não pôdefazer uma demonstração do airbag.

Ele quer criar um clube de scooters para idosos chamado OAntílope. Contei a ele que eu, na verdade, cogitava comprar umminiconversível Canta, mas que pensaria com calma a respeito. Ele,por sua vez, consideraria a possibilidade de deixar que tambémCantas participassem do clube.

A princípio, minha intenção era recusar educadamente, mas fuificando cada vez mais entusiasmado. Talvez seja mesmo uma ideiadivertida organizar passeios. Uma longa fila de triciclos motorizadospassando lentamente pelas planícies intermináveis. De vez emquando, um velho cai numa vala.

Dois anos atrás, em Genemuiden, aconteceu um acidente comum Canta. (Tenho mania de guardar estranhos recortes de jornais.)Os ocupantes morreram. E agora atenção: tinham noventa e seis enoventa e sete anos! Bateram de frente contra um carro. Talvezporque o médico não tenha aceitado dar a pílula da eutanásia.Agora ninguém tem como saber. Sobreviver a duas guerrasmundiais para depois encontrar seu Waterloo numa lata de sardinhacaindo numa vala em Genemuiden. Juntos, tinham cento e noventae três anos. Nada mau. Não estava escrito se era um casal. Talvezela fosse, assim como aconteceu com Ted Kennedy emChappaquiddick, sua amante. Seria bom demais para ser verdade.

E por falar em recortes de jornal: recortado na sexta-feira: quinzemil crocodilos escapam. (Não sei se é possível usar dois-pontosduas vezes na mesma frase.)

Terça, 29 de janeiroOntem à noite, às 18h45, quase todos os moradores estavam a

postos diante da televisão na sala de estar. “Oh, oh, o que será quea rainha Beatrix vai dizer em seu discurso de aniversário?” E nãodeu outra: ela vai abdicar. No mais, sua fala de alguns minutos foium pouco decepcionante. A sra. Groenteman, muito humilde,perguntou se a rainha agora iria para uma casa de repouso.

O quarto da recém-falecida sra. De Gans foi esvaziado àspressas para ser alugado novamente já no primeiro dia do mês,nesta sexta. Negócios são negócios, dinheiro é dinheiro. A únicafilha da sra. De Gans teve três dias para retirar as coisas da mãe eguardá-las em algum lugar ou dar tudo para o Exército de Salvação.A alternativa era pagar um mês extra de aluguel.

Ela enviou um sujeito que anuncia nas páginas amarelas acompra de todos os pertences por um preço ótimo. Depois de daruma olhada no legado, ele foi logo embora.

— Não vale nem o trabalho de pôr no caminhão.Cara sutil.Tenho que admitir: a sra. De Gans não tinha dinheiro nem bom

gosto.No fim, a filha escolheu algumas lembranças e deu todo o resto

para a brigada ambiental. Implorou à sra. Stelwagen quepostergasse por três dias, mas não conseguiu nem um dia a mais.

— Desculpe, é realmente muito desagradável, gostaria que fossede outra forma, mas tenho que me ater às regras da administração— dissera Stelwagen, hipocritamente.

Um dia vamos perguntar a Anja se isso é verdade. Quando opróprio asilo tem que fazer a mudança, manda uma conta de

quinhentos e oitenta euros para a família, mesmo que seja só umahorinha de trabalho.

A sra. De Gans se reviraria no túmulo se soubesse de tudo isso.No túmulo em que ela ainda nem está enterrada. Ontem à tardehouve uma cerimônia de despedida, digamos, o último dia develório. A dura lei da selva dos anciãos: velar ou ser velado. Hoje àtarde ela será enterrada.

Domingo de manhã estava todo mundo eufórico diante dasjanelas olhando a chuva. Chega de neve! Domingo à tarde aindaestava perigoso, mas ontem os andadores já saíram apavorando emmassa pelas ruas.

E, admito, também eu estava eufórico por dentro quando saí paraminhas caminhadinhas.

Quarta, 30 de janeiroNão vou espalhar minha simpatia republicana aos quatro ventos.

Não é o momento certo para gritar: “Abaixo a monarquia”. Nãodetesto Beatrix, mas acho que já passou da hora de abdicar. Queela vá pintar mais e vá menos ao cabeleireiro. Seus penteados jáme irritam há anos. Deveria superar isso, mas não consigo. A capado Volkskrant de hoje traz umas trinta fotos de Bea. Em nenhuma seenxerga um fiozinho rebelde.

A rainha é adorada aqui. A Vorsten , revista que só fala sobre anobreza, está sempre na mesa de leitura, junto com a Libelle e aMargriet . Uma vez Evert deixou uma Playboy no meio para fazerum experimento. Sumiu em menos de uma hora! As revistas sãomarcadas com um carimbo preto grande da casa de repouso paraque ninguém tenha a ideia de levar embora. Na Playboy não tinhacarimbo.

Alguns moradores já encomendaram o micro-ônibus daConnexxion para ir até a praça Dam no dia 30 de abril. A festa dacoroação não vai ficar sem eles.

Daqui a pouco vou até a casa de Evert. Ele teve um ataque degota, então tenho que sair com Mo. De acordo com Evert, percebe-se a inteligência de Mo porque ele começa a rosnar sempre que adiretora se aproxima. Uma vez ela ignorou o rosnado e quisacariciá-lo, então ele mordeu sua mão – na verdade, pegou em seuvestido. E era um vestido caro. Desde então, a relação entre adiretora e Evert tornou-se bastante fria, para dizer o mínimo.

Agora tem uma plaquinha pendurada na porta: “Respeite orosnado”.

Ontem à noite, quando vim pela primeira vez para passear com

Mo, Evert estava grogue em sua poltrona. Quando ele tem gota, nãobebe e, em vez disso, toma um monte de pílulas. Passado o ataquede gota, ele inverte as coisas novamente.

Enquanto isso, tomo conta do cão e do dono. Mo é agradecido, eEvert resmunga que não é preciso nada disso. Ele odeia serpatético, então prefere que todos mantenham distância. “Nãoreclame”, ele gostaria de ver escrito em letras grandes de neon nafachada de nossa casa de repouso. Eu sou tolerado. Faço algumascompras, ponho uma refeição já pronta para esquentar no micro-ondas e me mando. Quando ele melhora, sempre vem me trazer umpresente: cinquenta tulipas, meio quilo de enguia defumada, umcalendário de pinups.

Quinta, 31 de janeiroOs especialistas em assuntos da casa real anunciaram por toda

parte: ninguém nos avisou com antecedência sobre a abdicação.Depois de dois dias inundados por notícias sobre Beatrix no jornal,no rádio, na TV e na mesa do café, estou quase desejando queaconteça uma grande catástrofe para dar um pouco de equilíbrio àscoisas.

O verdadeiro aniversário de Beatrix, hoje, portanto, sempre écomemorado modestamente aqui com milfolhas. Ou seria mil-folhas? Não são alaranjados – estes só se encontram para comprarno Dia da Rainha. Diversos moradores também tiram do armário abandeira da Holanda. Modestas bandeirinhas de mesa, porquependurar uma bandeira grande, naturalmente, não é permitido. Asregras são claras: nada de furos nas paredes. Cada quarto já tem,de praxe, quatro pontos fixos com ganchinhos para pendurarquadros, e a gente tem que se virar com isso.

O sr. Elroy tentou pendurar sua cabeça de alce num dosganchinhos, e ela caiu em cima do aparador. O jogo de chá ficou emcacos. Ele não conseguiu um gancho maior, por mais queimplorasse, porque é muito afeiçoado ao alce. “Se começarmos afazer isso, não vai ter mais fim”, disse a chefia de serviços gerais doedifício. O argumento que acaba com todos os argumentos nestaresidência. Como se os moradores fossem todos querer pregargrandes troféus de caça na parede caso Elroy pudesse pôr umgancho maior para o alce. A cabeça agora fica numa cadeira, e elenão pode mais usá-la como cabide. Mas ainda joga seu chapéu alide certa distância. Quase sempre erra. Ele tem muita dificuldadepara se abaixar, mas tenta o desafio com a galhada. Cara simpático,

só que surdo como uma porta. É pena, de outra forma com certezaseria possível ter conversas ótimas com ele.

Sexta, 1o de fevereiroAcabei de receber uma visita inesperada da assistente social.

Felizmente para ela, estou quase sempre em casa. Todo mundoaqui está quase sempre em casa. Fiquei bastante surpreso.

Fiz um café para ela e, então, perguntei a que devia a honra davisita. Parecia um pouco sem jeito. Perguntou se a vida ainda meparecia agradável, se eu não me sentia melancólico.

Estava ali, cheia de charme, meio sem saber como agir. Ela ébem jovem e inexperiente para sua profissão, mas, cativante, fez omelhor que pôde.

Perguntei de onde vinha todo esse interesse repentino.— Bem, isso realmente não é importante.— Bem, se não é importante, a senhorita com certeza pode dizer.E, assim, fiquei sabendo que ela tinha sido enviada por meu

médico. Provavelmente porque eu, casualmente, tentei me informarsobre a pílula da eutanásia. Para evitar que eu pule do telhado, elemandou esse carneirinho.

Assegurei-lhe que, no curto prazo, não tenho planos de suicídio.Ela ficou meio assustada com a palavra.

— Oh, não foi isso o que eu quis dizer.— Entendi muito bem o que você quis dizer. Está tudo certo. E

pode dizer ao doutor que apreciarei muito se ele mesmo fizer asperguntas difíceis daqui por diante. Quer mais um café?

Não, ela tinha que ir embora.Ontem fui fazer uma visita a Anja, minha informante no escritório

da diretoria, e recebi dela uma cópia do relatório da sra. Stelwagensobre o assassinato dos peixes. Eu não era mencionado comosuspeito. Nem Evert. Ela está convencida de que o culpado é um

dos funcionários. O objetivo teria sido debilitar a posição dela. Vaimandar pôr câmeras nos corredores. Gostaria de saber se ela tempermissão para fazer isso assim, sem mais nem menos.

Sábado, 2 de fevereiro“Contenha o envelhecimento, continue em movimento” era o título

de um velho artigo de jornal que ainda trazia o destaque: “Cientistaspesquisam em todo o mundo as causas e as soluções para osproblemas do envelhecimento”. Caros cientistas, vocês chegaramtarde. Aqui já não há mais nada a ser salvo. Mas podem virtranquilamente para uma visitinha. Tem material de pesquisasuficiente se arrastando pelos corredores.

Biologicamente falando, a partir dos quarenta anos,aproximadamente, um ser humano se torna inútil, porque os filhos jáestão crescidos e não precisam mais dos pais. O declínio, então, vaicalmamente tomando conta, em forma de calvície e óculos deleitura. No nível celular, a coisa também começa a piorar. Cada vezmais erros nas divisões e nas multiplicações. A diminuição dometabolismo torna os neurônios mais preguiçosos, o que faz comque a cabeça também fique cada vez pior. (Estou fazendo umresumo simplificado do artigo.)

Eles ainda não sabem muito, mas uma coisa é clara: use it or loseit . Mantenha o corpo e o espírito em movimento, principalmente ocórtex pré-frontal, o pedacinho de cérebro que regula funções comoplanejar, tomar iniciativa e ter flexibilidade. Bem, podemos concluirque a diretora deste teatro não tem muita afinidade com o córtexpré-frontal. Não são poupados esforços para tornar os velhosmansos, passivos e letárgicos, e isso é camuflado com bingo, clubede bilhar e “exercício divertido para a terceira idade”.

Mas não posso pôr a culpa unilateralmente na equipe defuncionários. A clientela aceita com prazer e docilidade ser tutelada.E vá lá: às vezes posso compreender isso. Há dias em que mesmo

eu não tenho dificuldade de ficar só em stand by .Vou me movimentar um pouquinho, ver até onde consigo chegar.

Já estou livre do curativo que recebi na cabeça depois da queda;isso vai me poupar comentários.

Domingo, 3 de fevereiroO partido 50Plus aparece com nove cadeiras no Parlamento em

algumas pesquisas. Daqui a seis anos, teremos mais eleitoresacima dos cinquenta anos do que abaixo. De repente, todos ospartidos políticos entram em ação. O velho ranzinza foi descoberto.Nós nos tornamos interessantes. Consciência política, aliás, não hámuita por aqui. “Somos roubados pela política” talvez seja aafirmação mais perspicaz que se pode ouvir na mesa do café.

A nova moradora, que entrou no lugar da falecida sra. De Gans,parece-me uma mulher simpática. Um alívio em comparação com amédia dos que se arrastam pelos corredores. Ela também searrasta, viu? Mas com elegância.

Conversamos um pouquinho, e ela me contou que veio para cánão exatamente por vontade própria. Mas ela planejava “não sedeixar enterrar”, pelo menos “não por enquanto”.

— E talvez eu prefira ser cremada, ainda não me decidi.Falei que eu também tinha dúvidas e não achava nenhuma das

duas coisas uma boa ideia, debaixo da terra ou pela chaminé, e elaconcordou.

— Não há muitas outras possibilidades. Talvez ser jogada de umavião no mar. Podemos pedir para aquele piloto argentino.

— Acho que ele está preso — comentei.— Na verdade, acho que não tenho alternativa a não ser a

cremação — disse ela.— Por que diz isso?— Bem, é que tenho um sobrenome que queima. Sou Chama,

Eefje Chama. Muito prazer.— Hendrik Groen. Pode me chamar de Henk.

Acho que eu nunca tinha tido uma conversa assim nesta casa.Meus bons papos com Evert têm outro tom. Todos os outrosmoradores falam principalmente do tempo, da comida e de suasdoenças.

Bem, o tempo está bom; a comida, suportável; e com algumaspílulas a mais meu corpo quase não está incomodando hoje.Resumindo, a vida sorri para mim.

Segunda, 4 de fevereiroUma notinha no jornal informa que um carro derrapou e atropelou

setenta marrecos. Um massacre de marrecos. Deve ter sido umacena horrível. Todas aquelas penas e bicos, todo aquele sangue. Oueles estavam muito juntinhos um do outro ou foi uma derrapagemenorme. Marrecos são em geral ariscos e se assustam comfacilidade. Aliás, tive que me perguntar: será que o repórter contoucada um dos corpinhos? E o que aconteceu com os feridos? Nãoconsigo imaginar que todas as aves tenham morrido imediatamente.Um bom número deve ter ficado agonizante. Argh... estou mesmoficando meio nauseado com essas minhas perguntas tãodetalhistas.

Evert sempre passa aqui no domingo à tarde para um papo e “umgolinho de uma coisa ou outra”. Ele não é fresco com bebida: vinho,genebra, conhaque, uísque, para ele não faz muita diferença. Umavez o vi beber uma garrafa inteira de licor de ovo numa visita à sra.Tankink. Ela não tinha outra coisa para servir. Após dois copos, elepediu uma tigelinha e uma colher, tomou como se fosse flã. Na hora,a sra. Tankink agiu como se aquilo fosse a coisa mais normal domundo, mas depois ficou falando mal durante semanas quandoEvert não estava por perto.

Domingo à tarde é o horário clássico de visitas para muitosmoradores.

“Nossa, já faz cinco semanas desde a última visita a papai emamãe? Precisamos dar uma passadinha lá de novo no domingo àtarde.” E aí tomam uma xícara de chá e passam duas horinhas ali.

Hendrik, seja sincero: você tem uma pontinha de inveja porquenunca recebe visitas. Tirando Evert, mas ele não pode realmente ser

chamado de visita.

Terça, 5 de fevereiroOs planos para uma clínica de eutanásia estão dando o que falar,

especialmente para pessoas cujos médicos recusam oprocedimento. A iniciativa é da Associação Holandesa para o FimVoluntário à Vida. Essa associação com certeza tem muitas baixasem seus membros.

Dois anos atrás, a associação conseguiu quarenta mil assinaturasem três dias para pôr em discussão no Parlamento a morte assistidapara pessoas acima de setenta anos. Com apoio, entre outros, daex-apresentadora de televisão Mies Bouwman! Ela é ótima paracampanhas. Será esta sua última a campanha Fim da Linha ?

Quarenta mil assinaturas significam que o Parlamento terá que sedebruçar sobre a questão dos idosos que acham que sua vida jádeu o que tinha que dar e querem pôr fim a ela, de maneira mais oumenos tranquila. Para evitar que alguém compre uma garrafa deálcool e se flambe em seu quartinho porque ninguém quer ajudar.Segundo a associação, isso chegou a acontecer.

Opositores do movimento afirmam que primeiro é preciso tornar avida dos velhinhos mais animada para ver se, assim, recuperam avontade de viver. Um desafio interessante, eu diria. Vamos oferecernossa casa de repouso imediatamente como campo de testes.Podem animar as coisas por aqui.

E, caso isso não funcione, já podem construir uma boa clínicapara as pessoas que querem deixar a vida de maneira decente, sobsupervisão de especialistas. De preferência não muito longe.

Fale de alguma coisa alegre, por favor, Groen. Pense naprimavera.

Vi campânulas-brancas e até um ou outro narciso temporão. As

florezinhas não sabem muito bem o que fazer: primeiro um mês dedezembro muito quente, depois quase três semanas de neve e gelo,em seguida de novo dez graus, e agora granizo e de novo neve.Vamos lá, flores, não se deixem enlouquecer! Estou ansioso poruma bela primavera.

Quarta, 6 de fevereiroNa mesa do café também se fala de assuntos financeiros. O

banco SNS está com problemas, e os moradores que tinham deixadoum dinheirinho guardado ali limparam suas contas. Ou melhor:pediram a seus filhos ou suas filhas que fizessem isso, poisnegociações bancárias deixam as pessoas aqui aflitas. Pagar comcartão de débito já é uma enorme aventura. Olhar para trás para verse não vai ser roubado e ao mesmo tempo olhar para frente paraapertar os números certos com os dedos trêmulos e ainda escondera senha de bisbilhoteiros apertando o corpo contra a máquina... Issoé uma operação complicadíssima e que quase sempre dá errado.Então, sentem uma nostalgia intensa do tempo em que o salário eraentregue em mãos, num envelope.

Há muitas viúvas aqui no asilo que até a morte do marido nuncatinham tido uma conta bancária no próprio nome. Recebiam todasas semanas o dinheiro para as despesas da casa. Em casos demorte, ainda é muito comum encontrar dinheiro em meias velhas.

Depois começam a falar do programa televisivo Dança no Gelo .É quase impossível que exista outro pior. Constatei com alegria quetenho uma aliada: Eefje Chama. Isso cria um vínculo.

Numa tentativa de envolvê-la na conversa, perguntaram-lhe suaopinião.

— Meu médico me proibiu de assistir — respondeu ela.Ao redor da mesa, as sobrancelhas se ergueram. Eu me enchi de

coragem e disse que ela tinha um médico bastante sábio. Emseguida, Eefje começou a falar do tempo. Os companheiros demesa ficaram mudos.

Quando fui pegar meu jornal na banquinha, ela pediu que lhe

trouxesse também um guia da TV , porque está com muitadificuldade para caminhar. Eu podia comprar qual quisesse, umasimpática demonstração de confiança.

— A senhora não compra sempre o mesmo? — perguntou o sr.Gorter, sinceramente surpreso.

Não, ela comprava às vezes um, às vezes outro.— Mas aí a senhora não sabe onde estão as informações... —

disse Gorter, com olhos arregalados. Ele simplesmente nãosuportaria tanto caos.

— Daí eu procuro. Em geral a segunda-feira vem depois dodomingo, então a terça, a quarta, e assim por diante.

Eefje Chama, a senhora não vai fazer muitos amigos aqui, masgostaria muito de me voluntariar.

Quinta, 7 de fevereiroEvert quer conhecer a sra. Chama e sugeriu que eu convide os

dois para um chá. Ele me prometeu que desta vez irá realmentetomar chá. Não sei... Talvez não sejam o tipo um do outro. Evert édireto e rude, e Eefje me parece sutil e refinada. Não quero ficar nomeio disso. Mas até que soa bem: Evert e Eefje. Talvez possamosnos tornar Os Três Mosqueteiros desta casa.

“Nosso” presidente do conselho de administração, Eelco D., estánovamente nos jornais. Ele tem que cortar despesas: mil equinhentos funcionários da assistência domiciliar serãodispensados. Alguns anos atrás ele recebeu um bônus de sessentamil euros sobre seu salário de duzentos e vinte mil porque nãodeixou a unidade de saúde Cordaan falir. A mim isso parecesimplesmente uma parte de seu trabalho. Conheço poucosadministradores que são contratados para fazer uma instituição falir.

Daquela vez, entre outras medidas, Eelco fez um grande cortenos honorários de enfermeiras em formação. Elas agora só recebemcinco mil euros por ano para limpar penicos e lavar genitaisenrugados – isso é 1/54 do que o chefe, em seu gabinete recém-reformado por quarenta mil euros, recebe em sua própria contabancária. Ai do homem que pensa que vale cinquenta e quatrovezes mais que a mulher que faz o trabalho sujo com tantadedicação.

Sexta, 8 de fevereiroAgitação na casa de repouso. Uma carta pregada no quadro de

avisos anuncia que os residentes podem procurar seu clínico geralpara receber uma pulseirinha com a inscrição: “Não me ressuscite”.Não estava assinada. Grande parte dos moradores criticou essacampanha durante o café.

— Eles querem mais é nos ver mortos.— Somos muito caros.O gordo sr. Bakker disse que aceitaria uma mocinha para

ressuscitá-lo, mas não queria de jeito nenhum ser reanimado por umhomem.

— Prefiro morrer.Será que tem pulseirinhas à parte para isso?Depois do café, a carta havia desaparecido. Ninguém sabia quem

a tinha tirado dali.Espero que uma pulseirinha dessas não seja muito chamativa,

caso contrário causará chateação o tempo inteiro. Vou me informarcom meu médico.

Convidei Eefje e Evert para um chá amanhã à tarde. Um pouco àinglesa, com pãezinhos de fôrma sem casca, cortados na diagonal.E docinhos: bombons, biscoitos e uma torta. E alguma coisa comcreme. Preciso dar uma pesquisada sobre como se faz um high tea .No quinto andar mora um senhor inglês de nome paquistanês.Talvez ele só conheça os costumes paquistaneses de tomar chá,mas vou me arriscar e dar uma passadinha por lá mais tarde.

Encontrei no corredor aquela adorável assistente social que omédico enviou para me proteger da eutanásia.

— Ainda estou vivo, viu? — disse-lhe, com uma piscadinha.

Ela teve que rir. É das minhas. Não me lembro de quando tinhadado uma piscadinha pela última vez. Deve ter sido para a minhafilhinha.

Sábado, 9 de fevereiroEstou realmente meio nervoso por causa das visitas daqui a

pouco. Continuo dizendo a mim mesmo que tenho que agirnormalmente, mas nesse meio-tempo arrumei o quarto inteiro elimpei tudo com pano molhado, passei minha camisa duas vezes ecomprei quatro tipos de biscoitos. E ainda preciso voltar aomercadinho para comprar outro chá além de English breakfast-tea .Deixei pra lá os conselhos sobre chá dados pelo simpático senhorpaquistanês. Ele me entregou cerimoniosamente um livro grossosobre os hábitos de tomar chá no mundo todo. Em paquistanês.

No Tibete, o nonagésimo nono tibetano ateou fogo em si mesmocomo forma de protesto. O centésimo terá uma celebração especial.No mundo árabe também foi moda por um tempo expressardescontentamento dessa forma. Tem que ser dito: chama atenção,ainda que seja só por um instante.

Eu mesmo tenho muitas críticas sobre o estado das coisas aqui,mas daí a tocar fogo em mim acho que seria ir um pouco longedemais. Mas bem que conheço alguns que eu gostaria de queimarpara chamar atenção.

Segundo o jornal Volkskrant , a Holanda tem, junto com os paísesda Escandinávia, a melhor assistência a idosos do mundo. Ontem,na mesa do café, levei essa informação cautelosamente aoconhecimento de alguns moradores. Não dá para dizer que elesengoliram bem. Não. Ou não acreditaram, ou acharam impossível.

— Se as aposentadorias aqui já não dão para nada, a situaçãoem outros países deve ser grave — comentaram, compadecidos.

E o fato de que, ainda por cima, meio bilhão de velhinhos nomundo nunca tenham sequer ouvido falar em aposentadoria

pareceu inacreditável para a maioria.

Domingo, 10 de fevereiroO chá não foi nenhum desastre. Mas dizer que fui um anfitrião

descontraído, espirituoso e inteligente também está longe de serverdade.

Eefje chegou primeiro. Mostrei minha “casa” para ela, que foigentil em seu parecer: “Aconchegante”. Um comentário neutro, quepode significar muita coisa.

Então chegou Evert, fazendo bastante barulho. Ele está comminha chave reserva e se recusa a tocar a campainha. Entrou noquarto com um sorriso de orelha a orelha e um “oi” meio gritado.Quando perguntei que tipo de chá ele queria, perguntou em vozbem alta desde quando se pode escolher aqui mais que Englishbreakfast-tea . E quando um pouco mais tarde quis colocar osdiversos biscoitos na mesa sem chamar atenção, ele disse quenunca tinha tido antes tão nobre tratamento.

— Ou isso é por causa da presença desta rainha? — Ao dizerisso, deu de propósito uma inadequada piscadinha.

Acho que devo ter corado um pouco. Eefje riu e comentou que sesentia honrada.

Jogamos um pouco de conversa fora e depois falamos sobre otempo. Então chegou a hora de saber de Eefje se ela estavagostando do estabelecimento. Ela se manteve diplomática naresposta.

— Não quero julgar precipitadamente, mas, além das qualidades,há pontos a ser melhorados, como hoje se diz no jargãoadministrativo.

— Tais como? — Evert queria saber.— Ainda estou fazendo um levantamento. Talvez possamos

dedicar em breve outra sessão de chá com biscoitos a isso.— Ou quem sabe algo mais forte.Evert se referia ao genebra, e aí todos os sinais são vermelhos,

ou pelo menos alaranjados, porque não é exatamente sutileza o queo álcool lhe traz à tona.

Mas, mais uma vez, Eefje lidou com a situação elegantemente.— Sim, talvez algo mais forte. Quem sabe eu convide vocês para

um conhaque da próxima vez. Mas não prometo nada — respondeucom um sorriso.

— Poderia ser genebra?Para não ser sutil, Evert não precisa necessariamente ter bebido.— Não sei por que, Evert, mas tenho a vaga impressão de que,

no que diz respeito a bebidas, para você a quantidade é maisimportante que a qualidade. E no caso de Henk imagino que sejaexatamente o contrário.

— Eefje, vou convidá-la mais vezes — comentei, com um sorrisomaroto para meus dois convidados.

Meia hora depois, ela se despediu. Também isso uma qualidade:não se tornar um fardo.

Evert compensava amplamente. Eu o pus para fora duas horas ecinco genebras depois.

Segunda, 11 de fevereiroOs residentes estão um pouco confusos com o clima nos últimos

dias. Olham pela janela e parece um lindo dia para uma caminhada.Saem pela porta da frente cinco minutos depois e estão no meio deuma tempestade de neve. E de surpresas nós não gostamos,tampouco de mudanças.

No quadro de recados estão pregadas as atas da reunião daassociação de moradores. “A partir de agora, a associação iráfornecer castanhas e palitinhos salgados nas noites de bingo.”

Esses palitinhos, provavelmente, serão colocados nas mesas, emcopos. Daí pelo menos uma pessoa irá dizer:

“Nossa, você lembra que, antigamente, nos aniversários, sempretinha um copo assim com cigarros?”

“É, é verdade. Um copo com filtro e um sem.”Se essa conversa não acontecer, eu como meu charuto. Ou pelo

menos o anel. Sim, é verdade, antigamente, quando tudo eramelhor, nós os guardávamos.

“A contribuição para a associação de moradores será aumentadaem dez centavos.” Estou lendo bem: dez centavos.

O passeio de meio de ano foi adiado até que todos concordemcom o destino. Há uma profunda divisão sobre tudo dentro daassociação desde que não conseguiram entrar em acordo sobreuma nova noite para o bingo. Na próxima reunião vamos tentarnovamente encontrar um destino e uma data. Caso não sejapossível, a associação organizará novas eleições para sair doimpasse administrativo.

Morreu o ator que interpretava o capitão James Onedin. Algumasvelhinhas foram às lágrimas. Aquilo, sim, eram suíças! Aquilo, sim,

era bravura! E então se viram, uns quarenta anos atrás, tendo quese contentar com o que tinham ao lado no sofá.

Terça, 12 de fevereiroOs idosos ultimamente têm atraído grande atenção. Não só na

Holanda. Na Alemanha também têm saído algumas coisas. Houve,por exemplo, bastante agitação com o livro Mãe, afinal quando vocêvai morrer? , de Martina Rosenberg. Ela cuidou durante anos deseus pais, que estavam ficando dementes. Há ainda, segundo osjornais, o fato de que alguns alemães estão alojando seus pais,quando estes precisam de cuidados, em asilos mais baratos daUcrânia, da Eslováquia e até da Tailândia. Para nossos vizinhos aleste existe o Elternunterhalt . Quando a aposentadoria, a pensãobásica do governo e o cofrinho do pai e da mãe não são suficientespara os gastos mensais de uma casa de repouso, os filhos têm quecolaborar: pensão alimentícia para os pais. Com um pouco de azar,pode-se ser obrigado a pagar pensão alimentícia para os pais epara os filhos.

Ademais, todas as assustadoras medidas em relação àassistência a idosos não devem nos afetar tanto neste asilo. Amaioria dos moradores tem a pensão básica do governo mais umapequena aposentadoria. Quando não se gasta quase nada, dá atépara guardar um pouco. E econômicos eles são... como são! Amaior parte do dinheiro é gasta com biscoitos, chocolatinhos,cabeleireiro e o micro-ônibus. Quase ninguém viaja de férias.Ninguém mais tem carro. Raramente vejo roupas ou móveis caros.Comer num restaurante eles acham desperdício de dinheiro, epegar táxi é o cúmulo do esbanjamento. Pessoas de idade seprivam demais.

Entrementes, a média de idade nos asilos continua a subir. Aspessoas moram sozinhas por mais tempo e vão cada vez mais tarde

para as casas de repouso. Eu, com oitenta e três anos, sou um dosmais jovens.

Uma vez aqui, aí não tem retorno: ninguém vai voltar a morar numapartamentinho nem ninguém será expulso da casa de repousoporque não tem dinheiro. Sim, os filhos reclamam! Eles morrem deraiva quando papai ou mamãe são obrigados a torrar o que seriasua herança. Quanto mais os pais vivem, menos sobra para eles.Eu diria: “Filho, querido, isso não é problema meu”.

O nível de pobreza entre idosos é mais baixo do que as pessoaspensam. Segundo uma pesquisa recente, na Holanda, só 2,6 porcento dos que têm mais de sessenta e cinco são pobres. Sessenta etrês por cento dizem até que conseguem se virar muito bem.

Todo o alarido em torno de anciãos descamisados é feito pelogrupo mais jovem do partido 50Plus, que agora tem virtualmentetreze cadeiras no Parlamento. Henk Krol e seus colegas ainda estãoem plena atividade e querem no futuro desfrutar de suas generosasaposentadorias. É estranho que os cinquenta anos sejam o marcodivisório. O grupo mais poderoso e mais rico do país é justamente oque está na faixa dos cinquenta anos.

Sessenta e cinco ou, em breve, sessenta e sete, faria maissentido como limite mínimo. E ainda assim a diferença entre alguémque acaba de se aposentar e os muito idosos que vejo ao redorseria grande. Defendo a criação do 67Plus, do 77Plus e do 87Plus.Um 97Plus provavelmente não conseguirá atingir o patamareleitoral.

Quarta, 13 de fevereiroO papa tirou o escândalo da carne de cavalo do primeiro lugar

nas conversas da mesa do café. O santo padre tomou uma decisãosensata ao se aposentar, foi o consenso. As opiniões ficaramdivididas sobre um possível papa negro. O sr. Schut não achou umaboa ideia. Para ele, Berlusconi seria um candidato melhor.

Felizmente, um grande número de pessoas não faria nenhumaobjeção a um papa negro, no máximo objeções a um papa em geral.Esta é originalmente uma casa de repouso católica, mas cominfiltrações calvinistas. Tensões entre católicos, reformados eprotestantes estão sempre à espreita. O papa é um temacontroverso por excelência.

Esboço de um dia típico. Parte 1Por volta das 8h30, eu me levanto. Então, vou ao mercadinho e

compro dois pãezinhos. Durante o café da manhã, leio o Volkskrant ,que, aliás, ficou muito feio nos últimos tempos. Depois, escrevo nodiário secreto. Toma mais ou menos uma hora. Em seguida, beboum café lá embaixo e, na sequência, fumo um charuto. Depois detossir, por volta das 11h30, faço minha ginástica na forma de umavoltinha pela casa ou nos arredores. Em geral, vou em direção àcasa de Evert, mas ultimamente reparei que com frequência tenhotentado cruzar com Eefje por acaso. Tenho a impressão de que elanão acha ruim quando me encontra. Como nós dois damos umamãozinha ao acaso, com frequência nos sentamos depois para umasegunda xícara de café.

Convidei-a para ir a um concerto na hora do almoço no auditórioda prefeitura. Ela aceitou com prazer, mas fez a observação de queescadas são um obstáculo intransponível.

À uma hora, almoço no restaurante interno, e muitas vezes Evertaparece para um pão com croquete. A decisão de comer lá embaixotem que ser tomada com uma semana de antecedência. Osmoradores recebem inclusive um formulário. Nele deve serespecificado quando se vai almoçar ou jantar no restaurante dacasa nos próximos sete dias. Para o jantar, pode-se escolher entretrês pratos principais, duas entradas e duas sobremesas. É sómarcar com cruzinhas. O nome de cada um já está no alto, assimcomo todas as restrições alimentares.

Evert sempre preenche para o almoço sete vezes “pão comcroquete”, quer ele venha almoçar, quer não. Sei por minha espiãque o chef de cozinha reclamou para a diretora sobre o desperdíciode pão com croquete todas as vezes que ele não vem, mas a sra.Stelwagen não conseguiu achar nada no regulamento para evitarque isso aconteça.

Quinta, 14 de fevereiroHoje de manhã, bem cedinho, Evert pôs um cartão embaixo da

porta de Eefje pelo Dia de São Valentim. Veio aqui às 8h me dizer.Ele ainda fedia um pouco a álcool e era evidente que não tinhatomado banho.

— Assim você já sabe e pode insinuar que foi você quem pôs. Éum cartão com dois cisnes. Bem romântico. Agora vou voltar para acama. Boa noite, Henkie.

Fiquei sem saber o que dizer.Quando fui comprar uma nova escova de lavar louça ontem, uma

garota de uns dezoito anos estava no caixa. Eu queria pagar, masnão conseguia encontrar minha carteira.

A caixa me olhava irritada e já queria atender à senhora queestava atrás de mim, mas a cliente disse:

— Nada disso, este senhor primeiro. — Para mim: — Fiquetranquilo, não tem pressa.

Finalmente encontrei uma nota de dez.— Por favor.— ...A garota pôs o troco sobre o balcão.— Muito obrigado.Nem mesmo olhou para mim.Há pessoas que sentem um profundo desprezo por tudo o que é

velho, grisalho e lento.Essa pirralha era uma dessas. É difícil se defender contra uma

total falta de respeito.A sra. Van Diemen espera que o novo papa a ser escolhido venha

a Amsterdã a tempo de coroar Willem Alexander. De preferência,

que seja um papa holandês. A sra. Van Diemen logo, logo vai para aala fechada.

Sexta, 15 de fevereiroEvert recebeu uma carta de Eefje: “Muito obrigada pelo lindo

cartão. Por acaso vi quando você o colocou sob minha porta.Gostaria muito de conhecê-lo melhor”.

Evert ficou completamente atônito. Tanto que não consegui contero riso. Dose do próprio veneno, meu amigo. Então ele jogou umabanana em minha cabeça. Acabou atingindo seu único vaso deflores: fez uma trinca enorme.

— Hoje à tarde também vou comprar um maço de tulipas paravocê.

Estão todos ficando doidos aqui com mais neve caindo todo dia!Também fiz uma visitinha a Anja para saber se havia novas

fofocas sobre nossa diretora, que tinha de fazer alguma coisaimportante em algum outro lugar. Seu auxílio-vestuário foiaumentado para dois mil euros por ano. Desculpe, não aumentado,mas indexado.

Existe aqui na casa um enorme temor por Stelwagen. Pormandachuvas em geral.

Já eu gosto de ver mandachuvas caírem do cavalo.Alguns anos atrás, três dos homens mais poderosos do mundo

estiveram praticamente ao mesmo tempo nas manchetes: BorisYeltsin estava bêbado demais para descer a escada de um avião, opapa João Paulo não podia nem mais dizer “obrigado pelas flores”sem cair no sono, e Bill Clinton pôs seu charuto na caixinha daestagiária. Um charuto não vai queimar melhor depois disso, claro,mas muito pior foi ele não ter conseguido impedir que essa inusitadamaneira de fumar chegasse a todos os jornais. E, já que estoufalando disso: um ministro indiano, por engano, leu no Conselho de

Segurança da ONU o discurso que seu colega português haviadeixado na tribuna. Nem percebeu. Depois de cinco minutos, umcompatriota chamou sua atenção.

Com isso, quero dizer que devemos sempre dar àquelessuperiores a nós o desfavor da dúvida.

Sábado, 16 de fevereiro— Sinto gosto de cavalo! — gritou o gordo Bakker bem alto no

refeitório. Na sequência, quase todos que tinham pedidoalmôndegas de repente sentiram gosto de carne de cavalo. Ocozinheiro foi chamado.

—Não, isso é impossível. A carne veio como sempre do açouguepara restaurantes.

— Sim, e daí? O que isso significa? Também podem moer cavalocom a carne deles. Estou sentindo gosto de cavalo. Não sou louco!— bufou Bakker.

O problema é que Bakker é louco, sim, e além do mais um loucomuito desagradável.

Chamaram a chefe de serviços internos, mas não adiantou nadaela falar alto. Por fim, todas as almôndegas foram substituídas porlinguado frito. A chance de que houvesse alguma carne de cavalono novo prato pareceu mínima para a maioria.

Há anos que olhos de porco e tetas de vaca são moídos com acarne. Nunca foi problema. Agora, de repente, tanto auê por causade um pedaço de cavalo na carne moída.

Lá embaixo, no salão de café, o rádio está sempre ligado das 10hàs 12h. Podemos ouvir a transmissão para os doentes do hospital.Ninguém sabe por quê. A maioria dos moradores se identifica com orepertório holandês que é apresentado: para os doentes, tocammuito Willeke Alberti e Maria Servaes-Bey, mais conhecida comoCantora Sem Nome.

No ano passado, perto da Páscoa, alguém se arriscou umamanhã a sintonizar uma emissora de música clássica: acabaramcantarolando e batendo palmas no ritmo de Paixão segundo São

Mateus .A sra. Blokker falou outro dia que esperava que tocassem Heb je

even voor mij? , de Frans Bauer, no funeral de Nelson Mandela.Tento me condicionar a ignorar a música ambiente. É importante

não se sentar muito perto das caixas de som. Ao meio-dia acaba atransmissão para os doentes. É uma delícia ouvir o relativo silêncio.

Domingo, 17 de fevereiroA noção de em que dia da semana nos encontramos desaparece

quando ninguém precisa ir ao trabalho e todos os dias seassemelham. É claro que os funcionários trabalham, mas elesfazem o mesmo todos os dias.

O único dia que se distingue é o domingo. De manhã, porque trêsquartos dos moradores vão para a igreja; à tarde, porque filhos enetos vêm fazer visita. Para alguns, esse é o único contato com acivilização. E mesmo que o visitante às vezes demonstre um tédiointenso, continua valendo: ter muitos visitantes dá status. Oantipático sr. Pot passa a primeira metade da semana falando sobrequem veio visitá-lo e a segunda metade sobre quem virá. Ele temonze filhos. Pot é o tipo de cara que espera na faixa de pedestresaté que venha um carro e só então atravessa.

Ninguém nunca vem me visitar. No domingo à tarde, em geralassisto a um filme alugado na locadora. Cinematograficamente,estou bastante em dia. Tenho uma tela plana de tamanho médio emmeu quarto. Quando a TV não está ligada, coloco uma imitação debiombo chinês na frente. Às vezes assisto com Evert, mas ele gostaprincipalmente de filmes de ação e catástrofe, que não fazem meugênero. Evert de vez em quando recebe visita de seu filho e àsvezes uma netinha vem junto. Quanto a Eefje, na verdade não sei.

Esboço de um dia típico. Parte 2Só agricultores do leste de Groningen e moradores de asilos

ainda comem uma refeição quente na hora do almoço. Nós, não.Não me pergunte por que somos exceção, mas estou contente comisso.

Depois do almoço, frequentemente tiro uma soneca de quinze

minutos como prelúdio para as atividades da tarde. Gosto deatividades ao ar livre, mas devo dizer que minhas limitações demobilidade tornam isso cada vez mais trabalhoso. Ando comdificuldade e me foi recomendado usar o micro-ônibus comotransporte. Não é divertido. Não reclamo pelos dois euros, mas aConnexxion deveria se chamar Disconnexxion. Eles realmente têmque se esforçar muito para conseguir um serviço tão ruim. Digamosque a pontualidade e a Connexxion têm uma relação complicada.Velhice e impaciência, por sua vez, andam de mãos dadas.

Segunda, 18 de fevereiroPara mim, de todos os sentidos, o olfato é o que ainda funciona

melhor. Isso nem sempre é uma bênção aqui. Cheira a gente velha.Ainda lembro que, quando criança, achava estranho o cheiro dacasa de meus avós. Um ar indefinível misturado com cheiro decharuto. Roupas úmidas que ficaram tempo demais num sacoplástico.

Não é tão mau com todos os moradores. Mas quando façoalgumas visitas enfio algodão no nariz. Bem fundo para queninguém veja.

O fato de que muitas pessoas quase já não tenham mais olfatoparece uma licença para peidar despreocupadamente, e com ahigiene bucal também não são lá essas maravilhas. É como secomessem lixo.

Já eu morro de vergonha só de pensar que, com minha ligeiraincontinência, possa deixar um rastro mínimo de cheiro de xixiaonde quer que eu vá; por isso, me troco duas vezes por dia, usobastante pós-barba, lá embaixo também, e chupo muita bala dehortelã.

Em vez do pós-barba, às vezes uso uma fragrância. The newfragrance for old men. Mantenho-me atualizado. Quando pedi umperfume para homens mais velhos na farmácia, eles ficaram mudospor um instante. Depois tentaram me empurrar um frasquinho decinquenta euros.

Muitos moradores estacionaram no tempo com a água-de-colônia,Fresh Up e Birkenwasser. O cheiro de cinquenta anos atrás aindapaira por aqui.

Esboço de um dia típico. Epílogo

Eu me obrigo a fazer pelo menos uma caminhada por dia, mesmosob chuva forte, se não for possível de outra forma.

À tarde, leio muito. Jornais, revistas e livros. Faço assinaturastemporárias gratuitas de tudo o que aparece. Nem tanto poreconomia, mas mais por esporte.

No fim da tarde, uma visita para tomar um chá aqui ou ali ou,umas duas vezes por semana, um vinho com Evert. Ou ele vemtomar um drinque aqui comigo. Evert sempre tem bebidas boas emquantidades ilimitadas. Eu bebo com bastante moderação, senão jácaio no sono antes do jantar.

Depois do drinque, me arrumo um pouquinho e vou jantar láembaixo. E, apesar de todas as reclamações, em geral acho acomida muito boa. Mando regularmente cumprimentos aocozinheiro.

Depois do jantar, café. Depois do café, televisão. Depois datelevisão, cama. Não é lá muito edificante nem há nenhuma grandeaventura. Não posso fazer nada.

Terça, 19 de fevereiroOntem à tarde, por acaso, aconteceu a criação do clube dos

rebeldes.Na terceira segunda-feira do mês, costuma haver uma atividade

cultural no programa da sala de recreação. Em geral, umaapresentação de arrepiar os cabelos com velhos que batem palmasno ritmo de Tulpen uit Amsterdam , mas às vezes é um concerto demúsica clássica. Todo mundo vai assistir, porque é grátis.

Ontem, a Associação de Música de Câmara trouxe um trio deviolino, violoncelo e piano. Com frequência são amadores semtalento que só fazem apresentações para terceira idade edeficientes mentais, mas desta vez a interpretação foi feita com totalentrega por duas belas moças e um rapaz, todos na casa dos trinta.Eles não se deixaram desconcentrar pela sra. Snijder, que quasesufocou quando engasgou com um biscoitinho, nem pelo sr.Schipper, que escorregou da cadeira e quase caiu em cima de umvaso de plantas. Interromperam o concerto por um instante e,quando os problemas foram resolvidos, continuaram tocandonormalmente. (Muito diferente do pianista que uma vez continuoutocando como se nada estivesse acontecendo enquanto a sra.Haringa era reanimada. No fim, uma das enfermeiras teve que pedirque ele, por favor, parasse de tocar. Para a sra. Haringa já não faziamuita diferença.)

De qualquer modo, depois da apresentação estavam numa mesa:Evert Duiker (que no fundo gosta mais de música tipo André Hazes),Eefje Chama (que o leitor já conhece), Edward Schermer, Grietje deBoer, Graeme Gorter e Hendrik Groen. A conversa caiu na faltacrônica de acontecimentos. Então, Graeme sugeriu que, na

ausência de ação, deveríamos buscá-la com mais frequência forada casa de repouso.

“Simplesmente alugar o micro-ônibus duas vezes por mês para ira algum lugar. Suponham que as seis pessoas que estão aqui namesa participem e cada uma sugira quatro programas; assim,teremos vinte e quatro passeios por ano. É um bom prospecto,não?”

Nisso ele estava absolutamente certo, e em seguida, porsugestão de Grietje, ficou decidido fazer um encontro na sala derecreação nesta noite para a reunião da associação privada Tô-velho-mas-não-tô-morto (Tovemantomo).

Estou superanimado.

Quarta, 20 de fevereiroMinhas expectativas eram grandes e foram correspondidas: uma

animada reunião inaugural. Demos muita risada, o entusiasmo eraenorme, e a bebida, para nossos padrões, fluiu em abundância.Evert levou vinho tinto, vinho branco e genebra.

Depois de um encontro demorado e divertido, ficaramdeterminadas as seguintes regras, sem votação nominal:

1. O objetivo da associação é tornar a velhice mais agradável pormeio de passeios e viagens.

2. Os programas começam a partir das 11h na segunda, naquarta, na quinta ou na sexta-feira.

3. Os participantes não podem reclamar.4. É preciso levar em conta as dificuldades de cada um.5. É preciso levar em conta o valor da pensão básica do governo.6. O organizador não dará informações com antecedência, além

do estritamente necessário.7. Levando em conta os pontos de 2 a 6, tudo é permitido.8. O grupo é fechado. Até decisão em contrário, não serão

admitidos novos membros.Eefje colocou seu laptop à disposição, caso seja necessário para

quem estiver responsável pela organização do passeio, e ministraráem curto prazo o curso “Google para iniciantes” para ensinar a todoscomo procurar informações na internet. Ficou por conta de Graemeplanejar o primeiro passeio, depois Eefje, Grietje, eu, Evert eEdward. Via-se que todos estavam imediatamente buscando ideias.

As opiniões se dividem sobre a existência ou não decoincidências, mas foi, de qualquer forma, um acaso extremamentefeliz que justo essas seis pessoas tivessem se sentado juntas à

mesa na segunda-feira à tarde. Todos simpáticos, inteligentes e,principalmente, nenhum mexeriqueiro.

Quinta, 21 de fevereiroFicamos até mais ou menos 23h lá embaixo e no máximo rimos

um pouco alto demais. Não obstante, o seguinte recado estavapregado ontem à tarde no quadro de avisos, como se tivesse sidouma festinha de escola que fugiu do controle:

Devido a diversas reclamações com relação a excesso de ruído, adireção decidiu que a partir de agora a sala de estar permaneceráaberta até no máximo 22h30 de segunda a sexta-feira. Isso paragarantir a cada morador um descanso noturno sem perturbações.Também serão tomadas medidas para que não sejam consumidosmais que dois drinques, como estabelecido.

Nunca fiz nenhum acordo com ninguém sobre dois drinques. A leiseca está próxima, e Evert se preparou imediatamente para assumiro papel de Al Capone e organizar o contrabando de bebidas. Oclube dos rebeldes Tovemantomo está sendo provocado e se sentemotivado. Sem praça pública, gás lacrimogêneo nem Twitter,apenas por um recado no quadro de avisos. Obrigado por isso,direção.

Edward Schermer, surpreendentemente, pôs a boca no trombone.Em geral ele não fala muito porque é difícil compreendê-lo. Masbem agora, durante o chá, quando muitos moradores estavamreunidos, levantou-se e perguntou em alto e bom som quem tinhareclamado do barulho.

Fez-se um silêncio desconfortável.Edward esclareceu depois, devagar e com dificuldade, e

justamente isso fez com que fosse impressionante, que lamentavamuito que o queixoso não tivesse ido primeiro falar com ele nemcom um dos outros que ficaram no andar de baixo até mais tarde.

Novamente silêncio.— Consideremos, então, que não foi ninguém que está aqui

agora — concluiu e foi de novo se sentar.Eefje olhou para o círculo ao redor com um sorriso afável.— Realmente é uma pena não conseguirmos conversar uns com

os outros como adultos. — E, com isso, deu um olhar longo eenfático à sra. Surmann, que ficou muito nervosa.

— Não fui eu, viu? — declarou, sem que ninguém tivesseperguntado.

— O que não foi você?— Quem reclamou.— Que bom, então. — Eefje deu um sorrisinho, o mais amigável

possível.Deve ter visto ou ouvido alguma coisa. Não sei se devo perguntar

a ela a respeito.

Sexta, 22 de fevereiroImpacto de meteoritos, painéis solares de combustão espontânea,

lasanha de cavalo, a volta de Berlusconi: não devíamos viver paraver nada disso. Mas o verdadeiro temor nos últimos dois dias é serposto na rua se considerarem que você não precisa realmente deassistência. O anúncio de que oitocentas das duas mil casas derepouso do país deverão fechar suas portas até 2020 causouinquietação. Pessoas com uma “indicação leve” deverão se virar porconta própria. Alguns companheiros do asilo começaramimediatamente, por via das dúvidas, a deixar claro o quanto eramdependentes, de maneira que daqui a sete anos possam ficar ondeestão. Meus caros, posso tranquilizar a todos: daqui a sete anostodo mundo aqui vai estar morto ou completamente dependente!Gostaria de ter dito isso.

Esse medo completamente irracional que às vezes toma contadas pessoas idosas...

E quem não quiser esperar sentado até ser enxotado de seuquarto pode se inscrever no 50Plus para a formação de quadrospolíticos. Eles estão procurando pessoas para conselhosmunicipais, conselhos estaduais, Congresso, Senado e ParlamentoEuropeu, porque o 50Plus continua a subir nas pesquisas. Issopromete muita diversão quando mais tarde todas as nulidadespolíticas da terceira idade realmente puderem dar palpite sobre tudoe mais um pouco.

Meu médico é um cara estranho. Quando questionei comoestavam as coisas comigo, ele perguntou:

— O que o senhor quer ouvir?— Bem, eu gostaria muito de ouvir que estou supersaudável, mas

mais realista seria: quanto tempo eu ainda tenho, mais ou menos?— O senhor ainda pode viver muitos anos, se tudo correr bem,

mas também pode estar acabado daqui a um trimestre.Quem usa num contexto assim a palavra “trimestre”? Ninguém, a

não ser o dr. Oomes. E ele mesmo teve que rir quando falou.Quando eu disse que aquela não era uma resposta muito clara,

ele riu de novo. E como ele, aparentemente, estava tão bem-humorado, ousei perguntar se tinha mandado a assistente social mevisitar para saber se eu tinha planos de suicídio. Até isso ele achouengraçado.

— É verdade, pensei, um pouco de atenção não fará mal. Moçasimpática, não? — E já foi logo dizendo: — Bom, até a próxima.

Um minuto mais tarde eu já estava desnorteado do lado de fora.Aprendi de novo a velha lição: quando for ao médico, escreva

todas as suas dúvidas num papelzinho e pergunte uma por uma.

Sábado, 23 de fevereiroO clube dos rebeldes tem um curso de Google com Eefje hoje à

noite. A notícia já repercutia um pouco pelos corredores. A sra.Baken se insinuava para ser convidada: “Que legal, hein? Semprequis aprender isso”. Mas há uma seleção rigorosa na entrada quenão deixará Baken passar. Ela é suspeita de ter dedurado o velhodachshund que era mantido clandestinamente no quarto. Todos sãoinocentes até prova em contrário, mas na dúvida: não pode entrar.

Perguntei a Eefje se ela sabia quem tinha reclamado do barulhona última terça. Ela comentou que tinha ouvido a sra. Surmann falarpara a vizinha de quarto que tinha feito uma queixa à diretora.

“Não teremos cem por cento de certeza enquanto não soubermossobre o que era a queixa, mas há motivos para desconfiar.”

Ontem o cozinheiro recebeu um pedido para incluir bife de cavalono cardápio. “De preferência carne de potro e nada de cavalobombado com hormônio”, dizia a carta anônima. Pelo menos, esseera o boato. E o boato provocou uma animada discussão na mesasobre animais possíveis ou não de comer. Evert foi logoperguntando se sanduíche de macaco deveria ser liberado. Foimotivo para mais quinze minutos de falatório.

Agora vou me deitar um pouquinho. Estou cansado – não mepergunte por quê – e nesta noite quero estar bem-disposto.

Domingo, 24 de fevereiroNa hora de abrir as cortinas hoje de manhã, ouviram-se palavrões

por todo lado: neve de novo. Ainda que palavrões de baixo calibre,do tipo “cacilda”. Mas estamos mesmo de saco cheio do inverno. Sole calor para nossos velhos ossos, por favor. E não calor demais, nomáximo uns vinte e dois graus. As margens são restritas.

A campeã de patinação no gelo Atje Keulen-Deelstra morreu.Tinha só setenta e quatro anos. Isso bate forte aqui. A campeã maisgente fina que tivemos! Ao lado de Fanny Blankers Koen. Essesdois nomes também soam bem, quando juntos. Pessoas velhasgostam dos velhos heróis. Não se troca de heróis facilmente.

Deixo de acompanhar as pesquisas por um instante e Henk-Krol-o-salvador sobe virtualmente para vinte e quatro cadeiras noParlamento. O partido 50Plus vai ter que evitar daqui a pouco quetodos os anciãos da Holanda continuem sendo descamisados esejam triplamente prejudicados.

“Eles querem nos pegar porque não podemos fazer nada. Nãopodemos fazer greve nem nada assim. Ninguém faz nada por nós.”O papel de vítima cai como uma luva para os idosos. Felizmente,nem todo mundo fica resmungando com a multidão.

As mulheres aqui acham Henk atraente. É verdade que ele quasesempre usa uma echarpe bonita. Pela idade, Henk ainda poderia sero genro ideal, se não fosse gay.

Tivemos ontem uma noite muito agradável no curso de Google.Evert pronuncia “guglou” e agora tem gente pensando que estamosfazendo alguma coisa que tem a ver com perus. Já perguntaramquando vai ser o jantar festivo.

— Quando o peru chegar — disse Graeme.

Aperitivos caprichados e boa companhia. Eefje, a amável anfitriã.Evert, linguarudo, mas não demais, bebeu moderadamente.Edward, que não diz muito, mas quando diz, vale a pena escutar.Graeme, observador, ainda bastante tímido. E, por fim, Grietje, arevelação de ontem à noite, por seu grande conhecimento decomputadores, o qual ela demonstrou com modéstia. Conversandoprimeiro com Eefje, ela supervisionou metade da turma e praticamosmais de duas horas procurando informações a partir de exemplossugeridos pelos cursistas. Nos exemplos, ninguém deixou escaparnada sobre os eventuais planos para nossos passeios. Evert queriamuito pesquisar quais eram as possibilidades de fazer bungeejumping em Amsterdã. Edward disse que não participaria porqueaquilo era tããão 2012. Pena que ninguém escutou.

Segunda, 25 de fevereiroTirei uma fatia de meu polegar com o cortador de queijo. Na

verdade, eu ainda tinha um pedacinho de queijo que já estava umpouco duro e tentei cortar uma última fatia. (Quando outra pessoaestá mexendo desse jeito com uma lâmina afiada, olho para o ladopara não ver.) Minha recompensa foi um banho de sangue na palmada mão.

Tive que correr até a enfermeira para um curativo, porque é difícilpôr a bandagem na própria mão. E não deu outra.

— Sr. Groen, sr. Groen, o senhor sabe muito bem que isso éperigoso! Deve-se sempre usar o cortador na direção oposta aocorpo.

A sra. Stelwagen convidou Eefje para uma conversa em seugabinete nesta quarta-feira. Eefje parece tranquila a respeito. Talvezela seja mesmo calma, talvez não queira criar alarde. Se fossecomigo, ficaria bastante nervoso com um convite desse tipo. Nãoposso imaginar que Stelwagem queira apenas saber se ela estágostando da nova residência. Nossa diretora é uma mulhertraiçoeira: aparentemente amável, mas com muita sede de poder.Sempre muito compreensiva, “mas infelizmente... são as regras,pois é”. Na maioria das vezes, suas próprias regras. É fácil seesconder atrás delas. E, se for necessário, de repente surge umanova regra “para favorecer os moradores”. Ela é esperta o suficientepara garantir que não haja abusos. Pequenos problemas sãovarridos para baixo do tapete ou a culpa é colocada nos outros.Protegida pelo conselho administrativo, ela está firme no trono. Umtrono temporário que ela trocará assim que tiver a chance, estoucerto disto.

Sua aparência é sempre irrepreensível, é sempre simpática,calma e educada. Escuta e controla tudo. Tem aliados de confiança.Alguns são conhecidos, mas deve haver também gente trabalhandosecretamente.

Imperceptivelmente, ela exerce uma política sufocante. Qualqueriniciativa própria, tudo que sai do corriqueiro, ela empurra para olado com um sorriso.

Perguntei a Eefje se ela quer que eu vá junto.— Por quê? — perguntou ela.— Bem, ela é durona. É capaz de dobrar qualquer um com um

sorriso amistoso.— Veremos. Obrigada pelo conselho. Vou pensar a respeito.

Terça, 26 de fevereiroEvert perguntou se já não é hora de uma ação similar à do

biscoito no aquário. Ele está a fim de diversão.— Um pouquinho de agito faria bem a este barraco.Não pude discordar dele, mas temo que ações lúdicas sejam

principalmente paliativos.O problema real é insolúvel.Minha análise: envelhecer é um desenvolvimento ao contrário do

que tem um bebê até a vida adulta. Fisicamente, você parte daautonomia para cada vez mais dependência. Uma prótese dequadril, um marca-passo, uma pílula aqui, outra ali. É um beco semsaída. Se a morte demora demais para chegar, você acaba comoum bebê velho e incompreensível, de fraldas e meleca no nariz. Ocaminho de ida, de zero a dezoito anos, é lindo, desafiador,excitante: você está definindo sua própria vida. Por volta dosquarenta, você é forte, saudável e poderoso. Um período fantástico.Mas infelizmente a gente só se dá conta disso depois que adecadência já se instalou há um tempo, quando as perspectivas,lenta e silenciosamente, se tornam menores, e a vida, mais vazia.Até que as atividades diárias ganham a proporção de um biscoito euma xícara de chá. O chocalho do velho.

Não me leve a mal. Fui um pouco longe demais.Justo quando dei alguns passos importantes para desfrutar da

velhice com prazer. Com novos amigos e planos bárbaros. Uhu!

Quarta, 27 de fevereiroEstou escrevendo mais tarde do que de costume porque quis

esperar um pouco para saber como tinha sido a conversa de Eefjecom a diretora. Tomamos um café juntos antes e desejei-lhe boasorte quando foi para o encontro. Quinze minutos depois, ela jáestava voltando. Havia algo de resoluto nela, mas não me perguntecomo eu percebia isso. Talvez fossem seus olhos.

— Parabéns pela aguçada análise que fez antes, Henk. Foiexatamente aquilo.

E contou que a sra. Stelwagen primeiro tinha perguntado sobreseu bem-estar e, então, quase casualmente, que não era um hábitoem “nossa casa” receber hóspedes até tarde da noite.

— A senhora está se referindo a mim? — perguntou Eefje.— Não é nada pessoal, mas pensando na tranquilidade dos

moradores, não gostamos de ver pessoas circulando peloscorredores depois das dez da noite.

— Eu, pessoalmente, nunca ouvi nenhum tipo de barulho quepudesse incomodar.

— Outras pessoas, sim.— Isso é muito desagradável. Mas por acaso tem algo a ver

comigo?— Ouvi dizer que a senhora teve visitas alguns dias atrás.— É verdade. Pessoas muito tranquilas e educadas. Por via das

dúvidas, no dia seguinte perguntei a meus vizinhos de quarto, masninguém tinha ouvido nada nem tido nenhum problema. Felizmente.

Isso foi genial. Eu e Eefje demos um high five . O primeiro deminha vida. De onde esse impulso veio, de repente, eu não sei.

Stelwagen ficou sem ação por um instante, mas depois despediu-

se amigavelmente, como se não houvesse nenhuma tensãosubjacente.

— Isso ainda não acabou, Hendrik — disse Eefje. — Eu sinto.Depois ainda demos um pequeno passeio pelo jardim. A

primavera paira ligeiramente no ar. As campânulas-brancasflorescem entre entulhos de plástico e latinhas vazias.

Sentíamo-nos combativos. Acho que também posso falar por ela.

Quinta, 28 de fevereiroPeguei um panfleto sobre scooter voltado para idosos lá embaixo.

Tenho que aumentar meu raio de ação, senão daqui a pouco serei oelo mais fraco do Tô-velho-mas-não-tô-morto.

Graeme avisou que faremos o primeiro passeio na quinta-feira, 11de março. Nós nos reuniremos no portão à uma da tarde para sair.

Estou me debatendo para ter ideias de passeios legais. Nãoconsegui pensar em nada além do Rijksmuseum e, com essaproposta, não venço nenhum prêmio de originalidade. Além do mais,aquele museu está mais fechado que aberto. Mas, nada de pânico,ainda tenho seis semanas para pensar em algo melhor.

Eefje me fez ouvir uma parte do CD Passarinhos top 100 . Emsexto lugar está a felosa-das-figueiras (nunca tinha ouvido falar delanem conhecia seu cantar); em quinto, a corruíra; em quarto, o pisco-de-peito-ruivo (achava que eles só piavam); em terceiro, o tordo-pinto; em segundo, o rouxinol (que tem boa reputação em poemas ecanções); e a medalha de ouro é do melro-preto, finalmente umpassarinho que eu já ouvi cantar. E portanto há noventa e quatrooutros assobiadores. Cada um com seu hobby.

Depois de dez passarinhos, Eefje entendeu que meu interessenão era dos maiores.

— Você não gosta? — perguntou ela, já sabendo como eu mesentia.

Corei.— Claro que gosto.— Não sei por que não acredito, Hendrik.— Para ser sincero, desculpe-me, mas passarinhos só me

interessam quando são assados. E aí, em geral, eles não cantam

mais.Felizmente, ela deu risada.Será que o parque de flores Keukenhof não seria uma boa ideia?

É bem provável que mais alguém pense nisso. Daqui a umas seissemanas, será um bom momento para um programa assim.

Sexta, 1o de marçoO sr. Kuiper encontrou um artigo de jornal numa pasta de recortes

na biblioteca e o pregou no quadro de avisos. “Médicos a favor daretirada de rins de pacientes terminais vivos.”

A sra. Brandsma cancelou imediatamente uma operação queestava prevista.

— Prefiro ficar com esse mioma onde está, não vou deixar queme roubem os órgãos. Afinal, todos nós somos terminais aqui! —bradou, e esse seu último comentário faz sentido. A idade médiaaqui é, acredito, oitenta e nove anos, então pode-se muito bem dizerque somos estatisticamente terminais.

A razão da retirada de órgãos de pacientes vivos é porque assimeles estão mais frescos. Não sei se, em nosso caso, pode-se dizerque qualquer coisa é fresca. Os rins aqui também têm em médiaoitenta e nove anos. Não sei exatamente como funciona com a datade validade dos órgãos.

Mas que esse artigo é um pouco lúgubre, lá isso é. Imagine seacontece um milagre médico: contra todas as expectativas, apessoa se recupera de um ataque cardíaco e aí descobre quetiraram seus rins.

Escolher scooter para idosos é mais complicado do que parece.Existem muitos tipos e tamanhos – com raio de viragem grande oupequeno, por exemplo, o que é importante para saber se você podevirar para entrar em seu próprio quarto.

Com raio de ação grande ou pequeno. Quão longe você querchegar?

Com três ou quatro rodas. Quão rápido você faz uma curva?Também importante: que velocidade máxima você quer atingir?

Por fim, a pergunta mais holandesa: quanto custa um trecodesses?

Em breve vou conversar com o sr. Hoogdalen. Ele temconhecimento e também é um cara bem simpático.

Sábado, 2 de marçoAinda não foi encontrada a mulher que algum tempo atrás cavou

um túnel com uma colher em Breda e conseguiu escapar da prisão.Seria ainda mais legal se um idoso escapasse desta casa derepouso da mesma maneira. Pela força simbólica, claro, porque eleou ela também pode simplesmente sair pela porta da frente. Sódepois ficará complicado, pois a maioria dos moradores não tem umlugar para onde possa ir. Imagine a surpresa dos filhos.

— Bom dia, filho, vim morar com você.— Bem, papai, justamente agora é um péssimo momento para

isso!O idoso fujão também não conseguirá passar mais que poucos

dias num hotel no Veluwe. Depois, quando o dinheiro acabar, teráque voltar de cabeça baixa para o asilo ou procurar o Exército deSalvação.

Por falar nisso, há na Holanda treze mil pessoas “desaparecidas”,que na verdade deveriam estar na prisão. É uma quantidade e tanto.A polícia, aparentemente, não sabe procurar direito.

A memória se deteriora. Um leve Alzheimer aos poucos se tornaAlzheimer mediano. Tento lembrar quais eram os top dezassobiadores, mas não cheguei a mais que quatro passarinhos.

O que me surpreende é que algumas pessoas não conseguem selembrar de uma listinha de compras com três itens, mas se lembramde milhares de canções que ouvem no rádio e conseguem cantarjunto. Ou pelo menos cantarolar. Todas essas melodias estãoincrivelmente bem armazenadas! Memória e música ou a lei deconservação de energia. Um musical com todas as datas da históriaholandesa.

Domingo, 3 de marçoLá embaixo, na recepção, colocaram ontem um display da

farmácia Kring com uns cinquenta folhetos informativos. Faço umresumo dos temas empolgantes: diarreia, eczema, furúnculo,hemorroida, incontinência, pé de atleta, piolho, prisão de ventre,verme e verruga. Todos os males bem arrumadinhos em ordemalfabética. E indiscriminadamente, porque também vi folhetos sobreacne juvenil e cuidado pós-natal, coisas que não estão na ordem dodia por aqui.

Como se nesta casa já não se falasse o suficiente sobreproblemas e doenças.

Mas, sejamos sinceros, eu mesmo, tão discretamente quantopossível, peguei o folheto sobre incontinência e o pus no bolso. Aoque parece, encontro-me em companhia de um milhão de outrosholandeses. Isso significa que, por dia, tem uma piscina de urinavazando em calças e absorventes. Uhu!

Estão todos especulando e tentando adivinhar qual será o destinode nosso primeiro passeio com o Tovemantomo. Graeme, oorganizador, não abriu a boca. Evert quer começar uma casa deapostas onde possamos arriscar nossos palpites sobre para ondevamos.

A excitação lembra um pouco a sensação que tínhamos, quandoéramos crianças, na véspera da viagem com a turma da escola. Seé que me lembro bem de como era aquela sensação.

A sra. Schreuder (a do canário aspirado) está se perguntandoquem é agora o chefe do Vaticano. O antigo papa renunciou e onovo ainda não foi escolhido.

— Somos uma igreja sem dirigente — considerou.

— Como uma galinha sem cabeça — disse uma das irmãsSlothouwer, sempre a postos para uma provocação.

Imagino o conclave: cento e quinze velhos cardeais fechadosnuma sala, sem poder sair antes de subir fumaça branca pelachaminé, o que é uma trabalheira. Em 1978, a chaminé não estavafuncionando direito e jogou a fumaça preta de volta para a sala. Foicardeal tossindo para todo lado, com fuligem no rosto.

Segunda, 4 de marçoPânico enorme: a sra. Schaar escapou da ala dos dementes.

Convenceu um estagiário novo de que podia ir à rua semacompanhante. Como desculpa para o estagiário, um QI decinquenta e cinco. A sra. Schaar saiu graciosamente pela porta. Elaacha que é de origem nobre. Apresenta-se como lady Schaar.Sempre à procura de suas terras. Doida de pedra e, ainda por cima,diabética.

Boa parte dos funcionários foi mandada às ruas para procurá-la.Alguém perguntou a Stelwagen se não era o caso de acionar apolícia.

— Não, não é preciso, não há nenhuma razão para isso.A diretora morre de medo de publicidade negativa e tem um

tapete enorme para baixo do qual varre tudo o que não quer deixarir a público.

Um pouco mais tarde, a chefia da ala comunicou que a sra.Schaar tinha retornado. Isso deve ter sido mentira para acalmar osânimos, porque Schaar não foi vista em nenhuma parte. Evert quistirar a prova dos nove e disse casualmente a uma enfermeira quehavia visto lady Schaar na parada de ônibus. Dois minutos depois,dois funcionários saíram em direção à parada. Ficou claro, portanto.

Quarenta e cinco minutos mais tarde, a enfermeira “Compostella”– uma graça de pessoa com um nome espanhol impronunciável –veio dizer que a sra. Schaar tinha sido encontrada.

— Mas ela já não tinha voltado? — perguntou o sr. Bretjens.— Sim, mas agora ela voltou mesmo — disse ela, sorrindo.Passados cinco minutos, nossa lady entrava acompanhada pela

porta de trás. Toda suja de lama. Ela mesma contou mais tarde que

estava em suas terras durante a caçada. Parece que caiuesparramada na lama de um parquinho a dois quilômetros daqui enão conseguiu mais se levantar com as próprias forças. Um homemque passeava com seu cachorro a encontrou e avisou a polícia. Osagentes que a trouxeram de volta ficaram pelo menos vinte minutosno gabinete de Stelwagen. Depois disso, pediu-se aos moradoresque não comentassem sobre o caso, para o bem de todos.Stelwagen ainda procurou Evert especialmente para dizer que a sra.Schaar não havia pegado o ônibus.

— Eu nunca disse isso, enfermeira. Apenas disse que a vi naparada.

— Não sou enfermeira e tenho minhas dúvidas sobre o que osenhor diz ter visto. Aconselho o senhor a ser mais cuidadoso apartir de agora.

Evert, que chama todos os funcionários de enfermeira eenfermeiro, estava claramente pronto para um desafio.

— Mais cuidadoso do que eu sou é quase impossível, sra. donaenfermeira.

Stelwagen hesitou um pouco, virou-se e foi embora.Mais tarde os funcionários ainda saíram perguntando por todo

canto se o sr. Duiker tinha saído hoje. E ele tinha. O sr. Evert Duikernão é louco.

Terça, 5 de marçoOntem à tarde tivemos uma conversa divertida na mesa do chá a

respeito da notícia de que cientistas conseguiram conectar océrebro de dois ratos. Os ratos estavam a quilômetros de distância.

A questão era com o cérebro de quem você gostaria de serconectado se pudesse escolher. Muitos pais escolheram um de seusfilhos. Não creio que, inversamente, um filho gostasse da ideia depoder espiar a cachola de seu pai ou sua mãe. A sra. Brandsmaescolheu o cantor Ronnie Tober. O gordo Bakker gostaria de sercopiloto do cérebro de Obama.

Eu não consegui pensar em ninguém. É assustadora a ideia deolhar dentro da cabeça de outra pessoa.

Para grande decepção de alguns moradores, não foi possívelreservar um micro-ônibus para ir até a praça Dam no dia 30 de abril.A Connexxion não vai até o palácio naquele dia. Agora eles vãotentar um transporte até as margens do ij na esperança de ver ocasal real passar de barco. A sra. Hoogstraten já comprou binóculoscaríssimos. Ela rezou e pediu a Deus para chegar até o dia 30 deabril e ver o novo papa. Até me perguntou se eu também queriarezar por isso. Infelizmente para ela, Deus e eu fizemos um acordode não incomodar mais um ao outro.

Um banco foi roubado por dois assaltantes fantasiados develhinhos. Com máscaras de látex. Seria genial se atrás da fantasiaestivessem realmente dois velhinhos.

Quarta, 6 de marçoO primeiro sol do ano é o mais gostoso. Ontem à tarde passei

quarenta e cinco minutos sentado no banco em frente à casa derepouso. Fui o primeiro. Um pouco depois, o banco estava cheio.Alguns retardatários invejosos ficaram rondando desajeitados. Azardeles.

Tudo vai ficando mais lento com o passar dos anos. Andar, comer,falar, pensar. Ler também. Levo três ou quatro dias para ler o jornalgrosso de sábado, se não deixar de lado o jornal do dia. Só ontem litodo o especial sobre envelhecimento. Já tinha constatado antes:velhos estão na moda. Os bebês do pós-guerra estão seaposentando, a geração hippie virá daqui a alguns anos. Geraçõesque agora são ricas e poderosas e que aprenderam pelo menosuma coisa: cuidar bem de si. Ninguém precisa se preocupar comesses pseudovelhos pelos próximos quinze anos. Os 50Plus nãotêm nada em comum com os 80Plus que agora encontram seupenúltimo lugar de repouso nesta casa. Aqui estão pessoas queprincipalmente aprenderam a cuidar das outras, em especial deseus agora tão poderosos filhos, pelos quais são bastantenegligenciadas. Muitas pessoas foram obrigadas a vir para cá pelascircunstâncias: muito velhas e muito necessitadas de assistênciapara continuar vivendo autonomamente e muito pobres para pagarpor cuidados em casa. Acostumaram-se à ideia de que osdespreocupados dias de velhice transcorrerão num asilo.

Aos poucos as pessoas passaram a se sentir desconfortáveiscom a palavra asilo. “Velhice” tornou-se “terceira idade”, e o asilovirou casa de repouso. E a casa de repouso transformou-se numcentro de assistência. E recentemente fui incorporado a uma

organização comercial que oferece cuidados personalizados. Dápara ver por que os custos da saúde estão transbordando.

Quinta, 7 de marçoEu contei: aqui vivem cerca de cento e sessenta idosos. O centro

de assistência tem também uma enfermaria com mais umas oitentapessoas supervelhas, completamente dementes ou muito doentes.Não posso dar números precisos, porque há sempre um vaivém devivos e mortos. Suponho que, em média, as pessoas ainda vivamuns cinco anos depois de se mudarem para cá, portanto, issosignifica cerca de cinquenta mortos por ano para o centro deassistência e a enfermaria. Se você ficar bem velho aqui e aindaestiver bem das pernas, nos últimos dez anos da vida verá unsquinhentos funerais e cremações. Uma bela perspectiva.

Não conseguia encontrar minhas chaves em lugar nenhum hojede manhã. Revirei do avesso minhas dependências, que mesmocom o quarto de dormir não são lá tão grandes. Por sorte eu nãotinha pressa. Passei pelo menos uma hora procurando, quase semxingar, até que finalmente encontrei as chaves na geladeira.Distração. Quando se fica velho, assim como acontece com ascrianças, perdem-se constantemente as coisas; a diferença é que jánão temos a mãe para saber onde tudo está.

Sexta, 8 de marçoFalei em morte ontem e ela acaba de fazer uma visita ao

“exercício divertido para a terceira idade”.— Não estou me sentindo muito bem — disse a sra. De Leeuw,

que dois minutos depois não se movia mais. Estava sentada meiocaída e não pegou a bola que foi jogada para ela.

— Concentre-se um pouco, sra. De Leeuw — ainda disse Tine, acoordenadora da atividade. Então a sra. De Leeuw escorregou dacadeira para o chão.

Fizeram reanimação cardiorrespiratória e tentaram o desfibrilador.As impertinentes irmãs Slothouwer olhavam fascinadas, até quealguém as pôs para fora. Depois, durante o café, fizeram um relatodetalhado de todo o incidente. Se pudessem, as irmãs Slothouwercom certeza iriam a execuções em praça pública.

A morte da sra. De Leeuw provocou um pequeno desânimo noalto-astral que impera nos primeiros dias com clima de primavera.Há moradores que, quando está frio ou úmido, passam semanassem sair ao ar livre. Então, com o primeiro sol de primavera, saemtodos para passear em êxtase. A notícia de que talvez comece anevar novamente daqui a quatro dias fez com que a compulsão porpassear fosse ainda maior ontem.

Eu queria muito ter dado uma caminhadinha com Eefje, mas elanão estava em casa. Então, fui até meu amigo Evert. Entrei em suasala bem na hora em que ele cortava os pelinhos do nariz com umatesourinha. Achei aquilo um pouco embaraçoso, mas Evert, mesmodepois de minha chegada, continuou sem nenhuma pressa. Sódepois que ele cortou também os pelinhos da orelha saímos.

— Nunca se sabe quem a gente vai encontrar. — Foi sua

explicação.

Sábado, 9 de marçoEstou doente. Vou poupá-lo dos detalhes desagradáveis. Espero

estar melhor antes da quinta-feira, que é o dia de nosso primeiropasseio.

Quarta, 13 de marçoVou conseguir, por um triz. Os membros do clube me

perguntaram se o passeio deveria ser adiado, mas não será preciso.Já estou bem-disposto de novo.

Na segunda, o médico esteve aqui. Ele deixou escapar queparecia ser gripe suína. Alguns anos atrás, a Holanda toda entrouem alvoroço com essa gripe, e os epidemiologistas estavam otempo inteiro no rádio e na TV ; agora, que eu talvez a tenhacontraído, meu médico nem se deu ao trabalho de fazer umdiagnóstico decente.

Uma enfermeira mais tarde me pediu encarecidamente que, casoeu comentasse com outros moradores, dissesse apenas que tinhagripe e deixasse a palavra “suína” de lado.

— Quem mandou a senhora me dizer isso?Ela não podia falar.Dá o que pensar. Será que a sra. De Gans morreu de gripe

aviária na semana passada?“Eles” com certeza estão com medo de que a gripe provoque uma

nova onda de histeria entre os velhinhos.Ontem Evert veio aqui com uma cesta de frutas: uma caixa de

ovos com três kiwis e três tangerinas dentro.Eefje trouxe um livro: Quinhentos poemas que todos deveriam ler

. Propus-me a ler um por dia e espero ser agraciado com osquinhentos dias.

A conselho do clínico geral, marquei uma consulta com o geriatra.Meu pot-pourri de problemas era algo típico para o seu confrère .Quando falou esta última palavra, ele parecia ter uma batata quentena boca. Escreveu uma carta ao amigo, a qual me deixou ler e da

qual a essência era: “Veja se você ainda pode fazer alguma coisapor este senhor simpático”.

Já posso ir na semana que vem. Talvez haja um pensamentocomercial nisso: velhinhos têm que ser atendidos o mais rápidopossível, senão podem morrer antes de você ganhar seus trocados.Só o agente funerário ainda ganha alguma coisa com a morte.

Meu clínico geral sui generis diz que o geriatra é um cara suigeneris . Isso promete.

Sexta, 15 de marçoCom só cinco minutos de antecedência (!), o micro-ônibus da

Connexxion passou e o grupo embarcou dando alguma risada. Apóstrês minutos, já circulava a balinha de hortelã. Quinze minutosdepois, descíamos na Estação Central. Lá um táxi aquático nosesperava.

Quando já navegávamos havia alguns minutos, Evert fingiu estarrealmente mareado e depois contou que tinha conhecido umapessoa que viajava muito e colecionava sacos de vômito das maisvariadas companhias aéreas. Em seguida, imitou Mr. Bean numacena em que ele pega um desses saquinhos, enche-o de ar e oestoura, sem saber que já tinha sido usado.

Eefje olhou com desaprovação e pediu uma votação paraexpulsar Evert do clube. Ele ficou estarrecido, até que Eefjecomeçou a relinchar de tanto rir de seu rosto cabisbaixo. Esse jeitoque ela tem de rir me incomoda um pouco, mas, até agora, é seuúnico senão.

Depois de uma hora navegando, desembarcamos no museuHermitage, no rio Amstel. Ali recebemos uma extensa visita guiadade um senhor muito chique que sabia muito sobre arte e pareciaimaginar que nós todos também queríamos saber.

Em seguida, cerveja, vinho e bitterballen num café na esquina daponte Amstel. O micro-ônibus da terceira idade foi nos buscar ali umpouco depois das cinco e meia com um motorista um poucosurpreso, que em geral transporta velhos ranzinzas de e para ohospital e agora tinha que buscar uma turma animada no boteco.

Exatamente às 18h nos sentamos à mesa para a chicória comalmôndegas. Nosso divertido sexteto contrastava com os outros

colegas de mesa.A sra. Stelwagen, saindo de seu gabinete em direção à porta,

ergueu as sobrancelhas quando passamos. Posso estar enganado,mas senti uma ligeira desaprovação em seu olhar.

Graeme recebeu agradecimentos praticamente incompreensíveisde Edward pelo fato de ter colocado o nível lá em cima já noprimeiro passeio.

— Vosh capsho.— Você caprichou. — Graeme fez a tradução simultânea, pois ele

é quem melhor entende Edward. Um diálogo comovente.— Odligadu.— Obrigado a vocês.Depois, a disposição diminuiu bastante. Às 20h, todo o clube

Tovemantomo saiu do refeitório e, provavelmente, o mexericocomeçou.

Sábado, 16 de marçoPegamos gosto pela coisa. Foi concebido um plano, paralelo ao

Tovemantomo, de iniciar um clube de gastronomia. Nosso velhosexteto, menos Evert, mais o sr. e a sra. Travemundi, pretendecozinhar uma refeição completa e sofisticada uma vez por mês. OsTravemundi, Ria e Antoine, tocaram um restaurante por muitos anose são cozinheiros apaixonados e gourmands que aqui comfrequência saem da mesa descontentes. Eles prometem. Eu mesmosou mais do serviço braçal na cozinha, cortar, picar e mexer.

Ontem estávamos à mesa, ainda desfrutando do prazer doprimeiro passeio, quando Ria e Antoine timidamente perguntaram sepodiam sentar-se conosco. Naturalmente.

Acharam tão legal nossa ideia dos passeios! Não que elesquisessem se tornar membros do clube, mas queriam saber setambém estaríamos interessados em organizar de vez em quandojantares com um grupo seleto. Por exemplo, uma vez por mês. Esempre com pratos especiais.

A maioria dos olhos logo começou a brilhar.Apenas Evert disse, sem rodeios, que não gostava de frescuras e

tinha implicância com qualquer coisa que fosse mais complicadaque fritar um ovo.

Ele foi ignorado pelos cinco outros que queriam, sim,experimentar cozinhar coisas mais sofisticadas, como Antoinesugerira.

Ficou decidido que Antoine, Ria e eu conversaríamos comStelwagen na segunda-feira para perguntar se seria possível usaras instalações da cozinha uma vez por mês.

Minha vida de repente ficou agitada.

Domingo, 17 de marçoTemos um novo papa. Segundo fontes não confiáveis – as irmãs

Slothouwer –, hoje de manhã rezaram por ele e por um clima melhorna sala de leitura. Alguns rezaram só para que o tempo melhorasse.Não quero me antecipar aos resultados, então, por enquanto, voudeixar meu casaco de inverno por perto.

Quanto ao novo papa, ele até agora tem minha simpatia porque,quando cardeal, ia de ônibus para o trabalho. Ou de metrô, acho.Fico imaginando ele sempre tirando a mitra ao entrar e sair dovagão. (Aliás, com dignitários é sempre bom manter uma pontinhade desconfiança: o premiê britânico Cameron ia de bicicleta para oParlamento, pelo bem do meio ambiente, mas mandava um carrooficial levar sua pasta.)

As pessoas aqui gostaram que seja um papa argentino por causada princesa Máxima. Elas esperam que o papa Francisco venhapara a coroação.

Para os que não recebem visitas, casta a que eu pertenço, osdomingos não são um grande divertimento. Os prazeres que antesfaziam do domingo um dia tão atraente, como dormir até mais tarde,desfrutar de um longo café da manhã, ler o jornal e ouvir música,agora são coisas de todo dia. O domingo se difere apenas pelasvisitas que os outros recebem.

Essas visitas frequentemente vêm com um único objetivo: irembora o quanto antes. Atenção para outros moradores é tempodesperdiçado. No máximo um cumprimento no corredor ou na salade recreação.

Até pouco tempo atrás, eu em geral passava a tarde de domingofazendo caminhadas, mas já não consigo mais.

Segunda, 18 de marçoStelwagen achou o clube de gastronomia uma ideia “original”. Irá

consultar os diversos envolvidos a respeito de nosso pedido de usara cozinha uma vez por mês. Ela prometeu dar uma resposta numcurto prazo. Em seguida ainda nos ofereceu uma xícara de chá combiscoitinho. Depois de falar sobre algumas coisas sem importância,olhou seu relógio.

— Nossa, já é tão tarde?O que significa: o tempo de vocês acabou.Às vezes penso se um clube de gastronomia não seria muita

frescura, mas, por outro lado, a gente não pode ser tão tacanho aponto de não dar uma chance a interesses diferentes. Pelo menosvai acontecer alguma coisa.

Mais três noites, e terei alcançado mais uma primavera. Nospróximos dias vou começar uma grande limpeza. Descongelar ageladeira, arrumar os armários da cozinha. Trocar as roupas deinverno pelas de verão. Deixar luvas e um pulôver grosso por perto,por enquanto.

Ontem à tarde Evert esteve aqui. Ele me convidou para umdrinque, mas quando cheguei a sua casa, às 16h, ele já estava bemadiantado. Meia hora mais tarde, caiu no sono em sua poltrona. Euo cobri com um cobertorzinho, dei comida e saí para passear comMo e deixei um bilhete sobre a cômoda, entre os parentes mortos:“Foi muito gostoso. Obrigado pelos cem euros”.

Terça, 19 de marçoO próprio geriatra está no ponto para um geriatra: sexagenário

avançado e avançado no peso – calculo uns cento e vinte quilos.Aparência alegre, o que, para mim, é pré-requisito para um médico.Notícias ruins batem mais forte com uma voz de túmulo.

Não que ele tivesse notícias ruins, o dr. Jonge – nome sugestivo–, mas também não eram boas: uma grande parte está chegando àdata de validade ou já a ultrapassaram um pouquinho. As juntasmostram traços de desgastes incômodos, a próstata não pode maisser consertada, os pulmões estão bastante defumados e funcionama meia potência, e o coração vai mal. Uma sorte: a mente estálúcida o suficiente para viver a decadência conscientemente.Nenhum sinal de Alzheimer, no máximo um pouco de esquecimento,o que é comum com a idade.

Bem, muito obrigado, doutor.Ele olhava com jeito brincalhão, fazendo piada aqui e ali em meio

a essa lista pra lá de triste, e decidiu concluir com o comentário deque podia muito bem se colocar em meu lugar porque ele mesmotinha mais ou menos o mesmo tanto de problemas. Disse isso comuma gargalhada. De outra forma, teria sido realmente estranho: ummédico que reclama de sua saúde com o paciente.

Receitou-me algumas novas pílulas e, por pouco, não disse queeu podia tomar quantas quisesse.

— Os médicos hoje são tão bons que praticamente não seencontra mais nenhuma pessoa saudável — soltou no final daconsulta.

Tive que parar um pouquinho para pensar.No último segundo, ousei perguntar se ele não tinha nenhum

estimulante, um pouco de doping para as horas difíceis. Aí foi elequem teve que parar um pouco para pensar.

Marquei um retorno imediatamente.

Quarta, 20 de marçoA diretora nos comunicou hoje (a mim e a Antoine e Ria

Travemundi) que o plano para um clube de gastronomia não seriapossível por motivos técnicos de saúde e segurança.

— Infelizmente, infelizmente! — disse ela, com um suspiro.Estranho, mas não acreditei nem por um instante que ela estava

desapontada.— Quais motivos técnicos de saúde e segurança? — perguntei.Seguiu-se uma complicada explicação sobre quem pode e quem

não pode fazer quais coisas nesta casa. No fim, a questão era quenão podíamos usar os processadores de alimentos. Se ofizéssemos, a casa de repouso não estaria segurada contraacidentes. Rebati dizendo que não queríamos usar osprocessadores. Algumas panelas e facas seriam suficientes.

— Pois é, mas não é tão simples assim.Se nos encontrássemos no mesmo espaço que os processadores

de alimentos, isso significava um risco sem cobertura do seguro,segundo Stelwagen.

— Será que eu poderia ver os regulamentos de saúde esegurança? — perguntei, com o tom mais neutro possível.

— Por acaso o senhor não acredita em mim, sr. Groen?— Claro que sim. Só gostaria de controlar algumas coisas.— Controlar que coisas?— Como os gerentes modernos sempre dizem: controle não é

desconfiança. Não é mesmo?— Vou ver o que posso fazer pelo senhor.— Eu agradeço.Ria e Antoine ficaram ouvindo de boca aberta e só agora a

fecharam de novo.Mais tarde, na hora do chá, eles se aproximaram novamente. Até

então, tinham tido uma confiança inabalável na diretora, mas agoraela estava um pouco estremecida. Acharam que fui corajoso com asperguntas, e eu achei também.

Logo depois, contei tudo a Eefje, espero que com algumamodéstia. Ela apenas disse:

— Fez muito bem, Groen!Tudo isso me deu uma ideia para um programa com o clube Tô-

velho-mas-não-tô-morto. Encontrei na internet sete workshops deculinária em lugares próximos daqui. Entre eles com certeza haveráum que pode receber velhinhos, levando em conta todas asquestões técnicas de saúde e segurança. Depois vamos espalharaos sete ventos que nunca passamos uma tarde tão segura, mesmoque se cortem dedos, narizes e orelhas.

Quinta, 21 de marçoConsegui! Alcancei mais uma primavera!Agora vamos rumo aos primeiros morangos do solo frio, depois

tentaremos pegar o Tour de France, o primeiro arenque, a primeiraneve, o novo ano e a próxima primavera. É bom ter metas claras.

É tempo de abobrinhas nos jornais. Não acontece muita coisa nomundo. Já esgotaram o assunto do novo papa e agora, na falta decoisa melhor, a Síria volta à primeira página, porque um holandês foimorto. E ainda mais seis semanas de tolices sobre a coroação.(Para o velho manto real de Beatrix, mataram cerca de trezentos esessenta arminhos, mas para o enorme manto do príncipe beberrãoWillem Alexander precisarão de uns seiscentos. Faça alguma coisa,Sociedade Protetora dos Animais! Lute por suas vidinhas.)

Em nossa casa de repouso, é quase sempre tempo deabobrinhas. Aí, quando chega a noite, é preciso constatar que nadade importante aconteceu. Mas, afinal, o que é importante? Hápessoas que passam um dia fantástico se tiverem um biscoitinhoextra na hora do café. Isso também é manipulado por algunsfuncionários, que dão um segundo biscoitinho como se a pessoativesse ganhado na loteria: “Por que não? Está fazendo um dia tãobonito, vamos aproveitar para uma coisa gostosa e pegar mais umbiscoitinho!”.

O outro extremo é o gordo sr. Bakker. Seu recorde: uma cuca demaçã inteira e mais metade com só uma xícara de café. Ninguémganhou nem um pedacinho. A metade que sobrou ele levou para oquarto. Ele é odiado.

Nesse meio-tempo, pensei em várias possibilidades interessantesde passeios: workshop de culinária, feira paranormal, boliche,

Zaanse Schans, curso para fazer bombons, partida do Ajax e visitaa Keukenhof. Na próxima reunião, tenho que perguntar se,eventualmente, posso trocar minha data.

Especialmente para o tempo de abobrinhas, do fundo do baú, nacategoria “Como é possível”: alguns anos atrás, Berlusconi recebeuum prêmio de mérito por ações em defesa dos direitos humanos dasmãos de... Khadafi.

Sexta, 22 de marçoOntem a sra. Langeveld contou algo interessante. Geralmente ela

fica em meu ponto cego, mas às vezes pode sair de lá de maneirasurpreendente. Por acaso, estávamos sentados lado a ladotomando uma xícara de café. Motivada pelo fato de que o caféestava morno, ela comentou que suspeitava que nossa casa derepouso não estaria bem posicionada na lista de melhoresresidências para idosos.

— Caso contrário, eles com certeza fariam de tudo para causarboa impressão.

Perguntei que lista era aquela, e ela contou com sua boquinhatrêmula que anualmente é feita uma pesquisa sobre a qualidade delares para idosos e casas de repouso.

— E com um café desses, é certeza que estão entre os últimos!Ela não sabia exatamente que tipo de pesquisa era. Vou procurar

na internet.Ir com o clube ao hipódromo também é uma possibilidade. Será

que o hipódromo de Duindigt ainda existe? Que fim levaram oscampeões Jojo Buitenzorg e Quicksilver S.? Espero que não tenhamvirado bife ilegal... E o locutor Hans Eijsvogel, será que ainda estávivo?

Não que eu alguma vez tenha ido a Duindigt, mas tudo isso soaadoravelmente nostálgico.

O mais novo homem mais velho da Holanda é Tjeerd Epema,cento e seis anos. Isso significa que eu, se chegar a essa idade,ainda terei que viver vinte e três anos neste asilo. Não é uma ideiaentusiasmante. A mulher mais velha do mundo completou cento evinte e dois anos. Neste caso, eu teria que passar outros quarenta

anos aqui.Mas sempre pode ser pior: Carrie C. White chegou aos cento e

dezesseis tendo passado setenta e cinco deles num institutopsiquiátrico. Só quando fez cento e dez foi para uma casa derepouso. Ainda pôde gozar de sua liberdade.

Sábado, 23 de marçoÉ só digitar no campo de pesquisa “casas de repouso”, clicar e,

voilà , aparece a lista com trezentos e cinquenta clínicas para idosose mil duzentos e sessenta casas de repouso. A posição na lista édeterminada pela avaliação dos próprios moradores, somada a umacifra objetiva pela qualidade da assistência prestada. Nas duasavaliações, aparecemos perto da milésima posição! O que resultanuma ótima posição final entre as mil e cem melhores.

São dados de 2009, então talvez agora tenhamos subido algumasposições. Ou baixado, depende de como se vê.

Como é que eu nunca soube da existência dessa lista? Entendopor que nossa diretora nunca a tenha pregado no quadro de avisos.No asilo Hofkamp, na cidade de Almelo, a lista com certeza está emtodas as portas: é o número 1 da Holanda.

Vou perguntar a meus amigos se eles sabem como se lidou comessa pesquisa na época. Talvez seja o caso de ainda dar a elaalgum destaque.

Além do mais, a lista traz fatos interessantes. A casa de repousoDivina Providência, em Herten, está na 1.230a posição. Pelo jeito, láeles deixam muita coisa por conta de Deus.

Também curioso: a casa Angeli Custodes está numa ótimasegunda posição de acordo com a avaliação dos moradores, masde acordo com o parecer sobre normas objetivas está em 702o

lugar. Pode ser que a direção tenha ajudado os moradores aresponder ao questionário aqui e ali. Desconfiança nunca é demais.

E o que acontece com a casa Spathodea? Os moradores colocamo asilo em 1.058o lugar, enquanto os inspetores a consideram aquarta melhor. Será que vivem ali os velhos ranzinzas mais ingratos

da Holanda?Henk-50Plus-Krol está meio em baixa por aqui.— Se não consegue nem salvar uma boate gay da falência, que

dirá governar Holanda Sociedade Limitada? — comentou o sr.Bakker.

Adorei o “Holanda Sociedade Limitada”.Ontem, contei quantas vezes foi dito, de maneiras diferentes, que

está muito frio para esta época do ano: trinta e cinco vezes.

Domingo, 24 de marçoEefje tem uma pasta de recortes com artigos sobre abusos em

casas de assistência e lares de idosos. Em alguns, os moradoresficam em meio a seus próprios excrementos.

Vou valorizar mais nossa própria casa depois de ter lido ashistórias sobre negligência e intimidação. O que é um poucoestranho, uma vez que as coisas não serão melhores aqui porquesão piores em outro lugar. Como se a gente tivesse que secontentar com não passar três dias com uma fralda geriátrica sujade cocô.

A pasta de recortes veio à tona quando perguntei a Eefje se elatinha ouvido falar da lista de classificação das casas de repouso. Elatinha. Conversamos bastante sobre as coisas boas e ruins daqui.Conclusão: há muito o que melhorar. Vamos começar a agirresolutos, cuidadosamente.

A Agência Central de Planejamento apresentou um projeto paraque o atendimento nos hospitais pese os benefícios para a saúdecontra os custos do tratamento. No caso dos idosos, em geral hápoucos benefícios a ser obtidos: uma operação extensa comfrequência não garante muito além de mais um ano se arrastandopara depois bater as botas. Portanto, se você daqui a pouco quiserser remendado custe o que custar, é melhor ter poupado bastante,porque terá que pagar do próprio bolso. De meu corpinho oscirurgiões podem ficar longe, mesmo que eu tivesse dinheiro. Umapreocupação a menos.

Gente velha às vezes cochila de repente. A sra. Bregmanconseguiu uma façanha: caiu no sono durante o almoço, com acolher na boca. O flã foi escorrendo lentamente.

Conheço bem isto: não conseguir ficar de olhos abertos durante odia e dormir mal à noite. Muito pouco prático. Por sorte, comigo ocansaço raramente surge durante as refeições.

Bregman acordou assustada quando a colher bateu em seu prato.Olhou surpresa, limpou o flã do vestido – na verdade, espalhou umpouco mais – e continuou comendo como se nada tivesseacontecido.

Segunda, 25 de março“Nós” nunca falamos sobre imigrantes aqui, apenas sobre

“estrangeiros”. Se são holandeses ou não, não importa. Serpoliticamente correto é raridade.

A Holanda é uma sociedade de apartheid : brancos com brancos,turcos com turcos, pobres com pobres, tapados com tapados.

Em nosso caso, há mais uma linha divisória: velhos com velhos.Em nossa casa de repouso vivem quase exclusivamente velhos

brancos, pobres, sem muita formação acadêmica. Moram aqui, naponta do lápis, duas senhoras nascidas na Indonésia e um senhordo Paquistão.

Temos pouco ou nada a ver com o resto da Holanda, comexceção dos funcionários. Entre eles, em proporção, há pelocontrário muitos imigrantes.

“São pessoas adoráveis, viu? Não por isso, mas eu ainda prefirouma enfermeira holandesa.” É o que em geral pensam.

Quanto mais velho, mais reacionário. Muitos são simplesmenteracistas; os comentários na mesa do café não me deixam mentir.

Adolescentes também não aparecem por aqui com frequência, anão ser que sejam mais ou menos obrigados pelos pais a finalmentevisitar de novo o vovô ou a vovó. Visitas por educação comconversas penosas. Adolescentes se sentem encabulados compessoas idosas. Elas não entendem nada, ouvem mal, não têmcomputador, são lentas, não sabem nada de moda nem de música esó servem biscoitinhos. Outro mundo.

Com crianças pequenas, as coisas vão bem melhor. Elasconversam soltas e alegres e ainda não aprenderam a achar nadanojento. Velhos e criancinhas se dão muito bem.

Evert coordena uma banca de apostas em que, a um euro poraposta, pode-se arriscar qual será o passeio de depois de amanhãdo clube Tô-velho-mas-não-tô-morto. A arrecadação toda vai paraaquele que adivinhar. Se ninguém acertar, o dinheiro fica para obanco. O banco é Evert. Muito engraçadinho. Até agora ninguémapostou.

A curiosidade aumenta. Eefje não deixou escapar nada.

Terça, 26 de marçoO objetivo deste diário também era o de ser reconhecido, após

minha morte, como alguém que fez denúncias e deixou um alertaimportante. Essa ideia ficou um pouco de lado.

Percebo que escrever tem uma ação terapêutica: estou maisrelaxado e menos frustrado. Talvez eu tenha começado comcinquenta anos de atraso, mas quanto a isso já não se pode fazernada.

A sra. Slag tem uma filha irritante que uma vez por mês, nosábado à tarde, aparece por meia hora para um chá e passa otempo inteiro mal-humorada, dizendo à mãe que ela já falou aquiloantes. Como se fizesse sentido usar essa mera meia horinha parareclamar disso com sua mãe de quase noventa anos. Se é que éverdade o que ela diz, porque a sra. Slag pode não ser lá muitointeligente, mas ainda está bem lúcida.

E mais: seria aconselhável que a filha ficasse quieta e nãochamasse atenção, porque é uma mulher singularmente gorda e emforma de pera, forma que fica muito melhor na fruta.

Quarta, 27 de marçoEstou aqui com minha melhor roupa esperando ansioso por nosso

passeio. Mais duas horas.Excitação infantil.Não consigo me concentrar. Ando pra lá e pra cá e de vez em

quando deixo cair alguma coisa da mão.Já tive que pôr o aspirador de pó para funcionar duas vezes: para

uma torrada com chocolate granulado que escorregou do prato epara o açucareiro que derrubei da mesa. Não sei o que significaderramar chocolate granulado, mas derramar açúcar significa visita.E não estou com ânimo para isso agora, então vou esperar láembaixo até que o ônibus chegue.

Quinta, 28 de marçoEvert, com sua banca de apostas, não podia imaginar quão

próximo ele estava do destino do passeio: o cassino.Tínhamos que nos reunir às 13h lá embaixo, bem vestidos e de

estômago vazio. Essa havia sido a instrução de Eefje. Um poucoantes de partirmos, ela veio avisar que também deveríamos levarum documento de identidade.

O micro-ônibus da Connexxion chegou pontualmente e nos levou,passando pelo lado oeste e pelo Bijlmer, até o Holland Casino daLeidseplein. Lá fomos acolhidos com certa surpresa, mas muitocortesmente, por um bonito rapaz.

— Vejo que a idade média deste grupo é um pouco acima do queestamos acostumados, portanto eu também espero sabedoria acimada média nas apostas.

Uma recepção elegante para alguém assim tão moço.Caminhamos como príncipes sobre os grossos tapetes.

Recebemos um delicioso almoço e, em seguida, explicações sobrecomo jogar roleta, Black Jack e, a grande moda segundo nossoanfitrião, Texas Hold’em. Com nosso cabelo grisalho, estávamosbastante fora de sintonia neste último jogo: praticamente só jogavamrapazinhos com boné, gorro e óculos de sol.

Caímos na risada com uma corrida de cavalos com cavalinhos debrinquedo que davam voltas sobre trilhos. Grietje pôs dois eurosnuma ranhura, apertou os números de sua data de aniversário eganhou com muito tilintar vinte e quatro moedas de dois eurosquando seu cavalinho foi o primeiro a cruzar a linha de chegada. Eladistribuiu o dinheiro entre nós, e logo depois todos estavam muitoanimados pondo moedinhas em máquinas indecifráveis ou jogando

roleta, porque em nosso pacote estava incluído um saquinho comalgumas fichas.

Ao chegarmos, combinamos que todo o lucro seria posto nocofrinho do clube Tovemantomo e, quando uma hora e meia depoistodos colocaram seus saquinhos no balcão do bar, vimos quetínhamos ganhado duzentos e oitenta e seis euros. Todo mundoestava radiante, até os funcionários do cassino. Aparentemente,eles nos acharam um alívio em comparação com os jovensbriguentos e os insondáveis chineses.

— Uma rodada por conta da casa para o grupo do CrepúsculoVermelho — gritou o barman.

Depois de três uísques, Evert queria apostar os duzentos eoitenta e seis euros no treze e estava convencido de quevoltaríamos para casa com milhares de euros.

— Treze, eu estou sentindo!Aí, de maneira bem calvinista, tivemos que impedi-lo.Às 17h15, o gerente veio pessoalmente nos avisar que o ônibus

estava ali na frente. Já havia dois velhinhos dentro, que olharampara nosso grupo com indisfarçável desprezo. Graeme deu um euroa cada um deles. E eles aceitaram, isso sim.

Chegando ao asilo, fomos o centro das atenções. Circulava umburburinho: um misto de inveja, admiração e aversão.

Sexta, 29 de marçoPor causa da crise dos bancos, a meia velha está de volta. Dos

comentários sobre os acontecimentos em Chipre, deduzo quealguns velhinhos tiraram seus trocados do banco para pôr embaixodo colchão ou em algum outro lugar onde os ladrões imediatamenteirão procurar.

Estive com Anja, minha espiã, para perguntar se ela podedescobrir como a pesquisa sobre qualidade das casas de repousofoi tratada aqui pela direção e pelo conselho administrativo.

— Com todo prazer, Hendrik. — Os olhos dela já brilhavam.Seria ótimo se ela conseguisse escavar algum relatório escondido

nas gavetas de Stelwagen.— Tome bastante cuidado, Anja, não se arrisque — falei, com

ênfase.Ver esse amor de pessoa ser exposto a algum constrangimento

seria algo desolador. Eu me sentiria muito culpado. Também disseisso a ela.

— É gentil de sua parte me dizer isso, Henk, mas eu mesma souresponsável pelo que faço. Quer mais um café?

E depois cantarolou Ik doe wat ik doe , de Astrid Nijgh.Sexta-Feira Santa. Antigamente, tínhamos que fazer silêncio às

15h e pensar no pobre Jesus. Se hoje na Holanda um paicrucificasse seu filho, nenhum centro psiquiátrico saberia o quefazer com um psicopata desse tipo. De qualquer forma, ele nãoconseguiria liberdade condicional se tivesse outros filhos, mas simuma proibição de entrar em lojas de comércio de madeira.

Darei a Deus mais uma única chance: se hoje exatamente às 15heu conseguir novamente andar cem metros em doze segundos e

quatro décimos, volto para o seio da Santa Madre Igreja CatólicaApostólica Romana. Eu prometo!

Sábado, 30 de marçoMeu tempo mais rápido para os cem metros é, no momento, um

minuto e vinte e sete segundos. Cronometrado ontem, Sexta-FeiraSanta, exatamente às 15h. Pode ser que haja um segundo dediferença, talvez tenha sido um metro a mais ou a menos, o que nãoimporta muito.

Depois dessa arrancada de um minuto e meio, tive que me sentarnum banco por cinco minutos para descansar.

Deus não fez nenhum milagre nem devolveu minha antigavelocidade na hora em que seu filho entregou seu espírito. Portanto,ele pode esquecer meu retorno à Igreja Católica.

Ontem, por volta das três, o que Deus fez foi levar embora a sra.Schinkel. Ela era extremamente religiosa. Acho que quisdeliberadamente dar seu último suspiro junto com Jesus. Eu tinhapouco contato com ela, mas me parecia uma mulher simpática. Seufuneral será para poucas pessoas, o que significa uma obrigação amenos.

“Aposentado” soa bem, a gente quase deseja sê-lo. Masexperimente passar o inverno inteiro jogando petanca com outrosaposentados holandeses em Benidorm, na costa espanhola. Epassar dois meses hospedado nos hotéis mais feios do mundo. Láhá cabeleireiros holandeses, lanchonetes holandesas, encanadoresholandeses e, faz alguns anos, até um hospital holandês. Se eutivesse que passar todos os anos o inverno na Costa Blanca, iriadireto para o departamento de eutanásia desse hospital.

Ontem, durante o chá, os recém-retornados sr. e sra. Aupersfalaram maravilhas do inverno na Espanha. Os outros fizeram apromoção do interminável frio na Holanda.

Se naquele momento uma agência de viagens ambulante tivesseaparecido no salão de bate-papo, em menos de uma hora venderiaduzentas passagens de ida e volta a Benidorm para o próximoinverno.

E tudo ficaria deliciosamente calmo por aqui.Hoje, para mim, é um daqueles dias em que a gente já acorda

supercansado, passa o dia inteiro descansando e, à noite, vai paracama supercansado de descansar. Antes eu tivesse em minha caixade remédios algumas das pilulazinhas secretas com as quais ajuventude hoje passa vinte e quatro horas seguidas dançando. Nãopreciso de repente começar a dançar, viu? Só circular um pouco poralgumas horas sem ficar morto de cansaço já seria suficiente.

Domingo de Páscoa, 31 de marçoNão sou muito de Páscoa. No clube de artesanato, eles pintaram

ovos para comer hoje no que pretende ser um brunch festivo, agoraàs 11h, mas a maioria dos moradores não se deixa desviar de seurígido esquema de refeições. Se tiverem que tomar café da manhã ealmoçar no horário em que em geral tomariam um cafezinho, ficarãoperdidos por uma semana. Portanto, toma-se o café da manhãnormalmente, às 10h30 tomam seu cafezinho com dois ovoscozidos pintados e uma hora depois estão de novo na mesa para osanduíche do almoço.

Os três Rs para as crianças valem também para idosos: repouso,recreação e regularidade. A recreação nem sempre é levada a sério,mas repouso e regularidade são os fundamentos da convivênciaaqui.

Amanhã acontece o campeonato pascal de baralho. Com belosprêmios! Eu participarei, porque ninguém mais quer jogar com Evert.Não quero que os outros moradores tenham sucesso em seuboicote.

Algumas duplas jogam baralho como se fosse uma questão devida ou morte. Evert é o provocador, jogando areia no motor e sal naferida e comentando cada carta posta na mesa, até que alguém nãoconsiga mais se conter e o mande calar a boca. E eu dou uma dejoão sem braço.

Estou curioso para saber como vai ser o jantar de Páscoa nestanoite. É preciso ser justo; no geral, as refeições festivas costumamser muito gostosas. Mas temos um novo cozinheiro, e agora tudo éainda mais cozido.

Segunda, 1o de abrilA inveja foi grande. Evert e eu vencemos o segundo prêmio no

baralho: um conjunto de sal e pimenta para dividir entre os dois.Evert sugeriu que cada um ficasse um pouco com o saleiro ou opimenteiro e, semanalmente, durante o café, trocássemos diantedos jogadores de cartas mais fanáticos e invejosos. Para mim, issovai um pouco longe demais.

A surpresa de Páscoa foi que bem em frente à casa de repousofuraram os pneus de três Cantas. Foi ótimo para ter assunto, mas éum ato absurdo de vandalismo.

— Um ataque à mobilidade do idoso holandês — bradou a sra.Quint, rainha dos disparates patéticos.

A polícia veio investigar. Pela segunda vez em pouco tempo.Novamente, dois espíritos iluminados: chegaram ali e observaram.

— É, eles estão furados.E olharam ao redor como se ainda fossem ver alguém dobrando a

esquina, fugindo com uma faca na mão.Não, os policiais não podiam fazer um relatório. As vítimas tinham

que prestar queixa pela internet. Os agentes acharam uma penaque nenhuma das vítimas tivesse computador. No final, Grietje seofereceu para ajudar a fazer as queixas usando seu PC . Após essaimpressionante exibição de presteza, os policiais foram embora. Noúltimo segundo, por via das dúvidas, distribuíram a todos os quelevantaram a mão folhetos sobre ajuda a vítimas. Pelo menosfizeram alguma coisa.

O temor de novos ataques é grande. Se pudessem, osproprietários de Cantas prefeririam estacionar seus carrinhos aolado de suas camas. Houve muita especulação para saber quem

estaria por trás dessa ação terrorista. Não demorou para queconcordassem que os muçulmanos eram os suspeitos mais óbvios.Foi um pouco menos trágico que as Torres Gêmeas, mas comcerteza não poderia ser banalizado pela polícia.

— É uma ótima oportunidade para pôr drones em ação —considerou o sr. Bakker.

Terça, 2 de abrilOntem, durante o almoço, o sr. Dickhout leu em voz alta uma

carta da direção na qual informavam que, a partir de agora, teríamosque pagar um euro pelo café e vinte centavos por biscoito. Eclodiuuma tempestade – não, um furacão – de ultraje. Aquilo era umavergonha! Já não havia nenhum respeito pelos mais velhos.Mencionaram a guerra e até o antigo primeiro-ministro WillemDrees.

— Vou trazer meu próprio café e meus próprios biscoitos! —rosnou Gompert pela sala, no que Dickhout chamou sua atençãopara a observação, na carta, de que não seria permitido o consumode outros alimentos nos espaços comunitários além dos oferecidospela casa.

Quando Gompert reagiu tão acaloradamente que parecia estarprestes a explodir, ou no mínimo a ter um ataque do coração,Dickhout decidiu que já era suficiente.

— Primeiro de abril — falou, e em seguida saiu circulando comum pacotinho de biscoitos que havia trazido.

Nem todo mundo levou a piada na esportiva, comotestemunharam muitas boquinhas sovinas. Alguns se recusaram apegar um biscoito em demonstração de protesto. Outros pediram,então, um biscoito a mais.

Gompert ficou roxo.Eu achei que a piada merecia nota oito, e a execução, nove.

Talvez a gente deva convidar Dickhout como membro aspirante doTô-velho-mas-não-tô-morto.

A Pascoela é um dos dias em que mais se recebem visitas. Sol,seis graus Celsius, vento leste a vinte e cinco quilômetros por hora,

bem no limite para permitir uma caminhada com o pai ou a mãe,desde que não muito longa. Com o regresso em massa para a salade estar, faltaram cadeiras. Levantei-me da minha e vim para oquarto. Até onde pude perceber, eu era o único que não tinharecebido nenhuma visita e, a título de exceção, fiquei um poucotriste com isso. Decidi abrir a melhor garrafa de vinho que eu tinhano quarto e, três horas depois, fui um pouco embriagado para amesa de jantar. Ainda tomei umas taças de vinho e quase nãocheguei à sobremesa. Espero não ter causado nenhumaborrecimento.

Quarta, 3 de abrilEle não precisa sair para passear, não fede nem morre: Paro.A taxa de natalidade no Japão é de 1,3 filho por mulher. A

proporção é de cada vez mais velhos e menos filhos para visitá-los.Por isso, os japoneses lançaram o Paro no mercado um tempoatrás, um robozinho vestido de foca, pensado especialmente parafazer companhia a idosos. Sugiro ao importador holandês do Paroque aqui ele tenha a forma de um vira-lata gordo no qual se possamguardar biscoitos.

Por sinal, a taxa de natalidade na Itália também é de 1,3. Foi-se otempo em que os católicos se reproduziam como coelhos.

Haver poucos bebês significa que daqui a quarenta anos,proporcionalmente, haverá um superávit de velhos. Felizmente nãovou viver para ver isso. Hoje, um velhinho tem pouco valor social,mas, se no futuro houver ainda mais velhos, alguém com mais desetenta provavelmente irá receber um belo bônus para se matarvoluntariamente.

O mundo não vai ficar melhor se no futuro dois bilhões de triciclosmotorizados estiverem aterrorizando as ruas.

Um conselho de investimento para jovens empreendedores:comprem ações de fraldas geriátricas.

Ontem à noite tivemos uma reunião do Tô-velho-mas-não-tô-morto nos aposentos de Graeme. Bebemos chablis e comemossalgados, trazidos pelo motoboy da lanchonete, porque fazer friturasaqui é proibido por decreto. Nada melhor que um croquete pelandocom um vinho fresquinho. Foi muito gostoso.

Ficou combinado que, no caso de adiamento de um passeio, ospasseios seguintes permanecem com as respectivas datas e que os

membros podem trocar os dias entre si.Recebemos vários pedidos de pessoas querendo entrar para o

clube, mas, depois de meticulosas considerações, decidimos que,por enquanto, vale a quantidade máxima de seis membros. É práticoem termos de organização e todo mundo tem tempo para todomundo. Temos alguns bons candidatos que ficarão numa lista deespera. E uns oito resmungões que podemos simplesmente recusar.

Quinta, 4 de abrilExiste em Amsterdã uma casa de repouso para idosos ricos:

bridge em lugar de bingo, Bach em lugar de Bauer, filé em lugar dealmôndega. E... troca ilimitada de fraldas. O Fundo para DespesasMédicas Excepcionais paga pelos cuidados, e pelos custos dealimentação e moradia os residentes pagam quatro mil euros pormês. Em meu caso, depois de três meses eu teria que morarembaixo de uma caixa de papelão.

Também existem asilos para idosos vegetarianos, artistas,antroposofistas e para ex-sem casa e ex-sem-teto, que em minhaopinião, então, não podem mais ser chamados de sem casa e sem-teto. Não sei se eu trocaria nossa casa de repouso por uma dessasoutras. Resmungões vegetarianos ou antroposofistas me parecemainda piores que nossos velhos ranzinzas. Gostaria de viver numacasa onde as pessoas não reclamassem, não resmungassem nemchoramingassem. Criticar um pouco, isso pode, caso contrário eumesmo não seria apto a morar lá.

Por sinal, eu acho que em nossa casa não tem nenhumvegetariano, quanto mais um antroposofista. Tem, sim, senhorasque sabem fazer lindos trabalhos manuais e alguns senhores quejogam bilhar bastante bem.

Perguntei a Anja se ela pode procurar e fazer uma cópia paramim dos estatutos e dos regulamentos desta casa. E todas asoutras regras aplicáveis, como as de saúde e segurança. Estasúltimas para verificar se a recusa da sra. Stelwagen de colocar acozinha a nossa disposição é fundamentada. Tenho a impressãoque “nós do clube” ainda vamos entrar em colisão com “eles dadireção”, e aí todo conhecimento do amontoado de regras atrás do

qual ela se esconde será útil.Informei a Graeme e Eefje, e eles prometeram que lerão tudo

comigo. Evert não estava interessado, “mas, se precisar jogarbiscoito no aquário de novo, conte comigo!”.

Sexta, 5 de abrilAinda ressoava por aqui: “Ajustes fiscais atingem aposentados”. E

hoje: “Projeto Delta para a demência tem que virar a maré”. É muitoassunto de uma vez só para a hora do café.

Para começar, a questão dos impostos: parece que o novoimposto simplificado esconde riscos para o cálculo da aposentadoriabásica. O que me surpreende é que nenhuma das trinta mil pessoasque trabalham no imposto de renda (isso mesmo, trinta mil!) possaestimar as consequências das novas regras. Todo mundo estánovamente pasmo: “Puxa, os velhinhos vão ser tão prejudicadosassim?”. Então vem o secretário de Finanças: “Naturalmente, issodeverá ser corrigido”. Em nossa opinião, de preferência que corrijambem rápido, ao menos se significar uma restituição. Do contrário,teremos que continuar vendo a cara de Henk Krol protestandoinjustiçado. (Não, sr. De Koning, ele continua não sendo parente deRuud Krol.)

A respeito do esperado tsunami de demência, volto a falar maistarde. Não tratemos de tanta desgraça de uma vez só.

E continua frio demais para esta época do ano. Anseia-se tantopor um solzinho quente. Todo mundo está desanimado depois detrês semanas de vento leste a quarenta e cinco quilômetros porhora. Já estamos no horário de verão e, como diria Evert, “as bolasainda congelam na cueca”. Não sou de falar baboseiras sobre otempo, mas mesmo as pessoas mais sensatas são humanas; agente sempre reclama com a maioria, quer queira, quer não.Confesso: este clima está me deixando mal-humorado.

Sábado, 6 de abrilVelhos resmungam e gemem o tempo todo. Às vezes pelo esforço

ou pela dor, mas com frequência por hábito. Fiz um pequeno estudosobre isso.

O campeão de gemeção é o sr. Kuiper, que já não está entremeus melhores amigos. Levantar, vestir o casaco, pegar algumacoisa, nem que seja só uma xícara de chá, tudo vem com umgemido, como se um rolo compressor passasse sobre ele.

Quando comecei a prestar atenção, foi me irritando cada vezmais. Não era essa a ideia. “Não se incomode, só observe”, meu paisempre dizia. Um conselho para os outros, porque ele mesmo seincomodava ao extremo com tudo.

Reuni minha coragem hoje de manhã e perguntei a Kuiper porque ele gemia tanto quando se sentava.

— Quem, eu? — respondeu ele, sinceramente surpreso.Em seguida, passou meia hora sem dar um pio, mas depois

recomeçou aos pouquinhos com os gemidos. Era como se euestivesse assistindo a uma partida de tênis feminino. Antigamente,que eu me lembre, raramente se gemia; hoje, tenho que baixar osom da TV quando assisto. Fazem isso o tempo inteiro. E écontagioso: os homens também estão gemendo cada vez mais.

Agora estou com um problema. Comecei a ter uma enormeimplicância com Kuiper, porque escuto cada gemidinho. E não só osdele. De um monte de outros moradores também. E o pior de tudo,de vez em quando até alguns meus. Como posso me livrar disso?

Expliquei o problema a Evert. Ele achou que poderia ajudar se acada gemido eu reagisse com um gemido mais forte. E testou suateoria na prática algumas horas mais tarde. Os gemedores o

olharam atônitos e perguntaram como ia sua saúde.

Domingo, 7 de abrilO sr. Schaft, da ala dos dementes, escapou por uma porta

semiaberta e veio sentar-se conosco à mesa do café. Mostrou todoorgulhoso sua nova pulseirinha, que, segundo ele, havia ganhadoda sogra. Estava escrito “não me reanime”.

— O senhor sabe o que significa? — perguntou Eefje,interessada.

Não, ele não sabia. Pensava que tinha algo a ver com mulheres.— Animadoras, o senhor quer dizer?— É, algo assim.Perguntei se ele tinha certeza de que tinha recebido a pulseirinha

de sua sogra.Então, ele deu muita risada, e aquela risada se transformou num

enorme ataque de tosse com o qual ele quase sufocou. Aquilochamou a atenção das enfermeiras, que o levaram de volta à alafechada, de maneira que ficamos sem saber quem lhe deu apulseirinha.

Evert viu ali uma possibilidade de fazer negócios, afirmou comjeito sério.

Encomendei-lhe uma pulseira imediatamente. Ele me olhousurpreso.

Era uma piada, mas, por outro lado, não. Acho que irá fazer umapara mim.

Enquanto isso vou me informar melhor sobre a legitimidade deuma pulseirinha desse tipo. Acredito que seja como a declaração dedesejo de eutanásia por um incapacitado, que também é uma batataquente. Ainda que raramente se fale a respeito.

— Há um grande tabu sobre a eutanásia — disse Graeme, solene

e provocador, referindo-se à pulseira de reanimação.Percebia-se um movimento inquieto nas cadeiras e um

concentrado e lento mexer de colherinhas nas xícaras.— Suicídio não é um tema agradável para este grupo —

comentou Evert, colocando mais lenha na fogueira.

Segunda, 8 de abrilPrimavera: todos os que ainda conseguem caminhar um pouco

foram passear ontem. Nem que tenha sido só até o banco junto àporta da frente. Quatro de nossos moradores estavam sentados láconversando sobre o bom tempo quando um senhor completamenteestranho se sentou no último lugar vazio. A sra. Blokker nãoconseguiu se apressar o suficiente para chegar antes dele e deu umolhar desaprovador.

— O senhor está sentado em nosso banco.— Não vejo escrito em nenhuma parte que é de vocês —

respondeu o tal senhor, pegando seu jornal.— Nós sempre nos sentamos aqui — disseram os outros

moradores, apoiando Blokker.— Bem, na próxima meia hora, ficarei sentado aqui — disse o

senhor, imperturbável.A sra. Blokker foi em busca de ajuda, mas só encontrou o

porteiro.— Este banco é da casa de repouso — tentou argumentar o

homem.— Este banco está numa via pública e é de e para todos —

respondeu.Depois de meia hora lendo em absoluto silêncio, ele se levantou,

cumprimentou todos e foi embora.Tive que ouvir essa história, contada com indignação nos mínimos

detalhes, quatro vezes. Foi o acontecimento mais importante dodomingo.

O terceiro passeio foi adiado em dois dias porque Grietje ainda serecupera de uma leve infecção pulmonar. Estava programado para

depois de amanhã e foi transferido para sexta-feira.Fiquei muito desapontado. Não exagere, Groen! Você sabe muito

bem que os membros do clube são corocas e suscetíveis adoenças. A proposta aprovada de não mudar a data dos passeioscaso um programa anterior tenha sido adiado já está vigorando.

Quanto a meu passeio, já decidi: vai ser um workshop deculinária. Selecionei quatro chefs pela internet, levando em conta opreço e a distância. Liguei pelo menos três vezes para cada umpara saber se eles são pacientes com pessoas idosas. Escolhi oestúdio de culinária Batendo Panelas, porque asseguraram que,além de cozinhar, daríamos muita risada. Nada sério demais, gostodisso. Tanta gente se acha, considera aquilo que faz muitoimportante. Ninguém é mais que um grão de areia no deserto, umapoeirinha no universo.

Isso já está ficando um pouco patético, Hendrik.

Terça, 9 de abrilFinalmente temos de novo um morto famoso para a hora do café:

Margaret Thatcher. Não estão morrendo muitos neste ano. Poucaspessoas dividem tanto as opiniões quanto Maggie, a dama de ferro.O sr. Bakker a achava uma mulher fantástica.

— Pelo menos ela tinha posicionamento! — Perguntei a ele qualera. — Bem, ela se posicionava pelo que queria.

— E o que ela queria, exatamente? — questionou Grietje.— Isso por acaso é um inquérito? — retrucou Bakker.Ontem tivemos uma reunião de moradores para esclarecimentos

sobre os planos do conselho administrativo de adaptar o prédio àsexigências atuais. Não faço ideia de quais precisamente sejam as“exigências atuais”, mas com frequência o pensamento tácitosubjacente é que em alguma parte haverá cortes. Eles chamamfazer cortes de “reduzir custos” ou “aumentar a eficiência”.

A diretora disse três vezes, muito enfaticamente, que ainda nãoestava nada decidido e que a reunião tinha como objetivo verificaros desejos dos moradores. Uma suposta abertura para aparticipação. O resultado foi que a agitação foi generosamentesemeada. Há outra vez motivo para preocupação. Na mesma tarde,as primeiras caixas de mudança começaram a ser abarrotadas.

— Planta velha não muda de vaso — resmungou a sra. Schaapvárias vezes para que todo mundo ouvisse.

Que ela se compare a uma planta é uma demonstração deautoconhecimento que eu jamais teria esperado. Ela emite sons,mas, afora isso, leva uma vida bastante vegetativa.

Pessoalmente, sou a favor de uma grande reforma que causemuito transtorno. Quanto mais e quanto antes, melhor. Até que as

exigências atuais sejam convertidas em batidas de martelo epicareta ainda demora um ano, e nunca sabemos se vamos duraraté lá.

Imagine se os enfermeiros da ambulância veem sua pulseirinha“não me reanime” só depois que conseguiram fazer você voltar afalar com um choque. O que fazer, então? Desreanimar? Se alguémchegar neste momento não vai acreditar no que vê.

Ou se a mulher ou o marido daquele que não quer ser reanimadodisser que eles têm que tentar de tudo para ressuscitar a pessoa,com ou sem pulseirinha?

Acordei hoje pensando nisso.

Quarta, 10 de abrilMinha espiã na direção avisou que a inspeção anunciou uma

visita que não deveria ser anunciada. Receberam reclamações.Todos os alertas estão vermelhos na administração. Problemas emcasas de repouso rendem boas manchetes. Instituições comoCordaan e Osira já passaram por isso. Vinte e sete asilos da Osiraforam postos sob estrita supervisão. “Idosos maltratados” foi amanchete do jornal na época. Todos ficaram chocados. “Todos”deveriam dar uma olhadinha em alguns lares de idosos para conferirno que dá o emprego de funcionários mal treinados,sobrecarregados e mal pagos. Somem-se a isso os nove níveisadministrativos resultantes de várias fusões que uma instituiçãogigante que se preze tem, e estão reunidas todas as condições paraque o risco de incidentes seja o maior possível. Após anos demedidas de eficiência dos conselhos administrativos, só a qualidadede suas próprias remunerações ainda vai bem. Para quem põe amão na massa, a regra é que podem gastar no máximo dois minutose quinze segundos para colocar um morador necessitado no vasosanitário e vesti-lo novamente. Aí, higienizar bem deixa de serprioridade.

É, eu estava com vontade de reclamar um pouquinho.O outro lado da medalha: alguns velhinhos aqui são tão

insuportáveis que dá mesmo vontade de deixá-los marinando naprópria imundice.

Um escândalo recente aqui: um morador bateu num funcionário, eo funcionário revidou. Um tapinha corretivo que deu muito que falar.A dita vítima é pior que uma criancinha. Não obstante, o funcionáriofoi demitido, e a paz voltou a reinar.

Quinta, 11 de abrilHá dias em que não acontece muita coisa. Digamos que nada.Posso bater-papo sobre comida e sobre o tempo, mas isso já é o

passatempo favorito da maioria dos moradores aqui. Melhor nemcomeçar uma boa conversa sobre Nietzsche. Tudo bem, porque eutambém não sei nada sobre Nietzsche.

Já fico feliz se ninguém vier para meu lado reclamando da vida.Por isso, é importante escolher bem perto de quem se sentar na

sala de estar. Grande parte dos lugares é fixa: os donos são aspessoas que sempre se sentam na mesma cadeira e fazemescândalo se alguém se senta em “seu” lugar. Chegar na hora certaé importante para conseguir um bom lugar nas cadeiras livres. Sevocê chega cedo demais, não tem escolha; tarde demais, idem. Sefor se sentar com uma ou duas pessoas em outra mesa – afinal, temlugar de sobra –, você é considerado antissocial. Soa inocente, masa indignação pelo fato de você não se juntar ao grupo é grande.Reagem como se fossem evitados como leprosos.

Por isso, embora eu goste de me sentar perto de Eefje, Edwardou Evert, vez ou outra também sou obrigado a balançareducadamente a cabeça para uma vizinha que sempre recita sualitania de doenças ou descreve em detalhes seu programa de TV

favorito, O juiz itinerante . Então, desejo silenciosamente que elaperca a fala e molho meu biscoito no chá.

Amanhã, ao meio-dia, nos reuniremos no portão: o clube dosrebeldes vai sair.

Para a próxima quinta-feira, reservei um workshop de culináriapara seis idosos no Batendo Panelas. Depois de algumasconsiderações, decidimos cortar a entrada e fazer só o prato

principal e a sobremesa. De outra forma tomaria muito tempo esairia caro demais. Não sei o que iremos cozinhar, para mimtambém será surpresa.

— No caso de restrições alimentares, faço uma adaptação —disse nossa anfitriã —, e, para quem prefere comer o tradicional,sempre podemos preparar almôndegas.

Isso soou reconfortantemente flexível.Já marquei o micro-ônibus e desmarquei o jantar no refeitório. O

cozinheiro franziu o cenho.

Sexta, 12 de abrilÉ ultrajante. A sra. De Roos, chefe do departamento, acaba de vir

perguntar, em nome da diretora, sobre o motivo da ausência de seismoradores no jantar de quinta-feira da semana que vem. Eu faleique nós faríamos um passeio.

— Ah — disse ela.— Sim, nós temos um clubinho e de vez em quando organizamos

alguma coisa — falei, indisposto.— Por acaso o senhor acha que nós organizamos muito poucas

atividades? — perguntou De Roos.— De jeito nenhum — apressei-me em responder.— O pessoal da cozinha não acha bom que de repente seis

moradores estejam ausentes.— Como se estivéssemos aqui para agradar ao pessoal da

cozinha. Eles trabalham para nós, não o contrário. É a função deles.Portanto, não me interessa o que o pessoal da cozinha pensa! —Era o que eu queria dizer, mas não tive coragem. Em vez dissoresmunguei que já tínhamos feito uma reserva.

— O que exatamente vocês vão fazer, se me permite perguntar?Quando disse que iríamos fazer um workshop de culinária, houve

um instante de silêncio.Daí ela disse:— Aha... — De novo um pequeno silêncio. — Bem, então

divirtam-se.Fez um cumprimento com a cabeça e foi embora. Provavelmente

direto para a sala da diretora, contar tudo.Agora estou ficando cada vez mais furioso, mas não posso

desabafar com ninguém, senão vou entregar meus planos.

Relaxe, Groen! Daqui a pouco você tem que sair. Com capa dechuva.

Sábado, 13 de abrilO clube Tô-velho-mas-não-tô-morto visitou ontem uma das

maiores e mais famosas reservas de velhos da Holanda: oKeukenhof. Não só velhos, mas também alemães e japoneses.

— Será que os japoneses já deram um jeito nas coisas por ládepois do tsunami para andarem por aqui alegrinhos fazendo fotos?— perguntou-se Evert.

Idade média estimada dos visitantes: acima de sessenta e cinco.Por isso não há desconto para idosos: eles perderiam uma

fortuna. Mas quem vem para empurrar uma cadeira de rodas podeentrar de graça. Não estava explicado muito claramente, mas poracaso Grietje tinha essa informação. Então, Evert foi buscar umacadeira de rodas para mim, e Graeme, uma para Eefje. Achamosque três empurradores pareceria um pouco suspeito. Com osquarenta euros que economizamos, pagamos cafés e tortas. Etodos nos revezamos nas cadeiras de rodas e no papel deempurradores.

É um parque exageradamente chamativo e todo certinho. Masuma coisa com certeza tem: muitas flores. Belas flores, ainda queneste ano elas tenham nascido um pouco tarde. O clima estavaestranho: chuva-sol-chuva-sol. Dentro-fora-dentro-fora. Nas estufasera quentinho e, quando a gente conseguia filtrar as hordas deturistas, era lindo.

Mas até flores podem ser demais. Na hora do vinho branco esalgadinhos, nós nos perguntávamos por que era tão necessárioassim cultivar o septingentésimo tipo de tulipa.

Tudo foi bem organizado por Grietje. Ela tem um neto muito gentil,Stef, que tem uma van. Stef topou fazer o passeio de um dia com a

avó e os amigos por uns trocados para a gasolina. Rapazinhosimpático, interessado nas pessoas e em suas histórias. Ele sedivertiu com a gente. Ficamos até um pouquinho orgulhosos disso.

No fim do dia, Stef se ofereceu para ser nosso chofer outrasvezes. E isso depois de passar uma hora num engarrafamentoenorme. Grietje, pelo jeito, tinha previsto que a viagem de volta serialonga, pois tirou de uma geladeirinha de isopor queijo francês,torradinhas com salmão e vinho para nos servir na van. Nunca foitão agradável ficar parado num engarrafamento.

Por causa do atraso, chegamos tarde para o jantar. A responsávelpela cozinha concordou em esquentar alguma sobra no micro-ondas, não sem profundos suspiros. Como se tivesse que tiraraquela comida da própria boca para nos dar.

Domingo, 14 de abrilOntem foi um dia e tanto por aqui: um derrame, um quadril

quebrado e uma pessoa que quase morreu engasgada com umbiscoito. A ambulância foi pra lá e pra cá, três vezes numa tarde. Foiimpossível dar conta de tanto assunto na hora do chá e do café.Embora não houvesse ninguém de fato conhecido entre as vítimas,fomos de novo duramente confrontados com os acontecimentos:não é preciso uma tempestade para derrubar uma velha árvore.Uma brisa à toa, disfarçada num biscoitinho, por exemplo, pode serfatal. Todos aqui deveriam viver como se cada dia fosse o último,mas não, preferimos desperdiçar nossas preciosas últimas horascom preocupações fora de propósito e mexericos.

Por causa das ambulâncias indo e vindo, a sra. Sitta perguntou sehaveria bingo.

— Naturalmente, os bons não devem sofrer por causa dos maus— comentou ela, sem pensar duas vezes. Era de desejar que elativesse um derrame, quebrasse o quadril ou engasgasse numbiscoito durante o bingo.

Algo mais alegre: daqui a pouco vou tomar um chá com minhaamiga Eefje e convidá-la para sair e jantar comigo hoje à noite. Fizreserva num restaurante bem chique.

Viva como se fosse o último dia.

Segunda, 15 de abrilMinha velha princesa aceitou o convite de bom grado. Arrumou-se

toda: um pouco de batom e ruge. Tenho que confessar que, antesde sair, tomei um banho e me troquei especialmente para a ocasião.Nenhum luxo exagerado. Da próxima vez, preciso perguntarenfaticamente a meu geriatra se alguma coisa pode ser feita comrespeito aos gotejamentos ou se vou ter mesmo que usar fralda. Atépouco tempo atrás, eu achava que a fralda era o fundo do poço dadignidade, mas percebo agora que o poço pode ser mais fundo. Eu,a rã na panela de água.

Às 19h, pegamos o micro-ônibus para ir ao restaurante e lácomemos um jantar chique por meio mês de aposentadoria.

Eefje estava feliz e adorou. Só me deixou pagar a contaprometendo que isso não se tornaria hábito.

— Não se preocupe, não se tornará hábito porque não posso medar a esse luxo — respondi, dizendo a verdade.

Foi ótima a sensação de esbanjar dinheiro. Não imaginei queseria tão fácil para mim. A companhia certamente teve papelimportante.

Voltamos de táxi.Na despedida, um beijinho em cada face. Senti um calor por

dentro. Caramba, aos oitenta e três anos!

Terça, 16 de abrilA euforia começa a crescer por aqui. A associação de moradores

se reuniu para discutir sua contribuição para a festa da coroação. Oresultado é que neste ano teremos de novo folhados com glacêalaranjado na hora do café. No mais, a reportagem televisivacompleta poderá ser vista em tela grande na sala de bate-papo.

O passeio festivo de barco pelo ij é quase ali na esquina, masquase impraticável. Todos lamentam muito. Não sei os detalhes,mas parece que para ver o rei e a rainha passarem por dois minutosa cem metros de distância é preciso chegar lá ao meio-dia e esperarpor sete horas.

Nos últimos feriados “normais” do Dia da Rainha já foram criadaszonas de segurança 1, 2 e 3. Em alguns lugares não se podia nemmesmo deixar o carro fechado dentro da própria garagem. Aliás,triciclos motorizados também foram proibidos. Falou-se horroressobre isso aqui na época.

E, apesar de todas as medidas de segurança e custos desetecentos mil euros para pagar agentes especiais, todos aindaestavam tensos na frente da TV achando que a qualquer momentoum Suzuki Swift preto poderia dobrar a esquina a toda a velocidade.

Bem que eu gostaria de um dia dar uma olhada no roteiro desegurança da rainha.

As irmãs Slothouwer tinham certeza.— Vai acontecer alguma coisa grave. Não sei o que, mas estou

sentindo.Alguém achou que Kim Jong-un, o gnomo rechonchudo da Coreia

do Norte, poderia mandar um míssil para nosso lado bem no dia 30de abril. As bombas de ontem na maratona de Boston não foram

exatamente tranquilizadoras.O prazer já foi antecipadamente perdido por todos os passarinhos

medrosos daqui.Lembro-me com saudade dos belos desfiles no palácio Soestdijk.

Ninguém pensava em controlar as tortas alaranjadas de um metro emeio feitas artesanalmente pela Associação Oranje de Woerdenpara ver se não continham explosivos.

Como republicano anônimo, não sei como devo passar o 30 deabril.

Quarta, 17 de abrilEstou ansioso sobre amanhã. Será que eles vão gostar do

workshop de culinária que escolhi?Damas e cavalheiros estão curiosos, isso é certo, porque vieram,

um por um, tentar fisgar pistas sobre o destino do passeio. E porfalar em fisgar: finalmente há novos peixinhos nadando nos doisaquários atingidos pelos atentados de bolo e biscoito. Com umbilhetinho dizendo que foi a última vez que a direção comproupeixes. No caso de uma nova calamidade, os aquários irãodefinitivamente para o lixo. Teria sido melhor não dizer isso a Evert,nosso anarquista de plantão. Seus olhos começaram imediatamentea brilhar. Tive que fazê-lo jurar solenemente que deixaria os peixesem paz. E ele o fará “pela luz nos olhos de sua mãe”. Olhos que jáestão há vinte e cinco anos debaixo da terra.

Agora Evert está à caça de algo novo. Um atentado a vasos deplantas não lhe parece tão interessante. Pensou em algo com oelevador...

Hoje à noite a televisão transmite a entrevista com os futuros rei erainha. Acabei de ver lá embaixo que os melhores lugares em frenteà TV já estão reservados. Colocaram papeizinhos com nomes nascadeiras da primeira fila. Como uma variante das toalhas que às oitoda manhã já são colocadas nas espreguiçadeiras das piscinas dehotéis. Acho que devo avisar Evert sobre as reservas. Terá seu atode rebelião de mão beijada.

Algumas senhoras vão trajar seus vestidos mais bonitos paraassistir à entrevista de Willem e Máxima na televisão. Por respeito.O vestido mais bonito nem sempre é o que se espera. Às vezes já ébastante velho e gasto. Aqui os moradores prezam pela parcimônia.

Acham um pecado comprar roupas novas, porque há um granderisco de que morram antes que elas sejam bastante usadas. Então,é preferível usar vestidos velhos e meias e sapatos furados.

Também não estou livre desses pecados. Não gosto de comprarroupas caras.

Quinta, 18 de abrilAchei bonito o tom de azul. A blusa de Máxima foi o que mais me

fascinou em toda a entrevista. Alguns de meus coespectadoresficaram especialmente interessados no curativo no dedo do príncipeherdeiro. Fechou o dedo na porta? Unheiro? Unha quebrada?

Os analistas no estúdio não deram um pio sobre isso. Muitapompa e um conteúdo pífio. Então, não demorou muito para oassunto mudar para a dupla de mauricinhos cantores Nick e Simon.

O atentado de ontem em Boston fez com o que o sr. Schipperdecidisse não assistir à maratona de Amsterdã no próximo outono,apesar do fato de seu neto participar. Evert o advertiu de maneirainimitável, dizendo que o risco de que ele capotasse numa vala comseu Canta era muito maior que o de ser atingido de alguma formadurante a maratona e, portanto, seria melhor se livrar de seucarrinho. Evert conhecia alguém que queria comprar um Cantausado.

Agora vou dar uma passadinha para falar com os membros doTô-velho-mas-não-tô-morto e avisar que devem vestir roupassimples mais tarde. De preferência, nada de tecidos esvoaçantes.Poderiam pegar fogo durante o workshop. Esta última parte eu nãovou dizer.

Sexta, 19 de abrilFoi um grande sucesso. Não só pelo excelente vinho que foi

servido generosamente a partir do fim da preparação dos pratos. Ochef era como um chef deve ser: gordo e simpático. Mas tambémrígido. Ninguém podia fazer bagunça, o que Evert achou que farianuma desajeitada investida a uma berinjela. Então Rémi – este erao nome do chef – puxou as rédeas. Não se brinca com comida.Pode-se, sim, dar risada, mas não fazer graça.

Mordendo a pontinha da língua, caramelizamos, refogamos,fritamos e temperamos. Depois, comemos tudo festivamente. Rémificou orgulhoso de nós e ofereceu um copinho de conhaque com ocafé. A mulher da organização veio dar uma olhada para ver se nãohavia nenhum ferido e ainda bebeu uma taça conosco.

O micro-ônibus chegou cedo demais e ficou buzinando na porta.Só então percebemos que já haviam se passado cinco horas. Nocaminho de volta, recebi agradecido todos os cumprimentos, eninguém reclamou do preço. Não acredito que algum de nós possa,nem mais ou menos, cozinhar os mesmos pratos de novo em casa.Graeme parece ter memorizado muita coisa, mas mal entendíamoso que ele dizia, então foi difícil conferir.

Quando chegamos ao asilo, a sra. Stelwagen, nossa diretorablindada, assistiu a nossa animada entrada com uma caraimpassível. Normalmente, às 19h ela já foi para casa. O interessedos outros moradores, que tinham acabado de comer purê comchicória, provavelmente também não agradou a Stelwagen. Aspessoas motivadas positivamente queriam muito saber o que nóstínhamos comido; as chatas, o quanto tinha custado.

Um pouco depois, Stelwagen desapareceu sem dizer uma

palavra.

Sábado, 20 de abrilA sra. Hoogendijk achou um absurdo: não é permitido visitar o

novo Rijksmuseum de triciclo. Ela mesma tinha planos de passarcom seu Canta pela Ronda Noturna, “mas isso com certeza tambémnão é permitido”. O porta-voz do museu ressaltou corretamente queo triciclo motorizado é um meio de transporte, não um auxílioessencial para locomoção. As novas instalações têm bastantesvitrines e objetos avulsos, ele explicou. Se deixarem idososcircularem com seus triciclos motorizados, terão que pôr, além dovigia, um especialista em danos em cada sala e alguém para limpara bagunça, porque a maioria dos motoristas de triciclos dirige piorque Jules de Corte – que, para quem não se lembra, era cego.

Ontem finalmente recebi o resultado de alguns exames que aindaestavam pendentes depois de minha visita ao simpático geriatra.Boa notícia: não apareceu nenhum problema novo.

Na carta que o médico enviou junto: “Conforto-o com a ideia deque o senhor sempre poderia ter mais problemas. Espero comprazer revê-lo novamente daqui a seis meses”.

Para celebrar o fato de que não tenho câncer de pulmão, acendium charuto extra. “Eles” preferem que não se fume lá fora em frenteà porta de entrada, mas isso não me agrada nem um pouco. Nãogosto do cantinho interno de fumantes, onde você é obrigado afumar passivamente. Não é nada saudável. E os funcionários sópodem fumar no estacionamento de bicicletas.

Domingo, 21 de abrilOntem à noite, o carro funerário parou aqui na frente. Na verdade,

lá atrás, porque há uma saída que só é usada para a retiradadiscreta de falecidos. Desta vez, a sortuda foi a sra. Tuinman. Jáfazia algum tempo que ela não tinha mais vontade de viver,contaram. Eu mesmo mal a conhecia.

Há todo um protocolo para os casos de morte de um morador.Edward uma vez perguntou a respeito, mas não era “paraconhecimento público”. Isso só fez com que sua curiosidadeaumentasse. Sei que ele planeja um jeito de consegui-lo. Já andousondando com uma enfermeira com a qual tem bom contato, masela não estava autorizada a dizer nada. Estou depositando minhasesperanças em Anja. Ela me disse, com um sorriso, que faria opossível.

Transparência não é o maior atributo desta casa de repouso. Ascoisas mais normais, aqui, são confidenciais. Do que morreualguém, por exemplo. Os funcionários não podem dar nenhumainformação sobre os residentes. Nem mesmo se alguém estáresfriado ou se foi visitar a filha.

Durante um tempo, Evert enviou toda a sua correspondência emenvelopes fúnebres. E não selava, porque imaginava que porpiedade não o fariam pagar o porte postal, e tinha certeza de que acarta chegaria a tempo.

Até que enviou um envelope fúnebre para o imposto de renda.Podia ser pior. Seu irmão costumava circular com um carro

funerário de segunda mão, levando um caixão que ele mesmo tinhafeito, só para poder estacionar em qualquer lugar.

Eefje comentou durante o café que acharia bacana se, um dia

antes da coroação, Willem Alexander dissesse: “Na verdade, nãoestou muito a fim de ser rei. Não vou dar conta!”.

— Ele disse isso? — reagiram três ou quatro, confusos. Aspessoas aqui ouvem mal e escutam só a metade.

Segunda, 22 de abrilEvert foi para o hospital hoje de manhã.— Posso me hospedar lá por uma noite — disse ontem,

displicentemente, quando veio perguntar se eu cuidaria de Mo pordois dias.

Não quis dizer o que estava acontecendo.— Nada de mais, só alguns exames.— Que tipo de exames?— Henkie, não estou a fim de falar sobre detalhes médicos com

você agora. Eles vão ver se podem fazer alguma coisa.Também não consigo ligar hoje à noite. Para garantir que isso não

acontecesse, não me deu o número do quarto (“não seiexatamente”), pegou um quarto sem telefone e deixou o celular emcasa. A mensagem é clara: não incomode, s.v.p.

Não fico tranquilo com isso.Também aqui a música feita para o rei foi recebida com

sentimentos mistos. Muitos gostaram da letra, até onde puderamcompreender, mas ficaram desapontados com o fato de que CorrieBrokken e Anneke Grönloh não fossem as intérpretes. Para citaralguns nomes.

— Só gente jovem, isso não é representativo da população. Aprópria rainha tem mais de setenta anos!

O coro de cantores daqui está aliviado por poder simplesmentecantar o hino da Holanda e não ter que se preocupar com aprenderuma nova canção complicada em tão pouco tempo. Todos ficaramassustados principalmente com a parte em rap.

Entrementes, a canção se transformou num dos pilares da festada coroação.

É temporada de abobrinhas ou será que toda a populaçãoholandesa de repente ficou senil?

Terça, 23 de abrilO cachorro de Evert também está meio baixo-astral agora que

seu dono está no hospital. Enquanto eu prendia sua coleira parasair, ele fez um cocô bem mole no capacho em que está escrito“bem-vindo”. Logo em seguida, olhou-me inocente, com aquelesolhos grandes e tristes de cachorro velho. Levei vinte minutos paralimpar o cocô do capacho felpudo. Por fim, coloquei o tapete parafora, porque o fedor não saiu.

No fim da tarde, Evert volta para casa. Ele ligou uma hora atráspara dizer que hoje à noite ele mesmo pode sair com Mo.

— Sim, vai tudo bem, nada de especial. — Não consegui que eledissesse mais que isso.

Outro dia assisti a um episódio de Velhinhos dinâmicos natelevisão, sobre a experiência de anciãos holandeses famosos emuma casa decorada como nos anos 1970. Alguns dias depois, ligueia TV no meio de um episódio de uma série sobre um coral de idosos.Neste sábado tem um filme sobre uma rebelião numa casa derepouso sob liderança de certo sr. Aart. “Nós” estamos com tudo natelinha.

Tanto uma coisa como outra não me parecem lá muitorepresentativas do idoso holandês. O mais velho dos velhinhosdinâmicos tinha sessenta e nove anos. A média dos moradoresnesta casa de repouso está na casa dos oitenta.

Nos últimos anos, as novas levas nos asilos têm sido formadasprincipalmente por idosos atrapalhados, pra lá de velhos, querealmente já não têm autonomia para morar sozinhos. É precisoindicação 3 (ou algo assim) para conseguir um lugar imediatamente,ponto em que já não se pode mais cozinhar um ovo, e na maioria

das vezes vai direto para a ala fechada. Com indicação 2, emmuitos asilos a pessoa primeiro fica alguns anos em lista de espera.E aí às vezes não precisa mais, não é? As listas diminuem por contaprópria.

Nos anos 1970 e 1980, casais saudáveis e cheios de vida queacabavam de completar setenta anos optavam de livre escolha pormorar numa casa de repouso e aproveitar seus dias de velhice.Hoje, chegam basicamente quando já estão em escombros e podemdesabar a qualquer momento.

Quarta, 24 de abril— Fiquei um dia e meio praticamente a seco no hospital. Tenho

que encher o tanque.Evert já tinha tomado algumas doses quando cheguei para uma

visita às sete e meia a fim de ver como ele estava. Não me contoumuito além do fato de que no hospital teve que beber escondido emuma garrafinha de água mineral.

Quando se é jovem, a gente deseja ser mais velho. Quandoadulto, até os sessenta, desejamos permanecer jovens. Quando seé velho mesmo, já não há nenhum objetivo a alcançar. Essa é aessência do vazio da existência aqui. Já não existem objetivos.Nenhuma prova na qual passar, nenhuma carreira para seguir,nenhum filho para criar. Já estamos velhos demais até para cuidardos netos.

Nem sempre é fácil propor pequenos objetivos para si mesmoneste ambiente tão inspirador. Ao redor, vejo apenas olhos cheiosde resignação. Olhos de pessoas que vão da xícara de café para axícara de chá e da xícara de chá para a xícara de café.

Talvez eu já tenha dito isso antes.Talvez eu não deva criticar tanto.Simplesmente dar duro para que cada dia valha a pena. Ou, pelo

menos, um a cada dois dias. É preciso ter dias de folga, como noTour de France.

Quinta, 25 de abrilOntem fui a um concerto na hora do almoço. Quando reli meu

próprio queixume sobre o vazio dos dias, tive que eu mesmo tomariniciativa. Música clássica não é para Evert, Eefje não estava sesentindo bem e eu não estava com vontade de continuar procurandocompanhia, portanto fui sozinho ao concerto que a prefeituraoferece aos moradores na sede distrital.

Infelizmente, “fazer alguma coisa” não é garantia de uma tardeagradável. A música era bem chata e longa demais, por isso eu caíno sono, até que uma mulher me sacudiu, brava, tentando meacordar. Temo que eu tenha roncado. Todo mundo olhava para mim.Morri de vergonha. No final, quando saí o mais discretamentepossível, ainda senti os olhares de desprezo ardendo em minhascostas.

— Vamos lá, Hendrik, chega de desânimo. Só quando não se faznada é que nada pode dar errado. Não se abale com uma coisinhaque não deu certo. Da próxima vez, é só pôr uma barba postiça —disse-me Eefje quando fui visitá-la.

Ela ainda estava se recuperando e não queria comer minhastrufas. Não reclamou, mas contou em tom pragmático que seuintestino frequentemente não funcionava bem.

— Aí não posso fazer nada além de passar o dia no quarto.Desde que ela melhore, estou convidado a vir tomar um vinho

branco com trufas de chocolate amanhã à tarde.

Sexta, 26 de abrilO chato do sr. Dieudonné Titulaer – que nome lindo – leu em voz

alta, enquanto comia seu flã, um recorte de jornal que dizia que,segundo a “força-tarefa de assaltos”, o número de assaltos aresidências de idosos havia aumentado muito. Dieudonné esfregouas mãos com gosto, como para dizer que afinal era melhor estarnesta reserva segura do que lá fora, naquele mundo perigoso. Umtanto de flã pingava de seu bigode.

De acordo com os relatos da força-tarefa, estão usando maisviolência para fazer os velhinhos confessarem onde escondem suasmeias com dinheiro. Porque uma das razões para tantos assaltosseria o fato de que idosos não gostam de pagar com cartão ecostumam guardar boas quantias de dinheiro vivo em casa. Eumesmo desconfio de outro motivo: idosos não costumam ser tãorápidos na hora de pegar tacos de beisebol para defender seuspertences. Bandidos gostam de vítimas indefesas.

Foi dado o tom para a conversa da hora do café. O medo foinovamente semeado. Semente que aqui cai em solo fértil. Mais dametade dos moradores não têm coragem de sair na rua à noite semcompanhia. Todos com medo de negros e marroquinos armadoscom facas. Houve um verdadeiro desfile de histórias sobrebatedores de carteira, gatunos, assaltantes, vendedores desonestosde aspirador de pó e falsos coletores de caridade.

Fui até Eefje. Assistimos a um DVD . Uma comédia romântica,ainda por cima, gênero que geralmente me faz dormir. Mas, dessavez, não.

Sábado, 27 de abrilCrianças riem umas cem vezes por dia. Adultos, umas quinze

vezes. Em algum ponto do caminho, perdemos nossa facilidade derir. São números de uma pesquisa. Os velhos não são designadoscomo categoria à parte, mas por observação eu diria que a linhadescendente de risos continua com os anos. Ainda que existamgrandes diferenças. Nos últimos dias, tenho prestado mais atenção;das pessoas que vejo regularmente, tem cinco que não vejo rir hátrês dias. Por outro lado, há quatro senhoras que riem com muitafrequência. Tão frequentemente e por tão pouco que chega a serirritante quando a gente começa a reparar. (Então é melhor nãofazer isto, reparar, mas quando você percebe já é tarde demais. Aínão dá mais para não reparar.)

A média é formada por um grande grupo que raramente dárisada, mas que sorri regularmente. Tentei calcular a quantia desorrisos, mas desisti, porque me distraía muito durante asconversas. No fim, eu sabia com que frequência quatro pessoastinham dado risada, mas já não fazia ideia de qual era o assuntosobre o qual falávamos. Meus companheiros de papo perguntavamse eu por acaso não estava me sentindo bem.

Agora estou tentando contar com que frequência eu dou risada,mas isso também é mais difícil do que parece. Depois de umahorinha tomando chá e uma horinha jogando bilhar com Graeme eEvert, eu computava três risadas (com som) e algo em torno de dezou quinze sorrisos. Nada mau.

Tornei-me dolorosamente consciente de que muitos risosdecorrem de pressão social, tanto os meus como os dos outros.Uma risadinha aqui, uma risadinha ali, por nenhum motivo além de

agradar às pessoas. Como um pequeno gesto de simpatia ouporque você é muito frouxo para demonstrar que não achoudeterminada coisa engraçada. Ou simplesmente para se livrar deuma conversa.

Domingo, 28 de abrilÉ bom quando a gente vê no jornal que um idoso famoso morreu

e pensa: “Nossa, ele ainda estava vivo?”. Significa que foisilenciosamente esquecido. O contrário também acontece: umacelebridade decrépita do passado é posta novamente sob osholofotes. Triste.

Ramses Korsakov Shaffy foi posto no palco mais uma vez antesde sua morte para, cambaleante, cantar como uma gralha a valsa“We zullen doorgaan”. O apresentador Willem Duys estava todoencolhido e babando no programa de televisão DWDD , mudodepois de seu quinto derrame. Antigamente, quando ficava bêbado,o comediante Rijk de Gooyer destruía figurões com uma só tiradaquando não ia com a cara deles. Mas, para deleite das câmeras, foiarrastado quase morto, como uma múmia desamparada ebalbuciante, ao programa de seu antigo companheiro Johnny. Euesperava que Rijk não desse nenhuma chance ao declínio epreferisse um tiro na cabeça.

Por que os urubus da TV têm tanto prazer em mostrar esse tipo dehumilhação? Por que nenhum dos “incríveis colegas” diz que é faltade respeito e falta de vergonha exibir os grandes nomes de outroradessa forma?

Toda vez que isso acontece, eu desligo a televisão, mas aimagem fica gravada em minha memória.

A coroação se aproxima. Aumenta o aborrecimento com o fato deque tudo e todos em Amsterdã deverão se adequar a esse show defantoches. O sr. Schaft, um dos poucos que ainda se locomovem debicicleta, estava furioso. Na última terça-feira, a polícia “roubou” suabicicleta na balsa porque uma semana mais tarde um homem alto e

gordo com uma coroa na cabeça passaria a cem metros dedistância dali. A cidade inteira está sendo arrumada, limpa elustrada, e, depois que todo esse circo tiver passado, Amsterdãpode voltar a se deteriorar como de costume.

Melhor nem tocar nesse assunto com meus colegas de asilo. Aquinão se pode fazer nenhuma crítica à família real.

Segunda, 29 de abrilNão estou bem. Minha cabeça está pesada e sinto tontura. Não

há de ser alguma coisa crescendo ali, não?Acho que já tenho problemas demais para querer começar um

berçário de tumores agora.

Sexta, 3 de maioPara um republicano, 30 de abril não foi um mau momento para

ficar doente. Mal fiquei sabendo de todo o bafafá em torno dacoroação. No grande dia, tive uma dor de cabeça de estourar osmiolos, além de gastroenterite. Portanto, tomei uma bela mistura deaspirina e carvão ativado e fiquei na cama. Uma hora, Evert esticoua cabeça ali no canto para dar uma espiada. Também Edward,Grietje e Eefje. Fiz de conta que dormia.

No segundo dia, comecei a ter a sensação de que eu fedia muitoe decidi tomar um banho. Daí, escorreguei. Com muita, muita dor edificuldade, consegui me arrastar de volta até minha cama. A gentenão grita “socorro!” assim tão fácil. Um misto de orgulho e vergonhanos impede.

Finalmente veio uma enfermeira que foi alertada por minhavizinha de quarto, que tinha escutado um estrondo estranho. Aenfermeira chamou o médico, e ele constatou algumas costelaslesionadas, com o que eu me saí bem. Se tivesse quebrado oquadril, seriam pelo menos quatro meses antes de conseguir mearrastar com um andador.

Agora só dói quando eu respiro. Por sorte, o médico não é do tipoinfantil com os analgésicos, então acabei de ir lá para baixo tomarcafé pela primeira vez em três dias. Algumas pessoas estavamrealmente alegres em me ver. Isso me fez bem.

Ainda vou pegar leve mais alguns dias. Segunda-feira tenho queestar de novo em forma, porque é o dia em que Evert organiza opasseio com o clube. Ele prometeu uma garrafa de conhaque paraquem acertar de primeira o que vamos fazer. Não ganhei, pois nãovamos fazer nado sincronizado.

Sábado, 4 de maioA sra. Stelwagen me chamou ontem à tarde em seu escritório.

Primeiro, perguntou cheia de interesse se meu joelho já tinhadesinchado.

— Bem — eu disse —, não tem nada errado com meu joelho,mas minhas costelas ainda estão doendo.

Ah, desculpe, ela confundiu acidentes com duas pessoasdiferentes. Nossa diretora faz o possível para demonstrar empatia,mas não é convincente.

Na verdade, ela pediu que me chamassem para informar quehavia consultado o conselho administrativo sobre meu pedido paraver o regulamento e para dizer que a opinião do conselho era deque o regulamento não é um documento público e que eu, portanto,não poderia lê-lo.

— E por que não é público? — perguntei.— Sobre isso, o conselho não fez nenhum comentário.— E então?— Então nada. Sinto muito por não poder atender ao pedido. O

senhor me desculpe, há uma pessoa me esperando. Tenha umótimo dia.

Saí colérico, pelo menos espero ter dado essa impressão. Tinhaplanejado resmungar um pouco, só pro forma , caso o regulamentonão fosse liberado.

Ria e Antoine conhecem muitas pessoas; entre elas, umsimpático advogado aposentado. Antoine tinha me dito isso antes daconversa com a diretora. Ele daria uma ligadinha para esseconhecido, e eu então poderia me encontrar com ele para meinformar sobre como era exatamente a questão da transparência da

administração. E não precisava me preocupar com os custos.Portanto, logo vou fazer uma visita.

Domingo, 5 de maioEra de se esperar que aqui, com tantos idosos juntos, fôssemos

ouvir histórias tristes ou chocantes sobre a guerra nos dias 4 e 5 demaio, mas as pessoas se calam ou caem nas velhas bobagenssobre o racionamento de açúcar.

É impressionante quão pouco as pessoas aqui sabem umassobre as outras. Dei-me conta disso ontem durante os dois minutosde silêncio. Olhei ao redor e constatei que não sabia de ninguémcomo ele ou ela havia passado a Segunda Guerra Mundial. Mesmodas pessoas com quem tenho contato frequente, sei muito pouco.

Sei bastante sobre Evert. Já o conheço há uns vinte anos. Ele eratipógrafo e certa vez o contatei por causa de meu trabalho. Umcontato que desde então nunca mais se desfez. Sua esposa jámorreu há dez anos. Tem dois filhos que ele pouco vê. Nenhumdinheiro, nenhuma propriedade, nenhum Deus. Há anos eleinterpreta com convicção seu papel de aventureiro. O clássicocasca-grossa de coração mole.

Anja Appelboom eu conheço há quarenta anos. Sempre foisolteira. Talvez tenha esperado demais pela pessoa certa.Inteligente, amável e de confiança. Acho que é solitária.

Evert e Anja são os últimos vestígios do que uma vez foi uma vidasocial aceitável, com mulher, filha e amigos.

Até três anos atrás eu morava numa casa conjugada decente,com um jardim. O plano original era, em um bom tempo, morrer ali,tranquilamente. Mas não pôde ser assim.

Minha mulher é maníaco-depressiva há quarenta anos. Poucodepois que nossa filhinha se afogou, ela ensandeceu. Saiu de carropara Groningen no meio da noite para subir a torre de São Martinho,

deixou o carro com um drogado completamente desconhecido evoltou de táxi para Amsterdã. Gastou milhares de florins. Acaboupega pela polícia por roubo numa loja e medicada por seupsiquiatra. Depois, passou meses numa instituição com depressãoprofunda. Finalmente, graças a medicamentos, voltou para casanum equilíbrio precário. Até o surto seguinte, sucedido por mais umadepressão. E assim aconteceu por cinco vezes. Da última vez,nossa casa foi parcialmente incendiada quando eu saí para fazercompras. Agora ela está internada definitivamente. Depois doincêndio, uma assistente social conseguiu um lugar para mim nestacasa de repouso.

Vou visitá-la mais ou menos uma vez a cada seis meses. Ela malme reconhece, mas segura minha mão e a acaricia. Nunca fiqueizangado com ela.

Vi no calendário que minha última visita já foi há mais de meioano.

Uma vida resumida em poucas palavras.Nos últimos dois anos, o vazio aos poucos se tornou insuportável,

mas veja... de repente tenho Eefje, Graeme, Grietje, Edward,Antoine e Ria. É motivo suficiente para, por enquanto, ainda nãomorrer.

Segunda, 6 de maioOntem à noite me dei conta de que informações detalhadas sobre

esta casa de repouso deixariam as coisas mais claras para o leitor.De fato, a possibilidade de que quem me lê agora passe seus diasneste asilo ou em uma casa similar me parece bem pequena. Porisso, vou dar mais atenção nos próximos dias ao cenário no qualestamos inseridos e ao cotidiano daqui.

No fim dos anos 1960, surgiram muitos lares de idosos. Umprédio que lembrasse ligeiramente um galpão era aceitável e barato.Os velhinhos daquela época ainda não estavam tão acostumadosao luxo. Tinham todos vivido os anos de guerra e se contentavamcom pouco.

O arquiteto deste asilo escolheu um prédio de concreto cinza, desete andares, cada um composto de duas alas, com o elevador nomeio. Cada ala é um longo corredor – sem luz natural – com oitoapartamentos em cada lado, constituídos por um ou dois cômodos ecozinha integrada. A cozinha é composta de quatro armarinhos, doisem cima e dois embaixo, uma pia com tampo de um metro e fogãode duas bocas que só pode ser usado para fazer café e chá eesquentar leite. Cozinhar um ovo é tolerado. Há um pequenobanheiro com chuveiro. Vê-se que os construtores pensaram nopúblico-alvo pelos apoios em lugares onde se pode cair e pelaausência de degraus.

Os apartamentos têm uma sacada onde dá para pôr uma lata delixo e pendurar um vaso de gerânios.

No fim de cada ala, na ponta do prédio, há uma espécie de baywindow com um banco. Embora raramente alguém se sente ali – amaioria dos moradores prefere ficar no salão de recreação no andar

de baixo –, muitos velhinhos não gostam que alguém de um outroandar vá “sem mais nem menos” sentar-se ali.

Vou voltar a esse tema. Tenho que economizar minhas forças.Às 14h, devo me apresentar na entrada, em roupas confortáveis;

lá nosso guia de hoje, Evert, irá nos esperar para um passeio queserá, sem dúvida, memorável.

Terça, 7 de maioQuem imaginaria que logo Evert nos ofereceria uma aula de tai

chi, algo que não tem nada a ver com ele? Felizmente nossoprofessor permitia que déssemos risadas, e fizemos uso dessapermissão muitas vezes. Ainda assim, encaramos a sério osmovimentos lentos de luta, embora eu tema que no caso de umassalto violento o que aprendemos na aula não dará frutosimediatos. Tai chi é um esporte que dá para fazer até com andador,portanto, muito adequado para idosos. Costelas lesionadas, por suavez, não ajudam. Fiz tudo com bastante cuidado, sofrendo emsilêncio. Infelizmente, também já esqueci os belos nomes da maioriados movimentos que o mestre de tai chi e sua graciosa assistentetentaram nos ensinar.

Graeme se estatelou no chão ao fazer a imitação de umacegonha e perdeu pontos, mas nem por isso deixou de receber seudiploma.

Depois, para permanecer no tema, fomos comer no restaurantechinês Lange Muur. Grietje pediu, muito séria, o “númelo tlinta e tlêscom aloz blanco”. Piada de mau gosto, mas engraçada. Por sorte,os chineses são bem tolerantes com idosos. Respeito pelos maisvelhos é algo que aprendem desde o berço. Já na cultura ocidental,a ideia é: velho dá trabalho. E isso com frequência não se podenegar.

Evert tentou não ficar todo cheio de si quando chegamos em casae ele recebeu uma enxurrada de cumprimentos pelo dia fantástico.Parece que também ficou com os olhos marejados.

— Tá bem, tá bem, agora já chega.Desde nosso primeiro passeio, dezessete pessoas já

perguntaram se também poderiam fazer parte do clube. Infelizmentepara elas, o Tovemantomo no momento não está aberto a novosmembros.

Quarta, 8 de maioNo quadro de avisos da sala de estar está pregado desde hoje de

manhã um protocolo sobre bullying. São sete conselhos para evitara intimidação entre os moradores. É um protocolo antigo, eupercebi, datado de dois anos atrás. Obra do sr. Jan Romme, diretordo Fundo Nacional para Idosos. Como se isto aqui fosse uma escolafundamental para anciãos.

Primeiro conselho: é preciso haver uma pessoa de confiança aquem contar o ocorrido. Segundo: é preciso organizar reuniõessobre o problema da intimidação. E por aí vai. Im-pres-sio-nan-te.Com um protocolo assim, a intimidação aqui acabou quaseimediatamente. Talvez seja uma ideia para a Síria? Ou para oAfeganistão? No mundo inteiro, as pessoas incomodam umas àsoutras. Um protocolo global de intimidação é aquilo de queprecisamos. Com pessoas de confiança para ouvir os relatos ereuniões para discutir o tema.

Contenha-se, Groen.Sim, fala-se mal aqui, ignora-se e ri-se dos outros como se fosse

a coisa mais normal do mundo. E é. Nada que seja infantil éestranho para nós. O melhor é não dar bola. Se por acaso você seincomoda, o negócio é abrir a boca ou sentar-se em outro lugar. Oudar uns safanões, como Edward sugeriu. Não esperava isso dele.

Devo dizer que para mim é fácil falar, porque raramente sou avítima. Temos aqui algumas maçãs pra lá de podres, e é bom ficarde olho. Como aves de rapina, escolhem os mais fracos comopresas e não param até que os tenham estraçalhado, isso sedeixarmos que façam o que querem. O melhor é quando, na falta devítimas, os valentões começam a atacar uns aos outros. Há

algumas rixas interessantes. As sras. Duits e Schoonderwaltpoderiam beber o sangue uma da outra, tudo por causa de umamancha de café em um tapetinho de crochê três anos atrás.Rivalidade até que a morte as separe.

Quinta, 9 de maioAlgo tranquilizador: uma vez aqui, você fica aqui, até partir para o

cemitério ou para o crematório.Mais uma vez, todos os jornais davam a mesma notícia: os custos

da assistência a idosos estão transbordando. A solução tem duaspartes: em primeiro lugar, eleva-se o nível de exigências para asnecessidades de cuidados; em segundo lugar, os idosos passam apagar muito mais.

Primeiro ponto: atualmente vivem neste asilo muitos velhinhosque, de acordo com as novas normas, não poderiam estar aqui.Ainda são muito lépidos e autônomos. Começou a circular um boatode que pessoas nessa categoria teriam que voltar a viver por contaprópria para dar lugar a casos mais graves. Esse boato se espalhoude forma significativa e provocou aqui e ali agudas pioras de malesjá existentes. Por precaução.

Mas todos já podem respirar aliviados: a direção garantiu porescrito aos moradores que ninguém nunca terá que sair daqui,mesmo que ainda esteja bastante saudável. “Excluindo-secircunstâncias especiais.”

Uma pena que termine com essa frase.Segundo ponto: sei, por conversas a meia voz durante o café, que

diversos moradores já tiraram seu dinheiro do banco para guardarnuma meia velha. Ou numa fronha. “Toda assistência deve sergratuita, trabalhamos duro por isso a vida inteira”, essa é a visãopredominante. Os dois euros para o ônibus da Connexxion já sãoum roubo.

Em alguns casos dramáticos, foi relatado em tom sussurrante queos filhos, por via das dúvidas, já haviam esvaziado as contas

bancárias sem autorização. Para assegurar a herança.— Cada dia a mais que você vive irá me custar uma fortuna —

disse o filho da sra. Schipper, fazendo piada. A esposa dele, semnenhum senso de humor, assentiu com a cabeça. Feliz Quinta-Feirada Ascensão.

Sexta, 10 de maioExiste um projeto chamado “Passeando com a vovó”. Crianças

saem por um dia com uma avó completamente desconhecida que,de outra forma, passaria o dia inteiro sozinha em casa. Suponhoque também possa ser um avô. Assim, meninos e meninas de onzeou doze anos iam com velhinhos visitar Madurodam, que foirestaurada. Correndo o risco de passar por um velho ranzinza eresmungão, eu diria: “Deixem-me tranquilo em casa”. Madurodam jánão me parece grande coisa, mas passar horas em companhia depirralhos de onze, doze anos, completamente desconhecidos,também pode ser decepcionante.

Não seja tão negativo, Groen, é uma bonita iniciativa.Principalmente se você pensar que muitas crianças hoje acreditamque não é preciso cuidar dos velhos porque a assistência social faztudo para eles. Aliás, muitos adultos também pensam assim.

O jornal que deu destaque ao projeto “Passeando com a vovó”também divulgou cifras chocantes do Gabinete Central deEstatística: há na Holanda cerca de um milhão e meio de anciãossolitários, dos quais mais de trezentos mil são extremamentesozinhos. São muitos.

Mas alguns idosos tornam por si a vida mais difícil, isso tem queser dito. Só nesta casa de repouso vivem dezenas de velhinhos quese devem evitar como o capeta porque são rabugentosinsuportáveis. Desculpe minha sinceridade, mas é assim mesmo.

Ouço muito: “Aqui pelo menos a gente tem com quem conversar”.Isso realmente é uma grande vantagem em relação a morarsozinho, quando se tem só o gato ou o canário com quem falar.

Quem se sentiria extremamente solitário aqui?

Sábado, 11 de maioPensando nas adoráveis crianças americanas que ganham um

rifle cor-de-rosa quando fazem cinco anos, My First Rifle , com balasde verdade, fiquei me perguntando se nos asilos dos EstadosUnidos os velhinhos circulam com um Last Rifle carregado. Comtodos os casos de Parkinson, isso com certeza leva a acidentes.Ainda não ouvi nada sobre massacres, mas não posso deixar deimaginar que, aqui e ali, um velho seja morto por algum vizinho dequarto depois de uma briga querendo proteger seus pertences. Umafatia de bolo, por exemplo.

Uma vantagem de ter tantas armas por perto é que ninguémnunca precisa criar complicação por causa da dificuldade em obterpílulas de eutanásia. Se você ainda consegue mexer um dedo, asolução está num coldre.

Ainda não foi neste ano que nos cansamos de falar sobre aprimavera, que faz a natureza romper seus liames. “A gente vê tudocrescer”, ouve-se pelo menos três vezes por dia. Só Evert diz: “Euouço tudo crescer”. Então às vezes alguém presta muita atenção ede vez em quando também diz que consegue ouvir.

Caminho duas vezes por dia até o parque. Ora com Eefje, oracom Graeme, Edward ou Evert. Oito minutos para ir, quinze minutosno banco, oito minutos para voltar. Já não há nenhuma pressa, e aprimavera nunca enjoa. Às vezes me arrasto em plena chuva.

— O que aquele velho louco está fazendo? — Ouvi adolescentesque se protegiam no pórtico da esquina pensando um pouco altodemais. Fiz o sinal de respeito para eles: punho fechado nocoração. Achei engraçado, eles não entenderam.

Domingo, 12 de maioEmbora o setor de enfermaria seja separado de nossa casa de

repouso, às vezes aparece um demente desacompanhado deenfermeiros pelos corredores. Daí alguns moradores correm para osquartos, porque acham que demência é contagiosa. Ou talvez nãoseja, mas nunca se sabe. Por via das dúvidas, não faz mal semanter distante, essa é a ideia de muitos. E não só quando se tratade demência. Pacientes com câncer, homossexuais, muçulmanos,todos são evitados. Quanto mais velho, mais medroso. Não há maisnada a perder, portanto já não é preciso ter medo de nada, isso nãocombinaria melhor com nossa idade?

São as pequenas coisas que importam. Ou melhor, que nãoimportam. Um aborrecimento diário: embalagens. Latinhas com umpuxador em que seu dedo não entra, embalagens a vácuo com umcantinho pequenininho para puxar e abrir, materiais de limpeza comtampinhas com proteção para crianças, potes de compota comtampa impossível de abrir, rolhas de prosecco, cartelas decomprimidos – tudo especialmente desenvolvido para tornar ascoisas o mais difícil possível para mãos velhas, trêmulas e semforça.

Hoje deixei cair um pote de picles durante uma tentativa frustradade abrir a tampa. Meu quarto inteiro ficou cheirando azedo. Caco devidro por toda parte. Achei o último caquinho em minha pantufa.

Alguém tem que processar a indústria de embalagens pelasdezenas de milhares de casos de danos físicos e psicológicos. Nãopode ser de outra forma, se eles continuarem a fazer as coisasassim. Se conseguem mandar o homem para a Lua, como épossível que não consigam fazer uma tampinha decente? Eu

admito, estou um pouco resmungão hoje.

Segunda, 13 de maioEvert foi levado às pressas hoje de manhã. Ele me ligou do

hospital para perguntar se eu podia cuidar do Mo. Dois dedos dospés ficaram pretos uns dias atrás. Quando ele foi a uma consultahoje de manhã, o médico fez a ambulância buscá-lo imediatamente.

Aconteceu o que ele temia: vai ter que fazer o mesmo que umvelho amigo, a quem foram amputando parte por parte.

Ele ligou do leito hospitalar.— Por que você não disse nada? — Não pude deixar de

perguntar.— Porque aí eu receberia um monte de conselhos não solicitados

e que não iria seguir mesmo.Nisso ele tinha razão.Ele será operado amanhã e, se tudo correr bem, acordará só com

alguns dedos a menos no pé.Depois que terminamos a conversa, fui de táxi até o hospital levar

algumas coisas para ele: cuecas, pijama, escova de dentes.Foi Evert quem me animou, em vez de eu fazer isso com ele. Só

depois percebi que isso tinha acontecido e me envergonhei.Evert aceita as coisas como elas vêm. Avaliou e assumiu os

riscos com antecedência e viveu o máximo possível como se nãotivesse diabetes. Com prazer e ousadia. E era assim que estavatambém no hospital.

Quando voltei para casa, contei para os membros de nosso clubee para os funcionários. As reações dos funcionários foram desurpreendente compaixão. A maioria gostava dele. Mas talvezalgum deles deseje em segredo que ele tenha outras partesamputadas, de preferência a cabeça.

Dois moradores não puderam deixar de dizer de maneira quasetriunfante que o haviam advertido.

Que droga de dia.

Terça, 14 de maioAcabei de falar com Evert. Ele saiu da anestesia uma hora atrás.

Foi operado hoje de manhã cedinho e três dedos de seu pé direitoforam amputados, entre os quais o dedão. Vai ser difícil andar,principalmente no começo. A previsão é de seis semanas dereabilitação. Ele soava cansado.

Vou organizar um esquema de visitas para os interessados.Agora vou dar uma volta para informar os membros de nosso

clube e alguns funcionários.

Quarta, 15 de maioFui visitar Evert no hospital hoje de manhã. Seu atrevimento

costumeiro já havia sido recuperado. Perguntou à enfermeira sepodia levar os dedos amputados para casa para pôr num potinhosobre a cômoda. A princípio, a enfermeira olhou como quem nãotinha entendido.

— Acho que os dedos do senhor já foram jogados fora — disse,num tom um tanto constrangido.

— Eles continuam sendo propriedade minha. Vou considerar apossibilidade de fazer uma denúncia... Só que não, brincadeirinha!

Ele está em um ambulatório com outros dois idosos. Um tosse eexpectora constantemente e, entre uma tossida e outra, reclama detudo e de todos. O segundo é quieto como um túmulo e só esperamorrer. Pelo menos, era isso o que Evert supunha, ele mesmo comuma aparência longe de ser das melhores. Cansado e um poucoencaramujado, mas já distribuindo piscadelas para as enfermeiras.

— Mais uns dez dias e eu já vou estar saltitante atrás do andador— assegurou.

Tive que jurar solenemente que não esperaríamos por ele parafazer nossos passeios. Tudo bem organizar visitas a museusempoeirados primeiro e guardar as coisas mais legais para depois.Prometi incluir isso na agenda da próxima reunião.

Sobre o sucesso de sua operação, Evert não podia dizer muito. Ocirurgião deveria ter passado para uma visita ontem à tarde, mas foichamado com urgência. Veio um substituto, e as enfermeiras nãosabiam nada ou faziam de conta que não sabiam. Talvez o médicodê uma passada hoje à tarde.

Os pacientes não importam muito nos hospitais. No fim das

contas, o que importa são os médicos.Um pequeno trauma foi mitigado: Anouk chegou à final do festival

europeu da canção. No asilo, o pessoal preferia ter visto o paísrepresentado por Ronnie Tober, mas tudo bem, trata-se do interessenacional. A opinião reinante por aqui é que nos tornamos um anãodos festivais da canção por causa dos países corruptos do LesteEuropeu e, por isso, a cortina de ferro deveria ser fechada de novo omais rápido possível.

— E não se esqueçam de empurrar para o lado de lá todos osimprestáveis acordeonistas romenos — enfatizou o sempre sutil sr.Bakker.

Quinta, 16 de maio— Custa quinhentos e cinquenta euros para ficar um dia aqui, e

por essa merreca tenho que comer torradas às sete horas damanhã, me dão um “chafé” três vezes por dia, a comida é fria, e opão, murcho. Preço cinco estrelas para um hotel nota zero. Ok, duasvezes por dia vem uma enfermeira com um termômetro.

Evert Duiker já tinha jogado muita conversa fora e, entre umahistória e outra, comido uma caixa inteira de bombons de rum semaçúcar. O hospital o havia proibido de beber, e ele esperava garantirpelo menos uma dose desse jeito. Tinha me ligado especialmentepara fazer a encomenda. Também podiam ser bombons de cereja.

— E uma garrafinha de água mineral sem gás. Da Bols, se vocême entende.

Depois de um dia e meio, o cirurgião apareceu para dizer que aoperação tinha sido um sucesso.

— Como assim, um sucesso? — perguntou Evert.— Os dedos infeccionados foram amputados.— Não acho isso nenhum sucesso.— Não fazer nada não era uma opção — disse o médico,

impassível, já pronto para sair do quarto.— E agora?— Se não houver complicações, o senhor poderá ir para casa em

quatro dias. Marque antes as datas para controle e fisioterapia. Boatarde. — E lá se foi o médico. Não se deu nem ao trabalho de retirara atadura.

Meu diário transformou-se temporariamente mais no diário deEvert.

Sexta, 17 de maioOntem à noite, fizemos uma reunião extraordinária do clube Tô-

velho-mas-não-tô-morto. Principal ponto em pauta: a condição deEvert. Decidimos preparar para ele uma bela recepção de boas-vindas, provavelmente na segunda ou na terça-feira. O próximopasseio será adequado para cadeirantes, prometeu Edward. Será oúltimo da primeira série. O grande entusiasmo não diminuiu, evamos continuar na mesma ordem para a segunda etapa. Parabrindar a isso e à saúde de Evert, no final da reunião bebemos umpouquinho demais.

Quando cheguei a meu quarto, tropecei no capacho e caí com acara na porta. Não posso reclamar da sorte. Graças ao vinhobranco, eu estava molinho como borracha e pude me reerguer semter me machucado. Bem, hoje de manhã constatei um galo na testa.Joguei fora o capacho e agora preciso de um dia para me recuperar.

Cai-se muito nesta casa. Como eu, por causa de tapetinhos, mastambém sem nenhuma causa particular, simplesmente por cair. Ouerrando a cadeira na hora de sentar-se. Para sair de sua cadeira, asra. Been se apoiou numa mesinha com rodinhas que não estavamcom o freio engatado. O carrinho virou fazendo o maior estrondo. Ebum, lá estava ela entre bolachinhas, cubinhos de açúcar e jarrinhasde creme de leite. Por sorte, as garrafas térmicas estavam bemfechadas. Por um instante, todos ficaram em silêncio, até que a sra.Been começou a rir bem alto enquanto ainda estava no chão. Poreducação, todos riram junto, até o que o riso da sra. Been setransformou em choro. Então, alguém foi chamar a enfermeira. Eunão estava lá, mas deve ter sido uma situação surreal.

Sábado, 18 de maioMeu trabalho temporário como passeador de cachorro faz com

que eu tenha que dar três voltinhas por dia. Felizmente, o Mo andaainda mais devagar que eu. Ora, “andar”... é mais um arrastar-seem câmera lenta. Ele não se perderia facilmente numa voltinha aoredor do quarteirão, então eu até poderia deixar que ele fossesozinho, mas para o Mo o que importa é a companhia. Se ele nãofosse tão velho e preguiçoso, com certeza daria pulos e abanariamuito o rabo ao me ver chegar. Agora ele sai de sua cestinhadevagar e gemendo, me dá umas lambidas de boas-vindas e já ficaparado na porta.

Quando sai, Evert às vezes chama o Mo bem alto por seu nomecompleto. Não que seja preciso, porque o cão nunca está a mais dedez metros de distância. Só faz isso quando marroquinos oupessoas que parecem marroquinas entram em seu campo de visão.

— Mohammed, já pra cá... — Ele espera que um dos marroquinostambém se chame Mohammed, e parece que a chance é bastantegrande. Quando se cria alguma confusão, ele faz um gesto sedesculpando e aponta para o cachorro, cumprimenta a todos comsimpatia e continua o passeio.

Sinto vergonha quando tenho que, com uma pazinha, pegar ococô do Mo e pôr num saquinho. Não olho para os lados, porque seique atrás de muitas cortinas tem gente espiando. Aliás, li quealguém sugeriu que os cocôs deixados para trás fossemexaminados por meio de DNA para se descobrir o cachorro e depoisdar uma multa ao dono. Não estava escrito se os cachorros seriamobrigados a dar uma amostra de saliva ou se isso aconteceria deforma voluntária.

Domingo, 19 de maioHoje de manhã fiz um test drive com o triciclo do sr. Dickhout,

aquele da piada de 1o de abril. Ele já tinha oferecido algumas vezes,mas por educação eu tinha sempre recusado. Dessa vez, eu estavapronto para sair e dar uma caminhada quando ele apareceu nocorredor depois de ter dado uma volta.

— Quer experimentar, Hendrik?Segundo as regras, é proibido emprestar scooter para idosos

pago pelo seguro-saúde, e oficialmente alguém que passa a usarum triciclo motorizado recebe primeiro três aulas antes de poderdirigir sozinho, mas Dickhout não gosta de regras e não criounenhuma dificuldade. Em cinco minutos, explicou-me tudo, desejoubom passeio e foi tomar café.

Respirei fundo e fui beeeem devagar. No fim, rodei por meia horapela ciclovia e pelos parquinhos do bairro. Primeiro dia dePentecostes, bem cedinho, então estava tudo bastante parado. Fuiprimeiro só na marcha “lesma”, com a qual mal dá para ultrapassarum pedestre, mas depois de alguns minutos, opa, passei para“lebre”. O fabricante imagina que idosos sejam débeis e queentendam melhor o desenhinho de uma lesma e de uma lebre doque, por exemplo, marcha um e dois. Pode ser que o fabricantetenha razão.

Vamos falar a verdade, é uma delícia. Quase não faz barulho, agente se senta como um rei, não fica cansado nem com dor naspernas – me convenceu. Só fiquei com um pouquinho de cãibra namão direita, porque a gente tem que manter o acelerador apertado,então, sr. fabricante: por favor, cruise control .

Eu estava meio animado demais quando entrei no corredor do

hall e bati de leve no porteiro, que tirava um carrinho com roupas decama do elevador. Nada grave, mas o raio de viragem é maior doque eu pensava. Por sorte, o porteiro é um cara desagradável.

O triciclo Capri Pro 3 está custando trezentos e noventa e noveeuros. Mas vou querer algo mais robusto. Eu mesmo tenho quepagar, porque ainda estou andando bem.

Segunda, 20 de maioOntem um morador demente pôs uma bola de bilhar na boca, e

não houve jeito de tirá-la. Ele fazia uns sons agudos, patéticos,enquanto dois enfermeiros tentavam tirar a bola com uma colher.Depois de quinze minutos de tentativas frustradas, ele foi levadopara o pronto-socorro. Não era uma bola de competição oficial, masme pareceu bem grande quando coloquei por um momento emfrente da boca. Eu me senti sufocado só de pensar.

O sr. Kloek ficou bravo porque teve que continuar jogando só comduas bolas.

Evert volta para casa hoje à tarde. Pediu-me que ponha uma boagarrafa de genebra envelhecida para gelar. E eu podia escolheralguma coisa para mim também. Os membros do clube formam ocomitê de boas-vindas, completado por Ria e Antoine, queprepararam um high tea . Ria perguntou à diretora se,excepcionalmente, poderia cozinhar algumas coisinhas em seuquarto; infelizmente, a sra. Stelwagen “sentia muitíssimo”, mas oconselho administrativo não permitia que ela abrisse exceções àsregras.

— A partir de agora, não vamos pedir mais nada — disse Antoine,furioso, uma hora atrás. Ligou o exaustor no oito e começou apreparar um ragu de vitela.

Tem flores na mesa, e o Mo vai ganhar um belo laço.

Terça, 21 de maioEvert foi entregue na porta de seu apartamento ontem à tarde, às

14h, numa cadeira de rodas. Um enfermeiro o empurrou para dentroda sala onde o comitê de boas-vindas estava pronto: Eefje, Grietje,Graeme, Antoine, Ria e eu com um chapeuzinho de festa ao lado desua poltrona enfeitada. De uma hora para outra, Evert teve queassoar forte o nariz.

— Pegou um resfriado no hospital? — perguntou Eefje, maliciosa.— Bom, eu fiquei foi com muita sede no hospital. — Ele tentou se

safar. Sua voz soava aguda.— Quer tomar primeiro um bom copo de leite, então? — disse

Edward.— Pode me preparar um drinque, se não se importar.— Tenho uma ótima torta para acompanhar — disse Antoine,

mostrando um variado sortimento de guloseimas salgadas e doces.Tinha chá e champanhe.

Foi muito gostoso. Combinamos seriamente antes, por um pedidoexpresso de Evert, que não se falaria de doença nem de hospital.

Às 16h, o paciente arriou. Pouco depois, dormia com um sorrisono rosto, o que foi uma imagem muito comovente. Tomamos umúltimo drinque e arrumamos tudo. Agora é rezar e esperar que tudose restrinja a esses três dedos. Uma recepção desse tipo só é legaluma vez.

O passeio de Edward acontecerá na terça, 28 de maio. Com umpouco de sorte, Evert estará se sentindo bem o suficiente paraparticipar. Estou com a consciência um pouco pesada por Antoine eRia. Embora eles não digam nada, sei que eles gostariam muito deir junto nos passeios. Vou fazer um pouco de lobby para eles.

Quarta, 22 de maioÀs vezes não é fácil manter o ânimo. A conversa hoje está

variando entre dois jovens assassinados encontrados no esgoto,reumatismo, hérnia e artrose do quadril e a temperatura lá fora, quechegará a um máximo de onze graus. Fim de maio, e osaquecedores ainda estão ligados a toda, o termostato está em vintee três. Quanto mais velho, mais a gente sente frio. E é cada vezmenos coberto pelo seguro-saúde! Suspiros, lamentos e gemidos.Só as bolsas continuam a subir, como um fantástico medidor àsavessas do quanto as coisas vão mal.

Li que iniciaram uma campanha contra o pessimismo na Holanda.Adoraria que a equipe que a criou desse uma passadinha aqui. Hámuito o que fazer. Para começar, o dia sem doenças. Toda vez quealguém começasse a reclamar sobre incômodos físicos, teria quepôr dez centavos num cofrinho. Com isso, faríamos uma festaregada a champanhe.

Antoine me deu o número de seu amigo, o advogado aposentado.Vou ligar para ele hoje à tarde e perguntar como podemos conseguiracesso a todos os estatutos e os regulamentos.

— Ele com certeza vai gostar — disse Antoine.Vou pedir a Eefje que esteja a meu lado.

Quinta, 23 de maioO sr. Bakker recebeu uma advertência da chefia, da sra. Gerstadt:

ele tem que domar sua língua. Bakker está aos poucos perdendo anoção das coisas. Alzheimer. Talvez ele logo seja transferido para “ooutro lado”. Não será nenhuma grande perda. Ele já não era dosmais simpáticos, mas agora está realmente ficando muito grosseiro.Xinga e insulta sem nenhum motivo. Quando Gerstadt comentouque ele estava sempre falando de “bolachinhas de merda”, ele olhoupara baixo zangado. Quando ela já estava a uma distância em quenão podia mais ouvi-lo, ele disse a seus companheiros de mesa:

— Puta merda, aquela vaca anda como se tivesse um pepino naboceta.

Eu morri de dar risada, mas os outros cinco ficaram sem fala detão chocados. Pus meu lenço diante da boca. Todos me olharamirados. Tenho certeza de que o texto de Bakker, com um bip decensura aqui e ali, foi imediatamente levado da mesa do café atéGerstadt.

Evert quase caiu da cadeira de rodas de tanto rir quando eucontei. Talvez o Alzheimer também esteja me pegando, porque hojeacho piadas grosseiras muito mais divertidas que antigamente.Estou cada vez menos bem-comportado.

Liguei ontem à tarde para o advogado que Antoine nos indicou afim de ver como é possível conseguir os estatutos e osregulamentos da casa de repouso. O advogado (“Pode me chamarde Victor”) ficou entusiasmado e disse que, com um apelo à Lei deTransparência Administrativa, seria moleza. Ele nos convidou paratrocar ideia. O telefone estava no viva voz. Eefje fez que sim com acabeça.

Agendamos para quinta-feira, trinta de maio, na Tolhuis,estabelecimento bonito, à moda antiga, com toalhinhas nas mesas epãezinhos com croquete.

Com Evert, as coisas vão razoavelmente bem, considerando ascircunstâncias.

Sexta, 24 de maio— Eles transformam qualquer chuvisco numa tempestade —

disse a sra. Pot, referindo-se ao último ataque com armas químicasna Síria.

— A Primavera Árabe é um pouco como nossa primavera:bastante outonal — adicionou a vizinha de mesa, fazendo essecomentário desnecessário enquanto molhava speculaas no café. Eo sutil sr. Bakker participou afirmando que, enquanto os árabesestivessem se matando entre eles, ele não se importava.

As análises das notícias mundiais na mesa de café não sedestacam pelas nuances, e não conhecer a situação também não émotivo para não dar palpite. Aliás, o mesmo vale para as pequenasnotícias locais. Surgiu uma onda de ultraje quando a lojinha lá debaixo ficou fechada ontem por um caso de falecimento. Umaverdadeira afronta passar o dia inteiro sem poder comprarsalgadinhos de queijo ou laquê. Estão pensando que isto aqui é oLeste Europeu? Para um enterro, fechar por meio período é maisque suficiente!

A mesma lojinha, com um estoque que cabe em três caixas depapelão, que eles vivem amaldiçoando porque ali o desinfetantecusta vinte centavos a mais que no supermercado.

Ontem à noite tomei um vinho com Eefje. Falamos sobre apossibilidade de, com o protocolo de intimidação, pensarmosseriamente em fazer um protocolo para uma estada agradável numacasa de repouso. Hesitamos. Valeria a pena? Seria dedicado anossos companheiros de casa? Não seria melhor gastar nossasparcas energias para tornar nossos próprios últimos anos maisagradáveis? Ou dias, nunca se sabe. Estamos tendendo para esta

última opção, mas decidimos pensar mais um pouco a respeito.Assim temos, de qualquer forma, um bom motivo para nosencontrarmos de novo em breve.

Sábado, 25 de maioO caixão ficou emperrado, por isso a porta do forno do crematório

teve que permanecer aberta. O caixão pegou fogo, e a fumaçainvadiu a sala. Quem ainda não estava com lágrimas nos olhosagora ficou. O crematório foi esvaziado. Isso é o que eu chamo deuma despedida espetacular. Aconteceu de verdade, uns anos atrás.

Pensei em colocar em meu caixão um CD -player com controleremoto que tocaria minha voz: “Oi, oi, tem alguém aí? (toc, toc) Éum engano. Deixem-me sair daqui. Estou vivo... Só que não,brincadeirinha, estou mortinho da silva”.

Pena que não estarei aqui para ver.Aliás, preciso pensar a sério em meus últimos desejos. Não que

eu queira muita coisa, mas tem uma coisinha ou outra que nãoquero de jeito nenhum. Ainda não tenho nada por escrito. É umatarefa um tanto desagradável, e a gente acaba sempre adiando.

Idosos pobres de Amsterdã poderão em breve usar ônibus ebondes de graça. Pobres nós somos, com certeza, só é pena quequase ninguém aqui tenha mais coragem de andar de ônibus ou debonde: “Os bondes estão cheios de ladrões e batedores de carteira”.

Bem, contra batedores de carteira você pode se protegerescondendo muito bem seu dinheiro, mas contra motoristas mal-educados, que dirigem feito loucos, não dá para fazer nada. É comdor no coração que tenho que dar razão a meus companheiros deasilo: transporte público e pessoas com mais de oitenta anos nãocombinam. É muito cheio, vai rápido demais e exige umamaleabilidade que nosso corpo já não tem. Isso deixa pessoas bemidosas indefesas e com medo. Percebo que até eu me sintoinseguro, mesmo achando isso o fim da picada. Portanto, obrigado,

empresas de transporte público, mas preferimos ir com nossaprópria van.

Domingo, 26 de maioNa pauta da reunião extraordinária da comissão de moradores, há

apenas um ponto: regras para triciclos motorizados. O motivo foiuma batida frontal entre dois triciclos que seguiam em direçõesdiferentes para fazer a mesma curva. Muito estrago das latarias eferimentos leves. Naturalmente, a culpa foi do outro.

A comissão de moradores quer pedir à direção para colocarplacas de trânsito e espelhos nos pontos cegos.

Na semana passada, segundo o boato, um morador se acidentoue foi parar no hospital. A sra. Schaap não foi atingida, e sim,arrastada por um triciclo. O motorista, que prefere permanecerincógnito, estava um pouco distraído com sua cestinha de compras.Só a diretora sabe exatamente o que aconteceu. Eventuaistestemunhas com certeza receberam ordem de não abrir a boca“para não atrapalhar a investigação”.

Dois triciclos motorizados mal conseguem passar um pelo outronos corredores. Acrescente-se a isso o fato de que muitosresidentes são meio ou completamente surdos, têm Parkinson outudo isso de uma vez, e você pode imaginar que aqui às vezesparece um grande espetáculo de circo. Na verdade, é um milagreque não haja mais vítimas, principalmente se considerarmos alerdeza média de reação.

Se os motoristas pelo menos tivessem calma e mantivessem umavelocidade de cinco quilômetros por hora, não haveria tantosproblemas, mas o pânico que surge a cada vez que outro triciclomotorizado aparece no corredor provoca total imprevisibilidade detodos os condutores em trânsito.

Desejo muita sabedoria ao grande timoneiro desta casa de

repouso na elaboração do plano de tráfego.

Segunda, 27 de maioHoje recebi um folheto de propaganda nominal: “Libid Cristal

Shots tornam seu pênis duro como aço. Ejaculações como umvulcão”. Morri de dar risada. Seria uma piada de Evert?

Antigamente eu tinha um tio que a cada aniversário dizia queainda podia derrubar uma porta de igreja com seu membro. E já queestou falando disso: outro tio frequentemente cantava uma cançãocom esta frase inesquecível: “A tia Maria, ela tinha uma tigela emque um cavalo podia beber”. Ainda existe, eu acho, um programa derádio no qual as pessoas podem procurar canções que se perderamno tempo. Daí cantam a parte de que ainda se recordam. Será queeu me atreveria...?

Preciso me apressar um pouco porque nosso passeio com oclube foi adiantado inesperadamente: será hoje, não mais amanhã.Tem a ver com a previsão do tempo. Hoje promete ser o primeiro diabonito de primavera em semanas.

Edward fez um giro de porta em porta ontem à noite paraperguntar se todos podiam. Não houve nenhum problema. Asagendas estão vazias, hoje, amanhã e pelo resto do ano. Temostodo o tempo do mundo. Antigamente reclamávamos das agendassempre cheias e agora ficamos felizes como crianças quando temosalguma coisa de vez em quando que não seja uma visita ao médico.

Tenho que estar no hall lá embaixo daqui a meia hora, vestindoroupa confortável.

Terça, 28 de maioNão precisamos ir muito longe: após cinco minutos de caminhada

havíamos chegado ao destino: a cancha de petanca do parquinhoque vemos ao lado sul do prédio. Fizemos ali o primeirocampeonato fechado de petanca para atletas acima de setenta enove anos. Organizado nos mínimos detalhes: doze bolas brilhando,fita métrica, um troféu para os vencedores, seis confortáveiscadeiras de jardim, uma mesinha, toalhinha, garrafas térmicas comchá e café, torta limburguesa, pães fresquinhos, salmão e enguiadefumada com torradinhas e um guarda-sol. Tudo sob um radiantesol de primavera.

Edward havia pedido a Stef, o neto de Grietje, que organizasseuma coisa ou outra, e juntos eles tinham colocado tudo na van demanhã; e em dois minutos desembarcaram e deixaram tudoarrumadinho no parque.

Nós chegamos ao meio-dia, admirados, Evert na frente em suacadeira de rodas. Primeiro comemos um pedaço de torta com café,depois fizemos o sorteio dos times e, em seguida, o torneio. Trêstimes de dois jogadores para competir um jogo inteiro. Stef foi oárbitro.

Na metade, fizemos um almoço e, depois do jogo, na entrega dosprêmios, teve champanhe. Os vencedores: Graeme e Grietje. Umbelo segundo lugar para Eefje e Evert, que afirmou que estavajogando bem melhor sem os dedos do pé, e bronze para Edward epara mim. Graeme foi apelidado de Arjen Robben da petanca,porque quase chorou por ter vencido.

O que Edward, como organizador, não levou em conta foi queperto do final do torneio metade do asilo tinha se reunido em torno

da cancha. Foi pura publicidade para o clube. Só que não queremosnovos membros.

Às 16h, tudo foi colocado de volta na van e a caravana partiu paracasa. Exaustos, mas felizes.

Quarta, 29 de maioUm homem de oitenta anos escalou o monte Everest. E eu tenho

dificuldade até com um meio-fio de calçada. Não é justo. Omontanhista que detinha o recorde de mais velho anteriormente,que agora está com oitenta e um, Min Bahadur Sherchan, anunciouimediatamente que vai pegar seu recorde de volta na semana quevem. Já teve uma mulher com uma perna só que chegou ao topo.Ela devia ter prótese. Não daria para subir oito mil metros saltitando,não é?

O primeiro homem sem braços também já chegou ao topo. É umacaravana e tanto a que atualmente sobe ao topo do Everest. Estousó esperando o dia em que a primeira muçulmana incontinente devéu sem cabeça plantará a bandeira da Polinésia lá em cima e,então, eu também vou.

Liguei para meu seguro-saúde e tenho que ser aprovado para mequalificar a receber scooter para idosos em leasing. É possívelmarcar uma consulta de avaliação para daqui a seis semanas. Achoque vou reservar as honras para mim mesmo e vou simplesmenteaté a loja comprar um. Vou dar uma olhadinha no guia doconsumidor para ver se houve algum teste recente de triciclosmotorizados.

Há três categorias de compradores. O primeiro e maior grupoopta pelo caminho do meio: nem o mais barato e com certezatambém não o mais caro. Um segundo grupo, muito menor, comprasempre o mais caro. O último grupo opta pela variante mais barata.Se eu realmente não tiver nenhuma ideia do que comprar, pego omais barato. Aí pelo menos economizo um pouco. Claro que obarato às vezes sai caro, mas o caro é mais caro ainda.

Coincidência ou não, ontem no jornal havia um artigo sobrescooter para idosos e deficientes usarem em terrenos acidentados,Action Trackchair, com lagartas. Com esse modelo, dá para andarpor bosques e dunas e por uma grossa camada de neve. Custa dezmil mil euros, que pena.

Quinta, 30 de maioEvert não está muito bem. A ferida não quer sarar. Todo dia vem

uma enfermeira para trocar o curativo, então o problema não é esse.— Uma gracinha! Então nem acho tão ruim se ela vier por mais

tempo.Ele nunca reclama. Mas quando fui pegar o cachorro hoje de

manhã (ainda sou cuidador de cachorro em tempo integral), ele nãome ouviu entrar e escutei quando dizia ao Mo:

— Pode ser que seu dono bata as botas, Mo, e para ser sincero,aí não sei muito bem o que vai acontecer com você.

Dei uma tossidinha, bastante sem jeito, para que ele percebesseque eu estava ali.

— Você por acaso me ouviu, Henkie?— Ouvi.— O que você acha? Se isso acontecer devo sacrificar o Mo?

Não dá para pôr um bichinho velho assim num asilo. Não dá parafazer isso com o asilo.

— Ainda não chegamos a esse ponto.— Bem...Não me importo de cuidar do Mo, mas só posso fazer isso se

Evert não morrer. Se ele morrer, seu apartamento terá que serentregue, sem cachorro, em uma semana. E em minha ala nãopermitem cães.

Sexta, 31 de maioEefje e eu tivemos ontem um encontro com o advogado

aposentado Victor Vorstenbosch (setenta e um anos). Um homemrequintado e metido a grã-fino que se encontra, como ele mesmoadmitiu, “extremamente entediado em casa”. Ele estava contentecom a perspectiva de trabalhar novamente. Seu antigo escritórionunca mais o chamava para pequenos encargos, e ele não gostavadisso e fez questão de que soubéssemos. Queria demonstrar queainda era a velha raposa esperta de antes. Em resumo, estava afim. Nesta semana mesmo ele pediria todos os documentos quetinham a ver com a administração de nossa casa de repouso,apelando para a Lei de Transparência Administrativa. Orequerimento será feito em seu próprio nome. Eefje fezdelicadamente a observação de que nossa casa de repouso não erauma instituição governamental e que essa lei, portanto, talvez nãofosse aplicável. É, nisso ela tinha razão, admitiu Victor. Iria levar issoem conta na pesquisa por regulamentos e estatutos.

Poderíamos ir até sua casa ver o esboço do requerimento dentrode alguns dias, pois ao longo dos anos sua confiança nas pessoasdiminuíra bastante.

— Inviolabilidade do sigilo de correspondência não significa muitoem lares de idosos, e trocar e-mails com segurança é uma coisaque não existe.

Fomos parar num romance de espionagem! Agora é torcer paraconseguirmos trazer à tona alguns escândalos suculentos.

O sr. Schansleh, um cara simpático do terceiro andar, era umapaixonado treinador de pombos-correio antes de vir para cá. Elenão conseguia acreditar: um chinês tinha comprado um pombo

campeão belga por trezentos e dez mil euros.— Inacreditável, inacreditável — repetia.Edward se perguntou se um pombo caro assim nunca resolveu

morar com seus amigos na praça Dam. Ou foi abatido no ar por umcaçador para virar patê.

— Aí não dá para sentir o sabor que é uma iguaria de trezentosmil euros, ou dá?

— Bom, às vezes alguns pombos desaparecem sem deixarvestígio — disse Schansleh, em tom grave. Ele mesmo tinhaperdido dezenas ao longo dos anos.

Sábado, 1o de junhoMá notícia.Ontem fiz um passeio com Grietje. Depois de cinco minutos,

tivemos que parar para descansar no banco que a prefeituracolocou ali tão atenciosamente. Fazia um solzinho. Sem perceber,fomos além da conversa fiada. Ela contou que nos últimos temposcom frequência estava perdendo o rumo, em sentido literal efigurado.

— Sou boa em camuflar, mas uma hora todos vão perceber.Estou me sentindo muito insegura. De repente, estou no elevador enão sei como fui parar lá nem o que pretendia fazer.

Não soube direito o que dizer. Depois de um instante em silêncio,sugeri que ela fosse ao médico e fizesse alguns testes para ver senão tem Alzheimer. E que, se ela realmente não soubesse o quefazer, deveria pedir ajuda a pessoas de confiança. Assim elaspoderiam lhe dar alguma orientação.

— Você pode sempre contar comigo, Grietje. Ajudarei com prazer,tanto quanto possível.

Grietje é a simpatia em pessoa, mas sempre um pouquinhofechada e reservada. Fiquei surpreso que ela tenha se abertocomigo. E um tanto orgulhoso. E triste. Resumindo, não foi fácil paramim, essa mistura de sentimentos.

Com Evert, parece que as coisas estão melhorando. Ele estádando o melhor de si na fisioterapia. No caso dele, isso em geral semanifesta na forma de muitos palavrões durante os exercícios. Umaassistente engraçadinha tinha colocado dois chumaços de algodãonos ouvidos pouco antes que ele iniciasse o exercício na esteira.Como resposta, Evert enfiou um enorme chumaço de algodão na

boca.

Domingo, 2 de junhoDormi mal porque fiquei pensando na conversa com Grietje. Tudo

indica que seja Alzheimer. Perguntei a ela hoje de manhã se tinhafalado sobre isso com outras pessoas. Ela disse que não.

— Nem com seu médico?— Não, ele não é um cara simpático.— Você acha ruim se eu pedir conselhos aos outros?Ela pediu para pensar no assunto.Dei uma olhada na internet. Há aproximadamente duzentos e

cinquenta mil holandeses com demência. Alzheimer é a forma maiscomum, com setenta por cento dos casos. O risco de ter é de umem cinco. E – bastante assustador – vive-se em média oito anoscom a doença.

Nós somos, de alguma maneira, especialistas. Vivem aqui algunsvelhinhos que, com a idade, soltam os parafusos. Depois doprimeiro parafuso solto, seguem-se outros. Até que na velha cacholasó impere o caos de fios desconectados. Se você tiver sorte, é umcaos animado; se tiver azar, apavorante ou agressivo. Felizmente,não precisamos acompanhar de perto o último estágio dedeterioração. Aí os desafortunados são transferidos para “o outrolado”, a ala fechada. Quando as pessoas começam a mexer a sopacom a mão ou brincar com o cocô, a partida é iminente.

Não quero ver Grietje passar por isso.

Segunda, 3 de junho— Temia isso havia anos: Sacha de Boer, a apresentadora do

telejornal, é bunduda — disse Evert.Só para deixar claro que perdeu alguns dedos do pé, mas não

seu sutil senso de humor. Na televisão não dava para ver direito,mas nas fotos de um artigo de uma velha revista da empresaferroviária podia-se ver claramente que Evert tinha razão.

O conselho administrativo enviou uma carta a todos os moradoressobre o “ajuste” na assistência nesta e em outras instituições. Assimque administradores começam a usar essa palavra, pode contar:ajuste na verdade significa corte e reorganização.

Um trecho da carta: “O ajuste da assistência com o tempo levaráà melhoria da qualidade no serviço”.

Sei. Só faltou dizer que “devolveriam a casa de repouso aosidosos”. O marqueteiro perdeu uma bela oportunidade.

Nosso primeiro-ministro, Rutte, também ia devolver a Holandaaos holandeses. Alguém percebeu alguma coisa?

Embora ninguém tenha conseguido tirar nenhuma conclusãoconcreta da carta do conselho, as opiniões se dividiram. As mesmaspalavras significavam para um o caminho do inferno, enquanto outrovia o paraíso despontando no horizonte. Nada do que é humano éestranho para um velho.

Uma coisa é certa: no final, de qualquer forma, todos os planosresultarão num aumento de salário para os membros do conselhoadministrativo.

Terça, 4 de junhoComo estarão as coisas na primeira casa de repouso anarquista

da Holanda? O asilo De Hoven, em Groningen, no lugarejo deOnderdendam, nome que parece saído dos quadrinhos de Ollie B.Bommel. Dois anos atrás, eles decidiram, a título deexperimentação, eliminar todas as regras. Bem, todas mesmo?Conhecendo o idoso médio, isso resultaria em eventuais homicídiosinvoluntários e bingo todos os dias.

A diretora em Onderdendam queria averiguar se funcionários emoradores ficariam mais felizes sem nenhuma regra. O experimento“Assistência sem regras” seria acompanhado por pesquisadores daUniversidade Real de Groningen.

Procurei na internet, mas não consegui encontrar nenhumresultado.

Lembrei-me disso porque aqui instituíram uma nova regra de quesó se podem usar lâmpadas econômicas nos quartos. O meioambiente, pois é.

Fui ver o esboço feito pelo advogado Victor para o requerimentode inspeção de todas as regras e os estatutos de nossa casa derepouso. Tudo soava muito jurídico, tão jurídico que mal conseguientender. Parecia bastante animador. Pena que Eefje não estava lá,ela é mais arguta para essas coisas. Mas não estava se sentindobem.

Embora ainda fossem só duas da tarde, Victor me ofereceu umenorme cálice de conhaque, com certeza muito caro, e um charutoque fumei tossindo com cuidado. Nosso advogado é meio umacaricatura de grã-fino chique, papel que ele assume com verve.Teatro e realidade se cruzam com frequência, mas nesse caso não

se chocam.

Quarta, 5 de junhoA sra. Visser saiu hoje de manhã num ônibus da Connexxion com

duas xícaras suspeitas para ir até a Ikea, na região sudoeste dacidade, pedir seu dinheiro de volta. Não eram as famosas xícarasLyda-jumbo, que foram recolhidas às lojas porque o fundo às vezessoltava, mas outra xícara da Ikea, que, segundo ela, “também nãosuportavam água quente”. Até agora, quase três horas mais tarde, asra. Visser ainda não voltou.

As pessoas aqui não gostam de riscos. Se em algum lugar domundo um produto é recolhido, todos os armários de cozinha sãovasculhados para ver se não há um exemplar da perigosa latinha oudo pacote. Por outro lado, poucos levam em conta a data devalidade dos produtos. Jogar comida fora é pecado, mesmo que játenha criado mofo. “Dá para raspar ou tirar com a colher com amaior facilidade, e daí dá muito bem para comer!” Não é à toa quehá tantos casos de intoxicação alimentar em idosos. Enquanto isso,na cozinha dos estabelecimentos eles agora precisam medirdiariamente a temperatura da manteiga para controlar se está entrecinco e sete graus.

Na recente evacuação de um quarto, depois de um caso demorte, foi estabelecido um novo recorde: tinha algo na geladeira queestava vencido havia dezessete anos. No mais, tudo estava frescono quarto do falecido. Isso de acordo com os boatos, porque essascoisas, naturalmente, não são oficialmente divulgadas.

Amanhã faremos novamente um passeio. O tempo estará perfeitopara velhotes: nem muito quente nem muito frio, pouco vento, semestar abafado.

Quinta, 6 de junhoQuando se veem agentes da guarda municipal de Amsterdã, que

hoje, se não me engano, têm o nome de regentes de bairro, sabe-seque o front está bastante seguro. Eles fogem das áreasproblemáticas como o diabo foge da cruz. Então, com tempo bom,ficam sentados no banco em frente ao asilo. Supostamente, pelosalário que ganham, não podemos culpá-los por quererem ficar forado caminho de vândalos e incendiários. Também não os vejo emsuas bicicletas perseguindo motoqueiros que cortam a ciclovia asetenta quilômetros por hora com o estrondo de um jato. Guardasmunicipais emanam uma triste impotência. Seu uniforme também ésempre justo demais.

Mas sempre pode ser pior, pois eu li um tempo atrás que em Haiaum fiscal de estacionamento emite em média uma multa por dia.Com certeza não trabalham por comissão. O que será que exigemna entrevista de emprego?

Pois é, ontem já ouvi as primeiras reclamações sobre o calor!— Aqui na Holanda é sempre tão abafado quando esquenta! —

disse o gordo Bakker.Suas reclamações sobre o frio tinham parado havia apenas dois

dias. Às vezes tenho vontade de matá-lo.Vesti meu mais bonito e único terno de verão. Separei um chapéu

de palha à moda antiga. Quero ficar um pouco parecido comMaurice Chevalier. Depois do almoço, temos que nos apresentar naentrada para um passeio organizado por Graeme. Faz dias que elealardeia que, com um tempo bom assim, não pode dar errado.

Sexta, 7 de junhoQuando o relógio bateu uma da tarde chegaram três bicitáxis.

Três jovens fortes pedalando, de maneira que não precisávamosficar com pena. Um deles era um amigo do filho de Graeme; tudotinha sido organizado por ele. Fomos gentilmente ajudados aembarcar, e nossa caravana seguiu seu rumo sob muitos olhares.Eu estava com Evert, que imediatamente começou a cantar In eenrijtuigie . Todas as estrofes e os refrões. Ele canta como um corvovelho.

O trajeto nos levou através de Waterland: Zunderdorp, Ransdorp,Uitdam e Zuiderwoude. Lindos vilarejos antigos, não afetados pelotempo, mas, a julgar pelas caríssimas e modernas bicicletas comnicho para crianças em frente às casas, apossados por yuppiesricos de Amsterdã.

Evert contava coisas de antigamente, de vez em quando ouvia-seuma risada vindo dos outros bicitáxis, e às vezes tínhamos queparar a fim de que Eefje pudesse observar algum pássaro.Reconheci o maçarico da caixa de fósforos, mas parou por aí.

Descobrimos que havia uma loja de vinhos em Zuiderwoude. Oquitandeiro desapareceu, e o sommelier tomou seu lugar. Foiorganizada para nós uma degustação de vinhos com salgadinhos.Salgadinhos que, segundo Edward, eram pequenos demais paraque se pudesse beber com gosto. E depois de provar os vinhos, naverdade não deveríamos beber, mas cuspir, só que há limites paranossa condescendência. Só cuspimos quando estamos doentes.Permitimos que nossos choferes também provassem os vinhos,desde que não nos deixassem cair em nenhuma valeta no caminhode volta.

Com a contribuição definida e paga in loco , compramos duascaixas de vinhos. Foi – não consigo pensar em nenhuma palavramelhor – superagradável.

Começamos o trajeto de volta cantando, mas depois todoscochilaram.

Fomos deixados bem em frente à porta. Nossos choferesreceberam como gorjeta uma boa garrafa de vinho e acenaramalegres na despedida.

O acerto de contas dos passeios é sempre feito um dia depois, demaneira muito discreta, pelo organizador. Sai caro? Digamos que éuma excelente relação custo-benefício.

Sábado, 8 de junhoExiste um teste do tipo “faça você mesmo” para saber se tem

Alzheimer. O nome confunde um pouco, porque o teste é para saberse outra pessoa tem Alzheimer. Mesmo assim, fiz para mim mesmoe obtive um resultado tranquilizador: nada de Alzheimer.

Lembrei-me disso porque durante nosso passeio prestei atençãoem Grietje. Ela se divertiu muito, mas de vez em quando ficava umpouco ausente e, às vezes, parecia um tanto surpresa. Não aconheço tão bem nem há tanto tempo para fazer o teste deAlzheimer para ela, mas alguns sintomas apontam demência. O queela mesma me contou não é nada tranquilizador.

Saber que aos poucos, mas inevitavelmente, irá perder toda anoção de realidade. Bem diferente da rã que é cozida aos poucos enem percebe, fica-se por muito tempo dolorosamente consciente daprópria decadência. Cada vez mais você vai afundando num buraconegro. Cada vez são mais curtos os momentos em que consegue searrastar para fora do buraco, com a certeza de que vai cair de novo.Tempo suficiente para ver onde tal caminho vai dar: um monte develhos confusos, tristes, assustados ou raivosos. Salvo os poucosdementes animados. Primeiro, buscando sem sossego o que nãoexiste mais. Depois, babando apáticos numa cama ou poltrona.Amarrados como se já não houvesse para onde navegar. Toda adignidade perdida.

Pobre Grietje. O que posso dizer para consolá-la?

Domingo, 9 de junhoA sra. Surmann queria secar suas pantufas úmidas no micro-

ondas. Pôs por vinte minutos e foi ver televisão. As pantufas já nãosão tão confortáveis, e o alarme de incêndio disparou.

Não vou me surpreender se a direção usar esse incidente paraproibir os micro-ondas.

A mesma direção anunciou em uma carta que, para nossa própriasegurança, seriam colocadas câmeras nos corredores. Para muitosvelhinhos, isso é ir longe demais. Mencionou-se a palavra Gestapo.

— Ela agora ficou completamente doida, a diretora? Câmeras!Com certeza para descobrir quem joga bolo no aquário ou quemcom seu andador não dá prioridade no corredor para a enfermeirapassar com o carrinho de remédio.

Graeme estava excepcionalmente furioso. Ele estragaria ascâmeras pessoalmente. Evert se ofereceu de imediato para ajudar.

Acho que a sra. Stelwagen está forçando a barra.A maioria das pessoas não quer câmeras de vigilância aqui.

Câmeras normais, sim. Se o canal AT 5 vem para filmar um residentecentenário, ficam todos sem saber o que fazer para aparecer nareportagem. Moradores que há anos só conseguem balbuciar derepente passam a cantar a plenos pulmões. Senhoras que sempreestão lá embaixo com os mesmos vestidos escuros e cinza derepente surgem com vestidos floridos e chapéu de festa.

Felizmente, dos quarenta e cinco minutos de afetação que o AT 5filmou da última vez, exatamente cinquenta segundos foram para oar. Todos ficaram muito decepcionados; alguns se sentirampessoalmente ofendidos.

Segunda, 10 de junhoOntem foi um daqueles dias em que caí no sono quatro vezes

sobre o jornal e em frente à TV e depois passei metade da noite emclaro. Primeiro tentei um copo de leite quente com mel, depois tomeidois comprimidos para dormir.

Segundo os especialistas em dependência química do InstitutoTrimbos, sou uma das novecentas e trinta mil pessoas com mais decinquenta e cinco anos que apelam para comprimidos quando osono não quer surgir por conta própria. Aparentemente, há muitosjunkies circulando nos asilos. São viciados em pílulas para dormircom benzodiazepinas. Hã? Benzodiazepinas. Elas também ajudamcontra ansiedade e preocupações. Com o perigoso efeito colateralde quadris quebrados. Mais de mil, contaram os especialistas.Todos de velhinhos que acordam atordoados à noite, vãocambaleando para o banheiro e caem com tudo. Poft.

Terça, 11 de junhoOntem, Evert foi o anfitrião da reunião do clube. Teve um

desempenho moderado, pois deixou queimar os salgadinhos nafritadeira: croquetes e nuggets de frango ficaram pretos comocarvão. No entanto, o exaustor dele funciona bem, uma vez queninguém sentiu cheiro nenhum. Narizes velhos. O salame estavavencido. Daí ficamos só com queijo e uma abundância de bebidas.

O pedido de Ria e Antoine Travemundi, os velhos ases daculinária de nosso asilo, tornou-se muito forte para ser ignorado.Eles foram aprovados ali, na hora, por unanimidade, em período deteste, como novos membros da associação Tô-velho-mas-não-tô-morto. Uma delegação formada por Grietje e Edward foi enviadapara convidá-los imediatamente. Eles vieram no mesmo instante,estavam bastante comovidos e agradeceram a cada um de nós emparticular. Antoine tinha lágrimas nos olhos.

— Quem diria que vocês ainda viveriam essa experiência! —disse Eefje, irônica.

Antoine fez que sim com a cabeça. Ria riu meio perdida. Os doispegaram na hora alguns queijos franceses, presunto serrano esalmão defumado de sua geladeira para celebrar a recém-aprovadafiliação.

— Está vendo? Foi por isso que aceitamos vocês!Para podermos nos reunir com frequência, não falávamos de

muitos assuntos do clube de uma só vez. Dessa feita, estava empauta apenas a avaliação dos primeiros passeios. Nada além deelogios. Cada um foi com mais confetes para casa que o outro.

Preparamos uma nova lista de passeios com datas aproximadas.Fim de junho – Ria e Antoine (como membros aspirantes, por

enquanto eles contam como um só)Metade de julho – GraemeFim de julho – EefjeMetade de agosto – GrietjeFim de agosto – moiMetade de setembro – EvertFim de setembro – EdwardParece bom: distração e diversão até o fim do verão.

Quarta, 12 de junhoGrietje veio tomar café comigo. Não sem motivo. Ela se informou

extensamente com seu médico e pela internet e agora sabe querealmente está começando a ficar demente.

— Claro que não fico feliz com isso, mas não há nada a fazer.Vou tentar segurar as pontas enquanto for possível.

Ela me pediu que a ajude nisso e vai pedir também a algumasoutras pessoas, entre as quais os membros de nosso clube. Com acondição de que sejamos sinceros e abertos com ela. Nada decomiseração inútil. Tive que jurar solenemente que, se ela setornasse uma mala sem alça ou intratável, iríamos confiá-la aosótimos cuidados da ala de enfermaria. Quando disse isso, ela nãoconseguiu evitar uma risadinha irônica. Sabia que não poderia irpara nenhum outro lugar e já havia aceitado isso. Mas, antes de seentregar, queria aproveitar a vida com todas as forças que aindatinha como “pessoa sensata”.

Fiquei com um nó na garganta e prometi todo o apoio possível.“Todo o apoio possível” ela achou um pouco exagerado, mas:

— Vá lá, estarei aqui quando precisar.Conversamos sobre como dar forma a essa ajuda, mas não era

tão simples. Temos que pensar melhor a respeito.

Quinta, 13 de junhoÀs vezes noto que os outros moradores têm um comportamento

ligeiramente hostil. Sei que falam com frequência sobre nosso clube.“Afetados”, é o que somos. “Ingratos”, porque achamos que tudo oque é oferecido em termos de diversão não é suficiente.

“Arrogantes”, também.Em alguns, a decepção por não poderem fazer parte do clube

traduziu-se em ciúme e inveja. Ciúme e inveja que aqui têm tempode sobra para criar raízes.

Nunca subestime os que têm ódio, os criadores de intrigas nemos difamadores. Com notável obstinação, eles bombardeiam osmoradores mais brandos, indiferentes ou ingênuos. O motivo é emgeral pequeno, mas as consequências no longo prazo podem serdesprezo, incompreensão e ódio. Quando alguém não tem nada deimportante para fazer o dia inteiro, coisas pequenas transformam-seem grandes. O tempo de uma pessoa tem que ser preenchido, aatenção tem que ser direcionada para alguma coisa. Traços ruins decaráter buscam um escape. Ao contrário do que talvez se pudesseesperar, com o passar dos anos a pequenez de espírito torna-semaior, e a abertura da mente, menor. Velho e sábio é mais exceçãodo que regra.

Eu agora às vezes sinto a tensão. Começam a tossir quando meaproximo. As conversas silenciam. Há trocas de olhares.

Falei sobre isso com Edward e Graeme hoje de manhã durante ocafé, quando nossa mesa ficou estranhamente vazia. Eles tambémpercebiam, às vezes. Não é agradável, mas não podemos fazernada além de ignorar.

Sexta, 14 de junhoAs coisas não vão bem com o idoso mais famoso do mundo,

Nelson Mandela. Num dia, está um pouco melhor; no outro, umpouco pior. Aqui, nos identificamos muito com ele. Ele éprovavelmente, de longe, o herói menos controverso dos últimosvinte anos. Mas heróis também morrem. Os jornais têm todo otempo para preparar bem os obituários. Os grandes do planetaesperam que o enterro caia num dia mais ou menos conveniente.

Felizmente, Mandela já não aparece em público há muito tempo,de maneira que podemos guardar como última imagem aquela deum homem frágil, mas digno e sábio. É exatamente aí que seencontra sua grandeza.

“O dia para filiados da Max vai até você!” Um velho slogan daRádio Veronica reaproveitado para a terceira idade. A associação demoradores anunciou que os residentes podem se inscrever para odia exclusivo para filiados da emissora Max, que acontecerá numteatro ainda não divulgado.

“Receberemos os senhores nessa tarde com um delicioso café ouchá, acompanhado de guloseimas”; portanto, nada mais pode darerrado. Outro elemento importante para um dia bem-sucedido:vamos sortear belos prêmios. E, como cereja do bolo, Ronny Tobervai cantar.

Alguns anos atrás, a emissora Max fez uma turnê de verão aolongo de asilos com um roadshow. Joop van Zijl apresentava umtorneio sobre televisão à moda antiga. Naquela época, a grandeatração para o público, além de Joop, era “a torta da Max”.

Por sorte, o roadshow na ocasião já estava com a agendacompleta. Desta vez a associação de moradores se antecipou para

conseguir participar do dia para filiados. Ainda não se sabe qualserá o local. Pode ser que o ônibus tenha que ir para Groningen.

Sábado, 15 de junhoGrietje, Eefje e eu elaboramos um plano de abordagem de

Alzheimer para Grietje. Segundo dados da organização AlzheimerNederland, setenta por cento dos dementes ainda moram na própriacasa. Não dá para dizer que Grietje esteja “em casa” aqui, mas issolhe dá esperanças de que uma mudança para a ala de enfermarianão acontecerá tão depressa. Com um pouquinho de ajuda, elapoderá viver o tempo todo em seu próprio apartamento. O primeiropasso concreto é que um de nós passará lá todas as tardes paraverificar se Grietje não colocou o hamster no freezer. O exemplo foidado pela própria Grietje, que não tem nenhum hamster. No mais,fizemos listas, muitas listas. Uma lista de nomes, funções e númerosde telefone. Uma lista de coisas que devem ser feitas diariamente.Uma lista das que não devem ser feitas. Uma lista de compras. Umalista de “onde está cada coisa”. E uma agenda detalhada para cadadia. Ajudamos quando for preciso. Quando ela não souber ou nãoentender alguma coisa, vai escrever para depois nos perguntar. Sefor urgente, ela telefona.

Também vamos ler um livro sobre demência para os casos emque o senso comum não for suficiente.

Foi bom poder fazer algumas coisas concretas. E ao mesmotempo comer meio quilo de enguia defumada em cima de uma folhade jornal. Com um golinho de vinho branco. Grietje é uma ótimaanfitriã. Combinamos de avisá-la caso ela comece a servir água epão seco.

Domingo, 16 de junhoExiste um asilo para cães idosos onde cachorros velhos, doentes

e deficientes podem passar seus últimos dias num ambientecaseiro. Lá eles recebem bastante atenção individual e, quandonecessário, cuidados terminais. Ambas as ações são coordenadaspela fundação Djimba. Num desenho no site da Djimba aparece umcão-guia de bengala e óculos escuros. Não é invenção minha.

Será que a assistência é fornecida com base num orçamentoespecial para cachorros?

Chegou uma resposta para nosso requerimento de inspeção dosregulamentos, estatutos e demais documentos de importância. Oumelhor, é só uma confirmação de recebimento que nos foi enviadapor Victor.

“Começou a grande enrolação”, escreveu nosso advogado numacarta anexa, “mas já respondi dando o dia 1o de agosto como data-limite. Caso contrário, ameacei com um processo. Pensei que seriamelhor já mostrar de uma vez as armas. Não quero que osdocumentos só sejam fornecidos quando todos nós já estivermosmortos ou dementes!”

Bom trabalho, Victor.É domingo à tarde, dia de visitas. Os primeiros filhos e filhas já

estão tomando café com seus velhos pais e mães. Os papéis foraminvertidos: se antes os filhos eram tratados pelos pais de maneirarude, agora os filhos dão o troco. “Ponha pelo menos uma camisalimpa para receber as visitas e vê se compra uma bolachinhadiferente de vez em quando.”

Segunda, 17 de junho“Isso será minha morte”, já ouvi muita gente fazendo essa

afirmação. Não sei até que ponto se pode cobrar um compromissoassim das pessoas. De qualquer forma, há algumas que eu não meimportaria de ajudar a se lembrar dessa declaração no devidotempo. A sucessão de rumores sobre o fechamento de casas derepouso tomou conta das conversas.

De acordo com o escritório de consultoria Berenschot, nospróximos anos, oitocentos e setenta abrigos para idosos terão quefechar. O número de novos clientes deverá diminuir drasticamentepor causa das rígidas exigências de admissão anunciadas. Emsíntese, a ideia por trás disso é morar na própria casa até querealmente não seja mais possível e, depois, ir direto para um asilocom cuidados de enfermaria. Entrementes, os velhinhos que vivemem casas de repouso continuam a morrer. Não é preciso sernenhum gênio da matemática para prever que isso resultará numsubstancial esvaziamento, e aí os administradores não esperarãoaté que o último morador morra para fechar. Os velhinhos restantesserão transferidos.

E isso significará sua morte, preveem algumas das potenciaisvítimas. Alguns estão mesmo convencidos de que serão obrigados avoltar a morar sozinhos. Pior ainda!

O medo de ter que mudar é grande. Para manter a leveza dadiscussão, o sr. Bakker prefere falar em deportação. Mas você veráque a maioria dos residentes, em vez de morrer, nunca mais vaiquerer ir embora a partir do momento em que tiver um novo quartobem amplo.

Para mim, não faz muita diferença morar nesta casa ou em outra

alguns quilômetros adiante. Desde que meus amigos sejamtransferidos comigo e que nos ofereçam uma viagem pelo Renoenquanto é feita a mudança.

Terça, 18 de junhoDesculpe-me por começar a falar do tempo, mas ontem fez um

belo dia de verão. Nem muito quente nem muito frio. À tarde fui parao parque com o jornal e um livro. Primeiro com Eefje, que partiu denovo depois de uma hora, depois com Evert, que apareceutropeçando com seu novo andador por volta da happy hour. Nacestinha do andador havia duas garrafas térmicas: uma com uísquee uma com vinho branco. De seus bolsos internos surgiram doiscopos, bem enroladinhos em papel higiênico.

— Estou bebendo menos — disse ele. — Não, é sério!E, enquanto eu ainda balançava a cabeça assentindo,

acrescentou que estava, sim, consumindo bebidas cada vez maiscaras. Portanto, melhores. Isso me pareceu bastante sensato, e elerealmente tinha levado um delicioso vinho branco, ainda que tivesseum pouco o gosto da garrafa térmica. Então ficamos ali, como doismendigos limpinhos, bebendo num banco do parque até ficarmosum pouco rosados e irmos para casa de pernas bambas. O andadorentre nós. Cada um com uma das mãos no apoio. Edward, que nosviu de sua sacada, disse hoje de manhã que foi uma cenacomovente. Quem sabe exista uma lacuna no mercado para oandador duplo.

Chegando em casa, adormeci no sofá e só acordei de novo às23h. Uma enfermeira deu uma espiada pelo canto da porta quandonão apareci para o jantar. Verificou se eu ainda estava vivo, masachou que não valia a pena me acordar.

Quarta, 19 de junhoQuando faz calor, o número de mortes de idosos fica acima da

média. O homem do tempo, Piet Paulusma, previu trinta e doisgraus. Espero chegar até hoje à noite.

Passei na sala de Anja na administração para perguntar se eles jáestavam em nossa pista. A diretora tinha ido a um congresso sobremudanças na assistência a idosos, então a área estava livre.

Foi feito um memorando interno destinado a descobrir de ondevinha o requerimento para a divulgação dos estatutos e dosregulamentos. A diretora expressou ao conselho administrativo asuspeita de que “um pequeno grupo de moradores descontentes”estava por trás disso. Somos nós.

O conselho ficou assustado com a ameaça de uma ação ebuscou informações sobre a possível origem. O fato de queadministradores de instituições de assistência nos últimos temposapareçam muitas vezes nos jornais involuntariamente estáfuncionando a nosso favor: eles estão morrendo de medo depublicidade negativa. A missão de Stelwagen era: fazer de tudo paraevitar uma nova escalada de ânimos. Ela prometeu que contatarialogo o advogado que apresentou o pedido.

Mais tarde troquei ideias com Eefje sobre o que fazer com ainformação que recebemos de Anja. Decidimos manter o sigilo denossa fonte para o advogado e também para os outros membros doclube a fim de não os sobrecarregar com conhecimento perigoso.Não queremos que nossa Anja Appelboom seja citada emcompanhia de Julian Assange, Edward Snowden e BradleyManning.

Tenho que admitir que fico um pouco nervoso com isso.

Quinta, 20 de junhoOntem houve um roubo no quarto da sra. Van Gelder. Ela estava

chorando pelos corredores, lamuriando-se com todo mundo quetinham levado seu relógio da gavetinha do criado-mudo enquantoela estava lá embaixo tomando chá. Era presente de casamento deseu marido.

Isso causou inquietação.O ladrão devia ter uma chave, porque Van Gelder sempre tranca

a porta.Moradores têm que trancar a porta quando saem. Isso é

obrigatório desde que um senhor desorientado entrou no quartoerrado e se deitou na cama. Quando a verdadeira dona da camamais tarde puxou os lençóis, levou um susto tão grande que caiu nochão e quebrou o pulso.

Por causa do relógio desaparecido, pairavam no ar vagas e quasecasuais suspeitas endereçadas a diversos faxineiros e cuidadores.No geral, vale a regra: quanto mais escuro, mais suspeito. E: “Deveter sido homem, porque mulher não faz essas coisas”. Será que umcurso de teoria da argumentação ainda teria algum sentido parapessoas acima dos setenta?

De qualquer forma, o clima não melhorou.A diretora não estava contente. Ouvi de fonte confiável que ela

não estava nem aí com o relógio, o que importava era o bom nomeda casa.

Sexta, 21 de junhoAlcancei o verão! Mesmo que ainda esteja um tanto outonal.— Clima para se suicidar — vociferou o sempre ranzinza Bakker

umas três vezes enquanto tomava uma xícara de chá.Na terceira vez, Evert disse:— Eu te levo até o telhado.Também se ofereceu para tomar conta da carteira de Bakker.O número de suicídios de idosos aumentou bastante nos últimos

anos, revelam as estatísticas.Aqui no asilo, nunca divulgam a causa da morte de moradores.

Suicídio, portanto, simplesmente não existe. Estatisticamente,devem ter acontecido alguns nos últimos anos. Mas informações arespeito poderiam provocar desconforto ou dar ideias às pessoas.

Surpreendi-me ontem com minha própria magreza quando me vinu no espelho do clínico geral.

O homem é realmente um animal assaz feio e desacertado.Tirando uma ou outra exceção, pessoas com roupa são maisbonitas do que sem ela. Só as crianças são bonitas peladinhas.Depois disso a regra é: quanto mais velho, mais roupa, por favor. Ecada vez mais largas. A fila de senhoras em forma de pera que todasegunda-feira desfila aqui pelos corredores com leggings apertadasindo para a sala de ginástica é deprimente.

Por falar nisso, depois de escutar todas as minhas reclamações, omédico foi muito sincero sobre minha saúde física. A incontinêncianão tem mais jeito.

— Vai ter que usar fraldas, sr. Groen. Chegou a hora.O tom simpático com que falou isso tornou a coisa um pouco mais

leve.

Sábado, 22 de junhoO relógio da sra. Van Gelder reapareceu. Uma faxineira o

encontrou no meio da roupa molhada na máquina de lavar. Ficoubem limpinho, mas não funciona mais. A sra. Van Gelder suspeitaque o ladrão tenha ficado com medo e resolvido se livrar do relógio,por isso pôs na máquina de lavar roupa. Por que alguém iriaespecialmente até a lavanderia para jogar um relógio, ela não soubeexplicar.

— Mas acontecem mesmo coisas doidas neste mundo!Que ela mesma tenha posto o relógio no cesto de roupa suja por

acidente estava “fora de cogitação”.Deu cinquenta centavos como recompensa à honesta faxineira

que o encontrou.Meu médico me chamou a atenção anteontem para Jan

Hoeijmakers, pesquisador especializado em envelhecimento cujoobjetivo é fazer as pessoas ficarem bem velhas, mas semproblemas de saúde. Hoeijmakers é bastante otimista e jáconseguiu resultados decentes com camundongos. Algo a ver coma melhor preservação do DNA . Daqui a uns dez anos, talvez já existauma pílula milagrosa contra todos os males da velhice.

Exatamente quando já for tarde demais para mim e meus amigos,o que me deixa ainda mais doente. Não preciso alcançar duzentosanos, mas quero ir até a linha de chegada com um pouquinho desaúde. Pagaria por isso.

Aliás, esqueci de perguntar a meu médico qual é a posição deleem relação à eutanásia.

Domingo, 23 de junhoNotícias sobre a reforma. A diretora sugeriu numa carta que seja

formada uma comissão de moradores para aconselhar a comissãode construção sobre todas as questões “que têm a ver com o bem-estar domiciliar”.

Aparentemente, existe uma comissão de construção e há planosum pouco mais concretos do que havia sido sugerido até agora. Ailusão de participação vem para que isso seja amortizado.

Por um lado, bastante tranquilizador para vários residentes: sevão fazer uma reforma substancial na casa, não irão fechar logo emseguida. Portanto, eles não precisarão se mudar. Por outro lado,uma grande reforma significa, quase certamente, que haverámudanças, ainda que sejam temporárias. Pensar nisso já faz apressão sanguínea média por aqui subir a níveis alarmantes.Insegurança e mudança são dois pregos no caixão de todo idoso. Asra. Pot, terrível criadora de intrigas, não descarta a hipótese de quea reforma seja para limpeza de arquivo. “Estão fazendo por isso. Ummonte de gente não vai sobreviver!” Sempre há alguns na mesa docafé que balançam a cabeça concordando, não importa quão idiotaseja a afirmação.

Uma grande reforma levantaria poeira, em sentido literal efigurado; então, que venha. Quanto mais ação, melhor. Queroinclusive participar da comissão que aconselhará a comissão deconstrução.

Segui a sugestão de Eefje e pedi a nosso advogado, Victor, queenviasse numa carta adicional questões específicas sobre os planosde reforma.

Segunda, 24 de junhoA sra. Aupers é nova. Todas as manhãs, ela lê, em voz alta, na

mesa do café, os obituários publicados no jornal. Estou curioso parasaber quem será o primeiro a dizer alguma coisa a respeito. Nemtodo mundo está ansioso para começar o dia de maneira tão alegre.

Há ainda mais alguns moradores fascinados por mortos. A cadamorte é possível ouvi-los pensando: deixei mais esse para trás.Adoram ver o nome de velhos conhecidos cercados pela moldurapreta no jornal; isso dá ainda mais satisfação.

Eu mesmo me sinto tocado apenas pelos anúncios de falecimentode crianças. Eles me fazem pensar em minha filhinha. Mortos depeso, com dez anúncios publicados por todas as empresas ondeeles algum dia foram diretores ou conselheiros, não me despertamnenhuma emoção. Fico tão frio quanto eles mesmos estão agora.Pode enterrar. Vamos ver o quanto ainda serão importantes láembaixo.

Os novos membros do nosso clube, Ria e Antoine, alugaram acozinha e uma sala do centro comunitário do bairro para a próximasexta-feira. Recebemos na caixa postal um belo convite para umjantar de boas-vindas por ocasião da adesão deles ao nosso clube.

No convite havia também um pedido para que fizéssemospequenos intermezzos entre um prato e outro na forma de discurso,história ou canção. Dá quase para ouvir meu velho cérebrorangendo.

Levei meu smoking, que não uso há vinte e cinco anos, para alavanderia e amanhã vou comprar uma camisa nova.

Terça, 25 de junhoQuando a sra. Aupers não lê os obituários, lamenta-se sobre o

gato que teve que mandar para o asilo de animais. Tinha acabadode gastar três mil e quinhentos euros com o bichinho. Algo a vercom uma operação complicada numa patinha traseira quebrada. Oveterinário meteu no bolso, sorrindo, todas as economias da sra.Aupers. Apesar de todo aquele queixume, fiquei sentido por ela. Elagostava tanto daquele gato. Mas regras são regras aqui: animais deestimação são proibidos. Por essa razão, ela preferiria ter ficado naprópria casa, mas seus filhos deram a palavra final. Já não davamconta dos cuidados com a mãe.

A vendedora da C &A não estava disposta a ter muito trabalhocom minha compra de camisa. Meio murcha e vestindo um terninhojusto demais, ela apontou entediada para algumas prateleiras dezmetros adiante.

— Estão ali.— Agradeço gentilmente por sua enorme ajuda.Minha observação causou um olhar primeiro de surpresa e depois

de irritação.Na V &D o serviço não foi muito melhor. Senhores velhos e

desinformados não são muito apreciados como clientes. No fim,comprei, meio a olho, uma camisa azul-clara que ficou grandedemais. Amanhã terei que voltar lá. Tenho a impressão de que osvendedores também não são apaixonados por velhos que vão trocarmercadorias.

Quarta, 26 de junhoAs coisas não vão bem com Evert. Ele foi hoje de manhã até o

hospital para um controle e queriam que ficasse por lá. Conseguiuadiar até segunda-feira por causa de um enterro.

— Já inventei muito enterro na vida — disse ele —, na hora nãoconsigo pensar em outra coisa. E, desde que você não venha trêsvezes com o enterro da mesma pessoa, eles não se atrevem apensar que você é mentiroso.

Não que ele ganhe muito adiando por alguns dias, isso eletambém sabe, mas precisa de um tempinho para se prepararpsicologicamente para uma nova cirurgia. E não quer perder nossojantar no centro comunitário na sexta-feira à noite.

Ele estava um pouco abatido quando passei por lá. Tinha umaxícara de chá na mão, o que também não era animador. Quando fizmenção a isso, disse que havia posto uma gotinha de rum. Isso,sim, era promissor.

Contamos juntos ao Mo, que levantou uma orelha e soltou umpum quando ouviu que na semana que vem estaria novamente sobmeus cuidados.

O plano da diretora de instalar câmeras nos corredores ganhoupopularidade com a comoção em torno do roubo do relógio, mascaiu de novo nas pesquisas quando se soube que o relógio tinha idoparar por acidente na máquina de lavar roupa. Ouvi de Anja queStelwagen ficou quase chateada por nada ter sido roubado. Essassão as notícias de nossa agente no front.

Quinta, 27 de junhoVelhos às vezes são um pouco asquerosos em capas de chuva

manchadas e golas encardidas. Ou não percebem ou não seimportam mais com a aparência. É um pecado gastar dinheiro numcasaco novo se não lhes é dado o tempo de usá-lo até gastar. Entãovestem vestidos e ternos de quarenta anos, sapatos surrados emeias furadas. É o início do fim da dignidade. Se a aparência jápouco lhes importa, também não precisam se preocupar com o fatode comerem de forma nojenta, coçarem entre as pernas sem amenor cerimônia ou lavarem o cabelo só uma vez por mês.

— Quando não tem mais calcinha limpa, uso a menos suja maisum dia — comentou uma moradora durante o café, sem nenhumconstrangimento.

Felizmente também há senhoras e senhores limpinhos, cheirosose elegantes. Eefje, Edward, Ria, Antoine e eu mesmo, apesar demeu probleminha de gotejamento. Gente vaidosa com roupasbonitas, bons perfumes e bem penteada.

Gosto de ir ao barbeiro a cada dois meses e lavar duas vezes ospoucos cabelos que ainda me restam na cabeça.

— E como o senhor quer cortar?— Gostaria que fosse um corte moderno. E pode tomar todo o

tempo necessário.— Vou fazer algo bem bonito, com calma.Há anos tenho o mesmo barbeiro, e essas conversinhas nunca

enjoam.

Sexta, 28 de junhoÉ dia 28 de junho, e os aquecedores estão roncando alegremente

por toda parte. Modo de dizer, porque temos aquecimento central.Na maioria dos quartos, o termostato está, como de costume, natemperatura máxima permitida – vinte e três graus –, e o primeirocasaco de inverno já foi visto a caminho da saída. Ontem, nomomento mais quente do dia, fazia quatorze graus lá fora.

Hoje vou comer pouco para me preparar para nosso jantar nocentro comunitário. Não vai ser preciso muito esforço. A vontade decomer diminui à medida que envelhecemos. Às vezes tenho que meobrigar a pôr alguma coisa na boca. Felizmente, hoje existembebidas que são um café da manhã completo. Quando necessário,também podem ser usadas no almoço. Isso economiza amastigação sem vontade. A situação de Evert também não ajuda aabrir o apetite.

Meu velho smoking está um pouco grande, mas muito bempassado. No fim, deu tudo certo com a nova camisa. Quando fuitrocar a que ficou grande na V &D , fui atendido por uma simpáticavendedora marroquina que tirou minhas medidas, viu o comprimentoda manga e em seguida puxou da prateleira uma peça no tamanhocerto.

No fim das contas, até que estou bastante atraente, modéstia àparte.

Também comprei um perfuminho. Testei alguns em minha mão,mas em pouco tempo virou um irreconhecível pot-pourri de odores.Não é assim que se faz, deve-se espirrar um pouco de perfume numpapelzinho especial. No final, uma vendedora escolheu um que, deacordo com ela, combinava perfeitamente comigo. E com meu

bolso.

Sábado, 29 de junhoTiro o chapéu para Antoine e Ria do restaurante pop-up Chez

Travemundi. Há anos não comia um jantar tão gostoso. Seis pratos!Servidos com toda a calma, em boas porções para idosos e emcompanhia agradabilíssima. Uma supernoite. Ficamos à mesa dascinco às dez, cantamos na hora de lavar os pratos e depois fomoscambaleando juntos para casa. Felizmente, bebi de maneirasensata, senão a esta hora ainda estaria desacordado.

Após o coquetel de boas-vindas, Evert tomou a palavra. Numdiscurso apaixonado, discorreu sobre os prazeres da vida e asalegrias da amizade. Ele caprichou. Para finalizar, dissecasualmente que a partir de segunda-feira tiraria alguns dias deférias no hospital Boven ij, avisando as horas de visita.

— Se alguém abrir a boca para falar mais uma palavra sobre issoesta noite, esfrego este carpaccio de lagostim em seu cabelo.

Todos fizeram silêncio por um instante.Então, Graeme levantou um brinde a Evert, e quebrou-se a

tensão.Outras lindas palavras foram ditas ontem à noite, cantou-se e

discursou-se e fizemos um quiz sobre gastronomia. Pena que jáesqueci tanta coisa.

Hoje começa o Tour de France. Vou passar três semanasenfurnado durante a tarde. Adoro: transmissões ao vivo na TV quenão acabam nunca. Nas primeiras horas, prefiro os comentários docanal belga; no final, quando fica emocionante, ligo a Rádio Tour deFrance junto com as imagens da televisão.

Domingo, 30 de junhoEstou na metade. Os primeiros seis meses terminam hoje. Só

falhei uns cinco ou seis dias por estar doente. Bom, não?Não é tão simples. Os assuntos nem sempre surgem

espontaneamente e tenho que medir minhas palavras com cuidado.Mas a obrigação de escrever aguça a visão e me mantém atento.Quando alguém diz algo digno de nota, tenho que me lembrar,embora a memória agora seja justamente um dos elos mais fracosneste corpo caquético. Um bloquinho de anotações ajuda, mas nãoposso usar de maneira que dê muito na vista. Olhos curiososespreitam por toda parte.

— O que você anda escrevendo o tempo todo, Hendrik? Possover?

— Estou trabalhando em minhas memórias. Só quando estiveremprontas todos poderão ler.

Daí em geral querem saber se eles também são citados, e aí euconfirmo, indistintamente:

— Só coisas boas, viu?! — acrescento para tranquilizar. Isso ossatisfaz, mesmo que continuem me achando metido com minhas“mémoires ”.

Tornei-me um espectador medroso do Tour de France. No anopassado e no ano anterior tantos corredores se espatifaram noasfalto – entre eles sempre alguns holandeses – que o prazer deassistir foi abalado. A etapa de abertura gerou poucas esperançasde melhora. O primeiro que vi cair foi de novo o azarado nacionalJohnnie H. Por sorte, contra um outdoor, não no arame farpado. Emseguida mais algumas quedas violentas.

Pena que o ônibus que encalhou embaixo do arco de chegada

tenha sido retirado bem a tempo. Caso contrário, teria rendido umbelo escândalo.

Segunda, 1o de julhoEvert partiu de táxi para o hospital hoje de manhã. Acabei de ligar

para ele. Está esperando o cirurgião que o operou da última vez.— Não é meu melhor amigo, mas médico a gente não escolhe.O mercado livre não vale para os doutores. Ao menos não

quando é o seguro que paga. Claro que, se você se chama Beatrix,é outra história. Aliás, será que a rainha tem seguro-saúdeadicional?

Um belga desconhecido, que nunca tinha vencido nada deimportante, manteve-se dez metros à frente do pelotão dianteiro eganhou a etapa do Tour de France ontem à tarde. Mesmo quem nãogosta de ciclismo fica contente quando o Pequeno Polegar ganhados gigantes, Davi e Golias. Eu gosto de azarões! Pelo menos nãoagem de maneira patética quando perdem.

Grietje escreveu uma longa carta para si mesma e a pregou noarmarinho da cozinha. Nela, ela explica que tem Alzheimer e esboçaos possíveis problemas que podem surgir com isso. Dá conselhos asi mesma e se encoraja para quando em breve não tiver mais ascoisas sob controle. Conclui com: “Controle não é tudo. Com amor,Grietje”. Fiquei comovido com a forma como ela saúda a si mesma.Está lidando de maneira original com sua doença.

Perguntou-se, e também a mim, como irá reagir à própria cartamais tarde. Quando eu souber a resposta, provavelmente já nãopoderei mais esclarecer a ela. Uma situação surreal.

Terça, 2 de julhoEvert teme perder no mínimo mais alguns dedos. O cirurgião o

encarou com ar bastante sério.— Não está contente com o resultado do trabalho que o senhor

mesmo fez da outra vez? — perguntou ele.Bem, o médico não formularia desse jeito. Preferia falar em

termos de complicações imprevistas. O primeiro médico a admitirespontaneamente que cometeu um erro ainda está por nascer. Se opadeiro deixa queimar o pão uma vez, é aceitável, mas, se ocirurgião amputa a perna errada, foi a enfermeira quem pôs umacruzinha no lugar incorreto do formulário. Pessoas em altasposições têm muita responsabilidade, mas também têm um bomseguro contra acidentes. Se um figurão cai, em pouco tempo jáencontra outra posição. E com salário melhor.

Evert será operado na quinta-feira. Até lá vão mantê-lo no hospitalesquentando a cama. Ele espera que seu cirurgião não sejavingativo nem use uma faca cega para fazer a operação.

Fiquei bastante mal com nossa conversa telefônica. Amanhã voufazer uma visita. A pedido de meu amigo, tenho que levar de novouma garrafa de água mineral da Bols.

Também tenho que levar alguns cartões com votos de melhoras.Assim os velhotes economizam um selo.

Quarta, 3 de julhoFui fazer visita no hospital hoje de manhã. Difícil. É preciso

demonstrar um pouco de otimismo e não é nada fácil quando seestá com uma aparência tão triste como a minha.

Eu seria um péssimo doutor da alegria.Como consolo para mim mesmo, posso dizer que, em

comparação com outra visitante, eu era um raio de sol. Dois leitosadiante, uma mulher visitava seu marido recém-operado. Passoumeia hora falando só dela mesma e sobre seus próprios males. Fizo que antes jamais teria ousado. Perguntei a ela:

— Não é melhor vocês trocarem de lugar?Isso fez com que Evert ficasse todo animado, mas a mulher

apenas nos olhou com desconfiança, sem compreender.— Meu amigo quis dizer que sua unha encravada na verdade é

muito mais grave que a cirurgia cardíaca de seu marido e que,portanto, você deveria se deitar na cama em que ele está — disseEvert, bem sério.

— Ocupe-se de sua vida — respondeu ela.Depois do ônibus encalhado na linha de chegada, o Tour sofreu

um desastre ainda maior. Numa reprise na TV mostraram que, no fimda terceira etapa, um cachorrinho branco – o irmão gêmeo do Miludo Tintim – cruzou a rua pouco antes do pelotão de frente. Se ocãozinho tivesse sido estraçalhado, o Tour de repente despertariamaciço interesse em nossa casa de repouso, especialmente dasmulheres. Os ossos quebrados e os traumatismos cranianos dedezenas de corredores não pesariam nada contra a morte de umcachorro fofinho. Teriam assistido com horror, muitas e muitasvezes, às reprises em câmera lenta.

Quinta, 4 de julhoDe acordo com as previsões, Evert acordará por volta das 7h na

sala de recuperação. Isso soa ameno: sala de recuperação. Eleprometeu ligar assim que estiver em condições. Vai ser um dialongo.

O cantor e humorista Maarten van Roozendaal morreu. Nuncatinha ouvido falar dele. Ficamos aqui, num canto afastado dasociedade, onde nada penetra. Somos bons é em mexericar sobrevelharias.

Grietje me emprestou um CD de Roozendaal. Recomendou que euouvisse “Het te late einde”.

Nunca tinha escutado uma canção tão bonita sobre idosos.Perguntei a Grietje como ela, paciente inicial de Alzheimer, a ouvia.

— Pode parecer estranho, mas me traz certa paz. Melhordizendo, é tranquilizadora. Mas tem energia.

Há outras belas canções no CD . Por que Maarten tinha quemorrer tão cedo?

O presidente egípcio, Morsi, foi removido após um golpe deEstado do Exército. Bem, golpe de Estado... “O Exército optou pordar ele mesmo direção ao processo de transição”, esclareceu nossoministro de Relações Exteriores, Frans Timmermans.

“Não, seu guarda, não roubei nada. Só optei por dar eu mesmodireção ao processo de transição de proprietário.”

Nossa diretora também não faz cortes, apenas dirige processosde transição.

Sexta, 5 de julhoA ligação de Evert veio de manhã, às 9h. Sua perna foi amputada

abaixo do joelho.Não vou conseguir escrever hoje.

Sábado, 6 de julhoTive que me obrigar a escrever novamente. Isso me faz bem.

Quando confio uma coisa ao papel – ou neste caso, ao computador–, posso tomar certa distância e me torno de novo um pouco maisagradável. Também é mais aprazível para as pessoas que estão emminha companhia.

Eu estava muito emocionado quando fui visitar Evert ontem. Elemesmo já havia superado o primeiro golpe. Mas contou que naquinta-feira à noite ficou abatido.

— Pensei “deixa eu ver se consigo mexer meu pé”, mas não tinhamais pé. Está lá, em algum lixão. Não tive ânimo de ligar para você,Henk. Tinha que lidar com isso comigo mesmo, primeiro.

Eu disse que compreendia e que já temia isso quando não tivenotícias dele.

Para demonstrar que já era o velho Evert de sempre, perguntou-se um pouco mais tarde se muçulmanos faziam cirurgias halal, ouseja, sem anestesia.

Temo que não vá ficar só nessa meia perna e que mais umpedaço de braço ou perna de meu amigo morra antes queinevitavelmente chegue a vez do resto.

Os pequenos acontecimentos nesta casa e as conversinhas namesa do café já não me interessam.

Apoio-me um pouco em Eefje. Ela continua comedida, forte e, aomesmo tempo, amável e compreensiva. Ela me conforta durantenossas visitas mútuas, quase diárias. Começo a sentir mais do quesimpatia por ela.

Domingo, 7 de julhoQuase ninguém aqui do asilo viaja de férias. Ou diz-se “em”

férias?Devo avaliar, por curiosidade, o interesse por uma viagem a

vinícolas, por exemplo. (Jamais perguntaria sobre uma viagem peloReno. Já fico imaginando uma caravana colorida de doentes enecessitados empurrados no passadiço do barco Henri Dunant porsorridentes acompanhantes. Nem que me pagassem!)

Deve ser possível alugar um micro-ônibus confortável com umgrupo pequeno e, por exemplo, fazer um tour pela região deChampagne e passar alguns dias hospedados num belo château .Comer e beber bem, visitar algumas degustações, alguma catedralperdida, não ter gente resmungando ou reclamando em volta. Mastem que ser acessível a cadeirantes.

Pensei na ideia de férias porque, depois da angústia dos últimosdias, preciso de algo positivo. Vou checar com Eefje o que ela achade pequenas férias com o clube.

Hoje à noite, nós vamos discutir o que podemos organizar paraEvert. “Nós” significa: Grietje, Eefje, Graeme, Edward e eu. Ria eAntoine têm ingressos para o teatro. Preferiam ficar em casa paranossa reunião, mas conseguimos evitar que isso acontecesse.Mesmo assim, Ria preparou alguma coisinha para a gente beliscar edeixou com Edward antes de sair. Por pura formalidade, dissemosduas vezes que aquilo realmente não era preciso.

— Mas claro que seria muito gostoso — Graeme deixou escaparbem a tempo, e aí não teve mais jeito. Graeme deu uma risadinha.

Segunda, 8 de julho— O senhor está progredindo muito bem — disse o médico.— Bom, com uma perna só, não é fácil! — respondeu Evert.Fui fazer visita hoje de manhã. Daqui a alguns dias, Evert vai ser

transferido para uma clínica de reabilitação, por pouco mais de umasemana. Se tudo correr bem, poderá voltar para casa depois.

Tivemos uma reunião bastante proveitosa ontem à noite.Tomamos algumas decisões práticas e úteis.

Edward vai conseguir uma cadeira de rodas motorizada. Eefjetem bons contatos com assistentes sociais e vai providenciaralguém para ajudar nas tarefas domésticas. Graeme irá consultar oclínico geral sobre os cuidados médicos necessários. Por enquanto,Grietje fará as comprar para ele.

— Faça uma lista, bem direitinho, está bem? Mal consigo melembrar de duas coisas que eu mesma tenho que comprar.

Ria e Antoine cuidarão da comida e eu me ocuparei do cachorro.Veja só, isso é o que eu chamo de assistência personalizada!

Isso tudo nos primeiros dias em que ele estiver em casa, para quetenha tempo de pensar como irá resolver os problemas que meiaperna acarreta. O principal objetivo é que, com o apoio, ele consigacontinuar morando onde mora. Estávamos todos de acordo: seEvert se mudasse para o asilo, haveria uma guerra entre ele e boaparte dos outros moradores. A nítida situação em que todos saemperdendo.

Nossas medidas não são exageradas. Anja avisou que oapartamento de Evert tinha sido colocado numa lista de residênciasque em breve estariam desocupadas. Nossa informante não soubedizer quem havia feito isso.

Terça, 9 de julhoA carroceria do Canta da sra. Groenteman foi atingida em cheio

por um ciclomotor a quarenta por hora. Em defesa do garoto dociclomotor, é preciso dizer que Groenteman ia pela rua e, derepente, decidiu cruzar pela faixa de pedestres. É um pequenomilagre que ninguém tenha saído ferido. Bom, o Cantapossivelmente não será salvo. O rapaz do ciclomotor voou por cimado carro e só teve alguns arranhões. A sra. Groenteman gemeucomo se estivesse morrendo, mas, no fim, só seu cabelo estava forado lugar.

O relato testemunhal era do sr. Elroy (o da cabeça de alce), quefez um vívido colóquio sobre o tema durante o chá.

Groenteman acredita ter um caso bastante forte no que dizrespeito à culpabilidade.

— Tudo o que cruza a faixa de pedestres tem preferência —alegou, com firmeza. Felizmente ela tem seguro contra todos osriscos.

Muitos moradores daqui têm seguro para tudo e mais um pouco,além do seguro para todos os riscos. “Porque nunca se sabe...”Com todas as mensalidades pagas aqui para apólices funerárias,poderíamos facilmente comprar um cemitério de tamanho médio.

Gente muito velha é um perigo no trânsito em qualquer tipo deveículo, mesmo que não passe de cinco quilômetros por hora. Ouno supermercado. Mesmo que ande em scooters para idosos comose manobrasse um caminhão com reboque por uma movimentadarua de comércio em pleno sábado. Com certeza, o veículo derepente entra sozinho em marcha a ré...

Mas isso tudo não me impedirá de em breve sair para tornar ruas

e praças mais perigosas com meu próprio triciclo motorizado!

Quarta, 10 de julhoUma vereadora de Hengelo, mas pode ter sido em Almelo

também, acha que os cuidados a idosos e pessoas que necessitamde assistência podem ser assumidos por desempregados, quecontinuariam recebendo o seguro-desemprego. Assim, enfermeirose assistentes sociais também podem começar a receber o seguro.

Em vez de uma pessoa diplomada, da área, teremos um pedreiropara nos pôr no chuveiro e lavar nosso traseiro. Com isso, atinge-seum novo cúmulo no desrespeito aos idosos. Felizmente, muitosacharam muito, mas muito, burra a mulher que sugeriu isso com amaior cara de pau. Deixarmos os quatrocentos e oito municípiosholandeses cuidarem dos anciãos e das pessoas que necessitam deassistência, cada um à própria moda, é receita para acidentes,desperdício e desastres. Vereadores burros existem em todo lugar.

Podem começar a formar desde já a comissão parlamentar deinquérito.

Em diversos lugares da Alemanha, uma parte dos cuidados apessoas que necessitam de assistência, como fazer compras,fornecer refeições quentes e providenciar transporte, é feita poroutros aposentados que ainda estão bem fisicamente. Eles sãopagos em créditos de assistência que poderão usar mais tarde,quando eles mesmos precisarem de ajuda em uma coisa ou outra.Para isso, é preciso ter sempre novos jovens aposentados, e issotambém pode se tornar um problema, considerando o assustadorenvelhecimento da população que a Alemanha terá daqui parafrente.

Além do que, em paralelo a isso, cuidadores profissionaiscontinuam fazendo seu trabalho especializado e sendo pagos.

Naturalmente!

Quinta, 11 de julhoFui com o micro-ônibus até o centro de reabilitação visitar Evert

hoje de manhã. Ele parecia bem à vontade.— De qualquer modo, a gente precisa suar muito neste lugar. E

olha que todo mundo em volta aqui é semi ou completamenteinválido. Para ficar nos termos esportivos, o moral é alto.

Médicos e fisioterapeutas prometeram a Evert que ele sairá daquiem uns oito dias, com razoável autonomia. Um belo objetivo aatingir, e Evert dá o melhor de si. Contou-me que se impôs umarígida cota de quatro drinques ilegais por dia.

Ele está com saudade de seu cachorro, Mo. Tenho a impressãode que isso é recíproco, embora seja difícil concluir dos mínimosesforços que Mo se permite ao longo do dia quando o tempo estáquente. Nunca ouvi um cachorro gemer tanto para se levantar. Umavez fora de casa, dizer que ele “se arrasta” é sugerir movimentodemais. Sempre foi assim, mas parece que Mo agora está aindamais lento. Para se ter uma ideia, com frequência preciso esperarpor ele quando saímos.

Ontem à noite nos reunimos para falar dos próximos passeios doclube. Adiar, indo contra o desejo expresso de Evert, ousimplesmente deixar como planejado, essa era a questão.Decidimos continuar como planejado, apesar do fato de oentusiasmo ser menor. Não gostaríamos de despertar a ira de Evertsobre nós.

— Ok, mas já que vamos continuar, vamos caprichar — falouGraeme, o próximo organizador, solenemente. Ele fez um pouco demistério, perguntou se tínhamos obsessão por limpeza e se todoseram vacinados contra doenças tropicais. Foi o que bastou para que

voltasse o ânimo do Tô-velho-mas-não-tô-morto.

Sexta, 12 de julhoAveriguei sutilmente se haveria interesse por uma pequena

viagem com o clube no verão. Primeiro com minha amiga Eefje,claro. Se ela achasse que era uma missão impossível, eu nemprecisaria gastar mais energia. Mas, depois de uma longa reflexão(o que me deixou bastante nervoso), ela reagiu com entusiasmo.

— Nunca tinha pensado nisso, mas talvez seja uma ótima ideia —disse, pensativa. — Vou deixar amadurecer um pouco mais,Hendrik.

Perguntei quanto seria “um pouco mais”.— Um dia. Você teria esse tempo?Resta-nos pouco tempo, mas temos todo o tempo do mundo.Deveríamos ter pressa, mas já não há quase nada que valha o

esforço de se apressar.As traiçoeiras irmãs Slothouwer quase derrubaram um vaso de

crisântemos na sra. Van Diemen. Edward viu quando aconteceu ejura que elas fizeram de propósito. As duas irmãs detestam a sra.Van Diemen e todos que um dia abriram a boca sobre seucomportamento associal. Elas incomodavam principalmente os maisfracos. São insanas e sanguinárias. Estão fazendo o maior alardeporque os lobos voltaram a aparecer na Holanda, mas aqui dentrotemos há anos duas hienas. A diretora assiste a tudo comrelutância. Não há muitas medidas contra comportamento sádico.Não se pode chutar as sras. Slothouwer, por exemplo. Daí aimprensa apareceria imediatamente em frente ao asilo: “Irmãsidosas (oitenta e sete e oitenta e cinco) maltratadas!”. Jamais amanchete: “Irmãs idosas (oitenta e sete e oitenta e cinco)maltratadas MERECIDAMENTE !”.

Sábado, 13 de julhoOntem à tarde fui visitar minha mulher. A instituição em que ela

está internada fica em Brabant. Uma viagem de duas horas. Tempopara pensar em como eram as coisas antigamente.

Não tenho certeza de que ela me reconheceu, mas acredito quesim. Fazia sol e demos uma pequena caminhada de braços dadosno belo jardim. Como sempre, fiquei comovido. Não havia muito adizer. Embora o contato seja quase impossível, existe um profundosentimento de união. Bonito e intensamente triste ao mesmo tempo.

Domingo, 14 de julhoCom Evert, considerando as circunstâncias, as coisas vão bem.

Ele está se recuperando com sucesso.— Só caí três vezes.Aprendeu a andar de muletas e, enquanto isso, estão preparando

uma prótese para ele, mas ela só poderá ser usada quando a feridacicatrizar.

Segundo ele mesmo disse, também está quase deixando abebida.

— Na verdade, agora só bebo para me divertir.Quando fui visitá-lo ontem, perguntou se eu tinha vontade de

passar uma semana com ele em Brabant. O filho o convidou paraficar com ele em Uden na segunda semana de agosto.

— Acho que é um pouco por obrigação — comentou Evert. — Elese sente culpado porque há anos mal dá bola para mim.

Evert não se dá muito bem com sua nora mais que certinha e, porisso, pensou que, se eu pudesse lhe fazer companhia durante essasemana, para conter um pouco o clima, ele talvez conseguisseaguentar. Eu teria meu próprio quarto, e o cachorro, seu própriocantinho.

— Minha nora não só é ótima na limpeza, mas também cozinhamuito bem e, se insistirmos com cautela, quem sabe ainda noslevam para um parque de diversões. Vamos juntos na montanha-russa — concluiu sua fala promocional.

Eu topei. Uma semana me pareceu muito tempo, entãocombinamos que seriam cinco dias. Assim, ganhei de repente umapequena viagem de férias.

Segunda, 15 de julho“Idosos com mais de noventa estão mais arrojados”, diz a

manchete do Trouw . Ainda mais arrojados? Isso mesmo. Pesquisadinamarquesa.

Trata-se de uma melhora nas condições mentais e cognitivas,digamos, da cabeça. O corpo não está melhorando. Isso comparadoa doze anos atrás. Se a evolução continuar nesse ritmo, ainda voudesfrutar alguma coisa daqui a doze anos. A esperança brilhanovamente para os octogenários.

Perguntei aos outros membros de nosso clube sobre o eventualinteresse em uma pequena viagem de férias juntos. As reaçõesforam entusiasmadas. Grietje foi a única que se conteve um pouco.

— Para mim, vai depender um bocado de como eu estiver naépoca — disse —, porque percebo que num ambiente estranho logome sinto desorientada.

Claro que eu a compreendo perfeitamente. Até agora, Grietje estálidando com sua demência como uma elegante equilibrista.Contorna com habilidade os buracos que surgem em sua memóriaem momentos inesperados e embala sua insegurança com umaleve ironia.

— Ainda — disse ela, quando fiz esse comentário.Com respeito a nossa viagem de férias, há uma propensão ao

mês de setembro. Mais barato e mais tranquilo. Continuamos sendovelhos holandeses, naturalmente. E, de preferência, não muitolonge. O país favorito de férias para idosos, Luxemburgo, foisugerido. A cidade de Maastricht também foi citada.

— Temos que nos assegurar de que a orquestra de André Rieuesteja fora da área — disse Eefje.

Eu sou mesmo um frouxo por não dizer que na verdade bem quegostaria de vê-lo tocar ao menos uma vez.

Terça, 16 de julho“Não viverei para ver isso” não é só uma expressão de linguagem

para nonagenários que vivem em seus quartos esperando a morte.Para muitos, grandes acontecimentos passam despercebidos. Só

os pequenos dramas ainda são bem presentes.— Os prêmios do bingo com certeza vão ficar mais simplórios se

a Grécia for à falência. — Essa foi a análise da crise europeia feitapela sra. Schouten.

Para pessoas que passaram uma vida inteira economizando cadamoedinha, algo como a dívida do governo americano, de dezenasde trilhões, é incompreensível. Aliás, para outras pessoas também.Com algumas dezenas de trilhões seria possível acabar com a fomeno mundo e todos teriam água potável. E os americanos estão commil trilhões no vermelho e ainda pedem regularmente emprestadosoutros cinquenta trilhões em cima disso.

Eu pretendo morrer no vermelho. O que não é tão simples. Aindatem uns oito mil euros em minha conta bancária, mas, naturalmente,não sei quanto tempo terei que sobreviver com esse dinheiro. Porenquanto, meu plano é injetar despesas extras de mil euros por anona economia holandesa. Não vai ser culpa minha se nãoconseguirmos sair da crise.

Quarta, 17 de julhoVocê está lá embaixo na mesa do café, um pouco melancólico, e

escuta ao lado:— E então fui até a padaria, mas estava atrasada por causa da

pedicure; pedi metade de um pão semi-integral fatiado e o padeirosó tinha integral, do qual eu não gosto muito da casca, mas a genteprecisa comer, e normalmente eu sempre tenho algumas fatias depão congeladas no freezer, mas meu neto comeu todas as seisfatias. Como come aquele menino, sabe?

— Ah, é como meu filho. Oito panquecas e todas com melado etem que ser o melado Van Gilse, porque os outros ele não acha tãogostosos. Nossa, é impressionante como é sempre tão abafadoaqui.

— Antigamente não tinha disso, freezer, em casa nósprecisávamos comer primeiro todo o pão velho e assim, na verdade,só comíamos pão velho e nunca fresco, porque minha mãe semprecomprava pão demais, porque nunca se sabe, e só quando jáestava mofado podíamos dar para os patos.

Um fluxo interminável de palavras inúteis que se alastram esufocam como erva daninha. Sem reflexão. Sem significado.Compulsivamente. Pronunciadas para que o entorno saiba que oemissor não morreu e ainda tem algo a dizer. Se alguém por acasoquer escutar, essa é uma pergunta que raramente fazem a simesmos, de outra forma ficariam de boca fechada com muito maisfrequência.

Quinta, 18 de julhoEdward encontrou num velho guia do consumidor uma pesquisa

sobre higiene em casas de repouso. Colaboraram cento e vinte dascerca de trezentas casas de repouso do país. Metade, entre asquais a nossa, se recusou a participar. No fim, trinta e sete asilosforam visitados. Resultado: dezoito insuficientes, onze notas seis,oito setes e nenhum “bom”. Será que o controle foi tão rígido assimou é tudo tão sujo mesmo? Os que se recusaram a participarprovavelmente não teriam feito com que o resultado fosse melhor.

Perguntei a Anja se ela conseguiria encontrar a carta da direçãopara a União de Consumidores com os argumentos para nãoparticipar da pesquisa.

Estamos tratando aqui dos faxineiros que trabalham na limpezageral e que passam calados esfregando os corredores porque nãosabem ou mal falam holandês. Eles fazem, sim, gestos bastantesimpáticos com a cabeça. Em geral, não parecem lá muito lépidos.Digamos que se adaptam muito bem ao ritmo dos moradores. Minhasuposição: limpeza meia boca por um salário mínimo. De vez emquando aparece alguém que se destaca. Estes não costumam ficaraqui muito tempo porque recebem oferta melhor da concorrência ouporque são intimidados por colegas que não gostam de quem queraparecer.

Na segunda-feira teremos de novo um passeio do clube,organizado por Graeme. Evert pediu que enviemos um cartão paraele, e eu até já comprei o selo.

Sexta, 19 de julhoA sra. De Koning, minha vizinha quieta e tímida, apareceu hoje de

manhã com um problema clássico: um gravador que comeu a fitacassete. Olhava claudicante ao redor, como se quisesse me venderheroína, e me entregou o aparelho em mãos. Ela devia estardesesperada, porque nos dois anos em que vive aqui nunca antesme pediu nada.

— Ainda é a fita com a gravação de meu falecido marido — disseela.

Puxei a fita para fora com os dedos e depois, com um lápis noburaquinho do cassete, rebobinei. Ela me agradeceu sete vezes esaiu porta afora, ainda se curvando em mesuras.

De nosso advogado, Victor, recebi uma cópia de uma carta doconselho administrativo. Ele veio trazê-la pessoalmente. Porquestões importantes, relativas à privacidade, o conselho lamenta,mas infelizmente não pode tornar públicos os documentossolicitados. E perguntam se queremos continuar discutindo o casocom o advogado da fundação. Victor quer nos consultar sobre opróximo passo.

Eefje e eu teremos uma reunião com ele na próxima quarta.

Sábado, 20 de julhoPela primeira vez desde que comecei o diário, tenho um bloqueio

de escritor.

Domingo, 21 de julhoAlguns moradores têm o hábito grosseiro de reclamar de seus

problemas intestinais durante o café. De preferência aos domingos,quando ainda mais gente se reúne lá embaixo. Dia em queoferecem a todos uma fatia de bolo. Sei de fonte confiável que setrata de bolo do supermercado Aldi, que custa noventa centavos e, apedido da chefia do departamento, deve ser cortado em pelo menosquinze fatias, de maneira que nos é concedido um presentinho deseis centavos por pessoa. E aí esse mísero pedacinho de bolo érecusado em voz bem alta com informações detalhadas: “Já fazquatro dias que não vou ao banheiro!”. Ou, pelo contrário, avançamcom o argumento: “Passei a manhã quase inteira sentado no vaso,esvaziei completamente”.

NÃO QUERO SABER DE NADA DISSO!Converse a respeito com seu médico ou vá a algum especialista

em cocô (parece que eles existem), mas não venha para meu ladocom suas histórias de merda bem quando eu estou comendo umafatia de bolo, porque aí perco completamente o apetite!

Esse incrível despudor que muitos idosos têm... Somado àestranha suposição de que as pessoas genuinamente se interessampelos lamentos e pelas reclamações dos outros.

Criancinhas choramingam pela dor de barriga ou pelo joelhoesfolado para que a mãe apareça com um leitinho morno ecurativos, mas o eterno queixume dos velhos é completamente inútile insuportável.

Amanhã, passeio com o louvável clube Tô-velho-mas-não-tô-morto.

Segunda, 22 de julhoA lacuna deixada pelo Tour de France será preenchida hoje à

tarde por Graeme. Ele é o organizador do dia de diversão com oclube. “Dia de diversão” soa empolgante, até porque, dada nossamédia de idade de oitenta e dois anos e meio, os dias entediantessão em profusão.

Os passeios semestrais sob coordenação da comissão demoradores na verdade têm como objetivo, usando o fator surpresa,tomar café (10h30), almoçar (12h30) e tomar chá (15h30) emlugares diferentes e, entre um e outro, ficar sentado num ônibus.Exatamente como em um dia normal no asilo. Todo o restante dotempo é usado para fazer quarenta e cinco idosos entrar e sairquatro vezes do ônibus e ir três vezes ao toalete para inválidos emalgum restaurante de estrada.

Nos dois últimos passeios do asilo, eu disse que estava doente.Na segunda vez, a notícia foi recebida com muita suspeita.

— De novo? Justo hoje?Uma vez é coincidência, duas vezes é de propósito. Na terceira

vez você é considerado um pária. Com certeza terei que participaroutras duas vezes.

Como são diferentes os passeios festivos do clube Tô-velho-mas-não-tô-morto! Ativos até cair, com (nada que é humano nos éestranho) café, pão e vinho periodicamente.

Terça, 23 de julhoFelizmente foi muito agradável, desculpe-me o lugar-comum.

Antes eu estava com medo de que a ausência de Evert pairassecomo uma sombra sobre nosso passeio, mas foi melhor do que euesperava.

Passamos o dia no Artis, o jardim zoológico, e a visita teve comoponto alto um bebê gorila que, ao tentar plantar bananeira, caiu emcima da salada de frutas de sua mãe.

Graeme tinha estado lá para uma pré-pesquisa e preparou umabrincadeira com tarefas divertidas. A entrega de prêmios foi na horado drinque. Ria recebeu o prêmio de consolação, porque com suaestimativa do peso de um elefante errou por dois mil e setecentosquilos. O prêmio era uma balança de banheiro de segunda mão. Dotipo que também conta um quilo a mais ou a menos.

Ligamos para Evert para dizer que havíamos sentido falta dele.Por telefone, ele ofereceu uma rodada de drinques.

E Graeme levou três câmeras digitais muito fáceis de usar parafazermos um safári fotográfico. Tive que fazer com Edward umasérie de “bundas”, por exemplo. Outros tiveram que fotografar osanimais que mais se pareciam com os integrantes do grupo.

Graeme prometeu uma caprichada apresentação em Power Pointem nossa próxima reunião. Quem disse que não acompanhamos amudança dos tempos?

Saímos às 11h e às 17h estávamos de novo em casa. Eu estavaexausto. Tínhamos pedido duas cadeiras de rodas em que eu pudeme sentar com frequência, mas, para meus padrões, tambémcaminhei muito. No final, parando de banco em banco. Só temosdois empurradores confiáveis de cadeira de rodas, Antoine e

Graeme. Todos os outros ficam melhor sendo empurrados.

Quarta, 24 de julhoO calor cobra seu preço em nosso asilo: três mortos em dois dias.

ONDA DE CALOR ASSOLA ANCIÃOS . Bela manchete. Eu mesmo criei.Parece que nós, velhinhos, usamos a brandura do calor para

escapar de fininho. Ir tranquilamente para o caixão. A profecia quese autorrealiza.

Eefje e eu fomos hoje de manhã fazer uma visita a nossoadvogado. Victor está convencido de que a resposta do conselhoadministrativo tem como objetivo principal ganhar tempo e nosassustar com os custos.

Ele está cada vez mais entusiasmado e concordou em recebercomo honorário uma garrafa de vinho de países diferentes porsemana. Conforme for durando, teremos que buscar sempre vinhosde países produtores mais desconhecidos. Depois de um ano,podemos recomeçar.

— Porque — disse Victor — vocês não devem estranhar setivermos que insistir nisso por uns dois anos.

Talvez Eefje e eu parecêssemos muito apreensivos na hora.— Em consideração à idade avançada de meus clientes, exigirei

urgência. Aliás, também em consideração à idade do próprioadvogado.

Ele vai começar imediatamente uma carta ao advogado doconselho e iniciar o procedimento jurídico.

E em toda a conversa, mantinha a mesma entonação gutural deum ator de teatro amador.

Gostamos cada vez mais dele.

Quinta, 25 de julhoGrande alvoroço: há boatos de que o sr. Vergeer foi empurrado

escada abaixo por sua mulher com cadeira de rodas e tudo. Ele estáno hospital com vários ossos quebrados, e a sra. Vergeer foiquestionada diversas vezes pessoalmente pela diretora. Será queainda vai dar para varrer para baixo do tapete?

Aparentemente, duas pessoas viram que a sra. Vergeer fez depropósito. Ela diz que os pegadores se soltaram. Parece que elarealmente ainda os tinha nas mãos quando o resto da cadeira jáestava dez degraus abaixo. Pesa contra ela o fato de que não havianenhum motivo para chegar perto da escada, a não ser paraassustar seu marido. O que poderia ser justificado, porque o sr.Vergeer é sempre muito rude com a mulher. Só fala dandocomandos aos gritos. Apesar disso, ela cuida dele há anos comamor, paciência e dedicação. Na verdade, ele já deveria ter sidoempurrado da escada muito antes.

Estou curioso para saber se conseguirão evitar que isso chegueaos jornais. Um único telefonema para o Het Parool seria suficiente.

Estão insistindo para, “segundo o interesse de todos osmoradores”, não tocarmos no assunto. Qualquer dúvida, podemosnos dirigir diretamente à diretora.

Como minha simpatia está do lado da possível culpada, não digonada sobre esse absurdo procedimento, mas claro que éescandaloso que moradores possam ser impunemente empurradosescada abaixo só porque a diretora teme a publicidade negativa.

Decidi que, por enquanto, vou acreditar que foi um acidente. Asra. Vergeer ainda pode acabar atrás das grades.

Sexta, 26 de julhoEvert voltou para casa hoje de manhã. Foi uma ocasião festiva,

com bolo e bandeirinhas. Para aumentar ainda mais o espírito defesta, ele demonstrou ao comitê de boas-vindas como sua novaprótese deve ser colocada e retirada. Evert fez isso com verdadeiroorgulho, mas alguns membros do clube tiveram que desviar o olhar.

No mais, ele estava particularmente aberto a ouvir as medidasque o clube Tô-velho-mas-não-tô-morto encontrou para facilitar suavida como inválido novato nas próximas duas semanas.

— Depois dessas duas semanas, todo mundo dá o fora, porque aíquero tomar conta de minhas coisas de novo.

Abriu uma garrafa de vinho e brindou conosco a sua nova perna.Com bastante gelo, vinho branco e um ótimo refrigerante. Afinal,ainda não era nem meio-dia.

A queda do sr. Vergeer da escada ainda provoca discussões: suamulher, afinal, deu ou não deu uma mãozinha na descida emdireção ao hospital? O discurso oficial da direção é de que a sra.Vergeer, um tanto confusa pelo calor, fez uma manobra errada, masos pegadores soltos foram a causa desse infeliz acidente. Astestemunhas que dizem que a sra. Vergeer fez de propósitomurmuram que talvez tenham se enganado.

— Sim, sim, com certeza uma miragem provocada pela onda decalor... — Bakker não pôde deixar de comentar.

Na verdade, eu ia comprar um triciclo motorizado, mas com todaa comoção acabei não tendo tempo. Fica para amanhã.

Sábado, 27 de julhoEstá feito: vai ser o Élegance 4. Estável, confortável, pequeno raio

de viragem e num bonito tom de vermelho. Veja só o resultado deminha visita ao revendedor de scooters para idosos. Fiz test drivesem três modelos diferentes. Foram reprovados o Capri, que é omais barato – parecia um carrinho de brinquedo –, e outro cujonome esqueci e que era caro demais. Disse ao homem da loja quejá dirijo um triciclo motorizado há anos; acho que falei isso paratranquilizá-lo quando ele me deixou fazer os test drives.

O prazo de entrega é de três semanas, então só posso começar aaterrorizar as ruas com meu monstro vermelho depois de meus diasde férias com Evert. Ainda preciso me informar sobre o seguro.Estranho que o vendedor não tenha falado nada a respeito; emgeral, isso não é bom sinal.

Vou dar uma passada no quarto do sr. Hoogdalen para perguntarsobre os diversos acessórios que podem ser fornecidos por seufilho, aquele que é dono de oficina. Estou ansioso por minhamobilidade reconquistada.

No âmbito da luta contra a demência, Grietje fez junto comigodois novos bilhetinhos que irá sempre levar consigo:

1. O que devo fazer se eu me perder?2. O que devo fazer quando não souber mais quem é certa

pessoa?As duas cartinhas começam com: “Não me leve a mal, mas eu

ando muito esquecida...”.

Domingo, 28 de julhoSugiro que os bombeiros, caso a onda de calor continue, sejam

acionados para manter os idosos frescos. Não só as reclamaçõessobre o calor tornaram-se tão insuportáveis quanto o próprio calor,mas outro morador faleceu. É o quarto em uma semana. Que eusaiba, é um recorde. Também desta vez, felizmente, tratava-se deum vago conhecido, o que me dispensa da obrigação decomparecer ao enterro.

Este edifício tem aproximadamente quarenta anos e, além detoldos, não possui nenhuma instalação para manter os moradoresfrescos. “Velhinhos sempre têm frio”, o arquiteto deve ter pensado.Dentro do prédio, no momento, às vezes ameaça chegar a mais detrinta graus. Estão sendo comprados aparelhos portáteis de arcondicionado e instalados ventiladores para nos manter vivos, maso efeito sobre a temperatura por enquanto ainda é pequeno.

Minha amiga na toca do leão fez saber que a diretora está commedo de que cheguemos aos jornais com nossas cifras de morte, seisso continuar assim. E para o final de semana estão previstastemperaturas acima dos trinta.

Segunda, 29 de julhoA companheira de idade Rita Reys morreu. Acabo de fazer uma

pequena pesquisa: todos a conhecem, mas ninguém jamais escutouum de seus discos. Dibidubiduba, dadadibadu.

Estão reclamando muito da comida. Ainda mais que o normal.Todos acham que o novo cozinheiro faz pratos sem sal e que temcompaixão demais pelas pessoas sem dentes: cozinha tudo atévirar papa. Dá para comer de canudinho. Cada vez mais residentestrocam sua papa por pratos prontos para esquentar no micro-ondascomprados no supermercado.

O problema é que ninguém tem coragem de liderar uma rebeliãocontra a cozinha, e o risco de que alguém se ateie fogo em protestoé desprezivelmente pequeno, ainda que seja porque a maioria tremedemais para conseguir acender um fósforo.

Falei sobre isso com alguns amigos do clube para ver sedeveríamos enviar uma carta sobre a comida, mas decidimos darprimeiro “aos outros” a chance de sobressair. Iremos apontar essapossibilidade aos maiores queixosos.

Temos dois moradores, sr. Graftdijk e sra. Delporte, que possuemações. Não deve ser muito, ou não estariam aqui, mas ambossempre dão bastante destaque a isso. Os dois têm em conjunto umaassinatura do Het Financiele Dagblaad e procuram ali dicas deações que irão subir como foguetes. Quando sofrem perdas, é puroazar; lucros são graças a sua excelente visão de mercado. A notíciade que no passado um macaco conseguiu tão bom desempenho deinvestimentos quanto um especialista da Bolsa de Valores seminformações privilegiadas foi um golpe.

— O macaco teve sorte — disse Graftdijk, azedo.

Terça, 30 de julhoDuas mil internações de emergência por ano após acidentes com

scooters para idosos. Eefje veio me trazer um recorte de jornal comessas duras cifras depois que contei orgulhosamente para ela sobrea compra do Élegance 4, o Saab entre os quadriciclos motorizados.

A maioria dos acidentes acontece sem que haja um opositordireto, a não ser que se considere o meio-fio nessa categoria. Voltae meia se esbarra ali.

Estima-se que no ano passado havia trezentos e cinquenta milscooters para idosos na Holanda, então a quantia de duas milinternações nem é tão ruim, dada a constrangedora inabilidadedemonstrada por velhinhos motorizados. Errar é humano, mas não étão difícil assim aprender a pisar no acelerador e no freio semconfundir um com o outro. Sou favorável à habilitação obrigatória. Eparte do exame teria que ser feita num supermercado bemmovimentado.

Modéstia à parte, sou um motorista habilidoso. Uma vez trabalheipor um ano conduzindo uma empilhadeira. Participei de váriascompetições com colegas. É verdade que foi há muito tempo, masainda tenho a manha.

Durante os test drives, percebi que frequentemente olham commuito desprezo para nossas cadeiras motorizadas. Eu compreendo.

Uma mulher muito gorda, não tão velha, ficou entalada com seutriciclo no acesso ao caixa da perfumaria Kruidvat. Não podia ir nempara frente nem para trás. Claro que não foi culpa sua ter ignorado aenorme placa de que havia uma “passagem larga” um poucoadiante.

Quarta, 31 de julhoAlguns anos atrás, um casal belga fez eutanásia em conjunto. Ele

(oitenta e três) tinha câncer terminal; ela (setenta e oito) tinhagraves problemas causados pelo envelhecimento e nenhumavontade de continuar vivendo. Deixaram este mundo de mãosdadas. Tem algo de romântico.

O ministério público iniciou na época um inquérito para descobrirquem tinha ajudado esses dois amantes a descansar suavemente.Não acredito que tenham encontrado o suspeito do ato de caridade.

Lembrei-me disso quando li que, também na Bélgica, um velhocasal tinha caído junto da escada. Ambos morreram, é muitacoincidência. E provavelmente tão melhor do que se um tivesseficado para trás com um quadril quebrado e uma fratura na base docrânio. Coxeando por anos, até que a doce morte aparecesse.

Eu mesmo já andei me informando algumas vezes aqui e alisobre a maneira mais simples de sair da vida sem deixar muitabagunça para trás. Sempre sob a garantia enfática de que nãotenho planos nessa direção, mas que seria “para o caso de...”. Oresultado era sempre: olhares assustados e poucas dicas práticas.O que me faz lembrar que devo falar sobre isso com meu geriatra.

Quinta, 1o de agostoEvert está o tempo todo exibindo sua prótese e faz disso um

verdadeiro show de tirar e pôr a perna falsa.— Ela está apertando um pouco, vou deixá-la descansar ali um

instante. — Então coloca sua meia perna de plástico na mesa, entreas bolachinhas.

Após diversas advertências dos funcionários, a diretora veiopessoalmente lhe dizer que nos espaços comuns sua perna tem queficar no lugar.

— Ah, tem? Está escrito em algum regulamento ou algo assim?Stelwagen por um momento hesitou em reagir, então olhou para

ele, impassível, e foi embora. Ela não pode ser subestimada comoestrategista. Comete poucos erros e age de maneira certeira. Nuncarevela suas cartas, demonstra pouca emoção e deixa que outrosfaçam o trabalho sujo. Ainda não consegui descobrir nenhum pontofraco.

Anja me entregou uma pilha de papéis hoje de manhã. Nossopróprio Wikileaks. Vou dar uma olhada em todos à tarde. Para umestudo mais aprofundado, vou levá-los comigo para Uden.

Hoje à noite, baralho com Evert. Ele criou um elaborado sistemapara indicar qual será o naipe do trunfo.

— Só em caso de emergência e com certos oponentes —acrescentou, justificando-se. Meu caráter íntegro se opõe a isso,mas estou disposto a abrir uma exceção se jogarmos contra o sr.Bakker ou a sra. Pot e estivermos prestes a perder. Às vezes épreciso deixar os princípios de lado por uma causa maior.

Sexta, 2 de agostoOs documentos secretos vazados não são tão chocantes à

primeira vista. Mas alguns detalhes imperdíveis deverão vir à tonacom uma análise mais aprofundada.

Nossa espiã entregou:1. As atas das cinco últimas reuniões da administração.2. O regulamento da casa.3. Uma pilha de memorandos internos.4. O protocolo no caso de falecimento de moradores.5. Instruções para os funcionários.Levei uma série de cópias para Eefje. Senti-me observado por

todos os cantos enquanto fazia as fotocópias no supermercado e,por causa dos nervos, deixava cair constantemente os papéis. Euseria um espião desastroso.

Não sei bem o que devemos fazer com nosso advogado, quetenta conseguir pelas vias legais documentos que nós agora temosem posse “através de fonte confiável”, ainda que ilegalmente.

Evert e eu fomos os perdedores no jogo de baralho, e foi melhorassim. Já não somos lá muito populares e não se fazem amigosvencendo um torneio de carteado. A inveja infantil de tudo e maisum pouco toma proporções doentias em alguns idosos. As pessoasjá não se suportam, que dirá quando alguém ganha o primeiroprêmio no baralho, mesmo que o prêmio continue sendo umsalsichão de fígado.

O lema desse grupinho de invejosos parece ser: “Como possodificultar minha vida ao máximo?”. Como se apenas ser velho já nãotrouxesse aborrecimentos suficientes.

Sábado, 3 de agostoAssim como antigamente, estou um pouco nervoso por ficar uns

dias na casa de outras pessoas. Faz doze anos que não saio deférias.

Minha maleta dos anos 1970 estava com um mofo acinzentado,provavelmente também dos anos 1970. Estava mais que na hora deme modernizar: uma nova mala com rodinhas está pronta na portada frente. Um modelo bonito e resistente, no qual dá até parasentar-se no caso de pés cansados.

Jan, o filho de Evert, vem nos buscar daqui a uma hora e, então,vamos para Brabant. Segundo Evert, Jan está muito animado, e suanora, Ester, já está estressada há três dias por causa da chegada deseus hóspedes anciãos.

— Acho que ela vai precisar de quase uma semana para seacostumar a nossa presença; portanto, mais ou menos até o dia dea gente ir embora.

Senti-me incomodado por antecipação com isso, mas, segundoEvert, não era nem um pouco necessário.

— Ela está sempre estressada com alguma coisa; se não fossepor nossa chegada, seria por causa do gato do vizinho.

No caso, talvez por nós e também pelo gato do vizinho, porqueMo vai junto e ele detesta gatos.

Agora vou pensar pela última vez no que posso ter me esquecidode pôr na mala.

Volto a escrever na sexta-feira, 9 de agosto, se não houvernenhum imprevisto.

Sexta, 9 de agostoUden, todos têm que conhecer! Foi muito legal. Uma agradável

quebra na remansosa rotina. Mas também estou contente por estarde novo em casa. Meu apego a este mundinho tranquilo de umacasa de repouso é maior do que eu pensava, lamento confessar.Com o passar dos anos, diminuiu a capacidade de me adaptar comfacilidade às situações. Achava que eu tinha um espírito maisflexível. Mas, depois de cinco dias, já sentia falta de um quartinhonuma casa cheia de gente velha. Eu me consolo com o pensamentode que sou um pouco menos intransigente que a média de meuscolegas de casa.

Jan, o filho de Evert, é muito parecido com o pai. Um caraincrivelmente simpático. Mas, depois de uns cinco dias, chega omomento em que a gente pensa: na verdade, aguentar um Evert jáé mais que suficiente. Ainda bem que era mesmo hora dedespedidas.

Demos muita risada, todos os dias fomos para algum lugar,jogamos baralho, minigolfe, banco imobiliário, e filha e filhoadolescentes nos ensinaram rudimentos de Wii. Abriu-se um mundonovo para mim. Pena que a partir de hoje ele está novamentefechado.

Ester, a esposa de Jan, a princípio temia uma semana difícil. Seumarido atrapalhado e seu sogro, mais atrapalhado ainda, juntos emsua casa arrumada, elegante e imaculada parecia uma tarefa difícildemais. Meu papel – esse era o acordo com Evert – era amansá-laum pouco. Deu certo. Para mim, ao lado de dois ursosindomesticados, não é difícil ser o senhor charmoso, cortês erefinado.

— Agora pode parar, velho bajulador — sussurrou Evert algumasvezes para meu lado —, senão eu vou vomitar!

Sábado, 10 de agostoPensei num passeio para o clube: um workshop de golfe. Dizem

que golfe é um esporte muito adequado para pessoas mais velhas,ainda que eu me pergunte se isso também vale para anciãos.Sinceramente, acho que não, mas minigolfe me pareceu um poucoabaixo de nossa dignidade.

Hoje de manhã liguei para o campo que fica aqui perto. Expliqueiquem somos e o que queremos: uma tarde de prazer com um toquede desafio. A mulher ao telefone me escutou amigavelmente e disseque poderia organizar algo para mim. Assustei-me um pouco com opreço: cinquenta e cinco euros por pessoa, com café e bolo, masainda sem vinho e petiscos.

— Não é nenhum problema — eu disse mesmo assim.Não sou bom em pechinchar. Nunca tenho coragem de tentar.Por esse valor seremos entretidos por três horas, com

explicações teóricas e práticas, mais um tempinho para jogar nocircuito de iniciantes. Parece-me bom o bastante para pagar umaquantia extra de meu próprio bolso, de forma que o preço sejaacessível a todos do clube. Vamos apelar mais uma vez, sutilmente,a minhas economias para calamidades, que ainda contam uns cincomil euros.

Estou meio apreensivo por Evert, mas a mulher me disse aotelefone que eles com frequência recebem inválidos para jogargolfe. Ela irá reservar dois carrinhos para nós. Por trinta euros.

Marquei para 14 de setembro.

Domingo, 11 de agostoAmanhã vou buscar meu quadriciclo novinho em folha. Estou

excitado como um rapazinho.Grietje veio ontem me presentear com um grande buquê de flores

e um vale-livro. Quando perguntei a que eu devia aquela honra, elame mostrou um livrinho sobre demência no qual havia sublinhadouma frase: “Por causa da doença, uma pessoa com demênciadificilmente reconhece tudo o que você faz para ele ou ela”.

— Estou agradecendo com antecedência.— Não precisava.— Não, não precisava, mas quis fazer mesmo assim.Fiquei comovido.Também pude ficar com o livrinho Como lidar com o Alzheimer .

Li-o e inclusive anotei algumas dicas úteis.Grietje também deu presentes para outras pessoas. Fiquei

sabendo disso quando fui tomar chá com Eefje.Nossos chazinhos são momentos muito agradáveis. Sem

pretensões: chá, alguma coisinha gostosa para comer, falar sobreamenidades e às vezes sobre algum assunto mais profundo. Hávezes em que ouvimos música ou trocamos ideia sobre um livro ouum DVD . Gostamos da companhia um do outro.

Segunda, 12 de agostoPeguei meu novo quadriciclo e fui para casa dirigindo. Contente

como uma criança com sua bicicleta nova. Ele anda que é umabeleza. Experimentei à vontade em um parque todo tipo demanobra. Subir na calçada, descer da calçada, curva fechada àesquerda, curva fechada à direita. Acelerar, frear. Andei um poucona grama, um pouco na lama. Segunda de manhã, então, não haviavivalma. Ele é relativamente veloz, mas quero turbiná-lo umpouquinho. Segundo nosso especialista em scooters para idosos, osr. Hoogdalen, é fácil fazer isso. Combinei com ele de ir na semanaque vem até a oficina de seu filho, na região leste de Amsterdã.

Estou procurando algumas ideias de viagens para idosos emrevistas e na internet. A oferta é grande. Férias de alto nível para aterceira idade organiza uma viagem de doze dias para a Suíça pordois mil euros. O nível certamente se reflete no preço. Tem que sermais curta e mais barata. Vou me informar nas próximas semanassobre o preço de um micro-ônibus de luxo com motorista, para novepessoas, por cinco dias. Depois só preciso encontrar um belo hotelcom um preço convidativo na região de Champagne, e está dada alargada para a primeira viagem do Tovemantomo.

Vou convidar Eefje como co-organizadora.Perspectivas interessantes são importantes para manter a

vitalidade.

Terça, 13 de agostoEm caso de sofrimento ou de alegria na família real, nossa casa

sempre veste a cor laranja. A morte do príncipe Friso provocousincera tristeza entre os moradores, ainda que o alívio fizesse maissentido. Não desejo a ninguém ter que viver por anos e anos comuma pessoa querida que está praticamente morta.

Fui ao geriatra hoje de manhã. Perguntei sobre os sintomas deAlzheimer e o que se pode fazer. A resposta a esta última perguntanão é muito animadora: quase nada.

O médico comentou que, segundo ele, as coisas não estavam tãoadiantadas comigo, e eu expliquei que perguntava por causa deuma boa amiga. Ele sugeriu as mesmas medidas que nós, nessemeio-tempo, de modo geral, já tomamos. O que me deu algumasatisfação.

Em seguida, ele me examinou e concluiu que minha decadênciaestá indo “num ritmo aceitável”.

— O que é aceitável? — perguntei.— Bem, uma escala descendente tranquila, em que a qualidade

de vida ainda se mantém supostamente suficiente por alguns anos.Depois ele me aconselhou novamente a usar fraldas.Perguntei o que ele achava da qualidade de vida de um velho que

usa fraldas.Ele conhecia pessoas que, apesar da fralda, eram “bastante

felizes”.Depois ele verificou diversas juntas desgastadas (“não há muito

que fazer”) e, por fim, os medicamentos foram revistos e ele fezajustes aqui e ali.

Depois de engolir em seco três vezes, perguntei qual era sua

posição em relação à eutanásia.Ele disse que não se opunha, mas que também não era grande

defensor.— Mas posso contar com o senhor caso um dia, deliberadamente,

eu peça para ter um fim assim? — Pronto, perguntei.Ele esperou um pouco e fez um gesto pensativo com a cabeça,

dizendo que sim.Houve um instante de silêncio. Então, ele sugeriu que

conversássemos mais a respeito numa próxima consulta.— Essas coisas exigem tempo.Esqueci-me de perguntar como velhos reagem à cocaína. Eu

gostaria de experimentar uma vez.

Quarta, 14 de agostoEm Kootsterhilke, um idoso caiu no canal Prinses Margriet e se

afogou. Que isso sirva de aviso, Groen! Não vá pensar que você éNikki Lauda e pode sempre rodar por aí em marcha “lebre”.

Ontem à tarde fiz um passeio pela região norte em minha novaFerrari. Vi partes do bairro onde nunca havia estado. É um alívionão estar mais limitado a meu raio de caminhada nem serdependente do ônibus. Já devia ter feito isso há alguns anos. Mas ébom ter cuidado, pois o perigo pode vir de todos os lados,principalmente com as bicicletas e os ciclomotores. Estranhamente,não é preciso temer tanto os carros, e pedestres eu posso encarar.Mas é preciso ficar de olho nos jovens de ciclomotor ou bicicleta,porque acham que são os reis da ciclovia. Vê-se nos olhos deles odesagrado com scooters para idosos.

Preciso comprar logo boas roupas impermeáveis. Ontem fiqueiquinze minutos embaixo de um túnel de bicicletas porque saí sócom uma jaqueta de verão e caiu o maior toró. Daí é o caso demanter a calma e não sair logo se ensopando na chuva depois decinco minutos porque não tenho paciência para esperar por maistempo.

A gente também vê esse fenômeno na hora de atravessar a rua:primeiro espera-se calmamente por tudo e todos; aí se o sinaldemora muito, por impaciência, atravessa-se bem quando é maisperigoso.

Quinta, 15 de agostoFoi criada uma divisão do OPA em nosso asilo.“Os idosos estão na iminêcia de serem os maiores prejudicados

com os cortes na assitência social que serão impostos as intânciaslocais em todo o país. Por isso a fundacão na nossa casa derepouso de um departamento do OPA , o Patido dos Idosos deAmsterdã, para lutar por nossos intereses locais.”

Se o número de erros de digitação for um reflexo da qualidadedessa divisão do partido, podemos nos alegrar.

Os srs. Krol e Nagel, do 50Plus, não estão nem um poucointeressados em participar das eleições municipais de março de2014. Eles já veem o que está por vir: um monte de vovôs e vovósdespreparados e oportunistas que em breve estarão se atropelandomutuamente pelas câmaras municipais holandesas. Eles nãoquerem que seu partido se preste a isso.

Principal proposta de nossa divisão do OPA : mais bancos paraidosos.

O 50Plus pode se tornar uma peça importante no jogo político. Opartido pode contar com o apoio de um grupo grande deseptuagenários desfavorecidos. Eles garantirão a força dosnúmeros. A força de administração e organização virá da elite queestá na cúpula, que hoje tem as rédeas nas mãos e tem entrecinquenta e sessenta e cinco anos. Parte dessas pessoas vairealmente querer se envolver mais tarde com os interesses de quemtem mais de cinquenta anos. Mesmo que apenas para driblar otédio.

O grau de civilização de um país pode ser visto pela maneiracomo são tratados os idosos e os mais fracos. A forma burra e

desrespeitosa como a assistência a idosos é desmantelada naHolanda cria terreno fértil para um populismo grisalho. Vivemos emum dos países mais ricos do mundo, mas, dia após dia, amensagem é: a assistência social tornou-se cara demais.

Sexta, 16 de agostoFui parar num arbusto com meu quadriciclo.Depois do jantar, resolvi dar uma voltinha pelo parque e me distraí

olhando ao redor para uns vinte coelhos que estavam espalhadospelo gramado fazendo sua refeição. Quando olhei de novo parafrente, um coelhinho estava a um metro da roda dianteira. Devo terreagido bastante depressa, porque um segundo mais tarde euestava com a cabeça presa entre os galhos. Primeiro olhei para verse não havia restos de coelho sob as rodas, depois manobrei comcuidado minha cadeira motorizada para fora do arbusto. Nisso, fuigentilmente ajudado por uma bonita senhora de bicicleta que estavamais assustada do que eu.

Ontem também fui tomar café com Anja no escritório. Ela estámuito ocupada gerenciando todos os últimos acontecimentos.Discute-se muito sobre a reforma do edifício. A administração estáconsiderando transformar parte da casa de repouso em enfermaria,nosso mercado crescente, digamos. Ela também ouviu alguma coisasobre um aumento significativo dos custos de representação denossa diretora. Embora ela já seja tão representativa com seusmodernos terninhos em tons pastel.

Na segunda-feira temos o próximo passeio do clube. Saída às13h. Traje passeio. Organizadora da vez: Eefje.

— É uma coisa que tem muito a ver comigo — entregou comoenigma.

Já era hora de acontecer alguma coisa de novo.

Sábado, 17 de agostoQuarenta e seis por cento dos idosos pensam que as pessoas

têm direito de pôr fim à própria vida de maneira humana seacreditarem que já viveram o suficiente. Catorze por cento dosidosos acham que sua vida na verdade já está concluída. Osprincipais motivos para querer cair fora são medo de ficar demente emedo de cada vez mais dores e problemas. Pesquisa feita pelaemissora Max.

Portanto, estatisticamente, um em cada sete moradores destacasa não vê nenhum problema se o Anjo da Morte vier buscá-lo.Passando os olhos no grupo durante o café, não saberia apontarcom certeza quem seriam eles.

Foi introduzida uma nova regra: os moradores não podem maisusar a escada, a não ser que tenham permissão dos funcionáriospara isso. Na semana passada a sra. Stuiver caiu da escada equebrou a clavícula, por isso. (Quando ouvi essa história, pensei: sóa clavícula? Não foi tão mau.)

Regras são, por assim dizer, sempre para o nosso bem. Mas, éclaro, servem principalmente para diminuir os riscos e evitar que acasa de repouso seja acusada depois.

Talvez fosse melhor a sra. Stuiver ter pegado o elevador, mas elajá usava quatro lances de escada diariamente havia cinco anos e semantinha em forma assim. E enquanto a sra. Stuiver não fordemente, ela mesma deve decidir. Os funcionários só deveriamcuidar para que a escada não esteja salpicada de cascas debanana.

Domingo, 18 de agostoExiste um protocolo para quando um morador morre.Ele determina, entre outras coisas, que não deve haver nenhuma

comunicação sobre a causa da morte. No caso de perguntas, osfuncionários devem encaminhá-las para o médico que atendeu aopaciente ou para a direção, que, então, reencaminham um para ooutro. Quando alguém insiste muito, fazem saber que por motivosde privacidade não é possível dar informações sobre a causa damorte. Qualquer menção a suicídio é estritamente proibida.

O protocolo também determina que a família sejadiplomaticamente pressionada a logo esvaziar o quarto da pessoafalecida.

E a direção tem que supervisionar para que nada seja roubado.Isso é novo. Aparentemente, no passado algumas coisasdesapareceram.

Sei que alguns residentes às vezes prometem coisas a seuscuidadores, tipo “se eu morrer você pode ficar com isto e aquilo”.Isso é organizar em vida as brigas com os herdeiros.

Não consegui encontrar no protocolo nada que obrigassecomparecimento a enterros e cremações quando acontecemdurante horário de trabalho. Achei que era assim. Mas, na verdade,é o contrário: funcionários não são liberados para enterros. Sequiserem comparecer, têm que descontar de suas horas livres.

Bom, já me parece suficiente sobre morte para um domingo demanhã.

Segunda, 19 de agostoHoje cedo passei uma hora cantando pneu com meu quadriciclo.

Na verdade, mais assoviando pneu, porque um dos aspectosagradáveis desse meio de transporte é que quase não faz barulho,flutua. Desta vez visitei o parque Vliegenbos, que é chamado assimem homenagem a certo W. H. Vliegen, que com certeza foi umhomem importante para ter todo um bosque batizado com seunome.

Fazia pelo menos uns dez anos que eu não ia lá. É bonito e muitobom para exercitar manobras, pois não há vivalma a quem atropelar.Coelhos, sim. Fiz mais um arranhão na pintura numa curva fechadademais. Não preciso mais me preocupar com arranhões eamassados, porque já tenho suficientes. Preciso dirigir maisdevagar. Fora do asfalto, o desempenho de meu quadriciclo não édos melhores.

Perguntei a Eefje se não seria uma possibilidade também paraela.

— Não, não é para mim. Saio com prazer para passear com você,mas não numa coisa dessas.

Pena.Mas sem dramas. Preciso me trocar para o programa de hoje à

tarde. Traje passeio.Temos todo o tempo do mundo para passear, mas pouco traje

passeio. Ou qualquer roupa que se usa para passear éautomaticamente traje passeio?

Terça, 20 de agostoEmbora eu tenha me esquecido de levar uma fralda extra, o dia

ontem foi delicioso.Eefje tinha dito que o passeio tinha muito a ver com ela. Eu devia

ter adivinhado que nossa ornitóloga amadora nos levaria ao parquede aves Avifauna. E, embora eu não tenha nenhum interesseparticular por pássaros (em geral os acho ariscos e vejo um armaldoso em seus olhinhos de miçanga), me diverti demais. Evertestava novamente em boa forma e contava a cada pássaro comopodíamos prepará-lo da maneira mais gostosa e que vinhoharmonizava melhor. Antoine vinha, então, seriamente, comalternativas culinárias. Antoine e Ria às vezes são um poucoingênuos e nem sempre se dão conta de quando alguém estátirando sarro deles. Mas quando percebem não acham ruim.

Eefje não se deixou distrair com nada e deleitou-se com seusamiguinhos emplumados.

Grietje se perdeu algumas vezes, mas pareceu nem dar bola.Edward ficou extasiado quando, usando uma luva especial, pôde

segurar um falcão, e Graeme foi simplesmente Graeme.Depois de uma volta pelo parque com um guia, beliscamos

algumas comidinhas, tomamos um drinque e saímos para umpasseio de barco pelo cinturão verde da Holanda, também comaperitivos e drinques.

Por fim, chegamos em casa bem a tempo de nos reunirmos comos outros à mesa de jantar.

Quarta, 21 de agostoÉ impressionante o quanto a inveja reina aqui. Após um ótimo

passeio do clubinho, a recepção de nossos colegas passoupreponderantemente de fria a gelada. Que outros tenham tido umdia muito mais divertido do que eles é para muitos difícil de engolir.Hoje, portanto, as bocas mal se abrem a nossa volta.

Algumas pessoas se tornam mais suaves e sábias com o passardos anos. Outras, mais duras e estúpidas.

Na média, isso se equilibra. Mas os mais cordiais em nossa casatêm poucas armas contra a fofoca, o queixume e a inveja além desentar-se em outra mesa. E isso é o que acontece. Cada vez maisnosso clube Tô-velho-mas-não-tô-morto fica em uma mesa à parte.Isso cria uma ligação ainda mais forte para sermos juntos o inimigocomum. Mas rivalidade é contagiosa. Se não tomarmos cuidado,logo também estaremos implicando com “o resto”.

Os funcionários lidam com as desavenças como professores dejardim de infância, fazendo tudo para manter a paz.

— Sr. Duiker (Evert), o senhor não pode tentar ser mais simpáticocom a sra. Slothouwer? Venha se sentar um pouco aqui com ela.Podemos tomar café juntos.

“Na verdade, tenho mais vontade de enfiar um biscoito nagarganta dela até que ela sufoque lentamente e morra”, ouço Evertpensar.

Evert realmente não está entre os cordiais.Para que você não ache que este lugar é apenas um poço de

cobras: aqui também moram pessoas amáveis, simpáticas ezelosas. Só que elas não se destacam muito.

Quinta, 22 de agostoImagine ter que passar uma tarde inteira jogando dama com o

filho do sr. Bakker. Ele é ainda mais tosco e tapado que o pai.A casa de repouso Vierstroom obrigou “moralmente” os parentes

de novos residentes a prestar pelo menos quatro horas de serviçovoluntário por mês, como caminhadas com moradores, jogos ousimplesmente conversar e fazer companhia. Deus me livre dosparentes dos outros, com conversas obrigadas e interesse forçado.A solidão às vezes é muito pior quando se tem companhia.

Do experimento com o voluntariado compulsório, concluiu-setambém que alguns parentes, uma vez dentro, não vão maisembora. Um em cada três moradores envolvidos no período de testetrouxe um parente que ficava mais de vinte e oito horas por semanacirculando pela casa de repouso. Se uma dessas pessoas por acasose ocupa de você e você a odeia, daí é o caso de se jogarvoluntariamente embaixo de um bonde.

Por que só os novos moradores precisavam fornecer ajudantes,isso eu não sei. Talvez porque de outra forma os mais velhos seriamafogados por um mar de cuidados.

A diretora Stelwagen tem aparecido pouco nos últimos tempos.Segundo Anja, seriam mais reuniões com dirigentes superiores. Elanão soube detalhes a respeito. Tem recebido poucos relatórios ememorandos ultimamente.

Sexta, 23 de agostoRecebi uma multa! Passei com meu quadriciclo no sinal vermelho

bem quando um policial estava atrás de mim de mountain bike. Ofato de eu ter virado à direita, sem oferecer nenhum perigo a mimmesmo nem a outros, dirigindo a seis quilômetros por hora, não foiconsiderado um bom argumento pelo policial.

— Vermelho é vermelho! — continuou ele com certo orgulho emsua voz: — Acho que o senhor é a pessoa mais velha que já advertiem minha carreira.

Seu companheiro da brigada ciclista assistiu a tudo com certodesconforto. Certamente não vai contar essa história em festas deaniversário. Não pude deixar de perguntar:

— Seu colega não tem nada melhor para fazer?Não, ele não tinha.Evert quase caiu de sua cadeira de tanto rir quando eu contei.

Agora o asilo inteiro já sabe. Virei um herói ou um hooligan, asopiniões estão divididas.

Terça-feira acontece o passeio de Grietje. Durante a organização,por garantia, ela chamou Graeme para dar uma olhada com ela,porque tinha medo de que pudesse cometer erros. Elafrequentemente se confunde com hora e lugar e sua capacidade deavaliação deixa um pouco a desejar. Na semana passada, para avisita de uma irmã e uma sobrinha, ela comprou dois quilos debolachinhas. Confundiu com duzentos gramas, o que já é bastantepara três pessoas. Ela até achou que o pacote era grande demais eum pouco caro, mas a mulher da padaria agiu como se dois quilosde bolachinhas sortidas não fosse nada de mais.

Ela mesma acabou dando risada, ainda que com relutância.

Todos os amigos e os conhecidos ganharam um pacotinho debolachas.

Sábado, 24 de agostoAs coisas já não vão tão bem com a Primavera Árabe. Nenhuma

estação do ano é adequada para exprimir a atual tragédia. Osárabes não devem esperar muito interesse por sua causa aqui nesteasilo. A opinião geral é a de que, se os islamitas têm tantanecessidade de fazer uma guerra santa, melhor que façam unscontra os outros. Ninguém mais vai se incomodar com isso.

O fato de que viagens de férias para as pirâmides tiveram que seranuladas causou mais comoção do que milhares de mortos.

“Meu filho perdeu seu dinheiro suado. Dois mil euros jogados forano Nilo!”, segundo a sra. Deurloo.

Porém as fotos de crianças pequenas sufocadas por gasesvenenosos finalmente convenceram nosso pequeno mundinho aquide que há realmente algo abominável acontecendo.

Reclamamos muito de nossa assistência a idosos, mas tambémcom o National Health Service, na Inglaterra, nem tudo são flores:vinte hospitais foram autuados por dar comida e bebida insuficientesa pacientes idosos. Provavelmente, alimentar os velhinhos tomavatempo demais. Outra reclamação é de que as campainhas dealarme eram colocadas fora do alcance dos pacientes. Isso deve terdiminuído muito o número de queixas.

Mas nem tudo é tristeza e melancolia: o verão está lindo, e ontemfiquei quase duas horas com Eefje no terraço de um café.Companhia agradabilíssima para conversar, mas também para ficarem silêncio. Sem sentir nenhum desconforto. Simplesmente umatarde de felicidade. Voltamos caminhando bem devagarzinho.Desenterrei meu andador especialmente para a ocasião, porque elanão quer andar na garupa do quadriciclo por nenhum dinheiro no

mundo.

Domingo, 25 de agostoGrietje me mostrou uma foto do quarto de praia no Centro

Residencial de Assistência Jardim da Alegria. (Um nome assim logome deixa desconfiado.) O quarto foi especialmente preparado paraidosos dementes. Tem uma decoração que pega toda a parede compraia e mar, um sol artificial e gaivotas empalhadas. Ouve-se obarulho das ondas, e de vez em quando vem uma brisa doventilador.

Pacientes idosos ficariam mais calmos com isso.Grietje se perguntou se deveria comprar um biquíni novo e sorriu.— Ah, Henk, as coisas são como são. Ou melhor, serão como

serão. Vou aceitar da forma que vierem.Tenho cada vez mais admiração pela maneira como ela confronta

o futuro.Segundo ela, eu vejo a demência como a degradação total. Nisso

ela tem razão. Hoje eu me permiti uma espiadela (ilegal) na ala deenfermaria e vi três velhas babando e assistindo a um programainfantil com semblante totalmente inexpressivo.

Grietje disse que também entende perfeitamente as pessoas quenão querem se submeter a tal declínio angustiante.

Não encontrar mais o caminho dentro da própria casa.Não entender mais as palavras que lê.Não reconhecer mais as pessoas ao redor.

Segunda, 26 de agostoAnja vai ser dispensada com uma aposentadoria antecipada. Ela

acabou de ligar. Soava como se estivesse quase chorando dedecepção e raiva. Foi uma conversa rápida, ela não podia falarlivremente. Temo que ela tenha sido desmascarada comoinformante pela direção. Fico com pena dela e me sinto culpado.Assumiu riscos, em grande parte por minha causa.

Quinta-feira vamos almoçar juntos e, então, saberei mais.Isso afeta muito meu ânimo. Eu estava exultante (para meus

padrões) porque daqui a pouco vamos para o passeio organizadopor Grietje. Temos que nos reunir lá embaixo às duas horas.

Acho que é melhor só contar para Eefje amanhã.A cantora Jetty Paerl morreu. Acho que só estão se lamentando

por ela nos asilos. Durante a hora do chá, lembrou-se commelancolia de Jetty e da rádio Oranje.

— Ah... aqueles, sim, eram bons tempos — disse a sra. DeRidder, que pelo jeito esqueceu que os judeus têm uma opinião bemdiferente sobre isso.

— Não havia muitos alemães por aqui naquela época? —perguntou Edward, maldoso.

Bem, afora os alemães, eram realmente bons tempos, ela insistiu.O sentimento de que tudo era melhor antigamente se alastra de

maneira inabalável nos lares de idosos. Um consolo capenga parapessoas que se sentem marginalizadas.

Vou vestir roupas bonitas e escovar os sapatos e os dentes.

Terça, 27 de agostoÉ muito estranho que pessoas idosas nunca, ou quase nunca,

façam coisas normais, como por exemplo ir ao cinema. Fizemos ascontas e, somando os oito membros de nosso clube, já não vamosao cinema há mais de um século. No entanto, é um lazer tãosimples e barato.

Grietje escolheu um filme em 3-D, algo que nenhum de nósjamais havia vivenciado. Carros , na verdade um filme infantil, masnão havia nenhum outro em 3-D em cartaz. E lá estávamos nós, oitovelhinhos, com nossos óculos especiais no meio de umas quarentacrianças.

3-D é uma experiência especial da primeira vez. Principalmentedurante os quinze minutos iniciais, em várias cenas nosencolhíamos para trás em pânico quando algum carro vinha bem emnossa direção. O som também era em 3-D: por toda a nossa voltasoava a crepitação da pipoca. O que não estragou a diversão.

O filme só começou às 16h, e antes fizemos um extenso high tea. Por isso não foi problema termos chegado em casa só na hora dasobremesa. O cozinheiro tomou como ofensa pessoal. Problemadele.

Grietje foi coberta de elogios e agradecimentos. Foi comoventever o quanto ela estava radiante.

Estou preocupado com Anja. Tentei ligar para ela, mas nãoconsegui.

Mais tarde vou rodar um bom tanto com o quadriciclo. O climaestá maravilhoso. Vou passar na oficina do filho de Hoogdalen. Elevai turbinar um pouco meu veículo. Era para ter ido na semanapassada, mas Hoogdalen Júnior estava muito ocupado. Desta vez

posso esperar até que ele termine.

Quarta, 28 de agostoÉ mais grave do que pensei. Anja acredita que já vem sendo

observada há algum tempo. Tem quase certeza de que sua mesa foivasculhada e acha que a pilha de cópias de documentos daadministração, relatórios e memorandos que estava na gaveta podeter sido o motivo para a dispensarem. Embora a posse dessesdocumentos não fosse ilegal, sua compilação talvez tenha reforçadoa suspeita que já existia contra ela.

A diretora fez parecer que a concessão da aposentadoriaantecipada era uma recompensa por tantos anos de serviçosprestados.

Ela terá que parar no fim de outubro e ainda tem vinte dias deférias pendentes, então a partir de 10 de outubro não precisa maisvir. Pediram que esvaziasse as gavetas até essa data.

Anja está bastante abatida, e eu não tenho muito consolo aoferecer. Sinto-me tão culpado por tê-la transformado em espiã.Nossa diretora continua a me olhar de maneira complacente quandopassa por mim no corredor.

A velocidade máxima de meu quadriciclo agora é em torno devinte e cinco, eu acho. Ciclistas e um par de motoristas me olhamcom surpresa quando eu casualmente os ultrapasso. Estouapavorando um pouquinho nas ruas. Na verdade, eu deveria usarum capacete de motoqueiro. Assim também fico irreconhecívelquando passo como um flash. Não, brincadeirinha, deixe o ventosoprar em meus quatro últimos fios de cabelo.

Quinta, 29 de agostoIDOSOS VÃO PARA A CADEIA . Seria uma bela manchete.Uma prisão em Breda está vazia e um empresário traquejado, um

tal Aad Ouborg, achou que certamente poderia ser transformadanum abrigo de baixo custo, adequado para anciãos. Se o que estáno jornal for verdade, ele pensa que uma cela de onze metrosquadrados deve ser suficiente para dois idosos. Uns dois por trêsmetros por pessoa.

Eles já quase não se movem, Ouborg deve ter pensado, etambém não precisam de muita coisa.

Decerto não vai ter varanda com portas de correr. Uma janelinhapara a ventilação com certeza é o bastante.

O quarto mais barato deverá custar oitocentos e setenta euros.Pensei: isso deve ser por ano, mas não... é o aluguel de um mês.Sem alimentação, mas com um vago “pacote básico de assistência”incluído. Não, não é piada.

Isto é o que algumas pessoas neste país podre de rico queremfazer com os idosos: colocá-los numa prisão com uma demão depintura. Não as pessoas que atualmente já vivem em casas derepouso, dizem para tranquilizar. Seria mais para “novos” idosos,que de outra forma ficariam sozinhos ou teriam que dormir debaixoda ponte.

Ontem almocei com Anja.— Fui uma péssima espiã — murmurou.Eu a consolei com um grande buquê de flores. Não consegui

pensar em nada mais original.De certa forma, ela também estava aliviada porque logo estaria

livre daquele frio ambiente de trabalho. Brindamos a sua recém-

conquistada liberdade.

Sexta, 30 de agostoNosso advogado ainda está vivo. Falei com ele hoje de manhã.

Victor, como sempre, estava combativo e otimista, mas teve queadmitir que tínhamos sofrido uma pequena derrota com uma cartaenviada pelo comitê de análise de recursos, que irá lidar com nossorequerimento para tornar públicos os documentos da administração.Ela informa que o caso será avaliado em meados de janeiro de2014. O apelo para levar em conta a idade dos clientes já havia sidoconsiderado nesse prazo.

Victor ainda verificava se não haveria caminho mais rápido.— Continuem todos vivos, de qualquer forma, é meu sincero

conselho — disse ao concluir nossa conversa.Domingo de manhã vou fazer a travessia do IJ com minha cadeira

motorizada. Depois de alguns passeios pelos recantos da área nortede Amsterdã, chegou a hora de expandir as fronteiras e pegar abalsa. Estou ansioso para ver Amsterdã durante um dos rarosmomentos em que ainda é tranquila, domingo de manhã, por voltadas 9h. Os canais são, por assim dizer, feitos para passear.

Evert também está considerando comprar um modelo de scooterpara idosos. Não é de estranhar, pois ele mal consegue sair comsua cadeira de rodas. Ontem ele veio com dificuldade, trazendo nocolo o Mo, que não está podendo andar por causa de umainflamação na pata. E com uma cúpula de abajur no pescoço paraque não possa lamber a dita-cuja. Que dupla.

Sábado, 31 de agostoO projeto de lei que estabeleceria o direito a fraldas limpas foi

revogado. Bem quando eu preciso começar a usar fraldas! Em quetipo de país imbecil nós vivemos, onde é preciso regulamentar porlei que não se pode deixar os velhos andando o dia inteiro em seupróprio xixi e cocô? E não está bem claro por que a lei agora foirevogada. O Conselho de Estado, que emite pareceres jurídicos, dizque tudo na verdade já está regulado legalmente. Só não sabe dizera qual lei um idoso demente deve apelar para receber trocas defraldas extras. Eu mesmo espero já ter deixado tranquilamente avida muito antes de precisar passar o dia todo com a mesma fralda.

Ou... será que essa notícia também é inventada, assim como ahistória do asilo barato na prisão em Breda? (Pois é, naquela eucaí.)

Haverá uma tarde de informações sobre os planos de reforma. Aadministração não pode excluir a possibilidade de transferênciaforçada. Os motivos por trás disso não são claros. Mas percebe-seque de repente há pressa.

Essas são praticamente as últimas notícias das linhas inimigasque Anja pôde nos trazer clandestinamente. Ela decidiu usar demaneira proveitosa as semanas em que ainda estará no escritório,mesmo sabendo que está sendo observada. Agora ela já nãoprecisa se preocupar com eventuais consequências. A diretora nãotem nenhum interesse em crucificar nossa informante. Ela sabe quehá grande probabilidade de a publicidade operar a favor de Anja.

Domingo, 1o de setembroAqui nesta casa as pessoas se chamam simplesmente Piet, Kees,

Nel e Ans, não Universo, Tulipa, Felicidade ou Espada do Islã.Somos todos nascidos muito antes do tempo em que os pais

começaram a querer demonstrar na escolha do nome dos filhos oquanto eles são originais e modernos. Com todos os perigosimplícitos. Chama-se a filha de Tulipa, e ela acaba virando umenorme saco de banhas. Para isso, era melhor tê-la chamado deAns.

Hoje às nove da manhã eu estava na balsa com meu quadriciclo.Foi um belíssimo passeio por uma Amsterdã adormecida. É umprivilégio morar em uma das cidades mais lindas do mundo. Só queé preciso fazer uso desse privilégio, senão ele não vale nada. Fizisso pela primeira vez em anos e farei com mais frequência, se mefor dado o tempo. Andei quase o tempo todo na marcha “tartaruga”para poder olhar com calma ao redor.

Agora, mais uma vez atenção para coisas importantes: acomissão de moradores sugeriu que a contribuição aumentasse emdois euros de uma única vez para poder providenciar prêmios maisatraentes no bingo de Natal. Gerenciar é olhar para o futuro.

Segunda, 2 de setembroNão é fácil jogar uma horinha de bilhar no domingo à tarde. Existe

um sistema oculto de reservas. Finalmente, depois de algumainsistência e uma hora e meia de espera, nós – Graeme, Edward eeu – pudemos jogar das 16h40 às 17h20. A essa altura já tínhamostomado algumas doses, o que deixou o jogo mais solto.Infelizmente, no bilhar isso não é vantagem. Acho que ao todo nãochegamos a fazer juntos nem vinte carambolas.

No entanto, a loquacidade não diminuiu. Graeme contou belashistórias sobre antigamente. Ele é o caçula de uma família comcatorze irmãos e irmãs. Todos falecidos. Além disso, ele tem umfilho na Austrália e uma filha em Oude Pekela. Num ano ele vai como filho visitar a filha, no outro vai com a filha visitar o filho. Emjaneiro vai passar três semanas na Austrália.

— Isso me mantém seguindo, as viagens. — Balançamos acabeça em sinal de compreensão. E ele logo acrescentou: — E acompanhia de vocês aqui também, é claro.

Edward é uma figura um tanto triste. Tem muito a dizer, masinfelizmente é praticamente ininteligível. Depois de beber, então,completamente.

— É melhor você escrever, Ed. — Essa foi a conclusão de Evert,que se juntou a nós para um drinque.

Ele faria isso. Prometeu que nos mandaria uma carta todas assemanas. E nós podíamos escolher se depois abordaríamos oconteúdo por escrito ou oralmente.

Vamos jogar bilhar com mais frequência.Graeme vai reservar um horário fixo, porque ele é quem tem o

melhor contato com a secretaria do clube de bilhar.

Terça, 3 de setembroDepois de amanhã, é meu aniversário. Pela primeira vez em

anos, tenho de novo amigos suficientes com quem comemorar.Convidei o clube Tô-velho-mas-não-tô-morto para vir tomar umdrinque à noite. Perguntei a Ria e Antoine se poderiam, por minhaconta, preparar alguma coisa para beliscar. Assim, faço um agrado aeles e a mim mesmo. Naturalmente, tem que ter algumas frituras –não existe coquetel sem croquete –, mas no mais eles têm cartabranca.

Nada de flores, nada de presentes, insisti com todo mundo. Estoucurioso para saber se vão obedecer.

Grietje garantiu que viria, mas me fez imediatamente prometeruma coisa para o futuro:

— Quando eu estiver demente, não vá ficar me carregando paratoda parte contra minha vontade, combinado?

— Como assim?Ela explicou que é um grande mal-entendido achar que pessoas

dementes têm que se divertir a todo custo, ser tiradas de sua apatia.Aí são levadas para um dia de passeio, mas não têm a menor ideiade onde estão, quem são as pessoas que falam com elas tãoanimadas o tempo todo e por que têm que entrar naquele trenzinhoestranho. Ainda recebem comida esquisita e, no final, são beijadaspor completos estranhos.

— Um velhinho demente desses precisa de três dias para sereequilibrar novamente — suspirou Grietje. — Portanto, quando omomento chegar, pode simplesmente me deixar sentada em minhacadeira de frente para a janela.

Prometi a ela que faria isso.

Quarta, 4 de setembroUm de nossos porteiros é só um pouco mais novo que os

moradores. Mas sempre se refere aos “velhinhos” e se comportacomo se fosse dono do pedaço. E ele não é porteiro, mas“recepcionista/segurança”. O que mais gosta de fazer é chamar aatenção de quem peca contra as regras da casa.

Fui dar uma voltinha com Evert, que tem o costume desimplesmente passar com sua cadeira de rodas bem quando a portaautomática está quase fechando diante de seu nariz. Então ficapreso no meio, e as portas se abrem de novo automaticamente. Issoera uma pedra no sapato do porteiro Post (é assim que ele sechama).

— O senhor tem que ir mais depressa ou esperar mais — falou aEvert, em tom rígido.

Evert olhou para cima bem devagarzinho, espremeu um pouco osolhos, como se quisesse ver melhor, e então disse:

— Tem uma meleca pendurada em seu nariz.Eu estava do lado e quase engasguei.Houve confusão.O porteiro deveria ignorar aquele comentário? E se fosse

verdade?Passando a porta, ainda nos viramos por um instante. Ele olhava

para o dedo, que tinha ido inspecionar.— Um pouco para a direita — gritou Evert.Comprei quantidade de bebida suficiente para três aniversários.

Melhor sobrar do que faltar. Com um amigo como Evert, mais cedoou mais tarde vou beber tudo.

Quinta, 5 de setembroNasci em 5 de setembro de 1929. Celebro hoje meu octogésimo

quarto aniversário. Evert estava em minha porta às 9h, sentado,para ser mais preciso, trazendo no colo uma bandeja com um belocafé da manhã. Uma imagem comovente. Croissants, torradinhas,pão, chá, suco de laranja e prosecco. A maior parte, ele mesmocomeu e bebeu, depois de cantar um “Parabéns pra você”incrivelmente desafinado. Não sou de comer muito no café damanhã.

Para hoje à noite, peguei emprestadas algumas cadeiras doandar de baixo. Ficar em pé numa festa de aniversário não mepareceu conveniente para nossa idade.

A maioria dos moradores comemora o aniversário lá embaixo, nasala de recreação. Os convidados sentam-se à mesa grande erecebem uma fatia de bolo, enquanto os outros residentes procuramse sentar o mais perto possível, na esperança de que sobremalgumas migalhas. Uma imagem patética. Fazer algo assim – nempensar.

Melhor ficar mais apertadinho no quarto, mas pelo menos sembisbilhoteiros.

Reservei o workshop de golfe para oito pessoas na sexta-feira,dia treze. Espero que faça um tempo bonito como hoje, daí achance de termos um passeio bem-sucedido é grande. Não estoutotalmente convencido de que fiz a escolha certa. Embora o golfeseja um esporte adequado para idosos, nem todo idoso é adequadopara o golfe. Mas não posso mais voltar atrás, porque já paguei.

Sexta, 6 de setembroÀ meia-noite e meia, tive que levar um Evert embriagado para seu

apartamento em sua cadeira de rodas. Eu mesmo também já estavacom as pernas meio bambas. Evert teria preferido dormir em meuquarto, “daí tomamos uma saideira”.

Não me pareceu um bom plano. No corredor, ele começou acantar “Land of hope and glory”.

Imagino que vou ser convocado à diretoria hoje por causa dobarulho.

No mais, foi um aniversário muito agradável. Sobrou comida parapelo menos dois dias e bebida para dois meses. Por enquanto, vouprocurar ser comedido.

O plano de organizar uma viagem para o clube ficou um pouco delado. Vou fazer sérios esforços para que aconteça na próximaprimavera.

Para poder participar, o principal é se manter vivo até junho. Eume comprometo a não ser intimidado pela morte, pelo menos não ados outros. Se eu mesmo estiver morto, minha urna pode ficar sobreo painel de instrumentos do micro-ônibus.

— Ele sempre gostou de viajar na janela.Não é verdade, mas bem que soa engraçado.

Sábado, 7 de setembroVelhos têm que jogar video game. Apostar corrida no computador

ajuda a manter o cérebro idoso em forma – mais que os joguinhosmaçantes. Segundo o jornal, a pesquisa demonstrou que cérebrosvelhos voltam a aprender a fazer várias coisas ao mesmo tempoquando jogam video game regularmente.

Vou sondar como funciona um video game, ainda que a chancede encontrar um instrutor aqui no asilo não seja muito grande. Nestecaso, é uma desvantagem o fato de eu não ter netos.

Gostaria muito de ter tido. Eu seria um amor de vovô, sem falsamodéstia.

Se... é, se.Além disso, netos não são sempre fonte de alegria e prazer.

Edward tem um neto viciado em drogas; Graeme, uma neta comanorexia. Quando depois de anos os filhos finalmente não dão maistrabalho, aparecem os problemas dos netos para dar dor de cabeça.De novo noites em claro.

Talvez seja melhor esperar um pouco com o video game, até quesaia a próxima pesquisa mostrando que a primeira não estavacorreta ou surja todo tipo de questões científicas a respeito.

Domingo, 8 de setembro— Alguém quer meus remédios velhos? — perguntou Evert. —

Ainda estão bons. Pelo menos, dependendo da utilidade que quiserdar a eles.

Evert estava provocando por causa de uma história que saiu nojornal e foi assunto na mesa do café. Um homem de setenta anosseria julgado por preparar um coquetel de remédios para suamadrasta, de noventa e nove anos, que achava que já tinha vivido osuficiente. Ela sentia muita dor e já não conseguia fazer quasenada, mas o médico de sua casa de repouso considerou que seusofrimento não era suficientemente insuportável e não quis cooperarcom a eutanásia. A mulher tomou cento e cinquenta comprimidoscom um potinho de iogurte. Ainda teve o maior trabalho para pôrtudo isso para dentro. De qualquer forma, uma barafundaamadorística.

Suicídio não é punível. Também, difícil punir quando dá certo. Equando não dá, a pessoa poderia conseguir a pena de mortemediante solicitação. Já ajudar num suicídio não é permitido.

Os remédios que Evert ofereceu foram olhados com suspeita.A maioria dos moradores, aliás, nem precisa de seus

medicamentos para tomar uma overdose. Quase todo mundo aquitem um porta-comprimidos com as porções certas de remédio paracada dia da semana. Alguns residentes colocam todas as manhãssua seleção de pílulas na mesa, escolhem várias e engolem tudocom café morno, gemendo. Reclamando e resmungando sobremales e doenças, morte e desgraça. Melhor sair de perto, se quiserque seu dia seja agradável.

Segunda, 9 de setembroTemos um novo morador, sr. De Klerk, que está tentando

converter os outros residentes para a Igreja reformada. Não seiexatamente qual, mas uma bastante ortodoxa. Ainda bem queninguém aqui precisa mais ser vacinado contra sarampo, pois“intervir no curso das coisas está nas mãos de Deus, e estas nósnão controlamos”, segundo De Klerk.

Suas tentativas de aliciar alminhas reformadas está provocandoenorme comoção na porção de moradores católicos. Vejo umconflito religioso à moda antiga se tecendo e mal posso esperar queateiem fogo aos primeiros hereges.

O sr. De Klerk veio com belas palavras quando lhe disse ontemque duvidava bastante das boas obras de Deus. “O Senhor não serevelou para que possamos discuti-Lo, mas para que nos curvemosdiante Dele.”

Belas palavras; felizmente, não precisam sempre ser verdade.Elas não eram do próprio De Klerk, mas vinham da revista da igrejareformada O amigo da verdade . Um velho comunista pensou que aantiga revista do partido havia ressurgido das cinzas. Areivindicação da verdade pode vir de todos os cantos.

Casualmente, ainda fiz duas perguntas ao sr. De Klerk. A primeirafoi se ele pode trabalhar em conversões aos domingos; a segunda,se seu Deus poderia criar uma pedra tão pesada que ele mesmonão poderia levantar. (Tinha lido isso em algum lugar.)

Percebi certa desorientação.— Bem, fico aguardando — eu disse enquanto ia embora.

Terça, 10 de setembroHoje de manhã fui ao geriatra e perguntei sobre pílulas

energéticas para idosos. E sobre o oposto: a pílula de Drion, afamosa pílula do suicídio.

— Ambas vão ser difíceis — disse o médico. — As pílulasenergéticas das quais o senhor fala são ilegais, e sobre o efeitoespecífico em idosos não se sabe muito. Pode ser que um pouco decocaína para alguns idosos seja prazeroso.

Perguntei se ele alguma vez havia experimentado. Sim, ele tinha.— E?— Bom demais. Perigosamente bom. Logo me imaginei não

conseguindo mais viver sem aquilo.A única coisa que ele podia fazer por mim neste momento seria

receitar antidepressivos leves, “embora o senhor não me pareçadeprimido”. A desvantagem é que a pessoa fica um pouco grogue.

Eu disse que precisava justamente de um medicamento que medesse um pouco de energia.

Ele irá pensar a respeito.A pílula de Drion era um pouco mais complicada. O médico

compreendia que para algumas pessoas devia ser uma ideiatranquilizadora ter uma pílula assim na caixinha de remédios, “parao caso de”, mas a realidade era diferente.

Um idoso que quer morrer deve se apresentar a um “assistentede óbito” e terá que convencê-lo de seu genuíno desejo de morrerapós uma vida plena. Isso tem que ser depois de no mínimo duasconversas longas e abrangentes. Se o assistente decidir cooperar,ainda é preciso encontrar um segundo assistente diplomado queconcorde. Em seguida, um médico deve prescrever os recursos

necessários que o idoso cansado de viver deve tomar sobsupervisão de um assistente. Com tanta palhaçada, você vai querermorrer mais ainda.

— Além disso, parece-me que o senhor ainda não chegou a esseponto.

— É verdade, mas existe um equilíbrio delicado. E quando seperde esse equilíbrio, dificilmente é possível voltar a ter alegria deviver.

Ele concordou.— Podemos considerar esta conversa como uma entrevista

preliminar? — perguntei.Sim, podíamos.

Quarta, 11 de setembroHoje, em muitos canais de televisão, os aviões vão atravessar de

novo as Torres Gêmeas no replay : 2.995 mortos. A causa imediatada Guerra contra o Terror: 200 mil mortos, entre os quais 6 milsoldados americanos, 350 mil feridos e um custo estimado de 1trilhão de dólares.

Ontem soltei alguns desses números na hora do chá (eu sei decor), mas visivelmente o preço dessa guerra não pareceu exageradopara ninguém. Com exceção de alguns de meus amigos, felizmente.

Puxa, quantas coisas boas não seria possível fazer com umtrilhão de dólares? Isso com certeza poderia ter tornado osamericanos, em vez de odiados, muito populares em alguns lugares.

Depois do Iraque e, em breve, quando as revoluções árabestiverem devorado seus próprios filhos, o fundamentalismo islâmicoestará mais forte do que antes.

Entendo muito bem que os americanos agora não tenham amenor vontade de se jogar numa aventura na Síria, onde não têmnada a ganhar. As aventuras anteriores ainda estão muito frescasna memória.

Você está soando como um velho sábio, Hendrik. Talvez porcausa do clima outonal após um verão longo e lindo. Hoje à tardevou comprar uma capa de chuva grande para usar no quadriciclo,assim posso sentir o vento contra o rosto também em diaschuvosos.

Quinta, 12 de setembroOuvi dizer que, seguindo o exemplo dos doutores da alegria para

crianças, agora também há palhaços especiais para idosossolitários. Como eles se chamam e de onde vêm, isso eu não sei,mas quero adverti-los desde já: o palhaço que vier me animar vailevar uma bordoada, com minhas últimas forças, e uma frigideira emseus alegres miolos.

Uma semana atrás ainda fazia quase trinta graus lá fora. Agora oaquecimento central está rugindo a todo o vapor por toda parte. Estáfrio e chove com frequência. Amanhã vamos jogar golfe. O temponão vai estar muito melhor e não tenho nenhum programaalternativo na manga. Olho a previsão do tempo de hora em hora,mas isso não ajuda em nada. Amanhã à tarde, à uma, o micro-ônibus vem nos buscar.

Estou nervoso.

Sexta, 13 de setembroHavia uma moradora que toda sexta-feira treze, por via das

dúvidas, passava o dia inteiro na cama. Assim, nada poderia lheacontecer. Foi comer uma fatia de pão e tomar um chá e a asa dobule quebrou, derramando chá fervendo sobre todo o seu corpo.Acabou passando o resto da sexta-feira treze no hospital.

Evert veio ontem me encorajar com um presente de aniversárioatrasado: uma pele de carneiro para pôr no assento do quadriciclo.Eu teria que mandar lavar, porque ele não teve tempo para isso,disse. Era de uma loja de segunda mão.

— Vá saber o que não fizeram sobre esta pele em frente à lareira.Ela está com umas manchas estranhas — disse, irônico.

Ele não me atormenta com suas histórias nojentas. Levei o trecopara a lavanderia e agora já voltou, lavado e seco. Completamentelimpo.

Só um detalhe: se o colocar no quadriciclo e cair uma chuva fortequando eu estiver em algum outro lugar, depois vou ter que mesentar em cima de uma enorme esponja molhada. De fato, enquantoainda posso caminhar, nunca entro com o quadriciclo nos lugares. Etambém não me vejo, em caso de chuva ou neve, andando comuma pele de carneiro pelo supermercado.

“Lá vai de novo aquele velho estranho com sua pele de carneiro”,já ouço os sussurros vindo de perto dos tangelos.

Sábado, 14 de setembroO golfe foi o primeiro passeio frustrado da série, até agora.Começou bem, com café e bolo na sede do clube e um instrutor

simpático, um pouco metido a grã-fino, que explicou os princípiosteóricos do jogo. Mas mal saímos para pôr em prática o queaprendemos e começou a chover. E estava frio. Na verdade, era umpouco demais para nós. Não conseguíamos nem acertar a bolinha.Para ter uma ideia: Eefje bateu o taco no próprio tornozelo, eGraeme deixou voar de sua mão um taco que não acertou a cabeçado instrutor por um triz. Só Evert foi uma sensação em sua cadeirade rodas: dava tacadas que mandavam a bolinha a cem metros dedistância.

Depois de meia hora, todos já tinham visto o suficiente, mas parame agradar continuaram jogando, molhados e com frio, por maisquarenta e cinco minutos, como se estivessem gostando.

Enfim eu disse ao instrutor que já estava bom para uma primeiravez, embora ainda estivéssemos na metade do programa.

Ainda tomamos um vinho num bar afastado e, então, pedi que oônibus viesse nos buscar mais cedo.

Todos foram gentis comigo e me asseguraram que tinha sido umaboa ideia, mas o tempo e a idade não ajudaram. Mesmo assim, umdia depois, ainda estou amuado. Reajo de maneira muito infantil adecepções.

Domingo, 15 de setembroO passeio frustrado ainda me chateava quando Evert veio fazer

uma visita. Passados apenas cinco minutos, ele ameaçou ir emborase eu não deixasse imediatamente de ficar emburrado.

— Não vou aguentar queixume de um velho por causa de umdesapontamento bobo.

Parei no mesmo instante.Aliás, Evert veio trazer boas notícias: o serviço de felicitações a

idosos solitários tinha sido cancelado por falta de voluntários.Pessoas completamente desconhecidas que vêm cantar

parabéns em seu aniversário e depois comem seu bolo trazem talaconchego que faz a gente desejar violentamente a solidão. Admito:no ano passado não tive coragem de impedir que eles entrassem.Evert, sim. No fim, eles acabaram cantando “parabéns pra você” dolado de fora.

A sra. Aupers agora anda para trás de vez em quando porquepensa que assim sente menos vontade de ir ao banheiro. Vounomeá-la para o prêmio Nobel alternativo. Neste ano,pesquisadores encantadores foram novamente laureados com esseinteressante prêmio. Brian Crandell, por estudar suas próprias fezesdepois de comer musaranho fervido. Um japonês e um chinês,ambos com nomes complicados, pela pesquisa sobre o efeito daópera nas chances de sobrevivência de ratos após cirurgia cardíaca.E mais um: Gustano Pizzo, que recebeu o prêmio porque inventouum alçapão para sequestradores de aviões que leva a uma cápsulaque os pilotos podem soltar com um paraquedas. Alguns acharamque o paraquedas era um luxo desnecessário.

Segunda, 16 de setembroPediram que todos guardem seus fósforos usados para o sr.

Schipper. Ele pretende fazer uma maquete de nosso asilo com eles.Espera, com isso, conseguir uma matéria no Het Parool . Nossadiretora está no comitê de recomendação.

Certa vez alguém fez uma maquete da basílica de São Pedro comsete milhões de palitos de fósforos. Com tais projetos, eu semprepenso: toque fogo! Em três minutos, vinte e cinco anos de trabalhoviram cinzas. Bem lá no fundo tenho um espírito destruidor.

Uma semana e meia atrás fazia vinte e oito graus e era verão.Agora faz catorze graus e é outono. Sim, sim, claro que tem coreslindas, mas são as cores da decadência. No outono tardio da vida,já sou suficientemente confrontado com definhamento e putrefação,não preciso ter ainda por cima essa sujeirada de folhas mortas. Ooutono cheira como um asilo. Dê-me a primavera, um novo começo,para um pouco de equilíbrio.

Além disso, detesto dias frios e curtos, e São Nicolau e o PapaiNoel também não são meus melhores amigos.

Soo como um velho resmungão, mas a intenção deste diário,além do mais, é um pouco esta: que eu também possa reclamar eme lamuriar de vez em quando, mas sem incomodar ninguém.

Terça, 17 de setembroCom a idade, o ciúme às vezes toma proporções ridículas. Devido

ao grande excedente de mulheres nesta casa, as casadas,principalmente, não gostam de perder o marido de vista. A sra.Daalder nunca está longe do sr. Daalder, no máximo um metro.Como um cão de guarda traiçoeiro, ela espanta qualquer mulherque mostre algum interesse por seu marido. Mesmo que umavizinha insuspeita apenas peça a ele que passe o açúcar.

— Não pode pegar ela mesma? Não passe, não, Wim.Wim é profundamente infeliz porque não pode mais ter nenhuma

conversa decente. E não há nenhuma mulher interessada em Wim,porque ele é feio que dói, mas ainda assim tem que aturar opermanente monitoramento de sua esposa ciumenta. Às vezesacredito ver nos olhos de Wim um enorme anseio pela morte.

Toquei nesse assunto porque umas três semanas atrás um tal sr.Timmerman veio morar aqui, e parece que ele está de olho emEefje. Isso eu posso compreender muito bem. No entanto, para seuazar, Eefje não quer nem saber dele, porque é muito convencido eporque fede.

Isso soa como um Hendrik Groen ciumento, mas, nesse caso, ociúme é completamente desnecessário. Eefje já pediu a Timmermanvárias vezes, muito gentilmente, que fosse se sentar em outro lugar.

Isso despertou em Timmerman inveja em relação a mim. Afinal,eu me sento todos os dias ao lado de Eefje, para satisfação mútua.

Quarta, 18 de setembroÉ o dia pós-Prinsjesdag. Os planos e as novas políticas do

governo foram anunciados.— Veja, aquela faixinha vermelha mais comprida somos nós, os

aposentados.O sr. Elroy tentava explicar os cortes de orçamento à sra. Blokker.— De todos, nós somos os que mais saem perdendo!A sra. Blokker concordou. Ela pensa que gráficos de poder

aquisitivo são para pregar num novo álbum de figurinhas.Cresce a preocupação. Será que no futuro ainda poderemos

comer uma bolachinha na hora do café?Henk Krol, do 50Plus, convocou todos os mais velhos a combater

e ir protestar neste domingo em Amsterdã. Estou pensando em ir, seo tempo não estiver muito ruim. Parece-me um programa legal.Nunca participei de protestos em minha vida, mas o que me impedede começar aos oitenta e quatro anos? Não que eu me anime abrigar pelos dois por cento que estou ameaçado de perder, mas vera Museumplein cheia de andadores, triciclos motorizados e Cantasme parece uma imagem fascinante. Espero que alguém grite “Rutteassassino!” e que surjam motins e a polícia seja obrigada a conterum grupo barra-pesada de octogenários atirando pedras como sejogassem petanca.

Na eleição para a câmara municipal, em março de 2014, o OPA , opartido local dos idosos, deve crescer, junto com o socialista SP e oPVV , de extrema direita. O trabalhista PVD A vai ser aniquilado.Diederick Samsom vai renunciar. O governo vai cair. Surgirá umimpasse político, mas no fim tudo ficará na mesma, só que comoutros partidos. Até a próxima, com seu comentarista político

Hendrik Groen, diretamente do lar de idosos.

Quinta, 19 de setembroPassados dois dias do Prinsjesdag, ninguém mais fala sobre

orçamento, mas as senhoras ainda não se cansaram de comentarsobre o desfile de chapéus em torno do discurso do rei. Alguémdisse que um dos chapéus parecia um pedaço rasgado de vestidode noiva. Elas não eram brandas em seu julgamento das políticasdo sexo feminino: umas idiotas que de repente metem um chapéuesquisito na cabeça. “Bem, aquela ali até que passa” foi a avaliaçãomais positiva que apareceu.

Elas mesmas são da última geração de mulheres que usaramchapéus. Chapéus de uso diário, contra o frio do inverno “e tambémpela beleza”. Do ridículo desfile de Carnaval no Parlamento, paraelas, nada se salvava.

Eefje usa com frequência chapéus muito charmosos.Ando a seu lado com prazer e até com certo orgulho. De

preferência, de braços dados.

Sexta, 20 de setembroNo quadro de avisos, há um anúncio sobre um curso de

prevenção de quedas. Todos os moradores podem se inscrever.Idosos que têm medo de cair são justamente os que mais caem.

Essa foi a conclusão de um cientista biomédico. Pessoas medrosaspensam: desde que eu não me mexa, também não posso cair. Issofaz com que percam a condição física e motora mais rapidamente e,por isso, caiam mais, por exemplo, quando têm que fazer oinevitável caminho até o banheiro. Resumo brevemente aqui a teoriado paradoxo da queda.

O curso ensina a “melhorar o equilíbrio corporal” e, não menosimportante, a se erguer novamente.

Os números concretos: por ano, idosos caem um milhão de vezese quebram quadris e pulsos no valor de setecentos e vinte e cincomilhões de euros.

Eu também estou ficando mais inseguro, mas um curso assim...Perguntei a Eefje, e ela não está considerando. Graeme vai

esperar mais um ano. Grietje erra o caminho com frequência, masnunca cai. Só Evert gostaria de fazer, com sua cadeira de rodas.Para infernizar um pouco os outros.

Será que devo pedir uma aula-teste individual?Antoine e Ria estão tristes com a morte de seu herói, o crítico

gastronômico Johannes van Dam, o homem que fazia osrestaurantes tremerem. No fim da vida, ele começou a dar notascada vez mais altas para os estabelecimentos que visitava. Seriapara apoiar a tese de que ele, pessoalmente, tinha elevado o nívelda culinária em Amsterdã?

O que também pode ter influenciado é o fato de que não podia

provar nada anonimamente. Era impossível passar despercebido.Portanto, todas as mãos eram postas na massa quando Johannesaparecia.

Sábado, 21 de setembroHoje é Dia Mundial do Mal de Alzheimer. E o que se deve fazer?

Pensar a respeito?Todos esses dias para todo tipo de coisa, principalmente doenças:

Dia Mundial da Lepra, Dia Mundial da Aids, Dia Mundial doDiabetes, Dia Mundial da Diarreia. Mais tarde vou dar umapassadinha para ver Grietje, daí posso dizer a ela: hoje é seu dia.Duplamente seu dia, porque hoje também é Dia do Vizinho.Aparentemente, já estão faltando dias para o Alzheimer ter quedividir seu dia com o vizinho.

Além disso, o Dia do Alzheimer não é dedicado ao verdadeiropúblico-alvo. Eles já não sabem mais nem qual é o dia da semana.

Johannes van Dam insinuou alguns anos atrás no jornal HetParool que não poder mais morar sozinho era equivalente asofrimento insuportável. Partilhei esse pensamento na mesa do cafécom uns oito moradores. Deu pano para manga. Evert, com seuapartamento da assistência social, era o único que concordava como falecido Johannes. Ele se viu em desvantagem contra um grupode pessoas que criticavam um comentário tão sem sentido. Foi umadiscussão divertida. Evert estava em forma: afiado e sem rodeios.

Stelwagen observava de longe. Quando percebeu que a vi,cumprimentou com um gesto de cabeça e foi embora.

Domingo, 22 de setembroMesmo que você já esteja com oitenta anos, tenha uma boca

grande e se chame Evert, ainda assim tem inseguranças. Evertapelou para minha ajuda na organização de seu passeio na próximaquarta-feira. Ele encomendou um workshop de pintura em algumlugar e está com um pouco de medo de ninguém gostar.

— Não é um pouco sem graça? Será que eu não deveria prepararmais alguma coisa?

Assegurei a ele que seu plano era bom do jeito que estava,praticamente não pode dar errado e, de qualquer maneira, serámelhor do que o golfe.

— Isso é verdade — disse, com uma risadinha que não meagradou muito.

Nos protestos contra o governo, não vi nenhuma armada deandadores, Cantas e quadriciclos irados protestando contra o fatode que os idosos serão duplamente prejudicados.

Parece que nem vai ser tão ruim assim, se for verdade o que diz oartigo “Como assim, velho e patético?” publicado no Volkskrant deontem. Principal conclusão: os jovens de agora terão que trabalharpor um período consideravelmente mais longo para suaaposentadoria e deverão pagar mais do que todos os aposentadosrevoltados de hoje.

Perspectiva animadora: uma coalisão entre pvv, sp e 50Plus embreve representará os velhinhos quebrados com o corte doorçamento. Eles têm juntos sessenta e seis cadeiras no Parlamento,segundo a última pesquisa do instituto de Maurice de Hond.

Segunda, 23 de setembroOntem à tarde, depois de uma semana de outono, o sol

reapareceu. Os bancos em frente ao asilo lotaram.A sra. Bakel levou um tubo de protetor solar extragrande e

distribuiu generosamente a todos que queriam. Um pouco maistarde, oito velhinhos com coágulos de creme mal espalhado no rostoaproveitavam o sol de olhos fechados. Uma bela imagem.

A sra. Bakel olhou mais uma vez para o tubo e gritou, assustada:— A validade está vencida!— E não por pouco — disse a sra. Van der Ploeg, depois de ter

pegado seus óculos de leitura.— Agosto de 2009. Será que é perigoso?A questão provocou especulações bárbaras.— Talvez você fique com câncer de pele — sugeriu o sr. Snel.Logo depois, oito velhinhos se debatiam para tirar todo o creme.

Com todas aquelas rugas, não foi fácil.

Terça, 24 de setembroO sr. Van der Schaaf foi abordado na rua por um rapaz que

perguntou se ele trocaria um euro por duas moedas de cinquentacentavos para pegar um carrinho de compras. O jovem foi muitoprestativo e segurou sua carteira um instante. Quando chegou emcasa, o sr. Van der Schaaf notou que havia trocado um euro porduas notas de vinte e uma de dez.

Tinha sido um rapaz com aparência norte-africana. Às vezesparece que eles estão aí para confirmar nossos preconceitos.

E se algum dia ele for pego...Roubo na rua sem violência?Serviço comunitário, com benefícios mantidos.Não acontece com muita frequência que as pessoas se tornem

mais de esquerda com o passar dos anos. Mais de direita, sim. Oque significa isso?

Creio que essa foi a terceira vez em poucos meses que um denossos residentes caiu no óbvio truque do troco. Todos estãoavisados, mas, no momento em que são abordados por alguém narua, metade fica desconfiada até o osso, e a outra metade,ingenuamente convencida da bondade humana.

Quarta, 25 de setembroUm cientista – não guardei o nome – afirma que o mal de

Alzheimer poderá ser prevenido daqui a uns quinze anos. É umanotícia amarga para todos os idosos que estão começando a sentiros efeitos da demência agora. Não poderão mais contar com isso.Que azar.

Sorte para os velhos americanos. Entre 1950 e 1968, ocorrerampelo menos setecentos incidentes significativos com armasnucleares, segundo documentos obrigatoriamente desclassificados.Um bombardeiro americano soltou num acidente duas bombas dehidrogênio duzentos e sessenta vezes mais poderosas que a deHiroshima sobre os Estados Unidos, e uma delas quase explodiudepois que três dos quatro sistemas de segurança falharam.

Não há nenhum motivo para supor que aqui e agora, de repente,não volte a acontecer algum incidente. Daí só serão divulgados em2058. Até lá, isso não me surpreenderá mais, prometo.

No fim, estarmos todos aqui é mais sorte que juízo.A humanidade nem sempre entregou o leme nas mãos das

pessoas mais sensatas. Hitler, Stálin e Mao, só para citar alguns,são juntos responsáveis por uns duzentos milhões de mortos, e issosem armas nucleares. Se existisse um prêmio para a criatura maisestúpida da Terra, o homem certamente estaria entre os indicados.

Amanhã volto a escrever sobre os pequenos detalhes charmososdo dia a dia. Daqui a pouco o micro-ônibus vai passar aqui, e oitovelhinhos joviais vão enterrar a cabeça na areia por um dia, com omaior prazer. Só vamos nos desenterrar para comer um salgadinhoe tomar um drinque.

Quinta, 26 de setembroTem um bonito retrato meu sobre a cômoda. Pintado por Graeme,

que parece ter um interessante estilo neoexpressionista.Ontem, após o almoço, o ônibus nos levou até Bergen aan Zee,

vilarejo de artistas na costa norte da Holanda. Lá, tivemos que nosapresentar num bonito restaurante de praia. Evert não pensou emcomo faríamos para levá-lo até o local em sua cadeira de rodas. Foium esforço e tanto empurrá-lo duna acima por uma calçada deparalelepípedos, e, uma vez no alto, quase não conseguíamossegurá-lo. Por pouco ele não rolou sozinho para baixo até parar coma cabeça na areia. No final, encontramos dois corredores fortes quese prontificaram a descer a duna levando Evert, empurrá-lo por cemmetros pela areia e deixá-lo no restaurante à beira-mar ondefaríamos nosso workshop de pintura.

Lá uma senhora com dotes artísticos nos esperava com tinta eoito cavaletes de mesa com oito telas, e nós, em duplas, tínhamosque retratar um ao outro. Os resultados foram hilários. Todos osestilos de quinhentos anos de história da arte misturados.

Depois, ainda molhei os pés no mar do Norte com Eefje. Debraços dados.

A conversa que se seguiu foi pontuada com comidinhas e regadaa vinho. O proprietário do restaurante cuidou para que Evert fosselevado duna acima com seu pequeno trator. Durante o trajeto, Evertacenava como se fosse a rainha. No caminho de volta, cantamos aplenos pulmões no ônibus.

Hoje de manhã a sra. Kamerling perguntou a Graeme se eletambém poderia pintar um retrato dela. Evert aconselhou Graeme acobrar setecentos e oitenta euros, fora os impostos.

Sexta, 27 de setembro— Por ocasião da Semana da Demência, convido vocês para um

vinho e aperitivos no terraço do EYE — disse Grietje a Eefje, Edwarde a mim ontem à tarde.

Quando tocamos no assunto de dividir a conta, ela apenas falou:— Nem venham com isso!Fomos e voltamos de táxi.Quando estávamos agradavelmente ao sol, olhando para o ij, ela

explicou de maneira casual:— Vou me tornar uma grande esbanjadora na velhice. A

poupança tem que ficar a zero antes que eu esqueça o que é umaconta-poupança.

Essa me parece a abordagem correta da demência.No mais, já cansei um pouco. Um Dia do Mal de Alzheimer até

vai, mas uma semana inteira... Acho que nos últimos dias exibiramuns oito programas sobre demência na televisão. Agora já sabemostudo. Também não é lá tão complicado: você tem e, depois de umtempo, não sabe de mais nada nem se reconhece mais no espelho,então é hora de ir para a ala fechada.

Fazem muito alarde sobre a previsão de que uma em cada duasmeninas nascidas atualmente chegará aos cem anos. Mas aindanão ouvi ninguém levantando uma questão importante: isso é umanotícia boa ou ruim? Das pessoas em nosso asilo que estãochegando perto dos cem, pelo menos uma em cada duas gostariade morrer o mais rápido possível.

Sábado, 28 de setembroQuando a porta do elevador se abriu, já havia dois andadores e

uma scooter dentro, mas a sra. Groenteman calculou que seuquadriciclo também caberia. Ela entrou um pouco rápido demaiscom sua cadeira motorizada e atropelou tudo o que já estava noelevador. Levou meia hora até que os pedaços de metal e todos osvelhinhos fossem retirados da maçaroca. Os ganidos não paravam,embora os machucados fossem quase imperceptíveis a olho nu.

A diretora, de maneira bem indireta, insinuou acreditar que Anjame repassava informações confidenciais. Ontem ela me convidoupessoalmente para o coquetel de despedida de Anja, na segunda-feira, 7 de outubro. Quando eu provavelmente reagi um poucosurpreso, ela disse:

— O senhor não é amigo da sra. Appelboom? Ao menos ouvidizer que o senhor com frequência ia tomar café com ela noescritório. É pena que eu nunca estivesse presente.

Devo ter corado. Fiquei lá sem dizer nada. Um pouco xeque-mate.

Como se isso existisse, “um pouco” xeque-mate!Stelwagen me saudou com um sorriso e partiu.Que o coquetel de despedida aconteça numa segunda-feira diz o

bastante sobre o quanto os colegas de escritório prezam Anja.Além do mais, ela mesma nesse ínterim está mais aliviada do que

chateada com sua demissão inesperada.

Domingo, 29 de setembroOntem, logo depois do engavetamento no elevador, surgiu uma

fila de curiosos até o final do corredor.— Oh, oh, oh — consternados, com a mão sobre a boca,

sacolejando a cabeça e fazendo análises ridículas de causa e efeito.— A trombada aconteceu porque as pessoas no elevador

estavam ocupando espaço demais.Algumas características diminuem nos idosos, mas curiosidade

não é uma delas.Está fazendo um tempo maravilhoso, mas um pouquinho

traiçoeiro. Hoje de manhã fui bem cedinho dar uma volta com oquadriciclo, e meus dedos quase congelaram. Preciso comprar boasroupas de inverno para quando sair motorizado, senão um diadesses vão me encontrar congelado num semáforo.

Parece que é uma bela morte, assim como morrer afogado, deacordo com as pessoas que sobreviveram por um triz.

Por enquanto, não vou tentar, mas pode ser uma boa alternativapara a pílula de Drion: sair numa noite congelante de inverno paraum lugar isolado, tirar o casaco e esperar pela morte. Também nãovou feder, caso não seja encontrado logo.

Segunda, 30 de setembroMal posso caminhar com a dor no pé. Liguei para Eefje pedindo

que comprasse aspirinas para mim. Acho que é gota. Reconheço ossintomas que Evert também tinha. Passei a manhã inteira sentadoem minha poltrona com a perna para o alto. Fui só uma vez aobanheiro, andando de joelhos.

Eefje ficou uma hora a meu lado e hoje à tarde Evert vem mevisitar em sua cadeira de rodas. O roto e o roto.

Perguntei aos funcionários se poderiam servir meu jantar aqui emcima.

— Bem, isso não é praxe — disse a chefe de serviços internos.— Praxe?— Sim, não vamos fugir das regras. Para isso, o senhor precisa

estar oficialmente na ala de enfermaria.Pode ficar com suas regrinhas, vou perguntar a Graeme se ele

pode trazer meu prato aqui nesta noite. Ele ainda está bem daspernas. Com certeza vão reclamar que também não é “praxe”, masisso seguramente não inibirá Graeme.

As pessoas aqui são capazes de deixar alguém morrer de acordocom o regulamento.

Felizmente, agora tenho amigos.

Terça, 1o de outubroPois é, é mesmo gota. O médico me receitou remédios com os

quais não posso beber e, quando passar, doravante melhoresquecer o vinho tinto e consumir o mínimo possível de morangos.Dá para viver tranquilamente sem morangos, certamente emoutubro, mas a estação do vinho tinto acaba de começar, e tenhoque retornar ao branco de verão. Se, com isso, eu conseguir mantera gota longe, o dano até que não será grande.

Consigo chegar ao banheiro com muita dor e esforço. Andar paralá e para cá pela casa de repouso – oh, tão importante – já não dá.As atividades que restaram: ler, escrever, ver TV e esperar visitas.

E remexer um pouco em meus documentos. Encontrei ali umvelho recorte de jornal: “Uma comissão de investigação norte-americana concluiu que uns bons 6,6 bilhões de dólares recém-impressos, que foram enviados por via aérea a Bagdá em 2003 parapagar salários governamentais, ‘provavelmente foram roubados’. Osamericanos deram o dinheiro para os iraquianos, e estes operderam”.

Perderam? Seis bilhões de dólares desapareceram? Sim, algunscaminhões cheios de dinheiro. Sumiram. Largados em algum lugar.

Entendo por que eu guardei essa notícia. É incrível demais paraser verdade. Num galpão em algum canto de Bagdá, um TioPatinhas iraquiano mergulha numa piscina cheia de cédulas dedólares.

Quarta, 2 de outubroContei a Grietje, a título de consolo, que em toda a Europa seis

milhões de pessoas estão ficando dementes.— Então você pensou: tristeza partilhada é meia tristeza. —

Depois, disse rindo: — Não tem importância!Acho que corei.Não é um pensamento animador imaginar que só na Europa uma

multidão equivalente a cento e vinte estádios de futebol lotados estáficando demente.

Grietje contou que num estágio mais avançado da demência apessoa pode passar por um espelho sem se reconhecer. Ela esperaque, quando isso acontecer, pense: “Puxa, que mulher bonita!”.

Em seguida, pensamos nos moradores que conhecíamos e quesofriam de demência e concluímos que mais ou menos um a cadadois é bastante ou profundamente infeliz.

— Mas a outra metade ainda não está tão mal. Não muito pior doque a maioria dos outros residentes. Essa é a conclusão otimista —disse Grietje, acrescentando que nenhum fio de seus cabelosgrisalhos pensava num fim prematuro.

Como se respondesse à pergunta que não ousei fazer.A gota já está melhor. Os remédios estão cumprindo sua função.

Já posso sair tropeçando por aí.

Quinta, 3 de outubroEm nosso paraíso subtropical de asneiras, ouve-se algumas

vezes por dia que antigamente tudo era melhor. Ontem a sra. DeVries disse, com melancolia, que antigamente sempre havia tempopara um cafezinho e uma conversa. Evert observou que, no casodela, portanto, nada tinha mudado.

— Como assim?— Há anos tenho que escutar suas conversas, intercaladas

apenas por pequenas pausas para um golinho de café.Como resposta, houve apenas um indignado “Ah...”.Pela primeira vez desde que a conheço, ficou cinco minutos

quieta. Após esses cinco minutos exigiu em voz bem alta que Evertagora passasse a tratá-la por “senhora”. A maioria das pessoas aquise trata por senhor, senhora. Provavelmente um resquício dostempos em que tudo era melhor e em que as pessoas aindademonstravam respeito umas pelas outras. Só Evert diz “você” atodos, indiscriminadamente.

Já estou andando bastante bem de novo e posso tomar um vinhohoje à noite sem peso na consciência. Sou mais viciado em bebidado que pensava. A gente não percebe isso enquanto continua abeber tranquilamente, mas, se é obrigado a permanecer a seco poralguns dias, fica com tanta vontade de beber uma dose que chega aafetar o humor.

Em defesa de meu alcoolismo, sempre posso dizer que na minhaidade já não faz diferença. Então, sirvo-me com prazer um primeirocopo de vinho antes da refeição. Até pouco tempo atrás eu tambémansiava por acender um charuto, mas isso infelizmente não possomais. Ou morro de tanto tossir.

Sexta, 4 de outubroNo dia dos animais não tem carne nem peixe no cardápio, mas

almôndegas de tofu e stamppot de chicória. Um pequeno gesto emfavor dos bichinhos. Amanhã pego um pouco de carne a mais.

Deixamos as ratoeiras onde estão e continuamos matandonormalmente os mosquitos, mesmo no 4 de outubro. Há animais eanimais.

Com as pessoas, é a mesma coisa: algumas são assassinadasou sucumbem à fome, enquanto outras compram mais uma mansãocom piscina.

A sra. Stelwagen me chamou ao escritório para perguntar se eutinha uma sugestão para o presente de despedida de Anja. Eu nãotinha.

— Pode ser alguma coisa mais cara — insistiu ela. Talvez estejacom peso na consciência.

— Então dê uma bicicleta motorizada.De fato, ela achou uma excelente ideia. Pensei que eles

acabariam dando um relógio barato. Acho que fui útil a Anja comessa sugestão.

Hoje à tarde vou passar no “cara” do quadriciclo para uma visita.Finalmente tenho um “cara” para alguma coisa nesta vida. Vouperguntar se ele pode arrumar um para-brisa para mim.

O forte vento leste dos últimos dias tornou os passeios um poucofrios, apesar do solzinho de outono. Com um para-brisa será maisfácil encarar.

Sábado, 5 de outubroHenk Krol, que havia pouco estava nas barricadas lutando por

nossas aposentadorias, caiu de seu pedestal. Ele foi bastanteseletivo em sua batalha por aposentadorias mais justas. Não achounecessário pagar a contribuição para a aposentadoria de seuspróprios empregados.

De repente, pelo menos metade dos moradores passou a dizerque sempre achou Krol pouco confiável.

O fato de ele ter aparecido numa foto no jornal ao lado de sua ex-mulher e de seu ex-marido também não ajudou.

— Se ele nem mesmo sabe se é homossexual, como pensa quepoderá dar conta de três milhões de idosos? Que se dane! —proferiu o sempre sutil sr. Bakker.

Com a saída de Henk Krol (“Não, sra. De Goede, não é o irmãode Ruud Krol!”), uma porção de moradores caiu num profundovácuo político. Em quem irão votar no futuro?

— Jan Nagel já está no sexto partido, então também não vouvotar nele — rosnou o sr. Hijneman.

Um bom número de moradores, principalmente mulheres,adoraria poder votar na princesa Beatrix.

Não, em geral não é nada divertido falar de política por aqui.De qualquer forma, não há muitos assuntos a ser discutidos com

algum conhecimento de causa durante o café ou o chá. Evertrecentemente perguntou sem rodeios se alguém ainda mantinha ospelos pubianos um pouco decentes. Vocês precisavam ver as caras.

Mais tarde ele explicou que às vezes é preciso chocar um poucopara evitar que nossa mesa fique cheia demais.

Domingo, 6 de outubroEdward pregou um bilhete em uma das mesas de café, lá

embaixo, no qual estava escrito: Favor não falar de doenças nestamesa . Evert ainda escreveu uma segunda notificação: E tambémnenhum pio sobre companheiros(as) falecidos(as).

Isso fez as pessoas olharem torto.— Como assim, não falar de doenças? — perguntou a sra.

Dirkzwager, cujo primeiro gesto ao chegar é sempre pôr seu porta-comprimidos na mesa, ao lado de sua xícara de café descafeinadoe, então, tomar os remédios do dia enquanto relata suspirando qualé a finalidade de cada um deles.

Com dificuldade, Edward explicou que podem falar sobre males,desgraças e entes queridos falecidos em toda parte, apenas depreferência não nesta mesa.

— As pessoas às vezes não querem ser incomodadas com aslamúrias dos outros! — esclareceu Evert.

Na dúvida, foram formados dois campos: um pequeno grupo namesa sem doenças e o restante nas outras mesas. E nestas por ummomento não sabiam se podiam ou não narrar suas habituaisreclamações sobre saúde.

À tarde, os bilhetinhos tinham desaparecido.Está chegando novamente o festival da canção da terceira idade.

Em breve acontecerão as preliminares. Não vou cometer o mesmoerro que acabo de mencionar: reclamar.

Só uma observação, então: quem sai ganhando são os surdos eos que ouvem mal.

Segunda, 7 de outubroHá algumas senhoras por aqui com mania de limpeza e algumas

senhoras que, para dizer gentilmente, levam um estilo de vida quedeixa os cuidados pessoais um tanto negligenciados. Isso provocabastante atrito.

A sra. Aupers, uma das que não calçam meias limpas todos osmeses, alegou durante a refeição a duas colegas de mesa muitopreocupadas com higiene que todo esse lavar e assear não temsentido.

— Só no calcanhar já tem bem uns oitenta tipos de fungos. Li issoem algum lugar. Imagina só o que não tem na virilha.

— Eu estou comendo! — disse uma das senhoras limpinhas.— Apenas quero dizer que não tem sentido se lavar o tempo todo.

As mãos também são cheias de fungos e bactérias.Acabou acontecendo: as duas senhoras com mania de limpeza

chamaram uma funcionária. Pediram que a sra. Aupers, por favor,ficasse de boca calada durante a refeição. A sra. Aupers apeloupara sua liberdade de expressão. Virou uma briga. No final, Aupers,em seu vestido encardido, no qual era possível ver todo o menu dosdias anteriores, teve que sentar-se a uma mesa à parte.

Mas o dano estava feito. Quase ninguém conseguiu limpar oprato. Só a gorda sra. Zonderland aproveitou a situação e comeuquatro flãs, normalmente uma das sobremesas favoritas dosmoradores. Em geral, as taças são raspadas até o fundo.

Terça, 8 de outubroSerá que Henk Krol andou por aí todos esses anos temendo?

“Oh, espero que ninguém venha falar das contribuições deaposentadoria que me recusei a pagar a meus empregados.” Achoque o medo latente minou um pouco sua intensa satisfação consigopróprio. Com certeza há muitas outras pessoas convivendo comsegredos ameaçadores. O número de escândalos que vêm à tonadeve ser só a ponta do iceberg.

Ontem à tarde aconteceu a festa de despedida de Anja. Até quenão foi ruim. Alguns colegas cantaram uma canção e não fizeramfeio, e um senhor fez um simpático discurso, deixando soar aqui eali um toque crítico sobre a cultura corporativa em nossa casa derepouso. Stelwagen não moveu um músculo. Seu sorriso estevefirmemente pregado no rosto durante toda a recepção. Aliás,gostaria de saber quem é aquele senhor.

Anja ficou muito contente com a bicicleta motorizada.Combinamos que nos encontraremos regularmente. Uma bonita

declaração de intenções. Agora falta pôr em prática, o que é maisdifícil.

Idosos com frequência perdem seus últimos amigos fora dosmuros do asilo porque não procuram mais uns aos outros nemfazem programas juntos. Veem cada atividade como se fosse aescalada de uma montanha. Para ser gentil, pode-se dizer que é porfalta de energia e medo. Eu diria que é mesmo preguiça eindolência. É preciso algum esforço – às vezes infrutífero – para nãose tornar solitário.

Quarta, 9 de outubroOuvi um ruído surdo no quarto ao lado e, logo depois, um leve

gemido. As paredes aqui são finas. Fui imediatamente para ocorredor e bati na porta. Ninguém respondeu. A porta estavatrancada, mas a faxineira se aproximava e por minha insistência aabriu.

A sra. Meijer estava caída no chão de sua cozinha e não erapreciso ser médico para ver que seu braço estava numa posiçãomuito estranha. Foi uma visão horrível. Liguei para a recepçãopedindo ajuda; pouco depois, Meijer seguia numa maca rumo aohospital.

Isso foi ontem à noite.Desde então, soube que ela quebrou um braço e uma perna.Usou uma cadeira para subir na pia e tirar pó da parte de cima

dos armários.— Sempre faço desse jeito — ela parece ter gemido. Bom

argumento.De minha parte, sentei-me em meus óculos pela terceira vez

nesta semana. Depois de tanta pressão, uma haste não sobreviveu.Eram meus óculos de reserva, pois no mês passado já tinhasentado nos óculos bons. Preguei a haste com fita adesiva,emprestada do auxiliar de serviços, e finalmente levei meus outrosóculos para consertar.

— Verei se ainda posso fazer alguma coisa, meu senhor.

Quinta, 10 de outubroQuando o comitê do prêmio Nobel ligou para Ralph Steinman

alguns anos atrás para felicitá-lo por seu Nobel de medicina, ele nãopôde atender ao telefone porque já estava morto havia três dias.

Que azar para Ralph. Não se recebe um prêmio assim todo dia,então ele com certeza gostaria de estar presente. Mas também foisorte, ainda que ele mesmo não possa falar sobre isso, porque aregra é que mortos não podem receber o Nobel. E agora o comitêteve que criar rapidamente uma nova regra: você pode receber oprêmio depois de morto, desde que o comitê não saiba que vocêmorreu.

O boato é de que agora alguém da organização primeiro deveráfalar pessoalmente por telefone com um vencedor antes que ele ouela seja divulgado como vencedor. Senhoras e senhores intelectuaise cientistas, já não precisam mais esconder a morte.

Além disso, é claro que é principalmente culpa do próprio comitêdo Nobel: vir com um prêmio só dez, vinte, às vezes trinta anosapós uma descoberta importante é pedir para ter problema. Quantoscatedráticos mortos perderam o que seria o momento mais bonitode sua carreira científica por causa disso?

Quando contei, as pessoas acharam uma pena para RalphSteinman.

— O que também é uma pena é que Vincent van Gogh nuncatenha visto um níquel de todos os milhões que pagaram mais tardepor suas obras — suspirou a sra. Aupers.

— É pura sorte que ele esteja morto! — concluiu Evert, animado.O bóson de Higgs não despertou muito interesse aqui.

Sexta, 11 de outubroRebuliço por causa de um diplomata russo que foi preso pela

polícia de Haia.— Para um russo bêbado que abusa dos filhos, sedação paliativa

me parece mais adequado que imunidade diplomática.Falou bem, Graeme! Conectou perfeitamente duas questões

bastante atuais. Pena que não tem muita gente que entende o quevocê diz.

“Nós” não somos muito chegados aos russos, muito menos parapedir desculpas – isso ficou claro após a discussão em grupodurante o café.

— Viu a cara de bebedor de vodca do russo? Então já sabe osuficiente — disse o sr. Bakker.

— Alguns folhetos de agências de viagem fazem publicidade dofato de seus hotéis não permitirem russos — lembrou a sra. Snijder,que nunca viajou para além do Veluwe.

Eu mesmo digo: louvado seja o Senhor por termos Mark Rutte enão Vladimir Pútin.

Por que será que as pessoas esquecem principalmente nomes?“Nossa, como ele se chama mesmo? O cantor daquele grupo.

Também tinha uma cantora loira. Qualquer coisa com A. Está naponta da língua.”

De repente você não consegue mais encontrar na caixinhacorrespondente em seu cérebro o nome de pessoas que conhecehá anos. Horas mais tarde, repentinamente, o nome reaparece donada, sem ser requisitado.

Cada vez mais atormento meu cérebro à procura de um nome ouuma palavra, com cada vez menos sucesso. Devo me resignar, mas

em vez disso me irrito profundamente.Não faça isso, Groen.

Sábado, 12 de outubroA diretora disse que o exercício de evacuação do prédio foi um

sucesso. Se o objetivo de uma evacuação é criar o maior caospossível, então concordo com ela.

De repente, lá estavam eles com seus coletes fluorescentes noscorredores: a equipe de emergência. O alarme ainda não tinhadisparado, de maneira que a equipe teve primeiro a chance deexplicar a todos que não era de verdade.

— Para prevenir ataques do coração — comentou Stelwagendepois, como esclarecimento.

A consciência de que era apenas um exercício fez com que amaioria dos moradores primeiro terminasse de tomar seu café edepois ainda fosse buscar um casaquinho no andar de cima, porqueestava friozinho lá fora. As filas que em seguida se formaram para oelevador deveriam ter sido informadas pelo serviço nacional detrânsito. Todos sabem: em caso de incêndio, não usar o elevador. Amaioria dos residentes recusou-se categoricamente a usar aescada, o que não é tão estranho se você precisa de andador.Simplesmente ficaram esperando o elevador que não vinha. Afinal,o chefe da equipe de emergência decidiu que de fato não se tratavade incêndio, mas de uma ameaça de bomba; portanto, o elevadorpoderia ser usado. Nesse meio-tempo, uma senhora já tinha caídona escada e alguém havia prendido os dedos na porta corta-fogoautomática.

Espero que no caso de um incêndio de verdade as chamas sejambem lentas, porque demorou trinta e cinco minutos até que o últimomorador saísse do prédio – então, os primeiros já tinham entradonovamente, funcionários primeiro, porque o clima estava ruim

demais.

Domingo, 13 de outubroFico furioso quando penso de novo nisso.Ontem, inesperadamente, o clima estava muito agradável, então

decidi dar uma volta de quadriciclo. Pouco depois do início dopasseio, um carro de repente parou em minha frente, de viés. Eufreei e fiquei parado no meio da ciclovia. Do outro lado surgiu umciclomotor com bastante velocidade, que teve que frearbruscamente para não passar por cima de meu quadriciclo. Omotorista, de uns vinte anos, me olhou com animosidade.

— Sai da frente, velhote!— Senhor velhote. Um pouco de respeito, por cortesia. Vocês

vivem falando disso. — Bati com o punho contra o peito e disse: —Respeito, cara.

— Para trás, velhote!Dei ré e abri espaço para deixá-lo passar.A cinquenta centímetros de distância, ele me cuspiu em cheio no

rosto, acelerou e se mandou. O cuspe escorria em minha face.Enojado, limpei com a manga do casaco.

Fervendo de raiva e impotente, voltei para casa.Acabo de ler que “meu” prefeito, Van der Laan, tem câncer de

próstata. Isso não ajudou a melhorar meu humor. Uma das poucaspessoas por quem tenho admiração. É um cara bacana e um bomadministrador, uma combinação rara.

Daí ainda olho para fora, para uma chuva que já dura três horas,e me dou conta de que preciso sair agora para visitar Eefje, antesque eu comece a pensar em suicídio. Se ela não estiver, vou atéEvert. Caso ele também não esteja, então vou passar o resto do diana cama.

Segunda, 14 de outubroFelizmente Eefje estava em casa ontem. Ela tem um efeito

calmante e reconfortante sobre mim e, para isso, não precisa fazernada além de estar ali. Ela ouviu minha história. Quando mencioneia cusparada, afastou a cabeça com nojo e fez uma careta tão feiaque pareceu que ela mesma tinha sentido o impacto da gosma.

— Se você tivesse uma arma, teria atirado nele, posso imaginar.— Agora que você falou... Mas aí, por causa da tremedeira, eu

teria errado e atingido um pedestre inocente. Então, na verdade, foimelhor assim.

Com isso, Eefje sugeriu, excepcionalmente, para acalmar, quetomássemos um “café de perninha” antes do almoço. Para os nãoconhecedores: é um Irish coffee.

Isso ajudou.A sra. Bastiaans fez durante o chá um relatório do teste de

fritadeiras realizado pelo guia do consumidor.A Moulinex Pro Clean AMC 7 recebeu um duplo mais (++) no

quesito “migalhas grudadas na batata frita”. Ela se perguntava se asmigalhas então ficavam bem grudadas na batatinha ou o contrário.Aliás, ela se considerava especialista em batata frita, mas sobremigalhas na batata ela não sabia o que pensar. Para tornar aindamais interessante, era um guia do consumidor de cinco anos atrás,e aqui é expressamente proibido fazer frituras. E lá está você, maisou menos obrigado a ouvir.

Terça, 15 de outubroHavia um bilhete pregado no quadro de avisos dizendo que o

passeio anual organizado pela comissão de moradores nãoacontecerá por causa de divergências internas. Na primavera,haveria novas eleições para a comissão. Todos os atuais membrossão candidatos à reeleição.

Trata-se aqui, não por acaso, dos quatro maiores cabeças-durasdesta casa de repouso. Com um pouco de sorte, todos serãoreeleitos e no ano que vem não teremos passeio de novo.

Alguns anos atrás, eu participei. Um passeio de um dia a Aachen.Quando chegamos a Eindhoven, visitamos uma loja de colchões;em Aachen, uma variante alemã de uma festa de tupperware; e, devolta a Eindhoven, um homem de jaleco branco comercializavapreparados de vitamina para viver pelo menos até os cem anos. Sevocê morresse antes, podia pedir o dinheiro de volta.

Só uma horinha para passear em Aachen, três horas tomandocafé e chá e seis horas sentados no ônibus a vinte e dois euros ecinquenta por pessoa. Uma mulher, cuja alma desde então já foilevada por Deus, gastou naquele dia mil euros em quinquilharias.Entre elas, um belo colchão para incontinência. Pagou com cartãoem toda parte.

Na volta, a sra. Schaap, que acha que tem a voz bonita, pegou omicrofone e assolou o ônibus durante uma hora com canções dofundo de seu baú pessoal. Mas, sejamos honestos, muitos cantaramjunto, com o maior entusiasmo.

Quarta, 16 de outubroEva está chegando! Os funcionários estão se tornando muito

caros e escassos (qual era mesmo o número de desempregados?)e, por isso, no futuro, Eva irá servir o chá. Eva é um robô criado naUniversidade de Tecnologia de Delft. Na foto, parece o cruzamentode um aparelho de ginástica com uma balança à moda antiga, umaespécie de caixa de correio como boca e duas manchas queparecem olhos – na verdade se assemelham mais a sobrancelhas.Além de sua especialidade, pequenos serviços, ela também podeexprimir emoções, afirmam os fabricantes. Um sorriso metálico?Lágrimas verdadeiras? Isso eles não informam.

Espero já estar morto quando todos os enfermeiros foremsubstituídos por autômatos porque estes são mais baratos. Se nãofor o caso, então vou soltar um parafusinho aqui e ali. Evert secomprometeu a derrubar, por acidente, com sua cadeira de rodas, omáximo possível de robôs. Vejo um belo roteiro de filme.

Pessoas velhas produzem menos adrenalina e dopamina,substâncias que provocam frio na barriga e palpitações. Mas, parase sentir apaixonado, você não depende da quantidade dehormônios que seu corpo produz, e sim do aumento relativo. E estepode ser do mesmo tamanho em idosos. Diz o jornal. Então é porisso que, quando estou perto de Eefje, sempre fico um pouco tolo ecomeço a gaguejar.

Quinta, 17 de outubro— Na verdade, tudo o que um médico faz aqui é tratamento

paliativo, não vamos nos enganar. — Essa foi a contribuição deEvert à discussão sobre o clínico geral do vilarejo de Tuitjenhorn,que talvez tenha injetado morfina muito generosamente em seuspacientes.

— De qualquer forma, Tuitjenhorn finalmente virou notícia —disse Graeme.

As opiniões sobre as intervenções do médico estavam divididas.Muita gente aqui ainda pensa de maneira linear cristã sobreeutanásia. Mas as pessoas estavam de acordo que nada justificavaa detenção do bom médico (parto desse princípio, até prova emcontrário) no meio da noite para um interrogatório de horas. Tantapressa assim também não era necessária.

Por causa de situações desse tipo, depois ficamos com médicosque não ousam mais receitar morfina, mesmo que você estejamorrendo de dor, com medo de que alguém morra com a injeçãodada. No caso de anciãos, o risco é estatisticamente grande. E umaaspirinazinha com frequência não ajuda mais.

O sr. Bakker, o mais resmungão desta casa, passou com seucarrinho Canta por um lava a jato, mas esqueceu de fechar o vidro.Quando já era tarde demais, ainda apertou o botão para fechar ajanela. Então ficou do lado errado do aquário. Rimosincontrolavelmente quando o porteiro nos contou. Ele o viu entrarensopado.

Sexta, 18 de outubro— Não aguento mais ver todas as notícias sobre os grandes

avanços em relação ao mal de Alzheimer! — disse Grietje. — O leitejá foi derramado.

No mais, ela continua alegre e conta com visível prazer que pôsas pantufas sob o travesseiro e o pijama embaixo da cama. E cadavez mais não se lembra do que exatamente pretendia fazer emalgum lugar.

— No banheiro, tudo bem, ainda. Quando já não souber maisdisso, é hora de ir para o lado de lá.

Nesta segunda-feira, teremos finalmente outro passeio com nossoclube Tô-velho-mas-não-tô-morto. Organizador da vez: Edward. Eleestá tentando nos confundir dando dicas contraditórias sobre o quevestir e mudando sempre a hora de saída. Na verdade, não era suavez, mas ele reivindicou a data. A expectativa é grande.

Mais boas notícias: nosso cozinheiro, o chef mais sem sal daHolanda, foi demitido. Os motivos não foram divulgados, mas oboato é que ele cozinhava demais com vinho. Ao lado.

A comissão de moradores inteira solicitou participação no comitêde seleção. Uma proposição sem nenhuma chance de ser aceita,mas eles não conseguiram concordar na escolha de umrepresentante.

Sábado, 19 de outubroSe os Estados Unidos tiverem problemas com suas finanças

governamentais e os republicanos acharem que o cofre deve serfechado, certamente teremos um juízo equilibrado a respeito.

— Se a América falir, vão precisar de um hábil oficial de justiça —ponderou a sra. Blokker.

— Se chegar a esse ponto, apenas um hábil oficial de justiça nãoserá o suficiente para eles — rosnou Graeme, acrescentando,dramático: — Estamos flutuando num barquinho frágil em direção àcachoeira, e ninguém faz nada!

Graeme é um grande admirador do falecido Ko van Dijk: sempreatua com exagero. Em seguida, geralmente vem uma inadequadapiscadela para Eefje ou Grietje, quando não para mim.

— É, são tempos incertos. A vida é um quebra-cabeça de cincomil peças que não vem acompanhado de uma imagem modelo! —Também não me saí nada mal, modéstia à parte.

De qualquer forma, melhor não contar com todos os ditosespecialistas. Eles são bons principalmente em prever as coisasdepois que aconteceram. Nenhum especialista na Europa Orientalpreviu que o Muro iria cair. Quase nenhum economista prognosticoua crise dos bancos. Talvez a humanidade seja burra demais eimponderável demais para fazer previsões decentes. Se for assim,vamos nos livrar logo de todos os peritos, esses enchedores delinguiça dos programas de entrevistas.

De qualquer maneira, qualquer discussão em nossa mesa de cháe café termina com uma verdade inquestionável: não vamos viverpara ver!

Terça, 22 de outubroEefje teve um grave derrame, provavelmente enquanto dormia, na

noite de sábado para domingo. Ela está quase completamenteparalisada e não consegue falar.

A enfermeira a encontrou no domingo de manhã e chamou umaambulância. Ela foi levada com urgência para o hospital, onde agoraestá no tratamento intensivo.

Sua filha foi visitá-la no domingo.Ontem de manhã, ela pôde receber visitas de não familiares por

um curto período. Eu estava muito preocupado quando fui vê-la. Foihorrível. A única coisa que ela consegue fazer é dizer sim ou nãobalançando a cabeça quase imperceptivelmente. Por sua resposta aperguntas, vê-se que ainda está bem lúcida. E sente muita dor.

Segurei sua mão, até que ela adormeceu num sono intranquilo.Então a enfermeira me fez ir embora. Perguntei se ela poderia

dizer a Eefje que eu viria novamente no dia seguinte. Será daqui apouco.

Quinta, 24 de outubroQuatro dias após o derrame de Eefje não ocorreu praticamente

nenhuma melhora. Ela só consegue fazer um som, e não é possíveldistinguir um sim de um não. Saiu do tratamento intensivo e agoraestá na enfermaria.

Ela já consegue engolir de novo e é capaz de tomar pequenosgoles de canudinho, o que visivelmente lhe custa muita energia.

Parece ter emagrecido. Antes do derrame, mal pesava cinquentaquilos.

Quando vou visitá-la, ela dorme quase o tempo todo. Quandoacorda, parece feliz em me ver. Sua expressão se ilumina por uminstante, mas depois de alguns segundos está novamente tãocansada e triste que toda vez fico com lágrimas nos olhos. Entãotenho que desviar um pouco o olhar para não a deixar ainda maistriste.

Geralmente seguro sua mão por quinze ou vinte minutos, até queela adormeça de novo. Não é necessário falar.

Ontem jogamos bilhar por uma hora, mas sem nenhum prazer.— Assim não tem sentido — objetou Evert. — Se vocês

continuarem com essa cara de enterro eu prefiro ficar em casa. Jáme basta meu próprio mau humor.

Ele tem razão, eu pedi desculpas. Depois ficou um pouco melhor.

Sexta, 25 de outubroCom a criação da sociedade Tô-velho-mas-não-tô-morto houve

um aumento da alegria de viver. Parece ter sido um último espasmode felicidade.

Evert inválido, Grietje ficando demente e Eefje vegetando. Édemais para um clube com apenas oito membros, mesmo que agente continue bebendo bons vinhos juntos regularmente.

Todos fazem o que podem para apoiar os outros, é comovente.Isso me dá alguma força.

Todos os dias, duas pessoas vão ao hospital, uma de manhã euma à tarde, e Grietje e Evert também recebem a ajuda de queprecisam. Todos confortam todos constantemente. Mas é umotimismo que contrasta com a realidade.

Tento escrever todos os dias. Isso me dá certo suporte. No mais,leio o jornal, vejo um pouco de TV , fico à janela, bebo chá. Rotina develho, eu sei, mas não tenho mais de onde tirar energia para outrascoisas.

Sábado, 26 de outubroSempre falei dos moradores que só resmungam e reclamam.

Agora acontece comigo. Hendrik Groen, faça um favor a você e aosoutros e se dê um bom chute no traseiro.

O primeiro resultado: perguntei a Edward se ele não querorganizar logo o passeio que foi adiado na última segunda-feira. Elerefletiu um pouco e disse que irá arranjar alguma coisa.

Foi o primeiro passo da volta por cima.Nosso advogado, Victor, escreveu avisando que o conselho

administrativo se comprometeu a fornecer todas as informações quesolicitamos até 1o de junho de 2014, no mais tardar.

Stelwagen tem consciência de que não será incomodada por nóspor muito tempo. Em tudo o que faz, o tempo está a seu favor.

Ela perguntou sobre Eefje no corredor. Ouvira dizer que não tinhatido muito progresso. Esperava de coração que ela pudessecontinuar a ter uma vida independente, mas a perspectiva era ruim.

— Com certeza o quarto dela terá que ser esvaziado rapidamente— deixei escapar.

Não, não, ainda não era o caso, isso teria que acontecer lá pormeados de novembro, não antes. Acredito que Stelwagen realmentese sensibilize por Eefje e por mim. Mas do ponto de vista do“interesse organizacional”.

Domingo, 27 de outubroOntem “troquei ideia” com Eefje e sua filha Hanneke. Eu estava

presente por insistência de Hanneke, que disse que a mãe comcerteza gostaria que fosse assim. Eu ainda não conhecia a filha deEefje. Ela é uma graça, mas mora em Roermond e tem três filhos,um marido e um emprego, então é bastante ocupada.

O hospital comunicou que o tratamento de Eefje terminou e queela agora precisa ir para a reabilitação. Reabilitação soaesperançoso, mas segundo o médico a chance de que ela serecupere o suficiente para ter uma vida independente épraticamente nula.

Sentamo-nos ao lado de sua cama. Hanneke fazia perguntas.Eefje mexia a cabeça indicando sim e não.

O resumo pode ser breve: ela não quer morar numa casa desaúde para idosos, quer morrer tranquilamente. Escreveu umadeclaração manifestando que, num caso como este, não desejamais viver. Ela já tinha dito isso a Hanneke quando ainda estavabem. Só não lembra onde está a declaração.

Nunca antes tinha visto olhos tão tristes e desesperados.Amanhã teremos uma conversa com o médico que cuida dela.

Prometi a mim mesmo que todos os dias contarei algo positivo ouengraçado.

Hoje de manhã, dezessete anciãos passaram uma hora sentadosna igreja reclamando que o pastor estava atrasado. Esqueceramque o horário de verão acabou!

Segunda, 28 de outubroO médico de Eefje nos escutou. Contamos que a vida para ela se

tornou insuportavelmente difícil e que ela assinou uma declaraçãona qual manifesta o desejo de não querer mais viver se forinteiramente dependente de outros.

Ele pediu para ver a declaração.Tivemos que admitir que ainda não a havíamos encontrado.— Não quero dar falsas esperanças a vocês. Mesmo com uma

declaração assinada, neste hospital nós não faríamos nada paraencerrar a vida da sra. Brand. Eu os aconselho a procurar o clínicogeral dela.

A interminável discussão entre os moradores sobre o médico deTuitjenhorn, que primeiro fez eutanásia num paciente e depois em simesmo, ganha mais sentido agora.

Durante o chá, passar de eutanásia a Zwarte Piet, o ajudantenegro de São Nicolau, é um pulinho. Piet pode ficar contente,porque tem um grupo leal de fãs aqui. Todo ano, a diversão égarantida quando uma senhora é convidada a sentar-se no colo dePiet. Algumas brigam por isso. Temos todos os anos os mesmosPiet e São Nicolau. Nosso São Nicolau está precisandourgentemente de um andador, mas, com a ajuda da equipe e de umenfermeiro forte, ele ainda conseguiu chegar a sua poltrona no anopassado. Zwarte Piet é na vida real o chefe do serviço de limpeza. Oúnico Piet com luvas de borracha cor-de-rosa e pepernoten numbalde. Por solidariedade a seus colegas, ele não joga asbolachinhas. Além do que, quase ninguém aqui consegue seabaixar sem cair.

Terça, 29 de outubroOntem foi dado o código vermelho, vento com intensidade dez.

Ninguém saiu. A cada tempestade, inevitavelmente, vem à tona avelha história da teimosa sra. Gravenbeek, que em 1987 voou como vento, caiu num canal e, infelizmente, morreu afogada.

— Eles ainda a tinham advertido!Deixei o quadriciclo parado por um dia. Voar é fácil, o duro é

aterrissar.Ontem à tarde continuei procurando pela declaração de Eefje

pedindo a eutanásia. Não encontrei nada. Olhei com sua filha, comtodo o cuidado, umas dez pastas nas quais está guardada uma vidainteira. Não me senti à vontade vendo todos os manuscritos e ascartas pessoais. Inicialmente, passava esses papéis para Hanneke,mas para ela era ainda mais difícil que para mim. Então passei osolhos o mais superficialmente possível para ver se havia algo sobreeutanásia.

Após duas horas, eu não conseguia continuar.Fui até Evert para chorar. O objetivo era figurado, mas algumas

lágrimas acabaram escapando.Evert serviu um uísque de vinte anos, “para ocasiões especiais”,

encomendou comida surinamesa e depois assistimos a um velhoDVD de Herman Finkers.

Então, melhorei.

Quarta, 30 de outubro“A gente nasce, a gente morre, e o resto é passatempo.” (James

Joyce)Preciso tirar forças de algum lugar para apoiar tanto quanto

possível a amiga mais querida que tenho neste momento deinfortúnio. Isso faz da vida um passatempo com algum sentido.

Na prática, o apoio a Eefje consiste em segurar sua mão por meiahorinha todos os dias e pensar no que mais há a dizer.

Ela quase não tem progredido. Na sexta-feira, vai ser transferidapara a ala de enfermaria. Não conseguimos encontrar em lugarnenhum a declaração na qual ela menciona que não quer mais viverse não puder fazer quase nada.

Das imagens de danos causados pela tempestade, a mais tristefoi a da lanchonete ambulante Uitje d’r bij!!!, que foi levada pelovento em Lauwersoog.

Quando tem tempestade, finalmente nos sentamos à janela, comobons velhinhos. De sua poltrona reclinável, em frente à janela doquinto andar, o sr. Bakker contou seis árvores caídas, dois acidentesde carro e três quase trombadas. Que dia!

Na hora do café, ouvi o seguinte raciocínio: por causa do euro,tudo ficou duas vezes mais caro, então, se reintroduzirmos o florim,tudo ficará automaticamente duas vezes mais barato.

Eu mesmo também tenho uma solução simples: todos os bancospodem deslocar a vírgula uma casa para a direita em todos osfundos. Daí, de fato, nada muda, mas todo mundo se torna dezvezes mais rico. O consumo aumenta, a economia cresceenormemente, e o problema está resolvido.

Quinta, 31 de outubroA sra. Van Diemen está pensando, a exemplo da cantora Anneke

Grönloh, em fazer plástica.— Onde é que o cirurgião vai pôr todos os queixos duplos numa

cirurgia dessas? — perguntou Evert, com cara séria.— Talvez possa fazer com eles um agrado a outra pessoa —

disse Van Diemen. Ela já está um tanto perdida e indo a passoslargos para a ala fechada.

Outro morador, o sr. De Wijs, vai trocar de banco pela terceira vezem pouco tempo. Ele foi do Postbank, passando pelo ABN Amro,para o Rabobank; agora acha que esse banco também é ruim.“Ninguém conhece um banco onde eu possa depositar meu dinheirodecentemente?”, perguntou durante o café. Ao redor, só rostos comar interrogativo. Alguém se ofereceu para guardar o dinheiro delepor enquanto. Embaixo do colchão.

O que aqui caiu em terreno fértil foram os testamentos da lojaHema. “Por tão pouco!” Muitos residentes têm medo de cartórios – ecom razão, considerando os preços que eles cobram por um par defolhinhas de papel –, mas na Hema eles confiam. Dois moradores,que tinham mesmo que ir à Hema para comer salsichão, quiseramadquirir um testamento imediatamente. Descobrir que devia ser feitovia internet foi uma grande decepção.

Sinto falta de Eefje, que sabia tão bem ajudar as pessoas asuperar momentos penosos de maneira discreta. Com uma únicaobservação dela você se livrava de todo aborrecimento, dasreclamações e das besteiras. Podia novamente suportar aabominável alienação que às vezes se tem aqui.

Sexta, 1o de novembroAo longo de minha vida, o número de habitantes da Terra subiu

de dois bilhões para sete bilhões. Mais que triplicou. Talvez essaseja a mudança mais radical que já ocorreu no mundo. Maisimportante que a Revolução Industrial ou que a revolução digital.

Quando o número de habitantes do mundo entrou em pauta nahora do café, a sra. Brom achou que “realmente estava ficandobastante abarrotado”.

— Bom, já na quantidade de visitantes eu não percebo nenhumaumento — zombou Evert.

— Isso é porque o senhor não é simpático — respondeu a sra.Brom.

Evert considerou aquilo um elogio.Se todas as pessoas tivessem proporcionalmente o mesmo

espaço que uma galinha de granja, digamos 150 x 150 centímetros,então todos os sete bilhões caberiam facilmente na metade daHolanda.

Pensando assim, ainda podem vir outras dezenas de bilhões.Eefje vem para casa hoje à tarde. Quer dizer, vem aqui para a ala

de enfermaria.A conversa de sua filha com o clínico geral resultou na conclusão

de que não se pode pensar em eutanásia no caso dela. Mesmo quenós encontrássemos sua declaração de que não quer continuar aviver se estiver apenas vegetando, ele não poderia fazer nada. Enão quis explicar mais a respeito.

Sábado, 2 de novembroOntem, no fim da tarde, cinco pessoas de nosso clube estavam

ao redor da cama de Eefje. Parecia uma reunião. Ou talvez mais umencontro de dissolução. A enfermeira veio dizer que só era permitidaa entrada de dois visitantes ao mesmo tempo.

— De outra forma, podem incomodar os outros pacientes.Eefje está dividindo um quarto com uma senhora de noventa anos

que está presa ao leito e tamborila as unhas na base metálica dacama o tempo todo e com outra senhora que fica balbuciando porhoras seguidas. A única coisa que ainda parece funcionar bem emEefje é sua audição. Espero, por Deus, que sua mente já não estejatão lúcida.

Três velhinhas num só quarto, nenhuma privacidade, nada depessoal. Essa é a assistência a idosos em 2013 num dos paísesmais ricos do mundo.

Estou mais distraído que de costume. Deixei o pão por tempodemais na torradeira três vezes seguidas. Queimou. Estava com acabeça em outro lugar. Tive sorte: a fumaça não foi suficiente parafazer disparar o alarme de incêndio. Isso teria causado o maiorbafafá, e provavelmente confiscariam minha torradeira ilegal. Fazeruma torrada entra na proibição de assar, fritar e cozinhar.

Domingo, 3 de novembroTive uma boa conversa com Evert. Estávamos jogando xadrez.

Pelo menos, eu movia as peças.— É uma espécie de xadrez suicida o que você está jogando,

Henk.— Hã?— Seria um substituto para o que você não ousa fazer na vida

real? — Evert não precisa de muito para chegar à essência dascoisas.

Naturalmente, comecei a dar voltas e enrolar um pouco, masEvert não tem paciência para isso. Ele me deixou deambulando edepois ficou calado. Então, veio o conselho.

— Henk, se você não quer mais, tem que pôr um fim. Nada dessahistória de assistente de óbito e médico. Simplesmente compre umaboa corda. Enquanto você ainda pode subir numa cadeira e se jogardali, não precisa de ninguém. Se você não tiver coragem, o queacontece com frequência, não deve ficar aí reclamando. Faça o quetem de ser feito.

Era bem isso.Eu ainda resmunguei que algumas pessoas não fazem eutanásia

porque não querem causar sofrimento nem deixar os entes queridoscom sentimento de culpa. Eventualmente, ele ajudaria a dar o nó nacorda. Não que ele quisesse se livrar de mim, certamente não, masamigos de verdade estão aí para quando é preciso. Sem interessepróprio.

— E transmitiria suas desculpas aos outros membros do clube,embora eu acredite que eles compreenderão. Afinal, estamos todosafundando no mesmo barco. E agora, ao xadrez!

Segunda, 4 de novembroGraeme contou na mesa que sempre escuta um clique estranho

quando ligam para ele. “Tenho a impressão de que meu telefoneestá grampeado”, disse, com cara séria. Algumas horas mais tarde,durante o chá, outros cinco moradores também comentaram queouviam um clique estranho ao atender ao telefone.

— Só agora entendo como a sra. Merkel deve se sentir — disse asra. Schenk sem uma pitada de ironia.

Graeme me confidenciou mais tarde que seu telefone já está hásemanas sem uso, numa gaveta.

— Ninguém nunca liga para mim. Quando recebo algumtelefonema, é para assistência à maternidade, pois é quase omesmo número.

Rutte fez um duro protesto à NSA : por que Merkel e o papa sãogrampeados e eu não?

Bakker, nosso zangão, ficou exaltado com os militares que serãoenviados ao Mali.

— Para cada unidade, cinco assistentes de logística; quebananas! Missão de estabilização, sei! Fui à Indonésia para atirarnaqueles amarelos de olhos puxados e mostrar quem é que manda.

— E... afinal, quem é que manda? — perguntou a sra. Tuhuteru,dando uma piscadinha para mim com seus olhinhos amendoados.

Nos últimos tempos, não ouvimos mais nada sobre a reformaiminente. Aqui, em geral, não ter notícia é má notícia. Sinto falta deAnja como informante na direção. Aliás, nossa espiã, agoraaposentada, está muitíssimo bem. Está aproveitando a vida. Nósnos encontramos regularmente para um café.

Com Eefje, nada de novo.

Terça, 5 de novembroPensei que Eefje gostaria que eu lesse para ela em voz alta. Ela

sempre foi uma leitora voraz. Encontrei três livros em seu quartoque pareciam não lidos. Não foi tão fácil. A chefia do departamentonão queria me deixar entrar no quarto dela. Fui até Stelwagen,expliquei a situação e pedi autorização para pegar alguns livros. Foia tática certa, agora posso entrar no quarto de Eefje sem problemas.Recebi até uma chave, o que, acredito, é contra o regulamento.

Casualmente, a diretora informou que o quarto deve seresvaziado até 1o de janeiro, a menos que haja uma recuperaçãosignificativa.

— Nossa, a senhora está muito flexível.— Quando é preciso, uso a autonomia que me é proporcionada.Eefje fez sinal de aprovação quando sugeri ler para ela. Ela podia

escolher entre Jacoba , de Simone van der Vlugt, A solidão dosnúmeros primos , de Paolo Giordano, ou A chave de Sarah , deTatiana de Rosnay. Ela indicou que queria este último. Espero quenão seja um livro triste demais. Fiquei feliz por ela não ter escolhidoJacoba , sobre a vida de Jacoba van Beieren. A primeira frase docapítulo inicial é: “A morte veio pairar no interior do quarto”. Teriasido um começo difícil.

Em meia hora, li dezessete páginas. O livro tem trezentas e trintae uma. Portanto, há palavras suficientes para umas vinte sessõesde leitura.

No final, perguntei se ela tinha gostado. Ela mexeu a cabeçafazendo que sim.

Quarta, 6 de novembro— Então, meninas, já pus os comprimidos nos cafés. Vejo vocês

daqui a pouco em meu quartinho. — Evert já sonhava. Esperavaansioso poder viver até a introdução da pílula do desejo paramulheres.

— Velho presunçoso — rosnou Graeme.— Tenho muito chão para recuperar — disse Evert —, porque fui

casado por trinta anos, com uma mulher muito querida, mas frígidacomo um freezer e seca que nem torrada.

— A pílula deixa as mulheres com bigode — falou Grietje,lançando-lhe um olhar fulminante.

O clube Tô-velho-mas-não-tô-morto estava se reunindo pelaprimeira vez em semanas, e isso era bom. Bebemos vinho,comemos bitterballen, e o clima era alternadamente sério e alegre.Ria e Antoine nos convidaram para jantar num restaurante de velhosamigos neste domingo. Todos estarão presentes. Bem, todos menosum. Hoje à tarde vou de novo ler para ela. Não sei se terei coragemde contar sobre nosso jantar no domingo.

Quinta, 7 de novembroNa Noruega, a televisão transmitiu um programa de doze horas

sobre tricô: da ovelha ao pulôver. Como promoção da “slow TV ”.Sugiro como contrapartida holandesa uma transmissão de dozehoras de duração das entradas e saídas em nosso elevador. Isso,sim, é slow TV . O degrauzinho de meio centímetro, principalmente,causa uma demora enorme.

Por um defeito, um elevador ficou um dia sem funcionar, e criou-se uma fila de metros. Ter que esperar na fila não faz aflorar omelhor em nossos moradores: acotovelavam, empurravam,esbarravam nos tornozelos e xingavam.

— Esta merda de elevador do caralho! — disse Bakker.Não exatamente um título de livrinho infantil. Houve olhares

chocados e ultrajados, ooohs e afffs.Li pela terceira vez para Eefje. É uma boa sensação, apesar do

fato de a mulher na cama ao lado estar sempre atrapalhando comseus balbucios. Perguntei à enfermeira se a mulher às vezes ficaquieta.

— Só quando dorme, mas aí ronca um pouquinho. — Essa foi aresposta alarmante.

Sondei com Eefje se ela queria um tapa-ouvidos. Ela balançou acabeça fazendo que sim. Eu disse que iria providenciar. Não deveráser um problema. Ouvidos são um bom negócio hoje, pois empouquíssimo tempo já abriram duas novas lojas de aparelhos parasurdez no centro comercial aqui perto. Com certeza têm tapa-ouvidos.

Sexta, 8 de novembroOs problemas financeiros no mundo editorial ganharam nossa

atenção. Quer dizer, houve grande inquietação sobre a falênciaiminente das revistas femininas Margriet e Libelle , duas pedrasfundamentais da sociedade. Inquietação principalmente dassenhoras, mas também de alguns senhores.

Minha sugestão de passar a reler os números de anos anteriores,no caso de desaparecimento dessas duas publicações de altaqualidade, foi recebida como um insulto.

— A maior parte das pessoas aqui tem memória tão ruim quenem perceberia — acudiu-me Graeme, mas com isso a coisa foi demal a pior. Olhares raivosos! Tivemos que nos safar assegurandoque era uma piada.

— Eu mesmo adoro ler a Margriet — eu ainda disse.Acho francamente insultante que ninguém tenha percebido que

isso, sim, era uma piada.Não subestimo a importância de revistas como Libelle e Margriet .

Para muitos que vivem aqui, elas são a janela para o mundo.Jornais quase não são lidos, programas de atualidades raramentesão assistidos. O mundo do idoso, com o passar dos anos, torna-semenor e menor. Eles saem cada vez menos para além dos murosde casa. Amigos e conhecidos morrem. Já não trabalham hádécadas. Nada nem ninguém para cuidar. O que permanece é aMargriet . E tempo de sobra para ficar de olho em tudo e todos.

Sábado, 9 de novembroGrietje se perguntava se ainda fazia sentido para ela aprender

uma segunda língua muito rapidamente.Talvez eu tenha feito uma cara estranha, porque ela disse logo

em seguida:— É brincadeira, mas li que pessoas que falam outros idiomas em

média ficam dementes quatro anos mais tarde. Não seria nada mau.— Não, mas agora é tarde. A única diferença seria que nós,

então, não entenderíamos mais o que você diz em duas línguas.Obrigado, Evert, por sua contribuição positiva.A chave de Sarah , o livro que estou lendo para Eefje, é

pesadíssimo. Não sinto um final feliz se aproximando. Perguntei aEefje duas vezes se ela não preferiria que eu lesse um livro maisalegre, mas ela balançou a cabeça as duas vezes dizendo comfirmeza que não.

Ler para ela dá estrutura a meus dias. Geralmente à tarde, umavez ou outra de manhã, vou até a ala de enfermaria e faço meiahora de leitura. Em seguida, ainda seguro sua mão por um tempo.Com frequência, após uns quinze minutos, mais ou menos, elaadormece.

Aos pés de sua cama está um pequeno quadro-negro que Grietjecomprou para ela na Bart Smit. Nele, eu sempre escrevo algosimpático a cada vez que venho. Depois, em geral, vou até Evertpara um drinque. Ainda precisei lhe agradecer pela sacudida queme deu na semana passada. Não reclamar; fazer. Vou lhe comprardois maços grandes de gladíolos. Tenho certeza de que não terávasos para eles.

Domingo, 10 de novembroLá estava Evert, com quatro quilos de flores em uma mão e duas

muletas na outra.— Bom, eu já vou andando.— Nada de fugir, seu malandro!Eu estava pronto para fechar a porta.— Henkie... por favor... — disse, desamparado.Então pude rir na sua cara e só depois ajudá-lo.Ele realmente não tinha vaso. Os dois enormes maços de

gladíolos agora estão em dois vasos que ele, após uma visitarelâmpago a Eefje, de repente tinha em sua mochila. Desde queperdeu uma perna, usa uma mochila. Na ala de enfermaria, há umarmário cheio de vasos, mas é proibido ter flores nos quartos.Parece que é ruim para alguma coisa. Antigamente nos hospitaiseles colocavam todas as flores no corredor à noite.

Depois tomamos café. Ele estava contente com as flores e muitosatisfeito com o fato de eu não reclamar mais, mas fazer algumacoisa.

— Ainda que seja só ler.Também estou novamente satisfeito comigo mesmo.Hoje à noite temos o jantar no restaurante. Jejuei o dia inteiro,

porque não vai ser nenhum stamppot nojento de chicória. Se nãoforem pelo menos cinco pratos, eu como meu chapéu desobremesa. O senhor Hendrik daqui a pouco vai pôr terno e searrumar todo.

Não consegui arrumar coragem para contar a Eefje que íamossair com o clube. Achei que seria muito doloroso.

Segunda, 11 de novembroCom certeza ganhei um quilo ontem à noite. Sete pratos e seis

bebidas diferentes. Meu recorde pessoal. Um grande progressopara alguém que nos primeiros cinquenta anos de vida nunca tinhasido servido com mais de dois pratos e um copo d’água.

Bem, houve muita frescura. Mas frescuras bem gostosas. Aexplicação do garçom a cada prato durava pelo menos dois minutos.Muitos ingredientes dos quais eu jamais tinha ouvido falar, entãonão me pergunte o que eu comi.

Tão importante quanto foi o fato de que não era exageradamentechique e pomposo. Podia-se tranquilamente soltar um arroto. Nãoum estrondoso, como Evert deixou escapar, mas num arrotinhoeducado, de satisfação, ninguém reparava.

Estávamos todos completamente de acordo: foi a refeição maisdeliciosa de nossa longa vida. Ria e Antoine, os organizadores,estavam radiantes como nunca.

Brindamos a Eefje, a velha princesa ausente. Sentimos falta dela,sem que por isso o clima tenha se tornado triste.

Após os ovos de codorna pochés sobre leito de alface-do-mar (oualgo assim) de ontem, agora tenho diante de mim um pacoteenorme de doces para o dia de São Martinho. Vou comer meuterceiro mini Mars.

Nunca aparecia nenhuma criança cantando em nossa porta nodia de São Martinho, até o ano passado. De repente algumascrianças descobriram a vantagem dos corredores aquecidos ecobertos. (Suspeito que o porteiro estava cochilando.) Ninguémcontava com aquilo. Procuravam em toda parte, meticulosamente,bolo e doces. Foram dadas caixas inteiras de bombons caros e

muitas moedinhas.Neste ano estamos mais bem preparados. Só falta não vir

nenhuma criança e termos que comer tudo sozinhos.

Terça, 12 de novembroFui até a loja de aparelhos auditivos. Será que também ajudavam

a ouvir menos? Expliquei o problema ao vendedor: uma velhinhadoente que se incomoda com o barulho dos outros pacientes. Omelhor seria, disse o homem, fazer um tapa-ouvidos sob medida.Custariam aproximadamente noventa euros. O dinheiro não éproblema, mas fazer sob medida me pareceu, no caso de Eefje,difícil. Comprei alguns bons tapa-ouvidos padrão e experimentei emEefje. Foi um gesto inesperadamente íntimo. Você está ali,cutucando o ouvido de alguém com seu dedo. Eu tremo bastante,então demorei um pouco para pôr o tapa-ouvido mais ou menos nolugar.

Por um momento, achei que ouvi sua risada, mas foi uma ilusão.No entanto, seus olhos de fato sorriam.

Um pouco mais tarde, a enfermeira começou a implicar. Não eracostume dar tapa-ouvidos aos pacientes.

— Não, o senhor não pode estar presente durante esta consulta.— E pediu que eu retirasse os tapa-ouvidos.

Tive que falar muito e com grande convicção para que os tapa-ouvidos pudessem ficar onde estavam, ao menos enquanto suascompanheiras de quarto continuassem a tamborilar e balbuciar enão houvesse visitas para ela.

Eefje teve que balançar a cabeça algumas vezes para respondera perguntas da enfermeira e confirmar que era isso o que queria.

Quando a sra. Slothouwer se convenceu de que as poucasárvores caídas na Holanda duas semanas atrás eram um problemamenos grave que a destruição nas Filipinas, ela trouxe à tona agrande inundação de 1953 para equiparar ao tufão. Os próprios

desastres vêm primeiro, é seu mote.

Quarta, 13 de novembro— Desde que Zwarte Piet não se pareça com aquele bandido do

Dino Bouterse, não precisa ser nem verde nem azul. — Ouvi de umângulo inesperado.

A sra. Weltevreden é, faz pouco tempo, nossa única residentenegra e uma grande fã de um bonito e radiante Zwarte Pietajudando São Nicolau a distribuir presentes. Ela mesma tambémusa grandes brincos dourados e ainda pinta os lábios de vermelhocom frequência.

Como sempre, reclamou-se durante o café: a fisioterapia, emgrande parte, não terá mais cobertura do seguro adicional. A sra.Van Vliet, que todos os anos vai umas cem vezes ao fisioterapeuta,sabe lá Deus por que dores imaginárias, calculou que a partir doano que vem terá que pagar cinco mil euros do próprio bolso.

— Bom, então não vou mais fazer fisioterapia. É muito caro paramim.

— Mas e as dores? — alguém perguntou.Van Vliet ignorou a pergunta. Reza a lenda que ela às vezes já

nem sabia por que ia ao fisioterapeuta. “Faça aí alguma coisa”, teriadito uma vez.

O fisioterapeuta da casa nunca criou dificuldades. Mandavadespreocupadamente sua conta ao seguro-saúde. Ele agora terátempos difíceis. Ele andava de BMW graças apenas à sra. Van Vliet.

Graeme resume da seguinte maneira: as pessoas vão aofisioterapeuta até que o problema se resolva por conta própria. Sim,sim, sim, é claro que muitos idosos se beneficiam de uma variedadede tratamentos.

Quinta, 14 de novembroHoje de manhã, num momento de lucidez, perguntei-me se

pacientes acamados não têm necessidade de música. O corpo estáconfinado à cama, mas os ouvidos ainda podem viajar. Seria umamudança bem-vinda ouvir música por umas horas de vez emquando. Ou o rádio. Para tornar o sofrimento um pouco maissuportável. Vou perguntar a Eefje hoje à tarde. Sei que ela tem umacoleção grande de CD s que costumava escutar com frequência,principalmente de música clássica.

Ontem, no fim da tarde, ainda fiz um passeio pelos místicosprados enevoados de Waterland. Raramente há movimento por lá.De vez em quando, um carro passa rascando a oitenta por hora naspequenas estradinhas, mas depois a palavra está de novo com asvacas, as ovelhas e os pássaros. Eu ficava em paz. Isso soa umpouco meloso, mas não sei como dizer de outra forma. Ficava atéum pouco tranquilo demais. Quase caí numa vala.

Um agricultor passando num trator olhou espantado para ovelhinho perdido e cumprimentou silencioso com a mão.

Aos poucos, escureceu. Caía uma chuvinha fina, mas nãoincomodava.

Foi a primeira vez que andei com o farol aceso.

Sexta, 15 de novembroA análise do desastre nas Filipinas feita pelo sr. Bakker:— Sorte eles serem tão pobres lá, senão o dano teria sido muito

maior. — Nossos moradores não têm muito interesse pelas notíciasinternacionais, mas fazem com prazer uma exceção para osdesastres naturais.

Estão rezando muito pelas vítimas, mas isso ainda não deuresultados diretos. Para alguns, rezar substitui o envio de dinheiropara a conta 555 de auxílio a catástrofes. Em vez de abrir a carteira,preferem deixar nas mãos do grande governante lá de cima.

Um pequeno revés: a ala de enfermaria não pretende incluir tapa-ouvidos e música em seu pacote básico. Falta de tempo, carga detrabalho excessiva. Falta de vontade não foi mencionada, mas comcerteza pesou na decisão.

No entanto, não foi dito que é vetado o uso de fones nem de tapa-ouvidos. Se familiares ou amigos quiserem fornecer e os outrospacientes não forem importunados, então serão permitidos, a títulode experimento. Os rodeios nessa explanação são da sra.Duchamps, chefe da enfermaria, uma baixinha tacanha. Ela sabetudo melhor que todos. Uma francesa que deveria ter ficado naFrança. Arrogante e antipática, mesmo com seu adorável sotaque.

Sábado, 16 de novembroEvert descobriu uma mancha preta suspeita no dedão do pé que

sobrou.— Espero que não precisem cortar outro pedaço, porque é meu

último pé — falou, brincando.Ouvi uma voz um tanto rouca demais e vi uma gotinha de suor.

Ele me mostrou. Então limpei seu dedo com uma esponja. Ficoubranquinho. Nunca o tinha visto tão aliviado. Pegou imediatamenteum uísque, porque, com o nervosismo, não tinha bebido durantedois dias, o que não lhe ocorria havia mais de vinte anos. Eu morride rir. Demorou um pouquinho, mas então Evert também teve querir.

Comprei um iPod. Pra falar a verdade, nunca tinha posto as mãosnuma coisinha dessas, mas uma estagiária de minha ala tinha ditoexatamente o tipo que eu deveria comprar. Hoje à noite ela vaicolocar nele alguns CD s que peguei no quarto de Eefje. Uma graçade menina. Chama-se Meta e é de Badhoevedorp. Ela gosta de meajudar.

Será que algum dia as coisas no mundo vão melhorar em termosde direitos humanos? Desde que li uma pequena nota no jornal,estou um pouquinho mais otimista. Rússia, Cuba, China e ArábiaSaudita foram escolhidos para o Conselho de Direitos Humanos dasNações Unidas. Cada um desses países conta com uma enormeriqueza em experiências de violações aos direitos humanos.

Domingo, 17 de novembroMeta trouxe o iPod de volta hoje de manhã. Agora está com nove

CD s de música clássica.— Você gostou da música? — perguntei.— Na verdade, não — disse ela, depois de hesitar um pouco. Na

verdade, não significa: não mesmo.— Que pena para você.— Para passar para o iPod não é preciso escutar — falou para

me consolar.De Beethoven ela tinha gostado bastante. “Ele ainda vive?”Meta não tem mais avô. Um morreu, e o outro, numa briga de

família, ficou no campo adversário, então ela nunca o vê. Ela meacha um simpático avô substituto. Até que gosto, de vez emquando, de ser seu avô por uma tarde. Infelizmente será por poucotempo, porque seu estágio já está quase terminando e aí ela vaivoltar para Badhoevedorp.

Fui imediatamente até Eefje. Embrulhei o iPod num papel depresente bonito e eu mesmo o desembrulhei diante de seus olhos.Com cuidado, pus o fone de ouvido nela para que escutasse ocomeço de uma sinfonia de Mozart.

Ela ficou muito contente.Prometi que serei seu DJ por meia hora de manhã, e à tarde

continuarei lendo por meia hora. E, se não puder vir, providencio umsubstituto.

Meia hora é suficiente. Então ela geralmente adormece. Hoje demanhã também. Girei lentamente o botão do volume até o mínimo etirei o fone de ouvido com cautela. No quadro-negro ao pé da camaescrevi: “Você estava tão bonita dormindo, não quis acordá-la. Até

hoje à tarde”.

Segunda, 18 de novembro— De repente eu não sabia mais como tirar a televisão da função

vídeo! Fiquei olhando para os botõezinhos do controle remoto. Nãotinha a menor ideia do que fazer. Então, liguei o rádio.

Eu disse enfaticamente a Grietje que, da próxima vez que algoacontecer, ela pode me ligar.

Ela está regredindo. Ela mesma acha. Passo lá todos os diaspara uma conversinha e para ver se está tudo bem.

Num curto período, adquiri uma boa experiência como cuidador.Com isso, tenho menos tempo para a turma do chá e do café e seuspapos deprimentes. Tanto melhor. Só tenho que tomar cuidado paranão negligenciar o setor saudável do clube – Graeme, Edward, Riae Antoine.

Nosso simpático advogado telefonou para me informar em que péestão as coisas. Comuniquei que tínhamos problemas de motivaçãoem nossa luta por transparência por parte da direção. Elecompreendeu quando contei o estado vegetativo em que minhaprincipal parceira de batalha se encontrava.

Ficou muito triste e perguntou se poderia dar continuidade emnosso nome.

— Claro, pode, sim. Se conseguir encontrar tempo e energia, euajudarei.

— Eefje apreciaria isso. Conte para ela.

Terça, 19 de novembroGraeme contou que há exatamente setenta anos hoje, ele, então

um garotinho de doze anos, perdeu seu cachorro. Ele o soltou noparque e quatro agentes alemães simplesmente o prenderam. Adata ficou gravada em sua memória a ferro e a fogo. Nunca tinha sesentido tão impotente. Mais tarde ouviu dizer que cães capturadoseram usados como farejadores de minas.

Minhas significativas tarefas como cuidador se tornaram umaâncora em meu dia a dia. Dão-me tranquilidade e uma sensação decomprometimento. Meus três pacientes, Evert, Grietje e Eefje, estãosatisfeitos. No que diz respeito à leitura, não sei se A chave deSarah foi uma escolha feliz. Não fico nem um pouco animado comaquele livro e também não acho que seja tão bem escrito. Mas Eefjegosta. Ela também está contente com sua rádio particular.

Juntei coragem e perguntei se ela ainda queria morrer. Sim, elaainda quer, mas agora um pouco menos. Foi o que compreendi deseus movimentos de cabeça em resposta à pergunta.

Boa notícia para a maioria dos residentes: a reforma foi adiadaem um ano. Várias senhoras se perguntaram se deveriam deixartodas as caixas de mudança que juntaram por um ano em seusquartinhos ou se devolveriam uma por uma ao supermercado. Difícildecisão. Depois veio a conversa sobre tumores. Foi a deixa para eusair e dar uma voltinha.

Quarta, 20 de novembroFui com Grietje fazer uma visita à ala fechada para dementes. Foi

fácil entrar. Simplesmente andamos junto com uma enfermeira edissemos que iríamos visitar a cunhada de Grietje. Tínhamosprocurado antes o nome de uma paciente qualquer, mas nem foinecessário usar. Ninguém perguntou nada. Caminhamos pelasvárias salinhas e vimos aqui e ali um velho conhecido. Nãoprecisávamos ter medo de que nos reconhecessem.

Era hora do almoço. Uma enfermeira dava de comer a umasenhorinha de babador.

— Bip, bip, lá vem o caminhãozinho... e... nham!Hoje se diz que a pessoa está demente, mas antigamente se dizia

que era “infantil”.Outra senhora, sentada numa poltrona, perguntou-me se eu

queria ver sua caixinha de surpresas. E imediatamente abriu aspernas. Não vou entrar em detalhes. Alguns velhinhos tinham umolhar apático, mas também fomos cumprimentados amistosamente,com acenos de cabeça e sorrisos. Grietje tem a invejávelcapacidade de aceitar as coisas como elas são.

— Então é aqui que vou estar daqui a mais ou menos um ano —disse. — Só espero me divertir um pouco quando o momentochegar. Aliás, não quero que você venha me visitar, Henk, a não serque eu peça expressamente por isso. Combinado?

Sim, estava combinado.

Quinta, 21 de novembroNum abrigo de idosos em Den Bosch, alguns moradores tinham

que pagar pelo papel higiênico. Pelo menos, era assim dois anosatrás. A indignação foi grande na época. Agora corria o boato deque nossa casa pensava em tomar medidas de economia dessetipo. Não me parece uma boa ideia para implementar aqui. Certosresidentes são tão parcimoniosos que, se eles mesmos tiverem quepagar pelo papel higiênico, vão preferir não usar ou se lavar nochuveiro. Se também não for preciso pagar para usar o chuveiro, éclaro.

Isto aqui já não cheira muito a limpeza. Às vezes tenho aimpressão de que o papel higiênico é racionado.

O que me fascinou na notícia de jornal na época foi que “alguns”moradores tinham que pagar por seu papel higiênico. Por que outrosnão? Será que recebiam um número contado de folhinhas e, setivessem usado todas, tinham que pagar pelo papel a mais?

É um assuntinho meio nojento. E eu na verdade ainda sou umsenhor muito distinto. Distinto e discreto, é como eu gostaria de medescrever. Nem grande nem pequeno, nem gordo nem magro.Calças cinza ou azuis, paletó asseado. Muitas rugas e algunscabelos grisalhos que o barbeiro corta em menos de dez minutospor dezesseis euros. E dos dez minutos com certeza a metade éjogando conversa fora. Mais um pouco, estarei pagando mais de umeuro por fio de cabelo.

Sexta, 22 de novembroO quarto de Eefje terá mesmo que ser esvaziado até 1o de

dezembro. A diretora foi precipitada quando disse antes que seria1o de janeiro. Ela gostaria muito de nos dar mais tempo, mas, emretrospecto, viu que os regulamentos não permitiam.

— A senhora quer dizer aqueles regulamentos que não podemser vistos por ninguém?

Sim, eram aqueles. Percebi um quê de vergonha perpassandosua expressão.

Fui convocado por Stelwagen, junto com a filha de Eefje,Hanneke, para “conversar sobre os próximos desenvolvimentos”,mas realmente não havia muito que conversar. Hanneke perguntouse eu queria ir com ela para contar à mãe.

Não queria, mas achei que devia ir.Fomos imediatamente. Eefje não ficou surpresa ao saber que seu

quarto teria que ser esvaziado. Ela teve uma pequena melhora.Consegue dizer algo que se parece com um “sim”, ou pelo menospode-se distingui-lo de um “não”. Pode movimentar um pouco a mãoe a perna direitas e está conseguindo engolir com menosdificuldade.

Combinamos de guardar uma pequena parte de suas coisas edeixar os objetos mais pessoais com ela. Ela tem ao lado de suacama um armarinho próprio, uma cadeira e uma mesinha. Osobjetos pessoais são reduzidos ao mínimo possível na ala deenfermaria. O Monty Python já dizia: nascemos sem nada. Então, oque temos a perder? Nada!

Depois, pus meia hora de música para Eefje escutar, o que aacalma e relaxa. Já sei lidar bastante bem com o iPod. Comprei um

para mim também. (Alguém me chamou de moderninho.) Só não seicolocar as músicas sozinho.

Sábado, 23 de novembroO porteiro barrou um Zwarte Piet azul e um verde. Só o Zwarte

Piet preto pôde entrar, mas foi proibido de jogar pepernoten pelachefia de serviços de limpeza para evitar que as bolachinhasacabassem esmigalhadas no carpete.

Corre um boato de que os Piet azul e verde deram queixa pordiscriminação. A direção, morrendo de medo de um motim, divulgouuma declaração dizendo que o porteiro agiu por conta própria. Deonde surgiram os Piet, ninguém sabe.

Para agradar a Evert, ontem participei de novo do torneio debaralho. Ninguém quer jogar com ele. E, de preferência, contra eletambém não. Alguns velhinhos desenvolveram uma aversão doentiaa meu amigo, e ele não merece isso, por mais irritante que seja.

Ao contrário de meu costume de jogar cartas meiodistraidamente, fiz o melhor que pude e isso resultou num beloterceiro prêmio: duas barras de chocolate em forma de letras.

O nível dos jogadores é baixo. As oportunidades sãocontinuamente perdidas a cada jogada, então mesmo com cartasmedíocres tem-se uma chance razoável de bons resultados.

— Eu não gosto de chocolate, pelo menos não desse aí. — Foi areação do sr. Pot, azedo até o osso.

— Bem, eu gosto, mas vou dar meu prêmio à jogadora maissimpática do torneio, a sra. Geertje, que, além do mais, estáprecisando de umas calorias — disse Evert, dando sua letra dechocolate à magrinha Geertje, que tinha ficado em último e agoraestava radiante. Evert não pode comer chocolate.

Domingo, 24 de novembroAinda é um mistério quem enviou os três Piet ao asilo.O verde e o azul, como eu disse, foram barrados pelo porteiro e o

preto partiu depois de três minutos e só emitiu sonsincompreensíveis. Estão circulando várias teorias.

1. Seriam ladrões disfarçados. (“Escutei objetos de ferro batendodentro do saco de presentes.”)

2. Uma casa de repouso concorrente queria nos importunar.(“Aquele Piet era a cara de um enfermeiro surinamês da casa X.”)

3. Foi uma surpresa de nossa própria comissão de moradores, eeles agora estão fazendo de conta que não sabem de nada porquefoi um fracasso. (“Eu até ouvi quando disseram surpresa .”)

Os moradores daqui não têm nem um pinguinho de fantasia, anão ser quando se trata de fazer acusações.

Ria e Antoine consideraram uma honra adotar as plantas deEefje. Foram visitá-la para dizer que, aos cuidados deles, elasestariam em boas mãos.

Em meu quarto não existe nem uma folhinha verde. Não consigomanter viva nem uma espada-de-são-jorge. Plantas de bulbo, sim.Florescem e depois, hup, para a lata de lixo. Só com o Evert plantase flores de bulbo têm ainda menos chance de sobreviver. Seucachorro, Mo, come qualquer coisa que cresça e floresça. E depoisvomita tudo.

Segunda, 25 de novembroEncontrei no corredor aquela assistente social simpática que uma

vez foi enviada para sondar meus planos de suicídio. Ela perguntouse eu ainda via um raio de sol na vida.

— Bem, de fato o céu anda bastante cinza — eu disse.— E atrás das nuvens?Respondi a ela, com sinceridade, que já não espero mais muito

sol e que, quando tiver me cansado desse clima, farei contato comela antes de cometer suicídio.

Ontem passei algumas horas separando as coisas de Eefje comHanneke. Do lado direito do quarto está tudo o que pode ser levadopelo brechó. À esquerda estão algumas coisas que Hanneke vaitentar vender pela internet. No meio do quarto, duas caixas compequenos objetos pessoais: fotografias, quadros pequenos, algumasestatuetas, joias, livros e CD s. Uma vida inteira em apenas duascaixas. Não será preciso chamar um caminhão de mudança, dápara levar no carrinho de café.

Sexta-feira vem uma caminhonete do brechó para levar tudo oque sobrar.

A diretora disse, em sinal de generosidade, que a casa pagará oscustos da retirada de ganchos e parafusos.

— Que gesto nobre... — Não pude deixar de dizer.E ainda não encontramos a declaração pedindo a eutanásia.

Agora perdemos a esperança.

Terça, 26 de novembro— Com um pouco de sorte, no ano que vem vou acreditar de

novo em Papai Noel! — brincou Grietje.— É, continue caprichando na demência, aí você consegue —

estimulou-a Evert.Ela via aquilo como uma boa perspectiva, acreditar que os

presentes apareceriam em seus sapatinhos.— Quem sabe Papai Noel coloque uma palmilha ortopédica

dentro!— De marzipã.Anja veio me visitar ontem. Ela está aproveitando a vida desde

que recebeu sua aposentadoria antecipada. Mas se arrepende denão ter tido tempo de pegar mais informações “confidenciais” que adiretoria quer manter fora do alcance.

— Como espiã, fui um fracasso.— Mas como pessoa você é um sucesso.— Muito gentil de sua parte, Hendrik.Depois fomos ao Museum Noord, ela em sua bicicleta motorizada

e eu em meu quadriciclo. Consegui, por pouco, andar na mesmavelocidade. O Museum Noord é o único museu na parte norte deAmsterdã. Estava fechado na segunda-feira.

Quarta, 27 de novembroUma das vantagens de morar aqui é que a chance de morrer e

ficar dez anos sem ser encontrado no quarto é pequena. Em relaçãoa isso os moradores concordavam.

— Isso é mais uma vantagem para quem está vivo. Que nãocomece a feder. Para o morto já não faz diferença nenhuma —contrapôs o sr. Krauwel.

O sr. Krauwel é nossa mais nova aquisição: negativo até depoisda vírgula, reclama de tudo. Junto com o sr. Bakker, ele forma o duoOsso Duro de Roer.

As senhoras acham Krauwel bonitão por causa de seus cabelosgrisalhos ondulados.

Cada homem novo é recebido aqui com júbilo contido, por causado grande excedente de mulheres. É embaraçoso ver como certasmulheres tentam atrair a atenção de um novo morador. Passambatom nos lábios finos, rearranjam os seios murchos, espalhamnuvens de perfumes fortes e começam a falar bem alto e a rir comfrequência.

A senhora que conseguir fisgar Krauwel vai se arrepender. Vai teruma hiena como companheiro.

Estou um pouco gripado e não posso tirar proveito disso agora. Ocuidador tem que estar em forma.

Por coincidência, depois de amanhã tenho que ir ao geriatra, daíele pode tratar também dessa tosse chata.

Quinta, 28 de novembroSonhei que punha um travesseiro sobre o rosto de Eefje e depois

me sentava em cima. Acordei suando e inteiramente perdido. Só meacalmei depois de meia hora e duas xícaras de chá.

Em alguns momentos junto à cama dela, vendo sua tristeza e suador, desejei a ela uma morte suave. Mas jamais poderia fazer issocom minhas próprias mãos. Só de pensar já me sentia mal.

Terminei de ler o primeiro livro para ela. Felizmente. Vou continuaragora, espero, com algo mais leve: A solidão dos números primos .Pelo título, não dá para saber do que se trata. Eefje escolheu esteentre os dois títulos possíveis.

Tenho a impressão de que não faz muita diferença o que eu leio,desde que eu leia. Eu me vejo como um riacho murmurante que traztranquilidade.

Também não faz muita diferença o que coloco para ela escutarem sua meia hora diária de música, embora eu não ouse, nem porbrincadeira, pôr um heavy metal ou um rapper com rimas em inglêscheias de fucking isso e fucking aquilo. Com o supertrio Bach,Mozart e Beethoven, sempre me saio bem como DJ . Em geral, elaadormece suavemente.

Sexta, 29 de novembroFui com minha primeira fralda ao supermercado. É bem

confortável.Esse obstáculo, portanto, foi superado. Teve a ver com o fato de

termos uma nova moradora que frequentemente anda pela casacom uma grande mancha úmida no vestido. Ela é, em geral,discretamente avisada sobre isso, mas em voz tão alta que todosconseguem ouvir.

— Oh, vazei de novo? — diz, desconcertada e surpresa, como senão acontecesse algumas vezes por semana.

Para piorar um pouco, alguém sempre anuncia que a cadeira delatambém está encharcada . Palavra que é bem apropriada.

Custe o que custar, quero evitar que alguém venha me dizer queminha calça está molhada. Então fui imediatamente experimentar aamostra grátis de fraldas para incontinência (mini) que recebi dogeriatra hoje de manhã.

No mais, a visita ao médico não deu em nada. Nenhum problemanovo (“Estacionar é progredir”, disse, contente, o doutor) e tambémnenhuma nova esperança para Eefje.

— Essa senhora não informou antecipadamente que não queriaficar na enfermaria; ao menos, uma declaração assim não foiencontrada, e ela já não pode se expressar claramente. Nesse caso,eutanásia está fora de cogitação. Nenhum médico vai considerar.

Sábado, 30 de novembroSessenta anos juntos, Bernard e Georgette Cazes, e deixaram

esta vida de mãos dadas. Que lindo!Escolheram um hotel de luxo em Paris como local para o ato final.

É pena terem tido que recorrer a sacos plásticos sobre a cabeça.Para serem encontrados logo, pediram café da manhã no quarto.Pobre camareira.

Algo mais agradável: ontem à noite fui jantar num pequenorestaurante indonésio com Ria e Antoine. Comi deliciosamente, sóque uma hora tossi e fiz o krupuk voar da tigelinha. Mas ninguém seincomodou.

Dessa vez, a conversa não foi focada em gastronomia: elesquerem fazer uma viagem a vinícolas na próxima primavera eperguntaram se não quero ir junto. Ficaram um tanto decepcionadosporque, a princípio, permaneci um pouco pensativo, mas eu tinhaentendido que queriam fazer uma viagem pelo Reno. Estar comalgumas centenas de idosos, num barco de onde não dá paraescapar, me parece um inferno.

Quando o mal-entendido foi desfeito, contei que estavaplanejando a mesma coisa.

— Então vamos unir forças.Tenho alguma reserva quanto à ideia de empurrar Evert em sua

cadeira de rodas de château em château. Ainda mais se ele tiverbebido vinho demais, daí vai cair espontaneamente.

Talvez possamos pedir a Stelwagen que cuide do cachorro dele.

Domingo, 1o de dezembroMais um mês, fechamos o ano, e o diário termina. Ontem reli

boas partes e, me desculpe, com frequência trato de coisasdesagradáveis. Sendo que uma das razões para escrever erajustamente afrontar o constante mau humor daqui.

Mas não dá para ser diferente: faço diariamente o trajeto atéEvert, amputado, Grietje, demente, e Eefje, em estado quasevegetativo.

Nosso clube Tô-velho-mas-não-tô-morto, que floresceu por poucotempo, está passando por momentos difíceis. Nosso declínioganhou do sr. Pot o seguinte comentário:

— Bem feito! Nós não éramos bons o suficiente. Agora, quemorram.

— Eles alguma vez fizeram alguma coisa contra você? Por acasoincomodaram? — perguntou a sra. Aupers, estupefata.

Felizmente também há muitos moradores e funcionários solidárioscom o sofrimento do clube.

Em toda a minha melancolia, o sr. Hoogdalen, do nunca criadoclube de scooters O Antílope, veio até mim em boa hora e convidoupara darmos uma volta. Com certeza! Ele em seu incrementadoscoot-de-luxe, eu em meu conveniente Élégance.

Ele conhecia um percurso bonito. Eu só tinha que ir atrás de“pode me chamar de Bert” Hoogdalen. Depois de uma hora,paramos em um café para tomar uma sopa. Bert é um homem depoucas palavras. E que não gosta nem um pouco de frases inteiras.

“Bonito passeio”, sobre o passeio.“Sopa gostosa”, sobre a sopa.“Vamos?”, na hora de sair.

E na despedida: “Força. E, eh... não dê bola para eles”.Foi bom para ventilar a cabeça.

Segunda, 2 de dezembroNão recebo correspondência com frequência, mas quando recebo

em geral é uma carta notificando que posso descontarimediatamente um cheque de 8.990 euros. Junto vem um envelopeselado. E, como condição adicional, tenho que comprar seispalmilhas térmicas caríssimas.

A sugestão é de que eu já ganhei o dinheiro. Só quando você lêcom atenção vê que o que dizem é que você tem “uma chance” deganhar. O processo é “supervisionado por uma pessoa neutra”,então está tudo bem. Só por curiosidade, procurei me informarsobre quem aqui recebe tais correspondências. São muitos.Inúmeros moradores não conseguiram resistir à tentação. Oresultado: não ganharam nenhum prêmio, mas pagaram caro portratamentos com folhas do Himalaia, meias especiais feitas debambu ou o bálsamo ativo de Rapunzel. Não estou inventandoesses produtos! Eles podem ser encontrados em diversos quartos,bem escondidos na parte de baixo de algum armário.

A maioria dos compradores prefere não tocar no assunto. Um ououtro grita aos sete ventos que foi ludibriado.

Idosos são vítimas fáceis.Não cancelo esse tipo de correspondência porque quero saber o

que anda aprontando a frente inimiga.

Terça, 3 de dezembroOntem à tarde tive que ir à festinha de São Nicolau. Evert tinha se

prometido algumas horas de farra, e eu me senti obrigado aprotegê-lo de si mesmo. Não foi fácil.

Primeiro, ele cantou alto demais e bem desafinado todas asmusiquinhas, e todos olharam incomodados para seu lado. Depoisficou insistindo para que a sra. Van Til se sentasse no colo do SãoNicolau, o que o bom velhinho, com razão, recusou. Van Til jápassou dos cem... quilos!

Em meia hora, meu amigo já tinha tomado quatro canecas dechocolate quente, que ele batizou com o rum que havia levado decasa e no qual molhava grandes pedaços de folhado recheado demarzipã.

Com certeza teria havido um motim se a sra. Zonnevanck nãotivesse atraído as atenções tropeçando no saco do Zwarte Piet equebrando um braço.

Demorou meia hora para que a sra. Zonnevanck fosse levada deambulância e os ânimos se acalmassem. Enquanto isso, após seiscanecas de chocolate quente, Evert cochilou em sua cadeira derodas e eu o levei até seu apartamento. Lá eu o prendi, com cadeirae tudo, entre o armário e a cama, de maneira que não pudesse cair,e fui embora. Há limites para o trabalho de um cuidador.

A festinha na sala de bate-papo não recuperou mais o ritmo. Adúvida se Zwarte Piet deveria ou não ser responsabilizado porbalançar seu saco estragou bastante o clima.

Quarta, 4 de dezembroInfelizmente não mora nenhum chinês em nosso asilo, de outra

forma Evert, como Gordon, aquele apresentador de TV , certamentejá teria feito algumas piadas politicamente incorretas para testar olimite das coisas. Há pouco que discriminar aqui, pois osestrangeiros que vivem na casa são tão adoráveis que ninguémousa fazer um comentário preconceituoso.

Um país cujo maior problema são piadas sobre chineses ealvoroço sobre o Zwarte Piet não está tão mal quanto em geral sepensa.

Fico ofendido quando uma pessoa mestiça, amarela ou negra falasobre branquelos ou baratas descascadas? Não. Ficaria ofendido seSão Nicolau fosse negro e todos os ajudantes fossem brancosburros, com lábios finos e um sotaque exagerado de Amsterdã?Não. Será porque meu tataravô nunca foi escravo, mas empregadode uma fábrica, trabalhando sessenta horas por semana por umsalário de fome? Não.

Vou até brincar um pouco de São Nicolau. Comprei presentespara meus amigos. A saber: um perfume para Eefje, luvas paraEvert, um livro sobre champanhe para Ria e Antoine, um calendáriopara Grietje, um vídeo com instruções sobre bilhar para Edward eum presépio dobrável para Graeme.

Para mim, comprei um pulôver. A vendedora achou que, emtermos de estilo, combinaria comigo.

Hoje à noite vou embrulhar tudo com papel de presente e amanhãvou entregar de porta em porta.

Quinta, 5 de dezembroA simpática caixa do supermercado não sabia o que fazer com

uma gorjeta.— São vinte e quatro euros e dez centavos.— Pode cobrar vinte e cinco — disse Graeme, dando uma nota

de cinquenta.Não, desculpe, não era possível, senão seu caixa não fecharia

nesta noite.Graeme explicou pacientemente que ela devia colocar uma

caixinha de gorjetas ao lado do caixa. Ele se divertiu com sua piadaespontânea. O homem mal-humorado atrás dele, não. “Dá pra irmais rápido?”

Evert pensou imediatamente numa variante: pechinchar.— São vinte e quatro euros e dez centavos.— Eu dou dezoito.— Hã?— Ok, vinte então, mas não mais que isso.— Meu senhor, o senhor tem que pagar vinte e quatro euros e

dez centavos.— Não, acho muito caro. Deixa pra lá, então. — Em seguida,

deixa tudo na esteira do caixa e vai embora.Evert vai experimentar amanhã. Ele espera ter seguidores.A primeira neve está chegando, disse o homem do tempo. Não

gosto do final do outono e do inverno. Por mim, hibernaria e sóacordaria de novo no início de março. Pena que durmo tão mal. Játenho dificuldade em dormir seis horas seguidas. Eu seria um ursoimprestável.

Está ficando frio demais para passeios com o quadriciclo. É

preciso vestir tanto agasalho que mal dá para se mexer. Mas, enfim,sentar-se três meses diante da janela esperando as primeiras florestambém não é uma alternativa estimulante.

Sexta, 6 de dezembroNelson Mandela morreu. Um de meus últimos heróis. O homem

que nunca caiu de seu pedestal. Todos os líderes mundiais irãoexpressar seu profundo respeito por Mandela, mas poucosrealmente aprenderam alguma coisa com ele.

Ontem, meus amigos ficaram agradavelmente surpresos ealegres com seus presentes. Tive que fazer algum esforço paradeixar claro que não era a intenção receber nada em troca. Jávivemos num mundo muito toma lá, dá cá.

Contei a Eefje que tinha um presente para ela, em seguidadesembrulhei para que visse e a fiz sentir o perfume. Na mesmahora me dei conta de que não sabia se ela ainda tinha olfato. Masela fez que sim com a cabeça quando perguntei se tinha gostado.Pus um pouco de perfume em seu pescoço e seus pulsos eesfreguei. Foi um momento de intimidade, e não sou tão bom commomentos de intimidade. Eu me sinto muito desajeitado. A maiorparte do perfume ficou no ar.

Felizmente, pude logo em seguida começar a leitura de A solidãodos números primos . Já perguntei umas três vezes se ela não achaque é um livro muito triste. A resposta, em todas as vezes, foi não.

Após meia hora, ela já dormia como um bebê.Depois tomei uma sopa de ervilha lá embaixo. Estava ótima, mas

tive que ouvir bem umas dez histórias não solicitadas sobre mães eavós que antigamente faziam sopas de ervilha muuuito maisgostosas. Antigamente, sempre antigamente. Vivam um pouco opresente, suas múmias!

Sábado, 7 de dezembroDecidir matar ou não matar gansos está causando comoção.— Um ganso não faz a menor ideia de onde está e em que

lugares pode ou não pode ser morto com um tiro — disse nossaprópria mamãe gansa.

Ela compra três vezes por semana pão branco (segundo ela,gansos não gostam de pão integral), come umas três fatias, congelaoutras duas para o dia seguinte e leva o restante para os gansosque já há dez anos enchem de merda um terreno um pouco adiante.

— Se cada província puder levar a cabo seus próprios planospara os gansos, isso trará uma grande desigualdade para osbichinhos — defendeu nossa mamãe gansa.

Depois do chinês ofendido na TV e do Zwarte Piet ameaçado,agora os gansos ilegais. Quantos problemas terríveis este país podesuportar?

Os moradores foram comunicados numa carta sucinta daadministração de que agora se decidiu oficialmente que a reformacompleta do prédio terá início em setembro. Sobre a participaçãodos residentes na decisão, da qual haviam falado, nenhuma palavra.A carta também não explicava o que exatamente irá acontecer. Nãotinha como deixar as pessoas mais nervosas.

— Espero que eu já tenha morrido quando isso começar — dissea sra. Vergeer, falando sério.

— Não dá para mudar planta velha de vaso — disse o sr.Apotheker umas cinco vezes. Como esse homem resmunga ereclama! Se forem trocá-lo de vaso, tomara que enterrem suacabeça na terra.

Domingo, 8 de dezembroEsqueci o livro de Eefje em meu quarto e perguntei, meio de

brincadeira, se podia ler o jornal para ela, para variar. Ela fez quesim com a cabeça, como sempre faz.

Talvez se passe muito menos em sua cabeça do que eu imagino.Quem sabe ela esteja calma e tranquila, embriagada por remédios.Ou talvez esteja gritando de maneira inaudível. Não faço ideia.

Leio para ela, ponho música e tenho a impressão de que elagosta. De qualquer forma, mal não faz, e eu me sinto bem fazendoisso.

Por falar em jornal.— Pode me passar o jornal? — pediu o sr. Bakker, na semana

passada, na sala de bate-papo. Evert deu uma remexida no cestode revistas e passou para ele um jornal da semana anterior. Ele nemnotou! Quando depois de meia hora Evert perguntou se as notíciasnão pareciam familiares, Bakker ficou furioso. Não com ele mesmo,o que faria sentido, mas com Evert. Isso fez com que meu amigoficasse muito satisfeito. Nós adoramos ver Bakker furioso.

Segunda, 9 dezembroAcessei junto com Grietje o Alzheimer Experience , um site

interativo que apresenta em vídeos curtos o desenvolvimento dadoença de Alzheimer em uma mulher e um homem idosos. Pode-seescolher alternadamente a experiência do paciente ou a docuidador. E é possível clicar a qualquer momento num médicovestindo um tranquilizador jaleco branco para comentáriosespecializados.

Fiquei extremamente incomodado com assistir aos vídeos juntocom Grietje, mas ela mesma estava tranquila. Observava cominteresse como ela própria estará daqui a seis meses ou um ano.

O último vídeo era sobre o funeral.Eu não sabia o que dizer.— Puxa, Henk, não fique tão triste. Tem que pensar: se ela não

acha tão grave, por que eu tenho que me preocupar? — Econtinuou: — Alzheimer, aliás, está muito na moda. Pode abrirqualquer revista e vai ver que tem alguma coisa sobre o assunto. Adiretora de teatro Adelheid Roossen fez uma peça sobre sua mãedemente; no YouTube tem um vídeo com o político Jan Pronkfalando sobre sua mãe demente; a política Maria van der Hoevendeu uma entrevista ao jornal Volkskrant sobre a deterioração de seumarido. Você pode ficar feliz por ter a mim!

Nessa hora, eu a aplaudi.Ela me convidou para jantar fora hoje.

Terça, 10 de dezembroParece que Velho além da medida já existe como título de livro. É

uma obra de Ellen Pasman sobre o caso Willem Oltmans contra oEstado holandês. Se meu diário algum dia for transformado em livro,não vai poder ter esse título.

Pensei nas seguintes alternativas:1. O ralo2. Acabou, tá acabado3. Pronto, acabou4. Dito e feito5. Lar de idosos Na Reta Final6. Sinais de fumaça num furacão (soa bonito, mas não tem nada

a ver)7. Moscas sobre o caviar (idem)Ontem fui jantar com Grietje no Stork, um restaurante de frutos do

mar moderninho no ij. Ainda tenho que me acostumar à ideia develhos galpões de fábrica como lugar para jantar, mas os pratosestavam deliciosos e as pessoas eram simpáticas.

Fomos de micro-ônibus e voltamos de táxi. Grietje quis pagartudo.

— Ainda tenho que torrar sete mil euros, antes que eu não saibamais o que é dinheiro.

Num período de poucos meses, Grietje se tornou muito maisaberta e direta, como se o Alzheimer tivesse um efeito libertadorsobre ela. Ela tem esperança de poder fazer a viagem às vinícolasconosco no final da primavera, sem ser um fardo demasiado pesadopara nós. Assim, à primeira vista, ela ainda parece ter tudo sobcontrole, mas, prestando bem atenção, percebe-se sua decadência.

Por exemplo, ela teve dificuldade em encontrar o caminho de voltado toalete até nossa mesa. E entrou no táxi no lugar do motorista,que estava fumando ao lado do carro. Ele achou que ela estavabrincando com ele.

Quarta, 11 de dezembroEefje está definhando aos poucos. Emagrece cada vez mais e

dorme quase o dia inteiro. De vez em quando, fica acordada porquinze minutos. Continuo lendo e pondo música para ela escutar,mas os gestos de aprovação que faz com a cabeça tornam-se cadavez menores. Ela parece se entregar à morte, lentamente.

Sento-me a seu lado e seguro sua mão. Às vezes acaricio suaface envelhecida. Uma vez ou outra, ela me olha, como sereconhecesse alguma coisa.

O médico diz que ainda pode durar uma semana ou um mês,talvez dois.

Num rompante de rebeldia, coloquei, contra o regulamento, umaárvore de Natal de verdade em meu quarto. Mesmo que minhaárvore de Natal só tenha cinquenta centímetros de altura, incluindoa ponta, não é permitida por causa do risco de incêndio. Eu acontrabandeei dentro de um saco de lixo que uso para cobrir oquadriciclo.

Estou curioso para saber se vou ser delatado e, se for, por quem.

Quinta, 12 de dezembroHoje de manhã, a sra. Tan me abordou na sala de bate-papo.— São estas as pílulas certas? — Mostrou-me uma caixinha, e eu

disse que não entendia nada de pílulas.— Eu também não — disse ela —, mas minhas outras pílulas

acabaram e estas têm a mesma cor.Chamei uma enfermeira, o que provocou um olhar furioso da sra.

Tan.Para evitar brigas, a direção faz um esquema semanal de

programação, para a televisão, no qual está definido que canal serásintonizado lá embaixo a cada dia. O futebol tem tratamentopreferencial. Nas partidas da seleção holandesa e do Ajax, grandeparte dos residentes pode ser encontrada diante da telinha. E nãosó os que gostam de futebol; há pessoas que sempre assistem àtelevisão lá embaixo, não importa o que esteja passando, entãotambém há espectadores que realmente não entendem nada defutebol.

A sra. Sluys, por exemplo, fica contando em voz alta quantasvezes um jogador cospe no chão.

— Eles cospem tanto — diz ela, toda vez, sem compreender.— É, no bilhar é um pouco menos — comentou Evert.

Sexta, 13 de dezembroSexta-feira Treze, bom dia para apostar na loteria. Deve haver

sempre uma esperança. Se eu vencer o prêmio máximo, comprouma pequena casa de repouso para mim e meus amigos. Nãohaverá direção, porteiro nem conselho administrativo. Tampoucogerente de recursos humanos, contador ou chefia de serviçosinternos. Sem regras nem estatutos. Isso vai economizar rios dedinheiro e um monte de reclamações. Haverá, sim, lugar para o bomsenso, para funcionários simpáticos e para um bom cozinheiro –isso quando não tivermos vontade de preparar refeições em nossabela cozinha. Uma casa com quartos claros e espaçosos, ondequem quiser pode ter um gato, um cachorro ou uma árvore de Natal.

Bastante simples, na verdade.Continue sonhando, Hendrik.Recebi hoje pelo correio uma carta expressa com documentos

originais intransferíveis e um envelope de segurança para recebermeu cheque de 7.450 euros e fazer minha encomenda de pílulas depapaia.

Sábado, 14 de dezembroTodos os peixes foram encontrados mortos no aquário do quarto

andar. Desta vez, não havia nenhum vestígio de bolo. Por via dasdúvidas, fui até a casa de Evert perguntar se ele por acaso, paravariar, tinha jogado algum líquido desentupidor de ralos, mas elejurou que não sabia de nada.

Pode ter sido simplesmente alguma doença de peixes, emboraninguém acredite nisso depois dos dois ataques anteriores aosaquários.

— A direção aguarda o relatório do veterinário e fará umainvestigação minuciosa — comunicaram. Fazer autópsia num tetra-néon não me parece fácil.

A polícia foi deixada de fora desta vez. Isso indica algumacapacidade de aprendizado da direção.

Foi deixado aqui um convite para uma ceia de Natal na casa deEvert, organizada por Ria e Antoine. Para todos os membros doclube, menos Eefje. Vai ficar um pouco apertado no apartamentinhode Evert, e o Mo terá que ir para fora, evitando que seus punsestraguem o prazer de comer. É uma agradável perspectiva. A casade Evert foi escolhida porque lá se pode cozinhar. A festa será nodia de Natal e acontece, não por coincidência, junto com a ceia deNatal do asilo. Assim todos têm uma boa desculpa para não estarpresentes.

Domingo, 15 de dezembroO anúncio de nossa ausência na ceia de Natal não foi muito

apreciado. Ontem à noite, durante a sobremesa, o cozinheiro veioperguntar, na frente dos outros residentes, se por acaso sua comidanão nos agradava.

— Como assim?— Bom, vocês escolheram não participar da ceia.— Temos um jantar en petit comité — respondeu Antoine.— An petí comitê?— Num grupo pequeno.— O que tem de errado com nosso grupo? — interrompeu o sr.

Bakker, bufando.— Nada.— E então?O cozinheiro leva tudo para o lado pessoal. Se alguém deixa uma

batata no prato, por ele, pegaria o ofensor e a meteria pessoalmentegoela abaixo. Ele tem muito orgulho de sua profissão, só que nãocozinha muito bem, o que, para um cozinheiro, é um inconveniente.Em minha busca por franqueza, talvez eu devesse ter dito isso, masnão me pareceu o momento apropriado. Poderia ter ganhado umafacada entre as costelas. E, usando as palavras do escritor Karelvan het Reve: “Tenho uma terrível antipatia por ser morto afacadas”. O ambiente já era suficientemente hostil. Ao redor, todosresmungavam sobre o fato de que nós não os achávamoscompanhias agradáveis. Também não me pareceu apropriado falarsobre a falta de autoconhecimento deles naquele momento.

Segunda, 16 de dezembroAs pessoas me olhavam compadecidas: “Oh, aquele velhinho em

seu quadriciclo em plena chuva”. Mas eu estava me divertindo.Esperei por um aguaceiro forte para estrear minha nova capa dechuva. Não é tão à prova d’água quanto a embalagem prometia,porque penera um pouco pelas costuras. Mas, enfim, não reclame,vá em frente.

Após uma hora, entrei encharcado pelo hall. O porteiro me olhoufurioso porque deixei um rastro de lama e ele tem que manter o halllimpo. Acenei com simpatia extra.

Com essas condições climáticas, é preciso não se esquecer desair com a bateria carregada. Se acontecer de ficar parado nocaminho e a ajuda não aparecer rapidamente, pode-se morrer defrio. Num domingo à tarde, em dezembro, em muitos lugares daárea norte de Amsterdã não há vivalma na rua. E se uma almaaparecer, ainda é preciso se esforçar para que ela pare para umvelho acenando num quadriciclo, não simplesmente acene de volta.Por segurança, sempre levo o celular comigo. Não sei se a guardade trânsito atende a cadeiras motorizadas.

Depois de meu passeio molhado, passei no apartamento de Evertpara um conhaque. Acabaram sendo três. Em seguida, pedimosuma pizza quattro stagioni que ficou tempo demais em sua caixa depapelão. Até o Mo achou que estava borrachuda.

Chegando em casa, tive apenas energia suficiente para cair nosono em frente à TV .

Terça, 17 de dezembro— É melhor o senhor parar com a leitura. Não acredito que a sra.

Brand ainda o escute.Eefje raramente está de olhos abertos e praticamente não reage

mais, então talvez a enfermeira esteja certa. Mas acredito que,emocionalmente, pode ser que ela tire algum consolo da voz ao ladode sua cama, que a leitura a tranquilize. E, se todos os dias fico alisentado por meia hora, duas vezes, posso muito bem ler um livro epôr um pouquinho de música. Se não trouxer calma e consolo a ela,traz um pouco a mim, de qualquer forma. Não dá para ler e ficarremoendo preocupações ao mesmo tempo.

Além disso, acabei de começar um livro novo: O dinheiro ou avida . Sobre cinco idosos num asilo que planejam um assalto.Parece um livro interessante, com personagens familiares.

Ser velho está em alta. Pelo menos, há uma produção de filmes,livros, documentários e artigos de jornal sobre idosos. Em nosso diaa dia, não percebemos muito essa atenção extra, pelo contrário. Hámenos dinheiro e menos assistência que alguns anos atrás.

A próxima geração de anciãos começa a se preocupar, agora quevê seus pais ficarem solitários ou serem enterrados. Os ricos epoderosos sessentões de hoje com certeza não vão definhar numasilo como este.

Quarta, 18 de dezembroO sr. Tolhuizen viajou de ônibus para visitar seu filho em

Geuzenveld. Para uma pessoa de noventa e três anos, foi umgrande esforço. Na volta, ele foi ajudado pelo atento motorista nahora de entrar no ônibus. Teve que se sentar no cantinho de trás,porque outros seis idosos já estavam nos bancos da frente.

Foi uma viagem longa, passando pelo Bijlmer e pela região sul deAmsterdã, e o sr. Tolhuizen ficou um pouco rosado porque omotorista, a pedido dos velhinhos, tinha posto o aquecedor em vintee três graus. A certa altura, ele deve ter cochilado.

Quando acordou, tinha deslizado um pouco do banco em seucantinho. Demorou alguns segundos até que reconhecesse onde seencontrava. Tudo estava quieto e escuro. O motor estava desligado,e ele, sozinho. O ônibus estava parado numa rua deserta em Koogaan de Zaan e com todas as portas trancadas.

O motorista ainda olhou por cima dos ombros, mas Tolhuizenficou em seu ponto cego.

Demorou meia hora até que o sr. Tolhuizen conseguisse chamar aatenção de um pedestre e depois mais quarenta e cinco minutospara que a polícia, que havia sido alertada, aparecesse, na maiorcalma. Abriram o ônibus em trinta segundos, sem causar danos.

Vinte minutos mais tarde, veio o motorista, completamenteaturdido, pego de pantufas. O coitado ficou se desculpando durantetodo o caminho de volta para casa.

— Fiquei com dó dele — disse Tolhuizen, que nunca antes tinhasido o centro das atenções.

Quinta, 19 de dezembroA sra. Trock (“Acho que meu holandês é bastante mesmo bom”)

teve trinta e sete erros no Grande ditado da língua holandesa . Querdizer, na primeira frase. De repente ela precisou ir ao banheiro comurgência. Queria levar seu papel, mas Graeme evitou que issoacontecesse.

— Deixe que eu guardo para a senhora.Os outros quatro participantes já tinham desistido assim que

fizeram a primeira leitura do ditado na televisão.Eu mesmo sou preguiçoso demais para participar.O sr. Tolhuizen recebeu um telefonema do porta-voz da

Connexxion com a reconfortante informação de que o motorista queo deixara trancado no ônibus tinha sido sumariamente demitido.

Tolhuizen disse imediatamente que havia se escondido depropósito e só depois adormecido. Depois também queria ligar parao motorista, mas a Connexxion se recusou a dar o nome ou onúmero de telefone.

— Era um cara simpático. Só não sabia contar muito bem, masisso não é motivo para demitir uma pessoa!

No fim, ele conseguiu o número de telefone e ligou para omotorista para dizer que estava disposto a declarar sob juramentoque tinha se escondido.

— As pessoas estão sempre prontas para dar opiniões, mas àsvezes uma coisa acontece apenas por uma infeliz coincidência.

Tiro o chapéu para Tolhuizen.

Sexta, 20 de dezembroEefje desliza lentamente para a morte. Já não abre mais os olhos.

Não há nenhum outro sinal de vida além de sua respiração. Parei aleitura. Vou lá todos os dias para dar bom-dia e segurar sua mão.

Tivemos tão pouco tempo juntos.Nunca lhe disse que sou louco por ela.

Sábado, 21 de dezembro— Se alguém aqui é contra a diarreia, este alguém sou eu —

disse o sr. Bakker. — Cago mole umas três vezes por semana. Masfazer uma ação para mim, nem pensar.

Alguns moradores acharam a ação da organização SeriousRequest contra a diarreia uma bobagem.

— Pode mandar um caminhão de carvão ativado pra cá. Não vaicustar dez milhões, vai? — avaliou a sra. Pot, que engole pelomenos mil euros em comprimidos por ano.

Hoje fui visitar Grietje. Ela montou um bonito presépio, masreparei que o menino Jesus estava coberto de moscas.

— É, eu também reparei — disse ela.O rastro das moscas levava a duas bananas apodrecidas que ela

tinha deixado atrás do presépio.— Já havia um bom tempo que eu não sabia onde elas estavam!Passara dias procurando pelas frutas, porque estavam marcadas

em sua lista de compras, mas tinha perdido a esperança de aindaencontrá-las em estado comestível. Demos risada disso tudo, e elalimpou a bagunça. Tomara que as moscas desapareçam. AgoraJesus também sabe como se sente um bebezinho negro africano.

Grietje está decaindo aos poucos, quase imperceptivelmente.— Cada dia bem vivido é um dia que conta — diz ela.

Domingo, 22 de dezembroOs preparativos para a ceia com o clube Tô-velho-mas-não-tô-

morto no dia de Natal já começaram. No dia 26, segundo dia deNatal, vamos nos unir aos outros moradores lá embaixo, norefeitório. Vai exigir algum esforço.

— Pensei, pois, que no dia 26 vocês também não viriam — disseo cozinheiro, com meu formulário de refeições preenchido na mão.

— E em que, “pois”, o senhor se baseou? — perguntei.Ele teve que refletir um pouco.— O que o senhor quer dizer?— O senhor disse que pensou, “pois”, que também não viríamos

no dia 26.— Ah, esse pois.— É, pois.Ele já não estava entendendo mais nada.— Pois, então, o senhor vem?Como digitador dos cardápios da nossa ceia de Natal, sou o único

que sabe o que iremos comer.Estou ansioso para provar meu primeiro peru recheado. O famoso

prato de Natal de livros e filmes. Nunca vi um desses frangosgigantes ser servido. Com Ria e Antoine como cozinheiros,sabemos que esse peru não terá morrido em vão.

Também chama atenção o retorno dos produtos gourmet. Algunsanos atrás, não se ouvia mais falar nisso, mas agora ossupermercados estão há semanas cheios de pacotes gourmet. (Nãoestragam?)

Dois anos atrás, também tivemos uma experiência gourmet aqui.Os danos: diversas queimaduras, vários vestidos e ternos cheirando

a fumaça, uma peruca chamuscada, carne que parecia carvão edois funcionários atingidos por uma explosão. Uma carnificina!

Segunda, 23 de dezembroSerá coisa do capeta? Nossa moradora mais gorda, que amava

comer como ninguém – melhor, amava devorar de tudo –, morreudois dias antes do apogeu culinário do ano. Pesava cento esessenta quilos, o que para uma altura de um metro e quarenta ecinco era realmente demais. Não podia fazer muita coisa, pois sofriada síndrome de Prader Willi. Mas, surpreendentemente, viveubastante apesar disso: setenta e oito anos.

Estava havia quase uma década permanentemente sentadanuma cadeira de rodas feita sob medida e só fazia uma única coisa:comer. Afora isso, já não tinha muito de humano. Ninguém maistinha contato com ela.

Deve ter sido uma tarefa e tanto para os enfermeiros daquimanter razoavelmente limpa aquela enorme bola de gordura, comtodas as pregas e as rugas, por todos esses anos.

Para essa cliente, o agente funerário teve que mandar fazer umcaixão em forma de cubo.

Desculpe-me chamar atenção para esse caso de maneira umtanto grosseira, mas não posso florear a realidade, que é ao mesmotempo triste, dura e risível.

Recebi uma visita inesperada da chefe de serviços internos. Elaouvira dizer que eu, contrariando o regulamento, tinha uma árvorede Natal. Neste ano ela fecharia os olhos para isso. Nossa, quantamaleabilidade!

Ela não quis contar de quem “ouvira dizer”.

Terça, 24 de dezembroEstou jejuando um pouco hoje para ter um apetite saudável

amanhã.Meu terno mais bonito já está pronto, ao lado de uma camisa

recém-passada e da gravata-borboleta dourada que comprei muitotempo atrás numa casa de festas. Os sapatos foram engraxados.

Ainda gosto de me arrumar. Vaidade não tem idade.Todos os cardápios terão de ser reescritos por causa de erros

perturbadores nos nomes franceses dos pratos. Antoine chamoudelicadamente minha atenção para isso. Também tenho que daruma melhorada em meu discurso do brinde. Estou muito atarefado.E lá se foi meu passeio de quadriciclo.

Ontem, durante o chá, questionei várias pessoas, e há moradoresque saíram pela última vez em outubro. Ficam dentro de casadurante a maior parte do outono e por todo o inverno, a não ser quehaja um motivo urgente para sair. Ainda assim, o sair se limita apequenos trechos até o micro-ônibus ou o carro do filho ou da filha.

Gosto de me molhar na chuva de vez em quando e deixar meuspoucos cabelos ao vento. Não faltou oportunidade para isso nasúltimas semanas. Ainda não há sinal do inverno rigoroso previstonovamente para este ano.

Quarta, 25 de dezembroPassei para ver Eefje hoje de manhã e desejar um feliz Natal.

Quando me vi junto à cama dela, eu me dei conta de que não haviamuito que desejar. Talvez uma boa viagem.

Ela estava tão tranquila, magra, pálida e, ainda assim, distinta ebonita.

A enfermeira disse que provavelmente não levaria mais muitotempo.

Depois tive que ir até Evert para um pouco de distração. Antesque eu dissesse uma palavra, ele falou: “É sua linda velha amada,não é? Ela já está quase pronta para descansar. Conceda isso aela”.

Então ele me serviu um café e uma rosquinha e olhou para orelógio. Eram dez para o meio-dia.

— Ah, que bom — disse ele. — Em dias festivos, só bebo depoisdo meio-dia. — E serviu uma dose de um bom conhaque para nósdois.

— Saúde, meu melhor amigo.Em seguida, voltei para meu quarto para escrever um pouco.

Mais tarde vou tentar tirar um cochilo, depois me vestir, pentear ealisar bem o cabelo; às 16h sou esperado novamente na casa deEvert para nossa ceia de Natal. Estou muito ansioso.

Quinta, 26 de dezembroA ceia de Natal foi emocionante. Ria e Antoine entrando na sala,

no escuro, com um enorme peru com três estrelinhas espetadas portrás soltando faíscas. Evert, que deixou cair um pedação de tiramisuno colo enquanto servia. E, modéstia à parte, meu discurso tambémnão foi mau. Falava da amizade como base para uma vidaprazerosa. Talvez tenha sido um pouco sentimental (Antoineenxugou uma lagrimazinha), mas foi de coração. Fizemos um brindea Eefje, “a força silenciosa por trás de nosso clube, que agora estárealmente muito silenciosa”. Depois bebemos a nossa amizade, atéque a morte nos separe, o que para nós não é uma previsãodemasiado ousada.

No final, aplaudimos os cozinheiros em pé.A próxima ceia de Natal é daqui a pouco, à uma da tarde, com

todos os residentes que não foram levados por seus filhos. A horaescolhida ainda rendeu mil lamúrias das pessoas que não gostamde se desviar de seus rígidos esquemas diários nem mesmo pelonascimento de seu salvador.

Com certeza vamos escutar algumas vezes. “Na verdade, nãotenho vontade de comer comida quente à tarde” ou alguma variantedisso.

Daqui a uma hora, vou descer com a firme intenção de não meaborrecer. Com ninguém.

Sexta, 27 de dezembroA ceia de Natal número dois não foi má. Os funcionários fizeram

uma distribuição de assentos, em função da briga irrompida no anopassado sobre quem deveria se sentar em qual lugar, quando umasérie de moradores já tinha reservado seus assentos de manhãcolocando a bolsa na cadeira. Só faltou colocarem um sinal escritoOCUPADO .

Encontrei Evert como meu vizinho de mesa. Provavelmente, nãoousaram pôr nenhuma outra pessoa ao lado dele. No mais, estavamem nossa mesa Grietje e Edward e as irmãs Eversen, que sempreacham tudo delicioso, agradável e fantástico, portanto, não há doque reclamar.

O cozinheiro se superou e não fez o lombinho com molhocremoso de sempre, mas um guisado de carne de caça com arroz.Um empreendimento ousado. Para não chocar demais, a entrada foium coquetel de camarões, e a sobremesa, sorvete de baunilha comcreme e calda quente de chocolate.

Foi gostoso e agradável.Até o discurso de abertura da sra. Stelwagen foi bom, ou seja,

bem curto. Se você não é um orador talentoso, a regra maisimportante é: seja breve.

Principalmente em funerais, essa regra é com frequênciaesquecida. “Ainda lembro bem que encontrei Pietje pela primeiravez na reunião da associação de criadores de pombos-correio ORato Voador, e ele me disse: ‘Jan, você não quer...’”. Quandoalguém começa assim, o discurso não vai dar em nada e, em geral,fala mais do próprio emissor.

Sábado, 28 de dezembroPor sugestão de Edward, vamos comemorar a passagem do ano

duas horas mais cedo porque já não conseguimos esperar a meia-noite sem cair no sono. Ninguém criou problema. O início de um anonovo é questão de convenção. Simplesmente vamos adiantar orelógio duas horas. A comemoração será no apartamento de Ria eAntoine.

Na virada do ano, idosos são como cachorros: mal ousam sair àrua, por causa dos fogos. Não de todo sem razão. Circulam pelobairro alguns grupinhos que escolheram cães e velhinhos como alvoprincipal. Jogaram, por exemplo, um rojão enorme embaixo de umCanta, que, com a explosão, perdeu a direção e foi parar numacerca. O motorista não teve mais coragem de sair à rua no mês dedezembro até o fim de sua vida. Felizmente, houve apenas danosna lataria. Os valentes autores fugiram na hora.

A polícia reagiu vigorosamente: deram uma voltinha extra pelobairro. Isso daria uma lição aos delinquentes.

Embora não se tratasse de um residente de nossa casa derepouso, a comoção foi grande.

O jornal publicou uma lista de holandeses famosos falecidos em2013. Eu tinha perdido alguns deles.

Mortos são um dos assuntos preferidos dos idosos. Talvez paraenfatizar que eles continuam vivos.

Domingo, 29 de dezembroEefje morreu.Às 11h lhe dei um beijo na testa enrugada e disse “até amanhã”.Uma hora depois, ela adormeceu para sempre, tranquilamente.Acabo de vê-la uma última vez. Ela ainda está tão bonita.Quero muito ficar feliz por ela, mas ainda estou triste demais.Começaremos 2014 com um enterro. Infeliz Ano-Novo.

Segunda, 30 de dezembroA festa de Ano-Novo do clube irá acontecer, ainda que seja um

pouco menos festiva. As celebrações do asilo para todos osmoradores sempre acontecem. Com tantos idosos, a direção nãopode se dar ao luxo de cancelar festividades cada vez que alguémmorre. Pouca coisa ainda aconteceria.

Ria e Antoine estavam fritando bolinhos de Ano-Novo quandosouberam que Eefje havia falecido. Então acharam que os bolinhosseriam inadequados e decidiram doá-los ao Exército de Salvação.Mais tarde, arrependeram-se e prepararam novos bolinhos paraamanhã à noite.

— Foi o melhor para ela.Podem dizer isso cem vezes, mas não diminui muito minha

tristeza.Encomendamos rosas vermelhas para Eefje. O enterro será na

quinta-feira à tarde. Espero que faça sol.Eefje era uma pessoa noturna e, se pudesse, gostaria de ser

enterrada à noite, com lampiões e tochas. Mas parece que isso nãoé possível.

Depois, nos reuniremos no apartamento de Evert para tomarvinho branco e comer bitterballen. Eefje detestava bolos, pelomenos em enterros. E provavelmente também em aquário. Nuncative coragem de contar para ela a história do bolo no aquário.

Terça, 31 de dezembroEsta é a última vez que escrevo neste meu diário. É uma

sensação estranha. Tornou-se parte da rotina diária, como o jantar.Às vezes a gente não vê a hora, às vezes não tem nenhuma fome,mas não é uma coisa que simplesmente se deixa de fazer.

Vou ficar com tempo de sobra, sem Eefje e sem diário. Quemsabe eu devesse escrever um romance.

Poderia ter sido um bom ano e, em parte, foi. Mas o que vem porúltimo é o que mais influencia o julgamento final. Encontrei alguémque eu gostaria de ter encontrado meio século atrás. Agora tenhoque me contentar com oito belos meses e dois muito tristes. Deveriaestar agradecido por cada dia de felicidade, como Grietje conseguefazer, e tento com todas as forças, mas minhas forças às vezes nãosão suficientes.

Não há como evitar o novo ano. Que venha a primavera! E, emseguida, nossa viagem às vinícolas. Ansiando e tremendo por saberse conseguiremos chegar até lá. A tremedeira já faz parte. O clubeTô-velho-mas-não-tô-morto tem que continuar fazendo jus ao nome,senão será um clubinho sem sentido.

Depois da viagem, tenho que fazer novos planos. Enquantohouver planos, há vida.

Hoje à tarde vou comprar uma nova agenda. Um novo diário.

Aos oitenta e três anos e três meses, Hendrik Groen inicia umdiário – quer garantir que o tempo que lhe resta seja o maisproveitoso possível. Não é tarefa das mais fáceis, dado que vive háanos numa casa de repouso, sem receber visitas, cercado de idososque aos poucos sucumbem a doenças e não resistem a propagarpequenas intrigas.

Junto a um grupo seleto de amigos, cria no asilo o clube Tô-velho-mas-não-tô-morto, que passa a promover pequenas fugas darotina, como aulas de gastronomia, exibição de filmes e sessões degolfe – e que, consequentemente, causa ressentimento entreaqueles que não estão autorizados a fazer parte dessa sociedadetão exclusiva.

Do narrador pouco se sabe, a não ser que a filha morreu cedo eque, em decorrência da tragédia, a mulher entrou em depressão.Essas nuances da vida pregressa surgem enquanto Hendrik fala desua convivência com personagens como Evert, um velho gaiato quecomeça a ter partes do corpo amputadas, e Eefje, uma viúva comquem ele imediatamente se identifica.

Tentativas de fazer algo da vida foi definido pelo jornal britânicoDaily Express como uma espécie de Um estranho no ninho dostempos modernos: “Uma tragicomédia sobre a tirania dasinstituições para os indesejados”.

HENDRIK GROENHendrik Groen é um pseudônimo. Publicado originalmente em

2014, o romance Tentativas de fazer algo da vida virou fenômeno naHolanda antes de se tornar um best-seller internacional, publicadoem mais de 30 países. Em 2016, o autor publicou uma continuaçãodo diário.

Ilustração de capa © Victor Meijer


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